Em volta de

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Comecei e terminei uma viagem - a tinta escorria - nenhum obstáculo poderá deter-nos - naqueles momentos que me perturbam - Há algo mais natural e justo do que desentender-se - enrolava-me quando viajo no meu quarto raramente percorro uma linha recta - caíam sobre mim estilhaços - o prazer que sinto em meditar no doce calor do leito - azul - o homem é composto de uma alma e de um animal. - o céu estava firme - verdes arvoredos saem do nada, o azul do céu reflete -se nos seus quadros - azul com amarelo - é extremamente difícil, porém, observarmo-nos a agir - mas ouvias-me? querer estar onde não está, em recordar o passado e viver no futuro - recordava agora um dia - quando o espírito viaja assim no espaço, prende-se sempre aos sentidos - as folhas queriam-me - as cores nos influenciam a ponto de nos alegrarem ou entristecerem - chegava-me - o outeiro - o papel encurva tenho de adiar a partida e permanecer aqui contra minha vontade - na varanda os gatos - a satisfação de me sentir a dormitar: prazer delicado e desconhecido de muitos - a brisa quente da tarde - este retrato olha sempre para mim, seja qual for o sítio do quarto em que me encontro - a tinta ao secar escurece o horizonte - estabelece-se entre os dois um diálogo mudo - a mancha faz-se casa - Tive alguns amigos, várias amantes, uma imensidão de ligações - bebi o café já frio - não teve qualquer dúvida que eu embatucara por falta de boas razões - sussurram-me ao ouvido - A palavra dinheiro foi um raio de Lua que me veio elucidar - dizias? - é tão impossível explicar um quadro com clareza como fazer um retrato parecido tirado de uma descrição - escondias as palavras no fundo da boca - O homem não passa de um fantasma, de uma sombra, de um vapor que se dissipa nos ares... - vermelho com um pouco de carmim - eu afronto todos os censores do universo - na caixa dos lápis as cores não chegavam vejo-os transpor montanha após montanha e aproximar-se das nuvens. - por pouco o chão me fugia - Não posso descer completamente do ponto até onde subi há pouco - virei a página - não se pode pintar a coisa mais simples do mundo sem que a alma empenhe nisso todas as suas faculdades - achei que não sabia ler - O teu rosto franco, sensível, espiritual, anuncia o teu carácter e o teu génio - mas tu já tudo sabias - um espelho devolve aos olhos do espectador as rosas da juventude e as rugas da idade - amarelo saturado de violeta - Tinha por fim chegado ao pé da minha secretaria - a folha da palmeira em pedaços - Este retiro forçado foi apenas uma oportunidade de me pôr a caminho mais cedo - algures entre a cadeira e a mesa encontrei um espaço de trabalho - quero escrever sobre o verso da página que todo o universo deve ler - voltar atrás e emendar - Que luxo inútil! Seis cadeiras! Duas mesas! uma secretária! um espelho! que ostentação - a casa despertou - sois oprimidos, tiranizados; sois infelizes; aborrecei-vos. — Saí dessa letargia! - experimento - tu que adivinhas as minhas dores e as mitigas com as tuas carícias - aqui nunca - Quando ponho a mão neste recanto, é raro que não gaste o dia todo nele manifesta-se no andar uma certa hesitação - No momento em que começa o vestir, o amante é apenas um marido e só o baile se torna o amante - desenho por fim a linha - que poeta poderá alguma vez descrever as sensações intensas e variadas que experimento nestas regiões encantadas? - na parede ensaio a dança - eis o vasto campo em que me passeio de todas as formas e completamente à minha vontade finjo uma cor - descrever a milésima parte dos acontecimentos singulares que se dão quando viajo perto da minha biblioteca - salto no pó - a estadia forçada a que em conjunto estamos sujeitos neste quarto em que viajamos - escapei - as diversas sensações unem-se e combinam-se para criar outras novas - como posso parar o turquesa? - pareceria tão ridículo dar um passo que fosse na viagem à volta do meu quarto vestido com o meu uniforme e de espada ao lado como sair para o mundo em camisa de dormir - desenhei o submerso - Proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro: a imensidão e a eternidade estão às minhas ordens.

em volta de Pedro Calapez


Pedro Calapez / Julho 2016 Texto sobre citações de “Viagem à volta do meu quarto” de Xavier de Maistre, tradução de Carlos Sousa Almeida, edição da Tinta da China, ISBN 978-989-671-257-0.


