Luiz Morando

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Lei Tu Ras

LUIZ MORANDO [pesquisador sobre memórias LGBTQIA+ de BH]



CORRENTEZA


Taradinho. Tipo glostorado. Anormal. Homossexual. Useiro e vezeiro no uso da navalha. Portador de anomalias. Malandro. “Valente”. Atitudes amorfas. “Marilyn Monroe dos detentos”. Ladrão. Malandro incorrigível. Refinado malandro. Perigoso malandro e ladrão. “Rei da navalha”. Meliante. Larápio. Malandro degenerado. Gatuno e anormal. Promotor de furtos e desordens. Perigoso elemento. Talhado para o crime. Famoso invertido sexual. Arruaceiro. Marginal. Ladrão e pervertido. Mau elemento. Arruaceiro e pervertido. Famigerado travesti. Hóspede habitual da polícia. Um dos mais perigosos arruaceiros. Delinquente. Famoso por ser forte, brigador e de andar delicado. Famoso bandido. Homossexual perigosíssimo.

Esses foram os termos, cognomes, atributos, as expressões, perífrases e associações que, naquela sequência, ao longo de sua cobertura entre julho de 1953 e abril de 1987, a imprensa belo-horizontina disseminou sobre Cintura Fina, seus feitos e supostas proezas. Em um processo constante de introdução, fixação, combinação, substituição e repetição de novas formas com outras anteriores, foi sendo construída, sedimentada, caricaturada e estereotipada uma imagem marcada por comportamento considerado desviante, atravessada por nuances médica, policial, sexológica, moral. Um processo contínuo de reposicionamento da imagem de marginal no qual a imprensa teve papel fundamental. Afeminado. Invertido sexual. Pederasta. Pederasta passivo. Anormal. Faz uso do travesti. Horizontal. Ladrão. Elemento desordeiro e brigador. Vadio inveterado. Vadio, desordeiro e provocador de escândalos. Autêntico profissional do crime. Incorrigível.

Essa outra série emerge aos poucos, durante aquele mesmo período, dos processos criminais, comunicando-se, sobrepondo-se e entranhando-se na criação daquela imagem. À medida que os delitos praticados por Cintura Fina geram inquéritos policiais e ações penais, a imagem da imprensa ricocheteia e reverbera aquela que o aparelho policial-judicial vai moldando, dando

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complexidade e cristalizando uma personagem multifacetada. No âmbito dessa segunda série, há uma forma de representação que utiliza as mesmas nuances daquela sequência inicial, reforçada por um vinco jurídico e moral. Famoso pelas brigas e temido pela destreza. Excelente alfaiate. Boêmio. Extremamente gentil. Desbancava qualquer homem durão. Protegia as garotas de programa. Mais ‘barraqueiro’ que malandro. Bondoso. Boa gente. Exímio lutador. Inteligente. Tímido. Muito caridoso.

Essa terceira relação reúne impressões que pessoas adultas, que avistaram, conheceram ou conviveram com Cintura Fina, exprimiram quando se referiram a ela. Significativamente diferente das outras duas listas, as pessoas comuns tenderam a ressaltar traços que conferem mais humanidade a uma figura que se tornou popular, lendária, mítica e histórica em Belo Horizonte. Em meio a esse tecido intrincado de referências discursivas, que ajudam a dar vida a uma personagem complexa, contraditória e muito humana, este livro tenta capturar uma versão um pouco mais clara, palpável, segura e amparada em documentos, uma concepção que nos dê um pouco mais de materialidade (ainda que ilusória) sobre quem foi Cintura Fina. A intenção não é fazer propriamente uma biografia no seu sentido convencional e tradicional (o que ficará mais claro na terceira seção desta introdução). Minha tentativa é dar um pouco mais de precisão, de resolução à imagem de uma personagem embaçada pelo tempo, pela memória e pelo desencontro de informações. Como Cintura Fina viveu a maior parte de sua vida em Belo Horizonte e como ela faz parte de um projeto mais amplo que tenho de resgate de uma memória e das formas de sociabilidade do segmento LGBTQIA+ na capital mineira, este livro enfocará preponderantemente o período em que ela morou nessa cidade, estendendo-se um pouco mais aos deslocamentos que ela fez ao Rio de Janeiro e a Uberaba. Uma vez que minha proposta está voltada predominantemente para a vida de Cintura em Belo Horizonte, deixo aqui registrada uma nota biográfica breve (ainda que muito lacunar), com alguns elementos que serão retomados ao longo da obra. Assim, pode se começar a desfazer alguns enganos sobre sua existência.

