JORNAL DA UNICAMP - EDIÇÃO Nº 402

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Campinas, 14 de julho a 2 de agosto de 2008 – ANO XXII – Nº 402 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Ilustração: Francisco Borges Filho

ENERGIA AMBIENTE TECNOLOGIA (E SOCIEDADE)

Uma contribuição da Unicamp para os debates da 60a Reunião Anual da SBPC

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Ângela Malheiros Luzo Bernardino Ribeiro de Figueiredo Carlos Eduardo Vaz Rossell Carlos Joly Carlos Vogt

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Daniel Hogan Francisco Borges Filho José Armando Valente José Tadeu Jorge Laymert Garcia dos Santos

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Luís Cortez Marco Antonio Raupp Marco Aurélio Pinheiro Lima Maria Ribeiro do Valle Oscar Braunbeck

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Oswaldo Alves Peter Schulz Renato Ortiz Thomas Lewinsohn Wilson Jardim


Universidade Estadual de Campinas – 14 de julho a 2 de agosto de 2008

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OPINIÃO

Marco Antonio Raupp

Reflexões sobre os desafios da ciência brasileira Foto: Arquivo

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á 60 anos a cidade de Campinas foi o local escolhido para a realização da 1ª. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que contou com a participação de 104 cientistas e amigos da ciência. Esse primeiro encontro, em outubro de 1949, marcou a forma como a SBPC se pronunciaria sobre os diversos eventos científicos nacionais. Outras duas reuniões anuais aconteceram em Campinas, em 1963 e 1982, e agora a SBPC retorna à cidade para celebrar 60 anos de uma história que sempre esteve muito próxima e atuante em momentos significativos da vida nacional. Momentos e fatos científicos, sociais e políticos, que moldaram a ciência brasileira, com avanços importantes, mas ainda com muitos desafios pela frente. A SBPC foi criada por um grupo de cientistas brasileiros em um momento da história da humanidade marcado pelo fim da segunda guerra mundial. Em todo o planeta as nações tomavam consciência da necessidade imprescindível de incentivar a ciência para promover o desenvolvimento social e econômico. Esta tomada de consciência é tão marcante no País, que já em 1942 o governo criou os fundos universitários de pesquisa para a defesa nacional, imediatamente após a entrada do Brasil na segunda guerra mundial. Esses fundos propunham-se a “apoiar a contribuição da universidade para a vitória das forças democráticas, por meio da pesquisa e de programas de treinamento”. O governo brasileiro investiu valor equivalente a 60 mil dólares no setor até dezembro de 1946, uma quantia considerável para a época. Este fato demonstra a percepção de que o investimento em educação, ciência e tecnologia é fundamental para o desenvolvimento de qualquer país. Acreditamos que o atual governo também tem esta percepção. Quando o presidente da República lançou o PAC da ciência, fez um pedido para que a comunidade científica acompanhasse o desenvolvimento de todos os projetos, indicando as dificuldades e propondo soluções para as mesmas. E é justamente o que a SBPC tem feito. Em particular, ele mencionou que essa oportunidade deveria estimular a ampla disseminação das atividades por todas as regiões do país. A SBPC tem procurado desempenhar esse papel de consciência crítica da sociedade brasileira no que se refere às atividades de ciência, tecnologia, inovação e educação no País. Paradigmas e pilares do novo século Para atuar como consciência crítica da sociedade devemos refletir e adotar alguns posicionamentos sobre os desafios que a ciência brasileira tem a enfrentar durante a próxima década. Entendemos que esses desafios devem ser considerados à luz dos principais paradigmas já estabelecidos entre as duas últimas décadas do século XX e a primeira década

Livros expostos no Ciclo Básico da Unicamp durante a Reunião Anual da SPBC de 1982: Campinas é sede do encontro pela quarta vez

deste século XXI: a globalização; o desenvolvimento sustentável; e a economia do conhecimento. Os componentes ou pilares básicos destes processos, necessários a qualquer país determinado a enfrentar os desafios e inserirse no novo cenário internacional com vantagem competitiva, são os que seguem: ! Educação de qualidade massificada; ! Fluência entre a geração de conhecimento e a sua transformação em bens com valor econômico; ! nterdependência entre a sustentabilidade ambiental, econômica e político-social; ! Competitividade de empresas com padrão global, capazes de adaptar-se rapidamente às situações de mercado usando o conceito de destruição e construção criativa. Situação brasileira na P&D Nas últimas quatro décadas o Brasil desenvolveu um sistema forte de pós-graduação, pesquisa e desenvolvimento, e com isto a nossa ciência já tem papel de destaque no cenário internacional. No entanto essa base científica cresceu separada do setor produtivo. A industrialização, iniciada no País durante a primeira metade do século XX, seguiu um modelo importador de tecnologias que não exigia a capacitação

tecnológica e inovadora das empresas, hoje caracterizadora do mundo globalizado. O sistema de pesquisa e pósgraduação universitário estabelecido a partir da década de 1950, teve como principal finalidade a formação de pessoal qualificado para ocupar cargos docentes e de pesquisa nas universidades e instituições públicas. Como resultado, o reflexo direto desse esforço de formação acadêmica sobre a nossa economia, sobretudo no avanço tecnológico, tem sido pouco significativo. Esse sistema, que deve ser considerado como um ponto de partida importante para os desafios que temos a enfrentar, possibilitou a criação e o fortalecimento de instituições como o CNPq, a Capes, a Finep, a Funtec e as Fapes estaduais, que ainda mantêm baixa sinergia com a capacidade de desenvolvimento e inovação tecnológica nas empresas. Sabemos que nenhum país consegue desenvolver uma indústria avançada e competitiva, sem que antes seja ele próprio capaz de gerar ciência e tecnologia e agregá-la ao setor produtivo. Não podemos deixar de mencionar as exceções relevantes nesse processo, que se concentraram em setores privilegiados pelo estado brasileiro como o petróleo, o agronegócio, a aeronáutica, e a hidroeletricidade.

Desafios Os seguintes desafios são colocados às atividades de ciência e tecnologia no País. Eles devem ser equacionados e suplantados com legislação atualizada e políticas públicas que abram caminho para uma nova fase de desenvolvimento, sob a égide dos novos pilares e contemplando o bem estar da sociedade brasileira, sobretudo das novas gerações: ! Revolução educacional de grande escala e em todos os níveis, buscando qualidade, universalização, profissionalização, criatividade e flexibilidade; ! Superação das desigualdades regionais, promovendo a ocupação plena, racional e bem distribuída do território com atividades educacionais e de p&d, ocupação esta estratégica e preparada para a incorporação das novas fronteiras do desenvolvimento; ! Promoção da inovação nas empresas, superando o fosso existente entre a universidade e o setor produtivo; ! Criação de uma rede metrológica e de padrões ampla, diversificada e atuante, com capacidade de auferir qualidade entre as relações da exportação, importação, produção e consumo. Ações políticas Para enfrentar com bons resultados os desafios colocados, será necessária a implementação de

ações e políticas públicas, já existentes ou a serem criadas, que garantam a elevação do País a um novo estágio de desenvolvimento social e econômico, apoiado em bases sólidas e menos suscetíveis às oscilações externas políticas e de mercado: ! Início imediato e com a máxima concentração de esforços e investimentos de um plano para a revolução educacional, contemplando a formação qualificada de professores de ciências, matemática e línguas; novas tecnologias de ensino como a educação a distância e o ensino técnico-profissional com qualidade; ! Políticas públicas de estímulo a mecanismos de interação universidade-empresa tais como incubadoras de empresas, parques de ciência e parques tecnológicos; ! Novos e eficazes modelos de financiamento às empresas com base tecnológica; ! Novas e eficazes legislações que dêem segurança jurídica institucional à relação públicoprivado, à propriedade intelectual e às patentes; ! Criação de uma Embrapa para a tecnologia industrial, capitaneando uma rede de institutos tecnológicos estaduais e municipais, trabalhando em temas de interesse da indústria, promovendo serviços tecnológicos e o extensionismo; ! Estabelecimento pleno da rede de metrologia a partir do Inmetro, com capacidade de desempenho que alcance o tamanho da economia nacional; ! Estabelecimento de liderança mundial em ciência e tecnologia sobre florestas e bacias hidrográficas equatoriais, com a elaboração imediata de um plano especial de desenvolvimento educacional, científico e tecnológico para a Amazônia; ! Ampliação com qualidade da plataforma de pesquisa e desenvolvimento nas ciências fundamentais e básicas, nas universidades e institutos governamentais, contemplando a formação de profissionais de alto nível, com flexibilidade e preparo para trabalhar nas empresas. ! E por último, mas não menos importante, a manutenção e aprimoramento de sistemas específicos, que já demonstraram competência, como a rede de pesquisa agropecuária (Embrapa), de pesquisa energética (Petrobrás e hidroelétricas), e aeronáutica (Embraer). O tema desta 60ª. Reunião Anual da SBPC, Energia – Ambiente – Tecnologia, pretende explorar e discutir os caminhos que devemos seguir para buscar a inserção do conhecimento científico no setor produtivo, e como conseqüência, na capacidade de inovação de nossa indústria com sustentabilidade social e ambiental. A Unicamp, instituição que se destaca como exemplo nas parcerias entre a universidade e empresas de tecnologia, é um espaço privilegiado para esses debates. Marco Antonio Raupp é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral Fernando Ferreira Costa Pró-reitor de Desenvolvimento Universitário Paulo Eduardo Moreira Rodrigues da Silva Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Mohamed Ezz El Din Mostafa Habib Pró-reitor de Pesquisa Daniel Pereira Pró-reitor de Pós-Graduação Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Graduação Edgar Salvadori de Decca Chefe de Gabinete José Ranali

EDIÇÃO ESPECIAL – 60ª Reunião Anual da SBPC Coordenação Eustáquio Gomes e Álvaro Kassab Edição Álvaro Kassab Pauta Raquel do Carmo Santos Edição de arte Oséas de Magalhães Edição de fotografia Antoninho Perri Textos Álvaro Kassab, Carmo Gallo Netto, Clayton Levy, Luiz Sugimoto, Manuel Alves Filho, Paulo Cesar Nascimento e Raquel do Carmo Santos Fotos Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti Ilustrações Prof. Francisco Borges Filho (FEC) e André Favilla Arquivo Antonio Scarpinetti Apoio Adriana Lima, Daniele de Almeida Fernandes, Dulcinéa Bordignon, Isabel Gardenal, Luís Paulo Silva e Roberto Costa


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A receita do equilíbrio

Fotos: Antoninho Perri

CLAYTON LEVY clayton@reitoria.unicamp.br

expansão das lavouras de cana-de-açúcar para atender à crescente demanda pelo etanol ainda não ameaça a produção de alimentos, mas a situação poderá se alterar caso o Brasil não adote uma política agrícola eficiente e de longo prazo. A análise é do reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, que no próximo dia 17 abordará o tema “Produção de Alimentos x Produção de Biocombustíveis”, em conferência que integra a programação da 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Engenheiro de alimentos e professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), Tadeu Jorge traça dois cenários possíveis para o país. Se existir uma política agrícola que leve em conta os fundamentos do setor, o Brasil terá condições de conciliar a produção de alimentos e de biocombustíveis, o que garantirá o desenvolvimento do país e dividendos políticos no cenário internacional. Entretanto, se não houver um programa de Estado nesse sentido, o quadro poderá ficar caótico, com uma produção volumosa de biocombustíveis, mas também com carências internas muito acentuadas. Na entrevista que segue, o reitor também chama atenção para um tema que ainda não ocupa o centro dos debates, mas que todos os anos responde por perdas significativas: o desperdício de alimentos no percurso entre a lavoura e o consumidor.

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Jornal da Unicamp – Em sua opinião, há relação direta entre a alta no preço dos alimentos e a produção de biocombustíveis? Tadeu Jorge – Por enquanto, não. Mas poderá existir, caso o Brasil não implemente uma política agrícola eficiente. No momento, alguns fatores provam não haver relação direta entre uma coisa e outra. Uma das maiores altas nos últimos anos ocorreu no preço do trigo, mas não há nenhum milímetro de área de trigo que tenha sido afetada pelo aumento na produção de cana. Outro produto que subiu muito foi o arroz. Não houve avanço significativo da cana sobre essa cultura. Os dados preliminares apontam que a cana está avançando em áreas de pastagem. O único caso em que a produção de biocombustível afeta o preço e a disponibilidade de alimentos refere-se aos Estados Unidos, em função da decisão de destinar milho para a produção de álcool. JU – Quais seriam, então, as causas da recente alta no preço dos alimentos? Tadeu Jorge – Nos últimos anos o acesso das pessoas aos alimentos aumentou muito. Isso na China, na Índia e no próprio Brasil. A adequação da produção para atender ao aumento na demanda demora um certo tempo. A agricultura não apresenta reações imediatas. Não é como petróleo, que basta abrir ou fechar uma válvula para fornecer mais ou menos. Portanto, enquanto a agricultura não responde ao aumento na demanda, os preços vão subir porque é uma oportunidade de negócios para os produtores. JU – O senhor diz que, por enquanto, a produção de biocombustíveis a partir da cana, no Brasil, não representa uma ameaça porque ainda não ocupa o espaço de outras culturas. Mas quais são as garantias de que isso não venha a acontecer no futuro? Tadeu Jorge – Nenhuma. E esse é o grande problema. Da maneira como a agricultura está estruturada no Brasil, a produção de alimentos ou biocombustíveis é pautada quase que exclusivamente pelo mercado. O agricultor decide plantar cana ou feijão por razões econômicas. Nenhum agricultor vai substituir uma cultura lucrativa por outra menos lucrativa. Hoje há uma competitividade entre a cultura de cana e várias outras culturas. A cana está avançando principalmente nas áreas de pastagem porque há pouca produtividade na criação de bovinos. Enquanto o Estado de São Paulo usa um hectare para um boi e meio, a média brasileira fica abaixo de um. Se a média brasileira se igualar à de São Pau-

Entreposto da Ceasa-Campinas: danos geram desperdício e reduzem valor comercial dos alimentos

O reitor José Tadeu Jorge: “É preciso ter uma política agrícola capaz de induzir a ocupação da área agricultável do país de maneira equilibrada”

lo, podemos liberar uma área significativa de pastagem mantendo a mesma produção de carne. Isso significa que, se houver otimização, haverá espaço para as duas coisas. Como a carne é um item importante nas exportações brasileiras, nesse momento não interessa trocar uma coisa pela outra. Entretanto, num momento de dificuldade, isso poderá ocorrer. A questão mais importante dessa competição, porém, ocorre quando pensamos em outras culturas, como arroz, feijão e milho, que estão praticamente restritas ao mercado interno. Nesses casos, estamos mais perto de uma situação em que seria mais vantajoso produzir cana. JU – Como evitar que isso ocorra? Tadeu Jorge – Dotando o país de uma política agrícola capaz de induzir a ocupação da área agricultável do país de maneira equilibrada. O Brasil detém a maior área agricultável do mundo, entre 80 milhões e 100 milhões de hectares, ou seja, área que pode ser ainda destinada à agricultura. Há, portanto, um potencial enorme de crescimento. A ocupação dessas áreas não ocorre naturalmente, tem de ser induzida, seja para produção de cana ou de alimentos. Esse é o papel de uma política agrícola num mercado aberto. O governo tem de criar estímulos, como juros mais baixos, seguro rural mais em conta e providenciar a infra-estrutura adequada. Ou seja, instrumentos que estimulem o produtor a ampliar a área plantada. Além da expansão, também é importante a preservação de determinadas áreas. Uma ferramenta importante é o zoneamento agrícola, criando condições melhores em locais onde a agricultura tem maiores chances de se estabelecer de forma perene e com boa produtividade. JU – Qual é a distribuição territorial e quais as condições das

áreas agricultáveis que ainda não estão sendo aproveitadas? Tadeu Jorge – O grande problema é a infra-estrutura. O Brasil não tem infra-estrutura adequada nem mesmo nas áreas já ocupadas. Menos ainda nas áreas que tem potencial mas não são aproveitadas. Sem que haja uma política indutora, a expansão na fronteira agrícola será muito lenta. Grandes empreendimentos podem dar certo porque estamos falando de projetos que têm viabilidade pela larga escala. Mas o modelo brasileiro para produção de alimentos está baseado em pequenas propriedades, que não têm condições e nem a responsabilidade de criar infra-estrutura. Esse é um papel do Estado. Para ocupar essas fronteiras agrícolas para a produção de alimentos, é indispensável uma política que ofereça suporte de infra-estrutura para que isso ocorra. JU – O senhor diz que a solução passa pela implantação de uma política agrícola. Em sua opinião, o Brasil ainda não tem uma política agrícola? Tadeu Jorge – Não tem. O Brasil sempre teve política econômica para agricultura. Claro que toda política agrícola deve contar com instrumentos econômicos, mas não adianta apenas ter bilhões de reais para financiar a próxima safra. Uma verdadeira política agrícola ataca os problemas inerentes à agricultura. Se o problema é secar feijão na propriedade rural, então o instrumento de uma política consiste em facilitar o acesso do produtor a equipamentos de secagem. Isso pode ser feito, por exemplo, oferecendo juros mais baixos aos agricultores que se comprometerem a usar parte do financiamento na montagem da infra-estrutura necessária ou criando um programa específico para dotar os produtores com essa infra-estrutura. Se o problema é armazenar, pode-se oferecer vantagens para os agricultores que investirem na montagem de silos. Não é simplesmente emprestar o dinheiro para financiar a produção. O financiamento deve ser um instrumento para atacar as questões centrais da agricultura. Ao lado disso, são necessários programas que corrijam vários aspectos, como por exemplo a questão

das embalagens adequadas para transporte e comercialização. JU – A inadequação das embalagens gera perdas significativas? Tadeu Jorge – As perdas são significativas tanto no aspecto quantitativo quanto qualitativo. Nos produtos perecíveis, como hortaliças, as perdas podem chegar a 50%. Isso significa que metade da produção fica pelo caminho e não chega à boca do consumidor. Na cultura de verduras, por exemplo, se não forem empregadas técnicas adequadas de colheita, haverá perdas. O resfriamento do produto é etapa essencial para preservar a qualidade. Se a embalagem não for adequada, ao transportar o produto para o ponto de venda, também haverá prejuízo. E se o produto consegue chegar ao ponto de comercialização, dificilmente escapa da manipulação do consumidor, que tem o hábito de apalpar os alimentos. Claro que alguma perda ocorrerá naturalmente. O que chamo de desperdício são as perdas que acontecem mesmo quando há tecnologia disponível para evitá-las, ou por deficiência na infra-estrutura de transporte, como estradas mal-conservadas. Isso é muito visível nas centrais de abastecimento, onde toneladas de alimentos são literalmente varridas todos os dias. Não que tudo esteja estragado, mas os danos ocorridos reduzem o seu valor comercial, já que o consumidor não leva alimentos com aparência duvidosa. JU – Voltando à questão de uma política agrícola, o senhor acha que o subsídio governamental seria uma alternativa adequada? Tadeu Jorge – Quando você quer implantar um programa, se ele é muito importante para o conjunto da política, não vejo nenhum problema em usar subsídio. Subsídio virou palavrão no Brasil. Nos países europeus passa de 50% do valor da produção e aqui não passa de 5%. O subsídio, por si só, não é ruim. Depende da sua aplicação. Se há um programa a ser implantado e uma meta a ser atingida, não há razão para descartar o subsídio nesse programa específico, até atingir a meta pretendida. O subsídio não deve ser perenizado, mas pode ser um instrumento para

induzir ações. Se há necessidade de aumentar a produção de determinada cultura para garantir alimento à população, não há razão que justifique a exclusão de uma política subsidiada para alcançar esse objetivo. Não faria sentido, por exemplo, subsidiar hoje a produção de soja, que está em expansão e tem mercado. Entretanto, talvez seja interessante subsidiar o trigo, produto que o Brasil ainda importa em quantidades significativas. Em vez de gastar com importação, é melhor gastar com subsídio. Com isso, podemos reduzir as importações, gerar empregos e ter trigo mais barato para o consumidor. JU – Levando em conta todos aspectos que caracterizam a agricultura brasileira, em sua opinião, quais os cenários possíveis no longo prazo? Tadeu Jorge – Se existir uma política agrícola, o Brasil terá uma oportunidade rara de se colocar entre os países desenvolvidos. Trata-se de uma chance imperdível. O país tem todas as condições de conciliar produção de alimentos com biocombustíveis. Mas é necessário uma política que garanta esse equilíbrio. Se isso acontecer, o Brasil desfrutará de uma força política considerável porque contará, ao mesmo tempo, com uma importante fonte de energia e um grande potencial de alimentos. Isso não é banal. Entretanto, se não houver uma política agrícola eficiente, o quadro será caótico. Poderemos alcançar grande produção de biocombustíveis, mas teremos de conviver com carências internas muito fortes. Nesse caso, a receita gerada com os biocombustíveis teria de ser usada para comprar alimentos, o que aprofundaria o nosso grau de dependência. JU – O que está faltando para que essa política seja implementada? Tadeu Jorge – O Brasil tem boas chances de chegar a essa política. Meu receio é que predominem aspectos políticos em detrimento dos interesses nacionais. Não se trata apenas de vontade política, mas também de respaldo político. O país deve tratar essa questão como uma política de Estado no médio e longo prazo. Os resultados não serão imediatos.


