Revista Palco

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edição piloto // nov.2016 - jan.2017

palco o c u p a ç ã o

cia de teatro helióp olis • site sp e c ific • grupo xi x • ad ap taç ão d e r o tei r o s • p er fo r manc e e fo r m a çã o



Redação Isabel Barros / Henrique Fernandes Beatriz Guimarães / Nathalia Nasser Autor convidado Antônio Duran Ilustradoras convidadas Camila Picheco e Helena Nääs Design Nathalia Nasser Orientação Marcia Eliane Rosa Impressão Ipsis Gráfica contato revistapalco@outlook.com instagram /revistapalco facebook /revistapalco palco.art.br palco 2016


5 editorial 17 leitor 18 no limite do corpo 24 (como) nasce um performer

especial 32 rua, acasos e provocações 38 aquém da salvação, a arte como expressão 44 jogo de observar 51 ocupa e revitaliza

59 roteiro à adaptação


editorial O que é palco? Essa pergunta foi o pontapé inicial para o nascimento desta revista, que surgiu da motivação de quatro estudantes apaixonados por arte e cultura e com vontade de desvendar esse mundo além do que geralmente se vê nas bancas. De três em três meses, a palco chega com a missão de suprir essa lacuna do mercado editorial e contar histórias e tendências referentes ao teatro, à dança e à performance que marcam a contemporaneidade. Nosso leitor é alguém que não se satisfaz com as tradições e entende que o palco, em sua dimensão contemporânea, não se prende aos tablados tradicionais, mas passeia pelos becos, esquinas e viadutos da cidade. A apropriação de novos espaços urbanos, assim como a intensa colaboração entre artistas e coletivos, caracterizam as artes da cena desta época. Ocupar é criar e perceber as relações entre a arte e seu ambiente. Esse é o assunto que conduz o Especial da edição piloto. Você vai ler sobre o impacto do teatro na centenária Vila Maria Zélia, explorar o processo de criação site specific, conhecer o diretor da Cia. Teatro de Heliópolis, e acompanhar as provocações trocadas entre a rua e a arte durante uma intervenção urbana. Completam a revista reportagens sobre adaptação de roteiros clássicos, formação em performance e os limites corporais na arte. Nas próximas páginas, nossos entrevistados respondem à pergunta, o que é palco?

“Exigimos que a arte se torne uma força transformadora da vida. Procuramos abolir a separação entre poesia e comunicação de massas, retomar o poder da mídia dos comerciantes e devolvê-lo aos poetas e sábios.” Franco Berardi / 2009


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O palco é o que exibe algo para ser contemplado.

Tales Frey performer




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É uma cápsula de transformação.

T. Angel

performer


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Um espaço de exposição onde algo não-cotidiano está acontecendo.

Majú Minervino performer e atriz


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Palco é o espaço de comunhão, de partilha.

Miguel Rocha diretor cênico


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É todo e qualquer lugar que potencializa ao máximo a história que se quer contar.

Ronaldo Serruya ator



Créditos especiais de fotos

O que é palco?: Redação Capa No limite do corpo: Thiago Stone Avenida Paulista: Redação Galeria Jogo de Observar: Beatriz Guimarães Imagem final Ocupa e revitaliza: Henrique Fernandes


tor

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lei

Helena Nääs: Tem muito artista que gosta de revoltar o público. Ele não se importa se o público gosta ou não, o importante é gerar uma reação, um choque. Isso para mim também é arte, eu gosto de ver.

Samuel Ribeiro: Eu gosto de ter uma leitura especializada em cultura para saber dialogar com alguém e ver sentido no que penso.

Paula Fonseca: Eu quero ler sobre discussões, debates. Às vezes vemos alguma coisa artística e entendemos algo, mas será que é só aquilo mesmo? Será que não há outra visão? É sobre isso que quero ler.

Diego Carvalho: Eu gosto muito do making of, de ver as etapas, como foi feito e de que forma foi feito. O público não quer só receber o pronto. Ver as etapas é aprendizado, é interessante, e o interessante ensina.

Converse com a gente pelo facebook /revistapalco, e-mail revistapalco@outlook.com e pelo site, palco.art.br.


CORPOS

NO LI MI T E

DO C O RPO


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Por Isabel Barros

Performers e bailarinos levam seus corpos ao extremo para se expressarem e acendem o questionamento da linha tênue entre violência e arte

Por onde passa, T. Angel chama atenção. Olhares curiosos, e até de medo, são direcionados ao performer. “Eu nem percebo mais. Algumas pessoas perguntam se dói, chega a ser engraçado”, brinca o performer, que só na região do rosto conta com mais de quatro piercings e cinco alargadores. Adepto da modificação corporal, Angel não sabe mais quantas perfurações e tatuagens tem pelo corpo. Perdeu a conta, mas continua se modificando. A mais nova aquisição foi um implante subcutâneo em forma circular. Feito de silicone, o implante forma uma protuberância na região do ombro esquerdo e deixou uma pequena cicatriz em uma de suas tatuagens. Cicatrizes também são incontáveis no corpo de Angel. As intervenções no corpo começaram

cedo, mas nunca eram vistas como algo artístico ou performático. “O meu começo foi muito voltado para a estética, para a construção de uma identidade. Eu só pensava se meu corpo iria aguentar os procedimentos”, lembra Angel. Após alguns anos de modificação, Angel entrou em contato com a bodyart, expressão artística em que o corpo é usado para disseminar uma mensagem, muitas vezes voltada para a performance de risco, e, com isso, viu arte no que fazia. “A modificação corporal não é arte, ela pode vir a ser arte. E dizer isso não é tirar o valor da prática como fenômeno social, eu estou ampliando as suas possibilidades: pode ser arte, estética, autoconhecimento sexual e espiritual”, afirma Angel.


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Com a bodyart, Angel atingiu uma sintonia com o que já fazia e conseguiu ressignificar o seu trabalho para o campo artístico. Com isso vieram as suspensões corporais. Buscando o extremo do seu corpo e a quebra de limites, Angel fez uma preparação de cinco anos para realizar sua primeira suspensão. “Eu não sabia se ia subir, se ia conseguir, se minha pele ia rasgar. Esse é o risco, você nunca sabe se vai conseguir ou não completar a performance”, completa. A bodyart está dentro do universo performático que busca o limite do corpo. O risco e a quebra de limites sempre foram discutidos na dança e na performance. Marina Abramović é talvez a maior referência do assunto. Reconhecida mundialmente, a performer sempre quis explorar as possibilidades do seu corpo e os limites do público nas suas performances. Em uma das suas performances mais famosas, Rhythm 0, Marina ficou em uma sala por seis horas, com 72 objetos e um público que poderia usar qualquer um deles nela. Depois de ter suas roupas e pele cortadas, a performance teve que ser interrompida quando uma das pessoas apontou uma arma na cabeça da performer. Já no âmbito da dança, uma referência nacional no desafio corporal é a coreógrafa Marta So-

ares. Com uma carreia sólida de mais de 20 anos, Marta realiza trabalhos em cima da “impossibilidade de dançar”, e agrupa bailarinos para exibir formas híbridas como segundas-peles que questionam os limites e o poder. Os ensaios de Deslocamentos, obra mais voltada para a quebra de limites, duravam cerca de cinco horas e eram todos baseados na improvisação. “Eu dava aquecimentos voltados para a técnica somática, para que as bailarinas pudessem aguentar as posições propostas. Em algumas apresentações, elas ficavam por horas em uma posição, apenas deixando o corpo ceder”, conta a coreógrafa.

As formas híbridas de Deslocamentos, obra de Marta Soares do Povo (SP), em abril de 2015. Foto: João Caldas.

A modificação corporal não é arte, ela pode vir a ser. isso não é tirar o valor da prática como fenômeno social, é ampliar suas possibilidades.


