Revista PRÉMIO | Edição Fevereiro 2022

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SUMÁRIO

DIRECTOR António Cunha Vaz D I R E C T O R A E X E C U T I VA Sofia Arnaud DIRECTOR DE ARTE Miguel Mascarenhas REDACÇÃO Afonso Cerqueira, Ana Valado, Belén Rodrigo, Bruno Rosa, Joaquim Baptista, Larissa Göldner, Nélson Soares e Ricardo David Lopes COL ABORAM NESTA EDIÇÃO André Coelho Lima, André Pinotes Batista, António Filipe, Bebiana Cunha, Bruno M. Melim, Diogo Duarte de Campos, Diogo Queiroz de Andrade, Joaquim Machado, José Luís Seixas, Luís Castro, Othmane Bahnini, Paulo Neves, Pedro Cativelos, Rodrigo Saraiva, Roy Garibaldi, Rui Tavares e Zacarias da Costa

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PUBLICIDADE Telf.: 210 120 600 IMPRESSÃO Soartes Artes Gráficas, Lda. Rua A. Cavaco - Carregado Park, Fracção J Lugar da Torre, 2580-512 Carregado PROPRIETÁRIO E EDITOR Cunha Vaz & Associados – Consultores em Comunicação, SA NIF 506 567 559 CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO António Cunha Vaz (Presidente) António Estrela Ribeiro (VicePresidente) Francisco de Mendia (Vogal) Ricardo Salvo (Vogal) DETENTORES DE 5% OU MAIS DO CAPITAL DA EMPRESA António Cunha Vaz SEDE DO EDITOR E DE REDACÇÃO Av. da Liberdade, 144, 6.º Direito 1250-146 Lisboa CRC LISBOA 13538-01 REGISTO ERC 124 353 DEPÓSITO LEGAL 320943/10

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PERIODICIDADE Trimestral TIRAGEM 3.000 Exemplares

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EDITORIAL POLÍTICA NACIONAL LEGISLATIVAS 2022 ABSOLUTA ESTABILIDADE Opiniões André Pinotes Batista, André Coelho Lima, Rodrigo Saraiva, Bebiana Cunha, Rui Tavares, António Filipe, Joaquim Machado, Bruno M. Melim ENTREVISTAS JORGE CARLOS FONSECA, EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE CABO VERDE “A MINHA AMBIÇÃO É CONTINUAR A SER UM JARDINEIRO DA LIBERDADE” MANUEL NUNES JÚNIOR, MINISTRO DE ESTADO PARA A COORDENAÇÃO ECONÓMICA DE ANGOLA “AS REFORMAS ECONÓMICAS VÃO CONTINUAR” LUÍSA SALGUEIRO, PRESIDENTE DA ANMP “DEVEMOS ABORDAR A REGIONALIZAÇÃO COMO UM IMPERATIVO DE DESENVOLVIMENTO!” GRAÇA FREITAS, DIRECTORA GERAL DA SAÚDE “A SENHORA TEM UM BOTE (DGS) ONDE ATERRAM AVIÕES!” RITA ANDRADE, SECRETÁRIA REGIONAL DE INCLUSÃO SOCIAL E CIDADANIA “VOLTO PARA CONSOLIDAR UMA ESTRATÉGIA NA ÁREA SOCIAL DEFINIDA PELO GOVERNO REGIONAL” POLÍTICA INTERNACIONAL ALEMANHA A ALEMANHA DEPOIS DE MERKEL FRANÇA ELEIÇÕES EM FRANÇA: ‘FAITES VOS JEUX’ AMÉRICA LATINA TRÊS PAÍSES COM MUDANÇAS NO HORIZONTE FOREIGN AFFAIRS A MOVE ON UKRAINE HAS ALWAYS BEEN PART OF THE PLAN DIPLOMACIA CPLP É UM ESPAÇO DE CONVERGÊNCIA DINÂMICA Zacarias da Costa, Secretário Executivo da CPLP VERS UNE NOUVELLE DYNAMIQUE ET UN RENFORCEMENT DES RELATIONS ENTRE LE MAROC ET LE PORTUGAL Othmane Bahnini, Embaixador de Marrocos em Lisboa DESAFIOS DE POLÍTICA EXTERNA Paulo Neves, Presidente do IPDAL

ECONOMIA NACIONAL 68 FILIPE COSTA, PRESIDENTE DA COMISSÃO EXECUTIVA DA AICEP GLOBAL PARQUES “INVESTIMENTOS EM SINES VÃO REFORÇAR A COMPETITIVIDADE NACIONAL” 73 ESTABILIDADE E CONFIANÇA DOS INVESTIDORES DETERMINAM CONTRIBUTO DO CINM PARA A ECONOMIA DA MADEIRA Roy Garibaldi, Presidente do Conselho de Administração da SDM ECONOMIA INTERNACIONAL 76 CREDIT SUISSE ECONOMIA GLOBAL DEVERÁ CRESCER 4,3% EM 2022 80 THE ECONOMIST MARKETS HAVE FALLEN BECAUSE THE ERA OF FREE MONEY IS COMING TO AN END EMPRESA EM DESTAQUE 82 FIDELIDADE SEGURADORA ESTIMA TER 35% DO NEGÓCIO NO INTERNACIONAL ATÉ 2025 CULTURA 90 DUARTE AZINHEIRA, DIRECTOR EDITORIAL DA INCM “A MISSÃO DA EDITORA É A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO NACIONAL” 96 EXPO 2020 DUBAI DESPORTO 100 PEQUIM 2022 ESPÍRITO OLÍMPICO É A MARCA PORTUGUESA NOS JOGOS DE INVERNO EUROPA 104 FAKE NEWS, UNA AMENAZA REAL Belén Rodrigo, PRÉMIO ÁFRICA 106 CRESCER VOTANDO Ricardo David Lopes, PRÉMIO 108 CRIAR UM CICLO QUEBRANDO O CICLO Pedro Cativelos, Director Executivo da Media4Development AMÉRICAS 110 A DIFÍCIL E COMPLETA ARTE DE ATRAIR O INVESTIDOR Bruno Rosa, PRÉMIO OPINIÃO 112 DA VIDA E DA MORTE José Luís Seixas, Advogado DIREITO 114 O TEMPO DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA Diogo Duarte de Campos, PLMJ

R E V I S TA D A C V & A

www.revistapremio.pt/estatuto

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EDITORIAL

ANTÓNIO CUNHA VAZ, PRESIDENTE DA CV&A

EDUCAÇÃO E TOLER ÂNCIA

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Prémio que agora lhe chega às mãos foi propositadamente atrasada um mês para poder retratar com algum detalhe um ano de eleições acontecidas e a acontecer. De África à Europa, passando pela América Latina, muitos actos eleitorais mostram e mostrarão que a democracia é um regime que cada vez mais – nas suas formas mais ou menos perfeitas – impera. Contamos, de novo, nas nossas páginas, com um elenco de entrevistados de luxo, com artigos internacionais de qualidade e com um vasto leque de articulistas, quer regulares, quer pontuais que

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engrandecem qualquer publicação. Valeu a pena este atraso de um mês para assegurar a qualidade do produto que levamos até si. Respondendo, também, a sugestões de alguns leitores, limitámos os artigos em língua não portuguesa àqueles que de origem assim são escritos. Se é verdade que os portugueses sabem ler outras línguas, também é verdade que é para eles que escrevemos e que outros cidadãos, de diferentes nacionalidades, também compreendem a língua portuguesa. Quando há democracia há esperança num mundo melhor. Não falo de eleições, mas de democracia. Quando há conflitos, sejam eles frios ou quentes, a democracia periga. A

Rússia, a Ucrânia e a Nato são vértices de um triângulo potencialmente explosivo e, claro, prejudicial aos que defendem que a democracia, por pior que seja como regime, é sempre o menos imperfeito de todos eles. O mesmo se pode dizer de diversas geografias mundo fora. Os perigos são imensos e apenas uma arma – curiosamente, resolvi chamar-lhe assim – é capaz de impedir o regresso a passados sombrios, mas que, sejamos transparentes, sempre fizeram parte da história da humanidade. As guerras sempre existiram, mas a periculosidade das mesmas é hoje maior do que nunca. Quando falo de guerras refiro-me aos seus mais


EDITORIAL

diversos formatos. Os diversos géneros de terrorismo, os conflitos bélicos tradicionais, as guerras frias e, claro aquelas que esperamos nunca vir a ter e que se reduzem a um carregar de botão em local muito distante daquele onde os danos vão ocorrer. As guerras de hoje, em África, são mortíferas, mas os atentados à vida humana perpetrados ou com a conivência de estados soberanos contra etnias que compõem as suas próprias populações noutras regiões do mundo, os refugiados, políticos ou religiosos, são tão mortíferos quanto as primeiras. E a avaliação da crueldade das “guerras” e suas sequelas não se faz apenas pelas vítimas mortais: os chamados traumatizados de guerra, sejam-no física ou psicologicamente, são vítimas que carregam para toda a sua vida um fardo difícil de imaginar. Os interesses por detrás das guerras, de qualquer género, repito, podem ser de muitas índoles e ficarão sempre na sombra. Por muitos filmes sobre o tema que vejamos, por muita criatividade de argumentistas nunca chegará ao conhecimento do comum dos seres humanos o real porquê de um conflito na sua dimensão global. Que pode levar um fanático a matar com gás uma série de inocentes num metropolitano de uma qualquer cidade ou que pode levar que em nome de Deus (chame-se o nome que se lhe quiser chamar) se façam explodir aviões contra edifícios? Será, mesmo, fanatismo religioso, racismo, xenofobia? Sobretudo, será mesmo

da autoria dos executores materiais a ideia do crime? As perguntas vão ficando no ar e a recente teatralização – esperemos que seja só isso – da situação na Ucrânia mostra bem quão sensível é a situação no mundo. Terá Putin a responsabilidade do que se vem passando por força de uma tentação hegemónica? Será legítimo interferir na decisão de um país soberano e impedi-lo de aderir a uma organização multinacional? As respostas avolumam-se e há uma série de especialistas – ontem de covid e hoje de guerra fria – que tentam elucidar-nos, quanto mais não seja dizendo coisas como “sei muito mais do que posso dizer”. Por mais novelas que construam e elas são tantas que corremos o risco de algum deles acertar, o resultado final é uma espécie de resultado eleitoral quando comparado com as sondagens. Repito o que disse no início: “Os perigos são imensos e apenas uma arma – curiosamente, resolvi chamar-lhe assim – é capaz de impedir o regresso a passados sombrios, mas que, sejamos transparentes, sempre fizeram parte da história da humanidade.” A Arma é a educação dos povos e o seu carregador chama-se tolerância. Povos educados e tolerantes constroem futuros mais risonhos para si próprios e seus vizinhos. E o mundo é uma enorme vizinhança. É um bairro, que se quer democrático, povoado pela raça humana, nas suas variantes diversas, tão mais perfeito quanto mais letrada e tolerante for

a sua gente. Por alguma razão os extremismos nascem e medram em terra de descontentes, de frustrados. A democracia portuguesa, melhor que muitas, ainda tem muito que se lhe diga. Sofreu, em minha opinião, um revés nas últimas eleições. O crescimento de um partido populista dito de direita é revelador da existência de fragilidades no desenvolvimento harmónico da sociedade. O desaparecimento de um dos partidos fundadores da democracia também é revelador, embora se deva dizer que o que sucedeu ao CDS/PP tem muito de culpa própria dos seus dirigentes. Já as maiorias absolutas não nos assustam, sobretudo quando delas resulta o enfraquecimento de uma esquerda retrógrada – embora coerente – e de outra tão populista como a direita mais radical e evangélica – o Bloco de Esquerda. Deseja-se o fortalecimento da democracia, que é o mesmo que dizer que dois partidos fortes são melhores que um só. Deseja-se que os partidos de pendor democrático sejam muitos e fortes. 2022 começa sombrio. Esperemos que com o chegar da Primavera os campos floresçam, a começar pela revisão da lei eleitoral e pela coragem de responsabilizar quem, como os autores do erro monumental com os votos dos emigrantes, retira credibilidade a um acto democrático, transparente e sereno com o do passado dia 30 de Janeiro. l 5


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DOSSIÊ ESPECIAL

ABSOLUTA ESTABILIDADE U M A M A I O R I A A B S O L U TA I N E S P E R A D A , U M PA R T I D O E X T R E M I S TA A C R E S C E R E VÁ R I A S F O R Ç A S H I S T Ó R I C A S E M C R I S E A C E N T U A D A . M U D O U Q U A S E T U D O N O C E N Á R I O P O L Í T I C O - PA R T I D Á R I O N A C I O N A L , E X C E P T O O C H E F E D E G O V E R N O . A N T Ó N I O C O S TA VA I C H E F I A R O P S D U R A N T E Q U AT R O A N O S S E M C O N T E S TA Ç Ã O A PA R E N T E , S E N TA D O N U M A B A Z U C A O F E R E C I D A P O R B R U X E L A S .

DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE

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A

garantia de governação por quatro anos abre caminhos de tranquilidade inesperados, mas também permite perceber de onde virá a contestação. Vale por isso a pena olhar detalhadamente para os resultados de 30 de Janeiro, procurando pistas para o futuro. A primeira conclusão a retirar é que Portugal se mantém mais ou menos

imune às tendências que se vêem no resto da Europa. Desde logo porque os dois maiores partidos revelam uma extraordinária resistência ao desgaste, algo que é quase inédito em todo o continente. E para tal basta ver que entre as duas grandes forças do espectro político se congregam quase 70% dos votos expressos. Uma consequência disto é a quase inexistência dos partidos monocausais, cumprindo Portugal mais uma raridade europeia de não ter


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DOSSIÊ ESPECIAL

LEGISLATIVAS 2022

um partido ecologista relevante. Quando na Europa surgem movimentos cada vez mais relevantes que se distinguem por uma causa principal como o ambiente, a tecnologia ou o federalismo, Portugal continua a recompor o espectro partidário a partir da referência esquerda e direita, demonstrando que o ponto de equilíbrio está num eleitorado flutuante que escolhe quem oferece soluções mais confiáveis. E, por isso mesmo, estas eleições voltam a confirmar que as vitórias se fazem ao centro: o PSD não perdeu porque a esquerda se uniu à volta do PS, perdeu porque não conseguiu convencer os eleitores do centro a apostar na alternativa. Já a originalidade de não ter um partido anti-sistema com peso no parlamento, essa, desapareceu com estrondo graças aos 12 deputados do Chega. Mas a análise dos números diz muito mais do que isto. E acima de tudo abre pistas para o futuro do ciclo eleitoral que, agora, se sabe que será de quatro anos. A estabilidade da maioria absoluta será desafiada nas ruas com o PCP a reactivar os sindicatos, no Parlamento com a direita a disputar espaço e nos média com o Chega a gritar mais alto que todos os outros. Em 2026 se verá quem desafiou melhor.

LEGISLATIVAS 2019

A esquerda A grande vitória do PS de António Costa explica-se por ter feito o pleno: congregou os votos à sua esquerda e agarrou o eleitorado do centro de forma extremamente eficiente. Ao centro terá ajudado a boa gestão da pandemia, à esquerda funcionou o discurso de vitimização com o chumbo do orçamento. Costa espremeu o eleitorado do Bloco e da CDU graças a uma estratégia firme a que os partidos mais à esquerda não conseguiram responder, tendo ficado estes com o ónus de responsáveis pela crise governativa e eleições antecipadas. Isso levou a uma óbvia transferência de votos do BE e da CDU para os socialistas, e Setúbal é um distrito exemplar: O PS teve mais 45 mil votos, sendo que o BE perdeu 23 mil votos (metade dos que recebeu em 2019) e a CDU outros 21 mil. O CDS também perdeu 7.000 votos e a participação aumentou 38 mil votos, o que ajuda a explicar o crescimento do PSD, da IL do Chega. Há aqui outras forças em jogo, mas o apelo gravitacional do PS à sua esquerda é por FIGURA 1

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Distrito SETÚBAL - 2022

Distrito SETÚBAL - 2019

FIGURA 2

demais evidente num distrito que era até agora um confortável porto de abrigo para os dois partidos que em conjunto perderam quase cinquenta mil votos (Figura 2). A queda comunista pode ter sido abrupta, mas não se pode dizer que tenha sido inesperada. Este foi apenas o acelerar de uma decadência que se tem sentido de forma mais clara na última década, com reflexos evidentes em todos os processos eleitorais - sendo que nas autárquicas o efeito tem sido mais ligeiro, mas mesmo aí a tendência é notória. Os eleitores da CDU estão a desaparecer e a renovação do discurso não se fez, pelo que a base de apoio se está a reduzir sem que se veja forma de a recuperar. Aos comunistas resta, como de costume, a rua. O seu braço sindical vai voltar a criar problemas com manifestações e greves, para dar prova de vida do partido. Mas nem isso irá abalar o inexorável envelhecimento de um partido que já quase não bate certo com o país - e ainda menos com a Europa, onde é o último resistente da visão leninista de um mundo que

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também já desapareceu. O caso do BE é também curioso. A falta de capacidade para se implementar no terreno autárquico, um programa anacrónico e a dependência do voto jovem (que é menos fiel) criaram problemas quando foi preciso justificar a queda do governo socialista. Os resultados confirmam que a mensagem de diferenciação não funcionou, pelo que a crise é inevitável. A pergunta que fica é se o Livre de Rui Tavares vai conseguir captar o eleitorado jovem e urbano que tanto sustentou o Bloco. Certamente que a agenda do Livre (ambiental, europeísta, moderada) bate melhor com a base de apoio bloquista do que o discurso de Catarina Martins. Mas, convém notar, não é a primeira vez que o BE recupera de um descalabro político, até porque é sabido que o partido inclui algumas das vozes mais reconhecidas à esquerda, como Mariana Mortágua e Marisa Matias. A ansiedade de Rui Tavares em colaborar com o governo pode ainda limitar o seu crescimento, tornando-o eventualmente na próxima vítima do abraço do urso socialista. O

facto é que à esquerda do PS existe uma fatia relevante de mais de meio milhão de eleitores, à qual se somarão mais alguns desencantados com a maioria absoluta - e isso fará da recomposição desta faixa do espectro partidário um dos temas a que vale a pena prestar atenção nesta legislatura. A direita Claro que a derrota eleitoral do PSD é o principal facto a assinalar, mas comecemos pelo outro acontecimento digno de nota: a efectiva substituição do CDS pela Iniciativa Liberal como partido da ala direita do sistema político. A transferência de votos entre os dois partidos foi directa e vale a pena olhar para Viana do Castelo, um distrito exemplar nesta movimentação (Figura 3): os 3.300 votos que o CDS perdeu terão ido na sua imensa maioria para a IL (que cresceu praticamente 3.000 votos). Claro que há um grau de complexidade que extravaza leituras que implicam transferência directa de votos, mas é impossível não ver a correlação entre a descida de um e a


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Distrito VIANA DO CASTELO - 2022

Distrito VIANA DO CASTELO - 2019

FIGURA 3

subida de outro. O outro ponto relevante da votação da IL é que a sua base de apoio é essencialmente litoral, urbana, mais jovem, mais educada e mais rica. Se é certo que este é o Portugal do século XXI, também fica por confirmar se a novidade terá capacidade para se estabelecer como alternativa estável e duradoura. E isto interessa sobremaneira a quem herdar o comatoso CDS, até porque o seu eventual renascimento depende de um factor externo: só haverá espaço para ele se a IL não for capaz de manter o eleitorado que agora conquistou. Mas a boa campanha e a preparação do grupo parlamentar eleito deve ser suficiente para garantir estabilidade à IL durante os próximos quatro anos. Mesmo com tão fraco resultado dos centristas, o método de Hondt confirma que os votos do CDS somados ao do PSD teriam sido suficientes para impedir a maioria absoluta socialista - sendo que uma aliança entre os dois históricos da direita teria também permitido ao CDS continuar (mais ou

menos) vivo. Foi este o primeiro erro do PSD, um partido que até cresceu 80 mil votos mas não conseguiu evitar a derrota. Os sociais-democratas ficaram entalados entre a concentração de voto à esquerda e a incapacidade para conter o crescimento da nova direita. Os outros dois erros que se apontam ao partido prendem-se com a falta de clareza no discurso. Uma das falhas terá sido embarcar exclusivamente na discussão da economia - alinhando com a bolha mediática que limitou o debate. A incapacidade de incluir nas discussões temas como o ambiente, a Europa ou a cultura limitaram o apelo do partido às questões económicas, área onde a Iniciativa Liberal tinha já conquistado muito espaço (contando para isso com o beneplácito de vários sociais-democratas) - e acabando assim por oferecer ao PS o voto de quem tinha outras preocupações e procurava um partido centrista. Esta má ocupação do espaço público ficou ainda mais exposta com a falta de clareza sobre o Chega e as suas bandeiras. Para tentar aliciar eleitorado descontente, Rui Rio ainda pegou no

tema da justiça promovido pelo líder do partido extremista, mas fê-lo sem traçar linhas claras na recusa de diálogo com o Chega. Esta indecisão é tanto mais estranha quanto se sabe, pelos muitos exemplos em todo o mundo, que estes partidos anti-sistema crescem depressa quando lhes é reconhecido estatuto pelos ocupantes tradicionais do espaço partidário. E o Chega lucrou muito com a participação na solução governativa dos Açores, que levou à falta de clareza de Rio - e à adesão de muitos ao PS para garantir que os extremistas nunca chegariam ao poder. Este lado do parlamento ficará portanto repartido: um PSD que naturalmente ocupa o espaço do centro-direita; e uma IL que representa uma visão liberal da sociedade mas reúne também uma série de eleitores da direita mais tradicional (que se distinguem por não terem nada de liberal para lá da economia). O PSD terá de recuperar uma visão reformista da sociedade que perdeu nos últimos tempos de forma a conseguir liderar a oposição. Aliás, basta ver que os dois políticos de

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Distrito PORTALEGRE - 2022

Distrito PORTALEGRE - 2019

FIGURA 4

maior sucesso dos sociais-democratas são Marcelo Rebelo de Sousa e Carlos Moedas, ambos homens que construíram a sua carreira dando grande importância a esferas que não se limitaram à visão economicista da sociedade. Os outros O quase extermínio do PAN demonstra que em Portugal é difícil manter um partido de uma causa só. E fica ainda mais claro que o eleitorado nacional não quer saber do tema ambiental: a questão não ocupou um milímetro nos debates públicos, os partidos não têm propriamente o ambiente no topo das suas prioridades e só Rui Tavares se esforçou por falar do tema. Os só de nome Verdes, mera excrescência do PCP, não entram nesta contabilidade a não ser para referir que perderam a representação parlamentar que mantinham há quarenta anos. O elefante na sala da democracia chama-se Chega e o seu crescimento foi uma das notas de destaque

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da noite eleitoral. Passar a ser a terceira força política e subir para 12 deputados é sempre uma vitória relevante, o que aumenta o interesse em ver até que ponto é que a aparente indigência do seu grupo parlamentar consegue corresponde aos anseios de quem neles votou. O líder do Chega e restantes apaniguados bem podem clamar que o seu partido é de direita, mas a verdade é que não é isso que dizem os resultados: os votos no Chega vêm de uma amálgama que junta direita mais tradicional a eleitores abandonados pelo PCP e muitos outros que vieram da abstenção. Os votos no partido do verbo são essencialmente de concelhos empobrecidos e envelhecidos, como se pode ver bem no exemplo de Portalegre: Em comparação com as legislativas de 2019, e fazendo alguns arredondamentos (Figura 4), entraram aproximadamente mais 1.500 votos em urna. PS e PSD tiveram cada um mais 2.000 votos e a IL mais 900; o BE menos 2.600, o CDS menos 1.300, e o PC menos 1.400. Já o Chega cresceu 4.700 votos, que

terão forçosamente de ter vindo de um misto de ex-abstencionistas, antigos votantes do CDS e do PC. Esta diversidade na base de apoio confirma o Chega como partido anti-sistema. Será impossível satisfazer a amálgama ideológica que o sustenta, pelo que apenas poderá convergir no extremismo com que se aproveita do modelo democrático que afirma querer destruir. O que é óbvio é que o Chega foi mesmo o melhor amigo do PS: roubou votos à direita e à esquerda e motivou outros tantos a colocarem a cruz na maioria absoluta de António Costa - que, se quiser agradecer a alguém, deve fazê-lo ao líder do partido extremista. Mas a extraordinária mobilização no PS confirma que não há em Portugal vontade nem espaço para que o Chega alguma vez chegue... ao poder. E essa será a lição mais importante a retirar destas legislativas. A espessura do cordão sanitário político-mediático que se vai colocar à volta dos extremistas é outra das questões em aberto para os próximos quatro anos. l


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ANDRÉ PINOTES BATISTA, DEPUTADO DO PS

O uso da palavra é uma finíssima arte. Com sabedoria e planeamento, a palavra conduz massas e antecipa realidade. O seu poder é incomensurável e, quando bem orientado, indutor de novíssimos alentos. Na Política, na Justiça, na Economia e na Cultura é sempre a palavra, nas suas diversas formas, que nos diz que “o longe é aqui”. No dia 30 de janeiro, as urnas fecharam-se e, à medida que a vontade soberana dos portugueses era apurada, fomos tomando consciência da abertura de um ciclo de enorme potencial para a Governação de Portugal. Vale a pena determo-nos sobre o estado da arte do “komentariado português”, que nestas eleições – com sóbrias, porém parcas exceções – se apresentou determinista e arrogante, produzindo mais ressonância do que pensamento, mais narrativa do que reflexão. A opinião é uma responsabilidade de quem a emite. Todavia, impõe-se questionar que valor terá de facto essa vinculação, se aquilo que afirmam às massas não for, pelo menos, revisitado e sindicado. Nos últimos meses, a maioria dos fazedores de opinião apresentou muita ressonância e pouco pensamento. Falta-lhes a “dinamite cerebral” que nos deixe pasmados, mais críticos e informados.

DOSSIÊ ESPECIAL

Os responsáveis pelos nossos órgãos de comunicação deveriam aplicar parâmetros de maior exigência no cast daqueles a quem emprestam os microfones e páginas. Se como um dia disse um grandíssimo mestre, não raras vezes “a notícia faz a realidade”, não podemos - coletivamente – permitir que os seus pincéis sejam reféns de tão “fracos pintores”. Enquanto consumidor sôfrego de opinião qualificada, ambiciono que os bons pensadores não se diluam num mar de trivialidades. Aos intervenientes políticos, que servem transitoriamente a Nação, são indispensáveis os testemunhos e críticas de personalidades experientes, repletas de mundo e desassombro. Em Portugal, manifestamente, não faltam, mas falta-lhes como é notório apropriados palcos. O ciclo que ora se abriu vai ser inexoravelmente marcado pela modernização da arquitetura do Estado, pela aplicação dos milhões afetos ao PRR e ao PT2030, pela recuperação do investimento público e, deste modo, pelo impulso da recuperação pós-pandémica da nossa Economia, que poderá finalmente consertar o elevador social e por um termo à desesperança geracional que a sua paragem gerou. Para que sejamos bem-sucedidos será indispensável a cooperação entre público e privado, a coesão social, o diálogo e, apesar de raras vezes referido, é determinante que a boa palavra se faça ouvir. Em suma, é urgente que a palavra dos melhores da nossa sociedade, atue sobre o real e – como escreveu o Poeta – nos ajude a transformar o pensamento em braços e ação. l (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

BEBIANA CUNHA, EX-DEPUTADA DO PAN

O PAN, no território nacional reduziu o seu número de votos para perto de metade dos obtidos nas últimas eleições legislativas, o que se traduziu na eleição de uma deputada à Assembleia da República pelo círculo de Lisboa. Não deixa de ser pouco representativo da vontade dos cidadãos e cidadãs que mais de 80 mil votos só permitam a eleição de uma representante. Na emigração o PAN constituiu-se como a 4ª força política, crescendo mais 35% face a 12

2019. Consideramos inadmissível a desconsideração com as pessoas que votaram e cujo voto não foi contabilizado pelo que apresentamos um recurso ao tribunal constitucional. Há uma série de aspetos que contribuíram para o resultado global e que não traduziram em votos o apoio que recebemos nas ruas e na campanha. Neste momento, encontramo-nos a auscultar todos e todas as filiadas para assumir as responsabilidades e afinar as agulhas na forma como iremos cumprir aquilo com que nos comprometemos. E para tal, é necessário criar as condições para que a eleita do PAN possa fazer o seu trabalho na Assembleia da República, assim como a nível municipal e de freguesia. O PAN continuará a ser um farol de esperança através do trabalho que faremos e que seguramente se voltará a traduzir em maior número de mandatos. l (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


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ANDRÉ COELHO LIMA, DEPUTADO E VICE-PRESIDENTE DO PSD

1- Refletir sobre as Eleições Legislativas mais de uma semana após a sua realização deve ser falar já muito mais de futuro do que de passado. Projetar mais do que analisar. Há não obstante uma parte mais romba da análise que não pode, ainda assim, deixar de ser feita. E que se faz em passos simples. 2- Por um lado os portugueses censuraram a reprovação do Orçamento’22, tendo ficado claro que não pretendiam que a legislatura tivesse sido interrompida e com isso castigaram os partidos que viram como responsáveis pelo chumbo do OE’22. Deu-se a repristinação do “efeito PRD” naquela que foi, porventura, a maior transferência de voto útil à esquerda da História Democrática Portuguesa. 3- A direita obteve a sua maior expressão numérica e percentual de sempre o que ainda assim não impediu o PSD de se afirmar, ao centro, como a única alternativa do

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governo. Apesar da maior expressão eleitoral de sempre à sua direita e de uma maioria absoluta imediatamente à sua esquerda, o PSD consegue 30% do eleitorado, crescendo no espaço da social democracia e por essa via mantendo a representação de 1/3 do eleitorado português. O que fica para memória futura é que 72% dos portugueses escolheram os partidos moderados, de centro-esquerda e de centro-direita. 4- O PS tem agora todas as condições para governar o País em pleno cumprimento do seu programa. E Portugal não pode falhar! Portugal não pode continuar a aumentar o salário mínimo ao mesmo tempo que aumenta (triplica) os trabalhadores remunerados pelo salário mínimo. Portugal não pode subir o salário mínimo em 39% ao mesmo tempo que o salário médio aumenta apenas 6,2%. Portugal não pode continuar a ser dos três países da Europa com maior número de trabalhadores precários (22% dos trabalhadores portugueses são precários). Portugal não pode continuar a descer nos índices de competitividade europeus, ano após ano, sendo ultrapassado por países de leste, entrados no projeto europeu apenas em 2001 quando nós já “andamos nisto” há 36 anos... 5- Tem o Governo todas as condições para fazer com que Portugal deixe de ser um projeto adiado. Condições únicas e dificilmente repetíveis. Não as podemos desperdiçar. l

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

BRUNO M. MELIM, DEPUTADO À ASSEMBLEIA LEGISL ATIVA DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA

O único vencedor da noite foi o PS que se transformou neste ato eleitoral, numa espécie de “catch all party” à sua esquerda, conseguindo capitalizar um eleitorado muito para além do composto pelos portugueses que entendem o socialismo moderado como melhor forma de governo das sociedades. Não tenhamos dúvidas: houve muitos comunistas portugueses que seguiram o ensinamento de Cunhal: fecharam os olhos, taparam o símbolo e fizeram a cruz no Partido Socialista, com o único propósito de afastar a direita do poder. Esta convicção sedimenta-se perante a comparação entre na distribuição de mandatos pelos dois blocos “direitaesquerda” em 2022 e 2005: em 2005 a esquerda tradicional (PS, BE e CDU) somava 143 deputados ao passo que em 2022 soma “apenas” 130. O resultado é interessante para a direita portuguesa. (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

Se olharmos às maiorias de Cavaco Silva, estas foram conquistas à custa do centro-direita, diferentemente de Durão Barroso e Passos Coelho. Nesse sentido, há dois fatores que devem merecer a nossa reflexão: o primeiro é que em apenas dois anos, a direita cresceu usando formas de comunicar e ideias mais agressivas do que lhe costumavam ser conhecidas em Portugal; o segundo é que, ainda assim, a soma da votação do CHEGA e da Iniciativa Liberal são, exatamente, o mesmo número de votos que o CDS teve em 2011, quando formou governo com o PSD. Ou seja, cumpre dizer que não foi pela dispersão dos votos à direita do PSD que este não venceu as eleições. Pelo contrário. O PSD não venceu porque fez precisamente o inverso do PS. Quis segmentar-se perdendo a sua vocação maioritária do espaço nãosocialista em Portugal. Das últimas eleições retira-se uma conclusão clara: dificilmente, após estas eleições, o panorama político português será igual àquilo que alguma vez foi. Interessante será perceber como é que as dinâmicas esdrúxulas que concretizaram uma estabilidade política que poucos adivinhavam, afetarão o futuro dos partidos em Portugal, nomeadamente o do PSD. l 13


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RODRIGO SAR AIVA, DEPUTADO DA INICIATIVA LIBERAL

FOTO: HUGO MOREIRA

Outras eleições se passaram, com os problemas de sempre. Muitos derivados da rigidez legislativa, cheia de anacronismos. O erro começa na existência de diversas leis, por vezes contraditórias e cada qual com regras próprias. Se no início da nossa democracia era aceitável tanta rigidez nas regras eleitorais, em 2022 não faz qualquer sentido manterem-se de forma tão inflexível.

JOAQUIM MACHADO, DEPUTADO À ASSEMBLEIA LEGISL ATIVA DA REGIÃO AUTONOMA DOS AÇORES

Historicamente, em cada eleição legislativa nacional, no círculo eleitoral dos Açores a disputa centra-se na conquista do quinto lugar. Só por três vezes um partido logrou conquistar quatro dos cinco lugares da representação açoriana na Assembleia da República, no caso, sempre o PSD. A bipolarização assume, assim, tanta ou mais expressão que no conjunto do país, até porque apenas em 1985 o PRD se intrometeu na luta entre social-democratas e socialistas, em detrimento destes. Outro padrão nestes plebiscitos é o chamado “efeito espelho”, a replicação dos resultados nacionais raríssimas vezes o partido vencedor no país deixou de eleger a maioria dos deputados do círculo açoriano. À luz de tais dados, nos Açores, o desfecho do ato eleitoral de 30 de janeiro nada trouxe de surpreendente ou suscetível de uma leitura política

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DOSSIÊ ESPECIAL

Um exemplo: porque há-de perdurar o dogma de votarmos sempre num domingo ou num feriado? Outro: qual a lógica de haver apenas um dia reservado ao voto? Não faz sentido, como agora se viu, na crise sanitária. Também deve ser alterada a rigidez no horário de votação. E é preciso pôr fim ao chamado “dia de reflexão”, tornado anacrónico num mundo onde as pessoas estão conectadas 24 horas por dia e até absurdo havendo agora o voto antecipado. Além disso urge resolver os crónicos problemas que os portugueses emigrados enfrentam para votar. Ainda há milhares impedidos de exercer este direito constitucional. Ou por não receberem os boletins de voto ou, pior ainda, por os receberem só depois das eleições. Há leis a mudar. E tem de ser já. l

com alcance mais profundo e imediato na geografia partidária local. De facto, os eleitores açorianos optaram como os demais portugueses, atribuindo ao PS a vitória e os restantes deputados à Aliança Democrática, a coligação PSD, CDS-PP e PPM que governa a Região Autónoma. A disputa pela liderança do governo da Nação voltou a sobrepor-se à escolha dos seus representantes em Lisboa. As restantes forças partidárias posicionaram-se em conformidade com os resultados alcançados no país, exceção feita para o Bloco de Esquerda que aqui superou a votação da Iniciativa Liberal. Dito de outro modo, o crescimento eleitoral e a diminuição de votos, à direita e à esquerda, seguiram a dinâmica nacional dos respetivos partidos e nas mesmas proporções. Só a abstenção (63,3%) destoou significativamente do registo médio do país, como em anteriores sufrágios. A desatualização dos cadernos eleitorais é um dos fatores que concorrem para aquele indicador. O outro, verdadeiramente preocupante, é uma certa indiferença dos eleitores quanto à composição da Assembleia da República e ao Governo que dela emana. Consequência indevida da Autonomia e da proximidade dos órgãos de governo próprio da Região? l

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


DOSSIÊ ESPECIAL

RUI TAVARES, DEPUTADO DO LIVRE

Os resultados destas eleições comportam várias lições, tanto à esquerda como à direita, e a capacidade dos partidos e das suas lideranças de as compreenderem será determinante para o futuro do nosso sistema político. À esquerda essas lições são sobretudo que a convergência compensa e a intransigência é punida pelos eleitores. É esse um dos fatores que justifica os maus resultados de PCP e Bloco e que, em parte também, justificam a resiliência do LIVRE face à pressão do voto útil. É de assinalar naturalmente o regresso do LIVRE ao parlamento, representando uma família política que não estava representada em Portugal de forma autónoma: a esquerda verde europeia. Este regresso é tão mais importante num ato eleitoral em que os maus resultados

L E G I S L AT I VA S 2022

da CDU ditaram, infelizmente, que o PEV ficará de fora do parlamento, e em que o PAN perdeu o seu grupo parlamentar, provando assim a necessidade de o LIVRE ter um mandato mais ativo na defesa das causas e ideias da ecologia política. À direita, a principal lição (que pelos primeiros sinais parece não ter sido aprendida) é que não isolar a extremadireita resulta numa penalização pelos eleitores, que a querem ver afastada do poder, resultando no não reconhecimento do centro-direita como alternativa viável – é também uma das explicações para a surpreendente maioria absoluta do PS nestas eleições. Uma maioria absoluta não é o melhor caminho para Portugal nesta fase da sua história, na qual o importante seria fazer uma democracia pluralista funcionar. No entanto, tendo em conta o caminho pior que seria fazer depender uma maioria da extrema-direita, os eleitores parecem ter optado por uma versão do “mal menor”. Resta aos representantes eleitos fazer dos resultados um bem maior, dando à democracia portuguesa, no mandato em que se comemorará o seu meio século, razões para poder encarar o futuro com mais confiança. l

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

ANTÓNIO FILIPE, EX-DEPUTADO DO PCP

Ao anunciar que a rejeição da proposta de Orçamento do Estado na AR conduziria à convocação de eleições antecipadas, o Presidente da República estendeu a passadeira vermelha para a estratégia eleitoral do PS que, tendo apresentado uma proposta inaceitável para os partidos à sua esquerda, recusou qualquer possibilidade negocial, colocando-os perante o dilema de uma viabilização humilhante ou de uma rejeição que faria desencadear uma violenta campanha de responsabilização da CDU e do BE pela dissolução da AR. É hoje reconhecido que o sentido de voto de muitos milhares de eleitores foi influenciado pela divulgação de sondagens que apontavam para um “empate técnico” entre o PS e o PSD que nunca existiu, mas cuja divulgação terá contribuído de forma determinante para

(Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)

que o PS tivesse conquistado a maioria absoluta. A possibilidade de a comunicação social condicionar a liberdade de escolha dos cidadãos induzindo-os em erro através da divulgação de sondagens que se revelam manipulatórias, interpela muito seriamente a qualidade da democracia. Entre as ‘fake news’ de Trump ou Bolsonaro e as ‘fake polls’ divulgadas entre nós por órgãos de comunicação social presumivelmente sérios, não vai uma distância muito grande quanto aos seus efeitos. A maioria absoluta do PS foi a vitória do medo. Foi o medo de muitos milhares de eleitores de vir a ser governados por um PSD aliado à extrema direita, que os fez esquecer que a diferença entre o PS de Sócrates e o PS de Costa não resultou de nenhuma mudança de natureza do PS, mas do facto de em 2015 o PS não ter a maioria absoluta e só ter podido ser Governo porque Jerónimo de Sousa afirmou na noite de 4 de outubro de 2015 que o PS só não formaria Governo se não quisesse e forçou a que muitas medidas de sentido positivo tivessem sido tomadas mesmo contra a vontade do PS. Muitos eleitores que em 2015 e 2019 votaram à esquerda do PS terão esquecido essa noite. Decididamente, o medo é mau conselheiro. l

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E N T R E V I S TA S

JORGE CARLOS FONSECA, EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE CABO VERDE

“A MINHA AMBIÇÃO É CONTINUAR A SER UM JARDINEIRO DA LIBERDADE”

APÓS 10 ANOS AO SERVIÇO DO POVO CABO-VERDIANO, JORGE CARLOS FONSECA DISSE ADEUS, EM N O V E M B R O D O A N O P A S S A D O , A D O I S M A N D A T O S C U M P R I D O S “ C O M M U I T A P A I X Ã O E D E D I C A Ç Ã O ”. S E G U N D O O A N T I G O P R E S I D E N T E D O PA Í S L U S Ó F O N O , O B A L A N Ç O D E S TA D É C A DA F O I B A S TA N T E P O S I T I V O E C O N S I D E R A T E R C O N T R I B U Í D O A C T I VA M E N T E P A R A A D E F E S A D A L I B E R D A D E N O P A Í S , CONSIDER AD O UM EXEMPLO DE DEMOCR ACIA EM ÁFRICA. AINDA ASSIM, E AGOR A ENQUANTO C I D A D Ã O , VA I C O N T I N U A R A L U T A R P A R A U M A M A I S F O R T E “ C U LT U R A D E L I B E R D A D E ”.

