Revista Ciano - vol.2, no.1, ano 2012

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ciano ISSN 2237 - 3683

Jo達o Bezerra no e sobre o mercado


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ciano ISSN 2237-3683

designsimples.com.br/revista ciano@designsimples.com.br

revista digital colaborativa 4

edição atual v.2, n.1, 2012

edições anteriores v.1, n.6, 2011 v.1, n.5, 2011 v.1, n.4, 2011 v.1, n.3, 2011 v.1, n.2, 2011 v.1, n.1, 2011

corpo editorial

idealização Rafael Gatti

colaboradores Ana Goyeneche Eduardo Camillo Felipe Massami Gustavo Angeluzzi Leonardo Barreiro Lucas Colebrusco Marcos Beccari Pedro Ungaretti Rafael Gatti

projeto gráfico Design Simples

fotografia da capa Pedro Ungaretti

editor-chefe Eduardo Camillo


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Olá! Queremos te conhecer melhor Estamos muito contentes com os mais de 7mil leitores na última edição e precisamos da sua ajuda para publicarmos um conteúdo cada vez mais útil. Por favor, nos responda algumas perguntas, não irá demorar nada!


nesta edição

editorial entrevista

Estamos fazendo a nossa parte

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João Bezerra

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Entrevista em vídeo

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A dúvida do mercado Marcos Beccari

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vlog colunas

Onde a utopia e a realidade se encontram Lucas Colebrusco

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Dança das cadeiras! Felipe Massami

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memória tcc em foco

próxima edição

Homem / ferramenta / máquina Leonardo Barreiro

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A vida em Ulm

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Cartaz além do museu

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Dignificar o design pelo projeto ao outro

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Aplicativo para a rede de restaurantes Spoleto

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Participe da Ciano

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João, estamos fazendo a nossa parte

editorial

editor-chefe

Se eu não estiver errado, há algo de muito coerente nesta edição da Revista Ciano. Uma revista gratuita, construída a partir dos esforços de colaboradores não-remunerados, entrevistados não-pagos e cujos designers responsaveis por sua diagramação e organização também não recebem nenhum retorno financeiro por isso, tem algo de muito próximo com aquilo que nosso entrevistado desta edição levanta, e que utilizamos como título: atuar “no” e “sobre” o mercado.

Eduardo Camillo foto

Pedro Ungaretti

Seguindo a linha da última edição, na qual a entrevista com o Professor Gui Bonsiepe serviu de base aos demais textos de nossos

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editorial

colunistas, convidamos dessa vez o Professor João Bezerra de Menezes a que fosse a nova espinha dorsal desse número. Designer formado pela Esdi em suas primeiras turmas e profissional de escritórios de porte inigualável para a época, desempenhou a função de projetista naquele que é talvez o sentido mais público da prática do design: a ergonomia de postos de trabalho e de projetos de grande escala. 10

A frase lapidar do Professor Bezerra foi “atuar No e Sobre o mercado”, apresentando, assim, uma visão de que o design se faz no mercado, mas não precisa ser moldado por ele. Pensar no usuário e no bem estar deste (o comprador e consumidor do produto) não possui a priori incongruências com a atividade de mercado. Ao longo da entrevista, apresenta uma série de exemplos de como isso acontece e como de fato excerceu tal princípio de atuação em sua carreira. Depois da entrevista, o leitor encontrará


nossos colaboradores novamente trazendo novos pontos e novos olhares sobre o que levantou o Professor Bezerra. Marcos Beccari, no texto A dúvida do mercado, relativiza essa ideia do ente mercado opressor e dominador, levantanto pontos sobre liberdade, escolha, ficção e realidade. Lucas Colebrusco, com Onde a utopia e a realidade se encontram, traz a ideia de “No” e “Sobre” o mercado para o universo do estagiário, realidade de grande parte dos leitores. Expõe algumas angustias e agonias vivenciadas por aqueles que, vivendo a utopia da profissão, entram no mercado. Em Dança das cadeiras!, Felipe Massami questiona a “mania” que o designer tem de criar cadeiras (e alguns outros objetos que, se não são o feitiche do usuário, são o feitiche do designer). Tomando alguns exemplos levantados pelo Professor Bezerra, mostra que o design do repeteco seja talvez tão longe

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da lógica do usuário quanto projetar objetos de consumo irresponsável.

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Por fim, Leonardo Barreiro, com Homem/ ferramenta/ máquina, observa algumas questões interessantes sobre responsabilidade, usuário e projeto. Expõe uma preocupação com a inconsequência inspiradas no usuário por alguns instrumentos, como algum tipo de “redutor de responsabilidades”. Embora seja natural do design a redução de complexidade e facilidade de utilização, afirma que, junto desses confortos, vem junto também a desatenção e alienação. Chama à atenção dos designers que isso também deve ser levado em consideração no ato de projetar. Assim, antes de passarmos às entrevistas, temos uma nova área na revista: o TCC em foco. Pedimos que nossos seguidores que tivessem culhões nos mandassem seus trabalhos de graduação para serem analisados. Após o recebimento de mais


correção

A fotografia utilizada no texto “Uma abordagem epistemológica acerca da filosofia do design”, de Marcos Beccari (ed.: v.1, n.4, 2011, pg. 6), é de autoria de Hans G. Conrad, com créditos para Dr. René Spitz.

de dezena, 3 foram selecionados para análise: o Projeto Cartaz Aberto, de autoria de Gabriel Manussakis e comentado por Rafael Gatti; Do circo à fisioterapia, de Eva Carvalho Furtado e comentado por mim, Eduardo Ferreira; e Design de aplicativo móvel para serviço delivery, de Breno Martins e Gabriel Godinho, para o qual contamos com a participação especial de Gustavo Angeluzzi no comentário. Esperamos que tais análises sejam interessantes ao leitor, e ajude a entender que a crítica não deve ser encarada como uma “destruidora” de trabalhos, senão antes como uma engrandecedora e amadurecedora do mesmo e, talvez até mais, do projetista. Pois, sem crítica, não há design. Assim, finalizo a edição com dois desejos: que nosso leitor faça bom proveito do que tem na tela; e em segundo, que venha logo nossa próxima edição.

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Boa leitura!

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designsimples.com.br

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No e sobre o mercado

entrevista

por

Ana Goyeneche Eduardo Camillo Pedro Ungaretti Rafael Gatti fotos

Pedro Ungaretti

Designer e professor, João Bezerra é nosso entrevistado nesta edição. Crítico de práticas desonestas no design, manteve-se fiel a valores éticos durante toda sua carreira, tendo desenvolvido projetos de grande porte e alcance social. Foi coordenador no maior escritório de design do país, trabalhando intensamente a proposta do desenho ergonômico, principalmente voltado aos postos de trabalho na indústria. Buscamos, através de nossas perguntas, explorar a fundo esta vocação de João Bezerra, proporcionando ao leitor um panorama capaz de transmitir, no sentido mais forte e pleno da palavra, a dimensão pública do design.

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Em recente palestra, voltada a estudantes de design, o senhor relembrou um importante compromisso dos desenhistas industriais recém-formados de sua geração. Havia uma preocupação em “atuar no mercado e sobre o mercado”, de forma que o profissional, ao se inserir no sistema, carregaria consigo a missão de aprimorá-lo, desenvolvendo soluções melhores do que aquelas em voga. Sua trajetória profissional nos prova que tal idéia não é meramente utópica, mas sim algo que efetivamente pode ser colocado em prática. Poderia ilustrar, apresentando alguns momentos de sua carreira, onde esta postura esteve mais presente? Essa questão de atuar no e sobre o mercado foi recorrente na época e surgiu de uma declaração do Pedrão [Pedro Luiz Pereira de Souza] quando houve a realização de um pavilhão da Esdi [Escola Superior de Desenho Industrial], que nós, estudantes,


resolvemos montar lá no MAM [Museu de Arte Moderna], para participar da Bienal Internacional de Desenho Industrial. Por essa época (estou falando de 67, 68, 69) o mercado estava – como hoje também está – sofrendo influência das agências de publicidade. O design comercial, para vender mais, essa coisa como vemos ainda hoje. E a gente estava montando esta exposição que criticava o consumismo. Mas, por outro lado, como você pode mudar o mercado sem estar dentro dele? É muito difícil. Só se soltarmos uma bomba no mercado. Você não para um carro se não estiver na direção, ou atrapalhando quem está dirigindo. Era uma postura que dizia “vamos para o mercado, mas vamos com crítica”. Atualmente, não estamos propondo nenhum projeto na área de produto aqui no curso de Design da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo] – pelo menos que eu tenha conhecimento – que seja voltado para o “vamos

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vender mais, vamos atiçar o consumo”. Não é isso; a gente está entendendo o design como um serviço ao usuário. E com a indústria recebendo, por conta disso, um retorno dos benefícios que ela está propondo. Então, na hora em que você entende o lucro na venda de um produto como um pagamento de um serviço que a indústria está prestando à sociedade, você está pensando no e sobre o mercado. 22

Na atuação profissional eu tenho um viés meio estranho, pois não lembro ter feito um produto voltado exclusivamente para o consumo. Trabalhei, quase exclusivamente, com produtos “voltados para o trabalho”, vamos dizer assim. Por exemplo: bilheterias, salas operacionais técnicas, centros de controle de petróleo, painéis de chaves e cabines de siderúrgicas. Quando fizemos o eletrocardiógrafo – isso lá em 74, ainda na Coppe-UFRJ [Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal


“Você não para um carro se não estiver na direção” do Rio de Janeiro] – o cliente tinha uma preocupação muito grande de vender mais, tanto que tinha feito um produto anterior a esse, montado dentro de uma maleta 007, com revestimento imitando couro de crocodilo, para parecer algo mais nobre. Uma coisa horrorosa! E a gente disse “não é nada disso, vamos ver o que o médico precisa, como ele transporta esses equipamentos, como isso ocorre, qual é a crítica dele sobre o produto”. Então nós começamos com uma pesquisa, que não foi imensa, mas sim um levantamento junto aos médicos sobre esses aspectos. Havia um eletrocardiógrafo muito antigo, feito pelo [Karl Heinz] Bergmiller para essa

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empresa. Muito limpo, muito pequeno, enxuto. Daí a empresa resolveu “valorizar” o produto e fazer essa maletinha 007. Eles queriam porque queriam que a gente desse uma cara mais luxuosa ao produto. Não era nada disso. Existiam, nessa indústria, problemas imensos de manutenção, de distribuição e de produção que deveriam ser resolvidos.

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Nessa história de no e sobre o mercado tem uma questão de ética. Eu lembro, na época da Gapp [Grupo Associado de Pesquisa e Planejamento], que nós recebemos um pedido para o projeto de um visor noturno. Quando nós visitamos o cliente, a DF Vasconcellos, que fazia equipamentos óticos e nessa época tinha um setor que chamava de defesa, onde havia um pequeno showroom. Entramos, eu e o Sérgio [Kehl], e havia em exposição uns pequenos mísseis, uns foguetinhos, miras noturnas, etc. Nós vimos aquilo, o Sérgio olhou para minha cara e eu olhei para o Sérgio.


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Ele disse “não podemos fazer isso”, ao que respondi: “a gente vai se desmoralizar”. Sim, porque você desmoraliza todo o seu discurso de salvar vidas, de contribuir para melhoria de vida do trabalhador de uma siderúrgica, essa coisa toda. E aí, depois, você faz uns óculos de visão noturna para matar gente? É isso, para matar gente no escuro. O futuro morto nem sabe que está sendo visto. O Sérgio disse “nós não vamos fazer isso não”; achei ótimo e deixamos para lá. Em nenhum momento partimos para uma coisa dessas, apesar da ergonomia ter, na Inglaterra e nos Estados Unidos, contribuído muito para o aprimoramento de equipamentos bélicos. Quando você faz o tipo de produto que é mais voltado para a produção e o trabalho, é relativamente fácil resolver essa questão do no e sobre o mercado. Atualmente, como o design cresceu muito, você tem muita oferta no outro viés: vamos


botar um enfeite, uma lantejoula para vender mais. Aí é uma questão da ética. Cada um faz o que a sua cabeça manda e é responsável pelas consequências. Eu não faria isso, até porque eu não tenho jeito, não sei fazer. Por isso eu sou um pouco contra essa história de considerar a moda como um campo do design. Nada tenho contra design de vestimenta, design de vestuário. Sou absolutamente a favor. Podemos fazer uma camisa que seja mais confortável, uma capa que respire melhor. Agora, fazer moda, para tornar a coisa obsoleta em pouco tempo? Para quê? Para mexer com essa vaidade individualista de cada um? É complicado. Não estou querendo propor aqui goiabeiras de Fidel, nem aquele terninho do Mao Tsé Tung, todo mundo igual. Estou propondo que, dentro do processo de criação da vestimenta, você saiba o que incomoda na roupa, o que está inadequado, o que é deselegante –

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e trabalhe na direção de corrigir essas questões. Qualquer um de nós já usou uma calça que apertava onde não devia, um sapato que esquentava demais, uma camisa que não vestia bem. Se for um projeto nesse caminho, de solução de problemas desse tipo, não tenho dúvida nenhuma. Imagina a contribuição que você pode dar ao projeto de vestimenta de um carteiro, por exemplo. Não só a vestimenta, mas também o complemento, não é? Aquela bolsa pesada à beça e carregada de um lado só do corpo! O sujeito é um candidato a ter escoliose. Não tem jeito, ele está forçando muito mais um lado do que o outro. É um complemento que merece a intervenção do design. Agora, dependendo do designer, tanto pode ser o complemento de um carteiro, quanto pode ser uma bolsa Dolci&Gabanna de, sei lá, três mil reais. Eu prefiro fazer a do carteiro. Aí é questão de cada um, o gosto e a competência de cada um. Para a bolsa da Dolci&Gabana eu me sinto incompetente.