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De Fortaleza para a vida José Arimateia Carvalho da Silva nasceu em Fortaleza, em 3 de maio de 1933. Pouco se sabe de seus pais, que provavelmente não chegaram a se casar: Raimunda da Silva faleceu no parto de seu único filho; Renato Carvalho, segundo mencionou Cintura Fina, era agrônomo e advogado.1 Após a morte de Raimunda, Renato entregou o bebê para ser criado por três tias, que suponho do lado materno. Baseadas na crença popular de que “amanhã ou depois você pode andá pelo mundo e cê precisa aprendê a cuidá de si próprio”2, elas ensinaram ao menino os princípios básicos de lavar, passar e costurar roupas. É muito provável que Cintura Fina também tenha aprendido a cozinhar durante esse período. Ao mesmo tempo, a criança foi enfronhada pelas tias no ambiente religioso, tornando-se sacristão por volta de 8 anos de idade e tendo estudado em um seminário na adolescência. Data também de sua infância, de acordo com a perspectiva de Cintura Fina, a manifestação dos traços e trejeitos de feminilidade que a marcariam ao longo da vida. Em entrevista de 1972 publicada pelo jornal Oi Bicho, ela afirma que saía às ruas de Fortaleza e as pessoas gritavam: ‘Ó, o Zé Mariquinha!’. Em 1947, com 14 anos, dois fatos marcaram a vida de Cintura Fina. O primeiro tem a marca familiar: seu pai a procurou e ambos se conheceram. Mas o encontro foi rápido e não gerou relação de afeto ou proximidade. O segundo 1 As informações sobre a infância e adolescência de Cintura Fina foram retiradas de entrevistas dadas aos jornais Oi Bicho (1973) e Estado de Minas (1975, 1987). Fiz duas tentativas de localizar a certidão de nascimento de Cintura Fina em Fortaleza. Uma por meio de solicitação em uma plataforma de cartório on-line; outra por meio de amigo que esteve em Fortaleza e foi pessoalmente ao cartório requerer a certidão. As duas buscas foram direcionadas ao único cartório de registro civil que existia em Fortaleza em 1933. A busca presencial orientou a pesquisa até dez anos adiante (1943) e até cinco anos antes (1928) do ano de nascimento. As duas tentativas foram frustradas. Por isso, é possível supor, entre outras hipóteses, que Cintura Fina tenha nascido e sido registrada em uma cidade que mais tarde passou a compor a região metropolitana de Fortaleza. O próprio nome civil é registrado na documentação policial-judicial de formas diferentes: José Arimateia de Carvalho; José de Arimateia Carvalho; José Arimateia Carvalho; José Arimateia da Silva; José Arimateia Carvalho da Silva. Adotei este último porque é o que consta de sua certidão de nascimento registrada em Uberaba, como veremos na Parte IV. 2 Cintura Fina. Oi Bicho, Belo Horizonte, ano II, n. 3, jan. 1973, p. 9. Esta entrevista se encontra integralmente transcrita no Anexo 2.