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E N T R E V I S TA S

Passados dez anos de serviço como Presidente da República, como é que hoje se define? Há uns anos, a propósito de um livro seu, respondeu que “Um presidente nunca escreveria estes versos, mas a pessoa que os escreve é a mesma e implica uma opção”. Qual é a sua opção, hoje? Um poeta ou um professor que fez política, um ex-Presidente que escreve poesia? Sou, hoje, um militante da cidadania democrática ao serviço da afirmação da Liberdade, que foi Presidente da República de Cabo Verde e é poeta. Vejo, hoje, ao atingir os setenta anos de idade, que muito dificilmente conseguirei desembaraçar-me do que venho considerando, no essencial e por comodidade de expressão, as cinco paixões com que tenho feito um percurso de vida: a Liberdade; a Política; a Poesia; as Ciências criminais e o Futebol. Durante os anos em que exerci a função de Presidente da República também escrevi e publiquei textos literários, sobretudo poéticos. Mas nos momentos da escrita entrava em cena a condição de poeta, naturalmente, influenciado, amiúde, pelo estatuto presidencial, sobremaneira no que tange aos pretextos para a escrita, ao material que impulsiona o acto de escrever. Um Presidente que exerceu os mandatos com muito gosto e paixão; um poeta que escreve com paixão. Acima de tudo, um Presidente, um poeta, um cidadão que continuará preso, movido por aquilo que, ao fim e ao cabo, liga todos os caminhos de um percurso: a Liberdade. Mas como se sente, findo o exercício de dez anos como Presidente da República, não podendo, por

AFONSO CERQUEIRA E JOAQUIM BAPTISTA

impedimento constitucional de se abalançar a um terceiro mandato? Reconfortado? Satisfeito? Com o sentimento do dever cumprido como habitualmente se afirma? Ou acha que poderia ter feito mais? Não é cómodo nem é fácil ser juiz em causa própria. Também é normal que, numa avaliação do que se fez, mesmo numa auto-avaliação, se conclua que se poderia fazer mais e melhor. Sem dúvida que sim. Olhe, a título ilustrativo, fiquei com pena de não ter podido realizar uma grande conferência da juventude da CEDEAO e da CPLP, na ilha do Sal, que estava já com data marcada, programa e participações asseguradas de jovens oriundos de todos os países da África Ocidental, da CPLP e de outros países africanos, conferência patrocinada por mim e pelo Presidente da República do Senegal, Macky Sall, e com o apoio das Nações Unidas e da Comissão da CEDEAO, também do Governo de Cabo Verde, entre outros. Realização que, com algumas hesitações e sentimento de frustração, fomos obrigados a suspender por causa do início da crise sanitária em que, ainda hoje, vivemos. Devo dizer, aliás, que foi ideia que apresentei na cimeira da União Africana, em fins de Janeiro de 2017, mas que esta instância não “agarrou”. Ideia de realização de um grande fórum sobre a juventude africana, que possibilitasse aos

próprios jovens discutir e exprimir os seus pontos de vista sobre os desafios de África relativamente ao desenvolvimento, paz, segurança, democracia e bem-estar para os africanos. Sobretudo, perspectivas dos jovens para os problemas específicos dos jovens. Igualmente lhe posso confessar que, já depois de deixar o cargo de Presidente da República, pensei em como seria importante, simbolicamente relevante, propor, por exemplo no seio da UA, a criação de um Grande Prémio Africano de Literatura, a estimular, a dar visibilidade, à criação literária em África, como existem o Nobel, o Prémio Camões ou o Prémio Cervantes. Esta é uma ideia – devo confessar que influenciado por opinião do escritor congolês Boniface Mongo-Mboussa – que poderá ser apresentada seja por quem for que, também como eu, assume a importância da literatura na vida dos povos e das nações. De todo o modo, julgo que, introduzindo um estilo diferente de actuação – uma magistratura de muita proximidade com as pessoas, de afecto 17


E N T R E V I S TA S e de diálogo permanente com os diferentes segmentos da população cabo-verdiana, sem excluir grande parte das nossas comunidades no estrangeiro – terei contribuído para que o país vivesse sempre em clima de tranquilidade, de estabilidade política, institucional e social e que a democracia e o estado de direito se estendessem e consolidassem. Fiz dois mandatos com maiorias diferentes, sendo o primeiro numa espécie de “coabitação” com um governo proveniente de uma maioria política que não me apoiara (2011-2016), potenciando, objectivamente, o início de um novo ciclo político no país e com uma votação que é, até hoje, a maior, em termos absolutos, em eleições presidenciais em Cabo Verde. Não houve qualquer crise política ou institucional relevante de 2011 a 2021, nem numa circunstância nem noutra. Seguro estou, por exemplo, de que Cabo Verde atingiu um grau de “cultura da Constituição” antes desconhecido e, sem falsa modéstia, penso que, para tal, dei uma inegável e permanente contribuição. Hoje, juízes, jornalistas, autarcas, deputados, grevistas, manifestantes, advogados, artistas, jovens, organizações feministas, ambientais, do desporto e da cultura, pessoas com deficiência, governantes, oposições, defensores da regionalização ou sindicalistas e empresários, falam, invocam, servem-se da Constituição. Deixou de ser algo abstracto ou uma mera referência sem impacto na vida

das pessoas. Esta é uma das mais importantes conquistas do Cabo Verde democrático a que, normalmente, não se dá destaque, precisamente porque… entrou no domínio do normal, do que é uma conquista adquirida. Julgo, igualmente, que funcionou muitas vezes o exercício da magistratura de influência junto dos outros poderes e da sociedade (combate ao alcoolismo, através de uma iniciativa e programa de enorme impacto no tecido social – “Menos álcool, Mais vida”; discriminação positiva para os pequenos e mais frágeis municípios; mobilidade na CPLP e nas relações com a União Europeia; vigência em “estado de emergência” constitucional sem “apagão constitucional ou democrático”; manuais escolares; reaproximação à Guiné-Bissau; cultura constitucional; combate às assimetrias regionais irrazoáveis; apoio à primeira participação dos “Tubarões Azuis” na CAN, ajudando na mobilização de recursos financeiros; organização e filosofia da “semana da República”, anualmente em Janeiro, para assinalar o Dia da Liberdade e da Democracia e o Dia dos Heróis nacionais, etc., etc.). Mas diria que me senti sempre e saio reconfortado, muito reconfortado e satisfeito pelo facto de, em dez anos sucessivos, e de acordo com estudos de opinião levados a cabo por empresas e entidades independentes, o meu desempenho como Presidente ter sido avaliado pelos cabo-verdianos das ilhas como muito bom ou bom, numa

média de noventa por cento (entre um mínimo de 86,7% a um máximo de 92%). O que em democracia é “anómalo”, quase “escandaloso” ou “obsceno”, quase ‘enverhoxhiano’. Ou, ainda, a circunstância de, a poucos meses da cessação de funções, estudo de opinião revelar que, a ser possível uma candidatura a um terceiro mandato (coisa que não é possível no nosso ordenamento constitucional e nem seria de meu interesse, em circunstância nenhuma) poderia chegar a um apoio a aproximar-se dos setenta e poucos por cento (o voto “certo” acrescido do voto “possível ou provável”: 48%+24%). Como é o regresso a uma cidadania sem a “magistratura de influência” presidencial? O que move e inquieta? Simplesmente, uma mudança de instrumentos de acção, de militância política e cívica. Bem antes de ser Presidente da República – iniciei a actividade política entre os dezassete e dezoito anos, estudante de direito em Coimbra, como militante na clandestinidade no PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) – estive na política, lutei pela independência do país, depois, pela democracia, criei e ajudei a construir movimentos políticos de contestação (por exemplo, os CCPD – Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia, em 1981-82)), partidos, ligas (a Liga Cabo-Verdiana dos Direitos Humanos, em 1982) mas, olhando para

S E G U R O E S T O U , P O R E X E M P LO , D E Q U E C A B O V E R D E AT I N G I U U M G R A U D E “ C U LT U R A D A C O N S T I T U I Ç ÃO ” A N T E S D E S C O N H E C I D O E , S E M FA L S A M O D É S T I A , P E N S O Q U E , PA R A TA L , D E I U M A I N E G ÁV E L E P E R M A N E N T E C O N T R I B U I Ç ÃO .

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E N T R E V I S TA S

trás, entendo que este percurso longo e, aparentemente, sinuoso (para alguns detractores ou desatentos, incoerente) tem como traço permanente a busca de um valor, de uma condição, de um ideal, a Liberdade. Como pressuposto e condição de tudo o resto (democracia, justiça, igualdade, progresso, desenvolvimento...). Portanto, diz bem, será o regresso à luta pela cidadania política, cultural... cívica, sem o instrumento de um cargo institucional ao mais alto nível. A magistratura de influência foi uma importantíssima ferramenta para essa luta que, naturalmente, prosseguirá sem as vantagens da “Magistratura” mas também sem os limites que ela impõe: escrevendo, publicando, intervindo nas universidades e nas escolas, na imprensa, no debate público, em conferências, procurarei estar presente nesta luta pela afirmação de Cabo Verde como país cada vez mais livre, mais democrático, mais justo e desenvolvido. Especialmente, um combate pela afirmação e defesa da Liberdade, de uma “cultura da liberdade” que, ainda, é insatisfatória, seja em Cabo Verde, país que, como se sabe, viveu numa situação colonial durante largas dezenas de anos (alguns séculos), seguindo-se um período de quinze anos de regime de partido único. Insuficiente cultura da liberdade mesmo no seio das nossas elites (política, cultural ou até literária), nos nossos intelectuais e escritores ou nos

profissionais da imprensa, fenómeno em certa medida compreensível pela sua ligação privilegiada ao “momento (anti) colonial” e também, numa boa medida, à demorada vigência, no país, de um regime autoritário após a independência. Circunstâncias que, por vezes, levam a que em certos segmentos de tais elites (em todo o caso, na minha percepção, minoritários) surja a relativização da democracia e do próprio valor da liberdade (individual), fazendo-se apelo, v.gr., à dicotomia democracia formal-democracia substancial ou à noção escorregadia e historicamente balizada de “democracia participativa”. Facto que ocorre também noutras partes do mundo. Basta olharmos para o que temos hoje... Num dos seus discursos, como Presidente, disse que é necessário “Firmeza inteligente, urgência com lucidez, eficiência no quadro do núcleo essencial e irredutível de valores por que optámos, em definitivo, viver em Cabo Verde”. Hoje, num tempo de muitas urgências, os valores permanecem? Sim, no essencial, sem esses valores, todas as urgências perdem sentido. A liberdade, a eminente dignidade da pessoa humana e a democracia são valores e princípios que devem comandar todas as esferas da vida social. Vivemos hoje tempos de sobressaltos, senão de recuos visíveis no que respeita a valores como a

liberdade ou a princípios, instituições ou práticas de democracia. Se quase ninguém renega aberta e formalmente a democracia, na prática assistimos, um pouco por todo o lado, a um crescimento do iliberalismo, quase um eufemismo para referir ditaduras ou regimes muito autoritários sob a forma de democracias muito musculadas. Não vivemos tempos fáceis para a afirmação dos valores e princípios democráticos. Assistimos todos ao que se passou ainda recentemente nos Estados Unidos, considerada a maior democracia do mundo. Em África, o nosso continente, ainda nos vemos perante golpes de estado (ainda há pouco tempo, no Burkina Faso, depois do Mali e da Guinée - Conakri), regimes militares e ao panegírico de ditadores do desenvolvimento, vistos como exemplos a seguir, apesar de liquidarem opositores políticos, alterarem as constituições para se eternizarem no poder e manterem um regime de mordaça aos cidadãos, partidos e organizações que manifestem alguma dissidência. Poderia falar igualmente do continente asiático e da América Latina. Na Europa crescem o autoritarismo político e o discurso e as práticas (legislativa, institucional e outra) de secundarização senão de funda mitigação das liberdades. Banaliza-se, “normaliza-se” o discurso (e não só) do populismo penal – quiçá o mais perigoso, porque mais “sedutor”, dos populismos, com as 19


E N T R E V I S TA S

N E C E S S I TA M O S D E U M A M A I O R I N T E G R AÇ ÃO N O C O N T I N E N T E P O R R A Z Õ E S E C O N Ó M I C A S E C U LT U R A I S E PODEMOS CONTRIBUIR DE MODO I M P O RTA N T E PA R A A P R O M O Ç ÃO D O I D E Á R I O E D O S VA LO R E S D A D E M O C R AC I A E M Á F R I C A .

propostas e soluções de agravamento crescente das penas, de alargamento do âmbito de aplicação da prisão preventiva (que se transforma, cada vez mais, numa antecipação da pena), de endurecimento do sistema prisional, a introdução de entorses a critérios fundamentais como a presunção de inocência, a defesa da pena de morte, da prisão perpétua ou de tratamentos cruéis e degradantes. Enfim, propugna-se o afastamento crescente dum direito penal de matriz demoliberal. Neste tempo, neste contexto geral, agravado pela crise pandémica, mais devem os amantes da liberdade e os defensores da democracia estar em estado de alerta, intensificando uma luta pedagógica, paciente e firme por aqueles valores, seja nas instituições do poder político, seja na imprensa, na advocacia, na escola, no trabalho, nas associações e demais organizações sociais. Por tudo isso, disse, há uns tempos, creio que numa entrevista, que a minha ambição é continuar a ser um jardineiro da Liberdade (e da democracia). Para contribuir (penso, concretamente no meu país) para uma mais forte, extensa e funda “cultura de liberdade”. Quando da tomada de posse do seu sucessor, disse que o futuro de Cabo-Verde é risonho. A que se deve o seu optimismo e confiança? Porque temos um povo resistente, 20

determinado, intrépido e que já provou, em períodos diversos da nossa história, ser capaz de vencer os mais tremendos desafios da sobrevivência e da afirmação como Nação. Porque os cabo-verdianos são ambiciosos para com o seu país, são dotados de criatividade e são capazes de aprender, de dialogar e de efectuar as permutas que se mostrarem necessárias para aperfeiçoar, transformar, crescer. Porque somos um povo que, no geral, ama a liberdade e se afeiçoou à democracia. O poeta Arménio Vieira escreveu, também sobre o seu país, a possibilidade de “Ilhas renascidas/ nuvens libertas.../ Talvez um continente/ À medida dos nossos desejos.” A esperança é uma característica cabo-verdiana? Sim, creio que sim. Esperança e resistência. Capacidade de sofrimento e de vencer desafios que parecem inultrapassáveis. Basta ver o processo histórico de criação da sociedade cabo-verdiana, a sua afirmação e, como hoje se gosta de dizer, a resiliência do povo cabo-verdiano perante as adversidades (as secas, as fomes, a ausência de recursos tradicionais para o desenvolvimento). Na altura da independência, dizia-se que o país não era viável, mas foi-se construindo e hoje é uma democracia de referência e não só em África. Acrescentaria outra característica, quiçá ligada às outras: a ambição. A

ambição que julgo ser da Nação, dos cabo-verdianos no geral, mas que, enquanto Presidente da República pretendi, em permanência, “carregar” aos ombros: a de um país moderno e competitivo, de uma democracia avançada, de um estado de direito sólido, justo e verdadeiramente desenvolvido e não apenas um país de “rendimento médio”, como somos hoje e desde há alguns anos. É preciso mobilizar as energias nacionais, trabalhar mais, trabalhar melhor, corrigir para realizarmos essa ambição. Fizemos muito em quase 47 anos de independência e três décadas de democracia; somos hoje um país muito diferente, para melhor, do que aquele que recebemos a 5 de Julho de 1975, mas poderíamos ter feito mais e queremos fazer mais e melhor. Inclusivamente em termos de liberdade e de democracia política. Lembro-me de, por diversas ocasiões em que Cabo Verde era mencionado, por instituições internacionais diversas, como o país africano mais livre ou dos mais democráticos no mundo, reagir perante a imprensa ou em declarações públicas outras, afirmando que me sentia orgulhoso como Presidente da República e como cidadão, mas que, sobretudo na primeira daquelas condições, era o primeiro portador de uma quase ilimitada ambição nacional de estar nos primeiros lugares a nível mundial (por que não ser o número um?) Esta certeza de que podemos sempre


E N T R E V I S TA S fazer mais, uma pouco mais, levou-me a percorrer todo o país, visitar todas as localidades, por mais recônditas que fossem fazendo, várias vezes, percurso a pé, em condições muito difíceis (cheguei uma vez a andar em caminhos rochosos cinco horas e meia, parte delas debaixo de chuva muito forte, caso da visita, em Santo Antão, às localidades de Figueiras e Selada das Chapas). Quis chegar a todas as pessoas e conhecer e perceber os problemas das comunidades onde estavam para que as suas reivindicações chegassem aos governos e as soluções fossem apresentadas. Com satisfação posso dizer que este desiderato foi muitas vezes alcançado. Lembro-me, a título exemplificativo, de uma pequena localidade (Tarrafal de Monte Trigo), na altura de acesso muito difícil (desembarque numa pequena lancha), queixava-se de não ter um único técnico de saúde que pudesse socorrer em caso de emergência. Após a minha visita, esta pequena, mas muito importante exigência da comunidade foi satisfeita pelo governo com a rápida colocação de um enfermeiro. No fundo, dando concretização ao lema de meus dois mandatos presidenciais “Um Presidente junto das pessoas”. Também sobre a CPLP se empenhou muito, inclusive na presidência. Vê também esperança no futuro da organização? A vertente económica e comercial, por exemplo? Sim, acredito no futuro da organização, de que fui muito crítico no passado, não deixando de o ser, mesmo no tempo em que fui Chefe de Estado de Cabo Verde. Uma coisa para mim é certa desde há muito: a Comunidade não será vista como tal pelo comum dos cidadãos de cada um dos seus países integrantes enquanto não se transformar numa verdadeira comunidade de povos, de pessoas, de cidadãos. Significativamente, dizíamos, num fórum organizado na cidade da Praia, ainda antes da institucionalização da CPLP, o seguinte: “Estamos cada vez mais convencidos de que a Comunidade, qualquer comunidade

do género que se pretenda criar, depende grandemente da extensão e da profundidade do diálogo que se conseguir introduzir entre os seus agentes culturais e sociais. A sua afirmaçäo estará condicionada sempre, mais pela capacidade de contactos permanentes entre as sociedades civis do que da frequência e acçäo das instâncias político-governamentais”. Por isso, a aposta que nós fizemos, durante a nossa presidência, na questão da mobilidade. E temos orgulho em ver que conseguimos um feito que exigiu muito trabalho diplomático, muitas negociações, avanços e recuos: uma convenção sobre a mobilidade aceite por todos os Estados membros. Foi um passo e uma conquista históricos para a organização. Não será a resolução total e imediata do problema da circulação, mas constitui o ponto de partida decisivo e fundamental. Falta agora conseguir que se dê execução aos normativos constantes da convenção. Tarefa também nada fácil e que vai exigir o empenhamento político de cada um dos Estados e um esforço acrescido dos principais responsáveis da organização. Deve continuar a merecer a atenção privilegiada de todos e não se ficar pelo meio do caminho. É que sem a mobilidade não terá sucesso nem a cooperação empresarial, comercial, nem o intercâmbio cultural e desportivo satisfatórios. Certo igualmente é que a mobilidade não será um processo linear e instantâneo: terá etapas, fases e caminhos diferenciados. Isto é, não vamos ter, de imediato e/ou ao mesmo tempo, livre circulação entre os nove e para todos os segmentos populacionais, sem esquecer o facto de que há já vários acordos bilaterais de livre circulação entre países membros da organização. Para se conseguir o muito difícil e complexo acordo-quadro ele teve de ser modelado em jeito de geometria variável, pois. E na relação de Cabo Verde com a União Europeia, o que falta fazer? Cabo Verde tem uma “parceria especial” com a União Europeia. Nunca se pretendeu integrar a UE como membro. Assumimos a nossa

condição de país africano, de ilhas atlânticas e africanas, ainda que com as especificidades propiciadas pela nossa situação geográfica e pelo concreto processo histórico de construção da sociedade cabo-verdiana e dos cabo-verdianos. Somos um país com a vocação de estabelecer pontes – políticas, culturais, civilizacionais – e realizar permutas. Mas somos um país africano. Partilhamos com a União Europeia valores e princípios importantes, cruciais, como a liberdade, a defesa e promoção dos chamados direitos humanos, a democracia, entre outros. Temos também com ela cruzamentos de história e de vidas. Por isso, o relacionamento com a UE tem sido, com diferenças de ênfase, de tom e de grau, considerado uma prioridade da política externa dos diferentes governos de Cabo Verde. Não sendo membro e nem pretendendo sê-lo, devemos aprofundar tal parceria especial até ao limite daquela, digamos, fronteira. Por exemplo, no que se refere a “pilares” como o da segurança, da economia azul (a área económica, no geral, diria, de forma a se adequar a um relacionamento que se pretende seja uma “parceria especial”) e da mobilidade. Temos tido avanços concretos no que toca a esta questão complexa, temos tido avanços no que toca aos procedimentos de obtenção de vistos para os nossos cidadãos que queiram deslocar-se ao espaço da UE, mas a nossa pretensão é bem maior e tem como limite a livre circulação (como já existe para os cidadãos da UE para entrar em Cabo Verde). Já é uma pretensão colocada aos responsáveis da União. Eu próprio, em visitas oficiais a Bruxelas, e em encontros que mantive com o Parlamento Europeu e seu Presidente, Presidentes da Comissão e do Conselho Europeus, pude advogar uma tal pretensão que sabemos não ser fácil de se concretizar, sobretudo tendo em conta o actual contexto mundial e europeu no que respeita à problemática das migrações, dos refugiados e da mobilidade no geral. Mas é preciso, aqui também, perseverança, esforço diplomático crescente, inteligência negocial. 21


E N T R E V I S TA S Falta, pois, talvez – para ser mais concreto na resposta à sua pergunta –, para além do que acabámos de referir, colocar em prática uma estratégia de revitalização permanente da “parceria especial”, tendo em atenção as alterações de conjuntura na UE e em Cabo Verde, procurando nós, por exemplo, capitalizar os instrumentos de financiamento ao desenvolvimento que a União disponibiliza fora do quadro da chamada ajuda pública ao desenvolvimento. Cabo Verde, como democracia firme, transições democráticas e instituições sólidas, deve ter um papel ainda maior nas organizações regionais africanas? Penso que sim. Ao longo da história a nossa integração no continente tem sido reduzida, por razões políticas que se reportam ao período colonial, mas, que até o presente, não foram suficientemente neutralizadas e também por condicionantes de ordem geográfica. Necessitamos de uma maior integração no continente por razões económicas e culturais e podemos contribuir de modo importante para a promoção do ideário e dos valores da democracia em África. É o que temos procurado defender e fazer, particularmente nos últimos tempos, apelando, por exemplo, como o fizemos em Lomé, numa cimeira conjunta CEDEAO-CEEAC (Julho de 2018), à articulação entre as nossas organizações regionais que a cada dia assumem papel preponderante na construção da estabilidade e do desenvolvimento nos nossos países, enquanto uma contribuição importante para a integração africana. Não se trata, a meu ver, sobretudo, de um problema de prioridades de ancoragem, como, por vezes, se debate entre nós. De o país estar ancorado mais em África ou mais na Europa. Sempre pensei que um país com as características de Cabo Verde, um país que tem a vocação de ponte entre culturas, valores e espaços geográficos, tem a necessidade de pluri-ancoragens, se, assim, se pode dizer. Aliás, essa é uma sina histórica. 22

Mas devemos inserir-nos mais nos espaços africanos e não ficarmos com um pé fora e um pé dentro. Dentro dos limites impostos pela escassez de recursos – financeiros e humanos – devemos procurar ser mais activos no plano africano, sendo sempre nós próprios, africanos, ilhéus, com especificidades próprias. Na CEDEAO, teremos que agir rapidamente para, ao abrigo de dispositivos previstos no tratado (art.3.2 e art. 68 do tratado revisto), exigirmos um tratamento diferenciado como Estado insular, em matérias como investimentos em infraestruturas, moeda única, circulação de pessoas, etc. Isto começou a ser feito, mas temos de ser mais rápidos e assertivos. Na relação com outros continentes, há muito que África é uma terra de futuro. O que falta para que esse futuro chegue? A África, como bloco, tem tido avanços no diálogo com outros blocos. Tem feito um caminho ascendente desde as lutas pela independência até hoje. Tive o privilégio, por exemplo, de conhecer e participar da OUA e, depois, na União Africana. Há uma evolução inegável. Porém, os resultados desse percurso bem poderiam ser outros. Aos atrasos e constrangimentos derivados da colonização e do esclavagismo, seguiu-se, depois das independências, a instalação de regimes e governos que, muitas vezes, se limitaram a prosseguir com as práticas do opressor colonial. Regimes e governos, em grande parte dos casos, autoritários, amiúde despóticos e corruptos, alguns dos quais, após a vaga da democratização, se transmutaram em simulacros de democracias e estados de direito, não sem resistências justificadas de modos diferentes, mas fundadas, quase sempre, em razões historicistas e culturalistas. Hoje o continente tem uma agenda ambiciosa, a Agenda 2063, que, a ser realizada, trará progresso com justiça e inclusão, numa África democrática e respeitadora e promotora dos direitos fundamentais. Uma África capaz de ombrear com outros blocos mundiais. Para lá chegarmos, muitos desafios

deverão ser ultrapassados, muito caminho resta por fazer. É que está mais do que comprovado que não é possível realizar o progresso económico com instabilidade política, institucional e social, com guerras intestinas, com golpes de estado e regimes militares, num contexto em que não faltam terrorismo, radicalismo religioso, disputas étnicas violentas. O combate à corrupção e a transparência no exercício do poder dificilmente se farão no quadro de regimes autoritários e totalitários, algumas vezes de verdadeiro poder pessoal, facto favorecido por sistemas de governo ditos presidencialistas, mas que, em rigor, não o são, pois os Estados e o seu poder nem se fundamentam muito menos se limitam por uma constituição efectiva. É claro que nestes aspectos, sobremaneira, não se pode falar em África como um todo monolítico e igual, como, por vezes, se fala. O nível de desenvolvimento é diferenciado de país para país; o mesmo se pode dizer do grau de democratização das sociedades africanas e da credibilidade das lideranças. Há conquistas democráticas nalguns países africanos, é verdade. A UA funciona mais democraticamente do que a antiga OUA. O habitual é dizer-se que o futuro do continente passa por resolver-se os problemas da instabilidade política, da violência, da insegurança e dos conflitos, como condição para o desenvolvimento. Na realidade, não é possível pensar, estruturar e concretizar políticas de desenvolvimento nas mais diferentes áreas, se a segurança das pessoas e bens não estiver garantida, se as mulheres e homens não souberem, ao sair para cultivar a terra ou dirigir-se a uma fábrica, se podem regressar a casa. Para mim a questão da democratização – certamente em modelos concretos e ritmos adequados às condições histórico-sociais e culturais de cada país- é crucial. Não se trata, pois, de um problema posterior que deva ser cuidado apenas quando houver paz e estabilidade. Sem um sistema democrático muito dificilmente se atingirão aqueles outros objectivos. Em praticamente todas as minhas


E N T R E V I S TA S intervenções nos fora africanos, seja na União Africana, seja na CEDEAO ou em conferências, debates e outros eventos, o tema da democracia, do estado de direito, do respeito pelos direitos fundamentais esteve presente, algumas vezes causando visível incómodo em determinados segmentos dos auditórios. Mas fiz sempre questão de manter uma tal atitude. Rejeitando seja o paternalismo que resulta da importação acrítica de modelos e soluções, de concretas modelações da democracia, seja aquele que se traduz na recorrente justificação de regimes totalitários, por vezes, de puro poder pessoal, sob a justificação da inexistência de condições históricas, sociais e culturais para a introdução de um “modelo ocidental” ou com o argumento de que “o multipartidarismo é contrário à essência africana, sendo uma cópia dos sistemas políticos europeus”. Há alguma situação em África que o preocupe em particular? O terrorismo, a par e alimentado pelo radicalismo de cariz religioso, que, infelizmente, atinge largamente o continente, referindo-me, em particular, à sub-região oeste-africana a que Cabo Verde pertence (Mali, Côte d’Ivoire, Nigéria, Niger, Burkina Faso, entre outros países). Se pudesse indicar uma outra: o drama pungente dos emigrantes nas mãos de traficantes sem escrúpulos e criminosos.

E como estadista, como vê as actuais relações, EUA/CHINA/RÚSSIA? São relações com um lastro de história de concorrência e de disputas (sobretudo EUA/Rússia, desde a guerra fria) com o foco a centrar-se, consoante a evolução dos tempos, em questões (geo)económicas ou de ordem (geo) políticas ou militares e de segurança. As disputas nas relações entre os EUA e a China surgem como de teor mais económico e comercial, procurando os protagonistas uma hegemonia nesses domínios, com reflexos em toda a economia mundial e o seu sistema, num contexto em que se verifica um grande desenvolvimento da economia, de novas indústrias e tecnologias da China, mormente nos anos que se seguem à queda do muro de Berlim, tornando-se esta verdadeiramente uma potência económica e tecnológica. Não será por acaso que, no essencial, as posições de Joe Biden e de Donald Trump não se apresentam muito diferentes no que àquelas relações com a China dizem respeito. Uma tal disputa naturalmente acarreta desenvolvimentos políticos ou favorece-os, como, por exemplo, o diferendo em torno de Taiwan, a questão da democracia e dos direitos humanos em Hong-Kong e na própria China continental (liberdade de imprensa, v.gr.), fazendo crescer o clima de tensão entre os dois países. Neste quadro, os investimentos feitos na modernização das forças armadas chinesas, bem como a influência crescente da China no continente

africano (também na região do Golfo) – económica, comercial, política e militar (fala-se de bases militares chinesas em África) - têm constituído fontes de preocupações para as autoridades americanas. Aliás, também de certo modo para os responsáveis europeus, ainda que a medida de expressão das preocupações, neste caso, ultrapasse a das acções para contrariar aquela influência. Isto mesmo – posso afirmá-lo – pude dizer e (contra)argumentar ao mais alto nível, na União Europeia ou junto de alguns Chefes de Estado e outros responsáveis de países europeus com que Cabo Verde mantém relações de cooperação, quando me confrontaram com o que entendiam ser perigosas relações de aproximação com a China (investimentos, empréstimos, falando concretamente, por exemplo, no projecto de construção de uma zona económica especial marítima em São Vicente, cujo estudo de viabilidade foi feito pelos chineses) No meu entendimento, pois, apesar do clima de tensão política que não deve ser negligenciado, por comportar riscos, os grandes desafios situam-se ao nível do confronto económico que introduz elementos de acentuada instabilidade na economia mundial. No que toca às relações EUA/Rússia, e situando-nos nos tempos mais recentes, posteriores ao período da “guerra fria”, as disputas são mais de índole política, político-diplomática do que de cariz económico, já que a

N O Q U E T O C A À S R E L AÇ Õ E S E U A / RÚSSIA, E SITUANDO-NOS NOS TEMPOS MAIS RECENTES, POSTERIORES AO P E R Í O D O D A “ G U E R R A F R I A”, A S D I S P U TA S S ÃO M A I S D E Í N D O L E P O L Í T I C A , P O L Í T I C O - D I P LO M ÁT I C A D O QUE DE CARIZ ECONÓMICO.

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E N T R E V I S TA S Rússia, inegável potência militar, nesse aspecto parece estar mais distante dos outros dois países. Encurtando razões e acontecimentos, lembramo-nos da acusação de interferência russa nas eleições americanas, de conivência das autoridades russas em ataques informáticos a empresas e estruturas públicas americanas ou, então, da imputação feita pela Rússia aos EUA e ao Ocidente de uma aproximação perigosa das suas fronteiras, designadamente influenciando política e militarmente países que pertenceram ao bloco soviético, inclusivamente através da NATO. Muito actual é o clima de tensão a propósito da Ucrânia, que envolve as posições da Rússia e dos EUA, a que acrescem as da União Europeia e da NATO, com movimentações militares, cenários de invasão e de retaliação, num quadro em que, aparentemente, a China se mostra distanciada. Aliás, deve dizer-se que, neste quadro global de procura de reconfiguração, de reposicionamento e de obtenção de vantagens geopolíticas e económicas, de mudanças, pois, nos equilíbrios globais de poder – que alguns vêm comparando à Guerra Fria (veja-se a iniciativa do AUKUS para conter a ascensão da China e, a prazo, da Índia, num contexto de tendência para uma nova centralidade económica mundial na região da Ásia-Pacífico e do Sul da Ásia) –, se assiste a uma certa aproximação entre a Rússia e a

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China. Curiosa e significativamente, países não muito distantes entre si de uma perspectiva de natureza de regime político, de exercício do poder ou de visão sobre temas como democracia, respeito pelos direitos humanos, soberania e não interferência nos assuntos internos de outros Estados. Sendo certo, porém, como também sabemos, que a política norte-americana em matéria de democracia e direitos humanos, com alterações de estilo e, talvez, de densidade, consoante a orientação política das diferentes administrações, não se mostra, na frente externa, sobretudo, consistente, clara e isenta de críticas, sobremaneira pela suas hesitações e incoerência, amiúde. Aproximação ou similitude de procedimentos até no que se refere a estratégias de influência ou procura de influência no continente africano (Mali, Líbia, Burkina Faso), de certo modo recuperando parte de sua influência na região (também com a perspectiva de presença na Índia). Enfim, as actuais relações entre esses países não favorecem um clima de distensão e de cooperação necessário a que se vençam os desafios tremendos que a humanidade enfrenta, que a pandemia da COVID-19 veio a tornar mais urgente. Cabo Verde, país pequeno e sem grandes possibilidades de relevante influência neste complexo xadrez, e até por razões que têm a ver com a sua defesa e afirmação no plano internacional, tem invariavelmente

feito apelo ao diálogo como forma privilegiada de resolução de conflitos, ao reforço do multilateralismo, a uma maior capacidade de intervenção da ONU, advogando uma reforma desta organização que a possa tornar de funcionamento mais democrático e mais eficiente. A nível bilateral, mantém boas relações com qualquer um desses países, tendo, porém, visivelmente, uma cooperação mais forte com os Estados Unidos e com a China. Mas, com os Estados Unidos, sempre pensei que o nível e a dimensão da cooperação poderiam e deveriam ser bem mais elevados, em atenção ao lastro histórico, cultural e humano que envolve o relacionamento entre os dois países. Isso mesmo pude dizer, abertamente, incluindo, na argumentação, referências a aspectos de minha vida pessoal e familiar ligados à emigração para os Estados Unidos (em particular, um avô materno meu que esteve ligado a actividades em baleeiros americanos) em Agosto de 2014, quando fui representar o Estado de Cabo Verde na cimeira Estados Unidos-África, em Washington D.C., depois de ouvir, entre o muito orgulhoso e a pele arrepiada, estando lado a lado com o Presidente Obama, este fazer incríveis elogios a Cabo Verde e à qualidade de sua democracia, dando-a como exemplo ao conjunto de Chefes de Estado africanos presentes (meia centena). Recordo-me perfeitamente desta cena, pois, no meu atrevimento de Presidente de um


E N T R E V I S TA S pequeno país, também ele atrevido, logo após a minha intervenção, estendi um papelinho a Obama no meu imperfeito inglês para lhe referir, em síntese, o que acabara de comunicar publicamente, sobretudo, a minha insatisfação pelo nível da «boa» cooperação americana. A União Europeia pode vir a ser uma potência mundial? Depende do que se entender por potência mundial. Se pensarmos em domínios como a economia ou o comércio, a União Europeia é já uma potência mundial, estando na primeira linha, como se reconhece e nos dizem as estatísticas. Se atentarmos no grau e na medida de influência que a Europa possui na definição e resolução das grandes questões internacionais, compreendemos a insatisfação, as críticas, amiúde muito severas, que são dirigidas às instâncias comunitárias europeias nomeadamente em sede de política externa e defesa e segurança, ou também no seio da NATO (veja-se o arsenal crítico dirigido à União sobre o seu desempenho na actual crise que tem por base a Ucrânia, sendo que para muitos a diplomacia se tem jogado sobremaneira nas conversações entre americanos e russos), e igualmente percebemos que um dirigente de um muito importante país da União, como o Chefe de Estado francês, Emmanuel Macron, pretenda que a Europa venha a ser uma “potência do futuro”, capaz de resposta aos desafios, incluindo os geopolíticos. Não se pode esquecer, numa avaliação objectiva das performances da União Europeia, a circunstância de ela ter sido, e ainda ser, uma construção a fazer-se, neste momento a vinte e sete, e com países em estádios de desenvolvimento económico, social, mas também político, muito diferentes. Alargamento, aliás, que pode chegar aos países dos Balcãs e do restante Leste europeu com quem tem acordos de associação, e que, se traz vantagens inegáveis a prazo, também traz problemas e dificuldades em

áreas, digamos para simplificar, como liderança e unidade, a que acresce o facto de, sendo uma instância de funcionamento democrático e onde o pluralismo é bem forte e vasto, surgir como mais lentos, sofisticados e, aparentemente, hesitantes, os procedimentos que conduzem à adopção de decisões. Sobretudo, se compararmos com as coisas se passam na Rússia ou na China, ou mesmo nos EUA. Mas, apesar de tudo isso, de todos estes factores, parece-me que a UE representa um exemplo mundial de integração ou em termos de manutenção da paz. Se levarmos, demais a mais, em consideração que houve duas guerras mundiais com foco em território europeu, o que vemos como dimensão de integração, mobilidade, moeda única, podemos considerar a UE um caso de sucesso. O que não exclui que haja reformas muito importantes a ter de ser efectuadas, desde logo se houver a ambição de construção de um espaço cada vez mais de democracia, de paz e de progresso, centrado na afirmação e na defesa de inequívocos e modernos estados de direito no contexto de toda a União (ambição que deve continuar a nortear a acção e a construção europeias, como uma marca de referência efectiva, o seu soft power, como dizem alguns) ou, por exemplo, na concretização eventual de uma força intergovernamental de intervenção rápida, no fundo, de uma autonomia estratégica europeia no plano da defesa, que permita independência, nomeadamente face aos EUA. Citando mais uma vez a recente intervenção do Presidente Macron no Parlamento Europeu “a União Europeia não pode ficar satisfeita por apenas reagir às crises internacionais”. Um apontamento final e rápido sobre um aspecto que nos diz mais directamente respeito, enquanto africanos – e, obviamente, enquanto cabo-verdianos – tem a ver com a política de alianças da União Europeia. Se há continente com o qual a Europa tem um lastro de relações tecidas pela história (desde logo, com a colonização) e pelos contactos

humanos é a África. Naturalmente um relacionamento feito de dominação, dor, sofrimento, desigual, pois. O que não impede que sejam os europeus quem melhor conhece o nosso continente, podendo o mesmo dizer-se dos africanos relativamente à Europa. Se acrescentarmos o factor potencial que a África representa cada vez mais (recursos naturais, potencial demográfico e cultural, juventude da população, dimensão de mercado) resulta que o reforço da aliança e das parcerias (autênticas) entre os dois blocos pode ser muito relevante para ambos, a nível de cada um deles, mas também no confronto com os demais espaços. Disso têm cada vez mais consciência os responsáveis europeus e igualmente os africanos. Da União Africana já se ouvem vozes (e decisões) a advogar que as relações com a Europa no pós-Cotonou devem ser de uma maior proximidade, designadamente quando estão em causa questões como a paz e a segurança, o relançamento das negociações globais, feitas com base em regras justas e equitativas, no âmbito da OMC, da FAO e de outras instâncias, o desenvolvimento, a segurança alimentar, a efectivação da Zona de Comércio Livre Continental, as migrações e a mobilidade, os impactos das alterações climáticas. Esperamos avanços concretos nesta direcção de um ‘new deal’ – de uma verdadeira parceria estratégica entre os dois continentes – na próxima cimeira prevista para Fevereiro. Uma nova parceria, a ser reconfigurada, necessidade patente devido, nomeadamente, à crescente independência do continente africano para desenvolver as suas próprias agendas. No que tange concretamente a Cabo Verde, pudemos já, em 2014, mas noutros fóruns, defender a necessidade de o continente africano promover e estabelecer aliança, forte e mutuamente vantajosa, com a UE (e outros parceiros, naturalmente), assegurando que as prioridades identificadas na Posição Comum Africana serão integradas na Nova Agenda Global pós-2015. l 25


E N T R E V I S TA S

MANUEL NUNES JÚNIOR, MINISTRO DE ESTADO PARA A COORDENAÇÃO ECONÓMICA DE ANGOLA

“A S R E F O R M A S E C O N Ó M I C A S VÃO C O N T I N UA R ”

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E N T R E V I S TA S

É U M D O S R O S T O S DA S R E F O R M A S E S T R U T U R A I S Q U E A N G O L A T E M I M P L E M E N TA D O D E S D E A T O M A DA D E P O S S E D O E X E C U T I V O D E J O Ã O L O U R E N Ç O , E M 2 0 1 7, I N T E N S I F I C A D A S C O M O P R O G R A M A D E F I N A N C I A M E N T O D O F U N D O M O N E TÁ R I O I N T E R N A C I O N A L ( F M I ) , E U M D E F E N S O R I N C O N D I C I O N A L D O P A P E L D O S P R I VA D O S N O C R E S C I M E N T O E D E S E N V O L V I M E N T O D A E C O N O M I A . M A N U E L N U N E S J Ú N I O R E L E N C A O S G A N H O S D E S T E S Q U A T R O A N O S E G A R A N T E Q U E A S A Í D A D O F M I N Ã O VA I R E F R E A R O E S P Í R I T O R E F O R M I S TA D O E X E C U T I V O , Q U E S E M A N T É M F O C A D O E M C O N T I N U A R A C R I A R C O N D I Ç Õ E S PA R A AT R A I R I N V E S T I M E N T O PA R A O S S E C T O R E S P R O D U T I V O S DA E C O N O M I A , M A I S E M P R E G O E M A I S C O N C O R R Ê N C I A . N O S E I O D O E X E C U T I V O , A S S E G U R A , H Á “ U M A N O VA P O S T U R A D E G O V E R N A Ç Ã O ” , S E M V E D E T I S M O S . “ H Á A P E N A S J O G A D O R E S , A L I N H A D O S PA R A A E Q U I PA P R I N C I PA L E Q U E T Ê M D E M O S T R A R E M C A M P O O Q U E VA L E M ”.

