Cinema do IMS Poços, janeiro de 2024

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cinema jan.2024


Café com canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa (Brasil | 2017, 100’, DCP)


destaques de janeiro de 2024 Depois de anos de atuação no Rio de Janeiro e em São Paulo, o Cinema do IMS abre uma nova sala no IMS Poços. Muito bem equipada e pronta para receber o público com mostras de filmes, festivais e programas especiais, que unem produções do presente que recebem pouco espaço no circuito exibidor tradicional e redescobertas do passado. Filmes do Brasil e do mundo, nos melhores formatos de exibição existentes. Na programação de abertura, apresentamos a pré-estreia de O dia que te conheci, de André Novais Oliveira, mais recente longa-metragem da expoente produtora mineira Filmes de Plástico; uma revisita a Café com canela, dirigido por Ary Rosa com a poços-caldense Glenda Nicácio, longa de estreia da produtora Rosza Filmes; e o clássico atemporal Cantando na chuva, em cópia digital 2K. Os já consagrados Deus e o Diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, Oldboy, de Park Chan-wook, e Durval Discos, de Anna Muylaert, serão exibidos em belas restaurações digitais junto ao lançamento dos longas-metragens Propriedade, de Daniel Bandeira, e Vidas passadas, de Celine Song, e uma seleção especial de curtas-metragens.

Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (Brasil | 1964, 118’, DCP 4K, cópia restaurada)

Sejam todes muito bem-vindes.

[imagem da capa] O dia que te conheci, de André Novais Oliveira (Brasil | 2023, 71’, DCP) 1

Oldboy, de Park Chan-wook (Coreia do Sul | 2003, 119’, DCP 4K)

Vidas passadas (Past Lives), de Celine Song (EUA | 2023, 106’, DCP)


filmes em exibição Programação de abertura

Sessões especiais

Em exibição

O dia que te conheci André Novais Oliveira | DCP

Cabra marcado para morrer Eduardo Coutinho | DCP

Oldboy Park Chan-wook | DCP

Café com canela Glenda Nicácio e Ary Rosa | DCP

Deus e o Diabo na terra do sol Glauber Rocha | DCP

Durval Discos Anna Muylaert | Brasil | DCP

Cantando na chuva (Singin' in the Rain) Stanley Donen e Gene Kelly | DCP

Lavanda Bruno Benetti | Arquivo digital

Propriedade Daniel Bandeira | DCP

Sagrado (Trilogia): I. Kalunga Projeto Curas | Arquivo digital

Trajetórias negras: o reconhecimento do papel da mulher na perpetuação da potência da cultura popular Dani Alvisi | Arquivo digital

Vidas passadas (Past Lives) Celine Song | DCP

Fogos de artifício Wellington Bravo | Arquivo digital Rosza Filmes – Vídeo-afeto de 10 anos Rosza Filmes | Arquivo digital

Sagrado (Trilogia): II. Senhora da sabedoria Projeto Curas | Arquivo digital Sagrado (Trilogia): III. Caboclo Pedra Branca Projeto Curas | Arquivo digital

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sexta

sábado

domingo

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20:00 (reprise) O dia que te conheci + Sagrado (trilogia): I. Kalunga (75')

20:00 Cantando na chuva (103')

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Reabertura do centro cultural 17:30 O dia que te conheci + Sagrado (trilogia): I. Kalunga (75'), seguido de debate com André Novais Oliveira e Kleber Mendonça Filho

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19:00 Propriedade (101')

16:00 Durval Discos (96') 19:00 Deus e o Diabo na terra do Sol (118')

16:00 Café com canela + Fogos de artifício + Rosza Filmes - Vídeo-afeto de 10 anos (123'), seguido de debate com Glenda Nicácio, Marcelo Leme e Kleber Mendonça Filho

16:00 Curtas: Sagrado (Trilogia) + Fogos de artifício + Lavanda + Trajetórias negras: o reconhecimento do papel da mulher na perpetuação da potência da cultura popular + Rosza Filmes - Vídeo-afeto de 10 anos (63') 19:00 Oldboy (118')

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19:00 Vidas passadas (106')

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19:00 Propriedade (101')

19:00 Vidas passadas (106')

16:00 Cabra marcado para morrer (119')

16:00 Durval Discos (106')

Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas em ims.com.br. 3


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O Instituto Moreira Salles reabre seu centro cultural em Poços de Caldas, depois de realizar em seus espaços obras que melhoraram as condições de acolhimento de visitantes e também ampliaram as possibilidades de suas programações. O chalé Cristiano Osório, construído em 1894, foi restaurado; e, no edifício do centro cultural, projetado pelo arquiteto Aurelio Martinez Flores no início da década de 1990, as salas de exposição ganharam novo sistema de iluminação e recursos expográficos. O auditório foi totalmente renovado, com a instalação de mobiliário e equipamentos de projeção e som apropriados, que o qualificam como uma sala de cinema de referência. As questões de sustentabilidade e acessibilidade tiveram uma atenção especial, com a instalação de um elevador e de um sistema de placas de energia solar. A reabertura representa um reinício de atividades, mas também um novo começo, em que as programações expositiva e musical, assim como as atividades educativas e a realização de cursos e seminários, são reforçadas com uma programação de cinema que, graças às obras de aperfeiçoamento do auditório e à utilização de novos recursos técnicos de projeção cinematográfica, poderá apresentar mostras e sessões que até então aconteciam apenas no Rio de Janeiro e em 5

São Paulo, cidades em que o IMS também tem centros culturais. O programa de exposições, cinema e eventos musicais que reabre o IMS Poços revela as linhas de trabalho que pretendemos aprofundar, combinando programações que trarão à cidade iniciativas apresentadas nas outras sedes do IMS com exposições e programas que resultam de uma interlocução com Poços de Caldas, com os seus habitantes e agentes culturais, a partir de pesquisas sobre suas memórias, para construir interpretações e reflexões sobre o Brasil contemporâneo. A exposição Fotoclubismo em Poços de Caldas – Vestígios de uma história dá continuidade ao trabalho realizado a partir dos arquivos de Limercy Forlin – fotógrafo que registrou gerações sucessivas de poços-caldenses –, preservados nos acervos do IMS. A mostra exemplifica um movimento que foi extremamente relevante no Brasil e no mundo, construindo redes e circuitos de produção e divulgação da imagem fotográfica. As metamorfoses, de Madalena Schwartz, chega a Poços de Caldas depois de ter sido apresentada em São Paulo, Buenos Aires e La Paz, trazendo uma seleção das imagens extraordinárias com as quais a fotógrafa, cujo arquivo se encontra igualmente preservado no IMS, documentou os universos travestis e transformistas na São Paulo dos anos 1970,

traduzindo a profunda revolução de identidades e culturas que prossegue reverberando em nossos dias. Destacamos também a inauguração da nova programação de cinema, com a participação de dois cineastas mineiros, André Novais e Glenda Nicácio – esta originária de Poços de Caldas. São duas importantes produções que revelam a vitalidade do novo cinema brasileiro e ilustram o perfil da política de programação que norteará a nova sala de cinema do IMS. Esse conjunto de atividades e ações só foi possível graças ao empenho e à competência das equipes do IMS em muitas áreas. Aqui registramos nosso especial reconhecimento a elas, em especial à dedicada equipe do IMS de Poços de Caldas. Agradecemos também a atuação dos inúmeros profissionais que contribuíram para o processo de revitalização dos espaços e para a realização da programação que agora apresentamos. Damos as boas-vindas a todas, todos e todes que nos darão o privilégio de suas presenças, aguardando suas visitas regulares para acompanhar os programas com os quais esperamos contribuir para a dinamização da vida cultural da cidade. Diretoria Instituto Moreira Salles


