Quando as Cortinas de Fecham

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Carlos Evangelista

QUANDO AS CORTINAS SE FECHAM



Carlos Evangelista

QUANDO AS CORTINAS SE FECHAM

editora

S Ã O PAU L O - 2 0 1 1


editora

© Editora Lexia Ltda, 2011. São Paulo, SP CNPJ 11.605.752/0001-00 www.editoralexia.com

Editores-responsáveis Fabio Aguiar Alexandra Aguiar Projeto gráfico Fabio Aguiar

Diagramação e capa Equipe Lexia Revisão Bianca Briones

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP E92q Evangelista, Carlos Quando as cortinas se fecham / Carlos Evangelista. -São Paulo: Lexia, 2011. 96 p. ISBN 978-85-63557-78-0

1. Cultura - Arte . I. Título.

CDD –306 Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por transformar boas ideias em realidade e trazê-las até você. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso consentimento do autor. Impresso no Brasil. Printed in Brazil.


O GRUPO TÁGIDES QUE CONHECI

Num dia de outono, começou a chegada naquela cidade do interior do Brasil, de alguns jovens desconhecidos e solitários, que pretendiam estudar, trabalhar ou estudar e trabalhar. Pessoas com destinos tão desiguais, como que por acaso encontraram-se nesta cidade, trocaram ideias e se descobriram. Tinham um ideal em comum: transmitir algo de especial, alguma coisa que se fixasse na memória de cada um que os assistisse, como um momento de reflexão ou prazer. Reuniões foram feitas para decidir que nome receberia o grupo. Dentre as mil e uma propostas, todas apontaram uma só direção: “TÁGIDES”. Ora, por que “TÁGIDES”? O que significa? Camões, autor da máxima obra da língua portuguesa: “Os Lusíadas”, não só criou, como também invocou, pediu inspiração às musas Tágides para escrever “O Gigante Adamastor”, um dos dez contos de “Os Lusíadas”.


Com isso, nos pomos a homenagear este escritor a quem devemos um pouco da nossa cultura. O significado de Tágides para nós é: TEATRO AMADOR GRUPO ILUSÃO DE SEDA Por que ilusão de seda? — Sonhos! E por que não? Ser musa é ser sonho, existe algo mais belo que sonhar? Ser sonho é ser perfeito, ser suave, um toque de pureza, de valorização. A seda é algo por demais fino, delicado. Ser perfeito e delicado é alcançar o mais alto grau de desenvolvimento. É o cume. O ponto mais alto. Nós estamos propensos a lutar por esta situação, buscando a cada momento, corrigir erros, renovar os métodos, agir com democracia, e acima de tudo, com muita força de vontade e amor ao trabalho que a nós, temos certeza, só nos gratifica. É voltando os meus pensamentos para um passado breve, que encontrei força e inspiração para remexer e eternizar o grupo Tágides, do qual fiz parte, e com muita honra empunhávamos a bandeira da liberdade artística, mesmo ali, na terra do café, dos coronéis, da riqueza amarela e da pobreza das multidões.


PASÁRGADA E UMA HISTÓRIA

Após muitos dias de trabalho em torno deste ensaio, começamos a pensar num título que não só fosse bonito, pois o título é um cartão de apresentação, um imã junto ao público, mas que acima de tudo, tivesse alguma coisa a ver com o que propúnhamos a mostrar. Muitos títulos foram sugeridos; porém, só um alcançou a unanimidade: “PASÁRGADA E UMA HISTÓRIA”. Nos cabe agora explicar o porquê desta escolha; Bom... Fugimos em busca da poesia do grande Manoel Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada”, donde extraímos os seguintes trechos:


“Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei... ... Lá a existência é uma aventura de tal modo inconsequente ... Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro de impedir a concepção...” Manoel Bandeira, poeta modernista, era muito discriminado por possuir um mal que, no seu tempo, era incontrolável; a tuberculose. Ao ver-se podado por todos os lados, não podendo gozar uma vida normal, ele, em sua poesia, transportou-se para Pasárgada, cidade do Antigo Império Persa, onde segundo Bandeira, ele era amigo do rei (ou seja, tinha poder e prestígio), onde a existência era inconsequente (cada um poderia fazer o que quisesse, tinha liberdade de ação pois a existência era uma aventura contraditória à do mundo que vivemos); lá tem um processo seguro de impedir a concepção (é o que nos interessa; é a chave: o processo seguro de Bandeira, seria o aborto?). Neste ensaio tentaremos mostrar que extrair um filho, resolve de imediato o problema, mas nem sempre é seguro. Num enlace de assuntos, transportamo-nos à peça; esta se desenrola numa Pasárgada qualquer do Brasil, e como na de Bandeira, as pessoas envolvidas também disporão de liberdade numa dose excessiva, a tal ponto que lhes sejam permitidos tirar arbitrariamente, valores alheios: o direito à vida.


