Campus Repórter 7

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Entrevista Para Aldo Paviani planejamento urbano no Brasil é excludente

Reincidência

Punição eterna de quem vai para a prisão

TOCANTINS Em meio à soja, a luta desigual entre índios, posseiros e fazendeiros

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Carta da editora

Nesta edição número sete de Campus Repórter, nossos jovens profissionais – de reportagem em texto e imagem e de produção gráfica – se pautaram pelos contrastes de nossa sociedade. Não se deve concluir, no entanto, que seja uma revista pesada. Todo contraste se apresenta na relação entre luz e zonas cinzentas. Na matéria de capa, o tema central foi o embate entre a riqueza dos fazendeiros do agronegócio da soja e a miséria de índios e posseiros no nordeste do Tocantins. Uma relação difícil, de desencontros culturais e sociais, de preconceitos oferecidos como verdades absolutas. A curiosidade sobre as sombras que envolvem a reincidência criminal é o motor para entender as idas e vindas, dos que cumprem penas, pelo corredor límbico que leva à prisão. Ler Foucault, em Vigiar e Punir, ajudou a reportagem a percorrer o caminho tão delicado quanto ocultado na sociedade: a punição social para os que erram – os excluídos, especialmente – é eterna. Apresentada no formato de história em quadrinhos, também é de contraste a entrevista da edição, com o professor Aldo Paviani, especialista em geografia urbana. Na conversa com as repórteres, que se encontraram com ele após meses de pesquisa sobre o tema, a tradução do que normalmente chamamos “caos urbano” para o significado de “planejamento da exclusão”. As páginas com diagramação assimetricamente equilibrada, qual uma pintura de Mondrián, tratam de um assunto que também incomoda a sociedade: a esquizofrenia. Histórias paralelas mostram a relação com a arte – e a matemática – daqueles que têm transtorno mental e que, em surto, não conseguem perceber que estão em outro plano de realidade. Vladimir Carvalho, documentarista preocupado com as questões sociais, é o personagem de experimentação de um gênero jornalístico: o perfil. Para mostrar o homem sem restringi-lo ao cinema, a reportagem esteve na Paraíba, em busca da origem do cineasta, que é também um entalhador cuidadoso no trato com a madeira. A literatura, na número sete, ficou por conta do jornalista e professor Paulo Paniago, que nos ofereceu micronarrativas inéditas sobre as incompreensões cotidianas. Esta também é uma edição de minha despedida como editora executiva da Campus Repórter. A partir do próximo número o professor Sérgio de Sá assume esta tarefa, tão difícil quanto gratificante, de coordenar um grupo de jovens que também acreditam na aventura da reportagem. Boa leitura. Márcia Marques


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índice

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06 | Genial arte da loucura 16 | O pai, o artesanato, o cinema 26 | Campos de riqueza e abandono 38 | Corredor dos Esquecidos 48 | Entrevista com Aldo Paviani 54 | Gente apaixonada, traições e um final feliz


GENIAL ARTE DA LOUCURA John é um nome tão popular nos Estados Unidos quanto José no Brasil. Para poder diferenciá-los, só com o sobrenome. John nasceu em Bluefield, interior do estado da Virgínia, na terra do Tio Sam. Era 1928, um ano antes da maior crise econômica do século XX. José deu os primeiros berros em São Paulo. Era 1967, meses antes do início de 1968, o ano que para muitos não acabou. Interessado em números, John tirou o canudo de Matemática, décadas depois, na Pensilvânia. Também simpático a logaritmos, catetos e derivadas, José virou engenheiro pela Poli/Universidade de São Paulo (USP). John desenvolveu esquizofrenia aos 30 anos. José, aos 27. Texto Cristiano Zaia e Max Melo Diagramação Juliana Reis Fotos Cristiano Zaia, Flávia Corpas e Umberto França

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José Orsi desenvolveu esquizofrenia aos 27 anos. Aos 42 ganhou o Concurso de Pintura Arte de Viver

John se empenhou num projeto da Marinha estadunidense e levava tanto jeito para geometria que criou a famosa Teoria dos Jogos. José quase foi aprendiz de Maurício de Souza, o criador da Turma da Mônica, e trabalhou na Microsoft, em Redmond, Grande Seattle. John quase fez pósgraduação em Harvard, a principal universidade ianque. José fez pós em economia no Mississipi. John foi Prêmio Nobel de Economia em 1994. Mesmo ano em que José sofreu a primeira crise esquizofrênica e deixou os quadros de lado. John é Nash, reconhecido no mundo todo por sua genialidade matemática. Teve até a vida retratada no premiado filme Uma Mente Brilhante (2001), que levou quatro estatuetas no Oscar. José é Orsi, ou Zé, desconhecido no Brasil, e ganhador, em 2009, do IV Concurso de Pintura Arte de Viver (Produtora Lado a Lado/ Indústria farmacêutica Janssen-Cilag), dedicado a pacientes psiquiátricos. Este prêmio lhe rendeu R$ 3 mil, mas o telefone de casa não parou de tocar. Surpreso, José recheou jornais, revistas e sites no Brasil. John Nash é gênio. Quem conhece José, também garante o mesmo de sua pintura. Nash ganhou o maior prêmio acadêmico do planeta aos 66 anos. José ganhou o Arte de Viver aos 42.

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Às vezes é preciso empunhar títulos e medalhas para merecer gratidão. Não é este detalhe, porém, que faz de José menor ou de Nash maior. Mesmo assim, alguns prêmios e projetos, sob a batuta do governo ou da iniciativa privada, vêm abrindo portas para vários José Orsi rabiscarem telas com talento. “Acredito com certeza que um psicótico pode ser um grande artista”: Umberto França, artista plástico mineiro, que vive no Rio e ensina a professores, artistas e pacientes psiquiátricos um método próprio de arteterapia, que ele desenvolveu em instituições de saúde mental na Holanda. O artista elaborou forma agressiva de instigar os pacientes a transgredirem as limitações. A mensagem que fica é que mesmo se tratando de doença, áreas da saúde mental provam que é possível conviver com um transtorno mental e ainda ser grande artista na companhia dele. Arthur Bispo do Rosário, talvez o principal artista que conviveu com uma psicose no Brasil, vem mostrando isso, em exposições pelo mundo inteiro, ainda que depois de morto. Muitos outros podem, mas por enquanto, seguem anônimos, assim como Zé. “Fui a Paris no ano passado e visitei o museu de (Pablo) Picasso. Saí de

lá jurando que vários daqueles quadros eram dos meus pacientes”: Ana Cristina Rizzato, psiquiatra e adepta da arte livre na terapia que pratica com os pacientes, em Niterói (RJ). Ela tem uma clínica que leva seu nome. Biruta, doido varrido, maluco beleza, lelé da cuca. Estas são as fotografias que normalmente se produz de quase 1 milhão de brasileiros – contingente aproximado da população com algum sofrimento psíquico, segundo estudos científicos. Cerca de 1% de toda população desenvolve esquizofrenia, geralmente dos 15 aos 25 anos. É a doença mental mais conhecida. E chama atenção por outras imagens que associam o paciente a alguém que ouve vozes, delira, além de se tornar retraído socialmente e depressivo. Em episódios de surtos ou crises, a pessoa esquizofrênica não se dá conta da imersão em “outro plano de realidade”. “As pessoas têm medo de pessoas esquizofrênicas, um sentimento que ainda está impregnado na sociedade.” Jorge Cândido de Assis, partidário desse pensamento, é vice-presidente da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (Abre) e acredita que a discriminação à pessoa com transtorno mental sempre vai persistir.

John Nash e José foram exceção entre os esquizofrênicos: apresentaram os primeiros traços da doença só depois dos 25, realidade de mais ou menos 20% das pessoas com esquizofrenia, como diz o psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Wulf Dittnar.

“Fui a Paris no ano passado e visitei o museu Picasso. Saí de lá jurando que vários daqueles quadros eram dos meus pacientes” Ana Cristina Rizzato O mais surpreendente para o professor da Fiocruz Paulo Amarante, ativista da reforma psiquiátrica no Brasil, é reconhecer a mudança desse estereótipo de “doido” para a própria pessoa transtornada. “No começo do tratamento, a gente pergunta ‘quem é você?’ e a pessoa responde ‘sou fulano, esquizofrênico ou sicrano, bipolar’. Depois, elas se apresentam como artistas, pintores.” O psiquiatra ajudou a implementar o Prêmio Loucos pela Diversidade, no ano passado, pelo Ministério da Cultura. Destino de 362 projetos em sua primeira edição, o Prêmio Loucos pela Diversidade, do Ministério da Cultura (MinC) contemplou 39 iniciativas de pintura.

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Vida x psique | Zé ainda sofre. “Tenho dois medos na vida: primeiro, virar mendigo e segundo, morrer.” Os momentos de depressão e mau humor trazem insegurança. E fraqueza: “Ela (doença) me tira a possibilidade de ser comum, ter uma companheira. Tenho medo de ‘desgraçar’ a vida de alguém, como foi o caso do papai com a mamãe.” O pai, técnico eletrônico, também tinha esquizofrenia e faleceu aos 42 – mesma idade de Zé, hoje –, vítima de um atropelamento. A aproximação maior com a pintura veio aos 15 anos. Foi quando ingressou na Escola Panamericana de Artes, pensando em produzir HQs. Terminou estudando desenho e publicidade na mesma escola. De temas como trator, tanques de guerra e jipes, na adolescência, Zé pintaria modelo vivo nu, na Pinacoteca de São Paulo, a partir do último ano de faculdade. Inclusive foi no ambiente acadêmico que ele fundaria a Semana de Arte da Poli (Sapo). Mulheres nuas inspiraram quase a totalidade de sua produção artística. As datas dessas telas variam de 1992 a 1994. Até a noiva Meire – que ele prefere identificar apenas assim – posou para um de seus quadros. E Vera – de sobrenome desconhecido por ele – que emprestaria o nome a outra tela, revisitada mais de 15 anos depois, para vencer o IV Concurso de Pintura Arte de Viver. Zé namorou Meire por quatro anos, ficando noivo por nove meses. Nos trabalhos com nu, Zé vivia um dilema: não sabia se assumia a arte de vez ou se tocava a engenharia. De repente, a crise de identidade avassalou Zé. O estopim: o fortalecimento do stress, segundo ele mesmo. Subitamente, aos 27, o primeiro surto: a TV começava a falar com ele. O primeiro diagnóstico, contudo, acusava bipolaridade e depressão. Indicado por uma prima, foi levado ao psiquiatra por um colega de trabalho.