[Uma viagem na Biblioteca] Em 2016, a Biblioteca do Campus da FCT-Nova comemora 10 anos de abertura ao público, como espaço multifunctional. Nesta efeméride, o espaço expositivo, quase teatral, renova-se e desafia o utente/visitante a observar/absorver e interpretar/entender a instalação de Pedro Calapez. “EM VOLTA DE” resulta da leitura de um texto literário Viagem à Volta do Meu Quarto (séc. XVIII), escrito por Xavier de Maistre quando este esteve em prisão domiciliária... Do confinamento (um quarto) nasceu uma oportunidade de “viagem” interior, na qual é percetível como a Revolução francesa afetou e condicionou a família nobre do autor e onde, por conseguinte, se desenvolvem reflexões sobre temas filosóficos, que englobam o individualismo, a sociedade, etc. Ainda que num contexto bastante diferente, (já no séc. XIX), o tema/obra recebeu continuidade em Expedição noturna em volta do meu quarto. Recentemente, no âmbito da exposição “Backstories”– de Mitsuo Miura, Pedro Calapez e Rui Sanches –, apresentada na Fundação Árpád Szenes e Vieira da Silva, a curadora Ana Ruivo referia-se à obra exposta de Calapez: “Mais do que o que se vê, interessa a Pedro Calapez o que se oculta e/ou sabe por detrás do que se vê. Como para Vieira da Silva, as imagens nasciam tantas vezes de palavras lidas e trocadas… como se fora possível manusear os livros” e ver as obras. Imbuída deste espírito de (ocultas) partilhas, a Biblioteca da FCT recebe, no seu décimo aniversário, este excelente confronto/relação direta entre uma obra literária e uma instalação narrativa, criando a oportunidade de, uma vez mais, observarmos (e absorvermos) os horizontes de Pedro Calapez: em escala direta, ver o quarto, o mobiliário como peças cénicas, recriar imagens dentro e fora do quarto, dentro (e fora)da Bibloteca. Monte de Caparica, Julho 2016 José J. G. Moura Diretor Biblioteca FCT-Nova Fernando J. Santana Diretor FCT-Nova








Da estruturação do devaneio, em volta de Calapez na Caparica A grande arte de um homem de génio é saber educar bem o animal para que possa caminhar sozinho, enquanto a alma, liberta dessa penosa convivência, poderá elevar-se até ao céu. Xavier de Maistre Caro Zé: envio-te agora a lista das obras. Os trabalhos em papel ficarão por baixo do mezanino. A estrutura metálica será colocada a meio da sala. Para a parede grande escolhi uma obra, “24 badges”, que apesar de não ser inédita estrutura-se por movimentos “em volta” e assim se liga ao conceito da exposição. Pedro Calapez, Junho 2016

