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5 Satélite detecta petróleo na superfície

Jornal daUnicamp www.unicamp.br/ju

Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016 - ANO XXX - Nº 664 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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CORREIOS

FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT Foto: Antonio Scarpinetti

Os caminhos da

INOVAÇÃO

Foto: Antoninho Perri

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Tese de Patricia Tavares Magalhães de Toledo analisa a gestão da inovação em 16 universidades do Brasil e do exterior. A pesquisa foi orientada pela professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, do Instituto de Geociências (IG).

Pesquisa no Laboratório de Processamento de Sinais para Comunicações, na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp

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Uma incursão no mundo do imaginário das maravilhas Protocolo para reúso de cateteres é validado Ação humana põe em risco mamíferos da Serra do Japi

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Berta Waldman desvenda ‘o enigma do vampiro’ Por que Nelson Gonçalves não integra a linha evolutiva?

Técnica revela imagem perdida de Edgar Degas O orgasmo feminino a partir da reprodução Vacina para zika imuniza macacos

TELESCÓPIO


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TELESCÓPIO

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

Vacinas para zika funcionam em macacos Uma equipe internacional de cientistas, incluindo pesquisadores da USP, anuncia, na edição mais recente da revista Science, testes bem-sucedidos de três tipos de vacina contra o zika vírus, implicado em casos de má-formação fetal, incluindo microcefalia. Anteriormente, uma das vacinas, baseada em vírus inativados, já havia se mostrado eficaz em camundongos. Além da vacina de vírus inativados, foi testada, em macacos rhesus, uma vacina baseada no DNA que codifica algumas das proteínas do zika e, ainda, a transferência de anticorpos, produzidos por macacos vacinados, para outros animais, tanto rhesus quanto camundongos. A vacina de DNA mostrou-se capaz de conceder imunidade aos macacos mesmo após uma única aplicação, e a transferência de anticorpos também gerou proteção.

Um Degas sob outro Degas Técnicas não-invasivas de imageamento permitiram, finalmente, revelar a imagem “perdida” deixada pelo impressionista francês Edgar Degas (1834-1917) sob sua pintura “Retrato de Mulher”, atualmente na Galeria Nacional de Victoria, Melbourne, na Austrália. A presença de uma pintura diferente, sob a tinta de “Retrato de Mulher”, já era conhecida: desde 1922 que os contornos dessa obra oculta começaram a se tornar visíveis, sugerindo a existência de outro retrato na mesma tela, virado de cabeça para baixo em relação à pintura visível. Usando raios-X de uma fonte de luz sincrotron para detectar os componentes metálicos dos pigmentos da pintura subjacente, pesquisadores australianos informam ter obtido uma reconstituição provável desse retrato perdido. A técnica de raios-X “pode ser usada para deduzir os pigmentos usados, com base nos elementos químicos observados dentro do contexto da pintura”, escrevem os cientistas, em artigo publicado no periódico Scientific Reports, do grupo Nature. “No entanto, ela não pode ser usada para identificar os pigmentos de modo inequívoco. Mas a identificação pode ser corroborada quando diferentes elementos são altamente co-localizados. Elementos co-localizados podem indicar um pigmento que intrinsecamente contém diferentes metais, ou a mistura de pigmentos usada pelo artista para atingir a cor desejada”. Um dos autores do artigo, Saul Thurrowgood, criou um software es-

pecífico para converter os dados produzidos pela análise de raios-X em uma imagem colorida “plausível”. Os autores sugerem que o retrato obscurecido representa uma tentativa, abandonada por Degas, de pintar a modelo Emma Dobigny, objeto de uma de suas telas mais famosas, datada de 1869.

Antraz na Sibéria O degelo provocado pelo verão siberiano excepcionalmente quente expôs as carcaças de renas mortas há 75 anos durante uma epidemia de antraz, liberando o bacilo e desencadeando o primeiro surto da doença na região desde 1941, informam o jornal The Washington Post e a revista Popular Science. Segundo o Centro de Pesquisa e Políticas para Doenças Infecciosas da Universidade de Minnesota, mais de 40 moradores da área afetada estão hospitalizados – pelo menos metade são crianças –, e mais de mil renas já morreram. A liberação de vírus e bactérias adormecidos em camadas congeladas do solo, o chamado permafrost, é uma das consequências mais preocupantes previstas para a mudança climática em curso.

O todo antes das partes Crianças aprendem a usar e compreender palavras que denotam quantidades absolutas – como “todos” ou “nenhum” – antes de aprenderem quantificações relativas, como “alguns”, “a maioria” ou “nem todos”. A conclusão é sugerida por trabalho publicado no periódico PNAS, que envolveu dezenas de pesquisadores de diversos países, estudando o uso de palavras quantificadoras por centenas de crianças e adultos, falantes de 31 diferentes línguas, representando 11 grupos linguísticos.

Computador quântico reprogramável Pesquisadores dos Estados Unidos descrevem, na revista Nature, a criação do primeiro computador quântico reprogramável. Esse tipo de computador, que se aproveita da capacidade que sistemas quânticos têm Foto: David Thurrowgood/Divulgação

Reconstituição virtual da pintura “escondida” por baixo do Retrato de Mulher de Degas

de existir em mais de um estado ao mesmo tempo, são capazes de realizar determinadas operações de modo mais rápido e eficiente que computadores normais. Até agora, no entanto, a maioria dos sistemas montados tem capacidade limitada a um número específico de tarefas, e não pode ser facilmente reconfigurada. O novo computador conta com cinco bits quânticos, ou “qbits”, que podem ser manipulados por raios laser e reconfigurados sem que se precise mexer no hardware. Os autores demonstram a capacidade de seu sistema de implementar diferentes algoritmos, e sugerem que a configuração descrita pode ser ampliada, com a inclusão de mais qbits no desenho, ou agregando ao aparelho novos módulos iguais ao original.

O papel do orgasmo A existência do orgasmo feminino na espécie humana tende a ser vista como um mistério, do ponto de vista biológico: enquanto o masculino está diretamente ligado à emissão dos espermatozoides, que têm papel fundamental na reprodução da espécie, o feminino parece desconectado de qualquer tipo de função reprodutiva, já que a liberação dos óvulos pelas mulheres segue um ciclo mensal, e não está ligada ao momento do intercurso. Além disso, o orgasmo feminino sequer é uma experiência universal: em pesquisas, poucas mulheres dizem experimentá-lo toda vez que fazem sexo. Entre as hipóteses propostas até hoje há a de que a experiência ajuda as mulheres a selecionar parceiros geneticamente saudáveis, mas mesmo essa explicação falhou em convencer muitos cientistas. Agora, artigo publicado no periódico Journal of Experimental Zoology propõe investigar a função do orgasmo feminino humano a partir da reprodução de outras espécies de mamíferos. O trabalho, encabeçado pela pesquisadora Mihaela Pavlicev, sugere que, entre as fêmeas dos primeiros mamíferos a evoluir, a ovulação era desencadeada pelo ato sexual, da mesma forma que a ejaculação masculina ainda é. “O orgasmo feminino humano está associado a uma onda hormonal similar às ondas (...) em espécies com ovulação induzida”, diz o artigo. “Sugerimos que o homólogo do orgasmo humano é o reflexo que, ancestralmente, induzia ovulação. Esse reflexo tornou-se supérfluo com a evolução da ovulação espontânea, potencialmente liberando o orgasmo feminino para outros papéis”.

Mito e história na China A tradição chinesa fala de uma enchente catastrófica causada pelo Rio Amarelo, dentro do segundo milênio Antes da Era Comum (AEC), que teria precipitado o surgimento da civilização chinesa e da primeira dinastia de imperadores chineses, a Xia, que teriam emergido a partir dos esforços para conter e mitigar os efeitos do desastre. Ao longo do século passado, escavações arqueológicas encontraram vestígios da dinastia Shang, a segunda casa imperial, mas sinais da realidade histórica da Grande Enchente e dos imperadores Xia vinham se mostrando difíceis de obter. Na edição mais recente da Science, pesquisadores da China, EUA, Reino Unido e Taiwan apontam evidências geológicas de uma cheia catastrófica do Rio Amarelo em 1920 AEC, que “sugerem que ela pode ser a base da Grande Enchente, portanto dando apoio à historicidade da dinastia Xia”.

“Isso colocaria o início de Xia em por volta de 1900 AEC, vários séculos mais tarde do que se pensava tradicionalmente”, escrevem os autores. “Essa data coincide com a grande transição do Neolítico para a Era do Bronze, no vale do Rio Amarelo”.

Mais vida no futuro Uma análise teórica realizada por pesquisadores baseados nos EUA e no Reino Unido sugere que a emergência da vida na Terra, há cerca de 4 bilhões de anos, foi um evento “prematuro” na história do Universo. O artigo, aceito para publicação no periódico Journal of Cosmology and Astroparticle Physics, argumenta que a probabilidade do surgimento de vida num planeta depende da longevidade da estrela que esse planeta orbita. Como as estrelas mais longevas são as de pequena massa – astros com 10% da massa do Sol têm uma expectativa de vida de trilhões de anos – os autores concluem que “a vida ao redor de estrelas massa pequena, no futuro distante, é muito mais provável que a vida terrestre em torno do Sol, hoje”. O artigo reconhece que “para um espectro de massas centrado numa faixa estreita, em torno da massa solar, determinamos que o tempo atual representa, de fato, o pico da distribuição de probabilidade”. Mas ressalva: “Se admitirmos estrelas de massa pequena na distribuição, o pico se desloca para o futuro”.

Artigo critica limite a uso de embriões Peça de opinião publicada na revista Science, assinada por I. Glenn Cohen, especialista em Bioética da Escola de Direito de Harvard, e Eli Y. Adashi, professor de Medicina da Universidade Brown, condena a renovação de um dispositivo da legislação americana que proíbe que os órgãos regulatórios aprovem estudos envolvendo a alteração genética de embriões humanos que gere características hereditárias – as chamadas edições germinativas. Os autores notam que essa proibição veta o desenvolvimento de terapias que poderiam eliminar doenças hereditárias, incluindo tratamentos que envolvem a substituição de mitocôndrias. O artigo pondera que esta é mais uma de diversas restrições americanas a pesquisas com embriões humanos – até hoje, os EUA proíbem o uso de verba federal para financiar estudos do tipo – que têm “um efeito paralisante nos estudos sobre os estágios iniciais do desenvolvimento humano, a despeito de décadas de progresso, sem precedentes, em outras áreas das ciências da vida”.

Férias A coluna sai em férias e retorna na segunda semana de setembro.