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“De um dia para o outro, estava tomando Lexotan, antipsicóticos, reguladores de humor e neurolépticos. Larguei o ateliê, o Tai Chi Chuan e a Meire. Pesava 73kg, passei a pesar 91kg em dois meses, e fui parar no Hospital-Dia do Itaim (bairro de São Paulo).” Daí, até retomar alguma pincelada, passaram-se seis anos, e mesmo assim, pintar só em terapia, a partir do ano 2000. Como faz até hoje. Ao todo, foram quatro surtos de esquizofrenia: 1994/1995, 1998, 1999/2000 e 2001, sempre na companhia de delírios e alucinações.

“Ela (doença) me tira a possibilidade de ser comum, ter uma companheira. Tenho medo de ‘desgraçar’ a vida de alguém, como foi o caso do papai com a mamãe”

Depois de seis anos sem pintar, José Orsi volta a pincelar, mas apenas durante a terapia

José Orsi Delírios provocavam sua psique: achou que ia reencarnar numa criança negra e também numa família egípcia, pensou em ser dissecado vivo, liderar uma guerra atômica e até se culpar por ter executado a pequena Jon Benét Patricia Ramsey, 6 anos, num famoso crime, de 1995, que chocou a pacata Boulder, no Colorado. A tragédia, que até os dias de hoje permanece sem ser desvendada, foi amplamente divulgada pela mídia norte-americana devido aparições frequentes de Jon em concursos de beleza. Também no município do Mississipi quando cursava MBA em Economia, na mesma época, sentiu na pele a pior alucinação: “Acordei numa terça-feira achando que era Adão e tinha que receber a chave da cidade das mãos de Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso. Após a cerimô-

nia, achei que iria semear a terra. Então saí nu para fora do alojamento em que morava e pulei na piscina. O gerente do condomínio me vestiu e um policial me prendeu em seguida. Por instantes, achei que era uma pegadinham estava sendo filmado pela TV e escutado pela Rádio CBN. De lá fui para um hospital, com espasmos. Fiquei internado por duas semanas. Essa foi minha pior loucura.” Zé voltaria para o Brasil, onde se trataria por cinco meses. Ainda voltaria para o Mississipi, onde concluiria o MBA em 1999. Arte viva x mente | A esquizofrenia rendeu 40kg a mais para José Orsi desde o primeiro surto, uso diário de um antipsicótico, dois estabilizadores de humor e um antidepressivo. Mesmo assim, a paixão pelo pincel não morreu. “Até a bem pouco tem-

po, pensei em fazer vestibular para Artes Plásticas na USP.” Anos distante da Pinacoteca e o anseio de tinta “murchou” durante o agravamento da psicose. Ao longo da vida, Zé também mudou o humor. Faz parte do sofrimento. Esse quadro elevou o diagnóstico ao patamar de uma esquizoafetividade (esquizofrenia + transtorno bipolar, que caracteriza depressão crônica e mudança acentuada de humor). A conquista do prêmio de pintura ganho ano passado, entretanto, reativou visitas rotineiras ao antigo ateliê nos fundos da cozinha. Nesse ponto, uma mulher foi fundamental: Cecília Villares, a Ciça. Acima de tudo, amiga. E também terapeuta ocupacional e fundadora da Abre, onde Zé trabalha hoje como diretor-adjunto. A Janssen-Cilag, indústria farmacêutica patrocinadora do Concurso


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Umberto França criou um método de terapia que ajuda os pacientes a transgrediderem suas limitações

Arte de Viver, entregou um kit para serem oferecidos a pacientes. “Dei a ele e falei: ‘vai para casa e faça qualquer coisa’. Ele não queria, só que não se dá conta do quanto é bom”, diz Ciça, que também trabalha na Universidade Federal de São Paulo. No contexto de volta à pintura, torna-se inevitável a tela Vera. Vera foi uma modelo conhecida nas rodas de arte de São Paulo e preferida do artista plástico Fernando Carvalho, reconhecido na capital pelos trabalhos de nu. Do corpo de Vera veio um estudo baseado em desenho a carvão feito na Pinacoteca de São Paulo. Pesquisa que o fez pintar de novo em 2009. Antes disso, só em 2000, nas aulas de terapia da Santa Casa de Misericórdia. A última vez para valer foi 1994. Mas a tela Vera, 1º lugar no concurso Arte de Viver, foi concebida em mais ou menos 20 minutos. “Minha arte é visceral.” Zé reforça que a relação das pinturas atuais (Vera e algumas tera-

pêuticas) com o sofrimento psíquico que o vem perseguindo é nula. No entanto, é possível ver em Vera cores mais fortes e pesadas: azul escuro, amarelo escuro, vermelho escuro. Os outros quadros que decoram as paredes do lar de Zé também trazem mulheres nuas e algum peso: branco e rostos mais definidos. Mas até hoje verdadeiros ícones da pintura europeia o impressionam: Egon Schiele, Vincent Van Gogh, Henri de Toulouse-Lautrec e Edgar Degas. O arteterapeuta Umberto França, que trabalhou com pacientes psiquiátricos na Holanda e hoje no Brasil, traduz a estética da arte na psicose: “Se você trabalha com depressivos, não vai usar cores escuras. Cada atitude no trabalho plástico, cada solução, correspondem à sua vida no plano existencial, ao cotidiano.” Para a médica Ana Cristina Rizzato, que já teve paciente 4º colocado no Arte de Viver, psicoses, em geral, desgastam o poder de disciplina

“Dei o kit na mão dele e falei: ‘vai para casa e faça qualquer coisa’. Ele não queria, só que não se dá conta do quanto é bom” 12

Cecília Villares

artística. “Um esquizofrênico, por exemplo, não tem a persistência de um artista. Por mais que se medique, terá momentos de instabilidade.” Replicar | A experiência dos profissionais saúde mental revela que a produção artística entre pessoas que convivem com algum sofrimento psíquico, no Brasil, ainda depende muito de instituições psiquiátricas. Não é delírio, porém, reconhecer tentativas de ampliar o espaço para esses artistas. Entre os psi, um senso comum: não é viável associar uma pessoa a um “artista psicótico”, como se ele sempre carregasse o estigma de “louco”, sem poder ser apenas artista. O professor Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz/Rio, discute o assunto: “Você me pergunta: ‘pessoa com transtorno (mental) pode ser artista’? Sim, o negro e a mulher também. Precisamos mudar o conceito de doença e trabalhar na arte”

Amarante trabalhou por volta de 12 anos com a doutora Nise da Silveira, a transformadora da terapia ocupacional no Brasil e criadora do Museu de Imagens do Inconsciente, em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. “Esses editais servem para o MinC mapear o que está acontecendo. A gente premiou os melhores projetos com desenvolvimento da proposta e qualidade estética. Por isso premiamos poucas entidades e mais pessoas físicas e autônomas”. A avaliação é da terapeuta ocupacional Patrícia Dorneles, que coordenou o Loucos pela Diversidade, e hoje acompanha a formatação do segundo edital, que será válido para 2011. Patrícia, que também leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dá o tom dos próximos passos do prêmio: “Agora a gente quer que as pessoas vivenciem experiências culturais dentro de espaços culturais. A sociedade tem que acolher essa di-


versidade cultural e o caminho do prêmio é fazer inclusão sociocultural.” Inclusão é o que faz Flávia Corpas, psicóloga e idealizadora do Cartografias da Criação, um site nascido de edital da Funarte. Em 2007, ela teve a ideia de mapear a produção de arte contemporânea entre os pintores com alguma psicose, pois, como diz, não existe espaço para essa produção. “Temos acervos muito significativos, que não circulam por motivo histórico, cultural. Essa produção ainda continua à margem. Por quê?” Atualmente, Flávia está filmando um documentário sobre Bispo do Rosário.

“Tem muita gente boa, tem muito trabalho bom enfurnado em hospital psiquiátrico, escondido em muitos CAPs pelo país” Flávia Corpas

Flávia quer mesmo mapear o país. Por enquanto, o projeto chegou ao Rio e a Porto Alegre. Normalmente, ela fica sete dias nos centros psiquiátricos ou hospitais, num contato inicial com os potenciais pintores. Meses depois, volta para a cidade de câmera em punho para documentar a produção dos artistas. Esse traba-

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lho deu origem ao documentário homônimo ao site, em 2008. Flávia promoveu, ainda, com trabalhos garimpados no Cartografias, uma exposição em Cuba, na Bienal de Artes e Saúde Mental de Havana, no fim do ano passado. “Tem muita gente boa, muito trabalho bom enfurnado em hospital psiquiátrico, escondido em CAPs (Centro de Atenção Psicossocial).” Ralph Justino também achou que os “loucos” deveriam ser valorizados pela arte. Ex-secretário de cultura da cidade mais estigmatizada pela loucura no Brasil, ajudou a criar o Festival da Loucura de Barbacena, em 2005. “Quando cheguei lá, conheci o Museu da Loucura e fiquei impressionado com a cidade. No início, quando comentei que queria fazer um festival, o prefeito foi na rádio falar que não daria certo. O ser humano se transforma através da loucura.” Em duas praças e uma universidade, o festival toma quatro dias do calendário da “Cidade dos Loucos”. Filmes, peças de teatro e shows musicais compõem a gama de atividades. O festival acontece todos os anos, em meados de julho. Justino conta que procurou trazer para os shows artistas com estigma de “doidos”. “Se Raul Seixas estivesse vivo, com certeza marcaria presença”, diz.