Sabemos que toda boa regra tem exceções. E se num lugar é permitido matar e alguém se vira contra esta lei, ele será visto como uma exceção em um todo. E toda exceção sempre faz uma história; alegre ou triste, só vocês poderão nos dizer, ao leem este espelho mágico de advertência que é... QUANDO AS CORTINAS SE FECHAM

Carlos Evangelista Curitiba-PR, Junho/2011



SUMÁRIO

PRIMEIRO CAPÍTULO ......................................... SEGUNDO CAPÍTULO ........................................ TERCEIRO CAPÍTULO ........................................ QUARTO CAPÍTULO ........................................... EPÍLOGO .................................................................

13 35 69 75 93



PRIMEIRO CAPÍTULO

Com a chegada da primavera, as noites eram agradáveis e propícias aos programas noturnos, quando aquele grupo teatral pode ouvir pela primeira vez a aclamação duma pequena, mas, inesquecível plateia que compreendeu aquela mensagem de carinho às crianças, produzida especialmente aos adultos, numa pequena cidade sulista, onde quinhentas pessoas aproximadamente tiveram o privilégio de ver pela primeira vez a peça teatral, produzida e dirigida por um “gentil construtor” amante do belo e admirador do certo. Recordo que logo no primeiro ato o produtor intencionava mostrar um pouco dos debates existentes na chamada classe média, quando um personagem chamado Lucas fora surpreendido pela esposa Sílvia, com a frase: “estou grávida”. O tal personagem estupefatamente disse que não podia ser... O público aplaudia aquele encontro de realidade “a La Brasil”. 13


Naquele primeiro impacto, o público do diretor, já sabia que aqueles valorizados reais que com sacrifícios saíram de seu bolso, prometiam ser bem compensados. Ao lado, podíamos ouvir também sons estridentes de um circo armado ao lado do palco, onde era apresentada a tal “Pasárgada e Uma História”, que agora atingia o seu ponto alto, onde aquela esposa que surpreendera o tal Lucas estava morta, ficando o viúvo tremendamente agressivo com a imperícia da junta médica, que tentava a todo custo acalmá-lo à base de sedativos. A plateia lacrimejava-se com a dose excessiva de amor existente naquele casal que acabava de se desfazer, pois morria sua companheira na mesa de cirurgia, quando fazia um parto prematuro (cinco meses). Aquela equipe médica matava as esperanças daquele que lutou até as últimas consequências para que não praticassem aquele aborto. O público aplaudia com suas lágrimas. A equipe médica não foi culpada e sim a vítima, ou Deus. Quem sabe? O semblante do autor com seus cabelos longos, encaracolados, sua pele morena cintilava e realçava ainda mais com o sol que havia tomado com seus assistentes: Josué, Fernando, Sandroca e Flor. Sempre acompanhando-o em seus sonhos desconcertantes e realizáveis. O suor descia em sua face como banho de lua a acariciar seu pranto que aos poucos se transformava em lágrimas de vitória. Senti que o produtor, que era o ator protagonista, representava o papel do viúvo que agora esmurrava um tal ginecologista; soube-se depois tratar do diretor daquela “instituição de caridade”, que mal sabia ele, Dr. Junqueira, que teria de sair do seu país, pela forte pressão da família da falecida 14