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Fotos: Antoninho Perri

Palha e bagaço na ‘linha de produção’ Bagaço de cana usado por usina para produzir energia na região de Campinas: segundo Rossel, o domínio da hidrólise é estratégico para o país

LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

epois de duas décadas ajustando e consolidando o modelo de usina que tem a sacarose da cana como matériaprima na produção de açúcar e etanol, o Brasil vive a transição para uma outra unidade, que pode ser vista como uma fábrica de biocombustíveis. A matériaprima usada nesta fábrica será a biomassa – material lignocelulósico que compõe a estrutura de toda planta. Da cana vai se aproveitar preferencialmente o bagaço, mas também parte da palha que hoje fica no campo, o que contribuirá para o fim das queimadas. “Ocorre que o aproveitamento da biomassa exige uma tecnologia nova e extremamente complexa, ainda não resolvida, que é a hidrólise. O domínio desta tecnologia é estratégico para o Brasil por permitir aumentar a oferta de álcool combustível sem aumentar a área plantada. Seria um fato revolucionário”, afirma o professor Carlos Eduardo Vaz Rossell, que dará conferência sobre o chamado etanol de segunda geração durante a 60ª Reunião Anual da SBPC. Rossell é apontado como o maior especialista em hidrólise no país. Aposentado do Centro de Tecnologia Copersucar, passou a atuar como pesquisador colaborador na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) e no Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp, e como consultor no setor sucroalcooleiro. Integrou o Projeto Etanol, grupo de estudos coordenado por Rogério Cerqueira Leite, e responderá pela área de processo industrial do Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em fase de instalação em Campinas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Otimista, Carlos Rossell reitera a previsão que fez ao Jornal da

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Unicamp em entrevista de um ano atrás, quanto ao domínio desta tecnologia em 2009. “Por sua importância para o Brasil, isso precisa acontecer rapidamente. Para nós pesquisadores, representa um grande desafio que pede a contribuição de toda a comunidade científica numa atividade multidisciplinar, e também do setor produtivo e dos fabricantes de equipamentos. Da parte do governo, já temos a atuação importante da Fapesp e do MCT”. O especialista informa que países como Estados Unidos e Canadá perseguem a tecnologia da hidrólise há duas décadas, dispondo de muito mais recursos, e já estão saindo do laboratório para unidades piloto de produção do etanol a partir dos resíduos do milho. “Dentro de dois a cinco anos, as unidades deverão estar prontas para produzir em escala, mas a questão será o preço deste álcool, inclusive porque elas já contam com fortes subsídios para poderem operar”. Na opinião de Carlos Rossel, o Brasil tem grandes possibilidades de recuperar o atraso graças à cadeia consolidada de destilarias, às quais serão simplesmente acopladas as novas unidades para aproveitamento do bagaço da cana, e principalmente à abundância de matéria-prima, quando os outros países enfrentam sérios problemas para obtenção de biomassa. “Além disso, já formamos um mercado interno que se encontra em expansão devido ao sucesso dos carros flex”. Dominada a tecnologia da hidrólise, uma unidade estaria em condições para produzir em escala em dois anos, considerando o prazo de aquisição de equipamentos e de ajustes e otimização do processo industrial. “A unidade deve passar primeiro por um estágio equivalente ao período de duas safras, produzindo um volume próximo dos 120 mil litros por ano. Com o processo aprova-

do, o salto de escala para até 500 mil litros seria imediato”. De acordo com as projeções feitas no Projeto Etanol, o Brasil precisará produzir 205 bilhões de litros de etanol por ano, a fim de atingir a meta de substituir 10% da gasolina consumida no mundo em 2025. Espera-se que o bagaço e a palha ofereçam um aumento de pelo menos 40% na produção. Carlos Rossell ressalva, contudo, que transformar o país numa potência em biocombustíveis é outro desafio multidisciplinar. “Temos de criar uma infraestrutura de pesquisa e depois a logística para produção, transporte e comercialização”. Aceitação – A transição para o etanol de segunda geração, observa o pesquisador, tornou-se exigência diante da disseminação interna do carro flex, da possibilidade de exportação gerando uma commodity, do aumento do preço do petróleo e dos benefícios ambientais. Entretanto, ainda que se pregue a captação do dióxido de carbono (CO2) – originário da queima de combustíveis fósseis e produtor do efeito estufa –, o álcool da sacarose de cana ainda é alvo de críticas internacionais, associadas às condições de trabalho e à ocupação de terras para cultivo de alimentos ou de preservação. “Tudo isso cria um clima muito favorável para o álcool de segunda geração. Tenho ouvido formadores de opinião que acreditam na melhor aceitação deste etanol, como por exemplo, pela comunidade européia, devido ao reaproveitamento de resíduos e ao nãocomprometimento do uso da terra. É importante ressaltar que este projeto vem sendo minuciosamente estudado desde o início e já nasce atendendo a uma série de pré-requisitos de sustentabilidade”, assegura Carlos Rossell. O professor lembra que os estudos da Unicamp prevêem regras tanto no que se refere à ex-

Carlos Rossel, pesquisador da FEQ e do Nipe: tecnologia promete revolucionar a produção de etanol

pansão das terras para cultivo quanto ao processo de hidrólise. São algumas regras fundamentais: a não utilização de áreas de floresta, matas e margens de rios; não avançar sobre terras agriculturáveis, com aproveitamento de áreas de pecuária extensiva; reverter o ganho econômicosocial para escolas, saúde, empregos; evitar o consumo excessivo de água; não produzir grande quantidade de efluentes sem tratamento adequado; e investimento das usinas para evitar emissões no meio ambiente. Rossel explica os processos químicos disseminados atualmente, em sua maioria, foram desenvolvidos numa época em que os critérios de sustentabilidade – ambientais, sociais e econômicos – ainda não estavam arraigados na sociedade. “Tais processos estão ou terão de passar por uma revisão e adequação. A introdução do etanol de segunda geração será mais racional, com datas definidas para ir atendendo aos critérios, em que pesem as correções naturais de uma tecnologia ainda não estabelecida”. Desafios da hidrólise – A matéria lignocelulósica (biomassa) é composta basicamente por celulose (polímero dos açúcares com seis carbonos), por hemicelulose (outro polímero, mais complexo, com açúcares de cinco carbonos) e por lignina, material estrutural da planta que pode ser fonte de outras matérias químicas ou de combustíveis. A celulose e a hemicelulose podem ser transformadas em açúcares de cuja fer-

mentação se obtém o álcool. Acontece que a natureza impôs um grande desafio aos pesquisadores, fazendo com que os materiais ligniosos, como do bagaço da cana, sejam muito resistentes aos ataques de agentes físicos e biológicos. É uma estrutura muito difícil de ser quebrada. O que se tenta, primeiramente, é promover o abrandamento da estrutura da matéria-prima através de processos físico-químicos, tornando-a mais acessível ao passo seguinte: a adição de resíduos de ácido sulfúrico (hidrólise ácida) ou de enzimas (hidrólise enzimática) para quebrar os polímeros da celulose e da hemicelulose, transformando-os em açúcares fermentáveis. O ataque com ácidos vem sendo experimentado há vários anos, inclusive em escala industrial. Mas a transformação se dá muito rapidamente e, devido às condições agressivas, parte dos açúcares é destruída. O que se procura é reformular o processo com ácido, realizando a reação em meio etanol-água, a fim de resolver os problemas de baixa eficiência e também do custo, que ainda é alto. Em relação à hidrólise enzimática, vale observar que as enzimas já estão presentes na natureza. Uma roupa de algodão em ambiente muito úmido logo vai mofar, por causa da ação de microorganismos que têm um sistema de enzimas chamadas de celulases. As celulares é que permitem quebrar a celulose em açúcares simples, que servem como fonte de carbono e energia para os microorganismos. A dificuldade é que a enzima, em escala industrial, precisa promover a transformação em açúcares muito mais rapidamente. Também deve permanecer estável por longo tempo e não pode ser inibida pelos agentes formados com sua própria atividade. Grande parte da pesquisa está centrada na produção de enzimas mais eficientes.


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O discurso que caiu no vazio O professor Luís Cortez considera que os estudos da Unicamp coordenados por Rogério Cerqueira Leite contribuem para esvaziar o discurso entoado por países europeus, que relacionam a produção de biocombustíveis com a escassez de alimentos e a alta inflacionária no mundo. “Não consigo enxergar esta relação, quando temos 1,5 bilhão de hectares de terras agriculturáveis no planeta e as fontes de bioetanol ocupam apenas 10 milhões – uma proporção de 1.500 para 10. Para mim, está claro que enfrentamos um fenômeno mundial ligado ao preço do barril de petróleo a mais de 140 dólares e à demanda de países emergentes por produtos agrícolas, notadamente da China”. Raciocinando de maneira inversa, o professor questiona se, deixando-se de produzir bicombustíveis, os preços dos alimentos seriam reduzidos aos níveis anteriores. “Prefiro crer na análise da corrente de economistas que vêem uma reacomodação dos preços de produtos agrícolas. Recuando 40 anos, esses preços eram muito maiores em relação ao petróleo e o fazendeiro ostentava status muito melhor, com a mesma área plantada. Aparentemente, os preços estão sendo readequados a patamares médios”. Além de desconsiderar tal discurso, o coordenador de Relações Institucionais e Internacionais da Unicamp é favorável à idéia de o Brasil assumir seu papel de liderança em tecnologia na produção de etanol a partir da cana, associando-se a outros países da América Latina e da África. “São as duas únicas regiões do mundo que, efetivamente, dispõem de terras para produção de biocombustíveis sem afetar o cultivo de alimentos e suas reservas naturais. Nem Estados Unidos e Canadá têm a mesma disponibilidade”. Luís Cortez admite que a criação de infra-estrutura e a qualificação de mão-de-obra nestes países é uma tarefa complicada, mas acredita que o Brasil teria condições de transferir tecnologia e contribuir para formar mestres, doutores e engenheiros, como por exemplo, por meio de um programa de ensino a distância. “Vemos países que são tradicionais produtores de cana e que poderiam usar ao menos o melaço como fonte de álcool, mas importam gasolina”. Países menores como na América Central, segundo o pesquisador, teriam como produzir etanol em escala suficiente com poucas destilarias anexadas a usinas já existentes, enquanto que refinarias de petróleo exigem investimentos altíssimos. “Sinto por parte de outros países a expectativa de que o Brasil assuma uma liderança positiva neste processo. Se o petróleo é símbolo de poluição e de conflitos, o álcool da cana pode se tornar uma bandeira de paz e de desenvolvimento do terceiro mundo”.

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Uma meta a cumprir

Fotos: Antoninho Perri

Entroncamento rodoviário em Campinas: álcool já abastece mais da metade dos veículos leves do país

LUIZ SUGIMOTO

nômica do etanol de milho vendendo bem os subprodutos”. Nesse aspecto, Cortez atenta que o álcool de cana brasileiro, para fechar suas contas, ainda depende bastante do açúcar, cujo mercado é limitado. “Já dominamos um terço do mercado mundial de açúcar e é difícil crescer muito por este lado, mesmo porque se trata de um produto sujeito a grande ingerência política e, em determinado momento, as portas podem se fechar para nós”.

sugimoto@reitoria.unicamp.br

cumprimento da meta de produzir etanol da canade-açúcar em volume suficiente para substituir 10% da gasolina consumida no mundo, até 2025, pode elevar o Brasil do estágio de país medianamente desenvolvido a um patamar comparável ao dos países do sul da Europa, em menos de duas décadas. Esta é a expectativa do professor Luís Augusto Barbosa Cortez, que falará sobre “O etanol como programa de desenvolvimento nacional” na 60ª Reunião Anual da SBPC. “É uma chance histórica, que o Brasil talvez nunca tenha tido. Podemos dar este salto de maneira digna, com muito trabalho e esforço tecnológico, e recorrendo às nossas boas relações diplomáticas para abrir as portas da cooperação e do comércio de uma energia incomparavelmente mais limpa do que a vendida hoje no mundo”, afirma o docente da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp e coordenador a Coordenadoria de Relações Institucionais e Internacionais (Cori). Cortez atribui seu otimismo aos resultados dos estudos encomendados à Unicamp pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por meio do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE). O trabalho foi coordenado pelo professor emérito Rogério Cerqueira Leite, que organizou dois grupos de pesquisa: o primeiro para definir as diretrizes necessárias para que o país cumpra a meta para 2025; o segundo dedicado ao domínio da tecnologia de hidrólise enzimática, com a qual se obterá etanol também do bagaço da cana, dobrando-se a produção sem aumentar a área plantada. Os estudos apontam que o Brasil, a fim de substituir 10% da gasolina consumida no mundo, deve produzir até 200 bilhões de litros de álcool combustível, captando em torno de US$ 60 bilhões anuais em divisas e gerando cerca de 10 milhões de empregos diretos, indiretos e induzidos. Para

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O professor Luís Augusto Barbosa Cortez, da Feagri: “País tem uma chance histórica”

isso, seriam utilizados apenas 3% da área do país. “A cana ocupa uma área que ainda não chegou a 1% e que se concentra no Estado de São Paulo”, diz Cortez. Segundo o professor, o que se pretende é estimular o plantio de cana com maior densidade em outros estados, como os do Nordeste. “O oeste da Bahia, com terras férteis e precipitação média de chuva, tem condições de responder pelo equivalente a toda a produção atual de álcool. No sul do Maranhão e no sudoeste do Piauí, a proximidade do porto é fundamental do ponto de vista logístico, havendo ainda terras disponíveis no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e sudoeste de Minas Gerais”. Luís Cortez ressalta que foram identificadas 17 áreas que, juntas, possibilitariam atingir a meta para 2025 sem prejuízo ao cultivo de alimentos e excluindo as áreas de restrição ambiental, como Amazônia, Pantanal e Mata Atlântica. “Acho que os biocombustíveis podem inclusive contribuir para reduzir o processo de devastação das florestas, ao demandar mãode-obra de baixa e média qualificação. Não teremos cortadores de cana, mas muitos estarão operando máquinas e em outros empregos diretos e indiretos”. Na opinião do pesquisador, trata-se de um modelo interessante de interiorização do desenvolvimen-

to, contemplando principalmente estados que passam por uma situação difícil e representam fronteiras agrícolas. “Seria altamente desejável um projeto para o interior, com a produção de bioetanol e de energia elétrica a partir da cana gerando o progresso e a criação de cidades, melhorando o padrão de vida desta população”. Carros flex – Cortez não vê outro país em condições tão boas para produzir alimentos e bioenergia, capaz de atender a um mercado interno nada desprezível e de se abrir para um futuro de exportação de excedentes. “O álcool já abastece mais da metade dos veículos leves do país e seu predomínio nesta categoria será absoluto, pois em cada dez carros vendidos, nove são do tipo flex. Leve-se em conta, ainda, o peso do álcool anidro na gasolina, que estaria custando perto de três reais o litro, não fosse esta mistura”. O docente da Unicamp observa, por outro lado, que o Brasil representa 2% do mercado mundial para veículos leves, o que significa dizer que o país já está atendendo a 1% da demanda por etanol. “Os Estados Unidos produzem outro 1%, mas à base do álcool do milho, que não apresenta um balanço energético muito bom. É verdade que eles têm como preocupação reduzir a importação de petróleo e conseguem fechar a conta eco-

Peso da pesquisa – A indústria da cana no Brasil já está crescendo num ritmo superior a 10% ao ano e atingiria a meta de produção de etanol para 2025 mesmo sem programas governamentais que induzissem esta expansão, de acordo com Luís Cortez. “As perspectivas de produção são fantásticas. No entanto, precisamos estar atentos à questão ambiental, como por exemplo, buscando menor utilização da água. Para isso, a universidade tem papel fundamental na pesquisa e formação de recursos humanos”. O professor destaca que, em nível estadual, a Fapesp vem tratando o tema como estratégico, fomentando um amplo leque de pesquisas em torno do etanol de cana, enquanto que o MCT está construindo em Campinas o Centro de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), idealizado por Rogério Cerqueira Leite. “O centro será organizado em três áreas importantes: pesquisa básica, pesquisas na área agrícola e em novas tecnologias e pesquisas sobre sustentabilidade”. Antevendo um cenário em que o Brasil estará produzindo não apenas açúcar, etanol e energia elétrica a partir da cana, mas também outros bioprodutos como plásticos, Cortez considera importante desenvolver plenamente as tecnologias de segunda geração, entre elas a hidrólise, para extração de biocombustível do bagaço. “Os mercados americano e europeu aceitariam melhor o chamado etanol de alta eficiência, que do ponto de vista deles seria mais sustentável”.


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Mais produtividade. Com baixo impacto Fotos: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti

PAULO CESAR NASCIMENTO

gia elétrica, por meio de queima em caldeiras, ou em álcool, através de hidrólises. Parte dela pode ainda permanecer sobre a superfície para impedir a erosão, evitar perda de água e incorporar matéria orgânica ao solo”, argumenta.

pcncom@uol.com.br

o momento em que entidades internacionais reclamam do desvio de parte da produção agrícola para a geração de biocombustíveis – e miram com suas críticas o Brasil, principal exportador de álcool do mundo e que usa a cana-de-açúcar para extrair o produto –, a pergunta não poderia ser mais inquietante: a substituição de lavouras tradicionais pelas de cana-de-açúcar é um risco real à produção de alimentos? A resposta: com o uso do solo de maneira mais sustentável será possível ao País atender à crescente demanda mundial pelo combustível de origem vegetal sem que seja necessário à agroindústria da cana avançar sobre vastas regiões e sem afetar a produção de outras culturas. Impulsionado pela demanda pelo álcool, o significativo aumento de produção de cana-de-açúcar nas últimas três décadas no Brasil deu-se por meio da adoção de processos agrícolas e industriais mais eficientes. Mas, chegouse praticamente ao limite do que é possível se produzir por meio da agricultura tradicional, com técnicas convencionais de mecanização e adubação. Portanto, se o Brasil deseja continuar a ganhar produtividade na próxima década – estudos mostram que o País pode multiplicar por dez a sua atual produção de mais de 20 bilhões de litros de etanol até 2025 –, é preciso romper com o sistema de produção bastante conservador que caracteriza a atividade agrícola brasileira e quebrar paradigmas tecnológicos no cultivo da cana, adverte Oscar Antonio Braunbeck, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp. “Hoje, temos por volta de 7 milhões de hectares de cana, e desde o início do Proálcool até agora passamos de um volume da ordem de 50 toneladas/hectare para algo em torno de 80 toneladas. Houve, então, um importante crescimento de produtividade, mas também ocorreu aumento

N

O físico Marco Aurélio Pinheiro Lima: “O desafio é transformar a tecnologia em um processo economicamente viável”

Oscar Antonio Braunbeck, professor da Feagri: “Crescimento da produtividade foi acompanhado do aumento da área plantada”

da área plantada. O desafio agora é aumentar a produção sem ter que aumentar tanto a área”, pondera o pesquisador. Esse horizonte, argumenta ele, traz uma série de benefícios, como redução de custos, proteção ambiental e produção mais sustentável. E nesse cenário, o solo exerce papel estratégico, tornando-se essencial a sua proteção para que possa continuar produzindo por muitas décadas como produziu até agora ou até melhor. “Se, contudo, continuarmos com o modelo clássico de agricultura, isso não vai acontecer”, vaticina Oscar. “É fundamental adotarmos medidas preventivas para evitar que o solo se degrade com o uso abusivo, senão é grande o risco de assistirmos na agricultura uma situação semelhante ao que ocorre na pecuária descontrolada e sem tecnologia, que em muitas áreas do Brasil vem progressivamente degradando as terras”, compara.

A compactação do solo resultante do tráfego de máquinas é um fator limitante à obtenção de maior produtividade agrícola. A técnica denominada tráfego controlado permite a separação permanente das áreas usadas para o desenvolvimento das plantas daquelas usadas para o tráfego dos elementos rodantes. “As áreas de produção, localizadas entre as pistas de tráfego, são usadas exclusivamente para o plantio, sem sofrer a compactação associada ao tráfego. O sistema de tráfego controlado permite uma redução das operações de preparo do solo, resultando em redução de custos e viabilizando o plantio direto”, explica. A técnica de plantio direto, na palha, tem mostrado resultados muito positivos em culturas como soja, milho e trigo, afirma o docente. No caso da cana-de-açúcar, o plantio na palha, sem queima prévia à colheita, proporcionaria benefícios ambientais, econômicos (associados ao aproveitamento energético do palhiço) e contribuiria para a conservação do solo, assegurando a sustentabilidade do sistema. “A biomassa é uma fonte de energia renovável e disponível. Quando a colheita é feita sem queimada prévia, aproximadamente 1/3 da biomassa da canade-açúcar, na forma de palhiço pode ser transformada em ener-

Mecanização – A mudança de paradigma, salienta Oscar, passa obrigatoriamente pela adoção de uma mecanização de baixo impacto para a cultura da cana. Segundo ele, o esquema de mecanização praticado atualmente para a produção da cana envolve um tráfego pesado de equipamentos, como tratores, principalmente durante a colheita e o transporte.