Mãos e olhos de Rogéria | Rogéria está com os mesmos 42 anos de Zé. Mora na Cidade Maravilhosa, sozinha e de aluguel. Também pinta, desde os sete. Rogéria é Barbosa. O que mais gosta de pintar são mãos. “Até hoje não descobri o que quer dizer. Meu mundo pode estar dentro de um quadro.” No mesmo ano em que Zé se sagrou 1º colocado no Concurso Arte de Viver, Rogéria ganhou R$ 7,5 mil por uma série de quadros que inscreveu na primeira edição do Loucos pela Diversidade. Rogéria tem transtorno de humor. Foi casada por seis anos e aposentada aos 33 anos das salas de aula do ensino primário. Coleciona mais de 50 internações em hospitais, uma média de quatro por ano, cerca de 40 surtos de variados graus. “Fico em depressão, me machuco. Já coloquei prego na barriga. O mais grave foi agora, que cortei a barriga com tesoura e coloquei um prego. Tive hemorragia e fiz cirurgia. Já quebrei a perna e o braço. Eu injeto prego, grampo, tudo no corpo.” Rogéria é uma das artistas documentadas pelo projeto Cartografias da Criação. Uma de suas telas conheceu Cuba, em 2009, por conta da relação com a psicóloga Flávia Corpas, do projeto. Ela conta que vende quadros por até R$ 100. “Pinto uns 10, 15 quadros por dia com papel, lápis. Dizem que a minha história é parecida com a do Van Gogh.” Essa comparação ela explica pelo hábito de se autoflagelar. “O que faço de arte é o que vejo e não o que sinto.” Na assinatura dos quadros, o nome “Crystal”. Ela explica que é um simbolismo em torno do autoflagelo. “Como posso destruir as coisas que eu gosto dentro de mim, eu não gosto de ser triste com os outros, mas sou.” Rogéria ainda tem os pais vivos e cinco irmãos. Geralmente, fica em casa. Costuma frequentar quase todos os dias o CAPs Lima Barreto, de Bangu (bairro do Rio), para ver “pessoas normais”, como diz. Aos domingos, religiosamente, vai para o Centro Espírita Alan Kardec, no bairro de Sulacap. A aproximação com a doutrina espírita veio após uma de suas crises, quando o piscólogo que a tratava a pôs em contato com amigos espíritas, há 12 anos. O último orgulho de Rogéria foi presentear, com um quadro, o presidente Lula, na inauguração de um CAPs na favela da Rocinha. O governador do Rio, Sérgio Cabral, a presidente eleita, Dilma Rousseff, e o ministro da Saúde, Gomes Temporão, também estiveram. Foi no início deste ano.•

O que Rogéria mais gosta de pintar são mãos


Perfil Vladimir Carvalho

A simplicidade de Vladimir Carvalho impressiona. Sorridente e acolhedor, ele tem sempre uma boa história para contar, sem se lembrar de que é uma das figuras mais importantes do cinema brasileiro. Todos os causos são reforçados pelo forte sotaque paraibano, que ele nunca deixou para trás. Aliás, o Nordeste nunca ficou para trás. Apesar de gostar muito de Brasília, ele se queixa da falta que a Paraíba lhe faz. “Do Nordeste eu sinto falta até da seca, da música, de tudo. A seca é uma das paisagens mais lindas que já vi. Eu estou pagando uma penitência vivendo fora do Nordeste. Eu saí do Nordeste, mas o Nordeste não saiu de mim.” Texto Caroline Aguiar Fotos Maíra Morais Diagramação Maurício Chades

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– A gente precisa tirar esse menino daqui. Acho que está na hora de mandá-lo para Recife. À noite, Vladimir escutava a conversa dos pais por trás da porta. A sentença vinha depois de uma bronca levada durante o almoço. O motivo da preocupação do pai era uma miniatura de faca inofensiva, mas carregada de significados. Vladimir havia passado a manhã na casa do avô, onde vasculhar os baús era um passatempo. Em uma das revistas, mergulhado no meio de todos os tipos de objetos, o garoto encontrou uma pequena faca, com a bainha em couro minuciosamente trabalhada. – Vovô, posso ficar com essa faca? – Pode sim, meu filho. Leva pra você. Orgulhoso do presente, Vladimir colocou a pequena faca na cintura, reproduzindo a postura dos adultos, e seguiu para casa. Com o tronco desnudo, pontuado apenas pelo suspensório que segurava a parte de baixo da vestimenta, o objeto ficava à mostra no cós da bermuda. Desfilando a bainha e a

O nome Vladimir é uma homenagem a Vladimir Ilyich Ulyanov Lenin

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faca, ele sentou-se à mesa para almoçar. A reação do pai, Luís Martins, foi imediata: – O que é isso aí? – Foi meu avô quem me deu. – Me dê aqui, você não vai usar faca. Pode ser perigoso pra você. Vladimir nunca mais veria o objeto, mas o guardaria para sempre na memória. Dois meses depois do acontecido, ele estaria de mudança para a casa de tia Alaíde, em Recife, onde terminaria o curso primário. A transferência tinha uma única motivação: afastar Vladimir dos costumes rudes do interior da Paraíba e também das amizades que o desviavam dos estudos. Apesar de ter nascido e vivido no interior, Mestre Lula, como o pai era conhecido, era um homem adiantado para o seu tempo. Impregnado pelos ideais comunistas, ele foi vereador da cidade e, mesmo estando fora dos cargos públicos, era opinião importante a ser ouvida por governantes e cidadãos. O posicionamento político seria transferido ao filho, a começar pelo nome. Vladimir é uma homenagem a Vladimir Ilyich Ulyanov Lenin e, anos mais tarde, a

herança de Mestre Lula resultaria na filiação ao Partido Comunista e na participação nas Ligas Camponesas. A mudança para Recife era apenas a primeira de várias que o afastariam geograficamente da pequena Itabaiana. Foi nessa pequena cidade do interior da Paraíba, localizada a 70 km de João Pessoa, que Vladimir nasceu e viveu até os oito anos de idade. Na juventude, morou em Salvador, na Bahia, onde concluiu o curso de Filosofia, e depois retornou à Paraíba, desta vez para João Pessoa. Anos mais tarde, seguiria para o Rio de Janeiro, que o abrigou das ameaças da ditadura e onde teve oportunidade de alavancar a carreira de cineasta. Em 1969, Vladimir desembarcou em Brasília. A capital, que à primeira vista lhe pareceu fria e só podia ser encarada como um ponto de passagem, tornou-se local de morada há 40 anos e palco de muitos sonhos e realizações. Lembranças da infância | As ruas largas de Brasília e a opulência da arquitetura dos prédios públicos contrastam com a simplicidade ita-

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baianense impregnada em Vladimir. Ele guarda os passos calmos, o semblante tranquilo, o sorriso faceiro e os gestos fortes dos cabras que costumava ver passando pelas ruas de Itabaiana. Debruçado na janela, o pequeno Vladimir assistia a população da cidade se misturando aos rudes vaqueiros nos dias de feira de gado. Também era de camarote que ele presenciava as cheias do rio e a passagem dos trens, cenas que o marcariam e passariam a fazer parte das fotografias de um cineasta que começava a se formar. O motivo para passar horas na janela era a fragilidade da saúde. Muito suscetível à bronquite e filho único até os oito anos, Vladimir sofria uma série de restrições, uma delas era a proibição de tomar banho no rio. Mas o que parecia um problema, acabava por virar aventura. Driblar o cerco dos pais, um dos passatempos preferidos. Quando o bloqueio era furado, o menino tomava o rumo do Beco de Zé Uma sensação da infância Rodrigues e semarcaria Vladimir para guia às pressas sempre: o cheiro do cedro para o rio, onde alcançava a garotada. Quando a missão fracassava, restava-lhe debruçar-se sobre o parapeito da janela e observar o trote das manadas e as enchentes do rio. A geografia de Itabaiana favorecia a diversão de Vladimir. Pela linha de trem que corta a cidade, passavam resfolegando os cavalos de ferro, como o próprio cineasta intitulou os trens. Hoje, os trilhos continuam marcando a divisão entre as partes alta e baixa da cidade. No entanto, os trens tornaram-se raridade. As pedras da Rua do Carretel, que têm

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o início marcado pela linha férrea, já não presenciam as festas de antes. Na infância de Vladimir, o local era conhecido por ser o prostíbulo da cidade. Hoje, o que se vê é uma pequena ladeira sem vida. As demais ruas de Itabaiana simbolizam a calmaria das cidades do interior parabaino. Passagens estreitas, as fachadas da casas emendadas umas nas outras e, no centro da cidade, a Igreja Matriz. Com suas torres medianas e paredes amarelas, o local continua sendo referência na cidade. Também é em torno dela que se reúnem os vários motoboys que tomaram conta da cidade e se apresentam como uma boa alternativa de transporte para os moradores. Ao fundo da igreja, resiste o coreto de ferro construído pelos ingleses nos tempos áureos de Itabaiana. Uma sensação da infância que marcaria Vladimir para sempre: o cheiro do cedro. O aroma anunciava a chegada do pai em casa. O manuseio da madeira para a fabricação de móveis o deixava impregnado daquele perfume inconfundível. Depois de passar o dia fora, ele pegava o pequeno Vladimir no colo e ia brincar. O perfume do cedro lhe entrava de tal forma pelas narinas que, até hoje, é impossível dissociar o aroma da madeira do pai. Por obra do destino, a figura que servia de inspiração para o pequeno viria a lhe faltar muito cedo. Mestre Lula morreu aos 39 anos de problemas do coração. Aos 14 anos, Vladimir acompanharia o enterro do pai em Itabaiana. As ruas estavam cheias de gente a seguir o cortejo de um dos homens mais influentes da cidade. Só depois da morte do pai, Vladimir viria a fazer a primeira comunhão. Vestido de luto, em meio

às figuras alvas dos demais garotos trajados de branco, ele realizaria a vontade da mãe que, sem a presença socialista do pai, poderia iniciar o filho nos ritos católicos. A figura do pai, tão forte na memória de Vladimir, ainda hoje é protagonista dos sonhos do cineasta. Enquanto dorme, vê o pai trabalhando e andando pela cidade em plena atividade. Mestre Lula era um homem dos sete instrumentos. Colaborava como jornalista para um jornal da cidade,

Vladimir coloca em papeis soltos, nem sempre organizados, todas as imagens, falas, músicas e montagens que lhe passam pela cabeça.

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A Folha, desenhava, projetava e esculpia madeira com perfeição. Arriscando-se de arquiteto e engenheiro, ele projetou todas as três casas em que a família veio a morar e tantas outras residências de Itabaiana. Um dos altares laterais da igreja da cidade e as altivas portas que protegem a matriz também são obras dele. Vladimir herdou a habilidade do pai para trabalhar com a madeira. No Sítio do Ligeiro, próximo a Campina Grande, onde a equipe do filme Cabra marcado para morrer refugiou-se da perseguição da ditadura, ele descobriu a facilidade para esculpir. A arte de entalhar | Vivendo sob a falsa identidade de José Pereira dos Santos, providenciada pelo tio Gilberto Calixto, que colocou a foto de Vladimir num documento retirado do arquivo morto da instituição militar onde trabalhava, ele observou que a grossura das cascas das árvores de cajá possibilitava que aquela madeira fosse esculpida.