Fechavam-se as cortinas e uma voz masculina balbuciava qualquer coisa para aguardarem mais um pouquinho. Um som se fazia ouvir, provindo do tal circo ao lado, carinhosamente chamado de “Cafeódromo”, que testava sua potência para exibir Gal Costa ou Erasmo Carlos, nos dias seguintes. Pelo que se ouvia, os artistas exigiam boa qualidade de som. Sucesso absoluto, segundo os aclames da plateia que cumprimentava a cada componente do grupo Tágides, que retribuía com sorrisos, desconcertantes por parte de algumas atrizes, que exibiam sua riqueza maior: o corpo. Recordo que a atriz revelação, a que morreu, era a mais aclamada por todo o público que ali se fazia presente. Principalmente seus incansáveis admiradores que não mediram esforços para que aquele trabalho fosse realizado dentro das dificuldades que qualquer grupo enfrenta ao querer produzir e mostrar algum trabalho. Principalmente em se tratando de cultura, num país que pouco investe a esse setor “tão carente” e desrespeitado. Falo de seu genitor que ocupou uma das primeiras cadeiras da primeira fila daquele cine-circo-teatro. Acompanhado do seu ídolo maior, o filho poeta que tantos versos declamou referindo-se ao trabalho que sua turista rãzinha desempenhava naquela peça. Djalma Amorim, como é conhecido nos meios literários no sul do estado. Djalma é um poeta consagrado, literalmente; vivendo na pobreza por força do destino e por ele próprio que não se cansava de dizer: “um dia o meu trabalho de escritor será reconhecido, nem que isso significa viver mais alguns bons anos nessa penumbra cinzenta que é não conhecer vitória nem derrota”, plagiando o ex-presidente norte americano Abraham Lincoln. 15


Aqueles adeptos saíam às pressas do “Folias da Gabriela”, talvez para conseguirem uma mesa para alguns chopes na festa promovida pela administração, na época, instalado a uns cinquenta metros daquele palco aplaudido pelo talento da cia teatral, que, agora, sem máscaras, ajudava no desmantelo da sonoplastia, figurinos, cenários e outros servicinhos que, com certeza, apareciam em meio a tanta alegria pelo sucesso da noite de estreia Alguns como iniciantes na “vida de artista”. Aquele grupo de mulheres bonitas e feias, sabia que alguma pessoa um dia se lembraria daquela noite, porém, fomos todos convidados pelo copatrocinador do espetáculo, o nosso herói maior: Givaldo. “Parabéns pelo excelente trabalho desempenhado” — dizia aos mais chegados. Beijos, abraços e biritas não faltaram naquela noite que estava por desenrolar-se até as limitações de cada componente daquele grupo de amigos que aumentava rapidinho com pretextos de elogios. Um calafrio tomou conta do produtor, sendo prontamente atendido por sua falsa esposa que trazia consigo a todo compromisso, uma farmácia ambulante. Era hora de recolher e preparar-se para a segunda apresentação que corria sérios riscos, uma vez que o diretor não contava com aquela festa ao lado. Nada tirava o ânimo daqueles jovens que se despediam dos amigos e recém-conhecidos. Cada qual tomando o seu rumo. No primeiro impacto, nascia uma amizade entre Lucas e a vítima, que lhe convidara a acompanhá-la até o seu pequeno, mas aconchegante 16


apartamento para brindarem o sucesso daquela estreia O vinho foi servido aos convidados, sendo orquestrado pelo tradicional Tim! Tim! Aquele ambiente fazia Lucas, com seus vinte e oito anos, moreno claro, pele bronzeada, um metro e oitenta e cinco, pouco falante, mas com o aquecer do vinho, se manifestava, opinando sobre o trabalho de seus companheiros. Em especial o da atriz recém-descoberta pela sua beleza de expressão corporal a que fora submetida. Ela se fazia de desentendida, mas entendia muito bem o que o tal Lucas queria atingir. Foi quando um rapaz loiro, bigode crespo, se levantou e abraçando a “falecida” disse: — Meu bem, que tal a gente comemorar esse dia tão significativo para você, minha atriz maior, com um bom champanhe francês? Só nós dois... Lucas remexeu-se nas gostosas almofadas e respirou fundo, sabendo que ela não havia entendido nada de seus elogios. Pelo contrário, foi muito bem interpretado pelo loiro de bigode que foi mais direto, atingindo seu objetivo sem qualquer preocupação com os convidados. A anfitriã retribuiu o convite com alguns beijos e livrou-se dos braços do loiro, servindo-lhe mais um drink e agradecendo o convite, mas adiando-o para outra ocasião. Não esperando aquela resposta, o loiro despediu-se dos amigos, murmurando mais alguma coisa ao ouvido da pretendida e retirou-se dando tréguas aos planos e sonhos de Lucas que acabava de fumar um cigarro. Em meio aos traços da fumaça Lucas, viu aproximar-se de si aquela formosura trajando um baby-doll sedutor que desconcertava naquela sala em penumbra. Sem que o protagonista percebesse, havia ficado só naquele castelinho que 17


