Décima Edição, Coletivo sÓ

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sÓ - décima edição, ano 3, maio/junho de 2010 I preço col aborativo R$1,00

Resistências com:

Os Baratas Organolóides da Bolha de Rock

Canil, Maio, Ocupação

Mamma Gumbo

Homenagem é festa com:

Guto Lacaz, Glauco e Arnaud Rodrigues Marginalidade, poesia e fé menina com:

Ivana Arruda e Alice Ruiz

Social logia do rock tupiniquim com:

Eduardo Araújo

www.baratasorganoloides.com.br

www.myspace.com/mamagumbomusic

O Conto (Curitiba – PR)

www.myspace.com/oconto

Visionários

http://www.myspace.com/bandavisionarios

Trio do Ó

http://www.myspace.com/triodoo

Dharma Samu

www.myspace.com/dharmasamu

Porões do rock sulamericano com:

Mud Shark

Tiempo de Rock coletivo sÓ 10

Cosmo Drah www.myspace.com/cosmodrah Soul Barbeccue

www.myspace.com/mudsharky

www.myspace.com/soulbarbeccue


por rômulo alexis

através de sua família, um pai permitiu, educando como um bom cão pastor, que pensássemos a articulação de pessoas como pedra a fundamental de uma instituição política canina três marreteiros impressos em uma camiseta vermelha

Na luz_ : Paulinho in Fluxus_ Fávero:

"Um dia Los Três Marreteros se juntaram para dar a força final que o CANIL _ precisava para derrubar as jaulas e grades que o prendiam. Glauco, Laerte e Angeli se desenharam com a Marreta na mão para lutarmos pela liberdade de ocupação do espaço. Desenho feito sob uma lona... de circo, uma semana antes do Ritual de Tomada 04 _05 _006. Foi a última vez que eu vi os três juntos. Uma grande perda que a violência nos apresenta com sua brutalidade. Coisa que animal não faz! Auuuuuúúú!"

Na luz_ : Paulinho in Fluxus_ Fávero:

“Essa foi a última coisa que eu vi Los três Marreteiros desenharem juntos. Nesse dia o Glauco falou pra mim que eu precisava levar o meu pai pra conhecer o Preto Velho lá no sítio dele.”

_o canil completa, nesse 2010, quatro anos de existência, sempre maturando e curtindo em tonéis de carne e osso. a marreta, acima cristalizada pelas mãos de Los Três Amigos, simboliza o intento de agir em um ambiente entristecido pelo velho discurso do progresso. a marreta coletiva é a marca da derrubada de uma antiga jaula: destruída, ela é transformada em espaço livre_ hoje berçário de revoluções_ o canil localiza-se no bairro do butantã, na chamada cidade universitária outros dois maios estão marcados nessa edição: esse brotamento da simpática e necessária “imprensa nanica” [o coletivo sÓ] completa dois anos. o baile popular de maio de 2007, ocorrido na aristocrática reitoria da USP, com apoio do marginal canil, também aniversaria. 3000 cópias blog http://so0jornal.wordpress.com versão digital http://www.issuu.com/jornalcoletivoso Contato so.contato@gmail.com endereço - Rua Navarro de Andrade, nº 20, ap. 22 05418-020, São Paulo, SP telefones - (11) 7600-5699 / 2771-7297

Expediente

edição, reportagem e diagramação - Lucas Rodrigues de Campos reportagem -

Elton Amorim

ilustrações e capa - Chuck Dedo Amarelo revisão de texto - Tatiane Klein colaborações - Bruno Procópio, Erich Jones,

Leandro Damasio, Paulo Fávero, Rômulo Alexis , Guto Lacaz e Pietro Ferrari


réquiem por lucas rodrigues

nascido a partir do choque da marreta verniz, o ser diz assim perante a verdade travestida de injustiça

De braços abertos, Glauco encostou os joelhos na terra e pediu graças; surge Irineu, negro forte - capaz de se tornar zumbi - dois metros de altura, braços enormes, confortantes. Nutridos de fé absoluta, partiram em uma caminhada diferente daquela dos tiros abstratos. Todos os caminhos evocam o humor, sangue vermelho oferecido em rosa de Maria. Dentro de três quadrados infinitos, tirinhas surgidas na chaga da imaginação, Glauco permitiu ao seu Geraldo deixar cair parte de seus seres em alguma parte

da terra: a marreta interrogação, a marreta provocação. Sempre contraculturais, Glauco, Geraldo e a marreta, mesmo estando no céu, causaram grande estrondo terreno com o golpe disferido. Deram ao espaço uma ressonância parecida à dos macacos fundadores, aqueles que passaram a caminhar sobre paredes valvuladas e circulares. O que importa no momento é dizer que para isso foram necessárias quatro pernas, patas caninas que desprezaram a assimilação de braços em uma odisséia espacial. A marreta descreve movimento circular na queda, uma circunferência avassaladora, rica em traços carnais e cores. Ela permite um círculo cruzado de pernas e braços, resultantes de cabeças enebriadas, pulsos energéticos sintetizados em gerador matilha, necessidade de quatro patas geraldo multiplicadas.

RÉQUIEM:

homenagem de guto lacaz a glauco

arnaud rodrigues e glauco são bonitos,

por isso, celebremos as ascensões desses profetas e assassinemos a morbidez Ai, andar andei! Ai, como eu andei! E aprendi a nova lei: Alegria em nome da rainha E folia em nome de rei! Alegria em nome da rainha E folia em nome de rei!

folia de reis nº1, domínio público, canção presente no lp baiano e os novos caetanos, 1974 Ai, mar marujei! Ai, eu naveguei! E aprendi a nova lei: Se é de terra que fique na areia O mar bravo só respeita rei! Se é de terra que fique na areia O mar bravo só respeita rei!

Ai, voar voei! Ai, como eu voei! E aprendi a nova lei: Alegria em nome das estrelas E folia em nome de rei! Alegria em nome das estrelas E folia em nome de rei!

Ai, eu partirei! Ai, eu voltarei! Vou confirmar a nova lei: Alegria em nome de Cristo Porque Cristo foi o Rei dos reis!