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Sem a ajuda de ninguém e com uma pequena faca achada no sítio, Vladimir começou a trabalhar aquele material. Assim, descobriu a habilidade para entalhar e, numa experiência autodidata, experimentaria a xilogravura. Rodeado por uma população muito católica e reconhecido pelas esculturas de santos que passou a fazer, Vladimir seria batizado pelos moradores do local como Zé dos Santos. O ofício que aprendeu no esconderijo lembra muito a atividade do pai, habilidoso fabricante de móveis. Ainda hoje, Vladimir guarda tiras de madeira entalhadas pelo patriarca e, ao lado, repousam as próprias obras. No hall das preferidas está um Dom Quixote, já roído pelo tempo, mas guardado com muito carinho. Entre as obras dele está um Cristo detalhadamente esculpido ao longo de dois anos. O cartaz do filme O País de São Saruê também ganhou vida na madeira. Por mais de dois meses, o cineasta trabalhou na xilogravu-

Ele entrou no túnel da produção e só vai sair quando o produto estiver pronto. Eu acho que ele ficaria 24 horas no ar, só trabalhando naquilo. Ele chega a ser obsessivo nessa disciplina. Lucília Garcez

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ra que representaria o próprio filme. Aos finais de semana e nas horas de folga, trabalhar com a madeira é um passatempo que descansa a cabeça do cineasta e o relaxa. Fixação pelo trabalho | A Fundação Cinememória, museu criado pelo professor aposentado da Universidade de Brasília e cineasta, é onde ele elabora e desenvolve projetos. A mesinha de canto, em meio ao acervo cultural, retrata a intensidade com que vive os filmes. Pilhas de papel, várias agendas e cadernetas guardam as ideias e compromissos. Sempre que está produzindo, Vladimir escreve muito. Coloca em papéis soltos, nem sempre organizados, todas as imagens, falas, músicas e montagens que lhe passam pela cabeça. As anotações não formam o roteiro propriamente dito, mas são uma forma de colocar para fora o tur-

bilhão de ideias que vive dentro dele. Os números de telefone de amigos e colegas de trabalho transbordam pelas páginas das agendas. Sim, agendas, pois uma só não seria suficiente para guardar nome e telefone de um círculo tão grande de pessoas. Quando está produzindo um filme, Vladimir mergulha de cabeça no projeto. Evita compromissos, passa dias e noites absorto na própria missão. Das coisas que não dizem respeito ao trabalho, faz o estritamente necessário. Lucília Garcez, ao lado do cineasta há 25 anos, compara os períodos de produção do companheiro a um túnel. “Ele entrou no túnel da produção e só vai sair quando o produto estiver pronto. Eu acho que ele ficaria 24 horas no ar, só trabalhando naquilo. Ele chega a ser obsessivo nessa disciplina.” Aos 75 anos, a energia de Vladimir é suficiente para passar noites em filmagens. Em

Vladimir herdou a habilidade do pai para a madeira

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campo, coloca o despertador para tocar logo cedo e arranca da cama os jovens que insistem em dormir até mais tarde. “Eu não aguentava mais andar para cima e para baixo, sol, um calor terrível e Vladimir correndo para cima e para baixo. Os papéis estavam invertidos, parecia que ele tinha 30 anos e eu 70”, conta João Carlos Beltrão, paraibano companheiro de filmagem de O Engenho de Zé Lins. O set de filmagem se transforma num palco. A passos lentos, Vladimir caminha, observa, pensa, esquadrinha o local. Revive o momento como se fosse o próprio personagem. No papel de José Lins do Rêgo, percorreu os corredores da casa grande olhando as paredes, o teto, tentando pensar e sentir como o escritor. Olhos perdidos, completamente absorto, ele viajava na história. Uma espécie de transe o ajuda a recompor as cenas e escolher o enquadramento ideal, a cena perfeita. O cineasta e os santos | Apesar de não ser propriamente católico, Vladi-

mir tem uma fixação por santos. Não só pela plasticidade das imagens esculpidas, mas também por o que eles representam. “Sou apaixonado pela paixão dos santos. Acho o santo um homem de convicções, um homem que tem certezas. Eu gostaria de ter mais certezas na vida. No fundo, é um tipo de misticismo. Vejo os santos como pessoas dotadas de muita paixão. Eu também me sinto um pouco nas asas da paixão. Sou uma pessoa às vezes exageradamente apaixonada.” Em meio a todos santos, Vladimir tem um apreço especial por São Miguel Arcanjo. Não é à toa que ele aparece em alguns dos filmes do cineasta. Com uma espada na mão direita e uma balança na mão esquerda, ele pesa as almas que devem ou não ir para o purgatório, é o símbolo da justiça. Enquanto São Miguel Arcanjo faz a justiça dos céus, Vladimir luta pela justiça dos homens. Inspirado pelos ideais comunistas repassados pelo pai, ele leva adiante o desejo de igualdade e de justiça social.•

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Campos de riqueza e abandono No nordeste do Tocantins, estão as cidades de Itacajá, Goiatins e Campos Lindos. Ali, terra é coisa sagrada. Índios, posseiros e fazendeiros disputam espaço em uma luta desigual. No nordeste do mais novo estado brasileiro está a maior produção de soja da região Norte e uma cidade com um dos menores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiros. De lá, não saiu um só representante para o Congresso Nacional. Texto Mariana Tokarnia Diagramação Laís Miranda Fotos Marcela Ulhôa

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O barqueiro demorou para chegar. O combinado seria às 8h, mas já eram 11h quando o barco de madeira atracou nas margens do rio Manuel Alves Pequeno. Ele foi contratado para levar Generosa Krahô e seu marido de volta a Aldeia da Barra, depois de um dia fazendo compras e resolvendo problemas na cidade. Com tudo acomodado, a água quase entra na da embarcação, mas Generosa mantém-se tranqüila – o trajeto já é bem conhecido para os dois. “As águas estão mais baixas este ano”, comenta durante a pequena viagem.

“O que aconteceu foi que os piolhos de cobra que ficavam na nascente saíram tudinho. Foi uma fera quem expulsou eles, por isso que tá desse jeito”. Ela aponta para uma ribanceira e pode jurar que, até ano passado, era tudo água. Generosa é da etnia Krahô. Ela é uma dos 2.500 indígenas que vivem nas terras da Kraolândia, território de 3 mil km2, localizado no nordeste do estado do Tocantins. O local abriga 27 aldeias e um pedaço do cerrado virgem do estado. No entanto, não é mais possível ficar alheio a “fera”

Território Krahô

No mapa de Tocantins, o trajeto percorrido pela Campus Repórter

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que espanta os “piolhos de cobra”. Na região, a fera tem um nome: soja. A soja chegou no Tocantins quando ainda era Goiás. A região Norte é o mais recente destino dos produtores que fogem das escassas terras do Sul. A partir da década de 70, o Centro-Oeste e Sudeste saturam, a oleaginosa chega ao Nordeste e, posteriormente ao Norte. Também em 2010, o Norte é responsável por 800 mil toneladas de soja, das quais 435 mil, mais da metade, são produzidas no Tocantins. A produção tem seu preço. O rio Manuel Alves Pequeno é um que foi poluído e assoreado pelos agrotóxicos do plantio. As águas dividem Kraolândia e Itacajá, cidade tocantinense, a 295 Km de Palmas, a capital do estado. O lugar é pequeno e, segundo dados da prefeitura, possui 7.104 moradores. Em Palmas, Itacajá é famosa pelos índios. Mas, essa não é a visão que a cidade gostaria de ter de si. Para o prefeito, Manoel Pinheiro, a terra ocupada pela reserva indígena, que corresponde a mais da metade da área do Distrito Federal, é um desperdício de produção. “Se fosse tudo cana-de-açúcar e soja o município ganharia mais”. O único benefício, segundo ele, é o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) ecológico. Os números mostram, no entanto, que a soja não traria maior benefício. O estado do Tocantins exportou, em 2009, 209 milhões de dólares em soja. No mesmo ano, a arrecadação do ICMS relativo a toda a agricultura foi de apenas R$ 4,5 milhões. O lucro da soja, nem município, nem população vêem. Já o mesmo não se pode dizer dos impactos. Kupen, como os índios chamam o homem da cidade, entra e rouba a caça, tira madeira, leva animais silvestres. Gaúchos, aqueles que plantam soja, derramam, nos rios, veneno que a caça ingere e que depois contamina o mehin (indígena).

Generosa (foto acima), no caminho para a aldeia da Barra

A aldeia de Generosa fica a 30 Km de Itacajá, de onde é possível ver um enorme campo coberto de soja. De lá vem o veneno que até agora não fez vitimas – ao menos pelo que se sabe. As dores de barriga, furúnculos e manchas de pele, ela nunca tinha visto na aldeia. Doença de mehin, pajé dá conta, mas essas tiveram que ser tratadas na cidade, onde foram diagnosticadas como algo típico de quem vive no mato. Feliciano Tpnhot Krahô vive também na aldeia da

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Apesar do contato com o homem branco, as crianças só falam a língua da etnia

Gilberto Krahô defende a preservação dos costumes do seu povo

Barra e é pesquisador da Embrapa: “kupen faz as coisas e vem aqui perguntar o impacto. Vocês que tinham que vir aqui falar pra gente o que vai acontecer”, indigna-se. Em Itacajá, índio é índio, gente é gente. Quando índio vai à cidade é para se embebedar, pedir esmolas e arranjar confusão. “Há um tempo atrás, teve um índio que, bêbado, matou a mulher na praça, na frente de quem quisesse ver”, conta Anaísa Coelho, a dona Ana, que vive em Itacajá desde 1949. Ela viu índio andando nu pelas ruas, sem quase falar português. Hoje é diferente. “Eles se cobrem com panos coloridos e se comunicam bem”. A importância dos índios para o comércio, principal atividade da cidade, é inquestionável: sozinhos, respondem por 10% do consumo. O dinheiro que usam é o que ganham com serviços na cidade ou com o Bolsa Família. Os produtos preferidos são carnes, arroz, café, açúcar, panos. Coisas que às vezes não conseguem, ou não querem, produzir para toda uma aldeia.

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Não querem porque o contato com o branco trouxe facilidades. Sentando em um banco de madeira, rodeado pelas crianças, Gilberto Krahô, o pai do cacique da aldeia da Barra fala sobre as mudanças que percebeu em seus 40 anos de vida: “Kupen é um bom governador, depois que entrou, veio sabão, roupa, sapato. Quando mehin começou largou o costume. Não passo mais pau de leite, vai grudar na minha roupa”. Apesar disso, o orgulho de ser Krahô não se perdeu. A prova é que, com 200 anos de contato com o homem branco, a língua primeira ainda é krahô. Junto à Embrapa, Feliciano Tpnhot Krahô busca uma forma de “voltar o que era do índio, o que é nosso. Aproveitar os velhos que têm conhecimento, o tempo certo de plantar os alimentos, não pegar esses dos kupen, que vêm com química”. Em Itacajá, isso passa despercebido. Kraolândia só existe para a região a cada quatro anos, na época de eleições para prefeito. No mais, é considerado preocupação para a esfera do Governo Federal.