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Marta sempre leva seus trabalhos aos extremos e prepara os seus bailarinos para a carga de suas obras. Uma das intérpretes de “deslocamentos”, Talita Florêncio, vê na quebra de limites que Marta propõe a possibilidade de renovação. “O trabalho desafia os limites do corpo, mas o desafio é, também, encontrar mecanismos de resistência internamente, descobrindo maneiras de avançar os limites de dentro para fora. Encontrando novos caminhos possíveis de re-existência”, explica a bailarina. Talita e as outras intérpretes ensaiavam três vezes por semana, mas em períodos com mais demanda, os ensaios eram mais frequentes. Como o trabalho foi voltado para a improvisação, o extremo físico proporcionou uma liberdade criativa para as intérpretes, o que, para Talita, está relacionado à experiência do corpo em um ambiente de risco. “Qualquer experiência que coloque o corpo realmente em um ambiente de risco, no seu limite, é uma experiência naturalmente transformadora. O corpo que ultrapassa esses limites é outro, não tem volta. Quando isso acontece, não só processos criativos, mas outras perspectivas da vida e do fazer artístico se modificam”, completa Talita.

apresentada na Casa

Para o controle físico e emocional dos artistas que se expressam nesse ambiente de risco, a respiração é parte essencial do processo. Para isso, elementos da somática são usados por vários artistas da área. Julia Ziviani, professora titular no curso de artes corporais e na pós-graduação de artes da cena da Unicamp, utiliza a educação somática há trinta anos dentro das técnicas da dança. Utilizando como princípio a não separação de corpo e mente e baseando-se em práticas orientais, a somática preza muito pelo momento presente e pela interação com o outro e o meio ambiente. Julia leva essa linha para seus bailarinos serem mais conscientes e criativos com o próprio corpo, além de conservarem seus corpos e lidarem muito bem com os limites. “Se o bailarino é jovem, ele vai querer ir além, e é papel do professor direcionar melhor esse aluno. A natureza é paciente, mas ela arrebenta o corpo. O bailarino é um atleta, e se expor ao limite faz parte, mas é possível fazer tudo isso sem se machucar”. Julia não enxerga necessidade em ações que abusam do corpo, tanto na dança quanto na performance. “Essa pessoa vai dizer que é arte se ela partir de um conceito que suporta isso. Eu não acho necessário, mas tudo o que você constrói com um texto por baixo, pode fazer sentido e estar justificado. Essa violência às vezes atinge o psicológico, tanto da plateia quanto do artista, e leva o emocional ao limite”, explica.


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o que eu faço comigo não é violência. violência é o que estamos vivendo hoje dentro de um estado caótico e autoritário.

Essa violência é discutível. Angel não vê seu trabalho como algo violento. “Violência para mim é o que estamos vivendo hoje dentro de um Estado caótico e autoritário, onde não temos controle sobre o próprio corpo. O que eu faço comigo não é violência”. Além disso, o performer estabelece uma relação moral com o que é aceito como violência e dor pela sociedade. “A dor é sempre abordada no mundo da dança e parece ser mais aceitável que outras dores, ou seja, abrir a perna lá em cima não é natural, mas é mais aceitável do que eu me perfurar, sendo que ambos são antinaturais para o corpo. A dor e a violência são construções sociais”, comenta Angel. A visão da dança como uma violência mais aceitável contra o corpo vem das suas tradições. De acordo com Julia Ziviani, o ballet clássico, vindo da sociedade francesa burguesa, sempre foi um status na sociedade, algo que o rei gostasse ou até mesmo praticasse e, até hoje, a dança é vista dentro do universo espetaculoso. “A dança hoje em dia é algo voltado para o sensacional, não há um tra-

balho para isso”, conta. Algumas pessoas, como Marta Soares, adotam as técnicas somáticas para trabalhar melhor o corpo do artista, mas de acordo com Júlia, “a maioria não conhece nem a ossatura humana, o que dificulta na hora de trabalhar com o corpo humano e lidar bem com as limitações de cada bailarino”, comenta. Tentando superar suas limitações, o performer Angel acredita que a suspensão corporal o fez potencializar seus limites. “Eu ganhei uma resistência corporal muito forte através da suspensão. Eu achava meu corpo muito frágil, cheio de medos, e a suspensão corporal me deu essa potência”, conta. Apesar do risco, Angel não se imagina sem a suspensão ou qualquer outra performance em que use o corpo. “Para mim a suspensão corporal é libertadora em um nível que poucas relações conseguem chegar. Não liberta só o meu corpo, mas em como ele move o entorno e afeta os outros. Em cada suspensão eu quero passar uma mensagem, algum conflito relacionado a mim ou a algo externo” conta Angel. Alguma das posições na suspensão

assustam. “Uma vez, fiquei suspenso apenas pela barriga. Outra vez, fui suspenso pelas costas e panturrilhas, para ficar em posição de reza”. Os nomes também não são muito convidativos: suicídio, coma, ressurreição são algumas das definições que Angel já performou, muitas delas deixando marcas no seu corpo. Ciente do risco que corre, Angel não tem intenção nenhuma de abandonar a bodyart. “Se eu não estivesse fazendo isso, já teria morrido. Eu não pinto, eu não canto, é assim que eu me expresso, assim que a arte sai de mim”, completa.

Mais fotos e conteúdo em palco.art.br.


Angel performando Supernova na Virada Cultural Paulista de 2012. A performance buscava criar uma corrente energética contrária ao ambiente contemporâneo hostil. Fotos: Thiago Stone.


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FORMAÇÃOS

(como) nasce um performer Texto e imagens por Henrique Fernandes

O surgimento de um artista performático pode vir de lugares como um curso acadêmico ou um questionamento pessoal

Tales Frey tinha cinco anos quando foi andar de bicicleta com a irmã e propôs que eles trocassem de roupa um com o outro. Assim pedalaram: ela com as roupas do irmão e ele com o vestido da irmã. O garoto acabou caindo da bicicleta na frente de casa, entrou pela sala chorando, correndo e de vestido. Seu pai assistiu àquela cena. "Eu já fazia performance e não sabia que era", conta o artista, que hoje define essa modalidade como sua principal expressão artística. Não muito distante dali, Majú Minervino, como muitas crianças, vestia os sapatos da mãe e andava pela casa, colocava sutiã, enchia com laranjas e pulava para sentir como era ter peitos. "A criança está num lugar de experimentação assim como a performance. A gente já nasce performer", explica ela. Hoje, a artista transita entre a performance, o teatro, o

cinema e a TV. Ela acredita que os artistas performam desde cedo, a diferença é que depois fazem isso propositalmente e conscientemente. Tales e Majú passaram a infância juntos, são amigos desde sempre e, quando adultos, se viram interessados pela mesma fatia da arte. Performaram juntos em vários lugares a ação F2M2M2F, em que, de trajes trocados, seguram um espelho entre si e beijam o próprio reflexo durante uma hora. Dependendo do ângulo que se olha, eles parecem ter trocado de corpo ou de cabeça. A ideia veio de Tales, que desde muito cedo na vida artística procura questionar regimes normatizantes, como as roupas definidas por gênero, a sexualidade, e os rituais religiosos e sociais. Para Otávio Donasci, professor da PUC-SP e especialista em performance,

as vivências e observações do cotidiano compõem grande parte do trabalho performático. Ele acredita que a performance se cria a partir do questionamento de regras sociais, a exploração de anseios e problemas pessoais e a vontade de levar para a audiência uma visão de mundo. “O performer não precisa nascer num curso, pode nascer se alimentando de si mesmo”, defende Otávio. Apesar disso, o professor entende a formação acadêmica como um componente importante para afirmar o performer que o artista já quer ser.


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A performance é conduzida pelos passos de dança executados por Tales e seguidos por Majú, numa coreografia que dura 60 minutos


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Fazer questionar é um dos pilares da profissão do performer e isso acontece o tempo todo em F2M2M2F. A performance, que acontece há dois anos, conta com os dois artistas em trajes trocados e distorções causadas pelo espelho

Para Tales, que estudou em colégios tradicionais, alguns episódios vividos na infância e na adolescência formaram sua visão de mundo e hoje regem seus trabalhos. Uma vez viu uma amiga ser repreendida por combinar terno, gravata e maquiagem à la drag queen durante uma brincadeira da escola, na qual os alunos deveriam usar roupas do sexo oposto. Em outra situação, foi chamado na sala da diretoria e questionado, de forma dramática, se era gay ou não. Tales fez teatro desde pequeno e, mais tarde, ingressou em Artes Cênicas na UFRJ. O curso focava o teatro tradi-

cional, sendo a performance raramente trabalhada. Foi uma professora, Eleonora Fabião, que apresentou a ele essa modalidade. Depois de se formar em Artes Cênicas, ele se mudou para Portugal e fez mestrado em Teoria e Crítica da Arte, na Universidade do Porto, o que o fez abrir o leque e explorar coisas novas, entre elas, a arte performática. Em seguida, veio o doutorado em Estudos Teatrais e Performativos, na Universidade de Coimbra, que rendeu um projeto-tese e diversas performances sobre rituais. Já Majú viveu o despertar na própria família: o pai, artista plástico, sempre fa-

lou de arte com a filha, trazendo obras e informações sobre artistas para dentro de casa. Ela se interessou por teatro e dança e, por fim, escolheu fazer Comunicação das Artes do Corpo na PUC-SP. A graduação, uma das poucas do país a tratar performance, dança e teatro de igual para igual, permite que o aluno se forme um artista do corpo e direcione a formação para qual modalidade preferir. Assim, Majú saiu da universidade como performer.


