CLB - Ferreira Gullar

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CADERNOS DE

LITERATURA B R A S I L E I R A

Ferreira Gullar INSTITUTO MOREIRA SALLES



ISSN 1413-652X

CADERNOS DE

LITERATURA B R A S I L E I R A


CADERNOS DE

LITERATURA B R A S I L E I R A

Diretor Editorial Editor Executivo Edição de Arte e Finalização Fotos e Ensaios Fotográficos Pesquisa

Antonio Fernando De Franceschi Rinaldo Gama BEI˜ • Comunicação Eduardo Simões Rosana Tokimatsu

Colaboraram nesta edição: Alcides Villaça, Alfredo Bosi, Antonio Henrique Amaral, Esther Góes, Maria Eugênia, Tatiana Longo dos Santos (São Paulo); Armando Freitas Filho, Dias Gomes, Leandro Konder, Moacyr Félix, Rogério Reis, Wilson Coutinho, Zuenir Ventura (Rio de Janeiro).

NÚMERO

6 - SETEMBRO DE 1998

é uma publicação semestral do Instituto Moreira Salles.

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA

Distribuição no Brasil: Primeira Linha. Tel.: (011) 255-3852. Distribuição em Portugal: Dinalivro. Tel.: (003511) 395-2348. Assinaturas: tel./fax (011) 212-2100 ou via Internet – http://www.ims.com.br


FOLHA DE ROSTO, 5 MEMÓRIA SELETIVA, 9 CONFLUÊNCIAS, 17 ENTREVISTA, 31 GEOGRAFIA PESSOAL, 56 INÉDITOS/ORIGINAIS/DESENHOS, 74 ENSAIOS, 88 GUIA, 116



F O L H A D E R O S TO

O lutador CINQÜENTA ANOS (OU QUASE) DE EXTRAORDINÁRIA MILITÂNCIA CONSAGRAM A LUTA VISCERAL (CLARA, CLARA, MAIS QUE CLARA E NADA VÃ) DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR COM AS PALAVRAS – A FAVOR DA POESIA, DAS ARTES PLÁSTICAS, DA CULTURA BRASILEIRA “Estamos no reino da palavra, e tudo que aqui sopra é verbo”*

Talvez pela força do vento, ou porque fosse mesmo inconfundível, o assobio dos meninos que cortava a tarde de São Luís em meados dos anos 40 parecia alto demais. Dentro de casa, entrincheirado entre papéis e livros, o garoto resistia ao chamado dos colegas. “Não posso!”, gritava. Depois de alguns minutos, os assobiadores, inconformados, sem fôlego, a boca seca, armavam-se de pedras e começavam a atacar a incompreensível fortaleza. Às pedradas, seguiamse insultos, os mais terríveis que o vocabulário moleque podia oferecer. Até que, exaustos, os desprezados da rua davam-se por vencidos – pelo menos naquele dia. Voltariam outras vezes. Por fim, entenderiam. O amigo, José Ribamar Ferreira, o “Periquito”, o futuro Ferreira Gullar (há muitos Ribamares no Maranhão), só atenderia a uma convocação: a da literatura. Não era, como se poderia imaginar, uma renúncia à vida. Os primeiros versos e leituras mais conseqüentes tinham sido inspirados por dois acontecimentos comuns a qualquer adolescente: uma paixão incendiária pela garota mais bonita da vizinhança (seu nome, seu nome era… perdeu-se na carne fria, perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia?) e um deslize na gramática no meio de uma redação escolar. Adeus futebol, lama, camarões no rio, bicicletas de domingo. Adeus, mas só de mentira (ou de verdade) – que a vida (sem mistificação) e a poesia (que sopra onde quer, com seus galos querendo explodir) iriam se atracar para, inseparáveis, dar corpo à luta pela construção de uma das obras mais coerentes da literatura nacional, herdeira de Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. * Todas as epígrafes da presente edição foram retiradas do livro A luta corporal.

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Na análise de Gullar, seu arsenal literário não começou a se formar com o primeiro livro, Um pouco acima do chão (1949), e sim a partir de A luta corporal, lançado em 1954. Menos pelas fragilidades do volume de estréia e mais pelo impacto avassalador de A luta corporal, é difícil discordar dele. Ninguém duvida que bastaria este livro para inscrevê-lo definitivamente na história da poesia brasileira. Ferreira Gullar, no entanto, continuaria a produzir – não só no plano poético, como também no ensaístico. Este, aliás, seria um dos traços mais significativos de sua personalidade intelectual. Poucos escritores brasileiros têm se dedicado, como ele, à reflexão teórica, especialmente no campo das artes plásticas. O conjunto da variada produção de Gullar soma hoje mais de 20 títulos, entre volumes de poesia, ensaios sobre arte e cultura, ficção, crônicas e teatro. Além disso, ele publicou peças em parceria e traduções, assinou diversos trabalhos para a TV e sobretudo polemizou, irrigando a imprensa e a inteligência brasileiras com suas idéias afiadas. Considere-se, ainda, o papel fundamental exercido por Ferreira Gullar na resistência à ditadura militar – que, se lhe custou um exílio prolongado, entre 1971 e 1977, rendeu-lhe um clássico da literatura brasileira deste século, o Poema sujo (1976) – e será simples compreender como era natural e obrigatório dedicar-lhe um número dos CADERNOS. Em seu sexto volume, a publicação do Instituto Moreira Salles, que até agora tem tratado de autores vivos, volta a focalizar um poeta, após a estréia, em março de 1996, com uma justa edição dedicada ao pernambucano João Cabral. Obra de tal envergadura só poderia gerar uma conversa densa com seu autor. Assim, a Entrevista deste número é a mais longa já publicada pelos CADERNOS. No total, Gullar ficou quase nove horas com Antonio Fernando De Franceschi e Rinaldo Gama, respectivamente diretor editorial e editor executivo da revista, para responder a mais de 100 perguntas. Além das próprias questões, os editores dos CADERNOS levaram ao escritor outras tantas, formuladas por seus convidados: Alfredo Bosi, crítico e professor titular de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo; Armando Freitas Filho, poeta; Esther Góes, atriz, protagonista da montagem teatral do Poema sujo; Leandro Konder, professor de Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Zuenir Ventura, jornalista e um dos responsáveis pela preparação da volta de Ferreira Gullar do exílio. Pela

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primeira vez o autor-tema não recebeu a equipe da revista nos seus próprios domínios: convidado a conhecer as instalações daquele que será em breve o maior centro cultural do IMS, localizado na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, Gullar ali se submeteu ao bombardeio de perguntas e a algo em torno de 200 cliques de Eduardo Simões, fotógrafo dos CADERNOS. Simões também responde novamente pelo ensaio fotográfico da seção Geografia Pessoal. A Ilha de São Luís (que abriga a cidade que está no homem que está em outra cidade) e Alcântara (onde todos os habitantes se foram e nada resta deles, sequer um espelho de aparador num daqueles aposentos sem teto), com suas águas de brilho próprio, ladeiras de paralelepípedos, janelas descobertas e, acima de tudo, personagens extraordinários – anjos de verdade (ou de mentira) – são os temas do fotógrafo. Seu roteiro principal foi o Poema sujo. Do Poema sujo, a propósito, os CADERNOS reproduzem, na seção Inéditos/Originais/Desenhos, as duas primeiras páginas datilografadas, com alterações feitas à caneta pela letra miúda de Ferreira Gullar. Chama a atenção que, diferentemente do que atestam as referências habituais, os versos célebres do início do poema – “turvo turvo/ a turva/ mão do sopro contra o muro/ escuro” – não foram datilografados, mas escritos à mão, depois de algumas tentativas que aparecem riscadas às margens do original. Os CADERNOS reproduzem também o manuscrito da abertura do poema “Homem comum”, incluído em Dentro da noite veloz (1975), e a página do Jornal de Letras de junho de 1950 que estampava a poesia “O galo”, com a qual Gullar venceu o concurso daquela publicação e que jamais seria republicada. Estas preciosidades literárias vêm na seqüência de outras: cinco poemas inéditos de Ferreira Gullar. A seção se completa de maneira inusitada, ao trazer para o leitor da revista quatro desenhos do poeta maranhense. Produzidos em 1996, eles fazem parte de uma série intitulada “Morandianos” que, como o próprio título evidencia, homenageia o artista plástico italiano Giorgio Morandi. O Gullar poeta e o Gullar crítico de artes plásticas (uma parte delira, outra pondera) são analisados separadamente na seção Ensaios. Sobre a poesia do autor de Na vertigem do dia (1980) escreve Alcides Villaça, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, onde leciona, com tese a respeito da obra poética de Ferreira Gullar (orientada, ressalte-se, por Alfredo Bosi). Para analisar o papel do escritor como teórico, a revista con-

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vocou Wilson Coutinho, crítico de artes plásticas, jornalista, mestre em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica) e, como Villaça, um especialista em Gullar e seguidor atento de sua trajetória. Mais do que seguidores atentos, amigos, aliados de Ferreira Gullar, o teatrólogo Dias Gomes, o artista plástico Antonio Henrique Amaral e o poeta Moacyr Félix dão os depoimentos que compõem a seção Confluências, presente em todas as edições dos CADERNOS, a exemplo da Memória seletiva e do Guia, espaços da revista dedicados a informações de natureza biobibliográfica. Depois de quase 50 anos de embates viscerais pela poesia, pelas artes plásticas, pela cultura brasileira enfim, Ferreira Gullar poderia estar pensando em depor as armas. Não por se sentir derrotado – exatamente pelo contrário. A guerra entre vertigem e linguagem teria chegado ao fim com a apreensão definitiva da habilidade de traduzir uma coisa em outra. Aos 68 anos, contudo, Gullar continua o mesmo poeta de A luta corporal, sempre disposto a repousar as armas que domina e experimentar outras. Está lá em Barulhos, seu último livro de poesias, publicado em 1987: “há quem pense/que sabe/como deve ser o poema/eu/mal sei/como gostaria/que ele fosse/porque eu mudo/o mundo muda/e a poesia irrompe/donde menos se espera”. Isto talvez ajude a entender melhor o que ele quer dizer com esta espécie de lema: “Só escrevo os poemas necessários”. É sua luta corporal. Para os leitores, não poderia haver luta menos vã.

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M E M Ó R I A S E L E T I VA

A campanha “Tempo acumulado nas dobras do corpo, linguagem”

não concluiria, porém, o ano letivo nesse colégio.

cionais da cidade e de orientação católica; quatro anos antes, iniciara seus estudos no Jardim Decroli, de onde sairia para ter aulas primeiramente com as irmãs Duarte, costureiras e dublês de professoras e em seguida numa escola particular, da qual acabaria fugindo.

1941 Matricula-se no curso primário do Colégio São Luís de Gonzaga, um dos mais tradi-

1942 É aprovado em segundo lugar no exame de admissão do Ateneu Teixeira Mendes;

1943 Ingressa na Escola Técnica de São Luís. Apaixonado por uma certa Terezinha, moradora da mesma rua que ele, abandona seus dois grandes amigos, apelidados de “Esmagado” e “Espírito da Garagem da Bosta” – o apelido de Gullar na época era “Periquito” – e passa a ficar dentro de casa lendo livros reti-

Newton Ferreira, pai de Gullar (1970)

Alzira Goulart, mãe do poeta (1948)

Ferreira Gullar em São Luís, aos 14 anos

Fotos arquivo do autor

1930 Nasce, no dia 10 de se tem bro, na Rua dos Prazeres, 497, em São Luís, capital do Ma ra nhão, José Ribamar Fer rei ra, quarto filho do comerciante Newton Fer reira e Alzira Ribeiro Goulart. De pois dele, o casal teria ainda mais sete filhos.

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1945 Sua redação sobre o Dia do Trabalho ganha nota 95 e é elogiada pela professora de português na escola inteira. Os cinco pontos que faltaram para a nota máxima se devem a erros de gramática, levando-o a mergulhar no estudo das normas da língua. A redação, que ironizava o fato de não se trabalhar no Dia do Trabalho, seria o ponto de partida para o soneto “O trabalho”, primeiro poema publicado por Gullar (três anos depois, no jornal O Combate, de São Luís).

Arquivo do autor

rados da Biblioteca Municipal e escrevendo poemas.

1948 Começa a trabalhar como locutor na Rádio Timbira, ao mesmo tempo em que se torna colaborador do Diário de São Luís. 1949 Publica seu primeiro livro de poesia, Um pouco acima do chão, editado com recursos próprios e o apoio do Centro Cultural Gonçalves Dias. 1950 Presencia o assassinato de um operário pela polícia, durante repressão do governo a um comício de Adhemar de Barros na Praça João Lisboa, em São Luís. Em protesto, nega-se a ler, em seu programa na Rádio Timbira, uma nota que aponta os “comunistas” e “baderneiros” como responsáveis pela morte. Essa atitude faz com que perca o emprego de locutor; o episódio porém rende-lhe um convite para participar de campanha política no

O poeta no Rio de Janeiro, em foto de 1954, ano em que se casou com Thereza Aragão

interior do Maranhão. Com o poema “O galo”, inspirado em anúncio do sal de frutas Eno, vence concurso promovido pelo Jornal de Letras ; a comissão julgadora era formada por Manuel Bandeira, Willy Lewin e Odylo Costa Filho. Gullar começa a escrever os poemas que iriam integrar o livro A luta corporal. 1951 Muda-se para o Rio de Janeiro. Indicado pelo jornalista João Condé, consegue emprego na redação da Revista do Instituto de Aposentadoria e Pensão de Comércio. Conhece o crítico de arte Mário Pedrosa, 10

iniciando com ele uma longa amizade. Publica na Revista Japa, que teve somente um número, o conto “Osíris come flores”. Entusiasmado com o texto, o escritor Herberto Sales arranja-lhe um emprego de revisor na revista O Cruzeiro. Entre dezembro e março do ano seguinte, passa três meses num sanatório em Correias, Estado do Rio, tratando de uma tuberculose. 1953 No dia em que completa 23 anos, é apresentado pelo jornalista Oli vei ra Bastos a Oswald de Andrade. O escritor modernista havia lido o


1954 Casa-se com a atriz Thereza Aragão, com quem teria três filhos: Paulo, Luciana e Marcos. Lança A luta corporal, volume de poemas. O livro seria impresso na gráfica da revista O Cruzeiro, onde Gullar ainda trabalhava como revisor. Os tipógrafos estranharam o projeto gráfico elaborado pelo poeta, inovador para a época, e se desentenderam com ele. Apesar disso, Gullar decide prosseguir com a publicação. Após a leitura de A luta corporal, os poetas paulistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari escrevem-lhe uma carta manifestando o desejo de conhecêlo. No final do ano, Gullar começa a trabalhar como revisor na revista Manchete. 1955 Às vésperas do Carnaval, conhece Augusto de Campos, iniciando com ele discussões a respeito da poesia concreta. Trabalha como revisor no Diário Carioca, antes de engajar-se no projeto do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil.

Fotos arquivo do autor

então inédito e recém-concluído A luta corporal e leva de presente a Gullar dois volumes teatrais de sua autoria, um contendo A morta e O rei da vela e outro, O homem e o cavalo. Nessa época, Gullar começa a escrever Crime na flora ou Ordem e progresso, texto quase que inteiramente em prosa poética. Concluído no ano seguinte, o livro só seria publicado em 1986 pela editora José Olympio.

Paulo, Luciana e Marcos, filhos de Ferreira Gullar e Thereza Aragão, no Rio (1963)

1956 A convite de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta, que acontece em dezembro no Museu de Arte Moderna de São Paulo. 1957 Em janeiro, o MAM carioca recebe a I Exposição Nacional de Arte Concreta. Discordando da publicação, no “Suplemento

Dominical” do Jornal do Brasil, do artigo “Da psicologia da composição à matemática da composição”, escrito pelo grupo concretista de São Paulo, Gullar redige uma resposta intitulada “Poesia concreta: experiência fenomenológica”, que marca sua ruptura com o movimento. Os dois artigos acabariam publicados lado a lado na mesma edição do “Suplemento Dominical”.

Gullar com seus amigos do futuro movimento neoconcreto: Lygia Pape, Theon Spanúdis, Lygia Clark e Reinaldo Jardim, abraçado ao filho, no Museu de Arte Moderna carioca (1957) 11


Arquivo do autor

Hélio Oiticica, o marchand Jean Boghici, Lygia Clark, Ferreira Gullar e Thereza Aragão durante um baile de carnaval, no Rio (1961)

1958 Publica, pela editora Espaço, o livro Poemas. 1959 Escreve o Manifesto Neoconcreto, que seria publicado em março no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, levando também a assinatura de Amilcar de Castro, Franz Waissman, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis. O Manifesto abriria ainda o catálogo da I Exposição de Arte Neoconcreta, realizada no mesmo mês no MAM do Rio. Escreve Teoria do não-objeto, texto publicado no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil. No período em que faz parte do movimento, uma reação ao concretismo, cria o “livro-poema” e o Poema enterrado. Construído na casa do pai do artista plástico Hélio Oiticica, no local onde seria colocada uma caixa d’água, o Poema enterrado consistia numa

sala subterrânea, dentro da qual havia cubos de madeira; o maior, na cor vermelha, continha um verde, de dimensões menores, e dentro dele havia um último cubo de cor branca, que, ao ser erguido, permitia a leitura da palavra “Rejuvenesça”. A obra, no entanto, não pôde ser vista pelo público: uma inundação, provocada por fortes chuvas, alagou a sala e destruiu os cubos. 1961 Com a posse de Jânio Quadros, é nomeado diretor da Fundação Cultural de Brasília. Esse trabalho o faz reavaliar sua postura poética, muito marcada até então pelo experimentalismo. Durante sua permanência no cargo, até o mês de outubro, elabora o projeto do Museu de Arte Popular e inicia sua construção. No final do ano, deixa de atuar nos movimentos de vanguarda. 12

1962 Ingressa no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Publica os poemas de cordel João Boa-Morte, cabra marcado para morrer e Quem matou Aparecida?, assumindo claramente uma nova atitude literária, de engajamento político e social. Emprega-se como copidesque na sucursal carioca do jornal O Estado de S.Paulo, para o qual trabalharia por quase 30 anos. 1963 É eleito presidente do CPC. Publica, pela Editora Universitária da UNE, o ensaio Cultura posta em questão. 1964 A sede da União Nacional dos Estudantes, no Rio, é invadida e a primeira edição de Cultura posta em questão acaba queimada. Filia-se, no dia 1º. de


Iconographia

pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro. 1968 Publica Por você, por mim, poema sobre a guerra do Vietnã, e o texto da peça Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, escrita em parceria com Dias Gomes e montada nos teatros Opinião e João Caetano, no Rio de Janeiro, com direção de José Renato. Após a assinatura do Ato Institucional nº. 5, é preso, juntamente com Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Roberto Freire e Gullar no lançamento de Cultura posta em questão no CPC da UNE (1963)

1966 A peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, escrita em parceria com Oduvaldo Viana Filho, é encenada pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro, conquistando os prêmios Molière e Saci.

1965 O ensaio Cultura posta em questão é reeditado pela Civilização Brasileira, que seria sua principal editora até 1980.

1967 Escreve, com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa, a peça A saída? Onde fica a saída? que seria encenada

1970 Entra num período de clandestinidade; passa a dedicarse à pintura. 1971 Seu pai morre em São Luís. Alertado por um amigo do risco que corria se continuasse no Brasil, decide partir para o exílio. Reside, inicialmente, em Moscou e depois em Santiago,

Iconographia

Arquivo do autor

abril, ao Partido Comunista Brasileiro. Funda, ao lado de Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Armando Costa, Thereza Aragão e Pichin Pla, entre outros, o Grupo Opinião.

1969 Publica o ensaio Vanguarda e subdesenvolvimento.

Ferreira Gullar, à direita, vende ingressos na bilheteria do Teatro Opinião (1965) 13

O poeta, com um visual diferente do que costumava adotar, pouco antes de sua partida para o exílio (1971)


Arquivo do autor

Credencial do Colegio de Periodistas de Chile; ao chegar a Santiago, em 1973, Ferreira Gullar filiou-se a esta entidade direitista a fim de não levantar suspeitas

Lima e Buenos Aires. Durante esse período, colabora com o semanário O Pasquim, publicando artigos sob o pseudônimo de Frederico Marques.

1975 Sai o volume de poesias Dentro da noite veloz. Entre maio e outubro escreve, em Buenos Aires, o Poema sujo. Em novembro, lê o novo trabalho na casa de Augusto Boal, na capital

1976 Sem a presença de Gullar, acontece no Rio o lançamento de Poema sujo. Jornalistas e intelectuais tentam, junto à cúpula do regime militar, obter garantias para que o poeta volte ao país sem ser molestado. Na capital argentina, dá aulas particulares de português para sobreviver.

Iconographia

1974 É absolvido, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal, da acusação de perten-

cer ao Comitê Cultural do Partido Comunista Brasileiro.

argentina, para um grupo de amigos exilados. Vinícius de Moraes, que organizara a sessão de leitura, pede uma cópia do texto; por prudência, Gullar decide gravar o poema numa fita cassete. No Rio, Vinícius reúne intelectuais e jornalistas para sessões de audição do Poema sujo. Entusiasmado, o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, pede uma cópia escrita do texto para publicá-lo em livro; enquanto isso, cópias da fita circulam pela cidade em sessões fechadas de audição.

O escritor em seu apartamento em Buenos Aires, onde chegou em 1974; nessa cidade, última etapa do exílio, Gullar escreveu o Poema sujo 14


Fotos arquivo do autor

Amigos de Ferreira Gullar no lançamento, sem a sua presença, do Poema sujo, no Rio de Janeiro, em meados de 1976; a volta ao Brasil só ocorreria em março do ano seguinte

1977 De volta ao Brasil desembarca, em 10 de março, no Rio de Janeiro. No dia seguinte é preso pelo Departamento de Polícia Política e Social (DPPS, antigo DOPS). No DPPS, é submetido a contínuas sessões de interrogatório, nas quais os agentes policiais o ameaçavam dizendo que seqüestrariam seu filho Paulo – então internado numa clínica psiquiátrica, para tratamento de graves problemas mentais que haviam começado a

se manifestar quando da estada da família em Lima – caso não confessasse o que queriam ouvir. Depois de 72 horas de mobilizações, seus amigos conseguem que ele seja libertado. Retoma, aos poucos, suas atividades de jornalista, poeta e crítico. Publica, pela editora Summus, Antologia poética. O Centro Simón Bolívar, de Caracas, lança La lucha corporal y otros incendios, seu primeiro livro a ser traduzido.

A atriz Bibi Ferreira (ao centro) dirige uma cena da peça Um rubi no umbigo (1979) 15

Acróstico em homenagem a Gullar feito por Chico Buarque no lançamento do Poema sujo; no exílio, ele receberia este e outros textos e fotografias do evento

1978 A editora Avenir publica o ensaio autobiográfico Uma luz do chão. 1979 Grava, pela Som Livre, o disco Antologia poética de Ferreira Gullar. Com direção de Bibi Ferreira, estréia no Teatro Casa Grande, no Rio, Um rubi no umbigo, primeira peça teatral escrita individualmente por Gullar. Começa a escrever para o núcleo de teledramaturgia da Rede Globo, para o qual fora indicado por Dias Gomes. Inicialmente faz adaptações de clássicos do teatro (série Aplauso). Nos dois anos seguintes escreveria episódios dos seriados Carga pesada (1980) e Obrigado doutor (1981). 1980 Publica, pela Civilização Brasileira, Na vertigem do dia, livro de poesias. Ao completar 50 anos, a editora o homenageia com Toda poesia, reunião de sua obra poética. Estréia, na Sala Sidney Miller, no Rio de Janei-


Rogério Reis / Tyba

ro, a versão teatral do Poema sujo; a direção é de Hugo Xavier e no elenco estão Esther Góes e Rubens Corrêa. 1982 Lança, numa co-edição da Avenir e Palavra e Imagem, o livro Sobre arte, coletânea de artigos, a maioria deles escrita para a revista Módulo entre 1975 e 1980. 1983 A Rede Globo exibe o seu especial Insensato coração. 1984 Profere a conferência “Educação criadora e o desafio da transformação sócio-cultural” na abertura do 25º. Congresso Mundial de Educação pela Arte, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Recebe o título de “Cidadão Fluminense” na Assembléia Legislativa do Rio. 1985 Publica sua tradução de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, que lhe rende o prêmio Molière, até então inédito para a categoria tradutor. 1987 Lança, pela José Olympio, Barulhos, livro de poemas. 1989 Sai, também pela José Olympio, Indagações de hoje, reunião de ensaios sobre cultura brasileira e a questão da vanguarda em países subdesenvolvidos. 1990 A José Olympio publica A estranha vida banal, coletânea de 47 crônicas escritas por Gullar n’O Pasquim e Jornal do Brasil. Colabora com Dias Gomes na novela Araponga.

Gullar em seu apartamento no bairro carioca do Leme, ao lado da poeta Cláudia Ahimsa

Morre, no Rio de Janeiro, seu filho mais novo, Marcos. 1992 É nomeado diretor do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC); retoma o nome original do órgão, Funarte, e faz diversas alterações em sua estrutura; permaneceria no cargo até 1995. A Rede Globo exibe a minissérie As noivas de Copacabana, escrita por Gullar, em parceria com Dias Gomes e Marcílio Moraes. 1993 Lança, pela editora Revan, o livro Argumentação contra a morte da arte, em que sustenta o fim das vanguardas; a obra provoca polêmica entre artistas plásticos. 1994 Morre no Rio de Janeiro sua mulher, Thereza Aragão. A 16

José Olympio publica uma edição comemorativa dos 40 anos de A luta corporal. A editora também promove, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), um evento sobre o trabalho de Gullar. 1997 Passa a viver com a poeta Cláudia Ahimsa, a quem conhecera três anos antes, na Feira de Livros de Frankfurt. Lança, pela José Olympio, Cidades inventadas, coletânea de contos escritos ao longo de 40 anos. 1998 Publica, pela Revan, Rabo de foguete – Os anos de exílio. É homenageado no 29º. Festival Internacional de Poesia de Rotterdã.


CONFLUÊNCIAS

Os aliados “Cavamos a palavra”

Rogério Reis / Tyba

O dramaturgo, telenovelista e romancista Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu na cidade de Salvador, em 1922. Aos 15 anos, escreveu sua primeira peça teatral, A comédia dos moralistas, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro. Em 1942, foi contratado como autor exclusivo de Procópio Ferreira. Em 1944, a convite de Oduvaldo Viana, começou a trabalhar em rádio. A consagração definitiva de sua obra viria em 1962, quando o filme O pagador de promessas, baseado na peça homônima, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Com o golpe de 1964, Dias Gomes passou a ser perseguido pelo regime militar. Casado desde 1950 com a telenovelista Janete Clair (1925-1985), estrearia como autor de telenovelas da Rede Globo em 1969; nesta atividade, um de seus maiores sucessos seria O bem-amado (1973). Em 1991 foi eleito para a cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras. Com Ferreira Gullar, Dias Gomes escreveu a peça Dr. Getúlio (1968) e a minissérie As noivas de Copacabana (exibida na Globo em 1992 e assinada também por Marcílio Moraes), entre outros trabalhos. Em 1989, a editora Bertrand Brasil iniciou a publicação de sua obra completa e em 1998 lançou Apenas um subversivo, livro de memórias.

“Como todo maranhense que se preza (até mesmo o presidente José Sarney), foi batizado José Ribamar. José Ribamar Ferreira se assinava, até que um dos milhares de Ribamar, também poeta, publicou versos infames que lhe foram atribuídos. Não se contentou com o desmentido público: resolveu mudar de nome para evitar novo atentado, nome que o consagrou como um dos maiores poetas brasileiros, Ferreira Gullar, com dois eles para bem marcar a diferença. Quando o conheci era já figura exponencial do movimento concretista (movimento do qual teve o bom senso de se afastar logo depois) e fazia parte de uma equipe de jornalistas que realizava uma reformulação gráfica no Jornal do Brasil. Mas foi mesmo o teatro que nos aproximou, no início dos anos 60. O teatro e a militância política. O golpe militar de 64 e o criminoso incêndio do prédio da União Nacional dos Estu17


dantes obrigaram um grupo de intelectuais que compunha o Centro Popular de Cultura a se reorganizar num espaço precário, no interior de um shopping em construção – nascia o Grupo Opinião. Gullar era um deles, na verdade a cabeça do grupo, que também incluía gente talentosa e combativa como Vianinha, Paulo Pontes, João das Neves, Thereza Aragão, Pichin Pla e Denoy de Oliveira. O Grupo Opinião foi, no campo da cultura, uma das primeiras trincheiras de resistência ao regime autoritário que se instalava e seus primeiros espetáculos proporcionavam uma catarse a todos aqueles que se opunham ao regime militar e às violações da liberdade de expressão. Nunca fiz parte dele, apesar da afinidade de idéias e da amizade que me unia a todos os seus componentes, mas convidaria Gullar para escrever comigo Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (que se intitulou Vargas na segunda versão) e entregaria ao grupo a encenação dessa mesma peça, em 1968. Data desse momento uma parceria que dura até hoje, alicerçada pela amizade, pelo companheirismo e pelo pensar parecido. Nunca havia escrito uma peça em parceria. O convite se justificava: a peça teria uma parte em versos e nunca confiei no meu talento poético. Ao Gullar coube não apenas versificar algumas cenas escritas originariamente em prosa como também consertar outras que me atrevi a escrever em versos. Mas sua colaboração se estendeu a muito mais. Seu alto senso crítico, sua sensibilidade política e seu interesse para com as formas de arte popular (Dr. Getúlio se inspirava, formalmente, num enredo de escola de samba) deram maior consistência ao texto, já que discutíamos cena por cena antes de escrevê-las. A paixão pela discussão, uma das características de nossa geração – levada à exaustão nas memoráveis reuniões de célula do Partido Comunista e nas assembléias de classe – produzia frutos inesperados na criação artística. E revelava sintonia em nossa visão de mundo. Comecei a conhecer alguém com extraordinário senso de justiça e equilíbrio na análise, de uma objetividade rara num poeta. Daí tê-lo convidado outras vezes, já na televisão, para dividir comigo outros trabalhos. O resultado sempre foi excelente. Um elo a mais em nossa amizade era Thereza Aragão, sua falecida esposa, mulher de personalidade forte, combativa, mente aberta, firme em suas idéias, de uma franqueza por vezes chocante, uma guerreira que lhe deu três filhos. O recrudescimento da caça às bruxas após 68 levaria Gullar ao exílio e produziria efeitos desastrosos em sua família, principalmente sobre seus filhos, o medo e a incerteza instalados em suas mentes, levando à fuga para as drogas. Não é difícil imaginar os maus momentos por que passou o poeta no exterior, ciganeando pela América do Sul, saltando de país em país, buscando segurança onde não havia, sabendo que a insegurança maior estava morando em sua própria casa. Os equivocados partidários da teoria de que o artista precisa sofrer para criar grandes obras dirão que tudo isso foi benéfico porque resultou num dos mais belos poemas de nossa língua brasileira, o Poema sujo. Escrito no exílio, seus originais nos chegaram ainda em plena ditadura e foram lidos pela primeira vez, em voz alta, para um pequeno grupo de intelectuais da resistência, por iniciativa de Ênio Silveira. Lembro-me bem da emoção que causou. Era uma voz que vinha de longe e falava, não de angústias presentes, mas de angústias passadas e que, no entanto, tão presentes nos pareciam, tanto nos emocionavam pelo que nos revelavam – acima do mundo sujo existe um outro mundo, inalcançável aos que chafurdam na lama. O poeta falava de sua São Luís em 18


tempos idos, de sua Rua dos Prazeres, prazeres sujos ou não, e no entanto, naquele momento tão dramático, seu poema nos soava como um manifesto subversivo, um incitamento à luta. Por quê? Talvez, sobretudo, porque a brutalidade autoritária havia ameaçado calar a voz do poeta e agora ela nos vinha inconformada, com mais vigor ainda, cantando a vida. A volta do exílio reatou nossa amizade e nossa cumplicidade artística. Tornei-me responsável por sua ida para a televisão, onde, por várias vezes repetimos nossa parceria em minisséries como As noivas de Copacabana e, juntos, tocamos um projeto cujo alcance e generosidade nunca foram bem entendidos, a Casa de Criação Janete Clair. Foram dois anos de convívio diário, divididos entre a Casa e as mesas do Luna Bar, que aumentaram a admiração que já sentia por ele. Confidente de seus gigantescos problemas familiares, da cruz que carregava, sempre me espantou o racionalismo extremado com que enfrentava todas as situações, jamais perdendo o equilíbrio, a postura cartesiana, quando tinha todos os motivos do mundo para se entregar ao extremo oposto. Principalmente sendo um poeta, ser que sempre subverte a matemática comum dos mortais. Subversão que ele praticou, saudavelmente, durante toda a sua vida e que marca honrosamente a sua biografia”.

