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Capítulo 1

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ones, da Fazenda1 do Solar, trancou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para se lembrar de fechar as vigias. Com o círculo

de luz da lanterna dançando de um lado para outro, cambaleou pelo pátio, tirou, com um chute, as botas na porta dos fundos, pegou um último copo de cerveja do barril da copa e foi para a cama, onde sua mulher já roncava.

Assim que a luz do quarto se apagou, começou uma grande agitação em todos os galpões da fazenda. Durante o dia, tinha corrido o boato de que o velho Major, o cachaço premiado numa grande exposição, tivera um sonho estranho na noite anterior e queria contá-lo aos outros animais. Foi combinado que todos deveriam se encontrar no celeiro assim que Jones se retirasse. O velho Major (era assim que o chamavam, embora tivesse participado da exposição com o nome de Beleza de Willingdon) era tão respeitado na fazenda, que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvir o que tinha a dizer.

1 Normalmente, a propriedade de Jones é caracterizada como “granja” nas traduções para o português por se tratar de uma pequena propriedade. No entanto, o termo “granja” pode referir-se exclusivamente a “propriedade rural voltada à criação de aves” (dicionário Michaelis), e as fazendas britânicas produzem diversos outros produtos agropecuários.

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Num dos cantos do grande celeiro, numa espécie de estrado, o Major2 já estava metido em sua cama de palha, sob um lampião pendurado numa viga. Ele tinha doze anos e já se tornara bastante corpulento, mas ainda era um porco de aparência majestosa, com um ar sábio e benevolente, apesar de suas presas nunca terem sido aparadas. Aos poucos, os animais foram chegando e se acomodando, cada qual do seu jeito. Primeiro vieram os três cães, Ferrabrás, Lulu e Cata-vento, e depois os porcos, que se deitaram na palha imediatamente em frente à plataforma. As galinhas se empoleiraram nos peitoris das janelas, os pombos voaram até as vigas, as ovelhas e as vacas se deitaram atrás dos porcos e começaram a ruminar. Os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria, entraram juntos, caminhando muito lentamente, pousando seus enormes cascos cobertos de pelos com todo o

2 Como social-democrata, Orwell tinha muito respeito por Karl Marx, o economista político alemão, e até por Vladimir Ilyich Lenin, o líder revolucionário russo. A crítica que ele tece em A Revolução dos Bichos tem pouco a ver com a ideologia marxista subjacente à Revolução, mas sim, com a perversão dessa ideologia pelos líderes posteriores. O Major, que representa Marx e Lenin, serve como fonte dos ideais que os animais continuam a sustentar, mesmo depois que seus líderes os traíram. Embora a interpretação do Velho Major seja amplamente positiva, Orwell inclui algumas pequenas ironias que permitem ao leitor questionar os motivos do venerável porco. Por exemplo, no meio de sua longa ladainha de reclamações sobre como os animais foram tratados pelos seres humanos, o Velho Major é forçado a admitir que sua própria vida foi longa, cheia e livre dos terrores aos quais os outros animais são submetidos. De algum modo, ele parece ter reivindicado uma falsa irmandade com os outros animais, a f m de angariar seu apoio à sua visão.

cuidado para evitar pisar em algum animalzinho escondido na palha. Quitéria era uma égua robusta, próxima da meia-idade, cuja silhueta nunca recuperara depois que tivera seu quarto potrinho. Sansão era um animal enorme, com quase dezoito palmos de altura e tão forte quanto dois cavalos comuns juntos. Uma mancha branca no focinho lhe dava uma aparência um tanto estúpida, e, na verdade, ele não era de uma inteligência lá muito brilhante, mas era respeitado por todos por causa de sua f rmeza de caráter e tremenda capacidade de trabalho. Depois dos cavalos, chegaram Maricota, a cabra branca; e Benjamin, o burro. Benjamin era o animal mais velho da fazenda e o mais temperamental. Raramente falava, e quando o fazia, quase sempre era algum comentário cínico — por exemplo, ele dizia que Deus havia lhe dado um rabo para espantar as moscas, mas antes não tivesse dado nem rabo nem moscas. Era o único entre os animais da fazenda que nunca ria. Se perguntavam por que, dizia que não tinha visto motivo para rir. No entanto, sem admitir abertamente, era dedicado a Sansão; os dois costumavam passar os domingos juntos no piquete além do pomar, pastando lado a lado sem nada dizer.

