Inclusão na educação

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Inclusão

Educação

I c L usão

“ ‘Deficiente’ é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino ‘Louco’ é quem não procura ser feliz com o que possui

Centros de Ensino Especial de Brasília não possuem infraestrutura e profissionais de saúde para os alunos deficientes

Simone Cimas

simonecimas@gmail.com

Sérgio Luiz

sl.lo@hotmail.com

A

cordar cedo, ir para escola, anotar os deveres e desenvolver-se. Para 4.649 alunos, essas provas do destino são diferentes, mais duras. São desafiadoras porque não envolvem exatamente notas, mas também sensibilidade das famílias e dos professores que fazem alguém entrar em uma sala de aula. Nos 13 centros de ensino na educação especial do Distrito Federal, sobra vontade, mas ainda falta infraestrutura, além de recursos financeiros e humanos. Ir para escola é o grande momento do dia para esses alunos. Nem tudo o que falta nestes momentos impede essas milhares de famílias de sonhar que a escola seja o melhor lugar do mundo Nesse espaço “iluminado”, há cantos sem luz. Professores e familiares dos alunos reclamam de sala de aula inadequada, falta de quadras esportivas cobertas, dificuldade de acessibilidade tanto dos alunos quanto dos pais dentro das escolas e também da ausência de equipe de profissionais de saúde. As escolas atendem alunos com Transtorno Global do Desenvolvimento - TGD (condições que afetam diretamente o cérebro como autismo e síndrome de Down) e superdotados.

de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores

‘Surdo’ é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês ‘Mudo’ é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia

‘Paralítico’ é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda ‘Anão’ é quem não sabe deixar o amor crescer

E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois ‘Miseráveis’ são todos que não conseguem falar com Deus”

Mário Quintana

Eles são pessoas. Pensam. Vivem. Amam. Choram. E são excluídos. Minorias que na lei têm direitos iguais, mas, que lhes foram negados na prática. Nas próximas páginas, exemplos de uma interdição diária que afeta duramente brasileiros de norte a sul, inclusive na capital do país. A rede de saúde, por exemplo, não disponibiliza intérpretes na Linguagem Brasileira de Sinais para dar assistência a surdos. Um advogado cego tem que pedir ajuda para dar medicação em gotas para as filhas. Falta estrutura na rede pública de educação. Treinadores tem que dar um “jeitinho brasileiro” para que os alunos portadores da Síndrome de Down sejam aceitos em academias. Mais de um bilhão de pessoas no mundo com algum tipo de deficiência, segundo a Organização Mundial da Saúde . A OMS acrescentou que por volta de 190 milhões têm a vida dificultada por falta de condições. O número corresponde a uma a cada cinco deficientes no mundo. No Brasil, são 24% por cento da população com alguma deficiência, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Praticamente, uma a cada quatro pessoas que deveriam ter garantidos os direitos de cidadania... mas não é assim. No entanto, aqui estão histórias de iniciativas simples que podem mudar uma vida, uma comunidade, o mundo.

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Rede atende 4.649 alunos especiais, mas falta estrutura

‘Cego’ é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome,

‘Diabético’ é quem não consegue ser doce

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Fotos: Simone Cimas

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Setembro • 2015

Maria Clara, 4, é estudante do CEE 02 de Ceilândia

Saúde

O apelo por falta de profissionais de saúde dentro dos centros de ensino especiais também é proclamado pelas mães dos alunos. A dona de casa Maria da Cruz, mãe da Maria Clara de quatro anos que sofre de autismo, relata que a escola deveria ter atendimento como fisioterapeuta e fonoaudiólogo. Já a dona de casa Ana Lucia, 51, mãe de Larissa, 18, expõe que um psiquiatra no centro de ensino poderia ajudar a sua filha na evolução educacional. A declaração Salamanca, de 1994, busca garantir a inclusão dos excluídos. O documento afirma que “as crianças e jovens com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas regulares e que a elas se devem adequar através duma pedagogia centrada na criança, capaz de ir ao encontro destas necessidades”. A dona de casa Rosilene Bento da Silva, 43, mãe de Sandro Bento, aluno autista de 11 anos, declara que a historia é outra. “A escola normal não tem condições de atender alunos do ensino especial”, afirma a mãe. Bento estudava em uma escola normal, mas por causa das reclamações dos outros pais, que achavam que a professora reservava mais tempo para Sandro do que para os outros alunos, Rosilene pediu a transferência do filho para o Centro de Ensino 1 de Ceilândia em 2009. As escolas regulares não têm condições para receber os alunos especiais, por isso os centros estão cada vez mais lotados de pessoas com comprometimento. www.uniceub.br/jornalesquina

Somos uma escola “ inclusiva para os excluídos das escolas regulares que não tem condições de aceitá-los”

A vice-diretora do Centro de Ensino Especial I do Guará, Leide Ferreira de Oliveira, afirma que: “A secretaria de educação e a secretaria de saúde deveriam trabalhar juntas dentro das escolas, a maioria dos alunos têm convulsão e a escola não tem a quem recorrer senão ao SAMU”. Mas isso não é um caso isolado, a ocorrência do chamado ao Serviço de Atendimento com Urgência é recorrente nos centros de ensino. A sugestão da diretora para conter esses casos é a inserção de uma equipe multidisciplinar. “Devido a essa carência do governo buscamos o apoio nas universidades, com estagiários de fonoaudiologia, fisioterapia e enfermagem”, expõe a vice-diretora.

Monitores

Além de falta de profissionais de saúde nas escolas, o sistema educacional na rede de ensino especial enfrenta a desvalorização dos monitores. Eles têm a função de auxiliar os professores com os alunos na rotina diária e, muitas vezes, preenchem a ausência de enfermeiros para fazer curativos, conduzir os alunos ao banheiro, trocar fraldas, dar banhos e ajudar na alimentação. Não recebem nenhum tipo de treinamento e têm que assumir os cargos sem capacitação. A educadora social voluntária, Edna Alves de Oliveira, exerce o papel de monitora no centro de ensino especial II na Ceilândia e recebe R$ 525 por mês no turno de quatro horas por dia sem direito a férias. Na realidade esse valor diário é para o almoço e transporte, e serviria como uma ajuda de custo. ”Quando cheguei aqui fiquei assustada, nunca tinha feito esse trabalho de limpar. Na seleção sabíamos que era para trabalhar no ensino especial, mas aqui a realidade é outra. São todas as modalidades e situações que temos que lidar” afirma a voluntaria.