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador-Geral Alvaro Penteado Crósta Pró-reitora de Desenvolvimento Universitário Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários João Frederico da Costa Azevedo Meyer Pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore Pró-reitora de Pós-Graduação Rachel Meneguello Pró-reitor de Graduação Luís Alberto Magna Chefe de Gabinete Paulo Cesar Montagner

Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Site http://www.unicamp.br/ju e-mail leitorju@reitoria.unicamp.br. Twitter http://twitter.com/jornaldaunicamp Assessor Chefe Clayton Levy Editor Álvaro Kassab Chefia de reportagem Raquel do Carmo Santos Reportagem Carlos Orsi, Carmo Gallo Netto, Isabel Gardenal, Luiz Sugimoto, Manuel Alves Filho, Patrícia Lauretti e Silvio Anunciação Fotos Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti Editor de Arte Luis Paulo Silva Editoração André da Silva Vieira Vida Acadêmica Hélio Costa Júnior Atendimento à imprensa Ronei Thezolin, Gabriela Villen, Valerio Freire Paiva e Eliane Fonseca Serviços técnicos Dulcinéa Bordignon Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju


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LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

Lei de Inovação (nº 10.973) de dezembro de 2004, modificada pelo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação publicado em janeiro deste ano (Lei nº 13.243), determina que todas as universidades públicas brasileiras tenham um núcleo de inovação tecnológica (NIT), o que vem representando um grande desafio para a maioria das nossas instituições na última década. Uma pesquisa de fôlego junto a 16 universidades apontadas como referências no tema da inovação e empreendedorismo (sete do Brasil e nove do exterior) traz uma contribuição valiosa para o enfrentamento deste desafio. “A gestão da inovação em universidades: evolução, modelos e propostas para instituições brasileiras” é o título da tese de doutorado de Patricia Tavares Magalhães de Toledo, orientada pela professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, no âmbito do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências. “O grande mérito da tese está na análise conceitual e também analítica, com uma mostra importante de universidades brasileiras e do exterior. São dados primários indisponíveis ao público, que não encontraremos fazendo buscas na rede ou nos portais destas instituições. As informações existem apenas na tese”, ressalta a orientadora Maria Beatriz Bonacelli. “Além das entrevistas in loco, foi distribuído um questionário muito bem recebido e com um percentual significativo de respostas. A aluna esmiuçou tema por tema, transformando tudo em propostas com um olhar para o contexto brasileiro, de modo que nossas universidades se inspirem nas experiências internacionais.” Patricia Toledo atuou por nove anos na Agência de Inovação Inova Unicamp, como diretora de Propriedade Intelectual para Ciência e Tecnologia, e hoje cuida da gestão de inovação em uma empresa privada da área de energia. “Iniciei esta pesquisa ainda na Unicamp, quando várias perguntas me incomodavam em relação à participação das universidades na inovação: por que estas não eram procuradas pelas empresas como fonte de inovação; por que as empresas investem tão pouco em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, e por que este pouco é investido mais em equipamentos e não em projetos para criar produtos inovadores; como as universidades poderiam se organizar para obter uma estrutura de gestão e inovação mais efetiva, com os resultados de suas pesquisas gerando novas tecnologias para o mercado.” Segundo a autora da tese, nas últimas três décadas, universidades de todo o mundo têm se estruturado para atuar de forma mais abrangente nos sistemas nacionais de inovação (SNI), ao passo que as brasileiras só passaram a lidar mais intensamente com este desafio nos últimos dez anos. “Nossas universidades mais ativas em inovação e empreendedorismo buscam mecanismos que permitam maior aproximação com a sociedade, sem comprometer a essência do trabalho acadêmico. Nesse contexto, o objetivo da tese é propor diretrizes para a melhoria de modelos de gestão da inovação, e contribuir para a modernização de políticas e de marcos legais de estímulo à CT&I.” A pesquisadora lembra que o país não possuía um marco legal que regulamentasse a parceria universidade-empresa para inovação até a promulgação da Lei de Inovação em 2004, que inclui a determinação de que todas as universidades públicas tenham um NIT. “A Inova Unicamp foi criada antes, em 2003, com um modelo até mais abrangente do que a lei viria a pedir. UFMG e UFRGS também já possuíam organizações semelhantes, mas a maioria das universidades teve que se mobilizar para criar seus NIT.” Em 2007, a Inova Unicamp, justamente por seu pioneirismo, foi contratada pela Finep para um projeto visando à formatação de um programa de capacitação para difundir não apenas a sua experiência, mas outras que

Publicação Tese: “A gestão da inovação em universidades: evolução, modelos e propostas para instituições brasileiras” Autora: Patricia Tavares Magalhães de Toledo Orientadora: Maria Beatriz Machado Bonacelli Unidade: Instituto de Geociências (IG)

Pesquisa analisa gestão de inovação em universidades Pesquisadora estudou experiências bem-sucedidas em 7 instituições brasileiras e em 9 do exterior Fotos: Antonio Scarpinetti

Patricia Tavares Magalhães de Toledo, autora da tese: “O objetivo da tese é propor diretrizes para a melhoria de modelos de gestão da inovação, e contribuir para a modernização de políticas e de marcos legais de estímulo à CT&I”

servissem de referência no Brasil e no mundo. Patricia Toledo, que já mantinha boas relações com professores do DPCT, viu neste projeto o mote para a pesquisa de doutorado. “Estudei experiências virtuosas em gestão da inovação de 16 universidades de cinco países: Estados Unidos (Califórnia, Utah, Pensilvânia, Michigan, MIT e Georgia Tech), Reino Unido (Cambridge), Israel (Hebraica), Chile (PUC) e Brasil (Unicamp, USP, Unesp, UFMG, UFRJ, UFSCar e UFRGS).”

EXPERIÊNCIAS EXITOSAS

Patricia escolheu universidades brasileiras que já haviam alcançado maturidade na gestão da inovação, a exemplo da Unicamp, a fim de estudar como estavam se organizando e como poderiam melhorar inspirando-se em instituições de referência do exterior. “No caso da PUC do Chile, quis incluir uma referência sul-americana. O governo chileno implantou uma política nacional de estímulo ao empreendedorismo não apenas em universidades e instituições de pesquisa, mas oferecendo vistos e ajuda financeira para empreendedores de outros países que queiram montar empresas de base tecnológica no país.” Em relação aos Estados Unidos, a autora da tese destaca a existência de uma cultura já fortemente voltada para a inovação no país. “A participação das universidades norte-americanas na inovação começou a ser organizada bem antes do Brasil, a partir da década de 1980. Com a evolução do conceito de sistemas de inovação, as universidades passaram a ser provocadas e estimuladas a contribuir de forma mais ampla, não só através de ensino, pesquisa e extensão, mas com a chamada terceira missão ampliada: a empreendedora, que estimula a criação de novos empreendimentos a partir de seus resultados. A própria cultura americana favorece o empreendedorismo.” O Reino Unido, na opinião da pesquisadora, adota uma abordagem até mais agressiva que os EUA para criação de empreendimentos a partir de tecnologias desenvolvidas na universidade. “Fiquei um mês em Cambridge observando como eles pensam as tecnologias universitárias que podem ser investidas para virar pequenas empresas, que depois se tornam grandes empresas – e como isso é revertido para a universidade investir em novas pesquisas, num círculo

A professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, orientadora do estudo: “O grande mérito da tese está na análise conceitual e também analítica, com uma mostra importante de universidades brasileiras e do exterior”

virtuoso. Cambridge, uma cidade medieval e pequena, hoje abriga o sistema mais empreendedor da Europa – o Silicon Fen, em analogia ao Silicon Valley na Califórnia.” Patricia Toledo mostrou concretamente na tese o que era apenas presumido: que este círculo vicioso ainda acontece muito pouco no Brasil. “Temos poucas spin offs, o que ficou atestado no estudo. Os dados que apresento foram levantados pelas instituições a meu pedido, ou seja, não são monitorados sistematicamente; não se trata de uma atividade priorizada mesmo em universidades como Unicamp, UFMG e USP, que já criaram spin offs.” De acordo com a autora da pesquisa, o governo chileno, por exemplo, está oferecendo recursos financeiros diretamente para agências como a Inova, a fim de que amadureçam e se estruturem de maneira mais profissional para cumprir esta missão. “O mesmo acontece na Inglaterra desde os anos 2000, com o lançamento de editais do governo para receber destas agências projetos voltados a incrementar determinada atividade. A falta de financiamento sistêmico para os NIT é um aspecto que pontuei na tese. Temos apenas iniciativas pontuais, em volume insignificante, o que dificulta muito a evolução desses núcleos. A Universidade da Califórnia, que também é pública e enfrentava grandes amarras, criou um fundo de investimento para empresas que surgirem na instituição.”

DOCENTE EMPREENDEDOR A pesquisadora finalizou a tese antes da sanção do Marco Legal da CT&I em janeiro, e lamenta que vários dispositivos em discussão no projeto de lei tenham sido vetados. “Um ponto que coloquei como fundamental, não promulgado, diz respeito a oferecer condições favoráveis para que o docente possa licenciar uma tecnologia que inventou e criar uma spin-off, sem prejudicar a carreira acadêmica. Ele pode atuar como líder científico, contribuindo diretamente para a evolução do empreendimento nos primeiros anos de vida, sem ter que se afastar da academia. É um tipo de relação comum no exterior.” A este respeito, a professora Maria Beatriz Bonacelli comenta que as atividades do NIT demandam um perfil de profissional que não se encontra pronto, precisando ser formado. “Este profissional precisa conhecer como

funciona a academia e todo o aparato legal e regulatório (patenteamento, incubação de empresa, elaboração de contratos), além de compreender a dinâmica e as necessidades das empresas, tornando uma tecnologia mais atrativa para que elas invistam. A alta rotatividade de pessoas nos NIT gera descontinuidade neste trabalho de formação.” Patricia Toledo identificou em sua pesquisa três modelos de gestão da inovação: centralizado, em que a universidade aglutina em seu NIT a gestão da inovação, da propriedade intelectual e da interação com empresas, como é o caso da Unicamp; descentralizado, quando já existem vários órgãos cuidando do sistema de inovação, sendo bom exemplo o da Universidade da Califórnia, que mantém um escritório central de menor poder decisório e escritórios autônomos em seus dez campi; e o modelo híbrido, em que há concentração gerencial no NIT e gestão compartilhada de alguma atividade de estímulo à inovação de forma coordenada com outros órgãos da universidade, como ocorre na UFRGS. A autora explica que procurou extrair o melhor de cada modelo para apresentar recomendações ao final da tese. “Uma delas, agora implementada no Marco Legal, é que o NIT possa ter personalidade jurídica própria. Minha proposta vai além, recomendando que NIT também busque a qualificação como uma organização social (OS). Como entidade privada (modelo preponderante no Reino Unido e em Israel e que os americanos começam a adotar), o NIT já não precisa se submeter à Lei 8666, podendo contratar terceiros sem editais ou mesmo funcionários de perfil específico, assegurando ainda a agilidade no uso dos recursos e na formalização de parcerias com empresas.” Para Patricia Toledo, esta questão do modelo jurídico de NIT privado poderia ser conciliada com a liberação do professor para criar uma empresa mantendo a carreira acadêmica. “Seria respeitada a política de conflito de interesses, impedindo que o docente, por exemplo, firme contrato entre a empresa e o seu laboratório. A lei prevê que ele se afaste por três anos para criar uma empresa e, mesmo assim, fica impedido de licenciar sua tecnologia, já que servidor público não pode assinar contrato de natureza comercial com o Estado. Estas são apenas algumas das várias amarras no sistema de inovação que tratei na tese, propondo medidas para solucioná-las.”


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Método explora relação entre fluxo sanguíneo

e atividade cerebral

Pesquisa do Instituto de Física associa a espectroscopia óptica ao eletroencefalograma Fotos: Antonio Scarpinetti

O dispositivo desenvolvido no IFGW: sensores e fibras atuando de modo combinado

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

s tecnologias mais usadas para estudar a atividade cerebral, como a ressonância magnética funcional (fMRI) ou a tomografia por emissão de pósitrons (PET), na verdade não medem diretamente a ação do cérebro: em vez disso, registram o consumo de oxigênio ou o fluxo de sangue para cada área do órgão, partindo do princípio de que, quando usamos mais intensamente uma parte do cérebro – por exemplo, a região ligada à linguagem – a demanda local por energia aumenta, e é atendida por uma dilatação dos vasos próximos e aumento do fluxo sanguíneo. Esse efeito é conhecido como acoplamento neurovascular. “O acoplamento pode parecer óbvio hoje em dia, mas só foi inicialmente descrito no final do século 19”, explica o pesquisador Rickson Mesquita, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. “É algo que tem uma importância muito grande, porque hoje as principais técnicas usadas para estudar o cérebro são baseadas na resposta vascular à atividade. Que essa resposta existe, hoje é óbvio. Como ela é, é uma questão extremamente complexa”. Ele prossegue: “Queremos entender como o cérebro funciona. Se você não sabe como essa atividade neuronal modifica a atividade vascular, você tem pouco conhecimento sobre as técnicas de neuroimagem usadas hoje em dia”. Mesquita é o orientador da dissertação “Uso de técnicas ópticas de difusão para caracterização do acoplamento neurovascular-metabólico em humanos”, defendida por Alexandre Gomes Pinto, que apresenta uma nova combinação tecnológica que permite esmiuçar a associação entre fluxo sanguíneo e atividade cerebral.

perdura até hoje. Montamos um processo de prototipagem, junto com o CTI, para os sensores”. O texto da dissertação aponta “a necessidade de se elaborar um sensor que permita fazer confortavelmente medidas simultâneas de DOS e de EEG na mesma região de interesse, e na presença do couro cabeludo”. O trabalho desenvolvido representa ainda “um passo a mais” na pesquisa com DOS, afirmou o orientador. Os trabalhos do grupo de Mesquita no IFGW já haviam estabelecido padrões para associar a resposta do tecido cerebral à luz ao grau de oxigenação. “Na medida em que a gente consegue medir a resposta cerebral, os valores absolutos da saturação de oxigênio, da concentração de hemoglobina, uma pergunta seguinte foi: como a gente consegue acoplar isso com EEG para medir o acoplamento neurovascular? Então, é uma sequência natural do que já havíamos feito”.