Rômulo Fialdini

Pintor, gravador e desenhista, Antonio Henrique Amaral nasceu em São Paulo no ano de 1935. Na adolescência, pensava em se tornar escritor. Ainda assim, começou a estudar desenho – primeiro como autodidata e depois no ateliê do Museu de Arte Moderna de São Paulo com Roberto Sambonet. Em 1953, ao visitar a II Bienal de São Paulo e ver a tela Guernica, de Picasso, resolveu definitivamente que tomaria o caminho das artes plásticas. Depois de estudar gravura com Lívio Abramo, Antonio Henrique Amaral realizou em 1958 suas três primeiras exposições nessa técnica: no MAM de São Paulo, no Instituto de Arte Moderna do Chile e na Universidade de Concepción (também no Chile, onde viveria por seis meses, antes de embarcar para Nova York, cidade na qual residiu e estudou durante o ano de 1959). A subida dos militares ao poder em 1964 teria forte impacto na obra de Antonio Henrique Amaral, que a partir de então adotaria uma temática de forte conteúdo político e social – o que o aproximou de Ferreira Gullar. Ao longo de sua carreira, o artista já realizou mais de 60 mostras individuais e participou de quase uma centena de coletivas, inclusive cinco Bienais de São Paulo.

“1964, o golpe militar. Fim do sonho que tinha começado com Juscelino Kubitschek. A realidade agora era bem outra; éramos mesmo uma republiqueta latino-americana com generais impacientes, autoritários, que não toleravam o democrático jogo de opiniões diferentes. Banana Republic. República marca Banana na pior tradição latino-americana. 19


1966, a virada na minha vida pessoal. Depois de me alugar por sete anos ao fantástico mundo da mentira publicitária como redator, contato e relações públicas, no horário comercial das oito às 18 horas, reservando sempre o horário nobre – das oito da noite em diante – ao meu trabalho como gravador, desenhista e pintor, resolvi dar um basta àquela esquizofrênica situação. Larguei tudo e resolvi encarar em tempo integral a atividade de pintor. Vendi meu Fusca e com o dinheiro, editei um álbum de sete xilogravuras em cores: 300 exemplares. Foi o projeto ‘Lei Áurea’ da minha vida: viver de arte, começando com esse álbum que intitulei O meu e o seu. Eram xilogravuras que falavam do nosso tempo, do meu tempo, do seu tempo. Não tive dúvidas na hora de escolher o crítico para apresentar o álbum: o autor de Cultura posta em questão, o poeta Ferreira Gullar. Na minha cabeça o melhor crítico de arte tem que ser poeta, tem que conhecer os problemas da criação, da linguagem artística, tem que estar vivo e dentro do tempo e das coisas que nos cercam. Não podia ser um crítico embevecido com as tendências dominantes em Kassel, Nova York, Londres, Milão, Colônia etc. Tinha que ser um cara metido no dia-a-dia desta bagunça nossa; estar trabalhando, vivendo e participando. Teoria e prática do pensamento crítico. Ferreira Gullar era quem eu tinha que procurar para escrever sobre meu trabalho. Eu em São Paulo, ele no Rio. Peguei o telefone e arrisquei: ‘Gostaria de lhe mostrar estas gravuras e de repente pedir que você escreva o texto de apresentação etc. etc’. Ele: ‘Tudo bem, venha ao Rio e nos conheceremos pessoalmente’. Gullar tinha uma vaga idéia das minhas gravuras – de bienais, salões nacionais. Certo, lá fui eu para o Rio com as provas das gravuras. Ferreira Gullar me esperava na redação da sucursal do jornal O Estado de S. Paulo, no meio do noticiário político, da censura do governo militar. Mas o poeta estava ali dentro dele, como o cerne dentro do tronco da árvore. Gostou e topou a parada. No catálogo, escreveu: ‘… Como estamos distantes daquela gravura preciosa, quase muda, voltada para os requintes da técnica de gravar, ou, como dizia Goeldi, da técnica de imprimir. Como a pintura, como a escultura, a gravura brasileira daquela época não falava – a não ser de si mesma. O gravador, então, julgando atingir o ápice de sua arte, na verdade tornara-se um instrumento dela. E no entanto o mundo não era tão diferente do que é agora. É fato que o que estava latente na realidade se tornou evidente. Os acontecimentos políticos dos últimos anos, no plano nacional e internacional, tornaram mais claros, para um número bem maior de pessoas, o mundo em que vivem, o país em que vivem, a vida que vivem. O próprio caminho pela arte deveria conduzi-la a um reencontro inevitável com a realidade. E é dessa realidade que nos fala Antonio Henrique Amaral, abrindo-a agora, aqui, diante de nossos olhos para que a vejamos – e eu quase diria: para que a ouçamos, tal é a veemência de seu desenho, de seus cortes, de seus símbolos arrancados em bruto da experiência cotidiana…’ O texto me emocionou e ajudou a selar, definitivamente, meu compromisso com o trabalho de pintor. Nossas afinidades quanto ao papel do artista e da arte eram muito grandes. Não me preocupava o fato dele ser comunista e eu não. Era e tem sido até hoje a relação entre um poeta e um pintor. Nós dois participávamos da mesma realidade brasileira com os olhos e os nervos de quem vê a arbitrariedade e a violên20


cia militar contra o exercício das mais básicas noções de democracia. Vendo e sentindo na pele o que é viver e fazer arte num país subdesenvolvido, oprimido e censurado. O autor de Vanguarda e subdesenvolvimento sempre me impressionou pela lucidez de sua visão, por seu bom humor diante do terrível e por sua posição crítica e íntegra diante do provincianismo de certos setores de nosso mundo artístico, que insistem em achar que tudo o que é feito lá fora é melhor e mais criativo. Depois de dez anos de xilogravura e desenho, do branco e do preto, brotou a cor na minha pintura: em 1966 vieram as bocas, abertas, cheias de dentes e línguas num estridente alarido visual, coro grego preparando a cena para a série ‘Bananas’, na qual trabalhei de 1967 a 1975. De verdes passam a podres e, em vez de aparecerem em cachos, surgem agora em pratos, asfixiadas por cordas, cortadas e apunhaladas por facas e garfos. Com certeza, Ferreira Gullar tinha que escrever sobre esta nova fase, apresentando a série no Rio e em São Paulo. Ele entendia muito bem o que a banana era e significava. Em carta que me escreveu em novembro de 1974, de Buenos Aires, Gullar dizia: ‘Trata-se de inserir o individual no coletivo, a improvisação no permanente, o acaso na ordem: em suma, superar o particular, o efêmero, a morte […]. Com as ‘Bananas’ você conseguiu tornar linguagem coisas banais e, mudas, como banana, garfo, faca, corda: através dessas coisas exprimes a tragédia brasileira, a violência e a repressão, e mais. Se tens necessidade de romper com isso, rompe. Toma apenas em conta uma coisa: a banana era um símbolo coletivo, nacional, e por isso te permitiu extrair dele tantas significações. O mergulho na subjetividade, no individualismo, tem o perigo de empobrecer a expressão […]. Mas […] quando necessário, é bom, porque pode servir para criticar a linguagem já objetivada, para refundir e reformular os seus elementos e incorporar novos elementos à expressão. O importante é que voltes à superfície, não te desligues do geral: que o cidadão Antonio Henrique não desapareça na voragem’. Em 1968, Gullar dissera, no texto que apresentou a primeira exposição da série ‘Bananas’: ‘Antonio Henrique Amaral pertence àquela família de artistas para os quais a arte não pode ser o mero exercício da sensibilidade nem apenas a organização de uma linguagem ou de uma sintaxe que lhe permitia, a partir daí, falar coerentemente do mundo […]. Do meu ponto de vista, parcial e comprometido com a realidade brasileira, vejo no trabalho de Antonio Henrique Amaral importante contribuição’. Conversar com Gullar é uma experiência que eletriza e hipnotiza o interlocutor. Você aprende dando risada com a fina, divertida e lúcida ironia de suas palavras. Gullar não se diminui diante dos poderosos argumentos da mídia artística internacional, nem diante das ‘tendências hegemônicas’ da assim chamada arte universal. Ele contrapõe. Ele argumenta. Firme e com clareza. Discute as idéias dos críticos internacionais do momento, de igual para igual, com argumentos autênticos expressos de maneira fascinante e divertida. E sempre está ali dentro dele o poeta, como o cerne firme dentro do tronco da árvore. 1971. A situação política aqui tinha piorado bastante. A Operação Bandeirantes estava a toda. Gullar tinha que sair do país, antes que fosse preso. Falamos por telefone e combinamos que ele viria para São Paulo 21


e ficaria ‘escondido’ no meu apartamento. Ele e Thereza, sua mulher. E assim foi. Era a época em que os zeladores de cada edifício tinham que informar às autoridades quem entrava e quem saía dos apartamentos, era uma parada. Tivemos que driblar durante dez dias o zelador do prédio nas Perdizes, que insistia em saber quem eram os hóspedes de minha casa. Mas tudo deu certo. Gullar ficou uns seis dias em casa sem sair à rua e embarcou direitinho para o sul e depois para Buenos Aires. Éramos todos clandestinos nessa época. Andávamos todos meio escondidos das autoridades, ávidas de intelectuais e artistas de ‘esquerda’. Depois, durante os vários anos do exílio de Gullar, mantivemos uma correspondência que nos fez muito bem. Eu aqui em São Paulo e depois em Nova York, e Gullar em Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires. Eram confidências sobre as coisas da vida. Numa carta datada de março de 1975, ele me escreveu da capital argentina: ‘Costuma-se dizer que os sofrimentos profundos servem como experiência; é possível; sucede porém que, quando estamos nele, isso não nos interessa, pois o que o caracteriza é a falta total de perspectiva. Mesmo agora não vejo de que me servirá isso, e prefiro não acumular experiências a ter de fazê-lo a esse preço. O que espero é que de fato as coisas melhorem e que eu volte a encontrar alegria e sentido nas coisas. Desconfio de que talvez a esta altura só o amor me salvará, amor de mulher, concreto e tangível. Ou a volta a uma coisa coletiva, construtiva, que só poderia acontecer no Brasil e não agora.’ Em novembro do mesmo ano, ainda em Buenos Aires, falava-me das coisas da arte: ‘Arte brasileira é uma coisa que se cria, que se vai criando, errando e acertando, misturando alienação e consciência, buscando, buscando. Fundamentalmente, há que fazer arte de verdade, essa é a condição primeira e fundamental, pois é das obras verdadeiras que vai nascendo isso que se poderá chamar de arte brasileira. Assim, o país se veio e se vai fazendo: é uma construção de todos, sabendo ou não sabendo. Penso em Machado de Assis: ele é romancista porque faz bem seu romance e brasileiro porque sua matéria é a vida da sociedade carioca e daí nasce o jeito, a bossa, o humor, o clima, tudo o que há de particular na sua literatura. O conteúdo da arte é universal, sua forma é nacional. Mas forma não é estilo e conteúdo não é tema: tema é forma, e conteúdo é o sentido mais profundo da obra, que transcende o momento.’ Nos últimos 20 anos, de 78 até hoje, nas nossas andanças pelo mundo, não perdemos o contato. A gente se vê, beberica, janta e conversa muito. Trocamos idéias, visitas, confidências. Sempre me impressionou o fato de que Gullar, com sua atribulada vida pessoal, nunca tenha perdido o fio da meada de seu trabalho, de sua poesia. A fé no seu trabalho. Nos meus piores momentos de crise pessoal e de dúvidas em meu trabalho e nos rumos de minha vida, lembro sempre do que me disse o mestre gravador Lívio Abramo, em 1965: ‘Escuta, Antonio Henrique, se você for esperar a vida entrar nos eixos pra começar a trabalhar, pode tirar o cavalo da chuva, porque isso não vai acontecer. A vida só vai ficar mais enrolada e confusa, com o passar dos anos; você tem que aprender a trabalhar, gravar, pintar no meio deste rolo enroscado que é a vida…’ Lívio Abramo tinha razão. E Ferreira Gullar é o exemplo vivo disso aí. Sua força e sua lucidez parecem que ganham em intensidade, a despeito de todas as emboscadas que o destino aprontou e apronta no curso de sua vida. 22


Sua visão continua clara e lúcida; o poeta continua lá dentro, guiando seus gestos, suas palavras e seus passos – mesmo nestes nebulosos e conturbados dias de globalização fascinante, irreversível, que ninguém sabe onde vai dar. O homem que resguarda o poeta, não importa os golpes baixos que a vida apronta, está aí. Firme. Seu discurso faz cada vez mais sentido. Sua obra de poeta, ensaísta e crítico de arte, com o passar do tempo, está cada vez mais atual e oportuna. Sua reflexão sobre a cultura, a arte e os movimentos de nossa realidade social me parecem cada vez mais sintonizados com o momento que vivemos.”

Rogério Reis / Tyba

O poeta Moacyr Félix de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Em 1948 concluiu o curso de Direito. Em 1950, a convite do governo francês, seguiu para Paris, a fim de estudar na Sorbonne. Lá seria aluno dos filósofos Merleau-Ponty e Gaston Bachelard, entre outros. De volta ao Brasil, em 1953, engajou-se no jornalismo literário. Nesta época conheceu Ferreira Gullar. Entre 1955 e 1956, trabalhou na Rádio MEC, cuidando de um programa dedicado à literatura. Colaborou em seguida com órgãos do Partido Comunista e da grande imprensa, foi redator-chefe do Jornal de Letras e dirigiu coleções de poesia e filosofia. Entre 1962 e 1963, organizou e prefaciou três volumes da série “Violão de rua”, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Em 1965, assumiu a Secretaria de Redação da Revista Civilização Brasileira, editada por Ênio Silveira, da qual seria, mais tarde, diretor. No ano seguinte, foi um dos fundadores e diretor da editora Paz e Terra. Em 1996, a Funarte inaugurou no Rio o Espaço Cultural Poeta Moacyr Félix. Publicou, entre outros, O pão e o vinho (Rio de Janeiro, Antunes, 1959), Canto para as transformações do homem (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964), Canção do exílio aqui (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977), Neste lençol (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992) e a antologia Singular plural (Rio de Janeiro, Record, 1998).

“Falar algo sobre a pessoa Ferreira Gullar – e desde que se queira dela dar um três por quatro próximo do ser que o define ou com o que ele se define na existência – é tarefa dificílima, dado as suas riquezas emotivas sempre se aprofundarem e as movimentadas dialeticidades de sua inteligência o tornarem sempre causa e efeito de atos os mais diversos. Bom que esta não seja agora a minha tarefa, já que apenas lembrarei aqui alguns poucos atos e fatos que praticou em torno de eixos de tempos comuns a nós dois e que, ao lado de muitos outros em que fui aprendendo cada vez mais a ver as originais definibilidades da personalidade dele, foram se constituindo em laços de uma amizade que está entre os mais fundamentados sentimentos em que me quero como vida. Assim, vamos a eles. Conheci Gullar há muitos e muitos anos, lá pelos meados de 1954, um ano após a minha chegada de Paris, onde passara três anos trabalhando sobretudo na radiofusão francesa e estudando filosofias 23


na Sorbonne. Ele estava no Rio havia poucos anos e, se não me engano, morava numa pensão no Catete. Seu companheiro ali era o Oliveira Bastos, que trabalhou junto com ele no Jornal do Brasil, e, como escritor que obtivera nomeada, transferira-se mais tarde definitivamente para Brasília. Freqüentávamos todos – uma roda variada de escritores e poetas – o bar chamado O Vermelhinho, no centro da cidade, na Rua Araújo Porto Alegre e bem em frente à Associação Brasileira de Imprensa. Ali eu assisti os inícios do seu namoro com aquela moça sempre pronta a uma discussão e a uma crítica em defesa de suas posições, já então de ‘esquerda’ e socialistas como as minhas, moça que se chamava Thereza Aragão e que veio a ser, durante anos, a sua esposa e a mãe de seus três filhos. E só em 1957 foi que ele, numa ida à minha casa, entregou-me, como resultado de nossas conversas sobre o assunto, o seu A luta corporal, que editara em março de 1954. Eu já conhecera em leitura rápida o livro, e dizia para todos da minha indignação ao não ler, na imprensa, nenhuma das louvações que os seus poemas realmente mereciam. Quando pude lêlo com calma e poema por poema (e na dedicatória o Gullar já usara a palavra ‘amizade’, o que realmente me tocou, pois eu já considerava com peso o que via e ouvia dos modos de ser dele) eu escrevi, assinei e datei – à tinta e na página do falso rosto do livro de FG que conservo em minhas estantes ao lado de toda a poesia dele até agora – o seguinte comentário: ‘Gullar ainda será muito famoso e admirado, pois verdadeiramente (malgrado os equívocos em que raramente se atrapalha caindo no jogo ou modismo intencionais) o autor deste Luta corporal é poeta até o fundo dos ossos’. A merecida celebridade chegou, e chegou bem, graças a ‘Deus’, pois hoje ele é um nome da poesia brasileira mui elogiosamente divulgado também em vários países do mundo. Aliás, acho que ele mesmo, no fundo, sabia e sentia isso, pois sob as dedicatórias de A luta corporal e outros poemas, publicado em 1966 por José Álvaro Editor, ele escreveu um PS galhofeiramente aclarante: ‘PS – Os últimos serão os primeiros…’ Dedicatórias que transcrevo, pois mostram, desde então, o quanto já éramos ligados afetivamente: ‘lª. dedicatória (assim mesmo sublinhado) – Ao poeta Moacyr Félix por sua paixão pela vida e pela justiça, com o meu abraço’ (assinatura e data, Rio 1966); ‘2ª. dedicatória (também sublinhado) – a Kaj, cuja doçura e delicada presença conforta os amigos, fraternalmente’ (e a seguir, assinatura e data, Rio 1966). E vejam bem, isso no ano de 1966, dois anos após o sofridamente escurecente 1964, e quando ele já havia se tornado conhecido e admirado como ativo jornalista, escritor e poeta. E recordo aqui, também que a terceira edição desta inventivamente notável A luta corporal, já então publicada em 1975 pelo Ênio Silveira na Editora Civilização Brasileira (em cuja tão celebrada revista colaborara com valiosa freqüência), chegara-me trazendo dentro, e escrito à mão, um bilhete afetuoso e amigo enviado ao editor como dedicatória a mim datada naquele ano na cidade de Buenos Aires, onde Gullar então vivia uma das fases do seu exílio. Foi a longa época em que Gullar voltou-se, com aquele autoconsumir-se ou dar-se total que o caracteriza em cada uma das etapas das suas orientações no ato de criar-se literariamente, para uma participação cada vez mais conscientemente voltada para as faces e os fatos definidores do tempo sócio-político-econômico da História de então. Época em que, por vários anos, eu tive alguma liderança na nossa vida político-cultural, por tudo que eu fazia como escritor, poeta, militante socialista e membro expresso das direções ou coor24


denações (a quatro mãos com o meu grande amigo Ênio e sempre com a cooperação freqüente e eficiente de um grupo de intelectuais tais como o Gullar) de volumosas revistas de ensaios – que muitas vezes chegaram a vender edições de 20 mil exemplares, e que eram eixadas em torno de um humanismo abertamente democrático e socialista – ou de uma coleção de livros de sociologia, filosofia, história, economia e política. Época em que lá pelas tantas (ele apenas movido, eu sei, pelos seus momentâneos e emotivos sentimentos de então) na imprensa eu pude, gratamente estimulado, ler que ‘Gullar disse ainda considerar como os melhores poetas, na sua nova concepção, Carlos Drummond de Andrade e Moacyr Félix. É porque traduzem melhor a sua mensagem social, concluiu’ (Shopping News, em 29.07.62, com foto do poeta quase de página inteira). Hoje eu sei que, por certo, ele não falaria mais assim, e concordo; e sei, quanto ao Drummond que, com definidora e pensada afirmação, hoje até amplia mundialmente o seu louvabilíssimo juízo. E nele acho isso até muito conseqüente e natural: não se esqueçam de que há pouco escrevi sobre a autenticidade dele em suas pálidas e variegadas etapas de criação cultural. E lembrem-se dele dizendo em longa entrevista dada a Olga Werneck no número 4 da Revista Civilização Brasileira de setembro de 1965: ‘Estou sempre pronto a começar de novo’. Época em que, ele ainda no exílio em Buenos Aires em 1975, a Editora Civilização Brasileira publica o seu Dentro da noite veloz, cujo título é tirado de um dos seus magníficos poemas, homenageadamente criado em memória do herói Ernesto Che Guevara. Mais tarde, na segunda edição desta obra, em 1979, contendo, além de Dentro da noite veloz (de 1962-1974), O vil metal (de 1954-1960), na ‘orelha’ de apresentação, o Ênio diz ao leitor que ‘os trabalhos contidos neste seu mais recente livro cobrem vinte anos de conseqüente e comovido engajamento poético’. Antes, porém, o poeta ainda exilado em Buenos Aires, é lançado aqui no Rio em 1976 o seu Poema sujo, desde então justamente aureolado por intensas repercussões e bem-sucedidas programações. Antes do lançamento, aliás, com texto recebido da Argentina, ouvimos uma leitura dele na casa do Ênio, cuja enorme sala ficou lotada de pessoas e de aplausos. Tudo isso, e faço questão deste acréscimo, é uma das factuais verdades que justifica eu próprio não estar de acordo com a sua opinião retro-citada sobre o meu tão destacado (por ele) valor como poeta social. Poema sujo é esteticamente rico de aberturas para significados e valores que justificam plenamente a tão alta louvação que recebeu e continua recebendo de decisivos e importantes críticos e poetas. Vou acabar me estendendo um pouco mais do que devia: é impossível referir-se aos meus contatos, ao longo dos anos com o Gullar sem breves referências conceituadoras do que representa a sua obra e seus feitos nestes contatos, e isso porque – e aqui surge outra característica sua – ele é pessoalmente, no seu cotidiano, como um estojo de nervos e de ossos em que a gente percebe ou vê vivamente guardadas as unificantes e variegadas ‘almas’ dos seus vários livros. Assim brevemente acrescentarei mais três ou quatro pontos ou aspectos exemplificativos ou definidores das nossas afetivas e intelectuais confluências. Eu, durante os muitos anos de ditadura, volta e meia tive que esconder-me (tal como ele) em locais diversos e fora de minha residência (às vezes até por vários dias e trabalhando distante da editora, donde um boy, nunca elogiado demais, corajosamente vinha às socapas levar e apanhar matérias como 25


artigos, cartas e livros). Antes, Gullar já era membro do numeroso Comando de Trabalhadores Intelectuais, logo marcado e indiciado pelos militares, dada a sua constante presença em manifestos e juízos anticonservadoramente divulgados sobre essa ou aquela situação político-social do país. E por falar no

CTI,

do

qual eu fora eleito o secretário-geral, rememoro aqui que no talvez maior Inquérito Policial Militar feito neste país sobre o comunismo no Brasil, e presidido pelo general Andrada Serpa, então comandante do Estado-Maior das Forças Armadas no governo do marechal Castelo Branco, o Gullar teve, malgrado os riscos, uma atitude que mais uma vez demonstrou a solidária e amiga força moral do seu caráter: indagado sobre o nome do principal orador na numerosa assembléia de intelectuais que lotou o auditório do Instituto Superior de Estudos Brasileiros quando da fundação do CTI, ele, sabendo de sobra que fora eu, disse nos autos que, por causa da lotação, ficara do lado de fora do auditório, na escada que a ele levava, e que o microfone, fanhoso e ruim, não o permitia reconhecer pela voz o orador e que, além disso, saíra antes de findar a assembléia. (Quem me disse isso foi o próprio general, numa das alongadas horas de interrogações durante um dos meus depoimentos, pois eu fui chamado mais de uma vez neste enorme IPM

em que foram convocados dezenas de intelectuais, políticos e líderes operários, e no qual eu fui dedu-

rado – foi o próprio general quem os mencionou – por apenas dois). Para o Dias Gomes – outro que agiu com enorme dignidade – o general disse que eu era como sardinha que sempre achava, nas fases dos ‘pegas’ para as prisões, um buraco para escapar da rede e que ele somente ia pegar ‘peixões’, o que não me tranqüilizou muito dado o fato de o general ter-me pedido formalmente que lhe garantisse que eu não sairia do país durante o

IPM,

senão teria que me prender desde então; e eu lhe disse que não tinha

como deixar a família naqueles meses e que tinha opinião pessoal (próxima também de uma possível adoção do suicídio, que sempre menciono em alguns poemas e contra o qual sempre luto através desses meus atos de criação e afeto e amizades e luta política) de que eu deveria ficar no país – pagando a angústia e o sofrimento que fossem possíveis – para defender, como poeta, editor e escritor, idéias de liberdade e os muitos que estavam presos ou torturados ou que, como mais tarde o Gullar, não tiveram mais outra saída senão o exílio. E de fato, em 1967, li nos jornais e com o coração trêmulo, as conclusões do

IPM

indiciando várias figuras do porte de Prestes, Arraes, Brizola, Jango etc. e apenas três intelectuais que foram o Ênio Silveira, Nelson Werneck e eu, e solicitando a nossa prisão preventiva pela Auditoria Militar a que fora enviado o

IPM.

Lembro isso sobretudo para falar de momentos vividos em comum por

Gullar e por mim, da sua atitude companheira, e, portanto, para transmitir ao leitor dados esclarecedores também sobre esse importante fato na história político-cultural do país. Assim como é preciso fechar o sentido dessas lembranças dizendo duas coisas interessantes: uma, esse IPM, para ‘salvação’ (sic ) da minha existência, nunca mais ouvi notícias sobre ele e nem sei o que houve nos caminhos da ou para a Auditoria Militar; outra, este general Andrada Serpa era um homem duro, honesto e realmente crente no que pensava de nós e, creiam, acabou tornando-se um amigo e freqüentador da casa do Nelson Werneck, a quem confessou que, ao ler-nos em nossas volumosas revistas, vira que errara e que, malgrado termos idéias marxistas, nós éramos intelectuais cultos, sinceros e verdadeiramente patriotas. E, acreditem, para 26


honra dele, acabou inclusive comparecendo com artigos e pronunciamentos combativamente nacionalistas em vários jornais, inclusive alguns de ‘esquerda’. Falamos do exílio de Gullar iniciado em 1971, anos após, portanto, de ter tido uma intensa e corajosa atividade cultural-política dentro e através do exercício – que às vezes era até tornado público – de cargos de direção no setor intelectual do

PCB.

É bom dizer o quanto também era ativamente presente nesses tempos a

renomada comunista Thereza Aragão, sempre lutando em textos e falas e em palcos como, por exemplo, o do Teatro Opinião, de cuja direção, ao lado de Gullar, fazia parte. Dali, por algumas vezes, o Gullar e outros vinham até minha residência de então, que era próxima ao teatro. E não posso deixar de lembrar, também, a intensa participação de Gullar em nossas cultura e política, do ano de 1962 a abril de 1964, como membro e depois presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes e costumeiramente a acompanhar-se pela magnífica figura que foi Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha. Em minha casa foi que ambos, por aqueles anos, entregaram-me a coordenação, prefaciação e a direção dos chamados ‘Violão de rua’, editados em tiragens de 10.000 exemplares pela Civilização Brasileira, na coleção de livros de bolso intitulados ‘Poemas para a liberdade’, distribuídos e lidos em assembléias e nos locais públicos desta cidade do Rio pelos estudantes da

UNE.

Ambos concordaram comigo em tentarmos ir

cada vez mais evitando de aceitar uma poesia estética e política e filosoficamente errada, porque estropiadamente mutilada por sectarismos e facilismos falsos. Foram editados em 1963/64 apenas os três primeiros volumes (a série estava planejada para 15 volumes e sob a ascensão de critérios cada vez mais exigentes de amplitudes de qualidades esteticamente tematizadoras). Compareceram ao longo desses três volumes – e sempre após meu diálogo com Gullar e Vianinha – poetas tais como Paulo Mendes Campos, Joaquim Cardozo, Afonso Romano de Sant’Anna, Vinícius de Morais, Geir Campos, José Paulo Paes, Reynaldo Jardim, J.C. Capinam, Cassiano Ricardo, Carlos Pena Filho, Solano Trindade, eu e muitos outros. Gullar, com firmeza de definições poéticas inteligentemente simplificadas, colaborara em dois volumes dos quais, apesar de alguns com falhas que hoje ele próprio aponta, houve dois dos seus bons poemas (‘Quatro mortos por minuto’ e ‘A bomba suja’) que foram lidos para grupos os mais diversos em salas e em praças, assim como, e sobretudo, as suas excelentes e tão decoradas redondilhas maiores publicadas no número 2 da RCB, em maio de 1965, sob o título ‘Dois e dois, quatro’ ao lado, aliás, de outro poema – ‘O açúcar’ – que também ficou famoso e mui citado por milhares de leitores. E aqui transcrevo apenas um fragmento de um texto que no ano findo escrevi alhures, e no qual disse: ‘Seja duramente como na ditadura militar, ou com os modos mais sutis e mais profundamente nocivos como os desta poderosa mídia ora armada sobre a crescente maioria de pobreza e dirigida pelo crescimento dos lucros financeiros de uma minoria, é bom relembrar que o lado negativo da classe dominante – sempre contrário à formação de uma consciência (etimologicamente ‘saber ligado com’) por parte de outras classes – assim como antes usava o termo ‘comunista’ para pôr no ostracismo teorias e pessoas, também usava e usa, através da ambição dos seus sempre mascarados prepostos na literatura, os termos ‘discursivo’, ‘prosaico’, ‘retórico’ etc., para afastar qualquer poema que, indo além de três ou quatro versinhos apenas formais, busque 27


uma estruturação de significados e de valores como partes ou frutos de uma visão de mundo’. Isso foi religiosamente feito nos períodos da ditadura militar com toda a obra poética do Ferreira Gullar e também com os meus poemas-livros do tipo Canto para as transformações do homem e Canção do exílio aqui e, sobretudo, com esses três exemplares do ‘Violão de rua’, que foram exibidos na TV, no dia seguinte ao do golpe militar, como exemplos de ‘literatura subversiva’. Daí serem interrompidos, infelizmente. E digo infelizmente porque com o tempo (malgrado terem tido textos com várias falhas de estética do verso, textos, no entanto, em meio de vários bem-sucedidos poemas) poderiam abrir-se em novos caminhos e horizontes, além dos que já existiam, para ampliações da criação poética em nosso país. Quanto ao Gullar, é como se quisessem duplicar o seu exílio, afastando-o também dos leitores das suas indubitavelmente importantes poetizações. Daí o Ênio Silveira, seu grande amigo e admirador (como eu), ter posto toda a força da sua editora a serviço de uma divulgação pra valer das importantes e notáveis obras do exilado Ferreira Gullar como A luta corporal, Dentro da noite veloz e Poema sujo. E já que falamos tanto na celebrada (e sempre com mais de 350 páginas) Revista Civilização Brasileira, faço questão de frisar, mais uma vez, que o Gullar, desde o nº. 2 da revista, de maio de 1965, iniciou nela uma colaboração freqüente, valiosa e querida, através de ensaios, poemas, resenhas, entrevistas e dialogantes sugestões ao pequeno e importante grupo de intelectuais do qual ele fazia parte e que ajudava ao Ênio e a mim selecionar matérias, a coordenar e a dirigir a edição de cada número. Intelectuais que menciono (peço desde já desculpa se esqueci alguém) porque, além de amigos e leitores de Gullar, eram importantes nas formulações do influente eixo cultural que foi a

RCB.