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Sabemos que uma considerável parte de sua trajetória se deu dentro do ambiente acadêmico, na função de docente em algumas universidades públicas, tais como UFRJ, Esdi e Fauusp. Entendendo que uma das funções da universidade é levar o estudante ao questionamento da realidade, de forma a modificá-la – proporcionando a já citada “atuação sobre o mercado” –, e cientes do inevitável confronto entre a vivência profissional e a experiência acadêmica, de que maneiras os docentes e as instituições de ensino auxiliam, ou deveriam auxiliar, nessa transição? Primeiro o docente tem que estar a fim. Ele tem que estar interessado em trabalhar nesta transição que o aluno vai fazer da escola para o mercado de trabalho. Porque muita gente prefere o trabalho exploratório, o de pesquisa, o trabalho acadêmico – acadêmico mesmo, sem nenhuma preocupação com o que está acontecendo lá fora, porque prefere especular o que ele acha


que seja uma vanguarda. Assim, antes de mais nada, o docente precisa querer. Acho que quem está a fim de contribuir com isso deveria trazer problemas para dentro da escola. E não tenho dúvidas: o ideal nessa história é termos incubadoras aqui dentro, para ajudar na transição. Incubadora que, se apenas trabalhassem exclusivamente na área da universidade, sem procurar qualquer empresa, atendendo somente demandas internas, já teriam uma quantidade fantástica de problemas de design para resolver – tanto nessa universidade como em qualquer outra. Seria uma tremenda de uma contribuição. Pegue, por exemplo, um folheto ou veja um site da universidade – ainda não estou falando de produto, somente de programação visual. Na área de projeto do produto, olhe algumas coisas que acontecem no meio da universidade: a falta de um equipamento urbano adequado, mobiliário para aulas e oficinas e por aí vai.

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A história que citei da UFRJ ocorreu na Coppe onde fizemos bons trabalhos, como no Manual do Ônibus Urbano, em que tínhamos uma equipe de estudantes dali para trabalhar. Não só da pós-graduação, mas da graduação também, buscando uma integração entre as duas modalidades. No projeto do eletrocardiógrafo, tínhamos estagiários da UFRJ e de outras escolas. Montou-se, para esse projeto, um escritório de design; isso é perfeitamente viável. 32

A Esdi faz projetos com a Microsoft – sendo que ali o objetivo, às vezes, é mais uma exploração de idéias do que é possível se fazer. Fizemos projetos com a Motorola, duas pesquisas voltadas para as classes C e D. Teve gente na Esdi que disse “mas vocês querem vender mais celulares?”. A verdade é que não temos nenhum problema em vender mais celulares, desde que eles estejam mais adequados aos interesses e necessidades dos usuários.


Esse mesmo escritório e essa mesma escola fizeram dois projetos com a Embraer; um com a Eletrolux, de cozinhas para daqui a 15 anos; um com a JC Decaux, de abrigos de ônibus; e recentemente outro com a Odebrecht. Blocos de cimento com uma cara mais bonita? Não, a Odebrecht ajuda um quilombo na Bahia, que produz produtos de piaçava. A equipe de projeto, coordenada pelo Roberto Verschleisser observou que as mãos das mulheres estavam todas rasgadas, cortadas, porque elas puxavam a piaçava para pentear, descascar e afinar o material. Seguravam a piaçava com uma das mãos e com um garfo

“É uma coisa que se deve pensar no design: o direito das pessoas terem uma vida normal”

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iam limpando a seus feixes. Por conta desse trabalho estava havendo um processo social curioso: muita separação. Você vê como são as coisas? Separação. Os maridos estavam abandonando as mulheres de mão-lixa, pelas mocinhas de mão-lisa.

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Nesse projeto participava como assessor um professor inglês de uma escola alemã, George Burden, que se mostrou curioso e preocupado com essa situação. Nesse grupo havia, também, um aluno nosso, muito moleque e muito esperto, o Patrick, que, diante desse fato, sugeriu retirar essa puxada das mãos, criando alguma coisa para prender os feixes de piaçava, passando o pente a ser acionado com as pernas, não havendo mais a necessidade do contato das mãos com a planta. O George, com o melhor do humor britânico, disse: “maravilhoso, mãos finas e pernas fortes! Estão salvos os casamentos”. É uma brincadeira, uma piada, mas isso é uma coisa fantástica, porque você está indo além


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de uma besteirinha qualquer do design. Você está entendendo o que é aquela sociedade e o que você pode contribuir ali. Ninguém quer trabalhar e ficar mutilado, mas muitos não vislumbram o trabalho de outra forma. É mais ou menos como se fosse inerente ao trabalho ser desconfortável e prejudicial à saúde.

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Eu tive uma visão clara dessa história quando precisei limpar um terreno. Chamei um senhor e seu ajudante para fazerem o serviço. Então, o senhor disse que iriam precisar de uma pá, uma enxada e um machado. Quando peguei as ferramentas na loja, pedi um conjunto de lixas, 100, 80 e 60, porque seus cabos eram extremamente ásperos. Fui para o terreno entregar o material e junto entreguei também as lixas. Ele perguntou o porquê dessas e eu disse que eram para lixar os cabos, que estavam muito ásperos. O senhor então respondeu que não havia necessidade, porque o cabo ira amaciar na mão.


A mão iria amaciar o cabo! Quando me despedi, entendi do que estava falando: a mão dele era muito mais áspera que as lixas. Não haveria farpa que resistisse àquilo. Mas será que esse sujeito não tem o direito a ter uma mão um pouco mais macia? Será que não pode ter uma mão que, ao fazer um carinho na mulher, não pareça que está fazendo uma esfoliação? É uma coisa que se tem que pensar no design: o direito das pessoas de terem uma vida normal. Você tem toda essa gama de gente na sociedade: o cara que puxa o carrinho na rua, o jardineiro que fica agachado o tempo todo, o frentista do posto que inala gasolina e álcool o dia todo. A gente tem que olhar para essas pessoas que estão usando produtos, que estão trabalhando e que, muitas vezes, estão sendo prejudicadas por produtos absolutamente inadequados.

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Washington Lessa, em seu texto “A Esdi e a contextualização do design”, define como “explosão crítica” o momento no qual, em pleno regime militar, a pioneira escola de design interrompeu suas aulas para repensar o desenho industrial feito no Brasil. Daquele debate resultou a reformulação da estrutura curricular do curso, visando formar profissionais mais adequados ao mercado nacional da época, e também a montagem do pavilhão da Esdi na Primeira Bienal Internacional de Desenho Industrial em 68. Como, após ter se envolvido naquele processo como aluno, o senhor vê a possibilidade de uma nova “explosão crítica” no atual ambiente acadêmico? Eu acho que o mundo está completamente diferente. O mundo é outro. Naquela época, a gente precisava – e a exposição serviu também para isso – se firmar como uma escola de design. A Esdi foi a primeira escola de design no Brasil. Ninguém sabia o que era


esse tal de desenho industrial. Então, você tinha que criar uma atitude de impacto. A gente estava com muitas dúvidas em relação ao curso, em função do momento que o país estava vivendo – tudo importado, desde produtos até idéias, essa coisa toda. E nessa época começa uma escalada de consumo que vai até a crise de 74. Você tinha a classe média, a chamada “maioria silenciosa”, que queria consumir, porque ganhou um dinheirinho a mais; e consumir qualquer coisa, sem nenhuma crítica. Então esse pavilhão da Esdi tinha a visão de dar um choque. Acabamos montando um negócio chamado de “mesa do banquete”, o grande banquete do consumo. Tinha um monte de peças ali – liquidificador, televisão portátil, o que tivesse mais. Eram os anos 60 e a sociedade da época era alienada e consumista de um lado e inconformada e reprimida do outro. Havia, nesta exposição, uma sala onde

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“Mesa do banquete” montada no pavilhão da ESDI na Bienal de 68 créditos

Acervo Esdi


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estavam os primórdios, os índios, o matuto, o lado agrícola. Tinha outro ambiente que era da indústria e das cópias, onde se fazia uma denúncia do que era já multi-nacional aqui dentro, empresas nacionais de fachada, ou as que copiavam descaradamente o que havia lá fora.

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Eu não acredito que hoje haja campo para acontecer o que o Washington chama de “explosão crítica”. O que acontece nessa história – o que acontece hoje – é que eu vejo uma apatia muito grande. Por outro lado, naquela época havia também outro problema: era a época da dicotomia – Deus e o Diabo na terra do sol [referência ao filme de 1964, dirigido por Glauber Rocha], a luta do bem contra o mal o tempo todo. Se você tinha uma posição política, então, de tudo que vinha dos EUA, nada servia. Era radical demais. E essa polarização sabotava um pouco o entendimento do mundo,


porque você começa a colocar para escanteio coisas que não são nada idiotas. Houve, lá no design americano, muita coisa voltada para o styling. Você pode dizer que o styling só tinha a preocupação de vender mais e é verdade. Mas veja o styling na indústria automobilística americana. Os EUA eram a grande potência econômica naquela época e, no final dos anos 40, praticamente o único país industrial em pé, o único país industrial e avançado que não foi bombardeado. Onde estavam as indústrias alemã, japonesa, italiana, francesa, inglesa? Derrubadas, destruídas pela guerra. Esses países tinham poder de compra de alguma coisa? Não. E os EUA estavam a mil por hora, porque aumentaram muito a capacidade produtiva na preparação da guerra: fábricas de material civil que passaram a produzir equipamentos bélicos com alta eficiência. Então a GM passou a fazer tanque, jipe e etc. Por volta dos anos 50 eles estavam

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Reforma de trens urbanos da Fepasa: painel de comandos redesenhado - antes (esq) e depois (dir) crĂŠditos

J. B. Menezes


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produzindo 11 milhões de automóveis por ano. Em poucos anos você atende a demanda do seu mercado. E o que faz com o resto da produção? Vai vender para Europa ou para América Latina? Ninguém tinha dinheiro. Então tinham que renovar essa frota com certa frequência. E a posição da indústria foi: quero vender mais e só consigo vender mais criando desejabilidade. Tem um livro antigo que conta bem essa história da época: do Vance Packard, “Estratégia do desperdício”. O styling surge como um elemento de sobrevivência da indústria e da economia de mercado, não tinha jeito. Faziam assim, ou então puxavam o freio-de-mão. Que país capitalista, e que indústria que está ganhando dinheiro, iria querer puxar o freio? Não tinha outra saída. A Esdi, desde o início, contestava a prática do styling e era com muito sectarismo que a gente se posicionava. Até porque era uma escola de origem alemã, baseada em todo


o pensamento de Ulm: limpeza formal, com exemplo máximo da Braun, essa coisa toda da “boa forma”. Mas como estava a Alemanha? O Design não podia ser diferente. Você tem uma cultura racionalista na Alemanha que vem de séculos, antes até da Alemanha ser Alemanha: aquela região toda tinha esse pensamento racionalista, econômico, de fazer para durar, fazer o necessário, e fazer bemfeito. Existia, e ainda existe hoje lá, toda uma preocupação de implantar no produto o máximo da técnica – e não é de gadget, e sim de qualidade de fabricação e de funcionamento. Então o design foi assim também. Tinha que ser limpo, o mais econômico possível. Não pobre e precário, porque essa cultura não o permitiria. Pois o objetivo não era vender aos montes, mas sim vender para durar. Hoje você vê, no mundo fotográfico, as máquinas da Leica ainda com o mesmo pensamento. O que eles fazem de digital – M8, M9 – aceita todas as lentes da Leica desde os anos 50.

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Reforma de trens urbanos da Fepasa: redesenho completo crĂŠditos

J. B. Menezes


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Você pode ter uma lente de 57, que encaixa ali e funciona. É o que eles chamam de produto atemporal. Mas tem um velho ditado: “quer qualidade, pague por ela”. A câmera vai durar a vida inteira, já é full-frame, já tem uma ótima definição, é uma maquina pequena, com a mesma cara da M3, e você vai pagar uns 6.900 dólares por ela.

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Daquela “explosão crítica” que fala o Washington, começou uma reformulação curricular que só foi mudar mais profundamente alguns anos depois. Mas, por essa época, começou a história de fazer o curso integrado. Aliar desenho industrial e programação visual, que não eram oferecidos juntos. O curso no primeiro ano era comum às duas formações, no segundo ano você já decidia o que ia fazer, se era DI (projeto de produto, como foi chamado mais tarde) ou PV. Em alguns dias você tinha aula o dia inteiro, em os outros não. Mas, a partir daí, juntou-se tudo


e colocou-se mais um ano na graduação. Isso coincidiu, um pouco, com a passagem da escola para a UERJ, porque ela era da Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio e foi obrigada a se enquadrar nas regras da UERJ. Teve gente que foi contra, porque perdeu liberdade: enquanto era relacionada à Secretaria de Educação, a Esdi tinha mais liberdade para implantar e retirar disciplinas. Dentro da universidade isso é mais complicado, as regras são mais rígidas. Com a Escola de Ulm foi a mesma coisa. Era independente e tentaram colocar para dentro da universidade, mas ela não topou, preferiu fechar.