Os dois cavalos tinham acabado de se acomodar quando uma ninhada de patinhos, que tinham perdido a mãe, entraram no celeiro, piando debilmente e vagando de um lado para outro procurando um lugar onde não fossem pisoteados. Quitéria colocou sua perna dianteira à frente deles, e, assim protegidos, os patinhos se aninharam e imediatamente adormeceram. No último momento, Mimosa, a égua branca, fútil e vaidosa que puxava a charrete de Jones, entrou graciosamente, mastigando um torrão de açúcar. Tomou um lugar bem na frente e começou a menear a crina branca, esperando chamar a atenção para as f tas vermelhas

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que a enfeitavam. Por f m, veio a gata, que olhou em volta, como sempre, buscando o lugar mais quente, e f nalmente se espremeu entre Sansão e Trevo; assim acomodada, ronronou contente durante o discurso do Major sem ouvir uma palavra do que ele disse.

Todos os animais estavam agora presentes, exceto Moisés, o corvo doméstico, que dormia num poleiro atrás da porta dos fundos. Quando Major viu que todos estavam acomodados e aguardavam atentamente, pigarreou e começou: — Camaradas, vocês já ouviram falar sobre o estranho sonho que tive na noite passada. Mas voltarei ao sonho daqui a pouco. Antes, tenho outra coisa a dizer. Não acho, camaradas, que estarei com vocês por muito tempo mais e, antes de morrer, sinto que é meu dever passar a sabedoria que adquiri. Tive uma vida longa, muito tempo para ref etir, deitado sozinho no meu chiqueiro, e creio poder dizer que entendo a natureza da vida nesta terra tanto quanto qualquer outro animal. É sobre isso que quero falar com vocês.

“Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Vamos ser sinceros: nossas vidas são miseráveis, cheias de trabalho e curtas. Nascemos, recebemos apenas comida suf ciente para manter nossos corpos respirando, e aqueles que aguentam isso são forçados a trabalhar até o último sopro de suas forças; e no instante em que nossa utilidade termina, somos abatidos com crueldade hedionda. Nenhum animal na Inglaterra conhece o signif cado de felicidade ou lazer depois de completar um ano de idade. Nenhum animal na Inglaterra é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa é a pura verdade.

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Então, camaradas, qual é a natureza “ desta nossa vida? ”

“Mas isso é simplesmente a ordem da natureza? Será que esta nossa terra é tão pobre, que não pode oferecer uma condição de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, seu clima é bom, é capaz de produzir alimentos em abundância a um número muito maior de animais do que o existente. Esta fazenda sozinha sustentaria uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de ovelhas, e todos vivendo com um conforto e com uma dignidade que agora estão além da nossa imaginação. Por que, então, continuamos nessa condição miserável? Porque quase toda

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34 a produção de nosso trabalho nos é roubada pelos seres humanos. Aqui, camaradas, está a resposta para todos os nossos problemas. Resume-se numa só palavra, o homem. O homem é o único inimigo real que temos. Tire o homem de cena, e a causa da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.

“O homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não consegue correr rápido o suf ciente para pegar coelhos. No entanto, ele é o senhor de todos os animais. Ele os coloca para trabalhar, devolve a eles o mínimo necessário para não morrerem de fome, e o resto guarda para si. Nosso trabalho prepara o solo, nosso esterco o fertiliza e, no entanto, não há um de nós que possua mais do que sua própria pele. Vocês, vacas que vejo diante de mim, quantos milhares de litros de leite deram neste último ano? E o que aconteceu com o leite que deveria ter alimentado seus bezerros para crescerem fortes? Cada gota desceu pelas goelas dos nossos inimigos. E vocês, galinhas, quantos ovos botaram neste ano e quantos desses ovos puderam chocar? O resto foi para o mercado para fazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, onde estão seus quatro potrinhos, que deveriam ser o esteio e o prazer da sua velhice? Cada qual foi vendido com um ano de idade — e você nunca mais os verá. O que você ganhou em troca de seus quatro partos e de todo o seu trabalho nos campos, a não ser sua ração e sua baia?

“E mesmo miseráveis, nossas vidas não acabam de um jeito natural. Eu mesmo não reclamo, pois tive sorte. Tenho doze anos e gerei mais de quatrocentos leitões. Essa é a vida natural de um cachaço. Mas no f m nenhum animal

escapa da faca cruel. Vocês, leitões, sentados à minha frente, todos vão guinchar num cepo daqui a um ano. Todos nós passaremos por esse horror — vacas, porcos, galinhas, ovelhas, todos. Até os cavalos e os cães não escapam desse destino. Você, Sansão, no dia em que seus poderosos músculos perderem a força, Jones o venderá ao açougueiro, que cortará sua garganta e dará sua carne para os cães de caça. Quanto aos cães, quando f carem velhos e perderem os dentes, Jones vai amarrar um tijolo em volta do seu pescoço e os afogará no lago mais próximo.

