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Foto: Marta Alves/ AEL-IFCH

Na história, o antídoto contra a barbárie A Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, cujo relatório final está prestes a ser publicado, sugere que sejam introduzidas, na grade curricular da Universidade, linhas de pesquisa e produção de conteúdo referentes à ditadura militar, entre outras recomendações. A Comissão foi criada pela Reitoria para investigar eventuais arbítrios e violações de direitos humanos praticados contra docentes, alunos e funcionários da Unicamp durante a ditadura militar.

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Jornal daUnicamp

Manifestação da comunidade acadêmica contra a intervenção na Unicamp, em 1981

www.unicamp.br/ju

Campinas, 18 a 24 de maio de 2015 - ANO XXIX - Nº 625 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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CORREIOS

FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT

Foto: Antoninho Perri

Nióbio

padrão-ouro 3

Pesquisa inédita desenvolvida pelo químico João Henrique Lopes (foto) constatou que o óxido do nióbio, metal largamente usado na indústria, potencializa as características do biovidro destinado ao tratamento de lesões ósseas. Em ensaios in vivo e in vitro, o autor do trabalho obteve um material biocompatível e bioativo, favorecendo a regeneração do tecido ósseo. O trabalho foi orientado pelo professor Celso Aparecido Bertran, do Instituto de Química da Unicamp.

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Etiqueta inteligente armazena informações Pesquisa identifica enzimas em rejeitos de mina de cobre

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A ‘força mental’ e a psicologia esportiva Drama e poesia nos madrigais de Gesualdo

A redução da pobreza sob o crivo da ciência Por que as batatas chips são viciantes O altruísmo dos ratos salva-vidas

TELESCÓPIO

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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015

TELESCÓPIO

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

Foto: Technische Universität Müchen/Divulgação

Redução científica da pobreza

o conteúdo de caloria de cada fonte era aproximadamente o mesmo. Essa mistura afetou ainda a atividade de regiões do cérebro ligadas à recompensa e ao vício. “Como nas batatinhas chips, uma mistura isocalórica de gordura/carboidrato influenciou todo o padrão de atividade cerebral dos ratos”, escrevem os autores.

Como medir a eficácia de uma ação de redução da pobreza? A revista Science traz artigo que descreve o resultado de um experimento de intervenção em algumas das comunidades mais miseráveis do mundo, modelado nos estudos sobre saúde, em que grupos “de intervenção” são comparados a grupos “de controle”, e os resultados recebem análise estatística. No caso, algumas das famílias mais pobres de seis países – Etiópia, Gana, Honduras, Índia, Paquistão e Peru – foImpressão digital ram incluídas num programa chamado no microbioma “Graduation” (“Formatura”), criado por uma ONG de Bangladesh. O programa Toda pessoa convive com um midurou dois anos, com mais um ano extra crobioma, o conjunto de micro-orgaem que as famílias foram acompanhanismos que coloniza o corpo humano das, após o fim do apoio externo, para que sobrevive, por exemplo, na pele, na testar a sustentabilidade e durabilidade boca e no aparelho digestivo. Há temdos benefícios. pos que cientistas especulam que esse No “Graduation”, cada família recemicrobioma pode ser altamente persobe a doação de um ativo para geração de nalizado e estável, com variações genérenda – um pequeno rebanho, por exemticas entre os micróbios vinculadas a plo, ou estoque suficiente para abrir uma Interior e três das camadas de blindagem da câmara isolada de campo magnético da Universidade Técnica de Munique indivíduos específicos. Essa ideia abre pequena loja – assim como apoio financaminho para o uso da caracterização ceiro (para que não se sinta tentada a do microbioma como ferramenta de identificação, ao lado da vender o ativo), treinamento para usar o ativo, acompanha“Diferentemente de outros peixes [o Lampris] distribui impressão digital e do DNA humano. mento sanitário e ajuda para abrir uma conta bancária. sangue quente por todo o corpo, incluindo o coração, aumentando a performance fisiológica e protegendo os órgãos No periódico PNAS, pesquisadores nos Estados Unidos Mesmo um ano após o fim do apoio externo, escrevem os internos, enquanto busca comida nas águas geladas e ricas descrevem um teste dessa hipótese, usando algoritmos para autores, as famílias incluídas no “Graduation” “tinham sigem nutrientes”, diz o artigo. O peixe consegue isso graças a criar códigos de identificação a partir de dados do genoma nificativamente mais bens e dinheiro, passavam mais tempo uma “retia mirabilia”, ou “rede maravilhosa” de vasos sancoletivo da microbiota de indivíduos. Esses códigos foram trabalhando, passavam menos dias com fome, sentiam meguíneos que usa o sangue venoso, aquecido pelo esforço capazes de distinguir entre centenas de pessoas imediatanos estresse e tinham melhor saúde” que os controles. O promuscular, para aquecer o sangue arterial, frio, que é oxigemente após a coleta das amostras. Amostras coletadas de grama também revelou um ótimo custo-benefício: na Índia, nado nas guelras. 30 a 300 dias após a retirada inicial mostraram-se estáveis por exemplo, cada dólar investido reverteu-se em US$ 4,33 em benefícios de longo prazo. e capazes de reproduzir os códigos de identidade iniciais em 30% dos casos, com poucos falsos positivos. Os autores “Os resultados da implementação de um mesmo progradestacam que o microbioma digestivo foi o mais estável de ma básico, adaptado a uma variedade de contextos geográfitodos, reproduzindo o código original em 80% dos casos, cos e institucionais, e com múltiplos parceiros, mostra immesmo um ano após a coleta inicial. pactos de custo-benefício estatisticamente significativos no consumo (alimentado principalmente pelo aumento na renda Elevação do nível do trabalho próprio) e no status psicossocial das famílias”, escrevem os autores. “É possível fazer melhorias sustentáveis do mar acelera no status econômico dos pobres com uma intervenção de reA taxa de elevação do nível do mar na verdade aumentou lativo curto prazo”. ao longo da última década, diz artigo publicado no periódico Matemática Nature Climate Change. Essa descoberta contradiz resultados anteriores, baseados em observações de satélite, que sugedas formigas riam uma elevação mais lenta dos oceanos. O novo trabalho leva em conta medições de GPS e dados de uma rede de moQuando partem em busca de alimento, formigas esconitores da elevação das marés. De acordo com os autores, as lhem rotas que se encaixam em distribuições estatísticas O cofre correções se mostram compatíveis com a contribuição para o de probabilidade, diz artigo publicado no periódico Mathenível dos mares trazida pelo derretimento das massas de gelo matical Biosciences, de autoria de pesquisadores espanhóis e antimagnético da Groenlândia e de parte da Antártida. americanos que trabalharam com formigas-argentinas (Linepithema humile). Pesquisadores ligados à Universidade Técnica de Munique (TUM) anunciam, no periódico Journal of Applied Physics, “Elas seguem uma mistura das distribuições gaussiana a criação do menor campo magnético do Sistema Solar – um e de Pareto, duas funções probabilísticas comumente usaespaço de pouco mais de 4 metros cúbicos onde a intensidade das em estatística e que, neste caso, determinam quanto a dos campos magnéticos é de um milionésimo da encontrada formiga gira a cada passo, e a direção em que se moverá”, no ambiente externo. disse uma das autoras do trabalho, María Vela Pérez, citada Carbono na atmosfera em nota distribuída pela Fundação Espanhola de Ciência e Como sabe qualquer criança que já tenha feito a “mágica” bate recorde Tecnologia (FECYT). de guiar uma moeda sobre uma mesa passando um ímã por baixo do tampo, campos magnéticos penetram matéria sólida A pesquisadora, ligada à Universidade Europeia de MaEm março, pela primeira vez na história, a concentração com facilidade. A criação de um ambiente isolado de infludri, acredita que a descoberta possa vir a ser usada na criação média de dióxido de carbono na atmosfera terrestre se manências magnéticas é um processo complexo, mas necessário de “enxames” de pequenos robôs para tarefas como limpeza teve acima das 400 partes por milhão (ppm) durante todo para a realização de experimentos que possam ser comprode áreas contaminadas. um mês, informou, no início de maio, a Administração Nametidos por “ruído” magnético, ou que dependam de uma cional de Oceano e Atmosfera (NOAA) dos Estados Unidos. medição extremamente precisa de campos magnéticos. A marca de 400 ppm já havia sido rompida antes, mas em Experimentos assim são importantes na busca da chamamenor escala – na primavera de 2012, no Ártico, e em 2013, da física “além do Modelo Padrão” – isto é, que possa expanao longo de um dia, no Havaí. Mas esta é a primeira vez que dir e corrigir a compreensão atual que os cientistas têm das a taxa se mantém tão elevada em todo o mundo e por tanto forças e partículas fundamentais do Universo. tempo, desde que os registros tiveram início. O impacto da Ratos nova marca é mais simbólico que prático, dizem cientistas, frente à mudança climática já em curso. salva-vidas

Água fria, coração quente Diferentemente de mamíferos e pássaros, que têm sistemas dedicados a manter a temperatura do corpo estável, peixes em geral são considerados animais de sangue frio, com corpos que acompanham a temperatura do ambiente onde se encontram. Cientistas já sabiam que algumas espécies, como o atum, são capazes de aquecer momentaneamente seus músculos, mas uma edição recente da revista Science descreve um peixe de águas profundas, o Lampris guttatus, que é capaz de transferir o calor gerado pela batida das nadadeiras peitorais para o coração e o cérebro, mantendo esses órgãos aquecidos.

A fórmula da ‘junk food’ A proporção entre gordura e carboidrato pode explicar por que as batatinhas chips são tão viciantes, diz estudo publicado no periódico de livre acesso Scientific Reports, do grupo Nature. Os autores alimentaram ratos com diferentes complexos, misturando à ração normal materiais com níveis variados de gordura e carboidrato. A versão mais consumida – e em excesso, para além da saciedade – não foi a mais gorda ou a mais calórica, mas a que manteve uma razão gordura/carboidrato muito próxima à das batatinhas chips, onde

Ratos agem para salvar outros ratos que correm risco de morrer afogados, mostra uma série de experimentos descrita no periódico Animal Cognition. Pesquisadores da Universidade Kwansei Gakuin, do Japão, colocaram pares de ratos em situações onde um deles precisava nadar para escapar de uma piscina, enquanto o outro poderia, ao abrir a porta de uma gaiola, permitir que o rato em apuros chegasse a uma superfície seca. Os cientistas descobriram que os ratos em posição de socorrer um colega descobriam rapidamente como abrir a gaiola, e corriam para fazê-lo. Além disso, determinou-se que os animais que tinham escapado da água, numa rodada anterior do experimento, eram ainda mais velozes em agir para salvar o animal em perigo. Num terceiro teste, o rato “salva-vidas” tinha a opção de abrir uma porta para salvar o colega ou abrir outra e comer um chocolate. Na maioria das vezes, a opção prioritária foi pelo resgate do outro animal.

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador-Geral Alvaro Penteado Crósta Pró-reitora de Desenvolvimento Universitário Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários João Frederico da Costa Azevedo Meyer Pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore Pró-reitora de Pós-Graduação Raquel Meneguello Pró-reitor de Graduação Luís Alberto Magna Chefe de Gabinete Paulo Cesar Montagner

Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Site http://www.unicamp.br/ju e-mail leitorju@reitoria.unicamp.br. Twitter http://twitter.com/jornaldaunicamp Assessor Chefe Clayton Levy Editor Álvaro Kassab Chefia de reportagem Raquel do Carmo Santos Reportagem Carlos Orsi, Carmo Gallo Netto, Isabel Gardenal, Luiz Sugimoto, Manuel Alves Filho, Patrícia Lauretti e Silvio Anunciação Fotos Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti Editor de Arte Luis Paulo Silva Editoração André da Silva Vieira Vida Acadêmica Hélio Costa Júnior Atendimento à imprensa Ronei Thezolin, Gabriela Villen, Valerio Freire Paiva e Eliane Fonseca Serviços técnicos Dulcinéa Bordignon e Fábio Reis Impressão Triunfal Gráfica e Editora: (018) 3322-5775 Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (019) 3383-2918. Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju


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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015 MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