Parece que foi ontem quando recebi os primeiros convites para as aberturas de exposições e eventos na nossa Casa da Cultura. Passou rápido, e estamos há mais de 30 anos desses momentos. Hoje, depois de um grande número de exposições, eventos, cursos e oficinas, o IMS Poços, que passou por uma significativa revitalização, está reabrindo as portas com uma nova proposta de programação, espaços inclusivos pensados para todas, todes e todos. Quantas atividades e eventos, quantas fases diferentes vivenciamos durante tantos anos… Evoluímos, mudamos, crescemos, abrimos novas sedes, e o IMS Poços também seguiu por esse caminho, se consolidando como uma das mais importantes instituições culturais da cidade e região. Atualmente com novas propostas na área de educação, novos conceitos expográficos, ampliando os seus acervos, ocupando espaços na área da literatura, música e fotografia, tudo isso nos dá uma dimensão do quanto caminhamos. Depois de mais de 30 anos, era necessário que a sua, a nossa Casa da Cultura passasse por uma revitalização, e assim foi realizada uma grande e significativa reforma, começando pelo restauro do Chalé Cristiano Osório e, posteriormente, o Centro Cultural, adequando escadas e rampas, instalando piso tátil, elevador, nova 6

infraestrutura para redes de internet, novo sistema de iluminação, enfim, uma “repaginada” total. Da acessibilidade à tecnologia e novos recursos de sustentabilidade, hoje uma realidade. Novos ares depois de um tempo de incertezas e descasos com a vida e com uma das áreas que mais contribuiu para literalmente respirarmos, a cultura. Orgulho, sim, muito orgulho de presenciar este momento incrível que é reabrir as portas deste espaço, que agora conta com uma nova sala de cinema, totalmente remodelada, com equipamentos de última geração, pensados para proporcionar as melhores emoções que um bom filme nos faz sentir.

Durante esse longo período de fechamento para as adequações, vivenciamos novas experiências, fizemos novas amizades e unimos forças, contando com uma equipe de profissionais e funcionários que não mediram esforços para chegarmos até aqui. Nossa gratidão aos envolvidos. Valeu a pena! O IMS Poços está pronto e com duas belíssimas exposições para receber você e todos que fizeram parte dessa história. Nos vemos em janeiro na nossa Casa da Cultura! Haroldo Gessoni Coordenador | IMS Poços


O Instituto Moreira Salles inicia o ano de 2024 abrindo uma sala de cinema em Poços de Caldas. O cinema é um equipamento de cultura e de coletividade diversa, um espaço onde ideias são compartilhadas e diálogos estabelecidos. A sala foi construída na sede do IMS Poços e realizada com altos padrões técnicos de projeção e som em cinema digital DCP (digital cinema package). Com 85 lugares, é um espaço aconchegante e arrojado, e terá como missão ser democrático. Quando o IMS inaugurou em 2017 o cinema do novo prédio do espaço cultural na av. Paulista, em São Paulo, já existiam ali desafios na missão de programar o audiovisual contemporâneo e seu legado histórico, numa área da cidade já bem fértil de telas de cinema. Mais de seis anos depois, o mundo pós-pandemia do covid-19 vê a indústria do audiovisual impactada pelo novo modelo do streaming e questionada como caminho econômico e social. Com números de bilheteria ainda abaixo do que o parque cinematográfico brasileiro tinha antes da pandemia, a ideia de uma nova sala de cinema hoje traz desafios. Temos a certeza, de toda forma, que a experiência de cinema que podemos oferecer será uma soma natural ao atual cenário. 7

O novo cinema do IMS em Poços junta-se às duas outras salas do IMS em São Paulo e no Rio de Janeiro. No momento da escrita deste texto, a nossa sala carioca encontra-se em reconstrução, para reabertura em 2028 no espaço cultural da Gávea totalmente restaurado. As três salas irão operar juntas num mesmo padrão, o de defender filmes contemporâneos que não encontram espaço de exibição no mercado, assim como observar com olhar crítico o legado do cinema do passado realizado no Brasil e no mundo, sejam no curta, no média ou no longa-metragem. O grande desafio das boas salas de cinema, mostras e festivais é um sentido de escolha, um ponto de vista que seja empolgante e honesto como oferta de programação, num cenário lá fora que vem sendo automatizado pela indústria e que define padrões e tendências de como o olhar se comporta. Esse trabalho passa pela presença dos que trabalham com o audiovisual em diálogos abertos com o público. Realizadoras e realizadores de Poços de Caldas, do entorno, do Brasil e de fora devem fazer parte do diálogo constante com o público nesta nova sala, ao redor da produção que é fruto natural da sociedade.

Se sua missão for bem-sucedida, este novo cinema do IMS em Poços de Caldas estará dando frutos, em breve, como espaço de encontro que poderá diminuir a distância entre boas ideias. Uma sala de educação que promova o encontro das pessoas em torno da cultura e que convide todas e todos para uma experiência presencial contínua. Que, no futuro, alguém se sinta impactado de alguma forma por filmes descobertos nesta nova sala de cinema do IMS Poços de Caldas. Que seja em sessões especiais direcionadas às escolas e às crianças, por mostras apresentadas com ingressos populares, em filmes atuais lançados com ingressos justos ou sessões especiais com entrada franca. O Cinema como espaço de convívio, que neste momento revela-se ainda mais empolgante como ideia. Kleber Mendonça Filho Curador e coordenador do Cinema do IMS