A generalidade das previsões para Angola, incluindo do Executivo, apontam para uma ligeira retoma do crescimento em 2021 e alguma aceleração em 2022. Quais serão os pilares desta recuperação? Angola vive uma recessão económica desde 2016, o que constitui uma situação muito difícil e complexa económica e socialmente, e que tem a ver com o peso ainda muito grande do sector petrolífero na estrutura económica do País, com a redução do preço do barril, que se iniciou em 2014 e, ultimamente, com os efeitos da pandemia de Covid-19. As reformas políticas e económicas levadas a cabo pelo Executivo desde finais de 2017, quando entrou em funções, para além de terem conseguido alcançar a estabilidade macroeconómicas, começam a dar os primeiros frutos do ponto de vista da economia real, isto é, do sector encarregue da produção de bens e serviços. E por isso as previsões melhoram... As projecções das principais instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial (BM), e das agências de ‘rating’, apontam para o fim da recessão em 2021, mesmo com um recuo do sector petrolífero em cerca de 10,6%. Angola terá crescido, em 2021, entre 0,1% e 0,4%, graças a um crescimento vigoroso do sector não petrolífero, de cerca de 5,9%.

RICARDO DAVID LOPES

É preciso realçar este facto. Vamos aguardar pelos dados definitivos. Se os números se confirmarem, será muito bom para o País e para os angolanos: 2021 assinalará o fim de um longo período de recessão económica. Este ano será melhor. As nossas previsões apontam para 2,4%, graças a um crescimento tanto do sector do petróleo e gás, quanto do não petrolífero, em 1,3% e 3,1%, respectivamente. O BM e o FMI apontam para cerca de 3% - uma previsão mais optimista do que a nossa. O crescimento não petrolífero será suportado, fundamentalmente, pelos sectores da agricultura, pescas, indústria, construção, comércio, transporte e outros serviços, no âmbito do processo de diversificação da economia em curso em Angola. A economia nacional está hoje mais resiliente, ou, pelo contrário, mais fragilizada perante cenários adversos, com o impacto da Covid-19?

As reformas iniciadas em 2018 pelo Programa de Estabilização Macroeconómica (PEM), e que contaram com o apoio do FMI, no âmbito do Programa de Financiamento Alargado (EFF - Extended Fund Facility), permitiram a eliminação dos principais desequilíbrios estruturais e conjunturais da nossa economia, levando à retoma dos ‘superavits’ fiscais e ao equilíbrio do mercado cambial, conferindo ao País maior robustez e resiliência aos choques externos. Agricultura, pescas, comércio e indústria têm mantido taxas de crescimento positivas, mesmo em contexto de pandemia, de constrangimentos na provisão de factores de produção e de condições climatéricas menos favoráveis, como é o caso das secas no Sul do País. Entretanto, os sectores mais afectados pela pandemia – transporte e logística, turismo e hotelaria – já evidenciam um ritmo de recuperação acima da tendência regional, demonstrando que a economia nacional está mais resiliente. As medidas de mitigação ajudaram? Em Abril de 2020, com a entrada em vigor do Estado de Emergência, foram adoptadas, imediatamente, medidas de mitigação dos impactos socio-económicos da pandemia, de natureza fiscal, monetária e de apoio 27


E N T R E V I S TA S

AS PROJECÇÕES DO FMI, DO B A N C O M U N D I A L E D A S P R I N C I PA I S AG Ê N C I A S D E R AT I N G A P O N TA M PA R A O F I M D A R E C E S S 2 ÃO E M ANGOLA EM 2021.

ao sector produtivo e ao empresariado, que foram fundamentais para tornar a nossa economia mais resiliente.

o programa com o FMI tornou o processo de reformas credível – e esta é uma grande vantagem.

O EFF, que terminou em Dezembro de 2021, envolveu reformas estruturais, cujo sucesso foi destacado pelo próprio FMI. Teme que, de alguma forma, o FMI venha a fazer falta, ou o ímpeto reformista do Governo não vai refrear? Em 2017, aquando da investidura do novo Governo, foi feito um diagnóstico exaustivo do estado socio-económico do País, tendo sido identificados desequilíbrios macroeconómicos e diversos desafios económicos e sociais que demandavam respostas de política e reformas estruturais, devidamente contidas no Plano de Desenvolvimento Nacional 20182022 (PDN 2018-2022). Já no âmbito deste Plano, o Executivo havia preparado o seu PEM, prevendo diversas respostas de política orientadas para a melhoria do equilíbrio das contas internas e externas, incluindo-se, entre as medidas de correcção dos desequilíbrios, por exemplo, a modernização do regime cambial, o fortalecimento da sustentabilidade das finanças públicas e as melhorias da transparência e da governação. O EFF foi aprovado em Dezembro de 2018, numa altura em que o PEM já estava a ser implementado e, por implicar um acompanhamento internacional das acções do Executivo,

E trouxe know how… Os nossos técnicos, a maioria jovens, tiveram a oportunidade de interagir com especialistas do FMI, de elevada sofisticação técnica e científica, no âmbito do apoio técnico prestado. É um conhecimento que fica connosco e que depois se torna endógeno – e o valor deste ganho é enorme para o futuro do país.

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As reformas também ficam. As reformas implementadas nos últimos quatro anos são as de que muito se falou em discursos no passado, mas que nunca foram concretizadas de modo abnegado e corajoso. São medidas, muitas delas, duras, mas necessárias. Às vezes, quando estamos doentes, é necessário tomarmos alguns medicamentos amargos para ficarmos melhor. Hoje temos as contas internas e externas equilibradas, o mercado cambial a funcionar normalmente, e o mais importante é que o País está a sair de uma longa recessão e a entrar numa trajectória de crescimento económico e de desenvolvimento. As reformas económicas vão continuar, porque temos consciência perfeita de que o que o que fizemos até aqui é uma condição necessária para o crescimento do País, mas não é de modo algum suficiente.

Queremos que Angola tenha um crescimento sustentado e sustentável, e por isso temos de continuar a intensificar esforços para a verdadeira diversificação da economia, com investimentos fortes em sectores que geram emprego, como a agricultura, a agro-indústria, a indústria transformadora, a construção, o turismo, etc. Ou seja, o espírito reformista não mudou. O facto de o EFF ter terminado não significa, de modo algum, que vamos terminar ou refrear as reformas. Temos que continuar - e sabemos muito bem o que temos de fazer. As relações com o FMI vão manter-se e pretendemos que se fortifiquem cada vez mais, sobretudo no âmbito de um Programa de Monitoramento pós-Financiamento. Embora sem metas a cumprir e sem condicionalismos, este Programa implicará a realização de missões do FMI a Angola para monitorizar as políticas macroeconómicas e estruturais, bem como para o acompanhamento dos potencias riscos associados à capacidade de o País honrar os seus compromissos relativos à divida publica. Quais destas reformas deram já frutos? Do ponto de vista fiscal, Angola conseguiu equilibrar as contas. O País apresentou défices orçamentais


E N T R E V I S TA S sucessivos de 2014 a 2017, passando a ter saldos orçamentais positivos de 2018 a 2021, excepto em 2020, devido à pandemia. Entre 2014 e 2016, a diferença entre a taxa de câmbio oficial e a do mercado informal era enorme – atingiu 150% em finais de 2017. Este diferencial diminuiu significativamente, estando hoje abaixo dos 12%, com uma tendência decrescente. Foram eliminadas as distorções que afectavam o mercado cambial, já que o acesso dos agentes económicos a divisas agora é feito sem qualquer restrição administrativa. Foi reduzida a sobrevalorização artificial do kwanza face à cesta de moedas dos nossos parceiros económicos - o hiato da taxa de câmbio real efectiva passou de -71,6%, em 2017, para -2,15%, em Setembro de 2021. Trata-se de um avanço significativo, que tornou mais verdadeiro o poder de compra da nossa moeda em relação às principais moedas internacionais. Há ainda a questão das reservas internacionais… Entre 2014 a 2017, a conta corrente e o saldo global da balança de pagamentos foram sucessivamente negativos, e as Reservas Internacionais Liquidas caíram em cerca de USD 14 mil milhões. De 2018 até ao 3º trimestre de 2021, caíram em apenas USD 1,2 mil milhões. Já o ‘stock’ de dívida publica, passou de 128,7% do PIB, em 2020, para 84,8%, em Setembro de

2021. Refira-se que, em termos reais, isto é, quando medida em dólares norte-americanos e não em kwanzas, a dívida publica passou de USD 78,4 mil milhões, em 2016, para USD 65,7 mil milhões, em Setembro de 2021, uma diminuição muito significativa. Mas a inflação tem subido. A taxa de inflação cresceu vertiginosamente de 7,48%, em 2014, para 41,95%, em 2016. Em 2017, iniciou-se uma trajectória de desaceleração, apenas interrompida em 2020. Estamos a trabalhar para voltarmos a taxas de um só dígito nos próximos anos. Todos estes ganhos foram obtidos em pouco mais de quatro anos, e ainda há um grande percurso a fazer para que tudo isto se reflecta no bem-estar e na qualidade de vida dos angolanos. Mas estamos no bom caminho. Tem sido difícil atrair empresários nacionais para a agricultura e transformação alimentar? Que constrangimentos lhe reportam no terreno? Angola tem atraído empresários para esses sectores. O número não é ainda o ideal, mas já é visível o aumento das indústrias de processamento alimentar. Os constrangimentos reportados estão geralmente associados ao provimento de infra-estruturas de suporte à produção, acesso ao crédito, acesso à terra e excessiva burocracia.

Como têm sido ultrapassados? O Executivo instituiu vários serviços, como a Janela Única do Investidor, o Gabinete de Apoio ao Investidor adstrito à Zona Económica Especial de Luanda, o Tribunal Comercial de Resolução de Insolvências e a Central de Registo de Garantias Mobiliárias, entre outros, no âmbito de programas de fomento da produção nacional que estão em curso, como o Programa de Apoio à Produção, Diversificação das Exportações e Substituição das Importações (PRODESI) e o Plano de Melhoria do Ambiente de Negócios, com vista a atrair cada vez mais investidores, nacionais e estrangeiros. No domínio da melhoria do ambiente de negócios, por exemplo, foi lançada uma nova Lei do Investimento Privado, foi desenvolvida legislação para resolução dos problemas de insolvência das empresas, foi produzida legislação específica no âmbito da prestação de garantias mobiliárias e encontra-se em desenvolvimento a Bolsa de Valores e o mercado de capitais. E o acesso ao crédito? Os empresários, por via do Serviço de Apoio ao Crédito do PRODESI, obtêm suporte para reunir toda a informação para a constituição do dossiê de crédito, e o Instituto Nacional das Pequenas e Médias Empresas (INAPEM) tem desenvolvido diversas iniciativas de capacitação

O PROGRAMA DE FINANCIAMENTO COM O FMI TORNOU O PROCESSO DE R E F O R M A S [ Q U E J Á E S TAVA E M C U R S O A N T E S ] C R E D Í V E L , E E S TA É U M A G R A N D E VA N TAG E M .

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E N T R E V I S TA S

A S R E F O R M A S I M P L E M E N TA D A S N O S Ú LT I M O S Q U AT R O A N O S S ÃO A S D E Q U E M U I T O S E FA LO U E M D I S C U R S O S N O PA S S A D O , MAS QUE NUNCA FORAM CONCRETIZADAS.

dos empresários nacionais em competências e ferramentas essenciais para o sucesso dos seus projectos. A produção agrícola tem registado aumentos significativos, o que tem contribuído para o aumento da oferta de bens alimentares de produção local, e este é um movimento liderado por empresários e investidores nacionais a que se juntam importantes projectos de investimento de grupos de investidores estrangeiros. Temos ainda assistido à migração de empresas do sector do comércio para a produção agrícola, e regista-se um aumento de indústrias de transformação alimentar, com o surgimento de grandes complexos industriais que têm sido capazes de abastecer uma parcela importante do mercado nacional. Como acelerar a captação de parceiros internacionais para esta área, onde Angola tem tanto potencial, mas carece de ‘know how’? Precisamos de mais velocidade e também de mais qualidade no processo de aumento da produção nacional e de diversificação da economia, e entre os vários factores de produção, destaca-se o capital humano, no qual temos de continuar a investir seriamente, não só com cursos de nível universitário, mas principalmente na formação técnico-profissional dos nossos jovens. O investimento estrangeiro 30

que traga sobretudo ‘know how’ pode contribuir em muito para o aumento da velocidade do processo da diversificação da economia do País, por isso, temos de continuar a melhorar o ambiente de negócios, intensificar a diplomacia económica e promover o estabelecimento de parcerias estratégicas empresariais internacionais. A melhoria do ambiente de negócios e o sucesso das políticas económicas na estabilização do quadro macroeconómico, com realce para a estabilidade do mercado cambial, vão contribuir certamente para a afluência do investimento estrangeiro de que necessitamos para a verdadeiro desenvolvimento. O capital flui para onde encontra oportunidades reais e seguras de negócio lucrativo. Angola é uma grande oportunidade. A pandemia atrasou o programa de privatizações (PROPRIV), ou devemos vê-la como uma oportunidade para “vender” melhor alguns activos? É inegável que as incertezas geradas pela pandemia tiveram um impacto negativo nas decisões dos investidores, estrangeiros e nacionais, levando-os a uma postura mais conservadora, refreando o seu apetite em relação a novos investimentos. Mas, mesmo assim, consideramos o desempenho do PROPRIV como satisfatório. Desde o seu lançamento, em 2019, já foram

privatizados 73 activos e empresas – nove em 2019, 29 em 2020 e 35 em 2021 –, num universo de 140, com um impacto na ordem dos 850 mil milhões de kwanzas, cerca de 1,4 mil milhões de euros em contratos assinados. Em 2022, prevemos concluir cerca de 67 processos, o que demonstra o nosso compromisso de reduzir a intervenção do Estado na economia e dar ao sector privado o papel que merece no quadro do desenvolvimento do País. Qual é principal ganho deste processo? Para além dos ganhos financeiros, há a realçar, sobretudo, os económicos. Muitos destes activos foram criados com investimentos do Estado e estavam parados ou mesmo abandonados, nalguns casos. A sua privatização vai pô-los funcionar, a criar empregos e a pagar impostos. A isto chama-se criação de valor acrescentado. Antes, a sua contribuição para a economia era zero. Agora, está acima de zero. Tudo o que está acima do zero, é positivo. O debate em torno dos centros de decisão nacionais surge sempre que se fala na venda de empresas, em especial, públicas. Não o preocupa que marcas emblemáticas acabem na mão de estrangeiros, diluindo a sua angolanidade? A integração de empresas angolanas


E N T R E V I S TA S em grupos regionais ou internacionais pode constituir-se como um factor positivo e um meio de atracção de importante investimento estrangeiro. Se esta integração agregar maior eficiência e competitividade a estas empresas e permitir que os cidadãos tenham acesso a bens e serviços de melhor qualidade e a preços mais reduzidos, será uma vantagem para todos. Angola tem dado passos para promover a concorrência em alguns sectores. Onde vê mais oportunidades para o surgimento de novos ‘players’? Os monopólios não são uma forma eficiente de organização da produção, porque prejudicam o consumidor final com preços não competitivos. Por isso temos uma Lei da Concorrência que visa salvaguardar a sã concorrência entre os agentes económicos e evitar que certas empresas tirem vantagem da sua posição no mercado. Para além disso, no quadro da adesão de Angola à Zona de Comércio Livre da SADC, e posteriormente à Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA), o factor competitividade entre as empresas dos países aderentes será fundamental para determinar a sobrevivência e ganhos dessas empresas. Isso significa que as empresas irão enfrentar a competitividade tanto no sentido interno, como externo, quando pretenderem exportar os seus produtos ou serviços. Queremos revitalizar a base produtiva do País, aumentando a produção nacional, apoiando e promovendo os produtores nacionais numa base de concorrência entre os agentes económicos e não de monopólios e de outras imperfeições de mercado. Num mercado baseado na concorrência, haverá sempre espaço para a entrada de novos ‘players’ em todos os sectores que se revelarem como boas oportunidades de negócio. Falta aos empresários angolanos mais vontade de arriscar? Os nossos empresários, que trabalham perante fortes condições adversas, têm-se revelado como pessoas sem

aversão ao risco e com uma grande vontade de promover a actividade económica, mesmo no contexto actual. Por outro lado, o Executivo tem criado instrumentos financeiros e medidas de política para a mitigação dos riscos associados à implementação de projectos empresariais, com particular destaque para o Fundo Activo de Capital de Risco (FACRA), com vocação para investir em empresas em todas as fases de implementação, assumindo riscos que tipicamente não são assumidos pela banca tradicional, e que também actua na concessão de microcrédito. O que pode um governo fazer para estimular o surgimento de mais empresários e empreendedores? Os nossos empresários são um factor essencial para o sucesso das nossas políticas económicas e sociais. Estamos a construir uma economia de mercado, e o seu motor, repito, é o sector privado e não o Estado. O Estado deve exercer apenas o papel de regulador e coordenador do processo de desenvolvimento. Os verdadeiros criadores de riqueza devem ser os empresários. Não se pode falar de uma economia de mercado sem empresários, sem pessoas empreendedoras, sem pessoas capazes de assumir riscos tendo como base os retornos que esperam obter dos investimentos que fazem. Temos tido uma relação muito estreita com as associações representativas dos empresários angolanos, para fazer as concertações necessárias com vista à definição das melhores políticas para o fomento do empresariado nacional. O nosso principal instrumento de apoio ao empresariado é o Programa de Apoio à Produção, Diversificação das Exportações e Substituição das Importações (PRODESI), que inclui 54 produtos, como açúcar, carne de frango e derivados, carne de porco e derivados, carne seca de vaca, arroz, farinha de trigo, massa esparguete, fuba de milho, leite em pó, sabão azul, tilápia, mel, óleos de soja, de palma, de girassol e de amendoim, cerveja, sumos e refrigerantes, água de mesa e outros. Trata-se de produtos

de amplo consumo popular e que presentemente são produzidos em Angola em quantidades insuficientes para satisfazer o mercado nacional. Com o PRODESI, queremos inverter esta situação. Quando? Para os 54 produtos, vamos definir um prazo a partir do qual teremos de ter produção nacional suficiente e deixar de os importar. Estamos a trabalhar neste sentido com as associações empresariais, numa interacção, a todos os títulos, muito útil e muito encorajadora. Para isso, num dado momento, teremos de proteger a produção nacional. É inevitável? A protecção da produção nacional numa determinada etapa da sua existência é um acto necessário e que tem justificação na teoria económica. Embora existam teses contrárias, o que é certo é que os países que hoje são desenvolvidos, numa determinada fase da sua história, tiveram que defender o seu sistema produtivo. Caso não exista tal protecção, que deverá ser feita em tempo oportuno e com uma duração apropriada, o País não terá jamais um sistema produtivo forte e competitivo. O Presidente da República (PR) admitiu que o emprego é um problema que “tira o sono” ao Governo. Que outros temas “perturbam” o descanso do Ministro de Estado para a Coordenação Económica? O desemprego é um problema económico e social muito sério, porque tira o rendimento das pessoas, fazendo com que percam autonomia nas suas decisões. É um problema que temos de resolver com soluções sólidas. A retoma do crescimento económico vai permitir reduzir os níveis de desemprego hoje prevalecentes e, por esta via, aumentar os rendimentos dos cidadãos nacionais e o seu bem-estar. Costuma dizer-se que não se pode distribuir o que não se tem. Com o crescimento económico, produz-se 31


E N T R E V I S TA S riqueza, aumenta-se a contribuição das empresas ao erário publico, através dos impostos, e o Estado passa a dispor de mais recursos para implementar os seus programas de combate à pobreza e de harmonia social. Com crescimento haverá mais emprego. Exacto, a solução estrutural para o desemprego está na retoma do crescimento económico. O PRODESI, o Programa Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM) e outros programas foram desenhados, exactamente, para permitir que o País entre nova e rapidamente na trajectória do crescimento económico. O crescimento deve ser o nosso foco, mas com um paradigma diferente, sem ser “puxado” pelos investimentos públicos, como aconteceu até à altura em que o País entrou em recessão, em 2016, mas sustentado pelos investimentos do sector privado, que deve ser o motor da economia e o principal criador de empregos. É um dos membros mais experientes do Executivo, com funções de coordenação que implicam um alinhamento permanente com vários colegas e áreas de Governo. Como tem sido a interacção com os ministros e demais governantes e dirigentes mais jovens? Também aprende com eles? A função que exerço é feita no

âmbito dos órgãos auxiliares de apoio ao PR que inclui, além de outros órgãos, tais como a Casa Civil e a Casa de Segurança, um Gabinete do Ministro de Estado para a área Social e um Gabinete do Ministro de Estado para a Coordenação Económica. O gabinete que chefio tem a missão de prestar assistência, assessoria e apoio técnico ao PR em assuntos relacionados com a gestão macroeconómica e ao desenvolvimento do sector produtivo do País. Não há um Ministério da Coordenação Económica: estamos perante um órgão de apoio ao PR e não de um Ministério. Por isso, não há espaço para conflitualidades com qualquer outro departamento ministerial do Executivo. Ao longo dos anos temos falhado na implementação efectiva do que é planeado e programado. Somos capazes de fazer bons programas, mas depois não os executamos plenamente, ou abandonamo-los perante os primeiros obstáculos ou adversidade no percurso. Precisávamos de ser mais focados e disciplinados na execução daquilo que nós próprios programamos. Temos de concentrar as nossas energias, a nossa inteligência e os nossos recursos naquilo que é essencial. É isso que estamos a fazer, sob a liderança do Presidente João Lourenço, e estou certo de que teremos resultados não só

PA R A A L É M D O S G A N H O S FINANCEIROS, NO PROCESSO DE P R I VAT I Z AÇ Õ E S H Á A R E A LÇ A R , SOBRETUDO, OS ECONÓMICOS.

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mais rápidos, como também com menos custos. Neste esforço que todos fazemos para termos uma nova postura de governação, está claro, aprendemos todos uns com os outros. Funcionamos como uma autêntica equipa, cujos pontos fortes devem ser amplificados, e os fracos, corrigidos e eliminados. Não pode haver vedetas. Há apenas jogadores, que são alinhados para a equipa principal e que têm de mostrar em campo o que valem, com valor intrínseco e não com um valor artificial qualquer. Qual é o seu maior sonho para Angola? Que Angola atinja os níveis de eficiência e de competitividade necessários para termos uma economia dinâmica, forte e altamente inovadora, capaz de proporcionar aos angolanos os mais altos padrões de vida, compatíveis com o nível de riqueza gerada pela sociedade. Que vivamos numa sociedade em que que o Estado democrático e de direito esteja cada vez mais consolidado e onde nenhum cidadão se sinta acima da lei. Só numa sociedade com estas características, isto é, num ambiente de competição e inovação, despontam os grandes talentos nos vários domínios da vida. O mundo moderno não vive sem grandes talentos. Esta é a principal implicação do princípio da destruição criativa de Shumpeter. l


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E N T R E V I S TA S

E N T R E V I S TA LUÍSA SALGUEIRO, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS PORTUGUESES (ANMP)

“DEVEMOS ABORDAR A REGIONALIZAÇÃO COMO UM IMPER ATIVO DE DESENVOLVIMENTO!”

L U Í S A S A L G U E I R O F O I A A U TA R C A E S C O L H I D A P A R A L I D E R A R A A S S O C I A Ç Ã O N A C I O N A L D E M U N I C Í P I O S P O R T U G U E S E S ( A N M P ) N O F I N A L D E 2 0 2 1 . A TA M B É M A U TA R C A D E M AT O S I N H O S A S S U M I U Q U E O M A N D AT O S E R Á “ E X T R E M A M E N T E D E S A F I A N T E ” D E V I D O À P A N D E M I A , D E S C E N T R A L I Z A Ç Ã O

DR

E REGIONALIZAÇÃO.

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E N T R E V I S TA S

ANA VAL ADO E JOAQUIM BAPTISTA

Foi a autarca escolhida por António Costa para presidir a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e posteriormente eleita no XXV Congresso da ANMP em Aveiro. É a primeira vez que este cargo é ocupado por uma mulher. Que significado isto tem para si? Fui indicada pelo PS como candidata a presidente da ANMP e sufragada pelos meus pares, integrando uma lista que equilibra as representações políticas nas Câmaras Municipais de todo o país. O Conselho Executivo da ANMP é constituído por 17 presidentes de câmara e estão representados o PS, o PSD, a CDU e autarcas independentes. Presidir a ANMP é, por isso, um exercício permanente de democracia, colocando o interesse das populações dos 308 municípios portugueses em primeiro lugar. Em certa medida, somos a voz de todas estas vozes e temos um mandato institucional de representação indirecta de todos os portugueses. É consciente desta responsabilidade que me sinto honrada pela minha eleição como presidente da ANMP. O facto de ser a primeira mulher tem um significado importante para o exterior, pois vem demonstrar que as mulheres têm todas as condições para aceder a cargos com relevância na sociedade, na política ou nas empresas, assim o desejem. Se esta escolha servir de exemplo e motivação para outras mulheres, fico muito feliz, mas mais feliz ficaria se o facto de eu ser mulher nem sequer fosse um tema a abordar. Quais os principais desafios para este mandato 2021-2025? O primeiro grande desafio é garantir que o processo de descentralização administrativa seja um sucesso. Este é um passo fundamental para o país, para a melhoria dos serviços públicos e para a eficiência do Estado.

A descentralização é uma grande reforma do Estado que vai permitir a Portugal crescimento económico e desenvolvimento social. Todos os outros desafios que temos pela frente, como a operacionalização do PRR e dos fundos do Portugal 2030, estarão necessariamente articulados com a capacidade de desenvolvimento do território que a descentralização permite. Paralelamente, o processo de Regionalização, que deverá avançar nesta legislatura e para o qual a ANMP está a canalizar uma parte significativa do seu trabalho e do seu ‘know how’, nomeadamente em demonstrar à população os ganhos efectivos que este processo trará e desmistificando a ideia de que a Regionalização trará mais encargos financeiros. A divisão do país em regiões administrativas está prevista na Constituição. Em quatro décadas de democracia não foi possível avançar com este processo, mas o país sofreu mudanças muito significativas nestes mais de 40 anos! Temos a geração mais preparada de sempre, temos quadros de excelência, temos massa crítica e criação de pensamento que nos permitem afirmar que este é o momento certo. Um dos dossiês mais importantes que vai assumir é o dos fundos europeus, com destaque para o Portugal 2030 e o Plano de Recuperação e Resiliência. Sendo o prazo de execução destas dotações até 2026, com que celeridade está a ser tratado este tema? O PRR e o Portugal 2030 são uma grande oportunidade para o país. Uma conquista que o governo do PS não se cansou de reclamar a Bruxelas e que, a par da gestão que fizemos da pandemia, será uma das marcas históricas dos governos de António Costa. Penso que estamos em condições, graças à estabilidade política

que resultou das últimas eleições, de conseguirmos uma operacionalização de sucesso destes recursos. O impacto estruturante de muitos dos projectos já conhecidos, o efeito de alavancagem para a actividade económica, para as empresas, para a criação de emprego com salários dignos é fundamental para que o país continue a convergir, agora de forma mais acelerada, com a Europa, pelo que considero que deve ser dada prioridade máxima a este tema. Quais as principais áreas que vão usufruir destes fundos e como vão ser distribuídos? As transformações climática e digital carecem de abordagens que serão respondidas por estes fundos. A mobilidade, em particular a dinamização do transporte público e do transporte ferroviário, a habitação, o reforço da economia do conhecimento, do músculo de investigação e desenvolvimento das universidades e das empresas… praticamente todas as áreas estruturantes de um país moderno serão beneficiadas pela conjugação do PRR e do Portugal 2030. E, claro, a coesão territorial, a diminuição das assimetrias regionais também será uma das áreas que pode ser respondida com maior eficácia. Considera-se uma regionalista convicta. Acha que o país está preparado para a regionalização? A questão é: será que podemos continuar a negar as evidências da correlação entre regionalização e desenvolvimento económico e progresso social? Devemos teimar num “orgulhosamente sós”, perante a realidade dos nossos parceiros europeus regionalizados? Devemos abordar a regionalização como um imperativo de desenvolvimento! Não se trata de um capricho político… a regionalização é um mecanismo 35


E N T R E V I S TA S testado pelo mundo fora e que tem resultados positivos evidentes. A divisão do país em regiões administrativas está prevista na Constituição. Em quatro décadas de democracia não foi possível avançar com este processo, mas o país sofreu mudanças muito significativas nestes mais de 40 anos! Temos a geração mais preparada de sempre, temos quadros de excelência, temos massa crítica e criação de pensamento que nos permitem afirmar que este é o momento certo. O país não pode continuar submetido a um centralismo castrador, impeditivo de desenvolvimento e que tem acentuado a assimetria entre as várias regiões. Compete a todos trabalhar no sentido de reunir o apoio dos portugueses para a concretização desta reforma decisiva para o nosso futuro colectivo. Como poderá ser o processo de regionalização em Portugal? Quais as principais vantagens? Penso que a descentralização terá um papel pedagógico muito importante na sensibilização das pessoas para a regionalização. Gerir localmente o Estado é tornar as instituições e serviços públicos mais relevantes para a vida das pessoas, das empresas, de todos os agentes presentes em cada território. As vantagens para Portugal serão as mesmas que se verificam nos países regionalizados: melhor eficiência dos serviços públicos, capacidade de desenvolvimento de estratégias regionais adaptadas às especificidades de cada território,

redução de custos, proximidade e participação dos cidadãos com os órgãos de gestão administrativa e política. Sobretudo a regionalização é o mecanismo de combate mais eficaz contra as assimetrias territoriais, permitindo que o país se desenvolva como um todo e garantindo oportunidades a todas as pessoas, independentemente do local onde se encontram. Tudo isto sem aumentar a despesa e sem aumentar o número de lugares políticos. O processo de descentralização de competências do Estado central para os municípios, outro dos dossiês que tem a cargo, e a forma como os municípios estão a gerir esta pasta, poderá ser crucial para conquistar a população para o tema da regionalização? Como já referi, a descentralização tem esse papel pedagógico de levar as pessoas a perceberem a vantagem de estarem mais próximas dos níveis de decisão. Isto está a acontecer na educação, na saúde, na acção social e em muitas outras áreas. É evidente que é mais fácil uma associação de pais, um director de escola ou do centro de saúde chegarem à fala com um vereador ou com o presidente de câmara do que com um secretário de Estado ou um ministro… A regionalização permitirá que novos níveis de decisão se aproximem das pessoas e esse acesso facilitado tem a vantagem evidente de nos permitir concentrar esforços nas soluções e não nas deslocações a Lisboa.

Educação, Acção Social e Saúde são as três componentes essenciais na descentralização. Os municípios estão preparados para assumir a execução destas competências já a partir de 1 de Abril? Os municípios querem muito assumir estas áreas. Há algumas dificuldades, naturais num processo desta dimensão, que estamos a resolver e vamos continuar a resolver. Na acção social foi estabelecido um alargamento do prazo de aceitação de competências, que alguns municípios irão utilizar. No geral, podemos dizer que os municípios estão empenhados e a trabalhar para que tudo corra bem e que a ANMP está a acompanhar atentamente o processo e fará as diligências junto do governo e da administração central necessárias para que a descentralização seja um sucesso. O seu antecessor e ex-presidente da Câmara de Coimbra, Manuel Machado, anunciou o ano passado que tinha sido estabelecido um acordo com o Governo para a capacitação e formação de 8.500 agentes autárquicos, no âmbito do processo de descentralização de competências para os municípios. Como está a decorrer este processo e quanto o Estado investiu? Esta é uma conquista muito importante. Como é evidente a qualificação dos trabalhadores das autarquias é feita, em primeira instância, pelos próprios municípios, em articulação, em muitos casos,

O PRIMEIRO GRANDE DESAFIO É GARANTIR QUE O PROCESSO DE D E S C E N T R A L I Z AÇ ÃO A D M I N I S T R AT I VA S E J A U M S U C E S S O . E S T E É U M PA S S O F U N D A M E N TA L PA R A O PA Í S , PA R A A M E L H O R I A D O S S E RV I Ç O S P Ú B L I C O S E PA R A A E F I C I Ê N C I A D O E S TA D O .

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E N T R E V I S TA S

O P R R E O P O RT U G A L 2 0 3 0 S ÃO U M A G R A N D E O P O RT U N I D A D E PA R A O PA Í S . U M A C O N Q U I S TA Q U E O G OV E R N O D O P S N ÃO S E C A N S O U D E R E C L A M A R A B R U X E L A S E Q U E , A PA R D A G E S TÃO Q U E F I Z E M O S D A PA N D E M I A , S E R Á U M A D A S M A R C A S H I S T Ó R I C A S D O S G OV E R N O S D E A N T Ó N I O C O S TA .

com a Fundação para os Estudos e Formação das Autarquias Locais (FEFAL). Através da FEFAL a ANMP tem um papel muito proativo na qualificação dos funcionários das autarquias, com impacto directo na modernização e eficiência permanente dos serviços. A descentralização apresenta também este desafio de qualificação em novas áreas e a FEFAL está a pugnar para que este pilar do processo seja bem-sucedido. O investimento no Centro Qualifica, no valor de 4,5 milhões de euros, é uma demonstração da importância que a formação e qualificação dos funcionários das autarquias tem para nós, autarcas e dirigentes da ANMP. Como avalia a gestão da pandemia por parte dos municípios? Poderá esta ter sido uma prova de demonstração da importância do poder local junto da população? As autarquias estiveram, verdadeiramente, na linha da frente, apoiando as populações, o SNS, o programa de vacinação, as empresas, as IPSS, etc. Foi uma demonstração de capacidade, de empenho e de eficácia. As pessoas sentiram que o poder local é mesmo um aliado das comunidades, um agente fundamental na sua protecção e defesa. E que o poder local é capaz de trabalhar de forma articulada com todos, desde a administração central até ao idoso isolado que precisou de ajuda. Acho mesmo que a pandemia deixou clara a necessidade e a utilidade desta proximidade e

Quais foram as principais conclusões e reivindicações dos eleitos locais no Congresso da ANMP em Dezembro passado? A consolidação do processo de descentralização, acompanhado do envelope financeiro adequado. Portugal está muito aquém dos seus parceiros europeus neste aspecto e é necessário aperfeiçoar a lei de financiamento local para que acompanhe a descentralização. E foi deixado claro que os autarcas portugueses defendem convictamente a regionalização, no que foram, de resto, acompanhados pelo senhor Primeiro-ministro e pelo Senhor Presidente da República.

Mas, também, na criação de novas estruturas geradores de emprego e de desenvolvimento económico. O valor do FTJ é de 70 milhões de euros, manifestamente insuficiente para compensar cabalmente a nossa comunidade, mas é um primeiro passo no trabalho que vamos fazer para que desta crise surjam novas oportunidades e, a curto e médio prazo, Matosinhos recupere destes impactos e possa desenvolver-se ainda mais. Matosinhos suportou durante 60 anos a proximidade a este equipamento, com o passivo ambiental associado. E são estas três componentes – compensação ambiental por seis décadas e económica e social imediatas – que deverão ser ressarcidas junto da nossa comunidade.

Sendo também presidente da Câmara de Matosinhos é inevitável falar sobre a refinaria da Galp. O concelho está a ser beneficiado pelo Fundo para a Transição Justa? Qual o valor destinado e onde vai ser aplicado? Matosinhos é o epicentro do impacto económico e social do encerramento da refinaria da Galp. A nosso pedido, a Universidade do Porto fez um estudo que demonstrou a intensidade destes impactos. O FTJ, mecanismo europeu criado muito recentemente, será aplicado na mitigação destes impactos, a começar na protecção aos trabalhadores directa e indirectamente atingidos, às micro e pequenas empresas afectadas, pela sua dependência da refinaria.

E relativamente aos terrenos, o que está previsto e para quando? Os terrenos, sendo propriedade não municipal, estão sujeitos ao PDM em vigor e deixamos desde a primeira hora bem claro que nada poderá ser feito que não esteja em concordância com o PDM. Ou seja, vemos com bons olhos que sejam utilizados para a criação de novas empresas, de projectos de inovação com grande capacidade de alavancar todo o tecido empresarial e universitário da região e do país. Temos dialogado com a Galp, com a CCDRN, com o governo e esperamos que em breve a Galp nos apresente uma proposta que vá ao encontro do interesse da região e do país. l

é um argumento forte a favor da descentralização e da regionalização.

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E N T R E V I S TA S

“A S E N H O R A T E M U M B O T E ( D G S ) O N D E AT E R R A M AV I Õ E S ! ”

NÃO SE REVÊ NA IDADE QUE TEM, COLECIONA ALFINETES DE PEITO (PREGADEIR AS) E GOSTOU DE SE V E R A D A N Ç A R C O M J O H N T R A V O LT A . G O U V E I A E M E L O É A L M I R A N T E , M A S G R A Ç A F R E I TA S C O M A N DA U M “ B O T E ” T R A N S F O R M A D O E M P O R T A - AV I Õ E S . É U M A F A L S A F R Á G I L E R I - S E A C A D A R E S P O S T A Q U E D Á . É A D I R E T O R A G E R A L D A S A Ú D E C O M O , TA LV E Z , N U N C A S E T E N H A D E I X A D O L E R . P E L A P R I M E I R A V E Z C O N F E S S A Q U E C H O R O U – NO CHUVEIRO, PORQUE É ONDE SE CHORA MELHOR.