A luta de Reizinha, junto ao Sindicato, para defender o direito dos posseiros

Goiás + Tocantins

cagô?”. No primeiro mandato como prefeito, ele levou a causa a CâmaPerto de Itacajá, a 112 Km de ra dos Vereadores e, por plebiscito estrada de chão e 40 Km de asfal- popular, ganhou. Sob novo nome e to, está outra cidade, Goiatins, an- em um novo estado, a cidade destiga Piacá. Para chegar até lá, uma lanchou. As ruas que eram de terra, parada em Barra do Ouro. São mais foram asfaltadas. As 57 casas que ou menos cinco buracos, duas subi- datam da fundação do local, em das, uma ponte de madeira, algumas 1890, hoje somam mais de mil. Pouco menos da metade (41%) pedras e curvas até chegar em uma casa onde um café recém passado dos 12 mil habitantes vivem na área rural. Apesar e um bolo frito es“Quando cheguei de apoiar-se na peram os viajantes. era tudo cerrado. Até criação de gado, Na beira da estrada, agora só tive prejuízo, Goiatins encontra uma van aguarda dificuldades para quem segue para estou pagando para vender a carne que Goiatins. A primeira trabalhar” produz. O muniparte do percurso Mário Carrasco cípio faz parte da quem faz é Odiló Coelho Maciel, o Lula, motorista há Zona Tampão, um cordão de isola25 anos. Lula dirige na região desde mento que há 11 anos separa cidaque ela era chamada de Goiás. Hoje des com casos de febre aftosa. Em Goiatins, as políticas sanitáé Tocantins. E foi a mistura dos dois nomes que fez a felicidade de Otací- rias para o gado são rigorosas. De lio Quezado, atual Secretário de Ad- seis em seis meses vacina-se pelo menos 98% do gado. Para ser leministração do município. Quando Otacílio chegou na ci- vado a outras cidades, o boi fica em dade, em 1953, as placas de carro: quarentena e é vendido pela metade Piacá – GO, o incomodavam: “Basta do preço do restante do Tocantins. juntar pra entender, onde esse piá Os procedimentos são exaustivos

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e desanimam pecuaristas de uma cidade que há cinco anos não apresenta novos casos da doença. Mas quem tem terra agradece. Em um Brasil ainda agrário, chão é coisa sagrada. Quanto a isso, a região tem uma história delicada. Na década de 60, foi vitima de especulação imobiliária e registro de falsos documentos em cartório. As propriedades eram vendidas a um preço baixo e atraiam gente vinda do Maranhão, Piauí e Goiás. Nos anos 80, elas foram valorizadas e, como não havia registro oficial de moradores, revendidas. Os novos donos se depararam com dezenas de famílias que já estavam no local há 30 anos. “Aqui consta o maior número de terra sem documento. É difícil lidar com a situação, pois o que se tem é a palavra, são terras que passam de pais para filhos”, afirma Maria dos Reis, a Reizinha, presidente do Sindicato de dos Trabalhadores Rurais de Goiatins. A situação complicou um pouco mais com a chegada da soja. Hoje, no Tocantins, de cada 10 dólares exportados, 8 correspondem à venda do grão. Em Goiatins, a cultura se fixou. Tanto, a ponto de um novo município ser criado e emancipado apenas para esse fim: Campos Lindos. O que ficou na atual Goiatins foi pouca coisa. O fazendeiro Mário Carrasco é um dos únicos produtores restantes. Da Fazenda Renascer saem cerca de 80 mil sacas de soja por ano, que são vendidos às multinacionais Bunge e Cargill, instaladas em Campos Lindos. Mário Carrasco veio do Mato Grosso atraído por bons preços, mas ainda não teve recompensa. “Quando cheguei era tudo cerrado. Até agora só tive prejuízo, estou pagando para trabalhar”, confessa. Quando recebeu a terra, existiam 6 famílias de posseiros. O dono anterior, que era a Fazenda do Descanso, já havia oferecido dinheiro para que os moradores deixassem o lugar. Mário comprou os terrenos um a um. Uma não quis sair, a posseira conhecida por Maria do Descanso. “Eu não queria casa na cidade. Queria minha casa, fui criada na terra. Disseram que viria um trator e derrubaria meu barraco. Mesmo assim não tirei uma colher”. A casa de dona Maria é simples. No interior, redes, cadeiras e uma garrafa térmica para o café que não pode faltar. O teto é feito de palha. Tudo é bem cuidado. No quintal, pato, peru, pé de siriguela, mandioca. No sertão, ela improvisou uma escola onde educou mais de 70 alunos, entre crianças e adultos. Os R$ 10 mil oferecidos pela terra não valiam toda sua história. Hoje, os 25 alqueires têm reconhecimento de firma em cartório e Maria espera ansiosamente a chegada da energia elétrica, prometida por Mário ainda para este ano. “Casa da gente é difícil de substituir. No dia que falar pra ir embora, eu choro demais. Eu amo”.

Dona Maria, única coisa impedindo que a produção de Mário Carrasco aumente Dona Maria resistiu e conseguiu preservar a sua terra na Fazenda Renascer

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Cidade de Po‘ As casas coloridas, vermelhas, verdes, rosas, amarelas, azuis, o senhor descascando laranja na calçada, as conversas na rua quando o sol não está tão forte ficaram com Goiatins. Campos Lindos levou o calor e o pó e se fixou a 90 Km da cidade. Há apenas três trechos asfaltados na região, os que ficam próximos ao centro administrativo. O resto, levanta poeira quando vem o sol e encharca os transeuntes com lama quando chove. As casas são quase todas brancas e simples e datam da década de 1990. Os anos 90 foram o auge da região, o governo Siqueira Campos criou um lugar de “campos prósperos e homens fortes”, nas palavras do próprio governador na fundação da cidade. Ali, iniciou-se o Projeto Agrícola Campos Lindos, de incentivo à produção de soja, que tornou o local o maior exportador do grão no estado. Hoje, a produção de Campos Lindos chega a 25% do que é levado

Na entressafra, a cultura de sorgo substitui a soja

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Manuel Barros, o Peninha, é um dos maiores donos de terra em Campos Lindos

para fora. As vendas, em 2008, melhor ano de produção, somaram 78,5 milhões de dólares. Esses valores estratosféricos criaram um lugar com um dos menores índices de desenvolvimento humano do Brasil, onde dos 8 mil habitantes, 5.700 estão cadastrados no programa Bolsa Família

– mais de 70% vive em famílias com deram um prazo de cinco dias para renda inferior a R$ 100 per capita. tirar tudo. Cada dia que a gente fiA pobreza é resultado das diver- casse tinha que pagar R$ 100 por sas desapropriações que tiraram pessoa. A gente, saiu, né? Mas não famílias inteiras do campo. Com o tinha nem transporte, carregamos programa iniciado por Siqueira Cam- nossas coisas nas costas. O inverpos, uma porção do estado que, no tava forte, tava chovendo muito. entre 1981 e 1982 4 meses “Disseram que viria Foram havia sido alienafora, em casa de um trator e derrubaria amigos”, lembra da da planta pelo estado de Goiás, meu barraco. Mesmo Agenor Alves da foi ocupada. Sem Silva, expulso de assim não tirei uma documentação oficasa com a mulher colher” cial e seguindo dee seus três filhos. Maria do Descanso creto promulgado O assunto fez em 1997, que tornava o espaço de com que o Ministério Público Fedeutilidade pública, o governador in- ral de Tocantins reagisse. A justiça denizou 27 fazendeiros e repartiu a interveio e, por fim, cerca de 80 fala Capitanias Hereditárias os 105 mil mílias conseguiram reaver ao menos hectares da Serra do Centro, onde uma parte das terras. A maioria ainestão as terras mais férteis da região. da não possui os títulos, mas os proQuem ganhou terreno era aliado do cessos estão em tramitação. Outros governo. Poucos residiam na cidade foram obrigados a buscar refúgio na ou no estado. cidade, onde desempregados viraQuando os beneficiários ali che- ram estatística e aumentaram o índigaram, o mesmo episódio de Goia- ce de pobreza e miséria. tins se repetiu: mais de 100 famílias O caso de Agenor e sua família estavam residindo no local. A desa- pôde ser resolvido com a ajuda de propriação foi feita em massa. “Me um advogado. Agora, o limite da pro-


priedade é um arame farpado, que o separa das terras do fazendeiro Brasil – quem o expulsou e de quem ele nunca viu o rosto. “Pobre vive de teimoso, vive porque Deus quer”, complementa Irenilde Carneiro, ex posseira, hoje proprietária. Para o fazendeiro Manuel Barros, proprietário da Sussuarana 1, Sussuarana 2 e Santa Catarina, não se pode ver um lado só. Barros é sojicultor há 40 anos, 14 deles investiu em terras paranaenses, plantou soja e trigo. Em Rio Verde, Goiás, produziu por 23 anos. “Quando se chega, é pioneiro. Depois de um tempo, as terras valorizam e não é mais possível expandir, procura-se então uma nova fronteira agrícola”, explica. Foi esse espírito que o fez comprar 4,6 mil hectares que pertenciam ao Banco Central e trazer a produção para o Norte do país. As terras de Barros não estão na Serra do Centro, ele não recebeu doações. Mas encontrou 42 famílias na propriedade recém adquirida. A proposta inicial era o deslocamento de todos para lugar mais distante. Eles não aceitaram. Com o tempo, uma a uma vendeu o lote. Barros pagou entre R$ 5 mil e R$ 30 mil por família, valor irrisório para se sustentar mais de cinco, seis filhos. Das 42 famílias ficaram apenas qua-

tro, com quem ele garante que o relacionamento é muito bom. Nas Sussuaranas é assim, mas o que viveu Agenor nas terras de Brasil, ele não esquece: “Se eu fosse prefeito, a primeira coisa seria cancelar o plantio de soja aqui. É certo cada crente produzir, mas uma coisa que não prejudica os outros”. Às 18h, quando o sol se põe, o azul vibrante do céu, o verde da mata e o vermelho da terra são substituídos por tons amarelados, rosas, roxos, até chegar no preto e o céu se cobrir de estrelas. O Tocantins se despede de mais um dia. Amanhã é dia de férias, é dia de praia. Em Itacajá, Manuel Alves Pequeno se cobre de boias no Rally das Águas. Para 2010, até orla nova foi inaugurada. Em Goiatins, a praia é no rio Manuel Alves. Ambos os lados do rio, a cidade de Carolina e a antiga Piacá se preparam para tomar banho, assistir a shows, comer e beber. Em Campos Lindos, quem pode sai da cidade, vai visitar parentes, passear. Quem fica, vai pro forró. Cidade é pequena, tudo pensado: apenas uma casa de festa funciona em um final de semana para poder ficar cheia. • *Os números citados são dados da Secretaria da Fazenda do Governo do Estado do Tocantins