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A sala do tradicional Cineclube do Instituto Moreira Salles, em Poços de Caldas, se converterá em uma arrojada sala de cinema. Será um novo capítulo do espaço, aqui de ordem cinematográfica, resultado de resistência, cuja programação será inteiramente pensada de outra maneira, mas com princípios semelhantes. Num momento em que o mundo enfrenta desafios e transformações constantes, a abertura de um cinema na cidade parece ser um ato afirmativo diante da saturação digital e das superficialidades visuais predominantes. Em janeiro, este cinema finalmente abrirá as cortinas para todos os públicos. A expectativa é das melhores. Quando menciono resistência, falo sobre o interesse em projetar filmes considerados fora do circuito comercial convencional. Também falo do interesse em resgatar clássicos, tal como fazíamos naquela programação especial que carinhosamente chamávamos de sessão nostalgia, pois a arte não tem data de validade, e alguns filmes precisam retornar à cena. Ou também de instantes memoráveis, com debates pós-sessão junto a realizadores, o que certamente apurou o interesse cinematográfico de alguns espectadores locais. Abrir as portas desse cinema é mais do que oferecer um entretenimento, é ofertar um 9

espaço imersivo onde as pessoas podem se desconectar da realidade do dia a dia, ou se conectar às mesmas realidades de maneira mais crítica, experimentar outras possibilidades narrativas e viajar por significativas histórias. Lembro que o Cineclube colaborou para que pessoas fossem fazer cinema, alguns se dedicando à universidade em cursos de audiovisual e outros meio que no famigerado sistema de guerrilha, filmando seus próprios sonhos e projetando-os neste mesmo espaço. É preciso se orgulhar de tantos anos de exibições e de nunca ter visto a sala sem público, uma vez que o cinema resiste, insiste e persiste, desde quando o escritor e crítico de cinema Chico Lopes apresentava as sessões com entusiasmo, praticamente nos concedendo uma verdadeira aula, até o período da mostra dedicada ao falecido Kirk Douglas, quando a pandemia subitamente interrompeu a programação. Agora um novo cenário se expande, um cinema que celebrará a diversidade e a arte cinematográfica em distintos contextos. Com isso, irá muito além da programação que tínhamos, já que poderemos ter acesso a produções contemporâneas que outrora eram inacessíveis em qualquer janela de projeção local, podendo somente – e infelizmente – serem encontradas em

circunstâncias de home video ou, conforme os últimos anos, via streaming. Dentro desta era tão digital, a tela grande, vista por alguns com descrença, não pode ser apenas uma extensão de nossos dispositivos pessoais, mas uma fascinante janela em meio à escuridão, com interesse em explorar diferentes visões, realidades e emoções. Este espaço é muito importante na vida de tantos espectadores, alguns absolutamente fiéis. Ali, nas antigas poltronas amarelas, o cinema também exercia função de união, pois oportunizou amizades, conversas e cafés. Proporcionou intimidade entre todos quando o próprio público sugeria títulos: “Você consegue passar o novo filme daquela cineasta?”, ou “Quando irá exibir Os brutos também amam?”. Num tempo de distanciamentos, o cinema pode oferecer um local de encontro, onde pessoas de todas as idades e origens compartilham de um mesmo encanto. Passado e presente dialogam curvados ao mesmo interesse: as reproduções da vida projetadas em uma tela dentro de uma significativa lacuna temporal, constituída com paixão. Marcelo Leme Assistente cultural - IMS Poços


Cheguei a tempo de te ver acordar Glenda Nicácio

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Começo a escrita ouvindo Milton Nascimento, e acho que esse título (referente a música “Quem sabe isso quer dizer amor”) vai acabar fazendo sentido. Voltar para Poços de Caldas é sempre voltar. A cidade onde se nasce carrega um lugar singular dentro da gente, porque, por mais caminhos que se percorra na vida, ela ainda está lá. Embasando e embrasando as histórias, as memórias e as escolhas que se fizeram a partir dali. Em 2010, quando eu tinha 18 anos, eu saí dessa cidade para ir fazer o curso de cinema, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E isso mudou todo o meu destino, porque me jogou para paisagens e humanidades diferentes das que eu convivia até então. Mais que isso, me abriu possibilidades de futuro. Por isso eu fui. Com medo, mas fui. Cursei a universidade, conquistei grandes amigos e parcerias, que me fortaleceram na escolha e na paixão pelo fazer cinema. Fundei, junto com meu amigo e sócio Ary Rosa, a produtora Rosza Filmes, e seguimos desde então fazendo filmes independentes, com a vontade de experimentar a linguagem cinematográfica tão grande quanto a de se comunicar de forma popular com poéticas negras. A partir daí, minha trajetória foi se

visibilizando junto a essas narrativas que estão ancoradas no hoje, no cotidiano de encontros que acontecem no Recôncavo da Bahia. Em algum momento, parecia que eu tinha me tornado mais baiana, seguindo mais antenada e ancorada com as pautas e as discussões dessa região do que com a minha de nascença. E isso se deve muito a processos de identificação. A estar num espaço em que eu me reconheça junto com meus pares. Que valorize nossos corpos e nossa cultura. Essa tem sido uma camada muito discutida nos últimos anos, em que o cinema nacional e as imagens audiovisuais passaram a ser questionados. Rejeitamos a naturalidade de fenótipos e estereótipos até então reconhecidos e reproduzidos, e brigamos – sim, muitas vezes a briga é necessária, porque falar com amor pode se equiparar a não ser ouvido – com veemência pelo nosso espaço. Nós, que não fomos criados para sermos cineastas, nem arqueólogos, nem curadores. E (pasmem!), ainda assim nos tornamos e seguimos aqui. Foi preciso trilhar uma carreira e uma vida fora de Poços para entender algumas questões fundamentais da filosofia e da prática. Eu cresci com meus pais, Magali Custódio Nicácio e Rafael Nicácio Neto, e minha irmã, Letícia Nicácio, numa casa ao fim de uma rua


sem saída no bairro São José, o Serrote (e só quem vive no Serrote pode chamar ele assim, combinado?). É um bairro periférico, por muito tempo considerado um dos mais violentos. E eu nunca entendi isso, porque, vivendo nele, me parecia um dos 11

lugares mais doces e mais acolhedores da cidade. Sempre tinha alguém para dar bom-dia, para perguntar se estava tudo bem. Uma vizinhança que se ajudava e que se cuidava, atenta. Não à toa, era também um dos bairros que mais reunia a população

negra dali. Havia questões precárias de saneamento, de transporte, de segurança. E, ainda assim, os moradores conseguiam botar beleza nas esquinas. Recentemente, voltando de uma viagem para visitar minha família, eu peguei um


táxi de madrugada e, no caminho, fiquei observando a paisagem. Como o bairro mudou, como as casas melhoraram, as estruturas das ruas também. Quando eu volto para Poços, parece que eu estou vendo as imagens da cidade e do bairro pela primeira vez, de novo. Talvez porque eu volte me sentindo sempre outra. E, então, nessa madrugada, foi pitoresco perceber que essas paisagens, elas estão comigo até hoje. E, quando eu paro para pensar no tipo de imagem que eu produzo, nas relações que vão definindo o formato de produção da nossa cinematografia, eu retorno para essas imagens e paisagens. Lembrei da fala de um dos mestres da sétima arte, que escreveu uma vez que um cineasta é feito de todas as imagens que ele viu na vida. E, nesse sentido, ter nascido em Poços de Caldas, numa casa cercada por montanhas e com um céu vasto, que só Minas tem, me fez ser uma criança que gostava de olhar. Esse tempo da contemplação, quase pleno, que depois vai se perdendo. Mas que, no cinema, nós desejamos e idealizamos o tempo todo. Essa beleza da natureza, singela, cotidiana, que amanhece e escurece diante das nossas janelas. Isso me dá vontade de fazer cinema. E eu nunca sonhei com esse ofício, porque 12