agora mais parecia um motel. Aquela mulher de estatura mediana, vinte e poucos anos, rosto de princesa e corpo de sereia, que não se importava com suas pernas bem torneadas, expostas ao convidado, que com delicadeza e perícia servia um drink para ambos, o que foi prontamente aprovado num sinal de afirmação por parte daquela que deixava agora transparecer seus empinados seios grandes. Lucas não fora bastante hábil para perceber que estava lidando com uma menina-moça bastante entendida na arte de identificar os olhares dos homens quando estão a cobiçá-la. Ele levantou-se vagarosamente e num gesto gentil, aproximou-se daquela muralha que estava a desmoronar de excitações. Mas num toque mágico, aquela prenda sentava-se na almofada abandonada por ele. Naquela posição de distância, falaram das cenas mais difíceis na opinião de ambos; cada um elogiando o desempenho do outro. Quase embriagado, o convidado demonstrava desejo de retirar-se, uma vez que já se passava das duas da madrugada e na cabeça dele ela devia estar muito cansada e ele não queria ser inconveniente ou cri-cri. Quando postou-se a porta para abri-la, sem vontade, ouviu aquela boca balbuciar: — Ainda é cedo, fique mais um pouco! Afinal, hoje é sábado, e estou bastante contente para dormir assim tão cedo. Se é que não lhe atrapalharei... Ele, não escondendo o cinismo retribuiu dizendo: — Já que você insiste, ficarei até você me expulsar. Ambos riram do viés cínico do sujeito. Sentados, lado a lado, começava ali uma tortura chinesa, com discretos toques nos braços, nas pernas, na barriga, 18


nos cabelos, nos pés, subindo um pouco mais até a boca que agora se encontravam num beijo fervoroso e desejado. As línguas bailavam e alcançavam parte do desejo de se excitarem. Lucas não se conteve e começou sua caminhada, tentando desfalecer aquele corpo de anjo que agora estava em seu poder. Os seios da “falecida”-atriz-revelação, agora eram sugados pela ousadia daquela língua excitante que percorria ambos os seios em busca de um arrebatamento mais justo. Os corpos foram se escorregando naquelas confortáveis almofadas até que a sua contracenante encontrasse uma posição que melhor lhe convinha para mostrar tudo o que era capaz. Subitamente, mas com muito jeito de garanhão, o tal fulano alcançou o ponto frágil da sua presa. Aquilo tudo pegava em cheio o desejo de ser possuída a base de carícias, por aquele homem que tinha alguma coisa especial em tudo o que fazia fora do palco. Ela mal começava o que ele, pelo visto apreciava: o sexo oral, seu companheiro não resistiu e ejaculou seus milhares de espermas, o que a deixou deveras aborrecida e ele bastante satisfeito, porém, em débito, sem qualquer condição de dar continuidade aquela arte, que nem todos conhecem ou apreciam. Ela tomou seu banho, dizendo que acabara de se lembrar que logo de manhã deveria receber a visita de um grupo de amigos da faculdade e que pretendiam concluir alguns trabalhos e negócios. Nem precisou soltar muitas indiretas para que Lucas percebesse a manobra em relação ao seu fracasso na brincadeira e incumbência de saciá-la. O que o mesmo não conseguiu, 19


