A revolução dos Bichos

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o dos Bichos T r a d u ç ã o , a p r e s e n ta ç ã o e n o ta s d e

Claudio Blanc

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Copyright © by Troia Editora 1a edição – Janeiro de 2021

Portuguesa Acordo Ortográfico da Língua Grafia atualizada segundo o Brasil em 2009. r no de 1990, que entrou em vigo Editora e Publisher Fernanda Emediato mação Capa, Projeto Gráfico e Diagra Alan Maia Preparação Josias A. de Andrade Revisão Hugo Almeida Nanete Neves blicação (CIP)

Catalogação na Pu Dados Internacionais de de acordo com ISBD

950 O79r Orwell, George, 1903-1 hos / George Orwell ; A revolução dos bic i. ; ilustrado por Nelson Provaz traduzido por Claudio Blanc 1 - São Paulo : Troia Editora, 202 224 p. : il. ; 15,6cm x 23cm. Tradução de: Animal farm ISBN: 978-65-88436-10-3 . 3. George Orwell. 1. Literatura inglesa. 2. Fábula son. IV. Título. Nel i, I. Blanc, Claudio. III. Provaz 2019-2391

CDD 823 CDU 821.111-31

10 dolfo da Silva - CRB-8/94 Elaborado por Vagner Ro temático Índices para catálogo sis 823 ula Fáb : lesa ing ra Literatu .111-31 Literatura inglesa : Fábula 821 TROIA EDITORA Leopoldina Avenida Mofarrej, 348 – Vila SP – CEP: 05311-000 – São Paulo 444 6-4 325 11 +55 e: Telefon m.br E-mail: troia@troiaeditora.co www.troiaeditora.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil

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sumário Apresentação............7 Contexto ................. 24 Capítulo 1.............. 27 Capítulo 2.............. 43 Capítulo 3...............61 Capítulo 4.............. 73 Capítulo 5.............. 85 Capítulo 6..............101 Capítulo 7..............119 Capítulo 8............. 139 Capítulo 9............. 159 Capítulo 10 .......... 177 Cronologia ............. 197 Sobre o tradutor ....207 Caderno de fotos ...208

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ma edição comentada de A Revolução dos Bichos é demasiadamente oportuna neste momento, no qual uma onda de conservadorismo faz parte do mundo guinar à direita. Tal movimento abala as frágeis democracias da América Latina. Às vezes, com velocidade impressionante, repetem uma tendência histórica rumo ao autoritarismo: o processo democrático é substituído pela imposição de medidas não debatidas, leis que favorecem apenas alguns setores da sociedade são outorgadas e direitos conquistados são suprimidos. Sem atentar, as massas são manipuladas pela propaganda, e, então, benefícios são concedidos às classes detentoras — ou próximas — do poder, ao mesmo tempo em que são negados a outras. Finalmente, o terror é instaurado. Não se pode protestar, ou sequer se manifestar sobre questões que afetam a vida de todos.

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É justamente essa a trama de A Revolução dos Bichos, escrita como um alerta em forma de conto de fadas sobre as relações de poder, ou, melhor colocando, sobre a deterioração das relações de poder num regime comandado por um “Grande Líder” por meio da propaganda e do terror. Um mapa sobre as etapas da corrupção do poder num novo regime, A Revolução dos Bichos é uma história distópica em tempos distópicos. De acordo com seu autor, George Orwell, pseudônimo do jornalista Eric Arthur Blair, a fábula reflete eventos que antecederam a Revolução Russa de 1917 e, posteriormente, a era stalinista da União Soviética. Orwell, um social-democrata, era crítico a Josef Stalin e hostil ao stalinismo instaurado em Moscou, uma atitude moldada por suas experiências durante a Guerra Civil Espanhola. A União Soviética, constatou Orwell, tornara-se uma ditadura brutal, construída sobre um culto à personalidade e imposta por um reino de terror. Em carta a Yvonne Davet, tradutora francesa do seu livro Homage to Catalonia (ou Lutando na Espanha, conforme o título com que foi publicado no Brasil), Orwell descreveu A Revolução dos Bichos como um conto satírico contra Stalin, e em seu ensaio Why I Write (1946), afirma que A Revolução dos Bichos foi o primeiro livro em que tentou, com plena consciência, “fundir o propósito político ao artístico”.

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O título original era A Revolução dos Bichos: um conto de fadas, mas os editores americanos suprimiram o subtítulo quando o livro foi publicado em 1946, e apenas uma das traduções durante a vida de Orwell foi fiel ao título original. Orwell escreveu o livro entre novembro de 1943 e fevereiro de 1944, quando o Reino Unido havia feito um aliança com a União Soviética (e os Estados Unidos) para derrotar a Alemanha nazista. Nessa época, o povo e os intelectuais britânicos tinham Stalin em alta consideração — uma atitude que Orwell condenava categoricamente. O manuscrito foi inicialmente rejeitado por vários editores britânicos e americanos, inclusive por um dos próprios editores de Orwell, Victor Gollancz, que atrasou sua publicação. Um dos editores a que Orwell submeteu seu manuscrito chegou a aceitar publicar o livro, mas consultou o Ministério da Informação que desencorajou fortemente sua publicação. Em carta a Orwell, o editor informa que o ministério alertou que a “fábula” se referia claramente “aos progressos da Revolução Soviética e aos seus dois ditadores” — e não se critica um aliado em tempos de guerra, tampouco se volta a opinião pública contra ele. O livro A Revolução dos Bichos só foi publicado em agosto de 1945, sem chamar a atenção do público ou da crítica. Contudo, com o final da guerra, a aliança entre os EUA, a Grã-Bretanha e a União Soviética transformou-se diante do novo cenário internacional, dando lugar à Guerra Fria. Só então o livro teve o ambiente necessário para se tornar um grande sucesso comercial. Mais que isso, com o tempo, A Revolução dos Bichos ocupou lugar de destaque na produção literária do século XX, tendo sido