Num apartamento paulistano no litoral de Itanhaém, quatro pessoas usufruem da tecnologia para fazer crítica musical e sentirem sua paixão distanciada pelo o sertão pernambucano. Sem o toca discos, eles ouviam no i-pode - “eu posso ouvir” - aos baianos e novos caetanos. Eram os sons do Paulinho, músico que fez dupla musical com o humorista Chico Anísio. Ele municiava Chico, cumprindo função artística muito além da de escada. Após o meio-dia degustando macarrão com salsicha, o grupo concede título de gênio ao tal Paulinho Cabeça de Profeta, heterônimo musical de Arnaud Rodrigues. Olham o Brasil com os óculos e a compreensão desse que foi conterrâneo de Virgulino, Lampião. Nordestino e brasileiro, essencialmente crítico, Arnaud conseguiu estabilidade na Vênus Platinada [a Rede Globo] construindo, através do humor, conceitos avessos às amarras militares que sublimavam problemas e vidas. Arnaud fez música de qualidade incorporando Paulinho e acompanhado de Renato Piau, violnista e parceiro de composição. Crítico da Tropicália, mas também embebido dela, ele permitiu que o movimento, até então restrito a determinada elite, encampada pela estética caetaneana - adotada por Chico com o personagem Baiano -, chegasse ao entedimento público e popular. Arnaud conseguiu alavancar o modus operandi do bom brasileiro a níveis globais. Como já dito, foi através da Vênus Platinada que, junto do humorista Chico Anísio, Arnaud "Paulinho", colocou a Tropicália na boca do povo. Seus trabalhos musicais, contudo, permaneceram no mesmo ostracismo de grandes nomes da contracultura tupiniquim. Isso se deu em oposição à posição ocupada pelo artista. Arnaud "Paulinho" Rodrigues foi redator do programa de humor de maior audiência do país, o chico citY. Apesar disso, o anúncio de sua despedida lembrou de Arnaud apenas como um coadjuvante de telenovela, triste redução para uma carreira que contribui e acumula potencial educativo. Arnaud deu explicações sobre e para um Brasil popular, em estado de urgência, tornando-se uma extremidade, estandarte da esquerda.


o nascimento de um louco é a morte sinestesial do outro como ente. enxuga a mais pura consciência de compaixão, julga e descola das reações, impulsos terminais, terrenas. aí ganha-se ou perde o que pode ser imaginado como irmãos de idade, irmãos de mediunidade temas por cabron

“Este livro é etnografia e alegoria.” Assim se inicia o prefácio de um dos livros de maior impacto nos sonhos da juventude que percorreu a década de 1970: A Erva do Diabo, de Carlos Castañeda. Escrito por um antropólogo formado na tradicional Universidade da Califórnia, onde tomou contato com mestres acadêmicos oriundos da “Escola de Chicago”, famosa por inovações metodológicas nas pesquisas em ciências sociais durante todo o século passado. Castañeda inovou e por isso fugiu à regra. O autor foi capaz de levar a pesquisa antropológica a âmbitos em que o ceticismo e a rigorosidade científica ianque jamais apostaria. “A Erva” é etnografia, pois o escritor-antropólogo utiliza de métodos científicos para estudar o “objeto” em questão: no caso, um índio-brujo mexicano, ou no vulgar, um feiticeiro que lida com plantas medicinais e alucinógenas. O feiticeiro acaba por se tornar o “mestre” do jovem pesquisador, atendendo pelo nome de Dom Juan. “A Erva“ é também alegoria pelo fato de a pesquisa extravasar os limites das pesquisas e estudos dessa área acadêmica. Muito além de ser um trabalho de campo, um diário, um relato de observação participante, a obra acaba por ser um todo-indefinido, onde tudo se mistura, resultando numa narração quase ficcional. Dado o impacto do lançamento desse livro, muitos acusaram Castañeda de “picaretagem”, por considerarem que a obra nada tinha de valor cientifico, sendo uma mera ficção mística. a deformação

A obra é dividida em duas partes principais: Ensinamentos, que ocupa a maior parte das páginas do livro, trata das experiências e ensinamentos de Dom Juan ao aprendiz entre os anos de 1960 e 1965; Uma Análise Estrutural, onde o autor sistematiza a narração apresentada na primeira parte, tentando traduzir o mágico, o inexplicável para o “cientifiquês”. Em Ensinamentos, a narrativa em forma de diário de campo explana os acontecimentos em ordem cronológica (apesar de o autor propositadamente alterar a ordem das datas, “brincan-

na roda cabroneira, roda das cabrecitas, compadrecitas e companheiros, o único que julga é o terceiro que cristaliza e desmancha algo em um. atrevido, fica o gosto da gosma praqueles que não enxergam idéias e esquecem o valor do rito sa(n)grado, quente, verdesperança e vermelho

a morte do um, não é a morte do outro. a vida do outro não é morte do um. um ombro amigo, é amigo de ombro, é vida no ombro do irmão

A Erva-Do-Diabo de Carlos Castañeda Círculo do Livro, 1968 resenha por erich jones

do com o tempo”), desde o primeiro encontro com o diablero numa estação de trem no sul do Arizona, em que o futuro aprendiz pede ao índio que lhe conte tudo a respeito do peiote [dizer o que é], até os últimos acontecimentos, já na casa de seu mestre em Sonora, no México, revelando ser o escojido para herdar os conhecimentos e sabedoria do velho feiticeiro. Os ensinamentos consistem numa série de etapas de aprendizado, em que o objetivo principal é conduzir o iniciado a tornar-se um “homem de conhecimento” – ou feiticeiro - nas palavras de Dom Juan. Isso significa ser capaz de levar a vida da forma mais equilibrada e sábia possível, buscando sempre seguir o “caminho do coração”. Para vir a sê-lo, é preciso enfrentar os maiores “inimigos” que surgem no destino de um homem: o medo, a clareza, o poder e a velhice. enfrentando inimigos, transcorre o texto