Brasil possui 98% das reservas mundiais de nióbio, metal usado principalmente na composição de ligas metálicas com altas propriedades mecânicas destinadas à produção de automóveis, oleodutos e turbinas de avião, entre outros. Por outro lado, o nióbio na forma de óxido é um semicondutor com inúmeras aplicações em dispositivos óticos e em catálise heterogênea, como fase ativa. Todas estas destinações são nobres, mas poderiam ser ainda mais refinadas. É o que comprovou pesquisa inédita desenvolvida para a tese de doutorado do químico João Henrique Lopes, defendida no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, sob a orientação do professor Celso Aparecido Bertran. Ao adicionar pequenas quantidades de óxido de nióbio (Nb2O5) a um biovidro comercial, usado no tratamento de lesões ósseas, o pesquisador obteve um material com características superiores às do produto original, considerado “padrão-ouro” na área. “Os ensaios in vivo e in vitro demonstraram que a presença do óxido de nióbio potencializou as propriedades osteoestimuladora do biovidro. Assim, além de biocompatível, ele passou a ser também bioativo, favorecendo a regeneração do tecido ósseo”, revela o autor do trabalho. De acordo com João Henrique, embora seja fartamente conhecido pela ciência e pela indústria metalúrgica, o nióbio tem sido pouco investigado em relação às suas características como biomaterial. A ideia de acrescentar o Nb2O5 ao biovidro, segundo ele, nasceu da constatação de que o nióbio possui semelhanças químicas com um dos componentes do produto comercial, o fósforo. “Havia, portanto, uma pista química de que seria possível fazer uma composição”, relata. O professor Bertran explica, porém, que o desafio não estava simplesmente em promover uma “mistura” de materiais. Antes, era preciso planejar o processo, para obter um novo material dentro das propriedades desejadas. “Esse é um diferencial importante do nosso laboratório. Nós estudamos detidamente questões como a mudança de composição e de estrutura dos biomateriais antes de iniciarmos os testes propriamente ditos. Para isso, nós precisamos da contribuição de outras áreas do conhecimento além da química, como a biologia, a genética e a medicina. No projeto desenvolvido pelo João Henrique, por exemplo, contamos com a colaboração do professor José Angelo Camilli, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, e da professora Eliana Duek, da PUC de Sorocaba”, relata. O planejamento, conforme o docente, foi feito em etapas. Primeiro, os pesquisadores estudaram que elementos do biovidro, cujo nome comercial é 45S5, poderiam ser substituídos pelo óxido de nióbio. Depois, analisaram qual a melhor quantidade do Nb2O5 a ser adicionada à composição – entre 1% e 5%, no caso. Em seguida, observaram quais os efeitos causados na estrutura e propriedades físico-químicas do biovidro. O passo seguinte foi analisar, in vitro, qual o grau de toxicidade e a viabilidade celular do novo biomaterial. O objetivo, nessa fase, foi identificar se o óxido de nióbio estimularia ou comprometeria o crescimento celular. Por último, os cientistas fizeram ensaios in vivo, enxertando o biovidro “enriquecido” com Nb2O5 no fêmur lesionado de ratos. O que a equipe constatou foi que a presença do óxido de nióbio não apenas não trouxe prejuízo à biocompatitividade do 45S5, como conferiu ao produto uma propriedade adicional, a bioatividade. “Nas imagens que fizemos foi possível notar claramente uma maior indução da formação óssea na região subperiostal do implante. Em outras palavras, a presença do nióbio alterou as características do biovidro, conferindo a ele uma maior capacidade de estabelecer uma relação direta com tecido, estimulando a sua regeneração”, reforça João Henrique. Essa abordagem, de acordo com o professor Bertran, ainda não havia sido descrita pela literatura. Graças à originalidade do estudo, os pesquisadores obtiveram o registro do pedido da patente do novo biomaterial que, esperam, possa ser utilizado futuramente pela medicina em terapias que envolvam a recuperação de tecidos ósseos lesionados por enfermidades ou acidentes. “Antes disso, entretanto, ainda precisaremos fazer novas pesquisas. Um dos nossos desafios é entender como esse novo biomaterial age no nível genético. Nós sabemos que o óxido de nióbio estimula a regeneração do tecido, mas ainda não temos ideia de como esse processo ocorre”, esclarece o docente. Ao ampliarem o conhecimento sobre o mecanismo de ação do Nb2O5 em associação com o biovidro, os pesquisadores têm a expectativa de promover intervenções que possam potencializar as suas propriedades positivas ou corrigir os eventuais efeitos deletérios. “Depois disso, será preciso fazer

Uma nova aplicação

para o nióbio

Pesquisa constata que óxido do metal potencializa as características do biovidro usado no tratamento de lesões ósseas Fotos: Antoninho Perri

Amostra de nióbio é retirada de forno: segundo os pesquisadores, metal tem sido pouco investigado em relação às suas características como biomaterial

de um novo tecido no local. Isso reduziria muito o tempo de recuperação do paciente, diminuindo consequentemente o impacto sobre os custos do sistema de saúde pública”, detalha o autor da tese.

OUTRAS ABORDAGENS

João Henrique Lopes, autor da pesquisa: “Os ensaios ‘in vivo’ e ‘in vitro’ demonstraram que a presença do óxido de nióbio potencializou as propriedades osteoestimuladora do biovidro. Assim, além de biocompatível, ele passou a ser também bioativo, favorecendo a regeneração do tecido ósseo”

novos ensaios in vivo, para somente então partirmos para os testes clínicos, sempre de acordo com os protocolos estabelecidos pela bioética. Temos ainda um longo caminho a percorrer, mas estamos otimistas quanto à possibilidade do novo biomaterial vir a ser transformado em um produto comercial no futuro, de modo a agregar valor ao nióbio, uma matéria-prima quase que exclusivamente brasileira, e trazer benefícios para a sociedade”, infere o professor Bertran. Em relação à aplicação do biovidro com óxido de nióbio por parte da medicina ou da odontologia, João Henrique destaca que o biomaterial é bastante versátil. Ele pode ser utilizado, por hipótese, na forma de grânulos para preencher falhas ósseas. Dependendo da dimensão desses grânulos, diz o autor da tese, ocorre a reabsorção completa do material por parte do organismo. Dito de forma simplificada, ele simplesmente desaparece

O professor Celso Aparecido Bertran, orientador da tese: “Um dos nossos desafios é entender como esse novo biomaterial age no nível genético. Nós sabemos que o nióbio estimula a regeneração do tecido, mas ainda não temos ideia de como esse processo ocorre”

depois de alguns meses. “O material também permite a fixação de implantes. Quando não é totalmente reabsorvido, ele ajuda a suportar a prótese”, diz. No caso do uso do material por parte da medicina regenerativa, os ganhos poderão ser significativos, acrescenta o autor da tese. “Quando ocorre perda óssea, provocada por um acidente ou enfermidade, é sempre complicado fazer a substituição do tecido lesionado. Muitas vezes, o procedimento requer a retirada de osso do próprio corpo da pessoa ou da doação de tecido por terceiros. Uma possibilidade que antevemos é o emprego do biomaterial pela área de engenharia de tecidos. Nesse caso, a ideia é construir estruturas porosas, que chamamos de andaimes, que seriam colonizadas pelas células ósseas do próprio paciente. Posteriormente, os andaimes seriam implantados na região onde ocorreu a perda óssea, induzindo a formação

A equipe coordenada pelo professor Bertran não é grande [são quatro alunos de mestrado, dois de doutorado, um pós-doc e uma pesquisadora sênior], mas é dada a encarar importantes desafios. Um estudo que está sendo iniciado pelos pesquisadores tem o objetivo de utilizar biovidros para promover a liberação controlada de fármacos no local da lesão óssea. Além disso, o laboratório tem um projeto de pesquisa em colaboração com a Petrobras que mantém, por mais incrível que pareça, relação com o processo de mineralização dos tecidos ósseos. “Soa estranho, mas é verdade. Nossas investigações em torno dos biomateriais podem ajudar a Petrobras a extrair petróleo”, assegura o docente. Ele explica melhor esse tipo de relação. De acordo com o professor Bertran, os ossos têm células denominadas osteoblastos, que são responsáveis pela síntese dos componentes orgânicos da matriz óssea. Os osteoblastos secretam uma proteína que sofre um processo de mineralização, formando a estrutura mineralizada dos ossos, que por sua vez dá sustentação ao osso. Algo parecido acontece no interior dos dutos utilizados para a extração do petróleo. Alguns minerais presentes na água salgada depositada junto com o óleo vão encrustando nas paredes da tubulação, entupindo-a. Nesse caso, o mecanismo de nucleação e crescimento dos minerais segue as mesmas leis do tecido ósseo. “Como nós entendemos desse assunto, a Petrobras nos procurou para que oferecêssemos uma solução para o problema. Estamos trabalhando no desenvolvimento de um método que possa impedir esse crescimento. A ideia é investigarmos inibidores de nucleação e crescimento de minerais que possam ser aplicados nos dutos e que atendam a três requisitos: impeçam o crescimento dos cristais, não interfiram na qualidade do petróleo e possam ser usados em pequenas quantidades, para não impactar o custo de produção”, adianta o professor Bertran.

Publicação Tese: “Biovidros derivados do 45S5: os efeitos do Nb2O5 ou modificação de superfície com Ca2+ sobre a estrutura e bioatividade” Autor: João Henrique Lopes Orientador: Celso Aparecido Bertran Unidade: Instituto de Química (IQ)


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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015

Uma metodologia para o setor sucroenergético Fotos: Antoninho Perri

Estudo promove avaliação termoeconômica da cogeração de energia no segmento CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

ese desenvolvida pelo engenheiro mecânico Aristides Bobroff-Maluf, junto à Área de Térmica e Fluidos, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp (FEM), orientada pelo professor Caio Glauco Sanchez, apresenta metodologia para avaliação termoeconômica da geração conjunta da energia térmica e elétrica no setor sucroenergético (açúcar, etanol e energia elétrica), visando obter informações de cunho energético e econômico para a otimização dos processos. Sobre o título da tese, “Avaliação termoeconômica da cogeração no setor sucroenergético com o emprego de bagaço, palha, biogás de vinhaça concentrada e geração na entressafra”, o autor explica: a avaliação termoeconômica corresponde a uma metodologia realizada com base na produção de energias elétrica e térmica (geração de vapor), sob o ponto de vista técnico e econômico; a cogeração corresponde à produção simultânea de energia elétrica e térmica a partir dos combustíveis passíveis de serem utilizados (bagaço, palha e vinhaça). Ele propõe, ainda, que, na entressafra, período em que não há produção de cana de açúcar e o sistema permanece ocioso, a produção de energia seja realizada através da queima de biocombustível complementar como, por exemplo, eucalipto. O bagaço é subproduto da indústria e resulta da moagem da cana da qual é extraído o caldo para a produção de açúcar e etanol. Ele é utilizado atualmente como combustível para a produção de vapor que aciona as caldeiras e as turbinas responsáveis pela geração de energia elétrica. A palha, constituída das folhas da cana, também pode ser utilizada como combustível, embora cerca de 50% dela fique no campo. Da vinhaça, subproduto da produção de etanol, pode ainda ser obtido e utilizado o biogás combustível metano, através de biodigestores. O pesquisador trabalhou durante 21 anos em empresas do setor sucroenergético: Dedini e Copersucar, em Piracicaba, e AKZ Turbinas, em Ribeirão Preto. Em 1983/1984, através de uma bolsa da Fundação Krupp (Alemanha) estagiou por um período de um ano e quatro meses na AEG Kanis Turbinenfabric, fabricante de turbinas a vapor, em Nuremberg, sul do país. Atualmente é docente na Escola de Engenharia de Piracicaba, mantida pela Fundação Municipal de Ensino de Piracicaba (EEP/FUMEP), onde leciona vibrações mecânicas e engenharia de controle.

CONTEXTO Desde a década de 1980, o bagaço queimado em caldeiras gera toda a energia necessária aos processos industriais das usinas canavieiras, permitindo-lhes a autossuficiência energética. A privatização do setor elétrico, a partir do final da década de 1990, possibilitou ao setor sucroenergético a comercialização de excedentes de energia elétrica (bioeletricidade), o que demandou investimento em equipamentos e tecnologias de maior eficiência na geração elétrica. Das aproximadamente 400 usinas do setor no país que têm cogeração, um pouco mais de 25% delas geram excedentes comercializáveis, segundo dados da União da Indústria da Cana de Açúcar (Única). Embora exista uma tendência no aumento dessa

Usina na região de Campinas: pesquisador sugere que, na entressafra, a produção de energia seja realizada por meio da queima de biocombustível complementar

O professor Caio Glauco Sanchez, orientador da pesquisa: novas informações para a otimização dos processos

venda de energia, pois a energia disponível comercializada é um grande incentivo para o setor, essa possibilidade está atrelada a investimentos em equipamentos mais eficientes, como caldeiras que trabalhem com alta pressão e temperatura, processos que exijam menor consumo de vapor, turbinas a vapor com maiores potenciais e eficiências, entre outros. Hoje a energia gerada pelas usinas utiliza essencialmente a queima do bagaço como combustível. A palha era queimada no campo, como forma de facilitar o corte manual da cana. As primeiras regulamentações a partir da década de 1990 estabeleceram as colheitas sem queima. Em 2007, a Única e o Governo do Estado de São Paulo assinaram protocolo que promoveu a antecipação do marco legal que determina metas para a mecanização da colheita e redução das queimadas. O prazo para a extinção da queima da palha de cana-de-açúcar em áreas mecanizáveis foi antecipado de 2021 para 2014 e em áreas não mecanizáveis, com declividade acima de 12%, de 2031 para 2017. A palha resultante da colheita sem queima, deixada no campo, se decompõe gradualmente, agregando nutrientes ao solo. Esse procedimento evita emissões dos gases causadores do efeito estufa, contribui para a conservação da umidade do solo e favorece a reciclagem da matéria orgânica. A recuperação de parte dessa palha, de forma a deixar no campo quantidades ainda suficientes para a obtenção dos benefícios agronômicos, oferece a oportunidade ímpar de se agregar um novo combustível, além do bagaço, para a geração de bioeletricida-

de. A palha tem um poder calorifico quase duas vezes superior ao bagaço, embora seu recolhimento, limpeza e preparo acarretem custos operacionais e necessidade de investimentos significativos.