QUESTÕES Entre as perguntas ainda sem resposta sobre o acoplamento, relata Mesquita, está a da proporcionalidade da relação entre consumo de sangue e atividade neuronal. “O mecanismo é linear?”, questiona. “Quer dizer: se dobro a atividade neuronal, eu vou dobrar a quantidade de sangue que vai naquela região? E se eu pego duas atividades neuronais em dois locais diferentes – será a que a resposta vascular é simplesmen-

ÓPTICA O grupo de Mesquita trabalha com espectroscopia óptica de difusão (DOS, na sigla em inglês), uma técnica que mede atividade cerebral a partir do modo como os tecidos da superfície do órgão, o córtex, refletem a luz projetada, através do escalpo, por fibras ópticas. A DOS é uma técnica não-invasiva. Em sua dissertação, Gomes Pinto apresenta um método para associar a espectroscopia óptica ao eletroencefalograma (EEG), que detecta a atividade elétrica do cérebro. O sistema inclui dispositivos especiais para permitir que os fios do EEG, os sensores e as fibras de luz atuem de modo combinado. “Desenvolvemos os sensores em conjunto com o CTI, o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer”, disse Mesquita. “Aproveitamos o fato de que estamos aqui ao lado e iniciamos uma colaboração que

O pesquisador Rickson Mesquita, orientador da dissertação: “A principal consequência do modelo é que a gente acaba dando uma nova opção para inferir o metabolismo de oxigênio do cérebro”

te a soma, como quando uma acontece de modo independente da outra? Então, essas respostas, a gente não sabe”, relata. “Outra pergunta: se tenho uma resposta vascular, ela se deve única e exclusivamente à atividade neuronal? Posso ter uma variação da atividade vascular sem a atividade neuronal, ou de forma inversa: posso ter uma atividade neuronal que não aumente a atividade vascular?” Mesquita aponta que essas questões todas são cruciais porque, quando se usa a resposta vascular para inferir atividade cerebral, é preciso saber exatamente quais são os caminhos pelos quais os dois fenômenos se relacionam. “E aí existe outra pergunta, que é a constatação de que o aumento da atividade vascular é aparentemente maior do que o necessário para suprir a demanda da parte neuronal. Até seis vezes maior, segundo o que se vê na literatura. O que parece ser, como eu diria, entre aspas, um ‘desperdício’ de otimização do cérebro. Você manda mais sangue do que o necessário”.

MODELO Além da associação de sensores, o trabalho de Gomes Pinto produziu um modelo para prever e explicar a associação entre a atividade de EEG e a atividade vascular captada pela DOS. “Fomos um dos primeiros grupos no Brasil a fazer o que a gente chama de neurociência multimodal, que é juntar diferentes modalidades, ou diferentes técnicas, para obter mais informações do cérebro”, disse Mesquita. “E a gente contava com um modelo, baseado em estudos com animais, para tentar entender o acoplamento neurovascular. Adaptamos isso para seres humanos. Porque, de fato, todos os parâmetros de modelos animais são muito diferentes dos parâmetros em humanos”. O novo modelo, relatou o pesquisador, consegue prever a variação do consumo de oxigênio no cérebro a partir da atividade neuronal e vascular. “Isso é algo que não se consegue fazer de modo trivial, ou por simples medição. Então, a principal consequência do modelo é que a gente acaba dando uma nova opção para inferir o metabolismo de oxigênio do cérebro, toda a parte metabólica, a partir da eletrofisiologia e da parte vascular”. Mesquita relata que as técnicas atualmente disponíveis para medir o metabolismo cerebral são todas complexas e invasivas. “Medir consumo de oxigênio é uma coisa que tem um interesse muito grande, caso se queira entender o metabolismo do cérebro, mas você não consegue fazer isso de forma trivial. Já com o nosso modelo, unindo duas técnicas que são muito mais simples, consegue-se prever o metabolismo do oxigênio”.

“A metodologia, utilizada em conjunto com as técnicas de eletroencefalografia e óptica de difusão, apresentada neste projeto, nos oferece uma maneira alternativa de estimar o fluxo sanguíneo cerebral e a taxa de consumo metabólica de oxigênio, quantidades usualmente medidas com técnicas de maior custo, com menor resolução temporal e sem portabilidade”, diz a dissertação, mas com a ressalva: “Embora este projeto pioneiro permita uma estimativa de grandezas tão importantes para entender o funcionamento metabólico e hemodinâmico decorrentes da atividade neuronal, futuras medidas de validação com técnicas independentes serão necessárias”.

CLÍNICA O estudo envolveu dois voluntários humanos saudáveis. “A ideia era mostrar que a técnica é factível. Mais para frente, pretendemos testar como a gente consegue dar escala, porque isso também tem implicação para pacientes que têm doença”, explicou. “Pacientes que têm doenças cerebrais perdem a capacidade de acoplamento neurovascular, esse acoplamento é mal feito em certas situações. Então, se a gente consegue caracterizá-lo para voluntários sadios, isso tem implicações também em pacientes, e para a compreensão das doenças. Já estamos fazendo algumas coisas na clínica”, disse. Gomes Pinto não está mais na Unicamp, mas Mesquita afirmou que as pesquisas continuam, a partir dos caminhos abertos pela dissertação. “Como consequência direta desse trabalho, já começamos a mostrar que o acoplamento neurovascular é altamente não linear”, exemplificou. “A gente vê que, quando há respostas integradas, o cérebro parece ser mais eficiente do que seria previsto só a partir da soma das respostas individuais. Começamos a perceber que a resposta é altamente não linear, mas é algo que estamos caracterizando agora. A dissertação, basicamente, deu toda a infraestrutura para que a gente pudesse fazer isso”.

Publicação Dissertação: “Uso de técnicas ópticas de difusão para caracterização do acoplamento neurovascular-metabólico em humanos” Autor: Alexandre Gomes Pinto Orientador: Rickson Mesquita Unidade: Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW)


5 Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016

Pesquisa utiliza satélite para detectar petróleo na superfície

Imagem: DigitalGlobe

Ilustração artística do satélite WorldView-3

Metodologia é proposta em artigo originado de tese de doutorado ainda em desenvolvimento no IG Fotos: Antoninho Perri

MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

esquisa em desenvolvimento para a tese de doutorado do geólogo Saeid Asadzadeh propõe nova abordagem para promover a detecção direta de petróleo exposto na superfície terrestre. O método utiliza a técnica do sensoriamento remoto, mais especificamente os dados gerados pelo satélite comercial WorldView-3, operado pela empresa norte-americana DigitalGlobe. Os resultados preliminares gerados pelo trabalho, que só será concluído em dois anos, deram origem a quatro artigos que foram publicados nas mais importantes revistas científicas da área. Um deles recebeu o prêmio concedido pelo Geological Remote Sensing Group, da Geological Society of London (Reino Unido). Asadzadeh, que é iraniano, é orientado por Carlos Roberto de Souza Filho, professor titular do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. A tese desenvolvida pelo pós-graduando estuda diferentes sistemas petrolíferos, a partir de ferramentas de sensoriamento remoto. O objetivo é identificar, com o auxílio de sensores no solo, a bordo de aviões ou em satélites, a presença de petróleo na superfície, a distâncias que variam de alguns poucos metros a 700 quilômetros. “No momento, estamos estudando a detecção de hidrocarbonetos na superfície terrestre, o petróleo em particular”, afirma o pesquisador. O professor Carlos Roberto explica que o petróleo pode alcançar a superfície por meio de exsudações naturais. “A despeito de os reservatórios ficarem localizados a certa profundidade, eles não são totalmente selados. Assim, podem ocorrer fraturas que são permeadas pelo óleo, que por sua vez atinge a superfície e fica eventualmente exposto”, detalha. O docente observa que, quando as pessoas pensam em petróleo, normalmente o associam a um óleo escuro, portanto fácil de ser observado. “Mas nem sempre é assim. Existem óleos leves que apresentam praticamente a mesma coloração e viscosidade da gasolina”, informa. Um dos recursos utilizados por Asadzadeh em seus estudos é o satélite WorldView-3, capaz de gerar imagens da ordem de 30 centímetros de resolução espacial. O equipamento possui características sem precedentes. Opera com 16 bandas espectrais, a melhor configuração na história para essa categoria de satélites. Seu antecessor – o ASTER - possuía somente nove bandas no mesmo intervalo do espectro eletromagnético. “O interessante é que uma dessas bandas, que opera na região do infravermelho, é capaz de identificar a assinatura do petróleo. Nem a DigitalGlobe, proprietária do WorldView-3, previa isso. Foram nossos trabalhos recentes que chamaram a atenção da empresa para essa capacidade”, conta o professor Carlos Roberto. Até então, a DigitalGlobe considerava outro conjunto de bandas espectrais, de comprimento de onda mais longo, para identificar hidrocarbonetos. “Nesta faixa, também é possível fazer a identificação. Entretanto, essas bandas espectrais também detectam a assinatura de vários minerais presentes em solos e rochas, o que pode dificultar a detecção direta de petróleo, gerando, por hipótese, resultados considerados falsos positivos”, completa o docente do IG. Na banda sugerida pelos pesquisadores da Unicamp, as “feições” relacionadas ao petróleo são mais fáceis de serem identificadas diretamente.

Para o geólogo Saeid Asadzadeh, autor da tese em andamento, a metodologia pode ser aplicada tanto para localizar possíveis reservatórios petrolíferos de interesse comercial quanto para monitorar eventuais vazamentos em refinarias

Os obstáculos naturais ao uso do satélite para a identificação direta do petróleo, conforme os especialistas, são a presença de nuvens ou de vegetação densa. Esta última, porém, pode contribuir para a identificação indireta do óleo. O professor Carlos Roberto explica que a presença do petróleo no solo normalmente causa algum tipo de estresse nas plantas. “Algumas espécies podem ter o desenvolvimento afetado. Por outro lado, espécies que não deveriam estar num determinado local podem se desenvolver ali, dado que se valem, por exemplo, dos gases emitidos pelos hidrocarbonetos para seu crescimento. A ocorrência de um ou outro caso pode nos fornecer evidência de que há petróleo em determinado local”, pormenoriza. Em seu trabalho, Asadzadeh utilizou o sensoriamento remoto para analisar áreas no Brasil, Irã e Estados Unidos, cada uma com características próprias. Enquanto no Brasil os reservatórios de petróleo estão localizados a significativas profundidades, no

Irã eles ficam praticamente expostos, dado que muitas vezes estão situados a poucos metros abaixo do solo. “Nós solicitamos à DigitalGlobe a varredura dos locais de interesse com o WorldView-3. Depois, fomos a campo para coletar amostras e analisá-las em laboratório. Com isso, conseguimos validar as simulações que fizemos em laboratório acerca da possibilidade de identificar petróleo diretamente na superfície terrestre”, afirma o autor da tese. De acordo com ele, essa metodologia pode ter diferentes aplicações. A primeira delas é localizar possíveis reservatórios petrolíferos para exploração comercial. Outra aplicação é utilizar o sensoriamento remoto para monitorar sítios de refinarias e áreas próximas, para verificar a ocorrência de vazamentos de combustíveis e determinar, consequentemente, ações de remediação. A ferramenta também pode ser utilizada, acrescenta o professor Carlos Roberto, para identificar outros elementos, como metais preciosos ou minerais utiliza-