É um processo constante, que como se pode notar (atentando para os inimigos), dura a vida inteira, sendo praticamente impossível vencer ao último. Para enfrentar tais inimigos, o iniciado deve buscar um “aliado” que são espécies de entidades de uma dimensão da realidade, a qual Castañeda chama de “realidade nãocomum” – que é propriamente o estado de percepção causado pelos efeitos de drogas e plantas alucinógenas, que possibilitam ao aprendiz por meio de “viagens”, visões e experiências existenciais, descobrir acontecimentos significativos no plano da “realidade comum” e tantos outros fatores sobre sua própria conduta no dia-a-dia corriqueiro. Dessa forma, auxiliam-no a derrotar cada um desses inimigos, desenvolvendo conhecimento, acumulando experiências e percepções que gradativamente alteram seu jeito de ser, possibilitando chegar cada vez mais perto do “caminho do coração” que o tornará um homem de conhecimento. No entanto, para

conseguir um aliado, é preciso ser o escojido, ou seja, o aprendiz ideal de um feiticeiro. No caso, Dom Juan testou-o com os possíveis aliados que conhecera: a yerba-del-diablo (filamentos da planta Datura inoxia) e o humito (ou “fuminho”, pó de cogumelos Psylocybe mexicana). Antes de introduzi-lo aos aliados, Dom Juan apresentou-o ao Mescalito (Lophosphera williamsii), a entidade contida nos botões de peiote (uma espécie de cacto). Mescalito é quem protege e cuida do iniciado durante todo o processo. Por meio de sinais e agouros simbolizados nas experiências com os aliados, e posteriormente retratados a Dom Juan, é que se fica sabendo se o iniciado é um possível escojido ou não.Tanto a yerba quanto o humito possuem suas virtudes e características próprias, sendo quase opostos. O aprendiz ao longo do processo descobre qual será o seu aliado, geralmente o que mais se identifica temperalmente. Castañeda, ao retratar tais experiências alucinógenas da “realidade não-comum”, surpreende a quem lê, dando significados concretos a acontecimentos que muitos poderiam acusar de fantasiosos ou ficcionais, mas que, no entanto, só podem ser atestados por aqueles que se iniciam no aprendizado e presenciam os atos de poder desta estranha realidade. orgânico todo vegetal

Importantes no texto são as lições, conclusões e mensagens filosóficas, libertárias, que estabelecem o diálogo da obra com as idéias da época: o ano de 1968. Em meio à contracultura, muitos jovens, ao lerem a obra vasta do autor abandonaram seus lares, cidades e amigos para buscar os “seus Don Juans”, seus próprios mestres, que pudessem ensinar outras formas de viver e de encontrar liberdade espiritual.

toda forma de música é uma forma de pensar o movimento das frequências. toda forma de música é uma forma de pensar. toda forma de música é uma forma. toda forma de música é uma. toda forma de música é. toda forma de música. toda forma de. toda forma. é. por leandro damásio


relato por leandro damásio e divagações por lucas rodrigues

Em meio a tanto ressignificado, a platéia tensa passa a intervir e polemizar. Não há nada de errado por aqui. Importante é explicitar as diferenças; diferenças entre duas visões de feminismo. De um lado, Alice Ruiz encontrando na mulher o valor da poesia sutil. Do outro, o lado esquerdo, Ivana Arruda, ilustrando a mulher forte e sagaz, mas nem tanto. Elas expõem, por assim dizer, dois modelos de poder feminino.

maravilha divagação

1 =

dois

machos,

machucados

de

beleza amiga e, por que não, com dotes sutis e

femininos,

cultural,

rumaram

combinando

para a

uma

poesia

trajetória

marginal

do

simpósio de literatura com erotismo, seguida pela

grade

de

Rauschenberg.

a

narração:

o entrevero de duas mulheres escritoras.

como numa brincadeira de pular cela, os moços atravessaram grades para dizer como é ser mul-

here. no palco - sesc pinheiros, troca de retóricas.

De um lado, Alice Ruiz, fala mansa, nem tanto, de poesia sutil. De outro lado, o lado esquerdo, nem tanto, Ivana Arruda, fala áspera, de prosa bruta e marcante. Ambas laureadas escritoras no palco do Sesc Pinheiros, costurando pontos de erotismo, cada qual à sua maneira. Ivana diz: “Depois que ele saiu, fiz café, sentei-me na sala e acendi um cigarro. Nunca mais fui feliz”. Alice interrompe: “Era uma vez uma mulher que via um futuro grandioso para cada homem que a tocava. ... um dia ela se tocou”. Divagação 2 = pulando do muro: o homem e sua mania de opressão. apertou de mais a pica para se deleitar em seu próprio leite; acostumou-se a simplesmente currar, enquanto a força mental histórico/resistente da mulher permitiu a fabulação, a paixão sem falo, a consubstanciação do sangue em porra.

Divulgação 3 (espanha) = o entrevero de palavras encurralou o machismo, desmascarado pela Alice ruidosa, com Almodóvar nas mangas. As críticas da filha, estudante ibérica, por ora lá residente, emprestou à mãe uma tal impressão: o diretor espanhol Almodóvar entende de sexo e essa seria a única tradução para o verbete ‘mulher’. Aí vem o momento. Do Sesc da Batata ao Sesc da Pompéia, não sem antes escalar a grade roxa de Raushenberg, exposta no Instituto Tomie Ohtake. Dessa vez quem assume o palco é um desses brotinhos ricos em vitaminas, germinados no pólen psicodélica pernambucana: uma menina contracultura-rock na veia; melhor: Lulina, uma mulher do tipo assim (assado) Ivana Arruda. Lulina, em síntese, acredita em “príncipe encantado”; desde que lhe aufira “múltiplos orgasmos”, é claro. E se o coitado for discutir a relação, ele que fique com as crianças, enquanto ela encanta com o violão. Divagação 4 = inventou

a

vira homem vira, vira: o homem

grosseria

e

convenceu

a

mul-

her. até que o conceito de androgenia tornou-se a intenção de uma geração que mas-

turba a dialética pra transar os paradigmas.