E são eles: M. Cavalcanti Proença (que a

dirigiu até o nº. 8, quando morreu, e então eu passei formalmente a ser diretor, ficando depois Dias Gomes como secretário), o sempre presente crítico Nelson Werneck Sodré, Antônio Houaiss, Osny Duarte Pereira, Cid Silveira (primo do Ênio que morreu durante o decorrer das edições), Alex Vianny (que também já morreu), Octávio Ianni (que sempre mandava matéria ou vinha de São Paulo), Roland Corbisier, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Nessa revista foi que Gullar publicou, além de poemas importantes, ensaios culturalmente muito significativos para as artes plásticas e a arte em geral como, por exemplo, ‘O momento artístico’ (nº. 3), ‘Exposição 65’ (nº. 4, onde também está a citada e longa entrevista a Olga Werneck sobre poesia), três ensaios em capítulos seguidos e intitulados ‘Problemas estéticos na sociedade de massas’ (I, II e III respectivamente nos nº.s 5/6, 7 e 8, já no ano de 1966), ‘As artes na cidade’ (nº. 16, já no ano de 1967), ‘Opinião sobre teatro’ (nº. especial, em julho de 1968) e ‘Obra aberta e a filosofia da práxis’, o grande destaque de capa do nº. 22, o último número, em 22 de dezembro de 1968, da RCB, cuja continuação ficara totalmente impossível sob a treva completa introduzida pelo antilibertário Ato Institucional nº. 5. Tenho a certeza de que, além de muitos outros atos seus fichados pelos órgãos ditatoriais, essa colaboração deve ter sido usada pelos dedos-duros como um dado a mais para o que forçosamente acabou resultando no longo exílio do poeta marxista Ferreira Gullar. Anos depois, e assim que possível, em julho de 1978, lançamos outra revista, Ênio e eu (e com um largo conselho consultivo de intelectuais, entre os quais o Gullar de volta do exílio), e então sob o título 28


Encontros com a Civilização Brasileira ; e nessa revista, como na outra, o poeta também se fez presente através de textos e pronunciamentos diversos. E sinto vontade de lembrar aqui a publicação do poema ‘Bananas podres’, no nº. 18, de dezembro de 1979, que saiu mais tarde, em 1980, no livro Na vertigem do dia, em cuja ‘orelha’ de apresentação Leandro Konder escreveu que esse poema foi vital para ele, ‘uma experiência vital (daquelas que se incorporam a nós, que modificam alguma coisa bem lá no fundo da gente)’. E já que falamos em recordações, trago a esta página a menção à minha ida, em 1980, e ao lado de minha mulher, de Gullar e seu filho Marcos, à cidade de São Luís, no Maranhão, para onde fui oficialmente convidado para pronunciar no principal e maior teatro de lá, uma conferência sobre a obra de Ferreira Gullar, assim homenageado em seu cinqüentenário pelo governo e pelo povo maranhenses. Falei durante três horas… E fiquei contente em ver que ninguém se levantara e que, ao final, todos levantaram e bateram longas palmas. Óbvio que não era a mim que aplaudiam, e sim às belas profundidades das riquíssimas originalidades da criação poética do Gullar com que eu tentei, e consegui, dar sentido e significados àquele meu pronunciamento oral. Marcos era um ótimo jovem, simpaticamente cordial e prestativo, assim como Thereza Aragão era impulsiva, apaixonada e militante. A perda de ambos, eu a senti como dor reflexa do fundo sofrimento que eu vi nas lágrimas escondidas por Gullar nas trevas fincadas pela morte atrás dos seus olhos. Após tanto sofrimento e anos difíceis, não posso deixar de sentir com uma tranqüilizante alegria, pelo menos quanto ao Gullar, por vê-lo vivendo nos seus tempos de madureza um para lá de humanizante e humanizado grande amor com a inteligência ágil e as belas sensibilidades da poeta Cláudia Ahimsa. PS:

Neste post-scriptum obrigo-me a uma referência a uma das mais significativas conjunções, em

texto de livro, das grandezas afetivas e intelectual de dois dos mais ilustres brasileiros, um vivo e outro morto. Um é o Ferreira Gullar, com uma frase que retirei de um texto que escreveu após a morte do seu amigo editor e que eu fiz questão de consignar com destaque na 4ª. capa do livro Ênio Silveira, arquiteto de liberdades, que foi editado neste 1998 pela Bertrand Brasil e composto e organizado por mim em homenagem póstuma ao também meu grande amigo e companheiro durante anos de lutas políticas e de realizações culturais. A frase é: ‘A notícia de sua morte foi uma surpresa que me deixou arrasado. Porque com essa morte perdi, além do amigo, muitas outras coisas, parte de mim, parte da minha vida’. O outro é o Ênio Silveira, de quem transcrevi e fiz constar nesse mesmo livro retro-citado não somente a afirmação ‘Lançar Poema sujo, do grande poeta e do grande brasileiro Ferreira Gullar, constitui marco decisivo em minha carreira de editor e constante leitor’, como também a íntegra da até então inédita e mui laudatoriamente fundamentada ‘orelha’– para o livro Barulhos, do Gullar (e que fora achada, escrita e assinada por Ênio, numa gaveta da sua escrivaninha, já que este livro acabara sendo publicado pela José Olympio, para onde o poeta se transferira como editado). Se levarmos em conta a minha autoria da seleção, das anotações e da organização do retro-citado livro Arquiteto de liberdades, ele pode até ser visto, nas páginas das frases também retro-citadas, como mais um breve e nítido mostruário de momentos de confluência de três vidas da intelectualidade brasileira.” 29



E N T R E V I S TA

A trégua “Falemos alto, os milagres são poucos”

A entrevista a seguir foi feita em três exaustivas sessões realizadas em dois dias – as últimas quarta e quinta-feira de julho passado. Quem, no entanto, visse Ferreira Gullar à vontade diante de seus interlocutores, os gestos largos, as mãos magras desanuviando os olhos ou contendo os cabelos, o riso espontâneo, o verbo alto, fácil, seria capaz de apostar que o autor de A luta corporal experimentava uma trégua em meio àquele debate de idéias. Da infância em São Luís e os primeiros versos à globalização e o uso de novas tecnologias nas artes – passando pelas crises (muitas) de linguagem, o sonho (curto) do socialismo, a amargura (longa) do exílio, o peso (bruto) da morte e o nascimento (calmo) do poema, que ninguém sabe como nasce – Ferreira Gullar revisita, na paz armada desta entrevista, uma trajetória de rara magnitude. Mais do que isso, afirma-se outra vez como um intelectual de muitas armas, que só se rende à poesia: “O poema, quando vem, de qualquer um de seus abismos, desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe – não respeita nada”.

31


O sr., como é sabido, passou a adotar o pseudônimo Ferreira Gullar depois que viu o seu verdadeiro nome, Ribamar Ferreira, assinando um poema – na página literária do Diário de São Luís, em 1948 – que na realidade era de um certo Ribamar Pereira. Além do incômodo de aparecer assinando algo que não era de sua autoria, o que o transtornou foi ter o seu nome ligado a um determinado tipo de poesia que o sr. rejeitava – carola, bem-comportada. Qual era exatamente a sua noção de poesia naquela época? De onde vinha o sentimento de que era necessário “transgredir”? CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA:

nessa época, começaram a aparecer nos jornais os primeiros poemas modernos. Lembro que O Imparcial publicou num domingo os sonetos brancos de Murilo Mendes. Achei-os estranhíssimos. Depois apareceu o livro do Drummond, Poesia até agora. Meu amigo Lago Burnett, que também começava sua vida literária, comprou um exemplar e me mostrou. Fiquei escandalizado. O curioso é que meu primeiro contato com a pintura moderna, já no Rio, não me chocou. Vi um quadro do Iberê Camargo – que depois se tornaria meu amigo – reproduzido na capa de uma revista e me apaixonei por aquelas pinceladas ásperas. Foi uma reação muito diferente de quando eu li pela primeira vez “Escrevo teu nome com letra de macarrão”. Aquilo, para mim, não era poesia.

Ferreira Gullar: Naquela época eu era um garoto, tinha 18 anos e o poeta referido aí, um senhor, bem mais velho do que eu. O poema dele era um soneto chamado “A monja” – uma coisa que não tinha nada a ver comigo. Mas o meu nome estava lá. No Maranhão, como vocês sabem, todo mundo se chama Ribamar. É a devoção a São José do Ribamar. Havia na minha época vários Ribamares que eram poetas: Ribamar Costa, Ribamar Galiza e outros. E existia esse Ribamar Pereira. Quando vi a confusão no jornal fiquei revoltado. Na qualidade de locutor [da Rádio Timbira], tive o privilégio de ler uma nota no ar, explicando o engano. A nota dizia que o poeta Ribamar Ferreira informava que o poema que saíra no Diário não era de sua autoria – e avisava que eu iria mudar de nome.

CADERNOS:

Seu desconforto com “A monja”, portanto, era mais pelo conteúdo que pela forma?

Ferreira Gullar: Sim. Eu estava tão familiarizado com o parnasianismo que chegava a falar em decassílabos. Quer dizer, o problema não era ser parnasiano. CADERNOS:

Ao que consta, o sr. vivia num ambiente onde havia pouco estímulo para a leitura. De onde veio, então, o interesse por livros?

CADERNOS:

Voltando à questão de seu conceito de poesia na época, qual era, naquele período, o seu universo de leitura? Eram leituras sugeridas por alguém? Ou foram autores descobertos na base da tentativa e erro?

Ferreira Gullar: Eu não sei explicar. De fato, na minha casa não tinha livros. É verdade que um dia, meu pai, que era comerciante, apareceu lá com um exemplar de Amor de perdição [de Camilo Castelo Branco]. Mas não tínhamos livros em casa. Não sei explicar, portanto, meu interesse literário. Aos 13 anos, entrei na Escola Técnica de São Luís e lá não se ensinava literatura. O negócio era aprender rudimentos de marcenaria e sapataria. Aquilo, é claro, não tinha nada a ver comigo. Quando o cara batia com martelo na bigorna, eu ficava com os ouvidos estourando. Mas ali aprendi algumas coisas. Se você duvidar, sou capaz, por exemplo, de te fazer um sapato. De qualquer maneira, nessa escola havia um jornalzinho e uma vez saiu um

Ferreira Gullar: Minha formação era parnasiana. Eu conhecia os poetas incluídos no final da Gramática expositiva de Eduardo Carlos Pereira. Tinha Camões, Bocage, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Castro Alves e, claro, os parnasianos Olavo Bilac e Raimundo Corrêa. Aprendi então a me dar muito bem com o decassílabo e o alexandrino. Eu lia os poemas e decorava. Em 1949 conheci a poesia moderna; 32


de letras e poetas vivos. Como lembro sempre, para mim, naquela época, todos os poetas já tinham morrido. Um dia, minha irmã me disse que o pai de uma amiga dela, chamada Iracema, era poeta. Eu fui lá e conheci Manuel Sobrinho. Ele estava com uma camisa simples e de tamanco. Não parecia um poeta. Não me lembrava as fotos que eu havia visto de autores como Byron. Comecei então a descobrir uma outra cidade – com autores vivos, jornais, revistas. No Centro Cultural Gonçalves Dias, por exemplo, declamavam-se poemas todos os domingos. Comecei a freqüentá-lo. Vestia meu único terno e ia para lá. Quando descobri a poesia moderna, passei a procurar autores que a explicassem – e assim fui ler livros de ensaios retirados da biblioteca municipal. Lia, então, sem parar, poetas e ensaístas. Eu chegava em casa, acabava de almoçar, ia para o meu quarto, deitava na rede, botava uma pilha de livros do lado e ia lendo: Otto Maria Carpeaux, Mário de An drade, Álvaro Lins, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Afinal, em 1950, como é sabido, escrevi o poema “O galo” e ganhei o concurso do Jornal de Letras. A essa altura eu já era moderno.

soneto de um dos alunos, – tolo evidentemente – que falava da chuva pingando. Eu li aquilo e achei que poderia escrever também. Depois fiz uma redação sobre o Dia do Trabalho que me deu fama – ganhei nota 95 e a diretora leu o texto diante da turma. A grande idéia da redação era que no Dia do Trabalho ninguém trabalhava. Só não ganhei 100 porque havia erros de português. Ao ouvir isso da professora, decidi estudar gramática para valer. Foi quando achei que seria escritor. Meu pai tinha uma quitanda, um primo trabalhava no Banco do Brasil – eu não queria saber de nada daquilo para a minha vida. CADERNOS:

O sr. já disse que, na infância e adolescência, passava horas na rua jogando bola com os amigos. A partir de uma determinada época, porém, passou a estudar gramática e escrever poesia. Como foi esse período?

Ferreira Gullar: Quando comecei a me dedicar aos estudos e à poesia, parei com a molecagem. Meus amigos iam para frente de casa e ficavam assobiando para me chamar (tinha um assobio para me chamar). Eu não ia. Depois de um tempo, eles começavam a jogar pedra e a me insultar. Mas eu tive uma ótima infância. Vivia pescando no rio e fazendo molecagem na rua. São Luís é uma cidade muito bonita, cheia de vento, de palmeiras. A vida era uma coisa maravilhosa do ponto de vista da experiência animal dela. Eu tinha horror de virar adulto. Quando minha mãe me deu a primeira cueca, entrei em crise. Não queria entrar no mundo dos adultos. Só que comecei a ler, estudar e um dia vi uma foto do Vinícius tocando violão e pensei que seria muito bom poder ganhar a vida fazendo algo assim.

Leandro Konder: Quase 50 anos depois, como você percebe o autor de Um pouco acima do chão (1949), que é outro, e no entanto, é você?

Ferreira Gullar: Eu era um garoto ingênuo que estava tateando um caminho com grande entusiasmo pela poesia, mas sem saber direito o que era poesia. Eu costumo dizer que para você chegar ao Piauí precisa saber onde fica o Piauí. Eu estava tateando para saber o que era poesia. CADERNOS: Por que o sr. não inclui Um pouco acima do chão em suas obras completas, preferindo colocar A luta corporal (1954) como seu “primeiro livro”?

CADERNOS:

As leituras dessa nova fase já tinham uma preocupação de “aprendizagem”?

Ferreira Gullar: Na verdade, eu lia muita coisa sem entender. Achava que precisava ler e pronto. Fiquei sócio do Clube do Livro, conheci Machado de Assis e Lima Barreto. Curioso é que, quando me envolvi com o mundo literário, eu não tinha noção de que existiam academias

Ferreira Gullar: Para mim, Um pouco acima do chão foi, como disse, um tateio inicial. É um livro ingênuo. Uma coisa sem valor. Se alguém gostar, ótimo. Mas foi depois que formei mesmo minha noção de poesia. 33


Como foi se formando o projeto do livro A luta corporal ? Naquela época, alguns dos poetas de maior visibilidade do país, caso de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, encaravam um livro como uma reunião de poesias. E A luta corporal está longe de ser uma mera coletânea de poemas.

CADERNOS:

prometendo chegar ao centro da linguagem e não chegava nunca. Era como se fosse uma fruta: eu não queria me referir a ela, queria que o poema fosse a fruta. Foi assim que surgiu “há os trabalhos e (há) um sono inicial…” Faço uma frase toda para manter o tempo suspenso, não ter começo, meio… É um poema-impasse. Um dia, depois de ter jogado fora uma poesia que estava ficando parecida com um discurso, escrevi um poema louco, com uma linguagem desestruturada e deformada: era “Roçzeiral”.

Ferreira Gullar: Como eu tinha me formado lendo poesia parnasiana, lidando com métricas, sonetos e rimas, minha visão de mundo era parnasiana. Hoje eu entendo que você apreende o mundo de acordo com o seu instrumento de expressão. Meu instrumento era a linguagem parnasiana, era assim que eu traduzia a minha percepção da realidade. Eu posso sentir um cheiro, mas se a minha forma de expressão é parnasiana, a maneira de exprimir isso será parnasiana. Quando abandonei essa linguagem, fiquei sem instrumento. Recorri então à prosa, à linguagem coloquial. Eu tinha que chegar às formas, ao cerne da linguagem que não estava nas formas preestabelecidas. A luta corporal foi essa busca de como chegar à essência da linguagem. Percebi que para isso, era necessário que eu não me viciasse. Toda vez que se formava um certo domínio da linguagem, eu a arrebentava. Eu tinha que rejeitar a habilidade para chegar à essência.

CADERNOS: Quais foram as principais influências de A luta corporal ?

Ferreira Gullar: Eu tinha lido Rimbaud, Mallarmé. Mas não me lembro de uma relação causal. O livro era uma aventura. Eu me julgava uma pessoa vivendo uma aventura alucinada, reveladora. A sensação que eu tinha era de algo suicida e que estava disposto a me consumir. Naquele tempo eu não tinha família, nem uma vida regular, vivia sozinho num quarto perto da Praça da Cruz Vermelha. Era uma vida desligada da realidade comum de todos. Eu vivia, então, num clima de aventura. Parecia um sonho. Quando terminei o livro, não tinha mais para onde ir. CADERNOS:

CADERNOS:

Pode-se dizer que cada parte do livro corresponde a essa aquisição de habilidade, que lhe permite, então, partir para outra forma de linguagem?

O sr. acreditava que não escreve-

ria mais?

Ferreira Gullar: Sim. Eu dizia que tinha nojo de falar e escrever como antes. Então, estava tudo acabado.

Ferreira Gullar: O livro começa com um ajuste de contas em relação à poesia metrificada, rimada. Um ajuste de contas – quer dizer, para nunca mais fazer aquilo. E aí começam os poemas “Galo galo”, “A galinha” – que significam uma proximidade com a experiência de vida, sem vícios, sem habilidades. Chega, porém, uma hora em que aquele processo começa a ganhar uma forma e ficar abstrato. Aí eu rompo e começo a fase prosaica (“Um programa de homicídio”). O livro, como disse, é este caminhar até eu perceber que estava sempre

CADERNOS:

Esta idéia de “destruir” a poesia praticamente no primeiro livro, como surgiu? Não era muito pretensiosa para um jovem de 24 anos?

Ferreira Gullar: Mas eu não tinha a intenção de destruir a poesia. Eu, na verdade, me sentia um desastrado, alguém que tinha sido vítima – eu não me via como um vitorioso. Eu tinha me metido por um caminho que me levara ao desastre. Eu achava que não haveria saída. 34


CADERNOS: Em 1954 o sr. considerava A luta corporal um livro hermético?

pessoais, o existencial e o poético. Criei uma utopia para sair do impasse depois que rompi com a linguagem metrificada; ao fim desse processo, estava em novo impasse. Não passava pela minha cabeça: “Estou fazendo uma revolução”. Eu só fui suficientemente audacioso para não me importar com as conseqüências – como disse antes, havia algo de suicida na minha proposta. Estava disposto a ir até o fim, qualquer que fosse o preço. Eu queria que a poesia fosse uma revelação. Mas, quando falava, sentia que uma grande parte do discurso organizado era conseqüência de coisas que eu sabia anteriormente, as quais eu lera nos livros de escola. Era isso que eu procurava evitar. Do mesmo modo, quando eu escrevi o Poema sujo, não estava pensando em fazer algo curto ou longo: sentia necessidade de mergulhar em toda a minha vida, de fazer um balanço e trazer tudo à tona.

Ferreira Gullar: Eu não tinha idéia disso. Lembro que mostrava os poemas para alguns amigos próximos, como Oliveira Bastos, Mário Pedrosa e Lucy Teixeira. Quando escrevi “A carta do morto pobre”, o Mário disse que o que estava fazendo era muito sério e escreveu uma carta me recomendando aos seus amigos do Correio da Manhã, onde acabei publicando alguns textos. Mário também levou o livro para Murilo Mendes que, de Roma, me escreveu uma carta. Nela, dizia que meu livro tinha relações com o surrealismo. CADERNOS:

A escrita automática é um curtocircuito do impulso consciente. O sr. dizia naquela época que não podia perder o tempo que vai do surgimento da expressão à sua colocação no papel. Pois bem, isso é escrita automática.

CADERNOS:

Esse enlace fundamental entre poesia e vida é algo que sempre separou o sr. dos formalistas “puros”. Mesmo no período de experimentalismo intenso, como na época de A luta corporal, a referência à experiência sempre esteve presente em seu trabalho.

Ferreira Gullar: É, tem a ver com a idéia do automatismo psíquico de Breton. Mas eu nunca pratiquei isso de maneira deliberada. Eu era terrestre demais. Queria introduzir, na realidade, o delírio e o “deslimite”. Mas não queria sair do concreto. Não queria uma poesia de sonho. Apenas revelar o que há de delirante no real. Os textos da parte que chamei de “As revelações espúrias”, por exemplo, são dessa fase. O primeiro deles foi “Carta ao inventor da roda”. Depois escrevi uma série de textos assim, até esgotar também essa experiência.

Ferreira Gullar: No final de A luta corporal, eu estava experimentando, como disse antes, um dos períodos mais críticos de meu trabalho poético. Nesse momento, houve o encontro com o grupo paulista. Foi quando discutimos a possibilidade de fazer uma nova poesia. Mas nunca adotei, como já disse muitas vezes, a idéia de uma poesia que abdicasse da experiência da vida em favor de fórmulas matemáticas.

Zuenir Ventura: Em A luta corporal você se insurgiu contra os códigos vigentes, numa atitude poética revolucionária. Depois, quando questionar virou uma categoria estética consentida, você escreveu Poema sujo (1976), provando que a linguagem poética pode ser também criativa não só ao se negar. Hoje, qual seria a linguagem revolucionária possível?

CADERNOS:

Esse, na realidade, seria o principal motivo de seu rompimento com os concretos.

Ferreira Gullar: Sim. Em 1957, como se sabe, saíram lado a lado, no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, dois textos marcando nossas diferenças: “Da psicologia da composição à matemática da composição”, assinado pelo grupo paulista, e a minha resposta, “Poesia concreta: experiência fenomenológica”.

Ferreira Gullar: Eu nunca fiz nada visando ser revolucionário. Quando escrevi todas essas coisas, estava tentando apenas resolver meus impasses 35


CADERNOS: O sr. conhecia Un coup de dés (1897), de Stéphane Mallarmé, quando escreveu “O formigueiro” no final dos anos 50?

dita. Com o neoconcretismo foi diferente? Por quê?

Ferreira Gullar: Eu penso que sim. O neoconcretismo foi mais criativo do que teórico. Basta dizer que tanto o manifesto quanto o diálogo sobre o não-objeto foram conseqüências dos trabalhos que já existiam. Veja bem: como nasceu o Manifesto Neoconcreto ? Eu, Lygia Clark, Hélio, Amilcar, todos nós vínhamos trabalhando, conversávamos, trocávamos idéias. Quando decidimos fazer a exposição em 1959, não pensávamos em mudar o nome do movimento. Mas havia a clareza de que existiam dois movimentos dentro da arte concreta. Quando fui refletir sobre as obras que iam ser expostas, propus para os companheiros que não havia mais sentido em usar o nome de concreto. Foi aí que veio o nome neoconcreto. O trabalho continuou. Um dia, a Lygia Clark nos convidou para jantar na casa dela. Chegando lá, mostrou uma obra que não tinha nome. Não era uma escultura. Fiquei olhando, o Mário Pedrosa também. Ela falou: “Não sei que nome botar nisso”. Mário Pedrosa disse: “É uma espécie de relevo”. Eu contestei: “Não é isso – não tem superfície. Se não tem superfície não é relevo”. Ele saiu, o jantar já estava servido – e eu fiquei ali. Lembro que pensei: “Não é pintura, não é escultura; é um objeto. Mas, se eu disser que é um objeto, ora – a mesa é objeto, a cadeira é um objeto. Portanto, esse trabalho da Lygia não é um objeto”. Fui me sentar com os outros e disse: “Descobri o nome. É um não-objeto”. Mário Pedrosa ar gumentou: “Não-objeto não é nada. Objeto é objeto do conhecimento”. Expliquei que filosoficamente ele tinha razão. “Mas o problema”, argumentei, “é que isso é um objeto-não; não é mais uma obra de arte dentro das categorias individuais, mas continua a ser objeto”. No dia seguinte comecei a tomar notas e escrevi a Teoria do não-objeto. Em resumo: tudo nasceu de um trabalho novo; não foi uma coisa assim: olha, teremos que fazer isso ou aquilo.

Ferreira Gullar: Não. A idéia do poema é a seguinte: na minha terra existe um ditado que diz “onde tem formiga, tem dinheiro enterrado”. Esse é um dado. O outro é a desarticulação da linguagem. A semelhança entre as letras e as formigas. Então, juntei as duas coisas. A proposta foi pegar algo que vinha da minha ligação com os surrealistas. De alguma maneira, criar uma linguagem automática, que não fosse resultado da minha decisão: “A formiga trabalha a terra cega; na terra traça o mapa do tesouro”. Fui juntando essas palavras e criando um mapa, um mapa do ouro – onde tem formiga, tem ouro, tem dinheiro. Criado o mapa, todas as palavras saem de acordo com a posição das letras, determinadas pelo mapa, criado aleatoriamente. Mas a partir daí, o poema não é mais aleatório. Ele é rigorosamente determinado. CADERNOS:

O Manifesto Neoconcreto sustentava que um dos “problemas” do concretismo era ter reduzido a página a um “mero espaço gráfico e a palavra a um elemento desse espaço”. Argumentava que é “no tempo e não no espaço [que] a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa”. Por isso, dizia ainda, “a página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo”. E concluía: “Na poesia neoconcreta a linguagem não escorre: dura”. Qual o poema o sr. considera exemplar dessa teoria?

Ferreira Gullar: “O formigueiro”. Ele realmente não é um poema concreto. “O formigueiro” tem essa duração de que falaria mais tarde o Manifesto Neoconcreto. CADERNOS:

Outra diferença que o sr. sempre sustentou em relação aos concretos foi o fato de o movimento ter produzido, de acordo com sua análise, “muita teoria”, em comparação com a obra de criação propriamente

CADERNOS:

Isto é perfeitamente claro nas artes plásticas. E na poesia? 36


Ferreira Gullar: A poesia neoconcreta é muito desconhecida. Quando ela se transformou em “livro-poema” já virou uma coisa quase inviável. O próprio “O formigueiro”, que era mais simples de compor, eu não consegui publicar. Fui a uma gráfica, mas as pessoas não conseguiram fazer o que eu queria. Desisti. Os livros-poema eram piores, porque continham páginas cortadas. Não dava para imprimir e nem publicar em jornal. A saída era expor. Uma das características da inovação neoconcreta é a participação do espectador na obra de arte. De onde vem isso? Nasceu do livro. Em 1961, as exposições cessaram. O movimento acabou aí porque, ao mesmo tempo, o “Suplemento Dominical”

do Jornal do Brasil foi reduzido drasticamente de tamanho. Diziam que ele gastava papel inutilmente. Nessa altura, fui convidado para trabalhar em Brasília. E lá a minha cabeça começou a mudar. Armando Freitas Filho: Em uma de suas últimas crônicas, Oswald de Andrade, que morreu em 1954, ano de publicação d A luta corporal, ao falar sobre a poesia de autores novos, cita um único nome – o seu. Ele chegou a ler o livro? Gostaria que relembrasse como você conheceu Oswald, ignorado ou esquecido naquela época, até mesmo por aqueles que, depois, tentaram monopolizá-lo. 37


Mário, discordando de um trecho sobre a idéia da forma perfeita, a “boa forma”. Era uma audácia da minha parte fazer aquilo. Pois bem, quando mudei para o Rio, eu o conheci. Ele não concordava com meu ponto de vista e quis discutir o assunto, ou seja, acabou me colocando como uma pessoa do seu próprio nível. Fiquei fascinado com a generosidade do Mário e nos tornamos amigos. É verdade que eu já tinha uma tendência para ler textos reflexivos, como disse antes, mas quando falei ao Mário que gostaria de ler filosofia, ele disse que o melhor era começar pela História da filosofia ocidental, de Bertrand Russel. Achei uma edição em francês – uma língua que eu aprendi estudando sozinho ainda em São Luís – e comecei a ler. Foi um verdadeiro curso. Como eu não tinha formação filosófica, ia concordando com os filósofos mais contraditórios.

Ferreira Gullar: Um dia, conversando com Mário Pedrosa, falei que tinha saudades do modernismo, por causa da irreverência dos escritores. Então ele me perguntou se eu já tinha lido os poemas do Oswald. Respondi: “Alguns”. Então ele me deu um exemplar de Pau-Brasil. Fiquei encantado com aquela linguagem simples, despojada. Fui à Livraria José Olympio e, numa pilha de livros em promoção, encontrei Serafim Ponte Grande. Li e adorei. Acho que Crime na flora tem, a certa altura, algo do Serafim Ponte Grande. Fiquei com uma ótima impressão do Oswald. Comentei isso com meu amigo Oliveira Bastos que, certa vez, indo a São Paulo, levou os originais de A luta corporal para o Oswald. Pois bem: ele leu o livro e exatamente no dia 10 de setembro de 1953, data do meu aniversário de 23 anos, apareceu com o Oliveira na casa em que eu morava na época. Fiquei desconcertado. Tinham batido na porta e, quando fui abrir, vi que era ninguém menos do que Oswald de Andrade. “Vim te abraçar no seu aniversário, meu poeta”, ele disse. Atrás dele, o Oliveira Bastos ria. A partir daí, nos tornamos amigos. No final daquele ano, fui para São Paulo, a convite do Oswald, passar o reveillon na casa dele. Oswald disse que escreveria sobre o meu trabalho no Correio da Manhã e que, no curso sobre literatura brasileira que iria dar em Roma, a última aula seria dedicada a mim. Fiquei muito contente, porque àquela altura ninguém me conhecia e A luta corporal era um livro inédito. Isto me deu segurança e alegria. Foi uma noite agradável aquela, mas Oswald já estava adoentado. Meu livro acabaria saindo em março e ele morreria em outubro de 1954. CADERNOS:

CADERNOS:

Conforme ia lendo, o sr. discutia os pontos mais importantes com Mário Pedrosa?