De uma avó, encontramos sabedoria no olhar, generosidade no sorriso e proteção nos abraços. Sente que se tornou na “avozinha” de Portugal? Gosto e não gosto do que me perguntou. Quando a pandemia começou, tinha uma atitude próxima da minha família e dos amigos, mas não dos portugueses em geral. Vivia na retaguarda e aparecia de vez em quando. Por outro lado, também não tinha muito a noção do meu próprio envelhecimento. Nessa altura só me via mesmo avó das minhas netas (da parte do marido). Não me via no papel de avó, nem de avó de muita gente. Com a exposição da pandemia comecei a perceber que chegava a muito mais gente e que interagiam comigo. Comecei na altura, não por ser a avó, mas a Diretora Geral da Saúde e, talvez, a tia. Prefere ser chamada “tia”? No final das conferências de imprensa, amigos e até jornalistas, mandavam-me mensagens a dizer que os filhos, sobrinhos e primos 38

LUÍS CASTRO

achavam que a “tia Graça” era uma velhota simpática. A primeira vez que recebi uma ‘sms’ assim nem sei se fiquei contente ou aborrecida, pois tinha lá a palavra “velhota”. Depois fui percebendo. Ainda não me habituei muito a esse papel, pois obriga-me a ver num papel mais velho em que ainda não me sinto. Acho que não envelheci assim tanto durante a pandemia, mas, na verdade, quando vou ao mercado, em Alvalade, sinto que as pessoas me tratam assim, como uma avó, mas uma avó, que é a Diretora Geral da Saúde, que desempenha o seu papel profissional com competência e dedicação. Não a vemos como “avó” pela idade, mas pelo sorriso com que nos olha e pela serenidade com que nos fala… (ri-se) Se é assim, então gosto de me

ver nesse papel. Vou contar-lhe: eu saio pouco e quando vou ao mercado parece que vou à Austrália. E é engraçado o que me está a dizer, porque quando era abordada na rua, comecei por ser a “Diretora Geral”, depois passei a ser a “Dra. Graça Freitas” e neste momento sou a “Dra. Graça” – a minha aspiração é chegar a ser só a “Graça”. Tornei-me isso que está a dizer, alguém quase da casa e da família. Gosto de ser chamada assim, pois tem um significado. Dra. Graça… (rimo-nos os dois) Estamos a caminho do Luís me tratar só por Graça. (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


GRAÇA FREITAS,

FOTOS: FERNANDO PIÇARRA

DIRETORA GERAL DA SAÚDE

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E N T R E V I S TA S

S E N T I N E C E S S I DA D E D E E S TA B E L E C E R U M A C O M U N I C A Ç Ã O E M PÁT I C A . QUANDO COMEÇOU A PA N D E M I A , S A B I A O Q U E E R A T E R M E D O E E S TA R C O N F I N A DA .

Todos os dias carregamos os três “P”. Qual foi a Graça Freitas que nos entrou em casa quase todos os dias: a “Pessoa” (herdada pela genética); a “Personalidade” (construída durante a vida) ou a “Personagem” (com as máscaras que usamos em cada situação)? Nunca pensei nisso que me está a perguntar… Olhe, a “Personagem” não foi, isso lhe garanto. Por vezes até tenho pouco cuidado e sou demasiado transparente. Não me está na genética. Fui uma mistura da “Graça-Pessoa” com “Graça-Personalidade”. Há uma característica que acho que tenho: ser empática – pôr-me do lado do outro, porque eu sou o outro. Também já tive situações limite de saúde, de medo e de incertezas, até a nível pessoal. Nesses momentos foi bom ter alguém a meu lado que partilhou comigo esses sentimentos e me deu conforto e esperança. Foi espontânea? Sim. Senti necessidade de estabelecer uma comunicação empática. Quando começou a pandemia, sabia o que era ter medo e estar confinada. Ao longo da vida, li muitas coisas sobre a gripe espanhola e preocupei-me em ler os relatos das pessoas que passaram pela doença. Era um sentimento de impotência e de medo, sem saber quem era o familiar, vizinho ou soldado que vinha das trincheiras da guerra que lhes traria o vírus. 40

A certa altura disse que ainda não tinha chorado, mas que quando chorasse, iria chorar o dia todo. Já chorou? Sim, já chorei. Chorei uma vez. Chorou o dia todo? Não chorei o dia todo, mas chorei um bom bocado. E é engraçado que foi de uma forma absolutamente inesperada. Não foi num dia dramático, pela pandemia ou pelos acontecimentos, foi um dia em que parece que baixei um bocadinho a guarda. Chorou na DGS ou em casa? Chorei no chuveiro. Acho que é o sítio onde se chora melhor. (ri-se) No chuveiro?! Porque a água leva as lágrimas. Lembro-me sempre do “Blade Runner”, que é o filme da minha vida. As lágrimas na chuva aliviam-nos, mas para os outros são lágrimas perdidas. E pensei, se é para chorar, então vou para o chuveiro que é onde não se vê nem se ouve. Foi um choro que me deu um grande alívio. Não foi causa-efeito. Foi mesmo uma necessidade. E fez-me bem. Sentiu-se em alguns momentos injustiçada? Muito poucas vezes. Nunca senti uma ameaça física em que alguém fosse agressivo fisicamente, mas ouvi coisas desagradáveis.

Os portugueses têm-na tratado bem? De uma forma geral, sim. As pessoas são calorosas, simpáticas e pouco intrusivas. Injustiçada, talvez. Houve coisas que eu disse, no início da pandemia, com o pouco que sabia e que a OMS (Organização Mundial de Saúde) dizia na altura. Depois, tiradas do tempo e do contexto, lá voltavam à superfície. Uns gostam de nós, outros não; uns repetem essas frases, outros dizem coisas boas; para uns sou uma boa profissional, para outros sou uma “chata” da DGS. (ri-se) Paciência, é a vida. SIS colocou-a sob proteção da PSP durante um ano… Foi um acontecimento absolutamente extraordinário na minha vida. Quando me deram a notícia, foi das poucas vezes em que não tive uma palavra para dizer – o que não é nada comum em mim. Fiquei tão surpreendida que não consegui dizer nada nem perguntar o porquê. Ainda hoje não sei exatamente porquê. Passou a ter pessoas na sua vida que não conhecia? Sim, mas eles são extraordinariamente profissionais e desempenham a sua ação de forma tão incrível que em muito pouco tempo passam a fazer parte de nós e torna-se normal. E isso não se deve ao protegido, mas sim ao protetor. Estão presentes, mas tornam-se invisíveis.


E N T R E V I S TA S Exigente e próxima, com uma capacidade de trabalho incrível e uma frescura de mente que perdura ao longo de muitas horas de trabalho. Trabalhar com Graça Freitas é uma experiência única, pela aprendizagem constante e enorme experiência em Saúde Pública, mas também pela amizade, pelo incentivo permanente a quem trabalha com ela e pelo apoio em momentos difíceis. É uma comunicadora nata, sensível aos temas da comunicação, como poucos, com a preocupação de ser clara e transparente. Graça Freitas tem a arte de saber traduzir o complexo em analogias simples e momentos do dia-a-dia, traduzindo o impercetível em linguagem comum. Sempre com um enorme sentido de humor e histórias de vida que vão perfumando os nossos dias de trabalho, que surgem como uma dose de reforço de energia redobrada. Miguel Arriaga Chefe de Divisão de Literacia, Saúde e Bem-Estar da DGS Diana Mendes Chefe de Divisão de Comunicação e Relações Públicas da DGS

Quanto tempo? Mais de um ano. Vou confessar-lhe, nunca o disse, jamais pensei ver-me nessa situação. Disseram-me: “Não saia de casa sozinha. A pessoa que nesse dia estiver consigo, sobe e toca à campainha para saírem juntos”. Tenho um apartamento em que o ‘hall’ do meu piso é só meu e a minha grande preocupação era se me atrasasse uns minutos, que essa pessoa ficasse bem instalada. Então, fui buscar uma cadeira à cave, pus no ‘hall’ e disse para o meu marido: “Pelo menos esperam sentados”. A verdade é que já não tenho segurança há vários meses, mas a cadeira ainda lá está. Nunca foi usada, porque os senhores agentes quando saiam do elevador ficavam à espera uns segundos, de pé, naturalmente. Agora, todos os dias penso que tenho de levar a cadeira para a cave porque é bizarro sair do elevador e ter uma cadeira à porta. Disse sempre tudo o que sabia? Pergunta difícil. (pausa para pensar) Disse o que sabia à data. Considero que não escondi nada. Posso ter dito da forma menos alarmista possível. Acho que tive cuidado com os factos conhecidos à data. A forma como lia ou tinha conhecimento desses factos

era dramática e, por vezes, alarmista. Tentei dizer o que sabia sempre com verdade, com clareza, da forma mais positiva e sem transmitir medo, pânico ou ansiedade. Posso resumir que nos transmitiu segurança sem nos dar demasiada segurança para que não relaxássemos demasiado? Sim, foi exatamente isso que tentei fazer. Admitiu demitir-se? Não. Não no sentido de um ato com consequência. Claro que houve dias de grande pressão e stresse. Houve dias de desespero em que à noite, quando me ia deitar, pensava demitir-me, que não aguentava. Mas, eram pensamentos fugazes que no dia seguinte já não estavam lá. Eram um desabafo que me saía da alma. Quantas vezes já pensámos em ir embora, para outro país, e depois ficámos cá, na mesma casa, no mesmo bairro e no mesmo país? Quando se fala na DGS, imaginamos um edifício enorme, cheio de funcionários, departamentos e especialistas. Quantas pessoas trabalham na DGS?

Somos muito poucos. Tenho que revelar uma coisa que nunca disse publicamente – quando acordo penso nisso – tenho um sentido de gratidão extrema pelos cento e poucos funcionários que somos e que aguentámos esta pandemia. Pessoas que trabalharam de dia, de noite, sábados, domingos e a qualquer hora; que aguentaram os nossos bons e maus humores. Algumas estavam noutras funções mais confortáveis e disseram que enquanto durasse a pandemia estariam aqui para trabalhar. Cento e poucos? Sim. Somos, mesmo, muito poucos. Mas os que cá estão são muito dedicados ao bem-servir e, juntos, conseguimos o milagre de criar redes de colaboradores – alguns já são mais do que colaboradores, são amigos. Alguns nunca vi presencialmente. Não os vi, mas sei que existem, pois conheço-lhes os nomes e vejo o trabalho que fazem. Somos um núcleo relativamente pequeno, mas que foi criando raízes e uma rede capilar. Os portugueses desconhecem essa realidade… Pois. Na verdade, somos muito poucos 41


E N T R E V I S TA S e tínhamos condições de trabalho muito más. No início da pandemia, quando começámos a produzir os números para os portugueses, havia colegas médicos que faziam turnos de madrugada porque era necessário validar a informação que os computadores nos davam. Até à Conferência de imprensa, os dados que chegavam de todo o país tinham que ser validados por seres humanos. Pessoas que iam dormindo e acordando para que de manhã os números fossem anunciados com o maior rigor possível. A DGS era um barco a remos que de um momento para o outro teve que se transformar num porta-aviões, com várias pistas de descolagem e aterragem… Foi exatamente isso. A melhor definição foi-me dada há uns meses por um governante: “A senhora tem um bote e nesse bote aterram aviões”. Mas já é um bote avançado (ri-se) e nós fomos construindo em cima do bote. Parecemos os descobridores, África abaixo, para dobrar o Cabo das Tormentas. Sei, por experiência própria, que um médico e um militar nem sempre têm o mesmo objetivo. Como conviveu a médica Graça Freitas com o militar Gouveia e Melo? Acho que estabelecemos um diálogo

que, não sendo muito intenso em quantidade, foi rico em qualidade. Ficou claro, desde o início, qual era o pensamento dos dois – um militar e outro médico. O médico lida muito com a incerteza, o mundo não é nem preto nem branco. Temos mais dilemas do que inevitabilidades e essa era uma das frases que o senhor Vice-Almirante dizia muitas vezes: “Mas não pode transformar esse dilema numa inevitabilidade?”, ou seja, num caminho único. Eu respondia que não. Gostava, mas não conseguia. Houve respeito mútuo pelos papéis que cada um tinha que desempenhar, pelas diferenças de personalidades e pela formação de cada um. Como se articulou com os diretores dos Hospitais, eles que se dizem totalmente autónomos? Essa é outra das reflexões que, quando a pandemia acabar, terá de ser feita – se houver tempo e se quisermos aprender lições com estes momentos. Afinal, qual é o melhor modelo de funcionamento: se o centralizado, mais normativo e mais dirigista, em que os capilares do sistema são os hospitais, os centros de saúde com as equipas de saúde familiar e as e as equipas de saúde pública, ou se um modelo mais misto, em que há orientações e normas de boas práticas genéricas em que os serviços se vão organizando e adaptando.

Qual prefere? O meu próprio pensamento foi evoluindo ao longo da pandemia. Inicialmente estava mais formatada para um modelo mais centralizador. Com o tempo fui, também, aprendendo que na maior parte das vezes as adaptações que foram fazendo aos normativos e às boas práticas tinham a ver com as circunstâncias de cada instituição e que isso era normal. Acontece que, como em todos os processos, há sempre imperfeições. Nem sempre os normativos foram claros, precisos e adequados, nem o grau de autonomia foi sempre bem exercido. Como reagiu quando ouviu Donald Trump sugerir que os infetados por Covid-19 fossem irradiados por dentro com uma luz ultravioleta ou que os cientistas investigassem os benefícios de os injetar com lixívia e outros desinfetantes? Não acreditava que um presidente dos EUA pudesse dizer aquilo. No momento fui incapaz de levar aquela afirmação a sério, mas depois percebi que se tornou sério porque rapidamente se espalhou por todo o mundo e teve seguidores e impacto na vida de muita gente. Viu Herman José a imitá-la? Não vi tudo. Vi um bocadinho. Mandaram-me pelo telefone.

TENTEI DIZER O QUE SABIA S E M P R E C O M V E R DA D E , C O M C L A R E Z A , DA F O R M A M A I S P O S I T I VA E S E M T R A N S M I T I R M E D O , PÂ N I C O O U A N S I E DA D E .

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E N T R E V I S TA S

D U R A N T E A PA N D E M I A , HOUVE PESSOAS QUE FIZER AM PREGADEIRAS DE LÃ, COM BOTÕES OU EM AR AME, METERAM-NAS EM ENVELOPES E M A N DA R A M PA R A A D G S .

Infelizmente, falta-me tempo para ver Televisão. E gostou? Olhe, nem gostei nem desgostei, para lhe ser sincera. Achei piada “q.b.” mas não foi um deslumbramento. Achei mais piada a uma caricatura, fabulosa, em que o Vice-Almirante estava vestido de John Travolta e eu de Olívia Newton John. Dançávamos os dois como o John Travolta dançou com ela. Não sei quem foi, mas ainda a tenho no meu telemóvel. Um dia mando fazer uma moldura. Imagine o Vice-Almirante vestido de branco, aqui cortei umas palavras eu muito mais pequena do que ele, com um vestido vermelho e muito magra. Ri-me imenso. Havia muita imaginação e estava muito bem feito. Era um par improvável. Tem uma coleção de alfinetes de peito? Tenho. Muito grande. Dezenas. Comecei a colecionar com poucos meses de idade, com a pregadeira que a minha madrinha me deu. Era muito bonita e em ouro. A minha mãe enfeitava-me a roupa com aquela pregadeira. Depois fui comprando ao longo da vida. Por vezes uso, outras vezes não. Durante a pandemia, houve pessoas que fizeram pregadeiras de lã, com botões ou em

arame, meteram-nas em envelopes e mandaram para a DGS. Tenho de lhes agradecer. Uma, muito bela, foi feita pela minha mais próxima assistente, a Ana Meireles. E usa-as? Sim, uso! Nasceu no Huambo, em Angola… Sim, no Huambo. Na altura chamava-se Nova Lisboa. Nunca pediu a nacionalidade angolana? Nascer em África foi um privilégio e gostei muito de ter vivido em Angola. Pela liberdade, porque foi lá que fui pela primeira vez para a escola e que andei à pancada, que dei e levei – levei mais do que dei –, mas quando vim embora para Lisboa emergiu aquilo que sempre fui. Tenho uma matriz europeia. Voltou ao Huambo? Não, não voltei. Porque no Huambo, já depois da independência, morreu a minha melhor amiga. Foi brutalmente assassinada. Tinha 18 anos, aconteceu na noite de Natal de 1975. Todos os anos magníficos que tive naquela cidade ficaram ensombrados pela morte da Paula. Não quero lá voltar. Decidiu não ser mãe?

Decidi mesmo. Foi uma decisão pensada. Nunca tive o que se chama de vocação para a maternidade. Sou muito maternal e gosto de crianças, mas nunca senti essa vontade. Curiosamente, já com uma idade mais avançada, refleti e pensei que se tivesse apoio e ajuda, talvez conseguisse ter um filho. Decidi testar a teoria com a minha mãe e perguntei-lhe: “Se eu tiver um bebé, ajudavas-me a tratar dele? Podia vir cá, trazê-lo a casa e davas-me apoio como avó.” A minha mãe já tinha ajudado o meu irmão e aminha cunhada com os filhos deles, mas desarmou-me quando me disse: “Ó filha, tu tens uma vida tão boa e tão livre e agora queres ter filhos?” (Ri-se). E desistiu… Sim, cheguei a casa e disse ao meu marido: “Olha nem a minha mãe está a favor da ideia. Por isso, desisto”. Foi a única vez que pensei ser mãe. Sabia que precisava de ajuda, precisava de uma avó. Terminámos a entrevista por onde havíamos começado, pelo papel das avós. Graça Freitas saiu, apressada, para mais uma reunião e despediu-se com outra gargalhada: “Você tem um sorriso como o meu”. l 43


E N T R E V I S TA S

“ V O LT O PA R A C O N S O L I DA R U M A E S T R AT É G I A N A ÁREA SOCIAL DEFINIDA P E LO G OV ER NO R EG IO N A L ” A O S 5 5 A N O S R I TA A N D R A D E V O LTA A O G O V E R N O R E G I O N A L DA

MADEIRA,

COMO

S E C R E TÁ R I A

REGIONAL

DA

INCLUSÃO

S O C I A L E C I DA DA N I A PA R A T E R M I N A R O S E U 2 º M A N DATO , COM NOVOS DESAFIOS E COM UM CONHECIMENTO DE CAUSA M A I S P R O F U N D O , P R AG M ÁT I C O E C O M M A I O R C A PAC I DA D E I N T E R V E N T I VA PA R A M A I S R A P I DA M E N T E A G I R E AT I N G I R O S O B J E C T I V O S A Q U E O G O V E R N O R E G I O N A L S E P R O P Õ E PA R A A ÁREA SOCIAL.

Já foi Secretária Regional, precisamente nesta Secretaria. O que a fez aceitar o convite para regressar? JOAQUIM BAPTISTA

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Tratava-se sobretudo de dar continuidade a um projecto apaixonante e inacabado. Senti-me naturalmente muito honrada, e não podia deixar de aceitar o convite. Claro que agora numa fase diferente, com um sentido de responsabilidade acrescido. Volto para consolidar uma estratégia na área social definida pelo Governo Regional e em que me é dada a oportunidade e a responsabilidade de dar o devido seguimento. De resto, muitas dessas áreas são efectivamente de continuidade em relação ao trabalho que iniciei no meu primeiro mandato, e não é por acaso que isso acontece.

Felizmente, conheço bem esta área social e sinto que alguns projectos têm de que ter esse alinhamento, e agora surge essa oportunidade, de retomá-los, num contexto de recuperação pós-pandemia. Com matérias difíceis, onde as soluções passam muitas vezes por medidas estruturais que demoram o seu tempo a consolidar e a produzir resultados. E basicamente é isso a que me proponho. Com lealdade, seriedade e humildade, que são valores que sempre pautaram a minha actuação. Ainda mais com uma equipa de Excelência, que tenho o privilégio de ter ao meu lado e que me tem acompanhado de forma incondicional. É um sinal de confiança política, este regresso?


E N T R E V I S TA S E N T R E V I S TA RITA ANDRADE, SECRETÁRIA REGIONAL DE INCLUSÃO SOCIAL E CIDADANIA

Claro que sim, não faço outra leitura. Confiança aliada à experiência e ao conhecimento de uma Secretaria Regional que lida com questões delicadas e muito difíceis… ainda mais num contexto marcadamente agravado pela pandemia. Mas como costumo dizer, não estamos aqui para as coisas fáceis. Temos muito trabalho, já arregaçámos as mangas e vamos em frente. Sem receios, com a convicção que temos muitos problemas para resolver, e tudo faremos para os solucionar. E que só num trabalho em rede com todas as entidades envolvidas e com parcerias de sucesso é que chegamos mais longe e podemos efectivamente ajudar a nossa população mais carenciada, para que aspirem a um amanhã diferente. É essa a nossa missão, é essa a nossa maior aspiração.

Esteve ligada durante muito tempo ao sector privado. Trata-se de uma mais-valia para as funções que desempenha actualmente? Sem dúvida que sim. Estou há 6 anos em funções no sector público. Destes, em 3 entidades de relevância estratégica para o Governo Regional. Para além de Secretária Regional, fui Presidente do Instituto de Emprego, e Presidente do Instituto de Administração da Saúde. E reconheço que a eficiência e as boas práticas que adquirimos no sector privado são grandes mais-valias para o sector público. Ainda mais importante são as pessoas e saber reconhecê-las como o maior capital que temos. Motivá-las. Estimulálas. Conseguir que colaborem com a gestão de topo e sintam a cada momento a “camisola vestida”. E se essa é uma prática habitual

no sector privado, ou na maioria, temos muito que evoluir a este nível no sector público. E esse é um desafio constante a que me proponho junto das minhas equipas. Tenho tido o privilégio de liderar muitas pessoas e gosto de deixar uma marca positiva no estilo de gestão e liderança adoptado, que passa muito por ter um pilar sólido, não só nas áreas técnicas, mas sobretudo junto das pessoas, que são efectivamente o maior capital das organizações. Sinto que é esse o segredo, e é tão fácil! E saber, assim, que a cada momento contamos com todos, e isso é fundamental para trabalhar e atingir resultados. E dar o exemplo a cada momento, para também se poder exigir. Criando dinâmicas positivas, não obstante o nível de exigência imposto a cada momento. 45


E N T R E V I S TA S

POSSO REFERIR QUE A MADEIRA F O I A R E G I ÃO C O M M A I O R D E S C I DA D O D E S E M P R E G O R E G I S TA D O NO MÊS DE DEZEMBRO DE 2021, D E S TAC A N D O - S E L A R G A M E N T E D A S R E S TA N T E S R E G I Õ E S D O PA Í S .

Volta com novos objectivos seguramente, num ano desafiante devido à actual conjuntura pandémica. Quais serão os maiores desafios para 2022-2023? Um dos grandes desafios será, com certeza, cumprir os objectivos que constam no Programa do Governo Regional, encontrando as melhores soluções, que nos permitam chegar a todos aqueles que mais precisam, gerindo os recursos humanos e financeiros que temos ao nosso dispor. Não dispomos de recursos infinitos, ou sequer ideais. Isso infelizmente não existe em qualquer país ou sociedade, ou em qualquer Governo. Pelo que a responsabilidade de realizar uma boa gestão, não só tem de se verificar, como é uma exigência absolutamente imperativa para atingir os compromissos e os resultados esperados. Estamos num cenário de retoma pós pandemia, numa conjuntura que se altera a todo o momento e nos faz reequacionar, de forma quase diária, os programas e as respostas sociais mais adequadas. Por isso mesmo, acabámos de criar um novo programa de apoio à garantia da estabilidade social, que irá apoiar famílias em situação de maior vulnerabilidade e um programa que 46

visa a fixação de jovens nas zonas rurais. Para combater assimetrias demográficas e geográficas. Daremos continuidade ao Complemento Regional para Idosos, medida recentemente implementada na região e que vai muito além da atribuição dos valores praticados pela Segurança Social aos nossos idosos com mais baixas reformas e pensões. E continuaremos a atribuir um complemento de vencimento às ajudantes domiciliárias, valor este também extra em relação ao que é pago no todo continental. No que diz respeito às verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), temos também grandes desafios: 83 milhões de euros, destinados à construção e remodelação de camas em Lares e a respostas para a população em situação de sem abrigo, que têm de começar imediatamente a ser executados. Adicionalmente, são 54 milhões de euros para a Rede de Cuidados Continuados Integrados. Tem sob a sua tutela pastas consideradas historicamente difíceis, tais como: emprego, trabalho, segurança social e, agora, o tema da longevidade e cuidados continuados integrados? Tem uma equipa sólida que a ajude a gerir todos estes dossiês que tanto dizem às

populações? Tal como refere, são áreas cruciais da Governação que estão sob a minha tutela. O nosso papel é assegurar que são adotadas as soluções convenientes e oportunas para a prossecução do interesse público, zelando pelo estreito cumprimento da legislação em vigor. É reconhecida a competência técnica dos nossos dirigentes e responsáveis por estas áreas, tal como todo o esforço que a nossa Secretaria coloca no trabalho colaborativo, transversal e multissectorial. No que diz respeito à longevidade, de facto o aumento da esperança de vida conjugado com a diminuição da natalidade, trouxe uma nova realidade demográfica e uma profunda transformação social, colocando um enorme desafio à governação. Em 2050, estima-se que 1 em cada 2 portugueses tenha 55 ou mais anos. Como tal, a resposta às necessidades da população menos jovem e a garantia da protecção na fragilidade relacionada com o envelhecimento, implicam a criação de uma estratégia governamental, integrada e articulada e, neste sentido, a criação de um serviço inovador, especialmente focado na concepção, promoção e avaliação das políticas públicas para a longevidade, que será também


E N T R E V I S TA S pioneiro no nosso país. Sabemos que a população está cada vez mais envelhecida, existem respostas suficientes para esta população mais vulnerável na RAM? Que investimentos estão previstos? Tal como referi, a transição demográfica tem colocado um enorme desafio à governação. Assumimos a necessidade de um processo evolutivo de reforma das respostas sociais dirigidas às pessoas idosas, ajustando-as às suas necessidades mais actuais. No entanto, gostava de destacar que já percorremos um longo caminho em termos de respostas sociais às pessoas idosas na Região, com especial destaque para o Serviço de Ajuda Domiciliária, que apoia milhares de utentes, os Centros de Dia e de Convívio, as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI), as Unidades de Longa Duração e Manutenção no âmbito da Rede de Cuidados Continuados Integrados, sendo também de destacar a criação do Estatuto do Cuidador Informal, que como sabe foi pioneiro em Portugal. Reconhecendo a importância do envelhecimento activo e saudável, estamos a revisitar o formato do plano regional para o envelhecimento activo, integrando

o envelhecimento activo e saudável como eixo estratégico da futura Estratégia Regional para o Ecossistema da Longevidade. Os números revelam uma descida da taxa de desemprego ao longo do ano de 2021. Ainda recentemente, foram publicados números a dar conta do registo histórico de criação de empresas na região, o mais alto de sempre. Considera que a região está no caminho certo para manter esta descida da taxa de desemprego? De facto, a trajectória extremamente positiva de descida da taxa de desemprego, que se vivia na nossa Região entre 2016 e 2020 foi totalmente invertida pela pandemia da COVID-19. Tal como no país e no mundo, a taxa de desemprego na RAM subiu, e no fim de 2020 atingiu o seu valor mais elevado, na ordem dos 11,2%. Agora, desde Março de 2021, que a taxa de desemprego tem vindo a reduzir, tendo já apresentado no final de 2021 um valor de 7,3%, inferior ao período homólogo de 2019, pré-pandemia. Para tal, contribuiu também o conjunto de medidas extraordinárias e temporárias implementadas pelo Governo Regional, com impacto directo e indirecto no emprego, e que permitiram a retoma económica

do tecido empresarial regional. De resto, posso referir que a Madeira foi a região com maior descida do desemprego registado no mês de Dezembro de 2021, destacando-se largamente das restantes regiões do país. E da parte do Governo Regional, o que pode ser feito para manter esta trajectória descendente da taxa de desemprego? Iremos manter a nossa linha de actuação, que tem produzido bons resultados, continuando a aposta na criação de emprego, que é um pilar social fundamental. Procurando também reduzir os níveis de incerteza e transmitir confiança aos agentes económicos, através de diversos apoios ao investimento e à contratação. De salientar que o Governo Regional tem feito um forte investimento no apoio à criação de novas empresas, também apoiando novos empreendedores em situação de desemprego na criação do seu próprio projecto empresarial. Existem programas regionais só para esse efeito. A título de curiosidade, em plena pandemia, e desde Março de 2020, celebrámos contratos de incentivos relativos à criação de 75 novas empresas por

A P R O P O S TA D O G O V E R N O R E G I O N A L PA R A 2 0 2 2 É U M A P R O P O S TA R E A L I S TA , Q U E REFLECTE O EQUILÍBRIO ENTRE A S U S T E N TA B I L I D A D E D A S E M P R E S A S E O RENDIMENTO DISPONÍVEL D A S FA M Í L I A S .

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E N T R E V I S TA S desempregados, representando mais de uma centena de novos postos de trabalho, num montante global de 1,3 milhões de euros de apoio. Temos uma população empreendedora e que não baixa os braços em tempo de crise. Muito se tem falado sobre a subida do salário mínimo. É justo, o valor de 723 euros na RAM? A proposta do Governo Regional para 2022 é uma proposta realista, que reflecte o equilíbrio entre a sustentabilidade das empresas e o rendimento disponível das famílias. Desde 2015, madeirenses e porto santenses viram o salário mínimo regional, em termos líquidos, subir 207,90 euros o que corresponde a um aumento de 40%. Uma subida também superior ao todo nacional que evidencia o claro compromisso do Governo Regional nesta matéria. Na qualidade de Presidente da Comissão Permanente de Concertação Social, depois de ouvidos os parceiros sociais, considero que 723 euros é um valor equilibrado e prudente, num cenário pós pandemia, na medida em que existe ainda algum nível de incerteza associado à retoma económica.

Tem referido que a Madeira está na vanguarda da inclusão das pessoas com deficiência. Porquê? É a favor das quotas para obrigar as empresas à contratação de deficientes? Temos percorrido um caminho de investimento no desenvolvimento e implementação de políticas públicas destinadas à integração de pessoas com deficiência, que se pretendem cada vez mais orientadas para a promoção da cidadania, da qualidade de vida e de uma maior participação cívica, e temos marcado a diferença nesta matéria. Com infra-estruturas de excelência, com respostas da maior qualidade para quem delas mais precisa. E sou contra a definição de quotas para o ingresso de pessoas com deficiência no mercado de trabalho na RAM, uma vez que este modelo não é verdadeiramente um mecanismo de incentivo à sua inserção no mercado de trabalho. A Lei das quotas, em vigor a nível nacional, aplica-se às médias empresas com mais de 75 trabalhadores, bem como às grandes empresas. E vejamos, na Região, o mercado é constituído maioritariamente por micro e pequenas empresas, pelo que a aplicabilidade de um diploma destes teria um impacto

mínimo. No nosso ponto de vista, o verdadeiro ponto de partida para a integração profissional de pessoas com deficiência não deve passar pela “imposição” legal de uma quota de emprego, mas sim por criar ferramentas e uma visão concertada, entre o apoio à capacitação, à colocação e acompanhamento da pessoa com deficiência, aliada aos incentivos às entidades empregadoras, em especial na adaptação do posto de trabalho e na eliminação de barreiras arquitetónicas. E estamos a trabalhar num Diploma totalmente diferenciador que acomode estes princípios de forma positiva, e não coerciva, que será apresentado brevemente na Assembleia Legislativa Regional. Estamos também a ultimar um programa de emprego específico para integrar pessoas com deficiência, o “100 diferenças”. Destaco ainda o facto de termos criado recentemente uma comissão de coordenação que irá elaborar a Estratégia Regional para a Inclusão das Pessoas Com Deficiência, a estar concluída em 2022. Dados recentes apontam que a Região Autónoma da Madeira tem

A ÁREA SOCIAL É UMA ÁREA EM C O N S TA N T E T R A N S F O R M AÇ ÃO , COMPLEXA E DIFÍCIL, E QUE M E R E C E A N O S S A T OTA L AT E N Ç ÃO , H O J E E S E M P R E .

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E N T R E V I S TA S a mais alta taxa de pobreza do país. Não é contraditório que uma Região, considerada 7 vezes consecutivas como melhor destino insular do Mundo, tenha estes índices de pobreza? Como se explicam e que medidas estão a ser tomadas para reverter esta situação? A nossa região tem registado grandes progressos em matéria social, existindo já medidas implementadas e consolidadas para a melhoria das condições de vida das populações, complementadas por outras que procuram promover a igualdade de oportunidades. Como região ultraperiférica que somos, apresentamos especificidades que aumentam e influenciam os indicadores de risco de pobreza, fruto da orografia e afastamento geográfico, que condicionam a actividade económica, tal como outras regiões ultraperiféricas da europa. O actual custo com o transporte aéreo é outro grande entrave. A nossa economia é altamente dependente do turismo, apresentando por isso, maior dependência e exposição à volatilidade da procura externa. Os dados agora publicados comprovam isso mesmo, tendo sido notório em contexto de pandemia. De resto, temos de dizer que, ainda assim, a Madeira e os Açores foram as únicas regiões do país onde o risco de pobreza diminuiu em 2020, e estes resultados refletem o esforço do Governo Regional no combate a esta realidade. No final de 2021, foi dado outro passo muito importante, com a publicação da Estratégia Regional de Inclusão Social e Combate à Pobreza 2021 2030. Temos agora um documento base, que irá orientar de forma concertada a estratégia do Governo Regional nesta matéria, atuando sobre as suas causas, e envolvendo áreas como a educação, a saúde, o emprego e formação profissional e os apoios sociais. Quem é Rita Andrade? Qual a imagem de marca que pretende deixar como membro do XIII

PERFIL

R I TA A N D R A D E S E C R E TÁ R I A R E G I O N A L D E INCLUSÃO SOCIAL E CIDADANIA

Nascida em 1966, casada e com três filhos, Maria Rita Sabino Martins Gomes de Andrade é licenciada em Sociologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e de Empresas (ISCTE), com especialização na área da Comunicação e formação avançada em Recursos Humanos (Universidade Católica). No sector privado, foi Directora da DTIM, assistente convidada pela Universidade da Madeira (UMa), Directora de Recursos Humanos, Auditora Certificada, Consultora, Formadora e Directora no âmbito da implementação de sistemas de qualidade ISO: 9001, tendo ainda exercido funções de direcção e coordenação de projectos financiados nomeadamente na área da Economia Social e Solidária. Entre Maio de 2015 e Julho de 2017, exerceu funções de Presidente do Conselho Directivo do Instituto de Emprego da Madeira, IP-RAM. Em Julho de 2017 foi nomeada Secretária Regional de Inclusão e Assuntos Sociais, cargo que ocupou até 2019 e que volta a assumir em 2021 para terminar o seu segundo mandato. Entre Novembro de 2020 e Setembro de 2021, exerceu ainda funções como Presidente do IASAÚDE.

Governo Regional da Madeira? Sou uma apaixonada pela causa social, pelas pessoas, pela seriedade e pela procura incessante de soluções, de resultados. Não fugir dos problemas, nem ir pelos caminhos mais fáceis. Sou uma pessoa simples a trabalhar exclusivamente para a sua população, para o povo. A Secretária Regional do Povo, é assim que me sinto, como a governante que, em cada momento, deu atenção aos

problemas, dos mais simples aos mais complexos na área social. Gostaria de deixar uma marca de confiança, para que de facto a população continue a acreditar que, quando se promete, cumprese, e que o nosso Governo se diferencia pela positiva, com essa postura de verdade e transparência. Finalmente, que a área social é uma área em constante transformação, complexa e difícil, e que merece a nossa total atenção, hoje e sempre. l 49


POLÍTICA INTERNACIONAL

EXIT

A ALEMANHA D E P O I S D E M E R K E L N Ã O VA L E A P E N A E S P E R A R G R A N D E S M U D A N Ç A S D O N O V O G O V E R N O A L E M Ã O . A S PA L AV R A S D E O R D E M CONTINUAM A SER R ACIONALISMO E SOBRIEDADE, QUE SE TR ADUZEM NA PRIORIDADE AO COMÉRCIO.

DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE

U

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m novo governo em Berlim inspira sempre quem procura pistas para a dimensão do compromisso

europeu, para perceber se a Alemanha quer somar o motor político da União ao motor económico. E muitos ficaram chocados por encontrarem no programa de governo referências

à evolução da União para um “estado federal”. Mas este terá mesmo sido um caso de subtileza perdida na tradução. Como explicou Michael Meyer-Resende, director da Democracy Reporting International:


POLÍTICA INTERNACIONAL

“Quando a maioria dos alemães ouve estado federal, o ênfase está na segunda palavra, mas para o resto dos europeus a importância está na primeira palavra que assusta todos os que não querem reforçar os poderes de Bruxelas. Muitos analistas apontaram para maior convergência com a União nos temas mais consensuais, como o desafio ambiental e a defesa da democracia e dos direitos humanos fora e dentro da UE. Mas a ameaça de uma guerra na Ucrânia rapidamente demonstrou quão longe das ambições europeias está Berlim. Os diplomatas da capital alemã não querem contribuir para aumentar tensões com o vizinho russo, exercendo uma cautela extrema até em permitir que Bruxelas exerça a sua força económica para limitar as ambições de Vladimir Putin. A ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, pode ser o rosto em quem muitos progressistas colocam a esperança, mas ela é também a fiel executora de uma Alemanha bastante conservadora na dimensão externa. Todas as pesquisas de opinião apontam para uma recusa absoluta de conflitos armados e para a crença na bondade das transações económicas como o zénite do equilíbrio internacional. A Alemanha moderna vê “o poder militar não só como algo negativo, mas também inútil”, como repete Marcel Dirsus, um analista de defesa especializado na política externa alemã. Os alemães consideram efectivamente a sua posição anti-guerra como sendo moralmente superior à alternativa apontando para o próprio exemplo histórico como referência. E depois há a questão de que em Berlim o pragmatismo determina que o sucesso depende sempre dos objectivos comerciais de curto prazo. É isso que explica

a importância do gasoduto NordStream2 e a recusa em incluí-lo nos pacotes de possíveis sanções a Moscovo (o que explica também o pragmatismo e a dependência face a uma China cada vez mais antagonista do ocidente). O novo chanceler Olaf Scholz é um fruto do sistema político alemão tecnocrata e focado no equilíbrio de poderes e de interesses, que vem do mesmo partido que deu um ex-chanceler à gigante russa Gazprom. E os Verdes alemães têm preocupações maiores: a transição social para um modelo de sociedade mais ecológico está na base do seu programa e é promessa original do seu contrato com os eleitores. Entra aqui em jogo a outra parte da liderança bicéfala dos verdes, Robert Habeck, que lidera o todopoderoso ministério da economia e clima. A sua missão é tudo menos simples: garantir que a indústria alemã se reconverte para a economia verde sem investimentos públicos massivos e sem perda de empregos nem agitação social. É uma quadratura do círculo quase impossível de fazer, mas uma que está a ser seguida atentamente em todo o mundo. Do outro lado da coligação estão os liberais alemães, que apostam na modernização da economia alemã. Christian Lindner, novo ministro das Finanças, quer imprimir algum do dinamismo da cultura ‘start-up’ a uma Alemanha ainda presa a empresas familiares que comunicam com a administração pública por fax. A tradicional aversão ao risco da sociedade alemã pode ajudá-lo na recusa do endividamento e na reforma fiscal, mas será o maior impedimento à dinamização de uma economia demasiado dependente da indústria pesada que depende demasiado da China. Encabeçando a coligação semáforo (por causa das cores dos partidos

ANNALENA BAERBOCK MINISTRA DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS

ROBERT HABECK VICE-CHANCELER DA ALEMANHA E MINISTRO DAS FINANÇAS E PROTEÇÃO C L I M ÁT I C A

CHRISTIAN LINDNER NOVO MINISTRO DAS FINANÇAS

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P I X A B A Y. C O M

POLÍTICA INTERNACIONAL

OLAF SCHOLZ, CHANCELER DA ALEMANHA DESDE 8 DE DEZEMBRO DE 2021

que a formam) está Olaf Scholz, o homem escolhido para fazer a continuidade após Merkel. E por isso o que se deve esperar é mais do mesmo: liderança tranquila e sem dramatismos, cumprindo um programa de forma tecnocrata e tranquila. O sistema político alemão foi desenhado para promover as coligações e os equilíbrios estruturais. É um reflexo de uma sociedade assente no pragmatismo e no rigor, que é avessa a aventuras e a extremismos. Os dois partidos menores da coligação fizeram um caminho de credibilização que os tornou capazes de governar, passando a ser “confiáveis”. São partidos que respeitam a sociedade e que, apesar de proporem visões transformadoras, sabem bem que a Alemanha profunda é avessa a aventuras radicais. Por isso e porque Scholz é o chanceler, convém não esperar loucuras. Este governo é, como todos os governos alemães, um modelo de continuidade que vai sempre procurar consensos em vez da rotura. Aliás, tudo isto ficou devidamente demonstrado na forma como se 52

processou o acordo de coligação. A originalidade alemã leva os líderes a debater entre si na própria noite eleitoral, em frente às câmaras da televisão pública, para que se percebam os possíveis alinhamentos que ficaram claros na forma tranquila como Verdes e Liberais comunicaram nesse momento. Daí evoluiu-se para um processo negocial rigoroso: cem tecnocratas de cada partido dividiram-se em 22 grupos de trabalho para discutir o programa de governo entre as onze da manhã e as cinco da tarde, com a obrigação de produzir um documento entre 3 e 5 páginas escrito em tipo de letra Calibri corpo 11, com espaçamento entre linhas de 1.5. A longa negociação teve o mérito de ser concluída de forma discreta, sem fugas para a imprensa, levando à apresentação pública do programa de governo da coligação que está a orientar quatro anos que começaram sem período de graça nem tempo para adaptações. Também não seriam precisos: a Alemanha pós-Merkel vai continuar a parecer a Alemanha dos últimos anos, mas sem Angela Merkel. l

A ORIGINALIDADE A L E M Ã L E VA O S L Í D E R E S A D E B AT E R ENTRE SI NA PRÓPRIA NOITE ELEITORAL, EM FRENTE ÀS CÂMARAS DA TELEVISÃO P Ú B L I C A , PA R A QUE SE PERCEBAM OS POSSÍVEIS ALINHAMENTOS.