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colocada pela revista Time entre as cem obras mais importantes da língua inglesa de todos os tempos. A ideia para o livro surgiu das experiências de Orwell durante a Guerra Civil Espanhola, que ele descreveu em Lutando na Espanha, publicado em 1938. Nesse texto, Orwell expõe e condena vigorosamente o que via como a corrupção stalinista dos ideais socialistas originais. Mas Lutando na Espanha vendeu mal. Inspirado pelo best-seller de Arthur Koestler, O Zero e o Infinito, sobre a mesma guerra, Orwell decidiu que a ficção era a melhor maneira de descrever o totalitarismo. No prefácio da primeira edição, Orwell registra a origem da ideia de ambientar o livro numa fazenda:

[…] Vi um garotinho, de uns dez anos de idade, conduzindo um cavalo enorme por um caminho estreito, chicoteando-o sempre que ele tentava sair da trilha. Ocorreu-me que, se esses animais tivessem consciência de sua força, não teríamos poder sobre eles, e que os homens exploram os animais da mesma maneira que os ricos exploram o proletariado. De fato, apesar da narrativa fabulosa, dos animais que falam, que sabem ler, escrever e construir moinhos de vento, A Revolução dos Bichos é uma obra que denuncia a exploração de uma classe por outra e os mecanismos políticos que tornam isso possível. O biógrafo de Orwell, Jeffrey Meyers, escreveu que “praticamente todos os detalhes têm significado político nessa alegoria”. O próprio Orwell afirmou, em 1946: “É claro que eu pretendia que fosse principalmente uma sátira da Revolução Russa … [e] desse tipo de revolução (revolução conspiratória violenta, liderada por

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pessoas inconscientemente sedentas de poder) só pode levar a uma mudança de mestres [...] as revoluções só produzem uma melhoria radical quando as massas estão alertas”. Mais que “uma sátira da revolução russa”, A Revolução dos Bichos é a própria versão fabulosa da Revolução Soviética de 1917. A luta pela preeminência entre Leon Trótski e Stalin surge na rivalidade entre os porcos Bola de Neve e Napoleão. Nos casos histórico e ficcional, a figura idealista, mas politicamente menos poderosa (Trótski e Bola de Neve) é expulsa do Estado revolucionário pelo usurpador malicioso e violento do poder (Stalin e Napoleão). Os expurgos e os julgamentos com os quais Stalin eliminou seus inimigos e solidificou sua base política também são aludidos na fábula de Orwell, com falsas confissões e execuções de animais de quem Napoleão desconfia. O domínio tirânico de Stalin e o eventual abandono dos princípios fundamentais da Revolução Russa são igualmente representados na adoção de características e comportamentos humanos pelos animais dominantes. Embora Orwell acreditasse fortemente nos ideais socialistas, sentia que a União Soviética os realizava de uma forma terrivelmente perversa. Sua novela produz suas ironias mais poderosas nos trechos em que Orwell retrata a corrupção dos ideais do Animalismo — a ideologia que levou os animais ao poder. Assim, A Revolução dos Bichos não apenas condena o autoritarismo ou o despotismo, mas principalmente denuncia a hipocrisia das tiranias que se baseiam e devem seu poder inicial a

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ideologias de libertação e igualdade. Exemplos são o período do Terror da Revolução Francesa, o Grande Expurgo de Stalin, a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. A gradual desintegração e perversão dos Sete Mandamentos criados pelos bichos ilustra essa hipocrisia com força vívida, assim como as elaboradas justificativas racionais ou mesmo filosóficas de Garganta, o porco encarregado da propaganda política, para as ações flagrantemente sem princípios adotadas pelos porcos. Mais que uma denúncia à violência do comunismo soviético contra a lógica, a linguagem e os ideais humanos, Orwell alerta para o perigo da corrupção do poder em qualquer regime — tanto à esquerda como à direita. Em 1951, seis anos depois da publicação de A Revolução dos Bichos, a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) publicou um importante estudo sobre o tema tratado por Orwell, Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo, no qual disseca as características de tais regimes. Orwell não teve conhecimento dessa obra, pois morreu um ano antes de seu lançamento. Contudo, curiosamente, A Revolução dos Bichos ilustra de forma fictícia a maioria das particularidades dos regimes autoritários descritos por Arendt. Os cavalos são a classe trabalhadora; os cães, os agentes de repressão; as vacas e as galinhas, as camadas da população sacrificadas em nome de um novo ideal (como os judeus na Alemanha nazista, os camponeses no Grande Expurgo de Stalin, os índios nas três Américas); as ovelhas são a ralé, como Arendt denominou a escória do pensamento burguês que apoia cegamente a violência do “Grande Líder”; Bola de Neve encarna o inimigo invisível, a grave ameaça fictícia que abala a população e justifica os atos arbitrários das classes dominantes; e Napoleão encarna o Grande Líder — o Führer, Il Duce, o Mito — que irá resolver, acredita a massa, todos os problemas da nação. A rigor, houve apenas dois regimes totalitários, isto é, que exercem controle total (daí o nome) sobre a população: a União 14

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Soviética sob Josef Stalin (o totalitarismo à esquerda) e a Alemanha nazista de Adolf Hitler (o totalitarismo à direita). Contudo, qualquer regime autoritário traz as marcas do totalitarismo. Hannah Arendt afirma que uma sociedade totalitarista dispensa os seres humanos em seu esforço de “domínio total” e que, em seus estágios finais, esse regime “surge como um mal absoluto”. Os números ilustram bem isso: mais de 6 milhões de pessoas assassinadas pelo nazismo, em sua maioria judeus; e entre 5 e 8 milhões de seres humanos mortos por Stalin. Hoje, o perigo volta a bater à porta da história. A ameaçadora crise ambiental, a luta pelo controle de recursos cada vez mais escassos, a competição global entre as grandes corporações, o oportunismo corrosivo dos governos e o fanatismo dos fundamentalistas cristãos exercem grande pressão na manutenção de estilos de vida e de valores já desgastados, que já não têm lugar nos dias de hoje. E para controlar populações cada vez mais inquietas e insatisfeitas, promovem-se campanhas de desinformação difundidas com incrível velocidade e em quantidades incontroláveis nas mídias sociais, promovendo o conservadorismo, sustentando a necessidade de suprimir direitos, dividindo a população, aparelhando, enfim, os Estados para a instauração de regimes autoritários. A partir de uma ideia de defesa dos interesses nacionais, de melhoria das condições socioeconômicas, as leis são alteradas, e a população torna-se refém sem o saber — exatamente como narra a lúcida fantasia de A Revolução dos Bichos.

