jornal coletivo sÓ, sétima edição, agosto/setembro

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por Lucas Rodrigues de Campos

Contar da tensão da época: Fredera descreveu a luta de classes reconhecida por ele, acompanhador de canários, quando Milton despencou em um show - aquele em que Zé Rodrix desgostou da falta de profissionalismo de um Milton Nascimento e deixou o Som Imaginário mesmo, tendo assumido o posto de principal compositor. A queda do Milton Negro é o episódio épico que engrandece o brado de Fredera. Tavito não quis dizer, não quis falar ou lembrar, não disse. Mas o primeiro capítulo revela tensão. Tavito saiu do palco do Opinião, brasa já rolando. Guitarras e hammond queimando em rima sórdida. Milton, um Milton Negro e sofrido no bar, bebendo. Só ele desenvolvia a opressão de classe. Fredera sabia e bradou. Bradou na queda do Milton, Milton Negro - assim, com nome próprio. Ele caiu na bateria do Roberto Silva, irmão Negro. Fredera. Mulato e comunista. Bradou. Bradou uma, duas, três vezes necessárias. Bradaria dez. Bradou cem. Bradou sem ranço. Bradou por amor. Amor a um país decadente. Amor a um Milton Negro e imaginário. Bradou pela luta de classes. Bradou em oposição ao racismo classificado. Bradou contra o racismo que derrubou um Milton Negro. Quero narrar essa história. Já narro no tempo do grito, um grito definido como Grito-Fredera. O herói negro caía. Despencava em lágrimas. Milágrimas dos peixes ele mentiu ser. As lágrimas, mentiu. Mil lágrimas sentiu. Leila, Milton bradou, ele também bradou. Bradou e odiou todos os que se deliciavam com o sangue-cor-de-revolução. A Ditadura Militar. Venha, Leila, venha, Leila, Venha-Leila-Venha-ser-feliz. Os que se deliciavam são os nossos generais. Inimigos claros, sob a luz do massacre. Generais que Milton e Fredera esmagaram com a canção, com a poesia da resistência. O Lixo ocidental foi esganido, exprimido. Alguns passos para trás e ele foi derrotado na breve peleja. Espanto dos jovens, um público. Espanto dos jovens, uma banda. Tese de um dos jovens, Fredera. Com guitarras, não fez a tropicália, retratou gritos miseráveis na figura de um grito já popular. Não temos a localização: o endereço é a ex-capital, cidade fluminense, imersa em nuvens de tensão. Um bar do centro dessa capital de poder, Rio de Janeiro. Milton foi deslocado nos braços de um amigo imaginário: Tavito. Ele, Tavito, ergueu-o, Milton. Evocou a força e carregou-o até o camarim. O fôlego de uma geração, a nossa geração. Chegou. Ainda sozinho e no palco, Milton chamou Lennon e McCartney. Lennon e Maca não apareceram. As preocupações eram diferentes das de Milton. Na valsa esquizofrênica Milton sambou, sapateou. Quebrou caixa e bumbo com tanta emoção. Mais uma vez o brado. Fredera berra: “Isso é o estado opressor, assassino. Desmancha a figura do negro. Eles querem o Milton. A silhueta desse Milton. Mas não terão. Eu cuspo também. Cuspo na indústria. O Milton está se lichando para toda essa miséria. Isso pra ele é lixo ocidental. Por isso é gênio. Eles, eles os milicos perseguidores, na verdade sabem que esse ‘negrinho’ é revolucionário. Não basta o conservadorismo assassino, eles também urram nas chicotadas. Nosso rock, nossa música não depende disso. O Milton não depende disso. O imaginário não é isso. Nossa resistência e a do Milton está nesse Som Imaginário”. Este texto é ficcional, mas baseado em fatos reais. A fala de Fredera é livremente inspirada em um depoimento de Tavito.


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