POLÍTICA INTERNACIONAL

ELEIÇÕES EM FRANÇA:

‘FAITES VOS JEUX’

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POLÍTICA INTERNACIONAL

AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS FRANCESAS SÃO GERALMENTE FÉRTEIS EM SURPRESAS, DEFININDO-SE A P E N A S N A S E G U N D A V O LTA . O E S C R U T Í N I O D E A B R I L , C O M E M M A N U E L M A C R O N A R E C A N D I D ATA R - S E A U M N O V O M A N DATO N O PA L ÁC I O D O E L I S E U , N ÃO S E R Á D I F E R E N T E , C O M O B E M E X P L I C A U M A A N Á L I S E DA B L O O M B E R G Q U E AQ U I C I TA M O S . I N I C I A L M E N T E , P E N S O U - S E Q U E E S T E E S C R U T Í N I O S E R I A U M ‘ D E J A V U ’ D E 2 0 1 7, Q U A N D O M A C R O N V E N C E U S E M D I F I C U L DA D E A N A C I O N A L I S TA D E E X T R E M A - D I R E I TA M A R I N E L E P E N , S E G U R A N D O O C E N T R O C O M O S E U N O V O PA R T I D O , E N M A R C H E ! M A S O A PA R E C I M E N TO D E C A N D I DATO S A D I C I O N A I S À D I R E I TA TO R N O U A C O R R I DA M A I S C O M P L I C A DA . A C A M PA N H A P R O M E T E .

1. Espera-se uma vitória de Macron? Em princípio, sim, mas não é garantido. Interpretar sondagens numa eleição tão disputada e a duas voltas é, muitas vezes, um exercício artístico. Para além de Le Pen, os adversários de Macron são Valérie Pécresse, do Partido Republicano, de direita, e o Pundut, da extrema-direita de Eric Zemmour. No início de 2022, a maioria das projecções dava Macron a derrotar qualquer candidato de direita. Mas devemos ter em conta que as sondagens estão a apontar para as intenções de voto na primeira volta, a 10 de Abril, só que o resultado final é o que irá sair do embate entre os dois candidatos à segunda volta, que se realiza 14 dias depois. Se vencer, Macron será o primeiro presidente em funções a ser reeleito desde Jacques Chirac, já lá vão 20 anos. 2. Em que ponto estamos? Macron tem estado focado em temas como segurança, imigração e identidade nacional, procurando assim “apoderar-se” de temas tradicionalmente mais caros à direita política. Este discurso funciona também como “escudo protector” contra os candidatos de extremadireita, que, de acordo com as sondagens, poderão vir a ter nestas eleições o melhor resultado de sempre, numa altura em que os partidos de esquerda estão na luta por, pelo menos, 10% das intenções 54

de voto, sem que consigam encontrar, sequer, um candidato comum, enquanto insistem nas causas habituais, como a igualdade e as alterações climáticas. 3. Qual o papel da economia e a pandemia estão a desempenhar? As ajudas de Estado às famílias e às empresas ao longo da pandemia agravaram a despesa e a dívida públicas, mas os indicadores económicos são positivos. A aposta de Macron e do seu antecessor na reforma laboral e fiscal parece estar a produzir resultados, com o desemprego em baixa e a confiança na economia a alimentarem a moral dos franceses. Mantendo-se este desempenho, será um marco histórico, ao permitir que a França deixe de ser vista como um dos problemas económicos da União Europeia, incapaz de acompanhar a globalização, de crescer e de criar empregos como o seu vizinho, a Alemanha. No entanto, a redução da tributação às empresas e grandes fortunas, o declínio dos serviços públicos nas zonas rurais e o impacto da alta dos preços da energia sobre as famílias podem vir a alimentar movimentos contestatários populares do género dos “Coletes Amarelos”. 4. Por que motivo a esquerda já não tem a força que tinha? O Partido Socialista “deu” dois


POLÍTICA INTERNACIONAL presidentes a França nos últimos 60 anos, mas tem vindo a perder influência junto dos trabalhadores, que foram a sua grande base de apoio. Em 2017, com a conquista por Macron de um lugar no centro político, muitos dos seus apoiantes mais à esquerda optaram por abandoná-lo. Agora, pelo menos Jean-Luc Melenchon’s, do Partido França Insubmissa, e Yannick Jadot, dos Verdes, procuram impor-se como líderes da esquerda no país, e nem eles nem o Partido Socialista estão disponíveis para pôr de lado as divergências e unir-se em torno de um candidato comum, capaz de recolher o número de votos suficiente para passar à segunda volta. Depois, há o tema da demografia: os cidadãos mais velhos são os que mais votam, mas são sobretudo conservadores. Juntos, Le Pen, Zemmour e Pécresse recolhem 46% das intenções de voto na primeira volta, de acordo com as sondagens. 5. O “Macronismo” existe?´ É difícil encontrar um “rótulo” político para o antigo banqueiro de investimento que iniciou a sua carreira na vida pública como socialista. Como responsável das Finanças no governo do seu antecessor, François Hollande, surgiu como um liberal económico. A sua vitória presidencial foi possível apenas porque muitos eleitores socialistas se descolaram do partido. Na campanha, Macron falou sobre a luta contra a desigualdade, designou a colonização francesa da Argélia como um crime contra a humanidade, e disse não se opor ao uso de véu pelas mulheres muçulmanas em espaços públicos, temas que causam indignação na extrema-direita. Por outro lado, eliminou um imposto, ainda que simbólico, que havia sobre a riqueza, algo que os presidentes de direita não tinham sido capazes de fazer antes dele, e apelou aos franceses para que se reformassem mais tarde. Teve dois primeiros-ministros de direita, assim como os titulares das Finanças e da Economia, e o ministro

do Interior é um radical, que criticou as cadeias de supermercados por armazenarem alimentos estrangeiros, e acusou Le Pen de ser brando com o islamismo. 6. Macron passou a ser de extremadireita? Na verdade, tem adaptado o discurso às circunstâncias, ou ao sabor da opinião pública. Perante sondagens que indicam que os franceses preferem tendencialmente candidatos à direita, a retórica de Macron passa por prometer combater a criminalidade e o tráfico de droga, e por lançar um “grande debate nacional” sobre o consumo de drogas. Pressionado a responder aos actos terroristas verificados no decurso do seu mandato, incluindo a decapitação de um professor em 2020, fez aprovar uma Lei de Segurança Global que pouco contribuiu para alterar a cultura de violência da polícia, apesar dos apelos à sua fiscalização e responsabilização. Também fez aprovar legislação para preservar os valores seculares franceses, considerada, entre alguma esquerda política, como estigmatizante em relação aos muçulmanos. Em simultâneo, a promessa de utilizar o dinheiro dos contribuintes para segurar empregos e vidas humanas durante a pandemia, “custe o que custar”, voltou a esbater a linha com a direita. Também alargou a licença de paternidade e criticou a erosão dos salários e das condições de trabalho na União Europeia – ambas causas da esquerda. 7. Como funciona a votação? Se ninguém recolher mais de 50% dos votos na primeira volta - Charles de Gaulle foi o último a consegui-lo, em 1958 -, os eleitores regressam às urnas duas semanas depois para escolherem entre os dois candidatos mais votados. O sistema pode levar ao chamado voto táctico, em que os eleitores não apoiam aquele que foi o candidato preferido na primeira volta, optando por aquele que tem mais hipóteses

de derrotar o candidato de que menos gostam. Por exemplo, os eleitores de extrema-esquerda que se sentem traídos por Macron, e que em princípio apoiariam um candidato como Jadot, podem sentir-se tentados a votar Pécresse na primeira volta, pois esta está à frente daquele nas sondagens e tem mais hipótese de derrotar Macron numa segunda volta. Esta abordagem táctica pode retirar apoio a candidatos que, de outra forma, poderiam ter mais chances na corrida. 8. O que mais devemos ter em conta? As legislativas de 12 e 19 de Junho não devem ser desvalorizadas. Se o novo presidente não tiver maioria absoluta na Assembleia Nacional, ficará de mãos atadas e poderá ter um primeiro-ministro de outra facção, algo que ocorreu nos anos 80 e 90. O partido de Macron revelou recentemente alguma fraqueza, com as sondagens a mostrarem resultados fracos nas eleições regionais e municipais. Por isso, mesmo que seja reeleito, não é certo que Macron consiga levar por diante as suas políticas. 9. Em que contribui tudo isto para a posição de França no mundo? Macron deu mais visibilidade a França como ‘player’ global, apesar de alguns revezes. A tentativa de explicar a sua visão do papel da religião na sociedade incendiou os ânimos no mundo islâmico, e sua declaração de que a NATO está em “morte cerebral” enfureceu alguns aliados, especialmente na Europa de Leste. Manteve audível a voz do país na política internacional, que é sobredimensionada em relação ao peso da sua economia, em grande parte devido aos laços históricos com as ex-colónias. Praticamente todos os candidatos querem reformar a União Europeia. Pécresse tem uma posição ambígua neste capítulo, mas é pouco provável que, se vencer as eleições, as suas políticas internacionais divirjam muito das do actual inquilino do Palácio do Eliseu. l 55


POLÍTICA INTERNACIONAL

T R Ê S PA Í S E S C O M MUDANÇAS NO HORIZONTE

RICARDO DAVID LOPES

C O L Ô M B I A , C O S TA R I C A E B R A S I L E L E G E M N E S T E A N O O S S E U S P R E S I D E N T E S DA R E P Ú B L I C A , S E N D O Q U E N O S D O I S P R I M E I R O S C A S O S N E N H U M D O S AC T UA I S É R E C A N D I DATO , P O R T E R E M AT I N G I D O O L I M I T E D E M A N DATO S . N O B R A S I L , O E M B AT E B O L S O N A R O - L U L A P R O M E T E U M A C O R R I DA A N I M A DA A O PA L Á C I O D O P L A N A LT O . E M C O M U M : A C R I S E E C O N Ó M I C A , D A Q U A L , E N T R E TA N T O , PA R E C E M E S TA R A S A I R .

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POLÍTICA INTERNACIONAL

COLÔMBIA Os colombianos parecem não estar satisfeitos com o rumo que o país tem seguido com o Presidente Iván Duque, desde 2018, a avaliar pelo resultado de uma sondagem, em Dezembro de 2021, indicando que 80% dos eleitores avaliam negativamente o caminho feito. Na corrida estão o antigo prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, derrotado por Duque em 2018, e o antigo autarca de Medellín, Sergio Fajardo, assim como o ex-senador Juan Manuel Galán, o empresário Rodolfo Hernández e o ex-ministro das Finanças Óscar Iván Zuluaga. Quando: 13 de Março - legislativas e consultas interpartidárias (espécie de “primárias” para as presidenciais); 29 de Maio – presidenciais (eventual segunda volta a 19 de Junho, se necessário); O que está em jogo: Presidente e vice-Presidente, Senado, Câmara dos Representantes. A ter em conta: • A eleição do Presidente requer maioria absoluta, o que eventualmente apenas ocorre numa segunda volta. O mandato é de quatro anos e não é possível haver dois mandatos sucessivos; • Entre os 108 assentos do Senado, 100 serão ocupados por senadores eleitos pelo método proporcional. Dos restantes, um é para o candidato a Presidente da República que foi derrotado, dois para representar populações indígenas, sendo cinco atribuídos aos Comuns (o partido originário das FARC); • A Câmara dos Representantes tem 188 lugares, sendo 166 preenchidos com base num sistema de representação proporcional, incluindo dois elementos, um para populações indígenas e um para colombianos no estrangeiro. Outro lugar vai para o candidato a Vice-Presidente derrotado, e outros cinco para os Comuns e 16 para representantes das regiões mais afectadas pelo conflito civil; • O voto não é obrigatório. A Colômbia e Portugal Em 2020, a Colômbia foi o 56.º cliente das exportações portuguesas de bens em 2020, com uma quota de 0,1% no total, ocupando a 62.ª posição ao nível das importações (0,1%). A balança comercial de bens foi favorável ao nosso país, tendo apresentado um excedente de 5 milhões de euros em 2020.

COSTA RICA Ninguém foi eleito Presidente, entre os 25 candidatos, nas eleições do passado dia 6 de Fevereiro, pelo que haverá segunda volta num país considerado estável, mas a braços com uma grave crise económica. O ex-Presidente (anos 90) de centro-esquerda José María Figueres, é um dos candidatos, liderando as sondagens na primeira volta, seguido pela social-cristã Lineth Saborío e pelo conservador evangélico Fabricio Alvarado. O actual Presidente, Carlos Alvarado, não pode recandidatar-se, num país onde há eleições regulares desde 1953. Quando: 3 de Abril (segunda volta das presidenciais); O que está em jogo: Presidente e dois vice-Presidentes da República, 57 deputados do Congresso. A ter em conta: • O PR pode ser eleito na primeira volta com mais de 40% dos votos, caso não ocorra, os dois candidatos mais votados disputam uma segunda volta, o que será o caso; • O voto é obrigatório, mas não há consequências para quem não vote.

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POLÍTICA INTERNACIONAL BRASIL O Presidente Jair Bolsonaro, com a popularidade e taxas de aprovação em baixa, castigado pela forma como tem gerido a pandemia e a economia, vai enfrentar o antigo Presidente Lula da Silva, que está à frente em sondagens já divulgadas. Lula queria ter concorrido em 2018, mas estava na prisão, ao abrigo da Operação Lava Jato. As acusações foram, entretanto, anuladas pelo Supremo Tribunal, abrindo caminho para o regresso ao Palácio do Planalto ao antigo operário e sindicalista do PT. João Doria, antigo governador de São Paulo, e Sérgio Moro, o super-juiz que pôs Lula na prisão e que viria a ser ministro de Bolsonaro, também estão na corrida às eleições no pais mais rico da região e 11.º mais rico do mundo. Quando: 2 de Outubro (segunda volta a 30, se necessário, para eleição do Presidente e governadores); O que está em jogo: eleição do Presidente e vice-Presidente da República, 27 senadores (em 81), deputados, governadores e prefeitos. A ter em conta: • O voto é obrigatório; • A eleição do PR ocorrerá numa segunda volta não havendo nenhum candidato com maioria na primeira; • Senadores são eleitos por maioria simples em cada Estado e o seu mandato é de oito anos; • Deputados têm mandato de quatro anos, e cada estado elege 8 a 70, em função da sua população. O Brasil e Portugal: Em 2020, o Brasil foi 11º cliente relativamente ao comércio de bens e também ao nível dos serviços, e o 10º maior investidor estrangeiro (em termos de ‘stock’). Em sentido inverso, o Brasil continua a despertar grande interesse nas empresas portuguesas, presentes no turismo, construção e obras públicas, energia, ambiente, agroalimentar e bebidas, equipamentos e produtos industriais, componentes para a indústria automóvel, tecnologias de informação e comunicação, serviços e distribuição.

NEM SÓ DE PRESIDENTES SE FAZEM ELEIÇÕES Os latino-americanos vão ser chamados às urnas em diferentes momentos ao longo do ano, e não apenas em eleições presidenciais. Há municipais, referendos e escrutínios que ainda estão por marcar… se vierem a existir. Os latino-americanos vão ser chamados às urnas em diferentes momentos ao longo do ano, e não apenas em eleições presidenciais. Há municipais, referendos e escrutínios que ainda estão por marcar… se vierem a existir. No Uruguai, no dia 27 de Março, os eleitores decidirão se se deve revogar 135 das 476 disposições da chamada Lei de Consideração Urgente (LUC), aprovada em Julho de 2020 pela actual coligação governamental. As áreas mais controversas incluem o uso de forças policiais e restrições às greves e protestos, que agora poderão ser revistos. A realização do referendo foi validada por um tribunal eleitoral em Dezembro do ano passado, após a recolha das assinaturas apresentadas pela Frente Amplio e organizações sociais. Já no México, não se sabe ainda se haverá – previsivelmente na Primavera – um referendo que permitirá renovar o mandato do Presidente Andrés Manuel López Obrador, que goza de boa popularidade. O país vai, entretanto, a votos a 5 de Junho para eleger seis governadores estaduais, uma votação de que se espera o

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reforço do partido político de López Obrador. Em Outubro, dia 2, será o Peru a realizar eleições locais e municipais para escolher 25 governadores, 200 prefeitos provinciais e 1.700 prefeitos municipais. O acto, de acordo com analistas, será um barómetro à acção do governo de esquerda do Presidente Pedro Castillo. Noutros casos, há mais incerteza. O Haiti, por exemplo, deveria ter tido, em 2021, eleições para escolher um novo presidente, parlamento, a par de um referendo constitucional, mas foram adiadas quatro vezes, e o país foi lançado num clima político incerto devido ao assassinato do Presidente Jovenel Moïse, em Julho. O actual Chefe de Estado e primeiro-ministro, Ariel Henry, prometeu que as eleições se realizariam na segunda metade de 2022. O seu mandato terminou a 7 de Fevereiro. Na Nicarágua, cujas eleições presidenciais e legislativas de 2021 foram alvo de acusações de fraude (o Presidente Daniel Ortega foi eleito para um quarto mandato), está prevista a realização de eleições regionais e locais em 2022. Ainda não foi fixada qualquer data. l


© 2 0 2 2 C O U N C I L O N F O R E I G N R E L AT I O N S , P U B L I S H E R O F F O R E I G N A F F A I R S . A L L R I G H T S R E S E R V E D . D I S T R I B U T E D B Y T R I B U N E C O N T E N T A G E N C Y, L L C .

FOREIGN AFFAIRS POLÍTICA INTERNACIONAL

THE PUTIN DOCTRINE

A N G E L A S T E N T, FOREIGN AFFAIRS

T

he current crisis between Russia and Ukraine is a reckoning that has been 30 years in the making. It is about much more than Ukraine and its possible NATO membership. It is about the future of the European order crafted after the Soviet Union’s collapse. During the 1990s, the United States and its allies designed a Euro-Atlantic security architecture in which Russia had no clear commitment or stake, and since Russian President Vladimir Putin came to power, Russia has been challenging that system. Putin has routinely complained that the global order ignores Russia’s security concerns, and he has demanded that the West recognize Moscow’s right to a sphere of privileged interests in the post-Soviet space. He has staged incursions into neighboring

states, such as Georgia, that have moved out of Russia’s orbit in order to prevent them from fully reorienting. Putin has now taken this approach one step further. He is threatening a far more comprehensive invasion of Ukraine than the annexation of Crimea and the intervention in the Donbas that Russia carried out in 2014, an invasion that would undermine the current order and potentially reassert Russia’s preeminence in what he insists is its “rightful” place on the European continent and in world affairs. He sees this as a good time to act. In his view, the United States is weak, divided, and less able to pursue a coherent foreign policy. His decades in office have made him more cynical about the United States’ staying power. Putin is now dealing with his fifth U.S. president, and he has come to see Washington as an

unreliable interlocutor. The new German government is still finding its political feet, Europe on the whole is focused on its domestic challenges, and the tight energy market gives Russia more leverage over the continent. The Kremlin believes that it can bank on Beijing’s support, just as China supported Russia after the West tried to isolate it in 2014. Putin may still decide not to invade. But whether he does or not, the Russian president’s behavior is being driven by an interlocking set of foreign policy principles that suggest Moscow will be disruptive in the years to come. Call it “the Putin doctrine.” The core element of this doctrine is getting the West to treat Russia as if it were the Soviet Union, a power to be respected and feared, with special rights in its neighborhood and a voice in every serious international matter. The doctrine holds that only 59


POLÍTICA INTERNACIONAL FOREIGN AFFAIRS a few states should have this kind of authority, along with complete sovereignty, and that others must bow to their wishes. It entails defending incumbent authoritarian regimes and undermining democracies. And the doctrine is tied together by Putin’s overarching aim: reversing the consequences of the Soviet collapse, splitting the transatlantic alliance, and renegotiating the geographic settlement that ended the Cold War. Blast from the past Russia, according to Putin, has an absolute right to a seat at the table on all major international decisions. The West should recognize that Russia belongs to the global board of directors. After what Putin portrays as the humiliation of the 1990s, when a greatly weakened Russia was forced to accede to an agenda set by the United States and its European allies, he has largely achieved this goal. Even though Moscow was ejected from the G-8 after its annexation of Crimea, its veto on the United Nations Security Council and role as an energy, nuclear, and geographic superpower ensure that the rest of the world must take its views into account. Russia successfully rebuilt its military after the 2008 war with Georgia, and it is now the preeminent regional military power, with the capability to project power globally. Moscow’s ability to threaten its neighbors enables it to force the West to the negotiating table, as has been so evident in the past few weeks. As far as Putin is concerned, the use of force is perfectly appropriate if Russia believes that its security is threatened: Russia’s interests are as legitimate as those of the West, and Putin asserts that the United States and Europe have been disregarding them. For the most part, the United States and Europe have rejected the Kremlin’s narrative of grievance, which centers most notably on the breakup of the Soviet Union and especially the separation of Ukraine from Russia. When Putin described the Soviet collapse as a “great geopolitical catastrophe of the twentieth century,” he was lamenting the fact that 25 million Russians found themselves outside of Russia, and he particularly criticized 60

the fact that 12 million Russians found themselves in the new Ukrainian state. As he wrote in a 5,000-word treatise published last summer and titled “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians,” in 1991, “people found themselves abroad overnight, taken away, this time indeed, from their historical motherland.” His essay has recently been distributed to Russian troops. This narrative of loss to the West is tied in to a particular obsession of Putin’s: the idea that NATO, not content to merely admit or aid post-Soviet states, might threaten Russia itself. The Kremlin insists that this preoccupation is based on real concerns. Russia, after all, has been repeatedly invaded from the West. In the twentieth century, it was invaded by anti-Bolshevik allied forces, including some from the United States, during its civil war from 1917 to 1922. Germany invaded twice, leading to the loss of 26 million Soviet citizens in World War II. Putin has explicitly linked this history to Russia’s current concerns about NATO infrastructure nearing Russia’s borders and Moscow’s resulting demands for security guarantees. Today, however, Russia is a nuclear superpower brandishing new, hypersonic missiles. No country – least of all its smaller, weaker neighbors – has any intention of invading Russia. Indeed, the country’s neighbors to its west have a different narrative and stress their vulnerability over the centuries to invasion from Russia. The United States would also never attack, although Putin has accused it of seeking to “cut a juicy piece of our pie.” Nevertheless, the historical self-perception of Russia’s vulnerability resonates with the country’s population. Government-controlled media are filled with claims that Ukraine could be a launching pad for NATO aggression. Indeed, in his essay last year, Putin wrote that Ukraine was being turned into “a springboard against Russia.” Putin also believes that Russia has an absolute right to a sphere of privileged interests in the post-Soviet space. This means its former Soviet neighbors should not join any alliances that are deemed hostile to Moscow, particularly

NATO or the European Union. Putin has made this demand clear in the two treaties proposed by the Kremlin on December 17, which require that Ukraine and other post-Soviet countries – as well as Sweden and Finland – commit to permanent neutrality and eschew seeking NATO membership. NATO would also have to retreat to its 1997 military posture, before its first enlargement, by removing all troops and equipment in central and eastern Europe. (This would reduce NATO’s military presence to what it was when the Soviet Union disintegrated.) Russia would also have veto power over the foreign policy choices of its non-NATO neighbors. This would ensure that proRussian governments are in power in countries bordering Russia – including, foremost, Ukraine. Divide and conquer So far, no Western government has been prepared to accept these extraordinary demands. The United States and Europe widely embrace the premise that nations are free to determine both their domestic systems and their foreign policy affiliations. From 1945 to 1989, the Soviet Union denied self-determination to central and eastern Europe and exercised control over both the domestic and foreign policies of Warsaw Pact members through local communist parties, the secret police, and the Red Army. When a country strayed too far from the Soviet model – Hungary in 1956 and Czechoslovakia in 1968 – its leaders were ousted by force. The Warsaw Pact was an alliance that had a unique track record: it invaded only its own members. The modern Kremlin’s interpretation of sovereignty has notable parallels to that of the Soviet Union. It holds, to paraphrase George Orwell, that some states are more sovereign than others. Putin has said that only a few great powers – Russia, China, India, and the United States – enjoy absolute sovereignty, free to choose which alliances they join or reject. Smaller countries such as Ukraine or Georgia are not fully sovereign and must respect Russia’s strictures, just as Central America and South America, according


FOREIGN AFFAIRS POLÍTICA INTERNACIONAL to Putin, must heed their large northern neighbor. Russia also does not seek allies in the Western sense of the word but instead looks for mutually beneficial instrumental and transactional partnerships with countries, such as China, that do not restrict Russia’s freedom to act or pass judgment on its internal politics. Such authoritarian partnerships are an element of the Putin doctrine. The president presents Russia as a supporter of the status quo, an advocate of conservative values, and an international player that respects established leaders, especially autocrats. As recent events in Belarus and Kazakhstan have shown, Russia is the go-to power to support embattled authoritarian rulers. It has defended autocrats both in its neighborhood and far beyond – including in Cuba, Libya, Syria, and Venezuela. The West, according to the Kremlin, instead supports chaos and regime change, as happened during the 2003 Iraq war and the Arab Spring in 2011. But in its own “sphere of privileged interests,” Russia can act as a revisionist power when it considers its interests threatened or when it wants to advance its interests, as the annexation of Crimea and the invasions of Georgia and Ukraine demonstrated. Russia’s drive to be acknowledged as a leader and backer of strongmen regimes has been increasingly successful in recent years as Kremlin-backed mercenary groups have acted on behalf of Russia in many parts of the world, as is the case in Ukraine. Moscow’s revisionist interference also isn’t limited to what it considers its privileged domain. Putin believes Russia’s interests are best served by a fractured transatlantic alliance. Accordingly, he has supported antiAmerican and Euroskeptic groups in Europe; backed populist movements of the left and right on both sides of the Atlantic; engaged in election interference; and generally worked to exacerbate discord within Western societies. One of his major goals is to get the United States to withdraw from Europe. U.S. President Donald Trump was contemptuous of the NATO alliance and dismissive of some of the United

States’ key European allies – notably then German Chancellor Angela Merkel – and spoke openly of pulling the United States out of the organization. The administration of U.S. President Joe Biden has assiduously sought to repair the alliance, and indeed Putin’s manufactured crisis over Ukraine has reinforced alliance unity. But there is enough doubt within Europe about the durability of U.S. commitment after 2024 that Russia has found some success reinforcing skepticism, particularly through social media. Weakening the transatlantic alliance could pave the way for Putin to realize his ultimate aim: jettisoning the post – Cold War, liberal, rules-based international order promoted by Europe, Japan, and the United States in favor of one more amenable to Russia. For Moscow, this new system might resemble the nineteenth-century concert of powers. It could also turn into a new incarnation of the Yalta system, where Russia, the United States, and now China divide the world into tripolar spheres of influence. Moscow’s growing rapprochement with Beijing has indeed reinforced Russia’s call for a post-West order. Both Russia and China demand a new system in which they exercise more influence in a multipolar world. The nineteenth- and twentieth-century systems both recognized certain rules of the game. After all, during the Cold War, the United States and the Soviet Union mostly respected each other’s spheres of influence. The two most dangerous crises of that era – Soviet Premier Nikita Khrushchev’s 1958 Berlin ultimatum and the 1962 Cuban missile crisis – were defused before military conflict broke out. But if the present is any indication, it looks as if Putin’s post-West “order” would be a disordered Hobbesian world with few rules of the game. In pursuit of his new system, Putin’s modus operandi is to keep the West off balance, guessing about his true intentions, and then surprising it when he acts. The russian reset Given Putin’s ultimate goal, and given his belief that now is the time

to force the West to respond to his ultimatums, can Russia be deterred from launching another military incursion into Ukraine? No one knows what Putin will ultimately decide. But his conviction that the West has ignored what he deems Russia’s legitimate interests for three decades continues to drive his actions. He is determined to reassert Russia’s right to limit the sovereign choices of its neighbors and its former Warsaw Pact allies and to force the West to accept these limits – be that by diplomacy or military force. That doesn’t mean the West is powerless. The United States should continue to pursue diplomacy with Russia and seek to craft a modus vivendi that is acceptable to both sides without compromising the sovereignty of its allies and partners. At the same time, it should keep coordinating with the Europeans to respond and impose costs on Russia. But it is clear that even if Europe avoids war, there is no going back to the situation as it was before Russia began massing its troops in March 2021. The ultimate result of this crisis could be the third reorganization of EuroAtlantic security since the late 1940s. The first came with the consolidation of the Yalta system into two rival blocs in Europe after World War II. The second emerged from 1989 to 1991, with the collapse of the communist bloc and then the Soviet Union itself, followed by the West’s subsequent drive to create a Europe “whole and free.” Putin now directly challenges that order with his moves against Ukraine. As the United States and its allies await Russia’s next move and try to deter an invasion with diplomacy and the threat of heavy sanctions, they need to understand Putin’s motives and what they portend. The current crisis is ultimately about Russia redrawing the post–Cold War map and seeking to reassert its influence over half of Europe, based on the claim that it is guaranteeing its own security. It may be possible to avert a military conflict this time. But as long as Putin remains in power, so will his doctrine. l 61


DIPLOMACIA

ZACARIAS DA COSTA, SECRETÁRIO EXECUTIVO DA CPLP

C P L P É U M E S PAÇ O D E CONVERGÊNCIA DINÂMICA

E

ntre os diversos temas da agenda da CPLP, a cooperação económica empresarial, assim como a promoção da mobilidade e circulação de pessoas no espaço intracomunitário estão na ordem do dia e conheceram avanços significativos na última Cimeira de Chefes de Estado e de Governo, realizada em Luanda, a 17 de julho de 2021, data em que a CPLP celebrou 25 anos. A cooperação económica e empresarial é uma matéria à qual os Estados-Membros têm vindo a atribuir uma cada vez mais importância, especialmente no atual contexto pós-pandemia em que nos confrontamos com o imperativo da recuperação económica e com a necessidade de responder a desafios transversais como a transformação digital, a revolução tecnológica, a emergência climática e a alteração do paradigma da globalização.

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Na Cimeira de Luanda, avançámos no sentido de abrir caminho para fazer da cooperação económica um novo objetivo geral, a par com os objetivos gerais já consagrados da concertação político-diplomática, da promoção e difusão da língua portuguesa e da cooperação em todos os domínios. A implementação do “pilar económico” constitui, portanto, uma prioridade para o mandato da Presidência angolana (2021-2023), e contribuirá para afirmar a CPLP enquanto um espaço de convergência ao nível do quadro legal e regulatório, dinâmico em matéria de fluxos de investimentos e trocas comerciais, com vista a reforçar a capacidade de atração de investimento. É por isso essencial que as empresas

sejam cada vez mais capazes de corresponder às exigências para competir no mercado global, o que significa um compromisso com a capacitação e a formação, a garantia da qualidade, a melhoria do ambiente de negócios, nomeadamente ao nível da adoção de políticas públicas e de alterações ao quadro legal, que garantam a segurança jurídica e as condições de concorrência. É igualmente importante apoiar as empresas no que respeita o acesso ao financiamento e o apoio à internacionalização, com especial (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


DIPLOMACIA

atenção às pequenas e médias empresas, que constituem a maior parte do tecido empresarial. Ainda neste mês de fevereiro, prevê-se que os Ministros responsáveis pela Economia, Comércio e Finanças se reúnam para adotar as orientações políticas para a cooperação económica, sendo que os trabalhos técnicos preparatórios já estão em curso para a concertação de uma estratégia e plano de ação para os próximos cinco anos. Estamos também empenhados na criação do Fórum das Agências de Promoção do Comércio Externo e Investimento da CPLP, que será assim o primeiro “operador” desta estratégia, e cuja ação beneficiará a capacidade operacional das agências nacionais pela intensificação da partilha de informação e de iniciativas conjuntas. Luanda trouxe também avanços muito significativos relativamente àquela que foi a principal prioridade da presidência assegurada por Cabo Verde no biénio anterior: a mobilidade. O Conselho de Ministros de Luanda, que precedeu a Cimeira, aprovou o “Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados-Membros da CPLP”, o qual foi já ratificado por cinco Estados-Membros: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal, Guiné-Bissau e Moçambique. Trata-se de um acordo-quadro, de aplicação diferenciada que gradualmente

“ LUA N DA T R O U X E TA M B É M AVA N Ç O S M U I TO S I G N I F I C AT I V O S R E L AT I VA M E N T E ÀQ U E L A Q U E F O I A P R I N C I PA L P R I O R I DA D E DA PRESIDÊNCIA ASSEGURADA POR CABO VERDE NO BIÉNIO A N T E R I O R : A M O B I L I D A D E .”

abrirá caminho a uma maior mobilidade e circulação no espaço da CPLP. Para isso, o acordo-quadro deverá ser complementado com acordos adicionais a celebrar pelos Estados Parte, nos quais serão definidos os moldes da mobilidade entre os Estados Parte. Ou seja, os Estados têm a liberdade de escolher quais as modalidades de mobilidade que vão aplicar, por exemplo, Estada de Curta Duração CPLP; Estada Temporária CPLP; Visto de Residência CPLP; Residência CPLP; isenção de vistos; podendo decidir quem serão os beneficiários abrangidos, por exemplo, agentes do Estado, professores, estudantes, agentes culturais, entre outros, bem como os Estados com os quais acordam estas facilidades. Por outro lado, o Acordo reconhece e salvaguarda os compromissos internacionais em matéria de mobilidade que os Estados-Membros da CPLP assumiram no quadro da respetiva integração regional. Este Acordo constitui seguramente um passo muito importante para a aproximação da CPLP aos seus cidadãos. l 63


DIPLOMACIA

OTHMANE BAHNINI*, EMBAIXADOR DE MARROCOS EM LISBOA

VERS UNE NOUVELLE DYNAMIQUE ET UN R E N F O R C E M E N T D E S R E L AT I O N S E N T R E

LE MAROC ET LE PORTUGAL

L

e Maroc et le Portugal partagent un solide socle de relations, basées sur le respect et la confiance, scellées par un Traité d’Amitié et de Bon Voisinage, de près de trois décennies. Nos deux pays ont, tout au long de leur histoire commune, construit sereinement une relation solide, basée sur la compréhension et la prise en compte des intérêts mutuels. La densité et la diversité de ces relations, ainsi que les mécanismes de consultation mis en place, ont conféré le caractère exceptionnel à la relation entre nos deux pays. L’excellence des relations bilatérales qui puisent leur force dans les liens historiques et culturels qui nous unissent mais également dans la proximité géographique doit être aujourd’hui, plus que jamais, un atout majeur pour le renforcement de nos relations, notamment économiques. Nous avons observé récemment une dynamique remarquable, à

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plusieurs niveaux, qui montre que les deux pays sont animés d’une volonté commune forte de consolider davantage et de renouveler les liens de coopération et de partenariat. Sur le plan des échanges commerciaux, cette même dynamique a été observée et ce en dépit de la crise sanitaire. Ainsi, le Maroc est devenu le premier client du Portugal hors Europe et Etats-Unis. Le Royaume a été classé comme étant le premier partenaire commercial du Portugal dans le Monde arabe et en Afrique. Les exportations marocaines vers le Portugal ont connu également une augmentation significative de près de 25% en entre 2020 et 2021. Sur le plan des investissements, le Royaume suscite de plus en plus

l’intérêt des grandes entreprises portugaises dont certaines ont réalisé de gros investissements récemment dans le secteur de l’automobile (Simoldes), des énergies renouvelables (fusionfuel) et dans l’aqua-industrie (mediterranean aquafarm) entre autres. Il sied de noter la présence de près de 200 entreprises portugaises au Maroc. Conscients à la fois du potentiel et de la complémentarité de nos économies (particulièrement dans les secteurs du textile, de *Texto escrito na língua de origem do autor


DIPLOMACIA

“ L E S E X P O RTAT I O N S MAROCAINES VERS LE PORTUGAL ONT CONNU ÉGALEMENT U N E AU G M E N TAT I O N S I G N I F I C AT I V E D E PRÈS DE 25% EN ENTRE 2 0 2 0 E T 2 0 2 1 .”

l’automobile et de l’agriculture), et aussi de la reconfiguration des dynamiques et des échanges qui se développeront dans le contexte actuel, où l’Europe se recentre sur elle-même, nous devrons créer ensemble les synergies nécessaires pour exploiter au mieux nos potentialités conjointes, nos complémentarités mutuelles et saisir, dans cette partie de la Méditerranée, les opportunités de croissance qui se profileront pour devenir ensemble un champion régional. La position géostratégique du Maroc, la réalisation par le Royaume de grands projets structurants tels que le port de Tanger Med, la LGV, ainsi que la constitution de zones franches et de plates-formes industrielles intégrées, sont autant de facteurs de rapprochement. Ceuxci stimuleront davantage les relations d’affaires entre nos pays et donnent déjà du sens au développement des relocalisations dans notre région notamment, à travers des investissements ciblés qui optimisent le positionnement

de chacun dans la chaine de valeurs et renforcent nos complémentarités qui sont de plus en plus évidentes. Qui dit renforcement des liens dit renforcement des liaisons et une des actions phares à laquelle j’accorde une importance capitale, en tant qu’Ambassadeur du Maroc à Lisbonne, est la concrétisation des liaisons stratégiques, telles que celle de l’énergie, par le biais de l’interconnexion électrique directe, entre nos deux pays, d’une capacité d’environ 1.000 mégawatts, et celle maritime, par l’établissement d’une ligne maritime directe entre un port marocain et un port portugais. Une autre action sur laquelle nous focalisons notre attention est l’intensification des rencontres économiques

et d’hommes d’affaires pour renforcer la relation et mettre en œuvre la complémentarité de nos économies, notamment dans le cadre du Conseil Economique Maroc-Portugal, dont le lancement a été inauguré en octobre 2021. Cette dynamique et cette ambition commune augure d’un avenir encore meilleur car ce que nous bâtissons aujourd’hui ne viendra que conforter notre ambition de faire de notre relation, un partenariat de référence. l 65


DIPLOMACIA

PAULO NEVES, P R E S I D E N T E D O I P D A L*

DESAFIOS DE POLÍTICA EXTERNA

P

ortugal tem de ter uma maior ambição na sua política externa. Somos um país com uma História universal, com uma diplomacia e uma posição geoestratégica que nos permite influenciar as grandes questões mundiais. Desde logo porque fazemos parte de blocos políticos e económicos de enorme importância na política internacional. Mas também pelo acumular de anos de uma Diplomacia séria e constante além de termos laços de genuína amizade com quase todos os países do Mundo. Com muitos deles temos mesmo um orgulhoso passado comum. No entanto, a voz de Portugal tem de ser ampliada e mais audível no Mundo. Para isso temos que investir mais, por exemplo, na nossa rede de Embaixadas. A nossa rede é deficitária o que torna Portugal pouco presente em algumas regiões do globo e ausente em alguns países onde há muito já 66

deveríamos ter embaixadas. Desde logo em África. Mas também na Ásia e na América Latina. Portugal está bem presente na África Lusófona, mas pouco presente na restante África em especial na subsariana. Em África deveríamos rapidamente abrir embaixadas na Costa do Marfim, no Gana e na Tanzânia. Reforçar a nossa presença diplomática junto da União Africana em Adis Abeba. Sermos Membro Observador da CEDEAO (organização multilateral regional da África Ocidental). Na Ásia é urgente reforçar as nossas embaixadas com mais diplomatas e abrir rapidamente embaixadas no Vietname e nas Filipinas e estudar a abertura na Malásia, Sri Lanka e Bangladesh. Mas abrir Embaixadas disponibilizando bons

meios humanos e financeiros associados a uma boa estratégia individualizada para cada Embaixada. Na América Latina abrir embaixadas no Paraguai, na República Dominicana e no Equador. São países com boas oportunidades para as empresas portuguesas. Devemos também continuar a apostar forte na CPLP mobilizando os nossos parceiros da organização - Estados Membros e países Observadores criando assim uma maior dinâmica nesta instituição vital para a política externa portuguesa. (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


DIPLOMACIA

“ D E V E M O S TA M B É M A P O S TA R M U I TO M A I S N U M A P O L Í T I C A AT L Â N T I C A E DO MAR PORQUE SOMOS NA VERDADE U M PA Í S E U R O -AT L Â N T I C O C O M U M A E N O R M E Á R E A D E M A R AT L Â N T I C O QUE NOS É DADA PELA MADEIRA E PELOS AÇORES, DUAS REGIÕES D E C I S I VA S N E S TA E S T R AT É G I A D E P O L Í T I C A E X T E R N A E D E S E G U R A N Ç A .”