TEMAS De acordo com estudo realizado pelo centro de reflexão britânico Economist Intelligence Unit, em 2018, 34% da população mundial 15

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vive hoje sob um regime autoritário. Os governos autoritários seguem uma trajetória semelhante à desenvolvida por Orwell em sua narrativa. Os temas apresentados em A Revolução dos Bichos ilustram as tendências das sociedades modernas que, se não necessariamente conduzem ao totalitarismo, certamente levam ao autoritarismo. Os principais são:

A tendência social à estratificação de classe A Revolução dos Bichos alude ao desenvolvimento da tirania de classe e à tendência humana de manter e restabelecer estruturas de classe, mesmo em sociedades supostamente igualitárias. A novela ilustra como as classes que são inicialmente unificadas em face de um inimigo comum, como os animais são contra os humanos, podem se dividir internamente quando esse inimigo é eliminado. A expulsão de Jones cria um vácuo de poder, e leva tempo para que o próximo opressor assuma o controle. A divisão natural entre trabalho intelectual e físico rapidamente se expressa como um novo conjunto de divisões de classe, com os “intelectuais” (como os porcos afirmam ser), que usam sua inteligência superior para manipular a sociedade em benefício próprio. Orwell não esclarece em A Revolução dos Bichos se esse estado negativo de coisas constitui um aspecto inerente da sociedade, ou se é apenas um resultado contingente da integridade da elite de uma sociedade. Em ambos os casos, a novela aponta para a força dessa tendência à estratificação de classe em muitas sociedades e à ameaça que ela representa para a democracia e a liberdade.

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O perigo de uma classe trabalhadora ingênua Um dos aspectos mais notáveis da novela é o retrato não apenas das figuras no poder, mas também dos oprimidos. A Revolução dos Bichos não é narrada a partir da perspectiva de qualquer personagem em particular, embora ocasionalmente o ponto de vista de Quitéria seja enfatizado. Ao contrário, a história é contada a partir da perspectiva dos animais comuns como um todo. Crédulos, leais e trabalhadores, esses animais dão a Orwell a chance de retratar os modos pelos quais as situações de opressão surgem, ou seja, não apenas por meio dos motivos e táticas dos opressores, mas também pela ingenuidade dos oprimidos, que não são necessariamente instruídos ou informados. Desse modo, A Revolução dos Bichos afirma que a incapacidade ou falta de vontade de questionar a autoridade condena a classe trabalhadora a sofrer as consequências da opressão da classe dominante.

A linguagem como instrumento do abuso de poder Uma das preocupações centrais de Orwell, tanto em A Revolução dos Bichos quanto em 1984, é a maneira pela qual a linguagem pode ser manipulada como um instrumento de controle. Em A Revolução dos Bichos, os porcos gradualmente modificam e distorcem a retórica da revolução socialista para justificar seu comportamento e manter controle sobre os outros animais. Os bichos adotam com entusiasmo o ideal visionário do Major, mas depois que ele morre, os porcos gradualmente distorcem o sentido de suas palavras. Como

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resultado, os outros animais são incapazes de se opor a eles sem ir contra os ideais da Revolução. No fim da novela, após as repetidas reconfigurações dos Sete Mandamentos, o princípio original do Animalismo é distorcido abertamente numa única afirmação: “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Esse uso excessivo da palavra “igual” e do ideal de igualdade adultera seu significado — e tipifica o método das classes dominantes. A sofisticada denúncia que Orwell faz a esse abuso de linguagem continua sendo uma das características mais instigantes e duradouras de A Revolução dos Bichos.

Corrupção O tema central da novela é a ideia de que o poder sempre corrompe. O forte uso de foreshadowing (prenúncios) por Orwell, especialmente no capítulo de abertura, cria a sensação de que os eventos da história são inevitáveis. A ascensão de Napoleão ao poder não é apenas inevitável; a novela sugere fortemente que qualquer outro governante teria sido tão corrupto quanto Napoleão. Embora Napoleão tenha mais fome de poder do que Bola de Neve, existem muitas evidências para sugerir que Bola de Neve teria sido tão desonesto quanto qualquer governante. Antes de sua expulsão, Bola de Neve apoia a apropriação do leite e das maçãs para os porcos, e a desastrosa construção do moinho de vento é ideia dele. Mesmo o Velho Major não é incorruptível. Apesar de acreditar que “todos os animais são iguais”, ele faz sua preleção do alto de uma plataforma, sugerindo que ele se via numa posição superior aos outros bichos da fazenda. O tema da corrupção

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é ainda mais marcante na cena final da novela, que define de forma magistral a ideia de que o poder inevitavelmente tem o mesmo efeito sobre quem o detém.

O fracasso do intelecto A Revolução dos Bichos é uma obra profundamente cética em relação ao valor da atividade intelectual. Os porcos são identificados como os animais mais inteligentes, mas sua inteligência raramente produz algo de valor. Em vez disso, eles usam sua capacidade intelectual para manipular e abusar dos outros animais. A novela identifica várias outras maneiras pelas quais a inteligência deixa de ser útil ou boa. Benjamin é alfabetizado, mas se recusa a ler, sugerindo que a inteligência é inútil sem o senso moral de se envolver na política e a coragem de agir. Os cães são quase tão alfabetizados quanto os porcos, mas “não estão interessados em ler nada, exceto os Sete Mandamentos” (Capítulo 3). Na verdade, o modo como os cães usam sua inteligência sugere que o intelecto é inútil — até prejudicial — quando combinado com uma personalidade que prefere obedecer às ordens em vez de questioná-las.