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Bienal de Desenho Industrial de 68 crĂŠditos

Acervo Esdi


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No passado, o senhor chegou a atuar como gerente técnico da empresa Gapp - Grupo Associado de Pesquisa e Planejamento, escritório que surgiu na década de 70 e inovou ao oferecer projetos com preocupação ergonômica, especialmente voltados para a melhoria de postos de trabalho, para grandes empresas públicas, tais como Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), Ferrovias Paulistas S.A. (Fepasa), dentre outras. Como foi participar da coordenação desta, que possivelmente foi a maior equipe de design do país, chegando a oitenta e cinco profissionais na década de 80? E, em sua opinião, qual foi a principal oportunidade que viabilizou este empreendimento? A Gapp foi viabilizada pela rede de conhecimentos do Sérgio. O Sérgio Kehl – “proprietário” da Gapp – era uma pessoa que estava vindo da indústria, tinha sido diretor


industrial do grupo Atlas Villares, que fazia elevadores, e diretor de desenvolvimento do grupo como um todo, além de diretor industrial do grupo Nadir Figueiredo, que faz copos. Era uma pessoa com muitos contatos. Nessas empresas trabalharam alguns executivos que entraram no mercado em outras áreas e chamavam o Sérgio por confiança. Falo aqui do Sérgio, porque acho que é necessário. Foi uma pessoa que teve uma importância muito grande para o design no Brasil, principalmente aqui em São Paulo. Quando a Gapp acabou, dessa equipe saiu cada para o seu canto. O João Gomes está na universidade e implantou cursos de pósgraduação; o Maurício Duque está nas universidades e mantém o seu escritório; eu fui para a universidade e montei escritório; o Zé Renato [Kehl] está fazendo projeto e trabalhando em ensino. O pessoal se espalhou bem, levando a “cultura Gapp” para vários lugares.

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O episódio da Nadir Figueiredo foi interessante. O Sérgio entrou como executivo e pediu um salário que os proprietários não deram, disseram que era muito alto. Ele propôs uma participação nos lucros desta fábrica, que foi aceita. Ela estava com um prejuízo enorme, então, participação nos lucros de uma fábrica que está dando prejuízo, qualquer industrial aceita. 58

Ele era diretor industrial e observou que no processo de fabricação do vidro, o elemento mais caro é a energia necessária para manter o forno aquecido – ele não pode ser desligado. A areia tem um custo irrelevante. A mão-deobra, se você automatiza um pouquinho e racionaliza a produção, cai muito. Toda a política da direção industrial, até então, era de reduzir os custos e reduzir a produção, que não estavam conseguindo vender e que, portanto, não dava lucro.


“A eficiência na produção é tão boa quanto o desenho do produto a permitir” Ora, quando você reduz a produção, todo custo fixo tem um impacto muito maior sobre cada unidade que você está produzindo. Sérgio inverteu essa maneira de agir e passou a produzir o máximo possível. Ele também racionalizou a linha de produtos. Havia lustres com peças semelhantes: ele viu quais poderiam ser substituídas por uma só. Em um ano e meio, conseguiu zerar o balanço, não deu mais prejuízo. No ano seguinte conseguiu inverter o sinal: o valor do prejuízo passou a ser o do lucro. No final daquele ano a direção do grupo o chamou com uma proposta de redução

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Operador de pontes rolantes industriais: posto de trabalho inadequado crĂŠditos

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Cabine de operação após redesenho: melhores condições créditos

J. B. Menezes


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do percentual acertado, pois consideraram muito alto. Sérgio alegou que a empresa havia aceitado o percentual quando estava dando prejuízo e que só estava recebendo uma quantia maior então, porque havia conseguido aumentar o lucro. Mesmo assim, mantiveram a argumentação que era um valor muito alto que ele estava recebendo. Diante desta recusa e com certo desconforto, ele saiu da Nadir Figueiredo e foi para o Grupo Villares. 62

Conversando com o Sérgio, ele me contou que foi a partir dessa experiência na Nadir que descobriu a importância do design, que tudo que tinha feito havia sido em cima do processo e do produto, modificando a linha de produtos. Afinal, a eficiência na produção é tão boa quanto o desenho do produto a permitir. Por essa época, caiu nas mãos dele um livro chamado Designing for People, do [Henry] Dreyfuss. Mais tarde ele me falou do impacto que isso teve sobre seu modo de pensar e de


como ficou fascinado por poder criar o produto para a pessoa usar. Havia ficado encantado com as possibilidades da ergonomia no projeto do produto. Então a Gapp, na sua época, teve um papel inovador por esse caminho. Começou a pensar o produto na linha da ergonomia, muito voltado para a relação com o usuário. Houve uma apresentação na Cosipa, na qual um engenheiro – daqueles mais cabeças-duras e voltados apenas para o custo direto das coisas – levanta a questão de como se justifica o preço das novas cabines de comando, muito mais caras do que aquelas que compravam antes. O Sérgio argumenta, então, que essas cabines novas tem paredes duplas, isolamento térmico, vidros duplos – para cortar o infravermelho –, ar-condicionado, que as manoplas estão posicionadas de outro modo, não entra poeira na cabine e nem calor. Por isso ela é mais cara. O tal sujeito insistia na questão do custo, de como se justificaria a questão do gasto mais elevado.

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Posto de trabalho em siderúrgica (esq): exposição excessiva ao calor (acima) créditos

J. B. Menezes


Novo projeto (dir): conforto e segurança com maior isolamento (abaixo) crÊditos

J. B. Menezes

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Nesse ponto da discussão, o Sérgio foi ficando irritado, a ponto de dizer que não tinha que justificar nada, que o engenheiro sim é quem tinha que justificar a atitude de obrigar um operário a trabalhar dentro daquelas cabines tão precárias, fazendo com que ele morresse um pouco a cada dia. Isso sim é que teria que ser explicado. Aí o tal engenheiro ficou pequenininho, enfiou a viola no saco e calou a boca. 66

Eu comecei a trabalhar com ele [Sérgio] como assessor no projeto do Metrô. Comecei a trabalhar sem saber que estava trabalhando. Tinha feito meu mestrado com orientação do Itiro [Iida], que estava dando consultoria à Gapp. Um belo dia o Itiro me telefona perguntando se eu não gostaria de dar uma olhada no Metrô. Disse, ainda, que o Sérgio, que havia sido seu professor lá na Poli, estava com um escritório e fazia o projeto dos novos trens. Estavam ainda fazendo um levantamento, estabelecendo todos


os pré-requisitos do projeto. Aí viemos lá do Rio e fomos visitar os trens no pátio do Jabaquara. Deu para ver algumas coisas na cabine de comando – se o operador não enxergava, se enxergava muito longe – e fomos conversando sobre essa questão. Quando a gente volta para o Rio, o Itiro me dá um envelope dizendo que era a minha parte do trabalho, afinal, disse ele, “você trabalhou, não é?”. A partir daí, de 15 em 15 dias, a gente vinha para São Paulo, no final de semana, para dar assessoria nas questões de ergonomia. Quando chegou mais ou menos no final de novembro, o Itiro disse para o Sérgio que eu tinha dois meses de férias para tirar na Coppe, que o trabalho no Metrô não estava andando como devia e que seria mais produtivo se alguém ficasse direto em São Paulo tocando a parte de ergonomia. O Sérgio topou e claro que eu topei também. Fiquei esses dois meses e mais um pouco das férias escolares.

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Ampliação da cabine de comando nos trens da linha vermelha - Metrô créditos

J. B. Menezes

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Mockup em escala 1:1 da cabine de comando - Metr么 cr茅ditos

J. B. Menezes


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Cheguei a pensar, nessa época, na possibilidade de mudar para São Paulo. Demos uma boa arrancada no projeto e fizemos muita coisa na parte de ergonomia.

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O tempo de Gapp foi muito bom, foi o grande aprendizado da minha vida em termos de design. Mais tarde, em 1981, mudei para São Paulo para fazer o doutorado na Fauusp. Por essa época fui convidado pelo Sérgio para participar do projeto de um ônibus rodoviário de longo percurso. Se na FAU fiz meu Doutorado acadêmico, meu grande doutorado de design foi na Gapp, trabalhando com o Sérgio e aprendendo com ele. No projeto que a gente fez do ônibus rodoviário, antes de começar a dar qualquer traço, reunimos um grupo de designers e fomos para a antiga rodoviária de São Paulo, aquela em frente à Estação Júlio Prestes. Isso foi importante para descobrirmos alguns detalhes cruciais como, por exemplo,


que o grau de confiabilidade no banheiro do ônibus era igual a zero. Qual era a prática das empresas na época? Disfarçar. Quase todos os ônibus faziam a retirada do ar do banheiro por meio do circuito de aspiração do motor diesel, para eliminar o cheiro desagradável. O ar de fora entrava pela janela e o mau cheiro era eliminado ou, pelo menos, disfarçado. Também usavam uma dosagem exagerada de produtos de limpeza, para dar um cheirinho de “limpo”. Ainda, adotavam para o banheiro cores escuras, como o marrom e o preto, para não aparecer a sujeira. Quer dizer: tudo que você menos quer num banheiro é que alguém tente lhe enrolar. Você quer ver se há sujeira e não quer que a mancha e o cheiro estejam escondidos. Como ninguém confiava nesses banheiros, saiu uma diretriz do projeto – vamos adotar cores claras, como o branco e o bege. A empresa que se vire para manter limpo,

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Pegador sem rebites aparentes (acima) para o Metrô: desenho, resultado final e curiosa assimilação nos trens de Buenos Aires

Mockup do salão de passageiros (esq) em escala 1:1 - Metrô créditos

J. B. Menezes

porque se for branco, o passageiro vai poder confiar, e vai, também, perceber uma empresa que não tenta enganá-lo com essa ou aquela atitude. Ele teria um ônibus no qual poderia confiar e a empresa se valorizaria frente ao passageiro. Após o projeto do ônibus rodoviário vieram vários outros. Pedi demissão na Coppe e passei a trabalhar na Gapp, lá ficando até 1989, quando o escritório fechou.

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Estudos formais para escudo frontal dos trens do Metr么 cr茅ditos

J. B. Menezes


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O que o jovem designer, que hoje ingressa no mercado de trabalho, precisa ter para seguir a postura da sua geração e atuar no e sobre tal mercado? Quem está alcançando sucesso atualmente? Quero deixar claro que essas coisas não são tão determinadas, não quer dizer que todo mundo da minha geração trabalhava dessa maneira. Não foi tão homogêneo assim como muitos pensam que foi, ou querem dizer que foi. 76

Eu acho que ao atuar no e sobre o mercado, o grande viés é contribuir para a vida do usuário. Acho que a linha de corte é essa: entender o lucro da empresa como um prêmio que ela conquistou. A empresa tem que ter um papel social. Não através de doações, nem campanhas filantrópicas, mas sim na sua atuação intrínseca. Como é que ela pode contribuir para a melhoria de vida? Para que serve uma empresa? Para dar lucro à meia dúzia?


Se for esse o caso, então estamos mal, meu amigo. Se o papel da empresa for só esse, isso virou uma grande loteria, um grande cassino. Ou um grande prostíbulo. A empresa tem um papel fundamental na sociedade ao organizar o trabalho, planejar a produção e acumular riqueza para poder reinvestir. A empresa tem um papel social, seja ela estatal ou privada, e tem que ter um lucro, porque ela precisa ter uma reposição. A empresa que não tem lucro definha e morre, porque ela não investe e não cresce. Então devemos entendê-la como algo necessário e útil para a sociedade. Agora, quando ela começa a vender coisas que você não precisa de maneira nenhuma, quando ela gasta uma fortuna de publicidade para lhe convencer que você precisa daquilo, porque se você não consumir aquele produto, será infeliz, ela não está prestando serviço nenhum. Neste caso é melhor deixá-la falir.

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Ergonomia no salĂŁo de passageiros: estudos em escala real - MetrĂ´. crĂŠditos

J. B. Menezes


“No mercado, a gente sempre deve se perguntar: estou enganando alguém?” E a gente não deve entrar nesse papel de incentivador do consumo compulsivo, por uma questão ética. O viés aí é a postura ética de cada um. Se isso não está contribuindo com nada para a sociedade, e com nada para a vida daqui pra frente, então eu não vou fazer. Para enriquecer uns poucos e prejudicar todo mundo? No mercado, a gente sempre deve se perguntar: estou enganando alguém? Estou a fim de enganar os outros? É isso. Ou eu estou a fim de esclarecer, de contribuir? Hoje o pessoal fala muito das novelas da Globo, que tem qualidade técnica – e tem mesmo –, mas o que elas contribuem para

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um comportamento melhor da população, o que tem de ética? Dizem os globais: “Não, é apenas o retrato da sociedade”. Não, não é. É, no muito, uma caricatura distorcida da sociedade, pois só tem pilantras e santinhos.

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Não digo que tenha que ser programa educativo, mas também não precisa ser tão estereotipado. Pode ser um programa que faça pensar em alguma coisa, que faça você refletir sobre a vida, que ajude a fazer de cada um, um cidadão melhor. Que lhes faça mais felizes, e não mais entorpecidos, porque quase tudo hoje é para entorpecer as pessoas, já tão entorpecidas. Falam das drogas que são proibidas, mas quase tudo na mídia é para causar torpor. Alguém cria a “escultura fluida” da Hyundai – “o carro mais avançado do mundo”... em que é o mais avançado? Diga aí! Ou aquele carro que você deve comprar porque “você


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Ampliador fotográfico: projeto de graduação de João em 1969 créditos

Acervo Esdi


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para ler

Vance Packard, Estratégia do Desperdício Henry Dreyfuss, Designing for people

chegou lá”. Que negócio é esse? Você pode chegar lá (sei lá onde!) e ter um fusca. O que acontece é que hoje a grana é o critério. O que define se a pessoa está bem, ou não, é a grana e a sua demonstração ostensiva. Convenhamos, não é isso, não é? Esse mundo do ter em substituição ao ser é um mundo que a gente precisa pensar duas vezes. Em que trincheira a gente está entrando? Estamos dando força, com o nosso trabalho, a quê? A serviço de que estamos trabalhando? Acho que a grande questão é essa: no e sobre o mercado está na linha da ética.