Também a nossa presença na SEGIB - a Secretaria Geral Ibero-americana - deve ser ainda mais reforçada. Ainda em matéria de Organizações regionais ou sub-regionais Portugal deveria ser Membro Observador do Caricom (reúne os Países das Caraíbas), da SICA (reúne os Países da América Central) e do Fórum do Pacífico (reúne os Estados insulares do Pacífico). Portugal deveria também reforçar as suas cotas acionistas e contribuições para a Banca multilateral como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), a CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina), o BAD (Banco Africano de Desenvolvimento) e do BAI (Banco Asiático de Investimento). Reforçando a nossa participação acionista nestas instituições as nossas empresas passam a ter maior acesso a créditos para que possam concorrer a grandes concursos na América Latina, na África e na Ásia. Portugal tem que apostar mais na diplomacia Política; na diplomacia Económica; no aproveitamento da sua Diáspora; na diplomacia Cultural, do Património, da Língua e da História; na cooperação para o desenvolvimento e na diplomacia Gastronómica. Para isso deve potenciar o Instituto Camões e a

AICEP. Portugal deve apostar cada vez mais numa Diplomacia Digital. Deve também apostar numa “diplomacia aérea” através da companhia TAP que já tem uma muito boa rede na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos, boa em África mas mána América Latina e inexistente na Ásia. Ainda nesta “diplomacia aérea” apostar num grande ‘hub’ aeroportuário em Lisboa. Para isso apostar em ter mais ligações aéreas com cidades da China. Apostar em ligações aéreas diretas com ‘hubs’ importantes como Singapura, Nova Deli e Bangkok na Ásia. Ligações diretas a Buenos Aires, cidade do Panamá, Bogotá e Cidade do México na América Latina. Ao Cairo, Adis Abeba e a Joanesburgo no continente africano. Portugal deve seguir o exemplo dos Emirados, da Turquia, da Etiópia e do Qatar que utilizaram a sua principal companhia aérea nas respetivas estratégias de Política Externa. Portugal também tem que apostar num eficiente Serviço de Inteligência com elementos em algumas cidades decisivas, nesta matéria, como Londres, Moscovo, Teerão e Telavive. Informação é poder. Devemos também apostar muito mais numa Política Atlântica e

do Mar porque somos na verdade um País Euro-Atlântico com uma enorme área de mar atlântico que nos é dada pela Madeira e pelos Açores, duas regiões decisivas nesta Estratégia de Política Externa e de Segurança. Portugal também deve tornar-se num verdadeiro ‘hub’ atlântico triangular entre as Américas, a Europa e África. Resumindo a nossa Política Externa deve reforçar aquilo que é há muitos séculos. Uma Política Externa Credível, Séria, Previsível, Moderada, Generosa e de Diálogo (de Paz) e Multilateral. E ainda Universalista tal e qual a nossa História. Nunca uma diplomacia simplesmente seguidista. Uma diplomacia sempre com opinião própria capaz de influenciar o Mundo. l

* O Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL) foi criado em 2006 com o objectivo de fortalecer as relações empresariais e académicas entre os países latinoamericanos e caribenhos e Portugal. O IPDAL é um instituto privado, que tem como ‘core business’ a diplomacia económica e o apoio às empresas portuguesas interessadas em entrar no mercado latino-americano e das Caraíbas. 67


ECONOMIA NACIONAL

E N T R E V I S TA FILIPE COSTA, PRESIDENTE DA COMISSÃO E XECUTIVA DA AICEP

FOTOS: FERNANDO PIÇARRA

GLOBAL PARQUES

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ECONOMIA NACIONAL

“INVESTIMENTOS EM SINES VÃO R E F O R Ç A R A COMPETITIVIDADE N AC I O N A L ” O S P R O J E C T O S A N U N C I A D O S P A R A S I N E S N A S Á R E A S D A P E T R O Q U Í M I C A , E N E R G I A S R E N O V ÁV E I S , INCLUINDO

DE

HIDROGÉNIO

VERDE,

ACESSIBILIDADES

E

INFRA-ESTRUTURAS

DE

DAD OS

E

T E L E C O M U N I C A Ç Õ E S V Ã O F A Z E R D O C O M P L E X O U M A E S T R U T U R A A I N D A M A I S C O M P E T I T I VA , G A R A N T E O P R E S I D E N T E D A C O M I S S Ã O E X E C U T I VA D A A I C E P G L O B A L P A R Q U E S . A A P O S T A M A I S R E C E N T E E M C E N T R O S D E DA D O S E C A P TA Ç Ã O D E C A B O S D E A M A R R A Ç Ã O PA R A DA D O S , E X P L I C A F I L I P E C O S TA , VA I T R A Z E R N O V O N E G Ó C I O .

O vosso negócio cresceu cerca de 9,5% em 2021, face a 2020. Sem efeitos da pandemia teria crescido mais? Prevíamos crescer 9,42%, ficámos em 9,43% [para perto de 14 milhões de euros], mas já estávamos a considerar a pandemia, tal como em 2020. Poderíamos ter crescido mais sem a Covid-19. O nosso volume de negócios reflecte essencialmente a taxa de ocupação na Zona Industrial e Logística de Sines (ZILS), que vale mais de 80% do total, e onde cobramos os direitos de superfície dos terrenos, ou seja, o crescimento significa que a taxa de ocupação aumentou. Com quem? Sobretudo graças à passagem de reserva a direito de superfície dos terrenos para os projetos “Start - Sines Transatlantic Renewable & Technology Campus” [um mega centro de dados de 495MW a energias renováveis promovido pelo consórcio anglo-americanos Start Campus, em parceria com a AICEP, a Câmara Municipal de Sines e Governo] e da expansão do complexo petroquímico da Repsol. Houve ainda alguns contratos para a instalação de unidades mais reduzidas, sobretudo de indústria química.

RICARDO DAVID LOPES

Porque não cresceram mais? Por todo o mundo houve decisões de investimento adiadas e aqui também – no Complexo Portuário, Logístico e Industrial de Sines, no Porto de Sines e na ZILS. Mas este ano prevemos crescer 15 por cento. Como? A passagem de reserva a direitos de superfície plenos dos terrenos do “Start” e da Repsol vai gerar mais negócio, porque irá reflectir o ano inteiro, e temos outros projectos em vista. Algum dos projectos adiados pode ser retomado? Sem dúvida, vários projectos de energias e gases renováveis deverão surgir, a par de outros que não impactarão no nosso volume de negócio, porque são reinvestimentos dentro de unidades que já existem e cujos terrenos já estão arrendados aos clientes. Dentro da área do

complexo da Repsol também há fortes investimentos na descarbonização do próprio complexo e na introdução de uma maior circularidade na produção dos polímeros - vamos, aliás, passar a ter os produtos finais para a indústria transformadora de plástico, o polietileno e o polipropileno. Há também dois projectos-chapéu na refinaria da Galp. Quais? O conceito de “green energy hub” [até 2030], com uma série de elementos de descarbonização da actividade refinadora, e o “Moving to Sustainability”, ligado à descarbonização dos transportes que não se prevê no futuro que sejam electrificados, como o aéreo, o marítimo ou de mercadorias via TIR. 69


ECONOMIA NACIONAL

PERFIL D E S ÃO F R A N C I S C O PA R A S I N E S Lidera desde 2018 a Comissão Executiva da aicep Global Parques - Gestão de Áreas Empresariais e Serviços, S. A., sendo responsável pela gestão de parque industriais do Estado, com destaque para a Zona Industrial e Logística de Sines (ZILS) Quadro da aicep, foi cônsul económico e comercial de Portugal em São Francisco, entre 2015 e 2018, e antes disso em Xangai, entre 2011 e 2015. Em Lisboa, na aicep, foi técnico dos Projetos PIN, gestor de clientes na Divisão PME e director do Gabinete de Imprensa. Antes, foi o encarregado da Estrutura de Missão para a Gestão dos Fundos Comunitários no Ministério da Administração Interna, coordenador das organizações não-europeias nas relações externas da ANACOM. É doutorando em Estudos de Segurança e Estratégia na Universidade Nova de Lisboa e mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional pelo ISEG.

Os projectos para Sines para os próximos anos rondam os 18 mil milhões de euros de investimento. É também um sinal de competitividade vossa? O importante é a competitividade do país. São grandes investimentos logísticos, energéticos e industriais de matérias base e em infra-estruturas tecnológicas. O nosso parceiro, Porto de Sines, com o Terminal XXI em expansão, vai duplicar a capacidade de dois para quatro milhões de contentores/ano, e quando for feito o Terminal Vasco da Gama, volta novamente a duplicar para oito milhões de contentores – o que já é comparável ao porto de Hamburgo [8,5 milhões], por exemplo.

Ganham escala… Acrescenta escala e uma grande competitividade ao desenvolvimento da nossa Zona de Actividades Logísticas (ZAL), com perto de 270 hectares, que está na retaguarda destes dois terminais de contentores e do Terminal Multiusos de Sines – o antigo terminal de carvão que, quando estiver orientado para novas cargas, vai permitir uma grande inserção de Portugal nas cadeias logísticas globais, o que vai reforçar competitividade nacional. Que novas cargas? Uma das ideias que estamos a explorar como sendo mais viável é o comércio intercontinental de

produtos agrícolas, ligando América do Sul, Europa, Médio Oriente e Norte de África. O concurso para o Terminal Vasco da Gama ficou vazio… A pandemia teve esse efeito, isso não atrasou o processo, porque o que faz sentido é que o Vasco da Gama comece a ser construído quando estiver concluída a expansão do Terminal XXI, em 2025. O concurso deverá ser lançado agora, no primeiro semestre. Também os investimentos em curso e por lançar nas acessibilidades rodo-ferroviárias vão reforçar a competitividade do complexo de Sines.

PREVÍAMOS CRESCER 9,42% EM 2021, FICÁMOS EM 9,43%, MAS J Á E S TÁVA M O S A C O N S I D E R A R A PA N D E M I A .

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ECONOMIA NACIONAL As funções do complexo têm vindo a aumentar… Sim. Começou com granéis líquidos, petroquímica, e carvão e gás. Quando se fez o Terminal XXI, passou a ter carga contentorizada, que ninguém quer que seja apenas para ‘transhipment’, dado que serve também para optimizar as nossas importações e promover as exportações e a actividade reexportadora. Captar mais projectos energéticos, de renováveis e hidrogénio, é uma aposta? Sem dúvida. Parte do crescimento que contamos ter este ano tem muito a ver com a instalação de novos clientes da área de produção de gases renováveis. Neste momento, temos perspectivas de dois projectos-tipo de hidrogénio e amónia verdes, com investimentos acima dos 1.000 milhões em casa. Na Repsol, há projectos de descarbonização, mas também há a perspectiva de uma eco-fábrica de reciclagem química. Para reciclar o quê? Todo o lixo da Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo, Algarve – excepto aquele que tem que ter reciclagem mecânica, como o vidro ou os metais. Deste processo de reciclagem química sai etileno circular, que depois é injectado no processo produtivo do complexo petroquímico,

e o resto vai para biometanol. O projecto de hidrogénio verde, GreenH2Atlantic, coordenado pela EDP-R, é um dos que está na calha… O piloto arranca com 100 MW, mas o projecto é escalável até 1GW ou 2GW. Tem a EDP e tem a Galp, sendo que o grande consumidor de hidrogénio é a refinaria, que actualmente consome hidrogénio cinzento do ‘cracking’ do gás natural. Ligado a este processo há um plano muito interessante, liderado pela REN, de construção de um anel em torno do Complexo de Sines para distribuição de gases renováveis às indústrias. O nosso objectivo aqui é descarbonizar o complexo e atrair mais indústria química. Um dos vectores de desenvolvimento recentes em Sines está ligado às telecomunicações e energia…. O “Sines Tech” foi lançado em Outubro de 2019, com o presidente da Câmara de Sines e com o próprio potencial primeiro cliente, a EllaLink. Lançámos este “produto” porque vimos aqui um novo espaço… Porquê? Há um contexto que tem a ver também com o quadro regulatório da União Europeia e com a estratégia para haver ‘data gateways’, ou seja, processamento de dados europeus, na Europa. Havia cidades líderes nesta matéria, conhecidas pelo acrónimo

FLAP, às vezes FLAPD [Frankfurt, Londres, Amesterdão, Paris e vezes Dublin], e estes ‘data centers’ vão ser cada vez maiores e terão de ser alimentados por energias de fontes renováveis. Vão também querer ficar perto de ‘clusters’ de amarração de cabos. Vai, assim, haver novos polos, necessariamente na costa, de amarração de cabos submarinos de telecomunicações, e grandes centros de dados fora dos centros urbanos. São grandes consumidores de energia… Sim, a maior parte do custo é em electricidade. Achamos que reunimos em Sines todas as condições: temos, a Norte do Cabo de Sines, uma morfologia de costa muito boa para amarrar cabos – é funda, rochosa, parte é ainda jurisdição portuária, tem pouca actividade humana, é possível fazer canais de acesso, etc.. Temos terreno público, para projectos escaláveis, temos uma enorme intensidade energética e há a perspectiva de vir a ter não só electricidade de fontes renováveis, como produção de hidrogénio no próprio complexo, para compensar, por exemplo, a intermitência natural da fotovoltaica e eólica. Temos ainda uma excelente interligação elétrica e a possibilidade de a desenvolver – o que está aliás a ser feito. Temos água industrial, temos infra-estruturas de tomada e rejeição de água do mar

POR TODO O MUNDO HOUVE DECISÕES DE INVESTIMENTO A D I A D A S E AQ U I TA M B É M , M A S E S T E ANO PREVEMOS CRESCER 15%.

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ECONOMIA NACIONAL

VA M O S PA S S A R A T E R O S P R O D U T O S F I N A I S PA R A A INDÚSTRIA TRANSFORMADORA DE PLÁSTICO, O POLIETILENO E O P O L I P R O P I L E N O , G R AÇ A S À E X PA N S ÃO D A R E P S O L .

[para arrefecimento], ou seja, todas as condições para estes projectos. O que já está no terreno? Já temos o cabo da EllaLink, que liga a União Europeia (UE) directamente à América do Sul (Fortaleza). É um cabo de grande capacidade, corta a distância para metade, tem algumas implicações de soberania também – por ser a primeira ligação directa da UE à América Latina que não passa pela América do Norte. Há agora a perspectiva de um novo cabo, o Medusa, que faz um circuito no Mediterrâneo e vai ligar Sines directamente a Marselha, actualmente o maior centro de amarração de cabos do Sul da Europa – já tem 15. Há também o ‘data center’ de que falámos no início… Sim, é um projecto grande, que pode ir até 3.500 milhões de euros de investimento, e há um outro em carteira - um centro de supercomputação. Nacional? Internacional, estamos aliás a ver com eles a questão das interligações e do fornecimento eléctrico, que são as mais relevantes. Estou confiante que, neste ano, pelo menos o cabo Medusa contratamos, e que, até 2023, vamos ter mais ligações. Há várias possibilidades de amarração de cabos que nos vão ligar ao Norte da Europa 72

e aos EUA, sendo que um deles seria excelente, porque amarraria directamente Sines a Jacksonville, na Florida, e iria gerar muito movimento. Têm também o BlueBiz, o parque empresarial de Setúbal. Qual é o ponto de situação? Setúbal sentiu muito a crise pandémica. Os principais empregadores são duas fábricas de componentes aeronáuticos, um sector que, literalmente, “aterrou”. Chegámos a ter notícia da intenção de encerramento de ambas, mas tal ainda não ocorreu - e uma delas já reforçou até o compromisso de ficar. Essas unidades estão paradas? Uma já recuperou totalmente e está a tratar connosco de desenvolver a sua actividade, vamos aliás fazer alguns investimentos nas instalações deles, criando condições mais favoráveis para que possam ficar, é o nosso trabalho de retenção de investimento. A outra poderá estar num processo de consolidação, pode ficar ou não. Mas também concluímos que faltava lançar ali um vertical de infra-estruturas de telecomunicações, e há condições para acolher alguma indústria, nomeadamente agro-alimentar e química. E o parque de Sintra? O AlBiz é um parque pequeno. Temos 11 clientes – e está cheio! Em 2020

investimos num pavilhão grande para um cliente, já expandimos o possível. A aicep Global Parques dispõe de uma ferramenta, o Portugal Site Selection, para apoiar empresas na escolha da sua localização no país. Tem muita procura? É um serviço que prestamos com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, trata-se de uma ferramenta que concentra a informação oficial, agregando toda a oferta de localizações industriais e logísticas, e que tem como principais utilizadores ‘site selectors’, como bancos de investimento, escritórios de advogados, imobiliárias, contrapartes da aicep e mesmo colegas nossos em delegações no exterior. Já temos cerca de 70% dos municípios na plataforma, até porque alguns não têm parques empresariais ou industriais. Em 2021 tivemos 10.238 visitas oriundas de 132 países. O serviço tem evoluído? Começámos por ter, na ferramenta, apenas terrenos industriais, depois passou a ter lotes disponíveis de terrenos industriais dentro e fora de parques empresariais, infraestruturados e não infra-estruturados, depois o mesmo para logística, e agora há um cadastro de activos que os municípios vão carregando. Há também, entretanto, a componente de espaços para escritórios. l


ECONOMIA NACIONAL

ROY GARIBALDI, PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA SDM

E S TA B I L I DA D E E C O N F I A N Ç A DOS INVESTIDORES DETERMINAM C O N T R I B U TO D O C I N M PA R A A

ECONOMIA DA MADEIRA

A

estabilidade, a previsibilidade e a segurança jurídica são princípios fundamentais que os investidores valorizam nos processos de decisão para o desenvolvimento de negócios à escala internacional. Sempre que estes princípios foram respeitados e conviveram com os benefícios inerentes ao Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), ficou comprovada a capacidade deste instrumento de atracção de investimento externo de contribuir para a economia da Madeira e do País. Com a crise sócio-económica decorrente da pandemia, que fez soar os alarmes nas regiões economicamente dependentes de um mono-produto como o turismo, certamente a indústria mais afectada a nível mundial, as mais valias do CINM como instrumento de atracção de investimento e,

simultaneamente, mecanismo capaz de ajudar os investidores portugueses no desenvolvimento dos projectos de internacionalização das suas empresas, tornaram-se ainda mais evidentes. Como tal, tem sido particularmente difícil explicar aos investidores porque Portugal não assegurou a prorrogação da admissão de novas empresas a partir de 1 de Janeiro de 2022, colocando o CINM numa situação de impasse e de incerteza e prejudicando novamente a sua credibilidade nos mercados, contrastando claramente com o posicionamento de Espanha que tem defendido de forma acérrima a Zona Especial Canaria (ZEC), regime congénere do CINM, na medida em que entende o seu papel

fundamental para o desenvolvimento das Ilhas Canárias. Uma situação que poderia ter sido evitada, sublinhe-se, se tivessem sido acolhidos os apelos feitos em 2020 para uma prorrogação do regime do CINM nos moldes pensados pela Comissão Europeia quando criou condições para mitigar a crise económica e financeira provocada pela pandemia do COVID-19, designadamente ao facilitar o prolongamento por três anos, até ao fim de 2023, de diversos regimes de Ajudas de Estado, no qual se insere o Regime IV do 73


ECONOMIA NACIONAL

Centro Internacional de Negócios da Madeira. Tal opção teria conferido ao CINM maior estabilidade para que pudesse contribuir para a recuperação económica e social da Região neste período tão difícil e, complementarmente, cumprir com os objectivos traçados no quadro do que foi acordado com Bruxelas em Março de 2015 no âmbito das negociações do IV Regime fiscal do CINM. Recorde-se que a Madeira beneficia deste regime de Ajudas de Estado porque, à luz do Tratado de Funcionamento da União Europeia, são reconhecidos os seus constrangimentos permanentes como região ultraperiférica, como são a insularidade, a dimensão reduzida do seu mercado interno, o isolamento e a excessiva dependência económica do turismo. Constituído por uma Zona Franca Industrial, um sector de Serviços Internacionais e um Registo Internacional de Navios (MAR), como factor de atracção de investimento, as empresas licenciadas para operar no âmbito do CINM beneficiam de uma taxa de IRC reduzida até o fim de 2027, uma das mais competitivas da União Europeia, bem como de um conjunto de outros incentivos, tanto para as empresas licenciadas bem como para os seus sócios. A percepção efectiva das valias 74

que o CINM pode acrescentar à economia nacional e regional está patente no conjunto de resultados que tem gerado ao longo dos anos, entre os quais se destacam, no plano quantitativo, o contributo para o PIB da Madeira, a criação de milhares de postos de trabalho, directos e indirectos, as receitas fiscais oriundas das empresas e dos trabalhadores do CINM e, no plano qualitativo, a atração e desenvolvimento de actividades sofisticadas e inovadoras bem como uma interacção positiva da CINM com outros sectores da actividade económica nacional e regional. Os últimos dados conhecidos sobre a evolução do número de empresas, de 31 de Dezembro de 2020, revelam que estavam registadas no CINM um total de 2.434 entidades, e no que respeita à criação de emprego, os dados oficiais disponibilizados pela Direcção Regional de Estatística da Madeira (DREM), relativamente ao fim de 2019, confirmam que o CINM era responsável por um total de 3.122 postos de trabalho diretos, o que corresponde a um crescimento de 7,8% com relação a 2018. Adicionalmente, cabe referir que os

dados sobre a receita fiscal gerada e a criação de emprego testemunham, particularmente neste período de crise pandémica, contributos concretos e fundamentais do CINM para a economia da Região Autónoma da Madeira. Como atesta o aumento da receita de IRS no âmbito das empresas do CINM, de 4,7% em 2019 para 5,6% do total arrecadado com este imposto na RAM em 2020, o crescimento do emprego verificado na praça de negócios madeirense, apesar do ambiente de crise mundial, sinaliza a resiliência demonstrada pelas empresas do CINM e a capacidade para manter um importantíssimo contributo para a economia da Região a vários níveis, constituindo uma fonte alternativa de criação de emprego, na sua maioria qualificado. Por isto, merece ser destacado que a criação dos mais de 3 milhares de postos de trabalho directos (Excluindo os tripulantes dos


ECONOMIA NACIONAL

navios registados) e as receitas fiscais oriundas das empresas e dos trabalhadores do CINM, representaram, em média, nos últimos 10 anos, 15% de toda a receita fiscal gerada na RAM. Também é de ressalvar que o contributo do CINM para as contas e para a economia da Região, neste período difícil para os madeirenses, ficou particularmente evidenciado quando foram revelados pela Autoridade Tributária da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM) os dados da receita fiscal regional relativa à actividade económica de 2020. Segundo os dados apurados, o CINM gerou em 2020 um total de 108,1 milhões de euros, sendo de destacar que deste montante mais de 70% das receitas de IRC geradas na Região tiveram origem em empresas do Centro Internacional de Negócios da Madeira. Ou seja, dos 77,3 milhões de euros arrecadados em sede de IRC, 54,5 milhões foram entregues pelas empresas do CINM aos cofres da Região. Num ano em que se verificou uma quebra exponencial da receita fiscal do tecido empresarial da Região, o CINM conseguiu aumentar o seu contributo em termos percentuais e absolutos. Em termos globais, comparando a receita fiscal total da Região em 2020 com aquela gerada no quadro da actividade do CINM no mesmo ano, esta segunda manteve-se

acima dos 108 milhões de euros, enquanto que aquela relacionada com a restante actividade económica regional caiu mais de 100 milhões, o que se traduziu num contributo do CINM para a Região na ordem dos 12,7%, superior aos 11,3% registados em 2019. Para estes números e resultados tem contribuído, por exemplo, o crescimento de empresas tecnológicas a operar no âmbito do CINM. Trata-se de um sector em franco desenvolvimento, que beneficia do ambiente ‘business friendly’ que caracteriza a Madeira e a sua capacidade de, a par dos incentivos fiscais proporcionados pelo CINM, assegurar recursos humanos especializados no campo das novas tecnologias e um conjunto de serviços de apoio muito eficientes, a par de relevantes sinergias desenvolvidas com a Universidade da Madeira no âmbito da formação tecnológica e também com a Start-Up Madeira ao nível da facilitação de estruturas empresariais e do empreendedorismo. O impacto deste sector na internacionalização da economia da Madeira é também sinalizado pelo facto destas empresas terem origem em 13 países, na sua larga maioria da Europa e de outras economias evoluídas, como é o caso dos

Estados Unidos da América. Também não será por acaso que o estudo do Banco de Portugal de Agosto de 2018 revelou que as empresas com sede no CINM, que representavam 7% das empresas com sede na Região, eram responsáveis por 10% das pessoas ao serviço e por 33% do volume de negócios. Mais, 82% do volume de exportações das empresas com sede na RAM estava associado a empresas sediadas no CINM, as quais eram igualmente responsáveis por 88% da componente importada de compras de bens e de compras de Fornecimentos e Serviços Externos (FSE). Estes indicadores justificam plenamente as razões que levaram a Madeira a criar formalmente, nos anos 80, o Centro Internacional de Negócios como instrumento de diversificação e de desenvolvimento económico regional, dotado de um regime de incentivos fiscais e de condições competitivas para através da sua internacionalização defender a economia dos riscos resultantes de uma situação de mono-produto. Na nossa perspectiva, nunca, como agora, foi tão clara a relevância da sua criação e continuação. l 75


ECONOMIA INTERNACIONAL

ECONOMIA GLOBAL DEVERÁ CRESCER 4,3% E M 2 0 2 2

ANA VAL ADO

E S TA S S ÃO A S P R E V I S Õ E S PA R A O C R E S C I M E N TO DA E C O N O M I A G L O B A L E M 2 0 2 2 , D E AC O R D O COM O BANCO DE INVESTIMENTO CREDIT SUISSE, QUE ASSUME QUE O CRESCIMENTO ECONÓMICO “ D E V E R Á S E R N O VA M E N T E S Ó L I D O E S T E A N O , C O M A S A C Ç Õ E S A P R O P O R C I O N A R R E N D I M E N T O S AT R A C T I V O S , A P E S A R D E M A I S M O D E R A D O S Q U E N O A N O PA S S A D O ”. J Á PA R A A E C O N O M I A P O RT U G U E S A O B A N C O S U Í Ç O A N T E C I PA U M C R E S C I M E N TO D E 5 , 3 % PA R A O ANO QUE AGORA SE INICIA.

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ECONOMIA INTERNACIONAL PRINCIPAIS ECONOMIAS MUNDIAIS (PREVISÃO 2022)

S

egundo as Perspectivas de Investimento do Credit Suisse para 2022, “a economia global deverá crescer 4,3%”, mantendo a sua curva ascendente no sentido da recuperação, impulsionada por uma procura robusta, uma política fiscal e monetária favorável e pelo abrandamento das restrições relacionadas com a COVID-19. Neste contexto, o estudo estima que as acções proporcionem aos investidores rendimentos atractivos, apesar de mais moderados do que em 2021. Embora vários bancos centrais tenham começado a retirar os estímulos monetários concedidos durante a pandemia, as taxas de juro deverão continuar perto do zero nas principais economias desenvolvidas. Os analistas do banco acreditam também que, no pós-pandemia, 2022 vai ver “o início de uma grande transição para um mundo em que a sustentabilidade desempenha um papel cada vez maior para os consumidores, negócios, governos e reguladores”. No que diz respeito à inflação mundial, um dos temas centrais em 2021, o banco de investimento prevê que atinja os 3,7% em 2022, acompanhada por um aumento dos salários a nível mundial. De relembrar que a estimativa para 2021 foi de 3,5% e que em 2019 a inflação global se situou nos 2,5%. Para Michael Strobaek, Global Chief Investment Officer do Credit Suisse: “Tendo em conta a recuperação económica contínua, esperamos que as acções apresentem dividendos

atractivos em 2022, garantindo uma exposição suficiente à classe de activos em carteira”. O especialista recomenda ainda que os investidores devem procurar estratégias para diversificar a sua carteira de oportunidades. Relembrando a importância das alterações climáticas nos dias de hoje, Michael Strobaek diz ser este um tema que os investidores devem ter em conta nas suas decisões de investimento”. A Chief Investment Officer International Wealth Management and Global Head of Economics & Research do Credit Suisse, Nannette Hechler-Fayd’herbe, refere que a pandemia da Covid-19 foi “um choque sem precedentes para a economia global, o que levou negócios e decisores a “território desconhecido”. A especialista em investimentos destaca a importância de investimentos temáticos com tendências a longo prazo que podem beneficiar das ainda baixas taxas de juro e da recuperação económica. 77


ECONOMIA INTERNACIONAL

M A R I A N A R E I S P A I VA M O N T E I R O , E C O N O M I S TA N O C R E D I T S U I S S E E U R O P A

O que podemos esperar da economia portuguesa este ano? Esperamos que a economia portuguesa continue a sua recuperação e cresça 5,3% em 2022, relativamente a 2021. Este crescimento deverá ser sustentado por um aumento do consumo e do investimento e por uma recuperação gradual das exportações de serviços. À medida que as restrições à mobilidade global forem sendo levantadas e as pessoas se sentirem mais confiantes em viajar, a partir da Primavera, contamos com um aumento substancial da procura externa de turismo e serviços, registando níveis mais próximos dos registados antes da pandemia. Este facto sustentará melhores resultados nos indicadores do mercado de trabalho e na confiança das empresas. O valor dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) proveniente da União Europeia irá apoiar o investimento público, permitindo ao mesmo tempo que o défice orçamental diminua. Adicionalmente a isto, as reformas económicas poderão potenciar ainda mais o crescimento do país a longo prazo. Os resultados das eleições legislativas de 31 de Outubro foram positivas para o país. Um governo maioritário reduz a probabilidade de instabilidade política no país durante os próximos anos, ao mesmo tempo que resolve os impasses no Orçamento de 2022, que constituía um grande risco para a recuperação económica do país. Quais são os principais riscos para a economia portuguesa? Em que medida pode a aceleração da inflação na Zona Euro para valores recorde afectar Portugal? Tal como em outros países da Zona Euro, a variante Omicron, a inflação e os preços elevados da energia são factores de risco que podem afectar a confiança dos consumidores e das empresas a curto prazo, mas o impacto deve, em certa medida, ser atenuado pela poupança acumulada. No entanto, esperamos que estas questões se tenham dissipado

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até à Primavera. Além disso, a não resolução dos estrangulamentos na cadeia de abastecimento global na indústria automóvel local e na construção pode também pesar. Um risco constante é o aparecimento de uma nova variante da Covid-19, que pode levar os países a voltar a impor restrições de viagem. Este facto poderia prejudicar a recuperação da indústria do turismo e da procura interna de serviços em geral, mas acreditamos que o efeito seria bastante moderado, dada a elevada taxa de vacinação no país. Mas, as medidas de emergência e a redução das receitas poderiam levar a que o défice orçamental fosse um pouco mais elevado do que o actualmente esperado. O factor mais importante para a economia portuguesa é a sua taxa de inflação, e não a média da Zona Euro. O facto de a inflação portuguesa ter provavelmente um desempenho inferior à média da Zona Euro é um factor positivo em termos das perspectivas de consumo das famílias. No entanto, se a inflação em toda a Zona Euro se mantiver suficientemente elevada para pressionar o BCE a apertar a política monetária, a actividade em Portugal será afectada negativamente por taxas de juro mais elevadas. No entanto, a nossa opinião é que é pouco provável que o BCE aumente as taxas em 2022. Será 2022 um ano de transição económica e financeira, com maior enfoque na sustentabilidade, por exemplo? Sim, e isto será parcialmente impulsionado pela iniciativa da Comissão Europeia através da sua nova taxonomia verde e do Plano de Recuperação e Resiliência. O PRR irá deslocar parte da despesa pública para infra-estruturas e empresas sustentáveis. Será uma tendência não só para 2022, mas para os próximos anos e irá, provavelmente, atrair investimentos em empresas mais sustentáveis, bem como em tecnologia verde e produção e redes de energia, na Europa e em todo o mundo. l


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ECONOMIA INTERNACIONAL THE ECONOMIST

M A R K E T S H AV E FA L L E N B E C A U S E T H E E R A

OF FREE MONEY IS COMING TO AN END TIGHTER MONEY UNCERTAINT Y

A

MEANS

fter the interestrate cuts and hectic central-bank bondbuying of early 2020, investors came to believe that central-bank stimulus would pretty much last for ever. Today, however, as investors come to terms with the end of the era of free money, financial markets are 80

FINANCIAL

VOL ATILIT Y

in spasms. Markets now expect interest rates to increase four times in 2022 as the Fed fights the inflation that has lifted growth in the consumer-price index to 7%, a level barely imaginable a year ago. On January 26th the Fed confirmed that it would end its bond-buying programmeand signalled that it would probably raise rates soon. This hawkish shift is the most

AND

ECONOMIC

important among many to have taken place in the world’s central banks in recent months. But it has only recently begun to bite in asset markets. After reaching a vertiginous high of nearly 40 times cyclically adjusted earnings at the turn of the year, the s&p 500 index of stocks has fallen by 9% in January (markets in Europe and Asia have fallen too, though by less).


THE ECONOMIST ECONOMIA INTERNACIONAL

Markets’ intraday volatility has been just as striking, reflecting investors’ struggle to digest the consequences of tighter money. One is the repricing of long-dated assets. As interest rates collapsed during the pandemic, the value of securities with pay-offs stretching far into the future soared. Shares of technology firms like Zoom and Netflix, already sent higher by the switch to remote work and at-home entertainment, looked even more desirable as the return on bonds all but vanished. Their rise propelled the American stockmarket. Lately, however, long-term real interest rates have surged in anticipation of monetary tightening, causing a reversal of fortune. The turnaround has been dramatic for the most speculative stocks and novel instruments such as cryptocurrencies. The effect of higher rates on the real economy is slower-burning and harder to anticipate. Ultracheap money let companies raise

vast amounts of capital in 2021, a boom that will not be repeated. Homebuyers have assumed big mortgages as house prices have soared. Distressed firms have taken advantage of government-backed loans. Government debt-to-GDP ratios have ballooned, because of large, sustained deficits in the rich world and a collapse in growth in many emerging economies. High indebtedness makes the world economy more sensitive to changes in monetary policy. Central banks must raise rates enough to quell inflation but not so much that they tip economies into recession as interest burdens rise. Households have stronger balance-sheets than you might expect given the depth of the recent recession, but their health depends in part on asset prices staying high. And if tighter money at the Fed causes turmoil in emerging markets, the consequences could rebound on America’s economy. As they aim for a narrow landing strip, central banks also face high winds, because of the risk of war in Ukraine and uncertainties associated with the pandemic. Economists are struggling to forecast how many people who left the workforce in 2020 will eventually return – and the more that do, the less the chance that a damaging wage-price spiral will take hold.

THE TURNAROUND HAS BEEN D R A M AT I C FOR THE MOST S P E C U L AT I V E STOCKS AND NOVEL INSTRUMENTS SUCH AS CRYPTOCURRENCIES.

They are also grappling with doubts over when consumers will shift their spending back to services, easing the upward pressure on goods prices caused by bunged-up supply chains. Economic data have become harder to interpret. If retail sales fall, for example, does it reflect economic weakening, or a welcome return to normal patterns of consumption? The uncertainty about the global economy’s strength and its ability to withstand higher rates, combined with central banks’ twitchy triggerfingers as they worry about inflation, means that markets are entering a new phase. During much of the pandemic, cheap money drove asset prices to astonishing highs even as the world economy was in the dumps. Today they are tightly bound to its fate. © The Economist Newspaper Limited, London, 29th January 2022. l 81


E M P R E S A E M D E S TA Q U E F I D E L I D A D E

SEGURADORA ESTIMA TER 35% DO NEGÓCIO NO INTERNACIONAL AT É 2 0 2 5

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FIDELIDADE

E M P R E S A E M D E S TA Q U E

A S S U M I N D O - S E C O M O E M P R E S A D E S E G U R O S M U LT I N A C I O N A L , A F I D E L I D A D E D E F I N I U U M A N O VA V I S Ã O PA R A O F U T U R O . P O S I C I O N A - S E C O M O U M O P E R A D O R D E S E G U R O S F O C A D O N O P L A N O I N T E R N A C I O N A L , D A N D O VA L O R A O S M E R C A D O S O N D E E S TÁ P R E S E N T E AT R AV É S D A S M E L H O R E S P R ÁT I C A S , Q U E F O R A M A BASE DO SEU CRESCIMENTO EM PORTUGAL AO LONGO DE MAIS DE DOIS SÉCULOS DE HISTÓRIA.

