Negras imagens – Formação a partir do acervo IMS

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NEGRAS IMAGENS

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NEGRAS IMAGENS FORMAÇÃO A PARTIR DO ACERVO IMS

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APRESENTAÇÃO A série de palestras Negras imagens – Formação a partir do acervo ims1 buscou analisar maneiras de ver e representar homens e mulheres negros a partir de fotografias e obras iconográficas presentes nas coleções do Instituto Moreira Salles. O objetivo foi gerar e difundir narrativas alternativas e atualizadas pela sensibilidade contemporânea relacionada às questões raciais e de gênero, capazes de ampliar a reflexão acerca da experiência afro-brasileira. Agradecemos ao notável conjunto de pesquisadores participantes do ciclo, em sua maioria negros, que compartilhou suas visões e as investigações desenvolvidas a partir de uma imagem ou conjunto selecionado no acervo, apresentadas agora neste volume. Em alguns casos, as obras escolhidas já se concatenavam com as pesquisas existentes; em outros, se configurou o ensejo para novos estudos. Nestes exercícios interpretativos, as imagens foram interpeladas em esforços que carregaram como pressuposto a interdição da objetificação dos sujeitos representados, operação corrente, desumanizadora e indesejada. Para tanto, dados históricos e contextuais foram ponderados de modo a apresentar novos ângulos para a compreensão da história da cultura no Brasil. 1 As gravações resultantes das palestras veiculadas em maio de 2022 estão disponíveis no canal YouTube do Instituto Moreira Salles.

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Assim como ocorreu na veiculação dos encontros, os textos apresentados aqui poderão ser de interesse e utilidade para alunos e docentes do ensino superior, pesquisadores e interessados. Professores, em especial aqueles atuantes na escola pública e que assistiram à série, poderão lançar mão de informações e imagens disponíveis no site do instituto como ferramentas para o cumprimento da lei 10.639/03, que determina a abordagem da história e da cultura afro-brasileira no ensino. Esta série estabelece pontos de contato com a exposição Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito, inaugurada no ims Paulista em 2022, que seguiu posteriormente para o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, e para o Museu de Arte Moderna da Bahia. Os ensaios agrupados aqui também estimulam o instituto a apurar continuamente seu olhar sobre o patrimônio do qual é guardião, se valendo dessas perspectivas renovadoras para alimentar suas ações e projetos, sobretudo na área de educação. O Instituto Moreira Salles se reafirma, assim, como instituição comprometida com a diversidade, impulsionadora da pesquisa, e espaço de construção de conhecimento a partir do diálogo e da troca. RENATA BITTENCOURT

Diretora de Educação – IMS

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ENCONTRO 1

ENCONTRO 2

IMAGENS NEGRAS: RITO, CENA E MÁSCARA

CRIANÇAS NEGRAS: OLHARES FOTOGRÁFICOS

10 ims convida a morte:

58 “Foto de grupos de negros”:

contranecropoder em três tempos

novas velhas imagens de Vincenzo Pastore

ANA BEATRIZ ALMEIDA

IONE DA SILVA JOVINO

26 Tempo Negro: abstração

e racialidade na arte contemporânea brasileira DIANE LIMA

78 Modos de ser e ver

as infâncias negras: cultura visual em dois atos fotográficos RAFAEL DOMINGOS OLIVEIRA

46 Máscaras tectônicas –

Arquitetura e africanidade na fotografia de Geraldo de Barros, G.E. Kidder Smith, José Medeiros, Marcel Gautherot e Pierre Verger ROBERTO CONDURU


ENCONTRO 3

ENCONTRO 4

MULHERES NEGRAS: CORPO, OBJETO E TRABALHO

RETRATOS NEGROS: INDIVIDUALIDADES E AFETOS

98 “A free black-girl”, “preta

144 Os clientes negros do

de ballas” e outras imagens: a cultura material nos corpos de mulheres forras representadas por artistas oitocentistas presentes no acervo do ims

Estúdio Limercy Forlin: Poços de Caldas 1950-1980

158 Geografia dos afetos.

VANICLÉIA SILVA SANTOS

Parte 1: o lugar do pai

ALEXANDRE ARAUJO BISPO

JANAINA DAMACENO

114 Retratos afrodiaspóricos MÔNICA CARDIM

126 Mulheres negras no mercado JULIANA BARRETO FARIAS


ENCONTRO 1 8


IMAGENS NEGRAS: RITO, CENA E MÁSCARA

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IMS CONVIDA A MORTE: CONTRANECROPODER EM TRÊS TEMPOS ANA BEATRIZ ALMEIDA

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O olhar de Walter Firmo acerca de populações afrodescendentes nos leva a vê-las não apenas como sujeitos passivos ao olhar, mas numa construção de subjetividade que, de certa forma, conduz a audiência a ver o mundo a partir de seus olhares. Neste movimento, de construir uma perspectiva não hegemônica sobre o acervo do Instituto Moreira Salles, pretendo propor uma narrativa Ewe/Fon sobre produções de artistas oriundos da Bahia. São eles: Dona Dalva Damiana, Afrobapho e Everlane Moraes, naturais das cidades de Salvador e Cachoeira – municípios conhecidos historicamente por receberem uma expressiva quantidade de sujeitos oriundos de tais etnias. Por compreender que há, nesta análise, uma fricção entre passado e presente, assim como um recorte intergeracional entre os artistas escolhidos, pretendo abordar a noção de temporalidade tal qual Albert Einstein em sua teoria da relatividade, na qual a percepção do tempo é resultado da interação entre velocidade, campo gravitacional e espaço. No que tange à mudança de perspectiva, a própria teoria da relatividade será uma tradução para o Ocidente das referências orientais de Einstein, que ecoam também o conceito Ewe/Fon acerca da vida. É importante citar que havia, na orelha do livro A alma do universo (1948), de Gustaf Strömberg,1 uma 1

strömberg, Gustaf. The Soul of the Universe, 1940.

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recomendação de Einstein, gesto que pode explicar a grande proximidade do cientista com os estudos de Helena Blavatsky abordados no livro. A autora de A doutrina secreta (1888)2 explorava noções não hegemônicas de definição de matéria, tempo e espaço, de modo a influenciar de maneira significativa o pensamento astrofísico dos anos 1940. Conforme nos aponta Cheikh Anta Diop,3 a coincidência entre culturas da África ocidental, Baixo Sudão e vertentes asiáticas se justifica pela grande influência que o Império Egípcio exerceu ao seu redor, de modo que os conhecimentos não se restringiam às suas barreiras étnicas ou nacionais (visto a natureza recente do conceito de Estado-Nação). Observado esse ponto, não é ao acaso que encontramos nas lógicas de matriz afro-brasileiras de origem vodoun uma repetição do conceito de tempo em Einstein. De maneira mais específica, é possível perceber a repetição da teoria da relatividade na organização da própria Irmandade da Boa Morte,4 uma instituição anterior ao candomblé organizada em torno das relações de vida e morte – com a liberdade como narrativa. Em minha dissertação de mestrado,5 descrevo em detalhes o encadeamento lógico que agencia conceitos de natureza vodoun em torno do conceito de tempo enquanto experiência existencial. Essa orquestração é articulada em torno de três princípios filosóficos fundamentais no sistema lógico Ewe/Fon, tal como em Einstein temos as três variáveis que definem tempo: Oxumarê ou Dan (como a velocidade, ou a diferença entre o tempo existencial e o tempo ancestral ou cósmico); Omulu ou Sakpata (relacionado à decomposição ou à relação do corpo com a gravidade); e, por último, Nanã (a materialidade ou a dimensão física do corpo). Logo, a leitura acerca dos artistas se orienta pela lógica afro-brasileira que entende, na interação entre esses conceitos, novas possibilidades de conceber relações entre vida e morte em sociedades coloniais. Tal escolha não é feita ao acaso, mas mediante a percepção de que um grande número de artistas afrodescendentes começa a integrar o acervo do ims apenas durante a pandemia e depois das manifestações globais antirracistas, em decorrência do caso George Floyd no ano de 2020 ‒ momento em que a morte centralizava a narrativa global.

2 blavatsky H.; gomes M. A doutrina secreta. São Paulo: Editora Pensamento, 2020. 3 diop, Cheikh Anta. Black Africa: The Economic and Cultural Basis for a Federated State. Chicago: Chicago Review Press, 2012. 4 conceição, J. Irmandade da Boa Morte e Culto de Babá Egum: masculinidades, feminilidades e performances negras. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. 5 almeida, Ana Beatriz Soares de. Contranecropoder: uma narrativa da morte sobre a arte. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2020.

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Manifesto Monxtra Afrocyborg por Afrobapho (2020) – Tempo terrestre × tempo cósmico

Sendo o vodoun mais antigo do panteão Ewe/Fon, a serpente Dan, ou Oxumarê, como é conhecido no Brasil, remonta a uma temporalidade mais abrangente do que a existência humana na Terra. Alguns pilares epistemológicos dessa figura podem ser observados no Manifesto Monxtra Afrocyborg (2020), do coletivo soteropolitano Afrobapho. O cenário da videoarte é constituído por uma atmosfera galáctica, que por vezes faz menção a ruínas egípcias e, em outros momentos, a ruínas do mundo que conhecemos hoje. Ainda que muitos pensadores atuais prefiram fazer uma leitura afrofuturista dessa proposta, acredito que olhá-la a partir da perspectiva da Boa Morte retome uma complexa estrutura epistemológica anterior a esse movimento estado-unidense. Ocorre que as referências ao tempo cósmico citado na videoarte vão de encontro aos relatos das últimas integrantes da Casa das Minas, organização Ewe/Fon dedicada à lógica vodoun. Nos depoimentos recolhidos pelo antropólogo Sérgio Ferretti, há a percepção de que os vodouns não seriam forças da natureza como os Orixás. Segundo essa perspectiva, os vodouns conectariam a humanidade a realidades exteriores ao ambiente terrestre. Esse conceito nos remete diretamente à teoria da relatividade, em que Einstein propõe que um dos pressupostos do tempo seria a presença ou não de gravidade, com esse fator influenciando a percepção de tempo. Visto que há uma diferença entre a percepção da aceleração em um ambiente terrestre (marcado pela gravidade) e um ambiente isento de gravidade, é possível dizer que um evento ocorrido no planeta Terra pode ter uma perspectiva diferente se observado de um ponto cósmico. Nesse sentido, ao considerar os estudos de Einstein e Ferretti, compreendemos que a importância da perspectiva para a observação dos fatos está presente tanto na teoria da relatividade quanto na concepção vodoun; nas duas análises, a diferença reside na percepção variável da velocidade entre o campo terrestre e o ambiente cósmico. A videoarte Manifesto Monxtra Afrocyborg reitera essa perspectiva a partir de sua aproximação com as lógicas de matriz africana, isto é, em torno da figura da serpente exibida diversas vezes durante a obra, assim como na sobreposição de ambientes. Não obstante, essa sobreposição de realidades evoca a diferença quanto ao ponto de observação do evento, indo além da temporalidade histórica hegemônica – o que cumpre com a ruptura de dois dos três pilares ontoepistemológicos observados por Denise Ferreira da Silva: a sequencialidade e a separabilidade. Ainda quanto à ruptura da narrativa hegemônica, a obra

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Afrobapho, Manifesto Monxtra Afrocyborg, 2020 Acervo Instituto Moreira Salles/ Programa Convida

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relativiza a noção moderna de progresso, segundo a qual a civilização deve necessariamente caminhar em direção ao seu ápice. Ao expor as ruínas da atualidade em um possível futuro, o presente se confunde com o passado. Igualmente, ao propor imagens do antigo Egito como cenário de engendramento conceitual desse renascimento futuro, a obra destrói o pilar da sequencialidade como organização do pensamento, além de retomar o primeiro pressuposto conceitual da Irmandade da Boa Morte. No primeiro dia da ritualística da congregação, há uma evocação da memória das integrantes falecidas e um cortejo silencioso em torno da imagem da figura católica, propondo-lhe uma morte simbólica. Apesar de a noção de finitude ser evocada, a menção à vida das integrantes falecidas traz um novo sentido ao presente. Nesse sentido, ocorre a ativação do conceito de Dan ou

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Oxumarê: a possibilidade de se observar a realidade para além da percepção terrestre (marcada pela gravidade e pela fatalidade de vida/morte). A morte, a hegemonia católica e a escravidão como estrutura incontestável são suspensas na desconstrução ritual da noção de sequencialidade, através desse conceito cuja principal representação é a serpente – uma alusão frequente na videoarte e presente também na figura do cajado levado pela provedora da Irmandade (que muda todos os anos). Em pesquisa de campo no Benim, no ano de 2018,6 uma das narrativas que obtive sobre o conceito da serpente foi sua origem egípcia. Dentro desse pressuposto, o conceito de quebra na lógica tempo-espaço já estava presente quando, no Egito antigo, a serpente, além de representar a cura e o veneno, estava também ligada à lógica de imortalidade dos reis e rainhas, bem como conectada a uma narrativa mais ampla que a do próprio planeta Terra. Por fim, essa alusão a conhecimentos anteriores da modernidade como possibilidade epistemológica para um futuro apocalíptico está presente no próprio Manifesto, em que a percepção de magia e tecnologia são sobrepostas. Seria ainda possível alongar-nos a respeito de outros tópicos elencados pela obra: a abordagem da noção de gênero como um conceito não biológico; o princípio de múltipla agregação trazido na introdução que ocorre em iorubá, português e inglês; assim como a percepção do corpo biológico como um estado efêmero – todos também conectados ao universo conceitual de Dan/Oxumarê. Entretanto, creio que seja mais importante, neste artigo, restringir-nos à grande contribuição da obra na construção ética e estética da noção de tempo e história, a partir das lógicas de matriz africana. Essa perspectiva, ao invés de hegemônica, pressupõe pontos de percepção que não se organizam por sequencialidade, mas por relevância (assim como na justaposição de tecnologia ocidental e Egito antigo). Além disso, nessa perspectiva, a narrativa humana não é hegemônica, mas parte de um ecossistema que se expande para além dos limites terrestres. Essa premissa cria, inclusive, a possibilidade de se relativizar tempo e espaço, visto que a perspectiva terrestre não está posta como verdade incontestável. Nesse sentido, a lógica vodoun aproxima-se da teoria moderna de Einstein, segundo a qual a percepção do fato é sempre suscetível à posição do observador, e o tempo é colocado em oposição à realidade definida pelos marcos vida e morte – uma realidade em que vida e morte, dia e noite não consistem em marcos temporais. Essa diferença entre tempos e velocidades é o que a cultura vodoun chama de Dan, ou Oxumarê. 6

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almeida, Ana Beatriz Soares de. Op. cit.


Dona Dalva Damiana: Vida e Morte – Um traço gravitacional

A contribuição da obra de Dona Dalva Damiana neste artigo se assemelha à contribuição da Irmandade da Boa Morte acima explorada. A gravidade podendo ser percebida como variável relevante no entendimento do tempo, seus efeitos sobre o corpo demarcam nossa relação com a Terra. De modo que, simultaneamente às relações entre seres humanos, a experiência humana no planeta é principalmente marcada por nossa trajetória social no que diz respeito à Terra. O lugar onde vivemos e a forma como habitamos os limites espaciais do território são parte fundamental da nossa percepção de tempo. Essas variáveis afetam, inclusive, nossa qualidade de vida e nosso tempo de existência. Nesse sentido, o território como experiência social é um dado relevante na percepção do tempo, e um dos fatores principais da Irmandade da Boa Morte. Isso se dá pelo universo simbólico em torno do vodoun Omulu, conhecido como dono da terra: ele se conecta com as doenças, um regulador natural de renovação do solo e do planeta. O principal conceito por trás desse princípio é a resiliência enquanto habilidade desenvolvida na adversidade. A relação ritual de Dona Dalva Damiana com Omulu enquanto conceito filosófico nos ajuda a compreender sua produção artística, e como tal noção contribui na percepção de tempo articulada pela Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. Talvez o expoente mais proeminente na construção de linguagem no vodoun seja a idade avançada como pré-requisito para as integrantes. Considerando-se as características brutais do racismo e do machismo durante a escravidão, superar 50 anos de vida, para uma mulher negra, consistia num grande feito, mas principalmente numa mostra de conexão com o princípio ritual em questão – uma vez que a própria existência naquela faixa de idade constituía, necessariamente, a superação das adversidades a partir da resiliência. Para Dona Dalva Damiana não foi diferente, apesar das grandes dificuldades implicadas em ser uma mulher negra do Recôncavo Baiano e chefe de uma extensa família; sua chegada aos 95 anos constitui uma das suas maiores contribuições como autora. Além de dádiva, o prolongamento da existência acima da média é também um instrumento de atualização histórica. No caso de Dona Dalva, a extensão de seu tempo de vida sobre a Terra nos traz, através de suas canções, narrativas como a de sua avó Maria Tereza. Nesta, estão presentes não apenas a dor da avó, que criava a neta numa realidade pós-escravidão privada de recursos financeiros, mas também o sentimento infligido na neta (Dona Dalva), ao perceber a situação de limitação da avó. O deslocamento forçado e a sobre-

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vivência em regime escravocrata aproximam muito a realidade de africanos e afrodescendentes nas Américas do conceito filosófico em torno de Omulu. É possível notar o quanto tal construção pode ser útil numa narrativa de sequestro e escravidão, visto que vodoun se relaciona mutuamente à Terra e ao caráter de resiliência para transformar situações adversas – manifestadas em doenças do corpo físico ou social. Podemos observar tal característica ao analisar um dos sambas de roda mais famosos compostos por Dona Dalva: maria tereza Maria Tereza toma lá teu pedaço Todo mundo tomou, tomou Mas não teve embaraço O embaraço que eu tive Foi não ter meu dinheiro Para comprar uma fita, Uma fita Para amarrar seus cabelos.

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Associação Respeita Januário, Sambas e cocos, 2020 Acervo Instituto Moreira Salles/ Programa Convida


Quando Dona Dalva narra em seus sambas as dificuldades de sua avó, põe em ação as lógicas em torno do vodoun Omulu: primeiro ao conectar-se com a própria Terra enquanto veículo – visto que a mídia utilizada é o samba, um ritmo relacionado com o ancestral local –; e, num segundo momento, ao transformar a dor e o sofrimento gerados pela pauperização da situação escravocrata em memória e retrato político. Neste ponto, é possível ver como os princípios estão inter-relacionados, e como eles operam na relativização de tempo e espaço. À medida que Dona Dalva Damiana conta, através de um samba de roda, uma experiência traumática, o trauma entra em processo de cura por meio de seu compartilhamento com a comunidade. Percebe-se que a obra de arte muda não apenas o futuro, mas o passado – ao intervir na percepção da criança que foi sujeita a essa violência estrutural, a própria Dona Dalva Damiana. Logo, seguindo a lógica contra-hegemônica da Irmandade da Boa Morte, se, num primeiro momento, a canção menciona uma realidade mais abrangente e destitui a narrativa linear, numa outra instância, a evocação da Terra e das dinâmicas ao seu redor figura como um marcador na narrativa Ewe/Fon que agrega um fator sociopolítico para a articulação da noção de tempo. Essa operação é frequente na prática de Dona Dalva enquanto sambadeira. Em Associação Respeita Januário – Sambas e cocos, disponível ao público pelo Programa Convida do ims, a compositora inicia o documentário com um samba para São João, ao lado de sua filha Ana. O samba entoa um pedido de licença ao santo católico para “vadiar”. Considerando que a escravidão ocorre sob a justificativa religiosa de que pessoas afrodescendentes não portariam uma alma, por isso estariam fadadas ao trabalho vitalício a fim de se salvarem, o samba promove o reconhecimento dessa condição e uma transgressão a ela. A evocação espiritual pelo direito de celebrar através do ritmo do ancestral da Terra reconhece a condição injusta e conjura, em sua própria lógica, sua suspensão. Desse modo, ainda que reconheça uma dimensão supra-humana da existência, o sistema filosófico afro-brasileiro de base Ewe/Fon considera as condições atrozes do colonialismo sobre povos africanos e afrodescendentes. Por ter esse caráter decolonial, uma vez que afeta a separabilidade, a sequencialidade e a intencionalidade dos fatos, alterando simultaneamente passado e presente, refiro-me ao corpo filosófico da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte como contranecropoder.

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A gente acaba aqui (2021): a morte enquanto reafirmação da matéria na poética de Everlane Moraes

Por fim, pretendo abordar o impacto da matéria na percepção do tempo enquanto característica do princípio Ewe/Fon Nanã, através da obra A gente acaba aqui, de Everlane Moraes, cineasta oriunda de Cachoeira e afrodescendente, assim como os outros artistas analisados. É importante perceber que, uma vez que a matéria constitui o veículo através do qual construímos nossa presença no planeta Terra, a percepção dela torna-se tangível, possivelmente, apenas mediante sua ausência. Talvez por usar esta chave de percepção, o filme diga tanto. A finalização do material, uma encomenda do ims, ocorre num dos momentos mais soturnos da pandemia. Nele não figuram desconhecidos: trata-se do funeral do tio de Moraes, ao qual ela havia prometido, ainda em vida, realizar um documentário. Esse fato por si evidencia a força da matéria na sua ausência, afinal, a fim de cumprir a promessa ao tio que se encontrava doente, a cineasta

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Everlane Moraes, A gente acaba aqui, 2020 Acervo Instituto Moreira Salles/ Programa Convida


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leva adiante o projeto que só ocorrerá após o seu falecimento, nos últimos momentos de contato humano entre sua família e o corpo do tio. Naquele segundo, o corpo, que é uma manifestação individualizada da existência, assume caráter coletivo, uma vez que a ausência do morto faz com que ele surja nos encontros entre conhecidos em comum, nas narrativas de episódios vividos, na vida de irmãos, sobrinhos e parentes. Ao se observar a obra de Everlane, compreende-se a importância de a Irmandade da Boa Morte organizar-se enquanto um funeral coletivo na sociedade em que foi criada, e de seu poder agregador até os dias de hoje. O reconhecimento do desaparecimento da matéria une a coletividade em torno das trocas em comum exercidas durante o momento de vida da matéria; ter testemunhado a existência produz uma comunidade. Uma rede em torno daquele momento de existência que agora, ao findar-se, parece breve. Dessa forma, é possível entender que a finitude da matéria revela sua sujeição às variáveis de tempo e espaço: a matéria figura como uma manifestação da interação desses dois fatores, tal qual previa Einstein. Na lógica da Irmandade da Boa Morte, essa terceira variável corresponderia a Nanã, que tem significados distintos dos dois lados do Atlântico. Em pesquisa de campo no Benim, pude averiguar a proximidade que este vodoun possui com a noção de materialidade, no sentido de “tornar palpável ou material”. Em terras brasileiras, a mesma divindade está também relacionada à matéria pura e simples, entretanto há uma construção do conceito atrelada a morte. Essa transformação encontra pelo menos duas possíveis justificativas. A primeira seria a presença de um assentamento de Nanã no forte de Elmina, na região de Cape Coast, em Gana – dados locais indicam que o assentamento é anterior à construção do forte, de onde teria saído uma quantidade significativa de pessoas em direção à escravidão nas Américas. Uma vez que atravessar o mar seria superar a morte, e as condições de vida nas sociedades coloniais se assimilariam a algo talvez pior do que a morte, não é difícil imaginar que a associação da experiência com a divindade tenha impactado no seu significado. A segunda justificativa possível para a transformação do conceito pode ser encontrada na narrativa do próprio documentário A gente acaba aqui, visto que a morte é um princípio agregador – a modificação conceitual poderia ter a finalidade política de estruturar e consolidar um novo corpo coletivo nas Américas, a despeito de etnias, com o intuito de resistir à escravidão. Nesse contexto, a morte figura como um ponto que uniria os mais diversos grupos; ironicamente, essa união e a ritualização da morte para aqueles que não tiveram direito a um funeral digno atrairiam recursos – lógica que remete à natureza simbólica de Nanã na África ocidental.

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Independentemente dos motivos para a transformação, o fato é que Nanã é o princípio fundamental na Irmandade da Boa Morte, e podemos compreender mais sobre como esse conceito exerce poder simbólico-estrutural na ritualística do grupo a partir da observação do filme. Inexoravelmente, a questão funerária, ou a produção de uma narrativa afetiva em torno dos funerais, inaugura um rito de passagem do qual as pessoas foram destituídas ao ingressarem, enquanto mão de obra gratuita, na sociedade colonial. Tal como se vê na obra de Moraes, há, nesse rito, uma transição de estados afetivos que vão desde a normalidade dispersa – quando o corpo do morto permanece como centro do evento, com uma atmosfera de normalidade mantida no entorno –, até o momento em que começam as orações e o caixão é fechado. Essa alternância de estados é um momento relevante nesta análise, e possivelmente capta uma operação significativa para se entender a dinâmica dos povos organizados em torno da lógica afro-brasileira Ewe/Fon. O tempo dispensado ao morto durante o velório e o cuidado com o evento e as pessoas presentes – ainda que se contando com recursos escassos – são fundamentais na construção de humanidade para aquele grupo de pessoas. A forma como a passagem é feita afeta simultaneamente passado, presente e futuro. Passado, porque finaliza com dignidade a jornada daquele que parte; presente, porque aqueles que ali comparecem e compartilham histórias sobre o falecido exercem também sua integridade humana (ainda que socialmente ameaçada pela pobreza e pelo racismo), por meio do direito de cuidar; e futuro, porque para as crianças ali presentes é transmitida uma noção de dignidade e civilidade entre iguais que socialmente não está disponível a jovens negros. Essa percepção da obra de Everlane Moraes torna notório o quanto a escolha filosófica da Irmandade da Boa Morte em organizar-se em torno dos funerais e da figura conceitual de Nanã exerce um impacto abrangente e duradouro. Há uma grande tradição de festejos e celebração da morte na cidade de Cachoeira – onde a cineasta nasceu e onde se situa a sede da Irmandade da Boa Morte. Sendo ela uma das cidades que mais lucrou com o tráfico de escravizados e que mais recebeu pessoas traficadas entre os séculos xvii e xviii, entende-se que a questão social da indigência e o valor das vidas africanas e afrodescendentes ultrapassavam os limites de catástrofe social,7 configurando-se num crime contra a humanidade ainda não reparado. Isso explica a contundência das manifestações públicas que têm a morte como foco. 7 reis, J.J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século xix. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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Ao se contrapor o impacto social com a dimensão conceitual, entende-se a centralidade que Nanã e a morte ocupam na Irmandade da Boa Morte, e como esse conceito filosófico que une a ideia de matéria e de finitude é fundamental na construção do sistema lógico revolucionário da congregação. É como se, a partir desse último princípio norteador, fosse possível acionar os outros dois conceitos-chave aqui abordados. Assim sendo, o espaço produzido diante do fenômeno da morte é uma variável importantíssima na percepção do tempo e das relações de força no que se refere à Terra (que Einstein entenderia como gravidade). Logo, como podemos ver em A gente acaba aqui, a morte (que as lógicas afro-brasileiras concebem como Nanã) revela mais do que o espaço habitado; coloca-o em relação com o tempo e deflagra a relação individual e coletiva com a Terra.

Conclusão

Ao produzir um olhar sobre o Manifesto Monxtra Afrocyborg do coletivo Afrobapho, a biografia e os sambas de autoria de Dona Dalva Damiana e o filme A gente acaba aqui, de Everlane Moraes, tracei um paralelo, acerca da concepção de tempo, com a Irmandade da Boa Morte. Nessa concepção, fricciona-se a noção de presente a partir de uma percepção humana e terrestre, com uma temporalidade mais abrangente, que considera o jogo humano dentro de um contexto cósmico, indo além de nossos limites planetários – noção presente na figura de Dan ou Oxumarê. Subsequentemente, esse sistema lógico utilizará também, enquanto variável, as relações entre os seres e a Terra durante seu período de vida, ou seja, a capacidade de transformação e resiliência diante dos jogos de força entre o indivíduo e o planeta – variável representada pela figura de Omulu. Por fim, fiz uma breve análise em torno do espaço gerado pela morte e pela gestão coletiva do fim da matéria – um conceito fundamental, uma vez que aciona todos os outros, e representado sob a figura conceitual de Nanã. Dessa forma, pretendi revelar que as variáveis da teoria da relatividade geral de Einstein se repetem no sistema lógico estruturador da Irmandade da Boa Morte, a partir das obras de arte que evocam tais princípios filosóficos. Assim como o físico indica que a percepção de tempo está condicionada à interação entre velocidade, gravidade e espaço, a Irmandade da Boa Morte propõe a mesma articulação em seus três dias de rituais públicos. Neles, o tempo é substituído pela noção de tempo vital, uma vez que se entende que o observador se situa no planeta Terra, e que suas percepções estão limitadas pela dinâmica

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de morte e vida. Logo, o tempo vital seria resultado da consciência do tempo terrestre e de temporalidades superiores aos trânsitos deste planeta, e do jogo de forças entre o indivíduo e a Terra, considerados no espaço produzido em vida e consolidado na morte. O fato intrigante de que obras de artistas negrxs tenham entrado no acervo do ims apenas durante o período em que o genocídio se tornou generalizado globalmente revela que o ambiente institucional de produção de conhecimento precisa mais dessas obras do que elas têm precisado das instituições. A complexidade dessas obras é de grande auxílio na compreensão geral de conceitos profundos, oferecendo, inclusive, abordagens inovadoras – das quais carecem as instituições que, até hoje, são predominantemente masculinas e brancas. O desenvolvimento ético e estético de uma noção de humanidade mais complexa e abrangente passa, necessariamente, pela adoção dessas filosofias seculares enquanto formas de ler o mundo.

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TEMPO NEGRO: ABSTRAÇÃO E RACIALIDADE NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DIANE LIMA

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I

Nos últimos anos, os motivos pelos quais vimos crescer exponencialmente a presença da abstração como uma estratégia de recusa na prática de artistas racializados e dissidentes têm contornado a minha pesquisa e prática curatorial, sobretudo no que tange a alguns projetos mais recentes. Como quem escreve do futuro, hoje vejo que o modo como esse nosso encontro tem se dado tem a ver tanto com o exercício de acompanhamento que tenho feito com um grupo de artistas, como com a incontornável transformação que esses mesmos artistas vêm promovendo no campo da arte contemporânea, nos últimos cinco anos. Tem a ver também, com uma escuta atenta aos efeitos generativos que sustentam o encontro entre teoria e prática, e que, na concepção do pensamento feminista de bell hooks, aproximam-se da própria definição sobre o papel da intelectual negra: aquela que une pensamento à prática para entender a sua realidade concreta (hooks, 1995). Tal reviravolta epistemológica em curso no Brasil parece estar intimamente conectada com o modo como as nossas movimentações têm impactado o

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sistema de produção de conhecimento no campo da cultura e da arte,1 e os modos como tais práticas e políticas afirmativas vêm encontrando maneiras de (re)organizar esses saberes nos mais diferentes espaços (formais e não formais) de educação. São exemplos de acontecimentos históricos importantes: a aprovação das leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que tornaram obrigatórios os estudos em história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todas as instituições de ensino do país; a implantação do sistema de cotas nas universidades; as diversas mobilizações, tanto em combate à intolerância religiosa quanto para a proteção legal dos terreiros na salvaguarda da cultura de matriz afro-indígena; além de, mais recentemente, um boom editorial que se, com certeza, é efeito dessas e muitas outras mobilizações, também carrega a hipervisibilidade digital como base propulsora. Sendo partícipes de uma geração que dialoga, fermenta, dissemina, viu e segue vendo não somente autoras e autores negros se tornarem (hiper)visíveis, mas toda uma comunidade de saber organizar-se historicamente no combate ao epistemicídio – ao criar estratégias próprias que servem como ferramentas para lidar com o cotidiano –, essas práticas artísticas, além de ampliar os limites sobre as políticas de representação, vêm não somente inscrevendo historicamente as lutas raciais e suas teorias no campo da linguagem e da estética, como vêm, sobretudo, sendo expressivamente influenciadas e expandidas por elas. É, portanto, a partir desse ambiente efervescente para a produção de conhecimento que se confirma a importância deste preâmbulo: de saída, recusar quaisquer leituras superficiais que possam reduzir o uso da abstração na poética negra como sendo essencialmente fruto das mesmas motivações que deram origem ao abstracionismo na história da arte ocidental. Como veremos, ao fazer abstração – ou seja, ao isolar ou excluir, sem figurativizar, tudo aquilo que à luz da ultravisibilidade pode ser tomado como excesso –, esses artistas apresentam um arcabouço de referências alargado, apoiando-se na materialidade, na ancestralidade, em seus territórios e no arsenal estético e teórico das diásporas; elementos que, em última instância, levam-nos ao questionamento central que dá consistência ao propósito deste texto: questionar como um museu de arte contemporânea universitário como o mac-usp pode ser um espaço possível de recepção, salvaguarda, produção de conhecimento e exibição de uma arte contemporânea produzida por pessoas historicamente racializadas e dissidentes, a partir de um confronto com o seu próprio acervo. Discuto mais especificamente o modo como o legado dos movimentos abolicionistas e sociais e os efeitos das políticas afirmativas no sistema educacional brasileiro têm impactado a produção artística e cultural contemporânea no texto “Por uma educação que interesse aos negros” (2021).