Ferreira Gullar: Discutia. Conversávamos muito. Foi um período extraordinário para mim. CADERNOS:

Àquela altura, a sua inclinação para os textos teóricos deve ter se acentuado. Pois bem: o sr. era um poeta, enveredava pelo ensaio, pintava, começava a conviver com a crítica de artes plásticas. Em algum momento essas dimensões múltiplas entraram em conflito ou o sr. entendia que compunham um todo?

Ferreira Gullar: Bem, quando vim para o Rio parei de pintar. Comecei a estudar história da arte. Apanhava livros sobre o assunto na casa do Mário Pedrosa. Ele me ensinou a analisar a gramática e a visualidade da pintura. Mais tarde, adquiri uma postura totalmente distinta da dele. Com a ditadura, fomos para o exílio e tivemos que rever tudo. Mário, como eu disse, era uma pessoa generosa, íntegra, realmente rara.

Como foi sua relação com Mário

Pedrosa?

Ferreira Gullar: Lucy Teixeira, maranhense que morava no Rio, era amiga do Mário Pedrosa. Em 1950, numa viagem a São Luís, ela me levou uma cópia da tese Da natureza afetiva na forma da obra de arte, que o Mário tinha defendido na Faculdade de Arquitetura. A Teoria da Gestalt era a base do trabalho. Li a tese e aprendi muito com ela. Mas escrevi uma carta ao

CADERNOS:

Depois de A luta corporal, o sr. estava certo de que não escreveria mais poesia. Foi quando nasceu Crime na flora, que 38


retomava a prosa poética que já se insinuara no livro anterior. Crime na flora só seria publicado em 1986, mas enquanto o escrevia, o sr. acreditava que ele significava a sua “salvação literária”? E por que existia esta necessidade de se salvar literariamente, já que o sr. considerava que a linguagem se esfacelara em A luta corporal ?

Voltando à sua atividade de pintor, gostaríamos de saber se o sr. também começou na pintura assumindo uma atitude convencional, como ocorrera com a literatura.

CADERNOS:

Ferreira Gullar: Sim, era uma pintura convencional, pois, como disse, comecei ainda em São Luís. Em 1946 ou 47, não me lembro, houve no Maranhão uma grande feira; nela tinha um pintor que ficava pintando figuras, coisas alegóricas. Toda a tarde eu ia para a feira e ficava vendo o homem pintar. Resolvi comprar um pano de saco, montei um chassi e comecei a pintar. Naturalmente, o pano chupou toda a tinta, ficou uma coisa horrível. Meu pai então me colocou num curso de pintura de um rapaz que estudava na Escola Técnica. O problema é que o professor era relapso. De qualquer maneira, aprendi alguma coisa e cheguei a pintar um quadro figurativo, um túnel de uma estrada de ferro, que ficou muito tempo na sala da minha mãe. Mudei para o Rio e larguei a pintura por um tempo. Voltei a pintar na época da repressão.

Ferreira Gullar: Eu não tinha certeza se aquilo era uma salvação. Sabia só que aquela era a única saída possível. Eu queria tentar – e fui tentando. Quanto a não publicar, bem, escrevi muita coisa que nunca publiquei; eram coisas que iam se acumulando e depois perdiam o interesse. Aconteceu isso em função do concretismo e do neoconcretismo; depois os poemas dessa fase perderam o interesse em função da militância política – era assim. CADERNOS: Quando o sr. teve a sensação de que a crise iniciada após a conclusão de A luta corporal havia terminado?

Ferreira Gullar: Na verdade, os poemas concretos e neoconcretos foram uma continuação da crise, de uma outra maneira. Eu conseguia falar, mas não usava o discurso nem o reconstituía. Continuava a buscar a saída. Escrevi um poema, “verde verde verde verde”, formando um bloco, um quadrado com essa repetição e o publiquei no Jornal do Brasil. Um amigo achou interessante e eu perguntei se ele tinha percebido que a palavra erva nascia da repetição da palavra verde. Não tinha. Daí eu pensei: “Fracassei. Como posso fazer um poema que tenha estrutura geométrica e seja lido no tempo da sucessão das palavras?” Quando inventei o livro-poema foi para resolver esse impasse. No livro-poema, o espaço não é mais o espaço da página, mas sim silêncio; a própria página diz respeito ao que está sendo construído ali. Há integração total entre espaço, página e palavra. O livro-poema não tem capa, só miolo. É um objeto no espaço. Daí nasceu o poema espacial: peguei uma placa de madeira branca, outra em cima cortada. Embaixo escrevi a palavra “ara”. Ao fechar, aquilo não era mais só duas placas, era uma coisa chamada “ara”.

CADERNOS:

Como eram essas pinturas?

Ferreira Gullar: Bem, primeiro fiz uma cópia do Goya (aquele quadro do fuzilamento). Depois, uma coisa minha, um búzio, em seguida um auto-retrato. CADERNOS:

Não são poucos os escritores que, como Henry Miller e Lúcio Cardoso, após construírem uma obra literária, passaram a dedicar-se à pintura. O sr. considera essa perspectiva possível no seu caso?

Ferreira Gullar: Não. Eu continuo a pintar. Mas veja bem: jamais serei um pintor de verdade. Para ser um pintor de verdade é preciso jogar a vida inteira nisso. É como a poesia. A poesia é minha vida. Eu joguei toda a minha vida na poesia. Não poderia me mobilizar do mesmo modo para outra arte. A arte não existe em si mesma. Ela é fundada pelo artista com essa entrega. O homem inventa a arte através dessa paixão. Eu não tenho isso em relação à pintura. 39


CADERNOS: A opção pelo figurativo na sua pintura se deve a uma rejeição da arte mais formal, mais abstrata?

que não viu nada que o tivesse convencido. O sr. terá visto algo de fato surpreendente em termos artísticos no âmbito das novas tecnologias?

Ferreira Gullar: Eu não rejeito a pintura abstrata. A pintura que faço hoje é bastante abstrata. Não é não-figurativa, mas é bastante abstrata. Na entrada da minha casa tem um falso Mondrian. Como eu não posso comprar um, falsifiquei… Mas veja você, aquelas camadas de tinta do Mondrian, aquele quadrado vermelho – não se trata de um quadro puro que ele encheu com uma cor. É outra coisa. Como o Morandi – aqueles objetos, aquelas garrafinhas; quanto de alma, de espírito humano, de sensibilidade e experiência existe naquilo. Mas há uma linguagem. Morandi cria então um mundo dele, com os objetos dele. É preciso entender que Duchamp, quando mostra um urinol como obra de arte, está fazendo algo sarcástico em relação aos conceitos artísticos. Não quer dizer que ele acredite que o urinol vá substituir a Mona Lisa.

Ferreira Gullar: Não. Eu me lembro que nos anos 50, em Paris, um artista apresentou o que ele chamava de esculturas eletrônicas. Eram estruturas de ferro, com placas, canos, luzes e movimento. Ora, era um robô tosco! Até mesmo parado ele tinha uma forma mais bonita do que em movimento. A verdade é a seguinte: o próprio Calder, quando começou a fazer os seus móbiles, experimentou a eletricidade. Desistiu. Os móbiles flutuando ao sabor dos ventos são mais expressivos. CADERNOS:

O sr. diria que, em sua fase concreta e neoconcreta, estava vivendo num mundo literário que não tinha o Brasil?

Ferreira Gullar: Ele não expressava o Brasil. O fato de eu estar num impasse é que havia pouco de realidade no que eu estava fazendo. Eu tinha chegado a um tal nível de depuração da experiência que a realidade sumira. Eu estava novamente sem linguagem, sem instrumento. Aí fui para o CPC da UNE, no Rio. Vianinha [Oduvaldo Viana Filho] me procurou: “Vamos fazer uma peça sobre reforma agrária e gostaríamos que você fizesse a estrutura dessa peça em versos, para usarmos um cantador do Nordeste”. Então escrevi Cabra marcado para morrer. Eu estava voltando para a forma mais primitiva da literatura, da poesia. Foi uma coisa difícil, que provocou reações contrárias a mim – que eu era louco, oportunista, não sabia o que queria.

CADERNOS:

Como o sr. avalia o uso de novas tecnologias nos processos artísticos?

Ferreira Gullar: Eu acho uma coisa legítima. A arte sempre utilizou as novas tecnologias. Até na caverna os homens foram descobrindo novas técnicas, novos meios para realizar suas pinturas, seus murais. Eu só coloco um problema: a Bienal, por exemplo, foi criada como Bienal de Artes Plásticas. De repente, você vai até lá e vê vídeo, videoarte. Ora, o vídeo é uma outra linguagem. Pois bem: cria-se uma categoria para isso, para dar oportunidade a quem se expressa desse modo. Só que essa abertura não pode eliminar os artistas que se utilizam dos meios tradicionais. Eu não posso dizer: “Morandi? Não, chega de Morandi!” Mesmo que surja um outro Morandi nos novos meios, o original não pode ser desprezado.

CADERNOS:

O sr. e seus companheiros do CPC acreditavam que apuro estético e engajamento não combinavam?

Ferreira Gullar: Havia uma percepção errada de que se você fizesse bem-feito, afastaria o público. Buscávamos uma forma simples de comunicação para atingir o maior número possível de pessoas. Mas, no meio disso, havia a TV. Era um instrumento de massa – e nós queríamos criar um outro instrumento de massa, que não fosse eletrônico.

CADERNOS: O artista plástico Arthur Luiz Piza, comentando sobre a utilização artística das novas mídias, disse que a TV e o vídeo realmente têm possibilidade de produzir arte; no entanto, até agora, ele assegura

40


Na minha visão, não se tratava mais de fazer literatura. Tratava-se de politizar as pessoas, de levar a consciência da realidade brasileira.

que isso é uma coisa inerente ao ser humano. O senso de justiça é inerente ao ser humano. Eu não conheço ninguém, por mais injusto que seja, que diga: “Eu sou injusto e tenho orgulho disso”.

CADERNOS:

E hoje, o sr. diria que os dois pólos não são antagônicos?

CADERNOS:

Então o sr. vê com otimismo a possibilidade de se construir no Brasil uma sociedade mais justa?

Ferreira Gullar: Nós percebemos isso já no final de 63. A realidade mostrou que estávamos enganados. Nós íamos para a favela e ninguém ouvia o que a gente estava dizendo. Só ficavam as crianças. Decidimos então mudar – buscar a qualidade. Só que veio o golpe e impediu isso.

Ferreira Gullar: Eu não acho que seja uma coisa fácil e nem realizável a curto prazo. Eu na verdade nunca acreditei na realização plena da sociedade sem classes, aquelas coisas paradisíacas. Em Moscou, tive problemas nas aulas de marxismo por fazer objeções dessa natureza. Coisas assim: se Engels diz que a história é uma mudança permanente, quando chegar a sociedade perfeita como é que fica? Pára de mudar? Vai mudar para onde? De qualquer maneira, eu acreditava que, no dia em que os meios de produção deixassem de ser propriedade privada e passassem a ser propriedade social, de fato haveria possibilidade de uma distribuição mais justa da riqueza. Hoje, embora eu pense que teoricamente isso seja possível, acredito que na prática tornou-se inviável. O capitalismo não é algo nascido da teoria, mas da prática social; é uma coisa espontânea e como uma força da natureza é poderoso, vital e injusto. A natureza, por exemplo, não é ecológica; ela é injusta, destrói muitas coisas, mata pessoas numa enchente. O socialismo é uma tentativa de regularizar esse rio, mas na prática não se pode fazer isso completamente, como não se faz em relação à natureza. O tipo de planejamento que o socialismo propõe é determinado pela inserção de agentes sociais numa camisa-de-força – o que acaba levando a uma União Soviética. Seja como for, o que não se pode aceitar é o conformismo com a desigualdade e a injustiça.

CADERNOS:

Como era a rotina no CPC? Existiam grupos de trabalho, por exemplo, para estudar textos teóricos?

Ferreira Gullar: Não, a coisa não era tão organizada assim. Existia um grupo que dirigia o CPC e esse grupo discutia as tarefas – era uma coisa meio espontânea. A gente reagia ao que estava acontecendo. Por exemplo: um dia, num comício contra o governo Lacerda, a polícia apareceu, espancou todo mundo e prendeu alguns. À noite, nós nos reunimos e decidimos fazer o Auto do cacetete para responder imediatamente àquela agressão. Ficamos na madrugada escrevendo e no dia seguinte estávamos na rua mostrando o Auto do cacetete. CADERNOS:

Como o sr. vê hoje a questão do papel do intelectual na sociedade?

Ferreira Gullar: Algum tempo atrás existia um sistema socialista em contraposição a um sistema capitalista e dentro do sistema socialista uma visão de que aquilo era o futuro, de que o mundo caminhava necessariamente para o socialismo. Gerações inteiras viveram essa experiência de uma forma apaixonada e conquistaram muitas coisas. Nossas ilusões não eram tolas: existiam conquistas no âmbito da organização sindical, da jornada de trabalho etc. Agora que o mundo mudou, ninguém em sã consciência vai dizer que mobilizará o Brasil para fazer a revolução socialista. Mas isso não significa que o intelectual ou quem quer que seja esteja impedido de criticar as desigualdades da sociedade ou desejar que ela se torne mais justa. Eu acho

Leandro Konder: Num de seus poemas de cordel, História de um valente, você evoca a figura extraordinária de Gregório Bezerra, o revolucionário “feito de ferro e flor”, que participou “da luta [comunista] de 35” e chegou à Câmara Federal em 1945 pelo Partido Comunista Brasileiro. Como foi o seu contato pessoal com ele? 41


pos aconselhavam a burlar o voto, votar em branco – e assim a ditadura ganhava as eleições. Depois, com a morte de [Carlos] Marighella, a luta armada praticamente acabou. Em 74, quando todo mundo votou contra a ditadura, os militares foram derrotados na maioria dos estados.

Ferreira Gullar: Eu o conheci em Moscou, durante o período em que estive exilado e morando lá. Ele não era um intelectual, um homem de teoria, e naturalmente absorveu uma visão um pouco simplificada das coisas, das questões sociais, mas o que conta é o que leva um homem, um menino criado no interior plantando mandioca, a mudar para a cidade, vender jornal e acabar descobrindo que tem que lutar por um mundo melhor. Gregório era generoso, por isso eu dizia que ele era feito de ferro e flor. Uma vez a polícia o prendeu e o colocou dentro de um cofre. Ele ficou respirando pelo buraco da fechadura e quando um guarda apareceu e abriu a porta ele o agarrou, puxou-o para dentro do cofre e disse que ou o guarda o soltava, ou morria no cofre com ele. Mas o curioso desse poema é que foi escrito com o pseudônimo de José Salgueiro, porque eu não podia assinar meu nome. Depois, um escritor de Pernambuco citou num livro que o poema sobre Gregório tinha sido escrito “pelo poeta popular José Salgueiro”. E José Salgueiro virou um poeta popular. Quando foi publicada uma biografia do Gregório pela Civilização Brasileira, eu fui convidado a ler o poema. Fui e falei a verdade: “Eu quero dizer que tenho a honra de revelar que sou o autor desse poema”. Foi uma sensação.

CADERNOS:

Em Rabo de foguete, seu livro de memórias do exílio lançado neste ano, o sr. conta como se filiou ao Partido Comunista. Poderia comentar essa passagem?

Ferreira Gullar: Eu me filiei ao PC no dia 1º. de abril de 1964. Achava que era um momento em que tudo despencava e por isso mesmo eu tinha que entrar para alguma organização a fim de continuar a luta. CADERNOS: Em algum momento o sr. foi convidado a participar da guerrilha por um dos vários grupos que se formaram no país naquela ocasião?

Ferreira Gullar: Fui, pelo Mário Alves [um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário], que era meu amigo. Ele tinha sido preso e, ao sair, quis me encontrar. Chegou e me deu um documento para ler, curto. Li e disse: “Lamento, mas acho que você está entrando por um caminho equivocado”. Ele aceitou minha posição e foi embora.

CADERNOS:

Qual a sua lembrança de outros líderes de esquerda daquele período, como Francisco Julião, dirigente das Ligas Camponesas?

Ferreira Gullar: Eu conheci Julião antes de entrar para o PCB. Ele me “cooptou” para as Ligas Camponesas. Disse que tinha 300 mil homens e armas. “Vamos fazer a revolução”, garantia. No fim, como se sabe, não era nada disso. Acabei saindo das Ligas e me aproximei do partido, que acabou tendo uma posição muito coerente em todo esse processo. Eu me lembro que no dia 31 de dezembro de 1963, o Giocondo Dias me disse: “Esse troço está caminhando para um desastre, vem um golpe aí. Ou a gente muda o rumo desse navio ou não vamos ter como segurar”. Um mês depois do golpe, o partido disse o seguinte: “Só há um caminho agora – aproveitar todas as brechas que o regime militar deixou para o trabalho democrático. Se é para votar, vamos votar; se ainda resta o sindicato ou organização estudantil, vamos até lá”. Alguns gru-

CADERNOS: O sr. foi cobrado por recusar esse tipo de engajamento?

Ferreira Gullar: O partido foi cobrado. Nós não tínhamos dúvida do que estávamos fazendo, mas por conta disso o partido passou a ser visto como burocrático. Os radicais não compreendiam que seria uma bobagem travar uma luta num terreno onde o inimigo era mais forte. Além disso, supunham que contavam com o apoio do povo, que bastaria precipitar o conflito e a população viria atrás. Não era nada disso, como se viu. Quer dizer: estava tudo errado. CADERNOS:

Jorge Amado declarou neste mesmo espaço que, apesar dos sofrimentos evidentes, sempre é possível tirar vantagens da 42


condição de exilado. Pelo que se lê em Rabo de foguete, o sr. estaria propenso a discordar do autor de Gabriela. É isso mesmo?

minha cidade. Uma coisa que eu aprendi no exílio (eu sei que é uma coisa minha) foi o seguinte: em todas as cidades por onde passava, poste era poste, casa era casa, parede era parede e na minha terra, não. O poste é o poste da rua tal, por onde eu passei uma noite, conversando com um amigo; a casa, é a casa de um conhecido etc. O exílio, na minha opinião, é um mundo hostil, um mundo que não é nada, um mundo que é matéria só. Eu não nasci para isso.

Ferreira Gullar: Eu fiz o que pude no exílio. Não ia me render, não ia me deixar destruir. Eu procurava sobreviver, mas aquilo para mim era um castigo permanente. Eu só pensava em voltar. Minha obsessão era tão grande que eu alugava apartamento nas cidades por onde passava, mas não montava uma casa, como se diz. Eu improvisava. O apartamento era uma tenda, um acampamento para mim. Eu não aceitava a idéia de me instalar. Confesso para vocês que eu não agüentava viver longe da minha família, dos amigos, da

Zuenir Ventura: Apesar dos esforços do jornalista Elio Gaspari junto ao general Golbery do Couto e Silva, a sua volta do exílio não foi tranqüila como se esperava, não? 43


Ferreira Gullar: O Zuenir, por modéstia, está dizendo que o esforço foi só do Elio Gaspari, mas foi dele também. Zuenir e Elio levaram o Poema sujo para o Golbery e ele disse: “Isso é uma obscenidade, esse poeta é um pornógrafo! Mas eu não me oponho a ele voltar, não. Por mim, ele pode voltar, mas tenho que falar com o Figueiredo, chefe do SNI”. Falou. Aí, segundo informações que recebi em Buenos Aires, Figueiredo teria declarado: “Não quero este comunista aqui”. Foi essa a resposta que recebi: “Olha, Gullar, você não vai poder voltar porque o Figueiredo disse que não quer você lá”. Eu me tomei de fúria: “Como esse sujeito se atreve a falar isso? Ele é o dono do Brasil? Eu vou voltar, vou voltar, não aceito isso, vou voltar”. Eu queria voltar, precisava voltar, tinha um filho doente, internado numa clínica psiquiátrica, o outro entrando pelo mesmo caminho. Se o regime argentino descobrisse quem eu era, eu estava perdido. Eu tinha que voltar. Tracei um plano: escrevi para a ABI e a OAB e pedi que entrassem em contato com o ministro da Justiça e o comandante do Exército avisando que eu ia voltar; se me prendessem ou me matassem, teriam que assumir a responsabilidade.

dos poetas, dos amigos, da vida, dos ventos, do Brasil – não era um poema individualista. CADERNOS: O sr. esteve na iminência de ser preso várias vezes, e, quem sabe, de sofrer conseqüências ainda mais graves pelo fato de contestar regimes de força no momento em que eles se implantavam em alguns países da América Latina, nas décadas de 60 e 70. Isso aconteceu no Brasil e depois em seu exílio no Chile e na Argentina. Era como se o sr. es ti vesse submetido a uma espécie de tropismo perverso, que o arrastava sempre para o olho do furacão. Sem essas coincidências diabólicas, como o sr. acredita que poderia ter sido sua experiência no exílio?

Ferreira Gullar: Se eu tivesse vivido num Chile menos conflituoso, eu teria menos ansiedade, menos angústias. Você lê no meu livro Rabo de foguete que a minha saída do Chile é um desespero só. De qualquer maneira, eu acredito que jamais me adaptaria ao exílio. O Poema sujo é conseqüência do meu momento literário, mas também dessas circunstâncias.

CADERNOS:

O sr. está descrevendo um processo de amadurecimento, que teve um ponto de inflexão nessa coisa brutal do general Figueiredo. O seu processo então passou a ser todo de preparação da volta? O próprio Poema sujo se encaixaria nisso?

CADERNOS:

Se não é apenas um “poema do exílio”, ao menos ele se encaixa no âmbito da literatura do desterro.

Ferreira Gullar: Bem, possivelmente eu não teria escrito o Poema sujo se não tivesse sido exilado.

Ferreira Gullar: O Poema sujo foi escrito quando a ditadura tinha se instalado na Argentina. Meus amigos desapareciam, ou eram presos, ou fugiam. O meu passaporte estava cancelado pelo Itamarati. Senti o cerco se fechando. Quem sabe estaria chegando ao final. Pensei: “Vou ter que escrever essa coisa final, o testemunho final, o depoimento final. Eu vou ter que escrever isso”. Então fui escrever esse poema, que era a experiência da vida toda; não era só um poema do exílio, mas um poema da memória, da perda, da recomposição do mundo perdido e do amor à vida. Escrevi esse poema como um poema-limite. Nele tem de tudo: formalismo, infância, as aventuras. Quando escrevi o poema sentia como se estivesse rodeado de outras vozes,

CADERNOS:

Naquela fase o sr. teve medo de morrer, não?

Ferreira Gullar: É verdade. Eu nunca pensei em me suicidar, mas tive medo que pudesse acontecer comigo o que vinha ocorrendo com meus amigos. CADERNOS:Rabo

de foguete dá a entender que, do ponto de vista literário, graças ao Poema sujo, suas contas com o exílio estão em dia; o mesmo não ocorreria no plano familiar. O sr. concorda com essa leitura? 44


CADERNOS:

Sua posição remete à dos teóricos da Escola de Frankfurt.

Ferreira Gullar: Eu fiz uma opção que mudou a vida das pessoas. Eu estava me expondo e me sacrificando numa coisa que eu acreditava que traria benefícios para o país. O que eu ia lucrar com isso? Se eu tivesse ficado quieto, no meu canto, estaria trabalhando no jornal, seria promovido, estaria melhor de vida. Mas eu acreditava que era meu dever fazer alguma coisa. Eu sabia que meus filhos não tinham nada a ver com isso. E para eles o pai iria se tornar um perseguido, obrigado a abandoná-los. Um deles me disse: “Foi brincar com fogo, agora agüente”. Foi uma coisa que me atingiu profundamente.

Ferreira Gullar: Eu já discordei, numa certa época, da posição da Escola de Frankfurt. Até escrevi ensaios mais otimistas com relação à cultura de massa. Eu reconheço que ela tem aspectos positivos, como a difusão da informação. Agora, quando se trata do problema da valorização da arte, dos valores artísticos, há uma grande defasagem. Isso explica um pouco também essa coisa da arte que está aí, desse experimentalismo sem limite. Se você fizer uma exposição de gravura ninguém toma conhecimento, mas se você ficar nu no museu, é notícia. Você manda para a galeria um tubarão cortado ao meio e todo mundo fala de você, mas se pegar e pintar um quadro, não chama a atenção. Para a mídia, pouco importa o valor intrínseco da obra, mas sim se ela é notícia ou não.

CADERNOS:

O sr. passou necessidades por falta de dinheiro durante o exílio?

Ferreira Gullar: Não, isso não. Leandro Konder: Há um momento no magnífico Poema sujo em que você diz: “Prego a subversão da ordem/poética, me pagam. Prego/a subversão da ordem política, me enforcam”. Mas não há um nível no qual a subversão da ordem poética também pode ter implicações na subversão da ordem política?

Esther Góes: Desde a primeira vez que o li, o Poema sujo me pareceu uma obra bifurcada – de um lado, a leveza, um certo encantamento de criança que descobre o mundo; de outro, a matéria dura, rochosa. Você acredita que isso seja um reflexo de sua própria personalidade ou seria uma circunstância do momento que você vivia: uma fragilidade decorrente da condição de exilado e ao mesmo tempo, a necessidade de ser forte para resistir a tudo aquilo?

Ferreira Gullar: Como a subversão poética não atinge os interesses das classes dominantes, ela nunca alcançará a ordem política. São interesses concretos, embora eu ache a subversão da ordem poética uma coisa muito importante. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, eu acho que a poesia é muito mais importante do que eu supunha. Mas havia uma superestimação do que se podia fazer através dela no plano da revolução política e social. Era uma utopia, portanto uma coisa que estava acima da realidade, embora eu reconheça que teve uma conseqüência, não foi inútil.

Ferreira Gullar: Realmente eu tenho essas duas coisas. Quer dizer, eu sou sempre contraditório. Tenho aquele poema, “Traduzir-se”, que fala disso. Não era, portanto, algo ligado apenas à condição de exilado. Isso faz parte do meu cotidiano. Por exemplo, faço uma poesia baseada na captação direta das minhas experiências e, ao mesmo tempo, sou um teórico, tenho capacidade de analisar (a poesia, uma obra de arte) de um modo objetivo, racional.

CADERNOS:

Essa importância da poesia é reconhecida?

CADERNOS:

Voltando um pouco, de que maneira o sr. lida atualmente com a idéia da morte, própria ou alheia – um tema recorrente na sua poesia?

Ferreira Gullar: Não. Na sociedade de massa de hoje, sob o domínio da mídia, é cada vez menos reconhecida. 45


dele é outro. Há uma associação entre memória e reflexão. Foi um estado de espírito que durou meses e meses e nunca mais voltou a acontecer.

Ferreira Gullar: Bem, a morte é mesmo um tema permanente da minha poesia. No próximo livro, que devo publicar dentro de um ano ou dois, ela está muito presente. Depois de uma certa altura da vida, é natural que a morte se torne um problema presente, não só em termos individuais, mas também devido ao fato de que você começa a perder as pessoas. Eu às vezes fico pensando como a morte que aparece n’A luta corporal é quase uma teoria, uma morte possível, adivinhada, imaginada, porque na verdade eu não tinha na minha vida uma experiência efetiva da morte. Depois que você começa a perder as pessoas a morte ganha uma outra dimensão, ganha uma concretude. Perder um filho, como aconteceu comigo, é uma coisa que não tem medida, um negócio que eu nunca imaginei, eu jamais me curei disso. É uma coisa de uma violência inaceitável. Não é mais uma coisa teórica, não – é uma coisa real, uma perda real, a vida te mostrando o seu lado duro. Aquela pessoa amada, que você criou, que estava ali do teu lado não existe mais. A vida é de um absurdo esmagador. Milhões de pessoas já morreram, mas não é possível aceitar a morte. CADERNOS:

CADERNOS:

Mas n’A luta corporal parece existir uma dinâmica que se reproduz, que dura o livro inteiro.

Ferreira Gullar: Era diferente. Na Luta essa força durava uma hora, às vezes alguns minutos. No caso do Poema sujo, não: eu me sentia um Midas. Durante meses, tudo se transformava em poesia. CADERNOS: O sr. está falando de uma dimensão quase divina, uma visão grega da poesia.

Ferreira Gullar: Bem, eles acreditavam na inspiração dos deuses, visão que eu absolutamente não tenho. Mas é um estado de espírito, sem dúvida. Eu não duvido que haja poetas que escrevam a frio – não vou discutir isso agora. No meu caso, não consigo. Tenho que entrar num estado em que se cria uma espécie de liberdade interior; eu me solto dos meus conceitos e das minhas limitações – e então meu relacionamento com a realidade muda. É, portanto, uma coisa do estado da alma, do estado de espírito, que torna possível que as palavras se comuniquem de uma maneira inesperada, que as imagens e as lembranças venham e se liguem às reflexões. É uma consciência ampliada. Eu lembro que na época do Poema sujo, durante cinco meses, fiquei nesse estado. Eu saía para comprar pão, fazia café, andava pela rua – e continuava no mesmo estado. De repente, parou, sem que o poema estivesse terminado. Então, a última parte do Poema sujo é construída. Eu passei um tempo sem escrever e de repente, sem que eu soubesse como, veio o fecho do poema. Ele parte de uma frase de Hegel que diz algo como “a folha da árvore já contém o universal e o particular”. Fiquei pensando nisso: “Por que há ali o universal e o particular?” – eu me perguntava. Pensei então que uma coisa está em outra, mas de maneira distinta; veio daí a idéia de que uma árvore está em qualquer uma de suas folhas, a cidade está no homem que está em outra cidade, enfim. Nasceu disso o final do poema.

O sr. hoje tem medo da morte?

Ferreira Gullar: Não, porque é a ordem natural das coisas. Não quero morrer, absolutamente, não vivo desejando a morte, ao contrário. Atualmente estou bastante feliz por ter conhecido uma pessoa, a poeta Cláudia Ahimsa, que veio iluminar minha vida depois que eu julgava que as coisas realmente estavam caminhando para o definitivo. Mas sei, é claro, que não se trata de querer. CADERNOS:

O sr. conta que escreveu as primeiras cinco páginas do Poema sujo de uma só vez. Este ritmo frenético dos versos iniciais acabariam contagiando todo o texto, aproximando-o estruturalmente da memória, que na verdade é sua matriz. Esta aproximação foi percebida pelo sr. enquanto escrevia?

Ferreira Gullar: Veja bem, não se trata de um poema, vamos dizer, rememorativo; o mecanismo 46


Armando Freitas Filho: Ouço, no Poema su jo, em alguns momentos, uma influência bem assimilada da dicção de João Cabral, principalmente do Cabral da fase do Cão sem plumas. A propósito, como você lida com a “influência”? Você a reconhece logo ou só quando alcança uma certa distância do seu próprio texto? E esta influência só ocorre com os poetas que lhe antecede ram ou também com os que vieram depois de você?

pode dizer: vou ler Augusto dos Anjos sob o viés da psicanálise. Pois bem: você, ao fazer isso, empobrece Augusto dos Anjos – sem contar que serão duvidosas as suas conclusões. Eu desconfio da psicanálise. CADERNOS: Ao que consta, o sr. jamais se submeteu à psicanálise; mas, como intelectual, o sr. foi ou é um leitor de Freud? O que pensa de sua teoria?

Ferreira Gullar: Eu li Freud, Jung, e acho que eles são intelectuais brilhantes. Mas, como disse, desconfio da psicanálise. Entidades como superego, id, insconsciente coletivo – tudo isso para mim são invenções.