eu nem sabia que isso era pra mim. Mas o gostar de olhar sempre foi. É engraçado porque, fazendo cinema, é muito comum se ouvir nas entrevistas a pergunta básica de “quais são suas referências cinematográficas?”. E eu fujo dessa resposta, não porque eu não as tenha, mas porque elas não me parecem tão fixas como a pergunta. E porque, sinceramente, a vida me encanta e sempre me encantou muito mais. Tenho pouco tempo para ficar assistindo tela, já é tanta tela que eu vejo no dia a dia do trabalho. Quando posso, prefiro gastar meu tempo vivendo, com gente boa, cerveja gelada, e samba. E isso também está nas imagens do meu cinema. Além disso, existe a construção do hábito, e cinema, no fim das contas, é sempre caro, para quem faz e pra quem quer consumir. Então eu entrei numa sala de cinema comercial pela primeira vez quando devia ter uns 10 anos. E isso não se repetiu muito, era algo distante. Mas tinha nas férias uma programação que era uma das minhas coisas preferidas, o cineclube no Instituto Moreira Salles. E eu adorava aquele espaço. Assim que se encerravam as aulas, meus pais me levavam semanalmente. Era um espaço por vezes estranho, quase ninguém da minha escola

e do meu bairro frequentava. Mas eu e meus pais estávamos ali. E foi então se criando um hábito. Um lugar onde, além das exibições, eu via quadros e exposições. Era diferente aquele ambiente, e, por estranho, me causava curiosidade – ainda que não houvesse um reconhecimento. Assim, quando eu recebi o convite de integrar as comemorações de inauguração da sala de cinema do IMS em Poços de Caldas, essas memórias retornaram. Mas vieram jogadas para o movimento do presente. Uma alegria e um alívio de saber que filmes como O dia que te conheci (André Novais Oliveira) e Café com canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio) estão agora fazendo parte desse espaço, que acolherá também a produção da própria cidade – uma cidade que também é preta. Finalmente, me sentir olhada e acolhida dentro da minha primeira casa. Em mais de dez anos produzindo cinema, será a primeira vez que um dos meus filmes será exibido em Poços, e isso é muito relevante. Renovam-se as vocações diante da toada e da caminhada que o cinema brasileiro vem fazendo. Ramificam-se os corpos e as histórias. Expandem-se as imaginações e os desejos de futuro. Que voltar para Poços de Caldas possa ser, também, seguir, junto.


De volta ao Cabra Fábio Andrade

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Desde seu premiado lançamento no 1º FestRio, em novembro de 1984, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, acumula bagagem histórica e cultural com poucos paralelos na história do cinema brasileiro. Em votações promovidas pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em 2016 e 2017, foi eleito o quarto melhor longa-metragem brasileiro de todos os tempos, e o melhor documentário. Na mais recente enquete da revista inglesa Sight and Sound, Cabra foi o brasileiro mais bem votado. Se, por um lado, a permanência no imaginário traz grande visibilidade ao filme, por outro, ela vem acompanhada de uma fortuna crítica e teórica que, paradoxalmente, pode inibir que o filme se renove. Lançado nos últimos suspiros da ditadura militar, Cabra é o primeiro documentário de longa-metragem de nosso mais importante documentarista – cineasta farol para o cinema brasileiro nas décadas seguintes. No entanto, à época de seu lançamento, ele marcava o retorno de um cineasta de ficção pouco celebrado, há 15 anos afastado da direção para cinema, e com carreira então invisível na televisão e como roteirista. Coutinho, o grande realizador e teórico do documentário, ainda não existia. Sua famosa técnica de conversações levaria anos para ser desenvolvida, e a austeridade formal de Santo forte (1999)

passa longe do hibridismo eclético de seu primeiro longa de não ficção. Como frequentemente apontado na historiografia do cinema brasileiro, Cabra marca a transição entre dois momentos: o engajamento político de estética radical dos anos 1960 no CPC da UNE e no Cinema Novo (com todas as suas divergências) e a autorreflexividade que marcaria o cinema de autor das décadas seguintes. Essa justaposição não raro é usada para projetar uma narrativa de regeneração do militante arrependido, que revisita o passado para purgar seus erros. Uma revisão de Cabra em 2024 demanda uma reavaliação desse legado, e da leitura neoliberal que coroou Coutinho como o “cineasta dos indivíduos”. Em entrevista ao jornal O Globo em 21 de maio de 1984, meses antes da estreia do filme, o próprio cineasta deu a pista: O CPC [...] teve gravíssimos erros que não serão repetidos, mas pode-se aprender com eles. O que era importante naquele momento [...] era a possibilidade de contato com outras classes sociais. [...] Me permitiu fazer um filme, aprender muito e voltar para terminar. O que houve de 64 para cá [...] é que este contato desapareceu. Então, no fundo, você é muito mais distante do seu país do que antes. Você hoje conhece as classes populares pela sua empregada.


A obra de Eduardo Coutinho ruma não à negação da política, mas ao seu reencontro nas relações intersociais. Potente em seu momento histórico, essa ideia é ainda mais radical hoje, quando o desejo de alteridade parece ter perdido espaço diante da introjeção da lógica de propriedade na produção cultural, política e intelectual. Em vez disso, Cabra expressa aquilo que Denise Ferreira da Silva chama de “diferença sem separabilidade”, onde “a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolvível, mas a expressão de um emaranhamento elementar”. O filme se debruça sobre esse emaranhamento, ciente de que a força de estar junto se deve, também, às suas contradições. Nesse sentido, é notável que o lançamento da restauração do filme em DVD, em 2014, tenha motivado o cineasta a fazer o que sempre desaconselhava: “Voltar ao lugar do crime”. Em 2013, Coutinho retorna às locações do Cabra para rever, uma vez mais, seus antigos companheiros de filmagem. Por lá, realiza dois filmes como material extra no DVD, e que terminaram sendo os últimos concluídos pelo diretor: Sobreviventes de Galileia (2013) e A Família de Elizabeth Teixeira (2013). Se essa breve sinopse pode sugerir uma compreensível autocelebração, Sobreviventes e A Família prolongam ainda 14