Alunos do Centro de Ensino Especial 01 do Gama interagem com colegas durante o intervalo entre as aulas

aderem à prática de realizar eventos, e às vezes alugam espaço do campo olímpico e de salas de aula. O vice-diretor do Centro de Ensino Especial II da Ceilândia, Itamar Pereira, afirma que passa dificuldades por falta de material didático. “A gente utiliza muito papel impresso para fazer colagem, tinta, cola, além de material de limpeza. Vou passar no supermercado para comprar sacos de lixo, sempre tiramos do nosso bolso para completar porque quando a verba vem é insuficiente para a demanda” expõe o gestor.

Itamar Pereira, é vice diretor do CEE 02 de Ceilândia

A coordenadora de educação especial, Ana Cristina Correia e Silva, declara que: “O maior desafio da minha gestão é estruturar Ausência de recurso financeiro e oferecer os recursos humanos adequados, No início deste ano, a secretaria e retomar ações de inclusão, que durante de educação liberou R$ 27.530.645,14, pelo muitos anos, ficaram em segundo plano”. Programa de Descentralização Administrativa A coordenadora afirma que a Secretaria de e Financeira (PDAF) às 671 instituições Educação oferece cursos para os professores escolares da rede de ensino público. A verba que desejam atuar com aluno especial, que é transferida para cada estabelecimento os monitores são essenciais e que não serão educacional de acordo com o número de extintos. Inclusive, estão sendo convocados. No Centro de Ensino Especial I do alunos e prestação de contas dos exercícios anteriores. A quantia deve ser utilizada para Gama, o coordenador pedagógico Itamar manutenções em geral, serviços, bens de Rodrigues afirma que a falta de verba dificulta consumo, material didático e reparação de os trabalhos desenvolvidos na instituição. equipamentos. O PDAF é repassado pelo “A escola sofre com falta de verba, mas nós menos uma vez por ano às instituições, mas é procuramos parceiros que ajudam”, conclui. possível que ocorram outras transferências de O Centro de Ensino possui parceria com uma rede de fast-foods da cidade que, uma vez valor de forma emergencial. por ano, fecha a unidade do Gama apenas para os alunos. “Ainda não é de graça, mas eles nos vendem mais barato. Esse mês nós programamos ir ao parque de diversões em comemoração ao dia das crianças”, conclui.

Arte: Fernanda Roza

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José Antônio, é diretor do CEE 01 de Taguatinga

De fato, essa verba é insuficiente. Os centros de ensino especial recorrem à ajuda da comunidade para custear gastos com higiene e conservação da escola. No ano passado o Centro de Ensino Especial I de Taguatinga não recebeu o repasse do PDAF, foram repassados somente duas verbas emergências em duas etapas: uma em fevereiro e outra em maio, porém insuficiente. “Solicitei que os pais dos alunos enviassem lenços umedecidos, papel higiênico, papel toalha para a escola” relata Jose Antônio de Araújo, diretor da escola. Para suprir os gastos de conservação, as escolas

Foto: Sérgio Lopes

sETEMBRO • 2015

Horta comunitária auxília o desenvolvimento dos estudantes do Centro de Ensino Especial 01 do Gama


SETEMBRO • 2015 @jornalesquina

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Inclusão

harmônicos

Gritos em alto e bom som

jade.m.abreu@gmail.com

U

Jade Abreu

jade.m.abreu@gmail.com

D

Ana Lúcia Soares, fundadora do Surdodum em 1964, comenta sobre a falta de patrocínio para as apresentações do grupo de deficientes auditivos na capital

sentem a frequência mais grave” explicou. Martins, contudo, afirmou que tudo vale a pena. A felicidade dos músicos em subir ao palco e tocar contagia e empolga o regente. Ele disse que os momentos são mágicos. Segundo ele, durante a gravação de um CD da banda, uma das vocalistas disse que por um segundo teve a sensação de ter ouvido a própria voz. “Não sei se realmente escutou alguma coisa. Mas foi um momento de muita emoção”, lembrou Martins.

Origem

Intérprete

Ana disse que já teve que acompanhar os músicos em consultas médicas por faltarem pessoas capacitadas para comunicarem com os deficientes. Ela conta que já foi em ginecologistas, clínicas médicas, urologistas e pediatras porque os médicos não têm quem faça tradução de linguagem de sinais. “E há casais que são surdos, os dois usuários de

libras. Fica uma comunicação péssima. Muitas das vezes ele não vai entender uma medicação, como tem que tomar. E alguma hora todo mundo adoece”, enfatizou Ana. Uma pesquisa da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), realizada em 2013, informou que, no Distrito Federal, há pelo menos 104.826 pessoas com deficiência auditiva. Entre os casos mais comuns, estão os idosos a partir de 65 anos (22,06%) e as crianças de cinco a nove anos (17,78%). Porém, de acordo com os dados do estudo, apenas 23% dos deficientes estão inseridos no mercado de trabalho. Apesar do número alto de surdos, a Secretaria de Saúde informou em nota que não há intérpretes nas redes públicas para auxiliar as pessoas com deficiências auditivas em consultas e exames. A pasta, contudo, informou que apesar de não fornecer apoio, ela não exclui pacientes. De acordo com a secretaria, a saúde pública atende a todos que procuram por ajuda, sem distinção de classe social ou deficiência. Pela Lei 12.319 de 2010, o tradutor ou intérprete deve atuar no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim das instituições de ensino e repartições públicas. Porém, não há legislação que obrigue a presença de um tradutor em locais como hospitais, farmácias e bancos.

Preconceito triplo

Feijão disse que ficou surdo com um ano e meio de idade após uma febre superior a 40 graus. Segundo ele, isso danificou o ouvido direito e comprometeu 50% do esquerdo. Por conseguir ouvir um pouco e não ter prejudicado a voz, há quem duvide que o homem seja deficiente. Feijão disse que no primeiro teste para o Surdodum foi reprovado

*Expressão no jogo de pôquer usada quando um jogador aposta tudo em uma única mão.

Capoeirista

por desacreditarem que cumpria o principal critério para integrar a banda: ser surdo. Na segunda tentativa, já imaginando uma possível recusa, o músico levou o laudo médico para comprovar a surdez. Desde então, está no palco e próximo a uma de suas paixões: a música. Desde criança, Feijão tinha admiração por instrumentos musicais. Ele disse que se arriscou no violão, mas não teve sucesso com o aparelho de cordas. “Achei muito difícil”, contou. Hoje, o rapaz é casado e tem uma filha de oito anos. Ele é feliz por ela não ter a deficiência auditiva. “Ela é normal. Tem problema nenhum não”, comemorou Feijão. O tocador de surdo disse que há preconceito ao dizer que faz parte de um grupo musical. “As pessoas não acreditam que um surdo possa tocar”, explicou. Feijão acrescentou que diariamente sofre discriminação. Mas não por causa da deficiência. Ele é alvo de preconceito por ser negro e morador de Samambaia. Apesar de incluído em três critérios das minorias sociais (preto, pobre e deficiente), Feijão não para de sorrir, não queixa dos problemas e agradece por cada dia ser melhor que o outro.