O ESTUDO As usinas e destilarias produzem a energia elétrica que consomem em motores elétricos de acionamento das bombas, exaustores, etc., e nas empresas modernas, que apresentam alto rendimento, há um excedente dessa energia, que é vendida, exportada, para a rede elétrica. Ao se propor desenvolver uma metodologia para a avaliação termoeconômica de uma unidade termoelétrica do setor sucroenergético, o autor realizou balanços de massa, energia das plantas industriais, usando o simulador Cycle-Tempo. O balanço de massa permite contabilizar a quantidade de água transformada em vapor. Através do balanço de energia chega-se à energia proveniente do combustível efetivamente utilizada nos processos. Por sua vez, o balanço de exergia permite dimensionar a energia que é efetivamente transformada em trabalho útil. Portanto, a análise energética quantifica a energia disponível e a análise exergética possibilita ainda qualificar a energia. Através dos conceitos da exergia se consegue localizar os pontos de baixo rendimento nos processos para posteriormente otimizá-los. Por sua vez através do emprego do software Cycle-Tempo realizam-se simulações que permitem balanços de massa, de energia e de exergia de forma a

que possa ser determinado o processo mais adequado. Já para estudar a viabilidade econômica da planta industrial o autor adotou a metodologia do fluxo de caixa. Além de tudo, Aristides realizou o estudo da sensibilidade dos sistemas, que mostra a variação do custo específico da bioenergia produzida levando em conta incertezas. Ele explica: “Quando se calcula o custo específico da eletricidade (R$/kWh) leva-se em conta o custo dos equipamentos, do combustível, dos impostos pagos, da operação e manutenção dos equipamentos, entre outros. Esses custos envolvem incertezas, pois o combustível pode variar de preço, a exemplo de outros implementos e dos impostos, de modo que deve ser fixada uma estimativa da variação porcentual desses itens e elas se refletem na incerteza do valor final”. O trabalho simulou também cenários para a queima da palha de cana. A palha contém compostos de potássio, sódio e cloro. Se utilizada diretamente nas caldeiras ocorrerão depósitos de substâncias desses elementos nos tubos, dificultando a troca de calor. Em vista desse problema o autor delineou dois cenários. O primeiro sugere a queima em temperaturas mais baixas, de forma a diminuir os depósitos nos tubos. O segundo propõe a trituração, lixiviação e lavagem, ou seja, a retirada dos elementos indesejáveis e secagem da palha antes de sua queima. Com esse tratamento a palha se torna semelhante ao bagaço, minimizando os efeitos nocivos da sua queima. Frise-se que a diminuição das queimadas tem contribuído para o aumento da quantidade de palha disponível nos canaviais. Razoes técnicas e econômicas avaliadas no trabalho levaram à adoção deste ultimo cenário. Ao justificar a lixiviação e secagem da palha Aristides utilizou dados, de 2008, de um pesquisador das Ilhas Mauricio, pois no Brasil essas informações ainda não foram levantadas. O pesquisador adotou como foco dos estudos de caso três situações distintas: apenas a queima do bagaço, a queima do bagaço com a palha e a queima do bagaço com a palha e o biogás. A partir das simulações e da metodologia empregada ele concluiu pelo uso simultâneo do bagaço, com 50% em massa de palha produzida e de todo o biogás proveniente da vinhaça, mistura que se mostrou técnica e economicamente mais vantajosa no período da safra. Já na entressafra o custo compensa a produção de energia elétrica através da queima de eucalipto, pois as caldeiras que queimam bagaço, palha e biogás não precisam ser modificadas. A indicação se justifica porque o poder calorífico do eucalipto está próximo ao do bagaço e em algumas regiões do país seu plantio é vizinho às lavouras de cana. Aristides conclui, portanto, que, durante a safra, todo o bagaço, 50% da palha resultante da colheita e todo o biogás produzido pela biodigestão anaeróbica da vinhaça, que dá origem ao gás metano, devem ser utilizados e que o melhor tratamento para a palha é a trituração, lixiviação e secagem. Com vistas à produção de energia elétrica na entressafra a queima do eucalipto revelou-se a mais adequada. A energia elétrica produzida nesse período seria destinada à exportação. Apesar de as usinas de açúcar e destilarias de etanol serem autossuficientes na produção de energia elétrica, elas utilizam atualmente apenas o bagaço e poucas se valem do uso da palha e do biogás. A palha geralmente é deixada na lavoura e o biogás perde-se quando a vinhaça é espalhada por ela.

Publicação Tese: “Avaliação termoeconômica da cogeração no setor sucroenergético com o emprego de bagaço, palha, biogás de vinhaça concentrada e geração na entressafra” Autor: Aristides Bobroff-Maluf Orientador: Caio Glauco Sanchez Unidade: Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM)


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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015

Uma etiqueta Fotos: Antonio Scarpinetti

inteligente Circuito eletrônico armazena informações que podem ser lidas à distância LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

ma etiqueta para identificação de objetos por radiofrequência (RFID) aplicável em metais – utilizando uma abordagem original inclusive mundialmente – é o resultado da pesquisa de mestrado do engenheiro Manoel Vitório Barbin, orientada pelo professor Michel Daoud Yacoub, na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC). A tecnologia de RFID (Radio Frequency Identification) consiste no uso de etiquetas contendo um circuito eletrônico para armazenar informações que podem ser lidas à distância por um sistema associado. Já difundida em aplicações médicas, científicas e industriais, esta tecnologia se assemelha à do código de barras empregada em produtos do comércio, cuja diferença é a leitura óptica do número identificador, e não por radiofrequência. A originalidade do estudo de Manoel Barbin está no desenvolvimento de uma etiqueta para RFID operando em frequências elevadas (UHF, de Ultra High Frequency) que pode ser aplicada em objetos metálicos de médias e grandes dimensões, como placas, tubos e containers – e a uma distância de leitura superior a oito metros. “Uma etiqueta convencional operando em UHF pode ter seu desempenho alterado dependendo dos materiais que compõem o objeto ou estão ao redor. Metais degradam significativamente o desempenho, reduzindo a distância de identificação. Isto decorre da interação eletromagnética entre a antena da etiqueta e o metal, alterando características como de diagrama de radiação, largura de banda e eficiência da antena, impedindo a identificação do objeto etiquetado”, explica o engenheiro.

Segundo o professor Michel Yacoub, orientador da pesquisa, todo material pode modificar o padrão de radiação, mas não tanto como o metal, capaz de fazer com que o sistema passe a funcionar em outra frequência. “É como sintonizar uma emissora de rádio e receber o sinal de outra. Por exemplo: se o projetado é de 900 MHz (megahertz), o metal muda o padrão para 800 MHz e o sistema simplesmente não detecta o objeto que se deseja. Daí, o aspecto inovador desta pesquisa, que é de mestrado, mas que valeria como tese de doutorado se o aluno reunisse os créditos necessários.” O docente da FEEC acrescenta que o sistema de RFID é bastante utilizado em armazéns para controle de entrada e saída de mercadorias, assim como em hospitais, onde deve ser rigoroso o cuidado com medicamentos, instrumentos e outros materiais. “Recentemente recebemos a visita do Corpo de Bombeiros, que gostaria de implantar a etiqueta em capacetes, botas e uniformes, itens de alto custo e passíveis de extravio. Numa indústria de computadores, peças valiosas de hardware são armazenadas em local seguro e é preciso controlar se um componente saiu dali e chegou à linha de produção”, exemplifica.

PROCESSO DE FABRICAÇÃO

De acordo com Manoel Barbin, as etiquetas de RFID possuem um ou mais componentes eletrônicos e podem ser ativas (se alimentadas por bateria) ou passivas (a exemplo desta que se desenvolveu). Todas, no entanto, pos-

O dispositivo desenvolvido na FEEC: operando em frequências elevadas

suem uma antena para transmitir ao equipamento leitor ou dele receber os sinais de radiofrequência. “As etiquetas passivas são bem simples, constituídas apenas por um pequeno circuito integrado e uma antena. Geralmente, a antena é desenvolvida através da deposição de metal (cobre ou alumínio) sobre um filme plástico. Produzidas em larga escala, as etiquetas convencionais apresentam baixo custo final, mas o investimento para a fabricação é elevado, por exigir máquinas de grande precisão para implantar o circuito integrado sobre a antena, além de reciclagem e eliminação adequada dos resíduos.” O autor da dissertação afirma que a etiqueta que desenvolveu, ao contrário, tem baixo custo de produção porque as máquinas necessárias são bem menos sofisticadas e disponíveis no mercado nacional. “A etiqueta em si é feita como em processo de tornearia, com o corte, dobra e solda da chapa. A parte mais sofisticada, que não se faz em estamparia, é a colocação do chip. Se as etiquetas convencionais são realmente baratas, elas não funcionam em metal, enquanto esta funciona, a um custo bem razoável, que hoje não deve ultrapassar os 4 reais – e que poderia cair bastante na fabricação em escala.” O protótipo construído e testado por Manoel Barbin traz um novo método de alimentação do sinal de radiofrequência para

O professor Michel Yacoub, orientador: sistema de RFID é muito utilizado em armazéns para controle de entrada e saída de mercadorias

conexão entre o circuito integrado e a antena – principal dificuldade da PIFA (sigla para Antena Planar de F-Invertido), utilizada no experimento. “Neste caso, a alimentação se dá através de uma fenda no elemento radiante da antena. Os resultados da simulação indicaram que este método não somente viabiliza a montagem do circuito integrado, como pode ser utilizado para realizar o casamento de impedâncias entre o circuito e a antena. É um formato que também facilita bastante a construção e montagem da etiqueta em um processo produtivo, diminuindo custos.” De acordo com o engenheiro, para que etiquetas passivas de RFID em UHF operem nas faixas regulamentadas pelos diferentes organismos no mundo, devem possuir uma banda com largura em torno de 100 MHz e centrada em 910 MHz. “Este é um requisito importante para atender a um mercado o mais amplo possível. Diversos esforços têm sido realizados para desenvolver etiquetas passivas de menor custo e que possam ser utilizadas em variados objetos e bandas em UHF. No nosso caso, simulações eletromagnéticas da antena e posterior análise de desempenho da etiqueta mostraram que foram atendidos os requisitos de largura de banda (860 MHz a 960 MHz) e distância máxima de leitura, maior que oito metros.” O engenheiro Manoel Vitório Barbin, autor do estudo: protótipo tem um novo método de alimentação do sinal de radiofrequência

Publicação Dissertação: “Etiqueta de RFID em UHF para objetos metálicos” Autor: Manoel Vitório Barbin Orientador: Michel Daoud Yacoub Unidade: Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC)

A RFID na habilitação da Internet das Coisas Manoel Vitório Barbin tem idade acima da média dos pós-graduandos e traz uma experiência profissional acumulada em diversas empresas como especialista em eletromagnetismo, com foco nos últimos anos em sistemas de RFID (identificação de objetos por radiofrequência). “O que me motivou para esta pesquisa foi a engenharia pela engenharia, a vontade de desenvolver ideias que possam ser aplicadas. Detectado o problema, eu quis resolver a questão da dificuldade do uso de RFID em UHF para metais. O interesse não foi comercial, mas gostaria muito que o protótipo vingasse no mercado, pois seria a melhor coisa para a engenharia – é o que esperamos sempre.” Na dissertação intitulada “Etiqueta de RFID em UHF para objetos metálicos”, Barbin conta que este conceito de comunicação utilizando técnicas de retroespalha-

mento (backsacttering) remonta à origem da tecnologia de radares. Um exemplo de aplicação da técnica está no sistema IFF (sigla para Identify Friend-or-Foe), desenvolvido na Inglaterra e que permitia a identificação das aeronaves amigas pelos aliados: refletores passivos eram colocados nos aviões para torná-los mais brilhantes que os dos inimigos na tela do radar. “Os avanços na tecnologia de circuitos integrados de silício para RFID tornaram as etiquetas confiáveis e baratas, tanto que na primeira década do século 21 vimos a sua adoção generalizada e em grande escala, movimento que tem sido contínuo e traz perspectivas de comercialização crescente em todo o mundo. Atualmente, a RFID é apontada como uma das principais tecnologias habilitadoras da internet do futuro: a Internet das Coisas (IoT)”, diz o autor da pesquisa.

Internet of Things (IoT), segundo Barbin, é um conceito nascido na área de RFID e que vem empolgando pesquisadores na perspectiva de uma web que não terá somente pessoas interagindo com pessoas, mas “coisas com coisas”. “Na Internet das Coisas podemos imaginar, por exemplo, sensores que monitoram sua atividade e a temperatura de uma sala, e também acessam a internet colhendo informações climáticas em tempo real. A partir desses dados climáticos, o sistema pode atuar no ambiente para fique mais agradável e reduzir o consumo de energia, sem qualquer interação humana.” Manoel Barbin é líder do grupo de infraestrutura e arquitetura do Fórum Brasileiro de IoT (www.iotbrasil.com.br), espaço criado em 2011 por pessoas motivadas para Internet das Coisas, vindas dos segmentos empresarial, editorial, acadêmico, pesquisa e desenvolvimento, governo e organizações não governa-

mentais. É um fórum que visa à discussão permanente desta que é considerada “a nova onda” da internet e suas tecnologias habilitadoras. Dele participam outros grupos, como de saúde, segurança, educação, protocolos e padrões, aplicações e serviços, e automotivo. Para o autor da dissertação, os entusiastas da área vivem ainda uma fase de empolgação, antevendo a ampliação da Internet das Coisas para aplicações infinitas e um mercado de bilhões de dólares. “Mas depois todos ‘vão cair na real’, trabalhando sobre o que é realmente possível. Meu grupo discute diversas tecnologias aplicáveis em IoT, sendo a RFID uma das mais promissoras, pois as etiquetas para identificação de objetos são baratas e, diferentemente do código de barras, ainda têm processamento e memória, fornecendo certa inteligência.”