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fato tem o traço afetivo-sexual: Cintura estava matriculada em um seminário de Fortaleza, frequentando suas aulas. Ela se apaixonou por dois colegas que eram primos. Uma relação não muito bem esclarecida de assédio, sedução e contato sexual se desenvolveu entre os três dentro da escola. Provavelmente descoberta e envergonhada, Cintura Fina evitou voltar para a casa das tias e passou a morar na zona de meretrício de Fortaleza, conhecida como Curral das Éguas3. A própria Cintura Fina relatou esse episódio: Porque quando eu ‘tive no seminário, aconteceu esse ato comigo no seminário, né, Waldomiro Piccinini e Eduardo Piccinini, eram primos. Eu tinha adoração pelos dois. Era apaixonado por eles. Lá, nós estudávamos tudo junto. E eu estudava bastante e as minha matéria eu ensinava tudo pra eles. Eu fiquei muito envergonhado com o que passou, mas eu com vergonha de ir pra casa, derivado da minha família, não quis voltar. Aí fui morar logo na zona, no Curral das Éguas como chama zona na minha terra, né? E, derivado a isso, eu fazia outras coisas aí diferente, que às vezes é até impróprio falar.4 Como foi comum na vida de diversas pessoas que exprimiam uma forma de sexualidade dissidente, Cintura Fina ganhou experiência e traquejo na zona de meretrício de Fortaleza. Não se sabe quanto tempo ela ficou no Curral das Éguas e nem o motivo que a levou a se deslocar para Natal, no Rio Grande do Norte. Na capital potiguar, ela também se fixou na zona de prostituição, onde sofreu perseguição e violência da polícia, como abordarei na Parte III. 3 O Curral das Éguas foi uma região de meretrício em Fortaleza, nas décadas de 1920 a 60, cujo epicentro foi a ladeira da rua General Sampaio. Informações detalhadas sobre a história desse território podem ser lidas em <https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/2004/2004-HistoriaFortalezaAntiga.pdf>. 4 Derivado da minha beleza. Direção: Fernanda Gomes e Luciana Barros. 2004. Curta-metragem (7 min.). Devo a referência a esse documentário, bem como uma cópia generosamente cedida, a Indaiá Freire da Silva. Em 2009, Indaiá defendeu seu trabalho Hilda Furacão e o périplo de Cintura Fina: romance, minissérie e documentário. 2009. 104f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade Federal do Pará, Belém. Por sua vez, o curta-metragem utiliza fragmentos de uma entrevista que Cintura Fina deu a jornalistas, em 1977, em Belo Horizonte. Na Parte III, tratarei desse episódio.

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Continuando seu processo migratório, de Natal ela vai para Recife, em 1950 ou 1951. É possível fixar esse período devido ao relato feito na entrevista que deu origem ao curta-metragem Derivado da minha beleza: O finado Augusto Ferreira era muito meu amigo. Nós fazíamos ponto na rua da Guia, na Cova da Onça, e naquele tempo eles já me apelidavam de Cintura Fina. Foi lá até quando ele pôs essa música “vem cá, cintura fina, cintura de pilão”, derivado da minha pessoa. O baião composto por Zé Dantas e popularizado na voz de Luiz Gonzaga foi lançado em 1950 e alcançou sucesso imediato.5 A insinuação de que a música foi inspirada nos dotes de Cintura Fina era uma forma de valorizar sua autoimagem, pois isso não se comprova. Pelo contrário, a pesquisadora Luciana Teixeira Andrade me relatou que teve a oportunidade de conferir essa informação com Gonzagão, em Belo Horizonte, e ele negou a possibilidade. De todo modo, a associação entre a figura feminina do baião e os dotes físicos de Cintura Fina – negra, magra, quadril acinturado, 1,74 de altura, olhos e cabelos castanhos – começou a ser feita no período em que a travesti circulou pela região 5 Cintura Fina é música de autoria de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, gravada em 26 de maio de 1950 para o lado B do disco RCA-Victor n. 80.0681. (Cf. TINHORÃO, José Ramos. A música popular no romance brasileiro. v. II. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 361) Minha morena, venha pra cá Pra dançar xote, se deita em meu cangote E pode cochilar Tu és muié pra homem nenhum Botar defeito, por isso satisfeito Com você vou dançar Vem cá, cintura fina, cintura de pilão Cintura de menina, vem cá meu coração Quando eu abarco essa cintura de pilão Fico frio, arrepiado, quase morro de paixão E fecho os olhos quando sinto o teu calor Pois teu corpo só foi feito pros cochilos do amor.