Segundo o professor Carlos Roberto de Souza Filho, orientador do trabalho, o satélite WorldView-3 dispõe de banda espectral capaz de identificar a assinatura do petróleo presente na superfície terrestre

dos em larga escala pela indústria. “Tudo isso no campo da geologia. Mas há outras possibilidades, como aplicar o sensoriamento remoto para fazer o levantamento de espécies vegetais de uma determinada reserva”, exemplifica o docente do IG. Nessa linha, outro orientando do professor Carlos Roberto está realizando, com o auxílio dessa ferramenta, o mapeamento de espécies da Mata de Santa Genebra, área de proteção ambiental remanescente da Mata Atlântica, localizada na área urbana de Campinas. “Esse trabalho é mais fácil de ser feito em regiões de clima temperado, onde a variedade de espécies não é tão grande. Aqui no Brasil, que tem clima tropical, a diversidade da flora é imensa. Temos inúmeras espécies, de diferentes tamanhos e conformações. Está sendo um desafio fazer essa distinção”, conta o docente do IG. A tese desenvolvida por Asadzadeh, de acordo com o professor Carlos Roberto, se encaixa perfeitamente no perfil dos trabalhos que compõem a linha de pesquisa do seu grupo, que apresenta abrangência internacional. “Eu quero que meus alunos concorram com os melhores estudantes do mundo. Essa busca por qualidade internacional é uma das razões que nos permitiram realizar a pesquisa do Saeid. Até aqui, não gastamos recursos de projeto para utilizar os dados gerados pelo WorldView-3. A DigitalGlobe tem nos cedido as informações gratuitamente, por entender que os resultados que temos gerado e ainda podemos gerar serão importantes inclusive para orientar a construção de novas gerações de satélites”, pontua. O reconhecimento internacional às pesquisas realizadas pelo grupo coordenado pelo professor Carlos Roberto também pesou na decisão de Asadzadeh de vir realizar a pós-graduação na Unicamp. “Na minha visão, a Unicamp exerce a liderança mundial na área de sensoriamento remoto, principalmente quando o assunto é petróleo”, considera o doutorando, que conta com bolsa de estudos concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Segundo o docente do IG, ao longo dos anos o seu grupo alcançou importantes resultados, sendo que vários dos estudos mereceram premiações de destacadas entidades científicas nacionais e internacionais. Outra conquista citada por ele foi a estruturação do laboratório, graças a financiamentos de agências de fomento não somente do Brasil, mas também do exterior. “Nós contamos com o apoio da Fapesp, CNPq, Finep, Petrobras e Nasa, entre outros. Recentemente, superamos a primeira etapa de um edital internacional para a realização de nova pesquisa na área”, adianta. Questionado se os resultados obtidos até aqui com a tese de Asadzadeh demandariam alguma ação no âmbito da proteção intelectual, o docente do IG diz que esta questão ainda está sendo analisada. Ele explica que os dados gerados pelo satélite não podem ser protegidos, visto que não pertencem à Unicamp, mas sim à DigitalGlobe. “O que nós estamos estudando é eventualmente pedir o depósito de patente de softwares de detecção ou de alguns dos métodos que temos desenvolvido. Outra possibilidade é criar e patentear bibliotecas espectrais. Nesse caso, os dados relacionados às assinaturas espectrais de hidrocarbonetos e suas misturas com outros materiais geológicos, por exemplo, poderiam ser de interesse da indústria”, infere.


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Campinas, 8 a 1

Cartografia d

Dissertação aborda a representação do maravi LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

m estudo sobre a representação do maravilhoso – um apanhado de seres, povos, ilhas e países fantásticos – no imaginário medieval e renascentista, mostra como a visão de mundo pelo homem vai se modificando ao longo do período, vindo inclusive a se tornar, posteriormente, uma justificativa para o racismo e a escravidão. “Um maravilhoso imaginário” é o título da dissertação de mestrado do historiador Leonardo Meliani Velloso, que inclui uma minuciosa análise da cartografia medieval como receptáculo deste imaginário. A pesquisa teve a orientação do professor Paulo Celso Miceli, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Leonardo Meliani aborda os chamados livros de maravilha, ou mirabilia (do verbo mirar), do final da Idade Média, que estão inseridos na antiga tradição de descrição de lugares fantásticos localizados nos extremos do mundo conhecido. “Eu analiso especialmente dois livros, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento (ambos do século 14), que trazem conteúdos similares, mas intenções diferentes. O primeiro é um relato de viagens e, o segundo, um livro de geografia, que se propõe a descrever todos os países conhecidos até então, com seus respectivos brasões – esta obra tem servido como referência para estudos em heráldica.” O historiador também procura traçar as origens da representação do maravilhoso conversando com obras da Antiguidade (a exemplo de a História, de Heródoto, e História Natural, de Plínio, o Velho) e da alta Idade Média (como as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha). “Os livros de maravilha trazem o blêmio (homem sem cabeça e o rosto no peito) de Heródoto, o cinocéfalo (homem com cabeça de cachorro), a Fênix, o grifo (cabeça e asas de águia e corpo de leão) e outras criaturas da mitologia grega. Existe uma permanência deste imaginário que chega até as narrativas de viagem.” Meliani reservou um capítulo para um histórico da cartografia produzida no período, seguindo a divisão em três grupos de mapas proposta pelo historiador português Luís de Albuquerque: as representações esquemáticas, o mapa T/O e os enciclopédicos (grandes atlas do Renascimento). “Os mapas esquemáticos dividem o mundo por zonas climáticas (os polos, os trópicos e o círculo equinocial). Havia a crença de que era habitável apenas a zona temperada do norte, entre o círculo equinocial e a região polar, onde estava o mundo conhecido; a zona temperada do sul também seria habitável, mas desde que se atravessasse a zona tórrida (do Equador), algo tido como impossível.” O mapa T/O, segundo o pesquisador, também é esquemático e apresenta a Terra dividida nos três continentes então conhecidos – Europa, Ásia e África – cortados ao meio pelo Mediterrâneo e os rios que, acreditava-se, nasciam no ‘Paraíso Terrestre’ e alcançavam o Mar Oceano. “Os rios, o Mediterrâneo e o Mar Oceano formam um T e um O. Além disso, o T forma uma cruz, refletindo forte representação teológica da Terra, dada por Santo Agostinho e outros teólogos da Idade Média. É comum, também, ver os três continentes com os nomes de Sem, Cam e Jafé, ou seja, o mundo tripartido entre os filhos de Noé.” O autor do estudo segue explicando que os mapas enciclopédicos ainda carregam esta característica esquemática (com o Mar Oceano e a representação do T rearranjada na figura de Cristo), mas já procurando repre-

Publicação Dissertação: “Um maravilhoso imaginário” Autor: Leonardo Meliani Velloso Orientador: Paulo Celso Miceli Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Imagens: Divulgação

sentar tudo o que se conhecia sobre o mundo. “Vemos representações mais detalhadas da Europa, África, Ásia e de cidades, pessoas famosas, povos, figuras mitológicas e cenas religiosas. É comum encontrar Jerusalém do centro do mapa, devido ao imaginário de que o centro espiritual do mundo, a ‘Terra Prometida’, deveria ser também o centro do mundo físico.” Outra representação comum apontada por Leonardo Meliani é a do “Paraíso Terrestre”, tanto nos mapas como na literatura de viagem. “Há um debate constante sobre este imaginário: alguns representam o paraíso com as figuras de Adão, Eva e a árvore do fruto proibido; outros não entendem o paraíso como um lugar maravilhoso e perfeito. A sua localização é mais um motivo de debate: se para a teologia cristã o paraíso está a leste, as tradições pagãs europeias, como a escandinava, representam este lugar maravilhoso, fértil e de enormes fortunas a oeste – a exemplo do mito da ilha de Hy-Brazil.” Entretanto, com a chegada do homem europeu à América no final do século 15, há um deslocamento do “Paraíso Terrestre” da Ásia para a o novo continente. “O horizonte maravilhoso é deslocado, incluindo outros mitos, como o ‘País das Amazonas’, de quan-

do sir Walter Raleigh chegou à Amazônia e registrou em seu diário a visão dos índios de cabelos longos e peles lisas, portando arco e flecha. Da mesma forma, a visão do europeu ao chegar à América é de um lugar fértil, rico em frutas, fauna e flora. Tudo isso que vemos representado nos mapas e na literatura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento.”

AS CINCO TRADIÇÕES

A partir do terceiro capítulo, Meliani passa a cumprir a intenção do seu estudo: mostrar como este imaginário vai se modificando ao longo do período, com suas permanências e diferenças. “Foco as cinco tradições culturais que desenham este imaginário: a tradição clássica (greco-romana), germânico-escandinava, gaélico-bretã, hebraico-cristã e a oriental. Da tradição clássica trabalho com pensadores como Heródoto, Hesíodo e Plínio, o Velho. Plínio escreveu a obra História Natural, que foi de grande influência para As Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, um livro lido ao longo de toda a Idade Média, o que significa dizer que este conhecimento da antiguidade se propaga, ainda que existam modificações ao longo do período.”

O pesquisador vê os escandinavos, que depois seriam os vikings a invadir a Europa Continental e as Ilhas de Bretanha, e os germânicos do norte da Europa, como povos com similaridades culturais que o levaram a agrupá-los na tradição germânico-escandinava. Pelo mesmo motivo, reuniu todos os povos da Gália e da Bretanha na tradição gaélico-bretã. “Já a tradição hebraico-cristã é de imensa importância, visto que a teologia cristã marca todo o imaginário do período. Por último, temos a tradição oriental, agrupando povos do Oriente Médio e Extremo Oriente. Poucas obras do mundo oriental chegaram à Europa, mas mais relevantes são as imagens que os ocidentais faziam do Oriente: seja do sarraceno ou árabe como inimigo da cristandade, seja do Extremo Oriente como horizonte onde se encontrariam tesouros e o paraíso terrestre.” De seu apanhado de representações do maravilhoso nestas tradições culturais, o autor da dissertação destaca a figura do gigante, que habita o imaginário do homem do período. “Vamos encontrar o gigante nas mitologias escandinava e grega, nos livros de viagem do final da Idade Média e do Renascimento e mesmo em obras de literatura como Gargântua e Pantagruel, de François Foto: Antonio Scarpinetti

O historiador Leonardo Meliani Velloso, autor da pesquisa: “Tudo isso que vemos representado nos mapas e na literatura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento”


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14 de agosto de 2016

de maravilhas

ilhoso no imaginário medieval e renascentista

Na sequência, os mapas de Ebstorf, Hereford e T/O (acima): estudo apresenta um histórico da cartografia

Rabelais. Também vemos os homens com particularidades físicas: além do blêmio e do cinocéfalo, podemos encontrar um homem de orelhas muito grandes, outro com o pé enorme que o protege do sol, o hermafrodita, a sereia. E os animais fantásticos: o grifo, o dragão, a serpente marinha e a quimera (mistura de animais diversos).” Meliani abordou ainda os lugares fabulosos como o País das Amazonas e a Hiperbórea – país setentrional onde as pessoas viveriam centenas de anos. “Exemplo interessante é o reino de Preste João, um país cristão no meio do mundo muçulmano. Durante a Idade Média, uma carta de Preste João chega a alguns reis europeus, deixando-os fascinados, especialmente os portugueses, que enviam diversas expedições, todas mal sucedidas, para encontrar um reino que seria riquíssimo, onde o trono do rei era em ouro maciço e cravejado de joias – a idealização do reino cristão perfeito.”

O PORQUÊ

DA REPRESENTAÇÃO Ao procurar entender o porquê da representação destes lugares fabulosos, o historiador conclui que, para o imaginário

medieval, não existia diferença entre o que hoje sabemos ser real e o fantasioso. “O maravilhoso era tudo aquilo que fascinava. Não se diferenciava a Fênix da águia, eram duas aves; o grifo era um animal tão fantástico quanto o elefante; Prestes João era tão impressionante quando o imperador Khan de Catai – hoje sabemos que os Khan da China existiram, ainda que não fossem como descritos por Marco Polo. Importava que fossem figuras maravilhosas.” Voltando aos seus dois documentos principais, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento, Leonardo Meliani divide as descrições em três partes: homens e mulheres, animais e plantas, e cenários. “Em relação aos povos, descreve-se o que era diferente. Jean de Mandeville, ao chegar à Núbia, escreve que ‘os núbios são cristãos, porém negros’; não precisava descrever a religião dos núbios, pois seu leitor era um cristão igual, o diferente estava na pele. Da mesma forma, ao descrever os gregos, ele não vai se ater à fisionomia, mas ao cristianismo ortodoxo e seus rituais diferentes. Em lugares onde as pessoas andavam nuas, destacava-se a nudez.” O pesquisador vê na descrição do que é diferente uma questão de alteridade, sustentando-se no conceito de François Hartog sobre as duas formas de descrever o outro: a inversão ou a diferenciação. “No caso, o outro é o oposto de mim (anti-A) ou o diferente de mim (A e B). Percebe-se ainda uma gradação. Jean de Mandeville, ao descrever povos similares, começa pelos ‘cristãos imperfeitos’ como os gregos, que celebravam a missa de forma diferente. Em seguida, o exemplo dos sarracenos, que eram de outra religião e a seguiam com retidão, podendo ser convertidos em bons cristãos. E, no último grau de descrição positiva, o Khan de Catai, que apesar de não ser cristão, era admirável e um exemplo a ser seguido pelos cristãos.” Por outro lado, outros povos não mereciam a empatia de Jean de Mandeville, o que leva Leonardo Meliani a recorrer a um conceito de Todorov, sobre ‘o outro’ positivo e ‘o outro’ negativo. “Mandeville descreve alguns povos muçulmanos, como os beduínos, enquanto bárbaros em quem não se podia confiar; os povos antropófagos já caem no monstruoso e não são tratados como homens, ficando ao nível dos blêmios e dos cinocéfalos. Colombo, quando chega à América, vê o índio bom, possível de ser catequizado, e o índio mau, a ser escravizado. Se o negro era tão diferente, um ser inferior, para os europeus era justificável escravizá-lo. Esses discursos de negatividade e monstruosidade vão ser utilizados para justificar outros discursos que se propagam para muito além do imaginário, como a escravidão e o racismo. A ideia do meu estudo é justamente entender como este imaginário está representado e o que ele acarreta.”