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Campinas, 18 a 24

Para que a história não

Relatório da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” sugere criaç LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, criada pela Reitoria da Unicamp para investigar eventuais arbítrios e violações de direitos humanos praticados contra docentes, alunos e funcionários da Universidade durante a ditadura militar, entregou o seu relatório final em solenidade no dia 1º de abril, trazendo uma advertência logo na introdução: “As faixas e cartazes erguidos nas recentes manifestações de rua em várias partes do país, por meio dos quais se reivindica intervenção militar, parecem evidenciar que ainda é precária a memória social sobre esse importante momento da história política brasileira”. A professora Maria Lygia Quartim de Moraes, presidente da CVM, ressaltou na ocasião que “além de ser fundamental levantar os fatos, também era de nosso interesse – e daí a ‘Memória’ – a transmissão desses fatos às novas gerações”. Neste sentido, dentre as primeiras das oito recomendações contidas no relatório, estão a introdução na estrutura curricular “de conteúdos que contemplem a história política do país” e que incentivem o respeito “aos direitos humanos e à diversidade cultural”; e o incentivo à criação de linhas de pesquisa e produção de conteúdo referentes à ditadura militar. Nesta entrevista concedida por e-mail, a professora Maria Lygia avalia a participação de jovens nas manifestações de rua, sem enxergar indicações de que sejam realmente eles os desejosos da volta dos militares ao poder. E diz confiar no “dom da empatia” dos jovens para que, melhor informados sobre os acontecimentos do período, possam se colocar no lugar daqueles que sofreram com a ditadura. Jornal da Unicamp – Qual a sua opinião sobre a presença de parcela da juventude nas manifestações em que se ouve pedir a intervenção dos militares? Maria Lygia Quartim de Moraes – As imagens e comentários sobre tais manifestações não me parecem indicar se são os jovens que querem a ditadura de volta. Por mais ignorante que um jovem seja, ele tem uma ideia de que a ditadura é o reino do proibir. Na verdade, o que vejo são ex-policiais, militares aposentados, a extrema direita dentro das Forças Armadas, enfim, todos aqueles que dominariam o poder na hipótese horrível de uma nova ditadura. Acho que os jovens estavam em massa nas

manifestações de junho [de 2013] a favor de benefícios para a coletividade ou contra os gastos exorbitantes da Copa. Após a vitória da Dilma, o que vejo são os representantes das elites paulistas e da classe média que gostaria de ser rica e acha que o problema são as políticas sociais. De fato, não há como discordar do ex-presidente uruguaio José Mujica quando ele diz que a desgraça da América do Sul é a elite paulista! A outra face do problema diz respeito às escolhas iniciais de Kátia Abreu e Joaquim Levy [para os Ministérios da Agricultura e da Fazenda], somada às execráveis figuras que dominam a Câmara Federal e o Senado, em maioria constituída pela bancada BBB (boi, bíblia e bala). Eu hoje sairei às ruas para defender as conquistas populares e o respeito às nossas instituições democráticas, que são insuficientes, mas melhores do que uma ditadura. E apesar de ter horror ao mercado financeiro e nunca ter comprado ações, comprei ações da Petrobrás em protesto pela tentativa de destruírem e sucatearem nossa maior empresa em benefício dos grupos petroleiros internacionais. JU – O professor Alvaro Crósta, coordenador-geral da Unicamp, em sua fala na solenidade, atentou para uma possível falha das instituições de ensino na formação dos alunos. Concorda? Maria Lygia Quartim de Moraes – Concordo porque foram os militares quem comandaram a chamada transição lenta e gradual, e o medo do terrorismo de Estado ficou de tal maneira incrustrado em nossa sociedade que se preferiu omitir a verdade a desagradar o alto comando do Exército. E esta é uma das consequências da impunidade dos torturadores e do silêncio até muito recentemente sobre a história da ditadura militar. Muitos jovens não têm a menor ideia do terror que foi viver sob uma ditadura militar! A censura a qualquer tipo de informação crítica é uma peça fundamental do processo de silenciamento da oposição, além do emprego direto da violência física. E foram essas crescentes restrições que levaram tantos jovens de minha geração a pegarem em armas para resistir à ditadura. Na verdade, muitos da juventude de hoje – essa que tem a idade que minha geração tinha por ocasião do golpe – revela-se muito interessada nesse passado. Uma prova disso nós tivemos no processo de seleção de estagiários para trabalharem na Comissão. Achei que em um dia entrevistaria os 10 ou 15 que apareceram e, para nosso completo espanto, a inscrição chegou a 130. Então, começamos reunindo todos num anfiteatro e explicando o porquê da Comissão e das

Foto: Marta Alves/AEL-IFCH

Alunos, docentes e funcionários protestam contra a intervenção na Unicamp, realizada em 1981 no Ciclo Básico da Universidade Fotos: Antoninho Perri

A professora Maria Lygia Quartim de Moraes, presidente da CVM: “Muitos jovens não têm a menor ideia do terror que foi viver sob uma ditadura militar!”

pesquisas que iriamos fazer, especialmente no AEL [Arquivo Edgard Leuenroth], onde estão guardados arquivos fundamentais. Foi bom ver como muitos estavam interessados pelo tema e se propuseram a ajudar mesmo que sem bolsa. Aí já começava o processo de transmissão e de compromisso dos alunos, de maneira que o golpe seja chamado de golpe e não de “revolução”; que o

Estado assuma que foi terrorista nos anos da ditadura; e do significado e consequências de uma ditadura que realizou o que chamamos de modernização conservadora. JU – O relatório recomenda a introdução de conteúdos sobre a história política do país na estrutura curricular dos cursos da universidade. Pode dar exemplos de como isso seria possível? Maria Lygia Quartim de Moraes – Trata-se, na verdade, de transmitir às novas gerações o que aconteceu nas duas décadas de ditadura militar e terrorismo de Estado. A juventude, via de regra, ainda guarda o dom da empatia. A melhor maneira de despertar a empatia é conseguir que o ouvinte coloque-se no lugar daquele que dá seu testemunho. Eu começaria com os documentários e filmes da época. O documentário “15 filhos” (projetado pela primeira vez num evento que coordenei no IFCH sobre “A revolução possível: uma homenagem aos mortos e desaparecidos políticos”) é um bom começo. A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) tem um site de sua Comissão da Verdade com excelentes depoimentos. Finalmente, em vários países do mundo a transmissão do drama dos campos de concentração utilizou o depoimento de pessoas que tinham vivido tal experiência. No Brasil, muita gente pode testemunhar. O que quero dizer é que há uma infinidade de recursos e que não se trata exclusivamente de transmitir a história política do Brasil, mas principalmente de valorizar uma educação não fascista, acompanhando Foucault na sua proposta de uma vida não fascista. Isto

‘Testemunhos de atingidos transformam quem escuta’ “A realização de audiências públicas e os depoimentos colhidos de ex-estudantes e docentes da Unicamp foram fundamentais aos trabalhos da nossa Comissão. Primeiro, por abrir um espaço no qual os testemunhos das pessoas atingidas pudessem ser acolhidos pela comunidade acadêmica. Segundo, porque esse trabalho de acolhimento transforma também quem escuta, através do contato com as experiências que estão sendo transmitidas”, afirma Danielle Tega, que organizou todo o material colhido e redigiu o Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”. A presença de Danielle na Comissão da CVM foi uma exigência da presidente Maria Lygia Quartim de Morais, que a orientou na tese de doutorado. A pesquisadora teve sua dissertação de mestrado pela Unesp (2009) publicada pela Editora Cultura Acadêmica, com o título “Mulheres em foco: construções cinematográficas brasileiras da participação política feminina”. Para a tese de doutorado defendida em março – “Tramas da memória: um estudo de

testemunhos femininos sobre as ditaduras militares no Brasil e na Argentina” –, a autora realizou extenso levantamento de testemunhos de mulheres que militaram, foram sequestradas, tornaram-se presas políticas ou tiveram suas vidas atravessadas pelos horrores dos terrorismos de Estado do Brasil e da Argentina. A doutora em sociologia recorda que no início dos debates para a constituição da CVM da Unicamp, decidiu-se como imperativo que deveria ser uma Comissão da Verdade e “Memória”. “Nosso interesse não era apenas pesquisar documentos que poderiam trazer algo novo, mas, principalmente, realizar um trabalho de transmissão, repudiando a violência e o arbítrio instaurados com o do golpe de 1964. Também acredito que eventos e seminários sobre o tema, como o que realizamos na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), proporcionam um relevante efeito pedagógico – alunos da pós-graduação participaram da sua organização e, no público, estavam estudantes do Colégio Técnico de Limeira (Cotil), da própria FCA e de escolas estaduais de Limeira.”

Danielle Tega, que redigiu o Relatório Final da CVM: “É possível destacar as experiências de homens e mulheres que lutaram contra esse regime terrorista”

Na opinião de Danielle Tega, o Relatório Final da CVM contém recomendações de medidas cabíveis no âmbito da Universidade, como a introdução de conteúdos sobre o período da ditadura militar na estrutura curricular. “É possível, por exemplo, destacar as experiências de homens e mulheres que lutaram contra esse regime terrorista, a participação empresarial nas engrenagens econômicas e repressivas, além de temas que incentivem o respeito aos direitos humanos e às diversidades culturais e sexuais. A criação de linhas de pesquisa e a produção de conteúdos sobre essas questões também são práticas de uma política universitária comprometida com os trabalhos de transmissão dessa memória.” A Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, presidida por Maria Lygia Quartim de Moraes, tem como membros titulares os professores Wilson Cano (IE), Ângela Maria Carneiro (IFCH), Caio Navarro de Toledo (IFCH) e o advogado Eduardo Garcia de Lima. O professor Yaro Burian Júnior (FEEC) participou da CVM desde a criação até outubro de 2014.


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4 de maio de 2015

o se repita como farsa

ção de linhas de pesquisa e produção de conteúdo sobre a ditadura militar

A Unicamp não foi uma ‘ilha’ em meio à ditadura, mas ‘quase’

é, que a tolerância, o respeito ao próximo, a abertura para o conhecimento e o altruísmo são valores que devem ser cultivados e transmitidos das mais diversas maneiras. JU – Qual o balanço que faz do trabalho da CVM? Maria Lygia Quartim de Moraes – Como se sabe, a atual Reitoria tem o mérito histórico de ter sido a primeira a propor uma Comissão da Verdade, em comparação com as dificuldades impostas aos meus colegas das duas outras universidades públicas paulistas. Em conversa com o professor Alvaro Crósta, quando do convite que recebi para presidir a comissão a ser criada, fiz duas exigências, por assim dizer: que Danielle Tega [sua doutoranda] participasse da comissão e que pudéssemos contratar alunos como estagiários, no propósito de reunir um grupo que se interessasse pelo tema e tivesse a capacidade de transmitir a seus colegas e próximos suas descobertas. Na verdade, fiz outra sugestão: que a comissão a ser formada levasse o nome do professor Octávio Ianni, de quem fui aluna e colega, vítima dos vários tipos de arbitrariedades cometidas pela ditadura contra os intelectuais de esquerda (cassado da USP, preso, etc.), que dedicou os seus últimos anos de vida à docência e orientação no IFCH, tendo recebido o título de Professor Emérito da Unicamp. Há que se levar em conta que as atividades da Comissão foram intensas, abrangendo tanto a organização dos depoimentos (pois havia que definir os nomes a serem pesquisados, entrar em contato com aqueles e aquelas que se propunham a depor, organizar as pautas, compatibilizar horários com as disponibilidades para gravação), como as atividades de organização de eventos e, finalmente, as atividades de trocas com outras comissões reunidas hoje num coletivo de comissões universitárias. Danielle Tega trabalhou como voluntária (e gastou muito do tempo em que poderia dedicar-se exclusivamente à escrita de sua tese) coordenando e dirigindo o dia a dia dos estagiários. Ela deve ter o maior arquivo de e-mail desse período! Além do mais, centralizou a comunicação com os responsáveis pelas gravações e foi da maior eficiência no contato com outros membros da Comissão. Razão pela qual, como sou uma pessoa que preza a verdade, o mínimo que eu poderia e posso fazer é agradecê-la por sua dedicação.

Wilson Cano “A Comissão da Verdade e Memória foi boa para a Universidade por colocar tudo no papel. A Unicamp não foi nem poderia ter sido uma ilha (como corretamente disse o professor Caio Toledo), pois vivíamos uma ditadura que estava presente de forma direta ou indireta em todo o território brasileiro. Mas foi “quase uma ilha”, sim, porque tinha um homem chamado Zeferino Vaz à sua frente. Nos depoimentos colhidos pela CVM, não vamos encontrar casos internos de punições, reprimendas e ameaças. Mas houve demissões na Medicina Preventiva e de Rodolfo Caniato (a pedido do diretor da Faculdade de Educação, e não de Zeferino); o caso da intervenção por Paulo Maluf (fruto da ditadura); e o caso de Rogério Cerqueira Leite, que teve sua indicação para reitor rejeitada por imposição militar. Zeferino Vaz era um homem controvertido, de primeira hora do movimento de 31 de março, mas apostou na universidade que queria e trouxe economistas como eu, autodeclarados de esquerda, e também muitos cientistas perseguidos pela ditadura. Ele acreditava, realmente, que a ciência está acima de tudo (da política e da razão) e que tinha uma obra a fazer. Cada um de nós economistas deixou seu emprego para vir montar a área de humanidades, cujo piloto era a economia. Não poderíamos entrar em nenhuma outra universidade pública; na USP, jamais. Jamais teríamos montado um Instituto de Filosofia e Ciências Humanas ou um Instituto de Economia como aqui, com enorme grau de liberdade e acessibilidade crítica, expostas em nossas aulas, declarações e artigos. A Unicamp foi uma anomalia em relação ao resto da academia, mas não foi uma ilha porque aqui dentro também tinha gente da ditadura. As aulas de EPB (estudos de problemas brasileiros) eram dadas por oficiais aposentados do SNI ou gente da mesma qualidade e parceria; o chefe de Gabinete, [Arnaldo] Camargo, era delegado do DOPS e despachar com ele era bem desagradável – eram moedas de troca de Zeferino. O relatório da CVM talvez sirva de lição para quem se diz apolítico ou não prestou atenção nos horrores da ditadura – e de que aquilo

O professor Wilson Cano, integrante da CVM: “Vivemos a sociedade da irrelevância, da individualidade, do consumismo e o saber crítico foi por água abaixo”

aconteceu aqui. Principalmente agora, que assistimos panelaços e manifestações de rua pedindo – incrível! – o impeachment (que é golpe) e os militares de volta. O relatório é útil para as pessoas lerem e refletirem sobre o que se passou e o que podemos vir a passar de novo. Tínhamos um país altamente politizado entre o final dos 50 e início dos 60. Isso porque foi o primeiro momento da nossa história em que a maior parte da população era urbana. Era a década da industrialização, quando passou a se destacar um segmento de classe social importante, dos trabalhadores industriais – uma classe operária que tinha sua militância política. A intelectualidade também era outra, uma intelectualidade crítica, que não tinha medo, pois havia um grau de liberdade inacreditável no Brasil. Por isso, não havia medo de exercer a crítica e pleitear reformas absolutamente imprescindíveis para o país – tributária, financeira, urbana, agrária. Uma série de reformas que os militares fariam depois de 64, mas à maneira deles, o que resultou em problemas como o agravamento da distribuição de renda, rebaixamento do salário mínimo, nessa coisarada que sabemos. A ditadura fez muito mal para o país como um todo, mas em São Paulo, por ser uma cidade grande com universidades públicas grandes, a coisa pesou

na academia – e principalmente, embora não exclusivamente, na USP. Não diria que houve uma lavagem cerebral, mas uma condução política diferente, de que se vivia uma situação de normalidade. Como os militares conseguiram isso? Cortando cabeças, sobretudo no Instituto de Física e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde estavam Florestan Fernandes e tantos outros que foram afastados, demitidos, aposentados. Passa o tempo e se tem a reabertura. Ocorre que em todos esses anos de formação tivemos outro fenômeno, que foi o desleixo da ditadura para com a saúde e a educação. Na educação, ela facilitou a privatização do ensino, desde o ensino básico e principalmente o superior, naturalmente com outra conotação política e que tem formado gente com baixa qualidade técnica. A formação ficou tão ruim e alienada da realidade que se tornou muito mais difícil ter um ensino crítico, não apenas em economia, mas em praticamente todas as áreas. Ao mesmo tempo, temos a questão do produtivismo na universidade, com a obrigação de escrever e publicar vários artigos por ano e se ganhar pontos para o curso. Toda a academia foi direcionada para esta produção massiva de textos, sendo raros aqueles que possuem valor crítico ou relevância média. Da mesma forma, não se faz uma análise crítica do conteúdo das aulas, que podem ser banais, sem que haja cobranças. A universidade está nesse impasse bastante perigoso. Vivemos a sociedade da irrelevância, da individualidade, do consumismo e o saber crítico foi por água abaixo, sem termos como torná-lo presente porque a sociedade já não conhece seu passado. Os alunos de hoje não conhecem os episódios da ditadura. Nesse sentido, acho importante que seja discutida a sugestão do relatório para que os cursos da Universidade promovam a discussão ou interlocução de matérias sobre o período da ditadura militar. Temos hoje uma vasta literatura, que pode ser acessada inclusive eletronicamente, a exemplo deste relatório da Comissão da Verdade e Memória, que ficará online. É um avanço, mas os alunos precisam ser conduzidos a isso, pois não o farão de moto próprio.”