A exploração de animais por humanos Além de ser uma alegoria sobre as maneiras pelas quais os humanos exploram e oprimem uns aos outros, A Revolução dos Bichos também traz um argumento mais literal: os humanos também exploram e oprimem os animais. Só no Brasil, de

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acordo com o IBGE, abatem-se 84,7 mil bois, 107,7 mil porcos e 15,5 milhões de aves diariamente. Embora a revolução dos animais comece com um tom cômico, ela termina com uma nota séria e comovente quando os animais “apagam os últimos vestígios do odiado reinado de Jones” e descreve os hediondos instrumentos de tortura usados contra os bichos, como argolas de focinho, facas para castrar e imolar, chicotes etc. A novela também sugere que existe uma conexão real, além de alegórica, entre a exploração de animais e a exploração de trabalhadores humanos, quando Pilkington brinca com Napoleão, no último capítulo, comparando os “animais inferiores” da Fazenda dos Bichos com as “classes inferiores” da sociedade inglesa. Assim, Orwell demonstra que, do ponto de vista da classe dominante, animais e trabalhadores são a mesma coisa.

O TEXTO Ao longo da história da Europa, escritores como Esopo e Jean de La Fontaine usaram fábulas com personagens animais como forma de criticar suas próprias sociedades sob a capa de uma história “inofensiva”. As fábulas do escravo grego Esopo, por exemplo, são contos breves sobre criaturas como ratos, gansos ou sapos, que terminam com claras lições morais aplicáveis à vida cotidiana. A Revolução dos Bichos é, conforme o próprio Orwell, uma fábula, pois usa animais como personagens com o intuito de construir um argumento conciso e vigoroso sobre a moralidade e a política 20

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humanas. De acordo com essa tradição literária, Orwell antropomorfiza os animais, ou seja, ele não apenas lhes confere a capacidade de falar, mas também qualidades e preocupações humanas. Em geral, as fábulas raramente incluem mais de um personagem humano, mas Orwell subverte essa convenção. Ao incluir vários fazendeiros humanos em sua fábula, ele lembra a seus leitores que a exploração e opressão dos animais não é apenas uma metáfora literária para a exploração e opressão de seres humanos. A exploração de animais é um fato terrível e cruel e depende do mesmo processo que a exploração de seres humanos, mas com um agravante: os animais não têm voz para se fazerem ouvir, para demonstrarem o horror a que estão submetidos em laboratórios de testes dermatológicos, nas fazendas onde são confinados, nos matadouros do mundo todo. O tom narrativo de Orwell é de uma simplicidade e uma secura próximas do de La Fontaine e Swift, desenvolvendo uma prosa clara e admiravelmente adequada ao seu objetivo. O tom da narrativa de A Revolução dos Bichos se transforma lentamente, à medida que a história avança, indo de otimista a amargo. A progressão do tom otimista inicial para a amargura final adverte os leitores que sua sociedade pode facilmente se deteriorar em terror e derramamento de sangue promovidos pelo Estado. Outro recurso característico empregado por Orwell é o uso excessivo da voz passiva para enfatizar o desamparo e a impotência dos animais. Os eventos ocorrem sem a ação de nenhum animal em particular, criando a impressão de que as coisas acontecem sem o consentimento 21

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dos bichos. A voz passiva também ajuda a mostrar o poder do boato e da informação falsa numa sociedade opressora. Quando ninguém sabe exatamente quem disse, fez ou “notou” algo, é fácil afirmar que a coisa realmente não aconteceu, ou que aconteceu de forma diferente, como fazem os porcos da fábula e os ditadores da história. No primeiro capítulo, Orwell recorre ao foreshadowing — artifício pelo qual o autor coloca em cena elementos obscuros que prenunciam acontecimentos futuros — antecipando o fracasso da revolução. Em A Revolução dos Bichos, a maioria dos principais eventos da trama é prenunciada no capítulo de abertura. Esse prenúncio enfatiza a inevitabilidade do que irá acontecer. A voz narrativa usada por Orwell em A Revolução dos Bichos também é incomum. A fábula é contada na terceira pessoa a partir de um ponto de vista coletivo e limitado. O narrador sabe tudo o que os animais veem, dizem, conhecem e fazem enquanto grupo. No entanto, o narrador não sabe o que os porcos dizem e fazem quando não estão com os outros animais, e raramente vemos a ação individualmente, pelos olhos de cada bicho. Ocasionalmente, o leitor recebe breves vislumbres do ponto de vista individual por intermédio, principalmente, de Quitéria. O ponto de vista coletivo, centrado apenas nos animais comuns, concentra nossa simpatia nas esperanças e medos desses bichos enquanto grupo ou classe política, em vez de personagens individuais. O ponto de vista coletivo também mostra com que facilidade a memória social pode ser manipulada. Assim, a memória individual 22

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é anulada, e a versão falsa de um fato histórico acaba se tornando “verdade” na memória coletiva. Embora o livro A Revolução dos Bichos tenha sido escrito como uma denúncia a um governo específico, seus temas gerais de opressão, sofrimento e injustiça, bem como a forma que a narrativa é construída e os elementos que a compõem, têm aplicação muito mais ampla. Com efeito, os leitores modernos passaram a ver o livro de Orwell como um poderoso ataque a qualquer poder político, retórico ou militar que busca controlar os seres humanos por meio de mecanismos cruéis e injustos. Claudio Blanc, dezembro de 2020