“Não é claro como água, camaradas, que todos os males da nossa vida vêm da tirania dos seres humanos? Se apenas nos livrássemos do homem, a produção de nosso trabalho seria nossa. Quase da noite para o dia poderíamos nos tornar ricos e livres. O que devemos fazer então? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para a derrubada da raça humana! Essa é a minha mensagem para vocês, camaradas: Revolução! Não sei quando essa Revolução chegará, pode acontecer em uma semana ou em cem anos, mas sei, tão certo quanto esta palha está debaixo dos meus pés, que mais cedo ou mais tarde justiça será feita. Concentrem-se nisso, camaradas, pelo curto tempo de suas vidas! E, acima de tudo, transmitam minha mensagem àqueles que vierem depois de vocês, para que as gerações futuras continuem a luta até que sejamos vitoriosos.

“E lembrem-se, camaradas, a resolução de vocês nunca deve vacilar. Nenhum argumento deve detê-los. Nunca ouçam quando lhe disserem que o homem e os animais têm um interesse em comum, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O homem não se dedica aos interesses de nenhuma criatura, exceto

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36 aos dele próprio. E entre nós, animais, que haja uma unidade perfeita, uma perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos. Todos os animais são camaradas.3”

Nesse momento, começou um grande tumulto. Enquanto o Major falava, quatro ratos grandes saíram de suas frestas e sentaram-se para ouvi-lo. De repente, os cães os avistaram, e por pouco os ratos conseguiram correr de volta às suas tocas e salvar suas vidas. O Major levantou a pata pedindo silêncio. — Camaradas — disse —, eis aqui um ponto que precisa ser resolvido. As criaturas selvagens, como os ratos e os coelhos, são nossos amigos ou nossos inimigos? Vamos colocar isso em votação. Proponho a seguinte questão à assembleia: os ratos são camaradas?4

A votação foi logo realizada e f cou resolvido por uma esmagadora maioria que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos contra, os dos três cães e o da gata, que, depois descobriu-se, votou pelos dois lados. O Major continuou: — Tenho mais um pouco a dizer. Apenas repito, lembrem-se sempre de seu dever de inimizade pelo homem e seus modos e maneiras. Quem quer que

3 O Velho Major, como Marx, demonstra a diferença entre as classes e determina a exploração que existe da classe dominante (os donos dos meios de produção) para com a explorada (os trabalhadores, obrigados a vender sua mão de obra para sobreviver). Conscientes da diferença entre as classes, os animais (e o proletariado) devem promover sua emancipação, fundando um governo de animais (ou de trabalhadores). 4 Neste trecho, o Major estabelece a votação por todos os animais, um procedimento que seria adotado a partir de então e que é claramente uma medida democrática que visa à participação de todos no processo político, defendendo seus interesses e necessidades por meio do debate e do voto. Assim, funda-se o princípio democrático que permeará o ideal da Revolução dos Bichos.

ande sobre duas pernas é inimigo. Quem quer que ande sobre quatro patas, ou que tenha asas, é amigo. E lembrem-se também de que, na luta contra o homem, não devemos nos tornar como ele. Mesmo depois de vencê-lo, não adotem seus vícios. Nenhum animal deve viver numa casa, dormir numa cama, vestir roupas, beber álcool, fumar tabaco, tocar em dinheiro ou fazer comércio. Todos os hábitos do homem são maus. E, acima de tudo, nenhum animal deve jamais tiranizar sua própria espécie. Fracos ou fortes, inteligentes ou simplórios, somos todos irmãos. Nenhum animal deve matar qualquer outro animal. Todos os animais são iguais.

“E agora, camaradas, vou lhes contar sobre o sonho que tive na noite passada. Mal posso descrevê-lo a vocês. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o homem desaparecer. Mas isso me lembrou algo que há muito eu esquecera. Muitos anos atrás, quando eu era um leitãozinho, minha mãe e as outras porcas cantavam uma antiga canção da qual elas conheciam apenas a melodia e as três primeiras palavras. Eu aprendi a melodia na minha infância, mas esqueci há muito tempo. Ontem à noite, no entanto, ela voltou no meu sonho e me lembrei. E, além do mais, também me voltaram os versos que, tenho certeza, foram cantados pelos animais de muito tempo atrás, e depois, esquecidos por gerações. Vou cantar essa canção agora, camaradas. Sou velho e minha voz está rouca, mas quando eu tiver ensinado a melodia, vocês poderão cantá-la melhor do que eu. Chama-se ‘Bichos da Inglaterra.”