E não é que faz sentido? Os repórteres da sÓ investigaram (cof, cof) a hipótese e descobriram, entre um blog e outro clique, o lado amigas-íntimas de Lulina e Ivana Arruda. O vinho das horas vagas está lá registrado no blog da Ivana. Uma amizade de influências mútuas, provavelmente. Uma curiosa descoberta de madrugada, após dois eventos feministas, cada um a sua maneira, tanto faz.

doidivana

Inverno

por lucas rodrigues de campos e tatiane klein

É o gosto envelhecendo a luta nos lábios, amargando histórias que o álcool não mata. O chão ainda se esmirilha – ainda prescinde de corpos que lhe preencham o erodido. É noite e não há abrigo: há um útero descolado e sangue demais brota das paredes e entre as gramas desta praia. O menino se encolhia num balcão vermelho, acompanhado por cigarros consumidos. Este silêncio da fumaça cala e fala. Conta uma história sonâmbula, mas viva – que nos perturba os sonhos. Nos escuros dos ébrios, o choro dela faz eco, respira escondido nos vincos de suas gargantas até que elas estejam tintas do mesmo vinho. No escuro, depois de um documentário, ao lado do aquário com livros raros, o menino olhava para a chorona, que tinha medo. Sozinho também, ele tinha, como consolo e remédio para a tosse, mais um maço de cigarro. Ela tremia como ele – seu pigarro, do contrário, não era amaciado pela fumaça. A cabeça encontrava os joelhos, os pés encostavam nos dele. Lembrava de ter acordado no chão e visto a digitação frenética desse ansioso fumante. O deserto da hipocrisia estava habitado. Havia colos amigos, mas também inimigos à espreita. Era uma guerra de meninos. O frescor enchia a alma de coragem e, ao mesmo tempo, assustava a cabeça moderada a gritar em um choro velado. A chorona pensava na mãe, passava pelos portões retorcidos e via a cabeça de um outro

amigo a sangrar em alegria. O cabeludo diz que a revolução: “É juntar a liberdade com a ânsia de não querer morrer sozinho”. Ele não era uma estátua, os olhos castanhos tinham vontade de molhar. Num aglomerado de duas mil pessoas, uma sempre se destacava em meio à barbárie instaurada. Cabia um abraço, cabia consolo, cabia temer, de longe e de perto, a sirene das viaturas. Eles não vieram: os bárbaros, liderados por um rei assassino a empunhar sua Serra. Dissolveram-se na fumaça do menino. O vazio das salas poderosas já havia abrigado quinhentos lutadores, mas foi numa reunião de cinqüenta pessoas que, para o menino, o temor ficou mais claro que a imponência dos soldados da hipocrisia. Acusações de traição, de golpe, de manobra poluíam a boca dos malucos. Companheiros? “Sempre vão achar alguém pra usar de mártir”, dizia a voz do velho – os malucos desejavam sê-lo. O menino e a chorona gostavam de se enganar, iam pra casa juntos, lutando por uma causa conservadora. Queriam sentir-se comunistas, queriam acabar com a universidade perdida há muito tempo, já soterrada. Perderam. Os bêbados-políticos, abandonaram o autismo de suas dores ideais e partiram para a luta. Ocuparam espaços e, espalhados no mesmo chão, tremeram juntos o medo do nada, do nunca e do ninguém, para que, depois da tormenta e do sono, possam cantar. O comunismo ocupando o coração. esse texto faz referência à ocupação da reitoria da usp, ocorrida em maio de 2007

ocupado


por lucas rodrigues com colaboração de elton amorim

De pernas abertas e rebolando, Eduardo Araújo incorporou a rebeldia de James Jean.

Autointitulado caipira e cantor de campo rock, no fim da década de 50, ele montava cavalos em rodeios e arrepiava com sua gangue quando saia de moto pela cidade. Ídolo pop, superou o estágio de simples cantor que causava furor nas jovens da época pra ser um dos mentores, do que segundo ele, a mídia erroneamente chama de Jovem Guarda. O que ele fazia era rock brasileiro; o legítimo e talvez primeiro rock brasileiro. Muitas de suas composições caíram na boca de importantes vozes como Wanderlei Cardoso, Vanusa e Erasmo. Todos esses surfaram na onda de Araújo, aproveitando a alta tensão de um artista que carregava consigo a experiência da administração e o gosto por loucuras zappescas. À época Eduardo era um dos maiores criadores de gado gordo do país e havia entrado em atritos com o parceiro e malandro-mor Carlos Imperial. O litígio foi em decorrência de uma disputa: a autoria de diversas composições de sucesso, tais como “Vem quente que eu estou fervendo”. Foi nessa época, de muita fama, que Eduardo comandou um programa só seu pela TV Excelsior. Ele precisava de escolta da Rádio Patrulha para sair dos estúdios, época que coincidiu com seu início de relacionamento com a jovem de 15 anos Silvinha. O caso foi abafado por cláusulas contratuais presentes nos contratos dos ambos, então agenciados por Carlos Imperial. É bom lembrar que Eduardo chegou a ser barrado por juizados ao fazer shows no interior, pois seu rock pesado era considerado “sem decoro“. O furor era causado por músicas que, no meio da década de 60, já falavam de sexualidade. É possível afirmar que Eduardo exerceu a vanguarda do que se convencionou chamar música jovem, utilizando esse termo como sinônimo de inovação, reinvenção de um modelo de rock, que como escrito acima, desembocou numa estética brasileira. Para isso ele contou com o apoio do maestro Peruzzi e sua jovem banda, Os Brasas. Eduardo experimentou o sucesso estrondoso da Jovem Guarda, saboreando um período em que o rock juvenil passava a crescer e se assemelhar com uma estética mais pop, dirigida a uma turma maliciosa, tal qual os ídolos do rock inglês e americano. As mudanças contraculturais afetaram o mercado de discos e o modo de fazer música - cada vez mais autoral e respeitando o valor de criação proposto pelo artista. Isso desencadeou experiências de fusão de gêneros populares com modelos balizados de música (rock, jazz, erudito).