Sobre as manifestações em defesa da intervenção militar Caio Navarro de Toledo “Passados 30 anos do fim do regime militar e após a divulgação dos resultados das investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram chocantes algumas faixas exibidas nas ruas de 2015 que poderiam ser sintetizadas pelas palavras de ordem: Abaixo a democracia, ditadura militar já! Como explicá-las? Certamente, não obteremos respostas convincentes se indagarmos aos “órfãos da ditadura” quais as razões do pedido da volta dos militares. Por que a preferência pela ditadura em detrimento da democracia? Seria por que esta teria fracassado? Por ventura, no regime militar, a corrupção – inerente e congênita à ordem capitalista – teria sido extinta, a inflação inexistido, uma equilibrada distribuição de rendas teria ocorrido, a liberdade de expressão foi ampla e irrestrita, uma política externa soberana foi adotada pelos militares, enfim, a paz social reinou sobre todos os brasileiros? Ou as palavras de Garrastazu Médici sintetizariam os “saudosos 21 anos de regime militar”: “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto o noticiário. Porque, no noticiário da Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”? Como carecem de argumentos consistentes os depoimentos daqueles que, a rigor, “não sabem do que falam”, cabe então ao estudioso levantar hipóteses para explicar o motivo das insólitas faixas de “intervenção militar já” nas ruas de algumas cidades do país. Inicialmente, esclareça-se que esta demanda de grupúsculos de direita não tem ressonância junto a setores expressivos da chamada sociedade civil brasileira, nem chegam a sensibilizar o conjunto dos militares na ativa. Embora continuem afirmando que a “Revolução de 31 de março” permitiu amplas realizações econômicas e tecnológicas – o Brasil não se tornou o 8º PIB do mun-

recente do país, algumas do? –, parece que os altos questões são impositivas: escalões militares não se disserá o Relatório amplamenpõem a protagonizar mais te divulgado e debatido nas uma aventura golpista. escolas, sindicatos, quartéis, Embora a saída golpista entidades religiosas e cultunão tenha consistência polírais, sociedades de bairros tica e não seja a bandeira de etc.? Serão produzidos filagentes políticos relevantes, mes e vídeos – divulgados isso não significa que devade forma massiva – documos acreditar que a demomentando as violações dos cracia política esteja consodireitos humanos durante lidada no país. Certamente, a ditadura? Serão construínão está. Se estivesse, tais dos museus históricos e cenbandeiras golpistas seriam tros de documentação nos rechaçadas pelas lideranças grandes centros urbanos que têm convocado manisobre o período da ditadura festações contra o governo a fim de permitir à maioDilma Rousseff. Na medida O professor Caio Navarro de Toledo: ria da população brasileira em que, de bom grado, acei“Esta demanda de grupúsculos de direita um melhor conhecimento tam estes golpistas como não tem ressonância junto a setores expressivos de nossa história política aliados, é de se concluir que da chamada sociedade civil brasileira” recente? estas lideranças de direita No plano da comunidanão têm grande apreço pela democracia. de acadêmica da Unicamp, impõem-se também iniÉ de se reconhecer também que ainda é precário, ciativas de natureza pedagógica e simbólica. Orienno interior da sociedade brasileira, o conhecimento tada pelo Relatório Final da Comissão Nacional da sobre o golpe de 1964 e dos perversos efeitos da ditaVerdade, a CVM “Octávio Ianni” fez “Recomendadura militar. A este respeito, dois dados estatísticos ções”, e destaco duas de caráter simbólico: são esclarecedores: mais de 80% dos brasileiros nasa) é proposto que o Conselho Universitário ceram após 1964, enquanto 40% nasceram após o (Consu) coloque novamente em discussão as moções fim da ditadura militar. Nas escolas de ensino médio, de quatro unidades da Universidade que pedem a o pré-1964 e o regime militar são raramente exarevogação do título de Doutor Honoris Causa conminados e debatidos. Apenas recentemente, o debate cedido ao coronel Jarbas Gonçalves Passarinho. A sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar passaram expectativa dos setores democráticos da instituição a ter alguma relevância para a TV, rádio e mídia é a de que essa homenagem – tal como recomenda impressa. Mas, como surgiram, logo desapareceram o Relatório Final da CNV – seja anulada, pois nedos noticiários. nhum mérito científico ou cultural, em 1973 ou hoje, ostenta o militar; pelo contrário, teve ele papel BATALHA PELA MEMÓRIA decisivo no obscurantismo cultural imposto pelo reReconhecendo a enorme contribuição do Relatógime militar na medida em que – logo após o AI – rio Final da CVM para elucidar a história política contribuiu para a expulsão de docentes, pesquisado-

res, funcionários e estudantes das universidades brasileiras; b) outra recomendação de nossa Comissão da Verdade pede que se esclareça ao público – que tem acesso ao Painel da Praça das Bandeiras do campus – que o “Senhor Presidente da República” (marechal Humberto Castelo Branco), ali mencionado, era o chefe da ditadura militar existente no país e um dos principais responsáveis pelo golpe de Estado de 1964. Para satisfação dos setores democráticos, é importante informar que 218 docentes da Unicamp (na ativa e aposentados), em abril de 2015, solicitaram à Adunicamp que construa, próxima a este Painel, uma escultura – na forma de desagravo – que homenageie os membros da comunidade acadêmica que sofreram violências físicas e morais durante a ditadura militar. Por último, diria que a democracia política no Brasil – embora hoje não esteja potencialmente ameaçada – apenas se consolidará com a realização de profundas reformas sociais e econômicas. Enquanto essas transformações não significarem mudanças concretas e visíveis para a maioria da população brasileira, a democracia não deixará de ter características e dimensões formalistas. O formalismo da democracia política – uma ordenação institucional que não permite mudanças reais e substantivas no cotidiano dos trabalhadores e setores populares – poderá sempre implicar a indiferença ou apatia deles em relação à escolha do regime político. Como a história na ordem capitalista registra, “soluções” autoritárias e ditatoriais – que terão efeitos nefastos, notadamente para as grandes maiorias –, assim, sempre estarão à espreita no interior da cena política. Não desejamos que certas faixas erguidas no pré-1964 e algumas levantadas nas ruas em 2015 façam qualquer sentido para a grande maioria da população brasileira.”


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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015

Conceito de ‘vigor mental’ é destaque em questionário de psicologia esportiva Pesquisadora da FEF traduz para o português documento inglês destinado a avaliar desempenho

Foto: Divulgação

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le tinha um pensamento estratégico e sabia respeitar o corpo como poucos atletas. Embora não houvesse relação direta com sua prática esportiva, fazia meditação, orava regularmente, corria e praticava técnicas de respiração. Dormia, em média, oito horas por noite. Arriscou sua própria vida, na Bélgica, em 1992, quando abandonou o seu treinamento altamente competitivo para salvar o seu adversário, enquanto o próprio companheiro de equipe do atleta em perigo já o havia deixado. Não foi o que ganhou mais títulos em seu esporte, mas é o mais lembrando quando, frequentemente, se questiona “qual o melhor?” “O Ayrton Senna é o exemplo mais claro, no Brasil, de atleta completo, detentor de um importante componente psicológico denominado ‘mental toughness’. O Senna possuía claramente estas características marcantes, entre as quais a capacidade de enfrentar adversidades e fracassos, forte senso ético e espírito de equipe. Ele se exigia dar resultados cada vez mais altos, com muita dedicação e foco, e não a qualquer preço. Talvez a característica mais marcante fosse sua resiliência, essa elasticidade psicológica em lidar com pressões e obstáculos, sem ‘se perder’”, exemplifica a psicóloga esportiva Sheila Molchansky. Ela acaba de defender dissertação de mestrado junto à Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp em que faz a tradução e adaptação cultural para a língua portuguesa do Brasil do questionário inglês “Sport Mental Toughness Questionnaire”. O documento foi proposto em 2009 pelos estudiosos Michael Sheard, da York St John University (Reino Unido), e Jim Golby e Anna Van Wersch, da University of Teesside (dos campi do Reino Unido e Middlesbrough, respectivamente). O estudo foi orientado pelo professor Edison Duarte, que atua no Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. “Ainda não existe uma definição exclusiva sobre o termo ‘mental toughness’. No nosso estudo propusemos uma tradução adaptada do termo para vigor mental. Pela revisão bibliográfica identificamos 13 atributos psicológicos embutidos neste conceito, presentes no documento inglês. Realizamos um pré-teste e análise final do instrumento e concluímos que o mesmo poderá ser utilizado no meio esportivo, demostrando ser adequado à realidade brasileira”, afirma Sheila Molchansky. Os 13 atributos mencionados pela psicóloga, presentes no documento original em inglês, são: atitude assertiva; atitude positiva; competitividade; comprometimento; confiança em si mesmo e no outro (inclui confiar nas próprias habilidades); controle da atenção; controle de emoções; desejo de vencer (obter sucesso); entendimento de desafios como oportunidades de crescimento; espírito de grupo; inteligência emocional; e resiliência. Para a psicóloga, compreender como alguns atletas prosperam e parecem render melhor do

Para a pesquisadora que traduziu o documento, “Ayrton Senna é o exemplo mais claro, no Brasil, de atleta completo, detentor de um importante componente psicológico denominado ‘mental toughness’”

que outros diante de situações adversas, ou porque alguns desistem diante de falhas enquanto outros não, faz parte do campo da avaliação psicológica na área esportiva. “O objetivo foi compreender como tais componentes psicológicos podem gerar diferenças de rendimento, sobretudo no esporte de alta performance. Isso é fundamental para propor protocolos de atuação tática e técnica adequados aos treinamentos. Embora tenhamos muitos psicólogos atuando no meio esportivo, há, por outro lado, escassez de instrumentos padronizados para avaliar como componentes psicológicos influem e são influenciados pelo desempenho esportivo de atletas.” Sheila Molchansky atua, profissionalmente na área, orientando atletas e comissões técnicas, dentre as quais, Rugby em Cadeira de Rodas e Esgrima em Cadeira de Rodas, modalidades integrantes do projeto de extensão da FEF. Um dos atletas que se pode destacar, de acordo com ela, é Lenilson Tavares de Oliveira, da Seleção Brasileira de Esgrima em Cadeira Rodas, com quem tem desenvolvido fundamentos do vigor mental. “A expectativa da pesquisa é que o Questionário de Vigor Mental possa contribuir com protocolos e processos de avaliação na psicologia do esporte. Além disso, favorecer o autoconhecimento de atletas e o incremento da área em nosso país. A sugestão, para trabalhos futuros, é que pes-

quisas sejam realizadas para a validação do instrumento e que, desta forma, ele possa ser certificado pelo Conselho Federal de Psicologia, e a partir disso, integre a lista de instrumentos padronizados validados em nosso país.”

CONFIANÇA, CONSTÂNCIA

E CONTROLE

A pesquisadora da Unicamp explica que o Questionário de Vigor Mental é composto de quatorze perguntas fechadas dirigidas a atletas. As questões, formuladas em escala de quatro pontos (escala Likert) em que os esportistas especificam seu nível de concordância com uma afirmação, avaliam três diferentes fatores psicológicos: confiança, constância e controle. A primeira, de acordo com ela, refere-se à confiança do atleta em suas habilidades, de modo a acreditar que são diferenciados e crucialmente melhores do que seus oponentes. Há a presença de sentimentos de autorregulação, tais como acreditar em si mesmo, se mantendo positivo, especialmente diante de desafios e pressões. A constância pode ser entendida, conforme Sheila Molchansky, como a determinação dos atletas em atender as demandas ou exigências dos treinamentos e competições. “Há neste fator alto senso de responsabilidade. E o último é aquele em que os atletas são capazes de manter as emoFoto: Antoninho Perri

ções e frustrações em níveis mais estáveis, percebendo que precisam aceitar diversas circunstâncias, ainda que negativas. Neste caso, eles transformam estas circunstâncias em combustível para avançarem”, completa.