ANA VAL ADO

C

om robustez para investir em seguradoras de outros países e capaz de transferir conhecimento técnico e suporte operacional, a Fidelidade tem apostado, nos últimos anos, numa forte estratégia

de expansão internacional. Com as mudanças organizacionais internas e a liderança consolidada no mercado nacional, a Fidelidade preparou-se para ampliar a sua actividade em mais países, que, nas palavras do então Presidente da Comissão Executiva da Fidelidade e actual Chairman, Jorge Magalhães

Correia, “poderia representar um conjunto de novas fontes de negócio para a Fidelidade, dando estabilidade e projecção de crescimento futuro à companhia”. Num primeiro momento a sua estratégia internacional centrou-se nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

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E M P R E S A E M D E S TA Q U E F I D E L I D A D E

EVOLUÇÃO LOGÓTIPOS DA EMPRESA

1835 - FUNDAÇÃO DA FIDELIDADE

(PALOP) e nos países com uma comunidade portuguesa relevante, como a França e a Espanha. Em 2020, a Fidelidade estava presente em 12 países. No Peru, a La Positiva, adquirida em 2019, tinha conquistado o terceiro lugar, com uma quota de mercado de 13,2% e, na Bolívia, já tinha quase 24%. No ano seguinte marca presença no Chile, com uma sólida posição comercial e mais de 32 milhões de euros em prémios de seguro no primeiro ano de operação. Também em 2021, na China a Fidelidade passou a companhia de direito local, e prosseguido o processo de internacionalização, anunciou, no último dia de 2021, a aquisição de 70% da Seguradora Internacional de Moçambique, SA, que opera sob a marca “Ímpar”, com forte tradição e implantação no mercado, posicionando-se assim como uma das seguradoras de referência deste país. Com a aquisição de 70% do capital da Insurtech Prosperity Group AG, concretizada já no início de 2022, a Fidelidade reforçou a sua oferta para os clientes e famílias que procuram investir as suas poupanças a longo prazo. O 84

1999 - REBRANDING DA FIDELIDADE

Prosperity Group AG é um grupo inovador com mais de 98% dos seus clientes provenientes da Suíça e Alemanha, dois dos mercados europeus com o mais alto nível de sofisticação e maturidade nesta linha de negócio, cuja aquisição permitirá com que a Fidelidade possa melhorar a sua oferta em seguros de poupança e disponibilizar soluções mais flexíveis aos seus parceiros de negócio na distribuição. Já em 2021 a quota do negócio internacional no total da seguradora, considerando o conjunto de Vida e Não Vida, representava quase 24%, prevendo-se que alcance os 35% do negócio até 2025. Os prémios Não Vida haviam alcançado em 2020 os 607 milhões de euros (136 milhões de euros em 2018), e representavam 28,5% do conjunto da Fidelidade. Também o crescimento dos funcionários fora de Portugal passa a ser significativo, totalizando actualmente 3.600 pessoas, que representam 52% do quadro pessoal do Grupo Fidelidade. No fecho de 2021, a carteira de clientes da Companhia era de 6,8 milhões, ou seja, representam 67 % dos do Grupo Fidelidade. Membro da Insurope Network, uma das

2013 - LANÇAMENTO DA MARCA ÚNICA FIDELIDADE

maiores redes de companhias de seguros no contexto mundial, que presta serviços de gestão integrada de programas Employee Benefits (EB) para empresas multinacionais em todo o mundo, a Fidelidade tem ainda a capacidade de aceder a novas oportunidades de negócio no contexto internacional para alargar o seu portefólio de clientes ‘corporate’ multinacionais. Uma história com mais de 200 anos A história da Fidelidade remonta a 1808. Ao longo dos mais de 200 anos dedicados à protecção das pessoas e dos seus patrimónios, a Seguradora foi consolidando a sua posição como líder do mercado de seguros em Portugal, não só no Ramo Vida como no Não Vida, não só motivado pelo seu crescimento orgânico, mas também com a integração de várias Companhias importantes neste sector. Durante a experiência adquirida com a sua história, foram vários os momentos que marcaram a actividade da Seguradora. Na sua fundação, a Companhia teve a participação, como sócios, de empresas familiares, pessoas individuais e outras empresas. Depois do 25 de Abril de 1974 a


Fidelidade foi nacionalizada e, posteriormente, na década de 80, passou a integrar o grupo público da Caixa Geral de Depósitos. Os primeiros anos do século XXI, foram marcados por várias fusões, nomeadamente das seguradoras Mundial Confiança e Império-Bonança, que, juntamente com a ampliação da rede comercial do país, posicionaram a Fidelidade na liderança do mercado português. Na segunda década deste século, para além da estratégia de internacionalização do negócio, a Fidelidade inicia também um processo de transformação da Companhia, não só na sua actividade, negócio e rede comercial, bem como na estrutura de recursos humanos. Em paralelo, ocorre a sua privatização, com o Grupo Fosun International Limited a adquirir 84,99% das acções da Companhia, que manteve a CGD como segundo accionista. O novo quadro accionista permitiu à Fidelidade acelerar o processo de transformação e inovação em curso, com o objectivo de fortalecer o negócio em Portugal, procurando maximizar a rentabilidade, proteger a participação de mercado e explorar oportunidades de crescimento. Em 2020, a Fidelidade fez um aumento de capital com fundos próprios, em resultado de uma reorganização societária na qual integrou a Multicare e a Fidelidade Assistance como filiais (anteriormente estavam parcialmente na CGD e na Fosun). Com esta operação, o Rácio de Solvência individual da Fidelidade alcançou 160%, em linha com o mercado e com as exigências das autoridades de controlo. Transformando a organização para enfrentar as tendências 85


E M P R E S A E M D E S TA Q U E F I D E L I D A D E comerciais, mais centradas no cliente, e para se adaptar à expansão internacional projectada, a Fidelidade aposta na inovação dos produtos e serviços disponibilizados, na melhoria comercial e dos canais, na digitalização e no crescimento com sinergias. O paradigma organizacional foi sendo alterado, para posicionar a Companhia como uma empresa menos orientada pelo produto, com um maior foco nas necessidades dos diferentes segmentos de clientes e maior agilidade e cooperação entre departamentos. A Fidelidade foi assim consolidando a sua estratégia global assente no compromisso de garantir a excelência operacional e a qualidade do serviço que a distingue, para assegurar um diversificado leque de soluções inovadoras de protecção destinados a particulares e empresas através de várias seguradoras (Fidelidade, Via Directa, Multicare e Fidelidade Assistência), assim como de participações estratégicas em empresas de serviços incluídos na sua cadeia de valor, destacando-se a Luz Saúde – líder na prestação de cuidados de saúde em Portugal. Dando continuidade ao caminho de inovação e de aposta na excelência da experiência de cliente tendo por base uma abordagem digital e de reforço da omnicanalidade, com a expansão internacional, a Fidelidade pretende reduzir a dependência do mercado nacional e gerar novas fontes de receitas para a Companhia, mas também aproveitar as oportunidades de crescimento que existem nos mercados emergentes e onde possa contribuir para a diferenciação neste sector. Robustez Financeira Consolidando o seu posicionamento na liderança no mercado segurador nacional e reforçando a sua actividade e estratégia internacional e a presença da Companhia nos mercados financeiros, no final de 2021, a agência americana 86

A GESTÃO DA PANDEMIA Promover a Saúde dos seus clientes Distinguida durante anos seguidos como a marca em que os portugueses mais confiam, a Fidelidade tem assumido uma estratégia multicanal na gestão e distribuição dos seus produtos, o que lhe permite responder de forma eficaz às maiores exigências dos mercados em que opera. Em 2020 a forma como se vivia foi bruscamente alterada com a pandemia COVID-19, que também desafiou o sector dos seguros. Para a Fidelidade foi uma oportunidade para reforçar o compromisso da Companhia, de contribuir para a protecção e promoção da saúde dos seus clientes e do seu património, bem como para a protecção dos seus colaboradores, clientes e parceiros de negócio, alargando esta onda de protecção a toda a sociedade. No difícil contexto desse ano, a Fidelidade, sobretudo, através da sua seguradora de saúde Multicare, líder do sector com mais de um milhão de clientes, manteve cobertos os seus segurados afectados com a COVID-19, apesar da prática internacional do sector excluir o risco de pandemias. O apoio em tudo o que pudessem aos clientes reflectiu-se num importante apoio ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) nos momentos mais críticos da gestão da pandemia. Para além do acesso aos testes de despiste à COVID-19 na Rede de Prestadores Multicare, a Companhia foi pioneira ao assegurar a cobertura integral em caso de infecção, a todos os seus clientes com COVID-19 assistidos em hospitais privados. Foram ainda desenvolvidos sistemas digitais de apoio à identificação de sintomas e ampliadas as capacidades de telemedicina (Multicare medicina online). Com esta actuação, a Fidelidade destacou-se ainda mais na proximidade e satisfação junto dos seus clientes. Assumindo a sustentabilidade como uma das suas maiores preocupações, a Fidelidade integrou o programa Vitality na Multicare, alterando o paradigma de seguros de saúde em Portugal, passando a estar focada na prestação, mas também na prevenção, estimulando e recompensando a adopção de comportamentos e estilos de vida saudáveis. Com a evolução da pandemia e face à crescente preocupação com as sequelas provocadas com a COVID-19, a seguradora dá continuidade à protecção da população com a disponibilização de um Check-Up pós-COVID-19 grátis para os clientes Multicare. Protecção reforçada com a disponibilização de uma cobertura abrangente de saúde mental, incluindo a prevenção e o tratamento da doença de foro psiquiátrico – área de saúde que, embora tenha um peso significativo em Portugal, é, em regra, excluída.


de notação financeira Fitch atribuiu à Fidelidade o Rating A, categoria que classifica a companhia como tendo baixo risco de crédito e uma forte capitalização e capacidade para honrar os seus compromissos financeiros. Esta classificação, faz com que a Fidelidade seja uma das duas únicas empresas portuguesas com Rating A. Por outro lado, em Maio de 2021, a Fidelidade emitiu 500 milhões de euros em dívida subordinada (Tier II) a 10 anos, o que permitiu reforçar de forma decisiva os capitais e garantir as condições para continuar a crescer com toda a solidez. No terceiro trimestre de 2021, a Fidelidade reportou que durante os primeiros nove meses do ano, os prémios atingiram 3.392,3M de euros, representando um crescimento de 42,2%, e o rendimento líquido melhorou para 203,9M de euros, um aumento de 37,2%. A Fidelidade alcançou um capital mais robusto com o seu rácio Solvência II a melhorar 36p.p., em comparação com Dezembro de 2020, para um rácio de 180%. Os prémios totais aumentaram 42,2% YoY, com crescimento tanto na actividade Não-Vida como na Vida. Os prémios dos Não-Vida cresceram 5,2%, reflectindo o bom desempenho em todas as linhas de negócio. Os prémios de Risco de Vida e Rendas aumentaram 8,7%, com uma forte contribuição de operações internacionais e prémios Financeiros Vida. O crescimento de 164,9% deste último foi principalmente impulsionado pelo aumento significativo da oferta Unit-Linked em Portugal. O rendimento líquido da Fidelidade atingiu os 203,9 milhões de euros, aumentando 37,2% YoY, um resultado apoiado pelo seu forte Resultado de Investimento. 87


E M P R E S A E M D E S TA Q U E F I D E L I D A D E ROGÉRIO CAMPOS HENRIQUES, CEO DA FIDELIDADE

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P E R G U N T A S

A ROGÉRIO CAMPOS HENRIQUES, CEO DA FIDELIDADE 1. Quais os principais desafios do sector segurador em Portugal e no contexto internacional? A nível internacional sublinharia as alterações climáticas e os grandes desafios e implicações que essas alterações representam para as seguradoras e para toda a sociedade como factores de preocupação mais relevantes. Em Portugal teremos que enfrentar as alterações climáticas como é visível pelo fenómeno de seca que estamos a viver, mas temos ainda desafios acrescidos: a demografia, a falta de cultura de risco, a sustentabilidade do modelo de segurança social, e a necessidade de cobrirmos os riscos sísmicos, enquanto sociedade, são algumas delas. Só apostando numa melhoria da cultura de protecção do risco, é que poderemos, enquanto sociedade, estar melhores preparados para o futuro. A nossa taxa de natalidade está a níveis historicamente baixos, o que terá implicações profundas na estrutura da nossa pirâmide demográfica, e um impacto directo, por exemplo, na forma como teremos que olhar para a sustentabilidade do nosso regime de segurança social. É óbvio que, com menos pessoas a contribuir e mais pessoas a beneficiar, vamos ter um desequilíbrio. As empresas têm que criar mais e melhores soluções de poupança para a reforma e as pessoas têm que ter consciência do risco que representa para o seu futuro não preparar atempadamente a sua reforma. Na Fidelidade estamos a trabalhar nestas áreas, fazendo uma grande transformação do nosso negócio, quer pela inovação, quer pela digitalização e procurando ajudar cada vez mais os nossos clientes a preparem o seu futuro. 2. Qual o impacto da pandemia na actividade da Fidelidade junto da comunidade? Desde as primeiras noticias sobre a descoberta do novo vírus, que na Fidelidade tomámos uma decisão: apoiar em tudo o que pudéssemos os nossos clientes, usando, por exemplo, toda a nossa experiência e ‘know-how’ no sector da saúde: disponibilizámos ‘symptom-checkers’ gratuitos para clientes e não clientes, aplicámos moratórias nos pagamentos, disponibilizámos novos serviços de assistência, como a entrega de medicamentos gratuita, tornámos a medicina ‘online’ numa ferramenta de combate ao vírus de primeira linha, decidimos pagar integralmente os custos de tratamento e de internamento por COVID-19 apesar de não estarmos legalmente obrigados a fazê-lo. Já recentemente estamos a fazer ‘check-ups’ pós-COVID para todos os clientes, apenas para nomear algumas das acções. Foi um grande esforço.

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Fizemos o que uma seguradora deve fazer: proteger as pessoas e o seu património, proteger os colaboradores, clientes e parceiros de negócio e alargando esta onda de protecção a toda a sociedade. Estamos plenamente convencidos de que os resultados positivos que tivemos em 2021 foram profundamente impactados pelo reconhecimento que todos os ‘stakeholders’, nomeadamente os clientes, fizeram deste apoio sólido e inequívoco à comunidade. 3. Como é que a Fidelidade prevê continuar a inovar para uma melhor protecção dos seus clientes? A inovação está no nosso ADN e é indissociável da nossa forma de estar na sociedade. É uma inovação feita por pessoas e para pessoas. A tecnologia é fundamental, mas apenas instrumental. Mas não estamos satisfeitos, temos que fazer mais. Estamos de forma permanente a pensar como podemos proteger melhor os portugueses, as suas vidas, a sua saúde e o seu património de forma cada vez mais adequada antecipando as suas necessidades. E também na melhoria constante da experiência dos clientes. Posso dar alguns exemplos que ilustram esta inovação constante: destacaria o lançamento da App Mysavings 2.0, fundamental para reforçar o nosso posicionamento enquanto parceiro dos nossos clientes no planeamento do seu futuro financeiro, ou o ‘speechbot’ “Maria”, uma solução de atendimento ao cliente na área de assistência, com recurso a inteligência artificial, e que foi reconhecida com vários prémios de inovação em Portugal. Continuámos o investimento no programa Vitality, que recompensa a adopção de hábitos de vida saudáveis pelos nossos clientes, quer no automóvel, em que através da App Mydrive continuamos a incentivar comportamentos de condução mais sustentáveis, quer para o ambiente, quer induzindo a redução da sinistralidade e premiando os clientes que adoptem estilos de condução mais sustentáveis. 4. Qual a estratégia de sustentabilidade que a Fidelidade tem para os próximos anos? Para além do nosso programa de responsabilidade social que é construído em torno do nosso programa Fidelidade Comunidade, um programa de apoio ao terceiro sector e que tem feito muito pela capacitação das organizações que apoiámos, temos também uma noção de intervenção através da nossa acção comercial, dos nossos produtos. A sustentabilidade acaba por ser também inerente ao nosso negócio, à nossa actividade e forma de trabalhar.


F I D E L I D A D E E M P R E S A E M D E S TA Q U E

Quando incentivamos os portugueses a poupar usando qualquer uma das nossas ferramentas, ajudando-os a preparar melhor o futuro, estamos a contribuir para a sustentabilidade. É o caso do PPR 40+ESG, uma solução financeira que associa a poupança à promoção de boas práticas ambientais, e que está totalmente alinhado com os princípios de sustentabilidade defendidos pela Fidelidade. Quando incentivamos a adopção de hábitos mais saudáveis através do nosso programa Multicare Vitality, estamos a contribuir para a sustentabilidade do nosso sistema nacional de saúde. Mas teremos que fazer ainda mais no plano ambiental e contribuir para a preservação do clima, para a preservação da nossa casa, do Planeta Terra. Enquanto seguradora e investidor, as nossas políticas de investimento terão de promover a sustentabilidade. E é o que estamos a fazer através das escolhas que fazemos na gestão dos mais de 17 mil milhões de euros de activos que temos a responsabilidade de gerir. Mas o verdadeiro motor para esta transformação, que teremos que fazer enquanto sociedade, são os nossos clientes, quer particulares quer empresas. Serão as mudanças no seu comportamento, sendo ambientalmente mais responsáveis, quer no tipo de condução que fazem, nos veículos que conduzem, no isolamento das suas casas, no comportamento alimentar e na forma como previnem as doenças. A adopção de comportamentos mais saudáveis é que fará a verdadeira diferença. E a Fidelidade está cá para ajudar também através dos nossos produtos e serviços. Temos muito orgulho na nossa história bicentenária, mas estamos ainda mais empenhados em ajudar os nossos clientes a preparar o futuro… e um futuro mais sustentável. 5. Está na Fidelidade há mais de 15 anos, durante este tempo qual a decisão mais difícil que teve que tomar na seguradora? Felizmente, não consigo isolar uma decisão única. Tenho tido a sorte de trabalhar com uma equipa fantástica, com uma ambição enorme e tem sido possível chegar a consensos neste grande caminho de transformação que

temos vindo a fazer, sem causar disrupções ou fricções mais difíceis de gerir. Mas é óbvio que houve decisões mais arriscadas. Hoje parece óbvio, mas por exemplo, ter adoptado a tecnologia Outsystems há 14 anos atrás foi uma delas. Apostar numa empresa portuguesa que é hoje uma referência mundial, mas que na altura estava “a começar” e mudar o paradigma tecnológico da nossa casa foi um desafio. Essa decisão mudou muita coisa em termos de IT e contribuiu para que nos tornássemos mais eficientes, mas sobretudo mais ágeis enquanto organização. Temos uma das maiores instalações do mundo e somos hoje uma referência mundial na utilização desta tecnologia. Mas não há como negar que embora “informada”, foi uma decisão mais difícil. Felizmente, demonstrou-se uma opção correcta. 6. Como vê o futuro da Fidelidade a nível internacional? A nossa estratégia de internacionalização, fortemente impulsionada nos anos mais recentes, tem-se revelado acertada. Pela primeira vez na história ultrapassámos a barreira dos 1.000 milhões de euros de prémios gerados fora de Portugal. O nosso processo de expansão internacional conta com o apoio dos nossos accionistas e tem sido um sucesso. Tradicionalmente a nossa presença internacional seguia o padrão, ou do apoio à nossa diáspora ou da presença em países com quem temos relações históricas e de fraternidade. Nos últimos anos, temos sido mais ambiciosos. Temos já cerca de 25% do negócio fora de Portugal. Temos hoje a terceira maior seguradora Peruana, a maior na Bolívia, lançamos uma operação Greenfield no Chile que já factura mais de 60 milhões de dólares e que está apenas no segundo ano de actividade, reforçámos recentemente a nossa posição no mercado moçambicano comprando 70% do capital da SIM/Ímpar, e entrámos fortemente no capital da The Prosperity Group, empresa que opera essencialmente na Alemanha e Suíça. Neste momento, estamos com operações próprias em mais de 12 países e temos mais de 7 milhões de clientes espalhados por 7 continentes. Temos já mais clientes a falar castelhano do que português e somos uma das únicas empresas portuguesas com este tipo de expansão internacional. E vamos continuar a expandirmo-nos de forma selectiva para mercados em que podemos acrescentar valor, tendo em conta o ‘know-how’ da Fidelidade em áreas como a gestão multicanal, a excelência da qualidade de serviço e a capacidade de inovação. Não seremos para já uma grande multinacional do sector, mas temos a ambição de sermos uma referência nos mercados em que estamos presentes, pela qualidade, pela excelência, pelo foco no cliente e pela visão humanista que procuramos colocar em tudo que fazemos e que nos distingue. l

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“A M I S S Ã O D A E D I T O R A É A S A LVAG UA R DA D O PATRIMÓNIO NACIONAL” É CONSIDER ADA A EDITOR A PÚBLICA P OR EXCELÊNCIA, DISP ONIBILIZAND O CONTEÚD OS DE FORMA U N I V E R S A L E G R AT U I TA , S E N D O U M V E Í C U L O P R I V I L E G I A D O PA R A A D E M O C R AT I Z A Ç Ã O D O A C E S S O À C U LT U R A E À L E I T U R A . A C O L E C Ç Ã O “ O B R A S D E M Á R I O S O A R E S ” É O M A I S R E C E N T E L A N Ç A M E N T O D A E D I T O R A DA I N C M . U M P R O J E C T O E D I T O R I A L A M B I C I O S O E C O M P L E X O Q U E S E D E C O M P Õ E E M VÁ R I A S FA S E S , M A S I G U A L M E N T E M U I T O G R AT I F I C A N T E .

Assumiu em 2010 a direcção da Unidade de Edição e Cultura (em 2010, Unidade Editorial) da Imprensa Nacional - Casa da Moeda (INCM), a editora pública por excelência que conta com mais de dois séculos e meio de história. Sente uma grande responsabilidade? Sim é uma responsabilidade grande, mas é, sobretudo, um enorme privilégio. Quantas pessoas podem dizer que fazem realmente aquilo que gostam? Como surgiu este desafio? O desafio surgiu ainda em 2009 quando o então Presidente do Conselho de Administração, Estevão de Moura, que eu não conhecia, me convidou para ser o director editorial da INCM. Eu já tinha uma experiência relevante no sector cultural (também editorial) com funções executivas e de consultor em várias instituições de referência. Ao longo destes mais de 10 anos, quais foram as suas maiores conquistas na Unidade de Edição e Cultura da INCM? A conquista de um quadro institucional de grande autonomia e de total liberdade de programação e, em simultâneo, a afirmação da 90

ANA VAL ADO

marca Imprensa Nacional (a chancela editorial da INCM) como editora pública. Qual a missão da editora e qual a sua importância para a preservação do património cultural nacional? A Imprensa Nacional não concorre com as editoras privadas tem, antes, um papel supletivo. A editora pública assegura que textos fundamentais para a língua e cultura portuguesas estão disponíveis nas melhores edições, mesmo quando não é economicamente viável a sua publicação. A face mais visível da actuação da Imprensa Nacional é, precisamente, o seu plano editorial que todos os anos assegura a edição de 60 a 90 novos títulos. A editora pública tem hoje um catálogo com mais de 1.500 títulos activos e uma presença digital cada mais visível. Trabalham em conjunto com entidades públicas de referência na área da

cultura, garantindo edições de qualidade e a preços aceitáveis, que promovam o património (material e imaterial) português. Pode dar exemplos de algumas das entidades parceiras? Posso, claro. A Imprensa Nacional construiu, de há uns anos a esta parte, uma rede de alianças sólidas e variadas. Estabelecemos muitas parcerias, como por exemplo com o Museu Nacional de Arte Antiga, Museu Nacional de Arqueologia, Palácio Nacional da Ajuda, Teatro Nacional Dona Maria II, Teatro Nacional de São Carlos, Fundação Gulbenkian, Plano Nacional das Artes, etc… (são mesmo muitas as instituições!). Estamos a falar e nível nacional. Mas também estabelecemos parcerias a nível internacional, como por exemplo com a Imprensa


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E N T R E V I S TA DUARTE AZINHEIRA, DIRECTOR EDITORIAL DA IMPRENSA N AC I O N A L- C A SA DA M O E DA ( I N C M )

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A D E F I N I Ç ÃO D O S T Í T U LO S Q U E S ÃO P R O P O S T O S À I M P R E N S A N AC I O N A L R E S U LTA M , N AT U R A L M E N T E , D E U M TRABALHO CONJUNTO.

Nacional de Cabo Verde, com quem partilhamos o Prémio Literário/ Arnaldo França. Ora, esta prática revela a abertura da IN mas, também, uma estratégia de maximização da sua relevância cultural: com um euro fazemos o dobro. E mais, esta prática reforça a influência e o relevo do papel editorial da IN, o que não pode efectivamente deixar de ser considerado muito relevante tendo em vista a perenidade da acção cultural da INCM. Quais são os grandes desafios à frente de uma editora pública, principalmente no contexto adverso que estamos a viver, em que a cultura é das primeiras visadas? Continuar a cumprir a nossa missão de salvaguarda patrimonial e garantir a disponibilização de conteúdos de forma universal e gratuita. A Imprensa Nacional tem em www.imprensanacional.pt, neste momento quase 300 títulos em acesso aberto. E este processo de transição digital da editora pública vai continuar a merecer a nossa maior atenção. Mas gostaria aqui de realçar um facto. A Imprensa Nacional é uma instituição com mais de 250 anos, é uma instituição cuja história se confunde com a história do país nos últimos dois séculos e meio. E sempre, sempre, nos períodos de crise, nos momentos adversos, e foram muitos, a Imprensa Nacional, soube reagir e, 92

muitas vezes, até mesmo superar-se. É o que estamos a tentar fazer. Recentemente foi anunciado o lançamento das Obras de Mário Soares com o Volume Zero desta colecção, sob coordenação de José Manuel dos Santos, antigo assessor do Presidente. O que representa esta coleção para a INCM? Do ponto de vista editorial, é um projecto muito ambicioso e complicado. A Imprensa Nacional só pode sentir-se honrada com esta colecção. É uma grande responsabilidade para nós, sim, mas também é uma prova de grande confiança na editora pública portuguesa ao confiarem-nos a publicação de um acervo de valor incalculável de um homem que foi a chave e o motor para a democracia e para a liberdade em Portugal. Acabou de referir que o projecto da publicação das Obras de Mário Soares é um projecto muito ambicioso e complicado do ponto de vista editorial. Quer explica-nos porquê? A colecção Obras de Mário Soares é um projecto editorial ambicioso e complexo que se decompõe em várias fases. Em primeiro lugar, o acervo do presidente Soares é enorme, na ordem do milhões, e os textos não estão fixados, o que exige um laborioso trabalho de investigação. Depois há o desafio da

edição dos livros, propriamente dito e finalmente, a comunicação de todo o projecto, junto da comunicação social, claro, mas, também com a produção de conteúdos sobre a investigação e as edições, que permitam chegar a um público tão vasto quanto possível. Quantas obras vai incluir esta colecção? Para quando o Vol.1 e qual o seu conteúdo? O plano total não está ainda totalmente fixado. Depois do volume 0, “As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga”, que apresentámos em Dezembro na Fundação Calouste Gulbenkian, sairá este ano o volume 1, “Portugal Amordaçado”. Esta será uma edição especial em dois volumes incluindo a extensa correspondência inédita que Mário Soares recebeu e enviou sobre este livro (foram transcritas mais de 120 cartas de personalidades nacionais, internacionais e do próprio Mário Soares). Será, pois, uma edição profundamente anotada e comentada, com um estudo inédito de Fernando Rosas, que ficará disponível durante o presente ano. Qual a razão de escolha das obras de Mário Soares? Acha que esta colecção vai surpreender os leitores? A definição dos títulos que são propostos à Imprensa Nacional resultam, naturalmente, de um trabalho conjunto. A colecção tem


C U LT U R A um director, José Manuel dos Santos, e uma comissão científica composta por diversas personalidades, entre as quais historiadores e académicos: António Reis, Bernardo Futscher Pereira, David Castaño, Fernando Rosas, Irene Flunser Pimentel, José Manuel dos Santos, José Pacheco Pereira, Maria Fernanda Rollo, Maria Inácia Rezola, Mário Mesquita e Nuno Severiano Teixeira. Garantidamente que vai surpreender os leitores. Existe documentação absolutamente inédita que revelará um Mário Soares certamente menos conhecido do grande público. Na sua opinião esta é uma justa homenagem a “um político que queria ser escritor e que foi escritor ao ter sido político”? A Dr.ª Isabel Soares, filha do presidente Soares, referiu na sessão de lançamento desta coleção que “nenhuma homenagem lhe daria (ao presidente Soares) mais prazer do que a edição desta colecção”. E isto vale o que vale. Esta é, sobretudo, uma colecção que, nos seus vários volumes criteriosamente documentados, além das múltiplas obras publicadas em vida – como ensaios doutrinários, depoimentos, crónicas, entrevistas, memórias, discursos e intervenções – acolherá inúmeros escritos inéditos e dispersos e milhares de cartas trocadas com grandes

figuras nacionais e internacionais. Este vastíssimo espólio tem sido estudado, transcrito e anotado, dando-se a conhecer, nesta colecção, pela primeira vez, toda a obra escrita e o pensamento do político e intelectual que foi Mário Soares, figura fundamental da nossa história contemporânea, cujos testemunhos são uma fonte primária, insubstituível e essencial da historiografia portuguesa, mas também europeia e mundial recentes. Para além desta coleção, o que mais vai incluir o plano de edição da INCM em 2022? O Plano Editorial da IN mantém a orientação dos últimos anos, centrada na promoção da língua e cultura portuguesas, mas não limitada a elas, porque se mantém o impulso de alargar o âmbito do nosso catálogo para novas temáticas e abordagens diferenciadas. É o caso da colecção Itálica, onde continuaremos a publicar os grandes autores italianos. Em 2022, terminaremos o ciclo dedicado a Dante. Mas, de facto, a generalidade do plano está centrada nos autores portugueses e em língua portuguesa, da literatura ao ensaio, passando pela poesia, edições críticas, história, fotografia, infantojuvenil. Continuaremos também a publicar os portugueses da nossa diáspora, na colecção Comunidades Portuguesas, publicada

em parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os hábitos de leitura e consumo de informação estão a mudar. De que forma a INCM acompanha esta tendência? As transformações tecnológicas dos últimos anos mudaram o mundo e a forma de comunicar. O mundo digital massificou-se trazendo novas possibilidades de acesso à informação e à leitura. O futuro e o presente da editora pública passam necessariamente pelo reforço do catálogo digital e pela aposta na desmaterialização do seu acervo, o que permite à Imprensa Nacional chegar mais longe e levar a cultura até às pessoas. Há dois anos a esta parte têm sido empreendidos esforços vários para tornar esta realidade possível. E de lá para cá, muito já foi feito. A Imprensa Nacional tem hoje um novo site, disponíveis em www.imprensanacional.pt que conta com milhares de conteúdos disponíveis, em acesso aberto, totalmente orientados para as letras, arte e cultura, bem como para a história e para o património da Imprensa Nacional. Nesta plataforma damos a conhecer o catálogo editorial da IN bem como o catálogo e colecções de maior importância da nossa biblioteca; disponibilizamos audiolivros,

A S T R A N S F O R M AÇ Õ E S T E C N O LÓ G I C A S D O S Ú LT I M O S A N O S MUDAR AM O MUNDO E A FORMA D E C O M U N I C A R . O M U N D O D I G I TA L M A S S I F I C O U - S E T R A Z E N D O N OVA S P O S S I B I L I D A D E S D E AC E S S O À I N F O R M AÇ ÃO E À L E I T U R A .

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PERFIL DUARTE AZINHEIRA Licenciado em Ciência Política e com formação executiva pós-graduada em Gestão de Recursos Humanos e especialização em Negociação, Duarte Azinheira trabalha na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, SA, desde 2010, onde, neste momento, dirige a Unidade de Edição e Cultura. Para além de dirigir toda a actividade cultural da empresa em Portugal e no exterior, é também director do Museu Casa da Moeda. Há mais de 15 anos que trabalha exclusivamente na área cultural sobretudo como director editorial, mas também como consultor e programador de outras atividades (exposições, museus, música, conferências). Exerceu funções executivas no sector editorial privado, e foi consultor de grandes instituições culturais portugueses como a Fundação Gulbenkian ou o Camões – Instituto da Língua e da Cooperação. É também professor na Universidade Autónoma de Lisboa e tem sido conferencista convidado em diversos seminários nacionais e internacionais. É coautor de alguns livros, como por exemplo “A Ciência Cura” sobre o conhecimento no combate à Covid-19 em Portugal (Março-Junho 2020).

podcast’s (A Poesia Dita e O Essencial Sobre…), vídeos com os lançamentos dos nossos títulos, e quase três centenas de livros em PDF de forma totalmente gratuita e partilhável e em permanente crescimento. Também a história da Imprensa Nacional está agora disponível no digital, nomeadamente milhares de conteúdos produzidos no âmbito das comemorações dos seus 250 anos, celebrados em 2018, que poderão ser completados e enriquecidos através de uma ferramenta colaborativa e acessível à comunidade em geral. Além do catálogo editorial, da história e o património da Imprensa Nacional, a Imprensa Nacional disponibiliza publicações regulares de acesso totalmente aberto: notícias da actualidade editorial; entrevistas de fundo; recensões literárias; biografias de autores; curiosidades e efemérides ligadas à história da empresa; informação acerca dos Prémios Literários promovidos pela IN, novidades de agenda, passatempos, entre muitos outros. A aposta no digital por parte da Imprensa Nacional é inequivocamente um veículo privilegiado para a democratização do acesso à cultura e à leitura, e vem 94

reforçar a missão de serviço público da Imprensa Nacional, reflectindo o posicionamento mais actual e contemporâneo de uma instituição que conta já com mais de 250 anos de existência. Sendo um apaixonado por livros, que livro gostaria de ter publicado na INCM? Diria que se não estivessem disponíveis excelentes edições (e se a missão da INCM fosse outra, bem entendido) gostaria de ter publicado: “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa; “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati; “Um deus passeando pela brisa da tarde”, de Mário de Carvalho; “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago; “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca. Também gostava muito de ter publicado “As Crónicas”, de António Lobo Antunes, um volume magnifico que estou a ler neste momento. Esta selecção de cerca duzentos textos revela-nos um dos mais extraordinários cronistas da língua portuguesa. Quais são os projectos futuros da INCM para a Unidade de Edição e Cultura? Que novidades nos vai apresentar?

Num futuro muito próximo, já este ano, vamos inaugurar quatro novas colecções: Obras Completas de Maria Ondina Braga, Arte Nossa – História da arte portuguesa, uma colecção para os mais novos, a coleção J, dedicada à joalharia portuguesa e a colecção M, dedicada às marcas históricas portuguesas. Destaco aqui a obra de Maria Ondina Braga que se encontra, desde há muito, esgotada no mercado editorial português. A reedição, pela Imprensa Nacional, dos títulos desta escritora, tão desconhecida quanto original, assume-se como prioritária e perfeitamente enquadrada na missão de salvaguarda patrimonial de que a editora pública está incumbida. Numa parceria com a Câmara Municipal de Braga (cidade natal da escritora), esta colecção será coordenada pela professora Isabel Cristina Mateus, da Universidade do Minho e pelo professor Cândido Oliveira Martins, da Universidade Católica Portuguesa. O primeiro volume vai ser dedicado a autobiografias ficcionais e contempla os títulos “Estátua de Sal”, “Passagem do Cabo” e “Vidas Vencidas”. l


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O Q U E A I N DA P O D E FA Z E R N A EXPO 2020 DUBAI A P O U C O M A I S D E U M M Ê S D O F I N A L , A E X P O 2 0 2 0 D U B A I A I N D A T E M M U I T O PA R A O F E R E C E R . C O M O T E M A G L O B A L “ C O N N E C T I N G M I N D S , C R E AT I N G T H E F U T U R E ” , E S TA E X P O S I Ç Ã O É U M A I N C U B A D O R A D E N O VA S I D E I A S E M T O D O O M U N D O . “ U M M U N D O N O PA Í S ” É O T E M A D A PA R T I C I PA Ç Ã O P O R T U G U E S A , Q U E T E M D E I X A D O A S U A M A R C A N O C E R TA M E , Q U E R P E L A S S U A S AT R A C Ç Õ E S , Q U E R P E L A G A S T R O N O M I A P O R T U G U E S A R E P R E S E N TA D A N O R E S TA U R A N T E A L- L U S I TA N O , C O N S I D E R A D O U M D OS MELHORES DA E XP O 2020 DUBAI.

LARISSA GÖLDNER

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O

maior e mais antigo evento do mundo teve a sua origem em Londres em 1851 e desde então atrai mais visitantes do que a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. As exposições são realizadas a cada cinco anos e cada edição é realizada numa diferente cidade do mundo, impressionando sempre os seus visitantes.

A Expo 2020 Dubai, que teve início no dia 1 de Outubro e vai terminar no próximo dia 31 de Março, é o primeiro grande evento desde o início da pandemia e é a primeira exposição universal realizada no Médio Oriente, onde são esperados 25 milhões de visitantes. Reúne mais de 200 participantes, incluindo 192 países, assim como organizações multilaterais, empresas e estabelecimentos de ensino durante


C U LT U R A

182 dias. Localizado no sul do Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o local conta com 4,38 quilómetros quadrados, o equivalente a 600 campos de futebol, dos quais cerca de dois quilómetros quadrados são de área fechada. O coração da Expo é a praça Al Wasl, com uma cúpula de 130 metros de largura e 67,5 metros de altura, que engloba um espaço de 724.000 metros cúbicos, segundo dados da organização. Tal corresponde ao volume de quase 300 piscinas olímpicas e é mais alto do que a Torre de Pisa. O projecto conta com 13,6 quilómetros de aço, o equivalente a altura de 16 Burj Khalifa (a torre mais alta do mundo, com 828 metros, que fica no Dubai), pesa 2.544 toneladas, o mesmo que 25 baleias azuis e é quase tão largo como dois aviões Airbus A380 alinhados asa a asa. O festival de seis meses celebra a criatividade humana e as conquistas nos campos de arquitectura,

tecnologia, inovação, música, artes e muito mais. Algumas Exposições Mundiais anteriores apresentaram inovações como o telemóvel, a máquina de raio X ou o cone de gelado, reveladas ao mundo pela primeira vez. Fazer parte da construção de um futuro mais sustentável para o planeta, explorar os mistérios do universo, saber como vamos viver nas cidades do futuro, de forma mais feliz e saudável ou participar num mundo mais inclusivo, são algumas propostas de reflexão que a Expo 2020 Dubai nos traz com três áreas temáticas: Oportunidade, Mobilidade e Sustentabilidade, apresentadas em forma de pétalas, as quais convergem na praça Al Wasl. Para cada uma destas áreas foi projectado um pavilhão temático: Terra - o da Sustentabilidade; Alif - o da Mobilidade e Missão Possível - o da Oportunidade. O Pavilhão da Oportunidade define as oportunidades como motor de progresso e destaca a importância

do papel que cada um de nós tem que desempenhar na criação de mudanças positivas. Os visitantes são desafiados com questões relacionadas com as necessidades básicas de água, alimentos e energia. O Pavilhão da Mobilidade apresenta os veículos do futuro, os novos desenvolvimentos na exploração espacial e a missão a Marte dos Emirados. Este espaço procura demonstrar de que forma a mobilidade tem sido um dos principais pilares para o desenvolvimento da humanidade ao longo dos anos. Criando a sua própria electricidade e água, o Pavilhão da Sustentabilidade apresenta novos caminhos para a sustentabilidade e para as necessidades das gerações futuras. Dividido em duas áreas distintas para visitar, a floresta e o oceano, é uma interessante experiência interactiva onde os visitantes são convidados a tomar opções que podem ou não tornar o planeta mais sustentável. 97


C U LT U R A Para quem ainda não visitou o Pavilhão de Portugal na Expo 2020 Dubai, a Prémio deixa-lhe um guia do que ainda pode assistir no último mês de Exposição, desde celebrações culturais a semanas temáticas. • Exposição de Arte “Portugal no Mundo” | Helena Pedro – 21 a 26 Fevereiro Nessa exposição, a artista sugere e antecipa um olhar para um futuro sustentável e natural. Reconhecida internacionalmente como retratista, o trabalho de Helena Pedro inclui retratos de celebridades como Madonna, Job Bon Jovi, Angelina Jolie, Giselle Bundchen, entre outras. • Exibição do documentário “Henrique de Malaca - Um Malaio e Magalhães” | Pedro Palma – 12 Março (19h00) O director português Pedro Palma irá exibir o seu documentário no Pavilhão de Portugal, na sala Central Experience. O realizador foca-se na figura real de Henrique de Malaca, o servo de Fernão de Magalhães, no contexto da primeira viagem de circum-navegação do Mundo entre 1519 e 1522. O documentário aborda a possibilidade de Henrique ter sido o primeiro homem a completar a circum-navegação do mundo, ao ter regressado a Malaca (de onde partira

Pavilhão de Portugal dá cartas na gastronomia Situado no distrito da Sustentabilidade, o Pavilhão de Portugal tem como inspiração uma caravela, um projecto resultante da parceria entre o Grupo Casais e o ateliê Saraiva + Associados. “Portugal - Um Mundo num País” é o tema global da participação de Portugal na Exposição, transmitindo a multiculturalidade que nos caracteriza, que arrancou com a globalização no século XV,

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uns anos antes) após a morte de Fernando Magalhães na batalha de Cebu, nas Filipinas. • World Majlis, Talks & Thematic Business Foruns – 20 Março (Auditório Terra) A Água e o seu valor para o futuro é o tema de uma das sessões do World Majlis com a presença portuguesa em eventos da Expo. Em 2025 estima-se que cerca de 1800 milhões de pessoas viverão em países ou regiões com escassez absoluta de água. Quais são as consequências de não ter acesso a água? Como decidimos quem tem acesso prioritário? Que inovações podem criar novas fontes de água potável? Nesta sessão um painel de especialistas procura responder a estas e outras questões relacionadas com o tema. • Semana da Tapeçaria de Arraiolos – 21 a 27 de Março Anfiteatro do Pavilhão de Portugal)

levando os portugueses a contactar com diferentes povos. O pavilhão, com uma área de 1800 metros quadrados distribuída por dois pisos, inclui uma sala de espectáculo multimédia imersivo e está repleto de elementos tradicionais, como a calçada portuguesa, cadeiras e candeeiros em cortiça, azulejos, um terraço com oliveiras e uma Portugal Concept Store, que pretende ser uma “embaixada” transacional de promoção de marcas e produtos portugueses, com mais de 170

produtos distintivos. Conhecer a cultura de outro país é também entrar pela sua gastronomia e, neste aspecto, o Pavilhão de Portugal não poderia estar mais bem representado, com o Al-Lusitano. O restaurante do Pavilhão de Portugal é fruto de uma parceria entre o ‘chef ’ Chakall e o empresário Pedro Rodrigues, oferecendo o melhor da gastronomia portuguesa. E se o objectivo era colocar o restaurante do Pavilhão de Portugal no top 10 de restaurantes da Expo 2020,


C U LT U R A DUBAI PARA ALÉM DA EXPO Para quem viaja de Portugal e queria conhecer um pouco mais do território além da Expo, é obrigatório visitar o Burj Khalifa, um dos ‘ex-libris’ do Dubai e um verdadeiro feito de engenharia, o edifício mais alto do mundo (828 metros de altura) e uma passagem pelos ‘souks’ e mercados locais. Estes mercados encontram-se divididos pelas mais variadas temáticas, sendo os mais populares o do ouro, o das especiarias, o dos perfumes ou o dos têxteis. Para uma experiência mais genuína não deixe de atravessar o rio Creek a bordo dos barcos de madeira tradicionais, onde pode admirar a vista do novo e antigo Dubai, assim como os grandiosos e extravagantes edifícios e torres que caracterizam o Dubai. Para quem gosta de adrenalina, não pode deixar de experimentar o Ain Dubai, a mais recente atracção do Emirado. Trata-se da mais alta-roda gigante do planeta, com 250 metros de altura. Localiza-se na ilha de Bluewaters, na zona de Jumeirah e está rodeado de várias lojas, restaurantes, hotéis e até um mercado tradicional ‘souk’. O Dubai Mall, o maior centro de compras, entretenimento e lazer do mundo, é outro local de paragem obrigatória. Com mais de 1200 lojas e centenas de locais onde comer e beber, esta gigantesco centro comercial cobre mais de um milhão de metros quadrados, uma área equivalente a 200 campos de futebol. Para estadias mais prolongadas, vale a pena conhecer o Emirado vizinho, Abu Dhabi. A não perder uma visita ao Louvre Abu Dhabi e à Grande Mesquita Sheikh Zayed.

todas as críticas o colocam entre os dois melhores, juntamente com o do Luxemburgo. Nas entradas destacam-se as gambas ao alho, os peixinhos da horta, os pastéis de bacalhau e as amêijoas à Bulhão Pato. Os pratos principais não dispensam o lombo de bacalhau, o cabrito, a perna de borrego, uma espetada madeirense com milho frito, o arroz de marisco ou um polvo à lagareiro. Sempre que possível há também peixe do dia ou sardinhas assadas. Na lista de sobremesas, o

carpaccio de ananás com xarope de coentros é sempre uma boa forma de rematar a refeição. O rigor dos costumes locais é respeitado e nesta cozinha não entra nem porco, nem álcool na confecção dos pratos, mas pode ser pedido para acompanhar a refeição. Todas estas iguarias gastronómicas podem ser degustadas num ambiente descontraído, decorado com azulejos e temas da calçada portuguesa, e com loiças de marcas lusas.