Livros circulavam entre os iletrados O historiador Leonardo Meliani sustenta que embora os livros de maravilha fossem lidos por uma elite intelectual da corte e do clero, o imaginário ali descrito também afetava a população de forma geral. “Em O Queijo e os Vermes, famoso livro de micro-história, Carlo Guinzburg conta sobre Menocchio, um moleiro perseguido pela Inquisição, que possuía vários livros, entre eles As Viagens de Jean de Mandeville. Menocchio trabalhava em um moinho, o que atesta que os livros de maravilha circulavam entre a população comum.” Foram registradas aproximadamente 250 cópias do livro de Mandeville espalhadas pela Europa, em latim, inglês, francês, espanhol, italiano e, com o advento da imprensa, a obra se tornou ainda mais frequente. “É verdade que havia poucas pessoas letradas, mas temos a questão da oralidade, que é bastante forte na Idade Média. O próprio Marco Polo ditou as suas viagens para um escriba. O viajante voltava e simplesmente contava sobre os lugares que visitou, descrevendo suas maravilhas, como fazemos hoje.” Meliani pôde confirmar a importância da oralidade medieval nos próprios livros de maravilha, sendo que a descrição do autor era tomada como autoridade, sem contestação. “Chegando à ilha de Lango, Mandeville afirma que ali está um dragão, a filha de Hipócrates, convertida na criatura mitológica: ‘Assim me disseram, pois eu não vi’, acrescenta. Não se contestava a oralidade do outro: ele não precisava ver o dragão, simplesmente porque lhe disseram que estava ali. Da mesma forma, descreveu a Fênix conforme os sacerdotes

lhe contaram: que a ave fabulosa surgia de 500 em 500 anos e se deixava arder em braseiro, para em seguida renascer das próprias cinzas.” A propósito, o pesquisador explica que há um debate se Jean de Mandeville percorreu tantos lugares, sendo quase unânime que não, e que sua própria identidade é debatida, com a hipótese de que ele seria o alter ego de outro escritor, François de Bourgogne. “Mandeville se apresenta como um cavalheiro inglês e como tal era lido. Já no primeiro capítulo de As Viagens..., afirma que descreverá o caminho para Jerusalém: sai da Inglaterra, atravessa a Europa, descreve o Oriente Médio e segue além da Terra Santa, chegando à China e a ilhas do Extremo Oriente – é uma viagem praticamente impossível para a época.” Segundo Leonardo Meliani, era comum que os autores de livros de viagem descrevessem o que realmente viram e, também, fizessem compilações de outras obras. “Durante a Idade Média, eram práticas comuns se apropriar de outros textos ou utilizar o nome de autores já reconhecidos para valorizar o que se escrevia. O Khan de Catai de Jean de Mandeville é praticamente uma cópia do imperador descrito por Marcolo Polo. O Libro del Conosçimiento tem intenção enciclopédica, descrevendo cada cidade com seu brasão do lado, mas os países são os mesmos e ambos os livros mencionam o reino de Preste João e Khan da China, assim como povos e monstros parecidos. O autor do Libro é anônimo, mas a escrita arcaica e as cópias limitadas confirmam a hipótese de que se trata de um monge espanhol.” Imagens: Divulgação

À esquerda, cinocéfalo, blêmio, homem de pé gigante e homem de orelhas imensas; acima, Fênix


8 Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016

Enfermeira desenvolve protocolo para a reutilização de cateteres Estudo desenvolvido no HC resultou em validação e dissertação de mestrado Fotos: Antoninho Perri

CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

s cateteres de eletrofisiologia são utilizados para diagnóstico e terapêutica de arritmias cardíacas em pacientes que não respondem a tratamento medicamentoso. Por meio de anéis dispostos em suas extremidades, eles captam os estímulos nervosos do coração detectando anomalias. Os dois modelos disponíveis são introduzidos através da veia femural. O cateter de diagnóstico se destina a localizar o ponto responsável pela anormalidade e o terapêutico ou de ablação, para a sua “queima”. Nesses procedimentos são utilizados cateteres especiais, não tunelados, de alto valor agregado. O custo médio desses cateteres está em torno de R$ 4.500,00 e são empregados pelo menos dois por paciente, dependendo das dificuldades do exame. O reembolso praticado pelo SUS cobre em média apenas o custo de um cateter, o que torna imperioso o seu reúso, que é descrito na literatura especializada. No Brasil, as normas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estabelecem que caso o serviço de saúde opte por reutilizar ferramentas ou dispositivos hospitalares deverá estabelecer protocolo e validá-lo, embora não existam orientações para tanto. Com o objetivo de elaborar e validar um protocolo para reutilização de cateteres de eletrofisiologia, não tunelados, estudo foi desenvolvido no Hospital de Clinicas (HC) da Unicamp pela enfermeira Mirtes Loeschner Leichsenring, responsável pelo grupo de reúso do hospital, orientado e coorientado, respectivamente, pelos médicos Plínio Trabasso e Maria Luiza Moretti, docentes da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp na disciplina de Infectologia. O trabalho centrou-se na forma de limpar, esterilizar e validar todo o processo. A propósito, a pesquisadora explica: ”Embora se encontrem na literatura várias publicações de diferentes países que referendam a reutilização desses cateteres, não existe conformidade entre os métodos utilizados nem tampouco descrição de validação das etapas realizadas”. A pesquisa, que deu origem à dissertação de mestrado, levou ao estabelecimento de um protocolo de limpeza e esterilização, validado na prática clínica, e constitui a primeira publicação do gênero no Brasil. O estudo de custo-minimização empregado pela autora revelou economia de 84% no custo do cateter, considerando sete usos, e mostrou a viabilização do procedimento no HC da Unicamp, em um universo, como tantos outros no Brasil, escasso de recursos, pois os custos do procedimento são muito superiores ao que o SUS reembolsa. O processo empregado atende a legislação vigente em relação ao reúso, propiciando segurança ao paciente, além de garantir sustentabilidade econômica e ambiental. A reutilização de dispositivos médicos, rotulados pelos fabricantes como de uso único, chamados de materiais não permanentes, é tema dos mais polêmicos na área da saúde. A atual legislação brasileira permite a reutilização desses dispositivos, mas estabelece que haja um protocolo de processamento, no qual os critérios de validação aplicados devem ser apresentados de forma detalhada, sendo cada serviço de saúde responsável legal pelo processamento praticado em sua instituição. A justificativa básica para a reutilização é econômica e, neste contexto, encontram-se os cateteres de eletrofisiologia.

Cateter (destaque) durante testes no Hospital de Clínicas da Unicamp: sete meses de experimentos

No desenvolvimento do processo de limpeza foram realizados vários experimentos. A cada etapa não efetiva sucedia-se o incremento de um novo processo ou produto. O trabalho foi iniciado com uma limpeza manual com solução de detergente enzimático, evitando-se molhar ou imergir todo o cateter, pois se temia que o contato do líquido com as estruturas elétricas pudesse comprometer a performance do cateter, temor eliminado em testes subsequentes. O detergente enzimático, de eficiência maior que os comuns, é usual em hospitais, pois contém protease, amilase e lipase, responsáveis pela quebra e remoção das proteínas, amidos e gorduras existente no sangue, proporcionando uma melhor eficiência no processo de limpeza dos instrumentais em central de matérias dos hospitais. Para constatar a total remoção de sangue dos cateteres foram utilizados dois métodos. O primeiro constou da observação de todo o cateter em microscópio esteroscópio com aumento do campo de visão de até 80 vezes. Dessa forma, sempre que fosse observada presença de sangue, um novo incremento no processo de limpeza era acrescentando. Em decorrência, incorporou-se o uso de máquina de lavar ultrassônica (sonificação). Nestes casos, o tempo do ciclo inicial foi de cinco minutos sendo, depois, padronizado em 30 minutos. Somente após esse tempo de sonificação, constatou-se a remoção de todo o sangue passível de se observar pelo microscópio esteroscópio.

Mas para comprovar, ainda, a efetividade da remoção do sangue foi utilizado um teste rápido, (HemoCheck-S®), muito sensível e específico, capaz de detectar até 0,4 microgramas de hemoglobina em qualquer superfície que tenha tido contato com sangue. O uso deste teste levou a incorporação de mais uma etapa no processo de limpeza que foi a imersão da parte do cateter onde estão os eletrodos em água oxigenada por 20 minutos, seguida de uma sonificação em solução de detergente enzimático por 10 minutos. Para o desenvolvimento de todo este processo foram utilizados cerca de 70 cateteres de eletrofisiologia, em um trabalho de sete meses. Depois destas fases o cateter foi encaminhado para esterilização em óxido de etileno, em firma especializada, que visava garantir que o equipamento estivesse totalmente estéril, ou seja, livre de quaisquer microrganismos e perogênio, que é um produto eliminado pelas bactérias Gran negativas e que em contato com a corrente sanguínea leva a um choque que pode ser fatal para o paciente. O limite tolerado para essas endotoxinas bacterianas é de 0,5 EU/mL. Os primeiros laudos emitidos mostravam que os cateteres tinham valores de pirógenos acima desse valor máximo, problema que foi imediatamente contornado quando as lavagens passaram a ser feitas em água filtrada e não mais em água de torneira. Estava consolidado o protocolo, realizado durante 36 meses, que utilizou cerca de 350 cateteres, dois quais 144 de ablação.

COMPLEMENTAÇÕES

Paralelamente foram também verificadas a integridade e funcionalidade dos cateteres e realizada uma avaliação econômica no contexto do HC da Unicamp. A propósito, Mirtes esclarece: “Constatamos que, em média, depois da sétima utilização, esses dispositivos começavam a apresentar problemas de desgaste e precisavam ser descartados e estabelecemos então como parâmetro esse número de uso. Mesmo assim, eles são testados pelo médico antes do uso, e devidamente descartados diante de quaisquer problemas mecânicos”. Por sua vez, um estudo do custo-minimização teve o objetivo de avaliar a repercussão que o descarte ou reutilização teriam no orçamento do hospital. Para tanto, a autora utilizou um estudo processo já existente. O resultado mostrou uma economia de 84% sobre o custo do cateter, quando utilizado sete vezes, o que permite cobrir os gastos decorrentes do procedimento. Ela enfatiza: “Sem essa economia não teríamos condições de bancar aqui no HC o número de atendimentos que fazemos”. Conclui-se que o processamento foi validado em todas as fases, tanto da limpeza como da esterilização, com resultados que demonstraram eficácia do processo. Ou seja, ausência de material orgânico detectável nas superfícies do cateter e resultados de ensaios laboratoriais que comprovaram a esterilidade do cateter, com resultado de culturas negativas e presenças abaixo dos níveis estabelecidos em normas, de resíduos de óxido de etileno e de endotoxinas. Dessa forma a reutilização desses cateteres pode ser considerada segura para os pacientes e demonstrou ser economicamente significativa na realidade do HC da Unicamp.