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portuária do Recife.6 O nome se incorporou à pessoa, que também já assumira uma identidade sustentada por um repertório de elementos atribuídos ao feminino: corte de cabelo, sobrancelhas pinçadas, vestidos e outras peças de vestiário, sapatos e adereços, maquiagem, gestos e atitudes.7 Após Recife, parece que Cintura ainda passou por Salvador. É certo que ela aportou na capital mineira em 23 de maio de 1953, com 20 anos, conforme relatou em entrevista de 1977. Ela se fixou no Hotel Nova América, em plena área de prostituição, onde ganhou a ‘proteção’ da cafetina Tianinha e trabalhou aparentemente como cozinheira. Ao mesmo tempo, tornouse dançarina no Dancing Monte Carlo, então localizado na esquina de rua Espírito Santo com avenida Santos Dumont. No dia 25 de julho do mesmo ano, cometeu o primeiro delito de que se tem notícia por meio da imprensa e polícia, do qual derivaram rapidamente um inquérito policial e posterior ação penal. Com a divulgação pelos jornais de seu envolvimento nesse crime, surgiu publicamente na imprensa belo-horizontina a figura de Cintura Fina, com direito a foto estampada sob manchete apelativa. 6 Apenas a título de curiosidade, Cova da Onça foi um bar situado na avenida Barbosa Lima, uma das vias que cortam a rua da Guia. Ao pesquisar em jornais na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (<memoria.bn.br>), localizei várias notícias que comprovam o uso noturno dessa região como ponto de prostituição, vadiagem e desordem, segundo os termos do período. Destaco esta notícia extraída do Diário de Pernambuco (Recife, ano CXXVII, n. 175, 01/08/1952, p. 5): Cena de sangue na “Cova da Onça” Na madrugada de hoje, no recinto do bar denominado “Cova da Onça”, à av. Barbosa Lima, no bairro do Recife, verificou-se tremenda cena de sangue. Levadas por ciúme, após violenta altercação, as mundanas Terezinha de Jesus Zacarias, moradora à rua da Guia, n. 155, 1º andar, e Maria José da Conceição, domiciliada à rua do Apolo, n. 145, 1º andar, travaram encarniçada luta. No decorrer da porfia, armada de uma lâmina gilete, Terezinha vibrou terrível incisão na hemi-face direita de sua antagonista, que foi terminar na sala de curativos do Pronto-Socorro.[...] 7 O apelido Cintura Fina também foi atribuído a outras pessoas naquele período. Ainda em jornais na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encontrei duas reportagens de 1952 nas quais certo “gatuno” chamado Arquimedes da Silva, também conhecido como Cintura Fina, tinha sido capturado pela polícia em João Pessoa (em março) e em Natal (em abril). Parece que esse Cintura Fina não se reconhecia em nenhuma forma de sexualidade dissidente. Para quem tiver interesse, consulte: - Bronzeado foi preso! O Norte, João Pessoa, ano XLII, n. 617, 12/03/1952, p. 8. - Trancafiados 26 “amigos do alheio”, em poucos dias, pela Secção de Roubos e Furtos de Natal. Diário de Natal, Natal, ano XII, n. 2.856, 06/04/1952, p. 6. - Ladrões deportados pela polícia paraibana para nossa capital. Diário de Natal, Natal, ano XIV, n. 3.437, 04/12/1953, p. 1.