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II

Não estranhe a leitora o tom de ação e aproximação, a voz descritiva e virtual que sustentam as páginas que se seguem. Eles se justificam pelo fato de que este texto é fruto da minha apresentação no seminário ocorrido em outubro de 2021, no âmbito deste Programa, proposto pelo ims. O que vou apresentar neste texto, então, são alguns questionamentos que surgem a partir desse contato, e que se conformam na hipótese sobre como o concretismo e o neoconcretismo no Brasil criam uma equação de valor que tem como consequência a obliteração (ou uma tentativa de obliteração) da racialidade na cena ética e estética moderna no país. Se a princípio proponho uma leitura de algumas obras emblemáticas do acervo, a partir do que o pensamento radical negro e a poética feminista negra de Denise Ferreira da Silva têm nos possibilitado revelar, esse gesto serve apenas para fundamentar aquilo sobre o que mais nos interessa especular: como um conjunto de práticas contemporâneas responde, não exatamente a elas, mas ao que essas obras vêm produzindo como efeito, em nosso presente? Na prática, essa operação se configura através do modo como o feminismo de recusa e todo um conjunto de saberes ancestrais têm nutrido a intelectualidade artística negra, disponibilizando ferramentas capazes de fomentar rotas de fuga a essa mesma historicidade. As consequências para essas poéticas, como veremos, materializam-se numa recusa em deflagrar, citar ou (re)criar uma relação de interdependência que as paralise num movimento essencialmente contra a história, abrindo espaço para uma performance do aqui-agora. Por outro lado, sabemos que é impossível evitar a ontológica reprodutibilidade sustentada por meio das visualidades que definem a linearidade dessa história, e que, mesmo na recusa, seria impossível fugir do efeito totalitário que há no abstracionismo, ainda que dele nenhum desses artistas seja declarado descendente. Nesse caso, seria no mínimo falível tentar circunscrever, em argumentos rígidos, o impacto em nosso imaginário e formação cognitiva da enciclopédia iconográfica da arte ocidental, bem como das múltiplas referências que povoam os nossos imaginários, sobretudo considerando os que com ela foram academicamente disciplinados. Assim sendo, se não é o nosso objetivo medir essa dimensão, também não pretendemos ser passivas quanto a leituras universalistas e comparativas que desde sempre tomam os eleitos grandes ícones como régua do mundo. O que nos parece, então, ser o motivo central pelo qual artistas contemporâneas racializadas caminham na direção de uma expressão abstrata (e, portanto, da fuga à norma tema-figura) é a compreensão de que a figurativi-

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dade, suas ferramentas críticas e procedimentos poéticos não têm sido capazes de desmantelar o mundo que a representação de suas denúncias contra-ataca. Dito de outro modo: a dimensão utilitária da linguagem, no uso da exposição da violência como uma ferramenta de protesto, não tem ​​ sido capaz de performar a descolonização ou o fim do mundo tal qual o conhecemos, e no qual a violência racial faz sentido. Nesse caso, a tomada da abstração como uma estratégia de expressão tem muito mais a ver com a crise das políticas de representação do nosso contemporâneo e um exercício de liberação cognitiva do que com um retorno a uma tendência histórica. A fuga é, portanto, conforme Denise Ferreira da Silva repetidamente destaca, “refigurada em um fazer crítico e criativo sempre em referência a um modo de existir como condição do mundo, e não como a condição de estar no mundo, desse modo produzindo aquilo que é ao mesmo tempo uma façanha, uma ação, um fardo e um artefato” (ferreira da silva, 2019). E é essa condição do mundo que sustenta a produção de valor do concretismo e do neoconcretismo, fazendo, ao fim, dos artistas concretos e neoconcretos numa esfera da arte global a imagem que se conhece como sinônimo de arte no Brasil e, portanto, o referencial estético que aprisiona o futuro que agora pretendemos escavar.

III

Retomo, então, o que Ferreira da Silva chama de um esforço na direção de um exercício de destruição, na tentativa de utilizar a black light, uma ferramenta analítica pela qual seria possível fazer “reluzir o que deveria permanecer ofuscado para manter intacta a fantasia da liberdade e da igualdade” (ferreira da silva, 2019, p. 125). Ainda segundo a filósofa, como a luz negra é focalizada naquilo que não aparece na teoria, ela a fratura, expondo a violência total. E é essa violência total que tem a capacidade de quebrar o código e suas consequentes equações de valor. Nesse sentido, detectar e quebrar o código da produção de valor do abstracionismo moderno se trata de um trabalho longo, do qual hoje apresento os primeiros passos, já que o que me chamou atenção no acervo do mac-usp – e há muito vem matizando os meus projetos curatoriais – é a forma como a abstração se coloca como um cânone decisivo para a produção da arte moderna brasileira no século xx; e como, no século xxi, procedimentos composicionais de artistas historicamente racializados e dissidentes, praticantes da abstração,

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tem sido performados a partir de materialidades, linguagens e técnicas que carregam as suas próprias especificidades. Sendo assim, são duas as obras em que irei me deter. Nesta seção, focarei na Unidade tripartida, de Max Bill, obra de 1948-1949, e em Triângulos opostos pelo vértice, retângulo, quadrados, barras, de 1931, de Sophie Taeuber-Arp, que, juntas com outros nomes, formam o conjunto de obras que visitei e que são peças basilares na coleção do museu. Para começar nossas análises, apresento esta imagem que muito me impressiona por sua violenta sutileza. Trata-se da fotografia de título Homens limpando a sala de representação da Suíça na i Bienal de São Paulo, com obras de Sophie Taeuber-Arp, de autoria do alemão Peter Scheier, na qual – como enuncia o título – aparece a obra de Taeuber-Arp, artista que integrou a delegação suíça da i Bienal de São Paulo em 1951, assim como também o fez o suíço Max Bill. A título de contextualização, Peter Scheier foi um dos fotógrafos que se dedicou, nas décadas de 1940 e 1950, ao registro de espaços de arte. Sendo ele

Peter Scheier, Homens limpando a sala de representação da Suíça na i Bienal de Arte de São Paulo, com obras de Sophie Taeuber-Arp, Museu de Arte Moderna de São Paulo, sp, 1951 Acervo Instituto Moreira Salles/ Coleção Peter Scheier

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“um detentor de referenciais estéticos modernistas” (costa, 2015, p. 100), o nosso objetivo na leitura dessa fotografia é olhá-la como um documento capaz de nos trazer informações sobre os espaços de arte da época, mas também entender como essas representações, do ponto de vista racial, acabavam por carregar as marcas das negociações das imagens encomendadas daquela mesma época. É importante para nós a questão sobre a veiculação midiática dessas imagens, pois, conforme muitas das trocas que tive ao longo do seminário com as pesquisadoras-professoras Ana Magalhães, Helouise Costa e Alecsandra Matias, elas acabam por destacar o quanto o concretismo foi de fato um projeto político, e como este foi encenado largamente na imprensa de modo a posicionar São Paulo como uma capital moderna. Inclusive, os textos “Apresentação. Arte abstrata no Brasil: novas perspectivas”, de Ana Magalhães e Adele Nelson, e “Espaços da arte: fotografia e representação em Peter Scheier”, de Helouise Costa, são ricos ao apresentar como a consolidação dos conglomerados de comunicação se estrutura no mesmo momento da criação dos primeiros museus, galerias e acervos, a exemplo do próprio Masp, bem como da Bienal de São Paulo. Scheier foi funcionário do Masp e da revista O Cruzeiro – empreendimentos liderados por Assis Chateaubriand, um dos magnatas da comunicação do Brasil do século xx. Como não é o nosso objetivo dissecar de modo tão detalhado tais informações, mas saber o que acontece quando racializamos essa fotografia, resta-nos compartilhar a seguinte questão: o que significa, na imagem de Scheier, a presença dos trabalhadores negros limpando coreograficamente o chão de onde emergem as paredes com as obras de Sophie Taeuber-Arp? Se, segundo Heloisa Espada (2021), o fotógrafo, de forma recorrente e estilística, fazia uso das polaridades para causar surpresa, humor, ou para mobilizar a curiosidade popular, a presença dos trabalhadores negros, montadores e profissionais de limpeza da exposição (tal como – não esqueçamos – aponta o seu título) cria uma oposição sensacionalista, por meio do bizarro, do grotesco, do inusitado, do pitoresco, expressos no corpo racializado negro que assume o seu lugar como mão de obra de um projeto moderno, enquanto as obras de Sophie Taeuber-Arp, como a já citada Triângulos opostos pelo vértice, retângulo, quadrados, barras, de 1931, reinam no espaço, absolutas. O que essa imagem, então, nos ajuda a evidenciar é aquilo que, de modo contundente, a obra em si exclui: como ela mesma articula e abstrai, através do seu racionalismo e universalismo, as estruturas raciais da sua pureza formalista estética. É o que avistamos na descrição da obra de Taeuber-Arp, mulher de grande destaque da delegação suíça, segundo Heloisa Espada:

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Taeuber-Arp trabalhava com formas de aparência anônima traçadas com instrumentos de precisão (régua e compasso, por exemplo), e suas telas eram construídas com poucos elementos repetidos em dimensões variadas. A clareza, a nitidez, a precisão, a uniformidade da superfície e a ideia de anonimato justificam seu alinhamento à arte concreta. No entanto, o equilíbrio do quadro é resolvido caso a caso, não a partir de uma regra pré-fixada, mas das relações estabelecidas entre os elementos, os cheios e os vazios, as proporções, a vibração das cores e o ritmo criado pelas repetições, como se observa em Triângulos opostos pelo vértice, retângulo, quadrados, barras. O equilíbrio construído a partir de diferenças, por vezes conciliando ideias antagônicas de ordem e desordem, movimento e imobilidade, simetria e assimetria, brilho e opacidade, é um tema central em seu trabalho (espada, 2021, p. 192).

Ao olharmos para essa descrição e convidarmos ao diálogo David Lloyd, que em seu livro Under Representation (2019) demonstra que, assim como a disciplina da teoria estética forneceu os termos indispensáveis que regulam a produção e reprodução da ideia de sujeito humano da modernidade, universal e livre, a abstração moderna no Brasil funciona como um regulador do pensamento desenvolvimentista, criando uma clara divisão entre aquele dotado de Razão e o “Outro irracional”, que ainda, segundo o autor, será relegado aos estudos de disciplinas como a antropologia. Sobre essa atribuição redutiva de um propósito formal ao objeto na equação de valor dessas obras, é válida a afirmação de Lloyd, que diz que ninguém pode ultrapassar esse limiar sem uma cisão que separe o ser humano corpóreo do sujeito formal, do juízo estético que se identifica com o sujeito universal da humanidade. Figuras raciais assombram esse limiar, marcando a fronteira entre os assuntos de civilidade e o espaço subdesenvolvido de selvageria e escuridão (lloyd, 2019, p. 7).

Em outra fotografia de Scheier de 1951, os artistas Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Kazmer Féjer e Tomás Maldonado posam ao lado da escultura Unidade tripartida, de Max Bill, na i Bienal de São Paulo. A justaposição de fotografias é capaz, no mínimo, de revelar como as posições se definem entre roupas rotas, sujas e rasgadas de olhar subserviente e dócil, em alto contraste com os ternos alinhados e o olhar impositivo, que encara, na altura do olho e de braços abertos, o objeto de valor ao qual a Forma, a Função e a Beleza de Bill passaram a ser reverenciadas. Segundo Ana Magalhães e Adele Nelson (2021, p. 97):

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Peter Scheier, Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro, Kazmer Féjer e Tomás Maldonado posam ao lado da escultura Unidade tripartida de Max Bill, na i Bienal de São Paulo, sp, 1951 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Peter Scheier

Os protagonistas do estabelecimento de um conjunto de instituições de arte moderna no pós-guerra e da emergência da abstração, formada de patronos da arte, artistas e escritores, eram, com poucas exceções, os privilegiados – letrados e majoritariamente brancos, ainda que de classes sociais diferentes, bem como de identidades étnico-regionais diversas – e não estavam sujeitos à privação ou à violência do Estado. Eles eram, ao contrário, os cidadãos favorecidos e os agentes da imagem do indivíduo e da sociedade do segundo pós-guerra, enquanto o Brasil experimentava uma expansão da classe média urbana.

Recorremos à matemática para entender os princípios e as operações de Bill que, mesmo rejeitando o recurso das fórmulas na produção artística, defendia “o uso de princípios racionais na formulação de temas que poderiam concretizar abstrações e proposições artísticas” (marar, 2004, p. 2). Ainda que, para Bill, a arte concreta fosse a expressão pura da harmonia da medida e regra, ele “acreditava na arte como um veículo para transmissão direta de ideias, sem o perigo de o significado ser distorcido por qualquer interpretação falaciosa. Dessa forma, o espaço da arte torna-se mais universal,

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Max Bill, Escultura em aço Unidade tripartida, foto de Hans Gunter Flieg, 1948-1949 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Hans Gunter Flieg ©Bill, Max/Autvis, Brasil, 2023


isto é, uma expressão direta e sem ambivalência” (marar, 2004, p. 2). Bill (1954) dizia: “Estou convencido de que é possível desenvolver uma nova forma de arte na qual o trabalho do artista poderia basear seu conteúdo, num grau bastante substancial, na linha de abordagem matemática”. Encontro uma relação entre essa matemática axiomática e tautológica de Bill, fundamentada nas noções da Gestalt, e as teorias relativísticas da matéria, a matemática enedimensional, o problema da fita de Moebius – e, portanto, as demonstrações geométricas como base para a determinação e a certeza –, nas explicações de Ferreira da Silva sobre o uso da disciplina e suas operações. Pois é na montagem e na remontagem dessa equação de valor que a sua ferramenta analítica, a black light, é capaz de quebrar os códigos (tais como este que aparece na topologia geométrica da Unidade tripartida, de Max Bill). Acredito que a perversidade, a dupla violência, o excesso da violência racial resulta de que esta também tem um caráter ético, o qual é dado pelo princípio da necessidade (o qual se opõe ao princípio da vida e ao princípio da liberdade). O princípio da necessidade justifica e explica tanto as operações matemáticas quanto as operações militares. Um princípio que é perverso, pois sempre se autojustifica e torna a mobilização dessas forças violentas possíveis, aceitáveis e necessárias. Logo, a black light vai atrás desse princípio e mostra que é ele que torna impossível a demanda pela restauração, pela reparação. Esse princípio também é o que torna impossível ver como tudo foi constituído pelo capital industrial, e só ocorreu por causa do trabalho escravo, 300 anos de trabalho escravo.2

Assim, tomando tais imagens para um exercício de especulação historiográfica, se encaramos os trabalhadores negros, da primeira fotografia apresentada, como significantes da dívida impagável – advinda da exploração total do trabalho escravo e posterior marginalização, precarização ou impossibilidade de adentrar ao mercado de trabalho –, como os valores impregnados nessas obras, símbolos de uma São Paulo moderna, militarizada e desenvolvimentista, excluem, em termos formais e práticos, essa mesma negritude? Ao fazer abstração, o que há de concretamente político nessas obras (não a partir do que ela não figurativiza, mas da distância que cria entre a sua ética e o objeto pelo qual se autorrepresenta)? 2 Trecho referente a entrevista concedida a mim para um livro que estou organizando e será lançado pela editora Fósforo. No prelo.

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Sobre a atenção do mercado internacional ao concreto, a formação da sua força generativa e suas vocações político-econômicas que influenciaram, ainda que com suas disputas, toda uma geração de artistas, Magalhães e Nelson (2021, p. 97) nos deixam uma pista. Segundo as autoras: De fato, a promoção da arte neoconcreta e concreta brasileiras em sentido mais amplo pode ser vista já no final da década de 1950, quando organismos diplomáticos brasileiros apoiaram uma série de exposições que promoveram esses artistas no contexto internacional, lado a lado com a apresentação do projeto de Brasília, como a nova capital do país.

Aqui, poderíamos abrir um longo capítulo para apresentar como as ideias de progresso foram racializadas com a presença da autoprodução da figura do europeu, em que o “eu” transparente se torna produto e instrumento da razão universal para fazer frente a um Brasil condenado à miscigenação tropical que sustentava o mito da democracia racial. A extensa descrição que fizemos sobre o formalismo geométrico serve a essa condição: A miscigenação inscreve com segurança um movimento histórico duplo, a saber, a trajetória teleológica – o movimento em direção à transparência – do sujeito branco/europeu de uma “civilização moderna” patriarcal, e a trajetória escatológica de seus “outros”; mas, mais importante, também institui um sujeito social precário, o mestiço – o brasileiro mais ou menos negro ou branco –, cujo destino é realizar um desejo de autoapagamento (ferreira da silva, 2006, p. 74).

Como agentes de uma política de embranquecimento, esses artistas estrangeiros, junto a um grupo de artistas brasileiros massivamente brancos que reencenavam as vanguardas europeias, tornaram-se as instituições estéticas a serem perseguidas, obliterando com as suas formas e cálculos precisos, no Brasil do pós-guerra, qualquer abordagem artística que não estivesse voltada para os princípios geométricos ou não fosse fruto de um desdobramento visual que partisse de suas linhagens. Motivo pelo qual se justifica a formação de um cânone altamente reprodutível em toda a segunda metade do século xx, e a consequente hipervisibilidade como fenômeno de propaganda, fazendo a abstração ocupar um espaço de destaque nas narrativas euro-americanas da arte latino-americana. A artista e pesquisadora Rosana Paulino, uma das organizadoras deste seminário, elaborou, em 2018, essa crítica ao concretismo brasileiro nas

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séries Geometria à brasileira (2018) e Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical (2020). Fazendo uma citação direta à violência geométrica do pós-guerra, ao cobrir os olhos das pessoas pretas e indígenas representadas nas obras, Paulino expõe como esses princípios de causalidade e eficiência servem a tais procedimentos de obliteração da racialidade como um componente jurídico, econômico e simbólico da modernidade. Juntamente com Renata Felinto, em texto publicado na revista zum, de título “Violenta geometria”, as autoras comentam: A geometria é justamente o elemento compositivo que impossibilita que as pessoas enxerguem – e recebam de volta nosso olhar, reconhecendo-as como sujeitos. A geometria as exclui e as força a ver o mundo, a si, aos seus e às suas por uma perspectiva histórica unilateral, a partir de um modo único de ser, estar e existir (paulino; felinto, 2021).

Por fim, mais do que um levante histórico detalhado dessas duas obras (algo que seria impossível em nosso curto espaço de tempo), o que me concentrei em fazer foi levantar algumas questões que seguirão sendo desenvolvidas sobre o que essas e outras obras emblemáticas da história da abstração e seus híbridos excluem, e o que (em termos de uma obliteração/subjugação racial e uma política de embranquecimento) a própria fotografia de Scheier, diferentemente da obra em sua síntese, escancara. O gesto coreografado da imagem nos chama a atenção. Tal movimento me faz efabular o tipo de memória que essa mesma coreografia encenada na fotografia, essa espécie de dança com sorrisos avergonhados e de costas para a História, tem performado no presente. Por meio da imposição da máquina fotográfica como um equipamento que captura, dispara e intimida, o que o fato de estar nessa posição, olhando “docilmente” para o chão enquanto se limpa, gerou como mobilização política nos dias de hoje, na direção dessa mesma história da arte? E o que estar de costas para um momento fundante da história da arte moderna do Brasil nos trouxe como força revolucionária, que toma a profundidade negra como negatividade (recusa) e fugitividade (rebelião)? Imaginemos que são essas as cenas e os movimentos que veremos a seguir e que a fotografia não previa, nem contava com ela.

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IV O nascimento da forma: oceânicas, porosas e monstruosas

Como comentado no início da apresentação, minha escolha das obras, ao me aproximar do acervo do mac-usp, se justifica pelo meu interesse em dar continuidade a uma pesquisa que traz a seguinte questão: como, especialmente no século xxi, procedimentos composicionais de artistas historicamente racializados e dissidentes que flertam com o abstrato têm sido performados através de diferentes materialidades, linguagens e técnicas? Como introduzimos, o uso do recurso da abstração por esses artistas se justifica por múltiplos motivos: pela necessidade crítica de criação de estratégias de fuga, tendo em vista a ultravisibilidade e fetichização da norma tema-figura para corpos negros no sistema da arte; pelos consequentes processos de captura de tais representações por um aparato tecnonormativo neoliberal, gerando certo esvaziamento dos discursos políticos; e por uma necessidade de expressão na direção de uma liberação cognitiva que, como tal, tem como um dos princípios também produzir um espaço fora da normativa enciclopédica, tanto de uma historiografia euro-americana da arte quanto de um imaginário simbólico, violento e estereotipado – que, como efeito, acabou por gerar um enclausuramento sobre o que é ou deve ser uma arte produzida por pessoas negras. Complexificando o espaço representacional negro e a “presunção de que artistas negros e seus trabalhos são transparentes para a identidade social” (english, 2007, p. 13), esses artistas acabam por recusar ainda a condição abstrata que se tornou a própria “arte negra”, tendo em vista a cartilha do sucesso que vem regendo as instituições artísticas. Nesse sentido, além das já fundamentais contribuições citadas e promovidas pela circulação do pensamento de Denise Ferreira da Silva no Brasil, é indispensável mencionar ainda a poética plástica e textual da artista e pensadora Jota Mombaça, que reclama o direito à opacidade. É importante salientar que foi por meio do efeito generativo causado pelo seu incêndio que se forjou um vocabulário, um procedimento de negociação e um corpo discursivo capazes de ampliar reflexões importantes, em torno da produção de valor das perspectivas anticoloniais no sistema da arte e os efeitos da sua commodificação. Segundo ela, no texto “A plantação cognitiva”, uma vez que a commodificação dessas perspectivas – nossas perspectivas – depende diretamente de uma certa continuidade entre a nossa produção

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artística e a nossa posição sócio-histórica, talvez faça sentido afirmar que a venda de nossos sons, textos, ideias e imagens reencena, como tendência histórica, os regimes de aquisição dos corpos negros que fundaram a situação-problema da negritude no marco do mundo como conhecemos (mombaça, 2020, p. 6).

Pensamentos que retroalimentam e também informam as cenas, ficções especulativas, estudos acadêmicos, performances, vídeos, músicas, remixes e instalações que dão contorno à sua trajetória como uma artista que vem convocando o apocalipse e o fim do mundo, tal como o conhecemos, como única medida política razoável “que libere o mundo porvir das armadilhas do mundo por acabar” (mombaça, 2016, p. 16). Um trabalho que até aqui não se conforma em dominar o espaço, mas produz o rompimento dele mesmo pelo seu poder de evocação. É assim que questões que envolvem o risco, a efemeridade e a supervisibilidade do seu trabalho com a performance ganharam contornos críticos e, envergando-se na própria língua, seguem produzindo uma consciência histórica sobre o fato de que a existência negra trans, não binária, sapatão, bixa e travesti já são suficientemente violentas para serem reiteradas como objeto de valor fetichista, tal como formalmente compreendido na história da arte (lima, 2020, p. 55).3 Tais práticas e suas plasticidades guiaram o partido curatorial do Valongo Festival Internacional da Imagem de 2018, que tinha como título Não me aguarde na retina, e se adensou, na edição de 2019, em O melhor da viagem é a demora – e também, de algum modo, na 3ª Frestas – Trienal de Artes do Sesc (da qual, entre 2020 e 2022, fui cocuradora) – em O rio é uma serpente. Muitas das obras que apresentarei, ou das artistas que venho acompanhando, datam de comissionamentos e programas de residência desenvolvidos ao longo desses anos. No mesmo período, escrevi O nascimento da forma: oceânicas, porosas e monstruosas, texto que teve ressonância direta com a seguinte proposição de Ferreira da Silva: O que está em jogo aqui? Do que precisaremos abrir mão para liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o que for necessário para a tarefa de pensar o Mundo de outra maneira? Nada menos que uma mudança radical no modo como abordamos matéria e forma (ferreira da silva, 2016; 2007).4 3 Escrevi um texto com/sobre o trabalho da escritora e artista Jota Mombaça no livro 20 em 2020: os artistas da próxima década – América Latina. Ver lima, 2020. 4 Para se aprofundar no que a citação permite ver: ferreira da silva, 2016, e ferreira da silva, 2007.

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Esse texto se desdobrou, na sequência, em mais dois outros: um ensaio curto publicado na revista estadunidense The Brooklyn Rail, de título “Oceanic, Porous, and Monstrous Thoughts”, um convite que veio do editor da edição, o artista e coreógrafo Ralph Lemon; e uma segunda versão, que foi publicada sob o título “O nascimento da forma: a personagem da escritora de uma história que fala”, na revista Jacarandá, a convite de Marcelo Campos. Esta foi uma edição especial desenvolvida em colaboração com o Instituto de Artes da Uerj. A partir dessa intimidade com os processos de pesquisa e criação desses artistas, O nascimento da forma, em suas diferentes versões, se tornou o título-testemunho que encontrei para reunir e narrar, de modo introdutório, as experiências e aprendizados com esses processos de acompanhamento curatorial – e também para abordar uma outra questão que se tornou incontornável, que é o meu desejo de escrever uma história que se dê na linguagem e pela linguagem. Faço essas observações pois, nesses textos, tento extrapolar o tom descritivo que conhecemos sobre os modos como se dão as narrativas históricas, e, aqui, pela própria caracterização de uma publicação que foi, antes, uma apresentação, tornou-se necessário adicionar (sobretudo pelo tempo) os componentes poéticos textuais que têm me ajudado e me ajudariam na direção dessa operação. Então, seguindo na direção de alguns desses trabalhos, começo apresentando a obra de Juliana dos Santos, na qual a negação da representação não surge como um procedimento para aniquilar a subjetividade; mas surge em performance para, através do que está disponível com os olhos da Terra, ser perseguida. Pois, depois de quase meio século de uma história da arte que reflexivamente privilegia o artista figurativo como o único agente capaz de fazer ou possibilitar políticas antirracistas, a artista, na pesquisa Entre o azul e o que não me deixo/deixam esquecer, nos sugere, assim como faz Darby English (2016, p. 8), que é preferível entender “a relação representação-abstração de uma forma que não a reduza a uma simples escolha entre engajamento político e recuo apático”. Desenvolvendo pinturas monocromáticas em azul, com um pigmento extraído da Clitoria ternatea, a artista expande as propriedades da cor para o espaço, através de performances e instalações, possibilitando-nos uma chance de viver a experiência sensível e plástica que é o azul. Desse modo, tensiona questões que passam pela liberdade cognitiva e a ultravisibilidade, quando consideramos o fardo representacional e os traumas existenciais que matizam a experiência de ser uma mulher negra. Seja lançando-se em processos de escuta e vivência com famílias que cultivam a Clitoria, convidando-nos a beber o azul através da poderosa dimensão terapêutica do seu chá, ou coreo-gravando or-

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ganicamente suas flores, ao carimbar e regar suas pétalas sob o papel-algodão, a artista indaga-se sobre o esforço que a planta mobiliza para fazer com que o azul aconteça independentemente da sua consequente efemeridade, já que é a exposição constante à luz que produz o seu possível apagamento. Já na série de esculturas e cobre sobre tela Como colocar ar nas palavras, a artista Rebeca Carapiá cria interrogações em torno dos conflitos das normas da linguagem e do corpo, ao mesmo tempo que encena estratégias de fuga, tendo em vista os processos de captura, fetichização e ultravisibilidade das políticas identitárias exploradas pelo capital racial tecnonormativo e o consequente esvaziamento ético dessas mesmas políticas, sobretudo nos últimos cinco anos, no Brasil. Lançando mão de um feminismo de recusa, Carapiá nega as categorias e marcadores coloniais e recorre à abstração, de modo a criar uma escrita que foge do destino compulsório da representação, quando o que está em jogo são os imbricamentos entre as práticas artísticas e de resistência produzidos por corpos racializados e dissidentes como o seu. Ao buscar outros modos de dizer a diferença sem explicá-la, no que se refere à performatividade da materialidade, vemos que é no trabalho com o ferro e com o cobre que a artista desconstrói as geografias do feminino. Ao manejar um conhecimento incorporado ancestral e adentrar as marcas da violência racial-ambiental do espaço periférico, Carapiá nos convida a um debate geopolítico com o território da Cidade Baixa, em Salvador, lugar onde nasceu e se forjou artista. Nas pinturas expandidas e desenhos apresentados em Buracos, crateras e abraços (dedicada a todos os amigos que não gostam de falar sempre), título da exposição individual de Ana Almeida realizada em 2021, a tensão entre corpo e espaço também reaparece “para fazer surgir uma massa feita de ar e cor na qual tudo é ritmo e intensidade” (almeida, 2021). Na busca pela renúncia ao espetáculo da representação, o corpo passa a ocupar o espaço da própria cratera, e as reivindicações se dão no espaço abstrato dos buracos, nos quais o que se faz presente é o próprio múltiplo em sua capacidade de contaminação e propagação. Tendo Lucia Laguna5 como umas das suas principais referências (segundo me contou o curador da exposição, Tarcísio Almeida), a artista recorre a uma série de procedimentos cotidianos para estampar gestos e deixar rastros pelo papel, imprimir suas proporções, confrontar as ideias de tempo no uso das materialidades e produzir “deformações rítmicas que saturam as cores para que delas verta-se uma outra política para o próprio corpo” (almeida, 2021). 5 “Em busca do jardim de Laguna” é o texto que escrevi para o livro da artista Lucia Laguna, no qual também abordo a relação com a abstração, a história da arte e a ancestralidade. Ver: laguna, 2021, p. 8.

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Somada a outras práticas que aqui poderíamos elencar, vemos que esses trabalhos são performados por meio de uma experiência de criação centrada na memória do corpo como episteme, nas materialidades e sua performance, e na interlocução com o espaço e o território onde esses artistas se forjaram como artistas. O que nos interessa, então, é a função ritual, ontológica e performativa dessas obras que se enunciam como estudos, tecnologias, ferramentas e meios. Nesses termos, vislumbro ainda a prática de Iagor Peres, artista que esteve presente em 2019 na residência PlusAfroT que ocorreu na Villa Waldberta, em Munique, na Alemanha, projeto de que fui cocuradora/idealizadora junto com o coreógrafo Mário Lopes. A partir da sua trajetória na dança e na performance, Peres invade o espaço com a pesquisa Estudos para a minha pele, mergulhando nas densidades e substâncias (orgânicas e não orgânicas) que compõem as relações no espaço. Desenvolvendo uma técnica própria que nomeia como Pelematerial, o artista navega entre o visível e o invisível, buscando “compreender o papel dessas camadas invisíveis existentes no que se entende como o vazio, nesses vãos entre nós e o mundo”. Segundo ele, ainda, “essa camada espessa e amorfa que diz sobre o processo de racialização é um dos exemplos de outras densidades existentes com tipos e variações imensuráveis” (peres, 2019).

V

Diante do que vislumbramos abrir a partir desse sugestivo desfecho, uma primeira conclusão pode ser compartilhada. Como pudemos perceber, a ausência do sujeito figurativizado negro como centro das práticas de que nos aproximamos parece não ter como intuito representar a negritude em sua versão formal-abstrata. A rebelião contra qualquer evidência histórica se dá na fuga da norma tema-figura, da citação intertextual crítica e do uso da abstração enquanto metáfora. Mas o que significa esse processo de exclusão do figurativo para o debate de uma educação visual que ao longo do tempo denunciou e lutou pelo direito à representação, por meio sobretudo da dimensão utilitária da linguagem? Acreditamos que não se trata de criar uma polarização com o histórico de denúncias através de um procedimento de figurativização que, em diferentes momentos históricos da arte afro-brasileira, se organizou. Se a perspectiva instrumental da arte como propaganda de Du Bois acabou por influenciar toda uma geração afrodiaspórica, ao pregar que “toda arte é propaganda e sempre deve ser, apesar do lamento dos puristas” (du bois, 1926, p. 324), vemos que esse grupo de artistas apenas parece dar continuidade a uma história de

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resistência à violência racial que, de tempos em tempos, reinventa os processos de exploração e captura, e que, na institucionalização neoliberal do sistema da arte, se apresenta na forma de uma plantação cognitiva: É certo que as formas de coerção foram atualizadas, e que migramos de um sistema de captividade total para um outro de captividade fractal, no qual a violência nos atinge diferencialmente, construindo assim umas formas de assimetria internas ao diagrama da negritude que possibilitam, em nível coletivo, a concomitância de nossa morte e de nosso sucesso (mombaça, 2020, p. 6).