Estudante

Daniel Pinto teve meningite com 40 dias de nascido. Ele ficou em coma por até quatro meses. A doença danificou a audição do rapaz. Hoje, ele usa um aparelho auditivo para auxiliar no dia a dia. Daniel teve que tomar medicamentos diários até os 18 anos e fez acompanhamento com fonoaudiólogo para melhorar a locução. “Desde que eu era

pequeno, minha mãe me levava para fazer fonoaudióloga, fisioterapia para saber qual é a dificuldade que eu tenho. Eu ia para a aula normal e, à tarde, eu estava com fonoaudióloga” explicou o músico. Daniel disse que, por conta disso, a rotina era uma correria. Chegava em casa cansado e ainda tinha que estudar. Aos 13 anos, Daniel começou no Surdodum. Ele disse que fazia um cursinho de apoio ao surdo quando conheceu o projeto e quis participar para mostrar que a música não é apenas para os ouvintes. O jovem afirma que o ritmo mexe com ele. O som e a vibração são contagiantes. “Essas batucadas e músicas me deixam arrepiado. É emocional”, comentou Daniel. O rapaz é casado e tem um filho de um ano e três meses. Daniel disse que a esposa também é deficiente auditiva e que eles conversam em casa no português e em Libras para que o menino absorva a linguagem desde pequeno. Ele é funcionário público e estudante de educação física em uma faculdade particular. O percursionista disse que consegue acompanhar as aulas e faz leitura labial. De acordo com Daniel, um dos momentos de dificuldade é quando o professor vira de costas aos alunos e continua a dar as aulas. O estudante tem vontade de virar professor e confessou que quer dar aulas de Libras, mas lamentou as dificuldades com a linguagem. De acordo com Daniel, há gestos que têm significados divergentes dependendo do estado. Para o rapaz, isso complica ainda mais a comunicação de deficientes auditivos. O jovem explicou que é necessária a presença de tradutores para que as queixas do surdo

Arte: Fernanda Roza

Em 1994, Ana Lúcia Soares decidiu que seria possível fazer um grupo musical com pessoas surdas. Ela era alfabetizadora de crianças e cantava em uma banda afro. Segundo a visionária, ensinou com parcerias e começou o grupo. O projeto do Surdodum, que ela concebeu e realizou, nunca foi fácil. Era preciso dedicação, empenho e que outras pessoas aceitassem a aventura. “Fui de escola em escola porque queria fazer esse atendimento a surdo e saí avisando. Aí eu consegui alguns corajosos, que resolveram querer participar da música, dessa parte de percussão”, contou. Ana acreditou que seria possível misturar música com surdez. Ela apostou as fichas de que era o certo tentar. Na mesa do jogo, pegou mais de uma carta, desafiou os adversários e as adversidades. Com coragem para poucos, deu all in*. O truco é o truque de continuar, de investir em novos talentos. Ela reclama da disparidade de tratamentos. E ainda há quem ache que a habilidade é mais um blefe. “O surdo tem que estar mostrando a capacidade que ele tem ou que acham que

ele não tem. Então é muito difícil. Eu penso que por exemplo com música. Aqui é muito antagônico porque para mexer com musica a pessoa automaticamente pensa que tem que ouvir. Então só de falar que faz música com um grupo de surdo gera curiosidade, mas também a dúvida.” Mas as cartas são conhecidas como partes de um jogo de azar. Os naipes nem sempre foram favoráveis. Com amor, a dama de copas teve que ir a luta e empunhar as espadas. Houve momento de ouros, mas também paus, pedras e quase fins de caminho. Faltam patrocínios para o Surdodum. O espaço para ensaio e os equipamentos são caros. Ainda há a dificuldade do cotidiano. A Ana de 21 anos atrás não é a mesma de hoje. “Hoje eu tenho filho. Preciso trabalhar 40 horas, ficar em casa, com a minha família, minha filha. Muitas vezes tive vontade e abandonar, mas pela vontade deles é que um vai segurando o outro”, alegou. Além das atividades à noite, o grupo também faz oficinas para dar continuidade ao trabalho em quatro regiões administrativas: Ceilândia, Planaltina, São Sebastião e Samambaia. As oficinas são gratuitas.

possam ser ouvidas. “Todo o nosso povo tem que ter um intérprete. Em hospitais, mercados, bancos. Tem muita gente com dificuldade”. Roza

aniel Marques, 37 anos, sentou-se em frente ao timbal. Com força, bateu a palma da mão no instrumento. A vibração ecoou em todo o espaço. Diante a ele, outro Daniel, também percursionista, fazia as paredes do estúdio tremerem. Daniel Pinto, 26 anos, balançava a estrutura do lugar e movimentava o corpo no mesmo ritmo que os tijolos vibravam. À direita do mais jovem, havia o rapaz que se apresentou pelo nome artístico: Feijão, 33 anos. E como o grão, dava força e vigor às batidas. O instrumento que apanhava em alto e bom som era o surdo. O curioso é que tanto os Daniéis quanto Feijão são deficientes auditivos. E o surdo tocando surdo não parava de dançar e rir. Em meio a tanta agitação, não era possível ouvir as gargalhadas dos três; a música preenchia o ambiente e eles, orientados pela vibração musical dos tambores, ensaiavam para uma apresentação do grupo ainda não marcada. Os talentos do Surdodum pegam até cinco ônibus diariamente para poderem desafiar um pré-conceito de que, por não ouvirem, não poderiam tocar. Como Beethoven, fazem sinfonias a partir da vibração. E cada nota é repercutida com o som da vitória e da perseverança. “Eles dão valor ao que a maioria dos ouvintes despreza. Eles sentem a música” tentou explicar a magia do ensaio Leonardo Moraes, 35 anos, violinista do Surdodum. Leonardo é ouvinte e ajuda a orientar as apresentações do grupo. Dentro do estúdio na Asa Norte, não há como ficar parado. Nem o português ou a Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) conseguiriam traduzir. O problema é que, ao sair dali, os artistas se deparam com outra realidade. A falta de intérpretes em redes de saúde faz com que os jovens tenham que contar com a boa vontade alheia para consultarem médicos. Pessoas rudes e sem a paciência de falarem pausadamente estão entre as principais dificuldades citadas pelos músicos. “Tem pessoas que são nervosas, não entendem. Aí eu falo ‘repete’ e já dizem ‘esquece, esquece’”, explicou Feijão.