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A partir de julho de 1953, Cintura Fina se tornará mais amplamente conhecida da imprensa, da polícia, do meio judicial, de peritos de medicina legal, dos frequentadores da região de meretrício do Centro e dos bairros Bonfim e Lagoinha. Sua trajetória é sustentada e marcada: 1. por diversas atividades laborais – cozinheira, faxineira, lavadeira, gerente de pensão, profissional do sexo, alfaiate, cabeleireira, enfermeira, gari; 2. por delitos cometidos – lesão corporal, furto, roubo, receptação; 3. por contravenções penais – vadiagem, conto do suadouro, escândalo em via pública, desordem e ‘para averiguações’; 4. por quinze processos criminais como ré e três como vítima (acessei e li esses dezoito; porém, há pelo menos mais um não localizado); 5. por certas habilidades – força física, esperteza, destreza para lutar, trabalhos manual e braçal, mas especialmente a principal delas: o manejo da navalha; 6. pela religião – inicialmente católica, posteriormente umbandista, protegida de Xangô e Omolu8. Esse conjunto de elementos compôs na vida de Cintura Fina uma dinâmica própria entre o trabalho, os delitos e as contravenções, a boemia, as delegacias e penitenciárias (em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Uberaba). Seu espírito inquieto, seus bafões, suas fugas, sua rebeldia, sua liderança, seu afeto, sua gargalhada alta e sonora, ao lado da proteção dedicada aos mais fracos nas disputas nas ruas, ajudarão a constituir uma figura ambígua, ambivalente, às vezes indecifrável, às vezes aberta à leitura clara, em todas essas situações muito vibrante. Tudo isso aponta para um grande quebra-cabeça com várias peças perdidas, lacunas a serem preenchidas, contradições expostas, movimentos inesperados, processos de denegação. Tudo isso participou da construção de um ser humano que deixou a vida em 18 de fevereiro de 1995. No entanto, alguns mitos foram criados ao redor dessa figura ao longo de sua existência. Dois deles eu gostaria de deixar esclarecidos desde o começo porque foram impulsionados por uma obra literária e porque os personagens 8 Nas religiões afro-brasileiras, Xangô é a divindade da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo. É considerado o rei de todo o povo ioruba. Ele castiga mentirosos, ladrões e malfeitores. Conhecido como o protetor dos intelectuais. Omolu é o orixá com poder de dominar os territórios da cura e da enfermidade. Na Umbanda, é o chefe da falange das Almas ou Pretos Velhos. Representa o número 13, associado à razão.

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relacionados a esse mito não cruzaram a vida de Cintura Fina, nem aparecerão neste livro. Em 1991 (quatro anos antes de Cintura Fina morrer), o jornalista e escritor Roberto Drummond (1939-2002), já consolidado em ambas as carreiras, lançou o romance Hilda Furacão. A obra explora a paixão fulminante entre um frei e uma jovem de classe alta que se tornara prostituta em Belo Horizonte, na primeira metade dos anos 60. Drummond recria e explora, no âmbito da ficção, pessoas reconhecidas e famosas naquele período e na década anterior: a prostituta Hilda Furacão, o empresário Antônio Luciano, o padre Cyr, a defensora da moral e bons costumes Lalá Fernandes, a travesti Cintura Fina, a mulher desordeira Maria Tomba Homem. Toda criação ficcional tem como um de seus eixos a liberdade de criação e expressão, a qual não se submete nem é articulada pelo que é dado como realidade. Nesse sentido, não se exige fidedignidade com fatos e/ou indivíduos do que é considerado ‘vida real’. Mas o efeito provocado por essa recriação – certamente não desconhecido por Drummond e provavelmente premeditado por ele – deu lastro a certa confusão entre possíveis relações de amizade entre Cintura Fina e Hilda Furacão e de inimizade entre Cintura Fina e a mulher Maria Tomba Homem. Nesse sentido, julgo necessário desfazer esse equívoco, reforçado e renovado quando o romance foi adaptado para uma minissérie televisiva exibida entre maio e julho de 1998 (isto é, três anos após a morte de Cintura Fina). A intenção não é desmerecer as duas obras ficcionais; ao contrário, são manifestações artísticas veiculadas por discursos e plataformas distintos, às quais não cabe a cobrança de fidelidade ou reprodução de uma presumida realidade. Apenas considero ser preciso esclarecer que a interação entre as pessoas não se dá da mesma forma como pode ser construída na ficção. Maria Tomba Homem foi o apelido dado a Maria de Lourdes Faria, em 1942, após um desentendimento, seguido de luta corporal, ao final de uma comemoração na zona boêmia. Ao tentar ser levada para a delegacia, Lourdes reagiu e “espalhou” os policiais. Estes utilizaram cassetetes e ela revidou, derrubando três guardas.