Além disso, uma outra conclusão importante se refere à relação com o Tempo e às dicotomias entre História e Ancestralidade. Vemos que, apesar de essas práticas serem também e justamente o reflexo de um processo de subjetivação e formação dentro e a partir de uma história da arte afro-brasileira, dos pensamentos raciais críticos contemporâneos e das pistas deixadas pelo caminho por artistas de outras gerações, tais poéticas nos parecem estar menos interessadas em aproximações formais com a história, mesmo que essa se refira a uma história moderna afro-brasileira. Com isso, não afirmamos que nomes como Emanoel Araujo, Rubem Valentim ou Lucia Laguna não sejam reverenciados ou não habitem o imaginário dessas artistas: o que percebemos é que há uma mudança de procedimento e uma recusa em manter o gesto linear e progressivo que desde sempre subordina, na história da arte, o futuro sempre presente ao passado. A conclusão a que chegamos, portanto, é que, para essas artistas, o passado é honrado dentro de uma dinâmica temporal que se constrói a partir da compreensão do Tempo na Ancestralidade, e não do tempo no reino da História.6 Quando diz que “aquilo que no corpo e na voz se repete é uma episteme” (martins, 2002, p. 72), o pensamento do tempo espiralar de Leda Maria Martins se torna central para as nossas conclusões, já que com ele é possível especular como os “inúmeros processos de cognição, asserção e metamorfose, formal e conceitual” (martins, 2002, p. 72), que constituem a cultura da encruzilhada negra nas Américas, transcriam-se na performatividade da própria visualidade. Essa encruzilhada epistêmica que nos oferece Martins nos possibilita, ainda, refutar qualquer intenção de, com essas leituras, estabilizar, impor ou predeterminar tais práticas a partir de características únicas. 6 Elaborei essa hipótese de modo mais aprofundado na minha dissertação de mestrado, a qual concluo com o Tempo Negro. Ver lima, 2017, p. 200.

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No risco contingente de que as referências visuais históricas componham o nosso lugar da memória, nos resta efabular os caminhos pelos quais a memória do conhecimento se recria e se transmite por outros lugares, dessa vez pelos ambientes da memória: repertórios orais e corporais, seus gestos e hábitos, “cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes” (martins, 2002, p. 72). A partir das oralidades e afrografias que matizam sobremaneira o arsenal epistêmico dessas e outras artistas – que ficam, então, para um novo texto –, o que desejamos, desta vez, é levantar a questão, repleta de espacialidade, sobre que tipo de descontinuidade e fratura, na linha temporal da história narrada pelo acervo do mac-usp, poderia ser reencenada. Se, como vimos, a abstração já serviu como estratégia de obliteração da dívida impagável que matiza a experiência da racialidade no Brasil, sua prática, além de perturbar as expectativas do tempo histórico, parece “liberar a negritude da obrigação de responder pelo que exige a sua [própria] obliteração” (ferreira da silva, 2020). Arrisco, portanto, dizer que ela nos desperta para todo um vasto repertório que excede tudo aquilo que um dia qualquer página ou palavra será capaz de ver e conhecer. Pois só em presença no encontro com você, o espaço, a diferença e o outro, é que suas múltiplas leituras se abrem.

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MÁSCARAS TECTÔNICAS – ARQUITETURA E AFRICANIDADE NA FOTOGRAFIA DE GERALDO DE BARROS, G.E. KIDDER SMITH, JOSÉ MEDEIROS, MARCEL GAUTHEROT E PIERRE VERGER ROBERTO CONDURU

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Geraldo de Barros, Autorretrato ao lado da obra Máscara africana (1949), na exposição Fotoforma, Masp, São Paulo, sp, 1950-1951 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Geraldo de Barros

Em sua série de Fotoformas,1 Geraldo de Barros traduziu arquitetura em fotografia, transmutando graficamente a tectônica de estruturas metálicas para construir imagens abstratas, desde o enquadramento, passando pela manipulação dos negativos e até a montagem das obras. Na exposição Fotoforma, realizada no Museu de Arte de São Paulo, em 1950-1951, ele cuidou minuciosamente do modo de expor a série, explorando, com a fotografia, as possibilidades objetais e de intervenção espacial. Em uma foto algo excepcional dessa série, ele parte de um gradil doméstico de ferro forjado. O caráter artesanal dessa grade persiste nas intervenções manuais feitas pelo artista no negativo. E, diferentemente do que faz com outras imagens naquela mostra, as quais ele propõe como planos encorpados quase flutuantes, esta é configurada como um objeto com morfologia singular e até peso, demandando base de sustentação. Condição objetal que é ressaltada por seu título: Máscara africana. As intervenções gráficas e o título minimizam a natureza indicial da fotografia e o abstracionismo da série Fotoformas a favor de um simbolismo algo icônico: ele remete essa foto não à grade original, mas a máscaras criadas em África para serem usadas em rituais religiosos, ou comercializadas para atender ao interesse por um artefato cultural-chave no sistema 1

barros, Geraldo de. Fotoformas: Geraldo de Barros. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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artístico moderno. Essa foto é um objeto, mas, também, quase um ente. Banido em outras imagens da série, o corpo ressurge, pressuposto e até mesmo ativado. Posando ao lado da obra, Geraldo de Barros estabelece uma homologia entre a máscara e sua cabeça, entre o pedestal e seu corpo. Ato que, somado às alusões fisionômicas e à corporeidade da imagem, acentua o antropomorfismo da obra. Heloisa Espada já indicou como, a partir dos estudos de Mário Pedrosa sobre a psicologia da forma e, particularmente, de sua ideia de arte virgem, Geraldo de Barros juntou-se aos modernistas em sua atração pelos objetos de culturas que eram então entendidas, por muitos, como primitivas.2 O vínculo com a máscara africana, um tópico crucial do modernismo, permite ver a amplitude das referências do fotógrafo, e como lhe interessava a ambiguidade do signo fotográfico. Entretanto, ele aderiu ao primitivismo com uma remissão generalizante, ao mesmo tempo reverente e violenta, a artefatos culturais africanos. E à qual se agregava, de modo talvez involuntário, mas incontornável devido ao contexto de produção e exibição da obra, o silêncio sobre a escravidão de africanos e afrodescendentes no Brasil, entre os séculos xvi e xix, bem como sobre seus maléficos e persistentes desdobramentos socioculturais. Embora sua imagem tivesse sido manipulada para aludir a uma máscara, o gradil fotografado seguia propagando sentidos e sensações de controle, aprisionamento, segregação. E a parelha, talvez um tanto irônica, entre o artista e sua obra deixa a dúvida sobre a máscara ter sido feita para si ou para ser oferecida a outrem – quem? –, além de sublinhar a diferença entre Brasil e África, branco e negro, sujeito e objeto. A partir dessa transmutação fotográfica da arquitetura em Máscara africana por Geraldo de Barros, e das reflexões de Hans Belting sobre o jogo pluricultural entre máscara e face humana,3 eu quero pensar a arquitetura e a fotografia como componentes da máscara concebida pelos modernistas para o Brasil, e, particularmente, a fotografia como uma máscara da arquitetura no processo de modernização. Em 1943, o Museu de Arte Moderna de Nova York apresentou a exposição Brazil Builds: Architecture New and Old, com curadoria de Philip L. Goodwin e fotografias de G.E. Kidder Smith. Na mostra, foi exibida uma imagem da sede do Instituto Vital Brazil, em Niterói, projetada por Álvaro Vital Brazil. Publicada no catálogo, essa foto registra o edifício em sua fase final de 2 lima, Heloisa Espada Rodrigues. Fotoformas: a máquina lúdica de Geraldo de Barros. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, pp. 42-49. 3 belting, Hans. Face and Mask: A Double History. Princeton: Princeton University Press, 2017.

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construção.4 Naquele momento, as paredes externas estavam sendo cobertas por revestimentos uniformemente lisos, enquanto janelas e quebra-sóis eram articulados às fachadas. Escondiam-se vestígios do processo construtivo, sugerindo o prédio como resultado de uma montagem ao mesmo tempo racional e dinâmica, com componentes percebidos como unidades em si, e geradora de planos, volumes e espaços puros que ativavam o ambiente. No entanto, a imagem inclui elementos estranhos à forma moderna e sua abstração purista da construção e do trabalho humano. Um deles é a charrete puxada a cavalo, cujo proprietário vendia artigos fabricados no exterior e contrabandeados – um signo tanto da carestia vivida durante a Segunda Guerra Mundial quanto da informalidade e da incipiente industrialização no país. Também são dignos de nota os homens no topo e na base do edifício, dos quais ao menos dois parecem ser afrodescendentes. Trabalhando manualmente e sem segurança, eles indicam o descompasso entre as formas arquitetônicas e suas condições de produção e socialização. Os adeptos do movimento moderno defendiam que a nova arquitetura era o resultado lógico e adequado – técnica, social e esteticamente – do processo modernizador. O descompasso flagrado por essa foto pode ser interpretado, por um lado, como mais um exemplo dos limites do processo de modernização no país e das contradições da “arquitetura moderna brasileira”, como já indicaram muitos autores.5 Por outro lado, com suas contradições, tanto esse edifício quanto a arquitetura moderna no Brasil podem ser entendidos como índices de uma modernidade já alcançada, ao menos esteticamente, e como fatores que contribuíam para uma modernização mais ampla. Vencendo parcialmente limitações estéticas, técnicas e sociais, eles colaborariam para alcançar a modernidade que anunciavam. Nessa missão, a arquitetura teve na fotografia uma parceira estratégica, fundamental. Não apenas porque elas podiam ser entendidas àquela altura como modos de ação dos agentes de vanguarda, mas porque ambas participavam do projeto modernista para o Brasil, ajudando a compor a máscara moderna proposta para a face da nação. 4 goodwin, Philip L. Brazil Builds: Architecture New and Old, 1652-1942. Nova York: The Museum of Modern Art, 1943, p. 161. 5 arantes, Otília B.F. “Lucio Costa e a ‘Boa Causa’ da arquitetura moderna”. In: arantes, Otília B.F.; arantes, Paulo. Sentido de formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997, pp. 113-131; franco, Luiz Fernando. “Francisco Bologna, ou a modernidade resistente ao clichê modernista”. Arquitetura Revista, n. 6, 1988, pp. 2-13; gimenez, Luiz Espallargas. “Tradição e Academia”. Arquitetura Revista, n. 7, 1989, pp. 56-67; martins, Carlos. “Identidade nacional e Estado no projeto modernista: modernidade, estado e tradição”. Óculum, n. 2, set. 1992, pp. 71-76.

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Marcel Gautherot, Moradia na Sacolândia, arredores de Brasília, df, c. 1958 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Marcel Gautherot

Nesse jogo entre realidade e representação, a fotografia era uma máscara especial à qual recorriam os agentes do campo arquitetônico. Mais do que meramente documentar os espaços construídos, a fotografia transpunha a arquitetura às páginas de revistas e livros, aos painéis de exposições, fazendo-a circular, ganhar mobilidade, difundir-se. Com efeito, em sua luta para conquistar indivíduos e instituições, o movimento moderno de arquitetura no Brasil muito beneficiou-se da colaboração de fotógrafos que souberam traduzir, em imagens gravadas com a luz, a modernidade almejada nas obras arquitetônicas. A cumplicidade nutriu essas traduções. No entanto, a redução de edifícios e espaços a imagens bidimensionais em preto e branco podia significar perda das condições construtivas e laborais da arquitetura, ao ocultar sua realidade material e seu contexto social de fabricação e uso. Ao exaltar a forma, a fotografia ressaltava o ideal em detrimento do real. As fotos de Kidder Smith da estação de hidroaviões no Rio de Janeiro, projetada por Attilio Corrêa Lima,

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são um exemplo de tradução da tectônica arquitetural por meio da tectônica fotográfica.6 Na imagem da página 84, a tradução se tornou quase traição, pois o edifício-sede do Ministério de Educação e Saúde foi reduzido ao grafismo resultante da captura fotográfica da fachada com os elementos controladores de insolação e ventilação.7 Tanto a máscara de Barros quanto as imagens de Kidder Smith articulam as relações entre arquitetura e fotografia à africanidade no Brasil em meados do século xx. Enquanto o primeiro se conectou de modo original a uma África estereotipada a partir do sistema da arte europeu, sem considerar a afro-brasilidade que o circundava, o último deixou, provavelmente de modo involuntário, pistas da marginalização social sofrida pelos afrodescendentes. Outros modos de relacionar arquitetura, fotografia e africanidade no Brasil podem ser percebidos em obras de Marcel Gautherot,8 José Medeiros9 e Pierre Verger.10 Franceses, Gautherot e Verger radicaram-se no Brasil: Gautherot, no Rio de Janeiro, a partir de 1940; Verger, em Salvador, a partir de 1946. Medeiros também migrou, de Teresina para o Rio de Janeiro, em 1939. Mas os três continuaram viajando pelo país, configurando trajetórias e obras singulares, que se cruzaram muitas vezes não apenas pelos temas registrados. Um ponto forte de conexão é constituído por suas representações dos afro-brasileiros, nas quais não faltam reflexões fotográficas sobre arquitetura que ajudaram a configurar a máscara moderna da nação brasileira. Entre os três, Gautherot foi o mais engajado no movimento moderno de arquitetura no Brasil. São de sua autoria muitas imagens com as quais a “arquitetura moderna brasileira” ganhou o mundo. Mas ele também colaborou com o movimento de defesa e preservação da cultura popular, outro aspecto importante da máscara configurada pelos modernistas no país. Não faltam em sua obra registros de populares trabalhando e festejando. Documentação que não impede experimentos nos quais ele articula tectônica fotográfica com indícios das precárias condições de trabalho e da situação social dos afrodescendentes. Nesse sentido, são emblemáticas suas imagens de Brasília: no fio da navalha entre a apologia e a denúncia da monumentalidade própria à nova ca6 goodwin, Philip L. Brazil Builds: Architecture New and Old, 1652-1942. Op. cit., pp. 150-153. 7 Ibidem, p. 84. 8 gautherot, Marcel. O Brasil de Marcel Gautherot: fotografias. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2001; Idem. Brasília/Marcel Gautherot. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010. 9 medeiros, José. Candomblé. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. 10 verger, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1981.

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pital. Menos ambígua, a série que documenta a construção do Congresso Nacional explicita a persistência do trabalho artesanal, aviltado e inseguro que desapareceu nas formas puras e abstratas. Também de cunho crítico é a série por ele produzida de moto-próprio com os habitantes de Vila Bananal, mais conhecida como Sacolândia, um assentamento improvisado por trabalhadores e suas famílias na periferia da nova cidade, que ele considerava “uma beleza de iniciativa e de inteligência”.11 Essa série é de particular interesse não apenas por complementar as outras séries, permitindo perceber as práticas segregacionistas e excludentes que fundaram a nova capital brasileira, mas sobretudo pelo modo como ele enquadra, controla a luz e interage com as pessoas, certamente afrodescendentes, para traduzir o modo como elas modificavam o ambiente, construindo abrigos e espaços para poderem sobreviver. Verger, ao contrário, é conhecido por sua dedicação ao africanismo no Brasil e em outras regiões das Américas, assim como aos refluxos do movimento em África. Suas imagens constituem um capítulo incontornável no processo de valorização da África no Brasil, tendo sido usadas em processos de afirmação identitária pelos afro-brasileiros. O registro algo etnográfico de manifestações culturais não o impede de capturar as condições sociais dos afrodescendentes, nem de discretamente expressar uma visão homoerótica. Em sua obra também não faltam imagens de arquitetura; em proporção pequena, é verdade, mas não por isso com menor significado. Há experimentos de abstração purista, bem como de tradução fotográfica da espacialidade arquitetônica. Mas ele não deixou de observar a falta de segurança de afrodescendentes em situações de trabalho braçal, ou suas precárias condições de habitação na cidade, oferecendo subsídios para a crítica à modernidade exclusivista então em curso. No extenso conjunto de fotos dedicadas às religiões afro-brasileiras, poucas focam especificamente em edifícios e espaços de terreiros, que são apresentados sobretudo como lugares para realização de rituais. Embora, em geral, a arquitetura seja secundária em relação ao ritual em foco na imagem, o registro de componentes arquitetônicos e decorativos contribui para a compreensão tanto das limitações físicas vividas por aquelas pessoas quanto dos modos com os quais elas as superavam. Simples que sejam, paredes caiadas, caibros de madeira, telhas cerâmicas, bandeirolas de papel e folhagens, assim como as vestimentas e outras peças de indumentária, configuram outros ambientes e corpos para a manifestação extraordinária do sagrado. 11 Apud segala, Lygia. “Bumba meu boi Brasil”. In: gautherot, Marcel. O

Brasil de Marcel Gautherot: fotografias. Op. cit., p. 53.

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José Medeiros, Ritual de candomblé de iniciação das filhas de santo, Salvador, ba, 1951 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção José Medeiros

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Quantitativamente, Medeiros não rivaliza com Verger na documentação fotográfica de manifestações culturais afro-brasileiras, e muito menos com Gautherot em relação à arquitetura moderna. Cronista do Brasil e, sobretudo, do Rio de Janeiro no período que antecede a mudança da capital do país para Brasília, Medeiros exibe, em suas imagens, os afrodescendentes como artistas ou cidadãos anônimos que ele elege como símbolos do povo. Entretanto, ele é um dos responsáveis por um acontecimento crucial, traumático mesmo, na história das relações entre fotografia e religiões afro-brasileiras: o registro quase inaugural de uma iniciação no candomblé, publicado na revista O Cruzeiro, em setembro de 1951, que chocou diferentes segmentos sociais devido ao modo sensacionalista como a reportagem revelou práticas religiosas.12 A reportagem seguia a trilha aberta pela matéria publicada por Henri-Georges Clouzot na revista Paris Match, em maio do mesmo ano, mas também pelas notícias publicadas na imprensa brasileira sobre as invasões policiais a comunidades religiosas em várias cidades brasileiras, desde o final do século xix.13 O olhar de Medeiros é mais circunscrito do que o de Verger em relação às ocorrências ritualísticas. A arquitetura ocupa literalmente as margens de imagens que plasmaram ícones da religiosidade afro-brasileira, sem deixar contudo de expandir seus sentidos. A precariedade das construções e as restrições espaciais são indícios arquitetônicos do cerceamento social dessas práticas religiosas. O calendário da Coca-Cola e o cartão com a imagem da pin-up permitem ver como aquelas pessoas eram afetadas pela cultura de massas, mas também como dela se apropriavam. A homologia entre peles e paredes pintadas reitera a arquitetura ao mesmo tempo como abrigo, extensão e metáfora do corpo humano. Cabe ressaltar que, em meados do século xx, assentamentos populares e cerimônias religiosas não eram temas artísticos propriamente novos no Brasil.14 Representações de favelas e rituais afro-brasileiros ganharam o público, desde o final do século xix, com obras de Modesto Brocos, Eliseu Visconti e Augusto Malta, entre outros artistas, além da exploração midiática de modos outros de celebrar e viver. A atração pela negritude é mesmo um traço do Mo12 A esse respeito, ver tacca, Fernando de. Imagens do Sagrado. Campinas: Editora da Unicamp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 13 A esse respeito, ver valle, Arthur. “Arte sacra afro-brasileira na imprensa: os primeiros registros, 1904-1932”. 19&20, Rio de Janeiro, v. xiii, n. 1, jan.jun. 2018. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/av_asab.htm. Acesso em 10 abr. 2022. 14 Sobre representações de favela, ver cardoso, Rafael; diniz, Clarissa (orgs.). Do Valongo à favela: imaginário e periferia. Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2015.

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dernismo no Brasil, que ganhou impulso a partir dos anos 1920, em obras de Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Oswaldo Goeldi, entre muitos outros, alcançando a geração de Hélio Oiticica e além. Entretanto, cabe ressaltar que esses tópicos também foram repensados e ganharam visibilidade em representações feitas por afrodescendentes, como as de Arthur Timótheo da Costa, Heitor dos Prazeres e Walter Firmo. A esse respeito, é importante ressaltar que nenhum dos fotógrafos aqui focados era afrodescendente. Barros criou, talvez para si, uma máscara africana – um gesto raro no país. Gautherot, Medeiros e Verger propuseram máscaras que foram negociadas com afro-brasileiros e impostas a eles de modos menos ou mais assimétricos – o que é atestado pelos diversos olhares capturados por Gautherot e se pode pressupor nos casos de Medeiros e Verger, mesmo que suas fotos tentem apagar a interação fotográfica. É raro encontrar a arquitetura afro-brasileira compondo a máscara modernista do Brasil, mesmo em sua parte dedicada à cultura popular. Negros eram raramente vistos como produtores contemporâneos das artes plásticas, sobretudo de arquitetura. Este é um diferencial das imagens de Gautherot, Medeiros e Verger: mesmo que raramente a arquitetura construída e usada pelos afro-brasileiros seja o objeto principal de seus olhares, eles a incluem como elemento importante das máscaras que propõem para os afro-brasileiros, a cultura popular brasileira e a modernidade no país. Embora não haja referência a aspectos particulares de culturas africanas, é incontornável a negritude dos criadores e usuários de Sacolândia, que pode ser entendida como um ambiente negro, sobretudo se pensado em relação à brancura de Brasília. Nas imagens de Medeiros e Verger, sobressaem-se tanto a negritude das pessoas quanto o modo como elas reinventam, com parcos recursos, a África em seus ambientes e corpos. Nas fotos dos três, destaca-se a relação entre corpo humano, espaço construído e natureza, delineando-se uma arquitetura concebida para a vida e constituída em meio ao viver. O que não deixa de ser um modo afro, negro, de, modesta e marginalmente, ajudar a construir a sociedade brasileira e a configurar outra face para a nação.

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ENCONTRO 2 56


CRIANÇAS NEGRAS: OLHARES FOTOGRÁFICOS

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“FOTO DE GRUPOS DE NEGROS”: NOVAS VELHAS IMAGENS DE VINCENZO PASTORE IONE DA SILVA JOVINO

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Na pesquisa Crianças negras em imagens do século xix (jovino, 2010), explorei alguns aspectos da representação de crianças negras nos discursos imagéticos produzidos no século xix, dentre eles os retratos. Nesse tempo, deparei-me com duas imagens do fotógrafo Vincenzo Pastore que, pela limitação de recorte temporal da pesquisa, ficaram de fora do trabalho, sendo apenas citadas de passagem. Elas traziam, em duas poses diferentes, no cenário do estúdio, uma mulher negra, pobremente vestida, descalça, com uma criança pequena, aos farrapos com seu corpinho magro, também descalça. Tendo sido provavelmente feitas na primeira década do século xx, a descoberta das imagens trouxe a indagação sobre se estariam retratando, no século xx, a mesma aparência e posições estereotipadas do século xix, que serviam aos discursos de propagação do exótico e dos “tipos de pretos” (jovino, 2010). Revisitando a tese e alguns dos textos utilizados nela, como Kossoy e Carneiro (2002) no livro que discute o olhar europeu sobre os negros na iconografia brasileira do século xix, reencontrei-me com as imagens de Pastore e as li a partir, principalmente, das pesquisas de Beltramim (2015) e Leite (2021). Novas indagações surgiram, e as fotografias, embora irremediavelmente mudas, como apontou Peter Burke (2004), puderam ser novamente e mais detidamente interrogadas, sobretudo a respeito do uso da criança na composição da cena. O trabalho discute as mudanças e permanências, em termos de representação imagética, de pessoas negras no começo do

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século xx, com destaque para a presença da criança na foto. Entre a repetição de padrões anteriores de reprodução de pessoas negras, a representação inovadora das fotografias que alguns estudos apontam e os discursos sobre o contexto sócio-histórico que sugerem um período de intensa limpeza dos espaços públicos e também das imagens divulgadas na e sobre a cidade, o texto apresenta leituras diferentes e possíveis para as imagens de Vincenzo Pastore.

Das crianças negras nas imagens

Pode-se dizer que a pesquisa Crianças negras em imagens do século xix foi um estudo de revisão que se fixou em dois principais campos: os estudos sobre criança e infância, buscando neles o espaço da criança negra, e os estudos sobre escravidão no século xix, examinando como neles apareciam as discussões sobre a criança e a infância. Estou há quase 20 anos trabalhando com a temática, tendo iniciado os estudos sobre a representação da criança negra em 2005, para a quarta edição do Concurso Negro e Educação,1 que resultou na publicação de Imagens de criança e infância negras na iconografia do século xix (jovino, 2007). Esse estudo, por sua vez, deu origem à tese de doutorado em educação Crianças negras em imagens do século xix. Numa breve descrição, a pesquisa pode ser vista por duas perspectivas de produção acadêmica. A primeira sobre a chamada literatura de viagem,2 e a segunda sobre estudos feitos a partir de inventários, processos, manuais e estudos específicos sobre fotografia no século xix. A investigação da literatura de viagem explora as visões dos viajantes europeus sobre as relações raciais e sociais e a escravidão no Brasil, trazendo Como fruto da parceria entre Ação Educativa e anped, com apoio da Fundação Ford, surge, em 1999, o Concurso Negro e Educação. O objetivo desse projeto foi fortalecer o desenvolvimento de pesquisas sobre educação e população negra. Como resultado, o Concurso Negro e Educação gerou quatro publicações que trazem diversas discussões sobre a temática proposta. Disponível em: https://relacoesraciais.acaoeducativa.org.br/material/ concurso-negro-e-educacao/. Acesso em jul. 2022. 2 No Brasil, a chamada “literatura de viagem” teria início no século xvi, com a Carta do descobrimento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, em 1500, noticiando ao rei de Portugal, d. Manuel i, as descobertas de Pedro Álvares Cabral. Integram essa literatura escritos de autores de nacionalidades e profissões diferentes, podendo ela ser representada em diários de viagem e recordações do país pelos estrangeiros . Trata-se de uma vasta gama de produção escrita e imagética, composta por cartas, narrativas de ficção, livros de memórias, álbuns de desenho, guias comerciais ou científicos, relatos diplomáticos e relatórios de expedições destinados aos órgãos de financiamento. 1

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representações de crianças negras ou escravizadas que transitam entre a caracterização destas como “inocentes”, quase puras, quase perdoadas pela marca de Cã; e como “amontoados” de criaturas, manchas negras nas fazendas. Já a segunda perspectiva nos mostra, dentre outros aspectos, a preparação para o trabalho dentro do regime escravista, que incluía estipular as idades em que as crianças começavam a “dar algum serviço” e descrever a iniciação às profissões, seja no trabalho doméstico, no campo ou nas cidades. Os estudos cujas fontes são inventários e processos trazem à tona situações que o regime escravocrata produzia, em relação às crianças, e que não existiriam sem o escravismo, como o fato de a criança ser dona da própria mãe. Às vezes, o Estado chegava a ser acionado porque a mãe, que era escrava do filho, fugia, e isso prejudicava o espólio da criança. É também possível encontrar questões interessantes sobre a educação na presença de crianças negras alfabetizadas, porque elas acompanhavam o senhorzinho e a sinhazinha no aprendizado das primeiras letras – indicava-se, inclusive, que as mulheres e as crianças negras deveriam ser responsáveis pela alfabetização tanto de outras crianças negras quanto de crianças brancas, já que elas mesma aprendiam ao acompanhar os filhos dos seus senhores. Por sua vez, o bloco de estudos sobre fotografia no século xix vai apontar, sobretudo, a presença de escravizados, forros e libertos em estúdios fotográficos, ou ainda figurando como modelos para a representação de cenas de trabalho, sobretudo aquelas que destacavam o exotismo do trabalho escravo. Essas imagens exibem crianças brancas e suas amas de leite, carregadores de todo tipo de coisas, mulheres vendedoras, terreiros de café, lavouras. Nelas, podem-se entrever crianças compondo as cenas, quase sempre sem destaque. É praticamente apenas nos retratos que identificaremos crianças captadas com destaque pelas lentes. É preciso ressaltar que trago isso a partir da leitura de narrativas verbais e imagéticas construídas ao longo do século xix, (in)visibilidades que ainda precisam ser questionadas, indagadas e talvez desconstruídas. Isso é válido, sobretudo, para a leitura das gravuras de Jean-Baptiste Debret,3 que cristalizam a criança como muito próxima ou parte integrante da cena de trabalho dos adultos. Conceito esse que será repetido em fotografias da segunda metade do século xix. 3 Jean-Baptiste Debret integrou a Missão Artística Francesa, que chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, em 1816, para oficializar a fundação da Academia Real de Ciências, Artes e Ofícios. Debret retornou à França em 1834, onde preparou, até 1839, a publicação de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. (straumann, 2001, pp. 9-10).

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Algumas narrativas do período representavam as crianças negras como bichos de seus senhores. Debret constrói, nesse sentido, uma relação mais direta com o tema que os discursos de outros viajantes. Os trechos abaixo, exemplos disso, dizem respeito às pranchas Uma senhora brasileira em seu lar e Jantar brasileiro, respectivamente. Os dois negrinhos, apenas em idade de engatinhar e que gozam, no quarto da dona da casa, dos privilégios do pequeno macaco, experimentam suas forças na esteira da criada (debret, 1989, p. 53). No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête-à-tête de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos, que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos na Europa. […] Essas pobres crianças, revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão (Ibidem, p. 60).

Sobre a prancha representando o jantar, Debret descreve a relação de uma senhora com duas crianças pequenas ali perto, quase embaixo da mesa, sendo “mimadas” pelos restos que recebem, enquanto pelo menos três outras pessoas negras adultas se ocupam do jantar do casal de senhores. Em outra gravura igualmente famosa, podemos ver exemplos a respeito do aspecto da educação que foi apontado acima. Debret descreve que uma menina aprende as primeiras letras num cenário em que criados estão presentes, e eles acabam também por aprender com ela. Temos ainda os dois meninos, em idade de engatinhar, sendo cuidados no mesmo ambiente em que as duas mulheres trabalham. Nele, também se encontra um macaquinho, amarrado em um banco em que a senhora pode ser vista sentada. Debret descreve que ela tem uma espécie de relho, utilizado para “corrigir” o macaco e, possivelmente, as crianças – e até os adultos que aparecem na cena, estendendo a todos os mesmos “privilégios” do pequeno macaco. Resumidamente, por meio de algumas das gravuras bastante difundidas (e de outras nem tanto) de Jean-Baptiste Debret, se podem construir narrativas sobre a relação com o trabalho escravo, que dialogam com a revisão bibliográfica da escravidão. Tais narrativas mostram os tipos de trabalho que

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meninos e meninas realizavam, sendo os trabalhos delas, quase sempre, dentro da casa, e os deles, fora da casa. Outras imagens em que aparecem crianças remetem às práticas culturais, religiosas, de aprendizado de ofício, de aprendizado da escravidão. Tais imagens fixaram uma forma hegemônica de projeção da escravidão; quando imageticamente pensamos na escravidão, a concebemos quase sempre de maneira semelhante à apresentada por elas. Aqui podemos dar um salto para falar da segunda metade do século xix. A partir da década de 1860, a fotografia, através do daguerreótipo, chega ao Brasil, dando origem às imagens fotográficas. Muitas delas serão discutidas em trabalhos acadêmicos, por meio de dissertações, teses, livros e artigos – inclusive a minha tese, que se centra nos retratos produzidos por Militão Augusto de Azevedo, em São Paulo. Segundo Kossoy (2002, p. 68), os álbuns de retratos de Militão constituem “um tipo de documentação raro na história da fotografia no Brasil”. Esse acervo, em seis volumes, conta com aproximadamente 12.500 retratos colados, enumerados consecutivamente com a finalidade de estabelecer o número do negativo correspondente e a respectiva identificação. Os retratos de Militão foram produzidos entre os anos de 1862 e 1885, período em que o fotógrafo manteve estabelecimento comercial na cidade de São Paulo. Em minha pesquisa (2010, p. 100), os retratos estão organizados no capítulo “Galeria dos ‘infames’: retratos de crianças negras em São Paulo”. Cabe explicitar o uso do termo “infame”, uma licença poética para se referir ao antônimo de “famigerado”. Tal sentido foi estabelecido ao se pensar que as crianças retratadas chegaram até nós não por sua fama, mas justamente pelo silêncio existente acerca delas, o que de certa forma as coloca na posição de desacreditadas, sem fama, não notadas, infames. Fotografias e gravuras4 não foram vistas como imagens homogêneas e nem do mesmo tipo. Elas usam suportes técnicos e têm possibilidades de reprodução muito diferentes. Porém, alguns aspectos da fotografia, como meio de comunicação do real, que a princípio não seriam existentes na pintura e na gravura, foram lidos, em dados momentos, como onipresentes nas artes em questão, tendo-se em vista a “preocupação de Debret com a elaboração de um discurso 4 No caso das gravuras de Debret, por exemplo, a litografia, meio de reprodução, ocasionava várias alterações na imagem quando de sua impressão. Geralmente, o que ocorria durante esse processo era a definição de outra imagem, muitas vezes fruto da interferência do próprio artista, mas também do trabalho de artífices que se habilitavam para tal. O trabalho de transferência da imagem, fosse ela desenho ou aquarela, para a litogravura implicava opções estéticas que eram, de certa forma, determinadas pela intenção da publicação (lima, 2007, p. 147).