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Entrevista em vídeo

vlog

Não deixe de conferir nosso canal no Youtube. Deixamos por lá um pequeno filme, com os melhores momentos de nossa conversa com João Bezerra. Para assistir: youtube.com/cianovlog

foto

Pedro Ungaretti < Retornar ao índice

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Maior congresso na América Latina na área do Design, é um evento bianual voltado para a discussão da pesquisa e ensino de design no Brasil. Este evento científico vem se apresentando como um importante fórum de divulgação e discussão de questões pertinentes ao avanço do conhecimento resultante de pesquisa aplicada e pesquisa básica na área do design.


Chamada de Trabalhos artigo completo 15.000 a 25.000 caracteres artigo de iniciação científica 5.000 a 10.000 caracteres

Submissão de artigos até 15/03 O processo de submissão e avaliação em blind review dos trabalhos será realizado eletronicamente. Todas as instruções para submissão de artigos encontram-se no website do congresso:

peddesign2012.ufma.br

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A dúvida do mercado

relativizando

por

Marcos Beccari ilustrações

Guilherme Henrique

“O drama de quem duvida é maior que o de quem nega, porque viver sem um fim é muito mais difícil que viver para uma causa” (Emil Cioran, 2003, p. 76). Entre os designers, é comum de se dizer que fulano ama ou odeia o mercado, que beltrano se vendeu ao mercado, que ciclano atua no e sobre o mercado, como se esse tal de “mercado” fosse alguém, uma entidade ou um contexto. Mas assim como dizemos “bom dia” sem necessariamente desejarmos que o interlocutor tenha, de fato, um dia bom, trata-se de puro hábito, como dizer “eu te amo”

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ou “preconceito é crime” – ou seja, o mercado é uma abstração que não existe concretamente. Não existir concretamente, porém, não implica inexistência; pelo contrário, todo e qualquer elemento de comunicação atua por detrás do que é real. Precisamente, “o mercado” é uma expressão cuja função se limita a garantir a realidade de nossos comportamentos mais previsíveis, imitativos e aparentemente desconexos entre si. 90

Tal como uma verdadeira religião, valorizar positiva ou negativamente o mercado é uma tentativa de obter privilégios em algum expediente ilusório (tipo comprar terreno no Céu) ou de canalizar frustrações pessoais em discursos políticos, via de regra interpretando mal e porcamente literaturas descontextualizadas (como um tal de “O Capital”, deixado pela metade com a morte do autor). Se por um lado é impossível alienar-se deste dogma coletivo, por outro lado


é possível (e geralmente provável) que nossas próprias intenções neste “grande esquema” venham a falhar ou, pior, que nunca aconteçam e assim sejam esquecidas. Quais as possíveis intenções de alguém que atua no e sobre o mercado? Talvez seja algo como democratização do consumo, liberdade de pensamento, autonomia e emancipação social. Ou talvez seja apenas uma espécie de paixão pelo real e concreto, por aquilo que funciona, que facilita e melhora nossa vida, ainda que isso resulte numa espetacularização teatral. Há cem anos, não obstante, Gilbert K. Chesterton (1955, p. 114) havia percebido que “a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar”. Até mesmo Kant (1784) já sabia que a melhor forma de garantir a servidão social é por meio da liberdade de pensamento, donde podemos

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deduzir que, nas palavras de Slavoj Žižek (2003, p. 17), “a luta pela liberdade exige a referência a um dogma inquestionável”.

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Diante de uma pergunta como “quer se casar comigo?”, por exemplo, temos total liberdade de dizer sim ou não, mas sem hesitar muito, sem enrolação. Ou se acreditamos em Deus, se somos de esquerda ou de direita: há somente algumas alternativas pré-definidas que necessariamente impedem a proliferação da dúvida. Isto é: o dogma está implícito na liberdade de escolha que o mercado pressupõe. Que dogma? Aquilo que Žižek (2003, p. 23) denomina “paixão pelo Real” (aquela segunda intenção de se atuar no e sobre o mercado), a qual invariavelmente culmina em seu oposto, no espetáculo teatral. Uma furadeira que machuca as mãos do usuário é uma realidade nua e crua. Para atuarmos no e sobre o mercado, precisamos ter paixão por essa realidade,


de tal forma que nossa preocupação não seja tanto com a “estética” da furadeira, mas antes com a necessidade real dos usuários, com o direito de eles terem uma “vida normal”. A partir do momento em que esse discurso apresenta uma finalidade mercadológica, contudo, aquilo que era real se torna espetáculo: oferecemos uma realidade sadia como alternativa àquela realidade nua e crua. Café faz mal à saúde, então oferecemos café sem cafeína, e assim por diante: cigarro sem nicotina, leite condensado sem gordura, cerveja sem álcool, sexo virtual (sem sexo), guerra sem guerra, política social-democrática (sem política), casamento com validade de dois anos... Noutras palavras, de tanto nos apaixonarmos pela “realidade real”, começamos a idealizá-la para além da resistência nua e crua de sua alteridade, uma vez que “a realidade é a melhor aparência de si mesma” (ŽIŽEK, op. cit., p. 25). Esta talvez seja

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a melhor definição de “mercado”: uma realidade que ameaça ser ilusão, ou vice-versa. Tal lógica parece ter sido explicitada no apogeu da Guerra Fria, onde uma grave imperfeição estratégica paradoxalmente garantiu uma estratégia eficaz: todos eram vítimas de uma mesma ameaça, sendo esta dura realidade a própria aparência de si mesma. Ou seja, o “efeito colateral” da guerra era mais importante que a guerra em si, de tal modo que uma realidade sadia (a paz mundial) era a solução projetada sob as circunstâncias do mesmo problema. Outro exemplo dessa paixão pelo real sobre a qual a lógica do mercado se sustenta pode ser visto nas práticas de autoflagelação – desde simples tatuagens até o ato de cortar o próprio corpo. Conforme nos mostra Marilee Strong (2000), antes de qualquer tipo de rebeldia, desejo patológico ou fuga da realidade, as pessoas que se tatuam ou se cortam fazem-no justamente para se sentirem mais


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reais, mais vivas. Apropriando-se do próprio corpo como alternativa à angústia insuportável de uma aparente inexistência, inércia e falta de substância da vida cotidiana, essas pessoas estão tentando (re)dominar a realidade, recuperar algum tipo de “normalidade” ou movimento vital. E isso através de uma dor física tão real quanto espetacular; aliás, uma atuação digna de reality show, onde as pessoas são tão reais que, ao conquistarem nossa empatia e identificação, tornam-se fictícias (e vice-versa). Jean Baudrillard (1975) sublinha, na esteira de Bataille, que a construção simbólica dessa identificação interpessoal precede a lógica da mais-valia e a consequente produção de bens materiais – contrariando então a ideia, aceita tanto por Marx quanto por Adam Smith, de estas últimas serem necessidades inatas do homem. Significa que aquela paixão pelo real, por meio da qual nós atuamos como atores no palco da vida real, não nos foi imposta de


forma esmagadora e alienante pelo “mercado”, mas constitui as coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como “realidade”. Não é o espetáculo mercadológico, pois, que gera a paixão pelo real, mas é a própria realidade que somente pode ser vivenciada (e suportada) se tomada como ficção. Isso se torna claro em alguns filmes que se propõem demonstrar de forma menos simulada possível cenas de sexo ou violência – Snuff (1976), por exemplo, é um filme pornográfico cuja propaganda afirmava que os atores que representavam personagens assassinados foram realmente mortos durante a filmagem. Em casos como esse, “Muito mais difícil do que denunciar ou desmascarar como ficção (o que parece ser) a realidade é reconhecer a parte da ficção na realidade real” (ŽIŽEK, 2003, p. 34). Com isso, Žižek recorre à ideia lacaniana de que qualquer animal pode tomar como verdade algo fictício, mas somente os homens (animais simbólicos) são capazes

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de tomar como ficção algo verdadeiro. Quando projetamos uma furadeira, neste sentido, não colocamos necessariamente nossas mãos em risco; ao invés disso, tomamos a possibilidade real de machucar as mãos como uma ficção a ser contrastada com uma possível realidade mais segura e ergonômica.

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Acontece que tanto a realidade da ficção quanto a ficção da realidade formam um muro intransponível que nos separa da dúvida. Mas pra que serve a dúvida? Essa questão remonta a “dúvida da dúvida” que, nas palavras de Flusser (2011, p. 26), “destrói esse refúgio e esvazia o conceito realidade”. Embora esse esvaziamento pela dúvida represente a mais insuportável realidade (e, portanto, a mais fictícia), ele acontece toda vez que não conseguimos mais nos lembrar de nossos próprios propósitos por ocasião de nossas expectativas nunca se realizarem, colocando em cheque nossas crenças


e princípios mais firmes. Logo, se o mercado é a realidade que ameaça ser ilusão, ou vice-versa, a dúvida atravessa o mercado pela ameaça que o circunscreve – e por mais que tentemos assassiná-la com causas e finalidades, ela retorna a todo instante, geralmente de modo imprevisível. Mas talvez a dúvida seja mais do que um estorvo. Quem sabe ela não seja uma abertura, uma palavra oportuna contra o silêncio, um desafio para o despertar de um sonho ou o metabolismo do próprio sonho que nos mantém sonhando? Pode ser que, por exemplo, um indivíduo que esteja se autoflagelando, ou até se suicidando, não esteja apenas realimentando sua paixão pelo real, mas acima disso ele esteja assumindo a dúvida como única forma de destruir a âncora que lhe prende à realidade. E quanto ao pedreiro que prefere ter mãos calejadas ao invés de mãos macias e delicadas? E quanto à menina que prefere ter uma bolsa Dolci&Gabanna ao invés de uma

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mais durável ou ergonômica? Pode ser que não haja outra opção, mas se somos nós que oferecemos as opções, não deveríamos levar em conta essas dúvidas que atravessam o mercado, sem tentar libertá-lo de seus dogmas impondo, no lugar destes, nossos próprios dogmas? O mercado é movido por dogmas; sem eles, não teríamos consciência de nossa liberdade de escolha e, portanto, não haveria mercado. Por outro lado, a dúvida alimenta-se de dogmas: quanto maior for uma certeza, maior será a dúvida capaz de destruí-la. No campo da Antropologia Cultural, David Graeber (2011, p. 49) nos mostra que as sociedades mais pacíficas e igualitárias também são as mais assombradas por uma violência simbólica constante – sonhos, lendas e alucinações de guerras iminentes, campos de batalhas, monstros e bruxas –, concluindo que “é precisamente isso, e o emaranhado de contradição moral que daí resulta, (...) a fonte primeira de criatividade social”.

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No campo da psicanálise, por sua vez, a noção de “estágio do espelho” de Lacan (1998) parte do pressuposto de que as frustrações que evitamos ou não somos capazes de relembrar são aquelas que nos assombram com mais força. Nelas, o sujeito se reconhece enquanto real somente com base num referencial especular, isto é, na figura do outro que não existe mas que insistentemente lhe persegue. Isso fica evidente no masoquista – expondo o desejo de ser torturado, ele projeta sua própria angústia no outro –, mas talvez seja mais frequente nas atitudes e decisões que jamais fizemos, mas que poderíamos ter feito. Esta parece ser a principal maneira pela qual a dúvida se instala no mercado: a possibilidade de perdemos uma grande oportunidade é tão assustadora quanto a possibilidade de não haver uma oportunidade, sendo ambas as realidades impossíveis de serem encaradas diretamente. Trata-se da aparência definitiva do real e, por conseguinte, do espectro


fantasmagórico do mercado cuja presença assegura a consistência de seus dogmas (mais-valia, livre concorrência, livre iniciativa etc.). Hitler (apud KERSHAW, 2001, p. 606) sabia muito bem disso ao justificar o extermínio de mulheres e crianças no Holocausto: “Todo o povo alemão sabe que se trata de uma questão de existir ou não existir. Todas as pontes atrás dele foram derrubadas. Ao povo alemão só resta avançar”. Do mesmo modo, ao protestarmos contra o preconceito contra os negros ou homossexuais em proveito da democracia e liberdade de pensamento, não estaríamos alimentando um meta-preconceito (contra os preconceituosos)? Não se trata daquela mesma questão nazista de existir ou não existir? Ou seja, não é uma questão de resistir contra algum tipo de poder imposto de cima para baixo através da espetacularização desse mesmo poder? As agências de publicidade nunca dizem estar impondo nada a ninguém, mas lutar contra

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isso é uma ótima estratégia de marketing. “Ao nos dividirem, as paredes nos definem”, alertou-nos Neil Gaiman (2011) em 1990, sendo “as mais assustadoras (...) aquelas que não somos capazes de ver, mas em cuja existência acreditamos”. O que eu quero dizer é que, alheios à dúvida, esquecemos que o preconceito é inevitável e arriscamos nos tornar apenas um espelho daquilo contra o qual nos opomos – como a maioria dos acadêmicos brasileiros que atacam aquela mesma elite social da qual conscientemente fazem parte. Quanto a isso, Graeber (2011, p. 173) afirma que “o único compromisso político fundamental correndo por todo o campo [acadêmico] é um tipo de amplo populismo”. Os grupos menos favorecidos nem sempre se apresentam dessa forma, mas “à alguém que é definido como negro, não lhe é permitido esquecer isso em nenhum momento de sua existência; (...) Ocorre que ninguém tem a mínima ideia


de como as pessoas se auto-definiriam caso o racismo institucional simplesmente desaparecesse – se todos realmente fossem deixados livres para se auto-definirem como quisessem” (op. cit., p. 179-180). Aqui a lógica do mercado é sintomática: a única opção oferecida aos negros ou homossexuais é a auto-afirmação, mas assim como os judeus e os próprios nazistas, não há a possibilidade de eles assumirem qualquer outra identidade. Diga-se de passagem, tal lógica foi evidente no movimento dos Zapatistas (México, 1994): ao invés de enfatizarem sua identidade Maia, eles se propunham a discutir uma possível reforma política no país; contudo, as organizações humanitárias (que os defendiam) logo os redefiniram como um bando de índios reivindicando autonomia indígena. Ou seja, o racismo foi nitidamente praticado por aqueles que lutam contra esse mesmo racismo: por serem Maias, a única afirmação política que os Zapatistas tinham direito era sobre

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sua identidade Maia. Dentro da lógica do mercado, eles podiam reivindicar sua legitimidade indígena, mas seria inconcebível qualquer comentário que não fosse sobre sua herança Maia.

nota

Referência ao filme “They Live”, dirigido por John Carpenter (1988). Assista aqui.