Nesse momento, Eduardo adotou uma postura de vanguarda "furando pedra, batendo cabeça", ao se debruçar, munido de táticas independentes, sivre o processo de produção de um disco e de uma obra. Os jovens "maliciosos" adotaram, no fim da década de 60, posturas mais autônomas, índices do desacordo com os rumos do modelo falido de produção e consumo. No campo das artes, muitas das experiências materiais em relação ao desenvolvimento e ao estabelecimento de uma indústria cultural no Brasil foram adquiridas entre a emergência da bossa-nova, o rock, a jovem guarda e o rock udigrudi (Tropicália). A partir do ano de 1970, Eduardo passou a desenvolver uma concepção musical que traduzia as aspirações mais enraizadas do rock tradicional. Fez uso do boggie, do gospel e do funk misturados com a valores nacionalistas de resistência. Logo em seus primeiros compactos da década de 70, e no disco da companheira Silvinha, Lanny Gordin é protagonista tocando forró com fuzz guitar. Um pouco depois de receber Lanny como pupilo, Eduardo se relacinou com um figurão responsável por toda a cultura black que se instituiria em nossa música. Um jovem black power havia sido deportado dos States e chegou à terra brasilis como degredado. Detentor de cacife, Eduardo colocou seu sucesso à prova. O seu interesse era tirar esse polêmico negro detrás das grades. O homem era fascinado pelo soul e não fazia mal a ninguém - conhecia tudo da cultura black norte americana. Eduardo viveu o extâse do rock e optou, no começo dos 70, pela música soul, graças à parceria com “esse antigo delinquente”. Nessa entrevista, Eduardo Araújo se emociona ao falar de um jovem quase descamisado, Tim. Um gordinho malandro que pitava uns baurtes, deportado. Aquele das coisinhas miúdas e enriquecedoras, mas com fluência na língua inglesa e rítmo único - Isaac, Curtis.

PARTE 2 EDUARDO ARAÚJO


GIL BELTRAN E A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA

Gil Beltran foi o homem forte da gravadora RCA durante o início dos anos setenta. Em 1972 foi transferido da presidência da sucursal espanhola da gravadora para a RCA do Brasil. Enfrentou gigantes como a Phillips e a Odeon, e viu artistas de seu cast fazerem sucesso internacional, com destaque para Martinho da Vila. Você teve problemas com jabá? Problemas sérios. Lançamento do... Sou Filho, do Pelos Caminhos do Rock foi onde começou o jabá e foi onde minha carreira... O Pelos Caminhos do Rock foi um disco que fiz visando o exterior; só que não visando pelas universidades, visando alto. Chegou no Brasil um cara chamado Gil Beltran, que veio dirigir a gravadora RCA. Ele foi apresentando o elenco, viu meu nome no elenco e falou Eduardo “Araúrro!”. Ele era meu fã. Esse cara é da ép-

oca em que eu fiz “Meu Limão Meu Limoeiro”. Ele era um simples produtor que vendeu um milhão de cópias. Copiou a música, só converteu por castelhano e vendeu “um milhão de cópias na época”. Ele tinha um respeito incrível... (cantarola em espanhol a música “Meu Limão” ); "Esse cara é muito bom, manda chamar ele”; e fui lá. Foi a vez em que pensei: dessa vez vou ser internacional mesmo. "Eduardo, eu quero duas músicas internacionais. Duas. O resto você faz o que você quiser". E é por isso que tem o Abracadabra e o San Juan de Porto Rico, em que estou cantando em castelhano. Fiz isso, fiz o Construção, o Deus Lhe Pague, aquela coisa toda. Chamei o Tony, falei: “A responsabilidade é a seguinte: entrar no mercado internacional”; e o Tony falou “Isso é comigo”; argentino e bom, “Vamos fazer”. Almoçava junto, dormia, acordava junto - porque eu sou assim, quando eu faço, eu faço. Até há pouco tempo fiz um trabalho com o Dr. Sin e eu me isolei, fiquei com o Dr. Sin lá no haras mais de um mês e meio.

KIZUMBAU E O DISCO TÁTICO

Estávamos falando sobre o jabá... O Gil Beltran chega pra mim e diz :“Você é meu preferido aqui”, assim, abertamente. “Você é o cara pra fazer isso, eu gosto de você, eu coleciono seu trabalho, tenho tudo!”. Nunca fui tão respeitado. “Agora sou o presidente daqui. O que você quer?”; “Quero fazer o disco da minha vida”; “Eu vou lançar esse disco e lançar no mundo inteiro”. Era quando aquilo lá? 75? Aí eu entro em estúdio pra fazer [o disco]. Comecei a fazer os arranjos, já tinha escrito muita coisa, e comecei a gravar aquela música “Sodade”. Isso eu tô voltando. Quando eu fiz o primeiro trabalho com o Gil, foi o Kizumbau. Tudo o que eu queria, ele falava “bota o que você quer”. Os músicos na capa: “isso não pode”, diziam os caras da gravadora. “Pode falar com o Gil Beltran. Com Eduardo pode tudo”. O Kizumbau foi bem, vendeu bem. Aí o Gil chegou e falou: vamos fazer o [disco] internacional. Então eu tava gravando “Sodade” e ele foi no estúdio: “Para tudo! Você não pode gravar um disco internacional num estúdio assim, com máquina tudo porcaria”. Qual era o estúdio? Da RCA mesmo, na rua Veridiana. Ele falou assim: “Para a gravação! Estou indo pros EUA e vou trazer uns equipamentos”. Parei. Um dia ele volta e liga: “Araúrro, vem cá”. Tava tudo desmontando, equipamentos, uma Nive de 24 canais, tudo o que tinha direito. Esse disco [Kizumbau] foi o primeiro gravado no Brasil em 24 canais. Depois teve uma coisa lá [na RCA] que eu tava fugindo muito do pop e eles estavam preocupados com isso aí. O Gil Beltran falou: “Vamos ver o que você pode fazer num disco pro Brasil, um disco pra tocar nas rádios, pra vê se a gente