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histórico sobre o Brasil e com a fidelidade de seu testemunho ou relato para com a verdade dos fatos que apresentava”, conforme assevera Lima (2007, p. 128).

Fotografia no final do século xix e início do xx

O contexto da chegada do daguerreótipo no Brasil na segunda metade do século xix corrobora o ideal de civilização. Entre 1866 e 1880, a imagem de d. Pedro ii como monarca da guerra e da escravidão vai sendo rompida, criando-se para ele a figura de um monarca cidadão secularizado pela cultura – cercado pela ideia de civilização, penas e livros –, explorada nas fotografias tiradas do imperador (schwarcz, 2006). A fotografia pôde, assim, encarnar a ideia de civilização e modernidade em torno do Império, sendo o daguerreótipo a modernidade em si.5 Fotografias de negros escravizados, como as de José Christiano Jr., são, então, proibidas de circular no Brasil, por mostrarem o exotismo do mundo do trabalho escravo, ao passo que as de Militão serão cultuadas posteriormente, por mostrarem o progresso de São Paulo. Falar do fotógrafo Christiano Jr. nos leva diretamente à expressão que constava em seus materiais de divulgação: os “typos de preto”. Ele vendia essa ideia como sendo interessante para ser mostrada na Europa. O fotógrafo também é conhecido por ser pioneiro no procedimento de montagem de cena: realizava uma representação da representação, com toques teatrais até, como defendem alguns estudos.6 Teria, ainda, inovado ao selecionar pessoas escravizadas para suas cenas, criando de certa forma o que chamamos hoje de modelo fotográfico. São cenas quase sempre de estúdio, que buscavam retratar com certa naturalidade (e um certo exagero) o cotidiano exótico da escravidão, como as atividades exercidas, as marcas étnicas etc. 5 Em 7 de janeiro de 1839, na Academia de Ciências da França, foi anunciada a descoberta da daguerreotipia, um processo fotográfico desenvolvido por Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) e Louis Jacques Mandé Daguerre (1787­ ‑1851). Foi no Hotel Pharoux, primeiro hotel de luxo do Brasil, no Rio de Janeiro, que o abade francês Louis Comte (1798-1868), que chegou ao Brasil trazendo o daguerreótipo no navio L´Oriental, aportado no Rio de Janeiro em 23 de dezembro de 1939, fez o primeiro ensaio fotográfico no país. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=17693. Acesso em jul. 2022. Kossoy (2002, p. 15) diz haver fortes indícios de que o francês radicado no Brasil Antoine Hercule Romuald Florence teria realizado, em janeiro de 1833, na Vila de São Carlos (Campinas), na então província de São Paulo, as pioneiras experiências fotoquímicas nas Américas. 6 Ver, por exemplo, Leite (2011).

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Aceitando-se que o produto final objetiva vender o exotismo, por outro ângulo de análise torna-se possível assimilar que os retratos colocam os escravos no cerne da modernidade, socializando a imagem das próprias contradições do país. É verdade, também, que a fotografia permite que o retratado, mesmo sendo escravo, se posicione dentro do seu próprio grupo, já que as referidas imagens são expostas nas vitrines dos estabelecimentos. Inclusive, um retratado pode ter funcionado como mediador da contratação de outros modelos. A exploração da vertente do pitoresco não teve início com a modalidade fotográfica, mas já existia, tradicionalmente, nos desenhos, litogravuras e aquarelas, denotando explícitas finalidades comerciais. Independentemente do fato de a fotografia ter aderido a esse padrão mercadológico, a projeção e circulação das referidas imagens assumiu várias outras funções, prestando-se a novas nuances de interpretação. (leite, 2011, p. 43).

Quando se fala de fotografia no século xix, é necessário fazer uma pausa para lembrar que estamos falando do momento em que essa manifestação artística está nascendo. Isso quer dizer que a fotografia gozava de um status de verossimilhança, ou seja, o que era retratado poderia ser lido como verdadeiro, ou com probabilidade alta de o ser. Hoje a fotografia já não possui essa condição; já podemos, inclusive, modificar, e até mesmo criar imagens, digitalmente. Entretanto, naquele momento, se acreditava que as fotos eram uma representação do real, embora criar uma cena num estúdio seja, de certa forma, manipular a imagem, criando-se uma ilusão. Isso é, ainda assim, uma tentativade representação daquelas identidades reais. É muito importante que se tenha isso em mente. Tenho, até aqui, utilizado o conceito de representação sem referenciá-lo. Recorro a Stuart Hall (2016), na perspectiva dos estudos culturais, para tratar da noção. Entenda-se por representação, dessa maneira, um sistema de significação ou atribuição de significado a pessoas e coisas por meio da linguagem. Esses significados são cultural e socialmente construídos; pessoas e objetos não detêm em si um significado fixo, final ou verdadeiro. Nessa noção assumida aqui, as identidades, quando representadas, são também significadas. Seguindo nessa linha, dizemos que o estereótipo é uma forma de representação de identidades. A partir disso, pode-se falar em manutenção e rompimento de estereótipo. Stuart Hall aponta que o estereótipo vai permitir, por exemplo, observar como certos grupos são fixados em posições muito cristalizadas, e como demoramos muito a romper com elas. Esse conceito nos permite,

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por um lado, analisar as diferenças vistas como critério para a inferiorização, a exemplo de quando observamos crianças e pessoas negras representadas unicamente numa determinada forma e posição. Por outro lado, ele nos assegura a possibilidade de apontar o rompimento de padrões hegemônicos de representação a partir de imagens (e conteúdos outros) que vão aparecendo.

Vincenzo Pastore e imagens de/em São Paulo no início do século xx

Quando realizava visita aos acervos para levantamento das imagens da pesquisa sobre representação de crianças negras no século xix (jovino, 2007 e 2010), me deparei com duas imagens do início do século xx. Elas foram produzidas por Vincenzo Pastore (1865-1918). Nascido na Itália, em Casamassima, região da Puglia, ele se mudou para o Brasil na década de 1890, conforme Kossoy (2002). Teve sucesso como retratista, e se interessou também em registrar as ruas da cidade, tendo fotografado São Paulo entre 1894 e 1898 e 1901 e 1912 (kossoy, 2002). Pastore fez viagens frequentes a sua terra natal, na Itália, mantendo a atuação como fotógrafo nos dois países. Em São Paulo, ele teve estúdio e residência em diferentes endereços, até que, com a família, se fixou na rua Direita no ano de 1914. No mesmo ano, Pastore abre um estúdio em Bari, na Itália, e muda-se com a família para lá; no entanto, com a deflagração da primeira grande Guerra Mundial, ele retorna ao Brasil em 1915, onde permanece até seu falecimento, em 1918. É importante saber que Vincenzo Pastore veio para o Brasil a partir do incentivo organizado pelo governo brasileiro: tratava-se de políticas imigratórias para que europeus viessem para nosso país, e que suas famílias permanecessem por aqui, recebendo, para isso, traslado e terras, por exemplo. É nesse contexto de produção das imagens de Vincenzo Pastore que focaremos daqui por diante. Estamos falando, sobretudo, de São Paulo no início do século xx. Nesse cenário, teremos uma proliferação dos discursos sobre higiene e saúde em relação às crianças e às populações pobres (a população dos cortiços e as populações periféricas), sobretudo. Apesar de tudo isso, ainda se trata de um contexto em que se incentiva a vinda de imigrantes, incluindo-se os italianos. Nesse período, o ofício da fotografia é bastante difundido em São Paulo. No Dicionário histórico-fotográfico de Boris Kossoy (2002), podemos ver

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Vincenzo Pastore, Autorretrato, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore

quantos fotógrafos existiram no Brasil nesse período, muitos deles trabalhando em São Paulo, no Rio de Janeiro ou itinerantemente pelo Brasil.7 Outra questão que se pode notar é a da imagem em sua ligação com a questão da raça, como se pode observar na associação entre raça e pobreza a partir dos estereótipos publicados e difundidos em jornais, revistas e eventos científicos. Indo um pouco mais longe, vê-se como tudo isso pode ser uma forma de se sustentar um projeto eugênico e racista, que estaria na base da criação de imagens de civilização e modernidade para São Paulo, para o Brasil. “O esforço da política internacional brasileira no início do século xx consistia em ‘vender’ uma imagem positiva sobre o país, visando atrair imigrantes e investimentos estrangeiros para modernizar o comércio e expandir a economia nacional” (sousa e santos, 2012, p. 754). Tal imagem foi, literalmente, construída por discursos verbais e imagéticos. A partir desse projeto, São Paulo construiu palacetes, jardins, teatros, mas também promoveu a reforma dos costumes, deliberou sobre quem podia ocupar os espaços públicos, demarcou que imagens do país seriam levadas para o exterior, sobretudo para a Europa. Somente no estado de São Paulo, na primeira década de 1900, o Dicionário histórico-fotográfico brasileiro registra 57 nomes de fotógrafos, e, no estado do Rio de Janeiro, um total de 42. (kossoy, 2002, pp. 369; 372-373). 7

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Desse projeto nacional, há um episódio marcante, ocorrido durante o Congresso Universal das Raças, em Londres, em 1911. Para esse evento, o Brasil mandou dois representantes, os médicos e antropólogos João Baptista de Lacerda (1846-1915)8 e Edgar Roquette-Pinto (1884-1954),9 ambos do Rio de Janeiro. O discurso oficial no evento, feito por Lacerda, surpreendeu o público em virtude do fato de o médico apresentar uma imagem que comprovaria sua tese. Tratava-se da obra do pintor espanhol Modesto Brocos, A redenção de Cam, de 1895. Apesar de não ter necessariamente sido feita para tal fim, acredito que tal imagem possa ser vista como parte dos discursos de civilização e modernidade a partir do uso feito dela no Congresso Universal das Raças,. Esse discurso imagético foi utilizado para asseverar a tese de Lacerda de que a miscigenação era eugenicamente positiva, e que, dentro de duas ou três gerações (aliada às políticas de embranquecimento, como a de imigração), teríamos um Brasil totalmente branco, civilizado e moderno. Voltando então à questão das fotografias de Vincenzo Pastore, chamo para esta conversa duas teses, uma de 2015 e a outra de 2021, que tratam especificamente da produção fotográfica do italiano. Uma se chama Entre o estúdio e a rua: trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo do cotidiano, de autoria de Fabiana Vendramim (2015). A outra é Crianças na cidade: registros no processo de urbanização de São Paulo pelas fotografias de Vincenzo Pastore (1900-1910), de Maria Cristina Stello Leite (2021). Vendramim faz um estudo do percurso de Pastore como retratista, destacando aspectos que, para ela, são diferenciais em relação a outros fotógrafos da época. O que me chama atenção em relação a outros estudos é o que ela apresenta a partir do acesso que teve ao acervo da família de Vincenzo Pastore. São documentos, recortes de jornais, cartões, correspondências, fotografias que foram guardados por muitos anos e que não fazem parte dos acervos que hoje conhecemos. 8 Baptista de Lacerda defenderia que políticas de imigração fariam com que mestiços embranquecessem e descendentes de negros passassem a ficar progressivamente mais brancos a cada nova prole gerada. Lacerda levou ao evento o artigo “Sur les métis au Brésil” [Sobre os mestiços do Brasil], em que defendia o fator da miscigenação como algo positivo, no caso brasileiro, por conta da sobreposição dos traços da raça branca sobre a negra e a indígena. Disponível em: https://www.anm.org.br/joao-baptista-de-lacerda/. 9 Conhecido mais popularmente pelo pioneirismo no campo da radiodifusão, o médico legista e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, membro da Academia Nacional de Medicina (anm), foi responsável, em 1929, pelo evento comemorativo do centenário da anm, o 1o Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado no Rio de Janeiro. A essa altura, Roquette-Pinto, estudioso já consagrado por seus estudos antropológicos acerca da constituição biológico-racial da população brasileira, defendia o “melhoramento” da raça e exercia a importante função de diretor do Museu Nacional (kern, 2017).

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Vincenzo Pastore, Meninos engraxates jogando bola de gude, São Paulo, sp, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore

O acervo maior foi doado para o Instituto Moreira Salles, e, por isso, conhecemos algumas imagens emblemáticas do fotógrafo. Todavia, a família ainda ficou com alguns objetos, a que Beltramim teve acesso, e que possibilitaram que se traçasse o percurso do fotógrafo em relação às suas fotos. Ela chega, inclusive, a visitar acervos conservados na Itália. A autora também discute um pouco sobre a circulação das imagens de Pastore, perguntando-se qual teria sido o alcance delas. Voltarei a referenciar essa primeira pesquisa mais adiante, quando for tratar de meu reencontro com as duas fotografias de Pastore. A pesquisa de Maria Cristina Stello Leite trata da presença ou ausência de crianças no espaço urbano. Ela discute os processos de urbanização e a relação das crianças com a organização de São Paulo no período compreendido entre os anos de 1900 e 1910. A autora usa as fotos de Pastore para problematizar seu questionamento, e, em virtude disso, só escolhe fotos em que crianças aparecem em espaços públicos, na rua. Esse é um exercício que fiz também em minha tese, a partir de um texto de Peter Burke (2004). Burke afirma que as imagens são testemunhas

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oculares e têm o papel muito importante de quem esteve presente naquele momento, trazendo um ponto de vista que só uma testemunha do que aconteceu naquela época poderia trazer. Burke também aponta que cabe a quem faz pesquisa com imagens interrogá-las, embora elas sejam “irremediavelmente mudas”. Continuo, assim, interrogando as imagens e as leituras que delas foram feitas. Trago, da pesquisa de Leite (2021), algumas fotografias de Pastore, embora não só sobre crianças negras. Ela seleciona, por exemplo, só as imagens em que as crianças estão em primeiro plano, trabalhando então a relação das crianças com, por exemplo, os seus tipos de vestimentas. Relaciona-as também à questão da modernidade, da civilização e do crescimento da cidade, que são discursos e políticas vigentes. Ela aponta que Vincenzo Pastore deixa tais elementos numa posição secundária, porque se interessa em captar, em primeiro plano, as crianças, a quem, na visão da autora, daria maior importância do que a essa São Paulo se modernizando. Segundo a autora, esse caráter singular da obra de Pastore teria servido como chamariz para a exposição sobre o artista realizada em 1997 pelo Instituto Moreira Salles. Nessa imagem interessante, vemos um bebê sendo cuidado por dois homens. Vê-se também uma mulher ao lado do homem mais velho. Talvez ela indique a presença de um grupo familiar completo, com pai, mãe e avô da criança. Uma fotografia de um grupo familiar negro.

Vincenzo Pastore, Mulher e dois homens com bebê, São Paulo, sp, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore

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A partir de um recorte é possível evidenciar o contraste entre os dois meninos que ocupam lugares opostos na cena, quase um de frente para o outro. O contraste se evidencia tanto pelo recorte efetuado sobre a imagem, como por meio das roupas e gestos que permitem reconhecer indícios de que ambos pertencem a grupos sociais distintos. (leite, 2021, p.146)

Em relação à imagem acima, a pesquisadora faz uma comparação entre o menino que está na ponta esquerda de quem olha, que podemos identificar como negro, e o outro menino, na ponta direita, menor e mais bem-vestido. Nesse recorte, é possível identificar um contraste que evidencia tanto diferenças sociais quanto raciais. Elas ficam ainda mais visíveis ao se confrontarem as roupas, ajustadas ou disformes, grandes ou pequenas para o corpo das crianças, alinhadas ou corroídas, bem como a presença ou a ausência de sapatos e meias, símbolos de prestígio social e de hierarquia racial.

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Vincenzo Pastore, Grupo de pessoas ao redor do realejo, praça da República, São Paulo, sp, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore


Velhos “typos de pretos” ou a invenção de uma nova “Madona africana”?

Volto agora minha atenção para o trabalho de Fabiana Vendramim, e sigo buscando interrogar as duas imagens de Vincenzo Pastore e escrever minha narrativa para elas. Retomo a noção de estereótipo de Hall e olho para as imagens indagando-as sobre serem continuidade, manutenção de um estereótipo de representação de pessoas negras elaborado no século xix, como os famosos “typos de pretos” de José Christiano Jr. O início do século xix “era um período de intensa limpeza dos espaços públicos e também das imagens divulgadas na e sobre a cidade. Algumas imagens são abolidas e não devem mais ser mostradas, uma vez que comprometem a modernidade.” (jovino, 2010, p. 26) Nesse sentido, a imagem de Pastore estaria na contramão do contexto histórico-social-fotográfico da época, posto que poderia ser lida como retomada ou reinvenção de um discurso-imagem que a nova visão de civilidade e de cidade, baseada no darwinismo social e no evolucionismo, não suportaria mais. Essa ainda é uma das leituras possíveis; as imagens estariam entre a repetição de padrões de representação de períodos anteriores e a discrepância entre o representado na imagem e os discursos sobre o contexto sócio-histórico da época.

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Todavia, Beltramim (2015, p. 333) observa que: Nas formas do exótico criado por Pastore não se vê, porém, a alteridade, comum aos registros oitocentistas. A codificação representava uma mãe simulando sua reza, pedindo de joelhos proteção. Apesar de sugerir a continuidade de padrões das carte-de-visite dos tempos do Império, o conteúdo iconológico é outro. A mulher negra diante da cruz implora auxílio, lembrando a realidade que a afligia. Fato impensável nos suportes vendidos como souvenirs aos viajantes ávidos por uma imagem dos trópicos, sustentada no exotismo e na constituição de uma tipologia social que tentava disfarçar a violência da colonização, da ocupação, da apropriação dos corpos apreendidos no gosto do colecionismo da época.

Pastore enviou tais fotografias ao rei da Itália. O consulado da Itália no Brasil emitiu um documento oficial, no dia 4 de agosto de 1904, parabenizando o gesto de Pastore. Na coleção preservada por Elvira e pelos filhos do fotógrafo, fotos e cartas oficiais revelam acertos de seus agenciamentos. Em carta timbrada, em nome de “sua maesta il Re”, Pastore recebeu o agradecimento pelas fotos enviadas no mês de maio daquele ano. Sua majestade, o rei, ao expressar “sentimentos devotos”, deixou um registro das práticas de Pastore, das relações firmadas por meio do material visual produzido em sua experiência de imigração. “Sua excelência o Ministro da Casa Real informa que o senhor Vincenzo Pastore enviou em maio, a sua majestade, o rei, foto de grupo de negros; esta oferta acompanha a expressão de sentimentos devotos e me convida a demonstrar uma palavra de agradecimento em nome real.” (beltramim, 2015, p. 329) A pesquisa de Beltramim traz ainda um relato de Flavio Varani, neto de Vincenzo Pastore. E, segundo a autora, esse relato “mostrou uma teia de sentidos e compreensões que aderem ao fotográfico” (Ibidem). De acordo com Flavio Varani, o avô “criava quadros vivos, a madona negra, a madona africana. Ele traz para casa uma ex-escrava. Isso é uma projeção maravilhosa, histórica […], é uma pessoa sofrida, que não tem cuidados, que merece atenção, que merece respeito. Essas coisas meu avô projetava.” (Ibidem) Os significados das narrativas sobre as imagens trazidas por Beltramim apontam para o rompimento de estereótipos de representação dos “grupos de pretos”. No entanto, Kossoy e Carneiro (2002) chamam a atenção para o fato de que, ainda no início do século xx, ao se retratar os ex-escravizados,

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Vincenzo Pastore, Retrato de mulher com criança no colo, São Paulo, sp, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore Vincenzo Pastore, Retrato de mulher diante da cruz, com criança chorando ao lado, São Paulo, sp, c. 1910 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore

mantinham-se as cenas com as mesmas aparência e posições de subalternidade. Os autores apontam ainda que a exploração comercial persistiu no antigo tema: o negro como modelo de representação. Concluem eles: Nesta trajetória do negro enquanto modelo de representação, pôde-se constatar que estamos diante de cenas construídas em que o negro se viu embelezado por uns e animalizados por outros; romanceado em meio à paisagem tropical ou abominado por suas manifestações culturais; estigmatizado em seu traje de escravo ou trajado aristocraticamente no cenário do estúdio fotográfico, no momento em que, já liberto, pode optar por um estilo de representação. Comercializado como tipo exótico, viajou para além-mar e tornou-se conhecido do europeu curioso, via cartão-postal (Idem, p. 212).

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Não foi possível saber se houve, além do envio para autoridades, venda ou intenção de comercialização das imagens de negros (e indígenas) produzidas por Pastore. Beltramim aponta, no entanto, que elas foram expostas na entrada do estúdio do fotógrafo. Ainda que entenda o caráter inovador de Pastore quando se tratou das fotos de rua, ao registrar as pessoas, e não o cenário urbano, ainda tenho certa recusa à narrativa da Pietá ou Madona preta. O fato de que possivelmente essas imagens chegaram à Europa como mostra do exótico que se podia ver no Brasil do pós-abolição embaça minhas lentes. Talvez eu precise de mais tempo para focar na “mulher negra diante da cruz”, vendo-a como alguém que “implora auxílio, lembrando a realidade que a afligia” (beltramim, 2015, p. 333). Embora Beltramim destaque essa cena como “impensável nos suportes vendidos como souvenirs aos viajantes ávidos por uma imagem dos trópicos, sustentada no exotismo”, eu ainda vejo no centro da cena, em primeiro plano, uma criança negra maltrapilha, magra, adormecida de cansaço ou de fome, em uma imagem, e chorando, na outra. Ainda vejo os retratados dentro de uma lógica da “constituição de uma tipologia social que tentava disfarçar a violência da colonização, da ocupação, da apropriação dos corpos apreendidos no gosto do colecionismo da época” (Ibidem). Não há nada de errado com leituras diferentes para uma mesma imagem. Para Peter Burke (2004, p. 229), a história da recepção de imagens, da mesma forma que a dos textos, enfraquece a noção de senso comum, de má compreensão, mostrando que diferentes interpretações do mesmo objeto, ou ainda do mesmo acontecimento, são normais e não aberrações, e que é difícil encontrar boas razões para descrever uma interpretação como certa e outras como erradas.

Há leituras possíveis, entre a repetição de padrões de representação de períodos anteriores e o rompimento de estereótipos. Narrativas possíveis sobre uma madona preta ou sobre “grupos de negros” que muito se assemelham aos “typos de pretos”.

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BIBLIOGRAFIA beltramim, Fabiana Marcelli S. Entre o estúdio e a rua: a trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo do cotidiano. Tese de doutorado em história social. Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. burke, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: edusc, 2004. hall, Stuart. Cultura e representação. Trad. Daniel Miranda e William Oliveira. Rio de Janeiro: puc-Rio/Apicuri, 2016.

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MODOS DE SER E VER AS INFÂNCIAS NEGRAS: CULTURA VISUAL EM DOIS ATOS FOTOGRÁFICOS RAFAEL DOMINGOS OLIVEIRA

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Em relação a outras espacialidades, o advento de técnicas fotográficas no Brasil se deu de forma pioneira. Sabemos que, pelo menos desde a década de 1830, com a chegada do daguerreótipo, a história da fotografia e de seus desenvolvimentos técnicos passa não apenas a fazer parte da história do Brasil – registrando-a –, como participando ativamente da vida política, social e cultural do país. Seria possível, assim, uma história fotográfica do Brasil, ou uma história do Brasil fotografado, em que poderíamos colocar em evidência as tensões e os conflitos que constituem a nossa formação social e que são elementos próprios da técnica fotográfica. Não que a fotografia seja o registro do real, isso já sabemos ser uma ideia potencialmente redutora da força que a imagem fotográfica é capaz de produzir. Por outro lado, a fotografia não é simplesmente o avesso do real, por mais que queira e se esforce para isso. Entre uma perspectiva realista e outra que poderíamos chamar de contrarrealista, entre a imagem-rastro e a imagem-ficção, há um grande espaço de criação de signos, tensões, aproximações e afastamentos que fazem da fotografia uma técnica dinâmica, viva e difícil de ser reduzida a um único significado. Por isso, me parece pertinente invocar uma noção elaborada pelo belga radicado na França Philippe Dubois, ainda na década de 1980, que, apesar da distância, pode ser “reveladora”:

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A fotografia não é apenas uma imagem produzida por um ato, é também, antes de qualquer outra coisa, um verdadeiro ato icônico “em si”, é consubstancialmente uma imagem-ato. Em outras palavras, a clivagem tradicional entre o produto (a mensagem rematada) e o processo (o ato gerador que está fazendo) aqui deixa de ser pertinente. Com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora de seu modo constitutivo, fora do que a faz ser como é, estando entendido por um lado que essa “gênese” pode ser tanto um ato de produção propriamente dito quanto um ato de recepção ou de difusão, e, por outro, que essa indistinção do ato e da imagem em nada exclui a necessidade de uma distância fundamental, de um recuo em seu próprio centro.1

A imagem-ato ou o ato fotográfico, como Dubois intitula seu livro, é a ferramenta que mobilizo neste breve ensaio sobre as infâncias negras no acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles. A pergunta pode ser sintetizada da seguinte forma: quais atos fotográficos participam na instituição da noção de infância negra no Brasil? Ou melhor: como o ato fotográfico pode instituir uma noção de infância negra no Brasil? Assim chegamos ao acervo do Instituto Moreira Salles, cuja abrangência do ponto de vista da cultura visual brasileira é realmente surpreendente. Nosso recorte temático é a infância negra, que tem sofrido desde há muito uma sub-representação enquanto experiência social particular, o que possibilitou a profusão de outras modalidades de representações, no geral, desumanizadoras. Para tanto, selecionei dois nomes de grande relevância no acervo, cujas coleções estão entre as mais destacadas: Marc Ferrez e Walter Firmo. O exercício não é, nem poderia ser, comparativo. Não apenas porque se trata de sujeitos de temporalidades diferentes, e por isso lidando com diferentes estágios do desenvolvimento técnico da prática fotográfica. Mas também, e sobretudo, por se tratar de dois regimes de historicidade em que se elaboram pelo menos duas culturas visuais com continuidades e descontinuidades profundas. Assim, qualquer esforço de comparação estaria fadado ao fracasso, pela impossibilidade de apreensão da dinâmica histórica. O exercício, portanto, é o de colocar duas visualidades em diálogo, a fim de ressaltar aquilo que está por debaixo da camada fina da própria imagem, se escondendo nas entranhas da prática representacional. dubois, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2012, p. 59 [1a ed. 1983].

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E por que o tema das infâncias negras? Na historiografia ocidental, o tema da infância aparece de forma mais evidente nos estudos do historiador francês Phillippe Ariès, que publica, em 1960, a obra L’Enfant et la vie familiale sous l’Ancien Regime. Ela logo se torna um clássico no assunto, sendo referência muito citada nos estudos sobre infância. Em síntese, Ariès analisa cartas e diários que demonstram o crescimento da preocupação dos adultos em relação ao comportamento infantil, mas sua principal fonte é a iconografia dos períodos aos quais se refere. A esse respeito, afirma que a criança como indivíduo começa a aparecer na iconografia apenas no século xvii; antes disso, as crianças eram retratadas como pequenos adultos ou “homens de tamanho reduzido”, nos termos que utiliza. Uma das principais críticas ao estudo do francês foi feita pelo historiador e pedagogo Moysés Kuhlmann Jr.: Mesmo em abordagens que tomam a infância em sua referência etimológica, como os sem-voz, sugerindo uma certa identidade com as perspectivas da história vista de baixo, a história dos vencidos, essa visão monolítica permanece e mantém um preconceito em relação às classes subalternas, desconsiderando a sua presença interior nas relações sociais. Embora reconhecendo o papel preponderante que os setores dominantes exercem sobre a vida social, as fontes disponíveis, como o diário de Luís xiii, utilizado por Ariès, geralmente favorecem a interpretação de que essas camadas sociais teriam monopolizado a condução do processo de promoção do respeito à criança.2

Kuhlmann sugere a necessidade de ampliação do corpus documental nos estudos dedicados à infância, evitando assim uma perspectiva que coloca sob as mãos das classes dominantes a condução do processo histórico de construção da noção de infância. Movido por essas questões, realizei um estudo, entre 2010 e 2012, utilizando literatura de viajantes e outras tipologias documentais, a fim de compreender as visões sobre crianças negras escravizadas no Brasil oitocentista.3 Sujeitos ocultos na maior parte da historiografia da escravidão, as crianças negras, filhas de mulheres escravizadas, aparecem geralmente kuhlmann jr., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998, p. 24. 3 Ver oliveira, Rafael Domingos. “Visões sobre a criança escrava nas narrativas de viajantes (Brasil, século xix)”. Revista de História, v. 5, n. 1-2, 2013, pp. 107­‑134; e “A criança negra escravizada no Brasil: aproximações teóricas, tramas historiográficas”. Revista Outras Fronteiras, Cuiabá, v. 1, n. 2, jul. dez. 2014. 2

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como penduricalhos de suas mães, ocultadas em suas sombras, ou são citadas apenas como números que engrossam dados demográficos do tráfico e comércio de pessoas. Me interessava, àquela altura, compreender o que significava nascer filho de uma mulher escravizada. A quais tipos de tensões e conflitos a criança negra estava sujeita em uma sociedade escravista. Como se dava o terrível aprendizado da escravidão ou, como alguns estudiosos a chamam, da pedagogia senhorial, uma pedagogia da violência? Foi nesse momento que as fotografias de Marc Ferrez se pronunciaram para mim. Ferrez foi um fotógrafo brasileiro de origem francesa, que viveu entre 1843 e 1923, tendo testemunhado, portanto, um momento decisivo da história brasileira, marcado pela abolição formal da escravidão e a construção tumultuada da República. Um momento de acentuadas crises, que caracterizaram as transições em diversos âmbitos da vida nacional. Sua produção ocorreu mais precisamente entre 1860 e 1922, período em que também desenvolveu atividades de comércio de equipamentos e materiais fotográficos. Em 1998, seu neto (o historiador Gilberto Ferrez) conduziu a transferência do acervo de mais de 5.500 imagens para o ims. De sua vasta coleção, selecionei algumas de suas fotografias tomadas na década de 1880 em grandes propriedades escravistas do sudeste brasileiro – uma espécie de tradição visual iniciada por Victor Frond entre 1859 e 1860. Nessas fotografias, Ferrez realiza montagens quase cênicas em que os sujeitos – trabalhadores escravizados – são alinhados e realinhados na paisagem, expressando uma ordem e uma organização típicas de um viés produtivo. Isto é, a composição das cenas respeita, em quase tudo, a visão do trabalho escravo como naturalmente adequado ao ambiente de produção. Em outros termos, podemos dizer que o que ocorre é a naturalização da escravidão. É fundamental lembrar que a maior parte dessas fotografias foram comissionadas pelos próprios fazendeiros, a quem interessava sobremaneira tal modalidade de registro. Há ainda um fator de grande condicionamento, que é o fenômeno que historiadores como Dale Tomich têm chamado de “Segunda Escravidão”, elemento central no tempo em que as fotografias são tomadas: ele consiste em um conjunto de acontecimentos e tendências históricas entre fins do século xviii e ao longo do xix, principalmente o advento da Revolução Industrial na Inglaterra e a hegemonia internacional da Grã-Bretanha, que levam a reconfigurações profundas no mercado mundial.4 Em regiões como Cuba, o sul dos Estados Unidos e o Brasil, antes em segundo plano, a escravidão expandiu-se numa escala maciça para 4 Ver tomich, Dale. Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.