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contexto

A Revolução dos Bichos baseia-se nos eventos da Revolução Soviética e da história soviética antes de 1945. Como tais fatos encontram paralelos diretos em A Revolução dos Bichos, é interessante conhecer os acontecimentos aos quais Orwell alude. A sociedade russa no início do século XX era dividida: uma pequena minoria controlava a maior parte da riqueza do país, enquanto a grande maioria dos habitantes do país era formada por camponeses empobrecidos e oprimidos. O comunismo surgiu na Rússia quando os trabalhadores e camponeses da nação, assistidos por uma classe de intelectuais preocupados, conhecida como intelligentsia, se rebelaram e dominaram a classe rica e poderosa de capitalistas e aristocratas. Esperavam estabelecer uma utopia socialista baseada nos princípios do filósofo político e econômico alemão Karl Marx. De fato, na Rússia de 1917, parecia que os sonhos de Marx se tornariam realidade. Em fevereiro de 1917, após uma guerra civil politicamente complicada, o czar Nicolau II, o monarca da Rússia, foi forçado a abdicar-se do trono que sua família mantinha por três séculos. O socialista Alexander Kerensky tornou-se premiê. No fim de outubro (7 de novembro nos calendários atuais), Kerensky foi deposto e Vladimir Lenin, o arquiteto da Revolução Russa, tornou-se comissário-chefe. Quase imediatamente, enquanto guerras aconteciam em praticamente todas as frentes russas, os principais aliados de Lenin começaram a disputar o poder no recém-formado Estado; os mais influentes eram Josef Stalin, Leon Trótski, Gregory Zinoviev e Lev Kamenev. Trótski e Stalin emergiram como os herdeiros mais prováveis do grande poder de Lenin. Trótski era um líder popular e carismático, famoso por seus discursos apaixonados, enquanto o taciturno Stalin

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preferia consolidar seu poder nos bastidores. Após a morte de Lenin, em 1924, Stalin, com ajuda de Zinoviev e Kamenev, orquestrou uma aliança contra Trótski. Nos anos seguintes, Stalin conseguiu se tornar o ditador inquestionável da União Soviética e Trótski foi expulso primeiro de Moscou, depois do Partido Comunista e, finalmente, da Rússia, em 1936. Trótski fugiu para o México, onde foi assassinado por ordem de Stalin, em 1940. Em 1934, o aliado de Stalin, Serguei Kirov, foi assassinado em Leningrado, levando Stalin a iniciar seus infames expurgos do Partido Comunista. Realizando “julgamentos de espetáculo” — julgamentos cujos resultados ele e seus aliados já haviam decidido —, Stalin fez com que seus oponentes fossem oficialmente denunciados como participantes de conspirações trotskistas ou antistalinistas e, portanto, como “inimigos do povo”, uma denominação que garantia sua execução imediata. Como o planejamento econômico do governo soviético vacilou e fracassou, a Rússia sofreu uma onda de violência, medo e fome. Stalin culpou seus oponentes pela miséria pela qual o país passava para aplacar a população. Trótski tornou-se um inimigo nacional comum e, portanto, uma fonte de unidade. Era um espectro assustador usado para conjurar terríveis sabotagens — tão terríveis, que faziam empalidecer a miséria pela qual a União Soviética passava. Além disso, associando seus inimigos ao nome de Trótski, Stalin poderia garantir sua eliminação imediata e automática do Partido Comunista. E, então, veio a 2a Guerra Mundial. Hitler trai o pacto de não violência assinado com Stalin e invade a União Soviética. Para derrotar o inimigo comum, Moscou alia-se à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos. Nesse momento, Orwell começa a escrever sua novela.

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ones, da Fazenda1 do Solar, trancou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para se lembrar de fechar as vigias. Com o círculo

de luz da lanterna dançando de um lado para outro, cambaleou pelo pátio, tirou, com um chute, as botas na porta dos fundos, pegou um último copo de cerveja do barril da copa e foi para a cama, onde sua mulher já roncava. Assim que a luz do quarto se apagou, começou uma grande agitação em todos os galpões da fazenda. Durante o dia, tinha corrido o boato de que o velho Major, o cachaço premiado numa grande exposição, tivera um sonho estranho na noite anterior e queria contá-lo aos outros animais. Foi combinado que todos deveriam se encontrar no celeiro assim que Jones se retirasse. O velho Major (era assim que o chamavam, embora tivesse participado da exposição com o nome de Beleza de Willingdon) era tão respeitado na fazenda, que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvir o que tinha a dizer.

Normalmente, a propriedade de Jones é caracterizada como “granja” nas traduções para o português por se tratar de uma pequena propriedade. No entanto, o termo “granja” pode referir-se exclusivamente a “propriedade rural voltada à criação de aves” (dicionário Michaelis), e as fazendas britânicas produzem diversos outros produtos agropecuários. 1

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Num dos cantos do grande celeiro, numa espécie de estrado, o Major2 já estava metido em sua cama de palha, sob um lampião pendurado numa viga. Ele tinha doze anos e já se tornara bastante corpulento, mas ainda era um porco de aparência majestosa, com um ar sábio e benevolente, apesar de suas presas nunca terem sido aparadas. Aos poucos, os animais foram chegando e se acomodando, cada qual do seu jeito. Primeiro vieram os três cães, Ferrabrás, Lulu e Cata-vento, e depois os porcos, que se deitaram na palha imediatamente em frente à plataforma. As galinhas se empoleiraram nos peitoris das janelas, os pombos voaram até as vigas, as ovelhas e as vacas se deitaram atrás dos porcos e começaram a ruminar. Os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria, entraram juntos, caminhando muito lentamente, pousando seus enormes cascos cobertos de pelos com todo o Como social-democrata, Orwell tinha muito respeito por Karl Marx, o economista político alemão, e até por Vladimir Ilyich Lenin, o líder revolucionário russo. A crítica que ele tece em A Revolução dos Bichos tem pouco a ver com a ideologia marxista subjacente à Revolução, mas sim, com a perversão dessa ideologia pelos líderes posteriores. O Major, que representa Marx e Lenin, serve como fonte dos ideais que os animais continuam a sustentar, mesmo depois que seus líderes os traíram. Embora a interpretação do Velho Major seja amplamente positiva, Orwell inclui algumas pequenas ironias que permitem ao leitor questionar os motivos do venerável porco. Por exemplo, no meio de sua longa ladainha de reclamações sobre como os animais foram tratados pelos seres humanos, o Velho Major é forçado a admitir que sua própria vida foi longa, cheia e livre dos terrores aos quais os outros animais são submetidos. De algum modo, ele parece ter reivindicado uma falsa irmandade com os outros animais, a fim de angariar seu apoio à sua visão. 2