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Outros cursos brasileiros podem ajudar o artista que quer se tornar performer. Faculdades de Artes Visuais em universidades como PUC-Campinas e UNESP oferecem disciplinas de performance no currículo acadêmico, mas o aluno sai formado como artista visual. É possível, também, encontrar cursos de curta duração em centros culturais e artísticos das grandes cidades.

Verdade e provocação Majú descreve a performance como uma manifestação da verdade. "Ser performer é, simplesmente, ser", diz ela. "No papel de atriz, preciso encontrar essa liberdade dentro de uma coisa formatada; na performance, não há como fugir da verdade". Desta forma, a arte deixa de apenas imitar para, enfim, ser a vida. Tales demonstra isso ao transformar seus acontecimentos pessoais, como o casamento e os aniversários, em eventos performáticos. "Não tem interpretação, é a minha subjetividade, como leitura, como signo", define o artista. Se em 2008, quando deixou o Brasil, Tales encontrou em Portugal um ambiente mais favorável à performance, hoje ele acredita que já superamos nossos colonizadores. Ele reconhece que cresceram por aqui os estudos acadêmicos, os festivais voltados à modalidade, e a discussão sobre as vertentes da performance, como fotoperformance e videoperformance. Com esse crescimento no Brasil, a performance é capaz de provocar os espectadores de diversas maneiras,

como fazem Tales e Majú durante a ação F2M2M2F. Ao colocar o gênero à prova, os artistas geram todo tipo de reação. "O que isso quer dizer?", questiona uma senhora que assiste sentada à ação. "Isso é arte!", brada um senhor que passa ao lado dos artistas. Risadas surgem de um grupo de homens que saem da academia, surpresos ao presenciarem um rapaz de saia e salto alto e uma moça de terno. Depois do ato, a mesma senhora de antes chama os artistas e pergunta o que era tudo aquilo, recebendo como resposta uma conversa sobre o beijo, a homossexualidade e a proposta da ação. A performance, então, cumpriu seu papel: surtiu efeito e questionamento para além da obra.


ESPECIAL

Desde as primeiras reuniões de pauta, as histórias que uniam arte, cena e cidade já se destacavam entre as outras. Então, foi natural que elas se juntassem num especial sobre ocupação nesta primeira edição. O uso das ruas e outros espaços públicos tem mudado nos últimos anos. Vieram mais ciclovias, festivais ao ar livre, intervenções urbanas e experimentações artísticas nos mais diversos cantos. Em São Paulo, onde está nosso foco editorial, o principal marco foi a abertura da Avenida Paulista aos domingos exclusivamente para pedestres e bicicletas, que acabou dando à população um palco aberto e livre. As reportagens que compõem este especial buscaram explorar essa reinvenção do espaço urbano como espaço da arte, seja na Paulista, na Vila Maria Zélia ou em Heliópolis. Acima de tudo, as matérias mostram a visão da palco acerca da arte contemporânea.


OCUPAÇÃO


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Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade. – Paulo Leminski, 1976


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Avenida Paulista, 2016


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RUA , A C A S O S ~

E P RO VOC A C, O E S Intervenção urbana Cegos, do Desvio Coletivo, faz pensar sobre os efeitos da arte na cidade e vice-versa


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Texto e imagens por Beatriz Guimarães

Cinco anos de estrada e imprevistos ainda acontecem. A produtora Marie Auip acaba de anunciar, esbaforida, que não arranjou as constituições que seriam rasgadas no auge da performance. Para não perder a pegada política, ela comprou uma porção de bandeiras do Brasil. “Minha ideia é cada um ficar com uma bandeirinha na boca, mordendo mesmo”, explica ao restante da equipe, mais que acostumada a mudanças de última hora. Os bastidores da intervenção são os fundos de uma igreja datada de 1869. As salas estão tomadas por um entra e sai de quase quarenta pessoas que se dividem entre as tarefas da montagem. Alguns já vestem os trajes executivos e penam para dar o nó na gravata; outros, sentados no chão lá de fora, afundam os braços inteiros em baldes com água e argila, espremendo a massa entre os dedos até que se forme lama. A maioria é estudante de artes cênicas ou visuais, mas também há artistas experientes e gente que nunca teve intimidade com a arte. Já os cabelos coloridos, as tatuagens geométricas e as gargalhadas altas parecem ser pré-requisitos para participar. Pelo teor do bate-papo, que vai da música ao sexo, quem vem de fora não suspeita que eles só se conheceram dois dias antes, na oficina Cegos, que daqui a pouco vai dar vida à performance de mesmo nome. O projeto foi criado em 2012 pelo Desvio Coletivo em parceria com o Laboratório de Práticas Performativas da USP. Era para acontecer apenas uma vez, na avenida Paulista, mas acabou rodando trinta cidades brasileiras, além de Paris, Amsterdam, Barcelona, Ilha da

Madeira (Portugal), Nova York, Praga e San José (Costa Rica). Como o título já sugere, a performance é uma crítica à cegueira contemporânea, egoísta, insensível, impaciente e indiferente. Uma coisa à la Saramago. A representação vem na forma de um exército de executivos banhados em lama, mudos e vendados com gaze, que marcha lentamente pelos símbolos de poder das cidades, desde prefeituras até bancos e delegacias. Menos de uma semana depois do impeachment de Dilma Rousseff, os diretores da intervenção, Marcos Bulhões e Marcelo Denny, estão mais provocadores do que nunca. Andando inquietos de um lado para o outro, eles falam em invadir as ruas da cidade para levantar reflexões em quem estiver no caminho. Mas, se o asfalto pode ser palco de protesto, a televisão parece estar longe disso. “Se falarem ‘fora, Temer’ a matéria não vai ao ar”, avisa a repórter de uma emissora local antes de entrevistar a dupla. Quase quatro horas de preparo e os artistas estão prontos para ir da igreja às ruas, enlameados dos sapatos à cabeça – ou ao chapéu, para os que usam. O cenário, desta vez, é o centro movimentado de São José dos Campos, município que abriga o Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba. Na primeira parada, os performers enfileirados dão as costas para uma delegacia de polícia e, demoradamente, levantam o braço direito em uma saudação nazista. “É uma referência a este momento de extrema violência policial”, explica Denny, que segue a performance de longe, atento à recepção e aos estranhamentos dos espectadores.


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Conforme a lama seca os participantes da ação ficam parecidos com estátuas. A venda representa a cegueira contemporânea


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Essa ideia de fazer uma espécie de “Heil Hitler” começou em 2013, quando o coletivo invadiu um culto evangélico lotado e ficou cara a cara com o pastor. “A polícia acaba sempre ficando confusa: acha que tem que mandar parar, mas, ao mesmo tempo, sabe que não pode”, relata o diretor. Isso explica porque a trupe leva, para onde quer que seja, um advogado munido dos documentos de todos os artistas e pronto para questionar abusos de autoridade e demais impedimentos. O apoio jurídico também foi fundamental nas apresentações de Brasília e Paris. Na capital brasileira, durante o primeiro dia da votação do impeachment, a performance quase foi desmanchada pelos policiais, só sobreviveu porque estava amparada pelo Festival da Cena Contemporânea. Denny conta que o episódio em Paris foi ainda pior, envolvendo até passaportes apreendidos

pelos oficiais. “Íamos fazer o gesto nazista para a bandeira francesa. Em seguida, a polícia chegou e mandou parar tudo. Aí ficou claro que as coisas por lá não são tão liberté, egalité e fraternité como pensamos”. Mas a interferência não vem apenas das autoridades. Já é costume os moradores de rua quererem participar da ação, às vezes de maneira violenta, outras vezes de forma curiosa. Em Campinas, alguns desses espectadores lamberam notas de dinheiro e colaram sobre os olhos, tentando imitar os performers vendados. Aliás, o acaso é a essência da performance urbana. Tudo o que acontece naquele cenário vira arte, seja a chuva que derrete o barro ou o desmaio do ator que não suportou o sol a pino. Em algum momento das quase três horas de percurso em São José dos Campos, um senhor

Além dos integrantes do Desvio Coletivo, a apresentação contou com artistas e estudantes que participaram da oficina de intervenção urbana do Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba


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passa pela avenida e brada "viva as Forças Armadas!". A trilha sonora se completa com as buzinas dos carros, que se intensificam cada vez que os artistas decidem atravessar a rua em slow motion, os vendedores estridentes anunciando chips de celular, e comentários diversos sobre o que seria aquela gente estranha que desassossega o centro em pleno sábado. "Acho que é uma manifestação política, só não entendi se é contra ou a favor da Dilma", ouve-se entre os burburinhos. Outra voz na multidão acredita que o sentido daquilo é "fazer pensar na corrupção do país". Já as crianças não querem muito saber, estão é com medo. É difícil assistir à Cegos e não resgatar as afrontas que Flávio de Carvalho (1899-1973) já fazia nos anos 1930. Certa vez, movido pelo desejo de perturbar – no bom sentido – o cotidiano de São Paulo, o arquiteto caminhou na direção

contrária dos fiéis de uma procissão de Corpus Christi usando um chapéu verde. A aventura quase acabou em linchamento, mas serviu de herança ao movimento da intervenção urbana no Brasil. A tendência só pegou de vez por aqui nos anos 1970, com grupos como 3NÓS3 e Viajou sem Passaporte, e segue forte. Na marcha do Desvio Coletivo, a equipe de produção fica com a pior parte. Além de conduzir todo o trajeto, fotografar, filmar e checar se há algum artista passando mal, eles tentam acalmar os motoristas e abrir passagem. Mas ainda é melhor assim do que negociar o bloqueio do trânsito, segundo Denny. “A ideia é intervir, sem pedir licença para entrar. Se fosse tudo com base em negociação, jamais teríamos ocupado a Petrobrás, a catedral de Notre-Dame ou a Times Square”.

A performance caminha lentamente pelas ruas da cidade, gerando comentários curiosos dos pedestres e buzinas impacientes dos motoristas


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Assim como a rota, o teor da performance varia conforme a cidade e o momento. Em Manaus, os artistas empunharam motosserras na frente dos bancos financiadores do desmatamento e, depois, carregaram bonecas nuas como denúncia à uma máfia de pedofilia envolvendo vereadores locais. Na fachada da sede do PSDB, em Belo Horizonte, montes de farinha fizeram parte da encenação, referindo-se às acusações de tráfico de cocaína ligadas ao senador Aécio Neves. A apresentação de Recife, por sua vez, se diferenciou por conta da relação entre a lama e aquela terra do manguebeat, tão marcada pela tradição dos caçadores de caranguejo. Depois de tanto provocar sem falar nada, a Cegos se recolhe do mesmo jeito que apareceu, vagarosa. Enquanto as ruas voltam à normalidade, os artistas querem mesmo é matar a sede e limpar a pele e os cabelos, à essa altura já craquelados pelo barro seco. E acabou que a Constituição não fez tanta falta. A bandeira foi aprovada e, em caso de imprevisto – ele raramente falha -, pode retornar ao repertório.

Para acompanhar os próximos passos ou até mesmo participar dessa intervenção, visite @DesvioColetivo no Facebook.

Percurso faz paradas em pontos que representam o poder, como igrejas, delegacias, prefeitura e câmara municipal


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ENTREVISTA

Miguel Rocha diretor artístico da Cia. de Teatro Heliópolis

Aquém da salvação, a arte como expressão Texto e imagens por Nathalia Nasser


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Após três horas de ensaio para a próxima peça, que discutirá microviolências, no andar de cima da sede da companhia, o diretor artístico da Companhia de Teatro Heliópolis, Miguel Rocha, debate a ideia de arte, violência e a pesquisa no teatro

Em meio a altos e baixos, a Companhia de Teatro Heliópolis, dirigida por Miguel Rocha, representa a interação entre arte e cidade. A casa de ensaio e espetáculos é uma ocupação autorizada pelo Estado de São Paulo, e uma materialização da atmosfera de criação e pesquisa da companhia, que se encontra hoje em busca de uma estética teatral padronizada e única. Para o diretor, a temática e a estética são o ponto de partida para o reconhecimento da Companhia em uma cidade como São Paulo, que fomenta o teatro, mas cobra qualidade e conteúdo. A Companhia nasceu ao final dos anos 90, quando Miguel, depois de frequentar escolas de teatro, oficinas artísticas livres, teve finalmente contato com o título que estreou sua posição de diretor, “A Queda Para o Alto”, história que tratava das rebeliões nas prisões nos anos 2000 e da violência na adolescência. Essa primeira peça foi o pontapé inicial para estabelecer o teatro de pesquisa como motor do grupo. Os estudos para um espetáculo levam

meses, demandam estudos teóricos e incansáveis ensaios físicos de conhecimento e entendimento do corpo. A pesquisa dos personagens é à deriva: os atores andam pelas ruas explorando histórias e espaços diversos. Para Miguel, o entendimento dos temas não é de fora para dentro, “é justamente o inverso”. Miguel, duas décadas depois, ainda se vê em busca de entender "quem sou eu e o que essa cidade tem a ver comigo". Ao contextualizar sua vivência e arte, conta, “quando cheguei em Heliópolis, a primeira coisa que me lembro é de ter visto um corpo no chão.” O diretor artístico reconhece que a expressão da violência hoje não é a mesma de 1997, quando chegou em São Paulo. A violência existe velada. Mas ainda assim não foge dos códigos já estabelecidos pela comunidade, silenciosos. Para Miguel, nesse contexto – e em todos os outros –, a arte não existe para ninguém como ferramenta de salvação. Ela é forma de expressão e possibilidade para novas visões do mundo.


As peças da Companhia são majoritariamente baseadas em histórias reais. Por que essa escolha? É uma escolha estética no primeiro momento. Sempre são histórias baseadas em casos reais de Heliópolis. Mas, a ideia não é tratar das questões individuais e empíricas daquelas pessoas. São questões que geralmente tem a ver com qualquer outro ser humano, que, independente de morar em Heliópolis, sente isso também. Independente de diferenças de espaço, de cultura, as histórias humanas em alguma medida são universais. Quando vamos para a cena, a ideia é que tragamos o tema de forma que tenha a ver com a vida de qualquer outra pessoa. Tem questões que tratam de coisas sociais, mas num universo humano são questões que qualquer pessoa pode se deparar independente de sua questão social ou local. São maiores do que sua localização espacial. É claro que existem recortes específicos que estão relacionados ao espaço, mas outros não, outros são universais. E como se dá a pesquisa com esses personagens? Por entrevistas, por pessoas que a gente escolhe entrevistar porque a gente sabe que ela tem uma história bacana. Nós saímos à deriva, na rua, encontramos alguém, começamos a conversar e aí surge. Não tem uma escolha específica. Quando a gente parte de algo que a gente tem algum domínio, eu acredito que já ganhamos cinquenta por cento. Ali existe uma verdade, existe familiaridade com aquilo. Não é de fora pra dentro, é o inverso. As coisas vão se construindo no processo. E assim se dá também o processo de criação, a gente tem um tema que vai ser retratado e a gente começa a colher o material. Desde o material filosófico que são os que, em alguma medida, dão amparo para a criação, e isso se estende até as histórias e filmes como referências. Então aquelas pessoas, aquelas histórias, aquelas figuras, elas vêm, mas elas são também asseguradas, ampliadas, adubadas e instigadas em outros segmentos. Heliópolis é nosso ponto de partida, mas ele é alimentado por outros elementos. A ideia é sempre pra que tenha uma dimensão e um alcance muito maiores, sempre partindo do princípio de que é teatro, é arte.

As historias, as figuras, elas vem. Mas ~ asseguradas, elas sao ampliadas, adubadas e instigadas.


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Vocês não tinham uma sede em Heliópolis. Vocês ensaiavam em alguns lugares e hoje a sede é no Ipiranga. Por que não tinha uma sede lá e por que a escolha de ser agora nesse bairro, nessa casa? A questão é que Heliópolis tem uma grande restrição no seu espaço. As disputas espaciais são uma questão forte. O ponto de partida é que não existia onde construir uma sede. Além disso, nós somos um grupo de teatro e não temos as condições financeiras necessárias para construir. Na maioria dos casos, as dificuldades dos grupos de teatro são imensas. De sobrevivência, de organização, de produção... é muito difícil. Então o espaço e a questão financeira são primordiais. Com relação a esse espaço que estamos agora, aqui no Ipiranga, era um espaço do governo do Estado que ficou desocupado por um tempo. Fizemos então uma proposta de ocupação do espaço. Isso aqui é um projeto de ocupação. Apresentamos a nossa proposta e recebemos uma autorização para ocupar. A sede não é de fato nossa, ela é do governo. Essa casa pertenceu a uma professora chamada Maria José de Carvalho, a primeira professora de voz da EAD (Escola de Arte Dramática da USP). Aqui existe uma história: a Maria José deu aula pra parte da galera hoje que tem lá seus sessenta e poucos anos que são do teatro e da televisão e tudo mais. Aqui existe uma memória e uma contribuição para a cidade. Ela fazia por aqui um Cabaré de Gato, onde ela recebia artistas, intelectuais, políticos. E é importante para vocês que isso se mantenha vivo. É muito importante, porque em alguma medida ela deixou essa casa para que ela se tornasse um espaço cultural e a gente, mesmo que precariamente, com as dificuldades que não são poucas, tem que manter isso funcionando. Outros grupos ensaiam aqui, programam coisas e trazem apresentações.