deixando-a frustrada, despedindo-se com alguns beijinhos e prometendo na próxima vez controlar-se. — Até amanhã; Lucas! Cuidado para não esquecer o horário no circo... Desfiz o tripé da minha luneta imaginária e tentei recolher-me em meus aposentos com aquelas cenas eróticas em minha mente. Acho que dormi, e só revi o pessoal à noite, quando as bilheterias já se encontravam abertas ao público que já se fazia presente. Não para prestigiar a peça. Mas sim, para colaborar na festa promovida pela prefeitura, que trouxera atrações artísticas renomadas. E o que é pior, entrada franca, hoje, excepcionalmente. — Venham todos — dizia uma voz microfonada. A potência sonora invadiu o palco e o nosso público reclamava da desconsideração e desrespeito por parte dos organizadores. Várias personalidades se faziam presentes no auditório, mas nada fizeram para conter o som estridente que vinha do “Cafeódromo”, com a finalidade de prejudicar-nos. O que infeliz, miserável, e covardemente foi alcançada, após todas as tentativas. Os ingressos foram devolvidos e a apresentação foi adiada para qualquer data a ser confirmada. O público lamentou. A Cia teatral chorou. Nada foi feito; mesmo com os apelos dos atores e atrizes. Principalmente a atriz revelação que estava ansiosa para mostrar o seu talento e seu corpo seminu a uma plateia que fazia por merecer. A segunda apresentação ficou incubada para todos nós. Até hoje. Nos camarins só se ouvia: 20


— É foda ver nossos sonhos sendo desrespeitados... Mais foda ainda é saber que ficamos quatro meses ensaiando o feto desse trabalho e justo no dia, esses filhos das putas aprontam essa com a gente... — E agora diretor, quando voltaremos às terras da cidade canção? — interrogava Flor, ou Euflorzina. O diretor desabafava, dando seus gritos para alguém ajudálo na desmontagem dos cenários e outras infinidades de coisas. Frustração total. — Depois dessa, preciso de um destilado para reativar as energias e esquecer esse tipo de brincadeira inescrupulosa. — reclamava Lena, que interpretava um personagem chamado Inara, filha da falecida. O diretor furioso gritava: — Olha aí pessoal, vamos esquecer essa tempestade e nos prepararmos para as próximas apresentações no próximo final de semana, conforme é sabido. Cada elemento deve transar a sua cabeça da melhor forma. Já sei muito bem como consolar a minha, e acho que vocês deveriam reunir e discutir esse acontecimento lastimável, pois terei que fazer uma pequena viagem e nos reuniremos na sexta para ensaiar e acertarmos alguns detalhes sobre a apresentação do dia seguinte no teatro municipal da cidade de Califórnia. O diretor despediu-se do grupo, dirigindo-se ao Monza que mais imitava uma carroça. Mas que era carinhosamente chamado de “Azulão”. Aquele homem que lembrava muito Tarzan depois das malárias, agora não queria graça com ninguém; arrancando bruscamente, com destino ignorado. 21


Chegando ao Bar Cabanas de Cabral, onde costumava ir quando lhe acontecia algo de novo, foi logo servido por alguma coisa líquida. O recém-chegado remexeu os bolsos donde tirou um bloquinho e uma caneta, documentando algo que julgava importante. Ao seu lado, numa mesa bastante alegre, se ouvia uma voz feminina que mais parecia uma maritaca. Impaciente, o prejudicado se retirou, sentando numa mesa, próximo à pista de dança. Penumbra total. Tentou rabiscar mais algumas palavras e percebeu que os presentes ali, não eram otários para não perceberem que escrever naquele escuro devia ser ousadia de maluco, por mais besta que fosse. Tipo charlatão policial. Meteu tudo aquilo no bolso e começou a prestar atenção na música romântica que ali se fazia ouvir. Um grupo de dondocas que acabava de chegar, procurando o número da mesa assinalado num bilhete; olha aqui, olha lá, e não deu outra; aquela mesa pertencia ao grupo de moças que agora formava um muro ósseogordural. A mais impaciente, com a tranquilidade, ousadia ou parvoíce do fulano, disse-lhe, sorridente: — Por favor, nobre cavalheiro, o senhor deve estar com algum problema ótico, pois toda mesa traz um número e pelo o que consta neste bilhete, essa mesa pertence a nós, e, se o amigo não faz questão, será que seria difícil deixar a gente sentar na nossa mesa? O abilolado pediu desculpas e saiu. Chegando à portaria, lembrou-se de que não havia pago aquele drink. Pensou em voltar para acertar... 22