Com a mecanização, Tocantins produz mais da metade da soja do Norte

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A família de Agenor volta para sua terra, mas olha o futuro com incerteza


CORREDOR DOS

ESQUECIDOS

Não importa o crime ou a infração. O estigma de ex-detento acompanha uma pessoa para o resto da vida. Voltar ao convívio familiar e aos círculos sociais é uma luta que deve ser travada diariamente. Oportunidades de emprego e de capacitação ajudam a reinserção de egressos do sistema prisional brasileiro à sociedade. Texto Ana Luisa Soares Fotos 2 e 3 Fabiana Closs | 1 e 4 a 8 Rafaela Felicciano Diagramação Heitor Albernaz

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C

láudio* conta com orgulho os planos para o futuro. “Estou fazendo pós-graduação em psicopedagogia e quero continuar estudando”. No currículo, esbanja conhecimento: é formado em História e Filosofia. Além disso é poeta e escritor de peças de teatro. Mas uma coisa ele não gosta de comentar. A condenação por tráfico de drogas é algo que ele gostaria de esquecer. Hoje Cláudio cumpre regime domiciliar e desde fevereiro deste ano trabalha trabalha no no Supremo Superior Tribunal Federal (STF) graças a uma oportunidade dada pela Seção de Projetos de Responsabilidade Social. O Programa de Ressocialização de Setenciados do STF é uma das iniciativas dadas a detentos de voltarem ao convívio social e humanizar o processo penitenciário. O trabalho administrativo realizado por Cláudio requer envolvimento, empenho e a promessa de que os estudos virão sempre em primeiro lugar. O chefe da seção, Daniel Teles da Silva, motiva não só Cláudio, mas os outros 40 presos que cumprem pena em regime domiciliar e trabalham em diversos departamentos do Tribunal. “Sempre incentivo os estudos dos meninos. E pra mim o que aconteceu antes não importa. Ele cumpriu a pena, então acabou. Inclusive, o Cláudio foi escolhido funcionário do mês por causa do desempenho dele”, conta Daniel. O processo seletivo inclui uma visita ao Centro de Progressão Penitenciária, acompanhamento psicológico e o bom comportamento do sentenciado. Cláudio conta que foi chamado por Daniel para uma entrevista e a expectativa de voltar a trabalhar era muito grande. Os dois primeiros anos da pena total foram cumpridos em regime fechado na penitenciária de Brasília, conhecida por Papuda. Ex-policial civil, ele permaneceu em área especial, o que, para ele facilitou a aceitação da pena. Com mais seis anos para cumprir, Cláudio é um dos quase meio milhão de presos que cumprem pena no país. Perfil | O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, segundo dados do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ficamos atrás somente dos Estados Unidos e da China. Nos últimos cinco anos, o número de pessoas presas no Brasil aumentou 37%, o que representa 133.196 pessoas a mais nas penitenciárias do país. O Ministério da Justiça possui, desde 2005, um banco de dados que que reune reune informações informações de depresídios presídiosestaduais estaduais

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e federais. O Infopen é um mecanismo de comunicação entre os órgãos que compõem a administração penitenciária, o que ajuda na proposição de políticas públicas articuladas das instituições de execução penal. Para a criminóloga Cristina Zackseski, o sistema é eficiente no que propõe a fazer: a estimativa regional e nacional de presos. “O Infopen é um sistema relativamente novo, a tendencia é a informatização dos dados, mas em geral não existe informação sistematizada nas esferas policial, judicial e penitenciária. Muito menos um sistema integrado que una todos estes sistemas”, disse. O processo mais difícil continua sendo o de abertura e disponibilização das informações de todos os sistemas que fazem parte da Justiça brasileira. Cristina defende a criação de outros bancos de dados como o Infopen para estimular as pesquisas na área. “Alguns dados são de responsabilidade do Executivo, outros do Judiciário, outros do Ministério Público, e assim por diante. É difícil as instituições socializarem seus dados. Se estes dados fossem públicos, as outras instituições e a população saberiam os gargalos”, afirma. A partir do Infopen, podemos construir o perfil do preso brasileiro. A maioria é do sexo masculino, entre 18 e 25 anos, com grau de instrução que chega até oitavo série. O tráfico de drogas responde por 22% dos crimes cometidos pelos presidiários, sendo que entre as mulheres esse índice sobe para 60%. Outro dado assusta: 44% da população carcerária são de presos provisórios, ou seja, 219.274 pessoas aguardam na prisão o julgamento de seus processos. O uso excessivo da prisão provisória no Brasil, como uma espécie de antecipação da pena, gera o problema de superlotação nas cadeias de todo o país. A taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 1,65 preso por vaga. Perdemos apenas para o nosso vizinho, a Bolívia, cuja taxa de ocupação chega a 1,66. Diante da insuficiência de vagas nas unidades prisionais, 57.195 pessoas estão cumprindo pena em delegacias, que não contam com infraestrutura adequada. Desde 2008, o sistema judiciário tem organizado mutirões carcerários para rever sentenças e corrigir possíveis erros cometidos durante o processo de aplicação das penas, com o intuito de diminuir o número de detentos nas instituições penitenciárias. O primeiro mutirão foi realizado no Rio de Janeiro, em conjunto com o Tribunal de Justiça do estado. O trabalho rendeu bons resultados e o CNJ decidiu expandir para outras unidades da

Cláudio sonha em terminar a pósgraduação e voltar a trabalhar com o que gosta


evoluir. Só por uma pessoa que recebe uma chance já justifica o projeto”, afirma Márcio. Atualmente, o Começar de Novo oferece 1.250 vagas de emprego e 160 vagas em cursos de capacitação por diversas cidades no país. Outros programas estaduais buscam a reinserção de pré-egressos e ex-detentos do sistema prisional, a fim de dar uma oportunidade a mais de formação e emprego.

federação. O objetivo da medida era dar mais rapidez no julgamento de processos. No final de 2009, foram examinados mais de 93 mil casos, com a concessão de cerca de 30 mil benefícios e a expedição de mais de 18 mil alvarás de soltura. Outra iniciativa do Conselho é o projeto Começar de Novo. O programa prevê a fomentação de vagas para egressos em diversos setores produtivos e econômicos. Entre os termos de cooperação, a contratação de ex-detentos para a construção e reforma de estádios e

outras obras relacionadas à Copa do Mundo de Futebol de 2014 é uma das grandes conquis-tas da equipe do projeto. Márcio André Kepler, juiz auxiliar do CNJ, acompanha o programa desde abril e já se empenhou em outro projeto muito parecido no Rio Grande do Sul, o Trabalho para a vida. Ambos possuem o objetivo de sensibilizar a sociedade e estimular instituições e lideranças empresariais para que sejam disponibilizadas vagas de trabalho e de ensino profissionalizante. “A sociedade recebeu bem o programa, mas ainda precisa

Só por uma pessoa que recebe uma chance já justifica o projeto Márcio Kepler

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Apesar dos altos índices de reincidência, o juiz Márcio Kepler defende projetos que ajudem a ressocialização de egressos

Reincidência | Entre as preocupações de projetos como o do CNJ e do STF está a redução das taxas de reincidência criminal. Segundo dados dos tribunais estaduais, entre 60% e 70% dos egressos voltam a cometer crimes. Entretanto, esse dado não é oficial, pois nem o Ministério da Justiça nem o STF possuem um banco com informações de todos os estados. “Não existe uma estimativa oficial do país porque alguns estados sequer têm dados do sistema prisional. Não há registro de todas as condenações para que eu possa compilar e trabalhar com elas”, revela Márcio. Nenhum banco de dados pode apresentar o que leva ex-detentos a voltar à vida do crime. Não existe estatística que revele as razões da reincidência. O que se pode deduzir é que logo a partir da definição do indivíduo como criminoso, o ser humano passa a enxergar o mundo de outra maneira. “Antes eu via as coisas de um jeito, depois eu passei a ver o outro, e meus conceitos mudaram. Eu não tenho condições de voltar a ser policial porque eu vivi o outro lado”, conta Cláudio, ex-policial civil, que atualmente cumpre pena em regime domiciliar. A mudança também ocorre dentro da própria pessoa. “A definição de indivíduo como criminoso muda a visão dos outros e a visão dele em relação a si mesmo”, afirma Cristina. Para a criminóloga, a aplicação da pena carcerária é o início da carreira criminal. “A prisão é uma escola do crime. Mas as pessoas não entendem que não é mais produtivo punir as pessoas. A prisão vai piorar o sujeito e não melhorá-lo, mesmo assim a sociedade cobra mais punição”, disse. Desde o surgimento das prisões, ainda no final do século XVIII e início do século XIX, a ideia de humanização das penas substituiu os suplícios e punições públicas pelo julgamento do acusado, seguido de encarceramento. A execução pública passou a ser vista como um processo que simplesmente acendia a violência e as prisões foram idealizadas para punir um criminoso longe

A prisão é uma escola do crime. Mas as pessoas não entendem que não é mais produtivo punir as pessoas. A prisão vai piorar o sujeito e não melhorá-lo, mesmo assim a sociedade cobra mais punição Cristina Zackseski