No Ipiranga, a casa ocupada por Miguel Rocha e a Cia. de Teatro Heliópolis sedia ensaios, peças, conversas e estudos


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Sobre violência: vocês estão no processo de pesquisa para a nova peça. QUAL A RELAÇÃO DO tema com Heliópolis? Sim. É como a gente lidar com as nossas próprias questões. Aquilo está presente no nosso dia a dia, não tem como ignorar. O que move cada artista? Cada artista vai procurar seu molde a partir da sua própria vivência e da sua relação com a comunidade. Trazer aqueles materiais, aquelas novas questões, como da violência, como algo que se repete e reflete na sociedade como um todo. A violência não é restrita de Heliópolis, ela é da cidade, do país, do mundo todo. Torna-se então necessária sempre essa discussão. E já que a violência é algo muito pulsante e sempre presente, a gente decidiu ir no contrafluxo nesse projeto. Fomos então trabalhar as microviolências, que são características por um cenário complexo e opressor e tem a condição de repetição. Essas microviolências que estão estabelecidas na sociedade a partir das relações de poder, muito sutis. E é superdifícil, porque ela não é palpável. São códigos já estabelecidos e aceitos, então o desafio desse projeto é como tratar disso. No caso de Heliópolis, o microcosmo tem clareza porque hoje em dia, não só no bairro, mas no Estado de São Paulo, existe um código relacionado ao PCC que se baseia no seguinte: não interessa nem pro PCC nem para o Estado, e quando eu falo Estado, entendemos por poder público, que tenham corpos de pessoas mortas no chão da favela. Não interessa essa estatística. Nós sabemos que continuam acontecendo assassinatos, mas os procedimentos para que isso aconteça são diferentes de quando eu cheguei em Heliópolis, em 1997. Em uma semana eu via, no mínimo, quatro ou cinco corpos pelo chão. Hoje em dia isso não acontece praticamente. A frequência diminuiu e, quando isso existe, é velado. São códigos silenciosos estabelecidos pela comunidade, daquilo que não se fala, daquilo que não se vê. É o silêncio, é a cegueira, é o não ouvir, mas ouvir. Na cidade como um todo não se vê com tanta clareza como na periferia. Então é trazer isso como ponto de partida para falar sobre todo o resto.

A peça sobre microviolências conta com um elenco de seis atores. Os ensaios teóricos discutem livros, textos, filmes e experiências pessoais, enquanto os práticos estimulam o conhecimento do corpo e exploram os movimentos


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Nossa cultura já tem grande dificuldade em aceitar o teatro em si. Você acha que existe uma barreira ainda maior pela companhia vir da periferia? A questão de reconhecimento é mais delicada? Em São Paulo nós já temos um privilégio que é o fomento ao teatro. Esse fomento viabilizou a gente a ter acesso para a verba, para pesquisar, construir nossos trabalhos e temas. Não está dito, mas acho que em alguma medida ajuda a contribuir para a cidade. Nosso trabalho tem alguma relevância, eu encaro isso como reconhecimento. A verba é importante, sim, mas eu vejo essa chancela como reconhecimento. A disputa pelo fomento é muito grande. E o que eu acho importante hoje é criar um grupo e uma identidade dele. Esse investimento do Estado é direcionado ao grupo e não somente à produção. Por isso estamos nos esforçando cada vez mais para formar um grupo único, com atores fixos. É impossível se construir uma estética de grupo se mudar o elenco o tempo inteiro.

~ Nao e como se a arte viesse pra salvar alguem do crime, por exemplo. Tem gente que e da arte e e do ~ escolhas. crime. Sao ~ tem papel A arte nao de salvacao. ,~

Você propor esse tipo de discussão e pesquisa dentro do teatro é uma ferramenta de mudança social? Eu preciso antes abrir um parênteses. Isso é uma postura totalmente minha. Eu, pessoalmente, acho horrível, ridícula e medonha a obrigatoriedade que se coloca, principalmente em discursos de projetos sociais, de que a arte vai salvar a vida. A arte não tem obrigação de nada disso. O que a arte pode fazer, e é o que nós propomos como grupo, é dar às pessoas a oportunidade de se debruçarem sobre uma pesquisa, sobre temas, e esses temas abrirem a percepção delas para o mundo. Poder ter uma possibilidade de ver o mundo sobre várias óticas, não só aquela que, por uma questão social ou educacional, fica restrita ao ambiente da favela. É preciso ter o ponto de vista de que isso sim é uma contribuição e possibilidade para os atores. Não é como se a arte viesse para salvar alguém do crime, por exemplo. Não vai para o crime quem não quer. Tem gente que é da arte e é do crime. São escolhas. Eu não acho que a arte tem o papel de salvação. Essa peça que eu te disse anteriormente era com uma menina que tinha acabado de sair da FEBEN. Nós pegamos então a experiência e a vivência que ela tinha, tudo isso estava muito presente. Não era externo a ela, ela não estava interpretando. Era um pouco a vida dela também. Isso entra na questão do contemporâneo que entendemos: não há separação entre a arte e a vida, está tudo interligado. Não existe a dicotomia de aqui é a arte e ali é a minha vida. E essa menina, pelo que eu saiba hoje, está presa. Aqui, então, foi só uma experiência para ela. Eu não acredito no discurso de salvação, muito menos uso dele pra nos beneficiar ou para buscar verbas para o nosso projeto. É uma demagogia sem tamanho. E é assim que eu entendo e vejo a arte.

Mais perguntas e respostas em palco.art.br.


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jogo de observar Texto e imagens por Beatriz Guimarães

Duas criações site specific mostram de maneiras distintas o potencial arquitetônico, coreográfico e político do Centro Cultural São Paulo

Da estação Vergueiro até a Paraíso existe um caminho que não é o da rua, mas também não deixa de ser. Por entre os corredores, jardins, rampas e foyers do Centro Cultural São Paulo, se alternam microrretratos da cidade, com direito a danças e músicas de todos os tipos, velhinhos jogando xadrez, homens engravatados ao redor da mesa de pingue-pongue, moradores de rua que dormem nos cantos menos gelados e adolescentes escondidos atrás de livros de vestibular. São idiomas e sotaques mil. Essa coisa de ser e promover o encontro já nasceu com o Centro Cultural, lá na década de 70. No tempo da ditadura militar, com seus cárceres e proibições, foi construído um espaço quase que sem portas, fluxo livre, colado com o metrô. "Ficá-

vamos de prontidão, para ver com o que iam implicar. Não que fôssemos subversivos, os outros é que eram retrógrados", disse um dia o arquiteto Luiz Telles, pai daquela obra ao lado de Eurico Prado Lopes. O desejo de ser cidade, sem nunca negá-la, fez com que o Centro Cultural se tornasse palco de experimentações artísticas variadas e atraísse projetos interessados em absorver pulsações. “O que acontece em São Paulo vem latejar aqui: o tanto que as pessoas estão estressadas, o tanto que estão com calor. É complexo e menos romântico do que parece”, conta Andrea Thomioka, curadora de dança do Centro Cultural.


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O site specific tem mesmo essa caracteristica

de transgredir o que as normas pregam.

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Jardim Luiz Telles, CCSP.

Construído em plena ditadura militar, na década de 70, o CCSP foi pensado para promover o encontro

Andrea é uma das condutoras do programa Dança Conectada em Site Specific, que seleciona anualmente propostas capazes de criar uma trama de espaços, corpos, sons e presenças. Não se trata apenas de fazer dança, mas fazer dança a partir de e para aquele lugar, dando atenção à rotina, aos trabalhadores, às convivências. Tudo o que está ali é observado e experimentado durante os meses de residência artística para, depois, ser sugado em coreografia. O modo de criação site specific nasceu com as artes visuais e só mais tarde esbarrou nas artes da cena, tanto na dança como no teatro e na performance. São diversos os artistas e coletivos contemporâneos que se baseiam no ambiente circundante para produzir experimentações, espetáculos e ações. As companhias Teatro da Vertigem e Núcleo Aqui Mesmo, por exemplo,

marcaram São Paulo com as obras Bom Retiro 958 metros, que transportou para a dramaturgia as relações entre moda e imigração travadas nesse bairro central, e [Entre]ladeiras, uma coreografia pensada especialmente para a Ladeira da Memória, perto do Vale do Anhangabaú. Essa mesma intenção de fazer arte unindo espaço e tempo rege o edital do Centro Cultural, que contemplou neste ano Peyote: O Jardim dos Tempos, de Alda Maria Abreu, e Co_Romper: Caminho para o Movimento, de Morgana Sousa. O primeiro projeto tem como cenário o jardim central, que leva o nome de Luiz Telles, enquanto o segundo se faz itinerante.