Ferreira Gullar: Alguns poetas que li muito estão presentes na minha voz poética durante todo o tempo – e eu sei bem disso. Eu li e reli Bandeira, Drummond, Murilo, João Cabral; com eles aprendi a minha linguagem. A minha dicção poética nasceu desses autores. No Poema sujo, conforme eu disse antes, estão presentes muitas vozes. Algumas são citadas deliberadamente. Outras eu só percebi depois. Isso que estou dizendo é uma coisa da história da literatura, ou melhor, de todas as artes. Todos os escritores, pintores, músicos etc., aprenderam com outros escritores, pintores, músicos etc. Não por acaso, meu próximo livro de poesias vai se chamar Muitas vozes. CADERNOS:

CADERNOS:

Os problemas mentais de seu filho Paulo o aproximaram mais intelectualmente da psicologia ou da psiquiatria – ou de ambas? Como o sr. vê hoje estas ciências?

Ferreira Gullar: Sim, tive esse contato mais concreto. Até acho que para muitas pessoas essas ciências ajudam. São como o padre de antigamente. O que eu discuto, por exemplo, na psicanálise, é a questão conceitual.

Há angústia na influência? CADERNOS:

Qual é a sua relação com Deus? E com a religião?

Ferreira Gullar: Não, ao contrário. CADERNOS:

O sr. identifica influências de novos autores no seu trabalho?

Ferreira Gullar: Eu não acredito. Não tenho ne nhum misticismo comigo. Fui destituído dessa qualidade, ou melhor, nasci destituído dessa qualidade.

Ferreira Gullar: Não. E sabe por quê? Porque o que conta aí é a formação.

CADERNOS:

Tal como foi concebido e realizado, o Poema sujo se presta perfeitamente a análises de natureza psicanalítica. O sr. concorda com esta vertente crítica?

Sua família era religiosa?

CADERNOS:

Ferreira Gullar: Não era contra nem a favor. Simplesmente isso não existia. Minha mãe tinha lá uma santa, rezava às vezes, mas nunca ia à igreja. Embora reconheça que a religião tenha uma extraordinária importância para a humanidade – não foi por acaso que gerou obras maravilhosas, como templos, catedrais, pinturas, esculturas, música etc. – eu não sou nada místico.

Ferreira Gullar: Não. Eu acho que a leitura psicanalítica nada tem a ver com a literatura. Você pode fazer, claro, mas acho que é uma leitura não prevista pelo poeta. O poeta não escreve para ser objeto da análise psicanalítica. Você 47


CADERNOS: O sr. não sente falta da religião, da crença em Deus?

Esther Góes: Você voltaria a se entregar a uma ideologia? Reconhece na humanidade um potencial de transformação que justifique essa entrega? Ou tudo isso não passa de uma ilusão juvenil?

Ferreira Gullar: Sinto, mas não posso fingir que acredito, não é? Então, eu me conformo com a minha condição. A minha vida é essa que está aí. Um dia, ela acabará – e será indiferente para mim o que vai acontecer. Shakespeare morreu, aliás, nunca existiu, ou melhor: só existiu enquanto vivia. No momento em que morreu, é como se nunca tivesse existido. Hoje, Shakespeare somos nós. Nós é que sabemos da existência de alguém chamado Shakespeare.

Ferreira Gullar: Não, não é uma ilusão juvenil. Mas eu não posso, a priori, dizer que vou abraçar uma nova ideologia que não existe. O que eu considero de fato encerrado é a concepção de revolução marxista. Eu compreendo hoje que um Estado com uma filosofia é inviável, porque se o Estado tem filosofia ele é autoritário, excludente e repressivo.

Esther Góes: Em relação à sua vida, qual o pensamento que mais o tranqüiliza?

CADERNOS:

Isto significa que o sr. não é mais comunista?

Ferreira Gullar: Nenhum pensamento me tranqüiliza.

Ferreira Gullar: Não, porque não existe mais comunismo. Quer dizer, existem algumas pessoas que insistem nisso, mas não tem cabimento.

CADERNOS: Nem esta certeza de que um dia tudo acabará, a certeza da morte?

CADERNOS:

Ferreira Gullar: Não. Eu aceito porque é a fatalidade. Não me tranqüiliza. O que me tranqüiliza é ser feliz. E quando você é feliz, a morte está ausente. Não pense que eu sou uma pessoa pessimista, “fossenta”. Isso que estou dizendo é apenas uma aceitação consciente das coisas tal como elas são.

Cuba não tem cabimento?

Ferreira Gullar: Cuba não é mais, de fato, um país comunista, nem a China é. São países que estão se transformando. Agora, é claro que Cuba tem uma série de conquistas, extraordinárias para um país pequeno, indefeso. Hoje se encontra num impasse: não pode voltar atrás, não pode ir para a frente. Mas eu já me darei por feliz se as conquistas fundamentais da sociedade cubana se preservarem.

Zuenir Ventura: Você soube, como poucos, conciliar ética, estética e política, sendo que esta última, como se sabe, levou-o à prisão e ao exílio. Hoje, porém, você pa re ce distante da atividade política. Por quê? Desencanto?

Leandro Konder: No início dos anos 60, você escreveu belos poemas “engajados”. Num deles, entretanto, você chegou a escrever: “(…) não vejo na vida, amigo,/ nenhum sentido, senão/ lutarmos juntos por um mundo melhor”. Ao longo da sua obra, a perspectiva generosa da luta por um mundo melhor é constante. Mas em vários poemas aparecem expressões de reconhecimento dos múltiplos sentidos que a vida revela ao poeta (especialmente ao poeta apaixonado). Então eu indago: não houve um certo exagero, certa unilateralidade naquele “nenhum” sentido?

Ferreira Gullar: A palavra desencanto talvez não seja a correta. Num certo momento, eu me empenhei contra a ditadura. Hoje as coisas são bastante diferentes. Acho que é hora dos profissionais. Eu discuto, acompanho a política, leio os jornais. Mas militar nessa situação é para profissional. Se a ditadura voltasse, coisa que eu espero que não aconteça, eu estaria pronto para brigar de novo. Agora não, deixo para os profissionais. 48


Ferreira Gullar: Claro que houve. O pecado maior não é a unilateralidade, mas sim o fato de que não se trata de poesia. A poesia, quando verdadeira, não tem esse caráter estreito, unilateral de certos poemas engajados. Os meus primeiros poemas engajados são muito sectários; são mais um “recado” para a consciência das pessoas. Mais tarde, minha poesia engajada mudou. Um poema como “Dentro da noite veloz”, por exemplo, é ambíguo. A verdadeira poesia tem muitas faces. Quando deixei de fazer poesia metrificada, como disse, caí no coloquial, que foi se reelaborando até virar uma linguagem complexa, abstrata, que conduziu à desintegração. Entretanto, com os poemas de

cordel, voltei à linguagem banal, mas evidentemente politizada. No Poema sujo, a linguagem que vai aparecer resulta de todas essas experiências. Defendo, então, a tese de que não existe poesia pura. A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral. Leandro Konder: Num dos meus poemas preferidos, dentre os que você escreveu, fala-se do desafio de “traduzir-se”, quer dizer, de traduzir aquela parte do poeta que “é só vertigem” na outra parte que é “linguagem”. Mas há também, se não me engano, um efeito de “linguagem” capaz de produzir “vertigem”, não há? E esse efeito 49


não depende só do poeta, depende igualmente do leitor, da sensibilidade com que é feita a leitura. A pergunta é: qual a impor tância para o poeta de que os leitores o entendam verdadeiramente e se emocionem com inteligência? E mais: como o poeta pode verificar o grau de êxito na “recepção” de um poema seu?

Ferreira Gullar: A maioria das traduções que fiz foi encomendada. Só o Ubu roi [Ubu rei, de Alfred Jarry] é que fiz por minha espontânea vontade. Mas é um bom exercício. Na tradução do Cyrano, por exemplo, não obedeci à forma original de versos dodecassílabos. Existe uma tradução famosa dessa peça, feita no início do século, que é um esforço admirável de imitar a forma. Mas o resultado é praticamente ilegível. O dodecassílabo não é um verso que se ajuste ao coloquialismo brasileiro. Preferi então os decassílabos e também decidi colocar a rima onde ela soasse melhor e não apenas no fim do verso. Acabei ganhando um prêmio Molière de tradução – que aliás nem existia, foi criado para esse trabalho. Já as Fábulas foram uma encomenda da editora Revan. Muitas das traduções que estão por aí nessa área são ilegíveis para crianças; tive então, de novo, liberdade para traduzir, às vezes alterando até a moral da história. Por exemplo: numa das fábulas, um camponês sai de casa num inverno e vê uma serpente morrendo de frio no lado de fora. Cheio de pena, ele resolve colocar a cobra para dentro. Depois de se aquecer perto do fogão, a serpente avança para picar o homem. Aí ele pega o facão e corta a cobra em três. A moral dele é a seguinte: “Deve-se fazer o bem sem olhar a quem?” A minha ficou assim: “Fazer o bem está certo, mas tendo um facão por perto!” O que as crianças vão pensar disso, eu não sei… Bem, voltando à outra parte da pergunta: eu traduzi muitos poetas, mas nunca publiquei esses textos. Traduzi Rimbaud, Mallarmé, Ponge, mas para consumo próprio.

Ferreira Gullar: Eu não me preocupo assim deliberadamente com a compreensão ou incompreensão que o leitor venha a ter dos meus poemas. Procuro ser claro e atingir o leitor; o primeiro leitor, aliás, sou eu mesmo. Mas eu nunca renuncio à complexidade, eu jamais digo que não vou fazer isso ou aquilo porque ninguém vai entender. Vou fundo até encontrar a forma, mas não busco um entendimento lógico. CADERNOS:

Na verdade, essa é a questão do hermetismo. Existe um limite entre essa clareza que o sr. julga importante e o não empobrecimento da poesia?

Ferreira Gullar: Eu acho que o hermetismo é um produto do intelectualismo meio caprichado, é um preciosismo, é quase um esnobismo. É diferente quando você elabora a linguagem, cria um impacto, de modo que o leitor pode não entender aquilo do ponto de vista lógico, mas se identifica porque é atingido. Na poesia, eu procuro freqüentemente atingir o leitor, não pela lógica, mas pela emoção, pela surpresa, pelo impacto de uma imagem inesperada. Acho que aí se estabelece a comunicação. Agora, quando você fica caprichoso, substituindo palavras por outras que na verdade encobrem a significação, isso elimina a verdadeira emoção. Até num poema como “Roçzeiral”, que é hermético, o leitor, com um certo abandono, uma certa entrega, pode perceber não um sentido lógico – que aquilo não tem – mas a emoção que está inserida ali.

CADERNOS:

Foi, de alguma forma, uma apren-

dizagem?

Ferreira Gullar: Não, não fiz com essa intenção. Foi por prazer mesmo. CADERNOS:

É uma atividade ainda regular? Já houve proposta de publicação dessas traduções?

CADERNOS:

Qual o papel da tradução propriamente dita em sua obra? Por que o sr. tem se dedicado a traduzir teatro e até literatura infantil mas não poesia?

Ferreira Gullar: Não, não me propuseram, mas também são poucos poemas. E não é uma 50


CADERNOS:

atividade regular. No fundo, eu não gosto de traduzir poesia. Uma vez me propuseram traduzir o Canto general [Canto geral ], do [Pablo] Neruda. Pedi desculpas e recusei. É muito difícil traduzir poesia. Há coisas intraduzíveis. O poema não é apenas uma construção conceitual.

Esta peça está pronta?

Ferreira Gullar: Está. Tenho outras prontas: uma peça com estrutura de cordel e outra sobre os dias em que estive preso na Vila Militar, uma peça tragicômica. CADERNOS:

CADERNOS: O sr. acompanha a tradução dos seus livros de poesia?

O sr. freqüenta teatro?

Ferreira Gullar: Tenho ido pouco ao teatro.

Ferreira Gullar: Quando é numa língua que eu do mino, sim. Recentemente, por exemplo, o tra dutor do Poema sujo para o espanhol veio ao Brasil e aproveitou para corrigirmos a tradução.

CADERNOS:

Durante algum tempo, o teatro foi uma forma de resistência à ditadura, o que o colocou num nível de importância que talvez não tivesse em outras circunstâncias. E hoje, como o sr. vê o papel do teatro?

CADERNOS:

Ferreira Gullar: É claro que durante a ditadura o teatro cresceu em importância, passou a ter uma presença mais forte. A situação atual é outra, mas ainda assim creio que o teatro continua mantendo o seu papel de observação e crítica da vida social e de veículo de aprofundamento de reflexões sobre a existência. Apesar de todas as dificuldades que nós sabemos, da televisão etc., eu acho que o teatro continua a exercer o seu papel. E mais: continua a servir como um laboratório de formação de atores, de aprimoramento do trabalho do ator.

O teatro esteve muito presente em seu trabalho na fase militante e até um pouco depois de sua volta ao Brasil. No entanto, desde que o sr. passou a escrever para a televisão, parece ter perdido o interesse pelo palco. Por quê? Qual a importância do teatro para sua obra?

Ferreira Gullar: Antes de entrar para o CPC eu era apenas um espectador e um leitor de teatro. O teatro me fascinava, mas eu não tinha o co nhecimento de dramaturgia. Quando entrei para o CPC , eu me envolvi com teatro; depois ajudei a criar o Opinião, onde faria minha primeira peça. Aliás, o trabalho no Opinião foi um verdadeiro aprendizado: eu acompanhava os ensaios, discutia as cenas e aí consegui realmente dominar a técnica da dramaturgia, o instrumento da linguagem teatral mesmo. Escrevi Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Vianinha, A saída? Onde fica a saída?, com Armando Costa e o [Antônio Carlos] Fontoura, Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, com Dias Gomes, até que em 1978, fiz sozinho Um rubi no umbigo. Fora daí tenho outras peças, algumas que nem dei por terminadas. Uma delas foi lida recentemente num ciclo que o grupo Casa Grande organizou. Chama-se Mal chegava a primavera. É uma história que se passa nos últimos dias do governo Allende.

CADERNOS:

O sr. teve dificuldades no início para escrever textos que iriam ser representados na TV? Enquanto poeta e intelectual, com histórico de militância política, qual era o seu conceito em relação ao “veículo” televisão antes de se dedicar à teledramaturgia? Ele se alterou a partir do momento em que o sr. passou a escrever para a TV?

Ferreira Gullar: Eu não era um escritor com preconceitos em relação à televisão. Fui talvez o primeiro intelectual brasileiro que deu um habeas-corpus para a TV. Em 1965 escrevi uma série de ensaios na Revista Civilização Brasileira intitulada “Problemas estéticos na sociedade de massa” e lá eu tratava da televisão de uma forma diferente da Escola de Frankfurt – reconhecendo, 51


chegou à página 100. O sr. poderia falar de sua experiência como ficcionista, que resultou no livro Cidades inventadas (1997)? E como está o projeto do romance?

como já disse, o caráter democrático do veículo, embora também chamando a atenção para a estereotipia, o esquematismo. Mas não havia preconceito, entende? Quando voltei do exílio, Dias Gomes me convidou para trabalhar com ele na Globo. Obviamente, era uma ótima oportunidade de trabalho para mim. E não tive qualquer dificuldade. A dramaturgia que aprendi no teatro me serviu e me serve para a TV. Aliás, comecei em televisão fazendo uma série de adaptações de peças teatrais num programa que se chamava Aplauso.

Ferreira Gullar: Bem, o romance virou o Poema sujo. Eu tinha escrito 70 páginas do livro e desisti. Pensei: “Não sou romancista”. Já Cidades inventadas é ficção. Nem acho que sejam contos, mas é ficção: eu escrevi aquelas histórias como se fosse um historiador de verdade, eu me fingi de historiador, fiz até notas. Curioso é que quando eu comecei a escrever aquilo, eu não conhecia Borges, nem Calvino. E outro dia, relendo Kafka, descobri que essa idéia de fazer uma cidade encantada tinha saído da história da muralha da China.

CADERNOS: Como o sr. analisaria a teledramaturgia brasileira atual?

Ferreira Gullar: Existem várias teledramaturgias. Quando você faz o que se chama em TV de especial, é como se fosse um curta-metragem ou uma peça, com 40, 45 minutos de duração; nesse caso, você tem muito mais possibilidades de usar com eficiência os recursos da dramaturgia. Já a minissérie é composta de capítulos – se você faz mais, o custo da unidade cai. E é claro que as emissoras pensam nisso, o que acaba provocando, muitas vezes, uma batalha entre elas e os autores. E há ainda as novelas, em que a coisa é louca: 180, 200 capítulos. A teledramaturgia naturalmente sofre então as conseqüências disso. De qualquer maneira, o rendimento do Brasil nesse campo tem sido bom: nem sempre pela teledramaturgia em si, mas pelos atores, os diretores. CADERNOS:

O sr. assiste à

CADERNOS: No texto “Adrixerlinus” há um eco de sua passagem pela União Soviética?

Ferreira Gullar: De certo modo, mas o básico ali é a crítica em geral a uma cidade utópica – a cidade perfeita. Há ali uma citação d’A República, de Platão. Eu não acredito nessas coisas. Como disse antes, nem na época em que estava no Partido Comunista eu acreditei numa sociedade futura perfeita, sem classes. Agora, a “cidade perfeita”, eu nem sei o que é isso, até porque, como diz a história, para viver numa cidade perfeita é preciso ser perfeito. CADERNOS:

Houve uma época em que o sr. escrevia crônicas, que foram reunidas em A estranha vida banal (1989). Como foi para o sr. manter uma produção textual regular?

TV?

Ferreira Gullar: Vejo, inclusive profissionalmente eu tenho necessidade de ver televisão para saber o que está acontecendo, o que está sendo feito. É verdade que me chateia, não tenho muita paciência. Mas é o meu ganha-pão; faço o melhor possível quando escrevo para a TV, procuro escrever com qualidade, me interesso mesmo.

Ferreira Gullar: Eu confesso a vocês que dei graças aos céus no dia em que me liberaram de escrever crônicas semanais no Jornal do Brasil. Muitas vezes você fica feliz por ter uma seção fixa para dizer o que pensa, mas, e quando não se tem nada para dizer? Já no exílio, como colaborador d’O Pasquim, eu não tinha essa obrigação. Escrevia quando tinha alguma coisa interessante para comentar.

CADERNOS:

O sr. já disse que a poesia nasce da prosa, o que ajuda a explicar uma espécie de fascinação que o sr. tem por textos ficcionais – a ponto de iniciar um romance, que nunca

CADERNOS:

O sr. trabalhou como jornalista durante muitos anos. A linguagem jornalísti52


ca influenciou, de algum modo, o seu trabalho criativo e/ou ensaístico?

meu último livro de poemas é de 87, já estamos em 98 e eu tenho apenas um livrinho, com poucos poemas, para publicar.

Ferreira Gullar: Claro. Trabalhei como copidesque durante anos a fio, como revisor, redator. Lembro que na Manchete, para onde fui convidado por Otto Lara Resende, eu era registrado como revisor, mas escrevi até crônica. Às vezes, o Otto chegava e dizia: “Gullar, o Rubem Braga não mandou a crônica dele. Escreve aí uma crônica”. Eu fazia – e assinava Rubem Braga. Nós nos divertíamos muito. Depois fui para o Diário Carioca, que era uma escola de formação da nova redação, a redação moderna. No Jornal do Brasil ajudei a fazer a reforma, com a colaboração na parte gráfica do Amilcar de Castro, que era meu amigo da fase concreta e neoconcreta. Essas coisas não se separam; toda essa experiência teve naturalmente reflexo no meu trabalho.

Alfredo Bosi: Em pleno vendaval da globalização, que leva ao extremo a mercantilização da cultura e da vida simbólica em geral, como você encara a possibilidade de a poesia resistir, ainda?

Ferreira Gullar: Eu acho que mais do que nunca a poesia se torna necessária, exatamente por isso, não é? A poesia nunca foi uma arte de grande público, mas quando você vê a vida se tornando essa coisa massificante, ameaçando dissolver as individualidades, acho que as pessoas têm que se defender – e a poesia é uma forma de resistência a isso tudo. Alfredo Bosi: O que lhe parece significativo na poesia brasileira recente, isto é, nos poetas que começaram a escrever depois do experimentalismo dos anos 60 e depois da “poesia marginal” dos anos 70?

Zuenir Ventura: Se você tivesse que escolher uma só de suas inúmeras atividades – poesia, teatro, literatura, jornalismo, crítica de arte e telenovela – qual escolheria? Por quê?

Ferreira Gullar: Em primeiro lugar, quero dizer que acho que essas experiências todas foram necessárias. O movimento da poesia concreta, por exemplo, foi necessário. Aquilo não foi uma invenção gratuita, não se trata de “vamos agora mudar a poesia brasileira”. A poesia brasileira que nasce com o modernismo amadurece, entra em crise com a geração de 45, adota uma postura formalista, volta à linguagem coloquial, até que surge a poesia marginal – muito interessante com aquela coisa do mimeógrafo, de levar o poema de mão em mão – que retoma o discurso poético, assimila o que foi criado. Hoje cada poeta busca o seu caminho. Não há um movimento – e é natural, porque não é obrigatório que hajam sempre movimentos. Em várias fases da história poetas criaram individualmente suas obras sem que estivessem inseridos em movimento algum. O que é significativo é que há um renascer da poesia. É cedo para dizer quais são os grandes poetas que estão surgindo. Eu recebo muitos livros de poesia; a maioria não é de boa qualidade.

Ferreira Gullar: A poesia. É nela que eu me realizo plenamente. Mas não poderia escolhê-la, porque nesse caso teria que morar na favela e ainda precisaria arrumar outra coisa para fazer, digo, para ganhar a vida. Na verdade, eu acho que tenho tantas atividades porque a poesia não é uma ocupação permanente. Eu só escrevo a poesia que merece nascer. Eu sei que não adianta forçar. Fazer um poema é uma grande experiência. É preciso estar dentro do clima – aquele em que você parece estar dentro do miolo da vida. Quando eu sinto que não entrei nesse clima, eu já sei que não vai dar certo, e a ansiedade de fazer o poema vira uma coisa insuportável. O ideal do artista seria viver sempre nesse clima, mas não é possível. Alguns vivem e por isso mesmo suas obras são maiores, quer dizer, eles produzem num volume maior. Eu, não. É como sempre digo: sou muito terrestre, tenho muito os pés no chão, e aí fica difícil levantar vôo. Por isso, quando me perguntam: “Você é o Ferreira Gullar?”, eu respondo: “Às vezes”. Vejam vocês, 53


CADERNOS: O sr. disse que uma das coisas que mais o impressionaram quando voltou do exílio foi a quantidade de publicações de livros de jovens poetas, do norte ao sul do país. Desde então, isso se intensificou – basta dizer que na Internet o Jornal de Poesia registra milhares de visitas. E são muitas as novas publicações, seminários e debates sobre a poesia jovem. O sr. recebe muitos originais de poetas jovens? Consegue lê-los? Responde aos autores?

surgiu a seguinte frase na minha cabeça: “Com raras exceções, os minerais não têm cheiro”. Quer dizer, não falava em tangerina, mas ao dizer isso, inseria o leitor num mundo conhe cido, ou capaz de reconhecer – com os mine rais rígidos, sem respirar – algo diferente da tangerina, que quando eu abro me lambuza. Eu estava então transmitindo uma vivência capaz de inserir o leitor nela. Essa ligação do poema com o concreto, com o vivido, com o “de todo mundo”, o prosaico, talvez isso me aproxime das pessoas. A minha poesia tem talo, está ligada ao chão.

Ferreira Gullar: Recebo muitos livros de poemas. E a maioria, como no caso dos livros, é de má qualidade. Até pouco tempo atrás eu res pondia aos poetas – ao menos para aqueles que tinham qualidade. Mas chega a um ponto em que você não consegue mais fazer isso, toma um tempo enorme. Eu respondia porque me sentia obrigado. Parei. Hoje é muito raro eu responder.

CADERNOS:

Numa fase assim, de gestação de um poema, como fica a sua relação com a literatura? O sr. lê?

Ferreira Gullar: Sim, eu não separo nenhuma parte da minha vida da poesia. Todo dia eu abro o jornal. Se estou lendo um livro, continuo a leitura. Pode ser até que na leitura desse livro surja uma palavra que me leve de volta ao delírio do poema, está entendendo?

CADERNOS:

Comenta-se, nos meios universitários, e até já foi publicado, que entre os poetas brasileiros vivos, Ferreira Gullar é um dos mais lidos e cultuados pelos jovens que estão se iniciando na poesia. O sr. sabia disso? E qual a sua explicação para essa preferência dos jovens?

CADERNOS:

No caso do poema sobre o cheiro da tangerina, não houve uma remissão à infância, a uma “experiência pri meira”?

Ferreira Gullar: Freqüentemente isso acontece. O cheiro muitas vezes me remete ao passado. Mas nesse caso, por estranho que pareça, não me remeti à infância, ao passado.

Ferreira Gullar: Bem, eu não sabia disso. Claro que fico contente. Quanto à explicação talvez seja o fato de que minha poesia sempre foi bastante ligada à vida. Por exemplo, meu poema “O cheiro da tangerina” [Barulhos, 1987]. Eu estava na minha sala e meu filho abriu uma tangerina. Embora eu sentisse o cheiro da tangerina desde que nasci, de repente aquele cheiro da tangerina aberta pelo meu filho me comunicou algo diferente. Achei que poderia fazer um poema, mas ia dizer o quê? Saí dali para trabalhar, aquele cheiro de tangerina dentro de mim. Passei semanas pensando no poema, fui ler numa enciclopédia a respeito da tangerina, procurei me misturar com a tange rina. Comecei escrevendo as coisas mais absurdas. Irracionais. Um dia, indo para a praia,

CADERNOS:

O sr. costuma dizer que só escreve os poemas necessários. Foi sempre assim? Como o sr. faz tal consideração? Poemas “desnecessários” não poderiam funcionar como “exercícios poéticos”?

Ferreira Gullar: Sempre foi assim. Eu nunca escrevi muito. Eu gosto de pensar, não gosto de escrever; mas só sei pensar escrevendo, então tenho que escrever. E só escrevo, como disse, quando sinto que aquilo renderá um poema. Eu sinto isso. E aí, custe o que custar, eu tenho que escrever. 54


Em poesia certamente não, mas em termos de prosa, o sr. tem alguma rotina quando está escrevendo, por exemplo, um ensaio?

CADERNOS:

que não é só a história de D. Pedro, do golpe de 64, é a história de alguém que estava em casa e ouviu o avião passar. CADERNOS:

Ao longo dos últimos 50 anos, sua poesia passou pela luta contra o formalismo da geração de 45, pelos movimentos concreto e neoconcreto, por uma dicção de matiz popular e politicamente engajada e até pelo verso lírico-coloquial de extração moder nista. Por trás dessa apa rente dispersão, seu percurso inquieto configurou, no entanto, um programa sempre coerente de procura da poesia e da expressão que, a cada momento, melhor lhe desse forma. A esta altura de sua carreira, tendo-se afirmado como um dos mais importantes poetas brasileiros de sua geração, o sr. considera que essa procura terminou?

Ferreira Gullar: Não. Em geral trabalho de dia, mas sem horário. O problema, como eu disse, é que não gosto de escrever. Mesmo poesia, eu só gosto quando entro naquele clima que já descrevi antes. CADERNOS:

Quando é que a poesia o convoca realmente?

Ferreira Gullar: Às vezes acontece na rua. Não é sempre, mas às vezes eu saio – tenho prazer em estar no meio das pessoas – e fico pensando nos poemas, elaborando mesmo. É um prazer saber que a poesia está nascendo no meio da multidão. Mas o momento do nascimento do poema, desse você não tem controle.

Ferreira Gullar: Esse livro que vou publicar tem vários momentos diferentes. Um deles traz textos que eu chamo de poemas prosaicos. Eles nasceram depois da última poesia de Barulhos, que se chama “Nasce um poema”. Depois que escrevi “Nasce um poema” passei meses sem produzir, fiquei achando que tinha entrado numa nova crise. Quando voltei a escrever, fiz poemas quase narrativos. Quer dizer, o poeta está sempre num impasse, numa situação de impasse. No meu caso, ainda acontece a mesma coisa que se vê n’A luta corporal : quando adquiro a habilidade, eu corto, rompo. Não consigo continuar, eu não quero continuar. Não é uma questão de buscar o novo simplesmente, mas porque ali tem que aflorar a coisa fresca; é que sou exigente e não quero a habilidade, como falei. Então, continuo buscando. Meu último poema, “Morrer no Rio de Janeiro”, que entreguei a vocês para sair nos CADERNOS, é feito em versos livres, enquanto os que eu vinha fazendo um pouco antes dele eram rimados. Ora, “Morrer no Rio de Janeiro” jamais poderia ter sido escrito com rimas, metrificado. Quer dizer, o poema também se impõe, entende? Quando ele vem, de qualquer um de seus abismos, ele desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe, não adianta – ele não respeita nada.

CADERNOS:

Por que alguém deveria se dedicar à poesia nos dias atuais?

Ferreira Gullar: Eu acredito que as pessoas nasçam poetas. É o destino delas. Então, dificilmente deixam de fazer poesia. CADERNOS:

E os leitores?

Ferreira Gullar: Também. Eu acho que há pessoas que têm uma sensibilidade especial para a poesia. Não são capazes de escrever, mas são capazes de ler com sensibilidade um poema. Eu tenho recebido manifestações de leitores assim, que me encontram, me páram na rua e dizem: “Olha, eu li o seu livro inteiro, as suas poesias me ajudaram muito”. Isso é uma coisa que nasce com a pessoa. Para mim, o fato de ser um poeta da banalidade, do mundo real e ter esse retorno, para mim esse é o grande barato, está compreendendo? É comovente eu conseguir fazer um poema que é da vida do outro também. Eu falo da fotografia aérea da minha cidade e ele também pode sentir isso, ele tem a sua cidade, ouviu passar o avião sobre a cidade dele. Quer dizer: eu estou contando a história do meu país 55


Ilha de São Luís e Alcântara


G E O G R A F I A P E S S OA L


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I N É D I TO S / O R I G I N A I S / D E S E N H O S

“Caminhos não há Mas os pés na grama os inventarão”

Ferreira Gullar lançou o seu último livro de poesias, Barulhos, há 11 anos e acredita que pode demorar mais dois para publicar o próximo, já batizado de Muitas vozes. “Escrevo pouco, só mesmo os poemas necessários”, justifica-se. Diante disso, é um privilégio para os NOS

CADER-

poder oferecer aos leitores cinco poesias inéditas de Gullar – inclusive a que dá título à

sua futura coletânea. Ao contrário dos novos textos, que estavam na redação da revista dias depois de solicitados, as páginas iniciais do original do Poema sujo, escrito há 23 anos, só chegariam às vésperas do fechamento dos CADERNOS. Por mais que as procurasse, Ferreira Gullar não conseguia localizá-las. “Não sei se ainda dá tempo, mas tenho uma boa notícia”, disse ele, exultante ao telefone, logo que encontrou o maço de folhas amarelecidas, assim identificadas: POEMA SUJO

(esbôço).

Os outros destaques da seção não dizem respeito à literatura. São quatro desenhos, da série “Morandianos”, feitos por Gullar em 1996. Trabalhando com lápis de cor e canetas esferográficas, ele homenageia o artista plástico italiano Giorgio Morandi (1890-1964) e sua obsessão por objetos domésticos banais – garrafas, copos, jarras. “Nunca serei um artista plástico; para ser um pintor de verdade, é preciso jogar a vida inteira nisso”, diz sempre o poeta. Ainda assim, continua a pintar e desenhar.