Os dogmas estão implícitos nos enunciados. E o fato de eu escrever sobre isso e de alguém ler o que escrevo não escapa dessa engrenagem mercadológica – assim como, no fim das contas, os Zapatistas se aproveitaram de sua condição de vítimas, mantendo uma “inocência” que já não era em si tão inocente. Mas isso não impede de assumirmos alguma responsabilidade nessa história, começando pelo reconhecimento de que qualquer enunciado é tendencioso e potencialmente falso – incluindo este último e, sobretudo, a possível interpretação do leitor sobre o mesmo. Somando-se a isso, poderíamos assumir a dúvida como ferramenta de provocação, como Neil Gaiman (2011) fez em seu conto “Vier Mauern”:

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“Quando ouvi dizer que o Muro de Berlim caíra, minha primeira reação foi de alívio; mas então pensei: e se existisse uma jovem que passou anos – metade de sua vida – pintando naquele muro? Pintando uma mensagem, ou uma imagem. Se todas as manhãs ela se levantasse bem cedo, fosse até lá e pintasse um ou dois traços no muro. Todos os dias, na chuva, no frio, às vezes até no escuro. Era o seu grito contra a opressão. Seu protesto contra o muro. Ela estava quase terminando quando tudo foi demolido. As pessoas poderiam ir e vir livremente. O muro contra o qual ela protestava não existia mais, assim como sua criação, desfeita em pedaços, vendida a um colecionador particular… Tento imaginar como ela se sentiu. Espero que não tenha ficado desapontada. Eu teria ficado”. A provocação somente obtém êxito a partir do momento em que alguém se sente incomodado;


mas caso ela seja levada adiante, a dúvida que a sustenta tende a sumir. Nas palavras de Flusser (2011, p. 88): “A saída dessa situação é, ao meu ver, não a reconquista da fé na dúvida, mas a transformação da dúvida em fé no nome próprio como fonte de dúvida”. A inevitável perda de senso de realidade é experimentada, inicialmente, como via única de subversão mercadológica. Mas desde o início, essa experiência baseia-se num sentimento inarticulado (a dúvida em si) e, portanto, inconsciente de si. Quando finalmente nos voltamos contra a dúvida, duvidando dela ao torná-la consciente, não mudamos a realidade, mas somos por ela mudados – assumimos a responsabilidade que a dúvida pressupõe. Que diferença faz essa responsabilidade? A princípio, nenhuma. Mas com ela podemos reconhecer que esse tal de “mercado” só consegue nos aprisionar – manipular nossos desejos por produtos de que não precisamos,

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estabelecer relações baseadas no medo e não na confiança – utilizando-se de nossas próprias dúvidas que nunca tivemos coragem de assumir. A paixão pelo Real e seu consequente espetáculo, portanto, não fazem nada além de nos distrair e nos manter a uma distância segura dessas dúvidas que nunca encaramos de frente. Sabendo disso, muita gente se dedica a identificar e combater esses mecanismos mercadológicos contra a dúvida – esses são os marxistas. Eles substituem o dogma do mercado por uma alternativa supostamente mais sadia (mas tão dogmática quanto), abandonando novamente a dúvida e reiterando o espetáculo contra o qual eles tanto se opõem. Acontece que, em última análise, a dúvida em si não se deixa flagrar: não há como distinguir entre o que realmente queremos e o que acreditamos que queremos. Um indivíduo que fuma está querendo, de fato, se matar aos poucos? Geralmente nem


ele sabe dizer. Mas ao invés de lutarmos contra a indústria do cigarro, podemos nos questionar: “ainda temos o direito de querer fumar?”. Significa que, ao invés de lutarmos contra o mercado, poderíamos tentar superá-lo; ao invés de transformar a realidade, poderíamos tentar subvertê-la. Subversão, vale lembrar, nunca é um ato imediato e radical; ao contrário, é quando entendemos muito bem os mecanismos e lacunas de um contexto a ponto de intervir sobre ele sem que ninguém perceba diretamente. Não se trata, portanto, de uma fuga ou abandono do mercado – essa também é uma atitude a ser superada. Até porque essa realidade que ameaça ser ilusão e vice-versa não é algo recente – a fofoca e a conspiração, por exemplo, são formas ancestrais e ainda muito poderosas de “mercado”. Claro que o mundo parecia ser mais sensato antes do advento da internet, quando o espetáculo de nossa paixão pelo Real não era tão

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escancarado por uma interatividade forçada. Mas agora, mais do que nunca, a diversidade e a consequente efemeridade dos dogmas são latentes, tanto quanto a imponência das dúvidas que tendem a surgir com o desencanto desses dogmas.

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O que não se pode perder de vista é o fato de que a dúvida não se deixa flagrar e que, portanto, ela é sempre provisória. A dúvida pela dúvida, pois, não passa de um suicídio injustificado. Flusser (2011, p. 88), vale repetir, é contundente em sua “transformação da dúvida em fé no nome próprio como fonte de dúvida”. Noutras palavras, quando a dúvida destrói um dogma, ela clama por outro dogma. Não é, portanto, puro niilismo irracional ou absoluto relativismo imobilizador; muito pelo contrário, é o niilismo nietzschiano que (deveras mal compreendido até hoje) ilumina o movimento de uma constante superação do ceticismo através desse mesmo ceticismo. Este intuito, por si só, mantém a dúvida por


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perto sem anular a existência remota de um dogma – a saber, o dogma precário da esperança, sem o qual não conseguiríamos sobreviver naquilo que percebemos como real. Por fim, no caso de essa esperança ameaçar tornar-se realidade, convém recordarmos um conselho aparentemente atemporal de Alan Moore: “Be careful: in the last analysis, reality may be exactly what we think it is”. 114

referências BAUDRILLARD, J. The Mirror of Production. Trans. Mark Poster. New York: Telos Press, 1975. CHESTERTON, G. K. Orthodoxy. San Francisco: Ignatius Press, 1955. CIORAN, E. La caída en el tiempo. 3. ed. In: Col. Marginales, 124. Barcelona: Tusquets, 2003.


FLUSSER, V. A dúvida. In: Col. Comunicações. São Paulo: Annablume, 2011. GAIMAN, N. Vier Mauern. Conto publicado originalmente em “Breakthrough”, 1990, em comemoração à queda do Muro de Berlim. In: Sinal e Ruído. Trad. Alexandre Boide. São Paulo: Conrad, 2011. GRAEBER, D. Fragmentos de uma antropologia anarquista. Porto Alegre: Deriva, 2011. KANT, I. O que é o Iluminismo? Trad. Artur Morão. 1784. Disponível em: http://www. lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784. pdf. Acesso em 4 fev. 2012. KERSHAW, I. Hitler, 1935-45: Nemesis. Harmondsworth: Penguin, 2001. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998. STRONG, M. The Bright Red Scram. Londres: Virago, 2000. ŽIŽEK, S. Bem-vindo ao deserto do Real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas

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relacionadas. In: Col. Estado de sítio. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

autor 116

veja mais:

Portifólio do ilustrador Guilherme Henrique

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Nascido em São Paulo, Marcos Beccari é graduado em Design Gráfico e (quase) mestre em Design, ambos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Interessa-se por Filosofia, Psicologia, Ficção Científica, Tarot e outras conspirações, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o designer como um “articulador simbólico”. Atualmente coordena o blog Filosofia do Design, além de participar do projeto AntiCast e colaborar com os blogs Design Simples, Formas do Consumo e Universo Humanus.


Onde a utopia e a realidade se encontram apontando

por

Lucas Colebrusco

A maioria dos ingressantes na faculdade se imagina saindo dela com um bom emprego em uma grande empresa de forte atuação no mercado e com um bom salário. Porém, algumas coisas mudam durante a formação e conforme as primeiras experiências profissionais vão acontecendo. Ninguém deixa de buscar o sucesso - ou não deveria - mas a questão é que essa ideia de sucesso sofre mutações e adaptações. Durante a graduação amadurecemos e o senso crítico fica muito mais apurado do que antes, e os problemas do mundo começam a ser compreendidos. A graduação é um momento

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no qual se tem tempo para analisar, entender e refletir. Onde o compromisso com a sociedade ganha importância e muda completamente os princípios de uma pessoa.

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Provavelmente isso não é uma regra, mas acontece no curso de Design da USP, e imagino que, por uma questão conceitual, a Universidade de São Paulo como um todo caminha para esse tipo de abordagem educacional. Lá dentro, aprendemos que a sociedade paga os nossos estudos, então temos o dever de dar algum retorno. A experiência profissional, por outro lado, é onde a velocidade da rotina e as necessidades financeiras e mercadológicas falam muito mais alto. É uma questão de sobrevivência, não existe saída - aparentemente. Com ela é comum que o senso revolucionário se perca ou seja deixado de lado. Em alguns casos, o senso crítico ainda sobrevive na forma de uma eterna angústia até mesmo inconsciente.


Percebe-se, então, uma relação paradoxal entre as partes. O conceito de mercado, sob minha interpretação bruta e simplificada, consiste em um padrão de comportamento e escolhas da população em geral que acontece de forma acomodada, preguiçosa e egocêntrica. O medo da mudança assusta fabricantes, comerciantes e consumidores. Pensar nos problemas do mundo não é prioridade na cabeça das pessoas e acaba sendo deixada de lado. Vender é a necessidade imediata dos comerciantes e fabricantes, que preferem saber onde estão pisando e até mesmo incentivam essa previsibilidade do comportamento do consumidor. A maioria dos profissionais trabalham nesse sentido, mas se tem alguém que pode quebrar essa rotina, esse alguém é o designer. Mas estando em plena atuação na criação para esse “mercado”, e trabalhando em contato

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com outros profissionais que possuem essas preocupações mercadológicas, o designer acaba também esbarrando nesses medos. Com o tempo, infelizmente isso tende a impregnar no comportamento desse profissional, que também passa a agir conforme esse comportamento acomodado.

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A experiência de estagiar durante a graduação é o momento no qual a utopia e a realidade convivem. Esse ponto de contato entre as duas coisas é importante para que se crie um equilíbrio entre ambas. Durante um período do dia, esse jovem exercita o seu lado crítico, e no outro, enfrenta a realidade. Essa rotina exercita o intercâmbio entre as partes na mente e as barreiras entre uma coisa e a outra se dissolvem. Saber escolher o que colocar na bagagem durante a formação é uma tarefa difícil. Ainda mais porquê geralmente são as empresas que escolhem os estagiários


e não o contrário. O professor João Bezerra nos mostra em sua entrevista que as primeiras experiências definem bastante os princípios de um profissional. A necessidade de reconhecimento imediato é uma questão que afeta bastante a cabeça de um estudante. Trabalhar com os produtos autorais voltados para o mercado de luxo traz reconhecimento imediato, fama. Consequentemente, faltam profissionais interessados e qualificados para realizar as tarefas comuns que tanto afetam o nosso dia a dia. Soluções de questões muito importantes mas que não trazem fama para um nome exclusivamente, ou que podem ser reconhecidas somente a longo prazo. É exatamente esse o ponto. Trabalhar sobre o mercado, muitas vezes, implica em se jogar de cabeça na solução de problemas pouco valorizados. “Trabalhei, quase exclusivamente, com produtos ‘voltados para o trabalho’”, diz o

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professor entrevistado. “Quando você faz o tipo de produto que é mais voltado para a produção e o trabalho, é relativamente fácil resolver essa questão de no e sobre o mercado”. Esse texto, portanto, é um apelo.