Foto: Jade Abreu

Dificuldades

Daniel Pinto (esquerda), Feijão (centralizado) e Daniel Marques (direita) desafiam preconceitos e apostam em música apesar de deficiência www.uniceub.br/jornalesquina

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Fotos: Jade Abreu

Jade Abreu

O regente do Surdodum, Reinaldo Martins, disse que é comum o público não acreditar que o grupo é formado por deficientes auditivos. Ele disse que avisa por volta da terceira música e que, em geral, a reação é de espanto. Martins já trabalhava com música antes de integrar à equipe musical há 20 anos. Ele disse que é diferente coordenar uma equipe de surdos. “Tenho que saber onde vai ter um toque na música, avisar onde vai ter, e avisar a hora de executar” acrescentou. Martins disse que a apresentação deve ser montada com um cuidado especial. Segundo o regente, equipamentos de luz e de retorno de som devem ter a atenção redobrada para o show seja executado com perfeição. “Em questão de flash, como tem muito comando, dá atraso na mão e fica difícil para eles. Eu peço alguns detalhes de retorno, como a frequência mais grave no retorno. Eles não escutam, mas

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Conheça as histórias de vida dos integrantes do Surdodum

Grupo de Brasília trabalha a inclusão social de deficientes auditivos a partir da música

ma imagem vale mais que mil palavras. Um gesto vale mais que mil sílabas. Um sinal vale mais do que mil sons. Manuais de compostura e comportamento relevam o valor da comunicação não verbal. E para as pessoas com deficiência auditiva, as sentenças são ainda mais verdadeiras. A comunicação desenvolve-se a partir da linguagem corporal. Letras, palavras e frases são ditas pelas mãos. Os dedos não só apontam, mas indicam textos, gesticulam histórias. Os nomes recebem um sinal especial. Uma marca que sirva de referência. As características para a escolha desses sinais são feitas pela aparência. São marcas visuais que levam significados específicos para quem não ouve. Para os ouvintes, a compreensão da linguagem é como uma deficiência. Poucos são os que se comunicam pela Linguagem Brasileira de Sinais. Além da dificuldade em comunicação, ainda têm que passar pelo desafio diário da inclusão. Os ditos “normais” nem sempre entendem a dificuldade de um deficiente auditivo. Falam mais alto, como se fosse a quantidade de decibéis a responsável pela má audição. Viram as costas, como se a leitura labial deixasse de ser importante ao perceber que o surdo também consegue entender o português. E ignoram que a música possa fazer parte da vida dessas pessoas, como se a vibração dos sons não tivessem força. Sobre essa perspectiva, poucos se destacam. Um grupo formado por músicos surdos em Brasília faz shows e se apresenta em eventos na cidade. A reação dos ouvintes é de espanto. Há quem duvide que sejam surdos. Há quem ignore a necessidade do retorno acústico ao instalar equipamentos nos palcos de shows. E ainda há quem imagine que não seja possível um surdo fazer música. Por sorte, o contraditório nunca foi um empecilho para o Surdodum. Uma banda que surgiu pela vontade de incluir ao fazer música.

Setembrol • 2015

O som do surdo

Ar te: Fernanda

música

Inclusão

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Daniel Marques luta capoeira. O estilo marcial que pode ser confundido com dança pela musicalidade já demonstra o fascínio do artista pelos ritmos. Sem conseguir comunicar uma palavra em português, Marques quase samba ao fazer gestos em Libras. O corpo do jovem é música, é leveza, é harmonia. Ele explicou que foram necessários quase dois anos para aprender o instrumento. Segundo Marques, ele treinava todos os dias e quase sem descanso. “Eu tinha muita vontade de ensaiar e queria muito aprender. Queria tocar o timbal. Chegava em casa e continuava a treinar na perna. Treinava até dormindo”, lembrou. Daniel Marques já nasceu surdo. Ele nunca soube o que causou a deficiência. Sabe apenas que a mãe quando estava grávida, aos 18 anos, caiu. Acredita-se que isso tenha danificado a audição do jovem. Ele disse que foi comum duvidarem que ele podia participar do meio musical. “Diziam ‘como assim? Você é surdo’”, lembrou Marques. O rapaz, contudo, mostrou que a discriminação era infundada e disse

“ Eu não ouço.

Mas eu sinto a vibração. Sinto a música. Por isso que eu consigo sim. Porque vem a vibração no meu corpo”

Daniel acrescentou que ouvintes ficam admirados com o som que provoca. A rotina de Marques é complicada. Ele mora em Valparaíso, mas pega ônibus todos os dias de ensaio e se orgulha de nunca de faltar. O rapaz disse que o transporte em Brasília é difícil por ser demorado e as cidades longes. Ele se queixa de chegar cansado e atrasado diversas vezes no ensaio, mas, no fim, conformase com um sorriso brilhante e calejado: “Fazer como, não é? Posso fazer nada”. Os ensaios terminam por volta das 20h. Ele é pai de uma menina de cinco anos e de um garoto de um ano. Marques ainda tem a responsabilidade familiar para tomar conta. Ele ajuda a esposa com os filhos pequenos. “Fico cansado, mas sempre muito feliz. Na hora que chego em casa, fica chamando ‘papai, papai’”, explicou o rapaz em Libras.


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Inclusão

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Lúcidos

Atletas

Inclusão

Exercício do companheirismo

Retrato de quem não vê

Com os benefícios de uma melhor coordenação motora, atividades físicas ajudam portadores de Síndrome de Down a se relacionarem

Reportagem acompanhou quatro deficientes visuais que tiveram que se adaptar a uma realidade sem cor e luz Jade Abreu Fotos: Gabriela Caixeta

jade.m.abreu@gmail.com

Gabriela Caixeta

gabrielacaixeta94@hotmail.com

Julyana Sousa

julyanab10@hotmail.com

F

ortalecimento dos músculos e articulações, resistência cardiovascular, prevenção de doenças como obesidade e diabetes. Assim como para toda e qualquer pessoa, esses são alguns dos benefícios da prática regular de exercícios físicos para portadores da Síndrome de Down. A melhoria na qualidade de vida vai além dos aspectos físicos e saudáveis. As pessoas com a síndrome têm dificuldades de adaptação social e atraso no desenvolvimento mental, que pode ser de leve a moderado. Uma simples corrida ou uma partida de futebol podem auxiliar a compreensão do cotidiano para as pessoas com necessidades especiais. Os especialistas afirmam que o exercício físico traz benefícios para a saúde, desenvolve a musculatura e contribui para a interação social. Eles se sentem mais confiantes após praticarem atividades físicas. A psicóloga Tatiane Pereira explicou que prática de atividade física pode auxiliar o aperfeiçoamento de questões sociais e emocionais. Ela ressaltou que há uma melhora na percepção da autoimagem, confiança, linguagem, comunicação e expressão de sentimentos. Os exercícios também estimulam o desenvolvimento da noção da disciplina e companheirismo “O esporte proporciona vivências de habilidades ainda não aprendidas, além de desenvolver aquelas que o portador já realiza, mas com uma certa dificuldade ainda”, complementou a psicóloga Tatiane Pereira. Ao inserir o portador da Síndrome de Down na prática esportiva, há uma relação direta entre as atividades motoras e sociais. Eles têm oportunidades para vivenciar novos ambientes e situações. Segundo a profissional, através de jogos e brincadeiras entendem normas sociais e culturais. As atividades podem ser educativas e reforçam a ideia do que é ou não aceito na sociedade. De acordo com a psicóloga, em uma partida de futebol é possível que o portador de Down processe as informações a partir de regras, estratégias, questionamentos e problemas que possam aparecer ao longo do jogo.