FUNÇÕES COGNITIVAS Conforme a estudiosa da Unicamp, os autores do Sports Mental Toughness Questionnaire enfatizam a importância das funções cognitivas no controle psicológico. Michael Sheard, Jim Golby e Anna Van Wersch ressaltam a relevância do treino mental, visualizações e a busca por um estado de relaxamento mental como fatores determinantes de um desempenho de excelência. Sheila Molchansky acrescenta ainda que estudos nesta área sugerem que a mente possa ser condicionada para um desempenho esportivo exitoso. Ela justifica, citando o exemplo de muitos atletas que atribuem aos seus fracassos “à falta de concentração ou autoconfiança.” “Componentes psíquicos, emocionais, cognitivos, neurológicos e fisiológicos se combinam de formas muito particulares. A compreensão e determinação destes componentes tem se revelado fundamental para contribuir com o desenvolvimento de intervenções adequadas nos treinamentos desportivos. Além disso, podemos questionar se é mais produtivo a continuidade de um treinamento com cargas e intensidades cada vez mais altas, ou um treinamento mental como algo tão importante quanto o físico e tático”, problematiza. A metodologia empregada na pesquisa envolveu quatro etapas, por ter sido um instrumento originalmente desenvolvido em outro idioma, país e cultura: tradução, retrotradução, síntese de traduções e análise pelo comitê de peritos. Houve, conforme a pesquisadora, pré-testes e análise final do instrumento.

Publicação Dissertação: “Tradução e adaptação transcultural do Sport Mental Toughness Questionnaire para a língua portuguesa do Brasil” Autora: Sheila Molchansky Orientador: Edison Duarte Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF) Sheila Molchansky, autora do estudo: “A expectativa da pesquisa é que o questionário possa contribuir com protocolos e processos”


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Estudo identifica

enzimas em rejeitos de mineração no Pará Além das aplicações biotecnológicas, será possível monitorar atividade microbiológica

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studo conduzido no Instituto de Química (IQ) da Unicamp pela pesquisadora Bruna Zucoloto da Costa promoveu o isolamento, identificação e triagem enzimática de 189 bactérias presentes em rejeitos de mineração de cobre na mina de Canaã dos Carajás, no Estado do Pará. A partir da triagem destas bactérias será possível determinar eventuais aplicações biotecnológicas, como a produção de fármacos, agroquímicos e outros compostos industriais. Outro interesse biotecnológico é a obtenção de metais como cobre, urânio, ouro e níquel a partir das ações destes microrganismos. Além das possíveis aplicações biotecnológicas, o estudo possibilitará um monitoramento em longo prazo da atividade microbiológica neste ambiente, que pode se tornar, ao longo do tempo, extremamente ácido e nocivo. A pesquisa, realizada como parte da tese de doutorado de Bruna da Costa, contou com a parceria da mineradora Vale S.A e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Trata-se de um Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), cujo objetivo é intensificar o relacionamento entre universidades e empresas, por meio de projetos cooperativos e cofinanciados. A pesquisa foi orientada pela professora Anita Jocelyne Marsaioli, que atua no Departamento de Química Orgânica do IQ. Bruna da Costa explica que a busca por microrganismos capazes de sobreviver a condições inóspitas, com elevada acidez, por exemplo, é importante para aplicações biotecnológicas. De acordo com ela, microrganismos presentes nestes meios possuem condições de resistência necessárias a muitas reações químicas. “A aplicação de um microrganismo em laboratório evolve, por exemplo, condições específicas, seja em meios mais ácidos, mais básicos ou mesmo na presença substratos tóxicos. Portanto, uma bactéria isolada de um ambiente mais inóspito sobrevive melhor àquelas condições, ela é mais resistente. E existe, dessa forma, uma chance maior de haver uma aplicação biotecnológica com sucesso para este microrganismo. Isso foi um dos motivos de explorarmos os rejeitos de mineração”, justifica a estudiosa da Unicamp. “Outro fator é que os rejeitos de mineração de cobre são ricos em metais e grande parte das enzimas são dependentes de metais, principalmente, aquelas que catalisam reações de oxidação”, complementa Bruna da Costa, que é graduada em química pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Em seu mestrado, defendido em 2011 no IQ, ela analisou a versatilidade enzimática com vistas a aplicações em processos biotecnológicos. Seus estudos prosseguem com pós-doutorado na área.

A pesquisadora Bruna Zucoloto da Costa: isolamento, identificação e triagem enzimática de 189 bactérias

“Isolamos, a partir dos rejeitos de cobre, uma grande variedade de bactérias para avaliar. Buscamos novas atividades catalíticas nestas bactérias. Elas já tinham sido identificadas em outros ambientes, mas nem todas nesse ambiente de rejeito. O principal foco do estudo foi avaliar o potencial enzimático desses biocatalisadores”, delineia. Ainda de acordo com ela, um dos potenciais enzimáticos bastante requisitados pelas empresas mineradoras são os que envolvem a obtenção de metais como cobre, urânio, ouro e níquel a partir da atividade bioquímica de microrganismos. Tais processos são denominados como biolixiviação, um dos focos dos trabalhos futuros do grupo de pesquisa à qual Bruna da Costa faz parte.

REAÇÕES DE INTERESSE A química acrescenta que o seu estudo ocupou-se de três reações enzimáticas: hidrólise de epóxidos, hidrólise de ésteres; e oxidação de cetonas e sulfetos. Estas reações são importantes para a produção de muitos compostos de interesse farmacológico e industrial. Ela afirma que diversos microrganismos, dentre os 189 triados, catalisam reações interessantes, tanto de oxidação, hidrólise de ésteres, como de hidrólise de epóxidos. “Observamos nos microrganismos presentes nestes ambientes atividades enzimáticas importantes para aplicações futuras. Epóxidos são valiosos intermediários sin-

téticos quirais para a preparação de moléculas biologicamente ativas. Já as reações para a hidrólise de ésteres são relevantes em diversos processos biotecnológicos. As de oxidação de cetonas e sulfetos também. Entre as principais aplicações estão a produção de sabões, biodiesel, fármacos, agroquímicos, cosméticos, entre outros”, completa.

COLETA A coleta das amostras foi realizada em fevereiro de 2012 pela professora Anita Marsaioli na Mina do Sossego, no município de Canaã dos Carajás, no Pará. Foram colhidos dois diferentes rejeitos aquosos, um recém-saído do processo de flotação, e outro com lodo acumulado na margem da lagoa de sedimentação, onde os rejeitos aquosos do processo de flotação são desaguados. Também foi coletada uma amostra de minério moído não concentrado. Os rejeitos aquosos gerados no processo de flotação da mina seguem, por gravidade, para uma barragem com aproximadamente cinco mil metros de extensão. Bruna da Costa acrescenta que empregou uma metodologia promissora para identificação: a espectrometria de massas com fonte de ionização do tipo MALDI acoplada a um analisador de massas do tipo TOF. “Ela é bastante versátil e robusta, capaz de produzir resultados confiáveis em uma escala de tempo reduzida.”

BIOCATALISADORES A pesquisadora esclarece que enzimas são biomoléculas do grupo das proteínas. Sua principal função é servir como catalisadoras de reações químicas. Os catalisadores, por sua vez, aceleram a velocidade de uma reação química sem serem consumidos durante o processo. Neste sentido, os biocatalisadores - enzimas obtidas por meios biológicos - se destacam como alternativa viável para a substituição gradual de processos químicos tradicionais por processos químicos ‘verdes’. Bruna da Costa informa que o desenvolvimento e aplicação industrial de um novo biocatalisador envolve diversas etapas e áreas do conhecimento científico. A primeira delas consiste na descoberta de novos biocatalisadores, seja a partir de triagens de organismos na natureza, seja por técnicas de engenharia genética. A etapa seguinte compreende, de acordo com ela, a expressão dessas enzimas em sistemas recombinantes, assim como a caracterização funcional das mesmas e a avaliação das suas possíveis aplicações. Quando necessário são empregadas etapas de melhoramento genético para otimização da atuação catalítica. A etapa final consiste na produção de enzimas em escala industrial para a aplicação direta na produção de compostos de interesse.

Publicações COSTA, Bruna Zucoloto da ; LIMA, M. L. S. O. ; BELGINI, D. ; OLIVEIRA, V. M. ; MARSAIOLI, A. J. . Identification and enzymatic potential of bactéria isolated from copper mine drainage. In: VII Workshop on Biocatalysis and Biotransformation & 1º Simposio Latinoamericano de Biocatálisis y Biotransformaciones, 2014, Búzios. Abstracts of VII Workshop on Biocatalysis and Biotransformation, 2014. COSTA, Bruna Zucoloto da ; LIMA, M. L. S. O. ; MARSAIOLI, A. J. . Catalytic potential of bacteria isolated from copper mine drainage. In: São Paulo Advanced School on Bioorganic Chemistry, 2013, Araraquara. Abstracts of São Paulo Advanced School on Bioorganic Chemistry, 2013. COSTA, Bruna Zucoloto da ; LIMA, M. L. S. O. ; FERREIRA, D. ; RODRIGUES FILHO, E. ; PILAU, E. J. ; MARSAIOLI, A. J. . Isolamento de micro-organismos de rejeitos

de mineração de cobre e caracterização por MALDI-TOF. In: VI Workshop de Biocatálise e Biotransformação, 2012, Fortaleza. Resumos do VI BiocatBiotrans, 2012. LIMA, M. L. S. O. ; COSTA, Bruna Zucoloto da ; MARSAIOLI, A. J. . Perfil enzimático de micro-organismos isolados de rejeitos de mina de cobre da região de Canaã dos Carajás PA. In: VI Workshop de Biocatálise e Biotransformação, 2012, Fortaleza. Resumos do VI BiocatBiotrans, 2012.

Tese: “Processos biocatalíticos aplicando epóxido hidrolases, óxido redutases e transaminases” Autora: Bruna Zucoloto da Costa Orientadora: Anita Jocelyne Marsaioli Unidade: Instituto de Química (IQ) Financiamento: Fapesp e Vale S.A


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Painel da semana

 Educação das sensibilidades, educação estética e reflexividade: horizontes outros na formação docente - Fórum será realizado no dia 18 de maio, às 9 horas, no Centro de Convenções. A organização é do Fórum Pensamento Estratégico (Penses). A proposta do evento é ampliar os diálogos em torno do lugar da estética e das sensibilidades na educação e suas relações com a formação reflexiva do professor. Mais detalhes pelo link http://www.gr.unicamp.br/penses/forum_ educacao_sensibilidades  13ª Semana de Museus da Unicamp - O Museu Exploratório de Ciências Unicamp, juntamente com o Museu de Artes Visuais (MAV), a Galeria de Artes do Ins-tituto de Artes (Gaia), a Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural (CDC) e o Museu de Zoologia do Instituto de Biologia (IB) estão à frente da organização da 13ª Semana de Museus da Unicamp, que ocorrerá de 18 a 24 de maio. Com o tema “Museus para uma sociedade sustentável”, a coordenação nacional da semana é de responsabilidade do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). A proposta é mobilizar os museus brasileiros a desenvolver atividades especiais, com o objetivo de sensibilizar a comunidade para o debate sobre temas da atualidade, estimular a visitação e incentivar a aproximação entre sociedade e museus. Mais detalhes pelo e-mail cida.godoy@ reitoria.unicamp.br

 Novos horizontes da informação - A próxima edição do Fórum Permanente de Ciência, Tecnologia e Inovação acontece no dia 19 de maio, das 9 às 17 horas, no auditório do Centro de Convenções da Unicamp. Terá como tema Novos horizontes da informação. O evento será transmitido pela TV Unicamp. Inscrições, programação e outras informações no site http://www.foruns.unicamp.br/foruns/projetocotuca/forum/htmls_descricoes_ eventos/tecno72.html  Tecnologias para comunicação e sensoriamento de cidades inteligentes - Tema será debatido no Fórum Permanente de Ciência, Tecnologia e Inovação. O evento, que será transmitido pela TV Unicamp, acontece no dia 20 de maio, na sala PA07 da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp, em Limeira-SP. O Fórum está sob a responsabilidade do professor Rangel Arthur. Inscrições, programação e outras informações no link http://www.foruns.unicamp.br/foruns/projetocotuca/forum/htmls_descricoes_eventos/tecno75.html  Fórum Internacional Síndrome de Down Com apoio da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e do Ministério da Saúde, a Unicamp sediará, entre 20 e 23 de maio, no Centro de Convenções, o 4º Fórum Internacional Síndrome de Down com o tema “A cada passo me preparo para minha vida”. O evento é organizado pela Fundação Síndrome de Down (FSD) em comemoração aos seus 30 anos. As inscrições já estão abertas e podem ser feitas no link http://www.fsdown. org.br/forum/inscricoes.htm. Nos quatro dias de evento, haverá lançamento de livro, debates com especialistas e um encontro para pessoas com deficiência intelectual (acima de 16 anos), que abordarão os seus direitos. Acesse o programa completo no link http://www.fsdown. org.br/forum/programacao.htm  Bacharelados e licenciaturas interdisciplinares - No dia 21 de maio, às 9h30, no auditório do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp, o professor Naomar Monteiro de Almeida Filho, reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), fala sobre “Bacharelados e licenciaturas interdisciplinares: inovações curriculares para reconfigurar a educação superior no Brasil”. O seminário é organizado pelo Laboratório de Estudos de Educação Superior (LEES). Para acesso aos textos e outras informações envie e-mail para lees@ unicamp.br. O auditório do NEPP fica na Av. Albert Einstein 1300, no campus da Unicamp.  4ª Caminhada DEdIC e DGRH - No dia 23 de maio, às 9 horas, na Praça da Paz da Unicamp, acontece a 4ª Caminhada DEdIC e DGRH. O objetivo é promover um dia de interação com a comunidade. O Teatro de Arena será o ponto de encontro. No local, os participantes contarão com mesa de frutas, água e sorteio de brindes. O evento é gratuito, não requer inscrição e é aberto à comunidade. A organização solicita apenas a doação de produtos de limpeza e higiene, leite ou alimentos não perecíveis. Todos os produtos arrecadados serão doados ao Lar dos Velhinhos de Campinas. Para a caminhada recomenda-se o uso de roupas leves, tênis e protetor solar. Mais detalhes pelo telefone 19-3521-4870 ou e-mail lieda@unicamp.br

