O PRESO POLÍTICO CLANDESTINO

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O preso político clandestino

José de Almeida Lima*

Um passarinho verde me contou: não sei se é possível considerar como caso emblemático. Certamente, porém, é um caso deveras incomum, não usual, raríssimo mesmo, difícil de acreditar. Mas é pura verdade. É fato dado e passado e não é história de pescador. Trata-se de um episódio dado e passado com um certo ativista dos movimentos estudantil e sindical, antes do golpe militar de 1964, e que em 1965 passa à semi-clandestinidade e, a seguir, em 1966 à clandestinidade total. Ele havia, no ano de 1965, ido ao exterior, para fazer um curso de capacitação política e militar na China. Cinco anos mais tarde, em 1971, acaba preso, em razão de uma delação. Estava já com a cara meio amarrotada pelas dificuldades da clandestinidade e o cabelo havia crescido. Isso pode ter sido importante porque a repressão só tinha uma foto do referido ativista, tomada logo após o vestibular e com os cabelos ainda muito curtos. Tal fato, a prisão, acontece em Belo Horizonte e o referido clandestino foi parar no DOI-CODI. O tratamento foi o de praxe, o tratamento convencional aplicado a todos os opositores da ditadura, presos naquela época, ou seja, pancadaria da grossa.


O mencionado ativista estudantil e sindical, além de guerrilheiro treinado na China Popular e agora clandestino, portava documentos com o nome de José de Almeida Lima. Este, mesmo passando pelo tratamento convencional aplicado aos presos políticos naquela época, não se auto-incriminou. Para ele, era muito menos ruim ficar de bico fechado e torcer para que não o descobrissem. Caso descobrissem, bem; mal, melhor dizendo. Se descobrissem, bem e se não descobrisse, amém. Deu amém...

Como nada constava contra este Zé e como ele também não se auto-incriminou, ao final de 90 dias (30 dias de prisão antes da comunicação à Justiça Militar e pedido de prisão preventiva por mais 30 dias seguidos de pedido de prorrogação da preventiva, 90 dias no total) acabou colocado em liberdade no nonagésimo dia, após prestar depoimento ao oficial do exército que presidia o IPM (Inquérito Policial Militar). Assim, um preso político “engrupiu”, passou a perna na repressão, nos chefes lá do DOICODI de Minas Gerais. Em 1972, vai a julgamento, à revelia naturalmente (a imprensa local divulgou o fato) e, evidentemente, por nada constar contra este José de Almeida Lima e por falta de provas, acrescido o fato de que o próprio não se havia incriminado, foi absolvido (e não poderia ser de outra forma).


Ocorre, como já vimos, que o Zé não era Zé: o documento que portava quando da prisão era totalmente falso, além, de frio, mas tinha um jeitão de “quente”. Assim, um clandestino acaba preso, vira um preso político e permanece clandestino, pelo fato, extremamente incomum, de não ter sido reconhecido. O José de Almeida Lima era tão clandestino, mas tão clandestino, que ficou clandestino até na cadeia.

Assim, temos o caso deveras

incomum de um “preso político clandestino”. Permanece dessa forma e assim fica definido até que alguém queira se dar ao trabalho (pouco necessário) de sugerir uma melhor definição.

Quase seis anos depois do ocorrido, a repressão descobre o logro e faz registrar na ficha do SNI com o nome verdadeiro do dito preso: “Em dezembro de 76, em depoimento de um companheiro de subversão, foi citado (...). E como tendo sido preso em Minas Gerais...”. Porém, não assina em baixo, não assume a mancada e não menciona o logro. Também, seria querer muito dos agentes da ditadura. Alguém disse que o chefe da repressão, quando da descoberta, urrava: se eu o pego novamente!!!

Cabem, aqui, dois comentários: a repressão, em 1976 (ano da morte de Manoel Fiel Filho),

ainda

continuava

ativa

e

baseando

sua

atividade

nas

delações

e,

extemporaneamente, alguém fez uma delação sobre fato ocorrido cinco/seis anos antes. Pode ser que tenha utilizado o recurso de “delatar” o que a repressão já sabia, já tinha


conhecimento. Só que, neste caso, mesmo o que delatou não conhecia a identidade verdadeira do delatado. Nada a elogiar e, tampouco, atirar pedras: a tortura é terrível.

Obtive a informação, ainda não confirmada, de que fato semelhante ocorreu com Helenira Resende no Congresso da UNE em Ibiuna: ela também teria permanecido presa com nome falso. Deste fato não tenho confirmação, porém a tenho com relação ao ocorrido com o suposto José de Almeida. Este “causo” é um fato dado, passado e verdadeiramente verdadeiro. E mais: um punhado de pessoas, em BH, são dele sabedoras, inclusive os que ficaram presos com o “Zé” e que ficaram razoavelmente surpresas quando, trinta e tantos anos depois, o Zé apareceu e disse: o Zé sou eu, ou então, por outra forma, eu sou o Zé.

Teria o Zé feito algum acordo com a repressão ou mesmo “desbundado”? Desbundar era o termo utilizado pela repressão para designar os que haviam, por não mais suportar a tortura, mudado de lado ou, também, feito declarações contrárias à luta contra a ditadura. Posso afirmar que o Zé, tão logo posto em liberdade, retomou o contato com a sua


organização visto que tinha meios para fazê-lo. Após levar uma boa esfregadela (quase uma esculhambação), recebeu nova incumbência, nova tarefa, como se dizia naqueles tempos. Esta é uma forte indicação de que não causou prejuízos, não dedurou ninguém. Fica, então, descartada a colaboração e reafirmado o logro, o caso absolutamente incomum ocorrido com José de Almeida Lima, um clandestino tão clandestino que, mesmo na prisão, permaneceu clandestino

E assim foi este causo contado, para conhecimento e ciência dos caros leitores.

O curioso, para finalizar, é que, ainda no período da ditadura, o Zé, usando outro nome falso, veio morar em Colatina. Ficou “clandestino” até a anistia, em 1979, e só então reassumiu a sua verdadeira identidade. E ainda continua residindo nesta cidade, usando o nome legal desde o ano de 1983.

*Apesar de colocar o texto na 3ª pessoa e assinar com o seu pseudônimo, o autor é o próprio protagonista da história.

04/07/2011


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