Treino ajuda a socializar portadores da síndrome

Exercícios

A professora de educação física da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) Dione Dantas disse que treina jovens com a síndrome a realizar atividades físicas. Segundo ela, é complicado para os alunos compreenderem o exercício como um todo. A professora acrescentou que, no início, há dificuldade em cumprir a série de movimentos obrigatórios para uma atividade. “Eles possuem uma dificuldade de entendimento, são mais lentos. Você vai falar de uma atividade para eles, mas vão ter dificuldade de entender e de executar”. Ela, contudo, disse que o estímulo e a repetição das ações fazem com que eles fiquem mais ágeis. Eles também passam a ter mais cuidado com a saúde corporal, maior noção de que horas se alimentar e comer. Os benefícios são diversos para os jovens com síndrome de Down que se exercitam. O também professor de educação física Bruno Rocha explicou que há melhora na coordenação motora, na organização espacial e no controle segmentar. “A atividade física para uma pessoa com síndrome de

Prática de esporte ajuda a criar laços de amizade e companherismo entre portadores de necessidades especiais, segundo a psicóloga comportamental Tatiane Pereira

Down ocasiona em uma melhora o equilíbrio emocional, a condição corpórea, prevenindo doenças provocadas por uma vida sedentária e além de ajuda na autoestima dos portadores da síndrome de Down”, explicou o professor. O professor acrescentou que pessoas com esta deficiência possuem uma maior facilidade de ter obesidade, diabetes, colesterol e triglicérides altos, hipertensão e doenças cardíacas. Os portadores desta síndrome têm propensão espontânea a uma compulsão alimentar, o que pode levar a uma alta do peso corporal, assim como uma pré-disposição a doenças do coração.

Atletas

O portador da síndrome de Down Luhan Lucas Alves Fernandes, 21 anos, pratica atividade física cinco vezes por semana. “Eu faço esporte de corrida. Corro duzentos e duzentos e vinte metros”, contou. Luhan treina com uma equipe de atletas de alto rendimento e portadores de deficiências mentais. Entre eles, não há um sentimento competitivo exagerado. Os atletas se apoiam e torcem para que todos sejam vitoriosos. “Estou aqui para a competição, melhorar e me esforçar. Minha família gosta que eu pratique esportes. Fiz muitos amigos aqui”, acrescentou Luhan. Bruno Rangel de Oliveira, de 15 anos, também é portador da Síndrome de Down. Ele começou a se exercitar há um ano. A capoeira foi o primeiro esporte praticado por Bruno e, desde então, ele não parou. O rapaz se aventurou dentro das atividades físicas e ampliou as modalidades. “Faço corrida e é importante para mim. Gosto de vir e falar com os professores e com meus amigos”, comentou. Assim como os colegas de treino, Bruno contou já ganhou competições e sorri orgulhoso ao comentar das premiações e dos troféus que guarda em casa. “Treino com a equipe e ganho a medalha com a vontade”, diz ele. As diferenças no comportamento social do jovem ficaram evidentes para a dona de casa Cláudia Rangel de Oliveira. A mãe do Bruno disse que o rapaz mudou depois do início da prática constante de exercícios físicos. “Ele adquiriu um equilíbrio, uma vontade aliada à determinação”, afirmou. Além do desenvolvimento da vontade própria, Cláudia apontou que, para os portadores da Síndrome de Down, não existe uma competição realmente. “Um puxa o outro. Aquele que está na frente para e ajuda os que ficaram para trás. Eles não valorizam o ter e sim o ser”, complementou a mãe orgulhosa do filho campeão. Jorge Augusto, de 21 anos, assim como os outros têm síndrome de Down. O rapaz

começou a fazer atividade física há quatro anos e não parou. Os movimentos de Jorge ficaram mais fáceis e ágeis. Segundo a mãe do jovem, Maria do Carmo, os movimentos dele ficaram bem mais leves depois que o jovem começou a fazer um esporte. “Antes os movimentos dele era muito rígido, se era para colocar força só na mão, ele colocava no braço todo. Agora ele consegue concentrar a forca para a região que ele quer” contou. O apoio dos familiares e amigos é fundamental para fazer os jovens continuarem sem desistir. A base familiar estimula os jovens a frequentar os treinos e a não faltar. A mãe de Jorge contou que incentiva a participação do filho com esse tipo de esporte. “Desde quando ele começou a fazer atletismo na APae eu o encorajei a ir todos os dias, e isso trouxe resultados muito bons. Além do preparo físico dele é melhor, ele está mais sociável e consegue fazer mais amigos” lembrou Maria do Carmo.

Processo de inclusão social varia de caso para caso

Dificuldades

Essa inserção no mundo esportivo, contudo, pode ser um processo demorado e gradual, que varia de caso para caso. O professor Antônio Carlos Lima, especializado em Educação Física Especial, disse que é comum haver dificuldade, principalmente, para compreender os exercícios. Ele explicou que o professor deve se preparar para dar as aulas aos alunos especiais. “A linguagem precisa, muitas vezes, ser adaptada. No começo, não podemos falar ‘flexiona’ e sim ‘dobra’, para que eles possam entender. Aos poucos vamos introduzindo esses novos termos”, afirmou. Para o professor, as melhorias no aspecto social são perceptíveis durante os treinos para os atletas com Síndrome de Down. As relações de companheirismo e de amizade entre os alunos são reforçadas a cada aula. “A forma de pensar deles muda depois que começam a se exercitar. Começam a criar um sentimento do coletivo, além de adquirir segurança para praticar esportes e autoconfiança”, explicou Lima.