abre as portas pra você não distanciar muito”. Aí pediu pra eu fazer um disco antes do internacional. Chamei o Tony Osanah, mais uns amigos meus e falei vamos fazer esse disco. E eu queria fazer com os Prótons, que era o Franklin [Paolillo] - eu que lancei ele, 16 anos. Tocou com o Joelho e com a Rita Lee - saiu de mim pra tocar com a Rita. Ele era um bom músico na época, mas não tinha essa capacidade de estúdio, então eu chamei o Dorival, baterista atual do Roberto [Carlos]. Eu trouxe um menino que tocava comigo, era o Sérgio Sá... Tocou nesse disco? Tocou. Sérgio Sá, Dorival... o Tony Osanah, Aristeu, uma faixa ou duas. Eu fiz uma miscelânea assim, porque era um disco que não precisava ter uma cara, era um disco que... Ele [Pense na verdade] foi feito todo dentro dessa estratégia internacional? É um disco "tático"... É. Tático pra tocar em rádio. Eu tive que manerar um pouco nos arranjos, fazer uma coisa. Tem música que eu fiz meio que progressiva, porque eu não podia sair dessa. Foi um disco feito assim: vamos juntar umas músicas, juntar uns músicos, e vamos fazer. Foi pedido esse disco, não foi um disco pensado, ele não teve essa característica. A intenção era tocar na rádio. Eu tinha a banda que me acompanhava em show e parte da banda tocou no disco. O Fernandinho que fez os arranjos, tem os arranjos dele, né? Ele era o menino que escrevia, músico de partitura e tudo. Era do Prótons, 18 anos na época, bem jovenzinho. E deu certo o disco? Nenhuma faixa dele se destacou, era outro público. O público que eles queriam atingir eu não tinha mais. Ficou assim, no meio, não agradou nem um nem outro; não agradava os caras e não era a minha praia, não era a praia da rádio. Tava difícil. Tinha começado aquela época já, mas o jabá veio com os Caminhos do Rock.

PELOS CAMINHOS DO ROCK

Veio pro Brasil a esposa do presidente da RCA–Victor. O Gil, muito inteligente, como ela era pianista, colocou-a em estúdio e a fez gravar umas vinte músicas; meteu violino em cima e fez um disco. Mandou pra ela e consquistou a confiança do cara lá, do presidente. A RCA era uma gravadora de terceira, perdia pra ODEON, pra PHILIPS. A RCA subiu e foi pro primeiro lugar com o o Gil Beltran. O prestígio dele cresceu e a RCA tava com problema internacional; o cara levou ele pra ser vice-presidente. Foi quando ele falou: “Preciso de um disco pra estourar no mundo inteiro”. Aí fizemos esse trabalho, que é o Caminhos do Rock. O Gil não tinha muito jeito com as coisas. Ele bateu de frente com o pessoal do marketing da RCA: derrubaram ele e o presidente. Aí mandaram um tal de Pino aqui pro Brasil. Trabalho todo pronto, uma estrutura internacional de lançamento, plano feito, onde ia tocar, contrato, mas não era ainda plano de mídia paga em rádio. Esse tal de Pino vem pra cá e tudo o que era xodó do Gil Beltran... Me pegou de frente: “esse disco não vai sair”. Primeiro falou que não ia sair. “Se não sair eu vou quebrar a cara dele. Vou processar a RCA”. No fim aconselharam ele e ele lançou o disco, mas cortou todas as verbas de divulgação. Foi o cara que inventou o jabá no Brasil: chama-se senhor Pino. O disco saiu aleijado. Nós tinhamos a excursão

que ia pro Brasil inteirinho, com banda nas capitais; e tudo seria pago pela RCA. Era pra estourar no mundo. Ia primeiro lançar aquelas duas músicas em castelhano [“Abracadabra” e “San Juan”] e depois ia fazer um disco todo em inglês. Primeiro pegar o público espanhol com essas duas músicas e depois um disco em inglês. Ele era muito maluco esse cara, o Gil. Muito inteligente. Sabe o que aconteceu com ele depois disso? Depois ele foi pra Metro Goldwin Meyer, mexer com cinema. Ele me ligou e explicou. Tentei falar com ele e não consegui. Então... Eu tive na porta de fazer carreira internacional duas vezes. É um disco que vendeu muito pouco, pouca gente conhece. O Kizumbau vendeu bem. O Chico [Buarque] chegou a comentar sobre a versão de “Construção”? Chico Buarque tava numa situação muito difícil. A Globo não tocava ele. Esse disco ainda cumpriu os projetos que tínhamos... ainda fiz alguns deles que estavam programados, lançamento no Fantástico. Eu exigi que tocasse “Construção”. Entrou “Construção”, apesar que editaram. Mas eles não queriam. Já era pra fazer San Juan de Puerto Rico, aí quando eu... Olha bixo, eu era tão poderoso naquela época, que eu enfrentei a Globo e falei "Se não fizer ‘Construção’ eu tô fora! Não vou fazer outra coisa"; e falaram "Você grava a ‘Construção’ uma semana e depois grava San Juan". Sabe que “Construção” foi um clipe meia-boca, tem uns andaimes; agora San Juan é incomparável. E eu já tentei achar e não consegui. Tem bailarina, tudo! Uma confusão!


A JOVEM GUARDA E A TROPICÁLIA, MUDANÇAS POLÍTICAS, FORMAÇÃO DA INDÚSTRIA CULTURAL, RECRUDESCIMENTO DOS INSTRUMENTOS CENSORES

Através da televisão você chegou no auge, ainda em 67, né? Na verdade auge foi na época do que chamam Jovem Guarda. Foi meu grande estouro, né? Apareci pra mídia, né? Considero que, a partir dali, a minha história continuou com esses trabalhos que fiz, fui excursionando, trabalhando. Quando você estourou com a Jovem Guarda você já sabia ou imaginava que ia conseguir se sustentar como artista? Sempre. Eu só não sabia o quanto ia durar. Não achei que ia durar tanto tempo, até hoje. Achava que ia ser... Aí continuamos, um projeto atrás do outro, furando pedra, batendo cabeça, fazendo show em lugar que não tinha condição de fazer, pagando pra fazer show. Umas vezes você fazia show e o dinheiro não pagava toda a estrutura. Era um Brasil começando pro show business e a gente querendo fazer mais do que o Brasil podia. Eu sempre tive... me preocupando com isso, enquanto os outros se preocupavam em ganhar dinheiro, fazer uma música romântica pra vender tantas milhões de cópias. Eu nunca fiz isso. Eu sempre pensei em fazer minha música, meu som, e que as pessoas respeitassem esses trabalhos. Você não teve problemas com o sucesso na época da TV? Ninguém era tão respeitado como eu. Quando se falava em rock'n'roll, era Eduardo Araújo. É mais em oitenta que surge o Eras-