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dos olhos da comunidade. A idealização de um local mais humano nunca foi alcançado, pois a violência é uma característica intrínseca à vida de encarceramento, tanto entre os detentos, quanto entre presos e o sistema prisional. Segundo a criminóloga Cristina, a maior dificuldade dos egressos é voltar à sociedade e algumas vezes ao convívio familiar deixado para trás antes de cumprirem pena. “A pena de prisão é como um corredor. Quanto mais tempo alguém permanece nele e volta, mais difícil e mais longe do status de pessoa ‘normal’”, conta Cristina. Além das dificuldades na vida pessoal, os ex-detentos enfrentam preconceito e lutam para voltar a trabalhar. “Sabemos que eles precisam de uma chance, de uma condição humana. Se eles arranjam um emprego, a chance de voltar à sociedade é muito maior”, revela o juiz auxiliar Márcio Kepler. “Mas se você fechar essa porta pra ela, eu tenho certeza que eles voltam”, disse. Volta por cima | Geraldo Pereira de Souza é conhecido na Estrutural, vila que compõe a região administrativa do Distrito Federal. Aos 54 anos, seu Geraldo, como é chamado por vizinhos e amigos, aluga lotes e tem a própria chácara a 12km de Brasilinha. Os dois filhos, Emanoel, de 13 anos, e Josefa, de 10, cuidam da casa e estudam durante os dias da semana, quando o pai geralmente está trabalhando no sítio. O lote na estrutural é simples por fora, mas quem entra se depara com geladeira nova, televisão e aparelho de dvd. Seu Geraldo é risonho e gosta de contar histórias da própria vida. Entre elas uma chama a atenção: a maneira

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Eu perdi. Não voltei do mesmo jeito que eu fui, mas estou tentando. Você tem que querer. É desse jeito que você se reconcilia com a sociedade Geraldo Pereira como foi recebido pelos companheiros da vila depois passar pela Papuda. Seu Geraldo foi condenado por homicídio. Na época, os dois filhos estavam na guarda da ex-mulher. Depois de cumprida a pena, Geraldo buscou o apoio dos amigos. “Saí com uma bermuda, uma calça, uma camisa e uma camiseta. A primeira noite eu dormi dentro de um carro. A segunda na casa do Zezinho”. Hoje, seu Geraldo vive com os filhos e batalha para conseguir os bens que tanto sonhou durante a

vida. Para ele, a prisão foi uma fase que lhe deu mais força. “Eu perdi. Não voltei do mesmo jeito que eu fui, mas estou tentando. Você tem que querer. É desse jeito que você se reconcilia com a sociedade”, conta Geraldo. Os desejos também são para os filhos Emanoel e Josefa. “O que eu quero pra eles é que eles consigam coisas na vida, que sejam exigentes com eles mesmos. Que tenham nome, porque eu não tenho nome. Eu quero uma coisa que eu não tive: chance”.

Geraldo deseja que os filhos, hoje pequenos, tracem um caminho melhor que o dele


Até hoje não me acostumo em ir embora e deixar meu filho lá dentro Mária aparecida

Grande expectativa | Dona Maria Aparecida* mora na vila Estrutural, a poucos metros de seu Geraldo e também conhece muito bem a Papuda. O filho mais velho está cumprindo pena há dez anos por uma tentativa de homicídio. Entre as lembranças, Maria Aparecida se revolta com a maneira como foi tratada ao visitar o filho pela primeira vez em um centro penitenciário da capital. “É humilhação demais. Você enfrenta uma fila na rodoviária, outra pra cadastrar o nome, outra pra entrar, outra para passar pela revista. Lá era terrível, colocavam um espelho e você tinha

que ficar despida enquanto cutucavam meu corpo inteiro.” Depois da primeira visita, Dona Maria Aparecida só voltou a ver o filho quando ele foi transferido definitivamente para a Papuda. Os dez anos de cadeia não foram suficientes para habituá-la com a situação. “Até hoje não me acostumo em ir embora e deixar meu filho lá dentro”, revela Maria Aparecida. Com 58 anos, ela se agarra às lembranças e qualquer objeto que desperte memórias do filho. As fotos das visitas e ‘saidões’ nos feriados são suas preferidas. No Natal, dona Maria Aparecida deve

ganhar o melhor presente de final de ano. A expectativa é que até dezembro toda a família esteja reunida para comemorar as festas. Mais do que planejar as celebrações de fim de ano, Maria Aparecida pensa que o filho deve se empenhar ainda mais. A primeira providência é voltar a trabalhar. Ela conta com orgulho que o filho já trabalhou como balconista em uma loja e como atendente em um restaurante na Feira dos importados, em Brasília. Segundo ela, a vontade de voltar à comunidade não é ape-nas um desejo de mãe. “Ele fala que quando

sair quer ir atrás de um emprego e cuidar do irmão. Estou ansiosa pra ele voltar. Quero que ele volte a me ajudar em casa e ajudar os irmãos”, conta Maria Aparecida. Apesar de ainda estar cumprindo pena, Cláudio já sofreu com preconceito fora da prisão. “Só que não me abalou, era um motivo a mais para resolver meu problema. O paradigma de ex-presidiário, você carrega para sempre. Não adianta suas qualificações nem nada”, comenta. A expectativa de Cláudio é cumprir a pena e recomeçar a vida. Ele sabe que não será fácil.•

Fé e esperança fazem com que Maria Aparecida se agarre às lembranças do filho, preso há dez anos

* Os nomes foram modificados a pedido dos entrevistados.

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ENTREVISTA

O primeiro capítulo da nossa entrevista foi historicamente construído há algumas décadas, quando as cidades começaram a se desenvolver e a população a migrar do campo para os centros urbanos. Nesse marco, os governantes perderam a oportunidade de diminuir as desigualdades sociais e agora, anos depois, vivemos em cidades que são fruto de um planejamento incompleto e desigual. Nas palavras de Aldo Paviani, professor e estudioso da questão urbana, falta uma visão totalizante por parte dos governantes que exercem o poder sob o modelo de políticas demagógicas. Com o desenvolvimento elitista da sociedade, a área urbana não tem moradia, saúde, trabalho dignos para todos. “Não existe meia cidadania, ou ela é plena ou não é”, resume. As cenas dos próximos capítulos da humanidade são pouco animadoras, mas Paviani destaca na entrevista o papel de cada um para que mudanças aconteçam. Texto Camila Santos e Rafaella Vianna Diagramação Juliana Reis Fotos do entrevistado Mariana Niederauer Fotos urbanas Rafaela Felicciano

planejamento da

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exclusão

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cada vez mais pessoas migram para os centros urbanos

Como o senhor enxerga a urbanização que resultou da migração do meio rural para as cidades nas últimas décadas? A tecnologia aplicada ao campo fez com que milhões de cidadãos abandonassem o meio rural e procurassem as cidades. O grande problema foi a política de esvaziamento dos campos em função da pressão por reforma agrária, feita pelo governo da ditadura militar. No entanto, eu não diria que isso resultou em caos urbano. O que houve foi uma mudança sem o preparo necessário para a vida urbana. Dessa forma, o status das pessoas influenciou diretamente no lugar aonde elas viveriam. As que recebiam baixos salários, desempregadas, com baixa escolaridade, morariam nas favelas. E esse sistema existe até hoje, porque pessoas pobres continuam chegando à capital federal. A diferença é que elas não ocupam o círculo central da metrópole, mas um circuito externo, a região vulgarmente chamada de entorno. E o próprio termo já é pejorativo, afinal, quem nasce no entorno não é “entornense”.

Então o planejamento não funciona? Funciona em parte. O arranhão forte aparece quando olhamos sob um ponto de vista da ética da urbanização, porque, na verdade, se planejou Brasília para excluir a população pobre. Porém, nas cidades não planejadas isso também acontece, só que de uma forma estabelecida pelo capitalismo. São Paulo, por exemplo, tem uma periferia enorme de pessoas empobrecidas que não conseguem ficar próximas à região central. Os que ficam no centro acabam morando em edifícios abandonados. Mas nem isso é caos. É fruto de um padrão de capital que explora a rentabilidade dos imóveis, estabelecendo preços para quem quer ter moradia. É uma responsabilidade coletiva do modelo que a sociedade aceitou. Quem compra um imóvel é tão responsável pelo que está acontecendo quanto quem construiu. Não tem como acabar isso se não houver um desenvolvimento igualitário.

" quem compra u,m imóvel é tão responsável quanto quem construiu"

É possível um desenvolvimento igualitário? Olha, eu não sei. Acredito que o caos urbano, como é conhecido, tem que ser relativizado. Vivemos uma urbanização excludente. Para quem sofre com isso, mas tem um emprego, até que as coisas vão bem, a não ser pelo desgaste com deslocamento para chegar ao serviço. O caos é visto por nós da elite como uma coisa desarrumada, mas foi pré-estabelecido pelos padrões do capitalismo vigente que ninguém quer derrubar. Porém, a elite também se sente acomodada, contanto que não assaltem suas casas e que os empregados trabalhem bem. Uma pesquisa da Secretaria da Fazenda mostrou que 70% dos empregos estão localizados no Plano Piloto, mas apenas 10% da população do DF mora no local. Grande parte dos trabalhadores que ocupam essas vagas vem de outras regiões administrativas, pagando custos altos de transporte, sem contar o desgaste físico e mental, tudo para vir trabalhar no centro. É uma distribuição espacial das pessoas em função apenas da residência, sem levar em conta o trabalho. Justamente isso que falta aos nossos políticos, fundamental para todo o Brasil: descentralizar os postos de trabalho. Além disso, pensar saúde e educação juntas. Não existe meia cidadania, ou ela é plena ou não é.

Muitas pessoas vão para o entorno, onde não há infraestrutura para recebê-las

Seria um caos planejado então? O caos urbano a rigor não existe. Brasília, por exemplo, foi planejada, então se existe um tipo de padrão de urbanização ele é derivado de um planejamento. Tudo foi previamente estabelecido para ser assim. Trata-se do resultado de um planejamento incompleto e desigual. Sem visão de totalidade, portanto, falho. Não se planeja o caos, o correto é planejar para arrumar a casa, mas isso não é feito para toda cidade, daí a desigualdade e resultados que denunciam o anti-planejamento.