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Marc Ferrez, Pessoas escravizadas trabalham em terreiro de uma fazenda de café na região do Vale do Paraíba, c. 1882 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

atender à crescente demanda mundial de algodão, café e açúcar. As fotografias de Ferrez correspondem, assim, ao imaginário em torno do que era ou deveria ser uma unidade produtiva: ordenada, ajustada, controlada e bem gerida. No entanto, citando Lilia Schwarcz a respeito dessas mesmas fotografias: [Há,] no âmbito da representação fotográfica, sempre muito do acaso, do detalhe e do fortuito, e serão estes elementos que em última instância colaborarão para que o registro fotográfico orbite permanentemente na fronteira entre índice e representação, entre “janela para o mundo” e “espelho para a alma” do autor, entre, enfim, o inescapável figurativismo documental da imagem, por um lado, e a intencionalidade artística e mesmo retórica do fotógrafo, por outro. E é nesta fronteira, própria do campo da fotografia,

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que surge o espaço para o imprevisto que escapa ao controle do artista, e mesmo para a própria ambiguidade que caracteriza este documento visual, conferindo a ele camadas e densidades distintas, tanto do ponto de vista do autor, como da leitura e apropriação posterior pelo público.5

Essa perspectiva de Schwarcz nos ajuda a olhar para alguns detalhes que, embora pareçam se diluir no conjunto das imagens, são delas, na verdade, uma peça central: as crianças. Em duas dessas fotografias, vemos um conjunto de trabalhadoras e trabalhadores escravizados, agrupados de forma aparentemente organizada, portando o instrumental de trabalho na lavoura. Supostamente, trata-se da “partida para a colheita”, título que ambas levam, embora sejam evidentemente duas fotografias planejadas e posadas, ao contrário da espontaneidade que o nome sugere. Nos detalhes, vemos a presença de crianças negras, em diferentes idades. Na documentação do período, chamavam-se essas crianças de “crias de peito” ou “crias de pé”, terminologias mais uma vez desumanizadoras e que cumpriam o exclusivo papel de estabelecer categorias genéricas de controle e tributo. Poderíamos nos deter por muito tempo na análise dessas imagens, mas quero chamar atenção para duas questões que considero aqui centrais: a primeira é que, diferentemente do que se veiculou por muito tempo na literatura, crianças negras filhas de mulheres escravizadas estavam desde muito cedo submetidas ao universo do trabalho, o que significa que não compartilhavam com crianças livres e brancas a mesma categoria de infância. Isto é, nem sequer eram entendidas como crianças, senão como trabalhadores em preparação, em formação. Daí falar-se em uma “pedagogia senhorial”, violento instrumento de socialização que objetivava a preparação para a exploração do trabalho. A segunda questão refere-se ao papel que as fotografias de Ferrez tiveram na reafirmação desse lugar na cultura visual e na tradição fotográfica brasileira. A criança negra – sujeito fora da infância – é representada como parte naturalizada no universo do trabalho. Não há outra representação que denote uma compreensão plural da infância. É como se a criança negra fosse mais “escravizada” do que “criança”, condições quase contraditórias. Ferrez, assim, por meio de seu ato fotográfico, corroborou com a construção desse lugar no imaginário brasileiro, e, se isso parecer forçoso, concorda-se que o fez ao menos no âmbito da cultura visual. 5 schwarcz, Lilia Moritz. “Os escravos de Ferrez”. Blog do ims, 2013. Disponível em: https://blogdoims.com.br/escravos-de-marc-ferrez-por-liliamoritz-schwarcz/. Acesso em 20 jun. 2022.

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Marc Ferrez, Partida para a colheita de café, 1885 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

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Em outra modalidade de imagem-ato estão as belíssimas fotografias de Walter Firmo, também elas constituindo uma vasta coleção do acervo do ims. Uso aqui o adjetivo “belíssimas” sem medo de cair em uma perspectiva unicamente visual da imagem, demasiadamente subjetiva e abstrata. Uso o adjetivo porque, diferentemente das fotografias de Ferrez, as de Walter Firmo assumem a mediação da composição da cena, não tentam disfarçá-la, tampouco negá-la. Citando o próprio Firmo, ao se referir ao curso que realizou ainda jovem na Associação Brasileira de Arte Fotográfica: Lá eu aprendi a questão da luz lateral, da projeção da sombra. Eles tinham uma compreensão, uma referência herdada da grande arte, a pintura. E trabalhar com a luz, com as vertentes de sedução, fez com que eu adotasse na minha fotografia sempre a questão da estética. Ficou muito claro em

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Marc Ferrez, Partida para a colheita do café, 1880 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez


mim que a fotografia não era um flagrante, mesmo no fotojornalismo. Ela era sempre endossada pela questão da estética.6

Essa mediação, portanto, é incontornável em qualquer exercício de leitura e compreensão do ato fotográfico de Walter Firmo. Segundo as informações do próprio acervo do ims, Walter Firmo conta que desde garoto sonhava em fotografar. Nascido em 1937, no Rio de Janeiro, ingressou no fotojornalismo em 1955, como aprendiz, no jornal Última Hora. Trabalhou em diversos jornais e revistas e construiu uma carreira longeva, reconhecida por prêmios. Um deles foi o Esso de Reportagem, em 1963, conquistado por “Cem dias na Amazônia de ninguém”, matéria publicada no Jornal do Brasil com fotos e texto seus. Chamado de “mestre da cor”, Firmo é autor de retratos memoráveis de ícones da música brasileira, como Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Cartola. Desde 2018, o Instituto Moreira Salles abriga, em regime de comodato, aproximadamente 145 mil fotos feitas por Firmo ao longo de várias décadas. Outra vertente bastante conhecida de seu trabalho são as imagens de festas populares registradas por todo o Brasil, do carnaval do Rio de Janeiro ao bumba meu boi no Maranhão. E é dessa coleção em particular que selecionamos as fotografias para o nosso exercício. O registro das festas e manifestações populares de Firmo apresenta meninas e meninos negros no centro das imagens, conduzindo a ação representada. As crianças participam, portanto, do próprio ato fotográfico do autor da cena. Não apenas em função dos aspectos formais, como as cores, enquadramento e composição, mas essencialmente pelo registro de sua presença forte e incontornável nas cenas retratadas, se cria uma espécie de impossibilidade de dissociação entre a presença infantil e a própria constituição da festa e do rito. As crianças assumem não apenas uma posição de destaque, elas constituem a própria experiência da festa. Sem elas, não há o rito. Nas chamadas manifestações populares, o elemento da tradição é fundante; a festa atualiza a tradição, por meio do rito, fortemente marcado por uma característica cênica e dramática. A tradição, aqui, não é algo imutável e a-histórico, mas se fundamenta na base simbólica e imagética que possibilita sua própria continuidade no tempo. É por isso, fundamento. As crianças assumem, assim, o papel da continuidade no tempo. Elas são não apenas o reservatório da tradição, mas suas produtoras mais ativas. Por millen, Mànya. “A arte de Walter Firmo”. Blog do ims. Disponível em: https://ims.com.br/por-dentro-acervos/a-arte-de-walter-firmo-manyamillen/. Acesso em 25 jul. 2022. 6

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isso, participam de momentos centrais do rito, assumindo papel de evidente protagonismo. Em outras situações, presenciam o rito como observadoras atentas, absorvendo a dinâmica da cultura sobre a qual atuarão no momento oportuno. A infância, assim, tem parte importante na ancestralidade, é seu fio de continuidade e duração no tempo. O ato de brincar, ação socialmente associada à infância, é a realização plena desse princípio. Como afirma o etnomusicólogo Paulo Dias, “os brincantes são pessoas que estão fazendo uma religação com o sagrado, temporariamente refundando esse contato com o sagrado através do corpo, do jogo corporal, da inteligência, da beleza do corpo, do canto. Então, esse brincar é um compartilhamento entre o universo da infância e das pessoas que já cresceram.”7 Ao recolher histórias das cosmovisões iorubanas, o antropólogo Reginaldo Prandi registrou o papel central, nelas, das brincadeiras. Na história “Os Ibejis brincam e põem fogo na casa”, é marcante a ideia da criança associada à brincadeira e à travessura.8 A história apresenta Egbé como mãe orgulhosa dos meninos gêmeos, mas que vivia em sobressalto, pois as crianças eram muito travessas e gostavam de brincar com fogo. “Os gêmeos traquinas traziam o fogo para casa e o fogo incendiava o lar de Egbé. Sua casa estava, assim, sempre em reparo, sempre refeita das cinzas, nunca completada inteiramente, pois com nova brincadeira, novo incêndio.” Nessa e em outras histórias de matriz iorubá registradas por Prandi, a criança não é entendida com base numa concepção uniforme de infância, universal e fora da história, mas como um sujeito que se constitui no interior das experiências específicas de um certo contexto social, histórico e cultural; a infância “não está vinculada unicamente à faixa etária, à cronologia, a uma etapa psicológica ou a uma temporalidade linear, cumulativa e gradativa, mas ao acontecimento, à arte, ao inusitado, ao intempestivo”, como uma espécie de “des-idade”. Nas fotografias de Firmo, a imagem-ato registra o tensionamento do olhar fotográfico do próprio autor, que se depara com uma presença inescapável, central, agenciadora da cena e de sua própria montagem. Para concluir este exercício especulativo, chamo a atenção para a tensão que resulta dos modos de ver e ser que tanto o ato fotográfico de Ferrez 7 Território do brincar. “Diálogos do brincar: as crianças e as culturas populares”. Disponível em: https://territoriodobrincar.com.br/bibliotecacat/dialogos-do-brincar/videoconferencia-11-a-crianca-e-as-culturaspopulares/#:~:text=%E2%80%9COs%20brincantes%20s%C3%A3o%20pessoas%20 que,beleza%20do%20corpo%2C%20do%20canto. Acesso em 27 jul. 2022. 8 prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Walter Firmo, Tapuias do Boi da Liberdade, São Luís, ma, 2010 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Walter Firmo

quanto o de Firmo produzem em relação ao tema das infâncias negras. Eles constituem, nos termos de Walter Benjamin, documentos da cultura em que se pronunciam concepções de infância atravessadas pela experiência do racismo, da exploração do trabalho, tanto quanto pela experiência da tradição e do brincar. Contribuem, assim, para uma percepção mais aguçada a respeito da experiência de ser criança, e de ser uma criança negra, em uma sociedade marcada pelas desigualdades raciais e pela incontornável presença das tradições de matrizes africanas. Constituem um repertório a respeito da nossa cultura visual e nos convocam a refletir sobre um outro aspecto do ato fotográfico, para além do modo como a fotografia constrói a imagem. Aqui, o ato fotográfico se transforma também no ato de olhar a fotografia. Tais documentos potencialmente pluralizam a história da infância no Brasil e, também, a própria ideia de representação, sem a qual nenhum projeto de emancipação humana poderá se realizar completamente.

[pp. 94-95] Walter Firmo, Maracatu rural, Nazaré da Mata, pe, 2013 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Walter Firmo

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ENCONTRO 3 96


MULHERES NEGRAS: CORPO, OBJETO E TRABALHO

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“A FREE BLACK-GIRL”, “PRETA DE BALLAS” E OUTRAS IMAGENS:1 A CULTURA MATERIAL NOS CORPOS DE MULHERES FORRAS REPRESENTADAS POR ARTISTAS OITOCENTISTAS PRESENTES NO ACERVO DO IMS VANICLÉIA SILVA SANTOS

Ofereço este texto às minhas avós Alice Alves da Silva e Elisa Oliveira Dias. Se tivessem vivido no século xix, período em que artistas buscavam criar os tipos sociais do Brasil, teriam sido as quitandeiras, devido à expertise delas no comércio de carnes. Essa tradição permanece entre minhas tias e minha mãe, que diversificaram suas atividades comerciais. 1

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Apresentação

No Oitocentos, a mulher negra no Brasil foi, em geral, representada nas artes visuais a partir de temas relacionados, principalmente, ao mundo do trabalho, como a maternidade, o comércio de alimentos nas vias públicas, as atividades domésticas, o trabalho no campo e na mineração. Essas produções artísticas destacavam suas vestes, instrumentos de trabalho, adereços, a situação de liberdade e autonomia, bem como denunciavam a situação degradante da escravidão e dos instrumentos de tortura impostos a elas. Dentre as negras representadas, africanas libertas e escravizadas tiveram mais representação em um determinado momento, e depois as forras e livres nascidas no Brasil. Por meio de “registros de costumes” e do “pitoresco”, os artistas pretendiam fornecer uma narrativa do Brasil, seus tipos sociais e suas hierarquias. Ciente das intenções políticas de hierarquização e classificação social desses artistas, eu traço uma análise sobre um conjunto de ilustrações de mulheres negras. A conclusão é que a sua forma de representação era resultado do pensamento europeu, e visava a justificar a escravidão como um mal necessário para as pessoas negras alcançarem a “civilização”. A metodologia aplicada para este ensaio incluiu a busca de mulheres negras representadas nas iconografias do século xix da coleção Brasiliana do

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ims;2 a seleção de algumas obras para identificação de acessórios usados por mulheres; e, finalmente a escolha de seis imagens para exame. Em seguida, utilizei o procedimento da leitura imagética, bem como dos textos/títulos inseridos pelos artistas em suas composições artísticas. Além disso, analisei o contexto de produção das gravuras, levando em consideração os seguintes aspectos: a formação artística dos autores, e os motivos e objetivos que os levaram a destacar, em suas gravuras, as mulheres negras no Brasil e o universo do trabalho urbano. Assim, as perguntas que norteiam este ensaio são estas: que tipo de narrativas os artistas queriam criar sobre as mulheres negras no Brasil oitocentista? Por que esses artistas escolheram retratar adereços afro-brasileiros? Quais eram os significados dos adereços utilizados? Para isso, o foco deste texto é analisar a presença da cultura material na composição das mulheres representadas por três artistas na primeira metade do século xix.

Parte I ‒ O contexto de produção das obras

Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro (1807) e a abertura dos portos para as nações parceiras de Portugal no ano seguinte, aumentou-se o número de estrangeiros que visitavam o Brasil. Dentre esses, havia diplomatas, embaixadores, comerciantes, viajantes curiosos, cientistas, naturalistas e artistas acompanhando missões e expedições científicas, como a Missão Artística Francesa (1816), a Missão Austríaca (1817) e a Expedição Langsdorff (1821), dentre outras. Eles observaram, pintaram e descreveram a paisagem natural – a fauna, a flora – e as paisagens urbanas – com seus edifícios, acontecimentos políticos e os tipos humanos.3 Antes disso, durante quase 300 anos de colonização do Brasil, a Coroa drenara os lucros obtidos no país para Portugal e não fizera investimentos nas artes, na educação, na indústria, nas publicações, além de não ter permitido, por muito tempo, a entrada de estrangeiros no território brasileiro. Tudo A coleção de iconografia do ims está disponível para consulta online: https://ims.com.br/acervos/iconografia/. 3 Vários viajantes estrangeiros estiveram no Brasil em temporadas que duravam meses ou anos: Maximilian, Príncipe de Wied-Neuwied (1815-1817), John Luccock (1813 e 1818), Jean-Baptiste Debret (1816-1831), Saint-Hilaire (1816-1822), Aimé-Adrien Taunay (1816-1828), Johann von Spix e Carl von Martius (1817-1820), Johann M. Rugendas (1822-1825), Sandra Graham (18231825), Hercule Florence (1824-1829), Alcide d’Orbigny (1826), Carl Seidler (1826-1835), Eduard Hildebrandt (1844), François-Auguste Biard (1858-1860) e muitos outros. 2

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mudou quando a família real teve que fugir de Lisboa para o Brasil. Com o objetivo de transformar a nova sede da monarquia, foi aí que a Coroa passou a investir em várias áreas que eram absolutamente negligenciadas. Em 1816, recebeu, como dito anteriormente, a Missão Artística Francesa no Brasil. Após chegarem ao Brasil, os artistas franceses contaram com suporte financeiro do rei português. Sob a liderança do francês Joachim Lebreton (1760-1819), um grupo de artistas franceses atuou na Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, transformada, em 1826, em Academia Imperial de Belas Artes, doravante Aiba. Dentre esses artistas, estava Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que se tornou pintor oficial do rei e ainda substituiu Lebreton, falecido no Brasil em 1819. Até 1831, ano em que voltou à França, Debret ministrou aulas de pintura histórica na Aiba, organizou exposições e produziu centenas de trabalhos (lima, 2003). Nessa academia, um seleto grupo de brasileiros formou-se artisticamente, e um deles será analisado neste texto. Por meio de suas produções artísticas, artistas como Debret queriam construir uma narrativa histórica sobre o Brasil, como uma jovem nação que marchava para a civilização. O artista expressou em suas obras o pensamento iluminista da época e as ideias de ciência que estavam em alta. Eles não eram contrários à escravidão e viam essa instituição como essencial para “civilizar” os africanos. Seus interesses profissionais se imiscuíam com seus interesses particulares e com círculos de amizades que incluíam patronos e cientistas apoiadores de suas missões e publicações. Assim, as produções artísticas de Debret e dos dois artistas analisados neste ensaio devem ser compreendidas a partir de seus contextos de formação intelectual e política, e de seus interesses privados. Este ensaio apresenta uma análise de trabalhos de dois artistas: o brasileiro Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive e o prussiano Eduard Hildebrandt. Ambos foram selecionados por vários motivos. O primeiro é que seus trabalhos fazem parte do acervo do ims, e eu fui convidada para analisar imagens de pessoas negras na iconografia desse acervo. O segundo é que, ao analisar os exemplos visuais do referido acervo, notei que os dois artistas citados modificaram a forma de representar as mulheres negras no contexto urbano dos anos 1840. O terceiro refere-se ao fato de os dois terem impressos seus desenhos na mesma oficina, a de Frederico Guilherme Briggs. Por fim, ambos produziram desenhos para comporem séries para “álbuns de costumes”. Vale ressaltar que os tipos de figuras e composições artísticas das gravuras que esses dois artistas desenvolveram não eram algo novo, pois já estavam sendo realizadas no Brasil desde o século xviii, por artistas como Carlos Julião (1740-1811) e Joaquim Cândido Guillobel (1787-1859), e há mais tempo na Europa.

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As mulheres na litografia de Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive

Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive,4 doravante Lopes, nasceu no Rio de Janeiro. Foi pintor, desenhista, litógrafo, cenógrafo e caricaturista. Seus biógrafos dizem que ele nasceu em 1816. Acredito que essa data está incorreta porque, em 1826, Lopes foi aluno da primeira turma da Aiba, o que significa que ele teria ingressado na escola aos dez anos de idade. De todo modo, em 1826, na Aiba, Lopes teve aulas de pintura histórica com Debret e de arquitetura com Grandjean de Montigny (1776-1850), e fez parte das exposições de 1829 e 1830 (freire, 1983, p. 55). Em 1833, ele e Frederico Guilherme Briggs (1813-1870) candidataram-se ao cargo de professor de paisagem na Aiba, mas foram reprovados e reclamaram do resultado do concurso (cunha, 2010, pp. 105-106). Briggs desistiu da carreira de professor e investiu na carreira de litógrafo e desenhista. Lopes também seguiu esse ramo por um tempo, quando trabalhou na litografia de Briggs, a Rivière e Briggs, de 1832 a 1836. Em 1836, Briggs fechou a empresa e foi morar em Londres, onde aperfeiçoou seus conhecimentos. No ano seguinte, voltou ao Brasil e reabriu outra gráfica, a Lithographia Briggs, na qual Lopes também trabalhou e imprimiu sua série de 50 ilustrações, em 1840. Quatro anos depois, este último criou a sua própria litografia (cunha, 2010, p. 117). Em 1850, Lopes tornou-se professor substituto da cadeira de desenho da Aiba e, em 1857, foi promovido a professor catedrático de pintura histórica (cadeira que tinha sido de Debret). Trabalhou lá até 1860, e faleceu em 1863 (cabral teive, 2022). As gravuras que vamos analisar aqui fazem parte da série de 50 ilustrações assinadas por Lopes e impressas na Litho Briggs, rua do Ouvidor, 130, Rio de Janeiro, em 1840. As ilustrações eram numeradas e vendidas às terças e sábados, isto é, duas vezes por semana, conforme a propaganda da série Costumes do Brasil, anunciada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 15 de fevereiro de 1840 (cunha, 2010, p. 115). O “registro de costumes” era um tipo composição artística que representava o corpo inteiro das pessoas; o foco não são elas, mas suas vestimentas, acessórios e utensílios, e há mais dinamicidade no movimento das figuras representadas. O objetivo dos artistas que registravam “costumes” era oferecer um conhecimento novo sobre as sociedades observadas, com base nas experiências in loco, obter reconhecimento acadêmico e retorno financeiro. 4 Outras grafias do nome de Joaquim Lopes de Barros Cabral: Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive, Barros Cabral Teive, Barros Cabral e Lopes Cabral. Como ele assinava Lopes, usarei esse sobrenome neste ensaio.

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Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive, Preto mascate, da série Costumes brasileiros, editado por Ludwig & Briggs, 1840 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel


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A referida série deu origem ao álbum Costumes brasileiros, no qual Lopes apresentou tipos sociais a partir de suas cores e ocupações. Os brancos foram descritos como soldados, tropeiros, marinheiros, padres, mulheres indo à missa, roceiros, vendedores de água em carro de boi e outros. Em contraste com esse grupo, estavam os “pretos” e “pretas”, termos que Lopes utilizou para caracterizar pessoas negras, mestiças, forras e escravizadas, e também suas ocupações. Ele produziu 25 ilustrações sobre elas, atribuindo-lhes um título e número: Preto de ganho (8), Preto comprador (12), Carregadores de cadeirinha (13), Carregadores de rede (14), Preto vendendo água (15), Preto da iluminação pública (16), Preto de doces (18), Preto mascate (20), Preto de caldo de cana (22), Preto vendendo galinhas (23), Preta vendendo bonecas (24), Preto vendendo hortaliças (25), Preto d’açougue (26), Preto de lixo (27), Preto caiador (28), Preta vendendo água (30), Preta vendendo carvão (31), Hum barbeiro (40) e Pretos cangueiros (43). As demais gravuras podem ser organizadas em duas partes: uma de pessoas trabalhando em grupos – Quitandeiras (33), Carregadores de café (39) e Pretos no libambo (44) –; e a outra com técnicas de castigo e tortura, como Preto ao cepo (29) e Preto de máscara (37).

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Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive, Quitandeira, da série Costumes brasileiros, editado por Ludwig & Briggs, 1840 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel [dir.] Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive, Preta vendendo bonecas, da série Costumes brasileiros, 1840 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel


Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive, Preta de ballas, da série Costumes brasileiros, 1840 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel

Em Lopes, as pessoas negras foram quase todas associadas ao universo da escravidão, e raramente o artista deu atenção aos adereços que elas usavam. Os homens foram, em geral, apresentados como fortes e musculosos, um modelo apolíneo, como mostra a ilustração Preto vendendo água. Apesar da beleza dos corpos negros, a maioria tem roupas velhas, sem adereços corporais, nem sapatos; apenas alguns portam uniformes, chapéus e suspensórios. Mesmo na ilustração do elegante vendedor de tecidos, intitulada Preto mascate, não foi inserido qualquer adereço. O vendedor está descalço, usa camisa azul de manga comprida e calça branca; ele sustenta na cabeça um fardo de tecidos dobrados e uma régua métrica de madeira. No que se refere aos acessórios das mulheres, a maioria foi representada apenas com lenço na cabeça, e somente uma quitandeira usa braceletes (gravura n. 33). Nas ilustrações das figuras da quitandeira e da vendedora de bonecas, Lopes destacou os corpos e roupas em movimento, mas sem adereços, bem como os utensílios que as destacavam como tipos sociais: o enorme cesto com coco na cabeça da quitandeira e as varas de cana de açúcar carregadas por ela; e o cestinho com bonecas transportado delicadamente pela comerciante de bonecas.

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Destaca-se, na série de Lopes, a obra Preta de ballas. Essa gravura aquarelada representa uma mulher livre ou forra, como sugerem os adereços e símbolos inseridos pelo artista na composição visual. Equilibrando um tabuleiro com balas enroladas em papéis coloridos, ela veste um elegante vestido verde com busto justo e decote de ombro a ombro; mangas longas e com caimento; e formato de saia rodada da cintura para baixo e barra de babado de renda. Além disso, ela possui alguns adereços: um turbante amarelo e vermelho, o espanta-mosca, brincos e sapatilhas na cor vermelha. O diferencial desse desenho é o foco do artista nos detalhes dos acessórios e no movimento do corpo e das vestes da mulher: ela segura elegantemente o espanador, toca delicadamente o chão com a ponta da sapatilha vermelha e olha para o artista com altivez. Além disso, os sapatos, os acessórios e a pele com tonalidade menos escura demarcavam a maior mobilidade das mulheres mestiças na sociedade colonial do Rio de Janeiro. Por fim, Lopes seguiu a fórmula dos registros de costumes, focando nos hábitos das pessoas comuns, suas vestimentas, acessórios e utensílios de trabalho – parte de seus estudos sobre como tecidos e roupas definiam os lugares ocupados pelos grupos (suguimatsu, 2006). A peculiaridade de seu trabalho é o movimento atribuído aos corpos e às roupas das figuras anônimas representadas, como se estivessem posando num estúdio.

As mulheres forras em Eduard Hildebrandt

Eduard Hildebrandt (1818-1868) nasceu em Danzigue (antiga Prússia). Foi aquarelista e pintor, especialista em paisagens, e circulou por várias partes das Américas, Europa, Egito e países da Ásia. De 1838 a 1840, estudou pintura em Berlim; fez o mesmo em Paris, em 1842, e expôs em ambas as cidades. Voltou a Berlim em 1843, quando conheceu o naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859), que o apresentou ao rei da Prússia, Frederico-Guilherme iv, o qual passou a patrocinar as viagens de Hildebrandt. Assim, ele chegou ao Brasil em março de 1844, e ficou por aqui até junho do mesmo ano, tendo ainda participado da Exposição Geral de Belas-Artes do Rio de Janeiro. Durante a sua estada no Brasil, Hildebrandt se interessou pela paisagem natural do país e também pelas pessoas escravizadas e forras dos lugares que visitou, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco (ferrez, 2000, pp. 456-476). Hildebrandt tem uma imensa produção artística, mas o meu interesse é apenas na série Brasilian Souvenir: A Selection of the Most Peculiar

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Eduard Hildebrandt, A Free Black-Girl (Negra bahiana), da série Brasilian Souvenir: A Selection of the Most Peculiar Costumes of the Brazils, 1846-1849 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel

Costumes of the Brazil, publicada pela litografia carioca Ludwig & Briggs, entre 1846-1849, a mesma que publicou as ilustrações de Lopes. Nessa série, que também pertence ao ims, há 30 litografias. As figuras da série Brasilian souvenir caracterizam tipos sociais, costumes e hábitos da vida popular nas ruas de cidades brasileiras. Na série de Hildebrandt, três mulheres foram mostradas usando sapatos: a mãe no “funeral do anjinho”, a “Negra bahiana” e a “Ama de leite”. Esta última aparece de costas, com roupas pretas, e pode-se ver apenas seus pés calçados. Para se comunicar com um público mais amplo, os títulos de todas as gravuras de Hildebrandt foram gravados em português e em inglês. Talvez isso tenha sido ideia dos donos da litografia Ludwig & Briggs. Assim, a gravura A Free Black-Girl foi traduzida para o português como Negra bahiana. Mas, para os estrangeiros, que não conheciam os códigos sociais do Brasil, Hildebrandt deixava evidente, no título, a condição livre daquela mulher. Para o público brasileiro, ele apresentou a figura a partir da imponente veste utilizada por mulheres livres com algumas posses: blusa amarela com bicos de renda na gola e nas mangas curtas; um pano esverdeado jogado pelos ombros; saia rodada vermelha com duas barras de rendas. Dentre os seus acessórios, constam um

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turbante azul de seda, um par de brincos brancos, um bracelete dourado no braço direito, uma pulseira de bolas no braço esquerdo, com o qual ela segura um paninho amarelo, e, por fim, os tamancos de cores branca e preta. Ela olha para o artista, assumindo, com o corpo, um posicionamento altivo e delicado. A outra representação de Hildebrandt de uma mulher com sapatos está na ilustração do “enterro de anjinho”, um tipo de funeral para recém-nascidos. A mãe da criança aparece vestida com um longo vestido branco com barra de renda, xale verde decorado com franjas nas pontas e sapatos vermelhos. Ela segura um lenço de algodão branco. Por se tratar de um funeral, não usa joias. Certamente, era membro de alguma irmandade negra que ofereceu o serviço funerário para o bebê. Carregam a cadeirinha dois homens negros descalços, uniformizados de calças, camisas brancas, jaquetas azuis e chapéus pretos com faixa dourada. A cadeirinha é decorada com panos de seda azul e vermelho, e tem cobertura dourada com franjas nas laterais. A caixinha do anjinho é feita em cetim verde, flores artificiais e fitas nas laterais. Uma mulher descalça ob-

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Eduard Hildebrandt, A Child's Funeral (Enterro d'anjinho), da série Brasilian Souvenir: A Selection of the Most Peculiar Costumes of the Brazils, 1846-1849 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel


serva a passagem do funeral. Assim como Lopes, Hildebrandt não focou na arquitetura. De todo modo, é possível ver a silhueta de uma igreja barroca, casas e montanhas ao fundo.

Os adereços nos corpos das mulheres negras

[pp. 110-111] Jean-Baptiste Debret, Esclaves nègres, de différentes nations [Escravas negras de diferentes nações], c. 1834-1839 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Martha e Erico Stickel

Artistas dos anos 1810 e 1820, como Debret, escolheram adereços africanos para caracterizar a diversidade de pessoas estrangeiras negras no Brasil, seus descendentes e suas hierarquias. Debret produziu uma aquarela intitulada Escravas negras de diferentes nações. Nela, há 16 bustos de mulheres escravizadas, com suas origens, nessa ordem: Rebolo, Congo, Cabra, Cabinda, Crioula, Cabinda, Benguela, Moçambique, Mulata, Mina, Monjola, Mulata, Moçambique, Benguela, Benguela, Cassange e Angola. Os termos cabra, crioula e mulata referem-se a mulheres nascidas no Brasil. Os demais termos referem-se às áreas geográficas do lado atlântico e sudoeste da África, de onde as pessoas eram enviadas ao Brasil. Entre os séculos xvi e xix, comerciantes levaram forçadamente ao Brasil cerca de 5,5 milhões de pessoas de diferentes sociedades africanas. Somente no século xviii, cerca de 2,2 milhões de pessoas africanas desembarcaram nos portos brasileiros, no Rio de Janeiro, Salvador, Pernambuco, dentre outros. No Rio de Janeiro, na primeira metade do século xviii, cerca de 43% dos habitantes eram escravizados (lara, 2002, p. 2). Na referida prancha, as mulheres foram diferenciadas por meio de roupas, penteados, adereços, cor de pele, tatuagens e escarificações. Dentre os adereços, há turbantes, tiaras e outros tipos de ornamentos para o cabelo, brincos, argolas, amuletos e uma variedade de colares de contas. O uso dos termos “adereços” e “ornamentos” não pretende restringir os significados dos objetos a uma determinada função; tais objetos eram marcas da distinção social, da religiosidade e da identidade dessas mulheres (freitas, 2009, pp. 44-54). Essas mulheres certamente adquiriram as suas joias e os materiais para produzi-las por meio do comércio de contas que rolava pelas ruas do Rio de Janeiro, com significante participação da comunidade de escravizados, a quem esse comércio era direcionado (brito, 2019). Em trabalhos posteriores, Debret deixa esse formato de representação focado nas características físicas e nas origens, e passa a se dedicar ao pitoresco, mesclado com registros dos costumes. Mesmo assim, ele continuou atento aos tipos de acessórios usados pelas mulheres negras escravizadas e livres.

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Artistas europeus e brasileiros faziam parte do mesmo círculo e compartilhavam das mesmas leituras e fundamentos eurocêntricos, que consideram pessoas africanas como inferiores. Portanto, eles acreditavam que o trabalho escravo, a miscigenação e o cristianismo eram uma forma de transmitir para os estrangeiros que a população de origem africana nascida no Brasil estava adotando hábitos europeus. Comparando-se os trabalhos dos três artistas mencionados, as gravuras de Lopes e Hildebrandt sobre os tipos sociais e suas ocupações deram menos realce aos acessórios do que as de Debret. Mas mesmo os poucos acessórios devem ser analisados. Pulseiras, turbantes, tecidos brasileiros e sapatos não eram meramente adornos e nem podem ser reduzidos apenas a uma função, como a religiosa, por exemplo. Tais objetos podiam ter múltiplos significados para o círculo social de quem os portava, e para a formação de suas identidades (suguimatsu, 2006). De todo modo, ao substituírem-se acessórios africanos por outros produzidos no Brasil, os artistas queriam mostrar para os europeus que o projeto de europeização dos africanos estava sendo bem-sucedido. Mas isso não significa que as mulheres tivessem deixado de usar os adereços que desejassem, ou que tenham aderido ao projeto de europeização de seus costumes e tradições.