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O velho Major pigarreou e começou a cantar. Como havia dito, sua voz era rouca, mas ele cantou razoavelmente, e a melodia era animada, algo entre Clementine e La Cucaracha. Os versos eram assim:

38 Bichos ingleses e irlandeses, Animais de todo clima e lugar, Ouçam as novas que trago Sobre o tempo futuro que virá. Cedo ou tarde este dia chegará, Que o Tirano derrubarão, E nos férteis campos ingleses Só os bichos caberão.

Argolas desaparecerão de nossas ventas, E os arreios do nosso lombo sumirão. Freios e esporas enferrujarão, Cruéis chicotes nem em sonho estalarão.

Riquezas maiores do que podemos imaginar, Trigo e cevada, aveia e feijão. Trevo, talos, feno e pasto Só nossos nesse dia serão.

Os campos da Inglaterra resplandecerão, Águas mais puras correrão, Doces ventos soprarão, Saudando o dia da redenção.

Por esse dia todos devemos lutar, Mesmo que morramos antes desse amanhecer;

Vacas e cavalos, gansos e perus, Lutemos para a liberdade nascer. Bichos da Inglaterra, bichos da Irlanda, Animais de toda terra e clima, Ouçam bem e espalhem as novas Sobre a era de ouro que virá. Bichos ingleses e irlandeses, Animais de todo clima e lugar, Ouçam as novas que trago Sobre a era de ouro que virá.5

5 Como o hino comunista “Internationale”, no qual se baseia, “Bichos da Inglaterra” desperta as emoções dos animais e estimula seu idealismo revolucionário. Como se espalha rapida-mente por toda a região, a música dá aos animais coragem e consolo em muitas ocasiões. O otimismo elevado das palavras “era de ouro”, no último verso, serve para manter os animais focados nos objetivos da Revolução, de modo que ignorem o sofrimento ao longo do caminho. Vale notar que A Revolução dos Bichos está repleta de canções, poemas e slogans. Todas as músicas (“Bichos da Inglaterra”, a ode de Mínimo a Napoleão, as palavras de ordem das ovelhas e o hino revisado de Mínimo, “Fazenda dos Bichos, Fazenda dos Bichos”) servem como propaganda, um dos principais canais de controle social. Ao fazer os animais da classe trabalhadora repetirem as mesmas palavras ao mesmo tempo, os porcos evocam uma atmosfera de grandeza e nobreza associada ao tema do poema ou letra recitado. As músicas também corroem o senso de individualidade dos animais e os mantêm focados no esforço pelo qual supostamente alcançarão a liberdade. qual supo

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Missão e ganha-pão: George Orwell na época em que trabalhava na BBC para o Departamento de Serviços Orientais durante a Segunda Guerra Mundial. O escritor odiava trabalhar como jornalista. Em 2008, T e Times classif cou Orwell em segundo lugar numa lista dos “Cinquenta maiores escritores britânicos desde 1945”.

Homenagem póstuma: estátua de George Orwell na sede da BBC em Broadcasting House, em Londres. Na parede atrás, trecho do prefácio proposto pelo escritor para o livro A Revolução dos Bichos em defesa da liberdade de expressão em uma sociedade democrática: “Se a liberdade signif ca alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir”.

Amor fugaz, porém inspirador: acredita-se que Sonia Mary Brownell (19181980), segunda mulher de George Orwell, tenha sido o modelo para Julia, a heroína do romance 1984. Sonia conheceu o escritor quando ela trabalhou como assistente de Cyril Connolly, um amigo dele do Eton College, na revista literária Horizon. Eles se casaram em 13 de outubro de 1949, quando Orwell já estava muito doente. O escritor morreu três meses depois. Sonia era amiga íntima de vários escritores e artistas, entre eles, Pablo Picasso, que, num desenho em homenagem a ela, anotou “Sonia”. A segunda mulher de Orwell morreu em Londres, de um tumor no cérebro, em dezembro de 1980.

Durante a infância, o escritor morou nesta casa em Shiplake, Henley-On-T ames, hoje bem preservada.

A família George Orwell morou nesta casa de 1932 a 1939. A placa na parede externa registra o fato histórico.