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Apelo aos estudantes. Porque não se pode deixar de passar por boas experiências profissionais durante a formação. E, além disso, é preciso ser bastante exigente ao se escolher quais serão elas e não se deixar levar pelo desejo da fama. Apelo aos que contratam. Porque é preciso valorizar e dar abertura aos estagiários para diálogo crítico, não os encarando como simples executores de tarefas rotineiras (mão de obra barata, muitas vezes). Apelo aos educadores. Porque, nós estudantes, precisamos dessa motivação diária sobre a responsabilidade profissional exemplificada


agradecimentos

Eduardo Ferreira Edna Gonçalves de O. Colebrusco João Bezerra de Menezes

pelo professor João Bezerra, que através de suas experiências profissionais, dá uma lição de ética em sala de aula. “Seja a mudança que você deseja ver no mundo.” Mahatma Gandhi

autor Lucas Colebrusco é graduando no curso de Design da USP, participou do Projeto Revale, atualmente trabalha com mobiliário e tem interesse por design de produto, inovação e tecnologias.

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O Design Possível busca profissionais de diversas áreas que sejam ágeis dinâmicos e dispostos a encarar novos desafios! 124

Você sabe qual é o objetivo do nosso trabalho? Somos uma ONG que utiliza o design como ferramenta de transformação social por meio do desenvolvimento de produto, gestão de negócios, comunicação e de diferentes maneiras que contribuam para a geração de renda, e estimulem o desenvolvimento humano e social. Atuamos principalmente nas periferias, aproximando suas produções junto ao mercado consumidor.


Participe! Temos vagas no setor educativo, administrativo e dentro do universo do design de produto e grรกfico. Saiba mais sobre nossas vagas clicando aqui, ou entre em contato conosco pelo e-mail: contato@designpossivel.org

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Dança das cadeiras!

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por

Felipe Massami imagens

Felipe Massami

Sentar, abancar, assentar. Um ato extremamente simples que tem como objetivo relaxar ou acomodar uma pessoa para realização de alguma outra atividade. Em tempos já passados, os hominídeos simplesmente utilizavam cadeiras feitas em pedra. Estranhamente, essa simplicidade tornou-se superestimada. Designers de todo mundo almejam deixar sua marca por meio desse objeto, até parecendo um certificado que atesta a formação desse profissional. Se formos a qualquer premiação, bienal, exposição etc iremos, com total certeza, nos deparar com

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mais uma inovadora, magnífica, estupenda, brilhante, genial cadeira... Sejamos honestos, tendo em vista que o design tem como premissa construir soluções pautadas em conhecimento prévio utilizando-se métodos a fim de chegar em soluções inteligentes para o mais variado problemas, dar-se o luxo de projetar cadeiras é ignorar o potencial que esse campo tem de transformar a realidade, prendendo-se a redundâncias. Já estamos saturados de excelentes designers que realizam maravilhosos projetos de assentos para todos os gostos, poderes aquisitivos, estilos etc. E para esses, devo parabenizá-los pelo trabalho primoroso que realizam. Mas será mesmo que tendo tantos profissionais que se dedicam a isso, é necessário haver outros tantos nesse mesmo caminho? O projeto de novas cadeiras, talvez, só se justifique em algumas situações como: quando a cadeira torna-se o meio


para determinado fim, como no caso de cooperativas/ ONGS que precisam agregar valor em seus produtos para poder se manter; quando é utilizada como uma plataforma para experimentação de diferentes técnicas e materiais; quando esta se torna o resultante de um novo modelo de produção ou negócio. Pois, uma cadeira por si só, não se “sustenta”. Mas por que essa minha implicância com cadeiras? Recentemente assisti a um vídeo no site da Fastcompany chamado How not to: design chairs. Nele, dois designers chamados Eero Yli-Vakkuri e Jesse Sipola, lançam um “manifesto” sobre a necessidade de projetar mais cadeiras. Num resumo, eles dizem: “Nós acreditamos que o mundo já possui cadeiras suficientes. Projetar novas cadeiras tira nosso tempo para melhorar as que já existem. Considere este o desafio para você repensar a forma como o design deve ser manifestado. Se não for isso ...então, pense sobre a quantidade de tempo que você

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vai economizar quando você não tem que projetar cadeiras durante um ano”. Assim como a luminária e alguns outros objetos de decoração, parece que a cadeira é uma coisa que todos designers (e alguns arquitetos) irão projetar em algum momento de sua carreira. Por trás desta brincadeira, existe algo muito importante neste discurso. Yli-Vakkuri e Sipola sugerem que talvez a gente já tenha o suficiente. O que eles propõem é utilizar esse tempo que nos é “tirado” para encontrar soluções para os problemas reais que cofrontamos no dia-a-dia. E para iso, não precisamos ir nem tão longe para achar o que fazer. No Brasil, temos uma série de desafios e só listando alguns que me vieram na cabeça: 1. A falta de educaçao que aflinge cerca de 731 mil crianças (dados IBGE); as taxas enormes de analfabetismo funcional entre pessoas entre 15 e 64 anos registrado em 28% no ano de 2009 (IBGE). Não preciso nem falar os diversos imactos que isso gera;


2. Apenas 44,5% da população brasileira está conectada a uma rede de esgotos (dados do ministério das cidades de 2009) e o Brasil encontra-se em 9º posição no ranking mundial “da vergonha” com 13 milhões de habitantes sem acesso a banheiro (OMS). Se nos atentarmos apenas no impacto econômico, cerca de 217 mil trabalhadores precisam se afastar de suas atividades devido a problemas gastrointestinais ligados a falta de saneamento, causando prejuízos na casa dos R$ 238 milhões por ano em horas-pagas e não trabalhadas (considerando o valor médio da hora de trabalho no País de R$ 5,70). Mas o pior, o impacto social que isso gera é absurdo. Cerca de 2.100 pessoas faleceram em 2009 (DATASUS) devido a problemas gastrointestinais. Caso tivessem acesso universal ao saneamento, haveria uma redução de 25% no número de internações e de 65% na mortalidade, ou seja, 1.300 vidas seriam salvas;

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3. No Brasil, cerca de 40 milhões de pessoas são portadoras de algum tipo de deficiência, incluindo física e mental. Esse dado inclui também as pessoas que se declaram incapazes de ouvir, enxergar e andar. Vocês leram certo, são 40 milhões de pessoas que, em muitos casos, nem são levados em consideração como parte de requisito para o desenvolvimento de um projeto. Se arredondarmos para 200 milhões de pessoas, esse contingente corresponde a 20% da população como um todo. Quantos projetos de acessibilidade, mobilidade, de usabilidade e ergonomia universal nós realizamos para que não exista barreiras entre uma pessoa ou outra? Agora, se os designers acham que esses problemas são grande demais (e são mesmo) para seu escopo, podemos analisar situações mais corriqueiras que, por meio do design, chegaríamos a resultados excelentes. Um exemplo muito interessante, dado pelo professor entrevistado nessa edição, é a bolsa


que o carteiro costuma carregar. Alguém se sequer se deu ao trabalho de pegá-la para ver a massa que aqueles profissionais devem carregar diariamente pelas ruas? Digo, por experiência, que não é a coisa mais confortável de se carregar durante algumas horas sob Sol. Quantas perguntas não podemos tirar disso? Será que ela atende de forma satisfatória todos os requisitos de projeto e de usuário? Será que todas questões ergonômicas são atendidas levando em conta os mais variados perfis existentes? Será que aquele tamanho é o mais adequado? Será que uma bolsa de uma única alça distribui uniformemente a massa das correspondências? Será que o material que compõe aquela bolsa em dia de chuva é o mais adequado para proteger as correspondências? Isso só para mostrar algumas perguntas que podem sair de uma observação, sem entrar no mérito do que sairá com outros métodos de pesquisa utilizados em nosso campo. E também, não estou entrando no mérito de discutir

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o design de serviços por detrás da entrega de correspondências,o sistema de comunicação e identidade do carteiro e do correio ou mesmo se existem outras necessidades que esse profissional precise (como será que ele se vira em dia de chuva?) Ou seja, o problema é o design do repeteco, o design que não acrescenta, o design coadjuvante, o design que não propõe, o design que não faz refletir, o design que não transforma, o design que esquece que é para as pessoas, o design que não soluciona, o design que não melhora, o design que não salva! Logo se pararmos por um instante e começarmos a observar, enxergaremos quanta disformidade e disfuncionalidade encontramos ao nosso redor no qual, infelizmente, as pessoas acostumaram-se a conviver ou ficam esperando soluções públicas. E pior, que grande parcela desses

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problemas podem ser sanados com design, seja diretamente ou inderetamente. Acho importante salientar que essas soluções devem vir alinhadas com doses de empreendedorismo. Tentem entender essa palavra muito mais com o sentido de protagonista perante as situações, ao invés de coadjuvante de um contexto.

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Falo isso, pois a solução só será efetiva se o designer conseguir articular suas habilidades com a de outros campos a fim de torná-la concreta e não mais uma idéia abstrata ou um render bem feito. Precisamos ter ciência do potencial que essa mudança de mentalidade pode trazer ao colocar o design como o gerenciador de outras áreas e como atividade central de proposições de valores e de coordenação. Com esse jeito de pensar e agir, deixaremos de estar apenas no mercado, para começar a estar sobre ele.


Aí sim conseguiremos propor e construir um sistema que acreditamos e faça sentido. Será mesmo que as cadeiras ainda se mostram tão importantes? E por isso, manifesto-me e convido-os: Designers, univo-nos e sentemos no chão por um dia! Cadeiras para que te quero? Pois se cadeiras são o viés condutor de seus projetos, que sejam as que possuam rodas! autor Felipe Massami é designer por paixão, empreendedor por vocação e artista por hobby. sites de referência (acesso 24/02/12)

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Trata Brasil Fast Company Brasil Escola Deficiente Ciente G1 - globo

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Homem / ferramenta / máquina responsabilizando

por

Leonardo Barreiro imagem

Ginoide de Metropolis Fritz Lang, 1927

“É tudo automático, mas quando trava, não informa como voltar ao normal!” – explicava a proprietária de um aparelho que fazia pães e bolos. A máquina, dependendo da pressão que se fazia em um dos botões, modificava radicalmente a programação de funcionamento (e o micro visor dificultava o acompanhamento dessa mudança). Além disso, para reiniciar o sistema e tentar configurá-lo corretamente era preciso desligar e ligar novamente o aparelho na fonte de energia. Resultado: a grande tragédia do bolo compacto. O usuário, acostumado com a facilidade antes estabelecida (na propaganda anunciava-se que com dois cliques o aparelho preparava o pão),

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provavelmente não esteja preparado para lidar com essa situação.

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Máquina (in)segura Como expõe Norman, “o comportamento das pessoas sofre uma forte influência da forma como elas percebem o risco que estão correndo” (2010, p.72). Uma máquina com alto grau de independência com relação ao modelo anterior (um sistema de iluminação que acenda e apague as luzes automaticamente quando sinta a presença de um usuário, por exemplo), funciona para o usuário como um redutor de responsabilidades. Antes existia o controlador (que pressionava o mecanismo que ativava o sistema), agora resta o espectador. O espetáculo, carregado de efeitos auto reguláveis, toma parcialmente para si o papel de controlador do ambiente, simples assim. Agora se observarmos um veículo com o melhor sistema de freios da atualidade,


que possua ainda em seu interior quatorze airbags, um complexo sistema de detecção de obstáculos, e ainda a função de escurecer os vidros automaticamente caso seja necessário pela ação do sol. Não existe também neste caso, como conseqüência das supostas garantias tecnológicas, uma redução de responsabilidades? Adicionamos à lista os coletes à prova de balas, capacetes para ciclistas, pára-quedas reserva, sinaleiras nas ruas, etc. Essas ferramentas, máquinas, “coisas”, também agem como pílulas tranquilizantes (obviamente estamos tão acostumados com muitas delas que por vezes é difícil reconhecer o efeito dessas pílulas). Porém, esse incentivo à diminuição da preocupação poderá trazer consigo outra consequência (além do conforto ocasionado pelo aumento do grau de tranquilidade). Esse efeito resultante pode ser resumido com a utilização de dois termos: desatenção e alienação. A desatenção ocorre porque,

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ao ficar sem função dentro de um ambiente de sistema (um carro, por exemplo), o ser humano tende a buscar outras áreas para focalizar sua percepção. Já a alienação refere-se ato de submeter-se cegamente aos valores instituídos (sejam esses valores controlados por instituições públicas, privadas, pelo indivíduo que está ao lado ou pela campanha publicitária audiovisual do produto).

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Painel superior Boeing 757 Flyforfun, 2008

Ao passarmos ao patamar das consequências, a redução de responsabilidades torna-se ainda mais confusa. Um motorista que assimila um estímulo e o interpreta como a alternativa de não utilizar o cinto de segurança (pela existência de vinte airbags em seu veículo, por exemplo), não terá como responsável por sua possível morte (caso os airbags não a evitem) a fabricante do veículo. O condutor teria descumprido a lei, porém um ponto de relevância neste questionamento é o da desatualização constante a quês estão submetidas

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as regulamentações públicas, em grande parte devido às constantes transformações tecnológicas. Eis então outro aspecto de destaque na relação homem/máquina, a necessidade de restauração contínua que tanto as instituições quanto os próprios usuários precisam suprir.