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cuidado para evitar pisar em algum animalzinho escondido na palha. Quitéria era uma égua robusta, próxima da meia-idade, cuja silhueta nunca recuperara depois que tivera seu quarto potrinho. Sansão era um animal enorme, com quase dezoito palmos de altura e tão forte quanto dois cavalos comuns juntos. Uma mancha branca no focinho lhe dava uma aparência um tanto estúpida, e, na verdade, ele não era de uma inteligência lá muito brilhante, mas era respeitado por todos por causa de sua firmeza de caráter e tremenda capacidade de trabalho. Depois dos cavalos, chegaram Maricota, a cabra branca; e Benjamin, o burro. Benjamin era o animal mais velho da fazenda e o mais temperamental. Raramente falava, e quando o fazia, quase sempre era algum comentário cínico — por exemplo, ele dizia que Deus havia lhe dado um rabo para espantar as moscas, mas antes não tivesse dado nem rabo nem moscas. Era o único entre os animais da fazenda que nunca ria. Se perguntavam por que, dizia que não tinha visto motivo para rir. No entanto, sem admitir abertamente, era dedicado a Sansão; os dois costumavam passar os domingos juntos no piquete além do pomar, pastando lado a lado sem nada dizer. Os dois cavalos tinham acabado de se acomodar quando uma ninhada de patinhos, que tinham perdido a mãe, entraram no celeiro, piando debilmente e vagando de um lado para outro procurando um lugar onde não fossem pisoteados. Quitéria colocou sua perna dianteira à frente deles, e, assim protegidos, os patinhos se aninharam e imediatamente adormeceram. No último momento, Mimosa, a égua branca, fútil e vaidosa que puxava a charrete de Jones, entrou graciosamente, mastigando um torrão de açúcar. Tomou um lugar bem na frente e começou a menear a crina branca, esperando chamar a atenção para as fitas vermelhas 31

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que a enfeitavam. Por fim, veio a gata, que olhou em volta, como sempre, buscando o lugar mais quente, e finalmente se espremeu entre Sansão e Trevo; assim acomodada, ronronou contente durante o discurso do Major sem ouvir uma palavra do que ele disse. Todos os animais estavam agora presentes, exceto Moisés, o corvo doméstico, que dormia num poleiro atrás da porta dos fundos. Quando Major viu que todos estavam acomodados e aguardavam atentamente, pigarreou e começou: — Camaradas, vocês já ouviram falar sobre o estranho sonho que tive na noite passada. Mas voltarei ao sonho daqui a pouco. Antes, tenho outra coisa a dizer. Não acho, camaradas, que estarei com vocês por muito tempo mais e, antes de morrer, sinto que é meu dever passar a sabedoria que adquiri. Tive uma vida longa, muito tempo para refletir, deitado sozinho no meu chiqueiro, e creio poder dizer que entendo a natureza da vida nesta terra tanto quanto qualquer outro animal. É sobre isso que quero falar com vocês. “Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Vamos ser sinceros: nossas vidas são miseráveis, cheias de trabalho e curtas. Nascemos, recebemos apenas comida suficiente para manter nossos corpos respirando, e aqueles que aguentam isso são forçados a trabalhar até o último sopro de suas forças; e no instante em que nossa utilidade termina, somos abatidos com crueldade hedionda. Nenhum animal na Inglaterra conhece o significado de felicidade ou lazer depois de completar um ano de idade. Nenhum animal na Inglaterra é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa é a pura verdade.

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Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? “Mas isso é simplesmente a ordem da natureza? Será que esta nossa terra é tão pobre, que não pode oferecer uma condição de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, seu clima é bom, é capaz de produzir alimentos em abundância a um número muito maior de animais do que o existente. Esta fazenda sozinha sustentaria uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de ovelhas, e todos vivendo com um conforto e com uma dignidade que agora estão além da nossa imaginação. Por que, então, continuamos nessa condição miserável? Porque quase toda

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a produção de nosso trabalho nos é roubada pelos seres humanos. Aqui, camaradas, está a resposta para todos os nossos problemas. Resume-se numa só palavra, o homem. O homem é o único inimigo real que temos. Tire o homem de cena, e a causa da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre. “O homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não consegue correr rápido o suficiente para pegar coelhos. No entanto, ele é o senhor de todos os animais. Ele os coloca para trabalhar, devolve a eles o mínimo necessário para não morrerem de fome, e o resto guarda para si. Nosso trabalho prepara o solo, nosso esterco o fertiliza e, no entanto, não há um de nós que possua mais do que sua própria pele. Vocês, vacas que vejo diante de mim, quantos milhares de litros de leite deram neste último ano? E o que aconteceu com o leite que deveria ter alimentado seus bezerros para crescerem fortes? Cada gota desceu pelas goelas dos nossos inimigos. E vocês, galinhas, quantos ovos botaram neste ano e quantos desses ovos puderam chocar? O resto foi para o mercado para fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, onde estão seus quatro potrinhos, que deveriam ser o esteio e o prazer da sua velhice? Cada qual foi vendido com um ano de idade — e você nunca mais os verá. O que você ganhou em troca de seus quatro partos e de todo o seu trabalho nos campos, a não ser sua ração e sua baia? “E mesmo miseráveis, nossas vidas não acabam de um jeito natural. Eu mesmo não reclamo, pois tive sorte. Tenho doze anos e gerei mais de quatrocentos leitões. Essa é a vida natural de um cachaço. Mas no fim nenhum animal

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escapa da faca cruel. Vocês, leitões, sentados à minha frente, todos vão guinchar num cepo daqui a um ano. Todos nós passaremos por esse horror — vacas, porcos, galinhas, ovelhas, todos. Até os cavalos e os cães não escapam desse destino. Você, Sansão, no dia em que seus poderosos músculos perderem a força, Jones o venderá ao açougueiro, que cortará sua garganta e dará sua carne para os cães de caça. Quanto aos cães, quando ficarem velhos e perderem os dentes, Jones vai amarrar um tijolo em volta do seu pescoço e os afogará no lago mais próximo. “Não é claro como água, camaradas, que todos os males da nossa vida vêm da tirania dos seres humanos? Se apenas nos livrássemos do homem, a produção de nosso trabalho seria nossa. Quase da noite para o dia poderíamos nos tornar ricos e livres. O que devemos fazer então? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para a derrubada da raça humana! Essa é a minha mensagem para vocês, camaradas: Revolução! Não sei quando essa Revolução chegará, pode acontecer em uma semana ou em cem anos, mas sei, tão certo quanto esta palha está debaixo dos meus pés, que mais cedo ou mais tarde justiça será feita. Concentrem-se nisso, camaradas, pelo curto tempo de suas vidas! E, acima de tudo, transmitam minha mensagem àqueles que vierem depois de vocês, para que as gerações futuras continuem a luta até que sejamos vitoriosos. “E lembrem-se, camaradas, a resolução de vocês nunca deve vacilar. Nenhum argumento deve detê-los. Nunca ouçam quando lhe disserem que o homem e os animais têm um interesse em comum, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O homem não se dedica aos interesses de nenhuma criatura, exceto