Academias não estão preparadas para pessoas com necessidades especiais A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) a instituição que a professora Dione trabalha, vive de parcerias, com ajuda do GDF (Governo do Distrito federal) e instituições privadas. Uma grande luta para a professora foi achar parcerias que os jovens portadores da síndrome pudessem de exercitar e malhar. Segundo a Dione as academias que eles conseguiram uma parceria foi por causa que ela é grande amiga dos donos da academia, pois se não eles não conseguem uma parceria “Se você não conhece ninguém, você não consegue, se eu não conheço nenhum dono de academia eu não insiro os meninos. Eu só consegui por que os donos são meus amigos pessoais” relata ela. A reportagem foi apurar se na prática as academias aceitam pessoas portadoras da síndrome. A equipe perguntou a três grandes academias se há algum tipo de discriminação, se há aumento na mensalidade e se há um profissional preparado para atender os alunos com necessidades especiais. As empresas afirmaram que não há discriminação e uma pessoa com a síndrome pode se matricular. Segundo as academias, os espaços oferecem professores de educação física e estagiários que podem ajudar o aluno no momento que está fazendo o treinamento. As empresas negaram aumento de mensalidade. O valor para o aluno com necessidades especiais e sem deve ser o mesmo. Entretanto, nenhuma das academias apresentou um profissional especializado para acompanhar e entender as questões do comportamento global do jovem.

Aline do Vale

alinerochadovalle@gmail.com

E

disse Deus: ‘haja a luz’ e houve luz”. O trecho bíblico é dito pelo pastor José Bernardo da Silva, 58 anos. O religioso é cego. Já nascido com uma visão deficiente, ele perdeu o sentido mesmo aos 15 anos. José narra o Gênesis – livro que refere à criação do mundo de acordo com o cristianismo – e fala de uma luz que não enxerga. Mas a fé apareceu como uma luz para uma vida na escuridão dos olhos. Hoje, ele acredita que a cegueira é uma benção. Vadivino Correia de Brito, 34, também é deficiente visual. Ele prefere ser chamado pelo apelido celestial, Divino. O rapaz é pai e estudante de direito e foi o primeiro lugar do vestibular de uma faculdade particular. A colocação rendeu a Divino uma bolsa de 100% para concluir a graduação. Maria da Conceição Pereira, 55, não enxerga, mas pinta e borda no artesanato. Ela faz tricô para passar o tempo e é capaz de identificar as cores de cada peça. Aline Rolim, 26, é mãe e cantora. Cuida da casa e se adapta à agenda de shows. A artista dedilha no violão notas que nem o assum preto cego dos óio de Luiz Gonzaga conseguiria reproduzir em emoção. Nenhum dos quatro nasceu no Distrito Federal, mas vieram para a região em busca de uma vida melhor. No Planalto Central, construíram famílias e fizeram histórias. Entretanto, lastimam a falta de acessibilidade e apoio do governo para os cidadãos com deficiência visual.

Pastor cego

José não esconde que se enfureceu ao ficar cego aos 15 anos. Um glaucoma foi destruindo a visão gradativamente. Com apenas 10 anos, já não enxergava com o olho esquerdo. O pernambucano disse ter se negado a sair de casa por seis meses por causa da deficiência. “Eu tinha vergonha de sair na rua pra não cair. Eu não ia sair ‘pregado’ nas paredes e naquela época eu não sabia nem o que era bengala” lembra. A deficiência atrapalhou a vida de José. “Dos 15 aos 23 anos, parei tudo. Tudo mesmo”, disse. O rapaz passou esse período sem estudar e trabalhar. Foi para o Rio de Janeiro e aprendeu a tocar violão. Apaixonouse pela música e voltou para a terra natal como violeiro. Autodidata, disse que aprendeu sanfona, flauta doce, violão, piano, gaita, pandeiro e só um pouco de cavaquinho. Em Pernambuco, converteu à religião evangélica. Em 1997, veio para Brasília para auxiliar um pastor local. Em dois anos, ele virou o líder

religioso da igreja. José disse ter trabalhado sem remuneração. Nessa época, ele recebia o benefício de prestação continuada da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). Um auxílio financeiro dado pelo governo para ajudar as pessoas com deficiência. Ele também fez um curso para aperfeiçoamento em vendas. Com o benefício e com as novas habilidades, o pastor arrumava o sustento da família. A falta de informação ainda é grande. José disse que só foi descobrir que existe uma escola especial para cegos por volta dos 50 anos, em 2008. Ele contou que estava dentro de um ônibus, quando outro deficiente visual apresentou o centro de ensino. José relatou que ficou confuso e não entendeu muito bem como se podia ler em alto-relevo. “Eu tentei ler na placa dos carros o nome das cidades e não conseguia ler. Não me explicaram que eram pontinhos”, sorriu ingenuamente. No início, José não quis frequentar a escola especial, mas disseram que estava em parceria com a Escola de Música de Brasília (EMB). A ideia de estudar harmonias e melodias interessou José, que se matriculou no mesmo dia. Ele lembrou que durante a matrícula disse à secretária que aquilo não era para ele. Contudo, hoje ele se orgulha dos feitos. Segundo José, ele é um aluno modelo da EMB. Por ter cursado até a segunda série, era alfabetizado e estava apto a fazer a transferência do português para o braile. O processo geralmente demora de seis meses a um ano. O homem, contudo, fez transferência em 16 dias. “Sou aluno recorde em Brasília e, talvez, no Brasil”. Em 2013, disse que fez o vestibular para Direito e passou, mas acredita que a faculdade tenha dificultado a adesão ao ensino superior. O pastor não acredita que tenha algum tipo de limitação por não enxergar. Pelo contrário, o deficiente visual tem facilidades, segundo José. O homem disse que põe em prática o sexto sentido. “A deficiência visual é libertadora. Porque algumas coisas eu não posso fazer, como dirigir, mas se tiver alguém do meu lado falando um pouco pra direita e pra esquerda, eu digiro”, brincou.

José acrescentou que, para ele, ser cego é um privilégio e que não entende quando as pessoas tratam o deficiente como um coitado. “Vocês leem olhando a palavra. Eu leio tocando nela. Sou privilegiado”, explicou. O pastor ainda reclamou da acessibilidade no Distrito Federal. Segundo o deficiente, há uma preocupação para deixar os bancos e o metrô acessíveis, mas o problema está em chegar até esses locais.