A ILHA Você chegou a temer a ditadura? A censura intervinha na sua música? Não, porque eu também nunca fui um cara revolucionário. Da censura eu tinha bronca, quanto ao momento de 68; com o AI-5, aí que eu passei a me incomodar, entendeu? Porque aí a liberdade realmente foi pra cucuia. Mas na época do Castelo Branco não, rapaz. Foi um governo bem tranquilo. É. A intenção do Castelo não era perpetuar o regime... Por isso mataram ele. A intenção era que

mo, mas ele era mais raiz. Ele não fez rock progressivo, pesado. Como você acompanhou as transições da música brasileira? Porque você fez parte da entrada da guitarra e essa confusão de MPB que não gostava de guitarrra. E surge a Tropicália... Essa época foi interessante. A preocupação do pessoal da MPB é que a gente tomaria o espaço deles, entendeu? “Porque o rock'n'roll é importado, essa juventude tá ocupando espaço”... e, com o negócio das guitarras, iam sumir os acústicos, o violão. Uma preocupação boba, besta. O acústico tá aí até hoje. Meu show é todo acústico. Em vez de se preocupar em continuar fazendo as coisas boas que eles faziam, eles se preocupavam em ir pra rua fazer protesto contra guitarra. Um absurdo bixo! Aquilo eu achava a coisa mais ridícula do mundo. Você se indignava mesmo? Ahhhh! Pelo amor de deus! Amigos meus lá bixo! Vandré inclusive, que é muito meu amigo. Os caras queriam separar joio do trigo. Caetano e o Gil. eles perceberam - que não eram nada bobos - que tinham que botar guitarra naquele troço, se não iam ficar velhos. Então nasceu a Tropicália; ela nasceu ali. Como houve aqueles protestos, a guitarra tomando lugar do acústico, do violão, e era uma época de ditadura, uma coisa toda, o tropicalismo virou como uma... vamos dizer assim... O cara fazia uma música que não tinha nada a ver; aí eles buscavam um subterfúgio pra falar assim: “Referência a verde não pode ter, porque é cor do uniforme militar”. Qualquer coisa o censor ia lá e... porque existiam, dentro da censura, os caras que queriam perseguir os caras da guitarra.

houvesse uma intervenção num momento de anarquia e que fosse devolvido o poder. Depois que teve esse negócio, “nós vamos ficar no poder”, e fizeram aquela coisa de repressão. Quando você pensava na concepção dos álbuns, por exemplo esse que tem muitas referências nacionais.... Eles separavam as pessoas na censura, quem iam censurar. Vou dizer uma coisa pra vocês. Vocês conhecem a “Ilha”, do Taiguara? Foi censurada com ele; eu mandei, ela passou. Quando o Taiguara foi chorando dizer que a principal música do disco dele foi censurada, eu falei... O Taiguara era muito emotivo: "Eu tô sendo perseguido só porque eu falo a verdade"; "Bixo, não é isso não. Vamo lá, vamo vê a música. Quem sabe posso dar um

jeito nesse trem"; e ouvi a música. Quando eu ouvi, porque ele me levou lá no estúdio, eu falei: "Mas taiguara... essa música bixo, você tá falando da Ilha de Fidel Castro; esse tema aí é muito pesado"; "Mas eu tô falando mesmo"; "Aí bixo. Eu tô falando da ditadura. Pensa do outro lado, se o cara deixa tocar isso na rádio, comem o rabo dele". Mas a música era muito boa bixo, puta... do cacete. "Você me empresta a música"; falei, fui lá... "Quando é que você vai mandar pra mim"; "Já ta pronto, falta pouca coisa". Nós fomos pro estúdio, peguei o arranjo do Taiguara e cantei. Eduardo Araújo a censura dizia: "Esse cara não incomoda". Você acha que havia um respeito por você ter trabalhado com gente influente como o Carlos Imperial? Não. Ele foi lá na Ilha das Cobras. Naquela

época, não tinha essa coisa de nome não, bixo! É porque eu não me envolvia, nunca me envolvi com política, nunca critiquei a ditadura. Se ficar falando bobagem você vai viver as consequências, você tá vivendo um regime de... Eu sou músico, faço música pro soldado e faço música pra guerrilheiro; se o guerrilheiro não gosta de mim, o problema é dele; se o militar não gosta de mim, problema dele. Mas eu não fui pra lá colocar bandeira. Nunca tive isso. Mas você não chegou a ter problema, ser tachado de alienado ou criticado por outros músicos? Não, era amigo de tudo... sou amigo do Geraldo Vandré, do Jair Rodrigues que eram tidos como outras alas. A Elis Regina. Todos me respeitam musicalmente.