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BIBLIOGRAFIA bispo, A. A. “O ar e a luz do Báltico no paisagismo alemão, Danzig/Gdańsk e a imagem do Brasil em Eduard Hildebrandt (1817-1868)”. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 146/7, 2013, p. 6. Disponível em: http://revista. brasil-europa.eu/146/Eduard-Hildebrand.html. brito, Patricia. “O Cais do Valongo e suas contas: comércio e participação escrava”. In: silva-santos, V.; symanski, L.C.P; holl, A. (orgs.). Arqueologia e história da cultura material na África e na diáspora africana. Curitiba: Brazil Publishing, 2019, v. 1, pp. 330-334. cabral teive. Verbete da Enciclopédia. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural. org.br/pessoa22407/cabral-teive. Acesso em: 31 ago. 2022. ________. In: freire, Laudelino. Um século de pintura: apontamentos para a história da pintura no Brasil de 1816-1916. Rio de Janeiro: Fontana, 1983, p. 55. cunha, Lygia F.F. et al. O acervo iconográfico da Biblioteca Nacional: estudos de Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010, pp. 105-121. ferrez, Gilberto. Iconografia do Rio de Janeiro 1530-1890: catálogo analítico. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2000.

freitas, Iohana Brito. Cores e olhares no Brasil oitocentista: os tipos negros de Rugendas e Debret. Dissertação de mestrado. Departamento de História, ichf, uff, Niterói, 2009. guillobel, Joaquim C. Verbete da Enciclopédia. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural. org.br/pessoa206709/joaquim-candido-guillobel. Acesso em: 27 ago. 2022. lima, Valéria A.E. A viagem pitoresca e histórica de Debret: por uma nova leitura. Tese de doutorado em história. ifch, Unicamp, 2003. lahuerta, Flora. “Viajantes e a construção de uma ideia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822)”. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, 2006. suguimatsu, Isabela. Atrás dos panos: vestuário, ornamentos e identidades escravas: Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século xix. Dissertação de mestrado em antropologia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. ________. “Para adornar e proteger: contas de colar, corpos e escravidão”. In: silva-santos, V.; symanski, L.C.P; holl, A. (orgs.). Arqueologia e história da cultura material na África e na diáspora africana. Curitiba: Brazil Publishing, 2019, v. 1, pp. 304-329.

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RETRATOS AFRODIASPÓRICOS MÔNICA CARDIM

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Circulação e consumo de retratos afrodiaspóricos

Em geral, as análises dos retratos fotográficos de pessoas negras produzidos no século xix têm como ponto de partida o viés tipificador e/ou etnográfico de sua fatura, circulação e consumo. No caso das fotografias dos estúdios de Alberto Henschel, que, sob a denominação “Tipos negros”, tiveram ampla circulação e consumo na Europa em arquivos de caráter colonial, as abordagens focam a qualidade estética e técnica das imagens, a ausência de identificação das pessoas retratadas, a dignidade apresentada pelos modelos – erroneamente atribuída ao fotógrafo, e não às pessoas retratadas –, a postura e agência dos modelos. Essa noção de agência tem sido identificada especialmente nos retratos de mulheres negras, cujos olhares e atitude diante da câmera e peças de vestuários relacionadas à cultura afro-brasileira seriam elementos reveladores de suas participações nas composições das imagens.1 Não por acaso, algumas dessas imagens têm circulado na atualidade por meio da apropriação de intelectuais negros. Artistas, pesquisadores e Sobre essas interpretações, ver, entre outros, cunha, 1988; koutsoukos, 2006 e 2008; hirszman, 2011; cardim, 2012; magalhães; rainho, 2020; bispo, 2020.

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historiadores se utilizam desses retratos para evocar, por exemplo, referências visuais de mulheres negras fortes e guerreiras. Trata-se, portanto, de uma produção voltada para o consumo negro. O consumo desses retratos por pessoas negras no século xix, período de sua fatura, assim como os nomes dos retratados raramente são passíveis de identificação. Tais consumidores negros pareciam não existir, até que um deles foi processado por estelionato. Trata-se do pai de santo Juca Rosa, que constituiu um pequeno acervo de caráter privado com retratos seus e de seus seguidores.2 Esse conjunto de imagens foi apreendido pela polícia na residência de Rosa e utilizado como prova criminal no processo movido contra ele.3 Durante o inquérito, algumas fotografias foram mostradas aos depoentes. No caso de serem eles os próprios retratados, deveriam justificar o porquê de terem posado para a foto e de sua imagem estar na posse do pai de santo. Em outras situações, o depoente deveria dizer se já havia visto os retratos do líder espiritual ou de algum seguidor deste, se conhecia as pessoas retratadas e de onde. Pela análise desses depoimentos, verificamos que Rosa incentivava os seus filiados a serem retratados e trocava fotos com eles. Para nosso interesse, as fotos foram feitas nos estúdios de Alberto Henschel.4 Atualmente, consta do processo apenas um retrato de Juca Rosa, de corpo inteiro, em pé, vestido com suas roupas cerimoniais, tendo ajoelhado à sua frente um de seus seguidores, João Maria da Conceição. O desaparecimento dos retratos constitui uma perda irreparável para a história da fotografia e das pessoas retratadas, mas a publicação de algumas das imagens no artigo “Trancinhas e trançadores”, do dr. Pires de Almeida, na revista Illustração Brazileira, em 1o de setembro de 1913, permite associar nomes a rostos e, quem sabe, recuperar um pouco de suas histórias. Por tal motivo, faço uma breve comparação entre os dois documentos – o processo contra Juca Rosa e o artigo do dr. Pires de Almeida.

2 O retrato do sacerdote Juca Rosa, embora não faça parte das obras do acervo digital do Instituto Moreira Salles, está associado a esse conjunto de imagens pelo fato de alguns dos retratados serem seus seguidores, incentivados por ele a posar para o fotógrafo alemão. 3 É possível conhecer aspectos do processo no livro Juca Rosa: um pai de santo na Corte imperial, de Gabriela dos Reis Sampaio (2009). A autora não faz a análise dos retratos fotográficos, mas organiza um grande volume de informações acerca de Rosa e seus seguidores. 4 Ver prussat, 2008; cardim, 2012 e 2021.

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Trancinhas e trançadores

Nas páginas do artigo “Trancinhas e trançadores”, é possível ver 21 cartes-de-visite produzidos nos estúdios de Alberto Henschel. O enfileiramento dos retratos no topo e na parte inferior das duas primeiras páginas reproduz o modelo visual de catalogação, próprio dos álbuns etnográficos utilizados para hierarquização racial dos grupos humanos no século xix, ao mesmo tempo em que emoldura o texto. A legenda das imagens intitula a série como Juca Rosa e seu pessoal no período áureo da nossa magia negra e informa que as fotografias são autênticas e datadas entre 1866 e 1876. Além disso, nomeia todas as pessoas retratadas e comenta a função, profissão ou um dado atribuído à biografia de algumas delas. Ao longo do artigo, no entanto, o autor menciona apenas Juca Rosa e Generosa, representados nos dois primeiros retratos dispostos na parte superior da página 294, à esquerda. Rosa: citado enquanto feiticeiro que ensinava a combater os malefícios causados por um trançador com a gota de sangue de urubu, mas também capaz de criar os malefícios. Generosa, enquanto a “mãe-quimbomba5 do ousado feiticeiro”, seria, segundo o autor, quem entregava as trancinhas aos clientes em troca de esmolas. Ao publicá-lo na seção Erros e Preconceitos Populares sob o título “Trancinhas e trançadores”, o autor, que assina como dr. Pires de Almeida, dá o tom de seu objetivo. Trata-se de uma análise com caráter científico e moderno acerca dos perigos de antigas crenças populares para a família brasileira. No decorrer de seu texto, o médico apresenta inúmeros exemplos de trancinhas, uma espécie de feitiço para o amor feito por amarrações. Por meio de tais feitiços, seria possível prender amorosamente alguém, roubar o noivo ou mesmo os bens de outrem. Do Egito à Grécia antiga, passando pela Itália e pela França quinhentista, e um pouco mais adiante por Portugal e Espanha, até chegar ao Brasil na década de 1870, Almeida cita filósofos, papas, cardeais, reis, imperadores e frades como exemplos de pessoas que tiveram suas vidas e riquezas amarradas ou de trançadores. Juca Rosa é apresentado ao final do artigo na segunda categoria. Antes, no entanto, o autor enfatiza que, em todos os tempos, o poder das trancinhas foi percebido, e seus trançadores, severamente punidos com a fogueira, enforcamento ou ambos ‒ forca seguida de fogueira. 5 O termo pode estar associado à Quimbombo, uma região localizada em Angola. Juca Rosa também era chamado de Pai Quimbombo. As expressões podem ser corruptelas de Kimbanda, que, em Kimbundu, significa bruxo, curandeiro. Ver milagres, 2020.

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A despeito da compreensão de que a prática das trancinhas é antiga e realizada por distintas culturas, religiões e povos, Almeida destaca tratar-se de bruxarias provenientes das senzalas. Desse modo, sem que precise mencionar cada uma das pessoas presentes nas imagens, ele ratifica a representação estereotipada dos retratados. E conclui serem as mulheres negras as responsáveis pela manutenção da ameaça à sociedade. Na família brasileira, a intimidade das moças com as ex-escravizadas é um indício de coparticipação no exercício da trancinha; e os casamentos perturbados e as uniões burladas ou malsucedidas mais não são do que medida da nossa ignorância e do atraso de nossos costumes (almeida, 1913, p. 296).

Retratos afrodiaspóricos ‒ Rostos e nomes

No carte-de-visite acima, temos a imagem de José Sebastião da Rosa, conhecido como Juca Rosa, o mais célebre pai de santo a atuar na corte carioca entre os anos de 1865 e 1870. Antes, o jovem Rosa trabalhara como cocheiro, praça de exército e fora criado do sr. Mateus T. da Cunha, que, anos mais tarde, assinaria um depoimento louvando sua “fidelidade, humildade e exemplar comportamento” (sampaio, 2009, p. 119). De 1855 a 1865, Juca Rosa foi casado com Felicidade Perpétua de Je6 sus, com quem teve o filho Bento. Adelaide Joana da Silva, mãe de Felicidade, e Antônio José Severino foram os padrinhos de Bento, criança negra batizada como livre na igreja católica Matriz do Santo Sacramento, em 1864, sete anos antes da aprovação da Lei do Ventre Livre. 6 Oito anos mais jovem que ele e, em sua autopercepção, uma mulher branca, como demonstra seu depoimento sobre o fim do casamento com Rosa: “Que deu esse passo porque era voz geral do povo que não era bonito que ela correspondente com a cor que tem ser casada e viver com um homem de cor preta como seu marido”. Cf. sampaio, 2009, p. 108. De fato, é possível que ela fosse branca ou negra de pele clara, e começasse a se reconhecer como branca ao receber a herança de seu pai, que, pelo que as pesquisas indicam, era José Justino Pereira de Faria. Se Felicidade Perpétua de Jesus era a filha deste armador do tráfico negreiro que atuou na foz do rio Congo, a ex-mulher de Rosa pode ter se tornado a proprietária de parte relevante da Gávea, e sócia majoritária do famoso cortiço Cabeça de Porco, da zona portuária do Rio de Janeiro. Demolido em 1893, o cortiço é mencionado, em charge de Ângelo Agostino, como o local que fez as delícias do Conde d’Eu e as glórias da barbada e respeitável d. Felicidade Perpétua de Jesus. Cf. Memória da destruição: Rio – Uma história que se perdeu (1889-1965). Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 2002 (disponível em: http:// www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204430/4101439/memoria_da_destruicao.pdf).

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Alberto Henschel, O pai de santo Juca Rosa, c. 1870 Völkerkunde Museum – Zurique

Na imagem ao lado, vemos o homem identificado no artigo do dr. Almeida Pires como “Antônio – Trançador”. Considerando-se as informações levantadas no processo, é possível que se trate de Antônio José Severino, padrinho de Bento. Se a correspondência do nome a esse retrato se confirma, reforça-se a ideia de construção e manutenção de redes de sociabilidade entre negros durante o período escravocrata no Brasil. Testemunhos informam que Rosa se relacionava com muitas de suas seguidoras, mas cartas presentes no processo indicam dois nomes: Maria Thereza Ferreira, a portuguesa conhecida como Mariquinhas de Europa, com quem teria se casado nos rituais da religião da qual era sacerdote;7 e Henriqueta, com quem tinha dois filhos, e que fora responsável por cuidar de seus pertences durante viagem à Bahia. Esta também o aconselhava em assuntos pessoais e religiosos, revelando uma relação mais horizontal do que a estabelecida com as outras mulheres. Dos 21 retratos publicados na revista Illustração Brazileira, oito são de mulheres, mas o cotejamento com as informações reunidas no processo revela um número muito maior de envolvidas com Juca Rosa. A denúncia anônima que o levou a julgamento, bem como as publicações na imprensa do período, dera destaque à influência de Rosa sobre o “espírito fraco e exaltável” de inúmeras mulheres, descritas como vítimas, incluindo brancas e provenientes de diferentes estratos sociais. Algumas eram apresentadas como clientes de Rosa; outras, filiadas a ele após juramento, eram consideradas suas filhas (sampaio, 2009, p. 58). Disposta ao lado do retrato de Juca Rosa, aparece a foto de Generosa, jovem apresentada no artigo de Almeida como a “envenenadora de Azurara”. 7 Conhecida como Mariquinhas de Europa, tinha 23 anos na ocasião da prisão, e é apontada por muitas das testemunhas como esposa de Juca Rosa no Gongá. Embora ela tenha negado vínculo com o pai de santo, foram-lhe apresentados, durante seu testemunho, uma correspondência que trocara com ele e um retrato seu. Esse retrato, possivelmente por dizer respeito a uma mulher branca amante de um rico comerciante, desapareceu do processo (Processo José Sebastião da Rosa; sampaio, 2009, p. 64).

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Se confrontamos essa informação com os depoimentos no processo judicial,8 vemos que se trata de Generosa Clementina Campos, que se apresentava como costureira e que procurou Rosa pela primeira vez em 1867, aos 20 anos de idade, por indicação da colega Paulina. É possível, ainda, deduzir que o envenenado seria Henrique Azurar, 22 anos, negociante conhecido da Corte, amante, em tempos distintos, das mulheres das fotos a seguir: Júlia e Leocádia. Júlia Adelaide Xavier, parceira de Generosa, morou com Leocádia Maria da Glória. O filho de Leocádia teve como madrinha a portuguesa Maria Thereza Ferreira, esposa de Rosa anteriormente mencionada. A junção dessas informações demonstra, também, a rede de sociabilidade entre as mulheres, brancas e negras. O reconhecimento de uma rede entre mulheres seguidoras de Juca Rosa contribui na reflexão sobre suas estratégias de resistência e luta no século xix. Muitas delas autodeclaravam-se costureiras, o que, segundo médicos higienistas da época, poderia significar que eram prostitutas.9 Alicerçadas nos ritos sagrados de matriz afro-brasileira conduzidos por Juca Rosa, mulheres negras exerciam papéis distintos dos de subalternidade determinados pela sociedade escravocrata e patriarcal branca. Já as mulheres brancas que se aventuravam a envolver-se com tal homem negro, ainda que mais protegidas, enfrentavam igualmente essa sociedade. Mães de santo, vendedoras, costureiras, amantes, prostitutas, ao seu modo, todas elas experimentavam, por sua conta e risco, seus processos de emancipação. Tanto brancas quanto negras eram consideradas fracas, ingênuas, vítimas de Rosa. Mas as histórias das brancas demonstram não serem mulheres tolas, e o olhar e a postura das negras dão a ver pessoas dignas e fortes.

8 9

Processo José Sebastião da Rosa; sampaio, 2009, p. 103. Ver notas 82, 83 e 84 em sampaio, 2009, p. 124.

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Alberto Henschel, Antônio, seguidor de Juca Rosa, c. 1870 Acervo Instituto Moreira Salles/Convênio Leibniz-Institut für Länderkunde, Leipzig


A Galeria de Zumbi

Sob o título Galeria de Zumbi, 35 retratos de pessoas negras produzidos nos estúdios de Alberto Henschel estão disponíveis no site da Brasiliana Fotográfica.10 Ainda que o nome da galeria renda uma homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares, os títulos individuais dos retratos, como “Tipos negros” ou “Negra de Pernambuco”, reproduzem a descrição utilizada pelo colecionador alemão Alphons Stübel, que as comprou no Brasil e as exibiu na Alemanha no século xix, com fins etnográficos. O que não ocorre no site do Leibniz-Institut, em que está preservada a coleção de Stübel. Na ausência dos nomes das pessoas retratadas, estas são identificadas como “Afro-brasileiro” ou “Afro-brasileira”.11 Para que a atualização dos termos não ignore o contexto histórico, as atribuições dadas no passado constam no campo “detalhes”, no item “inscrição”. Assim, estão disponíveis ao pesquisador contemporâneo informações para que as imagens sejam analisadas em amplitude crítica decolonial, a favor e a contrapelos, e, por que não, a contrapele? Busquei, com este artigo, contribuir na ampliação e consolidação de análises críticas acerca de retratos fotográficos de pessoas negras. Isto é, sob outros pontos de vista. Outras narrativas. Como passo inicial, cabe a identificação devida aos sujeitos retratados. Papel que a documentação atual, gerada por instituições e pesquisadores, deve assumir, a fim de reescrever a história da fotografia e da presença negra no país. Espero que a linha narrativa desenvolvida a partir das relações sociais de Juca Rosa documentadas em seu processo, em associação à sua coleção de retratos, permita que as séries fotográficas de pessoas em situação de diáspora possam ser interpretadas além da categorização tipificada de indivíduos não brancos no Brasil do século xix. A informação de que a circulação e o consumo de retratos no século xix também se deu pelas pessoas negras retratadas coaduna com a concepção de Negras imagens, e realiza um deslocamento da posição objetificada dessas pessoas, consumidas em seus corpos e imagens, para a de consumidoras das próprias imagens e donas dos próprios corpos e espíritos.

10 https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/visualizar-grupotrabalho/71. 11 https://ifl.wissensbank.com/esearcha/browse.tt.html.

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Alberto Henschel, Galeria de Zumbi, com retratos fotográficos de pessoas negras dos estúdios do fotógrafo, c. 1869 Acervo Instituto Moreira Salles/Convênio Leibniz-Institut für Länderkunde, Leipzig


FONTES MANUSCRITAS

BIBLIOGRAFIA

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FONTES ICONOGRÁFICAS Brasiliana Fotográfica https://brasilianafotografica.bn.gov.br/ brasiliana/handle/20.500.12156.1/4391 Leibniz-Institut für Länderkunde https://ifl.wissensbank.com/esearcha/browse. tt.html ferreira, Edemar Cid. Negro de corpo e alma. Col. Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000, pp. 170-171.

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MULHERES NEGRAS NO MERCADO JULIANA BARRETO FARIAS

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Em meados da década de 1870, uma das “negras quitandeiras” da praça do Mercado do Rio de Janeiro foi registrada em frente à sua banca. Rodeada de cestas e tabuleiros colocados ao chão e sobre barris, até parecia estar posando para um retrato em estúdio. Em fotografias desse tipo, era necessário ficar parado por algum tempo, para que os movimentos não fossem capturados. Mas, ao encarar a câmera, ela não evitou descascar algo ou simplesmente mexer em sua peneira. No canto, diante de uma bancada de madeira, um homem (aparentemente branco) aparecia meio borrado, como se também estivesse se movimentando. Não sabemos nome, idade, origem ou condição social daquela mulher. De qualquer maneira, nem tudo podia ser controlado no ato fotográfico. Ao se permitir retratar, a vendedora negra também deixava suas marcas no espaço de figuração da imagem. O “olhar retornado”, alguns gestos sutis, o turbante arrumado, o pano (da Costa?) ao colo eram bem mais que meros detalhes. Se o autor da fotografia, o franco-brasileiro Marc Ferrez (1843-1923), conformava uma “dada memória da escravidão” em suas obras, os homens e as mulheres negros captados, fossem escravizados ou libertos, igualmente informavam suas experiências e autoimagens. No mercado do Rio, essas mulheres negras eram reconhecidas por sua altivez, autonomia e desenvoltura comercial. É possível, inclusive, conjecturar que, no centro da foto, estivesse a africana mina Emília Soares do Patrocínio, ou

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sua “parente de nação” Maria Rosa da Conceição.1 Afinal, havia mais de 30 anos elas ofereciam ali frutas, legumes, aves e ovos. E, certamente, na hora de registrar uma dessas mercadoras, Ferrez teria surpreendido uma das mais antigas. Entre os anos de 1875 e 1880, ele fez alguns registros na praça, também conhecida como Mercado da Candelária ou da Praia do Peixe. Construído No Rio de Janeiro do século xix, homens e mulheres procedentes da costa ocidental africana, à época chamada de Costa da Mina, eram identificados, de forma genérica, como pretos ou pretas minas, ou negros ou negras minas. Minas, assim como angolas, benguelas, cassanges ou moçambiques, conformavam as chamadas “nações” africanas no Império brasileiro, e não correspondiam, necessariamente, a Estados, reinos ou etnias africanas. Esses “nomes de nação” podiam equivaler a grupos étnicos, portos de embarque, cidades ou áreas geográficas mais abrangentes. No Brasil, essas “nações” eram o ponto de partida para a construção de laços mais abrangentes, nos espaços de trabalho, moradia, religião, e mesmo nas formações familiares. Mesmo sem vínculos consanguíneos, esses africanos – que se consideravam como irmãos, pais ou tios de homens e mulheres procedentes de uma mesma região ou grupo étnico – identificavam-se, em muitos registros do período, como “parentes de nação”.

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Marc Ferrez, Vendedora no mercado, Rio de Janeiro, rj, c. 1875 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez


na década de 1830 à beira da baía de Guanabara, o mercado era o principal centro de abastecimento de gêneros alimentícios de primeira necessidade da capital do Império brasileiro, e assim se manteve até pelo menos princípios do século xx. Em seus diferentes espaços, havia uma multiplicidade de vendedores, carregadores e fregueses de raças, nacionalidades e origens étnicas diversas, com um especial destaque para as chamadas “negras minas” ou “pretas minas”, em uma referência direta às africanas da Costa da Mina que predominavam ali. Desde seus primeiros tempos, o lugar atraía olhares de viajantes estrangeiros, cronistas, ilustradores e fotógrafos, sobretudo por seu lado dito “pitoresco”. A partir da década de 1860, passaria a ser captado sob outros e variados ângulos, especialmente pelas lentes panorâmicas de Georges Leuzinger, Marc Ferrez e Juan Gutierrez. Nesse período, o Rio de Janeiro era tema central nas obras desses fotógrafos. A cidade, seu casario, seus costumes, ruas e praças eram figurados a partir de chapas de grande formato, com técnicas que por vezes surpreendiam pela nitidez e pela definição de detalhes. Embora privilegiasse essa visão mais ampla, Ferrez também captou os trabalhadores instalados no mercado do Rio. As datas de produção dessas imagens são incertas. No acervo do Instituto Moreira Salles, constam três fotografias que teria feito por volta de 1875, e uma outra, da doca e cais da Praia do Peixe, de 1880. Nessa perspectiva, ficamos mais próximos das “negras quitandeiras” nos arredores da praça ou em seu interior, ou ainda de carregadores e ambulantes apresentados em “fotografias instantâneas” no cais das Marinhas. Partindo desses registros, e por vezes comparando-os a outras fotografias e também a fontes de outras naturezas, podemos abordar as relações entre trabalho urbano, gênero e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista, enfocando, especialmente, as vendedoras negras do Mercado da Candelária.

Negras imagens

No século xix, homens e mulheres negros costumavam ser fotografados no Rio de Janeiro em duas modalidades: retratos e “tipos humanos”. O primeiro formato era, em geral, feito por alforriados, escravizados domésticos ou seus descendentes que – na condição de clientes – pagavam eles próprios pelas imagens ou as adquiriam com recursos fornecidos por senhores e senhoras para quem trabalhavam. Eram registros que circulavam nos limites de suas casas ou das residências senhoriais. A partir da década de 1860, com a invenção e a popularização dos chamados cartes-de-visite, ficou mais fácil, para esses grupos sociais, ter

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acesso aos novos estúdios, que ofereciam fotografias a preços menores. Mas eles acabavam se “enquadrando” nas mesmas poses e em toda a mise-en-scène que cercavam o ato fotográfico da classe senhorial (fabris, 1998; muaze, 2017, p. 37). De outra parte, estavam as fotos de “tipos humanos”, que podiam ressaltar as ligações de negras e negros a diferentes ofícios, como quitandeiras, carpinteiros ou cesteiros, por exemplo, ou ainda apontar para características então consideradas exóticas, como trajes e adereços africanos, corpos nus ou escarificações étnicas. As reproduções dessas imagens eram vendidas aos montes nos ateliês fotográficos e em livrarias, e também eram anunciadas em jornais e semanários. Em 1867, o fotógrafo Christiano Jr. publicava no Almanack Laemmert: “Variada coleção de costumes e tipos pretos, coisa muito própria para quem se retira para a Europa” (mauad, 2000, p. 89; muaze, 2017, p. 37). Como havia muitos consumidores para esse tipo de imagens, tanto no Brasil como em outros países, quase todos os fotógrafos mais conhecidos do período passaram a comercializá-las. “Tipos pretos” e exóticos foram registrados por Alberto Henschel, Rodolpho Lindemann, Felipe Augusto Fidanza, João Goston, João Ferreira Villela, Augusto Stahl, Christiano Jr. e também por Marc Ferrez. Os corpos negros transformavam-se, mais uma vez, em “mercadorias” para consumo público, “tipos humanos” que atraíam por sua peculiaridade, particularidade e exotismo. Conforme definiu a historiadora Ana Maria Mauad (2000, p. 97), travava-se de um “retrato do negro para o branco”. Provocando uma sensação de “aproximação do mundo”, a fotografia levava a lugares, pessoas e culturas distantes, os quais muitos nem sequer podiam antes imaginar existir ou conhecer (sussekind, 1990). Mas muitas viagens também se tornavam “reais”, com o avanço do turismo na segunda metade do Oitocentos. E diversos profissionais aproveitaram essa novidade, produzindo as chamadas fotos souvenirs. Marc Ferrez estava entre eles. Em meados da década de 1860, ele já havia estabelecido seu próprio ateliê no Rio de Janeiro, a Casa Marc Ferrez & Cia. Em 6 de junho de 1869, assim a anunciava no Jornal do Commercio: “Photographia Brazileira – specialty of views of Rio and surrounding of all dimensions. Views taken of chacras [sic], ships, monuments, etc. etc. of all sizes at resoable [sic] rates.” Segundo Mariana Muaze, recorrer ao texto em inglês era uma estratégia para atrair compradores estrangeiros, de fato os mais interessados nas vistas e paisagens do Rio de Janeiro, mas também a classe senhorial do Rio e de outras províncias que quisesse registrar suas casas, palacetes, fazendas ou suas famílias (muaze, 2017, p. 39). Mas a popularização dos retratos tornou a concorrência com outros profissionais cada vez mais acirrada. Para garantir sua clientela, Ferrez desen-

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Marc Ferrez, Panorama do centro do Rio de Janeiro a partir do morro do Castelo, Rio de Janeiro, rj, c. 1890 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

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Marc Ferrez, Panorama do centro do Rio de Janeiro a partir do morro do Castelo, Rio de Janeiro, rj, c. 1890 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

volveu técnicas próprias, investindo no aprimoramento de químicos e equipamentos, a exemplo da máquina fotográfica para produzir panorâmicas, que encomendou ao francês M. Brandom, e das primeiras chapas fotossensíveis secas fabricadas pelos irmãos Lumière, que trouxe para o mercado brasileiro (muaze, 2017). Na década de 1870, ele já era reconhecido internacionalmente como fotógrafo e pesquisador de materiais fotográficos em ambiente tropical. No Brasil, realizou diversos trabalhos e ganhou títulos importantes, como os de fotógrafo da Marinha Imperial (1877); da Comissão Geológica do Império, chefiada por Charles Frederick Hartt (1880); e da ferrovia Paranaguá-Curitiba (1886), cujo álbum foi incorporado à coleção da Société de Géographie de Paris. Embora abordasse os mais variados temas em suas fotografias, a cidade do Rio figurava como “personagem” principal. Selecionando alguns marcos simbólicos da paisagem carioca, Marc Ferrez acabou por construir uma imagem do Rio em que urbes e natureza se integravam, com uma aparente harmonia e bem poucos contrastes sociais (turazzi, 2000, p. 43). Entre os estudiosos da fotografia no século xix, ele é considerado, unanimemente, como o fotógrafo que mais se dedicou às vistas e paisagens do Brasil oitocentista. E foi assim que fez seus primeiros registros na praça do Mercado do Rio.

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Marc Ferrez, Doca e mercado da Praia do Peixe, Rio de Janeiro, rj, c. 1880 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

Por volta de 1868, tal como os ilustradores das primeiras décadas do Oitocentos, Ferrez postou-se no largo do Paço e retratou a entrada do mercado que ficava quase em frente ao chafariz projetado pelo Mestre Valentim. Ao fundo, prédio e obra pareciam formar um conjunto uniforme, em que mal se percebiam transeuntes em movimento e carroças estacionadas. Alguns anos depois, ele subiu o morro do Castelo e fotografou aquele pedaço da cidade em toda a sua amplidão. À esquerda da imagem, em frente ao único espaço vazio da área, divisamos a praça, quase indistinta, mas já com um segundo pavimento, acrescentado em 1869. Logo em frente, estavam pavilhões construídos no cais das Marinhas e alguns barcos ancorados na doca. Recortando outra imagem que fez ali do alto, observamos mais de perto o prédio do mercado, praticamente colado ao Arco do Teles. No canto direito, sobressaem a cobertura da rotunda em que Victor Meirelles apresentava seu panorama do Rio de Janeiro e uma das torres da igreja de São José. Do lado da baía, estava a doca contígua ao mercado, onde eram desembarcados os gêneros da roça e o pescado que cativos, pescadores e pequenos lavradores traziam em “canoas de ganho”, saveiros, faluas e outros barcos vindos das zonas suburbanas do Rio e das áreas rurais de Niterói. À sua frente,

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estavam a rampa e a praça das Marinhas, área em que carregadores, quitandeiras e outros vendedores se instalavam sob chalets ou nas suas proximidades. No início dos anos 1880, Ferrez recortou esse pedaço em uma composição que integrava trabalhadores, prédios e mar. Sob os pavilhões erguidos ali, misturavam-se muitos homens, talvez vendedores e fregueses. Ao fundo, mal se percebiam os contornos do edifício do mercado. Já na rampa, notamos com mais nitidez aqueles que se movimentavam junto às canoas de pescadores. Ao privilegiar uma visão mais ampla, Marc Ferrez praticamente não registrou espaços dentro do Mercado da Candelária e pouco apresentou aqueles que labutavam ali. Ainda assim, para além da vendedora negra que já vimos na abertura deste texto, outras mulheres e homens negros também foram captados mais de perto pelo fotógrafo. De meados da década de 1870 até início dos anos 1880, quando fez as imagens, africanas e africanos continuavam ocupando barracas no interior e nas imediações do mercado. Entretanto, pouco a pouco, suas descendentes, outros mercadores brasileiros e portugueses iam predominando no local. No grande tabuleiro do mercado, tipos de produtos oferecidos, procedência étnica, status social e gênero dos vendedores ainda determinavam os lugares que cada um podia ocupar. Ao registrar alguns desses homens e mulheres negros, não localizamos identificações mais pormenorizadas, assim como nas fotos de “tipos humanos” ou nos retratos dos cartes-de-visite. Para além do anonimato, também ficamos sem saber quais eram exatamente suas origens ou idades. Conforme vimos, a posição de alguns parecia indicar que estavam exercendo seus ofícios “naturalmente”, como se não percebessem a presença do fotógrafo. Todavia, as técnicas disponíveis na época acabavam por “denunciá-los”. Os borrões de algumas imagens demonstram que nem sempre conseguiam segurar os movimentos, “atravessando” o tempo de exposição para a captura da foto. De um jeito ou de outro, seguindo as proposições das historiadoras Ana Maria Mauad e Mariana Mauaze, notadamente em seus trabalhos sobre a obra de Marc Ferrez, é possível considerar que essa perspectiva mais panorâmica e socialmente distante não conseguia evitar o “olhar retornado” do fotografado e tampouco toldava alguns sinais diacríticos. Assim, cabe olhar essas imagens atentando para os “rastros de humanidade” daqueles homens e mulheres que, no momento do clique, instauravam sua autorrepresentação (muaze, 2017; mauad, 2000; koutsoukos, 2010).