Estudante Divino

Divino sempre teve dificuldade em enxergar. Até os 18 anos, ele via com 80% de clareza. Ao chegar à maioridade, a capacidade de enxergar caiu para 40%. A visão foi cada vez mais se deteriorando até perceber que estava cego. Nascido no Goiás, ao vir para Brasília, procurou por uma escola especial. Ele contou que demorou a terminar os estudos porque não sabia decodificar o Sistema em Braille e a visão já estava debilitada para seguir com o estudo em uma escola regular. Divino fez o ensino médio por supletivo e foi para faculdade cursar Direito. Ele trabalha na parte da manhã, faz as atividades acadêmicas à tarde e frequenta as aulas no período noturno. “Eu tenho um comércio, e minha deficiência não me impede de administrar tudo, o fechamento de contas”, contou. O rapaz é casado e tem três filhas – de 16, 14 e um ano de idade. A esposa não é deficiente visual e ajuda o marido em alguns momentos para se locomover e auxiliar nas contas da empresa. Divino disse que não há nada melhor do que ser pai. Segundo o estudante, a deficiência nunca atrapalhou o exercício da paternidade. “Consigo ir com elas onde precisam. Elas sabem da minha limitação e apoiam tanto que, quando estou com elas, não uso bengala”, explicou. A principal dificuldade relatada por Divino é em relação aos obstáculos nas estradas. “Não é um caminho livre. Então um dia eu passo tem placa, no outro tem carro, no outro cesto de lixo”. O estudante acrescentou que o Distrito Federal não está preparado para ser acessível aos deficientes.

Esta é uma ilustração de como seria o primeiro parágrafo no Sistema de Braille

Meninos da associação preferem treinar ao ar livre

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Tricotando a sorte

Maria da Conceição já nasceu cega. Ela é a quinta filha cega de uma família de 11 irmãos. Ela nasceu no Tocantins na época em que a região ainda era parte do Goiás (GO) e ajudava a cuidar do sítio em que morava. Com sete anos ela lavava a louça, pilava o arroz, debulhava o milho e outras atividades. Aos 13 anos, a família mudou para Goiânia em busca de uma cura para a deficiência. “Descobrimos que o problema era irreversível. Ficamos então eu e uma irmã para estudar”. Nessa época, Maria aprendeu o braile e a fazer tricô. Maria mostra orgulhosa o que já tricotou. Um casaquinho bege, um puxa-saco marrom e uma bolsa branca. Ela pergunta pela cor, mas já sabe a resposta antes mesmo que seja dita. Aguarda apenas pelo consentimento. Maria sorri quando acerta. Ela escreve em braile nos rótulos das linhas de costura e se lembra de cada trabalho. A costureira disse que ultimamente não tem tricotado porque depende de outra pessoa para informar as cores, mas está sem tempo. Ela disse que tem uma fita métrica adaptada que auxilia a fazer os trabalhos. Maria é casada com um deficiente visual. Além de ser cego, o marido de Maria tem problema renal e faz hemodiálise diariamente. Há dois anos, os médicos descobriram que ele também tinha desenvolvido o mal de Alzheimer. Maria e os dois filhos do casal cuidam de Aleixo Pereira, que tem dificuldade em conversar. Maria trabalha na rede pública de saúde desde 1985. Ela dá os pontos, tira os nós e intensifica os laços familiares.

Dona de casa cantora

Aline já nasceu com a deficiência visual. Sem nunca ter visto a cor de um violão, ela tateia instrumento e dedilha notas que são acompanhadas pela voz. Aos 13, ela aprendeu violão com um primo. “Decorei todos os acordes. Os mais difíceis no início a gente tem que treinar bastante”. Nascida em Formosa-GO (entorno do Distrito Federal, por volta de 70 km de Brasília), ela veio para o DF para poder estudar em uma escola adaptada às necessidades dela. Em Brasília, aprendeu o braile, digitação e matemática com um método especial (Soroban). Na escola, conheceu o homem com quem se casou (também deficiente visual) e teve duas filhas. Pelas manhãs, Aline participa de um projeto musical oferecido por uma rede de laboratório em Brasília. Já durante a tarde, ela cuida das filhas, das tarefas domésticas e estuda música. Aline conta que teve que decorar tudo por conta própria. “Aprendi serviço de casa na marra. Minha mãe não me ensinava fazer nada com medo de eu me machucar; e quando casei tive que aprender”, contou. Aline disse que teve receio de não saber como alimentar a criança a partir de uma certa idade quando engravidou. Ela também disse que teve dificuldade no período de alfabetização da pequena. Segundo a deficiente, ela precisou de ajuda de terceiros para que pudessem orientar as tarefas da pequena estudante. Mas no fim, Aline orgulha-se de ter passado por esses momentos. “Encarei tudo e consegui”, concluiu. Os deficientes visuais têm que enxergar além dos objetos. Devem se concentrar nos outros sentidos e se adaptar a essa realidade. Faltam informações e não há o acompanhamento médico necessário. A falta de esclarecimento é só um dos motivos que leva à escuridão total da cegueira. A cada cinco segundos uma pessoa se torna cega no mundo, segundo a Fundação Dorina Nowill. Aline, Maria, Divino e José são só alguns nomes que compõem essa triste estatística.

Arte: Fernanda Roza www.uniceub.br/jornalesquina

“Brasília é uma cidade projetada pros monumentos arquitetônicos, não para mobilidade”


Setembro • 2015 @jornalesquina

32

Superação

Inclusão

O cego que não desistiu de procurar por luz Fotos: Jade Abreu

Único de 17 irmãos com deficiência visual, Cícero também é aquele que passou para faculdade

Jade Abreu

jade.m.abreu@gmail.com

N

ão é tudo escuridão. No meio do breu, há uma pequena claridade. Como uma luz no fim de um túnel que nunca termina. Uma fresta. Os movimentos são como vultos. A visão é embaçada e confusa. É impossível perceber o que acontece apenas pelo olhar. “Imagino que seja como um lugar todo claro e os olhos bem fechados. Mas veja que falo de uma realidade que desconheço”, descreveu o servidor público Cícero Rolim, 31 anos, deficiente visual. De acordo com o rapaz, é complicado se movimentar nas ruas do Distrito Federal. Para usar o transporte público, ele tem que depender da orientação de estranhos. Segundo Cícero, há casos em que as pessoas simplesmente evitam ajudar ou as paradas de ônibus estão vazias. O deficiente visual ainda reclamou de alguns medicamentos. Pai de duas filhas, ele informou que havia momentos em que elas estavam com febre. Os remédios pediátricos eram em gotas e ele precisava conseguir alguém que pudesse contá-las. Por não enxergar, ele tinha receio de errar a dosagem. Cícero é um dos 463.374 deficientes visuais do DF, segundo estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), realizado em 2013. Uma verdadeira multidão. Eles clamam para serem vistos na escuridão da rotina, que é a insensibilidade, a falta de políticas públicas, as ruas despreparadas, o preconceito. Para eles, a cegueira está com a maioria. Cícero disse que já tinha um grau da deficiência quando nasceu, mas aos 12 anos ficou totalmente cego com um acidente. “Pra mim foi irrelevante. Como eu era muito criança então eu não tive condição de assimilar o que tinha ocorrido”. Ele afirmou que em diversos momentos prefere dizer que é cego desde nascença. “Essa é a noção que eu tenho. É o que eu aprendi com o mundo”, comentou. O homem conformado com a situação é o único deficiente visual entre todos os 17 irmãos. E na família, também é o único que fez uma graduação. Ele está no último ano de Direito em uma universidade particular de Brasília. Cícero ergue a bengala para lutar pelo o que acha justo, mas desacredita nos tribunais brasileiros. “O símbolo da justiça é cego. E deveria ser”. A situação, contudo, é tão injusta, que ao cego não é reservado nem o direito de ter mau humor. De acordo com Cícero, os deficientes visuais aprendem a não rejeitar qualquer tipo de apoio, para que um gesto não seja mal interpretado e considerado rude. “Pouca gente se dispõe a ajudar. E o cego que recusa uma ajuda acaba atrapalhando a vida de todo mundo. E de fato é mais ou menos assim.”, constatou. Com esse tipo de pensamento, o estudante de Direito disse que já caiu em algumas enrascadas. Quando jovem, ele disse que um rapaz ofereceu ajuda, a qual