Publicação

DESENVOLVIMENTO

DO TRABALHO

Dentre os diversos modelos de cateteres, o de eletrofisiologia de ablação, utilizado para “queimar” o ponto do coração do qual provém o impulso cardíaco não desejável, foi considerado o cateter desafio por apresentar maior dificuldade de limpeza. A viabilidade de sua limpeza poderia, portanto, ser estendida para os demais tipos de cateteres.

Embora o trabalho validasse os processamentos em apenas uma marca de cateter, à medida que produtos de outros fabricantes sejam utilizados, o processo de validação precisa ser repetido, procedimento agora simplificado porque já existe um protocolo estabelecido.

A enfermeira Mirtes Loeschner Leichsenring, autora da dissertação: “Constatamos que, em média, depois da sétima utilização, esses dispositivos começavam a apresentar problemas de desgaste e precisavam ser descartados”

Dissertação: “Desenvolvimento e validação de protocolo para reutilização de cateter de eletrofisiologia no HC Unicamp” Autora: Mirtes Loeschner Leichsenring Orientador: Plínio Trabasso Coorientadora: Maria Luiza Moretti Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)


9 Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016 Fotos: Divulgação

Pesquisa aponta menor presença de espécies em determinadas áreas SILVIO ANUNCIAÇÃO silviojp@reitoria.unicamp.br

pesar de preservada, uma mesma área de proteção ambiental pode apresentar, dentro do seu espaço, diferenças significativas sobre a distribuição e maior ou menor presença de espécies de animais. Pesquisa inédita desenvolvida na Unicamp mostrou que variáveis antrópicas podem ser determinantes para uma menor distribuição e ocorrência de mamíferos de médio e grande porte no local, mesmo que a área esteja sob alguma proteção. As variáveis antrópicas estão relacionadas à interferência do homem no meio ambiente. O estudo também analisou outras variáveis, como as ambientais e geográficas. O estudo, conduzido pela bióloga Mariana Nagy Baldy dos Reis, avaliou a Serra do Japi, localizada nos municípios paulistas de Jundiaí, Cajamar, Cabreúva e Bom Jesus de Pirapora. A Serra do Japi é uma das últimas grandes áreas de mata atlântica contínua no Estado de São Paulo, tendo sido tombada pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), como monumento natural do Estado de São Paulo. Dada sua importância para a conservação das espécies, a Serra do Japi encontra-se localizada dentro de uma área declarada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Reserva Mundial da Biosfera. Os principais resultados da pesquisa apontaram que variáveis antrópicas diminuíram a presença de espécies de mamíferos no local, entre os quais frugívoros (macacos, pacas, veados, entre outros) e carnívoros (jaguatiricas, gatos-do-mato, entre outros). Os mamíferos frugíveros e carnívoros são grupos considerados chaves no papel ecológico de dispersar sementes (frugivoros) e regular a população de presas (carnívoros). “Na Serra do Japi existe a Reserva Biológica Municipal (Rebio), que é o local mais restritivo ao homem. Há também uma área envolta da reserva que é a zona de amortecimento e, depois, uma área natural tombada. Portanto, são três graus de proteção, indo do mais protegido, que é a reserva, para o menos protegido, que é a área tombada. Quanto mais o sistema de proteção for restritivo à presença humana, maior a variedade de espécies, e consequentemente, de grupos funcionais de mamíferos”, explica a pesquisadora Mariana Nagy Baldy dos Reis. Ela defendeu tese de doutorado recentemente sobre o tema. O trabalho, conduzido junto ao Programa de Pós Graduação em Ecologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, foi orientado pela professora Eleonore Zulnara Freire Setz, que atua no Departamento de Biologia Animal da Unidade. Houve coorientação do pesquisador Adriano Garcia Chiarello, da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. Uma parte do doutorado foi desenvolvida junto ao Patuxent Wildlife Research Center, vinculado ao United States Geological Survey (USGS), instituição de pesquisa do governo norte-americano. No centro de pesquisa, Mariana Nagy Baldy dos Reis foi orientada pelo pesquisador James Nichols. O trabalho também contou com a colaboração do professor Milton Cesar Ribeiro, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Rio Claro. Houve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “A principal recomendação que os resultados trazem é uma atenção especial sobre qual sistema de proteção vai ser criado e mantido. Antes da pesquisa não se tinha claro como as diferentes regras de manejo das áreas protegidas podiam influenciar a ocupação e o uso do habitat das espécies estudadas”, revela a autora do estudo. Ainda de acordo com ela, não basta, portanto, que a área esteja preservada. “Há diferenças significativas de ocupação dos mamíferos dependendo dos regimes de proteção estabelecidos e das características do habitat, como por exemplo, densidade de estradas, qualidade da cobertura florestal, entre outras. Nossos resultados indicam a sensibilidade de grupos-chave de mamíferos a pressões antrópicas, mesmo em áreas

Registros de animais em armadilhamento fotográfico: pesquisadora constatou menor distribuição e ocorrência de mamíferos de médio e grande porte

Ação humana afeta

mamíferos do Japi Foto: Antoninho Perri

A bióloga Mariana Nagy Baldy dos Reis, autora da tese: “Quanto mais o sistema de proteção for restritivo à presença humana, maior a variedade de espécies”

A pesquisadora informa no seu trabalho que, além de ser uma área importante para a preservação das populações de espécies locais, sua proximidade com matas preservadas das serranias do litoral e do complexo Cantareira/Mantiqueira fornece um possível corredor de fauna. “Por outro lado, devido a sua localização entre o eixo São PauloJundiaí-Campinas, a área sofre, sobretudo com o crescimento imobiliário, descarte de lixo e atividades de caça e pesca.”

MODELOS DE OCUPAÇÃO Na pesquisa, foram amostrados 45 sítios de mata atlântica utilizando armadilhamento fotográfico, coleta de fezes e testes de playback. Conforme a autora do estudo, foi utilizado um método de detecção/não-detecção para estimar a ocupação dos mamíferos e o grau de suas funções ecológicas. Mariana Nagy Baldy dos Reis esclarece que médios e grandes mamíferos exercem importantes funções ecológicas para a manutenção e equilíbrio dos ecossistemas. Nesse sentido, o estudo apontou que as áreas com maior grau de proteção apresentaram mais funções ecológicas de mamíferos do que áreas com menor grau, essas ainda que protegidas. “As análises de dados foram realizadas durante o estágio sanduíche no USGS Patuxent Wildlife Research Center, sob orientação do James Nichols. Utilizamos os modelos de ocupação, que são modelos matemáticos que estimam a probabilidade de uma área estar ocupada por uma espécie e a relação dessa ocupação com as características da área, levando em consideração a probabilidade de detecção da espécie.” mais conservadas e protegidas. Meu trabalho reitera a importância de se ter áreas de alto grau de proteção para a conservação efetiva de mamíferos e de suas funções ecológicas”, considera. Mariana Nagy Baldy dos Reis informa que fatores antrópicos foram os que mais influenciaram uma menor ocupação de mamíferos de médio e grande porte, sobretudo os grupos considerados chaves, como os frugívoros e carnívoros. Entre os fatores, destacam-se, segundo a pesquisadora, maior densidade de estradas e áreas mais distantes da reserva, o local mais restritivo. “Estas características diminuem a presença desses animais: quanto mais estrada, quanto mais distante o local amostrado da reserva, e quanto menor a qualidade da ve-

getação, menor a ocupação desses mamíferos. Os fatores antrópicos foram mais determinantes para essa menor ocupação do que variáveis ambientais e geográficas, como declividade, altitude e densidade hidrográfica”, especifica. A autora do trabalho acrescenta que a Serra do Japi pode ser considerada, de modo geral, como uma área bem preservada. “Toda sua extensão está sob alguma categoria de proteção, seja em forma de reserva biológica, zona de amortecimento e área natural tombada.” Ainda segundo Mariana Nagy Baldy dos Reis, a Serra do Japi é uma das poucas áreas que recebeu alto grau de indicação pelo programa Biota Fapesp para criação/ampliação de sua Unidade de Conservação de Proteção Integral.

Publicação Tese: “Ocupação e uso da paisagem por mamíferos de médio e grande porte em um grande remanescente de Mata Atlântica” Autora: Mariana Nagy Baldy dos Reis Orientadora: Eleonore Zulnara Freire Setz Coorientador: Adriano Garcia Chiarello Unidade: Instituto de Biologia (IB) Financiamento: Capes e Fapesp


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O enigma do vampiro POR WILTON JOSÉ MARQUES will@ufscar.br

o exercício crítico, a prerrogativa de conferir maior ou menor importância estético-histórica à obra literária está essencialmente ligada, entre outros aspectos, às inúmeras possibilidades de interpretação que, porventura, tal obra possa vir a suscitar nos leitores. O que de antemão indica o quão difícil é a realização de uma leitura que, por sua vez, venha a ocupar o lugar de referencial fundante dentro da própria crítica literária. Exercício deveras difícil, mas não impossível. É esse o caso, por exemplo, da leitura da obra de Dalton Trevisan feita por Berta Waldman. Em Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan, recém-lançado pela Editora da Unicamp – e que, nas palavras do organizador do volume, Hélio Seixas de Guimarães, “é uma espécie de retorno de Berta Waldman à literatura brasileira” –, a autora retoma, em forma de livro, a obra do autor curitibano, de quem, a despeito de outros horizontes de pesquisa, nunca se descuidou. Em sua essência, o livro, dividido em duas partes, além de trazer, na primeira, o já clássico ensaio “Do vampiro ao cafajeste”, também oferece ao leitor, na segunda, outros 17 ensaios. Em “Do vampiro ao cafajeste”, realçando de início o que, para muitos, era defeito do autor, o mais do mesmo da insistência temática e da indeterminação do foco narrativo de seus contos, Berta Waldman, invertendo esse até então lugar-comum da crítica, não apenas salienta que o “defeito”, na verdade, é “virtude”, pois se trata de intenção estética e marca distintiva, como também, ao lançar mão da metáfora do vampiro em franco diálogo com a figura do cafajeste, que, por sua conta, liga-se à tradição

crítica do velho malandro já identificado por Antonio Candido, ilumina e amplifica a leitura dos contos, mostrando que, ao fim e ao cabo, “não se trata de um Vampiro de Curitiba, mas de vampiros que emergem de Curitiba”. Ainda segundo a autora, na pena de Dalton Trevisan, “os vampiros perdem as asas e a altura, nacionalizam-se, empreendem um voo rasante, cujo resultado é sua imbricação numa história de província que, ressalvadas as proporções, é a história do país”. Desfeito o enigma do vampiro, os 17 ensaios da segunda parte do livro acompanham de perto o desenvolvimento da obra de Dalton Trevisan e, ao mesmo tempo, reafirmam sua força literária. Ao insistirem na temática da violência e, sobretudo, na sua banalização, tais obras continuam afiadas e atuais. Aliás, num dos ensaios, sintomaticamente chamado de “A incrível arte de se repetir”, Berta Waldman observa que “só mesmo a persistência e a técnica apurada de Dalton Trevisan podem sustentar o difícil equilíbrio entre a repetição e a originalidade que caracterizam toda a sua obra”. No prefácio, Modesto Carone afirma que o livro de Berta Waldman, captando “as linhas de força de uma obra em progresso”, cristaliza-se como indispensável, tanto que, ainda para o crítico, “nenhum estudo exigente sobre o contista estará em condições de dispensá-lo como referência básica”. Por fim, e parodiando aqui uma dedicatória da autora num distante maio de 1990, pode-se dizer que ler uma obra como Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan dá sempre a sensação de que vale a pena aprender... Wilton José Marques é professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira da UFSCar e autor de, entre outros, O poeta sem livro (Editora da Unicamp, 2015).