Segunda geração – A mecanização de baixo impacto é um dos projetos do Centro de Ciências e Tecnologia do Bioetanol, que será construído na área do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas. O centro é uma iniciativa do Ministério de Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento de pesquisas orientadas para a produção do etanol de segunda geração, denominação do combustível obtido a partir da conversão da palha e do bagaço da cana-de-açúcar. Estima-se que, com o aproveitamento dessas matérias-primas, será possível elevar em até 40% a atual produção de álcool, sem necessidade de aumentar a área plantada. “A proposta do centro é a de contribuir para assegurar a liderança brasileira na produção sustentada de etanol da cana-de-açúcar, por meio de pesquisas que promovam inovação da cadeia de produção cana de açúcar-bioetanol”, afirma o físico Marco Aurélio Pinheiro Lima, diretor da instituição. “O Brasil tem um programa vencedor, somos muito competitivos internacionalmente, mas desejamos melhorar ainda mais essa condição em um contexto em que o biocombustível aparece de maneira cada vez mais acentuada como solução energética para o mundo.” O Brasil hoje usa basicamente a conversão do caldo da cana em bioetanol. Descartada no processo, a palha é queimada para facilitar a colheita, método com conseqüências ambientais desastrosas. Parte do bagaço já tem destinação mais nobre, ajudando a gerar energia elétrica. Os esforços do centro serão agora os de explorar o potencial de uso do restante da planta, convertendo a biomassa da cana em etanol por meio de hidrólises. “Já sabemos como fazer isso,

Canavial na região de Ribeirão Preto: para especialistas, técnicas convencionais de mecanização e adubação devem ser substituídas por novas tecnologias

porém ainda de forma ineficiente. O desafio do centro é transformar a tecnologia em um processo economicamente viável, capaz de interessar ao setor produtivo”, observa Marco Aurélio. Os estudos agregarão representantes dos diferentes setores envolvidos com a temática do bioetanol no Brasil e pesquisadores multidisciplinares de outros institutos brasileiros. “O centro não pretende fazer uma trincheira de defesa do bioetanol. O que se quer, de fato, é incentivar estudos abrangentes dos aspectos econômicos, ambientais e sociais de toda a cadeia da cana de açúcar, visando à sua maior sustentabilidade”, resume Marco Aurélio. Georeferenciamento – A adoção da agricultura de precisão é outra providência que, na opinião de Oscar, poderá contribuir para aumentar a produtividade da cana para 100 toneladas/hectare nos próximos 30 anos. O que é isso? É tratar cada metro quadrado de solo especificamente em função de suas características, valendo-se de tecnologia já disponível, como dados de georeferenciamento obtidos por meio de satélites e de sensores capazes de captar informações a respeito do terreno e da planta. Esse mapeamento permite ao produtor conhecer detalhadamente o que ocorre em sua propriedade, possibilitando o uso correto de insumos e a adoção de medidas corretivas quando necessárias. Ambos reconhecem que não será fácil mudar a cultura de mecanização da cana em um país como o Brasil, que possui usinas que chegam a 50 mil hectares de tamanho. Trata-se, sobretudo, de tornar as novas tecnologias atraentes para o produtor. A necessária mudança de paradigma ocorrerá na medida em que o segmento produtivo perceber os impactos importantes nos custos e na produtividade, e entender que a adoção de técnicas inovadoras, não convencionais, é o único caminho possível para a garantia do futuro sustentável de seu negócio.


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Terapia em construção

Fotos: Antoninho Perri

MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

médica hematologista Ângela Cristina Malheiros Luzo, responsável técnica pelo Banco de Sangue de Cordão Umbilical do Hemocentro da Unicamp, pesquisa as propriedades das células-tronco há aproximadamente 15 anos. Nesse período, ela foi testemunha de avanços significativos nessa área. Otimista por definição, a pesquisadora considera que os estudos em desenvolvimento tanto no Brasil quanto no exterior abrem possibilidades importantes para o desenvolvimento de técnicas que poderão ser utilizadas no tratamento de variadas doenças. A especialista adverte, porém, que vai levar algum tempo para que a ciência atinja tal estágio. “Ainda precisamos aprender a manipular adequadamente esse material. Para se ter uma idéia, as pesquisas com células-tronco de medula óssea somam 40 anos, e ainda estamos sendo surpreendidos por novidades”, compara. Na entrevista que segue, Ângela Luzo analisa o atual estágio do conhecimento nessa área, destaca os principais desafios a serem superados e defende um maior esclarecimento da população acerca das reais potencialidades das células-tronco. “É preciso dar esperança às pessoas, sim, mas é necessário dizer que os resultados não são para amanhã. É preciso dizer que vai demorar”, alerta.

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Jornal da Unicamp - Qual o estágio das pesquisas com células-tronco no Brasil? A liberação do uso das células embrionárias dará um novo impulso aos estudos? Ângela Luzo - Foi criada uma expectativa muito grande em torno da liberação das células-tronco embrionárias para as pesquisas científicas, como se não existissem estudos nessa área antes delas. É bom lembrar que o transplante de medula óssea, que é realizado há 40 anos no país, insere-se nesse esforço científico. O uso de células-tronco obtidas por meio de sangue do cordão umbilical já soma 20 anos. Além dessas, outras fontes para obtenção dessas células já surgiram. A mídia está focando muito a linhagem embrionária, como se ela fosse a grande salvadora da pátria, mas não é bem assim. JU - Mas trata-se de uma fonte importante, não? Ângela Luzo - Sim. Principalmente porque as células-tronco embrionárias são consideradas totipotentes. Ou seja, elas têm capacidade de se diferenciar em qualquer outra linhagem, como as células que formam os tecidos do osso, do rim, do fígado. Mas há um problema aí. Por ser totipotente, ela também pode se diferenciar em células tumorais. Ainda precisamos aprender a manipular adequadamente esse material, para saber se as linhagens que pretendemos criar são estáveis e não vão se degenerar. Esse trabalho leva tempo. JU- É possível estimar esse tempo? Ângela Luzo - Se você me perguntasse qual foi a grande importância da liberação do uso das células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, eu diria que foi a possibilidade que a medida abriu de mais gente estudar as suas propriedades e potencialidades. Mas elas serão importantes, no curto prazo, para virar tratamento clínico? Não. Apenas para se ter uma idéia, as pesquisas em torno das células-tronco de cordão umbilical somam 20 anos, e ainda assim estamos sendo surpreendidos por

A médica hematologista Ângela Cristina Malheiros Luzo, do Hemocentro da Unicamp: “Os resultados não são para amanhã”

novidades. Ou seja, ainda há muito que se aprender. Além disso, há novidades também em outras frentes de pesquisa. JU - Que novidades são essas? Ângela Luzo - Há alguns anos a ciência descobriu que existem células tanto na medula quanto no sangue de cordão com características semelhantes às das célulastronco embrionárias. Ocorre que estas células representam menos de 1% da celularidade total tanto da medula quanto do sangue de cordão. O que a gente tem que fazer, agora, é desenvolver um bom marcador para obter essas células e expandi-las em laboratório. JU - Poderia dar mais detalhes sobre as características das células-tronco obtidas de sangue de cordão? Ângela Luzo - A célula-tronco de sangue de cordão é um pouco mais primitiva, mais indiferenciada do que a de medula, pelo próprio momento da sua obtenção. No feto, o sangue começa a ser produzido no fígado, no baço e depois na medula óssea. No momento do parto, essas células imaturas totipotentes estão se dirigindo para a medula. É quando coletamos esse sangue. Se eu coletasse um ou dois dias depois, a celularidade seria semelhante à do sangue de um adulto. Trata-se de uma fonte que ainda não está esgotada, e que pode oferecer novidades. JU - Alguma outra novidade que mereça registro? Ângela Luzo - Nos últimos cinco anos estão surgindo novas pesquisas em torno das células mesenquimais, principalmente fora do Brasil. Elas dão suporte à medula, de modo que as células se proliferem. Estão presentes em vários órgãos humanos. As mesenquimais também têm a capacidade de se diferenciarem em todas as linhagens, assim como as embrionárias. Atualmente, existem estudos com células mesenquimais de medula, de sangue de cordão e até mesmo de tecido adiposo. Nos experimentos, elas se diferenciam em linhagens de pâncreas, neurônio, osso, cartilagem, fígado etc. A sensação que eu tenho em relação às células mesenquimais é a mesma que eu tive quando do início dos estudos com sangue de cordão, na década de 90. Penso que é uma fonte importante, de fácil obtenção, mas que ainda vai requerer muita pesquisa. JU - Fácil obtenção? Ângela Luzo - Sim. Como essas células estão presentes no tecido adiposo, basta que uma pessoa que se submeta a uma lipoaspiração doe um pouco de gordura. Depois disso, nós vamos trabalhar esse material em laboratório. Se conseguirmos o que os grupos internacionais estão conseguindo, penso que será algo

promissor. Vale destacar que outra vantagem da célula mesenquimal é que ela imunomodula o sistema imune. Ou seja, pode ser que sirva, no futuro, para tratar doenças auto-imunes, como o lúpus, diabetes, entre outras. JU - Qual a primeira indicação das células-tronco como terapia? Ângela Luzo - A terapia celular é mais indicada para transplante. O primeiro transplante do gênero, insisto, ocorreu há 40 anos. Em que situação pode ser empregada? Por exemplo, quando a pessoa tem uma neoplasia e precisa se submeter a tratamento rádio e quimioterápico importante. Como conseqüência, precisa reconstituir a medula óssea para a produção de sangue. Dessa forma, o transplante de medula óssea, como é mais conhecido, é na realidade um transplante de células-tronco de medula óssea. JU - Em que campo as pesquisas em torno da terapia celular estão mais avançadas? Ângela Luzo - Atualmente, um campo importante diz respeito à regeneração de tecidos lesados por alguma doença, por meio da terapia celular. O que se tem de concreto? Existe uma linha de pesquisa para coração, que teve início da década de 90. No Brasil, há grupos trabalhando com isso em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. As pesquisas com coração cumpriram um trajeto inverso do usual. Foram injetadas células mononucleares de medula óssea num paciente cujo coração tinha uma área comprometida. Na ocasião, foi constatado que a área regenerou-se. Durante muito tempo pensou-se que a terapia havia reconstituído as fibras do órgão. Até hoje, porém, isso não foi comprovado cientificamente. Sabe-se apenas que o procedimento melhorou a vascularização da região e, com isso, houve melhora da função do coração. Depois de algum tempo, foram iniciados testes em animais. Ou seja, houve uma fase clínica e depois uma pré-clínica, ao contrário do que acontece normalmente. JU - E na área neurológica? Ângela Luzo - No Rio Grande do Sul, existem estudos em torno do AVC, o popular derrame cerebral. Os pesquisadores estão trabalhando com células-tronco de medula, pois é preciso haver compatibilidade. Ou seja, na hipótese de uma terapêutica nesse sentido, seria preciso usar material obtido da medula do próprio paciente, para que haja compatibilidade. Outra linha de pesquisa importante está voltada para a reconstituição do fígado. Isso daria melhores condições para que a pessoa espere na fila do transplante. Tem um projeto inicial na Unicamp, mas há grupos mais adiantados no Rio de Janeiro e

Enfermeira retira sangue de cordão umbilical após parto realizado no Hospital de Sumaré: procedimento já soma 20 anos

Bahia, inclusive em fase clínica. Os resultados ainda não comprovaram se está havendo reconstituição ou regeneração do fígado. As pessoas dizem sentir melhora, mas não há ainda comprovação laboratorial da melhora de função. Fora isso, Ribeirão Preto estuda a aplicação da célula-tronco de medula na terapia de doenças neurológicas degenerativas e diabetes. Essas são as principais linhas de pesquisa já com direcionamento clínico que existem no Brasil. Aqui na Unicamp temos um grupo multidisciplinar atuando em pesquisas com células-tronco obtidas de sangue de cordão, medula óssea e com células mesenquimais obtidas dessas mesmas fontes e também de tecido adiposo. Alguns projetos estão numa primeira fase pré-clinica, guardando a liberação, e outros já numa fase clínica. O grupo engloba colaboradores das áreas médica, neuroclínica, cirúrgica, reumatologia, cirurgia plástica, ortopedia, gastroclínica e do Hemocentro. Os especialistas estão vinculados aos institutos de Química, Física e Biologia da Unicamp, Laboratório Síncroton e dos institutos de Química da USP e de São Carlos. JU - O que a senhora pensa sobre a proibição de pesquisas em torno da transferência nuclear? Ângela Luzo - Esse procedimento foi bloqueado pela Lei de Biossegurança. Trata-se de um modelo de manipulação muito interessante, que poderia abrir perspectivas, por exemplo, para o tratamento de doenças degenerativas. Ocorre que esse procedimento está relacionado à clonagem. Penso que não deveríamos temer a clonagem humana, visto que estamos muito longe disso. Em minha opinião, ainda há um grande desconhecimento sobre isso. Os cientistas e a mídia deveriam orientar a população em geral sobre as vantagens de se trabalhar nessa área. JU - Por falar em informação, como a senhora avalia o traba-

lho da mídia? Ela está informando a sociedade de maneira conseqüente sobre esses assuntos? Ângela Luzo - A informação precisa é muito importante. A mídia deve abrir espaço para explicar essas questões de forma simples. É preciso explicar que existem várias fontes de célulastronco, e que elas ainda estão em estudo. É preciso deixar claro que as células-tronco embrionárias são apenas mais uma fonte para se trabalhar. Tudo isso deve ser divulgado com responsabilidade, de modo a não criar falsas expectativas nas pessoas. Eu atendo vários telefonemas de gente que chega ao absurdo de se oferecer para ser cobaia em nossos experimentos. Este termo não deve ser utilizado para seres humanos. Isso é resultado do desconhecimento dessas pessoas. O homem não pode ser cobaia. Falta ser ventilado que as pesquisas passam por comitês de ética rigorosos, tanto em âmbito interno quanto externo às instituições de pesquisa. É preciso esclarecer que ninguém está criando monstros em laboratórios. É preciso dar esperança, sim, mas dizer que não é para amanhã. É preciso dizer que vai demorar. O pesquisador também tem que estar comprometido com esse esforço de esclarecimento. JU - Gostaria de acrescentar algo? Ângela Luzo - Gostaria de deixar uma mensagem. Dizer que as pesquisas com células-tronco são promissoras e que abrirão um vasto campo de estudo para as novas gerações. Também gostaria de chamar a atenção das pessoas para a importância da doação de órgãos, doação de sangue etc. As pessoas ainda têm muitas restrições à doação, mas elas precisam saber como a vida de uma criança que sofre de uma grave doença no fígado muda depois do transplante. A doação de órgãos é fundamental para que possamos dar melhores condições de vida para quem está doente.


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Fotos: Antoninho Perri

Adensar para manter o verde

LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

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demógrafo Daniel Joseph Hogan atenta para o momento interessante da história da humanidade que testemunhamos em 2008, quando se registra, pela primeira vez, mais da metade da população mundial morando nas cidades. Este processo está mais avançado na América Latina – o Brasil já passou dos 80% há algum tempo – mas a superação da média de 50% no planeta obriga à reflexão sobre o que seja um futuro urbano sustentável. “Muito da tensão em torno das questões ambientais decorre do foco nas florestas e nos recursos naturais, sobretudo em nosso país. Entretanto, a verdade é que a grande maioria da população brasileira já está nas cidades. A questão é como conciliar uma qualidade de vida decente com tanta gente vivendo no meio urbano”, observa Hogan, que é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp. Segundo o docente, se muitos países ainda terão de se ocupar com o crescimento da população urbana, o importante para o Brasil é planejar o crescimento físico das cidades. “Aqui, a grande transição já aconteceu, dos anos 1950 até os 90. As cidades estão parando de crescer demograficamente e chegando perto do nível de reposição da população. Como tudo aponta para patamares ainda inferiores de fecundidade, supomos que o número de habitantes vai começar a diminuir dentro de poucas décadas”. Daniel Hogan falará dia 16 na 60ª Reunião da SBPC sobre “Crescimento urbano, população e meio ambiente no século 21”. Como outros especialistas do país, ele está às voltas com uma questão que é motivo de polêmica internacional: se o adensamento da população em espaços já dotados da devida infra-estrutura urbana, preservando áreas verdes e minimizando custos ambientais como da emissão de carbono nos transportes, não seria menos impactante do que o espraiamento para condomínios em áreas mais distantes. Considerando que o grande problema ambiental do século 21 é a mudança climática, e sendo difícil lidar com ela ao nível de cada comunidade, Hogan crê que

o adensamento da população contribui para uma política mais verde. “Se eu decidir morar a dez quilômetros da Unicamp, e não mais a cinco, vou gastar o dobro de combustível por dia. Multipliquese isto por centenas de milhares de pessoas e teremos uma séria influência nas emissões de carbono”. Para quem supõe uma qualidade de vida melhor morando longe da agitação urbana, o pesquisador lembra que grandes cidades do mundo, como Paris e Nova York, apresentam um uso residencial importante na área central. “O adensamento é um meio de facilitar a oferta e de baratear serviços essenciais como de água, esgoto, eletricidade e asfalto, e de atender a demandas como de escolas, saúde e comércio”. Planejamento – O problema do Brasil, lamenta o professor da Unicamp, é a inexistência de um planejamento macro, inclusive para metrópoles que já têm constituídas suas regiões metropolitanas. Em sua palestra na SBPC, Hogan vai se valer do seu conhecimento da Região Metropolitana de Campinas (RMC) para justificar a posição favorável ao adensamento da população. “Estão ampliando várias rodovias da RMC, como a CampinasMogi Mirim, em cuja margem está o condomínio Alphaville e se erguem inúmeros outros empreendimentos imobiliários. Não se pode criticar quem decidiu ampliar a pista de quatro para seis faixas, pois o engarrafamento no rush é infernal. Mas, facilitar a circulação de quem mora longe, é alimentar um círculo vicioso”, diz o pesquisador. Na outra margem da mesma rodovia, uma área reservada para o Parque Tecnológico de Campinas, que está saindo do papel depois de dez anos, acaba de ser liberada pela Câmara de Vereadores também para a construção de condomínios, shoppings e outros negócios. “A medida não deixa de ser racional, pois a área já tem o entorno ocupado, infra-estrutura urbana e dispensa a criação de novos acessos. É melhor que construir na área rural. Resta saber como será afetado o projeto do pólo tecnológico”. Daniel Hogan, que costuma guardar folhetos distribuídos nos semáforos, observa o ritmo da construção de condomínios fechados ao largo de um trecho urbano da rodovia D. Pedro I, em direção a Paulínia. “Também acho racional

preencher os vazios desta área que já conta com diversos serviços, ao invés de ocupar as áreas verdes do distrito de Barão Geraldo, onde o anúncio de empreendimentos gera polêmica. Há muitas áreas na cidade que, provavelmente, comportariam mais uma população de Campinas”. Outros medos – O pesquisador ressalta que as pessoas são movidas para áreas mais distantes também por causa da violência, mesmo cientes de que um condomínio fechado não oferece segurança absoluta. “Nas pesquisas do Nepo, levantamos os medos da população. O medo da violência é maior do que outros, pois mesmo que as vítimas se concentrem entre as de maior renda, ela contamina a percepção da sociedade e influi na própria estratégia mercadológica das incorporadoras, que então vendem segurança”. Uma das pesquisas do Nepo, tratando da expansão urbana e da vulnerabilidade sócio-demográfica nas regiões metropolitanas de Campinas e da Baixada Santista, levantou a percepção da população também sobre os problemas ambientais. “Em nível nacional, a resposta mais comum é que o maior problema ambiental é a devastação da Amazônia. Mas, ao nível da RMC, em primeiro lugar aparece a poluição do ar”. Daniel Hogan lembra que grande parte da poluição em Campinas vem do trânsito, que foi planejado para uma cidade com um terço da ocupação atual. “Algo tem sido feito para melhorar as condições viárias, já que o trânsito precisa fluir. Mas devemos pensar no transporte de massa para diminuir o transporte individual, inclusive no metrô. Mesmo em São Paulo, que precisa de uma rede mais densa, o metrô mostrase um meio de transporte confortável, rápido e, além de tudo, nãopoluente, já que é elétrico”. Mais parques – Apesar dos valores e hábitos que as grandes incorporadoras procuram enaltecer, o professor da Unicamp insiste que é possível viver plenamente satisfeito nas cidades. “As pessoas gostam da idéia de viver junto à natureza. Eu mesmo estou chegando de uma chácara em Jaguariúna, onde passo três dias da semana. Uma forma de promover este contato é viabilizar o acesso da população a bons parques – não falo de reservas ecológicas, que são igualmente importantes”.

Vazio urbano em Campinas: para Hogan, inexistência de um planejamento macro é um dos problemas das metrópoles brasileiras O demógrafo Daniel Joseph Hogan, professor do IFCH: “As cidades estão parando de crescer”

Hogan é norte-americano e cresceu em uma pequena cidade com dois grandes parques estaduais ao redor, onde passava os domingos. “No Brasil, são poucos os parques preparados para receber a população e próximos às grandes cidades. Quando vim para Campinas, em 1972, o Parque Taquaral estava sendo inaugurado. Ele é ótimo e continua muito bem freqüentado. Mas onde está o novo parque para as 700 mil pessoas que vieram depois?” Outra sugestão do professor é a socialização de grandes áreas verdes que estão fechadas ao público, mesmo quando pertencem ao Estado. “Não é possível individualizar este desejo de aproximação com a natureza, com cada qual buscando seu jardim e seu pomar. O Exército, por exemplo, herdou em Campinas uma área bem maior que a do Taquaral e que daria um parque maravilhoso”. Mosaico – Na visão do professor Daniel Hogan, uma parcela muito pequena da população brasileira vive na área rural e isto será mais verdade no futuro do que hoje. “Quem mora na zona rural não vai se ocupar com a agricultura, que está se expandindo de forma fantástica, mas é superintensiva de capital e de máquinas, usando pouca mãode-obra. O futuro do emprego

também é urbano”. O cenário que o pesquisador da Unicamp prevê para as próximas décadas é de um território recortado em blocos, como um mosaico, delimitando atividades comerciais e industriais, agrícolas e de preservação. “Um tipo de planejamento que já vem sendo praticado é o chamado Zoneamento Ecológico-Econômico, que tem sido aplicado com mais sucesso nos Estados amazônicos menores, como Acre e Amapá”. No Estado de São Paulo, o governo está promovendo este zoneamento no litoral, contemplando principalmente o Vale do Ribeira, sua região mais pobre. Daniel Hogan lembra que há dez anos, quando representava a Unicamp no Conselho Estadual de Meio Ambiente, acompanhou uma vistoria na Ilha do Cardoso, parque do Estado que a Prefeitura de Cananéia declarou como ponto de expansão urbana. “Empreendedores estavam construindo mansões na área e a prefeitura tinha interesse no IPTU. Os ambientalistas foram para o confronto, com razão. Mas hoje é preciso pensar o tipo de atividade econômica que pode ser conciliado com a preservação da mata Atlântica, ao invés de se congelar tudo do jeito que está e condenar a população local à mesma miséria”, pondera o professor.