Destaque

Eventos futuros  Políticas de procura de inovação e de concurso público para a inovação - Workshop acontece de 27 a 29 de maio, no Auditório da Agência para a Formação Profissional da Unicamp (AFPU). O encontro tem dois propósitos: o primeiro é definir a natureza multifacetada das políticas “demand-side” e sua presença nos sistemas de inovação. O segundo é aprofundar as discussões acerca das encomendas públicas para inovação. O Workshop contará com a presença de renomados palestrantes dos EUA, Reino Unido, Espanha, Grécia, Suécia, China, Coréia do Sul, além de convidados brasileiros. A organização é do Projeto InSysPo - Innovation System and Policy do Programa SPEC (São Paulo Excellence Chair) da Fapesp, sediado no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. As inscrições são gratuitas e limitadas. Programação, inscrições e outras informações, na página eletrônica http://www.ige.unicamp. br/spec/workshop/. Mais detalhes pelo telefone 19-35215124 ou e-mail paulafdc@gmail.com  TEDxUnicampWomen - O Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) organiza a próxima edição do TEDxUnicampWomen, dia 28 de maio, às 10 horas, no auditório da Biblioteca Central “Cesar Lattes” (BC-CL). No evento serão apresentados temas de interesse geral da comunidade sobre a temática feminina. No mesmo dia, às 14 horas, na sala de treinamentos, localizada no primeiro andar da BCCL, serão apresentadas algumas sessões do TEDWomen 2015, evento que ocorre simultaneamente, em Monterey, Califórnia. Mais detalhes pelo telefone 19-35217923 ou e-mail beth@nics.unicamp.br  Indicadores de desempenho: a quem interessa medir o quê? O desafio da medição como ferramenta de gestão - Tema será abordado no Fórum Permanente de Sociedade e Desenvolvimento. O evento tratará dos desafios de se institucionalizar uma política universitária de sustentabilidade e da implementação de programas e projetos sustentáveis nos campi universitários da Unicamp. O Fórum acontece no dia 29 de maio, das 14 às 21 horas, no auditório da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira-SP. A organização é do professor Edmundo Inácio Junior. Inscrições, programação e outras informações na página eletrônica http://www.foruns. unicamp.br/foruns/projetocotuca/forum/htmls_descricoes_ eventos/soc_e_desenv08.html  Água: fonte de vida, recurso inesgotável? Exposição da Área de Coleções Especiais e Obras Raras da Biblioteca Central “Cesar Lattes” (BCCL) pode ser visitada até o final do mês, no 3° piso da BCCL. A mostra é composta por 20 livros que abordam a temática água, em sua maioria obras iconográficas com belas imagens das águas brasileiras, relatórios sobre a seca, viagens pelos rios, celebrações religiosas, etc. Mais informações: telefone 19-3521-6468 ou e-mail bibcen@unicamp.br

Teses da semana  Artes - “Espaços expositivos contemporâneos” (mestrado). Candidata: Vera Ferreira Lima. Orientador: professor Mauricius Martins Farina. Dia 22 de maio de 2015, às 15 horas, no IA. “O processo de aprendizagem do bailarino no momento do espetáculo” (mestrado). Candidata: Karen Adrie de Lima. Orientador: professor Odilon José Roble. Dia 22 de maio de 2015, às 9 horas, no IA.  Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo - “A consideração da não-linearidade física no cálculo de flecha em vigas de concreto armado” (mestrado). Candidato: Pedro Alexandre Conde Bandini. Orientadora: professora Maria Cecilia Amorim Teixeira da Silva. Dia 22 de maio de 2015, às 10 horas, na sala CA22 da FEC.  Engenharia Elétrica e de Computação - “Projeto e fabricação de um sistema sensor de espectroscopia de impedância eletroquímica” (mestrado). Candidato: Erasmo José Dias Chiappetta Filho. Orientador: professor Fabiano Fruett. Dia 19 de maio de 2015, às 15 horas, na FEEC.  Engenharia Mecânica - “Análise de estabilidade e desempenho H2 de sistemas com comutação do tipo lur’e” (mestrado). Candidato: Alan Pereira Suto. Orientadora: professora Grace Silva Deaecto. Dia 22 de maio de 2015, às 14 horas na sala de seminários ID02 da FEM.  Física - “Aspectos dinâmicos de sistemas astrofísicos discoidais” (doutorado). Candidato: Ronaldo Savioli Sumé Vieira. Orientador: professor Alberto Saa. Dia 22 de maio de 2015, às 14 horas, no auditório de Pós-graduação do prédio D do IFGW.  Linguagem - “Os temas e as dinâmicas sociointeracionais em nove grupos criados e gerenciados por mulheres no Facebook” (doutorado). Candidata: Luciane Cristina Paschoal Martins. Orientadora: professora Inês Signorini. Dia 20 de maio de 2015, às 9 horas, na sala de videoconferência do Centro Cultural do IEL. “Aptidão para língua estrangeira: a perspectiva do aluno universitário” (doutorado). Candidato: Cesar Eduardo Duarte Elizi. Orientadora: professora Linda Gentry El Dash. Dia 21 de maio de 2015, às 14 horas, na sala de defesa de teses do IEL.  Odontologia - “Correlação entre as características do arco dentário e a morfologia da eminência articular por meio de tomografia computadorizada de feixe cônico” (doutorado). Candidata: Francielle Silvestre Verner. Orientadora: professora Solange Maria de Almeida Boscolo. Dia 20 de maio de 2015, às 14 horas, na sala da congregação da FOP.  Química - “Construção e desenvolvimento de dispositivos de teste point-of-care com detecção eletroquímica em plataforma de papel” (doutorado). Candidato: Everson Thiago Santos Gerôncio da Silva. Orientador: professor Lauro Tatsuo Kubota. Dia 19 de maio de 2015, às 14 horas, no miniauditório do IQ.

do Portal

Exposição comemora 120 anos de nascimento de Malba Tahan om tiragem mensal de um único exemplar e escrito à mão, Julio Cesar de Mello e Souza lançou seu próprio jornal quando era criança. O inusitado nome da publicação comemorava um verbo precioso para o autor mirim. O “Erre” durou 25 números. Julio Cesar cresceu e, quando de fato começou a ser lido, já não era mais nascido na cidade de Queluz (SP), mas na aldeia de Muzalit, Península Arábica, perto da cidade de Meca. Seu nome também passou a ser Malba Tahan. Autor de O Homem que Calculava, entre mais de uma centena de livros, Malba Tahan, pseudônimo do professor Julio Cesar, criticava a maneira como a matemática era ensinada e propunha o revolucionário: a aproximação com o universo da criança, a diversão na aprendizagem e muito mais. “Ele sugere partir do visível, do manipulável, de modo que a criança possa intuir o resultado”, ensina o docente Sérgio Lorenzato, estudioso da literatura de Malba Tahan e um dos fundadores do Centro de Estudos, Memória e Pesquisa em Educação Matemática (Cempem) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Lorenzato, juntamente com os professores André Paulilo, Alexandro Henrique Paixão e Heloísa Helena Pimenta Rocha, organizou – no âmbito do Centro de Memória da Educação – a exposição “A Matemática em festa”, que reúne parte do acervo pessoal do escritor, comemorando 120 anos de seu nascimento. A mostra foi aberta no último dia 6.

A data também foi escolhida para a comemoração do Dia Nacional da Matemática. Na exposição que está no saguão da Biblioteca Prof. Joel Martins, da FE, estão vários cadernos de conferência feitos pelo autor, além de recortes de jornal, livros, fotografias e trabalhos de alunos. A exposição traz ainda uma varinha, que Malba Tahan utilizava para dar aula em uma performance própria de um ator de teatro. O acervo de Malba Tahan está sob custódia do Centro de Memória da Educação da Unicamp. Nos dias 22 e 23 deste mês haverá, também em comemoração à data, o III Simpósio Nacional de Grupos Colaborativos, na Universidade Cidade de São Paulo e em julho o V Seminário da História e Investigação de/em Aulas de Matemática, na Faculdade de Educação da Unicamp. Quando fala de Malba Tahan, o professor Sérgio Lorenzato dá exemplos dos ensinamentos do mestre. “A ordem das parcelas não altera o total, ou a ordem dos fatores não altera o produto. Experimente começar com uma situação problema!” E mostra um pedaço de papel no qual duas formigas fariam o mesmo trajeto em sentidos opostos, percorrendo a mesma distância. “A ordem com que se faz a continha não muda o resultado”, simplifica. Lorenzato foi aluno de Malba Tahan, em 1958, em um curso de didática da matemática. Foi quando decidiu que “dessa matemática” iria ser professor. E foi. A comemoração do Dia Nacional da Matemática traz uma reflexão que é a atualidade da obra de Malba Tahan. “Eu diria que uma atualidade dolorosa”, diz o docente. (Patrícia Lauretti)

Fotos: Antoninho Perri

O professor Sérgio Lorenzato, um dos organizadores da exposição: “A obra de Malba Tahan é de uma atualidade dolorosa”

Obras expostas na mostra “A Matemática em festa”, que reuniu parte do acervo do escritor


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Unicamp lança primeiro curso do Coursera no país ISABEL GARDENAL bel@unicamp.br

Unicamp lançou no último dia 6 o primeiro curso brasileiro dos Massive Open Online Course (MOOCs) pelo Coursera, uma plataforma educacional aberta e gratuita. Trata-se do curso Processamento Digital de Sinais – Amostragem, sob a responsabilidade do professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec), Renato da Rocha Lopes. O curso, o primeiro do Brasil, integra uma parte da disciplina que Renato Lopes leciona tanto para alunos de graduação quanto de pós-graduação. Mas na versão on-line o curso é totalmente inédito. “Eu nunca tinha oferecido em plataforma on-line em português”, relata o responsável pelo curso. “Na minha aula, o aluno irá aprender exatamente a mesma coisa que ensino no campus. Ao final, ele será capaz de criar aplicativos que poderão converter músicas, imagens, vídeos, leituras de sensores e outros sinais em formato digital”, explica Renato Lopes. O público-alvo do curso são alunos de graduação, sobretudo interessados em engenharia. De acordo com ele, o curso aborda principalmente amostragem, processo pelo qual são transformados sinais do mundo real – sinais de imagens, de música, de vídeo – em aplicações mais específicas, como sinais de sensores, de temperatura. Tudo isso é transferido para um computador, um smartphone. “Abordamos como se realiza a transformação do sinal analógico do nosso mundo para o digital do mundo do computador. O curso também deve mostrar quais são os cuidados que precisam ser tomados nessa área para eliminar distorções e como escolher os parâmetros para a amostragem”, diz. No curso de Renato são 28 vídeos com duração de cerca de dez minutos e uma série de 40 exercícios. A avaliação é feita

Plataforma de ensino on-line tem 12 milhões de usuários no mundo através das resoluções. “Temos exercícios apenas para treinamento e exercícios para avaliação. As questões envolvem múltipla escolha”, esclarece Renato Lopes. Os cursos do Coursera são on demand: não têm data para começo, meio e fim. O material como um todo está disponível na plataforma. O aluno pode começar e terminar sua participação no seu ritmo.

IMPORTÂNCIA O professor Alvaro Crósta, coordenador-geral da Universidade, assinala que o modelo de cursos MOOCs é relativamente novo no mundo e vem adquirindo uma importância e uma proporção progressivamente maior. “É um modelo bem-diferenciado em relação ao que as universidades mundiais faziam antes, porque a ideia é levar o conhecimento da universidade a uma parcela significativa da população. Daí o nome massivo”, destaca. São cursos que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode fazer via Internet. Houve uma tendência de universidades de ponta entrarem nesse mundo novo dos MOOCs. No ano passado, a Unicamp tomou essa decisão. O coordenador-geral entende que este formato de curso é um espaço que ainda não está ocupado, principalmente em termos de cursos em português. “Temos um enorme potencial, com nossos docentes, alunos de pós-graduação, pesquisadores, de oferecer cursos de excelência e, ao mesmo tempo, abrir essa chance para a nossa

comunidade”, afirma ele, salientando que os participantes são pessoas que provavelmente não viriam até a Unicamp porque estão geograficamente distantes. Ao mesmo tempo em que a Unicamp tomou essa decisão, foi contatada pelo Coursera, que é uma das várias plataformas dos cursos de MOOCs que existe no mundo e uma das maiores e mais relevantes. O Coursera procurou no Brasil universidades e as selecionou, entre elas a Unicamp, com base na qualidade das instituições e dos cursos, com a proposta de oferecer cursos em português. Segundo Alvaro Crósta, além de levar o conhecimento a pessoas que não fariam o curso da Unicamp, outro objetivo seria tornar a Universidade de Campinas mais conhecida, pela qualidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão feita aqui por meio dos MOOCs. Ao criar esse novo curso, a Unicamp antecipa-se a outras universidades. “Isso é fruto de um trabalho de preparação, levado a cabo pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) e pela Escola de Extensão da Unicamp (Extecamp), que montaram essa proposta”, observa ele. “Com o sucesso dos MOOCs, vamos abrir caminho para outras atividades de educação a distância, que nas universidades públicas brasileiras têm uma atuação acanhada em relação às universidades privadas.” O coordenador-geral comenta que o curso de Português para Estrangeiros vem num bom momento. Isso porque a Unicamp hoje envia muito mais alunos para o exterior do que recebe. Uma das barreiras para conquistar alunos de outros países é a língua. Por isso a instituição acaba atraindo mais alunos da América Latina (AL). Enquanto isso, os alunos do hemisfério norte ainda são em um número muito reduzido. A ideia dos MOOCs para Português para Estrangeiros é justamente que esse curso seja realizado antes de virem ao Brasil, sendo incentivados pela possibilidade de se coFotos: Antonio Scarpinetti

O professor Renato Lopes: “Na minha aula, o aluno irá aprender exatamente a mesma coisa que ensino no campus”

O coordenador-geral da Unicamp, Alvaro Crósta: abrindo ainda mais as fronteiras para o processo de internacionalização

municar em língua portuguesa e chegarem aqui já com uma base para acompanhar os cursos. Essa é uma tentativa de abrir um pouco mais as fronteiras para o processo de internacionalização, considera.