— Quer dizer que o nobre idiota gosta de líquido, mas é muito esquecido? — Algum problema de amnésia, senhor esperto? Ou será força do hábito? Acho que temos o medicamento certo para doenças dessa natureza, que hoje com uma pequena dose infantil, curamos qualquer paciente. — dizia um dos três crioulos, tipos oitenta por oitenta, que agora faziam interditar a portaria com a chegada de mais alguns policiais. — Esses caras com pinta de galãs turistas, gostam de brincar com a gente, nos dando muita dor de cabeça! — Seu nome? — Onde mora? — Onde trabalha? — Filho de quem? — Pra cá os documentos! Quando ele ia... — Mãos na cabeça! Bota ele de costas pra parede, ali no fundo e vamos acabar com esse tumulto! — disse uma voz lá de dentro. Até explicar que capitão de fragata não é o mesmo que cafetão de gravata... O diretor foi liberado, resmungando: — Hoje não é meu dia. Nesse caso, o melhor que se faz é ir dormir ou assistir o “Fantástico”. — dizia ele, esbravejando e roçando em quem entrava. “Depois dessas só um porre a la martírio”. Ou seja; sozinho em um canto qualquer. Pensava ele... Irritado, agora adentrava noutro botequim, onde tentava amenizar a sua dor através do álcool e sabe lá Deus o que mais. 23


Mais tarde, o Pedro Emanuel, um amigo nosso, nos relatou parte do encontro com Lucas naquela noite. — O que você está fazendo sozinho, sentado nesta calçada, a essas horas, Lucas? — Eu sabia que um intruso apareceria! — Poxa, Lucas! Eu só estou querendo saber. — Então eu também quero saber o que você faz aqui? — Perguntei primeiro! — disse Pedro Emanuel. — Tá bom, eu falo então. Sabe Pedro Emanuel, é esse seu nome ainda? — É, Lucas. — Bom, como o amigo pode ver, só estou tentando tomar um ar puro, e tentar entender por que às vezes acontecem tantas coisas na vida da gente que não conseguimos entender. — Você não excedeu na bebida, Lucas? — Ah, bebida? Ainda bem que você me lembrou. Quer um gole? — Não gosto de vodka. — Você morreria de sede na Rússia. — Pensando melhor, acho que também vou te ajudar nessa tarefa difícil de secar essa garrafa. — Assim fica melhor. — disse Lucas — você é secretário de cultura desta joça de cidade, não é? É sim. Tenho certeza que é. O que você fez ou deu para fazer jus a esse cargo? — Espera aí, Lucas. — Espera aí, uma porra! Você vai ouvir agora. Você não é culpado, também sei. Mas está metido na coisa, então é você 24


mesmo. É muito difícil falar em cultura numa cidade que destina quase nada da sua arrecadação ao setor. A parte que nos toca eu mandaria enfiar no ... cofre e procurava conscientizar parte da comunidade, visando a produção de algum trabalho na área. Veja você que tivemos de assegurar o aluguel do “Folias da Gabriela” há quase quatro meses. Custava muito aqueles putos nos comunicar do show que haveria no mesmo dia e horário? Ou essa é uma maneira que vocês encontraram para nos coibir? Toma mais um gole? — Não quero. — Toma! — Não quero. — Toma, porra! Ou se manda! Eu sei que você é um bebum do cassete. Com certeza depois irá me taxar de alcoólatra. Não é, Pedro Emanuel? — Você está alterando comigo desnecessariamente, Lucas. Vamos manter um certo nível. Você não acha que se dialogarmos será bem melhor, Lucas? — Acho. Desde que você me ajude a beber isso aqui. — Vou aceitar só mais um gole, hein! Tomei umas cervejas agora à tarde, e vodka não é o meu forte. — Foi a melhor opção que encontrei para sair do sério mais rápido. — Se você topasse eu também tomaria um porre de vinho... — Eu topo. Só que você no seu vinho e eu na minha vodka. — Conheço uma adega, aqui perto que é o máximo em vinho. 25