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O processo de produção alterna experiências de investigação nos ambientes e encontros entre as artistas e as equipes de funcionários, desde seguranças e bombeiros até jardineiros e auxiliares de limpeza. Essa última etapa serve para que os trabalhadores se familiarizem e até colaborem com as propostas, que muitas vezes desafiam as normas do Centro Cultural. Andrea lembra que no edital de 2015 uma das coreografias gerou confusão por conta de uma brincadeira com pipas no jardim suspenso, onde a atividade é proibida desde os anos 1990 devido à relação com o tráfico de drogas. Foram necessárias várias repreensões para que o público entendesse que, apesar das memórias despertadas, não podia fazer igual. O caso de Alda trouxe preocupações semelhantes, já que o projeto ocupou um jardim com entrada proibida aos visitantes. Aliás, nem entrada ele tem; há apenas caminhos íngremes imaginados por entre as plantas mais baixas. O jardim Luiz Telles tem folhagem fechada e presença discreta, quase impercebível de diversos pontos do Centro Cultural. Não à toa a artista ficou presa por lá uma vez: já era noite, os seguranças não a viram em meio às árvores e acabaram bloqueando o acesso. Apesar da introspecção, o espaço fica logo em frente ao portal que dá na avenida Vergueiro e ainda faz fronteira com a área de convivência principal, a varanda da biblioteca e o restaurante. Cada detalhe que surge ou chega no jardim, seja a luz batendo nas folhas ou os ruídos externos, serve de inspiração à dança de Alda. Ela, que traz na bagagem diversas experiências com ecoperformance, enxerga aquele horto como a moleira do Centro Cultural, onde as árvores mais altas estão em constante troca com a cidade. Ocupar esse pedaço de lugar é, para a artista, criar uma abertura no tempo, cruzando realidades que coexistem. “Trazer as pessoas aqui para dentro é proporcionar uma outra experiência de tempo até para quem já frequenta o Centro Cultural”, conta Alda. Ela confessa nunca ter parado para olhar o jardim antes de começar a residência, apesar de ter passado por ali inúmeras vezes.

Edital de site specific busca dar visibilidade a espaços pouco explorados do CCSP, como o Jardim Luiz Telles


Em Co_romper: Caminho para o Movimento, a dançarina Morgana Sousa se deixa contaminar por acontecimentos e movimentos do entorno

Uma das primeiras coisas que Alda fez durante o processo de produção foi conversar com Seu Eliesér, jardineiro que cuida do local há décadas. Esse diálogo, por si só, representou uma ruptura no tempo e na fronteira entre realidade e ficção. “Ele tirou da manga várias histórias. Disse que aqui era uma grande fazenda, depois um cemitério. Existem possíveis histórias a serem contadas e você pode, de fato, construir a história dos lugares”, conta a artista. Esse e outros relatos, combinados aos elementos do próprio jardim, foram matéria-prima da instalação sonora e coreográfica criada especialmente para o lugar. Para isso, Alda convidou os músicos Victor Negri e Léa Taragona, que performaram uma trilha sonora ao vivo, às vezes sintonizada, às vezes não, com os movimentos da dançarina. O desafio maior foi fugir do espaço utilitário típico dos espetáculos formais, com lugar para entrar, sentar, assistir e sair, e, em vez disso, puxar o público para uma experiência ritualística, que confronta as placas de “não pise na grama” e dá novo significado a um espaço antes paisagístico.


BAILE DE LUZ

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Se Peyote: O Jardim dos Tempos penetra entre as árvores e chama a atenção para o que antes estava camuflado, Co_Romper: Caminho para o Movimento se funde à circulação de gente nos corredores, áreas de convivência e rampas da biblioteca. A dança de rua de Morgana e as artes visuais se encontraram em meados de 2015, quando ela começou a fazer experimentações com light painting – a arte de rabiscar o ar com feixes de luz – por diversos pontos de São Paulo. Passou pelo vão do MASP, esquina da rua Augusta com avenida Paulista, Vale do Anhangabaú, Galeria Olido, Centro de Formação Cultural Cidade de Tiradentes e Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, onde é professora de dança urbana. Apesar de todas as vivências, o projeto teve que ser recriado para o Centro Cultural, absorvendo as dinâmicas próprias desse lugar. Morgana, então, aprendeu a reolhar espaços com os quais já estava acostumada. Aliás, era ali, naqueles vãos e passarelas, que ela treinava breaking antes de partir para companhias de dança. Unindo as memórias às novas percepções e vídeo-projeções, ela procura os cantos mais escuros, liga uma lanterna em cada mão, e se movimenta sem script. Na câmera fotográfica, essa dança vira uma costura aérea de fios luminescentes, que remete àquelas fotografias de carros rápidos em grandes avenidas. Para criar os gestos, Morgana se deixa provocar pelos sons e atividades que a rodeiam. Se há uma roda de capoeira por perto, ela se permite levar por aquela

ginga; se uma bolinha de pingue-pongue passa correndo à sua frente, ela se envolve em um jogo de “pega ou não pega?” com os jogadores. Quando chega no jardim suspenso, a dança passa a absorver sensações causadas pelo contato com a grama, o barulho do trânsito e a vista dos prédios, incluindo o hospital onde a artista deu luz à filha. Ela conta que num dos primeiros dias de experimentação do projeto acontecia no Centro Cultural, simultaneamente, um show da banda Ratos de Porão. Com lotação máxima, os fãs arrebentaram a porta e fizeram vazar a sonzeira do punk rock. “Foi libertador, aquilo me tomou. Não tinha como ser de outra maneira”, se diverte a dançarina. E, se num dia foi punk rock, no outro pode ser k-pop, valsa, funk. É como se cada grupo tivesse seu quadrado imaginário, onde só o som tem livre passagem. Nessa territorialidade, a artistas vê dança em tudo, até no que não é, ou não tem intenção de ser. “Isso aqui é como um caleidoscópio dançante”, descreve Morgana.


Na coreografia, Morgana se move com uma lanterna em cada mão de modo a criar nas fotografias o efeito light painting

O que se quer e borrar essa imagem cotidiana, rabiscar esses lugares com a nossa identidade. Outro elemento capaz de interferir no trabalho é o jogo de poder que se estabelece diariamente dentro e fora do Centro Cultural, seja vinculado à política, ao gênero ou à arte. A artista costuma refletir sobre machismo e empoderamento feminino e afirma ser impossível deixar isso de fora na hora de criar. Essa atitude combativa dá sinais em cada passo e declaração. “O que costuma me mover são questões que me afetam diretamente enquanto mulher negra, artista e moradora da zona leste de São Paulo”. Pulando de uma inspiração a outra, o corpo dela faz bailar as luzes e dá novas

travessias àquele espaço de sempre. “O que se quer é borrar essa imagem cotidiana, rabiscar esses lugares com a nossa identidade. Ser atravessada, mas também interferir no espaço dessas pessoas de alguma maneira”, encerra a artista.

Cobertura das apresentações em palco.art.br.