mais as contradições do projeto inicial. Assim como Cabra, os médias mesclam filmagens no presente com imagens do filme original, transformado em arquivo e entrevistas realizadas anos antes por Cláudio Bezerra. No entanto, se o longa de 1984 misturava estratégias de diversas escolas do documentário – inclusive a reportagem para televisão – para implicar o tempo histórico e pessoal nos caminhos percorridos pelo cinema brasileiro, 30 anos depois é necessário considerar também a estética desenvolvida pelo próprio Coutinho desde então: são dois filmes de conversa. O presente se projeta sobre o passado. Sobreviventes da Galileia desdobra a luta das Ligas Camponesas nas políticas públicas dos governos Lula e Dilma Rousseff, tendo em Duda/Dão da Galileia um representante local do Partido dos Trabalhadores. Se o filme de 1984 deslocava o protagonismo de João Pedro Teixeira – em quem se concentrava o roteiro de 1964, recentemente lançado em e-book gratuito pelo IMS – para Elizabeth Teixeira, Sobreviventes mostra a passagem de bastão de Cícero, velho militante da Liga, para seu filho, Wilson, que adapta suas atividades para um Brasil de políticas públicas e movimentos como o MST. A família se torna espinha dorsal em A Família de Elizabeth Teixeira, que inclui

conversas com Elizabeth, seis dos seus filhos, três netos e netas e um irmão. Nesse filme, os efeitos duradouros do trauma de 1964 se mostram de maneira ainda mais potente, incluindo o legado do próprio Cabra. Essa ambivalência se torna desconcertante em Marinês – filha de Elizabeth e João Pedro, e uma das grandes personagens filmadas pelo diretor. Em dado momento, Marinês especula as razões pelas quais sua mãe e seus irmãos Isaac e Carlos jamais fizeram movimento mais assertivo pela reintegração familiar após o diretor ter localizado os sobreviventes da família. “É como se você tivesse vendo um filme”, ela diz. “Você vê um bom filme, você chora, você sente, você ri, mas não é a tua vida. É um filme.” A história da família, que se tornou um filme, sobreviveu como um filme, se reencontrou por um filme, é também a história do filme que se tornou a família e transformou-a em história, em algo de certa maneira externo a ela mesma. Mas, ao virar um filme, essa história também pôde ser vista e revista, em busca de passados, presentes e futuros que a transcendem, e só se revelam com o tempo, pois ao tempo o cinema pertence, e só no tempo o cinema existe. Quase 60 anos depois, o Cabra continua vivo.


Sessões de abertura

A nova sala de cinema do IMS Poços abre as portas ao público com a estreia de O dia que te conheci, mais recente filme de André Novais Oliveira, da produtora mineira Filmes de Plástico, Café com canela, primeiro longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa, e o clássico Cantando na chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly, em diálogo com com os curtas-metragens poços-caldenses Kalunga, primeira parte da trilogia do Sagrado, desenvolvida pelo Projeto Curas, e Fogos de artifício, de Wellington Bravo. Sessões com entrada gratuita e sujeitas à lotação da sala. Distribuição de senhas 60 minutos antes da sessão. Limite de uma senha por pessoa.

O dia que te conheci

André Novais Oliveira | Brasil | 2023, 71’, DCP (Filmes de Plástico) Zeca todo dia tenta levantar cedinho para pegar o ônibus e chegar, uma hora e meia depois, na escola da cidade vizinha, onde trabalha como bibliotecário. Acordar cedo anda cada vez mais difícil, há algo que o impede de manter esse cotidiano. Um dia, Zeca conhece Luisa. O dia que te conheci é o terceiro longa de André Novais Oliveira, diretor de Temporada (2018), Ela volta na quinta (2014) e uma série de curtas-metragens que circularam o mundo, como Fantasmas (2010) e Quintal (2015). “Desde Fantasmas, meu primeiro curta, de 2010, tento fazer os diálogos naturalistas e fazer com que as atuações soem o mais legítimas possível”, comenta em depoimento disponibilizado no material de imprensa do filme. “Esse foi um trabalho muito prazeroso e divertido, e aberto a improvisos. Em cada longa, trago uma nova dosagem de abertura ao inesperado. ” “Sempre tive muita vontade de tentar o humor nos filmes, e tanto a Grace [Passô] quando o

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Renato [Novaes] são bons de comédia também. Eles têm um timing de humor, e equilibrar com o drama foi intuitivo. É muito gostoso ver piadas, ou coisas que nem eram para serem engraçadas, mas acabam com o público. Fico muito feliz.” Filmado ao longo de dez dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022, o filme de Oliveira dialoga com referências que vão desde os cineastas Abbas Kiarostami e Apichatpong Weerasethakul, o compositor norte-americano William Grant Still e a cena do rap contemporâneo brasileiro: “O rap é muito importante no filme. Eu queria muito evidenciar que o Zeca gosta de rap, e mostrar isso nos mínimos detalhes, como na direção de arte. Tem tudo a ver com a cena do rap em BH, que tem crescido bastante. Não à toa, Djonga, Matéria Prima e o Fabrício FBC estão na trilha, além do FBC fazer uma participação como ator, que me deixou muito feliz.”


Sagrado (Trilogia)

Projeto Curas | Brasil | 2022, 3 filmes com durações de 4’, 4’ e 5’, Arquivo digital (Projeto curas) O Projeto Curas é uma plataforma de registros que envolve processos de pesquisa, documentação e construção de acervos afetivos, familiares e artísticos, com processos de criação, e é realizado no Sul de Minas Gerais desde 2019. As produções artísticas e documentais compartilhadas são realizadas a partir das memórias e perspectivas pessoais dos envolvidos e envolvidas na concepção de cada iniciativa. O trabalho é realizado a partir de uma perspectiva de reconstituição e circulação, expondo experiências e composições sociais que, em grande medida, não estão representadas nos acervos institucionais da região sul mineira e que são diretamente afetadas por políticas de embranquecimento que não reconhecem a expressão das presenças afro-indígenas no território. Este conjunto de filmes se divide em três atos: I. Kalunga II. Senhora da sabedoria III. Caboclo Pedra Branca A produção e concepção são de Gabriela Acerbi Pereira, Elis de Paula, Ana Maria de Paula Cruz, Flavia Nogueira, Robson Américo e Marcos Santos.