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aos dele próprio. E entre nós, animais, que haja uma unidade perfeita, uma perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos. Todos os animais são camaradas.3” Nesse momento, começou um grande tumulto. Enquanto o Major falava, quatro ratos grandes saíram de suas frestas e sentaram-se para ouvi-lo. De repente, os cães os avistaram, e por pouco os ratos conseguiram correr de volta às suas tocas e salvar suas vidas. O Major levantou a pata pedindo silêncio. — Camaradas — disse —, eis aqui um ponto que precisa ser resolvido. As criaturas selvagens, como os ratos e os coelhos, são nossos amigos ou nossos inimigos? Vamos colocar isso em votação. Proponho a seguinte questão à assembleia: os ratos são camaradas?4 A votação foi logo realizada e ficou resolvido por uma esmagadora maioria que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos contra, os dos três cães e o da gata, que, depois descobriu-se, votou pelos dois lados. O Major continuou: — Tenho mais um pouco a dizer. Apenas repito, lembrem-se sempre de seu dever de inimizade pelo homem e seus modos e maneiras. Quem quer que O Velho Major, como Marx, demonstra a diferença entre as classes e determina a exploração que existe da classe dominante (os donos dos meios de produção) para com a explorada (os trabalhadores, obrigados a vender sua mão de obra para sobreviver). Conscientes da diferença entre as classes, os animais (e o proletariado) devem promover sua emancipação, fundando um governo de animais (ou de trabalhadores). 3

4 Neste trecho, o Major estabelece a votação por todos os animais, um procedimento que seria adotado a partir de então e que é claramente uma medida democrática que visa à participação de todos no processo político, defendendo seus interesses e necessidades por meio do debate e do voto. Assim, funda-se o princípio democrático que permeará o ideal da Revolução dos Bichos.

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ande sobre duas pernas é inimigo. Quem quer que ande sobre quatro patas, ou que tenha asas, é amigo. E lembrem-se também de que, na luta contra o homem, não devemos nos tornar como ele. Mesmo depois de vencê-lo, não adotem seus vícios. Nenhum animal deve viver numa casa, dormir numa cama, vestir roupas, beber álcool, fumar tabaco, tocar em dinheiro ou fazer comércio. Todos os hábitos do homem são maus. E, acima de tudo, nenhum animal deve jamais tiranizar sua própria espécie. Fracos ou fortes, inteligentes ou simplórios, somos todos irmãos. Nenhum animal deve matar qualquer outro animal. Todos os animais são iguais. “E agora, camaradas, vou lhes contar sobre o sonho que tive na noite passada. Mal posso descrevê-lo a vocês. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o homem desaparecer. Mas isso me lembrou algo que há muito eu esquecera. Muitos anos atrás, quando eu era um leitãozinho, minha mãe e as outras porcas cantavam uma antiga canção da qual elas conheciam apenas a melodia e as três primeiras palavras. Eu aprendi a melodia na minha infância, mas esqueci há muito tempo. Ontem à noite, no entanto, ela voltou no meu sonho e me lembrei. E, além do mais, também me voltaram os versos que, tenho certeza, foram cantados pelos animais de muito tempo atrás, e depois, esquecidos por gerações. Vou cantar essa canção agora, camaradas. Sou velho e minha voz está rouca, mas quando eu tiver ensinado a melodia, vocês poderão cantá-la melhor do que eu. Chama-se ‘Bichos da Inglaterra.”

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eçou a cantar. Como havia O velho Major pigarreou e com cantou razoavelmente, dito, sua voz era rouca, mas ele o entre Clementine e La e a melodia era animada, alg assim: Cucaracha. Os versos eram

Bichos ingleses e irlandeses,

Animais de todo clima e lugar, Ouçam as novas que trago Sobre o tempo futuro que virá. Cedo ou tarde este dia chegará, Que o Tirano derrubarão, E nos férteis campos ingleses Só os bichos caberão. s ventas, Argolas desaparecerão de nossa irão. E os arreios do nosso lombo sum Freios e esporas enferrujarão, estalarão. Cruéis chicotes nem em sonho imaginar, Riquezas maiores do que podemos Trigo e cevada, aveia e feijão. Trevo, talos, feno e pasto Só nossos nesse dia serão. ndecerão, Os campos da Inglaterra respla Águas mais puras correrão, Doces ventos soprarão, Saudando o dia da redenção.

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Por esse dia todos devemos lut ar, Mesmo que morramos antes desse amanhecer; Vacas e cavalos, gansos e perus, Lutemos para a liberdade nascer . Bichos da Inglaterra, bichos da Irlanda, Animais de toda terra e clima, Ouçam bem e espalhem as novas Sobre a era de ouro que virá. Bichos ingleses e irlandeses, Animais de todo clima e lugar, Ouçam as novas que trago Sobre a era de ouro que virá.5 5 Como o hino comunista “Internationale”, no qual se baseia, “Bichos da Inglaterra” desperta as emoções dos animais e estimula seu idealismo revolucionário. Como se espal ha rapidamente por toda a região, a música dá aos animais coragem e consolo em muit as ocasiões. O otimismo elevado das palavras “era de ouro”, no último verso, serve para mant er os animais focados nos objetivos da Revolução , de modo que ignorem o sofrimento ao longo do caminho. Vale notar que A Revolução dos Bichos está repleta de canções, poem as e slogans. Todas as músicas (“Bichos da Inglaterra ”, a ode de Mínimo a Napoleão, as palav ras de ordem das ovelhas e o hino revisado de Mínimo, “Fazenda dos Bichos, Fazenda dos Bichos”) servem como propaganda, um dos princ ipais canais de controle social. Ao fazer os animais da classe trabalhadora repetirem as mesm as palavras ao mesmo tempo, os porco s evocam uma atmosfera de grandeza e nobreza associada ao tema do poema ou letra recitado. As músicas também corroem o senso de indiv idualidade dos animais e os mantêm focad os no esforço pelo qual supostamente alcançarão a liberdade.