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9 Foto Antônio Gaudério/ Folha Imagem

Foto: Antoninho Perri

O professor Carlos Joly, do Instituto de Biologia: “A legislação não pode se transformar num obstáculo” Área desmatada por colonos no município paraense de Tailândia: enquanto lei engessa atividades de cientistas, a devastação avança

Cientista não é

biopirata MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

urante a 60ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), um tema promete mobilizar a atenção dos pesquisadores, principalmente aqueles que dependem da coleta de material biológico na natureza para dar seqüência aos seus estudos: a necessidade de alteração da legislação que rege esse tipo de procedimento. Considerada “draconiana” pelos cientistas, a regra não somente tem dificultado o trabalho de botânicos, zoólogos, ecólogos etc, como tem colocado esses profissionais na condição de potenciais suspeitos da prática de biopirataria. “A legislação tem que proteger os interesses do país, mas não pode se transformar num obstáculo ao trabalho da ciência, como é o caso”, afirma Carlos Alfredo Joly, chefe do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. De acordo com ele, o evento abrigará um módulo composto por diversas mesas, nas quais o assunto será debatido por representantes da comunidade científica e do governo. “Nossa expectativa é estabelecer um diálogo produtivo com os órgãos governamentais, tendo como foco a mudança da lei. Da forma como está, ela constitui um empecilho à realização das pesquisas científicas, o que em última análise atrapalha o desenvolvimento do Brasil”. A tentativa de diálogo a que se refere Joly não é nova, registre-se. Ela remonta aos anos 90, logo após o país ter assinado a Convenção sobre Diversidade

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Biológica, formulada por ocasião da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a chamada Rio 92. Uma das exigências impostas aos signatários era a formulação de uma lei que regulamentasse o acesso aos recursos biológicos e ao conhecimento tradicional a eles associados. Em 1995, a então senadora Marina Silva encaminhou ao Senado um projeto de lei nesse sentido. Na oportunidade, foram ouvidos representantes da comunidade científica, do Ministério Público, das comunidades tradicionais, das etnias indígenas e do empresariado. A matéria chegou a ser aprovada numa das comissões internas da Casa, na forma de um substitutivo do senador Omar Dias, mas a tramitação não teve seqüência. Em 2000, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) criou o Programa de Desenvolvimento da Amazônia, e dentro dele um pólo de biotecnologia denominado Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (BioAmazônia). Um ano depois, a BioAmazônia firmou acordo de cooperação com a multinacional Novartis Pharma AG, sediada na Suíça, que previa que a empresa teria, pelo prazo de dez anos, a exclusividade na prospecção e comercialização de drogas e produtos farmacêuticos oriundos de microrganismos e plantas da Amazônia Legal O contrato, porém, acabou sendo denunciado à Justiça, que o considerou ilegal justamente porque se baseava em legislação que sequer existia. “Na época, nós imaginávamos que a resposta do go-

verno seria resgatar o substitutivo do senador Omar Dias ou elaborar um novo projeto de lei. Infelizmente, não foi isso o que aconteceu. O governo optou por baixar uma medida provisória [MP] regulamentando a questão do acesso aos recursos naturais e aos conhecimentos tradicionais. As regras engessavam a atividade científica, pois burocratizavam tremendamente a coleta de materiais biológicos, mesmo que não houvesse qualquer interesse econômico relacionado ao estudo”, recorda Joly. No Exterior – A MP também gerou um problema de relacionamento entre as instituições brasileiras e estrangeiras. Até então, havia um livre intercâmbio entre os pesquisadores. “Mais de 70% do material utilizado para a descrição das espécies brasileiras, seja de plantas ou animais vertebrados, está em museus e herbários dos Estados Unidos e Europa. Normalmente, para realizar um trabalho na área de taxonomia, a gente pedia esse material emprestado, fazia as análises, redefinia as espécies e depois o devolvia. Da forma como estava escrito na medida provisória, esse material, ao ingressar em território brasileiro, passaria a pertencer ao país. Diante disso, as instituições estrangeiras deixaram obviamente de colaborar conosco”, relata o professor do IB da Unicamp. Depois de uma série de críticas da comunidade científica, o governo decidiu, em 2001, editar uma nova MP. Esta tornava flexível algumas regras anteriores, mas mantinha o mesmo sistema cartorial para a concessão de licenças para a coleta de materiais

na natureza. Por conta da posterior aprovação de uma emenda constitucional, a medida tornouse perene e está em vigor até hoje. O professor Joly destaca, porém, que a despeito de tal flexibilização, a comunidade científica continuou se mobilizando para tentar reformular completamente a legislação. Em 2003, quando assumiu o primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convidou a então senadora Marina Silva para comandar o Ministério do Meio Ambiente (MMA). A expectativa da comunidade científica, obviamente, era de que a ministra, que já apresentara um projeto de lei regulamentando essa questão, retomasse as suas propostas e finalmente pusesse fim ao drama dos pesquisadores. As primeiras iniciativas de Marina Silva até que foram nessa direção. Logo nas primeiras semanas de gestão, ela convocou uma reunião em Brasília, na qual estiveram representados todos os atores interessados na regulamentação do acesso aos recursos biológicos e ao conhecimento tradicional a eles associados. Segundo Joly, que representou a SBPC no encontro, a discussão central era se a MP deveria ser revogada ou se o Ministério criaria, por meio de resoluções, mecanismos que facilitassem o trabalho dos cientistas. Simultaneamente, ficou acordado que o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), com o apoio das partes diretamente interessadas, redigiria um anteprojeto de lei que, depois de formatado, seria encaminhado ao Congresso, o que culminaria com uma legislação definitiva sobre o assunto.

Em outubro de 2003, depois da superação de muitas dificuldades, finalmente o colegiado chegou a um texto consensual. “Mas o que aconteceu depois foi algo inacreditável. O anteprojeto seguiu para análise do setor jurídico do Ministério do Meio Ambiente, sofreu algumas alterações e foi encaminhado à Casa Civil para a formatação final. Isso ocorreu em dezembro de 2003. Até hoje, julho de 2008, a matéria ainda não foi enviada ao Congresso”, lamenta Joly. Em 2006, conforme ele, depois de muita “chiadeira” por parte dos cientistas, o presidente Lula assinou um decreto estabelecendo que a pesquisa científica é uma atividade de utilidade pública. Isso melhorou um pouco o acesso dos pesquisadores aos materiais biológicos, visto que dispensou o cumprimento de exigências tidas como “absurdas” por eles, como a definição de um pré-roteiro e a apresentação de autorizações prévias para a realização das coletas. Independentemente desses ajustes, permanecia a esperança da comunidade científica de que a proposta de legislação parada na Casa Civil ainda tivesse andamento. “Entretanto, fomos surpreendidos mais uma vez por uma notícia desagradável. O então secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, João Paulo Capobianco, informou-nos que tudo o que havia sido discutido e consignado no texto era letra morta. Isso porque os integrantes do Cgen alegaram que não se sentiram à vontade para discutir determinados temas na presença de pessoas que não pertenciam ao Conselho. Além disso, alguns ministérios também alegaram que os seus representantes com assento no Cgen não tinham autonomia para negociar o que quer que fosse em nome das pastas. Ou seja, tudo não tinha passado de um grande teatro, uma grande farsa”, lastima o professor do IB da Unicamp. Atualmente, prossegue Joly, um novo texto está sendo discutido no âmbito da Casa Civil. Em dezembro de 2007 a matéria foi aberta para consulta pública. Até o final deste mês, a Pasta estará recebendo sugestões. “O esforço da comunidade científica continua sendo no sentido de reformular a legislação que está em vigor. É bom que fique claro que nós não somos contra as medidas que protejam os recursos biológicos do país ou que os produtos que vierem a ser colocados no mercado com base nesses recursos sejam divididos equitativamente, quando for o caso, com as comunidades tradicionais ou as etnias indígenas. Ao contrário, queremos que esses cuidados sejam contemplados na lei. O que não pode continuar acontecendo é o entrave às pesquisas científicas. Também não pode continuar prevalecendo a visão segundo a qual os cientistas são biopiratas em potencial. Nós já perdemos muito tempo. Se a legislação não for revista rapidamente, o Brasil vai perder o bonde da história nessa área do conhecimento”, adverte o docente.


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Fernando Donasci/Folha Imagem

Vista aérea de lavoura na zona rural do município de Sinop, no Norte do Mato Grosso, região que detém um dos maiores índices de desmatamento da floresta amazônica

Muito além do ativismo MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

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pesquisa ecológica no Brasil soma pouco mais de três décadas. Nesse período, ela constituiu-se como uma das ciências que mais se desenvolveram no país. Ocorre, porém, que os estudos poderiam ter atingindo um patamar ainda mais avançado, não fossem a carência de recursos, a falta de continuidade de investimentos e até mesmo as dificuldades criadas pela legislação para a coleta de material biológico destinado aos experimentos. Esses e outros temas são analisados com profundidade e espírito crítico, na entrevista que segue, pelo doutor em ecologia Thomas Michael Lewinsohn, professor titular e coordenador do programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. De acordo com ele, que acaba de ser eleito primeiro presidente da recém-fundada Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (Abeco), a ciência ecológica brasileira ainda enfrenta muitos problemas e ameaças no que toca ao desenvolvimento e aplicação do conhecimento. Sobre as possibilidades de superação dessas adversidades, ele pontua: “Dá para ser cautelosamente otimista, mas há muitos motivos sérios para preocupação”, afirma Lewinsohn, que participa no dia 16 do simpósio “Pesquisa Ecológica Hoje – Ampliação e Aplicação do Conhecimento”.

Jornal da Unicamp - Qual o marco de referência da pesquisa ecológica no Brasil? Thomas Michael Lewinsohn – A pesquisa ecológica no Brasil teve como marco de referência a criação, em 1976, dos quatro primeiros cursos de pós-graduação: na Unicamp, na UnB, na UFSCar e no Inpa, de Manaus. Temos, portanto, uma história institucional de 32 anos. É claro que existiam alguns pesquisadores em ecologia anteriormente no país, mas eram relativamente isolados. Em três décadas, a pesquisa nessa área explodiu. Dentro da América Latina, o Brasil está extremamente bem situado em relação à quali-

dade e quantidade de pesquisa em ecologia. Atualmente, temos mais de 30 cursos de pós-graduação em ecologia, caminhando para 40. É claro que isso tem a ver com a demanda política e social que se faz em cima desse conhecimento. Do ponto de vista de formação de pessoal, de grupos de pesquisa, de extensão para diferentes áreas científicas, a ecologia é uma das ciências que melhor se desenvolveu nas últimas décadas no país. JU - Apesar desse desempenho, a pesquisa em ecologia enfrenta problemas no país, não? Lewinsohn – Os problemas, como sempre, estão relacionados

com o suporte institucional para pesquisa, que deixa a desejar, por várias razões. Primeiro, não estamos absorvendo bem todo o conjunto de pesquisadores qualificados que estão sendo formados. Num país com a extensão e a diversidade biológica do Brasil, e que tem um compromisso ambiental, é espantoso que sobre gente qualificada na praça. Isso não deveria ocorrer. Outro problema refere-se ao fato de ainda não contarmos com um suporte tão abrangente quanto seria preciso para os projetos de grande porte. A nossa experiência de fazer projetos grandes ainda está a caminho. São Paulo tem uma ex-

periência bem-sucedida nesse sentido, com o Programa BiotaFapesp, voltado para inventariar e reconhecer a biodiversidade do Estado. Esse modelo está sendo olhado com muito carinho por outros estados, mas a verdade é que a gente ainda não tem um suporte tão abrangente quanto precisaria para projetos de grande porte e grande duração. JU - A questão central é o financiamento? Lewinsohn – O problema não está apenas na questão do financiamento. O financiamento tem duas características: volume e continuidade. O Brasil até tem tido volume em alguns momentos, por meio do CNPq, Finep e convênios internacionais. Mas falta continuidade. Não dá para fazer boa pesquisa em ecologia sem continuidade. Existe hoje em dia uma demanda gigantesca para avaliarmos os efeitos das mudanças climáticas globais que estão em curso, para traçar a tendência dessas mudanças em diferentes cenários. Para isso, é preciso trabalhar com base em séries históricas, mas nós não temos dados antigos. Se compararmos com estudos feitos nos Alpes, isso dá a dimensão do nosso problema. Lá há lugares que abrigam mosteiros desde a Idade Média. Os monges anotavam dados sobre o clima, a data de começo de floração, do aninhamento dos

pássaros. Você tem dados de mais de 500 anos que podem ser comparados. Nós não temos essa linha de base. Sabemos que o clima está mudando, mas mudando quanto em relação a quê? Sempre nos faltam os dados de base. A gente precisa urgentemente consolidar dados confiáveis. Mas é difícil conseguir suporte para isso. O problema é que esse trabalho não é tão bonito quanto inaugurar um equipamento de alta tecnologia. Mas é uma tarefa fundamental. JU- Ou seja, é preciso ter mais programas de Estado do que de governo... Lewinsohn – Mas não é só um problema da política, embora ela também tenha responsabilidade nisso. Os prazos curtos não são apenas por causa da política. Os prazos acadêmicos também são curtos. Uma tese de doutorado tem que ser feita em quatro anos. Na melhor das hipóteses você tem três anos para a obtenção de dados. É aquela velha história do Garrincha na Copa de 58, de ter que avisar os russos, não é? É preciso avisar aos organismos que a gente precisa de resultados de longo prazo, mas tem que ser no máximo em três anos... Na prática, ficamos estudando processos que mudam muito rapidamente, o que faz com que haja uma tenContinua na página 11!! !


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‘ O conhecimento existe, mas é subaproveitado’ Foto: Antoninho Perri

O professor Thomas Michael Lewinsohn, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ecologia do IB: “É importante ficar claro que não existe oposição entre preservação ambiental e qualidade de vida”

nâmica de ecossistemas, como eu assinalei anteriormente.

dência de trabalhar predominantemente com plantas pequenas de ciclo rápido e animais menores. Isso faz com que tenhamos menos dados sobre processos que são mais lentos, que exigem mais tempo. E esses também são essenciais. Então, se a gente quiser fazer realmente boas projeções e bom monitoramento das áreas remanescentes de Mata Atlântica, de cerrado, de florestas na Amazônia, nós precisaremos de dados confiáveis de médio e longo prazo. JU - Como a comunidade científica tem se mobilizado para enfrentar esses problemas? Lewinsohn – Na área da ecologia, existem dois caminhos importantes que merecem referência. Há 15 anos foi formado um fórum composto pelos coordenadores dos programas de pós-graduação em ecologia. Os membros se reúnem anualmente, trocam experiências, consolidam experiências. O fórum é reconhecido pelas agências de fomento como um interlocutor importante para traçar políticas, principalmente na área de capacitação de pessoal. Recentemente, também foi formada a Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (Abeco). Essa entidade, para a qual fui eleito primeiro presidente, está fazendo a sua primeira campanha para arregimentar associados. A Abeco vai promover um simpósio dentro da reunião da SBPC. Nós chamamos três especialistas internacionalmente reconhecidos para falar do rigor, dos desafios e das perspectivas da pesquisa ecológica nesta entrada do século 21. JU - O senhor pode adiantar algo sobre essas perspectivas? Lewinsohn – O que posso antecipar é que precisamos preencher lacunas gigantescas de pesquisa. Nós precisamos de mais gente, precisamos de mais emprego para esses profissionais e precisamos de mais suporte para a pesquisa em ecologia. É claro que isso vai ser dito por qualquer cientista de qualquer área, mas é especialmente verdadeiro para a área da ecologia. A demanda institucional, social, política e econômica sobre

esse conhecimento é muito grande. Mas eu queria assinalar uma contradição quanto a isso. Muitas vezes, o conhecimento existente, mas é subaproveitado. Ou seja, por um lado a gente precisa cobrir certas lacunas estratégicas de conhecimento, mas por outro lado precisamos usar melhor e ter mais reconhecimento para o conhecimento que já produzimos. JU- Ainda há um grande desconhecimento em torno da ciência ecológica, não? Lewinsohn – A pesquisa ecológica muitas vezes é confundida pelas pessoas e até mesmo pelos gestores públicos como filosofia de vida ou ativismo. Ou seja, ela é desconhecida no seu componente de ciência, que é tão sólido quanto o de outras áreas da biologia ou da química ou física. Em discussões politicamente delicadas e economicamente importantes, como as que envolveram os transgênicos, foram ouvidas muitas vozes, menos as dos ecólogos, justamente os que poderiam opinar sobre quais são os riscos ambientais para diferentes políticas de liberação experimental e comercial desses organismos. JU - O senhor falou sobre a existência de lacunas nos estudos em ecologia. Poderia citar alguns exemplos? Lewinsohn – Eu coordenei um trabalho para o Ministério do Meio Ambiente, que foi publicado em 2006, em que fizemos um balanço do estado do conhecimento da biodiversidade brasileira. Um dos resultados que apareceu claramente é que há diferenças absurdas sobre distintos biomas brasileiras. O pantanal e a caatinga são muito pouco conhecidos se comparados com a Amazônia. A Amazônia, por despertar interesse em pesquisadores brasileiros e do exterior, vem sendo relativamente bem estudada. Talvez seja o bioma mais bem conhecido depois da Mata Atlântica. Os campos sulinos, apesar dos esforços dos pesquisadores da região, são esquecidos nos grandes planos e nas grandes avaliações. Nós precisamos saber mais sobre esses biomas. Também faltam estudos de longo prazo acerca da di-

JU - Por falar em estudos de longo prazo, a degradação de alguns biomas corre em ritmo acelerado. Como isso interfere na pesquisa científica? Lewinsohn – Há duas preocupações nesse sentido. Uma é clássica, e está relacionada com a conservação de espécies. Isso vem de longa data, mas que vem evoluindo da idéia de que é possível conservar espécies avulsamente num dado local. O que se fazia classicamente: foram criadas algumas reservas biológicas por causa de certas espécies. No Rio de Janeiro, há uma reserva criada por causa do mico-leão-dourado. Ocorre que não é possível conservar o animal sozinho. É preciso conservar o ambiente íntegro, com suas funções preservadas. Dentro disso, o mico-leãodourado tem uma chance. Do contrário, é como criar um zoológico a céu aberto. Do ponto de vista da conservação, nós temos outra preocupação. Existem grandes biomas que estão desaparecendo sem que a gente tenha testemunhos suficientes. Nós precisaríamos formar áreas de grandes extensões para nos assegurar que a diversidade genética e biológica e os processos sistêmicos também sejam preservados. Embora, no papel, a rede de áreas protegidas no Brasil não seja tão ruim assim, na realidade ela é extremamente preocupante, pois há parques que não saíram do papel e há os que, mesmo implantados, não são adequadamente protegidos ou inseridos dentro da realidade regional. JU - A ciência ecológica trabalha com qual conceito de sustentabilidade? Lewinsohn – O conceito de sustentabilidade é extremamente controverso, porque ele se tornou muito mais um ícone político do que propriamente um conceito sólido. A nossa disposição é a de assentar com mais solidez a idéia de sustentabilidade, mas não existe consenso entre os cientistas ainda. Isso não quer dizer que haja ignorância. O que há são posições distintas. O grande problema é que a sustentabilidade é uma noção que não fornece um critério objetivo, automático e único. Você tem diferentes maneiras de interpretar e aplicar a idéia de sustentação de longo prazo. Do ponto de vista da ecologia, nós gostaríamos de pensar em sustentabilidade regional, incluindo a manutenção da integridade de ecossistemas, tanto os preservados quanto os

explorados economicamente. Mas isso é muito difícil de construir. O critério de sustentabilidade é muito mais estrito do que aquele que passeia nas bocas dos ministros e políticos. A sustentabilidade é falada com uma ligeireza extraordinária por tomadores de decisão, sem que esteja ancorada por critérios mais estritos. A sustentabilidade aparece em tudo, desde na publicidade de condomínio até na propaganda de banco. Um problema do conceito é que todo mundo é a favor. Inclusive o Blairo Maggi, governador de Mato Grosso, considerado o maior produtor individual de soja do mundo, que diz que a sociedade tem que optar entre preservação e produção de alimentos. O que ele realmente tem em mente quando fala em sustentação, não se sabe. A sustentabilidade é um conceito que precisa ser levado mais a sério e desenvolvido com mais responsabilidade. JU- Como anda o diálogo entre a ciência ecológica e a sociedade? Lewinsohn – O diálogo ocorre em muitas camadas. A sociedade, da mesma forma como os tomadores de decisão, desconhece a ciência ecológica, e entende a ecologia como uma filosofia de vida ou uma escolha ativista. Isso é problemático para o pesquisador, porque também representa um desconhecimento e uma desvalorização do seu trabalho. A sociedade precisa tomar conhecimento do que a ecologia produz de saber, mas isso envolve uma mudança de imagem antes de tudo. Por exemplo: se um químico fala em nanotecnologia, não existe o risco de ele ser confundido com um ativista. Se fala que trabalha com química fina, dificilmente as pessoas vão entender isso como uma filosofia de vida ou uma posição política contra o consumismo, que é o que se associa atualmente à ecologia. Precisamos mostrar a natureza do nosso trabalho. Há um grande desconhecimento desse trabalho até mesmo entre colegas de outras áreas da ciência. JU - Como o senhor vê as dificuldades impostas para a coleta de material biológico para a realização da pesquisa científica no país? Lewinsohn – A coleta de material biológico para a pesquisa continua entravada. Nós continuamos tentando melhorar isso. O crescimento da preocupação com a biopirataria, associada à defesa dos direitos dos conhecimentos dos povos tradicionais, orientou as normas de legislação no Brasil, que na prática estão dificultando demais o trabalho dos biólogos, zoólogos, ecólogos etc. Foram criadas dificuldades internas que obstacularizaram nosso trabalho. A pesquisa ficou mais difícil. A situação chegou a tal ponto que eu, como brasileiro, preciso de menos autorizações para fazer trabalho de campo nos Estados Unidos do que aqui. Além disso, a preocupação exacerbada com a biopirataria também está nos isolando. Não

dá para fazer pesquisa básica em ecologia de forma isolada da comunidade internacional. Existem poucos especialistas, e isso nos obriga à troca de informações e experiências. Nós temos que mandar e receber material para identificação. Quando o envio de material é visto como potencial biopirataria de recursos genéticos, isso dificulta poderosamente algo que é essencial para se fazer pesquisa de boa qualidade. Alguns grupos de pesquisa do exterior já evitam contato com grupos brasileiros porque sabem dessas dificuldades. Os ecólogos não aceitam ser tratados como biopiratas em potencial. Tem que haver sanções, inclusive para os cientistas que eventualmente descumprirem a lei, mas não se pode tratar todo mundo como suspeito. Esses entraves prejudicam o avanço do conhecimento no país e a conseqüente aplicação desse saber em beneficio do próprio país. JU - Diante de tantos problemas e desafios, dá para ser otimista em relação ao futuro da ciência ecológica no Brasil? Lewinsohn – Dá para ser cautelosamente otimista. Não é da natureza da ecologia ser a ciência do apocalipse. Mas há muitos motivos sérios de preocupação. Muitos problemas ou ameaças ao desenvolvimento dos estudos não estão sendo adequadamente reconhecidos no âmbito das esferas de decisão, tanto pública quanto privada. Isso obviamente não é uma preocupação somente ambiental. Ocorre também com questões sociais, de demandas básicas. É importante ficar claro que não existe oposição entre preservação ambiental e qualidade de vida. Essa é uma falsa antagonização. Toda a ecologia contemporânea é voltada para buscar maneiras inovadoras de otimizar e conciliar as necessidades de atendimento da melhora da qualidade de vida da população com a conservação adequada dos sistemas ecológicos. JU - O senhor ministrará uma conferência durante o encontro da SBPC. Qual será o tema? Lewinsohn – Aproveitando os 150 anos da do livro “A Origem das Espécies”, escrito por Charles Darwin, vou apresentar uma conferência sobre o tema. Mas a palestra não será sobre a teoria da evolução ou da seleção natural, mas sim sobre a ecologia de Darwin. É importante chamar a atenção sobre esse aspecto, porque a maioria das pessoas, inclusive cientistas de outras áreas, não sabe da importância que Darwin teve na formação da ciência ecológica moderna. O livro é um marco de referência para muitas das idéias que vieram a ser desenvolvidas ao longo do século 20, e que até hoje continuam presentes como questões fundadoras básicas. A conferência pretende chamar a atenção para a importância que Darwin tem como um dos fundadores da ciência ecológica, além de ser a figura mais marcante no desenvolvimento da teoria da evolução e seleção natural.


