DRIBLANDO A PRÓPRIA MORTE

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07 DE AGOSTO DE 2011

Guilherme Augusto Zacharias

LUCIMAR FERREIRA, O DÊ. EX-LATERAL DIREITO COM PASSAGEM PELO SANTOS, CEARÁ, ATLÉTICO-MG E CORITIBA, SEU DRIBLE MAIS BONITO FOI NA MORTE.

Em Colatina, muita gente conhece esse mineiro de Recreio, cidade da Zona da Mata, como um cidadão comum, morador do Bairro Brotas, funcionário da Fundação Castelo Branco há cinco anos, onde colabora com os setores de Almoxarifado e Transporte. O que muitos não sabem é que ele foi um lateral direito com qualidades que o fizeram atuar em grandes clubes da Primeira Divisão do futebol brasileiro. Luciomar Campos Ferreira, ou simplesmente Dê, como é mais conhecido, começou a carreira de jogador profissional em 1972 pelo Nacional de Muriaé. Num jogo contra o Vila Nova, pelo Campeonato Mineiro, Dê foi observado por um dos diretores do time adversário e teve a promessa de ser contratado pelo “Leão do Bonfim”. Como a promessa não fora cumprida, Dê resolveu GAZ

Lucimar Ferreira, o Dê: passagem por grandes clubes e uma experiência dramática.


escrever uma carta à diretoria do Vila Nova pedindo para ser contratado. Alguns meses depois, dois diretores apareceram em sua casa e o levaram para o clube. Lá atuou por quatro anos, chegando a disputar um Campeonato Brasileiro pela Série A, destacando-se ao ponto de chamar a atenção de grandes times do eixo Rio-São Paulo, como Vasco, Portuguesa e Santos. “O Vasco e a Portuguesa me queriam por empréstimo, mas como o Vila Nova estava ruim de caixa, aceitou a oferta de compra do meu passe pelo Santos”, relembra Dê. O ano era 1978, e ele foi parar em um clube que tinha jogadores como Nelsinho Batista, lateral direito, hoje técnico – de quem era o reserva imediato -, Clodoaldo, campeão mundial em 1970, no México, Pita, Joari, Batata, João Paulo e outros craques que acabaram ganhando o Campeonato Paulista daquele ano. Dê atuou apenas em duas partidas pelo clube santista. Com 24 anos de idade, ele não se conformava em ficar na reserva e pressionava o técnico Formiga para ser aproveitado no time. “Eu queria jogar, era muito jovem e não queria ficar parado”, conta o exjogador, que foi mandado por empréstimo para o Uberlândia (MG) e logo depois para o Ceará, onde não se adaptou e retornou ao Santos. Uma brecha no contrato com o clube deixou Dê com passe livre e ele retornou a Minas Gerais, desta vez para jogar no Valério Doce. REVEZES Seis meses depois foi a vez de o Atlético Mineiro adquirir o passe de Dê. No clube, ele teve a oportunidade de jogar, ainda que poucas vezes, ao lado de outras feras do futebol brasileiro e mundial, como João Leite, Reinaldo, Toninho Cerezo, Nelinho, Éder... Numa partida contra o Internacional de Porto Alegre, válida pelo Campeonato Brasileiro, um lance involuntário trouxe ao ex-jogador uma das piores lembranças do tempo em que jogava futebol. “O Reinaldo tinha sofrido uma falta e estava caído dentro da área adversária; eu fui ajudá-lo, quando o goleiro chutou a bola para o nosso campo. A impressão que tive foi de que ela sairia pela lateral; no entanto, fez uma curva e o ponta esquerda do Inter aproveitou para chutar a gol. Nosso goleiro, João Leite, tentou defender com o pé e acabou mandando a bola para o fundo das redes”, lamenta Dê, que foi considerado o único culpado pelo lance fatal, que deu ao Internacional a vitória por 1 x 0. A partir desse episódio, ele passou a ser discriminado dentro do Atlético pelos próprios companheiros e perseguido sem dó nem piedade pela crônica esportiva mineira. Para o jogo seguinte, antes do treino, Dê foi comunicado por um


diretor que ele “estava com uma unha machucada” e não atuaria. “Disse a ele que não estava com problema algum na unha, mas ele insistiu que, para a imprensa, eu estaria com a unha machucada. Disse a ele que não iria mentir, e, na semana seguinte, fui vendido ao Coritiba”. Ainda que o episódio naquele jogo contra o Internacional tenha deixado Dê bastante “triste e deprimido”, é do Coritiba Futebol Clube, onde encerrou a carreira, que ele traz uma experiência que quase lhe custou a vida e vai acompanhá-lo para todo o sempre. Por causa de uma cotovelada no nariz, Dê teve que se submeter a uma operação para corrigir um desvio séptico nasal; no decorrer da cirurgia, teve hemorragia e precisou de transfusão de sangue. A descoberta da Hepatite C veio anos depois quando ele precisou fazer uma endoscopia digestiva que revelou a doença já em estado bastante adiantado. “Eu já trabalhava aqui na Castelo Branco quando fui internado às pressas por conta de uma veia estourada e sangramento pela boca. Segundo os médicos, de mil pacientes com esses sintomas, apenas um sobrevive. Depois de ficar internado por várias semanas, recebi a notícia de que teria apenas três meses de vida se não encontrasse um doador de fígado compatível”. Quis o destino que o doador surgisse a tempo, livrando Dê de uma perversa estatística onde o “um” que sobrevive pode ser considerado como obra de um milagre. “Até hoje vou à igreja agradecer a Deus pela graça alcançada; foi um verdadeiro milagre eu ter sobrevivido”, conta. Hoje, Dê diz que carregar um órgão transplantado dá a ele um estado de permanente agradecimento àquela pessoa e à família de quem recebeu o novo fígado. “Infelizmente, a família do doador preferiu ficar no anonimato, mas eu gostaria muito de conhecê-la para agradecer pessoalmente o que fizeram”, diz. Apesar de ter jogado em grandes clubes, Dê tem como lembrança daqueles tempos apenas uns poucos recortes de jornais envelhecidos. Parte do pequeno acervo pode ser visto abaixo.


Arquivo pessoal


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