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Texto e imagens por Henrique Fernandes

ocupa e revitaliza Como o Grupo XIX de Teatro devolveu à cidade um lugar esquecido

O Belenzinho é uma região barulhenta de São Paulo que ganhou destaque nacional quando recebeu a construção do Templo do Salomão. Mas a alguns minutos de distância da gigantesca construção, fica a Vila Maria Zélia. O silêncio é a primeira coisa que chama a atenção quando você chega lá. Parece uma cidade cenográfica do interior. Vizinhos se cumprimentam das janelas, crianças brincam nas ruas. 180 casas e algumas outras poucas construções formam o único exemplar de vila operária que ainda existe na América Latina. A história dela é quase centenária. Em 1917, um empresário inglês constrói para seus funcionários um complexo de casas, galpões com funções sociais como farmácia, mercados e espaço para eventos, uma igreja e duas escolas, uma para meninos e

outra para meninas. A estratégia era manter seus funcionários mais perto de seu local de trabalho, uma fábrica têxtil que ficava ao lado e funciona até hoje, agora como fábrica de pneus que exala um cheiro forte de borracha em alguns momentos. A região chamou a atenção do Grupo XIX de Teatro que, em 2004, se preparava para a produção de sua segunda peça, inspirada nos problemas de habitação dos séculos passados. A companhia, que tem como seus pilares a relação com o espaço cenográfico não-convencional, o coletivo e a não-hierarquia, descobriu na Vila Maria Zélia uma oportunidade de criação artística e também de poder revelar um espaço desconhecido de São Paulo para a cidade. Hoje, quando você chega na sede do XIX na Vila Maria Zélia, percebe

o esforço para manter o lugar antigo de pé. É recebido pela produtora do grupo, Vanessa Candela, que te mostra um lugar onde acontecem algumas apresentações e uma sala que abriga grandes armários de madeira que sobreviveram aos 100 anos de existência da vila e serve para apresentações, oficinas e residências artísticas. A interferência da arte em um lugar antigo é clara: um painel colorido descansa sobre uma pesada porta com alguns pedaços faltantes. Se observar bem, vai achar beleza na mistura de panos coloridos em contraste com deteriorados arabescos de gesso.


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Quando o Grupo XIX chegou lá pela primeira vez, o cenário não era dos melhores. Com exclusão das casas e da igreja, os outros espaços estavam trancados há mais de 40 anos. Os oito integrantes do grupo decidiram que a Vila Maria Zélia era o ideal para a sua produção e queriam ocupar aquele lugar. Inseriram o primeiro projeto deles na lei de fomento à cultura de São Paulo já com o objetivo de utilizar o espaço público, e quando contemplados, tiveram ainda que conseguir a autorização do INSS, dono dos espaços, para utilizá-los. Só depois das etapas burocráticas que botaram a mão no patrimônio para começar a transformação. “A gente foi bem recebido por uma parcela de moradores que já tinham o interesse de transformar o lugar”, conta Ronaldo Serruya, um dos atores da companhia. Junto com essas pessoas, eles retiraram quatro caminhões de entulho dos dois galpões que ficam na entrada da Vila. No início, eles não tinham banheiro, não tinham luz e era tanto lixo e trabalho a ser feito que eles passavam 18 horas lá para arrumar o lugar e também para dar continuidade no processo de pesquisa da peça que estavam produzindo. Após meses de trabalho, o primeiro resultado da ocupação do Grupo XIX na Vila Maria Zélia nasceu: a peça Hygiene, produzida a partir de toda a pesquisa realizada no local. Ela era itinerante, começava na igreja, passava pelas ruas e terminava dentro da escola de meninos, que se encontrava em ruínas, mas era o ideal para a mensagem que eles queriam passar, já que a peça falava de abandono, de destruição dos espaços públicos e da reflexão sobre as formas de habitação como vilas operárias e cortiços.


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A arquitetura centenária do Armazém, sede do Grupo XIX, resiste ao tempo revitalizada, enquanto o outro galpão carece de estrutura básica

Já são 12 anos da ocupação do Grupo XIX na Maria Zélia, mas a decadência física dos prédios ainda é um problema para eles, que ocupam os dois galpões que ficam logo na entrada da Vila. O Armazém 19, um dos galpões, que é a sede e um dos espaços de apresentação que o grupo utiliza, sofreu com um teto em mal estado este ano. Se chovia fora, chovia dentro. Reformar só foi possível porque o telhado não era o original. Se fosse, o trabalho seria mais difícil, quase impossível, pois a Vila Maria Zélia é patrimônio histórico da cidade e tudo que é original não pode mais ser trocado. Fizeram um projeto de crownfounding para arrecadar fundos e só assim consertaram o telhado do Armazém. Mas os desafios por ocuparem um espaço público e centenário não acabam. Nesse mesmo lugar não existe banheiro para o público, e a construção de algo novo é uma grande dor de cabeça para eles devido à questão de ser um patrimônio. No outro galpão a situação é muito pior, o piso do segundo andar já desabou por completo e para eles o espaço só serve de depósito, mas sem tranquilidade. O teto está todo furado, ainda existe muita sujeira e animais como pombas e ratos fazem do lugar suas casas, o que obriga que o Grupo cubra tudo que guarda lá com lonas. Reformar o prédio nem passa pela cabeça dos atores.


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Ainda assim, a ocupação só trouxe benefícios para aqueles lugares que estavam abandonados há tanto tempo. Sempre que podem, eles pintam as paredes, adicionam peças de arte em meio à arquitetura centenária e tentam adicionar melhorias elétricas como luzes cênicas e refletores. São características que deixam claro para quem visita o lugar que ali, atualmente, está sobre o comando da arte. O dinheiro do grupo hoje vem majoritariamente das leis de fomento à cultura. Já conseguiram oito vezes desde que estão na Vila, além de outros patrocínios como Petrobras e editais. O que conseguem é usado para os projetos artísticos e para manter o lugar, eles não pagam aluguel ao INSS, mas precisam arcar com os custos de manutenção.

As portas desgastadas fazem parte do cenário das peças e servem para ambientar ainda mais as produções


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Além das mudanças físicas Desde sempre, os integrantes do Grupo XIX sabiam que a presença deles na Vila Maria Zélia traria mudanças ao lugar. No início, os jovens atores, deslumbrados com a ideia de ocupar um espaço até então desconhecido pela cidade de São Paulo, acreditavam que deveriam oferecer uma contrapartida cultural aos moradores da vila. Foram oficinas de teatro para crianças, jovens e adultos que no final não surtiram muito efeito. "Com o tempo, a gente aprendeu a escutar o que a Vila Maria Zélia queria e como ela queria se relacionar com que o nosso grupo tinha a oferecer. Precisamos parar pra entender o papel de um grupo de teatro ocupar um espaço tão perto das casas das pessoas", explica Ronaldo. As respostas vieram de forma natural. Os primeiros moradores que receberam os artistas, que ajudaram na limpeza dos espaços e com a burocracia do INSS, depois de um tempo formaram a Associação Cul-

Os atores exploram as ruínas espalhadas pela Vila e as transformam em palco. Foto: Adalberto Lima.

tural Maria Zélia, um grupo independente que divide com o XIX o Armazém 19. O grupo vê essa organização como um dos maiores impactos da presença deles, pois é algo que não os beneficia exclusivamente, mas ajuda a Vila Maria Zélia como um todo. Mas como toda relação tem problemas, essa também tem: uma das crises do Grupo XIX com os moradores é a relação do público versus o privado. Enquanto o grupo trabalha com políticas públicas e quer oferecer arte pública para a cidade de São Paulo, a Associação gosta de alugar os espaços para gravações e ensaios fotográficos, que são formas de garantir dinheiro para a comunidade. O Grupo gosta de deixar claro que eles não concordam com essas atitudes, mas não interferem muito, pois dividem os espaços da Vila com seus moradores e aprenderam a respeitar os limites da relação deles com a comunidade. Hoje, muita gente passa pelo Armazém 19. Eles recebem, todos os anos, coletivos e grupos de teatro para residências artísticas e, além disso, organizam núcleos de pesquisa e oficinas, tudo de graça. Mas o melhor resultado de tudo isso Ronaldo sabe: "é uma ocupação que devolve e revela pra cidade um espaço que é da cidade". Com as peças, os programas artísticos e as atividades feitas pela Associação Cultural e pelo Grupo XIX, muitas pessoas vão até a Vila, conhecem sua história e descobrem as belezas e os descasos da construção histórica quase que escondida.


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O impacto da vila no grupo O grupo sempre se propôs a produzir arte em lugares não-convencionais. A primeira peça já era encenada em lugares históricos e com a chegada deles na Maria Zélia, essa ideia apenas se reforçou. Com a proposta de produzir arte diferente do tradicional, as três primeiras produções foram feitas de forma colaborativa, na qual todos escreviam o texto e todos assinavam a dramaturgia. Esse jeito de fazer teatro fez com que todas a peças da primeira temporada de Hygiene fossem diferentes umas das outras, eles recebiam interferências pessoais, interferências do público e, sem um dramaturgo, cenas e personagens sofriam mudanças e cortes o tempo todo. Depois desse trio de peças colaborativas, eles cederam ao tradicional e escreveram algumas peças em parceria com dramaturgos que tinham o comando central do texto. Apenas a última peça do grupo, TEOREMA 21, foi escrita exclusivamente por um dramaturgo só e sem a interferência dos atores do XIX.