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12 ÁLVARO KASSAB kassab@reitoria.unicamp.br

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impacto das novas tecnologias na sociedade ocupa um papel fundamental nas pesquisas desenvolvidas pelo sociólogo Laymert Garcia dos Santos, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). A centralidade da tecnociência, as implicações sociais da biotecnologia, a propriedade intelectual, o meio ambiente, e as relações entre cultura e novas ferramentas tecnológicas, entre outros temas, figuram em seu trabalho. Na matéria que segue, Laymert antecipa algumas das idéias que vai expor dia 17 durante o simpósio “Ambiente, Tecnologia e Sociedade”, que integra a programação da 60ª Reunião Anual da SBPC.

Biotecnologia Trabalho atualmente em uma pesquisa cujo foco é o futuro do humano. Tenho particular interesse pela incidência da biotecnologia sobre aquilo que se considera a natureza humana. Sempre fico bastante espantado com a espécie de “esquiso” ou de separação que existe na cabeça de muitos especialistas da genética sobre os efeitos que as transformações biotecnológicas podem exercer no entendimento do que é o humano, do que é a psique humana, do que é e pode ser conhecimento humano e do que são e podem ser as relações humanas. Participei de várias mesas com especialistas que dão de barato que essas transformações se encaixam numa espécie de continuidade do nosso modo de existência e do nosso modo de pensar.

A ruptura Acho que há, nessa questão, uma ruptura importante de ordem epistemológica, mas que, na medida em que pode se transformar numa modificação de células germinativas, pode também se transformar numa modificação ontológica, ou seja, do modo de ser humano. Essa questão precisa ser discutida com a sociedade em todas as frentes.

Efeitos colaterais Na minha opinião há uma espécie de euforia generalizada com aquilo que seria o chamado progresso da genética, sem uma consideração efetiva dos efeitos colaterais deste progresso na transformação do humano. Será que a sociedade quer e sabe do que se trata? Existe no campo da filosofia uma discussão já bastante intensa sobre isso. Ocorre que esse debate não é repercutido talvez por causa de sua própria complexidade. Não é repercutido e considerado pela mídia da maneira como deveria ser. A mídia é aberta e permeável demais a um único ponto de vista, que é o do progresso da ciência. Não sou contra o progresso, mas estamos numa fase da humanidade em que isso precisa ser discutido do ponto de vista político, e não apenas do ponto de vista científico.

O pós-humano Muitos autores trabalham hoje na perspectiva do avanço das mutações. Basta levar em consideração o que diz a chamada Escola da Singularidade acerca do modo como as novas tecnologias vão impactar o humano. Estamos entrando naquela que pode ser considerada a era do pós-humano, na qual fato e ficção científica se misturam.

Para onde vamos? Acho que, no Brasil, a discussão ainda é incipiente, em parte, porque o país não é de ponta em termos tecnocientíficos. O pensamento prioritário é voltado para uma espécie de consolidação da tecnociência. Não podemos discutir a fundo porque, argumenta-se, atrapalharíamos o seu fortalecimento. Além de não ser muito bem-vinda, a crítica é considera-

da sempre regressiva. Sua origem é sempre atribuída a alguma espécie de fundamentalismo humanista ou religioso, ou seria derivada de uma certa nostalgia. Não é nada disso. Trata-se justamente de considerar que a sociedade deve ter o direito de saber onde estamos e para onde vamos.

Aceleração Vivemos um processo denominado pelos especialistas de aceleração da aceleração, ou seja, de aceleração exponencial. Essa aceleração da tecnociência entra em compasso com a aceleração econômica, que é propulsada pela globalização. Mas nem sempre as duas acelerações andam juntas. Pode haver conflito e diferenças de ritmo entre elas. Quando surge esse descompasso, passam a existir situações interessantes como, por exemplo, conflitos em torno da questão da apropriação da nova riqueza. Trata-se, evidentemente, da riqueza promovida pela força produtiva-ciência.

O escape Antigamente, o conhecimento não era apropriado. Era apropriada apenas a aplicação do conhecimento. Hoje a informação é apropriada; o mesmo ocorre com o conhecimento, por meio das diferentes formas de propriedade intelectual. A própria propriedade intelectual, tal como concebida por exemplo no início dos anos 90, já se tornou problemática, em razão de desdobramentos da velocidade da aceleração tecnológica. Vários desenvolvimentos importantes dessa aceleração – e da produção de conhecimento e de informação – começam a escapar.

Fora da moldura Esse escape ocorre por meio de softwares livres e de uma série de desenvolvimentos que não cabem mais na moldura legal da propriedade intelectual. Com relação, por exemplo, à questão da invenção, no terreno da informação hoje você tem software livre, open source e propriedade intelectual. Somente a existência dessas três diferentes modalidades, com a open soucer tentando se inscrever entre um regime de propriedade duro e a total abertura do código das informações e do conhecimento do software livre, já mostra que o descompasso entre a aceleração tecnológica e a aceleração do capital cria situações interessantíssimas que complexificam o terreno como um todo.

Na periferia Como fica essa situação na periferia do capitalismo, como é o nosso caso? Trata-se de uma questão importante para ser discutida no Brasil. Ela é interessantíssima não apenas porque temos dificuldade em gerar conhecimento transformável em propriedade intelectual. É relevante também porque precisamos saber em que medida o software livre pode ajudar, ou não, o nosso desenvolvimento. Ou, em última análise, de que maneira dispositivos que escapam do regime de propriedade podem favorecer

países como o nosso?

No tabuleiro Em que medida, nós devemos jogar simultaneamente em dois tabuleiros, como faz a China na questão da propriedade intelectual, ou como fez a Índia na questão dos medicamentos? São questões contemporâneas, mas, ao mesmo tempo, dada a nossa configuração periférica – ou semiperiférica como querem alguns, já que o país é emergente – que precisam ser discutidas a fundo em termos da especificidade da condição brasileira. Não deveríamos pensar a questão da invenção e da inovação nos moldes de uma imitação do que aconteceu no Primeiro Mundo. Estamos vendo essa questão ser processada de um modo peculiar por dois gigantes emergentes – a China e a Índia.

Outros olhares Acompanho com muito interesse o trabalho que o Ministério da Cultura vem fazendo na relação entre tecnologia e cultura. O ministro Gilberto Gil tem uma posição interessante, por exemplo, na questão do direito autoral. Esse trabalho contempla não apenas a necessidade da reforma do direito autoral, como também o modo como softwares livres e essa produção do conhecimento e da informação, que escapam ao regime da propriedade, podem favorecer setores que estão excluídos do mundo da cultura e da economia.

Novas tecnologias O país pode ter, com relação às novas tecnologias, um ponto de vista diferente. Sua população é muito mais jovem do que a dos países do Primeiro Mundo. Tratase, além disso, de uma população moderna, já que é pouco ligada ao passado – é voltada para o presente e para o futuro, muito embora esse futuro, para nós, seja bastante problemático. Esse contingente tem uma abertura para o novo cujo potencial é muito grande. Portanto, a relação que ela tem com as novas tecnologias já pode ser, de saída, bastante positiva, o que não significa que ela deva ser eufórica.

O novo É preciso considerar o modo de articulação da nossa cultura – que é bastante vital – com as novas tecnologias. Isso pode ser potencializado. Portanto, tecnologia e cultura precisam ser pensadas conjuntamente, assim como economia e ambiente. No nosso caso, tem que ser levada em conta a nossa perspectiva diferenciada com relação aos países de Primeiro

Mundo. Se não tivermos uma estratégia, estaremos sempre voltados não para o que a gente tem e para o que a gente pode, mas para o que a gente não tem e para o que a gente quer. Se agirmos assim, estaremos sempre começando pelo lado negativo, e não pelo positivo.

E os índios? Nesse campo das novas tecnologias, temos uma péssima relação com os povos indígenas, que são não apenas os maiores preservadores como também produtores da floresta tropical. Não caiu ainda a nossa ficha dando conta que o futuro dos povos indígenas também é o futuro da floresta. Eles detêm tecnologias bastante interessantes – desprezadas por nós – para poder conviver com a flores-

ta de um modo sustentável e produtivo. Essas tecnologias passam por um outro tipo de saber e por um questionamento forte do sentido que atribuímos ao desenvolvimento.

Canetti e os mitos Elias Canetti escreveu que era muito interessante observar que somos capazes de desenvolver tecnologias, mas que todas elas foram pensadas, primeiramente, no mundo do mito. O nosso problema principal, dizia Canetti, é que nós não temos capacidade de inventar mitos. Portanto, nós estamos produzindo tecnologias agora em cima de mitos que foram produzidos antigamente, mas não estamos produzindo as bases de tecnologias futuras em razão dessa incapaci-

O fut

hum


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dade de inventar mitos.

Vôos xamânicos Quando você vê um xamã yanomami ou um xamã xavante, sem um jamais ter falado com o outro, dizendo que “nós inventamos um avião mas não o desenvolvemos”, a gente pensa que eles estão com inveja – já que somos capazes de voar e eles não. Mas, se pensarmos na perspectiva do Canetti e do ponto de vista dos mitos, se os homens hoje voam é porque lá trás já estava sendo pensada uma maneira de voar de uma outra forma. No caso brasileiro, temos uma riqueza imensa que está em vias de extinção. Temos mais de 200 povos indígenas, para não falar na contribuição de outros povos tradicionais. É preciso ver que tipo de re-

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lação eles têm com o ambiente para pensarmos no desenvolvimento com eles – e não contra eles.

Pós-IPCC Acho a questão do ambiente muito complicada, já que no Brasil há um pensamento, invariavelmente, muito simplista sobre a relação entre desenvolvimento e ambiente. A questão é colocada em termos de “ou-ou”. Ou desenvolvimento ou consideração de preservação ambiental, sendo que já ingressamos numa época – pós-aquecimento global e pós-IPCC – que não permite mais que a questão seja postergada e colocada nesses termos. Nós – e todos os países, sobretudo os detentores de megadiversidade – temos que levar isso em consideração. O desenvolvimento não

uturo

Foto: Antonio Scarpinetti

pode mais ser considerado como uma prioridade sem quem se pense no fator ambiental, sob pena de o futuro ficar comprometido de forma irreversível.

Com a barriga A oportunidade de se discutir a questão ambiental junto com tecnologia e energia, nesta edição da SBPC, é muito importante. Mas é preciso que seja levada a fundo uma discussão radical sobre a relação entre desenvolvimento e ambiente. Do contrário, imagino, vai se eternizar essa prática de empurrar com a barriga a questão ambiental. Basta ver o modo como está sendo travada a discussão sobre a Amazônia. E basta constatar como setores majoritários do governo brasileiro consideram a questão do desenvolvimento. A Amazônia é central nesse aspecto. Qualquer discussão passa pelo desenvolvimento da Amazônia com consideração ambiental, sem o que acho sinceramente que não há futuro para o Brasil.

Ouvidos moucos

mano

Ilustração: André Favilla

A questão, portanto, precisa ser enfrentada. Isso não ocorreu até agora, apesar dos diferentes alertas e da massa crítica existente no país para mapear o problema, o que já ocorreu. Acontece que as forças em campo ainda não levaram até às últimas conseqüências a consideração desse mapeamento.

Dinheiro rápido O que predomina são interesses de curto prazo – para fazer dinheiro rápido. Se for considerado, por exemplo, o plano estratégico do ministro Mangabeira Unger para a Amazônia, o modo absolutamente primitivo com que ele considera a importância da questão do futuro dos povos indígenas, você percebe que, até quando há versões sofisticadas que tentam levar em consideração a relação desenvolvimento-ambiente, ainda assim falta muito para chegar lá. Essa é a questão principal.

E a sociedade? O eixo temático desta edição da SBPC, energia, tecnologia e ambiente, diz respeito à sociedade. Só podemos pensar nesses três temas em razão do que eles trazem de benefício para a sociedade. No entanto, desde os tempos de Margareth Thatcher, sociedade é um termo que passou a ficar entre parênteses... Até porque Thatcher disse, inaugurando o neoliberalismo numa escala maior, que não existia a sociedade, mas sim indivíduos e mercado. E, no Brasil de hoje, energia, ambiente e tecnologia se referem mais à relação com o mercado do que com a sociedade. Acho isso problemático.

Inovação Estamos vivendo uma onda na qual a inovação é o que existe de mais importante para o desenvolvimento. Cabe a pergunta: desenvolvimento da sociedade ou do mercado? Ou de ambos? O Brasil tem um problema com a invenção e com a inovação. Durante muito tempo se acreditou que o nosso baixo índice de patentes – em escala global nossa contribuição é de menos de 1% – era decorrente da falta de massa crítica. Depois foi feito um estudo e descobriu-se que o ponto de estrangulamento não é a produção de conhecimento suficiente para a invenção. O gargalo está, em primeiro lugar, no modo como isso não é transformado em patentes, em parte por uma questão jurídica que, na minha opinião, tem a ver com o modo como o Inpi é gerido.

O professor e sociólogo Laymert Garcia dos Santos, do IFCH: “A sociedade deve ter o direito de saber onde estamos e para onde vamos”

Sem eco Outro problema que diz respeito à inovação – o principal – é o fato de o setor produtivo não se interessar por ela. Os empresários não investem em pesquisa e desenvolvimento. O conhecimento gerado nas universidades não encontra ressonância no setor produtivo. O problema, portanto, não está na universidade, mas do outro lado. Essa nova lei paulista que transforma a Fapesp numa plataforma para a inovação está tentando ver se consegue estimular o setor produtivo a se interessar por pesquisa e desenvolvimento e, portanto, por inovação – e também, de certo modo, a dissolver esse nó górdio. É o poder público fazendo a parte que, nos outros países, é feita pelo setor privado, com todas as implicações que isso tem.

Zona de sombra Temos então, aí, uma zona de sombra. No caso brasileiro, o aspecto subdesenvolvido da questão aparece justamente na falta de apetite do setor produtivo em inovar. E, se ele não precisa inovar é porque, de alguma maneira, a questão é resolvida – ou não – de outro modo. Por que não há investimento? Por uma série de razões. A primeira é porque se pode comprar tecnologia pronta. A segunda devese ao fato de as grandes corpora-

ções concentrarem a sua pesquisa e desenvolvimento nas matrizes. A terceira porque o setor produtivo brasileiro ainda não acordou completamente para a questão da inovação como fator de competitividade – ele não tem ambição necessária para tentar dar o salto. Há, portanto, uma série de fatores. O fato é que a gente tem uma situação que não é facilmente sanável. Talvez devêssemos nos perguntar como é possível ao mesmo tempo pensar que o mercado é tudo, e ficar esperando que o Estado resolva a questão do desenvolvimento da tecnologia...

Energia A questão da energia é central hoje no Brasil. Por um lado, em razão da relação entre economia e ambiente e, de outro, pelo papel positivo que o biocombustível pode ter caso seja bem manejado. É também uma questão central dadas as descobertas novas em termos de petróleo, que colocam o Brasil num outro patamar, ou seja, o país passa ser uma potência em termos energéticos. Isso muda bastante a posição do país no cenário internacional. Estamos numa espécie de encruzilhada. Temos muitos trunfos na mão, mas é preciso levar em consideração os chamados efeitos colaterais. Como disse, não dá para não considerar a relação entre ambiente e economia.


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Foto: Antonio Scarpinetti

LUIZ SUGIMOTO sugimoto@reitoria.unicamp.br

A

presentando-se como um químico preocupado em dar a devida atenção a questões tidas como secundárias na discussão das “novas tendências mundiais”, o professor Wilson de Figueiredo Jardim vê a questão da sustentabilidade ambiental como um grande mito. “Todas as leis da termodinâmica apontam para a insustentabilidade do planeta. Nenhum processo é totalmente reversível, em todos existe uma perda. A própria manutenção da vida é uma atividade insustentável, pois todo ser vivo, enquanto estrutura muito organizada, fere o princípio da entropia”, afirma o docente do Instituto de Química (IQ) da Unicamp. Wilson Jardim vai proferir no dia 18 conferência sobre os “Combustíveis alternativos e o mito da sustentabilidade” na 60ª Reunião da SBPC. Ele lembra que o planeta é finito em suas características e que, tratado dentro de um modelo de desenvolvimento insustentável, ilimitado, caminha para o caos. “Acho que a capacidade de sustentação do planeta já está esgotada por causa do próprio tamanho da população. Para que a humanidade sobreviva, é preciso que um bilhão de pessoas passem fome. Temos de conviver com este lado perverso”. Na opinião do docente, hoje predomina um modelo de desenvolvimento suicida, que levaria o mundo ao colapso em 15 anos, caso existissem dez países com o padrão de consumo dos Estados Unidos. Por outro lado, o mundo suportaria mil países como Cuba. “A dieta básica de um americano alimentaria vinte pessoas na China, que ainda tem 200 milhões de famintos. Mas o americano quer comer suas cinco mil calorias diárias e não se fala mais nisso. É por isso que a equação não fecha”. O professor de química não poupa os economistas, atribuindo-lhes parcela da culpa pela manutenção do atual modelo econômico, em que países perdulários é que são classificados como desenvolvidos. “Se os economistas mudassem seu discurso em torno desta falsa sensação de riqueza, já teríamos menos aquecimento global. Não há riqueza no planeta que permita acumular a fortuna de um Bill Gates ou oferecer salários como os de Kaká e Ronaldinho Gaúcho. Alguém está pagando por isso”. Jardim recorre sempre ao exemplo da criação de camarões em viveiros, incentivada pela crença de que a aqüicultura pode amenizar o impacto da pesca predatória nos oceanos. “Acontece que camarões também comem muitos peixes. E a comunidade local, que não tem condições de consumir camarões, abre mão de um estoque importante de peixes para a própria alimentação, a fim de atender a um requinte da parcela mais rica da população. Vista por este ângulo, a iniciativa da carcinocultura parece piada”. Outro exemplo citado pelo pesquisador é do atum, muito apreciado pelos japoneses, que partiram então para a sua aqüicultura intensiva. “Cada atum, até atingir a idade madura, alimenta-se com o que mil japoneses consumiriam de peixe no mesmo período. Em pouco tempo, teremos de nos conformar de que o atum é muito saboroso, mas não podemos comê-lo; em sonhar com dois carros, mas não possuir nenhum; em viver no planeta que temos e não no que queremos”. Biocombustíveis – Nos últimos 100 anos, informa Wilson Jardim, a população mundial aumentou quatro vezes, ao passo que a demanda por água cresceu nove e o consumo de energia, 16

Uma equação que

não fecha

Criança caminha ao lado do rio Tietê na cidade de Bom Jesus de Pirapora: na opinião de Wilson Jardim, “nossos filhos terão de fazer o que não fizemos”

vezes. “É outra equação que não fecha. Sabedor da atividade degradante que exerce, devido a este estilo de vida, o ser humano busca saídas para se sentir melhor. Leva o cachorro para passear em carro a álcool e faz turismo ecológico, voltando para casa com a consciência tranqüila depois de plantar uma árvore na trilha”. A ironia serve como mote para o pesquisador passar às críticas contra a política de biocombustíveis no país, começando pelo etanol da cana. “Não há dúvida de que o álcool é excelente e será o combustível do futuro, mas não engulo a pílula dourada. Ele está muito longe de merecer o status de alternativa sustentável, pois o cenário de produção é altamente impactante social, econômica e ambientalmente”. Jardim começa apontando o problema do uso e ocupação do solo, endossando que os canaviais invadem, sim, áreas destinadas ao cultivo de alimentos. “Arrendando a terra para a indústria sucroalcooleira, ao invés de continuar plantando sua horta, o proprietário tem muito mais lucro – e sem mover um dedo, a não ser para contar o dinheiro no fim do mês, já que todo o cultivo é feito pelo arrendatário. Obviamente, não foi isto que causou a alta no preço dos alimentos, mas devemos assegurar terras para as duas coisas”.