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I N É D I TO S

“MUITAS VOZES”

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I N É D I TO S

“COITO”

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I N É D I TO S

“NÃO-COISA”

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I N É D I TO S

“NÃO-COISA” (cont.)

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I N É D I TO S

“UM INSTANTE”

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I N É D I TO S

“MORRER NO RIO DE JANEIRO”

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I N É D I TO S

“MORRER NO RIO DE JANEIRO” (cont.)

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ORIGINAIS

ABERTURA DO POEMA SUJO

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ORIGINAIS

ABERTURA DO POEMA SUJO (cont.)

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ORIGINAIS

ABERTURA DE “HOMEM COMUM”, DO LIVRO DENTRO DA NOITE VELOZ

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I N É D I TO E M L I V R O

“O GALO”

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DESENHOS

MORANDIANOS (caneta e lรกpis de cor, 27,8cm

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X

19,7cm)


DESENHOS

MORANDIANOS

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ENSAIOS

Gullar: a luz e seus avessos Alcides Villaça

“E minha linguagem é a representação duma discórdia”

I. São quase 50 anos de poesia – um mar de tempo que só a alguns poetas é dado atravessar preservando, entre avanços e recuos, investidas e sinuosidades, um fundamento de navegação. O de Ferreira Gullar traçava-se já no início da década de 50, num livro surpreendentemente maduro para um jovem estreante – a se aceitarem como estréia que conta os poemas de A luta corporal (1954). Mas que tipo de roteiro se pode manter ao longo de tantos anos tumultuosos? Que verdade funda – mais que veleidade – se preserva na sucessão de tão heterogêneos projetos estéticos, expectativas políticas e valores culturais? Verdades poéticas são símbolos e ritmos, falas que se investem de outra natureza e de outro tempo, a correr contra a sucessão simples e epidérmica dos fatos aceitos. Que particulares verdades se tornam amplo critério na poesia de Gullar? Para abrir minha hipótese, valho-me de uma situação que julgo exemplar, testemunhada há alguns anos. Numa palestra a estudantes de Letras, a fala de Gullar dividiu-se em duas partes, marcadas por duas inflexões básicas: num primeiro momento, em tom de memorial, recuperou e deixou fluir as impressões do jovem maranhense que, na São Luís dos anos 40, descobria, na literatura e na poesia, flancos novos da vida; num segundo momento, emergindo o intelectual e crítico, pesou e ponderou conjunturas históricas, opções estéticas e responsabilidades do artista. Ao discurso internamente inflamado pela memória sucedeu a reflexão tensa, balizada pela avaliação política; a expressão inspirada e prazerosa do narrador lírico deu lugar à concentração do analista dialético da cultura. Puxado por essas forças distintas – a da verdade escavada no fundo da experiência pessoal e a do desafio de objetivá-la no

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âmbito da polis dividida –, Gullar mostrou-se fiel a ambas, literalmente encarnando esse diálogo problemático, cujo valor depende da qualidade das vozes em conflito. Nessa palestra, subsistia muito da “luta corporal” a que já se entregava, décadas atrás, o jovem José Ribamar Ferreira. Seu percurso poético, aberto pela dialética apaixonada dos intuitivos, estaria sempre a passar por duras provas de auto-avaliação consciente e rigorosa. Esse jogo crispado entre o impulso íntimo para as imagens e ritmos mais explosivos e a mediação ideológica que os afere no quadro histórico constitui um parâmetro permanente e formador de sua arte. II. Que feições mostra, a princípio, essa Luta corporal de estréia? Percorrendo o volume, o leitor se desnorteará com a pluralidade de vozes e formas que experimentam o mundo da linguagem. Estará diante de um painel de possibilidades históricas abertas à poesia dos anos 50: há aqui algo do difuso neosimbolismo que não seria estranho a alguns dos poetas da chamada “geração de 45”; logo ali há marcas de um coloquial expandido nas trilhas do modernismo; mais além, o discurso catártico da livre associação faz pensar nos surrealistas; ainda adiante, a sintaxe e a morfologia perdem toda estabilidade e se estilhaçam em signos e simulacros de signos, numa espécie de apostasia da linguagem. Tal painel poderia sugerir caprichos e malabarismos de um jovem escritor descalibrado, eclético por defeito – mas a desordem é apenas aparente: o leitor sentirá que há um critério vital alinhando as disparidades, combinando a atitude profunda da busca existencial e estética com a força dos símbolos básicos que se mantêm na investigação das formas. Bem analisado, o livro é em si mesmo uma espécie de cosmogonia pessoal, em que se historia uma exploração que vai dos reflexivos versos iniciais dos “Sete poemas portugueses” – versos em que se equilibram símbolos e ritmos de uma retórica poética tradicional – à forma agônica das contorções dos poemas finais, como “Roçzeiral”. Ilustro o contraste: assim se inicia o “poema português” número 9, da primeira seção do livro: “Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa se entrega ao mundo, estrela tranqüila. Nada sei do que sofro. O mesmo tempo que em mim é frustração, nela cintila.”

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E eis os versos iniciais do último poema do volume: “negror n’origens, flumes! erupção ner frutos, lâmpus negurme acêndi sur le camp” A sugestão, aqui, é a de que o aprendizado poético se fez de forma vertiginosa, saltando da ordem meditativa de símbolos tradicionais (“rosa”, “estrela”) para um universo em erupção cujas formas, embora remontem a um caos original (“negror n’origens”), são menos indícios da constituição de alguma outra ordem que derradeiros resíduos de uma ambiciosa constelação. O experimento lingüístico radicaliza-se como impasse, não como afirmação eufórica; a luta corporal com as palavras ressoa o timbre moderno da impossibilidade de expressão. Mas o leitor terá notado que nesse “salto” radical algo se conservou: em ambos os fragmentos, a polarização se dá entre figuras de luz e treva, entre o “fluo obscuro” e o que “cintila”, entre o “negror” e o “acêndi”. Essa polarização é, na verdade, fundo comum de A luta corporal e persistirá obstinadamente em toda a poesia de Gullar. Quando obsessivos, símbolos são mais que figuras, ou temas: já constituem atitudes, gestos, valores, compromissos fundamentais do sujeito poético consigo mesmo e com o mundo. Passam a simbolizar nexos estruturais entre o indivíduo e a História, a consciência e o tempo, o sentimento de vida e o sentimento de morte. Os múltiplos aspectos da “luta corporal”, iniciada neste livro e modulada em praticamente toda a trajetória do poeta, irradiam-se dessa base de polarizações, que é preciso reconhecer e interpretar. Luz e treva constituem oposições que se expandem num repertório de imagens em que há o dia e a noite, o brilho e a opacidade, o sol e a morte, o florescer e o apodrecer, o fulgor e o nada. Cuidado, porém, com a facilidade das simetrias, que costuma levar aos mais fáceis esquemas. Convém reconhecer o processo poético onde ele se dá: nos movimentos da consciência fazendo-se linguagem. Que iluminações e sombras são essas, que percorrem o livro com a força de um leitmotiv ? Eis algumas delas: “Fonte, flor em fogo, que é que nos espera

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por detrás da noite?”

(“4”)

“A luz de antes de ser dourava as formas ignoradas de si, madurecia-as.” (“A fera diurna”) “Grito, fruto obscuro e extremo dessa árvore: galo. Mas que, fora dele, é mero complemento de auroras.” (“Galo galo”) “Meu rosto esplende, remoto, em que ar? corpo, clarão soterrado!” (“Um programa de homicídio”, “1”) “Na luz da tarde eles recomeçam a enterrar o meu rosto Um céu vertiginoso trabalha, a luminosidade se dilacera” (“Os reinos inimigos”) Note-se, nessas passagens (multiplicáveis à exaustão), não apenas o simples jogo de contrários com base nas aparições da luz e da sombra, mas também o modo pelo qual os símbolos se organizam: eles tanto se espacializam em “detrás”, em “fora”, em “soterrado” quanto se temporalizam em “antes de ser”, “remoto”, “recomeçam” – como a expressarem, no ontem e no hoje, no dentro e no fora, o estigma de uma dupla condição das coisas e dos seres, entre os quais, partido por sua vez, o homem caminha no tempo. A “luta corporal” se promove como o afã, frustrado e ressentido, de conciliar na impossível simultaneidade os tempos em que o tempo nos divide; afã de encenar o valor lírico, intimamente gestado, no palco mundano que o rejeita; de buscar na linguagem poética a síntese imediata das percepções fragmentárias que lhe resistem. Perdida a magia órfica, o poeta moderno responde com a consciência da perda: “Estás sozinho, homem, sem gnomo! que o resto é céu recurvo e indiferença. […]

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Estás só. Nada te esquece que águas e nuvens passam. E a esse som, teu coração – fruto último – emurchece.” (“A fera diurna”) Entre a nostalgia do mito, a metafísica e a observação existencial da ação do tempo, Gullar, com seus símbolos crispados, vai dando corpo a essa luta de vida e morte a que todos os seres se submetem. Ele vê, nas peras sobre o prato, o “fulgor de estarem prontas para nada”, consumindo-se as frutas “no seu doirado / sossego”: “o dia das peras / é o seu apodrecimento”. O que provoca o poeta não será tanto o indefectível morrer, mas o brilho absurdo da vida enquanto não apodrece. As belas palavras da poesia que o jovem poeta moderno se vê apto a produzir surgem como vestígios inúteis de uma natureza perdida: o lugar da intimidade lírica confinou-se, como se sabe, ao espaço do sonho privativo que não interessa às multidões que se apressam nas avenidas. Os poemas tornam-se, como os classifica Gullar em seções do livro, tanto um “programa de homicídio” como “revelações espúrias”. Dão-se como notícia desse irônico desencontro entre a imagem sublime, apenas roçada pelo desejo, e seu revelar-se como imperfeição e inutilidade dentro do tempo que passa, mata e continua a passar. A qualidade da “luta corporal” apura-se como ressentida reação contra o silêncio e a morte. Reação contra o silêncio: todas as palavras são convocadas, todos os recursos e estilos ao alcance do poeta são acionados para expressar – em feição clássica ou dissonante, com secreta doçura ou humor negro, com lucidez ou nonsense – aquela “desesperada nostalgia de ordem” que Camus detecta na “poesia revoltada” (ordem liricamente alcançada por Bandeira, tensamente construída por João Cabral, dramaticamente recusada por Drummond)1. Reação contra a morte: numa espécie de inquisição do belo que nada pode contra o tempo, o poeta antecipa-se à destruição e, numa progressão escatológica, vai revolvendo os conteúdos negativos que se ocultam sob o aspecto iluminado das coisas: “construo, com os ossos do mundo, uma armadilha; aprenderás, aqui, que o brilho é vil; aprenderás a mastigar o teu coração, tu mesmo”. O “programa de homicídio” figura-se, enfim, na conseqüência do suicídio: “O que somos não nos ama: quer apenas morrer ferozmente.” As imagens da iluminação e as do escuro constituem, pois, um campo simbólico geral da luta que se trava entre o impulso lírico e a consciência de sua

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impossibilidade, tudo desembocando na ironia mortal que conduz à pulverização do discurso. O antagonista maior, quase absoluto, é o Tempo, menos histórico que fenomênico, ação material da natureza sedutora mas ilusória, fátua e fatal2. A tarefa dessa poesia está em perfurar a superfície enganosa para encontrar, no cerne de cada coisa ou ser, o que lhe é essencial: “um contínuo negarse”. Assim, o azul do céu é “mais que azul”: “ele é o nosso sucessivo morrer”. O poeta moderno, ainda quando muito jovem, constrói seu tempo pessoal iniciando pelas demolições. A luta é do corpo, na idade perplexa e interrogativa, mas a consciência quer alargar-se rumo aos ideais extremados. Nessa base conflitiva e radical, a intuição dialética dá à poesia o movimento agônico da linguagem que só apresenta um afeto para lhe denunciar o absurdo. Mas certamente nos comprazemos – nós, leitores – com a outra face dessa moeda: o absurdo é explorado afetivamente, e a presença do que é sensível se impõe por último. A agressiva sensibilidade de Gullar em A luta corporal atravessa as imagens da vida e subentende as condições da existência como cintilações precárias; mas o leitor também pode encontrar nessas cintilações – as imagens do fogo, do canto do galo, do esplendor das peras, do pêndulo do relógio, das rosas e estrelas, do girassol assombrado – a poesia mesma, enquanto antagonismo da morte. Na fala poética, a carga negativa dos conceitos não abole o poder de afirmação das imagens. As sete seções do livro compõem, em formas tão variadas, uma crescente recusa que desemboca em impasse: no poema “Machado”, por exemplo, o poeta assina-se “Gullar gullarragfitunb girjwmxy”, levando ao extremo a declaração de “O inferno”: “minha linguagem é a representação/ duma discórdia/ entre o que quero e a resistência do corpo”. Extremo dos últimos versos do livro: URR VERÕENS ÔR TÚFUNS LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS O primeiro round da luta poética de Gullar revelou um artista que, sem fugir ao mais radical autocentramento lírico, não se confinou na autocomplacência. O idealismo de juventude converteu-se rapidamente nos sím-

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bolos negativos que afrontam a aparência e a ordem do mundo, a estabilidade e as garantias da linguagem. Foi o primeiro passo de uma dialética que terá muitos momentos; na base desta, estará sempre a convicção de que a aparição das coisas não corresponde nunca à sua mais profunda revelação. Tal convicção, atuante no plano existencial ou metafísico dos poemas de A luta corporal, animará outras investidas poéticas, em outros planos e outros contextos. É o que me anima a reconhecer o sentido de um roteiro, pelo qual vejo esta poesia caminhar. III. Os poemas seguintes, escritos entre 1954 e 1960, foram depois agrupados sob o título de O vil metal. Uma pergunta salta imediatamente: que poesia terá o poeta encontrado para continuar o que parecia ter-se encerrado no impasse do livro anterior? Que matéria e que modos de expressão se sustentarão diante do tempo que o sujeito apreende como degradação dos seres e da linguagem mesma? Nesse novo livro, o sentimento do tempo corrosivo foi algo aplacado por meio de uma maior espacialização e sensualização do mundo e das imagens. Em O vil metal relativizam-se o sarcasmo e a escatologia que davam o tom a seções inteiras do livro anterior: o regime poético é agora de mais intensa visualização, com menor espaço para a especulação conceitual. Continuam, porém, as recorrências de um imaginário composto por “luz”, “flamas”, “facho”, “incêndio”, “archote”, “fogo”, “sol”, “clarão”, “auréola”, “íris” etc., persistindo, pois, o leitmotiv do brilho fátuo, nosso conhecido, agora integrando uma composição mais plástica dos elementos. Veja-se o poema “Frutas”: Sobre a mesa de domingo (o mar atrás) duas maçãs e oito bananas num prato de louça São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela com pintas de verde selvagem: uma fogueira sólida acesa no centro do dia. O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas: chamas, as chamas do que está pronto e alimenta.

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Os cinco primeiros versos oferecem-nos a visão descritiva das frutas; os cinco restantes elaboram liricamente o material apresentado. Duas naturezas se oferecem, em dois tempos destacados: a reconhecida pelos olhos (com formas, cores, planos, perspectiva) e a trabalhada pelas impressões (por meio de metáforas, sinestesias e paradoxos). Uma “natureza morta”, picturalmente imobilizada, torna-se convulsa e sugestiva em outra que a traduz. Como pano de fundo à apresentação das frutas atua, no entanto, “o mar atrás”, signo da inquietação do que está “atrás” não como cenário, mas como perturbadora infinitude. Os elementos plásticos da primeira cena temporalizam-se no segundo momento: a “mesa no domingo” torna-se “o centro do dia”. A “faixa amarela” desdobra-se em “fogueira sólida” e contrasta com o insólito “fogo escuro”, “que não cabe hoje nas frutas”. Por que não cabe? Porque as frutas estão no auge do viço (maçãs vermelhas, bananas amarelas), e a ameaça mortal do “escuro” diz respeito ao fogo destrutivo, que ainda não surgiu. Os olhos do poeta, diversamente do que ocorrera em “As peras”, do livro anterior, pararam desta vez na vitalidade da fogueira, apenas deixando entrever, como um “mar atrás”, a ameaça do “fogo escuro”. Gullar encontra nas imagens do fogo e da luz a concreção poética capaz de figurar a íntima ambivalência do que queima e do que ilumina. Bachelard: “O fogo é íntimo e universal. Vive no nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e oferece-se como o amor. Volta a tornar-se matéria e ocultase, latente, contido, como o ódio e a vingança. Entre todos os fenômenos, é ele realmente o único que pode aceitar as duas valorações opostas: o bem e o mal. Brilha no Paraíso. Arde no Inferno. É doçura e tortura. É cozinha e apocalipse. […] Pode contradizer-se: é portanto um dos princípios de explicação universal.” 3. Em O vil metal, o corpo não se identifica sempre com a fenomenologia da destruição, também a observa e a traduz plasticamente. Gullar impõe-se agora maior mediação entre a reação vital e a forma artística, entre o momento do impulso e o momento da formalização. João Luiz Lafetá viu neste segundo livro um “maior amadurecimento, com maior controle da linguagem, e com a mesma visão amarga, temperada agora com a espécie de calma que têm os grandes artesãos.”4. De fato, com exceção de três ou quatro poemas, que ainda ressoam ecos do primeiro livro, os textos de O vil metal não querem figurar com o próprio corpo da linguagem a perversão destrutiva do tempo. Pode-se também pensar que aqui se reduziu boa parcela da busca dramática dos poemas de estréia. À

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maior maturidade do artista corresponderá certo recuo daquele sujeito febril, poeticamente mais vivaz. De fato, o poema pode fornecer agora um ângulo de observação que afeta neutralidade, como em “Ocorrência”, ou combinar o anedótico e o grotesco, como em “Um homem ri”. O “melhor estilo moderno” entra como irônica rubrica para o “Poema de adeus ao falado 56”, e uma enxuta nota lírica homenageia “Oswald morto”. A sensação é a de que Gullar está, de fato, compondo mais organicamente os elementos dramáticos de sua poesia. Com crescente lucidez, essa poesia continua a rejeitar o aspecto ilusório (“o vil metal ”) da unidade do mundo; ao mesmo tempo, não alimenta a ingenuidade (por vezes fundamental, para a lírica) de se imaginar em si e por si inteiramente reveladora. A pesquisa pessoal de Gullar não ignora o peso da convenção literária, da tradição moderna dos códigos poéticos, da metalinguagem mais refinada. Sua luta vai-se deslocando do corpo para a palavra, do mundo plural para as coisas singularizadas, do discurso perplexo para os signos concentrados. Em “Vida”, Gullar quer retirar as palavras de seu curso temporal, fixá-las na página, reduzi-las a átomos essenciais de significação: os substantivos “corpo”, “fogo”, “gullar”, “facho”, “lepra”, “vertigem”, “cona”, “câncer”, “vento” e “laranjal” graficamente constroem um eixo vertical que atravessa os enunciados discursivos, como a totalizá-los no mínimo e no essencial. Note-se, porém: essa cadeia de substantivos preserva a já familiar polarização entre os elementos que fulguram e os que destroem, entre a luz e o avesso das coisas. Fogo e câncer, facho e lepra: é ainda o “corpo esmerilado do tempo” que essa palavra poética quer denunciar e fixar. O mundo surge como fonte impura dos múltiplos tumultos que assaltam o sujeito poético; a vingança deste está em processá-los no interior da consciência irônica – consciência de fato idealizante, em sua busca de um metal verdadeiro. IV. Quantos dos objetos da arte moderna são criados visando à estabilização de uma linguagem? E que parcela significativa das experiências apresentadas como radicais não se deve sobretudo à nostalgia de algum velho cânone? Essas perguntas podem ocorrer quando, em seu caminho poético, Gullar faz confluir o que havia de mais gestual e negativo nas experiências de A luta corporal com o caráter abstrato e positivo da poesia concreta. Num depoimento de Cultura posta em questão, Gullar faria ver que seu interesse não era, ao tempo das experiências concretistas, assentar princípios de uma nova poética, mas continuar perseguindo a palavra que, desde os poemas de A luta corporal, aparecia-lhe como “um ser ambíguo com um

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extremo mergulhado no homem e outro preso aos objetos cotidianos”5. Dois extremos: como relacioná-los? Em carta a Augusto de Campos, a questão surgia assim enunciada: “Creio ser a Sintaxe, que é o elemento principal da linguagem discursiva, o ponto crucial, o problema fundamental da nova poesia”. Aqui, “Sintaxe” é também a relação entre o ser e as coisas, além da relação entre palavras. O “ponto crucial” estaria na subordinação do tempo ao espaço, na rarefação da cadeia predicativa e da articulação mais definida de algum valor. Ao poeta pareceu tentadora essa possibilidade de elidir os tumultos interiores, as contradições vitais e o sentimento de morte num eufórico simulacro de auto-ordenação. O ganho era, por assim dizer, alquímico, representando-se como operação positiva e sofisticada a regressão da linguagem à pré-história de suas articulações:

mel

laranja

lâmina

mel sol

lâmina

laranja mel sol

laranja

lâmina

sol

O arranjo é engenhoso e pode ilustrar muitas páginas ou horas de exegese discursiva igualmente engenhosa, mas seu horizonte não correspondeu por muito tempo aos anseios mais obsessivos de Gullar, preocupado, já agora numa perspectiva “neoconcreta”, com “a compreensão da forma como duração, o que implicava a interiorização dos ritmos visuais”6. As emergências do tempo continuavam a provocar, no interior do poeta, a luta fundamental pelo reconhecimento e fixação do momento afetivo na corrente vertiginosa da vida. Persistia a

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investigação do “nosso sucessivo morrer”, contra-senso da matéria iluminada pelo mesmo fogo que a consome; persistia o desafio de reconhecer na cadeia temporal um nexo de valores a que o homem pudesse imprimir a qualidade de sua interferência. Tal possibilidade inscreve-se, obviamente, no plano temporal em que o ser humano tem poder efetivo: no da criação dos fatos. A fala poética de Gullar passaria pelo movimento fundamental de reconstituir seus impulsos e suas imagens básicas num mergulho sem volta no cotidiano e na História. VI. “[…] eu entendi que o impasse da minha poesia se devia menos a problemas realmente estéticos que ao meu desligamento da minha própria realidade cultural e social” 7. Com estas palavras avalia Gullar uma conseqüência imediata de sua adesão ao pensamento marxista. Nascia um militante socialista, e ocorreriam reviravoltas em sua vida e em seus poemas. Cabe aqui avaliar estas últimas – que se fizeram sentir, de imediato, com o engajamento de formas de linguagem em projetos políticos tão definidos quanto permitia o complexo quadro político-social do início dos anos 60. É minha hipótese que, nesses anos, a poesia de Gullar tanto se adensava quanto se enfraquecia. De um lado, a representação do tempo incluiu decididamente uma dinâmica histórica, praticamente abolindo o penoso fatalismo que levava ao impasse estético e existencial; de outro, o sentimento político priorizava as ações e balizava a produção cultural por critérios didáticos e funcionalistas. Com este espírito nasceram os Romances de cordel – quatro poemas narrativos, cujos protagonistas são um lavrador paraibano, uma favelada carioca, um cantador cearense e o camponês e militante pernambucano Gregório Bezerra. São personagens populares, apresentadas em versos de sete sílabas rimados, com a inflexão de oralidade tomada de empréstimo àquele gênero nordestino; as narrativas, esquemáticas, recortam um quadro de exploração social, denunciam-na e prescrevem a saída política. O lavrador João BoaMorte, por exemplo, ilustra “um caso que sucedeu / na Paraíba do Norte”, caso exemplar, com encaminhamento exemplar: “Que é entrando para as Ligas que ele derrota o patrão, que o caminho da vitória está na Revolução.”

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O resultado poético é evidentemente frágil: a condição problemática do camponês real simplificava-se na forma tosca que, por sua vez, debilitava o pretendido efeito político. No entanto, viriam a multiplicar-se pelo país inúmeras encenações, por grupos amadores emocionados, do auto Morte e vida severina, de João Cabral, em que a forma trabalhadíssima do poeta pernambucano realizava o trágico em sua densidade cultural e histórica. O alinhamento da arte participante, promovido por partidos políticos ou movimentos como os dos CPCs, é problemático em si – o que foi logo reconhecido pelo próprio Gullar. Nem por isso deixou ele de seguir buscando em cada poema a expressão das tensões fundamentais – as suas, as da poesia contemporânea, as do país subjugado, as do mundo dividido. VII. Essa busca, com grande variação de tons e admitindo apreciações muito distintas, marca os poemas de Dentro da noite veloz, de 1975 (acrescidos de seis novos, na edição de Toda poesia, em 1980). Pode-se distinguir no livro uma alternância básica: em textos como “A poesia”, “Meu povo, meu poema”, “Poema brasileiro”, “Não há vagas”, “Agosto 1964” e tantos outros predomina o tom declaratório, que explicita uma atitude, um conceito, um compromisso; em outros poemas, como “Pela rua”, “Memória”, “Vendo a noite” e o admirável “Uma fotografia aérea”, ritmos e imagens dão voz a compulsões entranhadamente líricas, detonadas pela memória, pelo desejo amoroso, pela comoção de um instante. Ilustremos essa alternância. Nos versos “a noite ocidental obscenamente acesa / sobre meu país dividido em classes” (“Madrugada”), a imagem da “noite” amarra-se tão determinantemente a “ocidental” e a “meu país dividido em classes” que já surge curvada ao peso dos taxativos conceitos, qual um ralo emblema alegórico; assim também, nos versos “Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja caro / e a liberdade pequena”, a afirmação da vida se dá num tão prosaico limite de expressão que o leitor pode concluir que, desse jeito, a poesia não vale a pena – julgamento que, aliás, parte claro e irrecorrível do próprio poeta: “O poema, senhores, não fede nem cheira” (declaração amplamente contestada por tantos outros momentos em que Gullar traz até nós o perfume das tangerinas, as emanações de sua São Luís, o “abismo dos cheiros / que se desatam na / minha carne na tua, cidade / que me envenenas de ti.” (Poema sujo ).

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Já num poema como “Uma fotografia aérea”, de 1968 (nascido quando Gullar se deparou, numa redação de revista, com uma foto panorâmica da sua São Luís tirada havia então 30 anos), a perspectiva poética é complexa e integradora: a foto converte-se vertiginosamente no passado (“aquela tarde”) simultâneo ao presente (“meu rosto agora / sobrevoa”); o espaço geográfico da cidade, ao mesmo tempo aberto (“palmeiras”, “mangues”, “rios”) e concentrado (“meu quarto”, “família na varanda”), invade a sala de redação; o papel fotográfico é sobrevoado pelos mesmos olhos que passam a sobrevoar a página do poema, na qual a imagem da cidade ganhou a força da interioridade poética. Criatura, criador e criação cruzam seus tempos e modos próprios de ser, num instante de magia: Gullar não perde a identidade de nenhuma das forças em jogo. A dialética interna do poema se dá como luta entre a memória pulsante, desdobrável, e a visão sincronizadora do presente. A imanência da matéria recordada – matéria viva, detalhada, veloz, desentranhada, íntima e plural – alimenta os procedimentos de construção do poema. Já existe, aqui, aquela combinação entre o sentimento de distância e exílio e o de recuperação e proximidade, jogo do qual o Poema sujo saberia extrair o máximo de sua força poética. Em outro poema – “A vida bate” – a perspectiva aérea e a perspectiva próxima surgem assim: “A cidade. Vista do alto ela é fabril e imaginária, se entrega inteira como se estivesse pronta. Vista do alto com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém. Mas vista de perto, revela o seu túrbido presente, sua carnadura de pânico: as pessoas que vão e vêm, que entram e saem, que passam sem rir, sem falar, entre apitos e gases […]”

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Há aqui duas perspectivas e duas implicações simbólicas: na primeira, o sujeito sente dominar o objeto; na segunda, vê-se envolvido por ele. Gullar quer garantir a consciência (político-poética) do conjunto e a sensação do particular; para tal, adota o ponto de vista da velocidade, que revela um e outro, que sobe e desce, que se cola ao imanente para, em seguida, buscar transcendêlo. Não é um ponto de vista confortável: vive, precisamente, da inquietude de quem não se fixa nem fora do objeto (para poder formalizá-lo com serena estabilidade) nem dentro dele (para poder se confundir com seu íntimo conteúdo). A preocupação com essa dialética acaba por se tornar, mais que procedimento, um verdadeiro tema da poesia de Gullar. Atualiza-se, desse modo, a antiga obsessão de A luta corporal, luta em que o poeta opunha, sem síntese possível, as qualidades do que era o externo e do que era o interno, na revelação de cada fenômeno. Nascia daquela oposição o contraste entre o aspecto sedutor dos objetos da vida e seu essencial conteúdo de morte, tempo vil em que o brilho de tudo apodrecia e se apagava. Em Dentro da noite veloz, os melhores momentos realizam os reclamos da mais viva pulsão interior no momento mesmo em que ganham uma forma objetiva – forças aparentemente incompatíveis entre si, mas cuja “natureza fluida”, na bela formulação hegeliana, “as torna ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra; e é essa igual necessidade que unicamente constitui a vida do todo”8. VIII. Unidade orgânica e complexa é a que preserva o Poema sujo (1976), com seus quase dois mil versos, escrito no exílio, em Buenos Aires, sob o impulso da mais premente necessidade vital: a de se (re)constituir a própria identidade profunda, num fluxo de memórias e reflexões que bem poderia espelhar o que Alfredo Bosi designa como “alucinação lúcida”9. Misto de catarse e poética auto-refletida, o Poema sujo orquestra, em largo fôlego, quadros e sensações da infância e da adolescência vividas em São Luís do Maranhão – a outra personagem do poema. A costurarem esses quadros e sensações, as matrizes poéticas já conhecidas: a sensação vertiginosa do tempo, as imagens do fogo, da luz, do apodrecimento, o diálogo tenso entre a matéria sensível e a consciência avaliadora. Tudo se aplica agora numa incansável e bem lograda tentativa de tecer os fios que unem o retrato do indivíduo ao retrato social. O menino reavivado é inseparável de sua casa, de

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sua família, de seus vizinhos, que são inseparáveis de seus ofícios e lugares, que são inseparáveis da cidade em que se inscrevem – e tudo é inseparável da visão madura do presente. O poema parte da resistência inicial da matéria expressiva – “turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro / menos menos / menos que escuro” – resistência que, já nos poemas de A luta corporal, expressava-se em versos como “muros soturnos / paredes de solidão / sufocam minha canção” (poema “3”), ou “olhava o muro, / aceitava-o, negro e absurdo” (“A galinha”). Mas agora a matéria é rapidamente vencida pelo mais violento desentranhamento de suas luzes ocultas, que acodem como numa erupção dolorida e extasiada. Garantia-se, com esse modo de nascer, um incontido tecer de ritmos e imagens, num processo de múltiplas epifanias. O leitor mergulhará, com o poeta, num sistema sincronizador de cenas iluminadas, de casos narrados, de percepções revividas, tudo a tornar substancial e orgânico o tempo do passado – tempo que já não é o da morte implicada nas coisas vivas, mas o da vida explosiva que se liberta das coisas aparentemente já mortas. Esse fôlego súbito e libertário, vindo da necessidade tão pessoal do exilado brasileiro, não deixou de representar para quem leu o poema naqueles anos opressivos uma espécie de respiração social, um desentranhamento simbólico de tantas histórias sufocadas. E por que sujo? A matéria compósita da memória, trazida em bruto, não tem, de fato, a feição das coisas límpidas, como não pode ser asséptica a linguagem animada pelas imagens e pelos ritmos mais emergentes. Se havia, em sentido material, a sujeira da lama podre dos mangues, das palafitas, da carniça do Matadouro, das bananas em decomposição na quitanda, das águas pútridas do rio Anil; se havia a sujeira moral das gavetas secretas da família e da sexualidade ressentida – haveria, para representar tudo, a necessidade de um estilo “impuro”, imerso na vida, sujo como a vida. No entanto, não se trata de vomitar palavras ao modo das páginas surrealistas dos anos 50; há, no Poema sujo, princípios básicos que organizam o torvelinho da memória. Ocorre um desdobramento do sujeito: há aquele que se cola à imanência dos fatos lembrados e há aquele que, instalado no presente da elaboração poética, interpreta esses fatos. O efeito na leitura é o de ir e vir do sensorial ao reflexivo, do vivo afeto à sua compreensão. Vencendo a antiga dicotomia de luz

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ou sombra, fogo ou escuro, Gullar agora considera que “uma coisa está em outra”: forma dialética de encarar o sujo da composição das diferenças e interpretá-lo como manifestação vital. Assim, há muitos tempos num tempo, muitos ritmos nos fenômenos, e “cada coisa está em outra / de sua própria maneira”. Daí emerge um generoso imaginário que trata sobretudo do que está incluso, do que se move dentro, do que se encerra vivo na história pessoal e na história de todos. O “turvo” e o “claro” se esclarecem mutuamente; provida de tal recurso, a memória poética se faz pura revelação do “sujo” e de si mesma. Quando “uma coisa está em outra”, nenhuma se pertence completamente, nem é possível se ver a si mesma senão como parte – o que não deixa de ser um anseio pela totalidade. Quando o homem considera seu tempo de menino no conjunto maior de outros tempos e seres, ultrapassa o autismo da mitologia infantil para assumir a condição mais sofrida de uma consciência concreta. Mas não apenas sofrida: com essa consciência, a poesia também pode formalizar-se e determinar-se, “para que não se extinga / o fogo / na cozinha da casa”. Não estará nesses versos a resposta àquela questão inicial do Poema sujo: “Que importa um nome”? IX. Em Na vertigem do dia (1980) e Barulhos (1987), os “barulhos da rua” e o “universo das coisas silenciosas” seguem a particularizar o diálogo fundamental da poesia de Gullar – diálogo que talvez constitua a mais ampla questão da poesia moderna. No primeiro livro destaca-se um poema que pode ser visto como uma verdadeira suma poética da trajetória gullariana: Traduzir-se Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão; outra parte estranheza e solidão.

