CLB - Euclides da Cunha

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A representação teatral do espantalho é encenada a todos: aos vizinhos e curiosos no alto das barrancas, que, entretanto, participam da encenação, pois “intervêm ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles aquele bota-fora”. A jangada que conduz a escultura para uma viagem sem fim leva também desolação e terror aos ribeirinhos e à fauna. Nenhum ser da natureza é indiferente à passagem da jangada; a reação dos ribeirinhos contra o Judas, além de ser uma desforra rancorosa na forma de esconjuros, sarcasmos, pedradas e balas, provoca na escultura gestos agitados dos braços e “agradecimentos em canhestras mesuras”; assim, o monstrengo, grotescamente humanizado, torna-se mais uma vez uma figura à imagem e semelhança de seu criador. Ao espantalho infeliz juntam-se outros, “vários no aspecto e nos gestos”, formando uma multidão de “sócios do infortúnio” a descer o rio vagarosamente, como se toda uma humanidade de desvalidos se mostrasse à outra humanidade, longínqua: a dos “concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, mais numerosos” das grandes cidades49. Na celebração do Sábado de Aleluia e no ritual da malhação do Judas, Euclides contrasta, ironicamente, o sentimento do seringueiro com o do morador da metrópole. Contraste que é também o das cidades ricas e suas catedrais com o isolamento da floresta, ou seja, das metrópoles européias com a Amazônia. Ambas fazem parte de um mesmo processo histórico, em que se combinam o capitalismo mais avançado da Europa e o periférico, onde a economia extrativista prevalece em sua forma rudimentar. Assim, a velha oposição barbárie/civilização já não faz mais sentido, pois são inseparáveis pelas relações econômicas, históricas e simbólicas. Como se sabe, o látex extraído e defumado por seringueiros da Amazônia era destinado às metrópoles industrializadas. Euclides aborda essa questão em outros textos, mas no “Judas Ahsverus” essa relação dos seringueiros com as metrópoles aparece no fragmento de vida desses seres, num único dia de vigança, em que a dor e o sofrimento se projetam na figura esculpida, que será mostrada para o mundo inteiro. Talvez haja na encenação teatral de “Judas Ahsverus” um eco paródico do topos do theatro mundi, que desde a Antiguidade clássica, passando pela Ida-

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