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Máquina condicionante Anos atrás, em uma conversa informal com um designer e professor universitário, alguns aspectos da adaptabilidade dos indivíduos foram discutidos. Quando o professor contava sobre as modificações que passou durante sua carreira profissional (antes montava layouts com recorte, colagem e ferramentas manuais, agora utiliza os softwares de computador), foi possível ver uma clara necessidade de atualização pela qual passam profissionais de diversas áreas. Pierre Lévy, ao deferir sobre a prensa de Gutenberg e os efeitos gerados por seu uso,


afirma que ela (a prensa) não determinou “o desenvolvimento da moderna ciência européia, tampouco o crescimento dos ideais iluministas e a força crescente da opinião pública do século XVIII” (1999, p.26). Segundo Lévy, a prensa atuou sim, mas como condicionante, abrindo uma série de possibilidades para que as consequências pudessem ocorrer. Saberia Santos Dummont que sua máquina voadora influenciaria uma série de outras utilizadas para destruir? Já dizia Nietzsche, que “as consequências de nossas ações agarram-nos pelo topete, muito indiferentes ao fato de que entrementes tenhamos nos tornado melhores”. A responsabilidade do designer passa pela visualização e análise das possibilidades que poderão ser abertas com o resultado de seu projeto, mas também abrange o entendimento de que, provavelmente, seu produto influencie ações tanto negativas quanto positivas.

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Como ressaltara de maneira simples Vicente, “designs bons podem ser usados para objetivos ruins” (2005, p.267).

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A falta dessa compreensão de futuro, porém, obviamente não agrega automaticamente ao projetista as características negativas de um vilão, pois existem (e provavelmente sempre existirão) possibilidades que pairam longe do alcance de raciocínio do designer. As transações bancárias via internet, por exemplo, eram perfeitas até que foram desenvolvidos os primeiros softwares usurpadores de informações. Novas adaptações de segurança são feitas a cada período pré-determinado, visando justamente combater as adaptações desses softwares. Cabe então, dentro do possível, maximizar o esforço empreendido para minimizar os efeitos negativos.

Future retro Mark Chapman, 2010

Assim como uma colher permite erguer elementos que um garfo não consegue,

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decisões tomadas influenciam os modos de agir. Especificando um pouco, decisões tomadas ao projetar podem influenciar no desenvolvimento dos modos do usuário. As ações do universo design estão, então, albergadas pelo âmbito da política, visto que entre os significados dessa expressão está o de “estudo dos comportamentos intersubjetivos” (Abbagnano, 2007, p.773).

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Dentro desse universo são visualizados os atores projetistas (designers), atores consumidores, espectadores, além das demais características do sistema ambiente. O designer, como mediador e desenvolvedor de produtos mediadores, tem a seu alcance a possibilidade de interferir indiretamente na forma como se comportarão o ator consumidor e os espectadores. O termo indiretamente, nesta colocação, refere-se a como os usuários podem perceber essa influência, visto que se


o designer planejou a interferência, logo também foi uma ação direta. Máquina como extensão Algumas décadas atrás, dois jovens foram condenados a prisão por combaterem uma ditadura militar no Uruguai (um deles é atualmente o presidente do país). Em menos de dez dias, a dupla, separada por uma grossa parece de concreto, conseguiu desenvolver um sistema de comunicação complexo (por meio de batidas na parede, utilizando as mãos e alguns materiais rígidos que possuíam como canecas e colheres). Esse sistema lhes permitia conversar sobre o que quisessem, inclusive sobre possibilidades de fuga e de combate. É possível traçar um paradoxo relacionando as paredes desse local como alguns tipos de máquinas, principalmente aquelas que, pela falta de análise criteriosa durante o desenvolvimento, minimizam a potencialidade de ação humana mesmo quando isso não é necessário.

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Utilizando essa linha paradoxal, se por um lado as máquinas e/ou estruturas (no caso do exemplo anterior, as paredes) podem reduzir as preocupações de alguns (no exemplo, os militares), além de limitar negativamente o poder de ação (dos presos), por outro a capacidade humana de corromper/extrapolar as regras/estruturas trona-se um meio de retorno ao eterno aprendizado. Assim, também o designer pode desenvolver meios para tornar ineficazes determinadas barreiras, mesmo sem derrubá-las.

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Muro de Berlim Pedro Dias, 2004

Flusser expõe que “o processo de criação e configuração dos objetos envolve a questão da responsabilidade (e, em consequência, da liberdade)” (2007, p.195). Expandindo a ideia de processo de criação para a vasta gama de ações possíveis na convivência em sociedade, pode ser citado o exemplo dos coletivos de protesto via web. Numa sociedade altamente dependente da conectividade informacional possibilitada

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pela internet, esse tipo de movimento amplia sua capacidade de interferência na organização societária. As ações do grupo Annonymus, por exemplo, tornam-se mais visíveis na medida em que o alcance da web se amplia (aqui no que se refere tanto à quantidade de usuários que a acessam, quanto à “internetização” de ações e materiais das instituições).

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Não entrando ao mérito, aqui, de discutir o certo ou errado de tais ações, o ponto a ser ressaltado é o nível de alcance das ações. Tal alcance, facilitado pela existência das máquinas que possibilitam o acesso ao ciberespaço, converte-se em uma ponte para o saber. Desde o desenvolvimento de um sistema de controle de gastos de um condomínio até imagens de uma revolta popular em um pequeno país do outro lado do mundo, cada vez menos acontecimentos escapam aos olhos do mundo conectado. Sobre esse aspecto, Vicente ressalta que “é muito mais


difícil exercer a tirania e aplicar a tortura quando se sabe que o mundo observa os seus movimentos” (2005, p. 273). A máquina como extensão pode funcionar ao mesmo tempo como amplificador e redutor, mas para satisfazer as necessidades de quem a utiliza, possivelmente deverá conter algum ingrediente similar a um dos utilizados pelos indivíduos nas interações do cotidiano. O grande enigma para os projetistas na transformação da relação homem/máquina talvez se encontre no questionamento: Como permitir que o ser humano continue seu desenvolvimento sem que, com isso, se abra um grande espaço para o erro? Assim como um marceneiro corre riscos ao utilizar uma serra elétrica, a sociedade também convive com os perigos relacionados à interação com as ferramentas/máquinas/ estruturas. Teria razão então Nietzsche

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(2008, p. 108), ao expor que “aqueles que buscam o conhecimento vêem a vida como experimentação”?

autor Leonardo Barreiro é bacharel em Design pela ULBRA/RS, especialista em Docência do Ensino Superior pelo AVM/RJ, atualmente atua no desenvolvimento de interfaces para sistemas web e desenvolve pesquisas sobre metodologia e design. Participa de projetos relacionados ao surf (desenvolvimento de pranchas e acessórios compostos por materiais alternativos) e mantém o blog designpensante.com.

referências imagem

Social network Hans Põldoja, 2010

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ideas fuertes. Buenos Aires: Longseller, 2008. NORMAN, Donald A. O design do futuro. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

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VICENTE, Kim J. Homens e máquinas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

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Rede de relacionamentos exclusiva para acadĂŞmicos e profissionais das diversas ĂĄreas do Design.

designbr.ning.com

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A vida em Ulm

memória por

Rafael Gatti imagem

Reunião de Inge Aicher-Scholl, com os estudantes autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz

Recentemente foi disponibilizado no Flickr do Dr. René Spitz um rico álbum de fotos que registram um pouco do dia-a-dia na pioneira Escola de Ulm. Fomos autorizado a publicar aqui na Ciano uma pequena amostra destas fotos, tiradas na década de 50 por Hans Conrad. Elas retratam, ao contrário do que usualmente se imagina em relação a uma escola funcionalista, um ambiente de aprendizado livre e descontraído, como podemos ver em fotos como na da aula no terraço da escola, onde os alunos assistem de pés descalços. Ao final, não deixe de visitar a página no Flickr do Dr. Spitz, onde muitos outros registros estão disponíveis.

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Max Bill no ensino de projeto autor

Hans G. Conrad crĂŠditos

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Aulas na oficina de gesso - 1956 autor

Hans G. Conrad crĂŠditos

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Curso básico ministrado por Josef Albers autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz


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Assembléia da escola em 1955 autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz


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Celebração na cantina autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz


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Estudantes no terraço da escola - 1956 autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz


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Alunos em sala de aula - 1954 autor

Hans G. Conrad crĂŠditos

RenĂŠ Spitz


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Aulas do Prof Podach no terraço da escola autor

Hans G. Conrad créditos

René Spitz veja mais

Galeria de imagens de René Spitz no Flickr


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Cartaz além do museu

tcc em foco comentarista

Rafael Gatti

Um dos cartazes da mesa ao lado será impresso e distribuído pelo Brasil, espalhando a mensagem contra a corrupção país a fora. Algo especialmente importante neste ano de eleições, pois nos faz refletir sobre o poder do voto e das mudanças que ele acarreta.

título

Projeto Cartaz Aberto autor

Gabriel Manussakis imagem

Jurados analisam porpostas enviadas

Falamos aqui do resultado da primeira edição do projeto Cartaz Aberto, que se apresenta com o claro propósito de incentivar iniciativas que busquem transformar nossa sociedade. Pretendem tirar os cartazes dos espaços fechados dos museus ou exposições e traze-los para o meio urbano, para o mundo

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real. Uma coerente forma de incentivar a produção deste tipo de comunicação, essencialmente de massa, sem transforma-lo em qualquer espécie de fetiche artístico. A estratégia básica consiste em promover anualmente um concurso de cartazes que deverão informar determinada mensagem, sempre relacionadas a temas de fundo social. Corrupção foi o tema da primeira edição. 178

Todo o processo de divulgação e inscrição ocorreu pela internet, através de sites e redes sociais, conseguindo atrair mais de 120 candidatos inscritos. Gabriel Manussakis é o responsável pela coordenação, que contou com o suporte de Andréa Almeida, sua orientadora neste projeto que surgiu como trabalho de conclusão de curso na Universidade Mackenzie, em São Paulo. “A produção de cartazes sempre foi um aspecto do design gráfico que me interessou, principalmente aqueles que tem como mensagem a denúncia


de problemas sociais, ambientais e à violação dos direitos humanos”, comenta o designer, que complementa: “Quando você se envolve em algo que acredita, quando é feito de dentro para fora, não tem por que as coisas darem errado, aos poucos as pessoas certas foram se aproximando, as datas foram se ajustando, e tudo foi conspirando a favor”. Vinicius Franulovic é estudante de Design na Universidade de São Paulo e foi o autor da proposta vencedora nesta estreia. “Sempre quis fazer algo relacionado a corrupção e educação, pois o concurso colocaria os cartazes nas escolas e nas universidades”, declara. Sua solução utiliza diagramação construtivista e paleta rubro-negra para simbolizar a política socialista. Os vazios na composição também comunicam o vazio na educação de nossos jovens. Vinicius inclinou a palavra “educação” para dar a sensação de estar descendo, e a

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uniu junto ao termo “corrup”, que vem da horizontal, se encaixando para formar a palavra “corrupção”. “Vale lembrar que o sufixo “ção”, que está presente tanto em corrupção como em educação, pode ser entendido como um morfema agentivo/causativo, ou seja, os seus verbos exigem um agente”, explica. A equipe do Cartaz Aberto pensa em ampliar ainda mais a abrangência do projeto e já trabalha na segunda edição do concurso. Se você também se identifica com o propósito, não deixe a oportunidade passar. Acompanhe e participe! para acessar

Site Cartaz Aberto para curtir

Página do projeto no Facebook < Retornar ao índice

“Acreditamos que essa é uma maneira de usar a capacidade em comunicar com imagens que muitas pessoas possuem, independente de suas profissões, para alertar os brasileiros sobre diversos problemas com os quais nós convivemos, e que parece que deixamos de acreditar que podemos mudá-los”, conclui Manussakis, idealizador do projeto.

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Dignificar o design pelo projeto ao outro

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comentárista

Eduardo Camillo título

Do circo à fisioterapia: contribuição projetual para a reabilitação física autora

Eva Furtado

Acesse o trabalho aqui Muito bem justificado e preciso o fato de ter escolhido o campo da terapia e reabilitação física para o trabalho. Possui um olhar sobre o usuário e áreas de necessidades muito apurado e digno, dedicando grande parte do capítulo 1 à explanação das qualidades sociais e humanas da profissão. A preocupação que levanta dignifica, ou melhor, re-dignifica a profissão, que tanto tem apontado a projetos egóicos e ditos “autorais”. Trata-se de um projeto de equipamento de uso fisioterápico para reabilitação de pacientes com problemas motores decorrentes de problemas no sistema


nervoso central. A pesquisa foi realizada no UEAFTO, Unidade de Ensino Assistência de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UEPA, envolvendo entrevistas com pacientes, alguma pesquisa de métodos de projeto (como Baxter), levantamento histórico das áreas envolvidas, assim como pesquisas específicas tanto de equipamentos pré-existentes quanto de equipamentos de uso análogo ao proposto. O projeto não é exatamente um redesenho de um equipamento baseando-se em práticas circenses, senão antes o projeto de novo produto com a mesma função que algum dos levantados. O teor geral do projeto, como afirmado anteriormente, é muito engrandecedor e cheio de idealismo. Há alguns pontos, entretanto, de metodologia de pesquisa e projeto que poderiam, talvez, terem sido melhor observados. Questiono, por exemplo, o direcionamento apriorístico do tema de olhar para o circo como uma possibilidade antes

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de examinar outras. Mesmo com uma possível proximidade anterior da autora com o assunto, isso não deveria ter sido tomado como uma possível solução a outras. Como podemos observar no TCC, a escolha é adotada sem justificativa prévia em relação a outras possibilidades já na introdução do trabalho, na página 18 do relatório: “A escolha do circo como inspiração deu-se devido à vivência circense ser um ambiente de aprendizado contínuo e de busca constante por força, precisão e consistência. Qualidades tão almejadas pelos pacientes de reabilitação” (p. 18). Embora a escolha possa ter-se mostrado ao final interessante (como exploração), metodologicamente o projeto de design deve idealmente averiguar amplamente a gama de possibilidades de atuação para, a posteriori, mediante tabelas ou indicativos de maior possibilidade de sucesso, escolher um entre tantos caminhos. Na página 95, Eva ressalta a ideia de Baxter do projeto conceitual, que é “gerar


o maior número possível de conceitos de projeto (...). Quanto maior (...) maior será a facilidade de seleção da melhor alternativa” (p.95). Essa prática, entretanto, não mostra-se frutífera unicamente na etapa de desenho de projeto, senão na própria escolha e refinamento do mesmo, possuindo vários momentos de “abertura e fechamento” de opções, gerando o máximo de alternativas e pesquisas que possível. Entrando no mérito das especificidades da pesquisa, é interessante e meritório que Eva faça uma distinção bastante clara entre Design e Ergonomia. E, além da interessante observação dessa relação do design com a ergonomia, quando entra nas definições e méritos da própria área da fisioterapia, chama a atenção algumas observações que, quando pensadas no conjunto do trabalho e na escolha do tema do circo, fazem completo sentido, como: “(...)o fator emocional relacionado à aquisição de uma patologia deve ser

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considerado na reabilitação tanto para o profissional fisioterapeuta, quanto para o projetista dos aparelhos utilizados e o designer que raciocina o ambiente de reabilitação” (p.31).