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Negras mulheres

No Rio de Janeiro oitocentista, senhores de escravos, viajantes estrangeiros, políticos e, de resto, boa parte da população da cidade enfatizavam as “aptidões mercantis” de cativas e forras procedentes da chamada Costa da Mina, especialmente quando comparadas a africanas de outras “nações”. Na praça do Mercado, essas imagens e estereótipos também eram frequentemente evocados. Na década de 1850, a francesa Adèle Toussaint-Samson dizia não haver “nada de mais original” na cidade do que esse mercado. Em meio a montes de laranjas, bananas, mangas, frutas-do-conde, melancias, abacaxis, espinafres, batatas-doces e palmitos, destacavam-se “grandes negras minas, com a cabeça ornada de uma peça de musselina formando um turbante, o rosto cheio de incisões, usando uma blusa e uma saia por toda a vestimenta”. Mais adiante, no cais que margeava a praça, fixavam-se, sob grandes guarda-sóis de pano, negras servindo por um vintém tigelas de café quente ou então batatas-doces fumegantes, sardinhas fritas, angu, “maçarocas de milho assado” e feijoada, “tudo o que constitui, no Brasil, uma refeição de negros e mesmo dos brancos da classe inferior”. Aliás, era ali que se podia ouvir “aquela língua africana chamada língua da Costa” (toussaint-samson, 2003, pp. 76-78).2 Outra mulher que se encantou com o mercado foi a norte-americana Elizabeth Agassiz. Em 1865, ao acompanhar seu marido, o naturalista Luiz Agassiz, até aquele pedaço da cidade do Rio, afirmou que também sentia prazer de ver os mostruários cobertos de laranjas, flores e legumes, e para observar os grupos pitorescos dos negros tagarelando ou vendendo suas mercadorias. Sabemos agora que esses negros atléticos, de rosto distinto e tipo mais nobre que os dos negros dos Estados Unidos, são os minas, originários da Província de Mina na África ocidental. É uma raça possante, e as mulheres em particular têm formas muito belas e um porte quase nobre. Sinto sempre grande prazer em contemplá-las na rua ou no mercado, onde 2 Samson chegou ao Rio de Janeiro junto com seu marido, o também francês Jules Toussaint, por volta de 1849-1850. E aqui eles permaneceram até os primeiros anos da década de 1860. O livro em que relatou sua estada na cidade foi traduzido para o português por Antonio Estevão da Costa e Cunha e publicado no Brasil em 1883, mesmo ano da edição francesa. Em 1859, Charles Ribeyrolles, outro francês, também dizia: “Gostais da África? Ide, pela manhã, ao mercado próximo do porto. Lá está ela, sentada, acocorada, ondulosa e tagarela, com o seu turbante de casimira, ou vestida de trapos, arrastando as rendas ou os andrajos. É uma curiosa e estranha galeria, onde a graça e o grotesco se misturam, Povo de Cã, debaixo de sua tenda.” ribeyrolles, 1980, p. 203.

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se veem em grande número, pois as empregam mais como vendedoras de legumes e frutas que como criadas [o grifo é nosso] (agassiz, 1975, p. 68).

O senador Holanda Cavalcanti também dizia, na década de 1850, que bastava ir ao mercado de peixe, criação, frutas ou verduras da capital carioca “para se ver que a maioria dos vendedores são libertos ostentando ainda as marcas tribais”.3 Embora não mencione a procedência desses forros, certamente os fiscais e outros frequentadores da praça sabiam, somente “por ver”, de quem se tratava. As “nações” dos africanos no Rio de Janeiro eram reconhecidas – e compartilhadas – por muitos moradores, visitantes e pelos próprios cativos e libertos a partir de determinados signos, indumentárias e marcas corporais. 3 hudson e palmerston, Rio de Janeiro, 27.07.1850, encl. 2, n. 85. Citado em: cunha, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros, p. 92.

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Marc Ferrez, Mercado na beira do cais, Rio de Janeiro, rj, c. 1875 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez


Como ressalta a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, cada grupo podia dispor de símbolos variados e manipulá-los em diferentes contextos, mas, para que construíssem, efetivamente, um padrão de identificação, eles tinham de ser inteligíveis a todos os demais (cunha, 1986, pp. 94-95). De todo modo, ainda que alguns ofícios urbanos acabassem dominados por determinados grupos ou divididos entre homens e mulheres, as fronteiras nem sempre eram tão rígidas. As africanas minas e nagôs eram reconhecidas por seus panos da Costa e turbantes característicos. Entretanto, mulheres angolas e crioulas também os usavam quando saíam para vender produtos nas ruas e mercados. Pouco a pouco, essas indumentárias passaram a caracterizar, sobretudo, o ofício das quitandeiras (diversificado, da mesma forma que também encontramos homens cativos ou libertos oferecendo diversas mercadorias nas cidades brasileiras). De um jeito ou de outro, quando retornamos às mulheres negras registradas por Marc Ferrez, não é possível afirmar se eram, de fato, as famosas pretas minas do mercado. Mas, como tantos na cidade do Rio, era bem provável que ele também tivesse sido atraído por elas. Cotejando a documentação do período, constatamos que, em meados da década de 1870, algumas dessas “damas mercadoras” ainda estavam em atividade ali, ocupando bancas ao lado de seus cônjuges – também minas – e de outros “parentes de nação”. Pelo regulamento da praça, apenas homens e mulheres “livres e capazes” podiam alugar vagas em seu interior. Se a expressiva – e circunspecta – vendedora captada por Ferrez era uma africana, não há como comprovar. Entretanto, com certeza, era liberta ou livre. E sua altivez, que também reslumbra na imagem, era mais uma das características ressaltadas nos retratos (iconográficos e escritos) dessas mulheres. Ao sair da praça, o fotógrafo franco-brasileiro também mirou suas lentes para vendedoras ambulantes postadas nas cercanias do mercado e no cais das Marinhas. Em torno de 1875, Ferrez as fotografou – numa imagem que ganhou o título de Mercado na beira do cais – misturadas a seus balaios de frutas (aparentemente bananas) em algum ponto da plataforma que não é possível precisar. Talvez em função da movimentação das quitandeiras, a foto resultou desfocada, e, num primeiro plano, sobrepujado pela construção ao fundo, só chegamos a divisar seus turbantes (certamente brancos) e os panos jogados sobre os ombros ou enrolados nos quadris. Próximo a uma delas, há um homem negro, também com uma espécie de boina e vestimentas próprias de carregadores africanos. Como nos retratos em estúdio e nos de “tipos humanos”, não conseguimos desvelar suas origens, nomes ou demais individualidades.

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Em 1893, o fotógrafo espanhol Juan Gutierrez postou-se ainda mais junto delas, registrando-as ao lado de outros vendedores, de forma vívida e detalhada. Ao evitar a profundidade de campo, conseguiu integrá-los àquela paisagem tão densamente edificada e movimentada. Com mais nitidez, destacam-se, na primeira imagem, diferenças entre as vestimentas das mulheres negras, que parecem compradoras, e as das quitandeiras, com seus indefectíveis turbantes. Na sequência, embora as vejamos de costas, suas saias, blusas compridas e xales atados à cintura ou sobre um dos ombros sobressaem ainda mais. Entre elas, um vendedor ambulante, aparentemente branco. Mais uma vez, procedências, identificações e até mesmo faces de algumas continuam incógnitas. Todavia, se levarmos em conta o período, por certo concluiremos tratar-se de mulheres negras nascidas no Brasil – já não mais, correntemente, chamadas de crioulas – e, quem sabe, também ex-escravas. Embora elas tenham sido captadas em diferentes momentos, em vistas plácidas e supostamente ordenadas, havia ali um cotidiano muito mais intrincado, permeado por solidariedades e conflitos, num espaço demarcado em função das categorias definidas pela Câmara Municipal, mas também reposicionado pelos próprios trabalhadores. Às cinco horas da manhã, lavradores já estavam abastecendo as quitandas de verduras, aves, ovos e frutas que traziam em pequenos cestos dentro de seus barcos. Na beira do mar, os gritos dos negros que transportavam os samburás com peixes faziam o norte-americano Thomas Ewbank lembrar as disputas muito semelhantes travadas no rio Níger, na região da atual Nigéria (ewbank, 1973, p. 84). Bem próximo, lavradores, seus consignatários, negociantes e quitandeiras vendiam, revendiam e compravam “gêneros de primeira necessidade”, como frutas, ovos, legumes e cereais, “sem o menor abrigo, apenas algumas pequenas barracas volantes ou algum chapéu de sol”. E ainda havia os pombeiros (mercadores avulsos de peixe) que, apesar das proibições, serviam como intermediários entre pescadores e consumidores. Nas redondezas, esses vendedores e vendedoras ambulantes também costumavam estacionar seus tabuleiros e cestas à espera de novos fregueses, ou simplesmente para descansar em pequenos intervalos da faina diária. Foi num desses momentos que Marc Ferrez surpreendeu mais quatro “mulheres no mercado” É de se supor que tenha pedido para que posassem para ele, como era usual à época. No fim das contas, não conseguiu dissimular um certo constrangimento – ou, no limite, uma contrariedade – entre as quitandeiras. Postadas juntas a um muro de pedra, tendo ao fundo o que parecem ser estacas de algum pavilhão ou chapéu de sol, elas permaneceram com os semblantes fechados e os braços cruzados. Uma delas nem chega a olhar na direção de Ferrez. Com seus

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Marc Ferrez, Mulheres no mercado, Rio de Janeiro, rj, c. 1875 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

turbantes característicos, que também serviam para amortecer os pesados balaios de frutas que levavam à cabeça, vestiam roupas mais simples. Ainda assim, duas delas não dispensaram os panos da Costa sobre o dorso. E a primeira delas, que encarou mais frontalmente a câmera, foi a única a se deixar exibir com os pés sujos e descalços. Pelo lugar que ocupavam na geografia comercial da praça e também por alguns signos corporais, certas indumentárias e mesmo o seu próprio comportamento, podemos considerar que eram mulheres escravizadas. Como nos demais registros, elas também não podem ser diferenciadas para além do que as imagens deixam entrever. Talvez um freguês, uma outra quitandeira e, de resto, qualquer carioca menos desavisado soubessem, naquele Rio de meados da década de 1870, apenas por avistar a cor do lenço, a disposição do torço ou ainda o local onde ofereciam os produtos, que aquelas quatro vendedoras, ou somente uma, ou duas delas, eram crioulas ou africanas, pretas minas ou angolas. Sem mais legendas ou descrições complementares, essas particularidades acabam escapando a um espectador menos experimentado dos dias de

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hoje. Ainda assim, cabe questionar: nessa imagem das “mulheres no mercado”, estamos diante de “olhares retornados” ou de mais uma “encenação” proposta por Ferrez? Não há respostas definitivas para essa questão. Contudo, tanto esse grupo de mulheres negras como a expressiva vendedora fotografada no interior da praça, ou as demais que gravitavam em seu entorno, imprimiam ali suas próprias imagens de si, restaurando, mesmo que por vezes a contragosto, sua humanidade. Sendo assim, podemos findar com Walter Benjamin, na análise que faz acerca da fotografia de uma vendedora de peixes em New Haven, com o olhar “para o chão com um recato tão displicente e tão sedutor” que parece ecoar os “olhares retornados” das mulheres do mercado”: Preserva-se [ali] algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo [David Octavius] Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. (benjamin, 1985, p. 93)

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ENCONTRO 4 142


RETRATOS NEGROS: INDIVIDUALIDADES E AFETOS

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OS CLIENTES NEGROS DO ESTÚDIO LIMERCY FORLIN: POÇOS DE CALDAS 1950-1980 ALEXANDRE ARAUJO BISPO

No seu (ou nos seus nomes) encontra-se uma das chaves do mistério da sua existência. — Mãe Stella de Oxóssi, Òwe/provérbios, Salvador, Bahia, 2007

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Limercy Forlin, Ana Cristina Ferreira, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Limercy Forlin

Limercy Forlin é um fotógrafo, músico e agitador cultural, descendente de italianos, que nasceu em 1921, na cidade do interior paulista Sant’Ana de Vargem Grande (atual Vargem Grande do Sul). Ele aprendeu a fotografar com seu pai, Virgílio Forlin, que aprendeu o ofício com o fotógrafo italiano Antônio Pazzeto e se tornou o primeiro retratista de Vargem Grande. O retratismo foi, durante anos, o “ganha-pão” dos estúdios fotográficos, já que a maioria dos fotógrafos não trabalhava para os governos (imperial ou republicano) ou empresas privadas. Quando, no início do século xx, o pai de Limercy se tornou fotógrafo, os retratos fotográficos no formato cartão de visita, de dimensões 10 × 6,5 cm, já eram consumidos aos milhares havia mais de 50 anos, circulavam pelo planeta Terra em todo tipo de transporte que possamos imaginar e disputavam com outros formatos o interesse dos consumidores. Limercy foi para Poços de Caldas em 1945, e casou-se em 1954 com Conceição Navarro Vieira Forlin, conhecida popularmente na cidade como Zizi Forlin. Depois do casamento, Zizi, que fez magistério, tornou-se parceira de trabalho do marido no estúdio, o que tornou a empresa um negócio de família. Ela criou um sistema de classificação dos clientes por fichas, contendo o negativo em acetato, nome, data de aniversário, endereço. Apesar da morte de Limercy em 1986, o estúdio continuou funcionando com Zizi, que também fotografava, a filha Márcia e a neta Camila. Em 2016, a coleção de mais ou menos 400 mil

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negativos, bem como o arquivo comercial do estúdio, com as fichas elaboradas por Zizi Forlin, foram doados pela família ao Instituto Moreira Salles. Apesar de Limercy Forlin ser conhecido na cidade, foi a partir da exposição Limercy Forlin: um recorte na história de Poços de Caldas que seu nome se projetou para além dos limites do município. A exposição contou com uma seleção de retratos feitos originalmente em formato 6 × 6 e 3 × 4. Este último, que nasceu da necessidade de identificação das massas urbanas, segue ainda hoje sendo importante para compor documentos civis como carteira de trabalho, rg, carteira de motorista, prontuário e carteirinha escolar. Entre as décadas de 1950 e 1980, Limercy fez muitos retratos nesse formato popular que, historicamente, ajudou a criar um número incalculável de novos consumidores de fotografias. Nesse período de quase três décadas, passaram pelo estúdio uma infinidade de clientes de diferentes origens étnicas, entre eles os de ascendência ítalo-brasileira, como o próprio Limercy, facilmente identificáveis pelos sobrenomes: Geacheta, Zanetti, Cavini, Ibanaldi, Barzagli, Sólia, Pelegrinelli, Fantozi, Moretti Arozzi. Alguns de seus clientes negros tinham igualmente sobrenomes de origem italiana, como Cardinalli e Pelegrini, indicativos, provavelmente, de casamentos inter-raciais. São relativamente abundantes, também, os sobrenomes de origem portuguesa que também identificavam pessoas negras, como Barros, Pereira, Ferreira, Souza, Silva, Carvalho, Junqueira (ligado ao fundador da cidade Agostinho Junqueira), Lemos, Barbosa, Ribeiro, Prado, Sipriano ou Nascimento. Sobre a motivação inicial dos clientes negros de Limercy, pode ser que eles tenham começado a tirar retratos para o documento profissional. Se isso for verdade, ao fazê-lo, atendiam à moderna legislação trabalhista, que obrigava o uso de uma foto 3 × 4 para identificar o trabalhador na nova carteira de trabalho criada pelo decreto-lei nº 5452 de 1º de maio de 1943, que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho, destruída em 2017. Se em um primeiro momento os clientes negros foram, digamos, obrigados pelo Estado a comprar uma imagem de seu próprio rosto para se integrar ao mundo do trabalho assalariado, o ganho regular de um salário mensal e outros direitos trabalhistas correlatos ajudou a criar uma população inédita de consumidores negros de fotografias para além dessa obrigação. Além de muitos voltarem ao estúdio para fazer novas imagens de si, esses consumidores emergentes levariam consigo, também, outros membros da família, como as crianças e os idosos. No caso das crianças, sua imagem pode indicar tanto a alegria dos pais em vê-las ultrapassarem os anos iniciais de vida, quando as taxas de mortalidade entre 1 e 5 anos eram altas, quanto, para a faixa

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Limercy Forlin, [em cima] Alexandre Ribeiro Aragon, 1978 e Ana Maria de Barros, 1981; [embaixo] Ana Maria Olimpio, s.d. e Antonio Carlos Alexandre, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/ Coleção Limercy Forlin

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etária a partir dos 7 anos, a burocracia da admissão como estudante no ensino público. No caso destas últimas, ficamos sem saber se continuaram a frequentar a escola. Da série de fotos que vi, em nenhuma há crianças ou adolescentes negros com uniforme escolar, do mesmo modo que não aparecem com a camiseta do Colégio Jesus Maria José, talvez a mais tradicional escola particular de Poços até então. A partir dos 7 anos, e mesmo antes dessa idade, a criança pobre e negra muitas vezes já estava incorporada ao mundo do trabalho precarizado em troca de comida, roupas de segunda mão e/ou pagamento de dívidas morais dos pais com famílias brancas que podiam redundar em doação da criança. Historicamente, no caso de meninas, a incorporação ao mundo do trabalho começava pela prestação de serviços domésticos: cuidado de crianças, limpeza da casa, lavagem e repassagem de roupas. Os retratos de meninos com roupas grandes para seus corpos ainda pequenos são, nesse sentido, pistas de sua possível incorporação ao trabalho braçal precarizado que os colocava distantes da escola. Mesmo entre essas crianças negras, há diferenças entre aquelas muito arrumadas para a foto e aquelas registradas com roupas mais humildes, especialmente na estação fria. Essas diferenças se relacionam provavelmente com o fato de Poços de Caldas ter uma área urbana, onde ficava o estúdio, outra mais periférica e outra rural, de onde vinham alguns dos consumidores, dentre eles

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Limercy Forlin, [acima] Antonio Luiz Cândido, 1978 e Argemiro Roche, s.d.; [p. 149] Bemvinda R. Marçal, 1972 e Celimare Aparecida Costa, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Limercy Forlin


os atendidos pela clt. É importante lembrar que a moderna legislação trabalhista incluiu o trabalhador rural na proteção da lei, mas excluiu dela, até 2015, as trabalhadoras domésticas, só então beneficiadas pela pec das Domésticas – e a reação de quem contrata esse tipo serviço foi desesperada. A partir dos retratos dos consumidores negros do Estúdio Limercy, é possível extrair bastante informação social, como padrões de cabelos (grisalhos, brancos, pretos, naturais/crespos, alisados, militares), adereços (correntes com o crucifixo são relativamente recorrentes, a depender da faixa etária), tendências (lenços femininos para cabeça e cabelo crespo entre mulheres e homens predominam a partir de meados da década de 1970), roupas (com ou sem estampas, babados e rendas, roupa social própria ou emprestada pelo estúdio), faixa etária e, em certa medida, até mesmo peso corporal relativo. Apesar dessa riqueza, muito pouco se pode saber acerca do indivíduo biográfico retratado. Sobre essa faceta da vida das pessoas das quais vemos apenas o rosto, parte altamente valorizada na definição da identidade de alguém, as fotografias de Limercy silenciam completamente. Vem daí a importância da classificação arquivística por fichas de Zizi Forlin, fato que coloca a coleção lf em uma posição importante perto de outras cujas informações disponíveis, quando muito, são o nome e o endereço do fotógrafo. A falta de uma informação mínima, mas relevante, como o nome do retratado, não nos permite, ao

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Limercy Forlin, [acima] Fátima Ap. Marciano, s.d.; [p. 151] Flávio Fernando, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/ Coleção Limercy Forlin


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Limercy Forlin, [em cima] Francisco Sergio Pelegrini, s.d. e João Cardinalli, s.d.; [embaixo] Luiz Antonio Ernesto, s.d. e Luiz Maciel, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/ Coleção Limercy Forlin


Limercy Forlin, [em cima] Maria Das Graças Ribeiro, s.d. e Natal Euzébio M. do Prado, s.d.; [embaixo] Rubens Sipriano, s.d. e Sebastião Antonio Nascimento, 1979 Acervo Instituto Moreira Salles/ Coleção Limercy Forlin

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Limercy Forlin, Renata Pereira, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Limercy Forlin


estudar tais retratos, personalizar o indivíduo que vemos na imagem e fazer emergir dela os aspectos passíveis de uma escrita (grafia) da vida (bio). Isso posto, o retrato fotográfico do rosto dos clientes negros de Limercy ajuda ainda a pensar sobre a relação histórica entre as noções de coisa e de pessoa. A fotografia de negros ou brancos, pobres ou ricos, não é senão uma coisa, ao passo que a pessoa é algo mais do que o indivíduo sem informação pessoal que vemos na foto. Isso implica lembrar dos atributos sociais agregados ao corpo: idade, sexo, raça, cabelos, barbas, roupas são elementos facilmente visualizáveis nas imagens, mas que, na ausência do nome do retratado, dizem muito pouco sobre quem ele foi. Ou seja, sem dados personalizadores, a pessoa mais importante não passa de uma coisa visual. No caso de pessoas negras, tendo em vista o processo de escravidão que as objetificara ao extremo, é como se houvesse uma sobreposição da coisa (fotografia) sobre a coisa (pessoas usadas pela ordem escravocrata). Quem acompanhou as lives da série Negras imagens vai lembrar que a pesquisadora Diane Lima mostrou a foto de dois homens trabalhadores braçais limpando uma das salas da 1ª Bienal de São Paulo, em 1951, de autoria do fotógrafo Peter Scheier. Ao olhar para essa imagem, a única informação que sabemos deles é que eram, ao menos naquele instante da foto, trabalhadores da limpeza, provavelmente sem qualquer vínculo de trabalho formal. O sinal dessa precariedade pode ser os seus pés descalços, na então cidade mais rica do país, numa éwpoca mais de meio século distante da abolição oficial da escravidão, em 1888. No entanto, para biografá-los minimamente, precisaríamos saber seus nomes. Na live seguinte, vimos imagens de crianças, trazidas pelos pesquisadores Ione Jovino Salomão e Rafael Oliveira. Essas crianças eram, a exemplo de como acontecia na imagem de Scheier, representações de indivíduos cujos corpos apareciam sem identificação nominal personificadora. A história da fotografia está cheia de corpos sem nome. No entanto, o nome pessoal é fator importante para desfazermos ambiguidades entre coisas – o retrato individual, por exemplo – e pessoas, ou seja, as relações sociais que tornam alguém mais do que uma entidade individual. Lembremos que é da natureza da fotografia transformar as pessoas em coisas, fragmentando-as, diminuindo ou aumentando seu tamanho real, e a ausência do nome do fotografado intensifica essa sensação de que a imagem é uma coisa. Uma boa imagem para se pensar sobre a relação entre coisa e pessoa na fotografia é Mulher de turbante, de cerca de 1870, de Alberto Henschel. Apropriada por grupos atuais necessitando visualizar o rosto de heroínas negras do passado, a imagem coloca em cena um rosto específico ao qual são atribuídos pelo menos três nomes: Dandara dos Palmares,

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Maria Felipa de Oliveira e Luísa Mahim. Nos três casos, os nomes não correspondem ao momento de produção da imagem, mas assinalam o desejo atual de personificação visual daquelas mulheres de luta. Esses exemplos mostram como, ao lidarmos com imagens de indivíduos humanos, especialmente se são negros do passado (mas também mulheres, indígenas e pobres), somos levados a pensar quem eles foram e, consequentemente, como eram chamados. É como se, mesmo com o nome atribuído a eles no contexto da diáspora colonial, pudéssemos lhes restituir uma completude que perderam por terem sido escravizados. Se soubéssemos seus nomes, talvez desenrolássemos um novelo de relações sociais por trás deles. A pesquisadora Mônica Cardim apresentou, por sua vez, um conjunto de retratos que unia o indivíduo retratado a seu nome e o colocava em redes de afeto. Mônica exibiu uma página da revista Ilustração Brasileira, de 1913, na qual aparecem homens e mulheres negros ligados ao pai de santo Juca Rosa, julgado por vários crimes, entre eles feitiçaria, mas condenado por estelionato. Em sua fala na série Negras imagens, a pesquisadora nos chamou a atenção para o fato de vermos oito mulheres afetivamente conectadas a Rosa, talvez por laços de parentesco de santo. Mais que apenas seus rostos, delas restaram os nomes. O fato as desloca da individualidade característica dos “tipos de negros” da fotografia da segunda metade do século xix, e nos permite olhá-las de modo mais completo. Podemos supor, inclusive, que elas tenham trocado suas próprias imagens, em uma rede de afetos e obrigações sociais – até porque o formato cartão de visita criado por André Adolphe-Eugène Disdéri, em 1854, permitia a impressão de oito cópias da mesma imagem, o que facilitava a circulação das fotografias. Mais ainda, Mônica sugeriu que Juca Rosa fosse um consumidor e colecionador de cartões de visita. Ele teria estimulado seus filhos de santo a comprarem seus próprios retratos, e algumas das cópias dadas a ele foram, inclusive, arroladas a seu processo judicial. Essa observação abre possibilidades para se pensar em negros consumidores de fotografias muito antes dos modernos compradores que apareceram com a clt, retratados por inúmeros fotógrafos, como Limercy Forlin ou, antes dele, o mineiro Assis Horta. Eis um aspecto da história da fotografia no Brasil que conhecemos pouco, do mesmo modo que quase nada sabemos acerca dos fotógrafos amadores negros, como a paulistana Nery Rezende (1930-2012), que, protegidos pela clt, compraram suas primeiras câmeras amadoras e apertaram o seu botão a fim de registrar, principalmente, a sociabilidade familiar.

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GEOGRAFIA DOS AFETOS. PARTE 1: O LUGAR DO PAI JANAINA DAMACENO

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Walter Firmo, Petrópolis, rj, c. 1990 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Walter Firmo

Durante anos, a historiografia tratou a formação da família negra no Brasil como uma anomalia. Robert Slenes, no clássico Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava (1999), mostra que a abordagem mais comum sobre as famílias escravizadas era a de que estas se regravam por encontros sexuais sem freios, promíscuos, primitivos, a tal ponto que os filhos mal conheciam mãe e irmãos. A presença paterna seria quase nula, e a presença materna, marcada pela licenciosidade, animalizada a tal ponto que um viajante francês chegou a afirmar que nas senzalas não haveria famílias, “apenas ninhadas”. O mesmo viajante conjecturou que o cuidado com as crianças também seria desprezado pelo fato de as mães não terem por que cuidar de alguém que prontamente lhes seria tomado para o mundo do trabalho servil. Slenes, ao questionar a interpretação de que viajantes e intelectuais detinham sobre a formação da família escravizada, colhia a flor do afeto que essas famílias corajosamente plantaram, como uma forma de resistir e de existir para si, para o outro e para o mundo. Mesmo no pós-abolição, a ideia de um grupo familiar negro continuou marcada pela incredulidade, e esse discurso se viu refletido em imagens; criou-se um regime de representação visual (hall, 2016) caracterizado por uma série de práticas que limitavam o nosso entendimento sobre a constituição familiar negra. Neste ensaio, comento algumas dessas representações visuais e como as práticas de autoinscrição de sujeitos negros desafiam o

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Marc Ferrez, Retrato de mulher negra com criança às costas e cesto de bananas na cabeça, Salvador, ba, c. 1884 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Gilberto Ferrez

entendimento monolítico sobre a existência familiar negra. Para tanto, vou me deter sobre algumas fotografias de Walter Firmo presentes no acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles. Durante o século xix e até meados do século xx, as práticas fotográficas mais constantes em relação à impossibilidade de se imaginar ou de partilhar do conceito de família negra se referem inicialmente a uma lacuna na produção e na circulação pública de imagens de famílias negras compostas por pai, mãe e filhos. Ainda que critiquemos a ideia de núcleo familiar e o que ela representa, o fato de não termos incluído as pessoas negras na constituição histórica de tal ideia gera a percepção de que não fazíamos parte de família alguma. Imagens que circulam bastante nesse período são de mães negras, escravizadas ou livres, carregando seus filhos atados às costas. Em geral, elas estão sozinhas e em situação de trabalho, enquanto o pai está ausente. Mãe e filho se tornam um tipo a ser comercializado em postais de estúdio. Fotos de famílias negras (nucleares) não circulavam publicamente em postais, tampouco a configuração se constituía enquanto um tipo, forma habitual de representação de pessoas negras na fotografia do século xix. Raramente se veem imagens de famílias negras circulando pelo espaço da cultura visual pública. Mas, no final do século xix, no âmbito da cultura visual privada, as pessoas negras que não se viam retratadas na cena visual pública enquanto família começam a se autoinscrever em imagens fotográficas. E, embora essas imagens não sejam profusas, elas constituem hoje um dos maiores legados visuais da formação familiar na comunidade negra. As fotos de família realizadas em estúdios, pelo desejo de autoinscrição visual, desempenham, além do papel do registro, o da visibilidade da dimensão amorosa-afetiva de sujeitos negros. Falo daquelas imagens que expressam a disposição do retratado de criar uma economia, possibilitando que se saia de casa com a sua família, com os seus melhores trajes, à procura de um estúdio fotográfico. Mas, além disso, a dinâmica possibilitava a criação de um espelho para aqueles que não se viam retratados como entes queridos em lugar algum. Hoje, vemos a transposição dessas imagens do circuito privado para o de circulação pública, através de pesquisas acadêmicas, exposições, incorporação de acervos em instituições de guarda, ou uso de imagens de arquivo em projetos de artistas visuais e cineastas; imagens à princípio constituídas como um objeto da memória familiar, que passam a invadir a cena pública. É o caso de Aline Motta, Tila Chitunda, Yasmin Thaina, Safira Moreira, Eustáquio Neves, Rosana Paulino, dentre outros. É no âmbito da fotografia privada que vemos arranjos familiares mais amplos. Nele, as pessoas retratadas não estão simulando situações de trabalho.