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Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte? O sujeito poético apresenta-se como um eu dividido em duas partes, ambas referidas na terceira pessoa, e opostas entre si. A oposição percorre o poema todo, e seu critério básico é um leitmotiv do poeta: é o diálogo (tantas vezes representado num confronto de luz e sombra, de fogo e escuro) entre o que se expõe e o que se oculta. Nas cinco estrofes iniciais, “uma parte” se traduz a si mesma em “todo mundo”, “multidão”, “pesa, pondera”, “almoça e janta”, “permanente”, e a “outra parte” em “ninguém”, “estranheza e solidão”, “se espanta”, “se sabe de repente”, marcando simetricamente o contraste entre o lado aparente

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e o secreto, o coletivo e o pessoal, o rotineiro e o enigmático, o controlado e o convulsionado. Mas a sexta estrofe reverte a simetria, atribuindo a “uma parte” a qualidade da vertigem e à “outra parte” a qualidade da linguagem. A reversão mostra que a constituição íntima de cada parte não apenas se opõe à outra como também pode se opor à sua própria natureza, atualizando a oposição em outra base: no lado exterior e público também está o convulso, tanto quanto pode a caótica interioridade ordenar-se numa linguagem. O simples contraste binário torna-se uma tradução complexa e dialética, na qual já nenhuma das partes se estabiliza. Luz e sombra, exterioridade e interioridade, presença histórica e desvão psicológico não são atribuições permanentes; permanente é o movimento vital de que decorrem suas íntimas conversões. Não há dúvida de que a forma mesma do poema (simétrica, dialógica, estruturada) sugere a ordem clássica e o equilíbrio, elevando-se acima das tensões para formular a questão que conta, “questão de vida ou morte”: “Traduzir uma parte / na outra parte […]/ será arte?” Mas também não há dúvida de que essa mesma linguagem ordenadora pode converter-se, num momento seguinte, em confissão tumultuada, em nova vertigem. Tal movimento estilístico já o vimos representado de forma exemplar no Poema sujo, e é princípio ativo da melhor poesia de Gullar. Ainda em Na vertigem do dia, textos como “Arte poética”, “Subversiva” e “Poema obsceno” traduzem, num regime algo declaratório, a expressa inquietação do poeta diante de sua arte e de sua função mais atuante; já poemas como “Bananas podres”, “O espelho do guarda-roupa” e “A ventania” traduzem-se como experiências poéticas, fundadas no instante de uma revelação, vivenciadas em súbitas epifanias. Não é provável que um mesmo leitor aprecie com a mesma intensidade ambos os modos poéticos: é quase forçoso que nos identifiquemos com uma compreensão da poesia que abone, fundamentalmente, ou a perspectiva comprometida com a avaliação e os conceitos, ou a perspectiva das imagens produzidas enquanto percepções líricas. Em qualquer dos casos, a preferência não pode ignorar a condição dramática e geral da poesia de Gullar, que vive, desde A luta corporal, de buscar traduzir ambas as verdades. X. Barulhos é o mais recente livro do poeta. Prosseguem as atitudes, os temas, as imagens e os ritmos fundamentais: um poema como “O cheiro da tangerina”, por exemplo, remarca o caminho do sensorialismo das frutas, da instantaneidade das percepções, do simultaneísmo dos fenômenos; um poema

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como “Meu povo, meu abismo” confirma um modo poético e convicções políticas assumidos desde Dentro da noite veloz. Mas há uma sombra maior, que ganha espaço e dialoga com os tantos barulhos do dia vertiginoso. É a sombra da morte, presente agora não como avesso do brilho vil do metal ou traição do Tempo metafísico, mas identificada em cada um dos muitos amigos mortos – Vinícius de Moraes, Hélio Pellegrino, Clarice Lispector, Mário Pedrosa, Armando Costa, Vianinha – todos motivando o pungente ubi sunt ? do poeta que começa a se sentir abandonado enquanto adivinha, por sua vez, as feições da morte própria: “Eu deixarei o mundo com fúria. Não importa o que realmente aconteça, se docemente me retiro.” (“Despedida”) “De terra te quero; poema, e no entanto iluminado. […] De terra, onde para sempre se apagará a forma desta mão por ora ardente.” (“Poema poroso”) Quem teve a paciência de acompanhar este ensaio terá talvez presentes as primeiras afirmações, referidas à coerência poética (não confundir com coerências mais fáceis) de uma longa trajetória; e verá que as imagens da iluminação e do ardor continuam a combinar-se com as sensações mais sombrias, numa obsessiva dinâmica lírica que se quer encarnar como viva imagem da História, sobretudo da brasileira. Os mortos saudados por Gullar constituíram, também eles, essa História recente, ao lado dos anônimos de sempre. Sua perda, para o poeta, traduz-se como vazio afetivo, como condenação silenciosa, e repõe a questão irrespondível:

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“Mas quem morre? Quem diz ao teu corpo – morre – quem diz a ele – envelhece – se não o desejas, se queres continuar vivo e jovem por infinitas manhãs?” (“Teu corpo”) A questão não se responde, mas se pronuncia, avesso do silêncio. “Que importa um nome?” Precária sempre, alguma resposta ao menos se insinua – como a do Electra II, cuja visão espantou o poeta dentro do seu carro, surgindo de súbito “no céu / da rua Paula Matos / aquele dia por volta / das dez da manhã”, “como se me buscasse / pela cidade”. Nascido desse espanto, o poema “O Electra II”10 chega ao leitor e o faz também testemunhar a mágica aparição. É assim que vemos desmentir-se a afirmação do poeta em relação à poesia, cujo estampido “por alto demais / não pode ser ouvido”. Paulista de Atibaia, o poeta Alcides Villaça é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, onde leciona. Publicou O tempo e outros remorsos (São Paulo, Ática, 1975) e Viagem de trem (São Paulo, Duas Cidades, 1988), volumes de poesia. NOTAS 1 V. “A poesia revoltada”. In: O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro, Record, 1996. 2 Desenvolvo esta hipótese em A poesia de Ferreira Gullar. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 1984. V. também o ensaio de Leonardo Martinelli: “Ferreira Gullar e o tempo do poema”, em Inimigo rumor - Revista de poesia. Rio de Janeiro, set.-dez. 1997. 3 A psicanálise do fogo. Lisboa, Estúdios Cor, 1972, pp. 21-22. 4 “Traduzir-se” – Ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar. In: ZILIO, Carlos, LAFETÁ, João Luiz e LEITE, Lygia Chiapinni Moraes. O nacional e o popular na cultura brasileira – Artes plásticas e literatura. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 87. 5 Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 123. 6 V. NAVAS-TORÍBIO, Luzia – Gullar’s PRE concretismo NEO. São Luís, Polikron, 1991, pp. 97-98. 7 V. PEREIRA, Carlos Alberto M. e HOLLANDA, Heloísa Buarque de – Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. São Paulo, Brasiliense, 1980. 8 “Fenomenologia do espírito”. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Coleção “Os pensadores”, v. XXX. São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 12. 9 “O encontro dos tempos”. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, 1977, p. 120. 10 Ver este e outros poemas recentes em Inimigo rumor – Revista de poesia, cit. em 2.

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Gullar, crítico de artes plásticas Wilson Coutinho

“Artistas, ah os artistas!”

É raro para um crítico de arte estar no tempo e no lugar certo, curvando-se diante do nascimento de uma obra radical. É algo que não se pode predeterminar, não se escolhe – ocorreu poucas vezes na história da arte. Este crítico tão radical quanto o movimento ao qual aderiu é prezado, posteriormente, por ter revelado um olho em estado de previsão. Foi assim com Baudelaire e Manet, Apollinaire e os cubistas, André Breton e os surrealistas e, nos Estados Unidos – em meados dos anos 40 – com Clement Greenberg e o expressionismo abstrato americano. Esta chance teve no Brasil o poeta Ferreira Gullar, desenvolvendo junto ao movimento neoconcreto uma tríplice tarefa: ser o estimulador, o artista e o escritor. Como incentivador da nova estética, esteve no centro do rodamoinho; redigiu o Manifesto Neoconcreto e depois a Teoria do nãoobjeto; como artista é autor dos “poemas-objeto”, peças horizontais feitas de madeira que tinham sobre elas formas geométricas (cubos, por exemplo), também em madeira, sob as quais estava escrito uma palavra. Tais formas eram removíveis pelo espectador, “fazendo o poema”, diz Gullar em Vanguarda e subdesenvolvimento 1. Outra experiência radical, o Poema enterrado, tratava-se, nas palavras do poeta, “de uma sala cúbica (era na casa da família de Hélio Oiticica), construída no subsolo, onde o leitor penetrava por uma escada e lá dentro movia uma série de cubos, sob os quais estava escondida a palavra”2. Além desses trabalhos associados ao espectador, outros artistas moveram-se na mesma direção com a criação, por exemplo, dos “Bichos”, de Lygia Clark – estruturas metálicas, que podiam ser movidas por meio de dobradiças,

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liberando o espectador para criar as suas próprias peças – e dos “Parangolés”, de Hélio Oiticica, uma série de vestes coloridas que só ganhavam dimensão estética quando usadas por bailarinos (como os passistas da escola de samba Mangueira, que colaboraram com o artista). Tais experiências, Gullar associa ao inacabado Le livre, de Mallarmé, obra na qual o leitor poderia constituir constelações de leituras. Ou seja, Gullar retoma uma figura da vanguarda simbolista e acompanha sua sombra, que chegou até a sua obra. Antes disso, Ferreira Gullar escrevera um dos mais radicais livros de poemas verbais de sua geração A luta corporal, publicado em 1954. A luta corporal é um espetáculo da linguagem, maior até que os poemas concretos, pois eles afinal são aplicáveis. A luta corporal é febre subjetiva. Daí ter se falado, de maneira bem crítica, de um certo rimbaudianismo de sua experiência e para aumentar o paralelismo, a sua África seria a sua deserção da poesia em prol da política de esquerda. De qualquer forma, para fazer parte da coluna da vanguarda, bastava Gullar ter publicado apenas este livro. É uma máquina de destruição da sintaxe que vai desde o “Roçzeiral”, com sua batalha final pelo sentido Au sôflu i luz ta pompa inova’ orbita FUROR tô bicho ‘scuro fogo Rra3 até a perda total da apreensão mundana pela linguagem, mantida no monólito indizível de URR VERÕENS ÔR TÚFUNS LERR DESVÉSLEZ VÁRZENS4

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É verdade que quando o jovem Gullar foi morar no Rio, em 1951, ao menos do ponto de vista cultural, a cidade estava mudando. Paris do pós-guerra, em seu melhor momento, tinha se decidido por uma arte cinética, ótica, com algumas obras jactando-se de estarem unidas à ciência e à tecnologia. De certa maneira, o elo dos nossos primeiros modernistas, Di Cavalcanti, Tarsila e outros, rompera-se com Saint-Germain, embora os artistas do primeiro modernismo não tivessem bebido do verdadeiro cubismo, servido com qualidade até o começo da Primeira Guerra. Embora recrutando artistas ou veteranos como Giacometti, que ainda roçavam pelas mesas de La Rotonde, faltava à cidade algum tipo de elã que a lançasse, de novo, no topo do mundo. Cobrando cinco mil dólares por tela, um jovem americano chamado Jackson Pollock era, no final dos anos 40, o furor da nova galeria nova-iorquina dirigida por Peggy Guggenheim. No Brasil, uma explosão ocorreu quando começaram as primeiras Bienais. Curioso, ainda, que uma escultura, Unidade tripartida, do suíço Max Bill, tenha feito a cabeça dos artistas brasileiros mais bem preparados da época. As motivações foram inúmeras, mas uma idéia de ordem, precisão e objetividade, elementos que serviriam para preservar ou ocultar a subjetividade do artista, deve ter sido a principal razão. Essa “neutralidade” de uma Suíça inversa fez com que a arte brasileira desse um salto imprevisível. De início, devastando todos os mitos oriundos do nosso primeiro modernismo: o nacional, a cor local, a figura etc. As informações também chegavam como postos de fogueira avançados, iluminando trilhas que nunca suspeitávamos que existissem. É curioso observar, no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, a quantidade de textos sobre o plasticismo, Mondrian, Malevicht – como se Picasso fosse apenas um ídolo oco, cheio de cinzas. Se a palavra não se adequasse a tantos equívocos, era o caso de dizer que começávamos uma nova adaptação à modernidade. Aliás, Mário Pedrosa avaliava a situação com um slogan sintomático: “O Brasil está condenado ao moderno”. Na mesma ocasião, o crítico americano Harold Rosenberg estendia a imagem para todo o planeta, dizendo que o mundo estava condenado à modernidade5. Ou seja, isto significava que no mais remoto rincão do território africano havia alguém usando um artefato da era industrial. E quando estourou a revolução conservadora no Irã, a fita cassete era mais valiosa que pólvora e baionetas. Rosenberg não era só um harpista do moderno.

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É absurdo discutir aqui o conteúdo desta “condenação”, mas há coisas que não funcionam como desejamos, de tal forma, que os humoristas resolveram grafar a palavra como “muderno”, entoada com um sotaque do Nordeste. Gullar, no início das polêmicas com os concretos, percebeu também que faltava alguma coisa. Segundo ele, chamaram-no para participar de um manifesto, no qual as obras viriam posteriormente. Depois, o desenvolvimento de uma escultura, como a de Max Bill, requeria um estágio tecnológico e uma outra sociedade que não se encontravam no Brasil. Daí vem o fato de que escultura concreta brasileira é sempre mambembe, falta a ela alta qualidade técnica. Ainda por cima, começou a brotar a possibilidade das obras serem produtos da matemática. Com dois telefonemas e um régua de cálculo, o mundo se ajustava, sem mais um tremor, uma fissura, uma ousadia. É possível que, por estar embebido pelas teorias fenomenológicas de Merleau-Ponty, Gullar se recusou a ver o mundo tão imutável. Uma obra de arte é uma abertura para o mundo e constitui também o mundo. O mundo requer uma percepção sempre aberta, sem a qual ele não pode parecer autêntico e nem se oferecer como uma abertura. A arte é – como Kant pregava – mundana e comunicável. O gênio pode fazer uma obra, mas ela só tem sentido se for comunicável, se ela puder criar uma relação com o homem de modo que a finalidade da obra de arte é ser intersubjetiva. A arte é uma discussão no “agora”, não um princípio de regras para a Razão, nem podendo, ademais, estabelecer paradigmas para o Bem. Como abertura, ela está sempre em imperfeição no mundo, mas suporta o Belo, porque a partir dele podemos acolher um julgamento desinteressado – julgamento necessário para a prática da política, para a liberdade em seus julgamentos sobre a sociedade. Assim, como a fenomenologia é uma filosofia para experimentar o mundo, Gullar pôde se livrar de uma arte de caráter matematizante, da mesma forma que – seguindo as motivações teóricas da fenomenologia – a geometria nasceu para nos desvelar um fato do mundo: o horizonte. Quando se diz que o movimento neoconcreto é mais rico, criativo e aberto que o concretismo – e a prova do pudim foi feita através das obras de Amilcar de Castro, Lygia Clark e Hélio Oiticica – não há dúvida que a presença da fenomenologia de Gullar tenha servido de bastião teórico para conduzir aqueles artistas a assumirem, com radicalismo, suas experiências e se sentirem amparados pela libertação que

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suas obras estavam causando. O neoconcretismo, como movimento, durou o tempo das rosas, embora fundasse um roseiral duradouro. Para a rebeldia de Gullar, o esgotamento da linguagem e do sentido levaria a todos a um beco sem saída. Segundo ele, o último ato neoconcreto seria um happening, no qual todas as obras deveriam ser destruídas. Houve uma discussão nesse sentido, mas ninguém teve coragem de levar uma insensata missão a termo. A vantagem é que ainda hoje podemos desfrutar das obras de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, porém, a posição radical do poeta levaria a um caminho diverso do artista independente. Gullar costuma dizer que os três radicais do movimento, passadas suas experiências, deixaram praticamente de ser artistas: Hélio Oiticica escolhendo a marginalidade, Lygia Clark a terapia e ele a sua África: a política cultural da esquerda. É preciso, hoje, buscar compreender a opção de Gullar. Para um jovem de hoje, ela pode parecer esdrúxula. A época era, porém, de Guerra Fria, com pólos tão distintos que era impossível uma brecha para uma terceira via e para firmeza de uma ética social liberal. O país vivia à beira de um golpe de Estado, concretizando, em 64, a “democratura” de Castelo Branco. Outros golpes de estado, de direita, espalhavam-se pelo continente, evitando manifestações populares e mesmo a ascensão do nosso tão conhecido caudilhismo. Gullar é um jovem autor que já não experimenta formas nem mais se arrisca no desamparo da abertura do mundo. O movimento estudantil, o último a abrigar uma elite intelectual, manifesta-se por meio dos centros culturais, pregando um “agiteprop” e uma desesperada tentativa de chegar às massas, algo tão enigmático como a esfinge. E só existe um imperialismo, o norte-americano. O soviético, que saqueia a Alemanha Oriental até esgotá-la, que move cubanos para aventuras africanas e que não oferece nenhuma esperança ao seu povo, não é nem mencionado. A arte de Gullar – “Agora é tempo de grossura” – transforma-se em puro instrumento. Mas toda a arte que não pode ser puro instrumento e não experimento, sofre a sua crítica. É a vez do Gullar marxista - ou o que se poderia entender por tal ou o que se poderia entender, na época, por tal. A instrumentalização da cultura a serviço da consciência do oprimido não é, de fato, uma novidade. Está em Shelley e em muitos românticos. Mas Marx não disse muito sobre a arte, mas disse muito sobre a tecnologização planetária (o Manifesto Comunista parece uma obra

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de Fausto sussurrando nos ouvidos de Cecil Rhodes) e Gullar compreende, com certo desgosto e algum desdém, o que ele chamaria de internacionalização da arte. Mais e mais artistas brasileiros expõem em Paris, decretando sua fama nas galerias cariocas. É uma espécie de síndrome do arquiteto Josep-Maria Sert, o bon vivant, árbitro da moda, considerado catalão em Paris e parisiense em Barcelona. O que talvez fosse impossível para Gullar entender, na época, é que a internacionalização da arte não só traz pavões para o viveiro das artes. É que esse processo, em vez de se opor ao artista, colocando-o na faixa internacional, o regionaliza cada vez mais. É uma sensibilidade latina e uma percepção brasileira que o estrangeiro admira. Nem é um golpe do imperialismo americano. Eles saem politicamente da arte com a consagração do pop. Qual artista americano domina hoje o cenário artístico? Richard Serra? Mas é preciso um holofote poderoso para avistá-lo. Com a globalização, a arte brasileira passou a ser mais vista e, até mesmo, mais admirada. Mas foi muito menos pela força inata de sua arte e mais pela estrutura do poder acadêmico que ocorreu nos Estados Unidos. Os centros culturais, que nasceram como cogumelos a partir dos anos 80, destacam uma sessão genericamente destinada à arte latino-americana. É preciso manter um estoque de exposições e estudos para que tais departamentos não se tornem obsoletos. Depois, há o politicamente correto, uma necessidade suicida de acabar com o velho falo do homem branco ocidental. Há, agora, sensibilidades de estranhezas e uma delas pertence a este despossuído – o pobre artista latino-americano. É preciso entender que boa parte disso escapava a Gullar e a sua geração (incluindo a minha). De qualquer forma, há uma boa tese nessa fase de Gullar que se mantém inalterável. A arte brasileira nasce em condições próprias que altera o seu próprio curso, obrigando-a a sê-la apenas por força destas condições. Ele poderia dizer hoje que a arte brasileira tem o seu próprio “nicho ecológico”. No Brasil, por exemplo, não foi o vanguardismo que evitou a ditadura. Diante dela, impôs uma nova forma perceptiva. Artistas que viveram sob a influência da pop art e da nova figuração, quando expuseram na mostra Opinião 65, pouco estavam interessados no consumo ou na figuração elegante francesa. As obras marcantes de Rubens Gerchman, Antonio Dias, Roberto Magalhães e Carlos Vergara atacavam, com rudeza, o golpe militar. O mesmo ocorreu quando houve o aparecimento da arte conceitual, que nada tinha a ver

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com a sensibilidade fria do movimento. Cildo Meireles realizou um Totemmonumento ao prisioneiro político e distribuía notas de dinheiro com a pergunta “Quem matou Vladimir Herzog?” Indagações sobre política cabiam nas obras de Antônio Manuel (da Silva Oliveira) e na de Barrio (Artur Alípio Barrio de Souza Lopes). Embora alguns artistas torcessem o nariz quando se falava de “arte brasileira”, aquelas obras só poderiam ter sido criadas no ambiente cultural, econômico e social brasileiro. É verdade que Gullar poderia dizer: “E daí? Isto não é arte”. Uma de suas preocupações estéticas é exatamente estabelecer o que se verifica como arte. A velha idéia do consenso entre pares parece dissolvida pela atual mecânica da sociedade capitalista, que tudo dissolve, e até mesmo um grupo de consenso torna-se difícil agrupar. A arte, assim, não é apenas o desamparo da própria obra diante da sociedade burguesa, mas também, desamparo da crítica, engolida pela sociedade de massas, vendo farfalhar a cada semana um novo arvoredo de artistas, esquecida logo que o vento passa. O último livro sobre estética de Gullar, Argumentação contra a morte da arte, é um libelo contra a destruição de arte, sujeita à ética e ao fazer (o seu exemplo de artista parece ser o incorruptível Oswaldo Goeldi). Gullar apreende bem os sintomas do pós-modernismo, revoltando-se contra o que chama de arte feita para a mídia. Ironicamente, dá a receita de como ser bem-sucedido numa Bienal: “E pensar que tudo isso começou com a abjuração dos valores burgueses no final do século passado! Pois se é assim, eu também vou me candidatar à próxima Bienal. Solicitarei à instituição que providencie, para a minha performance, uma tropa de dois mil burros, montados por anões! É uma idéia chocante ou estarei sendo tímido? Talvez seria mais instigante despejar vários milhões de bolinhas de gude (pagos pelos cofres públicos, claro!) nos corredores e salas da Bienal. Vai cair gente ao montão! Bem, depois decido… Estou aberto a sugestões extravagantes. Cartas para redação”6. Os últimos 30 anos de instalações na verdade não têm sido lisonjeiros nem para o artista nem para a arte. Mas a arte para a mídia é um fenômeno puramente modernista. Podemos datar seu início com o urinol Fonte, de Marcel Duchamp, recusado no Armory Show (aliás recusado por um artista americano), não sendo nunca exibido – ou melhor, foi mostrado nas páginas do The New

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York Times, onde Duchamp cultivava a amizade de jornalistas boêmios e antiburgueses. Pode se alegar que, no início, a arte do modernismo não tinha outra saída senão apelar para o choque para ser entendida. Hoje, não há de fato mais choque. O mais significativo da estética de Gullar, talvez tenha sido a sua defesa da arte no desamparo da sociedade capitalista contemporânea. A luta corporal jogou-o até o limite do silêncio. A arte contemporânea manobra até hoje o silêncio, já preparado pelo começo do modernismo. Sim, a arte pode acabar ou pode estar organicamente acabando. Para o homem será uma perda não ter mais à sua mão um meio de desvendar o mundo em que vive. Mas, pode ser uma morte sem um coro de Madalenas e talvez ninguém encontre na estrada de Damasco a ressurreição de sua idéia vital. Nascido no Rio de Janeiro, Wilson Coutinho é jornalista, crítico de arte e mestre em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Ex-curador-chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1997-1998), publicou, entre outros, Rubens Gerchman (Rio de Janeiro, Salamandra, 1989). NOTAS 1 2 3 4 5 6

2ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 64. pp. 64-5. A luta corporal. 4ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1994, p. 55. IDEM, p. 63. V. A tradição do novo. São Paulo, Perspectiva, 1974. 5ª. ed., Rio de Janeiro, Revan, 1993, pp. 32-3. IDEM,

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GUIA FERREIRA GULLAR

O arsenal “Um arsenal disponível guerreia sempre”

OBRAS DO AUTOR 1. Individuais Poesia Um pouco acima do chão. São Luís, edição do autor, 1949.

A luta corporal e novos poemas. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1966.

Crime na flora ou Ordem e progresso. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986; 2ª. ed., idem.

Dentro da noite veloz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975; 2ª. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

A luta corporal. Rio de Janeiro, edição do autor, 1954; 4ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1994. Barulhos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1987; 4ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1997. Poemas reunidos Poema sujo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976; 6ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1995. Poemas. Rio de Janeiro, Espaço, 1958.

Antologias

João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (cordel). Rio de Janeiro, CPC-UNE, 1962. Quem matou Aparecida? (cordel). Rio de Janeiro, CPC-UNE, 1962.

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A crise. Uma bela adormecida. Go home. Arma branca. O comício. O bode.

Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (com Dias Gomes). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Reeditado c/ o título Vargas, o dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983.

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é o constante contraponto do indesculpavelmente sujo com o irresistivelmente limpo. São Luís, musa de todos esses versos, é a ‘minha cidade suja’ ou ‘a cidade que me envenenas de ti’. Mas o poeta define a sua contradição fundamental quando diz estar buscando a ‘fonte de uma alegria, ainda que suja e secreta’ […]. Aqui estão o tempo e o espaço de São Luís. É um poema das coisas, uma lição enigmática das coisas. As cores e os odores da cidade. O dia, o ano, as estações. Os esgotos podres e os ventos soprando verdes nas palmeiras. Os pássaros, o anedotário urbano, o cromo familiar. Um poeta menos lúcido que Ferreira Gullar cairia decerto desse trapézio estendido por toda uma cidade. Mas, apesar da multiplicidade de objetos e de experiências, ele consegue costurar todo o comprido poema, sem faltar à unidade, sem mesmo lançar mão de subtítulos. É um prodígio […].” CARVALHO,

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em torno do qual giram, desordenadas, imagens oníricas nas quais podemos reconhecer certas obsessões temáticas de Gullar, mas que dificilmente conseguiríamos reunir num sentido claro./ Poderíamos pensar que o anjo morto entre as flores é imagem da poesia e da beleza, ameaçadas pela ‘ordem e progresso’ de nosso tempo. Seria uma interpretação – a mais plausível – deste livro caótico e tenso, que parece brotado do inconsciente. Mas seria uma interpretação empobrecedora, pois a mais rápida leitura logo nos revela outras possibilidades: o amor, o sexo, a luta corporal, contra os limites da linguagem e da razão, assim por diante […].” LEITE, Paulo Moreira. “Gullar: um dia do poeta pela cidade”. Folha de S.Paulo, 01.10.77. LOUZEIRO,

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João Cabral de. “Notas sobre os livros de poesia”. A Vanguarda, 1954. Reeditado c/ o título “Um livro vivo”. Folha de S.Paulo, 28.08.94. “O livro A luta corporal, com que estréia o jovem poeta Ferreira Gullar, mostra uma justa compreensão do que é a arte da tipografia. Impresso em papel absolutamente pobre, sem nenhum desses adornos provincianos ainda tão usados entre nós para dar caráter de luxo a uma impressão cara, o livro é um dos trabalhos gráficos mais simpáticos publicados ultimamente. […]/ Não sei se é ao sr. Ferreira Gullar ou ao seu editor que se deve lançar o crédito por esse exemplo de bom uso dos meios da tipografia. Talvez seja à própria experiência poética do sr. Ferreira Gullar e ao fato de que, em suas pesquisas com a palavra e com o verso, a disposição de pretos e brancos desempenha papel essencial. Como quer que seja, cabe o registro desse bom exemplo de livro vivo, ajustado e servindo a seu texto sem nada do simples depósito de poemas que vemos correntemente./ Não é só para experiências do tipo da do sr. Ferreira Gullar, tão ligadas à matéria da palavra, ou para experiências ligadas ao aspecto plástico dos poemas como a dos Calligrames, de Apollinaire, que o objeto livro tem que ser levado em conta. Também não é só em 122

experiências como a do Un coup de dés, de Mallarmé, em que o jogo de elementos tipográficos é fonte de poesia, que a necessidade aparece de se explorar recursos puramente gráficos./ O livro, principalmente o livro de poesia, mesmo quando o autor não procure impor leis especiais à leitura do verso, tem de estar subordinado ao texto: deve, quando nada, não pesar sobre o texto, com todos os adornos e ilustrações que, em geral, vemos associados à idéia de edição de luxo.” MERQUIOR,

José Guilherme. “A volta do poema”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22.11.80. Reeditado em As idéias e as formas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 305 e em Crítica (19641989). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 225-32. “[…] Até que, em 1975, em Buenos Aires, Ferreira Gullar compôs seu Poema sujo. Seu primeiro valor – não muito diverso, na essência, do projeto da literatura marginal – derivava da sua poética deliberadamente impura. Modernistas como Manuel Bandeira haviam preconizado a poesia com ‘a marca suja da vida’; mas aí se tratava das ocasionais manchas de lama no brim branco da existência arrumada – uma espécie de sordidez circunstancial, aceita pelo poeta em nome do compromisso da honestidade de sua arte. A poética suja de Gullar quer ir além: sem nenhuma especialização barata no sórdido, é menos ocasionalista, mais intrinsecamente pura – suja, porque o poeta, como bom pós-moder-


no, não conhece mais ilhas de impurezas na impura, embora não necessariamente espúria, realidade da sua situação./ Em Dentro da noite veloz, o livro anterior ao Poema sujo, Gullar recusara terminantemente, sarcasticamente, os últimos resíduos de neutralismo estético: ‘O poema, senhores, / não fede nem cheira’, ironizava ele. Na realidade, essa atitude datava desde A luta corporal (1954), e em particular da flama ética, conquanto despida de dogmas eticistas, que pulsava por quase toda a poesia de conquista crítica do cotidiano em O vil metal (1960) […]. E desde ambos os volumes, Gullar se dera à obsessão do corpo. Seu psicossomatismo lírico chegará a fazer escola, conforme se vê nas reprises criadoras de Mauro Gama e Armando Freitas Filho./ Uma das originalidades do Poema sujo consiste precisamente na conjugação dessa fixação carnal com a insistência em cantar o corpo da cidade: da bela, pobre e úmida São Luís, berço de Gullar. O realismo criatural de Gullar, seu apego à dolorosa finitude das pessoas e coisas, emprestam a vários momentos de seu poema um tom único de abrupta humanidade. Ferreira Gullar é um François Villon participante – um César Vallejo brasileiro – e sem dúvida é a pungência da sua rouca melodia, a sua surpreendente capacidade de liricizar, sem nunca ‘estetizar’ o chulo e o banal, que lhe permite evitar a erva daninha da literatura engajada – o clichê ideológico […].”