Situado no andar superior do Pavilhão de Portugal, com uma localização privilegiada para quem procura os espetáculos no Jubilee Park, o maior palco do recinto, o Al-Lusitano funciona praticamente como uma bancada VIP. O seu amplo terraço é o espaço ideal para descansar, ao final do dia, usufruir de um ‘cocktail’ ou repor energias com um tradicional pastel de nata ou uma bola de Berlim. Em meados de Dezembro, a equipa do Pavilhão de Portugal celebrava a entrada do 200.000 visitante. l

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DESPORTO

ESQUIADOR JOSÉ CABAÇA

ESPÍRITO OLÍMPICO É A MARCA PORTUGUESA NOS J O G O S D E I N V E R N O D A “AV E N T U R A E S T U P E N D A” D E D U A R T E E S P Í R I T O S A N T O E M O S L O 1 9 5 2 , À P R E S E N Ç A D E U M A L E N T E J A N O E M P E Q U I M 2 0 2 2 , Q U E H Á D O I S A N O S N E M S A B I A E S Q U I A R , A H I S T Ó R I A D A PA R T I C I PA Ç Ã O P O R T U G U E S A EM JOGOS OLÍMPICOS DE INVERNO É UM PERCURSO DE ACASOS, CONTRADIÇÕES E GENUÍNO OLIMPISMO. N A C O M P E T I Ç Ã O C H I N E S A E S T I V E R A M , P E L A P R I M E I R A V E Z , T R Ê S AT L E TA S E M M O D A L I D A D E S D I V E R S A S .

T

ornou-se célebre a participação de uma equipa jamaicana de bobsled nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1988, em Calgary. A escassa tradição da ilha caribenha em desportos no gelo e o contraste da origem tropical com o frio glaciar canadiano tornaram o acontecimento num sucesso irresistível, que animava a cobertura mediática da olimpíada. O episódio picaresco acabou mesmo

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por ser adaptado ao cinema (Cool Runnings, 1993). Mas em Calgary havia outra história que dava um filme: a de António Reis. O jovem português, emigrado no Canadá desde os 7 anos, era um desportista eclético – foi campeão universitário de futebol americano e praticante de remo – mas, três anos antes da competição no estado de Alberta, nunca tinha pisado uma pista de bobsled. Nem sequer praticado qualquer modalidade de Inverno. O

sonho de participar numa olimpíada, no entanto, fez o luso-canadiano puxar pela criatividade e encontrar na corrida dos trenós uma hipótese. Treinou na escola de pilotos de Lake Placid, juntou um grupo de amigos do desporto para formar uma equipa e fez uma viagem de carro até Innsbruck, na Áustria, para se apurar ‘in extremis’, no final de 1987, para Calgary. O sonho estava cumprido e até teve direito a vender o trenó da sorte ao Príncipe Alberto, do Mónaco.


DESPORTO

NELSON SOARES

A participação da equipa portuguesa foi bastante honrosa. Na prova de two-men bobsled, Reis fez dupla com João Poupada e terminaram em 34º lugar, num total de 38 participantes. Na prova de quatro, juntaram-se João Pires e Rogério Bernardes, obtendo um resultado menos feliz: o penúltimo lugar. Ainda assim…à frente da famosa equipa jamaicana! A aventura de António Reis e do seu grupo de amigos é um bom exemplo do que tem sido a participação olímpica portuguesa nos desportos de Inverno. Num país sem tradição neste tipo de competições, com temperaturas amenas e escassa presença de neve no território, a prática desportiva específica de Inverno cinge-se a um pequeno núcleo de atletas, que não têm expressão internacional. Assim, a presença lusitana nos Jogos Olímpicos de Inverno resume-se a um total de 12 participações, em oito edições diferentes, maioritariamente assegurada por emigrantes ou descendentes de portugueses e com grandes doses de aventura e voluntarismo pelo meio. Hiato de 36 anos O pioneiro deste trajecto foi Duarte Espírito Santo Silva, nos Jogos de Oslo, em 1952. Então com 27 anos e sem grande experiência competitiva, o atleta era um praticamente modesto de esqui alpino, mas beneficiou do facto de, à época, não haver provas de apuramento para arriscar uma presença na Noruega - os países

tinham uma quota de participações e Duarte foi inscrito pelo Comité Olímpico Português. A “aventura estupenda”, como descreveu em entrevista ao Diário de Notícias, terminou com um 69º lugar na prova de downhill, à frente de um argentino, um australiano, um grego e de mais nove atletas que foram eliminados. Estava cumprido o seu objectivo, que era terminar a descida de Norefjell. Foram necessários 36 anos para que houvesse nova participação portuguesa nas olimpíadas de Inverno, na já documentada – e não mais repetida – competição de bobsled. As quinas voltariam a aparecer nas pistas de neve em Lillehammer 1994, também no esqui alpino, com o acesso de George Mendes às provas de slalom, downhill, super-g e combinado. O esforçado atleta luso-francês concluiu as duas primeiras, com o 32º e 41º lugares respectivamente, mas não terminou as restantes. Quatro anos depois, em Nagano, Mafalda Queiroz Pereira tornou-se a primeira atleta portuguesa a competir nos Jogos de Inverno e obteve a melhor classificação de sempre de um atleta nacional na competição. A esquiadora – que começou na ginástica artística – foi 21ª classificada na especialidade de aerials, conseguindo um resultado que, até hoje, não foi sequer aproximado. Infelizmente, a promissora carreira desportiva de Mafalda – filha do industrial Pedro Queiroz Pereira – viria a terminar pouco tempo depois,

na sequência de uma lesão grave no joelho. Na edição japonesa dos Jogos houve ainda outra novidade na comitiva portuguesa: participar em mais do que uma modalidade. Tal deveuse à presença de um patinador luso-holandês, Fausto Marreiros, que competiu nos 5 mil metros de patinagem em velocidade, alcançado a 31ª posição. O antigo atleta colabora actualmente com a Federação de Desportos de Inverno de Portugal (FDIP) no treino de jovens patinadores, promovendo a transição da patinagem convencional para a pista de gelo. O caso de maior sucesso deste programa de treino é Diogo Marreiros – apesar de partilharem o sobrenome, não têm parentesco – que, em 2021, bateu o recorde nacional de Fausto, já com 25 anos. No entanto, o patinador algarvio viu a prova de qualificação para Pequim 2022 ser cancelada e não pôde marcar presença no evento olímpico chinês. Maior participação em Pequim 2022 A história da participação portuguesa na Olimpíada de Inverno prosseguiu com a mesma intermitência no arranque do novo século. Após o vazio de Salt Lake City 2002, a presença lusitana em Turim 2006 e Vancouver 2010 esteve parcamente assegurada por Danny Silva, sempre na modalidade cross-country de 15 quilómetros. Seguiram-se outros descendentes portugueses, nas competições de Sochi 2014 e PyeongChang 2018. O 101


DESPORTO

ESQUIADOR RICARDO BRANCAL

esquiador alpino, Arthur Hanse, esteve em ambas as edições, com participações modestas no slalom e slalom gigante. Também em esqui alpino e em Sochi, Camille Dias, foi 59ª no CERIMÓNIA DE ABERTURA DOS JOGOS DE slalom gigante e 40ª no slalom. PYEONGCHANG 2018 (COM O PORTUGUÊS KEQUYEN LAM) Com apenas 17 anos à época, a jovem esquiadora foi outro e José Cabeça no esqui de fundo. exemplo de uma carreira promissora Brancal, de 25 anos, exemplifica interrompida de forma prematura. bem o esforço acrescido que um O último representante português português tem de fazer para vingar nos Jogos de Inverno antes de nestes desportos. Natural da Covilhã, Pequim 2022, foi Kequyen Lam, em ingressou na alta competição já PyeongChang 2018. Filho de pais adolescente e como parte de uma vietnamitas, Lam nasceu em Macau, equipa francesa. Progrediu em ainda no período de administração trânsito entre França, Espanha e portuguesa, mas cresceu na Itália – país onde se fixou para atacar Columbia Britânica, Canadá, onde a presença olímpica – e conseguiu começou a praticar snowboard. Foi a proeza de, em Fevereiro de nesta modalidade que esteve perto de 2021, terminar a etapa de Cortina se apurar para Sochi, mas acabou por d’Ampezzo do Mundial de esqui sofrer uma lesão e ter de reconverteralpino no top-40 – resultado nunca se para o esqui de fundo, a antes alcançado por nenhum atleta modalidade que o levou à Olimpíada. português. A competir nos 15 quilómetros, o A trajectória de José Cabaça é ainda esquiador foi 109º classificado na mais improvável. Natural da região edição sul-coreana. mais quente do país, o Alentejo, o Como seria previsível, o caminho eborense é praticante de triatlo e para 2022 não trouxe grandes sentiu o desafio do cross-country novidades ao nível dos desportos quando viu a participação de Kequyen de Inverno em Portugal. Percursos Lam, em PyeongChang. Muniuprometedores, como o do já referido se de equipamento, mas só em Duarte Marreiros, do snowboarder Janeiro de 2020 é que foi para Christian Oliveira ou da dupla de França, aprender a esquiar sozinho. curling luso-canadiana, April Pouco mais de um ano depois, Gale-Seixeiro e Steve Seixeiro, em Fevereiro de 2021, estava a acabaram por não resultar em disputar o Campeonato do Mundo, presenças olímpicas. Apesar de tudo, em Oberstdorf, na Alemanha. A o país conseguiu atingir a participação sua atitude combativa valeu um mais alargada de sempre em Pequim, apuramento de última hora para a com a presença em três competições prova dos 15 quilómetros, onde o diferentes: Ricardo Brancal e Vanina seu desempenhou não envergonhou. Guerillot Oliveira, no esqui alpino, 102

E Q U I PA D E B O B S L E D P O RT U G U E S A N O S JOGOS DE CALGARY – 1998

Pelo contrário: Cabaça foi o 88º atleta a cumprir o percurso de Zhangjiakou e superou os resultados obtidos por Danny Silva em Turim 2006 e Vancouver 2010. Já Vanina Guerillot Oliveira encaixa no padrão habitual de emigrante ou descendente de portugueses. Com apenas 19 anos e nascida na Suíça, a esquiadora apurou-se para o slalom e slalom gigante, tendo já uma vasta experiência internacional, incluindo presenças no Campeonato do Mundo e nos Jogos Olímpicos da Juventude – competição que decorreu em Lausanne, em 2020, e onde ficou na 28ª posição. Em entrevista ao portal Olympics. com, antes da competição ter início, a luso-suíça resumiu bem o espírito português nos Jogos de Inverno: “Sei que não estarei entre as melhores, portanto o meu foco será produzir o meu melhor esqui, divertir-me e chegar ao fim”. Vanina não ficou entre as melhores, mas teve o melhor desempenho de sempre de uma atleta nacional no slalom gigante, com um honroso 43º lugar. A jovem esquiadora já não teve a mesma felicidade no slalom – que até é a sua especialidade – não completando a segunda manga, devido a ter falhado uma “porta”. A competição decorreu durante este mês, entre 4 e 20 de Fevereiro, na capital chinesa, reunindo os melhores atletas do mundo em mais de uma centena de modalidades olímpicas. A delegação portuguesa foi liderada por Pedro Farromba, presidente da FDIP. l


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EUROPA ESPANHA

BELÉN RODRIGO*, PRÉMIO

F A K E N E W S , UNA AMENAZA REAL

A

bordo del portaaeronaves Juan Carlos I, el mayor buque español de guerra, uno se hace muchas preguntas, pero, sobre todo, se aprenden muchas cosas. La Armada Española realiza cada año FLOTEX, un ejercicio destinado a implementar, valorar y evaluar la capacidad de la Fuerza Naval y que está vinculado a su razón de ser: estar preparados para el combate. Durante dicha preparación son muchos los temas que se abordan desde este centro de operaciones en el que se trabaja de forma conjunta con el Ejército de Tierra y el Ejército de Aire y en el que también se invita a participar a otras naciones. Un grupo de periodistas fuimos testigos del despliegue para realizar la fase de ejecución de los ejercicios FLOTEX-21 en aguas del golfo de Cádiz. Y allí, viendo la complejidad de la operación en un hipotético 104

escenario de guerra, se puede confirmar que una de las amenazas que más preocupan a los militares es la difusión de fake news. Las noticias falsas no son una invención moderna, pero en la sociedad actual se distinguen por su rápida difusión por Internet y redes sociales. “Un país puede difundir fake news diciendo que otro ha ido contra los derechos humanos, romper así la cohesión y poner a la gente en contra de los militares”, afirmaba el comandante del Cuartel General Marítimo de Alta Disponibilidad (CGMAD), el vicealmirante José María Núñez Torrente. Atribuir falsamente un acto ilegítimo a un contingente puede hacer disminuir el apoyo de la opinión pública hasta hacer fracasar la misión. Es por

ello que muchos ejércitos llevan una cámara en el casco para poder contrarrestar las falsas noticias. Son ya varios los ejemplos que existen de manipulación de información al mismo tiempo que las campañas de desinformación son cada vez más sofisticadas. Para hacerlas frente, se cuenta con la colaboración de expertos no solo en comunicación social sino también en ciberespacio e inteligencia. Y desde la Armada son conscientes de que en un futuro habrá que hacer frente a tecnologías que aún no existen pero que se propagarán rápidamente. * Texto escrito na língua de origem do autor


ESPANHA EUROPA

Mientras estos hombres se preparan para el peor de los escenarios, hay muchas decisiones que se toman en los despachos de los políticos que afectarán en el desenlace de sus misiones. El presupuesto en Defensa sufrió fuertes recortes en la anterior crisis económica con caídas superiores al 30%, afectando a las inversiones necesarias. En los Presupuestos Generales del Estado de 2022 se destinan 10.155,3 millones de euros a Defensa, un 7,9 por ciento más que en 2021. La partida más importante corresponde a los Programas Especiales de Armamento (PEA), inversiones a largo plazo del Estado con las que además de renovar las armas de los ejércitos (tanques, barcos o aeronaves), se impulsa la capacidad de la industria militar española con objetivo de aumentar su competitividad internacional. Desde el Ministerio de Industria se sufraga su investigación y desde el de Defensa se financian actualmente el vehículo de combate sobre ruedas 8x8 ‘Dragón’, el helicóptero NH-90, las fragatas F-110, los satélites HISDESAT y los aviones de combate EF 2000. La industria de Defensa es uno de los elementos claves para la recuperación económica de España junto con otros sectores como Seguridad, Aeronáutica y Espacio. Una industria estratégica para el desarrollo socioeconómico del país porque aporta un elevado valor añadido debido en gran parte a

“LA INDUSTRIA DE DEFENSA ES UNO DE LOS E L E M E N TO S C L AV E S PA R A LA RECUPERACIÓN ECONÓMICA D E E S PA Ñ A J U N TO C O N OTROS SECTORES COMO SEGURIDAD, AERONÁUTICA Y E S PA C I O .”

la alta complejidad industrial y tecnológica. En 2020 este sector facturó 6.720 millones de euros y el total de actividad económica ligada a las empresas del sector contribuye de manera directa e indirecta en 8.500 millones de euros, lo que significa un impacto equivalente al 0.8% del PIB nacional, según datos del informe elaborado por KPMG para TEDAE. A nivel de generación de empleo, el sector de Defensa tiene un efecto multiplicador de 2,9, por lo que los 23.000 empleos directos mantienen más de 69.000 puestos de trabajo adicionales de forma indirecta e inducida. Las empresas españolas de esta área resaltan la aportación de esta industria en la estrategia de reindustrialización española, porque es un sector eminentemente tecnológico, intensivo en I+D, con alta capacidad tractora, elevados índices de exportación y un importante generador de empleo de alta cualificación. Cada euro invertido en Defensa genera 2,5 euros en el conjunto de la economía. A bordo del portaaeronaves Juan Carlos I la atención se va, casi sin evitarlo, a los Harrier, el primer

avión de combate del mundo capaz de despegar y aterrizar en vertical. Estados Unidos, Italia y España son los tres países que siguen utilizando estos aviones, a los que apenas les queda una década de vida útil. Parece claro que el único relevo posible es el F-35B, pero no hay fecha ni para la decisión ni para la llegada del sustituto. Eso sí, si España prescinde de su aviación de ala fija embarcada “las consecuencias serían dramáticas”, avisan los militares. Desaparecería la capacidad de disuasión e influencia y potenciales adversarios podrán superar a España. Pedro López, uno de los pilotos de élite de la Armada Española asegura que pilotar un Harrier es algo precioso, “tienes un punto de vista privilegiado”. Y ya se imagina dentro de un F-35, “difícilmente detectable por radares con un casco de visión de 360 grados”. En el campo militar, la innovación tiende a estar un paso por delante. l 105


ÁFRICA ANGOLA

RICARDO DAVID LOPES, PRÉMIO

CRESCER VOTANDO

N

o próximo mês de Agosto, os angolanos vão às urnas, para escolher os deputados que os irão representar nos próximos cinco anos, e assim o Presidente da República, o líder do partido mais votado. Uma eleição é sempre importante e determinante – e mais ainda quando está em causa a escolha de um Chefe de Estado e de Governo. É através desse acto que os cidadãos de um país decidem a quem confiar o exercício do poder e da gestão dos destinos da Nação, mas a quem é igualmente delegada a defesa e garantia de usufruto dos seus direitos, por um determinado período. Nos países democráticos, com várias forças políticas, que têm diagnósticos do presente diferentes e visões distintas do futuro e dos caminhos a seguir para concretizá-lo, os actos eleitorais são sempre saudavelmente antecedidos, mesmo antes da campanha eleitoral, de debates acesos no espaço público, às vezes inflamados, opondo ideias e diagnósticos, objectivos e abordagens, métodos e escolhas. O debate pré-eleitoral em Angola está já lançado, como temos vindo a assistir, e vai, naturalmente, 106

“animando” à medida que se aproximar o “Dia D”, num exercício de democracia que todos os angolanos desejam e acarinham. Será também com base neste debate de ideias e de escolhas que os eleitores vão decidir quem os vai representar até às eleições gerais de 2027. Vale a pena, hoje, reflectir sobre o que mudou face ao cenário de 2017, no que diz respeito a factores que são importantes na forma como os eleitores são informados e envolvidos no debate político. Há, desde logo, mais participação da sociedade civil. A sociedade civil angolana está mais forte e organizada do que há cinco anos, com novos movimentos, causas e rostos nos ‘media’ e no debate público. Reflecte um reforço da maturidade social e democrática, contribuindo positivamente para o debate e esclarecimento públicos. Também a disputa política está mais acesa. Poucas vezes a arena política angolana esteve tão disputada como hoje, com os partidos da oposição reforçarem as suas críticas à governação e a procurarem formas de, em conjunto, poderem vir a ser uma alternativa de poder face à força política que tem sido escolhida pelos angolanos nas eleições anteriores.

A oposição está mais organizada, mais agressiva e ganhou espaço nos ‘media’, o que também permite aos eleitores perceber melhor que diferenças poderá trazer se vencer o escrutínio de Agosto. Isto, num contexto sócio-económico complexo. As eleições deste ano ocorrem num cenário delicado do ponto de vista económico e social. A pandemia de Covid-19 veio criar uma enorme pressão sobre as empresas e as famílias, mas também sobre as contas públicas. O desemprego tem aumentado, os sistemas de saúde e de suporte social enfrentam um enorme desafio, e a contestação nas ruas, naturalmente, vai crescendo, como um pouco por todo o mundo. Os angolanos são hoje mais exigentes e esperam mais de quem governa. Estão mais informados, mais integrados, mais maduros do ponto de vista da defesa da democracia, sabem o que querem e o que não querem. Estão mais atentos ao discurso dos políticos, mais envolvidos no debate necessário e imprescindível que se faz em democracia, com serenidade, verdade e respeito pelo próximo, mesmo que pense diferente, sem demagogias ou promessas vãs. Os dados estão lançados para uma pré-campanha e uma campanha históricas. l


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ÁFRICA MOÇAMBIQUE

PEDRO CATIVELOS, DIRECTOR EXECUTIVO DA MEDIA4DEVELOPMENT

CRIAR UM CICLO QUEBRANDO O CICLO

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izem-nos as notícias que estamos, todos, a entrar num novo ciclo. Foi necessário a pandemia acelerar como nunca para, porventura, acabar para sempre enquanto tal, tornando-se endémica no mundo como um todo, e também em Moçambique. Mas as cicatrizes, sejam elas económicas, sociais ou humanas permanecerão e, como não poderia deixar de ser, deixarão a sua marca. A este nível, o novo normal assemelha-se bastante com a mais antiga casualidade – a de quem tem mais, conseguir lidar melhor com as circunstâncias desafiantes, especialmente em épocas em que há menos – e o seu exacto inverso. Num ano de 2022 que será marcado por inflação, aumento dos combustíveis e de preços da logística (todos interligados e a compactuarem 108

entre si), há vencedores que lutam e lutadores que perdem. Quem detém, pertence ao primeiro grupo. Quem não tem, luta, e sem grande aventureirismo de prognóstico, deverá continuar a ter de lutar, mantendo-se na segunda, terceira ou quarta divisões económicas do planeta, onde estão aqueles que encaram o desafio da sobrevivência como apenas mais um grau da existência económica, até que chegue 2023, e o ano seguinte (e o seguinte e por aí fora, numa escada temporal degenerativa que nada tem de regenerativa). Quem tem mais degraus para subir, sabe, na dureza do dia-a-dia, a que distância vai o grupo da frente, mas não vê como lá

chegar. Costuma dizer-se que dar um passo atrás pode ser bom, para ganhar balanço para os dois seguintes para a frente, mas o que o mundo nos ensina, quando lemos as notícias, é que, como tantas vezes na vida, os passos que temos de dar não são todos iguais nem valem todos o mesmo. O que vale é que, na maioria dos chamados países em gerúndio desenvolvimento, que ocupam mais de três quartos do mundo, este atravessar


MOÇAMBIQUE ÁFRICA

de mais um ano em direcção a mais outra travessia um tanto ou quanto parecida com a do ano anterior, já não é grande novidade. Daí que, para se abandonar este ciclo vicioso de pobreza a que se junta, em muitos casos, o sobreendividamento externo que só protela o problema, agravando-o, tenha de haver um plano de saída. De uma realidade, e de entrada numa nova. No caso de Moçambique, e sem tal existir de forma agregada, essa visão passa por, em traços genéricos, aguardar pelo início da exploração de gás em Cabo Delgado que, pela primeira vez na História, dará real músculo financeiro ao país para poder crescer a dois dígitos e, enquanto ela não inicia na sua força máxima, conseguir elevar os fracos índices de competitividade do principal sector contributivo para o PIB, a agricultura, transformando-a em negócio, potenciar o crescimento de PME, industrializar, descentralizar, bancarizar, formalizar e melhorar as vias de acesso, fomentar as plataformas logísticas, exponenciar a rede energética nacional e não deixar morrer o turismo. Uma vez mais, estão todas relacionadas, por razões óbvias. Mas fazer tudo isto, com um PIB anual a rondar os 14 mil milhões de dólares não só é desafiante, como, na verdade, será bem mais do que isso. E a verdade, contestando-se ou não o ritmo a que isto está a ser feito, por quem, e com que méritos, é que há sinais encorajadores em todas estas áreas. Até que os primeiros influxos

“NUM ANO DE 2022 QUE SERÁ MARCADO POR INFLAÇÃO, AUMENTO DOS COMBUSTÍVEIS E DE PREÇOS DA LOGÍSTICA (TODOS INTERLIGADOS E A C O M PAC T UA R E M E N T R E S I ) , H Á V E N C E D O R E S Q U E LU TA M E L U TA D O R E S Q U E P E R D E M .”

provenientes da exploração de gás comecem a impactar todas estas áreas de actividade (a previsão aponta para o final da década) nos próximos quatro anos terá de existir um tecido empresarial local (nomeadamente as PME) minimamente edificado para que, de entre esses milhares de empresas e pequenos empresários, alguns haja que possam, de facto, navegar a torrente que se ouve ao longe aproximar, e florescer quando ela chegar. Se estiverem frágeis em demasia, não terão hipótese face ao caudal. Daí que seja fundamental a capacitação de pessoas e empresas, a todos os níveis, para que comecem a crescer agora as primeiras raízes que as irão agarrar ao Futuro, quando ele se fizer presente, e fazer reter algum do valor, em termos de capital financeiro e humano, que irá circular. Criar um ciclo novo dará tanto trabalho como repetir, vezes sem conta, um ciclo antigo. E como com todas as pessoas quando mudam de vida, haverá novos desafios e dificuldades, sim, mas é a única forma de mudar para não continuar a nadar em busca de salvamento, só para, logo a seguir, continuar a lutar para não se afundar. l 109


AMÉRICAS BRASIL

B R U N O R O S A*, PRÉMIO

A D I F Í C I L E C O M P L E TA A R T E D E ATRAIR O INVESTIDOR

M

uitos presidentes de empresas brasileiras vêm relatando a dificuldade de obter financiamento neste início de 2022 na Bolsa de Valores. Os juros em alta também estão na lista de reclamações. É por isso que, para não perder o ano e impulsionar seu plano de crescimento, muitas companhias começaram janeiro refazendo sua estratégia de negócios, criando uma espécie de plano B, reforçando os investimentos em inovação e tecnologia. O mês de janeiro, aliás, começou com muitas incertezas. O aparecimento da variante Ômicron elevou novamente os números de contaminações na Europa, Estados Unidos e países da América do Sul, como o Brasil. A tensão entre Ucrânia e Rússia tem pressionado cada vez mais o preço do petróleo, que já ensaia romper a barreira dos US$ 90. Há ainda uma sinalização de que os EUA iniciem um novo ciclo de aumento de juros, assim como já ocorre no Brasil. Se adicionar temas regionais, a lista aumenta. No Brasil, investidores e analistas mostram preocupação com as eleições para presidente em outubro. Assim, o próprio mercado já sabe que no segundo semestre do ano a chamada janela do

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mercado financeiro estará fechada para captações. Há duas semanas conversei com Filippe Savoia, CEO de uma das maiores redes de academia do Brasil, a Bluefit. Ele foi enfático. Sem o dinheiro do mercado de ações, a busca será elevar o número de franquias e investir em novos serviços. Para se ter uma ideia do desafiador ano de 2022, doze empresas já suspenderam os planos de abrir seu capital na Bolsa em janeiro. Será uma continuação do ano passado? Desde 2021, já são 70 operações de abertura de capital suspensas, segundo levantamento feito pelo head de renda variável da Ável Investimentos, Leonardo Schmitt. Ele me explicou que parte desse número reflete a queda da Bolsa de Valores do Brasil no ano passado, o que acabou por afetar as captações financeiras. A luz amarela acendeu quando a Petrobras anunciou que iria adiar a venda na Bolsa de suas ações na Braskem, a maior produtora de resinas termoplásticas nas Américas. É uma operação estimada em mais de 1,3 bilhão de euros. Aliás, seria. O risco é de que a oferta fique para 2023 por conta da instabilidade das eleições no Brasil. Mas esse ambiente incerto divide espaço com um Brasil que registou 45 aberturas de capital em 2021, um recorde que movimentou 10,6 bilhões de euros, informou a EY

em relatório divulgado no fim de janeiro. Por isso, as companhias vêm apostando em mais inovação e tecnologia em seus produtos e ações de transparência corporativa para atrair a atenção não só dos consumidores, mas dos investidores. É dessa forma que os analistas apostam também em um cenário positivo e com muita liquidez até dezembro. Lembram que somente em janeiro de 2022 entraram no Brasil cerca de 3,3 bilhões de euros em recursos do exterior, um quinto de todo o ano passado, com inéditos 16,7 bilhões de euros. Muitas empresas brasileiras têm ainda buscado um caminho novo: captar investimento direto no exterior. A fintech NuBank, as empresas de soluções digitais CI&T, Zenvia e Vtex, além das gestoras Vinci Partners e Patria Investments, foram para a Bolsa dos Estados Unidos. A próxima a buscar o mercado internacional é a Americanas, uma das maiores varejistas do país. Apesar dos desafios da economia brasileira, o gestor de um grande fundo de ‘private equity’ resumiu esse complexo cenário de uma forma simples: há uma maior seletividade na hora de investir. E só as empresas com um bom plano de crescimento estruturado, diverso e transparente vão conseguir ser bem sucedidas. A conferir. l * Texto escrito na língua de origem do autor


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OPINIÃO

JOSÉ LUÍS SEIXAS, ADVOGADO

DA VIDA E DA MORTE

I Peças de seda, pelo menos assim me pareciam, envolviam silhuetas que flutuavam em meu redor. Reconhecia os rostos, pelo menos alguns. Sentia-me impelido para o meio delas, envolvido pelos seus múltiplos braços, rodeado pelos panos que me tentavam aprisionar. Resisti o quanto pude. Depois caí num torpor que se aproximou do autêntico vazio. Acordei do coma. Mas estas imagens recorriam constantemente. Seriam os prolegómenos da morte? Estaria realmente vivo? Ou passara já para a dimensão etérea? Continuava deitado na UCI, preso à cama - tamanha a minha agitação - com personagens indistintas em permanente azáfama. Vi-me num comboio sem carris à espera não sei do quê. Como anteriormente me senti no alto de um guindaste abandonado aos céus. Como vi colegas e conhecidos a 112

quem implorava libertação e que persistentemente me ignoravam. Mas tudo me parecia real e verdadeiro. As alucinações enganavam-me e impunham-me o absurdo. Com elas, a ideia de estar cativo, amputado da minha liberdade e impossibilitado de cumprir as minhas obrigações. Não fruto da gravidade da doença – cuja dimensão ainda não descobrira – mas por uma estranha determinação de um colectivo frenético que se postara contra mim. Encontrava nos rostos gestos de escárnio, ameaças de agravamento e, finalmente, aprisionamento físico. A agitação que vivia era enorme. O pressentimento que estaria a chegar ao fim persistente. E não conseguia ver a minha mulher e

os meus filhos. Despedir-me deles. O fim é difícil. Doloroso. Sentido. Pode ser um momento, um segundo. Mas é sempre a partida. Sabe-se o que se deixa. Não se sabe o que se vai encontrar. Momento violento, como o de todas as partidas. Principalmente sendo a definitiva. Como homem de Fé, acredito que nada se confina à vida presente. Que há uma outra que aguarda o espírito despojado das amarras humanas.


OPINIÃO

II Foram três internamentos em UCI sucessivos e prolongados. Desde princípios de Dezembro de 2020 até Maio de 2021. Com entubamentos invasivos e comas induzidos. O meu estado era para lá de crítico. Só um milagre poderia evitar um desfecho final. Tudo dito e escalpelizado à minha mulher que tudo aguentou acompanhada dos nossos filhos. O mais novo, a frequentar o mestrado em Munique, regressou a Portugal de imediato para prestar o seu inestimável apoio. Organizaram-se grupos de oração e a minha família e amigos não esmoreceram. Nossa Senhora ouviu-os e eu fui sobrevivendo. A custo. Etapa após etapa. O grande problema foram as recidivas. Quando me julgava bem ou em franca recuperação aparecia um novo episódio, um novo internamento, uma nova ameaça. Por ocasião das altas (e foram três) os médicos comentavam que só um transmontano suportava tanto. Respondia que só um transmontano teria tanto apego à vida. Agora estou de novo em recuperação. Sinto-me bem. Mas sobre mim paira a sombra viva do passado recente. Não estou seguro nem me sinto protegido. Sei que a todo o momento tudo se esfuma. E esta conclusão é inquietante. E, se não tiver cuidado, paranoica. Ao contrário de outros, a UCI não me

“PRETENDI DEIXAR AQUI ESTE TESTEMUNHO. PODE SER QUE QUEM O LEIA R E F L I TA S O B R E S I E S O B R E O Q U E A S I VA I F A Z E N D O .”

perturbava pelo barulho das máquinas e dos alarmes. Perturbava-me sim pelas alucinações (como erradamente qualificava a “confusão mental” que me afectava). Essa confusão mental fez-me viver um suposto incêndio numa ala do hospital gerado por um festival de pirotecnia pretensamente organizado pelo cozinheiro, chinês de Xangai. Retiraram todos os convivas à minha excepção que ali permaneci sem que ninguém me acudisse. Aprisionou-me a um sofá, implorando ajuda a todos os meus conhecidos que passavam por mim com total indiferença. Conduziu-me, de forma ruborescida, a Fátima, num autocarro, apenas com a bata do hospital sem qualquer outra peça de roupa. Enfim, vivi em permanência uma realidade inexistente, uma ficção que sentia, palpava, tinha por certa e verdadeira. De vez em quando era impetrado por uma enfermeira que me interrogava sobre se sabia onde estava. E porque estava ali. O que só fazia acrescer a minha confusão. Vi-me em salas de família, em gares e aeroportos, em guindastes (como acima referi), nas situações mais estranhas. Mas, pelos vistos, nunca saí do mesmo lugar, da mesma cama, da mesma ‘box’.

Mesmo após as altas, a confusão mental perdurava dias para desespero de quem me apoiava. E, curiosamente, recordo todos os episódios, todos os momentos, todas as vicissitudes. Com sofrimento. Porque algumas – que aqui não relato – foram de especial crueldade. III Depois de muita reflexão, pude concluir que nisto tudo houve muita somatização de sentimentos e estados de alma que fragilizaram resistências e potenciaram uma doença pouco conhecida, de origem ignorada, de prognóstico imprevisível, agravada pelo covid. Não sei quanto tempo me espera e qual a margem de fruição da vida que me resta. Tudo farei para que seja bem gozada. Na companhia dos meus e nas paisagens que amo. Tudo o resto é secundário e, como tal, passageiro. IV Pretendi deixar aqui este testemunho. Pode ser que quem o leia reflicta sobre si e sobre o que a si vai fazendo. l 113


DIREITO

DIOGO DUARTE DE CAMPOS, SÓCIO DA PLMJ

O TEMPO DA J U S T I Ç A A D M I N I S T R AT I VA?

N

ão haverá ato eleitoral ou diagnóstico sobre reformas estruturais a encetar em Portugal, onde a reforma da justiça não ganhe foros de cidade. Porém, a verdade é que, na Justiça, escondem-se realidades bastantes diversas: algumas em que Portugal compara com o que de melhor há a nível mundial, mas também setores bastante mal tratados e onde Portugal compara com o que de pior pode haver. De todos, o parente mais pobre da justiça sempre foi o da Justiça Administrativa, apesar de as atenções estarem sempre centradas em grandes casos mediáticos, geralmente relacionados com o direito penal. Não digo que não seja necessário olhar para a justiça penal e pensar, por exemplo, se, hoje, ainda devemos ter uma fase de instrução como a que temos. Todavia, muito mais grave é o estado da Justiça Administrativa, onde um processo normal poderá demorar cinco, dez ou mais anos até conhecer uma decisão em primeira instância e um processo urgente poderá demorar mais do que seis meses ou mesmo mais de um ano, tanto quanto uma providência cautelar. Há precisamente 20 anos fez-se, porventura, a última grande reforma da justiça administrativa. Infelizmente, 20 anos depois, se quisermos fazer uma avaliação séria da reforma encetada no início dos anos 2000, não podemos senão concluir que a mesma, na melhor das hipóteses, foi uma desilusão e, na pior das

114

hipóteses, um retrocesso. Pior: hoje, sendo sincero, diria que um cidadão tem os seus direitos, liberdades e garantias mais bem defendidos na jurisdição comum do que na jurisdição administrativa. E dizer isto é dizer tudo sobre o enorme falhanço que foi a reforma do início deste século. Muito mais grave, reconhecer o estado a que chegou a justiça administrativa, implica, também, que se tenha claro que é o próprio Estado de Direito que se encontra em causa. Se tivermos em conta que, ainda recentemente, foi noticiado que se encontram pendentes de resolução nos Tribunais Administrativos, pedidos indemnizatórios que atingem cerca de 4,5 mil milhões de euros, relativos a danos impostos aos particulares (pessoas coletivas ou pessoas singulares), decorrentes do exercício das várias funções do Estado (administrativa, jurisdicional e político-legislativa), a que acrescerão, seguramente, outras centenas de milhões de euros decorrentes da execução de contratos em que o Estado seja parte, fica-se com uma ideia clara, ainda que parcelar, da injustiça administrativa. Esta justiça chegará inexoravelmente tarde, impõe demasiados sacrifícios aos particulares e pune pouco o Estado que age, muitas vezes – e muito mais vezes do que o que os cidadãos terão perceção – de forma ilegal, não cumprindo procedimentos e regras legais. Num país onde o Estado é tão grande e tão presente na vida de todos, não ter um sistema de justiça célere,

verdadeiramente independente, e convicto na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos particulares, representa um claro ‘handicap’ ao crescimento e ao investimento. Aliás, não será por acaso que, tendo notado precisamente esse problema, uma das três condições que a Comissão Europeia impôs para o financiamento do Programa de Recuperação e Resiliência tenha sido, precisamente, a demonstração de um investimento significativo na justiça administrativa. A recente criação de um conjunto de juízos especializados vai no bom sentido. Mas é pouco. Faltam tribunais e magistrados. Faltam condições para todos os intervenientes. Não podemos continuar a ter os mesmos tribunais provisórios há 20 anos; tal como não podemos ter juízes a quem estão adstritos centenas de processos e pensar que a pendência não aumentará. Mas, para além do necessário, diria mesmo imprescindível investimento público, falta-nos ser muito mais exigentes. Mais exigentes no que verdadeiramente deve estar nos tribunais administrativos ou deverá ser resolvido arbitralmente. Mas também mais exigentes na própria forma como encaramos a jurisdição administrativa: os tribunais administrativos são os tribunais próprios onde o Estado é julgado. Enquanto o Estado continuar a considerar que esta circunstância é um benefício, não teremos um Estado de Direito. E enquanto não tivermos um Estado de Direito não temos nada. Esta é a hora de olharmos para a justiça administrativa. l (Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico)


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