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"vivemos uma urbanização excludente"

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O planejamento no Brasil acabou ou, na verdade, nunca existiu? Na década de 70 se tentou em algumas cidades brasileiras que as metrópoles fossem bem pensadas, grandes. Então, para o Brasil inteiro essas metrópoles foram a salvação, só que os governos metropolitanos começaram a falhar porque em locais como Porto Alegre, com 17 cidades, São Paulo, com mais de 40, ninguém queria abrir mão da gestão municipal para a gestão metropolitana, que iria gerir todos os serviços comuns: água, esgoto, eletricidade, hospitais, escolas. Você teria toda uma rede comandada por um gestor metropolitano. Não deu certo porque ninguém queria abrir mão de ter sua escola, a sua demagogia com casa própria. A questão da urbanização não atrai tantos votos? Por que os políticos não investem nisso? Todo o Brasil está organizado em termos compartimentados. Tem o Ministério da Educação, do Transporte e não tem um agregado que junte tudo para se ter uma ideia coletivizada. Chamamos isso de planejamento compreensivo, totalizante, não vendo a parte, mas o todo. Então, na questão do transporte o essencial não é quem vai te transportar de um ponto ao outro, e sim como toda a cidade se transporta. Dentro desse projeto, poderia haver um escalonamento do horário de funcionamento do comércio. Todo mundo indo às 18h para casa entope qualquer via. moradores das grandes cidades têm que enfrentar todos os dias engarrafamentos em horários de grande movimento

"habitação em encostas é um ponto não respeitado da questão ecológica"

O que significam, em termos de questão urbana, as enchentes em Alagoas, o estado mais pobre do Brasil, e até mesmo as chuvas de abril – consideradas umas das mais fortes das últimas décadas – que atingiram por dias o estado do Rio de Janeiro – Morro dos Prazeres e Morro do Bumba em 2010? O nosso problema está no fato de que o plano de habitação não levou em conta uma classe de população que vai buscar abrigo onde não deve. A defesa civil às vezes interdita esses locais, mas a pessoa não quer sair de lá, porque foi o único local que ela achou para morar. Eu diria que essas enchentes ocorrem porque antes os vales não eram habitados e foram ocupados por pessoas sem muitas opções. E as enchentes também são fruto da destruição do verde em outro lugar mais acima, assim a água não é retida pela vegetação e desce mais rapidamente. A habitação em encostas é um ponto não respeitado da questão ecológica. É necessário, primeiro, planejamento urbano que encontre locais mais condizentes com as pessoas que estão morando e as retirassem de uma maneira digna e não aos empurrões. No Rio de Janeiro, as favelas ocupam locais próximos aos de trabalho, não estão lá por acaso. São vitimas, são agentes passivos de globalização, ninguém olhou por eles.

Ainda há tempo para resolver o problema da urbanização no Brasil? Para ter conserto, os governantes devem escutar quais são os anseios da sociedade. Não é olhar pontualmente essa encosta e aquela, é o todo. Tudo está muito interligado e eu diria que estão interligados dois agentes: o agente população, que adere a um padrão de estado, sem fazer nada, sem reclamar; e o estado com as empresas, que não se acertam para mudar essa situação. Tem que mudar a mentalidade dos governantes, não se pode enxergar apenas determinados pontos para atender clientelas. Precisamos de líderes sensíveis ao clamor. E uma população que vá reclamar, vá pras ruas, não só para derrubar o governante, mas para fazê-lo mudar de mentalidade. •

Se continuarmos nesse ritmo, o que vai acontecer com as cidades brasileiras? Elas seriam insuficientes. Milton Santos (geógrafo brasileiro) fala sobre a dissolução da metrópole. Tem muita gente que em vez de vir para a capital se estabelece longe, porque a capital está se fechando. As metrópoles brasileiras vão se tornar ingovernáveis. Eu diria que em 30 anos, Brasília, nesse modelo, vai se tornar ingovernável. O mesmo vai acontecer com São Paulo daqui a 10, 15 anos, porque ninguém pensou em descentralizar qualquer metrópole brasileira. Todas elas são centralizadas em termos de oferta de trabalho e serviço. Os políticos terão de governar colocando esparadrapos em uma ferida em metástase.

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gente apaixonada, traições e um final feliz paulo paniago

O jornalista Paulo Paniago é professor da Universidade de Brasília e autor de três romances, inéditos. Escreve micronarrativas no blog desaforos.wordpress.com.

rejunte tinha quem achasse graça daquele casal que havia encontrado harmonia numa multiplicação muito peculiar das próprias desarmonias. definitivamente não foram feitos um para o outro, porém transformaram isso no motivo para viver infelizes lado a lado, a vida inteira.

invasões paixões delirantes a vida é na corda bamba, ele disse pelo telefone, combinando o próximo encontro. tristão e isolda ressuscitados, mantinham o caso em segredo, com promessas de ilhas paradisíacas, viagens intermináveis pelos mares do sul, festas sem fim encharcadas de champanhe com por do sol interminável no horizonte cinematográfico, mas a maior emoção vinha mesmo era da chance de serem flagrados e começar a tragédia.

sentiu o aumento da saudade como se de repente o mundo lhe recusasse contato com outras pessoas. só que não foi de repente, porque a sensação invadiu aos poucos, como a tarde avança para o por do sol, como o sono parece um líquido que vai sendo injetado no corpo. a saudade é um lamento pela vida alheia que não se pode viver, é variante da solidão. sentou-se para escrever um poema a respeito, mas estava tão vazio que foi impossível.

na real, ele ligou a televisão no fantástico domingo à noite, comendo sanduíche de mortadela, enquanto ela bocejou ao lado do marido entediado que tomava cerveja mais para morna direto da lata. falaram algo sobre pagar a prestação.

coisas ditas ela disse: — é como aquela energia de transferir mágoa, de provocar ressentimento, que para certas pessoas é tão natural quanto para outras é caminhar em cima de uma corda bamba entre dois prédios. mas não sei se estava falando de si mesma ou se estava jogando uma indireta para mim.

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mão quando ela disse “posso ler sua mão?”, mais que depressa eu disse sim: havia lido o corpo dela todo e guardaria a mão como último segredo a ser desvendado.

valsa do adeus tinha uma profunda marca pessoal no corpo para provar o que sentia por ela, uma cicatriz de tinta. o tempo fez seu serviço: apagou os traços, nos afastou. da última vez que a vi, tentei fotografá-la, mas ela se recusou, com a mão cobrindo a lente, o rosto virado, em esquiva.

em chamas o amor deles ardeu em chamas. as labaredas subiram pelos plásticos e madeiras do barraco com uma fome quase tão grande quanto a do casal e consumiram uma área enorme da favela. os únicos corpos carbonizados foram os dos dois e os bombeiros nunca conseguiram determinar exatamente o que iniciou o incêndio.

o tempo é implacável com nossos destinos. até rimos juntos, relembramos histórias — lembra aquela vez?… –, depois retomamos nossas vidas apartadas e deixamos as folhas secas cobrirem as pegadas de nossos pés, nos caminhos que se bifurcam. uma das últimas coisas que me disse é que tinha medo de me contar coisas porque eu podia transformar numa de minhas histórias.

o amor não cabe nas definições técnicas dos peritos em fogo.

sintonia shall we dance?, cantarolava em voz suave a moça, pelo alto falante da loja de móveis. foi nesse momento que seus olhos se cruzaram e não foi preciso dizer palavra: ali mesmo dançaram pela primeira vez e seguiram fazendo a mesma coisa pelo resto da vida.

diagramação laís miranda ilustração fernando caixeta

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EDITORA EXECUTIVA Márcia Marques EDITORES David Renault, Dione Moura e Sérgio de Sá EDITOR DE FOTOGRAFIA Marcelo Feijó EDITORA DE ARTE Gabriela Freitas SECRETÁRIA DE REDAÇÃO Mariana Niederauer REPÓRTERES Ana Luisa Soares, Camila Santos, Caroline Aguiar, Cristiano Zaia, Max Milliano Melo, Mariana Tokarnia, Rafaella Vianna DIRETORES DE ARTE Heitor Albernaz, Juliana Reis, Laís Miranda e Maurício Chades FOTOGRAFIA Fabiana Closs, Marcela Ulhoa, Mariana Niederauer, Rafaela Felicciano (Subeditora) CAPA Heitor Albernaz e Marcela Ulhoa (foto) COLABORADORES Paulo Paniago Agradecimentos Fernando Caixeta, José Rodrigues de Sousa, João Carlos Beltrão, Renato Alves, Renato Félix, Lucília Garcez, Manfredo Caldas, Sérgio Moriconi, João de Lima, Hildeberto Barbosa, Fernando Trevas, Evalcy Kunum, José Lourenço, Cláudio Romero, Ivan Camargo, Tiago Gil, Cláudia, Andreoli e Gustavo Lins, Leandro Fortes, Vítor Aratanha, Juliana Corrêa, Domingos Alves da Silva, Flora Egécia Campus Repórter é uma publicação semestral, produzida por professores e alunos das Disciplinas Laboratório Campus Repórter e Diagramação Campus Repórter. Faculdade de Comunicação/ UnB - Ano 4, N° 7, 2010. ENDEREÇO | Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte - Caixa Postal 04660 CEP 70.910 - 9000 Brasília/DF TELEFONE | 61 3307.2461 www.fac.unb.br reportercampus@gmail.com Impressão Athalaia Gráfica e Editora Tiragem 4 mil exemplares Faculdade de Comunicação / UnB DIRETOR David Renault COORDENADORA DE GRADUAÇÃO Thaïs de Mendonça Jorge DEPARTAMENTO DE JORNALISMO Zélia Leal Adghirni DEPARTAMENTO DE AUDIOVISUAL E PUBLICIDADE Wagner Rizzo

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Espaço do leitor

Expediente

É com satisfação que escrevo para vocês. O homem tem seus meios para nos fazer despertar para leitura e tornar leitores neste mundo. Creio que assim como houve grandes mestres incentivadores para uma boa leitura, assim, tem sido vocês, com matérias ricas e de bons conteúdos. No final de 2008, chegou em minhas mãos um exemplar da Campus Repórter e fiquei sem palavras, mesmo diante daquela revista encantadora. Sei que a elaboração desta revista revela algo que não se pode ver, mas é possível sentir nas páginas. A todos os responsáveis por este tremendo veículo de informação sobre os povos de alguma forma excluídos.

Que o nosso bom Deus acrescente sempre sabedoria e conhecimento a vocês que nos são transmitidos por meio desta maravilhosa equipe. Eu fico muito feliz com cada matéria e só dou início à revista em momentos livres, pois sempre leio do início ao final. Fico grato em saber que todos da Faculdade do Lanche têm acesso a este meio de comunicação. Pedro Mota dos Santos

Faculdade do Lanche, Campus Darcy Ribeiro Brasília - DF

Recebemos das bibliotecas do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Taubaté e da Universidade Estadual de Santa Cruz o agradecimento pelo envio de edições da revista Campus Repórter e solicitação de continuidade de recebimento por causa do grande interesse do público.

reportagem SUA TESE RENDE UMA

Darcy - a revista de jornalismo científico e cultural da UnB - foi criada para divulgar a produção intelectual da Universidade de Brasília. Se

você quer ver sua pesquisa nas páginas da revista, mande um e-mail para revistadarcy@unb.br


Rio Manuel Alves Pequeno, no caminho de Itacajá à aldeia da Barra, Tocantins


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