Cícero tem dificuldade com medicamentos pediátricos. Há casos em que os remédios são em gotas e ele e a esposa precisam de ajuda para não errar a dose

Cícero aceitou. Durante o trajeto, os dois conversaram. O rapaz tinha muitas dúvidas sobre a deficiência e questionou Cícero sobre como via as horas. “Eu, inocentemente, informei que o relógio falava. E eu moleque, todo atrevido e sem cautela nenhuma, ainda disse que o relógio falava em francês”. A cobiça saltou aos olhos. E o que era para ser uma ajuda passou a ser o primeiro contato de Cícero com o crime. O jovem perdeu o relógio francófono, mas muito mais. A partir desse episódio, ele passou a desconfiar das poucas pessoas que tentaram ajudar.

Dificuldades

Atualmente, o maior medo do estudante é a violência. Entretanto, Cícero disse que não teme por si, mas pela família. Ele é morador do Riacho Fundo II, há 28 km da rodoviária do Plano Piloto. O percurso diário é longo. Cícero contou que ao levar a filha para a creche pela manhã o ônibus em que estava foi assaltado. Após o susto, o homem confessou ter tido dificuldades a explicar a menina de nove anos o que tinha ocorrido. “Foi tão dinâmico que ela não entendeu o que estava acontecendo”. A precaução de Cícero não é à toa. Segundo o deficiente visual, uma dos melhores momentos foi quando a filha nasceu e pode pegála no colo. Ele disse que temia não conseguir dar banho ou trocar fralda adequadamente. Cícero contou que o exercício de pai foi um grande desafio. Ele afirmou que já está acostumado a andar de ônibus, subir e descer escadas como pressa, jogar futebol e andar de

Cícero, sem enxergar desde os 12 anos, reclama da falta de políticas públicas para deficientes visuais www.uniceub.br/jornalesquina

bicicleta. “Mas considerar a possibilidade de que eu pudesse ter dificuldade em exercer a paternidade colaborativa da forma que eu desejava... Foi uma grande meta”, explicou. A vida de Cícero nunca foi fácil. Ele foi alfabetizado tardiamente; começou a trabalhar por volta dos 14 anos. No serviço, atendia telefones para memorizar o recados. Com o objetivo de estar mais próximo da escola, ele chegou a morar até em lar de idosos. Mesmo sem ter conseguido se enxergar na adolescência, Cícero faz uma auto-descrição física de como era na puberdade. “Eu era raquítico, seco, magrelo e orelhudo”.

e indique o transporte. Ele disse que já foi aconselhado a pedir as informações de uma forma geral e não para uma pessoa específica. “É pior. Quando você pede para todos, é como se pedisse para nenhum. Ninguém ajuda” explica. Cícero, que perdeu um dos sentidos, tem que depender da sensibilidade alheia para conseguir o básico. Com a perseverança, a história de Cícero impressiona. . Um herói digno de história em quadrinhos e de filmes milionários para as filhas. Um guerreiro campeão para os vizinhos admirados. Um “cara” normal para ele mesmo, que só quer o mesmo espaço que as outras pessoas têm.

Acessibilidade

O rapaz reclamou da dificuldade em encontrar equipamentos acessíveis. Uma máquina de escrever em Braille está entre R$ 4 mil a R$ 11 mil. O deficiente reclamou que não há aparelhos adaptados pelo mesmo valor que um produto tradicional. De acordo com Cícero, os preços desses materiais são exorbitantes. “Hoje se eu quiser ter uma máquina para escrever em braile quando me der vontade de escrever um texto pagaria por um notebook normal”, desabafou. Cícero mora em uma quadra no Riacho Fundo II, que ficou popularmente conhecida como “vila dos cegos”. A região estava voltada para a inclusão social de deficientes visuais. Entre as promessas do projeto, estavam os pisos táteis que iriam orientar os deficientes visuais, mas não saiu do papel. Os semáforos também deveriam ter sinalizadores auditivos para informar os cegos, mas não consta equipamento do tipo na região administrativa. Os planos reuniram uma quantidade expressiva de cegos na mesma região, o que levou ao apelido da quadra 16. Porém, Cícero reclamou que o termo é pejorativo. Ele acrescentou que vizinhos sem problemas de visão invadiram alguns espaços a mais na calçada, o que dificulta o locomoção em uma área que tinha que ser voltada para cegos. A reportagem tentou entrar em contato com a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), com a Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap) e com a Secretaria de Mobilidade e com a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis), mas não teve resposta até o fechamento desta edição. Com isso, a cegueira de Cícero e dos quase meio milhão de outros deficientes visuais fazem com que atitudes simples como pegar um ônibus ou usar um remédio em gotas sejam sempre um desafio. Cícero reza antes de chegar na parada para que alguém o escute

Causas da deficiência visual

O oftalmologista Juarez Tavares dos Santos disse que algumas doenças podem desencadear a deficiência visual, como miopia, hipermetropia, glaucoma, catarata etc. Segundo o médico essas são doenças que atingem diretamente o olho. Contudo, há casos de doenças sistêmicas, que não atacam diretamente o órgão, mas podem causar a cegueira por uma reação adversa. As mais conhecidas são diabetes, lupos, hanseníase (lepra) e hipertensão. No caso da miopia, o risco é quando a doença atinge oito graus. Isso faz com que o deficiente fique mais suscetível ao descolamento da retina. De acordo com o médico, podem ser feitas prevenções com exames oftalmológicos de rotina. Santos, entretanto, ressaltou que há a possibilidade de a pessoa já ter nascido com a doença. Nesse caso, não existe prevenção e deve ser tratado com medicações e cirurgias. O médico acrescentou que há casos de bebês prematuros que perderam a visão pela falta de cuidado do hospital. Segundo o especialista, a exposição prolongada ao oxigenoterapia, usado em incubadoras, pode danificar a qualidade da visão.


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