Foto: Antoninho Perri

O professor Wilson Jardim, do Instituto de Química: “A capacidade de sustentação do planeta já está esgotada”

Igualmente preocupante, denuncia o professor da Unicamp, são as condições de trabalho para a produção de álcool no Brasil, que na sua visão segue o mesmo modelo dos senhores de engenho. “É imprescindível que se mude este modelo. Não podemos produzir energia como se produzia açúcar na época da escravidão, com as mesmas mazelas. Necessitamos de um modelo muito similar, por exemplo, ao de uma usina petroquímica”. Wilson Jardim reitera que não

é contrário ao programa do álcool, que nos últimos 40 anos trouxe muitos ganhos ao país em termos de tecnologia de produção, como por exemplo, na diminuição no tempo de fermentação e no aumento de produtividade média por hectare. “Promoveram-se maravilhas tecnológicas. A questão é que o cortador de cana ainda trabalha em regime próximo da escravidão, morrendo de exaustão, sendo que mesmo este meio de sobrevivência encontra-se ameaçado pela mecanização crescente”.

Outros impactos – O pesquisador observa que as discussões sobre combustíveis alternativos, geralmente, ocorrem sob o ponto de vista do ciclo de carbono, sem considerar que a cana envolve fortemente o ciclo do nitrogênio e também do enxofre. “Devemos considerar as outras emissões, como das queimadas, responsáveis pelo grande comprometimento da qualidade do ar nas cidades rodeadas por canaviais. Está clara a relação entre a época de queimas e as internações hospitalares. Seria de se perguntar: o álcool combustível, afinal, é sustentável para quem?”. Ainda sobre a produção de álcool, Jardim enumera outros aspectos a serem resolvidos, como do aproveitamento da vinhaça para aliviar seu impacto na saúde ambiental; do aprimoramento do ciclo hídrico, devido à enorme quantidade de água exigida por metro cúbico de etanol produzido; e, inclusive, do consumo intensivo de diesel de petróleo no maquinário agrícola e no transporte, além de fertilizantes e agrotóxicos. Em relação ao biodiesel, o professor lembra que prevalece a idéia de simplesmente trocar o carbono do petróleo enterrado há milhões de anos, por outro que se possa renovar através da biomassa. “Não se faz um cálculo fundamental, quando se troca um hectare de mata por outro de dendê, soja ou pinhão manso para produzir biodiesel: que para repor o carbono destruído naquela mata, precisaremos de 100 anos no caso do dendê e de 320 anos com a soja. O Brasil precisa, enfim, balizar melhor o modelo de produção de biocombustíveis e discutir abertamente os problemas sociais e ambientais dele decorrentes”. Consciência individual – O professor Wilson Jardim considera que o atual modelo de desenvolvimento, que chama de “suicida”, leva os países a consumir os recursos naturais e finitos do planeta sem planejar adequadamente o futuro. “A Noruega deposita parte do lucro auferido com o petróleo em um fundo de pesquisas de longo prazo visando energias alternativas. O petróleo descoberto na bacia de Santos tem valor correspondente a 2% do nosso PIB. Como esta reserva pertence à nação, gostaria que os 150 reais por ano a que tenho direito fossem aplicados, por exemplo, em energia eólica, que o país usa pouquíssimo”. A despreocupação em gerar um lastro para as futuras gerações deixa apreensivo o docente da Unicamp, que defende a mudança deste conceito de desenvolvimento a partir de programas que incentivem a colaboração individual. “Enfrentamos um paradigma: como o petróleo é finito, produzimos carros mais econômicos, mas que justamente por isso são mais vendidos e farão com que o petróleo acabe mais rapidamente. Não se trata de devaneio, pois o americano, que tinha dois carros grandes, comprou o terceiro por ser econômico, colocando três nas ruas. Ele deveria se perguntar por que sua família precisa de três carros”. Dentro deste modelo, segundo Jardim, o mundo poderá produzir energia mais barata e eficiente, mas cuidará logo de gastá-la, sem se livrar da sina da insustentabilidade. “Na questão ambiental, guardamos uma esperança messiânica de que algo ou alguém vai nos salvar. É reconfortante pensar que, pessoalmente, nada podemos fazer. Se o desenvolvimento sustentável embute a idéia de legar aos filhos um mundo igual ao que temos, talvez estejamos transferindo para eles o comprometimento no nível individual. Eles terão de fazer o que não fizemos”.


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A corda e a caçamba PAULO CESAR NASCIMENTO

Fotos: Antoninho Perri

pcncom@uol.com.br

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o final do século passado, geólogos identificaram em rios no norte do Paraná concentrações de flúor acima da média. Após a descoberta, uma campanha epidemiológica em mais de mil crianças da região constatou que 60% delas apresentavam diferentes graus de fluorose, doença causada pela ingestão de água com excesso de flúor, capaz de comprometer de maneira irreversível a formação da dentição e causar também deformação dos ossos da coluna. O fenômeno tinha origem natural: a água que abastecia a comunidade rural vinha de poços subterrâneos, onde estivera em contato prolongado com rochas ricas em flúor. Situações semelhantes, nem sempre causadas naturalmente, são fonte de pesquisa de uma área científica emergente, a geologia médica, que estuda as relações entre fatores geológicos e a qualidade da saúde humana. O tema, um dos dez escolhidos pela ONU para orientar e divulgar pesquisas geológicas no Ano Internacional da Terra, comemorado este ano, será abordado pela primeira vez em uma reunião da SBPC. A inclusão do tópico na pauta do encontro na Unicamp promete levantar uma questão que os geólogos brasileiros consideram estratégica para a saúde pública: a necessidade de implantação de um mapeamento geoquímico em todo o território nacional. “O Brasil não dispõe de um levantamento da composição química de seu solo e de sua água, seja de rios ou de poços”, aponta Bernardino Ribeiro de Figueiredo, professor do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp e responsável pela conferência “Geologia médica: contaminação de solos e a saúde pública” no evento da SBPC. “Existem ações de mapeamento pontuais no Paraná, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará e em Goiás, mas o País se ressente de um estudo mais sistemático de todo o seu território.”

Programa emperrado – Ele conta que, em 2003, profissionais e acadêmicos de várias instituições brasileiras foram signatários de um documento propondo ao Ministério de Minas e Energia a implantação de um programa de geoquímica ambiental e geologia médica para todo o País. Porém, lamenta Bernardino, a proposta nunca esteve entre as prioridades da instituição e, passados cinco anos, ainda não deslanchou. Segundo o docente, a reunião da SBPC – assim como o 44º Congresso Brasileiro de Geologia, em Curitiba, em outubro – oferece uma importante oportunidade de se colocar essa questão crucial na mesa de debates, para alertar a sociedade de sua importância e para cobrar providências por parte do Ministério. “Além da exposição humana a substâncias tóxicas em áreas contaminadas, existem processos naturais em determinados locais que podem ser responsáveis pela prevalência de doenças, mas cuja relação não é conhecida. O mapeamento geoquímico tem o papel de revelar a existência ou não de uma conexão entre esses fatores geológicos naturais e efeitos adversos à saúde, trazendo à luz possíveis ameaças”, argumenta o pesquisador. A extensa contaminação de solo e água por chumbo no Vale do Ribeira, em decorrência do refino industrial do metal, é emblemática do impacto causado no meio ambiente e na saúde populacional por uma atividade hu-

O professor Bernardino Ribeiro de Figueiredo, do Instituto de Geociências: “Mapeamento geoquímico traz à luz possíveis ameaças”

Nesses, segundo ele, é muito mais fácil aproveitar o conhecimento geológico, que já estava avançado, para fins de geologia médica, também produzindo benefícios para a saúde humana.

Segundo Bernardino Ribeiro de Figueiredo, é preciso conhecer a composição química das águas de poços, que são consumidas muitas vezes sem o devido tratamento

mana. O metal emitido pela indústria para a atmosfera depositou-se no solo e acabou por contaminar hortaliças e animais, como galinhas, consumidos pelos habitantes locais. Estudo conduzido na área por uma equipe multidisciplinar constituída de geólogos, químicos, toxicologistas, sanitaristas e médicos identificou níveis significativos de chumbo no sangue de moradores de duas comunidades mais próximas do local onde durante 50 anos funcionou a refinaria. Água envenenada – Mas é um fator geológico natural, contudo, que pode expor populações inteiras a um dos elementos químicos mais perigosos para a saúde humana, o arsênio, embora a exposição também ocorra por meio de águas contaminadas por mineração ou pelo uso de pesticidas. Uma tragédia na década de 1980 revelou o risco para os cientistas: milhares de pessoas envenenaramse em Bangladesh e em uma região da Índia pela ingestão prolongada de água subterrânea com concentrações excessivas de arsênio, capaz de causar câncer no pulmão, na bexiga e na pele. O líquido, consumido durante mais de duas décadas, estava em con-

tato com uma rocha contendo um mineral chamado pirita, um sulfeto de ferro rico em arsênio, porém desconhecia-se esse fato. Águas subterrâneas, observa Bernardino, são obtidas para consumo através da perfuração de poços artesianos e, em geral, tratadas de maneira muito expedita: quando muito recebem cloro para matar bactérias e não passam por uma análise química que poderia apontar eventuais riscos de intoxicação. “É necessário, devido ao risco do arsênio e da presença de outros metais perigosos, conhecer a composição química das águas de poços, não raro consumidas diretamente, sem tratamento, até porque existe uma crença popular de que água de poço é água boa. Elas estão fora da rede de abastecimento e mais desprotegidas”, adverte o geólogo. Ele defende a necessidade do mapeamento geológico em todos os estados brasileiros, até para que as pessoas despertem para ameaças que podem estar sofrendo quando bebem um simples copo de água que não foi quimicamente analisada. “Mostrar os possíveis efeitos adversos à saúde é papel da geologia médica”, destaca.

Investimentos – Para ele, o governo federal deve dar a necessária importância ao tema e reservar investimentos para o mapeamento geoquímico de todo o território nacional. “O levantamento que revelou águas com concentrações altas de flúor no Paraná e, em decorrência disso, a existência de fluorose na população, é o exemplo de um trabalho de extrema relevância para a saúde pública que deveria ser estendido para todo o País”, salienta o especialista. “Isso nos permitiria identificar, em áreas pouco estudadas, em áreas remotas, peculiaridades e fatores desconhecidos que podem afetar a saúde pública, para o mal e para o bem.” Para o bem? Sim, observa o pesquisador. Mapeamentos geológicos e geoquímicos do território nacional poderiam ajudar a identificar materiais benéficos para a saúde, como areias, rochas, lamas, águas radioativas e águas termais, entre outros, capazes de servir de matéria-prima para uma série de produtos que poderiam ser desenvolvidos pela indústria farmacêutica e de cosméticos. “Isso está sendo feito em países como Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia”, pondera Bernardino.

Metais – O professor do IG também vê conexão entre o desmatamento da Amazônia e o aumento dos níveis de contaminação dos rios amazônicos por mercúrio, metal pesado altamente tóxico. Bernardino coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp e observa que a questão extrapola a muito bem conhecida relação entre atividades de garimpo (o mercúrio é empregado na separação do ouro e depois lançado nos rios) e a existência de vastas áreas contaminadas pelo metal. Para ele, uma hipótese bastante plausível é a de que o solo amazônico foi contaminado pelo mercúrio emanado ao longo de milhares de anos de vulcões localizados nos Andes. O vulcanismo, salienta o docente, é um processo natural responsável pelo lançamento de quantidades enormes de mercúrio na atmosfera. Devido à sua volatilidade – basta lembrar que o mercúrio no estado natural é líquido, ao passo que outros metais são sólidos –, o metal pode ser transportado a grandes distâncias pela camada de gases que envolve a Terra e contaminar áreas longínquas. “Acrescente-se a isso o fato de o solo da floresta amazônica ter a capacidade de reter mercúrio, já que é muito rico em ferro e em matéria orgânica, materiais propícios à retenção de metais em geral”, argumenta Bernardino. Segundo ele, esse processo poderia explicar a existência de elevadas concentrações de mercúrio em águas e sedimentos de áreas amazônicas onde nunca existiu garimpo, como a Bacia do Rio Negro, conforme constatou pesquisa do professor Wilson Jardim, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp. “Qual a origem desse mercúrio? A mais provável, vulcânica”, defende Bernardino. Como o desmatamento expõe solos ao processo de erosão, os sedimentos naturalmente ricos em mercúrio acabarão indo para os rios, irão interagir com as águas e o metal contaminará peixes, que são a base da alimentação da população amazônica, raciocina o geólogo. No organismo humano, o produto, conforme a concentração, tem efeitos desastrosos para o sistema nervoso central e mata. Ele, contudo, pondera que a relação entre desmatamento e contaminação ainda não foi formalmente investigada, mas precisaria ser incluída no rol das discussões a respeito das conseqüências do desmatamento da floresta.


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A chave do tamanho

Foto: Antoninho Perri

CARMO GALLO NETTO

carmo@reitoria.unicamp.br

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untamente com ciência, tecnologia e inovação, a nanotecnologia permeia a pauta nacional, embora poucos consigam caracterizar cada uma delas e, principalmente, a última. Em se tratando de nanotecnologia, a autoridade do professor Oswaldo Luiz Alves, coordenador científico do Laboratório de Química do Estado Sólido (LQES), do Departamento de Química Inorgânica do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, é inquestionável. Dentro do amplo espectro de trabalhos desenvolvidos sob sua orientação, destaca-se a criação de tecidos antibacterianos, já patenteados no exterior, para a confecção de lençóis, fronhas, jalecos e bandagens destinados a ambientes hospitalares. Do laboratório também saiu um nano-eco-material que tem a propriedade de retirar corantes remanescentes dos efluentes resultantes das indústrias têxteis e de papel. O material oferece a vantagem de poder ser sucessivamente reciclado. Sua patente foi negociada com uma empresa da Região Metropolitana de Campinas, onde se encontra na fase de desenvolvimento industrial e tem comercialização prevista para próximo ano. O docente explica que “o laboratório realizou todo o processo, da geração do conhecimento à patente, os trabalhos científicos e a transferência de tecnologia para que a empresa pudesse então realizar o desenvolvimento industrial”. Uma empresa francesa já manifestou interesse em fazer testes com nanotubos de titanato, também desenvolvidos no laboratório, com vistas à sua utilização em filmes nanoestruturados que revestem vidros das janelas auto-limpantes, assim denominadas porque no contato com o vidro as substâncias orgânicas se degradam e são facilmente arrastadas pela água. Tudo que o laboratório faz é publicado e patenteado, afirma o pesquisador, que considera importante desenvolver nos estudantes a cultura das patentes: “A idéia sempre foi fazer uma pesquisa cientifica de excelência e, além disso, manter um olhar sobre o conhecimento que está sendo gerado com a perspectiva de que possa vir a ser efetivamente utilizado”. Alves fala também com muito orgulho do LQES News, publicação eletrônica quinzenal, gratuita, do Laboratório de Química do Estado Sólido. Criada por ele em 2001, a publicação de que é editor cientifico está no sétimo ano de existência e ultrapassou a 150ª. edição. Enviada aos assinantes do LQES Website, veicula notícias e novidades de C&T&I e do LQES. Segundo ele, em língua portuguesa constitui o maior repertório de informações sobre nanotecnologia e funciona como observatório do que está acontecendo de mais importante no mundo envolvendo ciência e tecnologia. Utilizando uma linguagem acessível ao público, garante a disseminação desse conhecimento, para que a sociedade possa se manter atenta e consciente ao que acontece na área. O professor participará de dois eventos da 60ª reunião da SBPC: no dia 14 de uma mesa-redonda que discutirá a “Inserção da ciência na vida do País” e, no dia 17, do simpósio “Nanotecnologia, sociedade e meio ambiente”. O que é – Para remeter às dimensões que envolvem a nanotecnologia o professor Alves lembra que um nanômetro é igual a 10-9 metros, que corresponde a um segmento aproximadamente 70 mil vezes menor que o diâmetro

de um fio de cabelo. Nessa escala de tamanho, as propriedades modificam-se drasticamente, levando a caracterização de um universo muito particular, que fez cunhar o termo nanotecnologia para identificá-lo. Alves considera que a nanotecnologia resulta do encontro de conhecimentos desenvolvidos principalmente na química, na física, na biologia e nas engenharias e a vê como uma tecnologia convergente por ser nano, bio, cogno, eco, filo, econo, etc. e por isso altamente “pervasiva”. Essa tecnologia tem levado a uma mudança de paradigmas porque, além de trazer em si novas propriedades, aponta para uma mudança radical na forma de fazer as coisas, o que pode gerar impactos industriais extremamente importantes em todos os setores das atividades humanas, tais como materiais, medicina, energia, meio ambiente, água, alimentos, eletrônica, citando as mais próximas. Então, afirma ele, a nanotecnologia pode ser entendida como o estudo, a manipulação, a construção e os impactos de materiais, substâncias, dispositivos, objetos que estão normalmente na escala abaixo de cem nanômetros e que têm propriedades que são dependentes única e exclusivamente desta escala de tamanho, sejam de partículas ou de outras entidades envolvidas. A preocupação com o nano remonta aos tempos em que o homem procurou explicar a matéria como formada de partículas – átomos e moléculas. Por outro lado, lembra Alves, a natureza é rica em manifestações nano, caso das asas das borboletas: “O efeito furta-cor que manifestam está associado à existência de estruturas nanoscópicas. As nanoestruturas garantem também a tenacidade dos dentes. Esses fenômenos foram revelados por técnicas de observação mais finas. Principalmente a partir dos anos 90 a nanotecnologia ganhou a mídia e hoje o termo permeia praticamente todos os segmentos da sociedade, embora poucos tenham claro seu significado”. Hoje, constata o docente, quase todos os países mantêm programas de nanotecnologia, porque os negócios no setor são estimados em 3,5 trilhões de dólares já para 2015, o que sugere grandes oportunidades de crescimento das nações em geral e não apenas dos centrais. Por isso, o docente diz que trabalha com a perspectiva da nanotecnologia para o desenvolvimento. “Todas as temáticas dos estudos que realizamos são pensadas nessa perspectiva. E, com isso, quero dizer que é muito importante que a nanotecnologia tenha uma vertente ligada às políticas públicas, envolvendo saúde, educação, meio ambiente, energia, habitação e agricultura, para citar as principais. Como é impossível fazer nanotecnologia sem a ajuda do governo? Por que não ligar a nanotecnologia às políticas públicas, uma vez que várias soluções podem passar por ela?”, indaga o docente. Ele entende que o valor de mercado e a possibilidade de ligação com as políticas públicas são importantes, principalmente em certas áreas como energia, porque os sistemas utilizados hoje não têm grande performance. E a nanotecnologia pode vir a fornecer soluções que viabilizem a economia de energia, com implicações muito importantes para o meio ambiente. Lembra que na Alemanha, até 2010, as lâmpadas incandescentes serão substituídas por leds, que além de maior capacidade de iluminação são mais econômicos, o que considera muito significativo principalmente nos grandes centros urbanos.