EXPECTATIVA O professor João Frederico da Costa Azevedo Meyer, pró-reitor da Preac, ressalta que tem um motivo histórico para estar muito animado com mais esse espaço de pioneirismo da instituição. O primeiro curso a distância que a Unicamp ofertou foi em 1976. “O professor José Teixeira, que está deixando a diretoria da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), foi meu aluno nessa disciplina em que trabalhamos geometria analítica a distância, de maneira experimental. Isso continuou no semestre seguinte, dando origem a um dos livros ‘best seller’ em álgebra linear. A experiência não foi boa só para fora da Unicamp. A experiência foi boa para a Unicamp. Logo, temos muita esperança que o mesmo aconteça com esse primeiro curso.” O pró-reitor recorda que o Coursera, ao escolher algumas universidades e a Fundação Paulo Lemann no Brasil, buscou-as por critério de qualidade e declarou formalmente que almejava universidades à altura da expectativa de uma comunidade mundial que pode escolher cursos de qualquer universidade. “Então eles gostariam, como plataforma, de trabalhar com quem é capaz de mostrar serviço”, ilustra. João Frederico recorda que já trabalhou com ensino a distância, quando se utilizava a tecnologia top da época: xérox, correio e fita cassete. “Depois dessa especialização, muitos alunos vieram a fazer mestrado e doutorado. O projeto era da Capes, que também escolheu a Unicamp por critérios de excelência e de qualidade.” Por outro lado, o pró-reitor vê nessa uma grande oportunidade de colocar não só o conteúdo daquilo que a Unicamp está desenvolvendo, mas o seu modo de trabalhar. “Vou dar um exemplo: o professor Renato Lopes não esperou que fosse organizada a equipe de filmagem. Ele mesmo comprou uma câmera e arrumou alguém para ajudá-lo. Agora fomos lançados num cenário internacional, e muito graças a essa característica do nosso corpo docente”, comemora. Gláucia Lorenzetti, gerente de projetos dos MOOCs na Unicamp, pontua que mais de quatro mil pessoas manifestaram interesse em participar do primeiro curso da Unicamp. “Além desse, temos mais três cursos em planejamento – Português para Estrangeiros, Física Básica e Empreendedorismo -, que deverão ser ofertados no segundo semestre deste ano. Está havendo um investimento da Reitoria da Unicamp para a produção desses cursos. E a Coordenadoria Geral da Universidade [CGU] é a financiadora”, conta. Os cursos estão sendo formalizados como cursos de extensão, mas serão oferecidos pela plataforma do Coursera. A partir da experiência piloto, os próximos cursos serão submetidos a uma instância de análise, que envolverá o Conselho de Extensão da Universidade, o Conex.

COURSERA

O pró-reitor de Extensão, João Frederico da Costa Azevedo Meyer: “Fomos lançados num cenário internacional”

Gláucia Lorenzetti, gerente de projetos dos MOOCs na Unicamp: curso já despertou interesse de quatro mil pessoas

A plataforma de ensino on-line do Coursera conta com 12 milhões de usuários no mundo, sendo 500 mil no Brasil. Os interessados podem procurar on-line entre mais de 1.000 cursos oferecidos pelas melhores instituições de ensino do mundo, como Yale, Stanford, Princeton, Universidade de Genebra, Universidade Autônoma de Barcelona, Universidade de Londres, Universidade de Michigan, entre outras. Em setembro de 2014, foram anunciadas parcerias com a Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Fundação Lemann, as primeiras no Brasil. Os alunos podem assistir videoaulas, fazer testes interativos, avaliar o trabalho dos seus colegas e interagir com os demais alunos e professores.


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Campinas, 18 a 24 de maio de 2015

Um mergulho nos madrigais (e nos dramas) de Gesualdo Fotos: Divulgação

ISABEL GARDENAL bel@unicamp.br

ríncipe e compositor. A fusão das duas esferas tinha tudo para ser bem-sucedida. Ele teve uma iniciação junto aos melhores músicos do reino de Nápoles do século 16, na Renascença. Os seus madrigais se tornaram conhecidos mundialmente pela sua aprimorada técnica e pela sua linguagem poética, culta e sofisticada. Mas não foi apenas por isso que as suas composições se tornaram tão populares. Esses madrigais mostraram, desde as primeiras manipulações, que a intenção do seu autor, o príncipe Carlo Gesualdo, era transformar todas as pequenas narrações amorosas, por mais inocentes que fossem, em um drama. A sua biografia denota que esses fatos fizeram muito sentido. Esse olhar era o olhar de um Gesualdo que teve experiências dramáticas na sua vida pessoal. A música foi um refúgio e uma fonte de inspiração. Mas certamente a morte, para ele, foi eleita desde o início como a única sublimação para o seu sofrimento. Essa foi a caracterização principal contida nos seis livros de madrigais, que reúnem as 125 obras dele. Foi o que concluiu o músico Rafael Luis Garbuio, em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA). O autor da pesquisa avaliou esses seis livros de madrigais, antigas composições musicais para vozes sem acompanhamento, com pequena composição poética engenhosa e galante. O seu objetivo foi promover um estudo abrangente sobre a linguagem musical empregada por Gesualdo. Conforme Rafael, o compositor teve dois caminhos que o transformaram num músico distinto dos demais: uma parte pessoal, cuja biografia era a de um príncipe, o que o transformava numa figura pública poderosa; e uma música que representava a fase final do Renascimento, deveras exótica para o período, além de ser de difícil execução, graças a sua sofisticação. Os poucos documentos de época disponíveis acerca dele demonstram que era um exímio alaudista, tocava bem órgão e era um bom cantor, uma vez que o grosso do seu trabalho de compositor era destinado à obra vocal. Gesualdo nasceu num principado, Venosa, localizado na região da Basilicata, Itália. Era uma cidadezinha que tinha uma torre alta e o Castelo de Gesualdo, que pertencia à sua família. Ainda cedo, recebeu o título de duque de Nápoles, que na época pertencia ao reino da França. Em Venosa, na corte de seu pai, contava com o estímulo de um séquito de bons compositores e instrumentistas. Fica até difícil dizer quem foi o seu principal professor. Existe, porém, um consenso de que foi Pomponio Nenna, um importante compositor do Renascimento.

INFLUÊNCIA

A parte mais significativa como compositor foi quando mudou-se para Ferrara, em 1594, uma cidade mais ao norte, importante reduto cultural. Foi para lá por conta de seu segundo casamento com a sobrinha do duque de Ferrara. Tinha então menos de 30 anos. Gesualdo residiu apenas dois anos naquela cidade, mas em um momento de grande efervescência estética, encontrando ali um universo artístico avançado em comparação ao restante das cidades-estados italianas. Apesar disso, viveu um período tumultuado. Enfrentou depressão e, por causa disso, passou dois anos no recôndito do castelo da família Ferrara, dedicando-se unicamente à música. Foi lá, no entanto, que ele compôs a maior parte da sua obra. Os dois livros de madrigais compostos por ele, anteriores a Ferrara, foram publicados pela primeira vez em 1594, em comemoração ao seu segundo casamento. Os madrigais centrais – os livros 3 e 4 – foram publicados em 1596, tendo sido totalmente compostos em Ferrara, onde foi achada sua obra mais característica: Gesualdo mais Gesualdo.

Foram muitos poemas destinados a Gesualdo, por sua importância e pelos fatos transcorridos. Mas muito desses documentos foram romantizados e repletos de lendas. Não se sabe ao certo o que aconteceu, diz Rafael. “A morte dele é um fato nebuloso até hoje.” Alguns comentam que ele se autoflagelava, por acreditar que estava em constante delito. Tinha um tio cardeal – Carlo Borromeo, que foi beatificado e se tornou São Carlo Borromeo. Também possuía posição destacada frente à igreja católica, tanto que o Concílio de Trento teve amplo apoio dos Gesualdo.

DETERMINAÇÃO

O compositor e príncipe renascentista Carlo Gesualdo: técnica primorosa

Ferrara trouxe anos valiosos, musicalmente falando, pois o compositor teve contato com uma música mais sofisticada. Há indícios documentais do quanto ele foi influenciado por esse ambiente artístico e também o quanto o influenciou. “Ferrara se tornou outra depois de sua passagem por lá”, sublinha. Os madrigais 5 e 6, publicados em 1611, foram compostos quando a situação psicológica de Gesualdo começava a se deteriorar. O primeiro casamento, com Maria d’Avalos, uma das mais belas damas do reino, acabou tragicamente. Ele a assassinou, após flagrá-la em adultério. O caso se tornou público. Nunca mais Gesualdo se recuperou. Quando não suportou viver em Ferrara, voltou ao castelo de Nápoles. A segunda esposa o acompanhou. Foi um caminho sem retorno. Ficou enclausurado até o fim de seus dias. Morreu em 1613, aos 47 anos. Teve uma carreira meteórica. Não passou a viver em nenhum outro centro, nem social e nem artístico. Deixou Ferrara fisicamente, contudo era como se continuasse ligado à cidade. Os dois últimos livros – 5 e 6 – foram marcados por um desenvolvimento exagerado das características estilísticas que já se manifestavam em Ferrara. Foram mais do que a continuidade dos livros 3 e 4. “O centro artístico de Ferrara prosseguiu então agindo em sua obra”, afirma. Com o tempo, os seus madrigais foram se perdendo. Uma ou outra parte sobrou em fac-símile. No entanto, no ano da morte de Gesualdo, o editor Simone Molinaro reuniu todos os seis livros, com a sua anuência, fazendo uma grande publicação, que serviu de material de estudo para Rafael. Até hoje muito se estuda sobre o quanto foram alteradas as partituras de 1613 em relação às originais, porque pode ter havido alguma alteração editorial, cogita-se.

Rafael escolheu os madrigais de Gesualdo pela sua música avançada. Ainda na graduação, no IA, fazia parte do Camerata Anima Antiqua, um grupo vocal dirigido pelo orientador da tese, professor Carlos Fiorini, cuja música resulta de compositores do Renascimento. Quando em 2004 Rafael se deparou com um madrigal de Gesualdo, percebeu que aquela obra era mais empolgante e mais complexa do que os demais madrigais. “O fato de ser mais difícil me intrigava pois o material musical era quase o mesmo, com um adendo: a difícil linguagem do compositor”, esclarece. No mestrado, Rafael escolheu nove motetos sacros de Gesualdo (gênero musical do Renascimento baseado em textos sacros). Foram feitos para o sábado santo, uma cerimônia da igreja católica. Rafael passou dois anos no mestrado estudando o material. A seguir, ingressou no doutorado e aí sim, de forma específica, avaliou os madrigais: a sua música secular. Para o pesquisador, Gesualdo traduzia algo misterioso e, quanto mais se debruçava sobre um único madrigal, mais começava a entendê-lo. Tirava camadas e camadas, e nunca se esgotava, de tão profundo o seu texto. Foto: Antoninho Perri

O músico Rafael Luis Garbuio, autor da tese: “O ideal poético permitiu compreender a concepção artística da música de Gesualdo”

Ao contrário da maior parte dos compositores, Gesualdo não somente escolhia um poema e escrevia. A relação dele com o texto era mais intrínseca (não só musical), e Ferrara foi o ponto principal das mudanças. Na primeira fase, tomava o poema de grandes poetas do Renascimento, principalmente Torquato Tasso e Guarini, e promovia pequenas alterações. Era assim como outros compositores costumavam fazer: trocavam termos, readequavam tamanho, diminuíam, aumentavam, mas nada muito drástico. Na fase de Ferrara, começou a alterar mais. Esse processo Rafael chamou de manipulação textual. Ele praticamente passou a construir um outro poema em cima do original. Na terceira fase, a manipulação era tão profunda que já não existia mais a figura do poeta. Gesualdo compunha sozinho. O doutorando também percebeu que existia um ideal poético no compositor e passou a persegui-lo. Quase toda tese versou sobre isso: sobre identificar, através da manipulação textual, qual era esse ideal e como caracterizá-lo. “Com a caracterização, unimos o ideal poético com a expressividade musical”, relata. “Esse ideal poético permitiu compreender a concepção artística da música de Gesualdo.”

ANÁLISES

O ideal poético de Gesualdo envolvia poemas mais curtos do que o habitual para ceder espaço para a música. Ele primava por um poema numa linguagem mais erudita do que se fazia na época. O compositor não permitia tom popular, que ganhou notoriedade a partir da segunda metade do século 16, quando o poema palaciano começou a incluir essas expressões. Gesualdo foi contra e primou, antes, por uma linguagem culta e por vezes enigmática. Não incentivou o jogo erótico e amoroso no seu poema – o chamado madrigal amoroso e mesmo o madrigal erótico. Ele pendia para a figura do oxímoro (com o leitor sendo levado a procurar um sentido metafórico). O seu poema trazia o contraste de ideias na mesma frase: a morte prazerosa e o amor dolorido. O oxímoro de dois termos totalmente opostos era colocado em sua escrita e a tragédia amorosa. Os seus madrigais são pouco executados nas salas de concerto brasileiras, justamente pela dificuldade técnica de cantar Gesualdo, o que não impede que eles sejam conhecidos. Um deles se chama Moro, lasso, al mio duolo, madrigal do sexto livro, que é um Gesualdo fase mais Gesualdo. Nessa obra, os efeitos sonoros e a morte desejada são evocados o tempo todo. Outro madrigal, executado na defesa de tese de Rafael, é Luci serene chiari, primeiro madrigal do quarto livro. Ele é menos dramático do que Moro, lasso, mas também é muito Gesualdo. Já o primeiro madrigal da primeira fase é Baci soavi e cari, teoricamente o primeiro madrigal publicado por ele, que o torna mais conhecido. Nas suas poesias, Gesualdo falava muito sobre ele mesmo. Misturava as figuras do homem e do compositor. Uma das primeiras observações da fase central foi a quantidade de io e mio que ele foi incluindo nos poemas. Os poemas não teriam nada de io e mio, já que diziam respeito à dor do amor. Mas ele colocava mio dolore. Na última fase, os poemas eram totalmente pessoais. Assim conhecia-se um pouco mais de sua vida, de sua estética. “Percebia-se que estavam falando dele e de sua tragédia amorosa”, constata Rafael.

Publicação Tese: “Os madrigais de Carlo Gesualdo: um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético” Autor: Rafael Luis Garbuio Orientador: Carlos Fiorini Unidade: Instituto de Artes (IA) O castelo da família Ferrara, onde foi composta a maior parte da obra de Carlo Gesualdo


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