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As fotos obedecem a um padrão herdado do período vitoriano, com pessoas sentadas e em pé, geralmente com trajes “ocidentalizados”, à exceção de raras fotografias em que as famílias surgem com indumentária africana. A situação mais evidente é a aparição do pai/homem negro. Suprimido de boa parte da iconografia e fotografia dos séculos xix e xx, ele surge no âmbito privado. Sozinhos com os filhos ou com as companheiras, a família extensa, eles inserem sua existência no circuito privado das imagens num direto sinal de desobediência visual, enquanto permanecem ausentes do circuito público. Destituídas de poder para fazer sua imagem circular publicamente, pessoas negras descobrem que podem atuar na micropolítica ao encomendarem imagens de si.1 As imagens de controle social sobre a família negra são marcadas também por um discurso visual do desmantelamento, como no quadro A redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos. Na pintura, uma alegoria da nação, a união simbolizada pela aliança entre uma mulher negra de pele mais clara e um homem branco indica que o fruto, o futuro (do Brasil) posto na mão do bebê que está na cena, será branco. Para que a nação brasileira se “modernize”, será necessário que a família negra desapareça. É necessário que a gente não nasça. Mais do que um projeto de embranquecimento, esse é um projeto de eliminação. A pintura foi usada didaticamente por João Baptista de Lacerda, representante do estado brasileiro no i Congresso Internacional das Raças, para afirmar que “uma vez desaparecida a raça negra do Brasil” ainda seríamos assombrados no futuro pelo atavismo negro e mestiço nos corpos de pessoas brancas. Junto ao quadro de Brocos, o esforço didático de Lacerda apresenta um gráfico de como seria o perfil antropológico do país em 100 anos. Para o autor, em 2012, teríamos no Brasil uma população 80% branca, 17% indígena, 3% mestiça (entre brancos e negros) e zero negra. A previsão de Lacerda não poupava as pessoas negras de pele mais clara: elas somariam apenas 3% da população e, em um futuro próximo, também não estariam mais por aqui. A ideia de que o projeto de Lacerda e do Estado brasileiro não deu certo deve ser relativizada. Se, de fato, a população negra vem, segundo os dados estatísticos, crescendo, do ponto de vista simbólico, a família negra desapareceu da cultura visual pública do país e de seus aparatos de memória; a sua imagem, em seus mais diversos arranjos, some. Foi necessário eliminá-la, para que ao menos simbolicamente o projeto se mantivesse de pé. Nos Estados Unidos, figuras como Frederick Douglass tinham percepção do papel político da fotografia. Em 2021, seus retratos foram exibidos pela primeira vez no Brasil, na 34a Bienal de São Paulo. Ver mais: #34Bienal (Live) As vozes dos artistas / The voices of the artists #4. Disponível em: https:// youtu.be/kNEChW-JbtQ. 1

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Nesse sentido, a fotografia intitulada Petrópolis, de Walter Firmo, dialoga diretamente com a pintura de Brocos e faz parte daquilo que Nicholas Mirzoeff (2011) chama de contravisualidade. A imagem é realizada em 1990, quase um século depois de A redenção de Cam, numa lanchonete da rodoviária de Petrópolis, cidade da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Nela, um jovem casal negro de pele retinta e reluzente admira um bebê de pouca idade que repousa de olhos fechados no colo da mãe. Ele veste uma roupa branca que denota seus poucos dias, ou mesmo o seu batizado. A mãe, que está com uma blusa florida de gola alta, possui cabelo curto e escovado, com um típico penteado de cabelos alisados daquela época. O pai, de camisa colorida, escora seu queixo no ombro da companheira, e em seu pescoço há uma chupeta rosa amarrada numa das pontas de um cueiro, e outra azul amarrada na outra. Ao lado deles há um balcão onde repousam uma garrafa, dois copos de cerveja, dois pratos, ketchup, saleiro ou paliteiro, e atrás deles há uma estante com mantimentos. A imagem surpreende também porque o momento mágico do encontro com o filho é circundado por um cenário banal. O pai admira o bebê. A mãe não parece ter nenhum acessório, e não vemos se há uma aliança em sua mão – mas não é necessário que ela exista para entendermos a profunda conexão e afetividade dessa cena. Walter diz que essa é a sua Madonna. Uma madona negra, que, ao contrário de em A redenção de Cam, não prenuncia o fim, mas o começo, a continuidade daqueles que a sociedade e o Estado predisseram que já não estariam mais entre nós. Creio que essa imagem funciona bem como uma chave de leitura da coleção de Firmo no arquivo fotográfico do Instituto Moreira Salles, assim como da obra de Firmo na cultura visual brasileira e da presença negra na história da fotografia. A imagem tensiona a representação habitual que temos de famílias negras na cultura visual brasileira. Se, na imagem de Brocos, o pai/homem branco está distante, nesta ele está próximo ao filho, dando suporte à mãe. Walter não só insere um pai/homem negro em cena, como insere também o afeto. Além disso, a foto de Firmo mostra que o país não branqueou; as três pessoas negras de pele reluzente não são iguais a zero. Estamos produzindo um devir negro. Temos uma cena de afeto entre homem, mulher e criança negra. A fotografia de Walter vai contrapor, tensionar, complexificar e ampliar, inclusive, as imagens de famílias negras presentes no próprio arquivo do Instituto Moreira Salles. É o caso de Retrato de mulher negra com criança às costas e cesto de bananas na cabeça, de Marc Ferrez. Na imagem, mãe a criança aparecem sozinhas, em situação de trabalho e sem uma companhia masculina ou de qualquer outro ente familiar. Fotografias de famílias negras não são, assim, ausentes do arquivo

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do ims. Chichico Alkmim (1886-1978) e José Medeiros (1921-1990), por exemplo, produziram algumas das mais bonitas dentre elas. Alkmim possuía um ateliê fotográfico na cidade histórica de Diamantina, interior de Minas Gerais, onde realizou o retrato fotográfico na página seguinte. Fotos de família como esta eram comuns na primeira metade do século xx. No retrato, há três adultos: um homem, uma mulher negra de pele escura e uma mulher negra de pele mais clara ou de ascendência indígena. O homem olha orgulhoso diretamente para a câmera, a mulher sentada sorri e a mulher de pele mais clara, em pé, meio a contragosto, séria, olha para baixo. Na cena, também vemos quatro crianças de pele escura, dentre elas um bebê de colo com o que parece uma roupa de batizado. Todos estão muito bem trajados. Medeiros foi um dos maiores fotojornalistas do país. Em sua foto, vemos, nos festejos de rua do Dia da Independência na cidade do Rio de Janeiro, de frente para a câmera, um jovem casal negro, cada qual olhando para um ponto da festa, e uma senhora mais velha, de costas para a câmera e de braços dados com uma das duas meninas negras que olham diretamente para a lente. Todos têm a pele muito escura. Medeiros foi amigo e uma das grandes inspirações de Walter Firmo. A primeira dessas fotos marca o que já chamei, em outras ocasiões, de desejos de autoinscrição visual (damaceno, 2022). Essa noção serve para que a gente desvie um pouco a atenção da “fotografia de autor”, que, muitas vezes, centra a intenção fotográfica no desejo do fotógrafo, e não do fotografado. Como seres desejantes, pessoas negras compreenderam rapidamente o dispositivo fotográfico e, sempre que tiveram a possibilidade, procuraram os serviços de estúdios ou de fotógrafos de rua para inscreverem sua imagem num dos mais importantes dispositivos de memória do século. Muitas dessas fotos repousam em guarda-roupas ou caixas de sapato (fontoura, 2019) e, frutos de um desejo privado, nem sempre são compartilhadas, não podendo ser tocadas por qualquer um, às vezes nem mesmo por outro membro da família. Nem todas as fotografias que fazemos servem para ser vistas. De qualquer modo, elas têm a função de dar materialidade à nossa ancestralidade. Na segunda foto, o que chama a nossa atenção além do olhar das meninas, que se vestem iguais, é o testemunho em via pública (como prova visual) da existência da flor do afeto familiar, através dos corpos que se tocam discretamente, ombro com ombro, a mão da mãe no braço da filha menor, a mão da outra menina no braço da mulher mais velha, talvez sua avó. Também é importante notar outro ponto em que a fotografia de Walter toca a dos dois outros fotógrafos: a presença paterna. Mas, nas duas últimas, não há uma interação entre os pais/homens negros e seus filhos.

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Chichico Alkmin, Retrato de família, Diamantina, mg, s.d. Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Chichico Alkmin


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Na foto Petrópolis (1990), Walter parece cruzar a existência dessas duas imagens, carregando a encenação da primeira e o ambiente público da segunda. Esse cruzamento é uma das marcas da fotografia de Firmo, que começa por diluir as fronteiras entre público e privado em suas imagens, deslocando a encenação, marca da fotografia de estúdio (ainda que a encenação em Firmo não se inspire necessariamente naquela feita em estúdio, mas, antes, se aproxime do campo da história da arte), para a rua e para o fotojornalismo, e trazendo sua própria família como um dos temas mais importantes de sua fotografia. A primeira foto de Firmo é um retrato que ele faz aos 15 anos de idade de seus pais. É nesse momento que decide se tornar um fotógrafo, chegando a fugir de casa para que a mãe aceitasse a sua escolha. De lá para cá, são 70 anos dedicados à fotografia. Durante todo esse período, ele também documentou a sua família, então, possivelmente, Walter seja um dos fotógrafos negros que por

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José Medeiros, Desfile de 7 de setembro, Rio de Janeiro, rj, 1955 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção José Medeiros


Walter Firmo, José Baptista e Maria de Lourdes (frente); Duda e Aloísio Firmo (atrás), Rio de Janeiro, rj, 1985 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Walter Firmo

mais tempo produziu um álbum familiar, algo singular. Ele é um dos primeiros a começar a tensionar os limites entre o âmbito público e privado da imagem ao expor o âmbito familiar como personagem de seus retratos. Duda e Aloísio, filhos de Walter, ainda eram bem jovens quando ele decidiu ir com eles e seus pais, dona Maria de Lourdes e seu José Baptista, ao Alto da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro. A ideia era fotografá-los a pedido de uma colega jornalista, que sugeriu a alguns fotógrafos que realizassem uma foto de família. A fotografia que resultou desse episódio é uma das mais conhecidas: pai e mãe aparecem sentados, ele com a dólmã vermelha, do uniforme de gala dos fuzileiros navais, e ela com um vestido longo, flores e chapéu. Atrás deles, seus netos, com o torso nu. A imagem é inspirada no quadro Os noivos

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(1937), de Alberto Guignard. Curiosamente, 1937 é também o ano de nascimento de Firmo. Na pintura, o noivo, um fuzileiro negro, com seu uniforme de gala, está em pé junto a sua noiva, sentada, uma moça também negra que usa um vestido longo florido e azul e segura um buquê nas mãos. Há um quadro do Sagrado Coração de Jesus na parte superior direita da imagem, atrás da moça, e uma bandeira brasileira trêmula por trás do noivo, na varanda da casa. Na foto de Firmo, não há bandeira ou quadro, mas a própria floresta da Tijuca serve como fundo no qual sobressaem seus filhos. Walter articula ancestralidade e futuridade. Se na imagem de Guignard religião e nação dão o fundo para constituição da família, em Firmo, o futuro e a natureza é que servem como enquadramento para a ancestralidade. Ao colocar a própria família em cena, Walter amplia e complexifica o discurso sobre a família negra presente no acervo do ims e na cultura visual pública brasileira. Ele também recria o lugar público do afeto em relação à figura paterna negra. Mais do que isso, como pai e filho, cria um entreimagem, um novo lugar objetivo e existencial para a paternidade negra, e revela um outro sujeito pouco comum na cultura visual pública: a do homem negro avô e bisavô. Ele usa o próprio pai para isso: seu José surge nas fotos do filho em retratos com a companheira, com os netos ou segurando a mão do bisneto. O fuzileiro naval de origem afro-amazônica também aparece em imagens em que retorna à localidade onde nasceu e cresceu à beira do rio Amazonas. Num dos vídeos da exposição No verbo do silêncio a síntese do grito, Walter nos conta como foi esse retorno. De repente, ele e seu pai se encontravam num pequeno barco, e o pai deu as coordenadas naturais de sua comunidade ao barqueiro: ela ficava perto de determinadas árvores, onde o rio fazia determinados movimentos. Ao chegarem no lugar, que aparentemente estava vazio, qual foi a sua surpresa quando de dentro da mata surgiram seu tios, tias e primos, à espera contente do irmão que havia partido. Na localidade, ele faz uma foto em preto e branco do próprio pai, que, aparentemente nu, repousa nas raízes de uma árvore à beira do rio Amazonas. Para montar a cena, foi necessário que dois de seus primos o auxiliassem a colocar o pai naquele lugar. No degradê dos cinzas, seu José e as raízes acabam se misturando, e o efeito da foto é notável. As raízes também operam como uma metáfora recorrente em relação à ancestralidade, encontrada em trabalhos de outros artistas, como Rosana Paulino. Em algum momento, uma pessoa acaba se transformando em tronco e raiz, ou tronco e raiz acabam se transformando em pessoa. As raízes de Firmo se duplicam nessa imagem: sua raiz familiar é representada pelo pai, e suas raízes amazônicas são representadas pela árvore à

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Walter Firmo, José Baptista, Boa Vista do Cuçari, pa, 1985 Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Walter Firmo

beira do rio. Além de projetar vida e afeto, Walter também opera, aqui, num sentido atemporal e espiritual da ancestralidade, ao fundir homem/pai e natureza. Tentei mostrar, até aqui, alguns aspectos da singularidade do trabalho fotográfico de Walter Firmo, no tocante à representação fotográfica da família negra na vida pública. Filho de Xangô, ele exige justiça através das imagens que elaborou ao longo de uma vida dedicada à fotografia. O traço mais evidente disso é a disposição em colocar a sua própria carne para constituir um discurso visual sobre famílias negras e, de modo especial, sobre a figura do pai. Ao ser incorporado ao acervo do ims, seu trabalho acaba ampliando também a representação sobre vida negra num dos mais importantes acervos fotográficos do mundo.

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BIBLIOGRAFIA burgi, Sergio (org.). Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito. São Paulo: ims, 2022. campt, Tina. Image Matters. Archive, Photography, and the African Diaspora in Europe. Durham/ Londres: Duke University Press, 2012. ermakoff, George. O negro na fotografia brasileira do século xix. Rio de Janeiro: Casa Editorial, 2004. fletwood, Nicole. On Racial Icons: Blackness and the Public Imagination. New Brunswick: Rutgers University Press, 2015. hall, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. puc-Rio/Apicuri, 2016. hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019. kilomba, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. kossoy, Boris; carneiro, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século xix. São Paulo: Edusp, 2002. lacerda, João Batista de. O Congresso Universal das Raças reunido em Londres (1911): apreciação e commentarios. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1912. leite, Miriam Moreira. Retratos de família: leitura da fotografia histórica. São Paulo: Edusp, 2001. lotierzo, Tatiane; schwarcz, Lilia. “Raça, gênero e projeto branqueador: A redenção de Cam, de Modesto Brocos”. Artelogie, n. 5, 2013. Disponível em: http://journals.openedition.org/ artelogie/5242. mbembe, Achille. “As formas africanas de autoinscrição”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, n. 1, 2001, pp. 171-209. mirzoeff, n. “O direito a olhar”. etd – Educação Temática Digital, Campinas, v. 18, n. 4, pp. 745768, 2016. Disponível em: https://periodicos. sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/ view/8646472. Acesso em: 2 mar. 2022. miskolci, Richard. O desejo da nação. Masculinidade e branquitude no Brasil de fins do século xix. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2012. mitchell, W. Seeing Through Race. Cambridge: Harvard University Press, 2012. slenes, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século xix. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


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ALEXANDRE ARAUJO BISPO

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, crítico de arte, curador e educador independente. Pesquisa práticas de memória, com ênfase em fotografia amadora, fotografia de família e arquivos pessoais, arte afro­ ‑brasileira e imaginários urbanos. Foi curador artístico e educativo de diversas exposições, e é coautor de Mulheres fotógrafas, mulheres fotografadas: fotografia e gênero na América Latina, entre outros. Publicou textos em revistas como zum, Contemporary And (C&), O Menelick 2º Ato e Art Bazaar. ANA BEATRIZ ALMEIDA

Ana Beatriz Almeida é mestra em história e estética da arte pelo mac-usp, cofundadora da 01.01 Art Platform, artista visual e pesquisadora das manifestações africanas e da diáspora africana. É consultora curatorial do mac-Niterói e professora do Black Feminism-Berkeley University Summer Program Abroad. Foi curadora convidada do Glasgow International 2020 (adiado pela covid-19). Desde 2009, realiza um rito de passagem de longa duração em homenagem aos que não sobreviveram ao tráfico de escravizados. DIANE LIMA

Diane Lima é curadora independente, escritora e pesquisadora. Premiada em 2021 pelo Ford Foundation Global Fellowship, desenvolve projetos sobre as práticas artísticas e curatoriais em perspectiva decolonial no Brasil. Mestra em comunicação e semiótica pela puc-sp, integra o time curatorial da 35ª Bienal de São Paulo (2023). Seus projetos anteriores incluem o projeto de educação radical AfroTranscendence e a residência PlusAfroT, na Villa Waldberta, na Alemanha. Seus textos integram diversos livros, catálogos e revistas.

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IONE DA SILVA JOVINO

Ione da Silva Jovino é preta, mãe e avó. Formada em letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp), é mestra e doutora em educação pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), docente, pesquisadora e extensionista na Universidade Estadual de Ponta Grossa (uepg). É membra do Núcleo de Relações Etnicorraciais, Gênero e Sexualidade da uepg e de grupos de pesquisa sobre relações raciais, crianças e infância. Integra a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras. JANAINA DAMACENO

Janaina Damaceno é graduada em filosofia e mestra em educação pela Unicamp. Doutora em antropologia pela usp, atualmente é professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (Febf) da Uerj e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (ppcult) da uff, e coordena o Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra. É uma das fundadoras do Fórum Itinerante do Cinema Negro (Ficine). JULIANA BARRETO FARIAS

Juliana Barreto Farias é professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e do Programa de Mestrado em Estudos Africanos, Culturas Negras e Povos Indígenas da Uneb. Doutora em história social pela usp, fez estágio pós­ ‑doutoral em história da África na Universidade de Lisboa. É autora de Mercados minas: africanos ocidentais na praça do Mercado do Rio de Janeiro, 1830-1890 (2015) e coautora de A diáspora mina: africanos entre o Brasil e o golfo do Benim (2021).

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MÔNICA CARDIM

Doutoranda em artes pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da usp, educadora e fotógrafa, sua pesquisa e produção artística focam a relação entre identidade e poder em retratos fotográficos. Recebeu o Prêmio Vídeo usp tv Cultura 2020 e o Prêmio Histórico em Artes Visuais do Proac 2022. Como fotógrafa, desenvolve a série Protocolo diário e o projeto Identidades possíveis – Eu sou, nós somos. Em parceria com a Nave Gris Cia. Cênica, criou a exposição Mulheres negras na dança (2017). RAFAEL DOMINGOS OLIVEIRA

Historiador e educador, é doutorando em história social pela usp e mestre em história pela Unifesp. Foi professor da rede pública de ensino do estado de São Paulo e coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil. É autor de artigos e do livro Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade (2021). É membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América (Nepafro) e coordenador do Núcleo de Acervo e Pesquisa do Theatro Municipal de São Paulo. ROBERTO CONDURU

Roberto Conduru é historiador da arte e professor na Southern Methodist University, especializado em história da arte e arquitetura, com ênfase em arte afro-brasileira e arte e arquitetura construtivista. Foi pesquisador convidado na Clark Art Institute e na The Getty Foundation. É autor de Arte afro-brasileira e encontros com a arte contemporânea, dentre outros. VANICLÉIA SILVA SANTOS

Vanicléia Silva Santos é curadora da Coleção Africana do Penn Museum/University of Pennsylvania e professora de história da África na Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg).

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INSTITUTO MOREIRA SALLES

Fundador

WALTHER MOREIRA SALLES (1912-2001)

BIBLIOTECA DE FOTOGRAFIA

Coordenação

MIGUEL DEL CASTILLO

Supervisão CONSELHO

ENISETE MALAQUIAS MACEDOS SANTOS

JOÃO MOREIRA SALLES

BRUNA ACYLINA GALLO, LEONARDO VIEIRA, LUCAS DE CARVALHO, MONALIZA BEZERRA RODRIGUES MOURA, PAULA DE SOUZA SILVA

Presidente

Vice-presidente FERNANDO MOREIRA SALLES

Conselheiro PEDRO MOREIRA SALLES

Conselheiro WALTHER MOREIRA SALLES JR DIRETORIA

Diretor-geral MARCELO MATTOS ARAUJO Diretor-artístico JOÃO FERNANDES

Diretor-executivo JÂNIO FRANCISCO FERRUGEM GOMES

Diretora-educação RENATA BITTENCOURT

CENTRO CULTURAL IMS PAULISTA & PLANEJAMENTO DE PROGRAMAÇÃO E EVENTOS

Coordenação

JOANA REISS FERNANDES

Produção de eventos CARLA APARECIDA CARRETONI BRANDÃO DA SILVA

Supervisão RAQUEL MONTEIRO LEHN HASHIMOTO

Consultoria CELINA YAMAUCHI, JULIANO MATTEO GENTILE

Infraestrutura e manutenção ARIADNE MORAES SILVA, SÂMARA PIRES DOS SANTOS CARDOSO

Supervisão DANIELA VIEGAS MARCONDES

Operacional EDUARDO DA SILVA BRITO, JACKSON SANTOS PEREIRA, RAIMUNDO HERMÍNIO DOS SANTOS, SEBASTIÃO RIBEIRO DA SILVA, WILSON ROBERTO LOPES DOS SANTOS

Supervisão ROBERTA COSTA VAL ADRIANO BRITO DOS SANTOS, ANA CLARA DA COSTA, BRUNA LISBOA DE SOUSA OLIVEIRA, CAIO DE OLIVEIRA SILVA, CÍCERO MARCOS DO NASCIMENTO, CINDY JESUS SILVA DA CRUZ, CLERSON VICENTE DE TOLEDO ALVES, CRISLENE SILVA SOUZA CONCEIÇÃO, CRISTINA APARECIDA TIBURCIO MARÇAL, DANI DOS ANJOS, DIANA GOMES GONÇALVES BRAGA, ELIO BUOSO CONES, GABRIELA LIMA DA SILVA, GIOVANE MEDEIROS DA SILVA, IARA CRISTINA DA SILVA CASTRO, JANE KELLY BATISTA DA SILVA, JÉSSICA BARBOSA DE SOUZA, JÉSSICA BIONDI INÁCIO, LUIS MIGUEL CONTERAS PADRON, MARIANA RODRIGUES OLIVEIRA ARAUJO, PALOMA FERNANDES, PYERO AYRES, RAFAEL PENHA, SABRINE FERNANDA KAROLLINE FERREIRA, STEFANNI MELANIE SILVA, YARA CASSANDRA

Planejamento de programação e eventos LÍVIA SPÓSITO BIANCALANA, FABIANA MARTINS AMORIM, JOSÉ ESTEVAM CENTRO CULTURAL IMS POÇOS

Coordenação

HAROLDO PAES GESSONI

Consultoria TEODORO STEIN CARVALHO DIAS CLÁUDIA MARIA CABRAL, CRISTIANE LOIOLA ZANETTE, ERICSON FLÁVIO CAMPEÃO, FAGNER PERPÉTUO DE ANDRADES, GILMAR TAVARES, JOSÉ BENTO RODRIGUES, MARCELO ALEXANDRE FARIA LEME, MIKAELEN MORAIS CÉSAR, ROBERTON BENEDITO PEREGRINO, VIVALDI BERTOZZI CENTRO CULTURAL IMS RIO

Supervisão

LÚBIA MARIA DE SOUZA, LUIZ FERNANDO DA SILVA MACHADO, MARIA AZEVEDO MORETTO, VAGNER FRASÃO DA SILVA

Consultoria ELIZABETH PESSOA TEIXEIRA

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AMANDA FERNANDES DE BARCELLOS, BIANCA VIEIRA BESERRA, CARLOS AUGUSTO FERREIRA DE LIMA, CÍCERO TEIXEIRA DOS SANTOS, EDMAR DOS SANTOS DE BRITO, ELIANA LÚCIA DE SOUZA, FELIPE ARTUR DOS SANTOS, IRINEA APARECIDA PIRES DE BRITO, JAIRO SOARES DA SILVA, MARCIO GERALDO DE SOUZA MORAES, RAFAELA SOARES DE LIMA, REGINALDO PEREIRA DO NASCIMENTO, RENATA BARCELLOS DE PAULA, ROBERT GOMES PINTO, ROSANA INÁCIO CARNEIRO TAVARES, TEREZA CRISTINA MAXIMIANO NASCIMENTO


CINEMA

Coordenação KLEBER MENDONÇA FILHO MÁRCIA VAZ, QUESIA SILVA DO CARMO, LUCAS GONÇALVES DE SOUZA, THIAGO GALLEGO CUNHA COMUNICAÇÃO

Coordenação

MARÍLIA SCALZO ALANA MOREIRA, ANNA PAULA DE CARVALHO IBRAHIM, DANIEL PELLIZZARI, FABIO MONTARROIOS, FERNANDA PEREIRA, GUSTAVO DE GOUVEIA BASSO, ISABELA DO CARMO, JULIE LEITE PEREIRA, LARISSA MARIA INACIO DA SILVA, LAURA KLEMZ, LAURA LIUZZI, MARCELA ANTUNES DE SOUZA, MARCELL CARRASCO DAVID, MARIA CLARA VILLAS, MARIANA MENDONÇA TESSITORE, NANI RUBIN, ROBSON FIGUEIREDO DA SILVA, SENDY LAGO ARAÚJO, TAIANE CRISTINE BRITO DOS SANTOS CONTROLADORIA

Coordenação

FERNANDO MALICS ARNALDO SANTANA DE ALMEIDA, ROGÉRIO COSSERO EDITORIAL

Coordenação SAMUEL DE VASCONCELOS TITAN JUNIOR

Supervisão ACÁSSIA VALÉRIA CORREIA DA SILVA DENISE CRISTINA DE PÁDUA, FLÁVIO CINTRA DO AMARAL EDUCAÇÃO

Supervisão

JANIS PÉREZ CLÉMEN, JORGE FREIRE, MARIA EMÍLIA TAGLIARI SANTOS ALANA CREAM DE SOUZA, ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS BISPO, BEATRIZ ABADE, BEATRIZ MATUCK, FELIPE JOSÉ FERRARO, GABRIEL BELCHIOR MESQUITA SILVA, ISABELA MAGALHÃES SANTOS BRASILEIRO, JHONNY MEDEIROS MIRANDA, JOSÉ ADILSON RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, JULIANA GARCIA FREIRE, LEANDRO MIZAEL DUARTE GONÇALVES, NATALIA NUNES HOMERO, LETÍCIA PEREIRA DE SOUZA, LUANDA DA SILVA, RAFAEL BRAGA LINO DOS SANTOS FINANCEIRO

Coordenação ANTÔNIO CARLOS MEZZOVILLA GONÇALVES FERNANDO GARCIA DOS SANTOS DE PAULA, MARCOS PEREIRA DA SILVA, SILVANA APARECIDA DOS SANTOS FOTOGRAFIA

Coordenação SERGIO BURGI

Consultoria CASSIO LOREDANO ALESSANDRA COUTINHO CAMPOS, ALEXANDRE DELARUE LOPES, ANDREA CÂMARA TENÓRIO WANDERLEY, DAVI BARBOSA IZIDRO, BRUNA MANGA ÉLENA, ILEANA PRADILLA CERON, JADE PINHEIRO, JOANNA BARBOSA BALABRAM, JOSIENE DIAS CUNHA, MARIANA NEWLANDS SILVEIRA, MARTIM PASSOS, PÂMELA DE OLIVEIRA PEREIRA, RACHEL REZENDE MIRANDA, SIMONE PEREIRA SANTOS. FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA & REVISTA ZUM

Coordenação

THYAGO NOGUEIRA ÂNGELO AUGUSTO MANJABOSCO, CARLOS EDUARDO SAMPAIO FRANCO, DANIELE QUEIROZ, LAIS RIBEIRO, LUARA MACARI NOGUEIRA, RONY MALTZ 177


GESTÃO DE ACERVOS

Coordenação

MILLARD WESLEY LONG SCHISLER

Supervisão AÍLTON ALEXANDRE DA SILVA ALEXSANDRO ALMEIDA DA SILVA, CARLA DE MELO TORRES, CLARICE FERREIRA RODRIGUES, FABIANA COSTA DIAS, LUIZA PIRES MARTINS, MARIA SILVIA PEREIRA LAVIERI GOMES

NÚCLEO DIGITAL

Coordenação

JOANNA AMERICANO CASTILHO

Equipe de digitalização e processamento de arquivos ANA BEATRIZ EVARISTO DA COSTA, LARISSA MACHADO MOISES, MARCELE DE OLIVEIRA GONÇALVES, PATRÍCIA DALIAH ATTHIE DO NASCIMENTO E SOUZA, WALLACE AMARAL PRIMO CORREA

Equipe de tratamento de imagem e impressão digital CAROLINA FILIPPO DO NASCIMENTO, DANIEL SIAS VELOSO, GUILHERME GOMES GUIMARÃES, MARCELO HEIN DE ANDRADE E SILVA, NRISHINRO VALLABHA DAS MAHE, THAIS MACIEL BERLINSKY

Equipe de preservação digital ANNA CAROLINA PEREIRA ROCHA, JOANNA DE ASSIS PATROCLO, JOÃO VITOR PORTO PEREIRA DE ARAUJO NÚCLEO DE CATALOGAÇÃO E INDEXAÇÃO

Supervisão

ROBERTA MOCIARO ZANATTA ANA CLARA RIBEIRO CAMPOS MAIO, CHARLYNE SCALDINI, GUILHERME FONSECA OLIVEIRA, VANESSA MATHEUS CAVALCANTE NÚCLEO DE PRESERVAÇÃO E CONSERVAÇÃO

Supervisão

MARIA CLARA RIBEIRO MOSCIARO ANA CAROLINA OCKO, BRUNA CRISTINA GENTIL DOS SANTOS, EDNA KÁTIA GAIARDONI, GUILHERME MELATI DA SILVA, GUILHERME ZOZIMO TEIXEIRA DIAS, JESSICA MARIA DA SILVA, JOÃO GABRIEL REIS LEMOS, JOYCE SILVA DOS REIS, LUCAS SOUZA DOS SANTOS, LUIZ HENRIQUE DA SILVA SOARES, MARINA DE CASTRO NOVENA CORREA, MAYRA CRISTINA LOPES CORTES, TATIANA NOVÁS DE SOUZA CARVALHO, VITÓRIA GÓES DE ALMEIDA.

ICONOGRAFIA

Coordenação

JULIA KOVENSKY GUSTAVO AQUINO DOS REIS, JOVITA SANTOS DE MENDONÇA INCLUSÃO E DIVERSIDADE

Coordenação

VIVIANA SANTIAGO KAUAN NELSON DE CAMPOS ANDRÉ, TAYNARA SILVA SANTOS, ULISSES SILVA DO NASCIMENTO JURÍDICO

Coordenação JI HYUN KIM THAIS YAMAMOTO

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LITERATURA

Coordenação RACHEL VALENÇA

Consultoria EUCANAÃ FERRAZ BRUNO COSENTINO, DANILO DE OLIVEIRA BRESCIANI, ELIZAMA ALMEIDA DE OLIVEIRA, JANE LEITE CONCEIÇÃO SILVA, KÁTYA DE SÁ LEITÃO PIRES DE MORAES, MANOELA PURCELL DAUDT D’OLIVEIRA, NATHALIA VIANNA ZAQUIEU DA FONSECA, PAULA CHRISTINA DE OLIVEIRA LOGÍSTICA, EMPRÉSTIMOS E LICENCIAMENTOS

Supervisão

BIANCA MANDARINO DA COSTA TIBÚRCIO ALINE ALVES DE JESUS, CAUÊ GUIMARÃES NASCIMENTO, FELIPE OLIVEIRA ARAÚJO, MARINA MARCHESAN GONÇALVES BARBOSA, NADJA DOS SANTOS SILVA, THAIANE DO NASCIMENTO KOPPE, VERA LÚCIA FERREIRA DA SILVA NASCIMENTO MÚSICA

Coordenação BIA CAMPELLO PAES LEME

Consultoria MIGUEL ANGELO DE AZEVEDO “NIREZ” ELIAS SILVA LEITE, EULER PICANÇO DE ARAÚJO GOUVEA, FERNANDO LYRA KRIEGER, ISADORA CIRNE OPERAÇÃO ELOY CHAVES

Líder operacional

CECÍLIA RIBEIRO DE CARVALHO ADRIANA ROSA DA SILVA RUFINO, MARJORIE REIGOTA, SERGIO LUIZ ARANTES PRODUÇÃO DE EXPOSIÇÕES

Coordenação

CAMILA GOULART BIANCA DE ANDRADE MANTOVANI, JEFFERSON DE ARRUDA MATEUS, LÍVIA FERRAZ, MARCELE CRISTINE VARGAS, MARIA PAULA RIBEIRO BUENO, WILLIAM ARTUR RÁDIO BATUTA

Coordenação

LUIZ FERNANDO REZENDE VIANNA

Consultoria JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS FILIPE DI CASTRO, MÁRIO LUIZ DE SOUZA TAVARES RECURSOS HUMANOS

Coordenação

REGIANE CARDOZO AMANDA BORGES FERREIRA, ANA PAULA FRANÇA DA SILVA, HENRIQUE FERNANDES TOSTA, LÍDIA FERNANDA CAMPOS DA COSTA, PAULO HENRIQUE OLIVEIRA CERQUEIRA, RAQUEL APARECIDA BARBOSA SANTOS CORREA, RODRIGO DOS REIS SANTOS, SANDRA MARIA DE CARVALHO REVISTA SERROTE

Coordenação

PAULO ROBERTO PIRES GUILHERME FREITAS TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

Coordenação

ELIANE DE CASTRO LIMA ANDRÉ ROBERTO FELIPE, LUIS GUSTAVO AUGUSTO, MAURÍCIO ADRIANO OLIVEIRA DOS SANTOS, SAID IHORRA DA SILVA MOREIRA

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Organização RENATA BITTENCOURT

Produção editorial NÚCLEO EDITORIAL IMS NÚCLEO DE EDUCAÇÃO IMS

Revisão JULIANA MIASSO

Projeto gráfico CLAUDIA WARRAK

Tratamento de imagens NÚCLEO DIGITAL IMS IPSIS GRÁFICA E EDITORA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) INSTITUTO MOREIRA SALLES

Negras imagens (livro eletrônico) : 2023 / Instituto Moreira Salles ; [apresentação Renata Bittencourt]. – São Paulo : IMS, 2023. E-book : il. (fotogr.) : color. p&b. Projeto Série de Palestras Negras Imagens : Formação a partir do Acervo IMS. Palestras ministradas em maio / 2022. Dados eletrônicos (1 arquivo : PDF) Disponível em: https://www.youtube.com/results?search_ query=negras+imagens ISBN 978-65-88251-18-8 1. Acervo IMS 2. Africanidade 3. Arte contemporânea 4. Artistas Afro descendentes 5. Fotografia 6. Palestras 7. Racialidade I. Bittencourt, Renata. II. Título. CDD 808.85 Bibliotecária responsável: Enisete Malaquias – CRB -8 5821

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