A obra de Calapez é um livro a abrir-se. No irredutível destes traços e sombras vislumbra-se uma rigorosa economia da atenção que funciona como diagrama de um universo em contínua expansão. É um universo assaz monitorizado, cada obra integrando resolutamente a linguagem do mundo, o discurso dos acontecimentos, numa concisa suspensão do constante fluxo de eventos. Esta exposição nasce da leitura de um livro que inventa um diálogo consigo próprio, entre o autor e a personagem (autobiográfica), perscrutando o espaço à sua volta e a condição em que se encontra). O que lemos em Viagem à volta do meu quarto (1795; Tinta da China, 2015) são sucessivos encontros de Xavier de Maistre com desvios – do olhar, do escrever – que vão constituindo um rasto de reflexão, uma jornada. Trata-se, ao limite, de um ensaio literário sobre a criação enquanto processo de conquista do real em que o constrangimento motiva a partida interior. No caso de Maistre – confinado durante 42 dias em prisão domiciliária – a descoberta-invenção do projeto de escrita é o relato de um alegre andar no encalço das próprias ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar determinado percurso. Calapez encontrou em Maistre uma alma parceira nessa deriva essencial que é perdermo-nos no movimento para nos encontrarmos com as estruturas subjacentes ao que nos condiciona. Nessa viagem que ao tomar consciência de si mesma procede à reflexão sobre a alteridade de cada troço, cada nova peça torna-se aventuroso trajecto numa espécie de esquema animado (por uma irredutível energia vital). A arte ilumina os caminhos do ver, transformando-nos no nosso próprio desejo de procurar. É Calapez um pintor claramente performático neste sentido, apelando à possibilidade da nossa participação na intencionalidade programática da sua gestualidade. E veja-se como a aproximação modernista, de investigação formal, se compatibiliza com o mais contemporâneo (ou pós-moderno) dos apelos, incluindo o de tacticamente atentar ao enquadramento (temático, institucional, contextual) para que cada obra – enquadrada pelo frame que legitima a sua função social – se assuma como lugar transformativo.


Um objetivo fundamental ao programarmos o Pedro na Biblioteca da FCT-UNL foi celebrar a plasticidade do espaço e em particular o seu conceito – uma biblioteca para o Séc. XXI. Neste contacto privilegiado com uma obra que como poucas tem produzido a experiência de todas as imagens no plano da mais despojada, mas ao mesmo tempo lúdica e inclusiva, das estruturações formais, as decisões do artista relativas à escolha das peças e sua disposição são parte importante do experimento. Sobretudo porque todas as decisões confluíram numa acessibilidade que o artista considera fulcral para que cada visita constitua ela própria uma prática espacial. Nesta exposição, o espectador é por isso elemento particularmente ativo na deambulação. O conjunto de trabalhos ativa o espaço na medida em que convida a aproximações e afastamentos, ao devaneio do olhar. Fragmentos, planos, recortes. Mancha, cor, imagem. Linha, estrutura, encaixes. Complementaridades. Composição. Caminhos. Elenco factores decisivos no assalto aos meus sentidos perpetrado por esta pintura e este desenho que definem as condições para uma dialéctica espacial. Nesta conjugação sítio-específica de obras, o olhar, em busca do prazer de ver, transmuta-se em flânerie mental. Tudo isto num tributo ao movimento, particularmente explícito nos 24 emblemas que, rodando sobre si próprios, sugerem intermináveis possibilidades de reconfiguração. Acumulação de circularidades – estruturas que expõem as suas regras composicionais como base do jogo da percepção, linhas que ao traçar-se se perdem até não podermos destrinçar começos nem fim – em volta de é como sempre em Calapez um exercício de encontros: do artista com o momento específico no desenvolvimento da sua obra; do público com mais um ponto alto num percurso que desde a década de 1980 não parou de inovar; e naturalmente de um enquadramento cultural – os dez anos da Biblioteca – com a irredutibilidade pessoal do Pedro. No diálogo permanente que Calapez vem mantendo com o seu tempo – desde os primeiros traços, passando pelos sucessivos riscos que tem corrido numa longa carreira – algo de absoluto e essencial, e ao mesmo tempo radicalmente singelo, acontece. Como se a arte fosse meta-linguagem por excelência para configurar o correr da vida. E se a força irracional da alma que possui um artista como Pedro Calapez se plasma na sua tendência para o devaneio, é extraordinária a serenidade que a sua arte atualmente atravessa. O artista consegue hoje essa estranha alquimia de nos resgatar do vício das imagens para precisamente através da sua noção de montagem cinemática educar-nos para uma paisagem interior. Na sua ética da pintura, não somos apenas as circunstâncias da vida, mas sobretudo as linhas com que nos cosemos.