— Acho que eu não aguentaria levantar. — Eu te ajudo. — Qual é Pedro Emanuel, não é a primeira garrafa da noite não, companheiro. Sei muito bem o que estou fazendo. — Qual foi o meu convite? — Você também deve estar amargurado e pretende esvaziar a adega do seu amigo. Estou certo? — Gosto de bêbado consciente. — Olha lá como você está me tratando. Bebo socialmente, e não estou bêbado. — Ah! Não é? — Não, por quê? — Faz um quatro com as pernas. — Um dia você me paga. Meio trêmulo... mas taí. — Venha, Lucas, entre aqui no meu carro! — Se você pretende me acompanhar nesta madrugada, terá de ser a pé, pois não devo e não aguento dirigir. Essa cidade é muito pequena para tantos carros trafegando. E depois a gasolina tá muito cara... — Para com isso, Lucas. Venha! — Tá bom, eu vou. — Podem ficar tranquilos, senhores, o carro de vocês estará muito bem vigiado... — Se você quiser vigiar, muito bem, se não quiser, ele pretende pagá-lo da mesma forma. — disse Lucas, brincando com o flanelinha enfeitado com uma faixa fluorescente. Foram logo atingidos por dezenas de olhares, na entrada. 26


Na primeira mesa vaga, Lucas se sentou e chamou o garçom num sinal sutil e falou baixinho ao seu ouvido: — Sabe jovem, eu sou muito chegado em vinho, ou melhor, até que gosto, mas hoje prefiro vodka, mas em compensação o meu amigo aí quer ver as cartas e enxugar algumas boas garrafas. Com licença, eu vou tomar a minha vodka. — Mas aquilo não é motivo pra você encher a cara, Lucas. — Como não é? Foram seis meses de ensaios cansativos e logo na segunda apresentação, essa humilhação. E você ainda acha que não é motivo? Você é um camarada culto ou um oportunista protegido? Você sabe muito bem o que significam as primeiras apresentações dum trabalho de teatro. — O que você pretende fazer? — Nada! É isso aí. Nada! — Mas, e o público? — Devolvi o dinheiro. — Tinha muita gente? — Umas oitenta pessoas. — Esse público precisava ser respeitado. — E foi! — Como? — Ele não entenderia nada. — Por quê? — Não se faça de besta, Pedro Emanuel, você sabe muito bem que com aquela potência sonora invadindo o circo, seria impossível. — Você tem razão, acho que houve uma falha da divisão. 27


E só por isso você ficou magoado, abandonou o grupo e aqui está enchendo a cara? — Nada disso. Só quero sair do sério. Você tem uma opção melhor? — Talvez mais tarde. — Oba! Hoje quero entrar em todas. Bom, Pedro Emanuel, como te falei, eu tenho lá meus motivos pra justificar o meu porre. E você? — Pra ser sincero com você, Lucas, bebo vinho por prazer. — Só por prazer, Pedro Emanuel? — Só. — Olá, Pedrinho! Como tem passado? Por onde tem andado? Quem é esse gatinho? Algumas novidades agradáveis? — era Simone que se aproximava. Simone é dessas mulheres que ninguém diz que é homem. Maitê de Curitiba, Roberta Close estão muito aquém. Iguais, digamos. — Sente-se aqui e tome um vinho com a gente, Si! — Vou aceitar sim. Aquele pessoal ali tá tão cafona que nem dá pra trocar umas ideias Quem é você gatinho? — Bom, pra começar não sou gatinho. Sou bicho. Bicho do Paraná... — Paraná? Adoro Curitiba! Não consigo esquecer Ilha do Mel. Ah, que réveillon inesquecível, aquele. Fico com fome só de imaginar um barreado. — E depois acho que estou um pouco alterado para tecer elogios, mas mesmo assim consigo e me arrisco em dizer: como você é bonita! 28


— Engraçado que eu não acho a Si tão bonita, mas te acho sensualíssima, Si. — era Pedro Emanuel. — Realmente, acho que não só você, Lucas, como também o Pedrinho, beberam demais e os olhos de vocês não estão enxergando direito. Assim vocês me deixarão convencida de que sou bonita e gostosa. — Quanto a mim, posso imaginá-la atrevida numa cama. — Assim você me deixa arrepiada. — Me deu vontade de escrever uma poesia. — É mesmo Pedrinho? — Me passe um guardanapo, Lucas! Por favor. — Quero ver os seus dotes poéticos, Pedrinho! — Tudo bem meus futuros adeptos, tenham um pouco mais de paciência. Veja como ficou Lucas. DIMENSÕES “Se a vida te der sonhos, Sonhe... Se a vida te der amor, Ame... Se a vida te der ilusões, Iluda-se... Se a vida te der alegrias, Alegre-se... No entanto, se a vida te oferecer a outra face, Aquela em que a tristeza e o desamor São uma constante, 29


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