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Café com canela

Glenda Nicácio e Ary Rosa | Brasil | 2017, 100’, DCP (Rosza Filmes) No Recôncavo Baiano, em São Félix, Margarida é uma professora aposentada que vive sozinha e evita sair de casa desde a morte de seu filho. Sua ex-aluna Violeta mora do outro lado do rio, em Cachoeira. O reencontro entre as duas desperta um processo de transformação, marcado por visitas, faxinas, cafés com canela, novos amigos e velhos amores. Natural de Poços de Caldas, a diretora Glenda Nicácio conta ao site da Mostra de São Paulo: “Filmamos em Cachoeira, a cidade aonde chegavam as mercadorias nos tempos coloniais. Entre essas mercadorias, estavam os corpos negros. Então todo o contexto é muito forte. A história que contamos é uma história universal, é um retrato do cotidiano de duas mulheres diferentes que se encontram em determinado momento da vida. Essa história poderia se passar em qualquer lugar, mas, quando escolhemos filmar essa história em Cachoeira, ela ganhou outras dimensões, que vão


além da narrativa e se entrecruzam com questões contemporâneas do fazer cinema. Uma espectadora, em Minas Gerais, me disse que, ao assistir a Café com canela, viu a família dela na tela: 'Eu vi minha família, minha mãe, meu pai; eu vi até o meu cachorro. Aquela é minha laje.' Algumas pessoas quase nunca se viram na tela, e estão podendo se reconhecer nos personagens e na história de Café com canela.” [Entrevista completa em: bit.ly/gnicacioims]

Rosza Filmes – Vídeo-afeto de 10 anos

Rosza Filmes; Montagem de Renan Bozelli | Brasil | 2021, 8’, Arquivo digital (Rosza Filmes) A Rosza Filmes é uma produtora independente de Ary Rosa e Glenda Nicácio, sediada na cidade de São Félix, Recôncavo da Bahia. Desde a sua fundação, atua no mercado audiovisual desenvolvendo atividades de realização cinematográfica em ficção e documentário, produção de eventos e desenvolvimento de projetos de cinema e educação, a partir da aposta no cinema como prática transformadora que descobre, inventa e movimenta o mundo. Neste breve curta, as imagens dos filmes dirigidos por Glenda e Ary se embaralham e reposicionam, dando a ver o legado de mais de dez anos dedicados à criação de um cinema popular, no sentido mais radical do termo. São cenas de filmes como Café com canela (2017), Ilha (2018), Até o fim (2020) e Na rédea curta (2022).

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Fogos de artifício

Wellington Bravo | Brasil | 2021, 15’, Arquivo digital (Acervo do artista) “O desconhecido é o caminho ideal para a fantasia…”, diz a cartela inicial de Fogos de artifício. No filme, Zefa e Rogério passam por um momento difícil em seu relacionamento. Quando Rogério desenvolve estranhos hábitos noturnos, Zefa vai tentar descobrir sorrateiramente o que se passa com seu companheiro.


Sessões especiais

Cantando na chuva

Singin’ in the Rain Stanley Donen, Gene Kelly | EUA | 1952, 103’, DCP 2K (Park Circus) No filme, Don Lockwood e Lina Lamont são dois dos astros mais famosos do cinema mudo em Hollywood. Seus filmes são um verdadeiro sucesso, e as revistas apostam num relacionamento mais íntimo entre os dois, o que não existe. Porém, o cinema falado chega para mudar totalmente a situação de ambos no mundo da fama. Quando os chefes do estúdio decidem produzir um filme falado com o casal, Don e Lina precisam superar as dificuldades do novo método para manter seu lugar na indústria. Um dos mais famosos musicais de todos os tempos, Cantando na chuva narra a passagem do cinema silencioso para o cinema sonoro. Em uma entrevista publicada na edição de fevereiro de 1985 da Interview Magazine, Gene Kelly, ator principal e um dos diretores do filme relembra: “Quando eu criava uma dança, não tinha o luxo que as pessoas do balé têm quando pegam uma 18

música e impõem uma dança a ela. O que fazíamos nos filmes era ter uma música e, dentro dela, tentar elaborar. Meu método usual era fazer o que um escritor faz: criar um enredo. Digamos, aqui está este sujeito em uma determinada situação e como ele reagiria. Mentalmente, eu escrevia uma pequena história para mim mesmo. É claro que, às vezes, você tem uma música que diz: 'Faça tal coisa'. Meu melhor exemplo é Singin’ in the Rain. Arthur Freed insistiu que a música deveria estar no filme, mas ele estava muito tenso com relação a isso. A música já tinha feito parte de quatro outros filmes, e ninguém nunca havia prestado atenção nela. Então, eu disse: ‘Bem, Arthur, vai estar chovendo, e eu vou cantar’. Ele olhou para mim sem entender e eu lhe disse: ‘Não se preocupe com isso’. Era um esquema do qual eu não podia escapar: eu estava feliz no amor e brincando nas poças d’água, e a música diria o resto.” [Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/gkellyims]

Programas selecionados pela equipe de curadoria e programação do Cinema do IMS. São filmes do presente e do passado, do Brasil e do mundo, mais ou menos conhecidos e exibidos nas melhores cópias disponíveis. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).


Cabra marcado para morrer

Eduardo Coutinho | Brasil | 1962-1984, 119’, DCP, cópia restaurada (Cinemateca Brasileira) Em matéria de 1985 para o Jornal do Brasil, por ocasião do lançamento de Cabra marcado para morrer, um filme interrompido pelo golpe militar de 1964 e retomado duas décadas depois, Roberto Mello escreveu: “As filmagens começaram em fevereiro de 1964. Coutinho pretendia contar a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado em 1962. Não queria atores profissionais: que os personagens fossem interpretados pelos próprios camponeses. Dezessete anos depois, Coutinho volta à região, consegue encontrar Elizabeth e, através do filho mais velho, Abraão, investiga o destino dos outros dez filhos e de todos os envolvidos no projeto. Ele exibe os originais filmados há tanto tempo, os camponeses se alegram com seus rostos, mais jovens, vivem a emoção do reconhecimento e o jogo de identificações. Vinte anos depois, Coutinho conclui seu filme, um épico contado com clareza, paciência e perseverança, por alguém que confia

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no trabalho e nos dias. Uma experiência original na cinematografia brasileira.” Eduardo Coutinho marcou a história do cinema de não ficção com o lançamento de Cabra marcado para morrer. Passados 40 anos do lançamento do Cabra, o filme de Coutinho poderá ser revisto no cinema em cópia restaurada. Em 2022, o Instituto Moreira Salles lançou um ebook de acesso gratuito com o roteiro original de Cabra marcado para morrer, digitalizado a partir de uma fotocópia do datiloscrito de 1964, com anotações do cineasta. A obra foi organizada por Carlos Alberto Mattos, também autor de um ensaio crítico que acompanha a publicação. O livro pode ser acessado em: bit.ly/imscabra.

Deus e o Diabo na terra do sol

Glauber Rocha | Brasil | 1964, 118’, DCP 4K, cópia restaurada (cópia gentilmente cedida por Lino Meireles) Manuel é um vaqueiro que se revolta contra a exploração imposta pelo coronel Moraes e acaba matando-o numa briga. Ele passa a ser perseguido por jagunços, o que faz com que fuja com sua esposa Rosa. O casal se junta aos seguidores do beato Sebastião, que promete o fim do sofrimento através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Simultaneamente, o matador de aluguel Antônio das Mortes, a serviço da Igreja Católica e dos latifundiários da região, extermina os seguidores do beato. Um dos grandes clássicos do cinema brasileiro, o filme de Glauber Rocha foi apresentado no Festival de Cannes em 1964 e retornou ao festival, na sessão Cannes Classics, em 2022, com a première internacional da nova restauração 4K. O trabalho de digitalização e remasterização foi realizado a partir da cópia original: cinco latas de negativos 35 mm em perfeitas condições, que estavam armazenadas na Cinemateca Brasileira.