MOISÉS,

Carlos Felipe. “Ninguém escapa ileso de duas décadas de repressão”. Jornal da Tarde. São Paulo, 15.01.88. “[…] O livro recente [Barulhos ] contém um total de 38 poemas, quase todos breves, a maioria dedicados a circunstâncias como a morte de Glauber Rocha, a de Tancredo Neves, os 60 anos do PCB, etc. Percorre toda a coletânea, ora discreto, ora ostensivo, um sentimento de mea culpa por não concentrar firmemente a atenção nos graves problemas sociais, desviando-a às vezes para as banalidades do cotidiano, como a perplexidade diante de um cesto de frutas […]. Tocado pela arte do poeta, o leitor pode ficar dividido entre o humanitarismo aí expresso (do qual não duvida e com o qual afina) e o ceticismo quanto aos benefícios que isso possa trazer à causa social. As circunstâncias de época e o sucesso (merecido) do Poema sujo parecem ter gerado um círculo vicioso: o leitor cobra do poeta a manutenção da postura combativa e este cobra daquele que a endosse, mas lhe revele os pequenos deslizes. Com isso, o imperativo ético se sobrepõe ao estético, bons sentimentos e boas intenções se colocam acima de qualquer suspeita. A cumplicidade é perfeita, proposta e assumida, com igual empenho, de ambos os lados. Mas Gullar sabe que, mais uma geração, e essa cumplicidade terá desaparecido […].” MONTELLO,

Josué. “Um grande poeta entre a rima e a solução”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 16.09.80. 123

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ca de Gullar mostra que a palavra ‘incêndio’, num sentido tanto erótico quanto políticoexistencial, é a imagem matriz. O fogo está no corpo amado, no verão, nas revoluções e no incêndio verbal dos versos. Esse é o calor que Gullar recupera ao dizer adeus à escrita vanguardista e aceitar a oralidade quente de um discurso social […].” Lucy. “Renovando um sinal”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 13.08.66.

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muito vário e ele [Gullar] fez bem em misturar tudo nesse elegante volume azul, que aconselho veementemente ao leitor. Ah, ia me esquecendo, aquele poema do sujeito querendo encontrar por acaso certa mulher na avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo, que coisa mais pateta e mais dolorida! Parece eu”.

Rubem. “As marés de Gullar”. Veja. São Paulo, 28.09.77. “[…] Nesta Antologia que lança agora, Ferreira Gullar explica ter adotado três critérios para selecionar as peças: ‘Primeiro, os poemas que mais me agradam; segundo, os que, através dos anos, foram destacados pela crítica e pelos leitores; e terceiro, os que, segundo creio, marcaram momentos significativos do meu trabalho poético’. / Fui catar na estante de livros de Gullar e me dei ao trabalho de conferir, por exemplo, de seu livro Poemas (que é concretista ou neoconcretista, não sei, em todo caso a capa é de Amílcar de Castro) o que ele escolheu. Acho que ele catou exatamente o que havia de melhor. […] Fica fora dessa ‘Antologia’ o ‘Poema Sujo’, que fez tanto impacto meses atrás; o poema mais recente, aqui, é de 1974. […] O gosto do povo é 124

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muitos mecanismos do universo inconsciente. O corpo é, além do mais, o cenário onde se cumpre o itinerário traçado de tudo quanto amadurece e morre. Contemplando-o, interrogando seus segredos, o poeta quer aproximar-se, com maior amplitude, dessa força que tudo sustenta e do eco de cuja voz ressoa, vagamente, pela palavra vida./ Gullar penetra no mundo animal, penetra nos objetos, procura a pulsação decisiva, exata, querendo captar a luz que se mostra, ocultando-se; responde, em suma, com sua poesia a uma ânsia ontológica tenaz, encarniçada: fixar a medula do existente nas formas primárias do real./ O desejo de transcendência não o faz dirigir seus olhos para o espaço celeste; os corpos circundantes, esses sim cativarão o seu olhar. Gullar busca, como Spinoza, o infinito do finito. Pode dizer-se bem dele, como de Hipólito Taine, que é, nessa primeira fase de seu trabalho, ‘um metafísico amante dos fatos’. Não chegou ainda o momento do diálogo. O poeta é, por agora, um observador. Aves, frutas e objetos serão os protagonistas deste instante inicial de seu trabalho. Mas, a observação não é um mero registro, crônica fria do que se vê. É, pelo contrário, uma procura fervorosa; uma resposta lírica, conseqüente e pessoal às imposições ditadas por uma sensibilidade agudíssima do espaço e do tempo. Mediante a tensão de seus ritmos breves e a amplitude de suas caracterizações, o estilo do jovem Gullar nos transmite

o nervo vivo de um temperamento intenso e literariamente consolidado […].” KOVADLOFF,

Santiago. “Ferreira Gullar: poesia e persona”. Cuadernos hipanoamericanos: revista mensual de cultura hispanica. Madri, novembro de 1988. Paulo. “Resgatado por seu passado”. Istoé. São Paulo, 10.09.86.

portuguesa, às estrofes narrativas em redondilhas, nos moldes dos cantadores de feiras. Falam alto no poeta a nordestinidade, a visão urbana e o compromisso social. O poeta faz poesia participante numa época em que a nação se mobiliza para um salto revolucionário. Reúne as queixas e as esperanças da ocasião [...].”

LEMINSKI,

LUCAS, Fábio. “Visitação à poe-

sia de Ferreira Gullar”. In: —. “Jorge de Lima e Ferreira Gullar: o longe e o perto”. Cadernos de literatura, nº. 10. Brasília, Thesaurus, 1995. “[...] Os Poemas Concretos/ neoconcertos (1957-1958) constituem uma particularidade até hoje, pois destinam-se a contornar o tecnicismo mecânico da produção concreta e os vícios projetados sobre a brigada dos epígonos, que os normalizaram até a exaustão, abrindo-se ao reino da paronomásia e do trocadilho./ Os poemas concretos de Ferreira Gullar abrigam um discurso implícito, despojado da ruinosa verbosidade que cumpria combater àquela época. O grafismo dos poemas aproximase da expressão metafórica da poesia. Desdenham da subjetividade sem sacrificá-la. A imagem visual não anula a imagem acústica. Antes, propõe um casamento [...]/ Romances de cordel (1962-1967) simbolizam uma virada na vida e na obra de Ferreira Gullar. Da continência verbal neoconcreta, passa ao ritmo mais fluente e popular da língua 125

MACIEL, Luís Carlos. “Uma comédia?”. Veja. São Paulo, 25.04.77. “[…] Esta comédia [Um rubi no umbigo] vive, porém, não da estilização humorística de seu tema, mas ao contrário, de um exigente excesso de realismo. Se vemos, com exatidão, como funcionam as coisas em nossa sociedade capitalista – na qual, por definição, cada momento da existência humana tem seu preço – não há outra alternativa senão rir, ainda que esse riso seja doloroso ou, no mínimo, sombrio. O humor de Gullar é tão sutil e exigente quanto o de Kafka. Acabrunhante na superfície, só revela sua verdadeira face em um nível mais fundo. Em última análise, ele depende do espectador, cuja visão deve ser determinada por uma base de experiência semelhante à do próprio autor./ Num ensaio clássico sobre o riso, Henri Bergson afirma que ele manifesta a intromissão do mecânico no fluxo vital. Este processo, segundo Gullar, é o vigente em nossa sociedade e pode ser suficientemente evidenciado por uma visão realista estrita. Em nossa sociedade, o primado da mercadoria e seu valor econômico reduzem as pessoas e suas relações a


coisas, a objetos sem humanidade, estancando suficientemente a vida, que é espontânea e natural. Esse processo de retificação da vida, ainda que tenebroso, tornase assim uma sinistra fonte de comicidade […].” MARTINELLI,

Leonardo. “Ferreira Gullar e o tempo do poema”. Inimigo rumor. Rio de Janeiro, set.-dez. 1997. MENEZES, Marco Antônio de. “Síntese musical”. Veja. São Paulo, 18.06.80. NUÑEZ,

Ángel. “Os cinqüenta anos de Ferreira Gullar”. Leia livros. São Paulo, setembro de 1980. OLIVEIRA,

Franklin. “Toda poesia”. Istoé. São Paulo, 24.09.80.

PELLEGRINO,

Hélio. “Um rubi no umbigo”. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, março de 1979. “[…] Aqui entra, em toda a sua força metafórica, o rubi no umbigo de Vítor, centro estrutural da peça de Ferreira Gullar [O rubi no umbigo]. A criança, para defender-se da angústia do nascimento e da separação que o nascimento inaugura, procura negá-los psiquicamente. E, para tanto, precisa imaginar um estado de articulação copulativa, pujante e permanente, capaz de devolver-lhe a completude perdida. O objeto capaz de promover esse encaixe perfeito, seja com a mãe, seja com o pai, a psicanálise o chama de falo. O falo é aquilo que o ser

humano persegue com o objetivo de obturar a cárie de incompletude que o rói, no coração do seu ser. A posse, uso e gozo do falo confere a quem o detenha a condição de onipotência, de prazer incessante, de plena realização de todos os desejos. A ligação fálica entre criança e mãe, por exemplo, nega o corte separador do nascimento e, portanto, a angústia, a carência, a frustração./ Quem possui o falo tem o corpo fechado, anterior à morte, aquém – ou além – da castração. O falo transforma criança e mãe numa atitude dual, apagando as diferenças, dissolvendo os contornos da identidade própria, afogando a derrelicção do nascimento num oceano de completude e bemaventurança cósmica. O rubi no umbigo de Vítor é o objeto fálico que lhe fecha o corpo, e o faz completo. Através da gema sem preço, preserva ele a fantasia inconsciente de sua autarquia narcísica e mantém intacta a vigência do princípio do prazer, acima dos desgastes inerentes ao comércio com a realidade […]”. Roberto. “A luta corporal e novos poemas, Ferreira Gullar”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, julho de 1966. “[…] Ao constatar que o mundo exterior realmente existe […] e ao pretender captá-lo ao natural, da maneira mais direta e limpa possível, ele [Ferreira Gullar] descobre que as palavras de que dispomos não só se mostram débeis para a captação da realidade obje-

tiva, como, muitas vezes, terminam mistificando ou sufocando esta mesma realidade. João Cabral, melhor que ninguém, descreveu-a como ‘prima e tão violenta/ que ao tentar apreendêla/ toda imagem rebenta’ […].” RIAUDEL, Michel. “Crime na flora”. Braise. Paris, nov. 1986. ROUX, Richard. “Breves notes pour une lecture de Poema sujo de Ferreira Gullar”. Cahiers d’études romanes, nº. 12. Paris, 1987. SCHULER,

Donaldo. “Ferreira Gullar - Poema sujo ”. Colóquio Letras. Lisboa, janeiro de 1978.

VELASCO,

Alma. “Ferreira Gullar, poeta neoconcretista brasileño”. Alforja – Revista de poesia. Cidade do México, verão 1997. VILLAÇA, Alcides. “Em torno do Poema sujo”. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, março de 1979. SEM ASSINATURA.

“Um olhar no tempo”. Veja. São Paulo, 11.11.87.

PONTUAL,

126

6. Entrevistas e depoimentos

“Poetas falam de poesia – Ferreira Gullar”. Revista Civilização Brasileira, nº. 4. São Paulo,


setembro de 1965. Depoimento a Olga Werneck. “Com o poeta Ferreira Gullar”. “Folhetim” suplemento da Folha de S.Paulo, 15.05.77. Depoimento a Maria da Paz e Licinio Azevedo. “[…] Em maio, quando cheguei, a situação já era caótica. A possibilidade de um desfecho, qualquer que fosse, era esperada a cada dia. À medida que permanecia, sentia uma sensação estranha. O Chile era como um elástico que estica, estica e por milagre não arrebenta […]. Todos os dias havia atentados terroristas de direita, lutas na rua, greves como resposta aos atentados. A produção estava quase paralisada, apesar dos apelos do Governo. A crise ia se aprofundando./ Uma madrugada ouvi tiros, correrias, uma explosão. Era mês de junho. Isso me deixava apreensivo. Em seguida houve o Tancazo. Acordei, senti o clima agitado, muitas pessoas andando apressadas. Liguei o rádio. Allende apelava para a população resistir como pudesse. Dessa vez os tanques abandonaram o palácio, o Presidente foi apoiado pela maioria das Forças Armadas. O Tancazo foi dominado./ Minha primeira providência ao desembarcar no país foi encaminhar os documentos para conseguir radicação definitiva. Para poder trabalhar, além de escrever artigos para revistas brasileiras. No segundo dia começou uma greve de transportes coletivos que só terminou com a queda de Allende. Era quase impossível de se locomover. Saí

de casa às seis da manhã para ir ao Ministério das Relações Exteriores. Ia a pé até o centro, enfrentava uma burocracia infernal. Estava quase para receber minha radicação, faltava o final do processo mas já não funcionava nada. E veio o golpe. / Quando o ambiente se acalmou, voltei ao Ministério para reaver os documentos. Havia começado uma campanha oficial pelo rádio contra os estrangeiros. Muito agressiva. Até a colônia italiana se reuniu para publicar uma nota dizendo que se sentia ameaçada. Enfim, consegui um salvo conduto para sair do Chile. Não pedi. Cheguei lá e avisaram: ‘Está bem, o senhor terá um salvo conduto, compre sua passagem que devolveremos seus papéis […]’”. “A verdade que emociona”. Veja. São Paulo, 02.03.77. Entrevista a Rui Lima. “[…] Veja – Como surgiu o ‘Poema sujo’?/ Gullar - Parti da estrutura de um poema que fiz sobre o formigueiro, no início do movimento concretista. Há uma lenda em minha terra que diz que onde tem formiga tem dinheiro enterrado. Na minha casa tinha muita formiga, era aquele tipo de casa antiga, muito úmida… e, quando chovia, no pé da parede surgia aquele monte de formigas pretas, verdadeiros exércitos, um negócio que me impressionava muito. Então eu quis fazer um poema que estivesse ligado a essa lembrança da minha infância e fiz esse poema sobre o formigueiro. De outra vez, uma noite aqui em 127

Buenos Aires, me veio a lembrança de São Luís, minha casa, meus irmãos, o quintal e as formigas saindo da parede, e me lembrei do poema das formigas. Aí eu disse: ‘Puxa, eu poderia fazer um poema em que vomitasse tudo que tenho dentro de mim logo na primeira página e a partir dessa matéria bruta fosse desfiando todo o poema.’ Como já era tarde da noite fui me deitar com aquela idéia sem sair da cabeça e no dia seguinte bem cedo me sentei na frente da máquina e disse: ‘Agora vou vomitar tudo’. Mas o vômito não saía porque não existe uma garganta verbal onde você meta o dedo e vomite a linguagem. Então fiquei assim meio besta, frustrado e pensando: ‘Pombas, o grande poema da minha vida é inviável porque não consigo vomitar o meu passado’. Aí fiquei andando um pouco, voltei para a máquina e comecei a escrever o princípio do poema: ‘turvo, turvo, a turva mão do sopro contra o muro…’ que era a tentativa de ir o mais longe que minha memória podia alcançar, ali onde ainda não existe nada, é tudo impreciso, ‘escuro, mais que escuro, claro…’. E aí começa ‘um bicho que vem sonhando…’, eu entro dentro de mim e disparo o poema. Nessa hora fiquei muito excitado e achando que alguma coisa se tinha aberto dentro de mim, que realmente eu tinha rompido alguma coisa que começava a minar lá de dentro […].” “Ferreira Gullar de volta do exílio: ‘Só tem sentido fazer li-


teratura se for pra mudar as coisas’”. O Pasquim. Rio de Janeiro, 27.05 a 02.06.77. Entrevista a Marcos de Vasconcelos, Jefferson Ribeiro de Andrade, Felix de Athayde, Iza Freaza, Jaguar, Olga Savary, Miguel Martin, Ricky e Ziraldo. “[…] Na época do lançamento da Poesia Concreta um amigo me perguntou: ‘Diga uma coisa, Gullar. Gosto muito de suas crônicas no Jornal do Brasil falando de sua cidade e do Rio de Janeiro. Por que você faz essa poesia aí? Faço essa poesia porque não tenho nada a dizer’. O que é que isso significa? Em 1950, lendo o livro do Hoffman, eu me perguntava que sentido tinha fazer literatura. No final de A luta corporal, desarticulei a linguagem, me perguntando que sentido tinha viver. Pra mim era uma coisa existencial. Fui sempre questionando. A linguagem desabou na minha mente e fiquei sem ter nada a dizer. O Crime na flora era uma tentativa de buscar um sentido na literatura, inclusive numa linguagem quase mágica, ambígua e não conceitual. Eu estava buscando o sentido das coisas, quando apareceu o Concretismo. ‘Quem sabe se por aí encontro a resposta?’ […]. Quando apresentaram o Plano Piloto do Concretismo com aquele esquematismo todo, passei a não concordar, porque nunca me desprendi do conceito de que a poesia é uma linguagem viva. Eu desarticulava por razões conceituais, colocando pra mim que tudo o que estava

dizendo na poesia havia aprendido na escola, que tudo que colocava nos poemas alguém havia me dito ou me contado. Eu queria que a experiência nascesse aqui e agora, pura, limpa, nova. Por isso arrebentava a linguagem. […] Quando lançaram o Plano Piloto do Concretismo houve várias divergências. Logo em seguida lançaram o manifesto ‘Da psicologia da composição à matemática da composição’. Telefonei pra eles em São Paulo: ‘Se vocês publicarem esse manifesto eu rompo. Poesia não pode ser feita matematicamente’. ‘Então você rompe, porque queremos publicar’. Aí publicamos um manifesto nosso e foi a ruptura. Chamava-se ‘Poesia concreta: experiência fenomenológica’. A posição deles era Cientificista. A coisa rachou e o grupo do Rio distanciou-se deles. Quando nossas experiências já tinham uma certa conformação, lançamos o manifesto ‘Arte Neo-Concreta’, escrito por mim e discutido pelos poetas e pintores do grupo […].” “Um travo triste por trás do riso selvagem”. Veja. São Paulo, 25.04.79. Entrevista a Zuenir Ventura. “[…]Em 1967, li a notícia de um cara que tinha um rubi no umbigo, morava numa enxerga e foi assaltado. Tentaram arrancar a pedra de seu umbigo. Ele disse que já tinha tentado ir à Itália para, com a ajuda de um parente, vender rubi, mas foi barrado na alfândega porque não tinha dinheiro para pagar 128

imposto sobre pedra preciosa. Achei incrível. O sujeito com fome, com uma coisa valiosa no umbigo e sendo assaltado pelo que tinha e que não servia para ele. Vi na notícia um mundo de conotações, de humor, de sarcasmo, de significados que me deram coragem de fazer uma peça. Como escrevi no programa, o umbigo não é um órgão, é uma cicatriz, a marca de uma amputação. Só que o que se amputa não é um dedo, é a própria mão. Portanto, não havia mais significados que um simples rubi no umbigo. Resolvi escrever de maneira realista porque esse contexto realista acentuaria mais os outros significados. A graça já estava implícita na própria notícia. Esse lado de comédia negra, selvagem, já está na própria situação do sujeito com o rubi no umbigo […].” “Gullar em tempo de abertura”. “Folhetim” suplemento da Folha de S.Paulo, 20.05.79. Entrevista a Luiz Egypto. “[…]Olha, faz muito tempo que a gente está vivendo esse período de transição. Ele é uma coisa muito recente, sobretudo quando se pensa em termos de cultura e de arte. Nesse terreno as coisas se passam de maneira muito lenta. Eu não acredito que a abertura no plano político vá gerar imediatamente um florescimento da arte, da cultura e tal. Inclusive, porque às vezes até nem gera, compreende? A relação entre essas coisas não é uma relação assim muito imediata, depende de muitos fatores.


Evidentemente que o regime democrático é muito mais propício ao trabalho de criação, porque ele possibilita a troca de idéias, ele possibilita que você faça realmente aquilo que realmente você está pretendendo fazer. Você não impõe limites a você mesmo, na pesquisa, na indagação, na colocação de problemas. Agora, como a arte não depende apenas disso, depende de muitos outros fatores imponderáveis – inclusive da capacidade do próprio escritor, do próprio poeta, do pintor, do dramaturgo, do cineasta – a gente não pode dizer fatalmente se vai acontecer isso ou aquilo. Em princípio, o que se reivindica na verdade é o direito à liberdade. Inclusive de fazer besteira, de fazer a peça ruim, de fazer o poema ruim, de fazer o cinema ruim. Reivindica-se o direito de se exprimir, de criar. É um direito legítimo do escritor e do artista como cidadão. O resto é outro problema. Não é a censura que tem que se incomodar se o cara é bom ou mau pintor, bom ou mau cineasta, bom ou mau teatrólogo. Isso é outro problema. Aí já se está no campo do espectador, do crítico, dessas artes específicas […].”

“[…] Bom, teve essa primeira etapa, de me assenhorear da técnica. A segunda é destruir a técnica e criar uma disciplina interior com relação à linguagem. Até onde sei, só consigo escrever em estado de emoção, com muita inteligência e muita exigência; aí, a linguagem usual se pulveriza e volta para ser refeita de novo, como se eu tivesse que fundar a linguagem – as palavras têm que ser verdadeiras para permanecer no poema. É a sensação de uma coisa incandescente. Procurar o nível de ignição da palavra. Se não me sinto capaz, paro. É um estado esgotante: dá satisfação, plenitude, a sensação de estar existindo realmente. Mas é também doloroso, exige esforço extenuante. Uma mistura de coisas; mais alegria./ O sentido de resgate através do poema é uma das marcas de Gullar. Ele lembra vários exemplos, como um fim de tarde num bazar de louças no Estácio, um monte de xícaras empoeiradas: como uma vida humana à margem da história […].”

“Ferreira Gullar: um poeta e seu tempo”. Oitenta, nº. 4. Porto Alegre, L&PM, 1980. Entrevista a Luiz de Miranda.

“O zero dá a partida. E infinita é a poesia”. O Globo. Rio de Janeiro, 06.07.86. Entrevista a Rita Kauffman. “[…] [O Globo] – “Em que circunstâncias foi gerado Crime na flora ?/ [Ferreira Gullar] – O livro nasceu de uma crise com a poesia, que surgiu em 1953,

“Ferreira Gullar, ‘Na vertigem do dia’”. O Globo. Rio de Janeiro, 25.06.80. Depoimento a Ana Maria Machado.

“Ferreira Gullar aos 50 anos: ‘Aprendi que devemos ser tolerantes’”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13.09.80. Entrevista a Beatriz Bonfim.

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quando escrevi A luta corporal. Eu tentava resolver impasses da poesia, queria fazer uma poesia que não fosse apenas um discurso da realidade, mas ela mesma, uma realidade. Na Luta eu me senti num beco sem saída, que terminou com a desintegração da linguagem. Depois disso, achei que nunca mais faria poesia. Crime na flora começa nesse vazio, nesse branco total e, a priori, eu não tinha preocupação com o que estava fazendo. Fui escrevendo à mão, como num reaprender a escrever, em vários cadernos, e, como não era uma coisa planejada, assim como comecei, parei. Depois de algum tempo, reli, vi que algumas coisas eram excessivas, dei uma forma final, datilografei e engavetei […].” “Je dois écrire pour continuer a vivre”. La Quinzaine Littéraire. Paris, abril de 1987. Entrevista a Michel Riaudel. “Até Gullar acredita que a era moderna acabou”. O Estado de S.Paulo, 29.06.89. Entrevista a Julio Carlos Duarte. “[…] Eu nunca me senti dono da verdade, em momento algum. A minha atitude diante da literatura sempre foi de indagação e de procura. Eu me engajo ou não me engajo. Nessa posição passional não vai a convicção de que tenha a verdade comigo. Isso me obrigaria a ficar coerente com as minhas atitudes que os outros transformaram em dogmas. Assim fui na primeira etapa da minha poesia, acreditando que havia uma rea-


lidade essencial por trás da linguagem, que ia acabar descobrindo aquilo e fui escavando a linguagem, remexendo as palavras, terminando por arrebentar tudo. Mas os poemas da última parte da Luta corporal, poemas quase ilegíveis, palavras arrebentadas e montadas sob estilhaços de vocábulos hoje volto a valorizar, talvez porque o tempo passou./ Quando escrevi aquilo, já senti que não podia continuar fazendo poemas daquela maneira, era o fim. Nem poderia adotar uma explosão como um método de escrever. Eu ia transformar em estilo meu a explosão? Mas tentei expressar uma experiência obscura que tinha com a linguagem. Foi uma tentativa de penetrar numa zona quase invisível, sem luz, sem verbo, e isso até hoje tenho. Eu continuo achando que existe uma zona de expressão que é quase impenetrável, que tem de ser desvelada […].” “Gullar enterra arte contemporânea”. Folha de S.Paulo, 18.04.93. Entrevista a Daniel Piza. “O poeta contra a vanguarda”. O Globo. Rio de Janeiro, 07.11.93. Entrevista a Daniel Stycer. “[…] Não sou contra o experimentalismo. Poucos artistas experimentaram tanto quanto eu, de modo que não tenho preconceito nem medo de experimentar nada. Uma das coisas mais difíceis hoje em dia é alguém ter coragem de se manifestar contra tendências ditas

jovens ou novas. Todo mundo é jovem, progressista, moderno. O Mário Pedrosa dizia: ‘O Brasil é difícil porque não existem reacionários nem conservadores’. A idéia da novidade, do suposto novo, virou acadêmica. Quem prestigia este tipo de experiência, quem vai à Documenta de Kassel ou à Bienal de Veneza? É o cara que faz pintura ou gravura? Não, é o que rouba cinzeiro em avião. Ele é o institucional, o renovador e o consagrado. Estranhamente, o que se diz rebelde é aquele que é amparado institucionalmente. O novo, que é uma noção cretina, é velho em seguida. Nunca a arte de verdade se manteve apoiada nesse valor. Isso é uma bobagem da época moderna. Nenhum grande artista construiu uma obra partindo da preocupação de fazer novidade […].” “Guerra e paz de Gullar”. Folha de S.Paulo, 28.08.94. Entrevista a Augusto Massi e Alcino Leite Neto. “Passado a limpo”. República. São Paulo, junho de 1998. Entrevista a Tânia Nogueira.

A saída? Onde fica a saída? Direção de João das Neves. Rio de Janeiro, Teatro do Grupo Opinião, 1967. Poema sujo. Direção de Hugo Xavier. Rio de Janeiro, Sala Sidney Miller, 1980. Dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Direção de José Renato. Rio de Janeiro, Teatro João Caetano e Teatro do Grupo Opinião, 1968; direção de Flávio Rangel, Rio de Janeiro, Teatro João Caetano, 1983. Um rubi no umbigo. Direção de Bibi Ferreira. Rio de Janeiro, Teatro Casa Grande, 1979. DOCUMENTÁRIOS

O canto e a fúria. Direção de Zelito Viana. Mapa Filmes, 1996. São Luís do Maranhão de Ferreira Gullar. Direção de Helder Aragão e Marcelo Gomes. Pólo de Imagem/TV Cultura, 1997.

MONTAGENS TEATRAIS FONTES DO GUIA FERREIRA GULLAR Dedoc – Departamento de Documentação da Editora Abril; Arquivo do autor;

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Direção de Gianni Ratto. Rio de Janeiro. Teatro do Grupo Opinião, 1966. 130

Arquivo IMS; Serviço de Atendimento ao Usuário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


AG R A D E C I M E N TO S

Dedoc - Departamento de Documentação da Editora Abril (Bizuka Corrêa, Susana Camargo e Zulmira Costa Galvão), editoras Civilização Brasileira, Global, José Olympio, Paz e Terra, Revan, Summus e Topbooks, Fábio Lucas, Iconographia, Ivan Junqueira, Maria Amélia Mello, Mário Alex Rosa, Núbia Ferreira Alvim, revistas Bravo! e Cult, Rômulo Fialdini, Serviço de Atendimento ao Usuário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Vera e Zelito Viana.

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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA

À venda nas principais livrarias do país, nos espaços culturais do Instituto Moreira Salles e em Portugal Número 1 — João Cabral de Melo Neto (mar. 96) Número 2 — Raduan Nassar (set. 96) Número 3 — Jorge Amado (mar. 97) Número 4 — Rachel de Queiroz (set. 97) Número 5 — Lygia Fagundes Telles (mar. 98) Número 6 — Ferreira Gullar (set. 98) Próximo número: João Ubaldo Ribeiro (mar. 99)

Jornalista responsável: Antonio Fernando De Franceschi (MTb: 9.093).


Instituto Moreira Salles

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Centros culturais Poços de Caldas Rua Teresópolis, 90. CEP: 37701-058. Poços de Caldas - MG Tel./fax: (035) 722-2776 São Paulo Rua Piauí, 844, 1º. andar. CEP: 01241-000. São Paulo - SP Tel.: (011) 825-2560; fax: (011) 826-3793 Belo Horizonte Av. Afonso Pena, 737. CEP: 30130-003. Belo Horizonte - MG Tel.: (031) 213-7900; fax: (031) 213-7906 Rio de Janeiro Rua Marquês de São Vicente, 476. CEP: 22451-040. Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 512-6448; fax: (021) 239-5559


ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA BEI˜ • COMUNICAÇÃO EM GARAMOND E GILL SANS E IMPRESSA PELA PANCROM INDÚSTRIA GRÁFICA PARA O INSTITUTO MOREIRA SALLES EM SETEMBRO DE 1998.


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