Painel da semana 

Painel da semana  Computação aplicada às ciências do esporte - A Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp sediará nos dias 8 e 9 de agosto, o I Simpósio Internacional de Computação Aplicada às Ciências do Esporte. O evento, que é realizado em conjunto com a Faculdade de Educação Física (FEF) e que faz parte das comemorações dos 50 anos da Unicamp, receberá palestrantes nacionais e internacionais de diversas instituições de ensino. A abertura do Simpósio será às 9h30, no Auditório da FCA. O evento está sob a organização do professor Luciano Mercadante. Programação, inscrições e outras informações no link http://www.fca.unicamp.br/portal/comunicacao/noticias/897-fca-abriga-simposio-internacional-de-computacao-aplicada-as-ciencias-d. Para mais detalhes ligue para 19-3701-6656 ou envie mensagem para cristiane.kampf@fca.unicamp.br  Redação científica - O Espaço da Escrita oferece aos docentes, pesquisadores de carreira, aos alunos de graduação e aos de pós-graduação dos campi da Unicamp em Limeira, o curso básico “Método lógico para redação científica”. Será no dia 8 de agosto, às 9 horas, no Auditório PA03 da Faculdade de Tecnologia. O curso terá 8 horas/aula e será ministrado pelo professor Gilson Luiz Volpato (Unesp/Botucatu). Ele foi organizado para todos que queiram aprender do zero ou aperfeiçoar a escrita de textos acadêmicos desde a perspectiva da ciência empírica. Mais detalhes no link http://www.cgu.unicamp. br/espaco_da_escrita/workshop_metodo_logico_redacao_cientifica_limeira.php  Vestibular - Em reunião realizada no dia 5 de abril de 2016, na sede da Fuvest, em São Paulo, os responsáveis pelos Vestibulares da USP, Unesp, Unicamp, Unifesp, ITA, Famerp, PUC-SP, Famema, PUC-Campinas e Mackenzie estabeleceram o calendário dos principais eventos dos seus respectivos vestibulares, para facultar a participação dos candidatos interessados em mais de um processo seletivo. As inscrições terão início dia 8 de agosto (nova data) e deverão ser feitas até dia 1º de setembro.  Processos eletrônicos/digitais: conceitos, estratégias e legalidade - Fórum será realizado no dia 10 de Agosto, das 8h30 às 17 horas. Organizado por Neire do Rossio Martins, destina-se a docentes e discen-

SERVIÇO Título: Ensaios sobre a obra de Dalton Trevisan Autora: Berta Waldman Organizador: Hélio de Seixas Guimarães Páginas: 288 Editora da Unicamp Área de interesse: Literatura Preço: R$ 58,00 www.editoraunicamp.com.br

Teses da semana 

tes. Inscrições abertas. Mais detalhes no site http://www. foruns.unicamp.br/foruns/projetocotuca/forum/htmls_descricoes_eventos/tecno83.html  O Brasil, o G20 e os BRICS: diplomacia financeira em tempos de crise - Seminário será realizado no dia 10 de agosto, a partir das 9h30, no Auditório Jorge Tápia, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Será ministrado pelo professor José Gilberto Scandiucci Filho, da Academia Diplomática do Ministério das Relações Exteriores (Divisão de Política Financeira). Scandiucci Filho é diplomata desde 1999 e desde então tem trabalhado com o comércio internacional e questões financeiras. Possui doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp e sua tese se refere ao sistema monetário internacional durante o padrão ouro-dólar (período pósguerra). O evento é organizado pelo Cecon - Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica e tem como público alvo a comunidade do IE. Mais informações pelo e-mail gaguiari@unicamp.br.  O intelectual feiticeiro - A Editora da Unicamp e a Casa do Professor Visitante (CPV) convidam para o lançamento do livro O intelectual feiticeiro - Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil, do pesquisador Gustavo Rossi, doutor em antropologia social pela Unicamp, com pós-doutorado pelo Departamento de Sociologia da USP e pela Universidade de Princeton. O lançamento e um bate-papo com o autor acontecem no dia 10 de agosto a partir das 18h30, na CPV (Av. Érico Veríssimo, 1251, distrito de Barão Geraldo, Campinas - SP). O intelectual feiticeiro trata da trajetória do jornalista, etnógrafo e fol¬clo¬rista Edison Carneiro (1912-1972), intelectual baiano, cujos trabalhos esti¬veram decisivamente implicados no desenvolvimento das pesquisas sobre as relações raciais e as culturas de origem africana no Brasil.  Migrações internacionais - O Observatório das Migrações em São Paulo, em parceria com o Museu da Imigração, o Centro de Estudos da Metrópole e o Observatório Internacional de Políticas Públicas, dá continuidade ao Ciclo Internacional de Palestras, desta vez, com a participação do professor João Peixoto, da Universidade de Lisboa. A palestra “Novas correntes e contracorrentes atlânticas: as migrações do Brasil para Portugal nas últimas décadas” acontecerá no dia 12 de agosto, às 10 horas, no Museu da Imigração, em São Paulo. Na mesma ocasião serão lançados os Anais do Seminário “Migrações Internacionais, Refúgio e Políticas”. O evento é organizado pela professora Rosana Baeninger e se destina a pes-

Eventos futuros 

quisadores, alunos de pós-graduação e demais interessados no tema das Migrações Internacionais. Informações: 19-3521-5913, e-mail roberta@nepo.unicamp.br.

Teses da semana  Artes: “Tríptico de Machado de Assis op. 141 de Achille Picchi: aspectos interpretativos por meio da análise poético musical” (mestrado). Candidata: Rafaela Haddad Costa Ribas. Orientadora: professora Adriana Giarola Kayama. Dia 10 de agosto de 2016, às 9 horas, na sala 3 da CPG do IA.  Ciências Médicas: “Protocolo de avaliação do desempenho ocupacional de idosos com deficiência visual e a classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde- CIF” (doutorado). Candidata: Aline Murari Ferraz Carlomanho. Orientadora: professora Rita de Cassia Ietto Montilha. Dia 8 de agosto de 2016, às 14 horas, no anfiteatro CPG da FCM.  Computação: “Design e desenvolvimento de um ambiente de programação tangível de baixo custo para crianças” (mestrado). Candidata: Marleny Luque Carbajal. Orientadora: professora Maria Cecília Calani Baranauskas. Dia 8 de agosto de 2016, às 14 horas, no auditório do IC2 do IC. “Problemas de localização de instalação estocásticos kníveis” (mestrado). Candidato: Lucas Prado Melo. Orientador: professor Lehilton Lelis Chaves Pedrosa. Dia 12 de agosto de 2016, às 14 horas, no auditório do IC2 do IC.  Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo: “Contribuição de restauros florestais para serviços ecossistêmicos hídricos” (mestrado). Candidato: Fernando Ravanini Gardon. Orientadora: professora Rozely Ferreira dos Santos. Dia 12 de agosto de 2016, às 9 horas, na sala de defesa de teses 2 do prédio de salas de aula da FEC. “A avaliação modal como método de previsão da suscetibilidade de estruturas a efeitos de segunda ordem” (mestrado). Candidato: Daniel Giorgi Reis. Orientador: professor Luiz Carlos Marcos Vieira Junior. Dia 12 de agosto de 2016, às 14 horas, na sala de defesa de teses 2 do prédio de salas de Aula da FEC.

Destaque do Portal 

 Engenharia Elétrica e de Computação: “Um modelo para extrair conhecimento de artigos científicos utilizando redes complexas” (mestrado). Candidato: Leonardo Maia Barbosa. Orientador: professor Romis Attux. Dia 10 de agosto de 2016, às 14 horas, na sala PE12 da FEEC. “Análise da taxa soma para canais massive MIMO utilizando medidas em 10 GHz” (doutorado). Candidato: Claudio Ferreira Dias. Orientador: professor Gustavo Fraidenraich. Dia 11 de agosto de 2016, às 14 horas, na FEEC. “Fluxo de carga trifásico desacoplado para sistemas de distribuição desequilibrados: uma abordagem baseada na teoria das componentes simétricas” (mestrado). Candidato: Thiago Ramos Fernandes. Orientador: professor Madson Cortes de Almeida. Dia 12 de agosto de 2016, às 14 horas, na sala PE12 da FEEC.  Engenharia de Alimentos: “Avaliação da qualidade e potencial bioativo de bebidas de fruta: aplicação da espectroscopia no infravermelho e quimiometria” (mestrado). Candidata: Elem Tamirys dos Santos Caramês. Orientadora: professora Juliana Azevedo Lima Pallone. Dia 12 de agosto de 2016, às 10 horas, no auditório do DCA da FEA. “Avaliação da qualidade e potencial bioativo de bebidas de fruta: aplicação da espectroscopia no infravermelho e quimiometria” (mestrado). Candidata: Elem Tamirys dos Santos Camarês. Orientadora: professora Juliana Azevedo Lima Pallone. Dia 12 de agosto de 2016, às 10 horas, no auditório do DCA da FEA.  Geociências: “Influência do padrão espacial do uso do solo urbano e da proximidade de criadouros do Aedes aegypti na ocorrência de casos de dengue, durante a epidemia de 2013 em Campinas-SP” (mestrado profissional). Candidata: Jéssica Andretta Mendes. Orientador: professor Marcos Cesar Ferreira. Dia 9 de agosto de 2016, às 9 horas, na sala B do DGRN do IG.  Linguagem: “O valor das línguas no mercado linguístico familiar: políticas e ideologias linguísticas em famílias Sul-coreanas transplantadas” (mestrado). Candidata: Tatiana Martins Gabas. Orientadora: professora Terezinha de Jesus Machado Maher. Dia 11 de agosto de 2016, às 9h30, na sala de defesa de teses do IEL.  Química: “Hidrogéis de PVA e HPMC mucoaderentes para liberação de óxido nítrico” (mestrado). Candidato: Vicente Gomes Oliveira. Orientador: professor Marcelo Ganzarolli de Oliveira. Dia 12 de agosto de 2016, às 14 horas, no miniauditório do IQ.


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Método determina idade cronológica de jovens e adolescentes Foto: Antoninho Perri

Avaliação é feita a partir dos índices de maturação dos terceiros molares CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

necessidade de se determinar cada vez com maior precisão as idades de 14 e 18 anos em indivíduos vivos sem documentos é extremamente importante em vista de questões legais e judiciais. Nessas ocasiões tem que ficar claro que os envolvidos em crimes ou delitos têm mais ou menos de 14 anos ou já alcançaram a maioridade penal. Mesmo porque há um significativo número de jovens em processos criminais que não possuem qualquer tipo de documento de identidade ou certidão de nascimento que permitam confirmar suas idades. Processos para determinar a idade desses indivíduos, aliados a outros elementos, podem embasar julgamentos com maior segurança por parte de juízes. Frise-se ainda que, no caso de vítimas de estupros, homicídios e lesões corporais, com menos de 14 anos, os infratores responderão pelos crimes na sua forma qualificada, em que a pena é maior. Nos cadáveres ou ossadas a idade compõe o perfil biológico do indivíduo, que se completa com a determinação da ancestralidade, sexo e estatura, permitindo a identificação do cadáver através de comparações com pessoas desaparecidas. Estas circunstâncias ocorreram a Henrique Maia Martins ao se propor a validar, para aplicação na população brasileira, o método desenvolvido na Itália por Roberto Cameriere, divulgado em 2008, com vistas a determinar com acurácia a probabilidade do indivíduo ter alcançado as idades de 14 ou 18 anos. Natural da cidade do Rio de Janeiro, onde se graduou em odontologia e fez especialização em odontologia legal, ele procurou a Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Unicamp, atraído pelo prestígio da Universidade, para se especializar em radiologia, área do seu interesse. Posteriormente, movido pelo desejo de ingressar na vida acadêmica, inscreveu-se para o mestrado que realizou junto ao Programa de Pós-Graduação em Radiologia Odontológica, orientado pela professora Solange Maria de Almeida Boscolo. Foi quando, pesquisando a área forense, decidiu estudar a possibilidade de validação da metodologia proposta por Cameriere que se vale dos índices de maturação dos terceiros molares relacionando-os com a idade limiar, ou seja, com a possibilidade do jovem ter menos de 14 ou 18 anos ou já ter atingido essas idades. A metodologia adotada utiliza apenas os terceiros molares, os dentes do siso, ainda em processo de desenvolvimento na faixa etária estudada, já que a partir dos 15 anos os demais dentes estão completamente consolidados. Por isso, os terceiros molares são utilizados como marcadores para estimar as idades no final da adolescência e no início da vida adulta. Mesmo assim, esse procedimento não é fácil porque se tratam de dentes que possuem maior variabilidade em relação a

Henrique Maia Martins, autor da dissertação desenvolvida na FOP: “Como Cameriere adota uma nota de corte menor, o seu método apresenta maior segurança por inserir mais pessoas na nota de corte dos 18 anos”

tamanho, forma, tempo de erupção e processo de maturação. Para efeito comparativo, na faixa dos 18anos, ele utilizou também o consolidado e muito usado método de Demirjian, Goldstein e Tanner, surgido no início dos anos 70.