O professor Oswaldo Luiz Alves, do Instituto de Química: “É muito importante que a nanotecnologia tenha uma vertente ligada às políticas públicas” Fotos: Divulgação

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4 No sentido horário, (1) pontos quânticos de seleneto de cádmio, (2) nanotubos de carbono, (3) representação de filmes nanoestruturados, (4) nanopartículas coloidais e (5) molécula do fulereno

Outra questão colocada pelo professor é a da utilização da nanotecnologia na medicina, que vislumbra a possibilidade de novos tratamentos, aponta para as possibilidades de diagnósticos rápidos, mais precisos e de menor custo e abre caminho para tratamentos mais adequados. Ele acaba de chegar do Minatec Cross Roads, congresso realizado em Grenoble, França, de que participaram autoridades mundiais, organizado pela Minatec, um grande centro de micro e na-

notecnologia da Comunidade Européia, em que se discutiram diferentes aspectos da nanotecnologia como ciência, aplicações, riscos e se fez a prospecção do futuro. Teve oportunidade de constatar então que, pelo menos no cenário europeu, se discute muito sobre água, energia, meio ambiente e medicina, o que evidencia em que setores das atividades humanas a nanotecnologia é mais impactante. Estas constatações sugerem que para o Brasil, rico em água, recursos naturais

e biodiversidade, as oportunidades são extremamente promissoras no campo da nanotecnologia, alavancadas por uma imagem cada vez mais positiva que se tem do País no exterior devido ao desenvolvimento pelo qual vem passando e ao papel que se espera venha desempenhar no futuro. Apesar de seu entusiasmo por esse promissor universo, ele acha que, face às novas propriedades, essa tecnologia precisa ser muito bem avaliada em termos dos riscos e salvaguardas tanto para o homem como para o meio ambiente, pelo fato de se manipular nessa escala de tamanho e de ter que se considerar que todos esses novos materiais terão um ciclo de vida. E explica: “São produzidos, incorporados em algum outro material, têm suas funcionalidades, mas depois fenecem. O destino do material resultante provoca uma grande discussão na comunidade internacional. Não podemos furtar-nos a esse debate para evitar que ele derive para posições emocionais, como aconteceu com os organismos geneticamente modificados. Por isso temos que nos preparar para a discussão com a sociedade, fundamental para que se possa desenvolver uma atividade responsável e segura e para que as pessoas entendam a nanotecnologia como uma possibilidade da melhoria da qualidade de vida”. O professor Oswaldo Luiz Alves acaba de assumir a função de membro do Conselho Consultivo do MCT para a Nanotecnologia. Afirma que essa nova tecnologia será desenvolvida dentro do contexto brasileiro como uma ação consertada entre MCT e Midic através de agências CNPq e Finep, com o apoio do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e da Agência Brasileira para o Desenvolvimento Industrial (ABDI), da qual também é consultor, exercendo a função de sensibilizar os setores industriais brasileiros para oportunidades ligadas à nanotecnologia. Para isso tem visitado as federações das indústrias de vários estados do País, como também participado de eventos com os setores produtivos.


Universidade Estadual de Campinas – 14 de julho a 2 de agosto de 2008

17 Fotos: Antoninho Perri

Estudantes no Museu Exploratório de Ciências da Unicamp: para Vogt, “a produção de ciência e tecnologia tem influência significativa sobre diversas dimensões da comunidade”

CLAYTON LEVY clayton@reitoria.unicamp.br

s moradores do Estado de São Paulo se interessam mais por Ciência e Tecnologia do que por outros temas de destaque abordados pelos veículos de comunicação de massa, como Política e Economia. A conclusão faz parte de pesquisa inédita realizada pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp, em 33 municípios, incluindo a capital. O estudo, intitulado Percepção pública da ciência e tecnologia: uma abordagem metodológica para São Paulo, constituirá um dos capítulos da próxima edição de Indicadores de C,T&I em São Paulo, a ser publicada ainda este ano pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Conduzido pelo secretário estadual de Ensino Superior e coordenador do Labjor, Carlos Vogt, com a participação dos pesquisadores Marcelo Knobel, Yurij Castelfranchi, Simone Pallone, Rafael de Almeida Evangelista, Sabine Righetti e Giovana Martineli, o estudo integra levantamento organizado pela Rede Ibero-Americana de Indicadores de Ciência e Tecnologia (RICYT) e pela Organização dos Estados IberoAmericanos (OEI), realizado a partir de 2007 para avaliar o consumo e interesse por informação científica em grandes cidades de sete países: São Paulo (Brasil), Bogotá (Colômbia), Buenos Aires (Argentina), Caracas (Venezuela), Madrid (Espanha), Panamá (Panamá) e Santiago (Chile). Segundo Vogt, a decisão de ampliar a pesquisa para outras cidades teve como objetivo aprofundar o conhecimento sobre o tema. “A produção de ciência e tecnologia tem influência significativa sobre diversas dimensões da comunidade, o que impõe a necessidade de indicadores que, de alguma maneira, meçam os impactos dessa produção na sociedade”, explica Vogt, que abordará o tema no dia 17 durante a 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Campinas. “Hoje, sabe-se que conhecer e entender a opinião dos cidadãos sobre a ciência e tecnologia constitui-se em um instrumento de suma importância para uma sociedade que se pretenda democrática”, completa. A pesquisa levantou dados em municípios que não necessariamente possuem uma tradição científica e tecnológica. Alguns não contam, por exemplo, com universidades, institutos de pesquisa e museus de ciência. No trabalho em conjunto com os outros países, foi utilizado um questionário-base comum desenvolvido a partir de metodologias consolidadas, como da National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos, e do Eurobarômetro, em um exercício pioneiro de desenvolvimento de um trabalho de percepção pública da ciência na Iberoamérica. “A iniciativa reflete o esforço para se alcançar uma padronização das diretrizes e dos instrumentos de análise metodologicamente integrados, que inclua comparações em nível nacional e internacional”, explica Vogt. O estudo focalizou quatro eixos: interesse e informação em C&T; valorações e atitudes so-

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Sobre a percepção pública da

IÊNCI C A O professor Carlos Vogt, coordenador do Labjor e secretário estadual de Ensino Superior: “Indicadores representam um aparato para a tomada de decisões públicas”

bre C&T; apropriação individual e social de C&T e cidadania e políticas de C&T. No item interesse e informação, os 1.825 entrevistados tiveram de responder se eram muito interessados ou interessados em relação a dez temas apresentados pelos pesquisadores. Ante o tema Ciência e Tecnologia, 16,3% se declararam muito interessados e 47,1% se disseram interessados. Somando-se as duas opções, o tema alcançou um índice geral de interesse de 63,4% , à frente de Política (21,1%), Economia e Empresas (43,3%) e Cinema, Arte e Cultura (58,7%). À frente de Ciência e Tecnologia, no índice geral, estão Alimentação e Consumo (83,3%), Medicina e Saúde (80,9%), Meio Ambiente e Ecologia (76%) e Esportes (65,4%). O estudo destaca, porém, que as três primeiras são áreas claramente correlatas à C&T. “Grande parte do interesse do público por esses temas está diretamente ligado ou, ao menos, resvala por questões sobre ciência e tecnologia, seja na busca por mais informações a respeito apenas para ampliação do conhecimento, seja para a resolução de problemas relacionados a eles. Esses temas são quase indissociáveis, eles até se confundem com C&T”, pondera o texto a ser publicado. O levantamento mostra ainda uma alta rejeição declarada a temas como Política; Astrologia e esoterismo; e Curiosidades sobre a vida de pessoas famosas. Exceto Política, os outros

dois temas são considerados “fúteis” Áreas correlatas – Outra questão que se enquadra no mesmo eixo de análise é a que trata do nível de informação sobre esses mesmos temas. Nesse caso, o entrevistado tinha que fazer uma auto-valoração sobre o quanto é informado a respeito de determinados temas. Para as áreas consideradas correlatas à C&T o nível de informação é razoavelmente alto: Alimentação e consumo (72,1%); Medicina e saúde (63,6%); Meio ambiente e ecologia (61,4%). Segundo os autores do levantamento, os dados mostram que esses temas não apenas despertam o interesse, mas levam as pessoas a consumirem informações a respeito deles, na busca de aumentar seu conhecimento e também na tentativa de encontrar respostas para problemas a eles relacionados. No entanto, quando se trata de C&T exclusivamente, o que se observa é um nível baixo de adesões para a resposta Muito informado: 105 pessoas, ou 5,8% dos respondentes, consideraram-se muito informados sobre o tema. Um número maior, de 722 pessoas, ou 39,6%, é observado para a resposta Informado em C&T. “O fato sugere que, apesar do interesse, nem sempre as pessoas têm um nível de informação compatível”, ponderam os autores do trabalho. No estudo realizado pela RICYT e OEI, focalizando grandes cidades de seis países ibero-

americanos, os dados também revelam o interesse público por temas relacionados à C&T. No item muito interessado, Bogotá alcançou o maior índice, com 47%, seguida por Caracas (38%), Buenos Aires (20%), Madri (18%), São Paulo (17%) e Santiago (17%). No item interessado, São Paulo, com 48%, aparece à frente de Bogotá e Santiago. Somando-se as sete cidades, apenas 3,5% dos entrevistados citaram Ciência como um dos três temas que mais despertam interesse na leitura de jornais. Foram ouvidas 1,1 mil pessoas por cidade, na faixa etária entre 16 e 65 anos. No trabalho final, os dados do Panamá ainda serão incluídos. De acordo com Vogt, os estudos revelam que a percepção pública de C&T está vinculada à cultura geral do indivíduo e aos estímulos que recebe dos meios de comunicação. Para ele, a inserção dos temas de C&T na sociedade configura um processo mais amplo, de ordem cultural, e não apenas de alfabetização científica, caracterizado pela simples transmissão de informações ao público leigo. Por isso, o coordenador do Labjor prefere o termo cultura científica para designar o processo que leva à percepção pública da ciência. “Melhor do que alfabetização científica, popularização da ciência ou percepção pública da ciência, a expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso e ainda conter a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, seja de sua divulgação na sociedade, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais de seu tempo e de sua história”, explica. Para fundamentar sua proposta, Vogt apresenta um modelo representado na forma de uma espiral, por onde o conhecimento científico circula até chegar à fase de divulgação, a partir da qual ressoa na sociedade. Seu ponto de partida é a produção e difusão da ciência entre os pares, função que envolve pesquisadores e o aparelho institucional de fomento e produção do conhecimento; se amplia para o ensino da ciência e formação de cientistas, envolvendo cientistas, professores e estudantes, desde o ensino fundamental até a pós-graduação; avança na direção do ensino para a ciência, que tem como atores desde professores e diretores de museus até jovens estudantes, e completa um círculo com a divulgação científica, quando o conhecimento produzido reverbera para a sociedade como um todo, antes de reiniciar o ciclo, cada vez mais estendido. O levantamento feito pelo Labjor com apoio da Fapesp aprofunda e amplia o banco de dados sobre o tema no país, ao mesmo tempo em que oferece subsídios para formulação de políticas públicas em várias áreas. “Esses indicadores representam um aparato para a tomada de decisões públicas, no sentido tanto de incentivar a comunicação da ciência, quanto de desenvolver sistemas para a participação de diferentes atores em questões que envolvem temas ligados à C&T”, conclui Vogt.


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Uma pequena amostra de um amplo painel RAQUEL DO CARMO SANTOS kel@reitoria.unicamp.br

lém das conferências, simpósios e mesasredondas, a programação da 60ª Reunião Anual da SBPC inclui uma sessão de pôsteres com 2.197 trabalhos de pesquisa submetidos pelos autores. Outros 758 estudos foram encaminhados por 59 instituições para a Jornada Nacional de Iniciação Científica. Entre os dias 13 e 17 de julho, no Ginásio Multidisciplinar, serão apresentados aproximadamente 590 pôsteres por dia. O Jornal da Unicamp selecionou 11 dos mais de 200 trabalhos que serão expostos por pesquisadores da Unicamp. A amostra, que pode ser conferida nesta e na próxima página, contempla os estudos desenvolvidos no âmbito do eixo temático da reunião da SBPC: energia, ambiente e tecnologia. Todas elas integram linhas de pesquisas coordenadas por docentes. Os resumos dos trabalhos serão publicados em livro eletrônico na página da SBPC (http:// www.sbpcnet.org.br/eventos/60ra/), a partir de outubro de 2008.

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Professor desenvolve banco de dados de espécies on-line

Ferramenta computacional caracteriza tumor cerebral

Fotos: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti

Os professores Carlos Alberto Favarin Murari e Gilmar Barreto, da FEEC: proposta de tradução para o espanhol

Um projeto que é sucesso de audiência. No Youtube Os professores Carlos Alberto Favarin Murari e Gilmar Barreto, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), iniciaram há nove meses um projeto para disponibilizar, no Youtube, – um dos endereços mais populares da internet – aulas práticas de uma disciplina comum das engenharias de alimentos, agrícola, química, mecânica e de controle e automação. O objetivo era apresentar, na prática, alguns conceitos de Eletrotécnica. Até então, os alunos apenas tinham contato, em sala de aula, com fundamentos teóricos. Contudo, os docentes não esperavam o sucesso da iniciativa: foram registrados mais de 70 mil acessos após a inserção dos vídeos, além da proposta de traduzir o material para o espanhol. “A apresentação na SPBC será baseada na experiência de tornar o acesso público e gratuito a determinados conteúdos. No início, as aulas experimentais eram gravadas artesanalmente em bancada de laboratório, com filmagens de curta duração, pois o objetivo era simplesmente produzir material de apoio aos alunos. Os resultados foram tão positivos que recebemos inúmeros retornos de institutos de ensino que estão utilizando os vídeos. A Universidade de Madrid, por exemplo, fez a proposta de gravar o material em espanhol”, comemoram os professores. Os vídeos, que já somam dez, além da apresentação do conteúdo, exibem gráficos e figuras para exemplificar as formulações dos experimentos. São abordados temas como conceitos básicos de eletricidade, sistemas trifásicos, produção, transmissão e utilização de energia elétrica, princípios físicos e principais aplicações de conversores e transformadores. Desta forma, os interessados

fibra de carbono, cujo valor aproximado é de U$ 200. Para a fibra de sisal o custo estimado é de U$ 0,36, o que significa uma vantagem econômica excepcional. Os ensaios de resistência já renderam dois trabalhos de iniciação científica e uma tese de doutorado que será defendida nos próximos meses. Nos estudos foi feita a caracterização mecânica das fibras, sendo comprovada a utilização do material para produzir o que o professor chamou de estrutura verde, ou seja, essencialmente natural. As fibras de sisal, no entanto, são recomendadas apenas para uso em estruturas de madeira ou derivados, uma vez que se adaptariam melhor. Outra questão refere-se à sua utilização para o reforço estrutural em áreas internas, pois como todo material natural, não suportaria umidade ou outras agressões do ambiente.

Uma das principais ferramentas de biólogos e interessados em identificar espécies de plantas, as chaves de identificação ou chaves dicotômicas, acaba de ser projetada para consulta em versão eletrônica e interativa. Todo o aparato computacional que permite acesso on-line de um grupo de espécies da Mata Atlântica foi desenvolvida pelo professor do Instituto de Biologia Eduardo Galembeck. A principal vantagem indicada pelo pesquisador seria a busca interativa que possibilita, a partir das características de uma espécie, a identificação em um banco de dados em poucos minutos. Num primeiro momento, o banco de dados foi composto por 50 espécies identificadas nas regiões de Picinguaba e Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, no Estado de São Paulo. As pesquisas de campo foram feitas pelas pesquisadoras Mariella Elink, Roseli Buzanelli Torres e Eliana Ramos, do Instituto Agronômico de Campinas. No formato tradicional impresso, as chaves de

podem rever os experimentos em horário conveniente e por várias vezes, o que possibilita um aprendizado eficaz para um maior número de pessoas.

Aluno ajusta tanque para análise de raios cósmicos Um dos tanques de água para detecção de partículas de um dos mais ousados projetos na área de raios cósmicos, o Observatório Pierre Auger, na Argentina, foi colocado em funcionamento no Laboratório de Léptons do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW). O tanque, com capacidade para 12 mil litros de água, serve para análise de dados que serão coletados do Observatório com o objetivo de compreender a composição e o comportamento do fenômeno astrofísico. Iguais a ele existem pouco mais de 1.600 instalados em uma área semidesértica de três mil metros quadrados, na província de Mendonza, Argentina. De acordo com o professor Anderson Fauth, o detector de partículas foi um dos protótipos feitos na fase de desenvolvimento

Acima, paisagem de Picinguaba, onde foram feitas pesquisas; à dir., o professor Eduardo Galembeck, do IB: informações rápidas

identificação constituem importante material de pesquisa para consulta de uma infinidade de seres vivos e, por isso, a idéia de projetá-las para consultas on-line, pois amplia o acesso do material para outros públicos interessados. A primeira iniciativa de Eduardo Galembeck foi há um ano, quando o docente fez a chave para identificação de aves urbanas. Neste caso, Galembeck idealizou um sistema computacional capaz de oferecer informações rápidas, inclusive para o público leigo.

do Observatório. Fauth lembra que os tanques foram produzidos no Brasil, sob a coordenação do professor Carlos Escobar, coordenador do projeto no Brasil, e enviados para a Argentina. “Este foi um dos últimos produzidos dentro da fase de desenvolvimento”, esclarece. Desde o final do ano passado, ele estava desativado e um de seus alunos, Daniel Martelozo Consalter, decidiu fazer os ajustes para colocá-lo em funcionamento. A ativação do detector permitiu a sua caracterização, ou seja, foi possível estudar o processo de detecção de radiação Cherenkov na água. Além do tanque, cabos subterrâneos o ligam a equipamentos de eletrônica para digitalização dos dados. Possui três fotomultiplicadores que nada mais são do que sensores que captam os sinais de luz produzidos na água. Com o conhecimento detalhado do mecanismo de funcionamento do detector de partículas, os pesquisadores colaboram com a equipe de 250 especialistas de todo o mundo que estudam os misteriosos raios cósmicos de altíssimas energias que chegam à Terra de tempos em tempos.

O professor Anderson Fauth (à direita) e o aluno Daniel Martelozo Consalter em frente ao tanque: da Argentina para Campinas

O professor Nilson Tadeu Mascia, coordenador das pesquisas: alternativa natural e mais barata

Fibra de sisal é testada para reforço estrutural A fibra de sisal – produto natural, extremamente barato e abundante no Nordeste brasileiro – está sendo testada nos laboratórios da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) para reforço estrutural em vigas de madeiras e derivados como aglomerado, compensado e outros. O objetivo da linha de pesquisa, coordenada pelo professor Nilson Tadeu Mascia, é oferecer uma alternativa para os produtos usados comercialmente como fibra de carbono e de vidro, que demandam em seu processo um custo alto de energia e que também causam danos ao meio ambiente. No caso do sisal trata-se de uma planta, cujo subproduto é usado no desenvolvimento de alternativas naturais. A vantagem econômica é outro ponto que não deve ser desprezado, na opinião de Mascia. Um exemplo é o preço da grama da

A possibilidade de se realizar, futuramente, o diagnóstico de tumor cerebral sem a necessidade de métodos invasivos avançou mais um passo após pesquisa desenvolvida no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW). A física médica Edna Marina de Souza, orientada pela professora Gabriela Castellano, por dois anos debruçou-se em estudos para desenvolver uma ferramenta computacional que possibilita decifrar características de tumores cerebrais a partir de imagens de ressonância magnética. A física médica atesta que a partir do tratamento por difusão de imagens de ressonância cedidas pelo Laboratório de Neuroimagem do Hospital das Clínicas da Unicamp, foi possível chegar ao que chamou de índice de coeficiente aparente de difusão, cuja sigla é ADC. A variação deste coeficiente determinou as características de seis diferentes tipos de tumores com alta incidência na população brasileira. São eles: o astrocitoma de baixo grau, o astrocitoma pilocítico, o glioblastoma multiforme, o meningeoma, o linfoma e a metástase cerebral do câncer de mama. As imagens realizadas em pessoas sadias serviram para obter valores de referência para vários tipos de tecido cerebral. Com as modificações entre os tecidos de sadios e os acometidos de tumores, elaborararam-se os mapas de ADC, o que comprovou que é possível caracterizar os tumores a partir dos mapas de ADC, pois os resultados foram comparados aos de pacientes já diagnosticados. Uma vantagem de se caracterizar os tumores, pelas imagens de ressonância magnética é que se consegue determinar, por exemplo, graus de malignidade dos astrocitomas. Na biópsia, dependendo da porção que é retirada para o exame, não se consegue aferir este grau.

A física médica Edna Marina de Souza: decifrando características de tumores cerebrais a partir de imagens de ressonância magnética


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Ambientalista promove cruzada contra queimadas A médica e pesquisadora Aparecida Iguti: biodigestor para o aproveitamento dos gases gerados pela decomposição da matéria orgânica

O professor Celso Dal Ré Carneiro e sua orientanda, Henrieth Viviane Borgo de Oliveira: instrumental didático

Pesquisadoras avaliam impactos da suinocultura

Imagens do Aqüífero Guarani são disponibilizadas em 3D Fazer a representação em 3D e tornar disponível para acesso online às imagens em camadas de um dos maiores reservatórios de água subterrânea do mundo, o Aqüífero Guarani, é a proposta da aluna de graduação em Geologia Henrieth Viviane Borgo de Oliveira. Orientada pelo professor do Instituto de Geociências Celso Dal Ré Carneiro, a graduanda concluiu a primeira etapa dos trabalhos e até agosto o acesso estará disponível no site www.geo-escola.pro.br. O Aqüífero possui uma extensão de mais de 1,2 milhões de quilômetros quadrados e une geologicamente Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. A iniciativa permitirá que as características do Aqüífero em território brasileiro sejam compreendidas por um público geral, além de possibilitar o aumento do instrumental didático na área de Geociências que, segundo Henrieth, é bastante escasso. Além disso, a principal idéia é contribuir para proporcionar conhecimento sobre o que são essas reservas de água subterrânea e qual é sua geometria e, assim, melhorar as condições de utilização das águas. Estimativas apontam que nos últimos 40 anos já foram perfurados dois mil poços no país na área de influência do Aqüífero, geralmente concentrados nas zonas mais populosas, o que pode aumentar a probabilidade de superexploração das águas do reservatório. Dal Ré explica que o uso para agricultura das áreas onde o reservatório é naturalmente reabastecido leva a uma preocupação especial para o estudo da geometria do Aqüífero, pois a contaminação por agrotóxicos poderia ser um grave problema, inclusive, difícil de ser sanado. Com as imagens em 3D é possível visualizar as diversas camadas subterrâneas e entender algumas questões complexas de forma simplificada. A proposta segue na linha de pesquisa inaugurada por Dal Ré, que facilita a compreensão de temas na área de Geologia para o público leigo.