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Nessa parte (p. 32), mesmo com esse acerto, acaba retornando ao erro metodológico acima mencionado. Eva toma como situação de estudo o UEAFTO. Por ser, conforme a autora aponta, um centro especializado em patologias ligadas ao Sistema Nervoso Central, restringe a gama de equipamentos passíveis de redesenho, como observamos na pesquisa de equipamentos desse centro. Assim, tem-se duas opções: 1. olhar primeiramente ao circo e a qual tipo de reabilitação ele melhor se adequaria; ou 2. levantar todos equipamentos (não apenas de um tipo de patologia) e ver a qual a atividade circense seria efetiva (ambas opções apenas se já assumimos o fato da escolha arbitrária do circo). Tal ponto não ofereceria problemas


caso fosse apontado logo no início que o projeto se trata de um estudo de caso no UEAFTO, e não numa generalização de caso baseado no particular universo dessa Unidade de Ensino (embora, corretamente, a unidade já seja mencionada no Resumo do trabalho). Fica claro no trabalho que esse foco no UEAFTO possibilitou a obtenção de dados que muito ajudaram no seu desenvolvimento, entre eles uma visão bastante precisa do usuário médio do centro, mas restringiu a contraposição das práticas do circo à uma gama maior de problemas e equipamentos de fisioterapia. No levantamento de dados, as perguntas feitas de caráter subjetivo são interessantes e muito bem colocadas para verificar qual a percepção que os pacientes possuem de seus equipamentos. No entanto, senti falta de um levantamento similar junto aos próprios profissionais, e não apenas aos usuários (ou, caso tenha sido realizado, a inclusão

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de tal levantamento no relatório). Embora o design faz-se ao usuário, é também ao seu intermediário. O intermediário, nesse caso, é o próprio fisioterapeuta, que é responsável pelo modo de uso dos pacientes. Por se tratar de um uso acompanhado e restrito, saber o que pensam quanto a adequação dos aparelhos, possíveis melhorias, atividades paralelas com semelhante eficácia, aparelhos alternativos que trabalham regiões semelhantes, ou exercícios autônomos que fazem o mesmo. Assim, no momento da escolha do bastão com peso como objeto de readequação de uso, poderia obter-se uma gama maior de possibilidades de novos desenhos para a mesma função. imagem

Objeto escolhido para redesenho: Bastão com e sem peso créditos

Eva Furtado

Quando voltamo-nos aos requisitos de projeto, a generalidade dos requisitos leva a que sejam apenas bases largas ao projeto do bastão com peso (ou ao objeto de mesmo uso e função). Aparentemente, os requisitos levantados para o cliente e para o usuário poderiam

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servir a qualquer dos objetos da clínica, e não estritamente a esse. Embora o projeto não seja efetivamente um redesenho daquele, algumas das necessidades poderiam ser rebatidas para o novo objeto. Já na etapa seguinte, de pesquisa específica de objetos ao ganho de massa, podemos perceber que algumas das influências encontradas são muito úteis e interessantes ao tema, sendo portanto um ponto muito positivo do projeto o levantamento de similares, bastante bem executado.

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Lira, equipamento de circo, utilizado como inspiração ao projeto final créditos

Pernasproar

O projeto final em si, mesmo tendo lido o relatório e algumas ideias sobre o mesmo, não me sinto completamente confortável de comentar, preferindo assim, restringir-me a aspectos metodológicos que, pela sua natural generalidade, pode ser aproveitado por outras pessoas em outros projetos. Finalizo o comentário ressaltando, novamente, todas as qualidades que envolveram idealmente e praticamente tal trabalho, qualidades essas

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Render ilustrativo do projeto final

que, se mais difundidas, certamente mudariam o panorama do design brasileiro: design social, voltado à necessidade de todo e qualquer usuário.

créditos

Eva Furtado comentarista Eduardo Camillo K. Ferreira é bacharel em Design pela USP, sócio fundador da Mínimo Design, idealizador do Design em Artigos e Editor-Chefe da Revista Ciano.

para ler

TCC na íntegra no Design em Artigos

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Aplicativo para rede de restaurantes Spoleto

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Acesse o trabalho aqui

comentárista

Com o crescente desenvolvimento do mercado de aplicativos para aparelhos móveis é natural o interesse de empresas dos mais diversos segmentos, como aluguel de carros, negociação de ações, ou redes de restaurantes em atender seus clientes também nas novas plataformas. Desta premissa partiram Breno Filipe Ramos Martins e Gabriel Henrique Pereira Godinho, então alunos do curso de Artes Visuais com Habilitação em Design Gráfico da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás,

Gustavo Angeluzzi título

Design de aplicativo móvel para serviço delivery: experimentos sobre design emocional autor

Breno Martins e Gabriel Godinho


ao apresentarem seu Trabalho de Conclusão de Curso - um aplicativo de iPhone para se redes de restaurantes Spoleto. O Spoleto é uma rede de restaurantes fast-food de culinária italiana em que, além de escolher entre pratos prontos, o cliente pode optar por montar seu pedido da maneira como preferir, escolhendo massa, molho e ingredientes adicionais. O aplicativo em questão possibilitaria que consumidores do Spoleto façam pedidos através de seu iPhone e recebam a entrega à domicílio, no momento em que desejarem. Isto seria possível também através da web, porém o fator mobilidade e comodidade que os smartphones conferem ao processo dá total sentido à proposta, tornando-a muito interessante. A tela inicial é uma lista de blocos que traz, no topo, os pratos em destaque e a opção Monte seu prato, dispostos em um visual

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que remete a um cardápio. À medida que a tela desliza verticalmente revela as demais opções; logo abaixo há um picker em que pode-se escolher outros pratos, e inclusive repetir pedidos feitos anteriormente, uma ótima implementação para usuários que costumam variar pouco nos pedidos. Abaixo deste módulo existe a seleção de bebida, e o último bloco apresenta o resumo do pedido e botão de confirmação.

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Tela inicial créditos

Martins e Godinho

O projeto optou por não adotar nenhum dos modelos de navegação propostos pela Apple no Human Interface Guidelines, documento que estabelece consistentes padrões de construção de interfaces, a que os usuários do sistema estão habituados e com os quais sentem-se capazes de interagir prontamente. É perfeitamente possível criar modelos de navegação próprios, porém isto implica na necessidade de ensinar usuários a interagir com o sistema ou torná-lo intuitivo a tal ponto que sua utilização seja óbvia.

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O aplicativo iSpoleto traz uma estrutura própria, não familiar ao usuário do sistema iOS, que, no entanto, não é óbvia.

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Still de vídeo de apresentação do aplicativo para assistir

Vídeo na íntegra no Vimeo créditos

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Algumas ações levam à telas internas, ou seja, subníveis de seleção, a exemplo da escolha de um prato pronto em destaque ou a opção de montar o pedido, enquanto outras, similares, como a seleção de um prato fora dos destaques ou a escolha da bebida, deslocam apenas um bloco de informação da tela principal, trazendo outro em seu lugar. Tal variação de resultados para ações de mesmo tipo acaba tornando o fluxo de navegação confuso. Em um processo de seleção de elementos é vital que exista uma maneira fácil e acessível de voltar ao passo ou estado anterior, desistir de prosseguir, o que não acontece na interface em questão. Podemos tomar como exemplo a tela de montagem do prato, da qual a única maneira explícita de sair é através do botão de confirmação de montar o prato.

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Outro ponto falho neste processo de construção do pedido é a impossibilidade de visualizar quais ingredientes já foram adicionados, tornando esta escolha um exercício de memória do usuário.

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Foi criada uma barra fixa na parte inferior da tela com três opções: ligar para uma central de atendimento Spoleto, voltar ao início do aplicativo e visualizar os itens já adicionados ao pedido, mantendo visíveis na tela funcionalidades bastante relevantes para o usuário o tempo todo, o que corresponde a uma boa prática na construção de interfaces para o ambiente mobile. Se analisarmos o modelo de navegação criado pelo aplicativo sob o critério de correção de erros por parte do usuário suas escolhas de design não se mostram efetivas, uma vez que não existe mecanismo visível de exclusão de itens do pedido final ou mesmo de correção dos ingredientes


selecionados para montar o prato. Quanto à distribuição dos elementos de interface na tela, a proposta é bastante adequada, pois grande parte da interação é realizada na zona de conforto do polegar do usuário. O layout é predominantemente simétrico, o que torna o uso igualmente eficiente para destros e canhotos. O mesmo pode ser dito do posicionamento dos elementos interativos da interface, pois, majoritariamente, guardam uma distância adequada entre si, deixando a tela mais confortável visualmente e prevenindo alguns possíveis erros do usuário. A área útil de toque de quase todos os componentes interativos respeita a recomendação da Apple quanto ao tamanho mínimo adequado. Requisitos básicos de feedback destes elementos também são contemplados, posto que fornecem resposta visual imediata ao serem tocados. Coloca-se como outro ponto positivo a escolha

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tipográfica, pois a fonte Helvetica Neue está presente de forma nativa no sistema iOS e proporciona uma boa leitura, levando-se em consideração também que está bem dimensionada no projeto.

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Demonstração do uso tipográfico créditos

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A identidade cromática segue a da rede Spoleto, trazendo cores, de modo geral, bem utilizadas, com alguns problemas de contraste em títulos de cor branca colocados sobre fundo amarelo. Exceção feita aos botões de ação da aplicação, seu partido gráfico utiliza cores totalmente chapadas, não faz uso dos sutis efeitos de sombra, luz, textura e relevo muito recorrentes nas interfaces do sistema iOS, principalmente quando deseja-se criar uma sensação de realismo que convide o toque e agregue algum fator emocional ao processo. Há um pequeno mini-game que pode ser jogado pelos usuários no momento da finalização do pedido, em que adota-se o papel de chef e deve preparar pedidos.

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Still de vídeo de apresentação demonstrando o mini-game créditos

Martins e Godinho

A pontuação proporciona descontos no preço a ser pago e, embora o jogo pareça deslocado da função principal do aplicativo, acaba por agregar uma dose do fator entretenimento a ele. Muito embora apresente inconsistências, principalmente em sua estrutura de navegação, o projeto do aplicativo iSpoleto traz uma série de acertos com relação ao porte de um serviço para o smartphone e, mais que isso, é o resultado do estudo de uma nova forma de mídia, praticamente recém-nascida, extremamente promissora. comentarista

para ler

TCC na íntegra no Design em Artigos

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Gustavo Angeluzzi é graduando no curso de Design da FAUUSP, coordenador da área de Design da Livetouch - empresa de desenvolvimento de aplicativos para plataformas móveis - apaixonado por interfaces digitais e nerd.

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We, the undersigned, are graphic designers, photographers and students who have been brought up in a world in which the techniques and apparatus of advertising have persistently been presented to us as the most lucrative, effective and desirable means of using our talents. We have been bombarded with publications devoted to this belief, applauding the work of those who have flogged their skill and imagination to sell such things as: cat food, stomach powders, detergent, hair restorer, striped toothpaste, aftershave lotion, beforeshave lotion, slimming diets, fattening diets, deodorants, fizzy water, cigarettes, roll-ons, pull-ons and slip-ons. By far the greatest effort of those working in the advertising industry are wasted on these trivial purposes, which contribute little or nothing to our national prosperity. In common with an increasing numer of the general public, we have reached a saturation point at which the high pitched scream of consumer selling is no more than sheer noise. We think that there are other


things more worth using our skill and experience on. There are signs for streets and buildings, books and periodicals, catalogues, instructional manuals, industrial photography, educational aids, films, television features, scientific and industrial publications and all the other media through which we promote our trade, our education, our culture and our greater awareness of the world. We do not advocatethe abolition of high pressure consumer advertising: this is not feasible. Nor do we want to take any of the fun out of life. But we are proposing a reversal of priorities in favour of the more useful and more lasting forms of communication. We hope that our society will tire of gimmick merchants, status salesmen and hidden persuaders, and that the prior call on our skills will be for worthwhile purposes. With this in mind we propose to share our experience and opinions, and to make them available to colleagues, students and others who may be interested. First things first manifesto, 1964

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Até a próxima edição! ciano@designsimples.com.br designsimples.com.br/revista © design simples


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