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porões do rock, histórias da música sulamericana

1ª edição

Saul e o Tiempo de Rock inauguram a página que dará conta de apresentar o submundo musical de uma América que passou por apuros na década de 70. Nas próximas edições da sÓ mais sobre a cena platina: Dias de Blues, Psiglo, Opus Alfa, Manal, Blilly Bond y La Pesada. Da terra brasilis alguns dos representantes retratados serão grupos como o carioca Analfabitles e o paulista Fogo de Santelmo. Na próxima edição, Luiz Antônio Domingues, atual baixista do Pedra, conta o Lira Paulistana, a Fábrica do Som e A Chave do Sol. depoimento de saul garber cedido a elton amorim

uruguai/1972

Foi um dia da primavera de 1972. Numen, minha primeira banda de composições próprias há pouco havia se separado e eu apresentava-me esporadicamente como solista, com meu violão. Embora estivesse apenas chegando aos meus 20 anos de idade, eu já era quase um veterano no cenário do rock montevideano. Com mais de seis anos de estrada, já tinha tocado – formal ou informalmente com alguns dos músicos mais conhecidos do ambiente: Sergio de La Peña, o Jimmy Hendrix rioplatense; José Luis Pérez, baterista hoje renomado internacionalmente com discos gravados com gente da talha de Jon Anderson (Yes), Yusef Lateef e outros; Alberto “Pocho” Macadar, baixista que enveredaria mais tarde para o jazz e a música erudita; Alvaro Armesto, flautista e saxofonista, xodó das “groupies” uruguaias e muitos outros dessa prolífica geração. Tive bandas cover de Beatles, Stones, Who, Creedence, Animals, Roberto Carlos [sim... RC!], Small Faces, Cream, Santana, Jefferson Airplane e por aí mais. Havia tocado em uma banda de “jazz” por dinheiro (Sérgio y su Clave Azul) na realidade uma banda formada por músicos profissionais, alguns deles da Sinfônica Del SODRE, mas que tocava de tudo, desde música armênia e judaica, até os sucessos das rádios passando por passodobles espanhóis, tangos e valsas. Era muito bom no fim do mês receber meu salário, mas era um trabalho exaustivo e que dava poucas satisfações. Tocava-se duas ou três vezes por semana, com frequência, em dois ou mais lugares numa mesma

noite. Se acrescentarmos que eu tinha minha própria banda – já Numen, nessa época – era uma loucura, passando as noites indo de táxi de um clube a outro, tentando fazer coincidir os horários de apresentação de cada banda e voltando para casa sempre com o sol já bem nascido. Crazy! Não existiam na época os pubs ou barzinhos com música como hoje. Os mais parecidos eram os Café Concert onde, em geral, tocavam trios de jazz ou bossa nova. As apresentações de rock aconteciam em grandes bailes em clubes de futebol ou basquete, onde compartilhavam o palco muitas vezes até mais de dez bandas em dois palcos: um de “Música Beat” – o rock na época – e outro de “Música Tropical” – a salsa de então. Com certa frequência, bandas mais renomadas davam concertos em teatros como El Galpón, o Teatro Solís, o Millington Drake ou a Sala Verdi; mas existia um cenário alternativo que eram as “Caves” ou cavernas (cuevas). Ali apresentavamse bandas mais underground, sem o controle da Associação dos Donos de Salas de Baile (ou coisa parecida) que dominavam o mercado e estabeleciam os valores pagos às bandas. Senén, o nosso baixista, que era o que hoje chamariam de “empreendedor”, decidiu que nós teríamos a nossa caverna. Conseguiu alugar uma maravilhosa mansão abandonada num dos bairros mais elegantes de Montevidéu, Punta Gorda, e começamos a organizar

era um dos lugares ‘cult’ do underground capitalino. Os músicos das bandas mais famosas, após seus shows, iam terminar a noite lá onde muitas vezes davam uma palha e faziam-se grandes jam-

shows três vezes por semana com Numen e outras bandas contratadas. Administravamos também o bar e um pool de sinuca, os quais quase em seguida foram terceirizados; era muita coisa pra nós. O local era incrível: uma mansão em estilo neoclássico, com pisos e escadarias de mármore, no alto das quais fizemos o palco. Em pouco tempo,

sessions, das quais surgiram algumas das boas bandas da época, entre elas Dias de Blues. Foi assim que conheci Jesus, “Flaco” Barral, Graff e Bertolone de Opus Alfa com os quais participava frequentemente de longas e descompromissadas improvisações. O público delirava vendo seus ídolos “suando a camisa”, muitas vezes com mais paixão que nas apresentações oficiais.

É claro que rolava muita droga naquelas noites. Não era raro, quando subíamos as escadas em direção ao palco, ter que fazer malabarismos para não pisar no pessoal deitado nos degraus fazendo sexo na cúmplice escuridão. Pela manhã os funcionários da limpeza recolhiam seringas, ampolas, lenços sujos de sangue e sêmen, baganas e todo tipo de lixo delator do desenfreio. A situação estava ficando incontrolável para nós que, no fundo, só queríamos tocar. Senén falou com um empresário que há algum tempo estava nos fazendo propostas e “vendeu” o empreendimento por um percentual dos ingressos e mais quatro shows mensais para nossa banda. A tudo isto, a situação política do país deteriorava-se a olhos vistos, com frequentes enfrentamentos entre militares e os grupos de guerrilha urbana: os famosos Tupamaros, os menos conhecidos OPR-33 e outros grupos menores. As ‘razzias’ – ações da polícia em que chegavam nos carros com um numeroso destacamento e vários ônibus para levar detidos os frequentadores – começavam a fazer com que o público pensasse duas vezes antes de ir a ver sua banda preferida, já que o risco de terminar a noite num xadrez de delegacia eram grandes. Nunca tivemos certeza de se isso não era patrocinado pelos donos das salas “oficiais” de baile, mas a época das cavernas estava mortalmente ferida.


Coletivo sÓ e Batuque de Fato apresentam maio autoral para comemorar a décima edição dessa imprensa alternativa

SÁBADOS, 22:OO, R$10,00

22/5 rock, jazz e avant-gard com baratas organolóides, e mama gumbo 29/5 hard e prog com Cosmo Drah , o conto (PR) e soul barbeccue rua inácio pereira da rocha, 177, vila madalena, 9549-4218

DOMINGOS, 18:00, R$10,00

2/5 rock com

visionários e mud sharK

9/5 jazz e psicodelia

com dharma samu (lançamento do primeiro disco), e a estréia do grupo

a marcenaria

rua inácio pereira da rocha, 177 vila madalena 9549-4218

QUINTAS com trio do ó 22:00

R$9,00 jazz com churrasco de graça dias 13/5, 3 e 17/6 R$8,00 jazz sem churras dias 27/5, 10 e 24/6 batuque de fato, rua cardeal arcoverde, 1836 pinheiros 3034-2969


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