Curtas

A restauração foi comandada pelo produtor de cinema Lino Meireles, em parceria com a diretora Paloma Rocha, filha de Glauber Rocha, e realizado na Cinecolor. “Quem viu o filme desse jeito só o fez em salas de cinema na década de 1960. E, mesmo assim, salas comerciais não tinham a melhor projeção e o melhor som devido a uma precariedade de mercado. Portanto, mesmo se tratando de uma restauração, será como um filme novo até para quem já o conhece”, comenta Lino Meireles em entrevista à GZH Cinema. “O primeiro impacto que tive foi de ver com clareza as nuvens da paisagem e a textura das roupas. O vaqueiro Manuel, por exemplo, carrega no peito pequenas medalhas após seu encontro com o beato Sebastião. Eu não havia observado isso antes. A Paloma, em uma cena em Monte Santo, notou que um objeto que ela pensava ser uma pedra na verdade era uma pessoa, um figurante.” [Íntegra da entrevista de Lino Meireles em: bit.ly/ deuseodiaboims]

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Um programa de curtas-metragens que reúne produções poços-caldenses de diferentes formatos, estilos e propostas, passando por ficção, documentário e experimental. Serão reexibidos o Vídeo-afeto de 10 anos, que faz um apanhado poético do trabalho da produtora Rosza Filmes, fundada por dois mineiros radicados no recôncavo baiano, o curta Fogos de artifício, de Wellington Bravo, e a trilogia Sagrado, do Projeto Curas, agora mostrada na íntegra. Juntam-se a eles os curtas-metragens: Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Lavanda

Bruno Benetti | Brasil | 2021, 15’, Arquivo digital (Acervo do artista) Internada no hospital para o tratamento de uma doença grave, a pequena Íris acorda no meio da madrugada e nota a presença de uma estranha figura em seu quarto.


Em exibição

Uma seleção cuidadosa de filmes que estão ou estiveram recentemente em cartaz nos cinemas brasileiros.

Trajetórias negras: o reconhecimento do papel da mulher na perpetuação da potência da cultura popular

Dani Alvisi | Brasil | 2021, 12’, Arquivo digital (Acervo da artista) Orlanda da Conceição Silva, conhecida como Mãe Orlanda, é ialorixá e também a primeira capitã de congos de Poços de Caldas. Ao longo dos tempos, Dona Orlanda lutou em prol da cultura popular e conquistou o respeito dos fazedores de cultura locais. Sua filha Lilia Regina Clementino, faz parte da terceira geração de mulheres congadeiras na família. Lilia começou na congada como “barqueira”, já foi espadista, e hoje é presidente da Associação de Ternos de Congos e Caiapós de São Benedito de Poços de Caldas. Neste curta documental, Orlanda e Lilia abordam suas experiências e reflexões em torno da congada e destacam a participação de outras mulheres nesse processo. 21

Oldboy

Park Chan-wook | Coreia do Sul | 2003, 119’, DCP 4K (Pandora Filmes) Dae-su é raptado e mantido em cativeiro num quarto de hotel, sem poder fazer contato com o mundo externo. Ainda preso, é informado de que sua esposa foi brutalmente assassinada e de que ele é o principal suspeito. Passados 15 anos, Dae-su é inexplicavelmente solto e recebe dinheiro, um telefone celular e roupas caras. Ele embarca, então, em uma saga por vingança. Oldboy estreou no Festival de Cannes, em 2004, no qual recebeu o Grande Prêmio do Júri. Sobre a nova restauração 4K, o diretor Park Chan-wook comenta à agência de notícias Yonhap News: “É muito velho porque foi feito durante a era analógica. Foi uma pena ver cópias empoeiradas e riscadas sendo exibidas em todo o mundo. Eu queria fazer uma versão digital há muito tempo.” Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).


Durval Discos

Anna Muylaert | Brasil | 2002, 96’, DCP (Vitrine Filmes) Inspirado nas antigas lojas de vinil do bairro de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo, como a Edgar Discos e a Eric Discos, a narrativa tem como pano de fundo uma dessas lojas, no ano de 1995, especializada em MPB. Durval e sua mãe, Carmita, moram isolados há muitos anos nos fundos da Durval Discos. Eles vivem em um mundo anacrônico e entediante. Certo dia, Durval decide contratar os serviços de uma trabalhadora doméstica para ajudar sua mãe. Apesar de baixo, o salário atrai Célia, que acaba levando um pouco de alegria para a casa. No dia seguinte, porém, Célia desaparece e deixa para trás Kiki, uma menina de 5 anos, e um bilhete dizendo que voltará em dois dias. No entanto, uma notícia do telejornal os colocará ao par da triste realidade sobre Kiki e Célia. O primeiro longa-metragem de Anna Muylaert, que em 2002 recebeu sete prêmios no Festival de Gramado, entre eles os de Melhor Filme, Direção e Roteiro, retorna aos cinemas pelo projeto Sessão 22

Vitrine Petrobras em uma versão remasterizada em 4K. Por ocasião da estreia comercial do longa, em março de 2003, Anna Muylaert relata a origem da ideia em uma entrevista ao portal UOL: “Eu queria fazer um filme barato, com poucos personagens, uma locação só, e que eu segurasse esse filme pela tensão. Então que fosse um roteiro que realmente nunca desinteressasse o espectador. [...] Em 1995, o vinil praticamente já tinha acabado. E minha irmã chegou me contando que o Edgar ainda mantinha uma loja só de vinil e que ele não acreditava que o CD estava dominando, ele era totalmente fiel. Sendo que no ano seguinte se parou de produzir vinil, e ele então fechou a loja. E essa situação eu achei interessante. Uma loja de discos é um bom lugar para se fazer uma locação de um filme. Porque além de ser interessante e ter toda essa questão musical, que eu gosto, também tem os clientes que entram e saem. Então era uma maneira de ser um ambiente fechado de uma maneira que o mundo externo pudesse entrar e sair, que eu achava divertido. Porque eu queria fazer um filme com uma locação só, mas não queria fazer um filme chato.” Em outra entrevista da mesma época, à Folha de S.Paulo, a diretora conta ainda ter pensado a estrutura do filme como um vinil, com um lado A associado à comédia e o lado B ao drama: “No lado A, usamos uma trilha de canções do pop brasileiro dos 1970. No lado B, a trilha é toda composta, de forma funcional, por André Abujamra.” [As entrevistas da diretora ao UOL e à Folha podem ser vistas em: bit.ly/ddims1 e bit.ly/ddims2] Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Propriedade