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Com muito custo, foi levada presa, acrescida à acusação de lesões corporais a de desacato à autoridade. Atribui-se a ela o ato de vangloriar-se por, em um ano, ter sido detida 315 vezes por causa desse tipo de imbróglio! Maria de Lourdes Faria era negra e nasceu em Dores do Indaiá, em 1921, em família de baixa condição socioeconômica. Talvez devido a essa conjuntura, não teve acesso a escola e não aprendeu a ler e escrever. Em 23 de julho de 1944, devido a um furto, ela foi sentenciada a pena de cinco anos, nove meses e dez dias, na Penitenciária de Sabará. Prestes a alcançar a liberdade, ela faleceu de angina no presídio, em 7 de janeiro de 1950.9 Depreende-se daí a impossibilidade de Maria Tomba Homem e Cintura Fina terem se conhecido e convivido – a primeira morreu em 1950; a segunda chegou em Belo Horizonte em 1953. A partir da celebridade que Maria Tomba Homem alcançou nos anos 40, seu apelido se tornou referência para designar qualquer mulher que transgredisse o estereótipo social vinculado à feminilidade, como fragilidade, subserviência, fraqueza física, subalternidade, obediência sem contestação, chegando ao extremo de ser ligada à transgressão sexual associada à lesbianidade.10 9 As informações sobre Maria Tomba Homem foram retiradas, sobretudo, de duas reportagens: TAVARES, Marcelo Coimbra. Não é mais de briga. Diário da Tarde, Belo Horizonte, ano XVIII, n. 6.067, 29/01/1949, p. 10; TAVARES, Marcelo Coimbra. Maria “Tomba Homem”, a flor mineira da malandragem. Diário da Noite, Rio de Janeiro, ano XXI, n. 4.924, 07/04/1949, p. 8. 10 Vale a pena reconhecer esse tipo de associação por meio de duas notas policiais, entre outras publicadas ao longo dos anos 1950 e 60: Mulher tomba-homem O guarda-civil de n. 10.034 prendeu, ontem, às 19,30 horas, Leonor de tal, mais conhecida por mulher tomba-homem, que espancava Antônio Alexandrino (rua Caramuru, 554) na rua Martins Carvalho. A vítima da violência feminina foi parar no Hospital de emergência e a agressora com os costados no xadrez. (Correio da Tarde, Belo Horizonte, ano I, n. 49, 30/05/1955, p. 9) Tomba-Homem desacatou guarda Nair Mucadan tem fama de mulher “Paraíba”, pois espanca menores e já tem tentado bater em homens. Sábado, às 14 horas, o SP-1, da Radio Patrulha, esteve na rua Tupinambás, 443, onde a menor Maria da Conceição (Padre Marinho, 490) havia sido espancada por Nair Mucadan. Os patrulheiros prenderam a mulher, que foi encaminhada à Segunda Delegacia de Plantão. Foi recolhida ao xadrez e ainda terá de responder pelo crime de ter espancado a menor. A “Paraíba” foi posta em liberdade e terá de comparecer ao 2° Distrito Policial para responder ao processo referente a Maria da Conceição e desacato ao guarda 904, que lhe deu voz de prisão. (Diário da Tarde, Belo Horizonte, ano XXIX, n. 21.036, 1º Caderno, 25/03/1963, p. 13)

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Por outro lado, a travesti Maria Tomba Homem, também negra, existiu, conheceu e conviveu com Cintura Fina em Belo Horizonte, na década de 1970, mas não há nenhum registro sobre isso na imprensa ou em outra documentação utilizada para esta obra, assim como nenhuma referência da própria Cintura Fina a essa convivência. Naturalmente, isso não desacredita o depoimento que a travesti Tomba Homem deu ao documentarista Gilberto Cardoso, o Gibi, no documentário feito em sua homenagem.11 Em busca de mais informação sobre mulheres e/ou travestis denominadas Tomba Homem, uma leitura levou a outra e assim a rede se formou, consolidando a percepção de que esse nome se tornou tão lendário quanto outros tipos populares belo-horizontinos. Em artigo preparado a partir de pesquisa realizada entre 1997-1999, Regina Medeiros se refere a uma prostituta do bairro Bonfim cujo nome de guerra era Tomba-Homem: Em busca dessa personagem, com mudança de rumo por várias vezes, encontrei-a. As informações correspondiam à descrição anteriormente feita: tinha o nome de guerra de Tomba-Homem, trabalhara como prostituta no bairro Bonfim, morena, de 1,70 m aproximadamente, de mais de 65 anos de idade. Porém, não era uma mulher, mas uma travesti. (sic) No primeiro contato, ela relatou que foi assim batizada nos anos 60 quando chegou no Bomfim para viver. Na mesma noite em que chegara, foi perseguida pela polícia. Para reagir, enfrentou os policiais e os dominou, deixando-os desarmados no chão. Foi aplaudida pelos espectadores e identificada com uma mulher que possuía as mesmas características: mulher, prostituta, com o nome de Tomba-Homem, e que, devido a conflitos no bairro, mudara-se para outra cidade.12