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Todas essas produções, encenadas primeiramente na Vila receberam influências da ocupação do grupo. Isso fez com que apresentar as peças em outros lugares se tornasse um pequeno desafio para adaptar os espaços cênicos, já que as peças eram concebidas para acontecer na Maria Zélia. Quando não estão nos lugares originais de apresentação, os atores já se acostumaram a trocar de roupa na rua, correr e subir muitas escadas e ter que cortar partes das peças para que consigam entregar um bom espetáculo. Durante toda a ocupação do Grupo XIX que revitalizou alguns espaços da Vila Maria Zélia, eles refletiram sobre como a cidade olha os espaços públicos e os patrimônios históricos. Realmente, faz pensar visitar a única vila operária existente da América Latina e ela estar num estado tão precário em alguns aspectos. Mesmo com a Associação de Moradores e várias pessoas se orgulharem de morar lá, fazer a vila voltar ao seu formato totalmente original é quase impossível devido aos muitos anos de descaso do poder público e a dificuldade de mexer em patrimônios históricos. A presença da companhia de teatro naquele lugar é visivelmente positiva para quem passeia por lá. Construções históricas que mesmo com sinais de desgaste e abandono recebem outro olhar quando nota-se a presença da arte nelas. Mesmo prédios em ruínas, como as escolas, se transformam em palcos para histórias que foram criadas para serem encenadas naquele lugar. E o próximo passo do grupo nessa história é sair da vila para aprender mais com a cidade e trazerem o resultado para a ocupação. Ronaldo finaliza: "Em todo esse tempo, nós revelamos a vila para a cidade, agora é a nossa vez de trazer a cidade para a vila. Vamos fazer os dois se olharem."

Galeria de fotos em palco.art.br.



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roteiro à adaptação Plateias críticas e histórias atemporais influenciam adaptações contemporâneas de clássicos literários que, acima de tudo, querem dialogar com o público

Por Isabel Barros Ilustrações por Camila Picheco

Em cartaz com a adaptação do clássico de Shakespeare, Sonhos de Uma Noite de Verão, Julio Velloso escreve, atua e canta no seu primeiro texto adaptado, que nesta versão conta a história de dois casais homossexuais em um enredo embalado por músicas da cantora pop Britney Spears. Depois de adaptar o texto no fim de 2015, Velloso e mais quatro atores ensaiaram por três meses em diferentes locais de São Paulo. “Já ensaiamos até na sala da minha mãe, o importante era não perder tempo”, conta o dramaturgo. Velloso é um dos representantes da nova geração de dramaturgos que aposta nas adaptações contemporâneas de clássicos. Os shakespearianos Romeu e Julieta, Sonhos de Uma Noite de Verão, e até as obras mais antigas como os homéricos Ilíada e Odisseia, são alguns dos principais alvos de adaptações para o cinema, televisão, teatro e as ruas. Para Velloso, a adaptação veio como forma de dar visibilidade à classe LGBT e ainda unir o texto às músicas que ama e que são reconhecidas mundialmente.

TÉCNICAS


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O autor joga uma isca para o futuro. Ele quer que sua obra seja revista.

No original shakespeariano, Hérmia foge com Lisandro para não ter que se casar com Demétrio. Helena, amiga de Hérmia, conta da fuga para Demétrio, por quem está apaixonada, e os dois vão atrás do casal fugitivo. Assim, os quatro acabam parando em uma floresta encantada, povoada por elfos e criaturas mágicas, que vão brincar e enfeitiçar os sentimentos de todos. Velloso transporta essa história para os dias atuais da cidade americana de Las Vegas, com o intuito de falar sobre sexualidade e cultura LGBT de uma forma descontraída e com músicas de uma das suas cantoras preferidas. Fugindo do cenário clássico de teatro musical em que Velloso se insere, está Claudia Schapira, co-fundadora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, coletivo de teatro e hip-hop que existe há 16 anos e tem como carro chefe suas livre-inspirações em grandes clássicos literários. Schapira escreve suas adaptações unindo-as com músicas e danças, mas enfatiza sua fuga do

tradicionalismo do teatro musical. “Uma coisa é o teatro musical clássico americano, o que eu faço são peças com música-dramaturgia”, afirma a dramaturga. Schapira escreve adaptações que são “filhas de seu tempo” e escolhe obras em que as problemáticas são transcendentais e ainda sem solução, como exemplo o clássico Casa de Bonecas (1879), do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, que expõe a exclusão das mulheres na sociedade burguesa. Só no Brasil, a obra já contou, entre encenações e adaptações, com mais de 15 montagens teatrais e 5 adaptações televisivas.


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“Para mim, o autor joga uma isca para o futuro, ele quer que sua obra seja revista e eu encontrei em várias dessas obras a chance de desenvolver uma nova narrativa”, afirma Schapira, que com a proposta chega-junto, o uso do hip-hop e a mistura das vertentes na linguagem cênica do núcleo, garante uma resposta positiva do público e das críticas. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos já venceu o Prêmio Shell de melhor direção musical pela obra Frátria Amada Brasil (2006), livre-inspiração da Odisseia, de Homero, e já participou dos principais festivais de teatro, entre eles o Teatralia, de Madrid.


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A atemporalidade de um clássico é a principal justificativa para a sua ressignificação no ambiente contemporâneo. A performer, diretora e atriz Tania Alice Feix entende que o amor, a morte, entre outros assuntos são sempre tratados de forma atemporal nessas histórias. “Isso torna as peças clássicas humanas, mantendo sua atualidade apesar do tempo”, conta Feix. Além disso, ela defende uma tríade que justifica as criações contemporâneas, sendo elas adaptadas ou não. “A reciclagem do passado, o hibridismo e o engajamento no fazer artístico são conceitos que norteiamas criações contemporâneas”, completa a performer. Essas criações contemporâneas podem ser adaptações ou não. O texto, para teatro, ou o roteiro, para cinema e televisão, pode ser adaptado ou original. O texto original, como o próprio nome diz, vem da criação única e inédita de seu autor, já o texto adaptado baseia-se em uma dessas histórias, seja ela uma peça, um livro, um espetáculo de dança ou até uma performance, e influencia uma nova construção de significados dentro do período histórico que ela será feita.


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A adaptação com músicas é uma das muitas possibilidades de ressignificação do tema, onde além de um texto adaptado e com uma linguagem mais contemporânea, os autores compõem ou inserem músicas prontas no meio da trama, para expressar um pensamento da personagem ou apenas construir uma trama musical simultaneamente à história. Um marco nas adaptações musicais foi Romeu e Julieta, de Antunes Filho. Escrita em 1984 e estrelando Giulia Gam e Marco Antônio Pâmio, o autor inseriu músicas dos Beatles ao longo do enredo, potencializando a emoção das cenas. Antunes Filho antecipou o que hoje Velloso defende na sua versão de Sonhos de Uma Noite de Verão, mostrando que é possível, em uma adaptação, misturar o pop ao cult e produzir um resultado historicamente híbrido.


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a essência da obra emerge no seu encontro com o espectador.

Já o engajamento no fazer artístico é o que move Schapira nas suas livres-inspirações. Fazendo um estudo teórico e prático da peça, Schapira testa várias formas de representação antes de finalizar o roteiro e ainda utiliza o texto como um estudo investigativo do lugar histórico em que a sociedade atual se situa. Em Frátria Amada Brasil, adaptação premiada do Núcleo, o espectador é cercado com diversos espaços urbanos que se desenvolvem simultaneamente. Paredes grafitadas, telefones tocando e textos luminosos se encaixam nas histórias dos diferentes personagens, exigindo uma maior atenção do público e desenvolvendo o senso crítico da plateia, que não assiste passivamente a essas adaptações. Isso faz parte, segundo a performer Tania Alice Feix, da contracultura que a adaptação contemporânea traz para a dramaturgia. “A essência da obra emerge do seu encontro com o espectador” afirma a performer, o que faz mudar o tradicionalismo da recepção da mensagem e construir o que ela chama de “plateia contemporânea”. O espectador dessa plateia quer dialogar e participar da produção artística. E para Velloso, atualmente em cartaz com seu musical shakespeariano, a intenção é essa. Formado em teatro e no começo da carreira como dramaturgo, o ator quer, por meio das adaptações, proporcionar um diálogo aberto com quem vai assisti-lo e se consolidar como artista. “É esse artista que busco ser, o artista que faz a diferença na vida das pessoas, mas que não entra sem pedir licença, que fala de assuntos tabus, mas sem ofender ninguém, sem espantar ninguém, afinal o interessante é dialogar com todos e não apenas com aqueles que têm a mesma opinião que você”, afirma Velloso.


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/re v istapalc o

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