Mário Caeiro













Pedro Calapez (Lisboa, 1953) começou a participar em exposições nos anos 70, tendo realizado a sua primeira individual em 1982. O seu trabalho tem sido mostrado em diversas galerias e museus tanto em Portugal como no estrangeiro sendo de salientar as exposições individuais: Petit jardin et paysage, Capela Salpêtriére, Paris (1993); Campo de Sombras, Fundació Pilar i Joan Miró, Mallorca (1997); Madre Agua, Museo MEIAC, Badajoz e Centro Andaluz de Arte Contemporáneo, Sevilha (2002); Obras escolhidas, CAM - Fundação Gulbenkian, Lisboa (2004); piso zero, CGAC - Centro Galego de Arte Contemporáneo, Santiago de Compostela; Lugares de pintura, CAB - Centro de Arte Caja Burgos (2005); “There is only drawing”, Fundação Luís Seoane, Corunha, Galiza (2013). Nas diversas mostras colectivas destaca-se a sua participação nas Bienais de Veneza (1986) e S. Paulo (1987 e 1991); Tage Der Dunkelheit Und Des Lichts, Kunstmuseum Bonn (1999); EDP.ARTE, Museu de Serralves, Porto (2001); Beaufort Inside-Outside, Trienal de Arte Contemporânea, PMMK Museum, Ostende (2006); “A colecção”, Museu de Serralves, Porto (2009); “A culpa não é minha, obras da Colecção António Cachola”, Museu Berardo, Lisboa (2010); “La colección”, Fundación Barrié, A Coruña (2011); “93”, CGAC–Centro Galego de Arte Contemporânea, Compostela (2013). Colecções: Caixa Geral de Depósitos, Lisboa; Centro de Arte Caja Burgos, Burgos; Central European Bank, Frankfurt; Centro Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela; Chase Bank, New York; European Investment Bank, Luxembourg; Fondación Coca-Cola España, Madrid; Fondación Pedro Barrié de la Masa, A Coruña; Fondación Prosegur, Madrid/Lisboa; Fundació Pilar i Joan Miró, Mallorca; Fundação AIP, Lisboa; Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Fundação EDP, Lisboa; Fundação Luso Americana, Lisboa; Fundação PLMJ, Lisboa; Fundação Portugal Telecom, Lisboa; Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, Badajoz; Museu de Arte Contemporânea de Elvas, António Cachola’s Coleccion, Elvas; Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid; Museu de Serralves, Porto; entre outras. Obras Públicas: 2012 Obra em painéis em vidro para a nova sala das turbinas da Barragem de Picote; 2007 Porta principal e painéis em bronze para a Igreja da Santíssima Trindade, Fátima; 2002 “Ornamento escondido”, Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa; entre outras. Prémios: 2005 “Premio Nacional de Arte Gráfico”, Calcografia Nacional da Real Academia de Bellas Artes, Madrid; “Prémio AICA” (Associação Internacional de Críticos de Arte - secção portuguesa), entre outros. Pedro Calapez estudou na Faculdade de Belas Artes em Lisboa (1976-81) e na Sociedade Nacional de Belas Artes (1972-75) Em 2012 recebeu o Grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.


série “em volta”, 2016 : 01, 03, 02, 05, 06, 04 seis pinturas a esmalte industrial e pastel de óleo sobre papel 153,5 x 103,5 cm cada; 24 badges, 2011 acrílico sobre alumínio conjunto de 24 painéis em alumínio recortado 330 x 515 x 4 cm; casa, 2016 estruturas em cantoneira de ferro perfurada com desenho em impressão digital sobre lona pvc dimensões variáveis (estrutura: 230 x 450 x 300 cm).

biblioteca fct nova José Moura, coordenação (director) Ana Roxo, coordenação Luisa Jacinto, colaboração Isabel Pereira, colaboração Rui Olavo, design curadoria José Moura e Mário Caeiro textos José Moura e Fernando J. Santana Mário Caeiro Pedro Calapez fotografias PMDC impressão do catálogo Brandsmartinho impressão e colocação de vinil Brandsmartinho montagem de estrutura J.C. Sampaio, Lda agradecimentos: André Calapez, Jorge Rodrigues, José Costa Rodrigues horário 14 de Setembro a 20 de Dezembro de 2016 2.ª a 6.ª das 9:00h às 20:00h ISBN: 978-972-8893-57-6


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