Como em um jogo de espelhos, aquela cena fundadora da Maria Tomba Homem de 1942 se replica nessa dos anos 60 e em outras mulheres que tiveram tal apelido colado à sua figura. É possível que essa travesti seja a mesma documentada por Gibi. Pode ser outra. Talvez nunca saibamos. Literatos 11 Cf. Tomba Homem. Direção: Gibi Cardoso. 2008. Documentário (42 min.). Disponível em: <http:// vidaarteedireitonoticias.blogspot.com/2018/08/tomba-homem-documentario.html>. 12 MEDEIROS, Regina. O Bonfim da prostituição: a presença ambivalente do outro. In: MEDEIROS, Regina (Org.). Permanências e mudanças em Belo Horizonte. Belo Horizonte: PUC Minas, Autêntica, 2001. p. 54-55.

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criam suas ficções. O “povo” também ficcionaliza. Eu também poderei correr o risco de cumprir essa tarefa aqui... Outro equívoco a ser dissolvido é a amizade entre Cintura Fina e Hilda Furacão, difícil de ser comprovada. Hilda Maia Valentim (1930-2014) foi uma prostituta que ocupou um quarto no Maravilhoso Hotel, da rua Guaicurus, nos anos 50. Em nenhum momento seu nome (nem o civil, nem o de trabalho) surgiu nos jornais belo-horizontinos da década de 50, nem quando se casou com o jogador de futebol Paulo Valentim, com quem se mudou para Buenos Aires, no início dos anos 60, devido ao contrato do jogador com o Boca Juniors.13 Fica claro, então, que a aproximação entre Hilda, Cintura Fina e Maria Tomba Homem não passou de mero exercício ficcional de Roberto Drummond. Por fim, há certa tendência a buscar equivalências entre Cintura Fina e Madame Satã. Eu não diria que há muitas semelhanças, embora elas tivessem vivido em um mundo onde a cultura da malandragem ainda estivesse em alta. Em nota ao estudo que fez sobre a malandragem em Madame Satã, Gilmar Rocha deixou o seguinte registro: Guardadas as especificidades, Madame Satã não é o único caso de homossexual, malandro e valente no Brasil. Durante os anos 50 e 60, Cintura Fina – vulgo de José de Arimatéia Carvalho da Silva –, nascido em 1933 na cidade de Fortaleza (CE), muda-se para Belo Horizonte em 1953, transformando-se no Rei da Navalha, o mais famoso homossexual, malandro e valente da história da cidade. É importante destacar ainda que esse personagem deixou um registro biográfico na forma de entrevista em rádio local, cuja referência não me foi possível localizar quando e onde se realizou. Sem querer desmerecer o rei da navalha, ao se ouvir a referida entrevista fica-se com a impressão dejà vu, sem ser cópia, mas espécie de duplo de Madame Satã.14 13 A respeito da vida de Hilda Furacão, o jornal Estado de Minas publicou, em 27 de julho de 2014, longa reportagem que se encontra disponível em <https://www.em.com.br/app/galeria-de-fotos/2016/05/24/ interna_galeriafotos,5786/materias-sobre-hilda-furacao.shtml>. 14 ROCHA, Gilmar. O Rei da Lapa: Madame Satã e a malandragem carioca. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 152. Grifos do autor.

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Como será visto na Parte III deste livro, a entrevista a que Rocha se refere foi feita pelo radialista José Lino Souza Barros, em 1977, assessorado pela produtora Lucia Casasanta e Paulo Heleine. À medida que este livro for se desenvolvendo, creio que ficará a percepção de Cintura Fina não como cópia ou duplo de Madame Satã, mas a imagem de travestis que tiveram alguns pontos em comum e vários outros muito particulares às experiências e vivências de cada uma delas.

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