O PROCESSO O processo adotado pelo pesquisador envolve traçar, na radiografia, medidas do terceiro molar. O dente é formado por coroa e raiz. Nos indivíduos em desenvolvimento sua raiz ainda está aberta no ápice, que é sua extremidade. O último estágio de desenvolvimento ocorre com o fechamento desse ápice, quando o dente se encontra completamente formado. Radiograficamente é determinada a medida dessa abertura e de todo o dente. Esses valores são então empregados para a determinação do seu índice de maturação. O pesquisador comparou os índices obtidos com os estabelecidos por Cameriere, que são 0,08 para 18 anos e 1,1 para 14 anos, respectivamente, pois ele estabelece um índice para cada idade. Ele constatou então que esses índices são igualmente aplicáveis para a população brasileira. Esses mesmos valores tinham sido anteriormente validados por estudos realizados na Croácia, na Albânia e em Portugal. Para o estudo, o pesquisador avaliou 420 radiografias panorâmicas de indivíduos, que constavam de um banco de dados da FOP, com idade variando de 12 a 22 anos, atendidos na clínica da FOP, distribuindo-os em grupos. Para os 14 anos ele organizou dois grupos: um deles constituídos por indivíduos com menos e outro com mais 14 anos, situados no intervalo de 12 a 16 anos.

Para os 18 anos ele montou outros dois grupos, um com indivíduos abaixo e o outro com pessoas acima de 18 anos, na faixa etária de 13 a 22 anos. Aplicou então as duas metodologias no universo selecionado para validá-la já que as conclusões de Cameriere baseavam-se na população italiana. Ainda para a idade de 18 anos, ele aplicou na mesma população o método de Demirjian, mais antigo, o que o levou a concluir que, embora os dois processos fossem muito bons, o de Cameriere se mostrou neste caso mais sensível. Com efeito, em relação ao método de Cameriere ele obteve para a idade de 14 anos 79% de sensibilidade – que corresponde ao número de pessoas maiores dessa idade identificadas como tal; 88% de especificidade – que corresponde ao número de pessoas menores dessa idade identificadas como tal; e 91% de probabilidade pós-teste – que é a probabilidade de uma pessoa identificada como maior da idade considerada situar-se como tal. Para a idade de 18 anos os estudos apontaram 82% de sensibilidade, 91% de especificidade e 90% de probabilidade pós-testes. Ainda para esta idade o método de Demirjian levou a 53% de sensibilidade, 96% de especificidade e 93% de probabilidade pós-testes. Para o autor, “estes resultados mostram que o método de Cameriere, que tem acurácia de 90%, pode ser utilizado para determinar se um indivíduo alcançou ou não a idade limiar de 14 ou 18 anos, que foi o objetivo do nosso trabalho”.

RESULTADOS Esses resultados o levam a concluir que o método de Cameriere poderá ser utiliza-

do para estimar se um indivíduo alcançou a idade limiar de 14 anos e se constituir ferramenta útil para apontar se uma pessoa já atingiu maioridade penal. “Em relação aos 18 anos, ele deve se constituir em método de escolha quando cotejado com o de Demirjian”, afirma. Ao comparar os métodos dos dois pesquisadores, Henrique esclarece: “Demirjian divide o estado de mineralização do dente em estágios de forma que, quando atingido o último deles, em que o ápice do terceiro molar está completamente fechado, o indivíduo alcançou os 18 anos. E de fato a possibilidade de acerto é grande porque ele joga a nota de corte para muito alto. Mas, em consequência, muitos indivíduos são classificados como menores embora não o sejam. Como Cameriere adota uma nota de corte menor, o seu método apresenta maior segurança por inserir mais pessoas na nota de corte dos 18 anos”.

Publicação Dissertação: “Avaliação da idade cronológica em adolescentes e adultos jovens por meio da abertura do ápice dentário” Autor: Henrique Maia Martins Orientadora: Solange Maria de Almeida Boscolo Unidade: Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP)


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Fotos: Reprodução

Capas de discos de Nelson Gonçalves: apesar do sucesso, cantor é ignorado na chamada “linha evolutiva da MPB”

Não me tens de regresso PATRÍCIA LAURETTI patricia.lauretti@reitoria.unicamp.br

rancisco Alves, Orlando Silva, Dick Farney... João Gilberto; ou, quem sabe, Francisco Alves, Orlando Silva... e Nelson Gonçalves? Não, este último nunca sucedeu ninguém no que se convencionou chamar de “linha evolutiva da Música Popular Brasileira”. Ele sequer aparece, pouco citado que é entre teóricos e críticos, apesar do grande sucesso com o público. A voz impostada de Nelson Gonçalves já não agradava a crítica pós-bossa nova (aquela que ajudou a construir uma narrativa sobre a história da Música Popular Brasileira), que coloca o intérprete sem destaque, na prateleira dos grandes cantores que não apresentaram grandes novidades ao cenário da MPB. A análise de como se posicionava a crítica antes e depois do conceito de linha evolutiva, em relação a Nelson Gonçalves, é feita na tese de doutorado “O ‘lado B’ da linha evolutiva: Nelson Gonçalves e a ‘má’ Música Popular Brasileira dos anos 1940 e 1950” de Adelcio Camilo Machado, atualmente docente da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). O pesquisador desenvolveu o trabalho sob orientação do professor José Roberto Zan, no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. A ideia de linha evolutiva é posterior ao aparecimento de Nelson Gonçalves no cenário musical. Em 1966, durante uma entrevista à “Revista Civilização Brasileira”, Caetano Veloso mencionou a necessidade da “retomada da linha evolutiva da Música Popular Brasileira” e, dessa forma, abriu a caixa de pandora. A linha evolutiva que levaria à bossa nova passou a servir como referência não só para a crítica, mas para a historiografia da MPB como um todo. Pesquisadores também se esqueceram, por um bom tempo, daqueles que não se encaixavam nos critérios de evolução. Nelson Gonçalves representava uma continuidade de um projeto estético. Enquanto cantava com voz de locutor, surgia outra maneira de usar a voz em canções, mais próxima da fala, que vai desembocar no jeito de cantar da bossa nova, o que a linha evolutiva considera, de fato, uma evolução. Uma comparação possível para entender as mudanças de posicionamento da crítica, em relação ao trabalho dos artistas em diferentes épocas, poderia ser feita a partir da leitura de críticas que envolvessem Francisco Alves e Dick Farney, por exemplo. “Nos anos de 1940 e 1950 Francisco Alves seria muito mais valorizado, mas dos anos 1960 em diante, a coisa muda e então Dick Farney se transforma em um grande precursor do que

Publicação Tese: “O ‘lado B’ da linha evolutiva: Nelson Gonçalves e a ‘má’ Música Popular Brasileira dos anos 1940 e 1950” Autor: Adelcio Camilo Machado Orientador: José Roberto Zan Unidade: Instituto de Artes (IA)

viria a ser a bossa nova. A crítica vai dizer que o canto dele é sofisticado devido ao modelo que foi adotado pela bossa nova. Ou seja, a linha evolutiva constrói um olhar sobre as décadas de 1940 e 1950 que vai negligenciar ou excluir diversos artistas que produziram neste período”, explica o autor da tese. As distinções de gosto que levam às mudanças de posicionamento foram se alterando por uma série de motivos. A década de 1930 marca o período em que a música popular passa a ser aceita. “Até a década de 1920 as práticas populares como o samba eram reprimidas até policialmente. Na década seguinte, com Getúlio Vargas, inicia-se a construção de uma ideia de nação e consequentemente o samba se torna um dos emblemas da cultura nacional”, salienta. Nas décadas posteriores, de 1940 e 1950, o repertório hegemônico vai se redefinindo. “Formas de jazz moderno ainda são vistas com maus olhos pela crítica musical, mas começam a surgir seus entusiastas. No entanto, a partir da consagração da bossa nova, que faz essa nova síntese entre a música brasileira e música americana, e consegue um grande prestígio, isso se inverte”. Nos anos de 1960, complementa Adelcio, o jazz já é visto como uma música sofisticada, refinada, de bom gosto e que os músicos brasileiros têm que assimilar, para se reinventar. Até então Nelson Gonçalves vinha de uma linhagem de grandes cantores. Estava lado a lado com Francisco Alves e Orlando Silva, os maiores da época. As gravações eram em 78 rotações, com apenas duas músicas por disco. Quando grava um primeiro disco de vinil, o chamado Long Play (LP), Nelson escolhe músicas de Noel Rosa. “Ou seja, ele também se articulava com esse segmento que era tido como de bom gosto. Suas canções têm inclusive muitos arranjos que vão utilizar o conjunto regional, que é a instrumentação de violão, cavaquinho e pandeiro, ligada a essa tradição do samba e do choro. Ele passa por este repertório”. O autor do estudo lembra que Nelson tinha prestígio, tanto que durante muitos anos manteve contrato com a RCA Victor, a mesma gravadora do Jacob do Bandolim, por exemplo. Quando surge a bossa nova, Nelson Gonçalves não muda sua maneira de cantar, que perdura até o final da carreira. Em 1959, um ano depois de Chega de Saudade, de João Gilberto, ele lança um disco “com mais qualidade sonora, buscando arranjos com uma sonoridade mais delicada, mas ainda assim cantando de maneira impostada”, afirma o pesquisador sobre o LP Nelson Gonçalves em Hi Fi.

IDEÁRIO A pesquisa de doutorado também contempla os temas abordados por Nelson Gonçalves e seus contemporâneos. Adelcio comparou canções de mesma temática buscando entender os contrastes com os músicos da “zona sul carioca”, que revelariam a segmentação de gostos em curso. “Nelson estava ligado a um certo grupo que tinha relação com determinado ideário, um padrão moral”. A canção “Meu vício é você”, com letra de Adelino Moreira, cantada por Nelson Gonçalves, tratava uma prostituta com “adjetivos pejorativos”, segundo o pesquisador. A música coloca o homem encantado, mas com uma certa repulsa por uma mulher que

Foto: Antonio Scarpinetti

Adelcio Camilo Machado, autor da tese: “Nelson Gonçalves também se articulava com o segmento que era tido como de bom gosto”

trabalha na noite e, portanto, não se adequa aos padrões morais vigentes. Em contraste, uma canção do Tom Jobim que é “Tereza da praia” cantada por Dick Farney e Lucio Alves, apresenta também uma personagem feminina que não se liga a um relacionamento estável, tal qual seria socialmente esperado, mas sem o julgamento moralista de antes, já que eles concluem que Tereza é da praia e “não é de ninguém”. Da mesma forma em relação ao trabalho, há divergências. No tango “Hoje quem paga sou eu”, Nelson Gonçalves fala sobre a família e a boemia. O trabalho e a família são vistos como sinônimo de felicidade e ventura. Já o botequim leva à ruína do cidadão. Em “Rapaz de bem”, por sua vez, Johnny Alf proclama “No meu preparo intelectual/É o trabalho a pior moral/Não sendo a minha apresentação/O meu dinheiro só de arrumação”. Desse modo, reflete Adelcio, enquanto o repertório de Nelson Gonçalves se mostrava mais próximo a um ideário trabalhista que se difundia entre setores mais populares de sociedade, Johnny Alf se aproximava de

concepções ligadas a segmentos economicamente mais favorecidos, que não precisavam se submeter à rotina do trabalho. Diferenças de tratamentos em outras temáticas como a boemia e o rompimento amoroso também foram verificadas. Para o autor da pesquisa a consagração da bossa nova, especialmente no exterior, articulada a um conceito de modernização do país no governo de Juscelino Kubitschek, foram os principais fatores para a consolidação do que se reconhece como a linha evolutiva e a consequente exclusão de artistas como Nelson Gonçalves. “O que me preocupa como pesquisador é a questão de uma linha evolutiva que acaba organizando uma certa narrativa da música brasileira. Os livros contam essa história, mas se a gente pensar pelo critério de vendagem, por exemplo.... Qual foi o impacto que o Nelson Gonçalves teve na cultura musical daquele período? É uma perda não considerar isso. Embora haja uma seleção em toda escrita da história, é importante que pesquisas sejam feitas para cobrir essa narrativa histórica”.


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