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Missão e ganha-pão: George Orwell na época em que trabalhava na BBC para o Departamento de Serviços Orientais durante a Segunda Guerra Mundial. O escritor odiava trabalhar como jornalista. Em 2008, The Times classificou Orwell em segundo lugar numa lista dos “Cinquenta maiores escritores britânicos desde 1945”. Homenagem póstuma: estátua de George Orwell na sede da BBC em Broadcasting House, em Londres. Na parede atrás, trecho do prefácio proposto pelo escritor para o livro A Revolução dos Bichos em defesa da liberdade de expressão em uma sociedade democrática: “Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”.

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Amor fugaz, porém inspirador: acredita-se que Sonia Mary Brownell (19181980), segunda mulher de George Orwell, tenha sido o modelo para Julia, a heroína do romance 1984. Sonia conheceu o escritor quando ela trabalhou como assistente de Cyril Connolly, um amigo dele do Eton College, na revista literária Horizon. Eles se casaram em 13 de outubro de 1949, quando Orwell já estava muito doente. O escritor morreu três meses depois. Sonia era amiga íntima de vários escritores e artistas, entre eles, Pablo Picasso, que, num desenho em homenagem a ela, anotou “Sonia”. A segunda mulher de Orwell morreu em Londres, de um tumor no cérebro, em dezembro de 1980.

Durante a infância, o escritor morou nesta casa em Shiplake, Henley-On-Thames, hoje bem preservada.

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A família George Orwell morou nesta casa de 1932 a 1939. A placa na parede externa registra o fato histórico.

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De outubro de 1934 a janeiro de 1936, o escritor trabalhou como assistente de vendas na livraria conhecida como Booklover’s Corner, na esquina da South End Rd com a Pond Street em Hampstead, Londres. Ele morava em um quarto no mesmo quarteirão. Como trabalhava poucas horas semanais na livraria, podia se concentrar em sua produção literária.

Renda suplementar: Orwell alugou esta casa de campo conhecida como “The Store” em Wallington, na região metropolitana de Londres, de 1936 a 1947, mas a sublocou a partir de 1940. Para complementar sua renda, ele dirigia uma loja na sala da frente.

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Orgulho de Richard Blair e vizinhos: de 1944 a 1947, Orwell viveu com o filho adotivo neste prédio de Canonbury Square, no bairro londrino de Islington. Richard segura cópia da placa afixada no prédio que informa aos turistas sobre a vida de Orwell ali.

Lápide no túmulo do escritor no cemitério de All-Saint, em Sutton Courtenay, em Oxfordshire, Inglaterra: George Orwell viveu menos de 47 anos, mas deixou obra monumental.

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Filmes,, Desenhos e Peças de teatro Baseadas em Orwell e seus Livros

Mrs. Orwell, peça encenada no Old Red Lion Theatre, no bairro de Islington, em Londres, em 2017, retrata a angustiosa vida do escritor com a sua segunda mulher, Sonia Brownell (1918-1980), quando ele já sofria de tuberculose. Peter Hamilton fez o papel de Orwell e Cressida Bonas, de Sonia. Orwell, que tinha ficado viúvo de Eileen O’Shaughnessy (19051945), casou-se com Sonia três meses antes de morrer.

Animação dos bichos e produtores: o desenho animado inspirado em A Revolução dos Bichos estreou quatro anos após a morte de George Orwell. A CIA (serviço de inteligência dos Estados Unidos) comprou os direitos da animação depois da morte do escritor. O trabalho, o segundo longa de animação britânico, foi dirigido por John Halas e Joy Batchelor. O ator Maurice Denham fez todas as vozes dos personagens. Em 1956 foi indicada ao Prêmio Bafta (Academia Britânica de Artes do Cinema e Televisão, em inglês) de melhor animação. A primeira adaptação, Handling Ships, era meramente institucional e não mereceu o mesmo reconhecimento.

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Com direção de John Stephenson e participação de atores consagrados como Patrick Stewart e Pete Postlethwaite, a adaptação do livro para TV estreou em 1999.

O sucesso do livro de George Orwell não para de crescer: quando adquiriu os direitos de adaptação de A Revolução dos Bichos em 2012, Andy Serkis pensava em um novo projeto de TV, mas depois optou por fazer um filme, que será produzido por Matt Reeves (Planeta dos Macacos: a origem), Rafi Crohn e Adam Kassan, juntamente com Serkis e seu parceiro de companhia, Jonathan Cavendish.

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Curios Cur iosida idades des

Segredo revelado: a primeira mulher de George Orwell, Eileen O’Shaughnessy, consentiu que o marido a traísse. A revelação está em matéria divulgada pelo portal Uol em 20 de janeiro de 2020 – o filho adotivo de Orwell comprou cartas trocadas entre o pai e a amante.

Anim A nimal als s - Pink P ink Fl Floyd o

O álbum Animals, da banda Pink Floyd, lançado em janeiro de 1977, é baseado no livro A Revolução dos Bichos. Na história do álbum, porcos e cachorros atuam como figuras controladoras e autoritárias, e ovelhas representam o povo oprimido.

Eng is Engl i h Ci Civi vill Wa Warr - The T h cla ash s

A arte da capa do álbum English Civil War, lançado pela banda The Clash em 1979, é uma cena inspirada em A Revolução dos Bichos.

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A Revolução dos Bichos, traduzido em dezenas de idiomas, é um best-seller mundial.

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Conheça mais

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