Daniel Bandeira | Brasil | 2022, 101’, DCP (Vitrine Filmes) Para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma reclusa estilista se enclausura em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir. Propriedade foi selecionado para a mostra Panorama da Berlinale de 2023. Em entrevista a Camila Gonzatto para o site do Instituto Goethe, o diretor Daniel Bandeira comenta a origem do filme e o lugar que a violência ocupa nele: “O filme surgiu como um mero exercício de estilo. Toda a história se concentrava no drama de Teresa tentando sobreviver a uma ameaça externa sem nome nem rosto. Mas com toda a discussão acerca da polarização política que pautou o Brasil dos anos 2010, senti que não era mais possível manter a estrutura unilateral da história. Ao desenvolver também o drama dos trabalhadores fora do carro, vi a oportunidade de falar sobre o caos em que vivem as camadas mais populares e sobre a incomunicabilidade que alimenta a luta de classes ao


longo da história do Brasil. O isolamento é o motor do nosso colapso enquanto sociedade.” “A violência é o curso natural da incomunicabilidade. Cultivamos com orgulho a imagem de um povo trabalhador e resiliente, mas precarizamos todos os aspectos da vida da classe trabalhadora. Menosprezamos seus desejos e suas revoltas. Então, caos é o que lhes resta. Meu foco não está tanto na ‘revolução armada’, que pressupõe uma organização mais complexa, mas no caos primordial, na rachadura que levará ao estouro da barragem. Esse caos me interessa enquanto cidadão e contador de histórias, pois ele pode se transformar em qualquer coisa, expor pessoas, respingar em qualquer um. Mas ele também é fruto de uma construção histórica muito antiga, colonial, na qual nosso ‘pacto de cordialidade’ sempre atuou para suprimir um contato mais franco entre as classes. Não concordo com a violência, mas não me surpreende quando ela ocasionalmente irrompe.” “A violência rompe o ordinário. É por isso que o cinema a ama – e é por isso que muitos amam o cinema. No entanto, por mais chocante que seja a violência narrativa de Propriedade, ela atua para evidenciar a violência histórica. Essa sim, mais insidiosa, dá motivação aos personagens e pode reverberar na experiência pessoal dos espectadores. Usar a violência como um cavalo de Troia é uma das possibilidades que mais me atrai no cinema de gênero.” A estreia de Propriedade faz parte do projeto Sessão Vitrine Petrobras. [Íntegra da entrevista: bit.ly/propriedadeims] Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia).

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Vidas passadas

Past Lives Celine Song | EUA | 2023, 106’, DCP (California Filmes) Nora e Hae Sung, dois amigos de infância profundamente conectados, se separam depois que a família de Nora decide sair da Coreia do Sul. Vinte anos depois, eles se reencontram em Nova York para uma semana fatídica, enquanto confrontam noções de destino, amor e as escolhas que fazem uma vida. “Há um bar no East Village em que fui parar porque estava morando por lá. Eu estava sentada lá com meu namorado de infância que veio da Coreia, agora é um amigo, que só fala coreano, e meu marido americano, que só fala inglês”, conta a diretora em entrevista ao portal The Hollywood Reporter. “E eu estava sentada ali tentando traduzir esses dois caras tentando se comunicar, e senti que algo realmente especial estava acontecendo. Eu estava me tornando uma espécie de ponte ou um portal entre esses dois homens e também, de certa forma, esses dois mundos de idioma e cul-

tura. Alguma coisa naquele momento realmente despertou algo em mim e me fez sentir que talvez isso pudesse ser um filme. Então, tudo começou com uma coisa bem real que aconteceu comigo.” Sobre o trabalho com o elenco, comenta ainda: “Não vou usar de malabarismos, efeitos visuais ou algo assim para melhorar o que está acontecendo no rosto dos atores. O que isso significa é que o filme inteiro tem que estar nos rostos dos atores. Portanto, fiz algumas coisas. Mantive os dois atores masculinos separados durante a preparação do filme até filmarmos a cena em que os dois se veem pela primeira vez. Isso exigiu um pouco de logística, mas os dois homens estavam separados. Além disso, pedi a Greta, que interpreta Nora, que nos ensaios com cada um deles dissesse ao outro que estava ensaiando com ele. Assim, os dois estavam formando ideias sobre quem era o outro homem e criaram expectativas sobre isso. E então, é claro, quando eles se encontram pela primeira vez, nós estávamos filmando. Porque queríamos estar filmando quando eles se encontrassem pela primeira vez − tanto os atores quanto os personagens. E, quando isso aconteceu, essa cena está no filme.” [Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/pastlivesims] Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).


Instituto Moreira Salles Cinema Curador Kleber Mendonça Filho Programadora Marcia Vaz

Programador adjunto Thiago Gallego

Produtora de programação Quesia do Carmo

Assistente de programação Lucas Gonçalves de Souza

Projeção Fagner Andrades e Gilmar Tavares Revista de Cinema IMS

Produção de textos e edição Thiago Gallego e Marcia Vaz Diagramação Marcela Souza e Taiane Brito Revisão Flávio Cintra do Amaral

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Os filmes de janeiro

O programa do mês tem o apoio da Cinemateca Brasileira, das produtoras Filmes de Plástico, Rosza Filmes, Mapa Filmes, do Projeto Curas, das distribuidoras California Filmes, Elo Studios, Pandora Filmes, Park Circus, Vitrine Filmes e do projeto Sessão Vitrine Petrobras. Agradecemos a Glenda Nicácio, Leandra Hilário, Ary Rosa, José Neto, André Novais Oliveira, Thiago Macêdo Correia, Lino Meireles, Gabriela Acerbi Pereira, Elis de Paula, Ana Maria de Paula Cruz, Flavia Nogueira, Robson Américo e Marcos Santos, Wellington Bravo, Bruno Benetti, Dani Alvisi, Renan Bozelli Apoio

Venda de ingressos Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês. Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 85 lugares. Meia-entrada Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública e privada, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito). Devolução de ingressos Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site. Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Confira as classificações indicativas no site do IMS.


Vidas passadas (Past Lives�, de Celine Song (EUA | 2023, 106’, DCP)


Visitação: Segunda a sexta, das 13h às 19h. Sábados e domingos, das 9h às 19h. Entrada gratuita. Sessões de cinema: Sextas, a partir das 19h. Sábados e domingos, a partir das 16h. A bilheteria encerra às 19h.

Rua Teresópolis, 90 CEP 37701-058 Cristiano Osório Poços de Caldas ims.pc@ims.com.br

ims.com.br

/institutomoreirasalles @imoreirasalles Cantando na chuva (Singin’ in the Rain) de Stanley Donen (Gene Kelly | EUA | 1952, 103’, DCP 2K)

@imoreirasalles /imoreirasalles

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