Pesquisa desvenda ‘mistério’ de lâmpadas fluorescentes Nos últimos anos, as lâmpadas fluorescentes compactas passaram a fazer parte das residências brasileiras. Além de cinco vezes mais econômicas no consumo de energia, elas duram até dez vezes mais do que as lâmpadas fluorescentes tradicionais, compensando o seu custo elevado se comparado ao das lâmpadas incandescentes. Outro motivo para a escolha por parte do consumidor pode ser a não exigência de instalações mais complexas, bastando o encaixe no bocal. Por esta razão o professor Yaro Burian Júnior, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação e a aluna de graduação em Engenharia Elétrica Gabriela de Paiva Siqueira iniciaram um projeto sobre o comportamento elétrico das lâmpadas. Os estudos

O professor Edson Delattre, do Instituto de Biologia: “Efeitos da fumaça são pouco divulgados”

É incansável a luta do professor Edson Delattre, do Instituto de Biologia, para que sejam evitadas e reduzidas as queimadas urbanas. Suas ações voluntárias já duram mais de onze anos. Recentemente, o professor comemorou três anos que colocou no ar a ferramenta que serviu para potencializar a tarefa de combater, a qualquer custo, as queimadas na região de Campinas.

O site foi denominado de queimadas urbanas (www.queimadasurbanas.bmd.br) e torna disponíveis as mais variadas informações sobre o assunto. De artigos sobre os malefícios da fumaça até a íntegra da lei de crimes ambientais, a página na internet possibilitou fomentar novas ações voluntárias para o enfrentamento do problema. Como resultado, Delattre contabiliza a extensão do trabalho de prevenção e combate às queimadas nas cidades de Espírito Santo do Pinhal (São Paulo), Londrina (Paraná), Lambari (Minas Gerais) e Uruaçu (Goiás), além de novas ações voluntárias em Campinas. O site disponibiliza, ainda, quinze folhetos para esclarecer pontos importantes, sendo que um deles indica “o caminho das pedras” para ser um voluntário. Com dinheiro do próprio bolso, ele imprime os folhetos e os utiliza como uma arma no combate a essa prática ilícita e nociva. “Pouco se divulgam os efeitos que a fumaça pode causar na corrente sangüínea e, conseqüentemente, no coração. É como se o planeta enfrentasse uma guerra química”, define.

Fotos: Antoninho Perri/Antonio Scarpinetti

levaram aluna e professor a descobrirem, inclusive, porque as lâmpadas fluorescentes compactas podem acender sozinhas mesmo com o interruptor desligado, efeito relatado por muitas pessoas. Burian explica que o fenômeno acontece quando são instalados nas residências interruptores chamados paralelos, isto é, dois interruptores para uma mesma lâmpada. Neste tipo de instalação a fiação empregada oferece o risco de fornecer uma pequena energia para a lâmpada, em linguagem técnica conhecidas como capacitâncias parasitas. Isto faz com que ela pisque em intervalos da ordem de um minuto. Depois de inúmeros testes em laboratório, o professor recomenda que para evitar o problema basta a instalação de um capacitador – componente elétrico trivial vendido em lojas especializadas – em paralelo com o bocal da lâmpada, sem a necessidade de modificação na fiação. “É uma solução rápida e fácil para evitar o incômodo que pode levar à interrupção do sono no caso de acontecer durante a madrugada”, defende.

O professor Yaro Burian Júnior, da FEEC: solução rápida e fácil para evitar o problema

Chamar a atenção para os impactos ambientais causados pela suinocultura é a proposta das pesquisadoras Aparecida Iguti, Neidmila Silveira, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), e da pesquisadora-colaboradora do Centro de Tecnologia Edilaine Regina Pereira. Elas argumentam que os resíduos gerados na criação de suínos oferecem grandes riscos de contaminação do solo e, conseqüentemente, do lençol freático. Entre as culturas animais, esta atividade é a que mais sofre com a falta de controle dos dejetos lançados no solo e, por isso, a necessidade de estudos que não só detectem o problema, como também proponham soluções para reduzir os impactos ambientais. Na maioria das propriedades rurais que mantêm a atividade, não se faz um controle eficaz do volume do material aplicado ao solo. A médica Aparecida Iguti lembra de alternativas como a construção de biodigestor para o aproveitamento dos gases gerados pela decomposição da matéria orgânica. Já Edilaine defende a necessidade de análises freqüentes das propriedades do solo, água e do ambiente. “É importante a conscientização por parte das autoridades e dos próprios produtores”, destacam as pesquisadoras. Na suinocultura, diferentemente de outras produções animais, o confinamento é a característica básica. Este fato favorece um alto consumo de água para a higienização do local, o que pode também gerar águas residuárias e riscos de impacto ambiental.

Combustível de origem animal é mais biodegradável

O professor Matthieu Tubino, do IQ, coordenador da linha de pesquisa: método simples e de baixo custo

Metodologia determina qualidade de biodiesel Desenvolver metodologia analítica simples e de baixo custo para determinar a qualidade do biodiesel é a proposta da mais recente linha de pesquisa coordenada pelo professor do Instituto de Química Matthieu Tubino. Segundo o pesquisador, algumas destas análises, sendo feitas pelos métodos atualmente previstos pela Agência Nacional de Petróleo, exigem altos investimentos. No caso de pequenos produtores, podem sair mais caros do que a própria produção da substância. Com isso, pesquisas que contemplem métodos alternativos são interessantes para o pequeno produtor, e mesmo para o grande, pela economia, pela simplicidade e pela segurança analítica que podem oferecer. “As grandes empresas não teriam tantos problemas na aquisição de equipamentos e montagem de laboratório para a análise segundo as normas atuais, assim como ocorre no caso do diesel de petróleo, que exige grandes investimentos. No caso dos pequenos produtores ou cooperativas, certamente, os custos inviabilizariam todo o processo”, esclarece Na SBPC, Tubino irá mostrar os primeiros resultados dos estudos desenvolvidos pelas doutorandas Eva Lúcia Cardoso Silveira, Lilia Basílio de Caland, com a colaboração do professor Osvaldo Cândido Lopes. Nesta pesquisa em bancada foi realizado apenas um procedimento para a determinação de dois parâmetros analíticos, ou seja, o ponto de fulgor e o teor de álcool residual.

Pesquisa realizada no Centro Superior de Educação Tecnológica (Ceset), em Limeira, constatou que o biodiesel desenvolvido a partir de origem animal apresentou melhor taxa de biodegradação, quando comparado com a biodegradação da mistura de biodiesel com diesel. O trabalho foi realizado pela aluna do curso de Tecnologia em Saneamento Ambiental Denise Vasquez Manfio, com orientação da professora Cassiana Maria Reganhan Coneglian e colaboração do biólogo Gilberto de Almeida. Cassiana comenta que o estudo foi comparativo e confirmou que o diesel de petróleo possui processo mais demorado de degradação e, por isso, em caso de derrame no solo, o composto torna-se extremamente prejudicial ao meio ambiente, ao contrário dos resultados obtidos com o biodiesel animal. A biodegradação foi avaliada pela técnica denominada Respirometria de Bartha, que é baseada na geração de CO2 para identificar o nível de degradação da matéria orgânica no ambiente. O produto de origem animal ainda está em fase de testes, mas já se sabe que ele terá a mesma performance de biodegradação do biodiesel vegetal no que se refere à contribuição ao meio ambiente. A pesquisa, no entanto, se limitou a testar a biodegradação em apenas um tipo de solo, podendo os resultados se diferenciar para outros tipos. (R.C.S.)


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Foto: Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem

Foto: Antoninho Perri

Professor José Armando Valente, do Instituto de Artes: “As reflexões são ricas”

Plataforma marítima de perfuração de petróleo em Guarujá: finitude de fontes energéticas é prioridade na pauta de discussões

Novas leituras

do consumo CARMO GALLO NETTO carmo@reitoria.unicamp.br

situação é emblemática. Há 50 anos, indagado se urinar na água do mar que chega às praias prejudica os banhistas, o pai responderia ao filho curioso que não. E explicaria: a quantidade de urina é desprezível em relação ao volume da água do mar. Hoje a resposta poderia ser a mesma, mas por razão diferente: o aumento da poluição seria considerado insignificante em relação à já existente em certas praias. Embora estas duas explicações indiquem a mesma falta de educação ecológica, já revelam uma certa mudança de paradigmas: apenas nas últimas décadas a humanidade tem se dando conta da necessidade da racionalização do uso da água e dos problemas de poluição ambiental, que passou a ser significativa com o aumento dos agrupamentos urbanos, a sempre crescente industrialização e a exploração desenfreada de bens naturais. Tem acontecido o mesmo quando o assunto é energia. A consciência da finitude de certas fontes energéticas começou a se desenvolver com mais amplitude no mundo com as duas crises de petróleo – já embarcamos na terceira. No Brasil ocorreu um lampejo de consciência por ocasião do apagão (em 2004), que não se manteve por falta de políticas públicas adequadas. Nos últimos anos a produção de etanol e o anúncio de novas reservas nacionais de petróleo têm contribuído para mascarar o problema no país. Talvez a questão volte a preocupar com a anunciada elevação progressiva dos preços dos combustíveis, pressionados pela crescente demanda internacional. Estas constatações emergem da conversa com o professor José Armando Valente, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes (IA) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, engenheiro mecânico de formação com atuação em computação, que se dedica ao estudo da tecnologia aplicada à educação. As reflexões adquirem particular pertinência por ocasião da 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Valente falará no dia 15 de julho no simpósio “Mudança cultural no consumo de energia e sustentabilidade”. Valente faz parte de um grupo de 64 docentes, de seis das principais instituições de ensino su-

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perior do País – Unicamp, USP, Unesp, UFRJ, UFRS e ITA – que, distribuídos por redes temáticas, discutem novas fontes de energia, produção e emprego do biodiesel, entre outros temas relacionados a fontes energéticas, comunidades sustentáveis, implicações para o meio ambiente e para a saúde. Para agasalhar problemáticas que não encontravam enquadramento em nenhuma área especifica, foi criada a Rede Convergente, de composição multidisciplinar, constituída por professores da física, química, biologia, medicina e engenharias da Unicamp, além do próprio Valente, que representa a área de humanas. A iniciativa da criação das redes temáticas, idealizada e patrocinada pela Petrobrás, tem como objetivos principais a busca de novas fontes de energia que venham substituir o petróleo e desenvolver hábitos que levem a gastos de menor energia. O pesquisador considera, que para atingir esses objetivos, é fundamental preparar a cabeça das pessoas, tornando-as conscientes do uso racional da energia e da finitude dos recursos energéticos naturais. “Nossa conversa envolve temas paralelos ou tangentes à questão focal da energia. Mesmo porque eu não sou especialista em energia. Venho me dedicando à comunicação em educação. Considero que a única saída seja acordar as pessoas para a questão da energia para que estejam conscientes de como devem usá-la e como podem economizá-la”. O que pode ser feito – O professor sugere algumas iniciativas como programas de curta duração em educação a distância para formação de professores do ensino fundamental e médio, preparados para discutir o uso de energia. Desenvolvido interdisciplinarmente, esse programa envolveria professores de ciências que poderiam trabalhar os aspectos físicos e químicos e até biológicos; professores de matemática que mostrariam os cálculos da energia consumida em varias situações; e professores de português que analisariam e levariam os alunos a desenvolver textos sobre propostas ou relatórios de projetos, entre outros exemplos. Essa prática seria adotada já nos cursos a distância e o aluno-professor contaria com subsídios dos docentes que os ministram. Outra idéia aventada por ele seria o desenvolvimento, nas escolas, de uma pesquisa sobre os

usos de energia no cotidiano. Valente esclarece que “a pesquisa teria como finalidade calcular efetivamente os reais gastos de energia em situações do cotidiano, mostrando o que é realmente mais eficiente em termos de energia no dia-a-dia, além de revelar falácias”. E cita um caso: tomar café em uma xícara de porcelana, portanto lavável, é mais econômico do que utilizar um copinho descartável? A conscientização do jovem se faz perante situações vivenciadas pelo estudante, diz ele. Na Rede Convergente emergem temas que depois são discutidos por subgrupos constituídos por membros da rede temática com experiências mais afetas a eles. É o caso da proposta que envolve a mudança de atitude em relação à utilização da energia, pelo desenvolvimento da consciência através da educação, o que pode ser realizado inclusive através da TV. Nesses subgrupos podem ser ainda montados cenários para reflexão, como os meios de locomoção que as pessoas utilizariam daqui a 50 anos ou do que se perdeu em décadas passadas, de forma a reunir elementos que permitam delinear o futuro. O professor explica que no subgrupo trabalha com pessoas de perfil e interesses semelhantes na reflexão e discussão de que tipos de ações podem ser desenvolvidas do ponto de vista educacional Nessa rede temática são discutidos: a utilização da energia nuclear, da energia solar e a instalação de usinas de biodiesel – que acabam sendo implementadas pela Petrobrás. Nesse grupo multidisciplinar, afirma Valente, ca-

da especialista revela seu olhar sobre os problemas estudados, o que tem grande importância para o estudo, do ponto de vista da sustentabilidade, de uma ilha, uma cidade, uma região, a exemplo de Fernando de Noronha, sugerida para estudo de caso. Mudanças de paradigmas – Valente insiste que é fundamental levar as pessoas a pensar que diversas das formas de energia são finitas; que existem outras fontes passíveis de utilização, como as ondas do mar, os ventos, as plantas; que o aproveitamento da água e do sol depende de programas governamentais; que a utilização de plantas leva à reflexão sobre o espaço justo que deve ser reservado a elas com finalidade de produção de energia para que não haja comprometimento de alimentos; que a energia eólica compromete a paisagem e leva à morte uma certa quantidade de pássaros; e que o petróleo não é apenas fonte de gasolina e diesel, mas fornece insumos para uma série de produtos oferecidos pela sociedade moderna, o que faz pensar sobre o real significado da questão da sustentabilidade. Ele diz ainda que o apagão trouxe um certo grau de consciência, mas não foi acompanhado de um processo educacional. Lembra que não existe no Brasil um programa coerente para definição das matrizes energéticas. O docente observa que, depois de um início promissor, o carro a álcool quase sumiu de circulação e que agora o combustível volta a fazer sucesso com a utilização de veí-

culos flex. Vê como papel da Rede Convergente o fornecimento de subsídios para um olhar mais técnico, mais profundo. A discussão, em sua opinião, abre cenários e mostra possibilidades para que a tecnologia possa analisar e utilizar, se considerar viáveis. Além de julgar o trabalho muito pertinente, o engenheiro o acha prazeroso porque realizado fora da ação do dia-a-dia. Considera muito proveitosas as reuniões mensais realizadas na hora do almoço da primeira segunda-feira de cada mês, pois, segundo o docente, se manifestam opiniões de docentes com formações as mais diversas, em que cada um analisa com seu olhar muito particular. “São reflexões ricas, embora sem a preocupação de achar a solução. É a academia exercendo seu papel fundamental: a reflexão. Olhamos o passado, pensando no futuro”, observa ele. Valente lembra ainda que na Rede Convergente poderia ser colocada a seguinte questão: como formar o um milhão de educadores do meio ambiente de que o Brasil precisa? Ele entende que o cumprimento dessa tarefa apenas será viável com o uso da tecnologia. “Para o futuro temos que pensar num processo educacional. E essa é efetivamente a mudança de paradigma, pois vamos ter que certamente utilizar novas formas de energia ao mesmo tempo. Isso, porém, não basta. Precisamos fazê-las acompanhar de uma nova postura em relação ao gasto de energia, e isso apenas se consegue através da educação”, acrescenta.


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Acima e abaixo, cenas das manifestações em Paris em maio de 1968: para Renato Ortiz, “a política invade o espaço simbólico da cultura para materializar-se no cotidiano”

O espaço do indeterminado Fotos: Reprodução

ÁLVARO KASSAB

O

kassab@reitoria.unicamp.br

que 1968 nos ensina é que a ordem social, qualquer que seja ela, nunca é imutável. Nas suas frestas insinuam-se as inconsistências – dizia-se antes, as contradições. Neste sentido, 68 pode ser visto como uma metáfora. Ela é uma janela para o futuro, um espaço no qual se aninharia o indeterminado”. A opinião é do sociólogo Renato Ortiz, que participa no dia 18 da mesa-redonda “1968: 40 anos depois”. Nesta entrevista, o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp analisa a dimensão simbólica e histórica dos acontecimentos do período e seus reflexos no mundo contemporâneo.

Jornal da Unicamp – Quais são, na sua opinião, as dimensões simbólica e histórica dos episódios de 1968. Eles sintetizaram, de alguma forma, o século XX? Renato Ortiz – Creio que é necessário dizer, antes de mais nada, de que 68 estamos falando. A data é emblemática quando se refere ao Maio francês, mas sua extensão a outros contextos deve ser feita com uma certa prudência. O Brasil de 68 não é a França de 68. O espírito libertário que soprava partilhava alguns elementos comuns, mas ele era também distinto. Na França a revolta foi uma surpresa, uma espécie de “falha” geológica da sociedade capitalista, como se subitamente o seu solo desmoronasse. O 68 francês não foi programado, tampouco era um movimento programático. Ele tinha como alvo crítico qualquer tipo de programa ou ideologia, da Igreja ao Partido Comunista, da família ao liberalismo. No Brasil, lutava-se contra a ditadura e o ideal socialista era uma utopia palpável, encarnada em partidos políticos que, em princípio, o implantariam. Na França lutava-se contra a noção de partido; no Brasil almejava-se a criação de novos partidos, desde que, claro, fossem revolucionários. Talvez fosse possível dizer que os movimentos, brasileiro e latino-americano, sintetizavam, de alguma forma, as aspirações políticas que floresceram ao longo do século XX. Maio de 68 marca provavelmente o início de uma outra época. JU – Quais das utopias do período ainda sobrevivem? Renato Ortiz – Vou desdobrar a pergunta em duas dimensões: 1) quais as utopias que sobrevivem e 2) é possível uma utopia no mundo contemporâneo? A resposta varia em função do que estamos considerando. Os movimentos latino-americanos, cujos ideais eram o socialismo ou o comunismo, fazem parte de todo um processo que se inicia com a modernidade do século XIX. Ao longo do século XX ele se consolida e se expande – revolução russa, cubana, advento dos sociais-democratas na Europa etc. Este ideário da esquerda entrou em crise, embora não tenha desaparecido. Crise significa: não possui a mesma legitimidade que antes desfrutava. Não se deve esquecer que o século XX foi calcado num conjunto de experiências que muitas vezes se realizaram de maneira perversa – penso no stalinismo. Dizer, porém, que este ideário, mesmo em crise, permanece significa considerá-lo no interior de um outro contexto. Daí a indagação: “qual seria uma proposta socialista

Foto: Antoninho Perri

O professor Renato Ortiz, do IFCH: “1968 pode ser visto como uma metáfora”

para o século XXI?”. Somos incapazes de dar uma resposta convincente para tal questão. Neste sentido, uma nova utopia necessitaria de uma outra formulação, conseguindo projetar “à frente” a esperança coletiva. Porém, se fizermos a pergunta da segunda maneira, eu diria que Maio de 68, por ser uma “brecha” na ordem da sociedade, uma “falha” no status quo, nos ensina que o futuro, apesar de todas as tendências objetivas que o definem, encerra um elemento aleatório. Neste nicho encerrase o espírito utópico. JU – Quais são, na sua opinião, as mudanças comportamentais tributárias de 68? Renato Ortiz – É difícil responder a este tipo de pergunta sem cairmos num certo reducionismo. Não se pode atribuir as mudanças comportamentais apenas a um movimento político específico. Elas decorrem de um conjunto de transformações, sociais, culturais, econômicas e até mesmo demográficas – por exemplo, o tamanho da unidade familiar. Eu diria, entretanto, que o 68 francês avança um elemento novo, que posteriormente ficará mais explícito com o caminhar dos anos. Eu me refiro à idéia de que a política encontrase, também, fora das instituições consagradas – partido, governo, sindicato – e se estende para as práticas comportamentais. Ela invade o espaço simbólico da cultura para materializar-se no cotidiano. Continua na página 22 """


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JU – Os operários tiveram um papel importante nas manifestações de 68. Contudo, viu-se depois, muitas das conquistas caíram no limbo. A flexibilização, o desemprego e o discurso (predominante) das estruturas enxutas acabaram prevalecendo, esvaziando sobremaneira o papel dos sindicatos, sobretudo a partir dos anos 90. O que ocorreu? Renato Ortiz – Eu faria novamente a distinção entre o 68 francês e o brasileiro. No caso francês, os atores principais da revolta – os estudantes – tinham a ilusão de eliminar os sindicatos da luta política e romanticamente pensavam estabelecer uma relação “sem intermediários” entre os ideais da revolta e o “povo”. Não se deve esquecer: lutava-se também contra as lideranças comunistas e sindicais. Elas teriam se “aburguesado”. No Brasil, o movimento sindical, após o golpe de 64, foi desmantelado pelo governo autoritário. Em 68 os estudantes pretendiam estar juntos com o que restava do movimento sindical na sua luta contra a intransigência ditatorial. A questão da flexibilização do trabalho é de outra natureza. Ela diz respeito às transformações estruturais do mundo do trabalho, e dificilmente poderiam ser imediatamente associadas ao quadro político da época. JU – Há quem defenda a tese de que o capitalismo não apenas mimetizou muitas das bandeiras anticapitalistas do movimento como soube usá-las para causar uma espécie de “entorpecimento” de uma sociedade que teria caminhado a passos largos para o individualismo – e, não raro, para o conservadorismo. O senhor concorda com essa tese? Renato Ortiz – Eu desconfio das teses que situam as transformações históricas, para falar como os marxistas, apenas na “superestrutura” da sociedade. Maio de 68, principalmente o francês, tinha um forte elemento existencialista, ou seja, individual. O Ser da revolta era um Eu que não queria resignar-se à ordem institucional estabelecida – da família ao partido. Mas ele diferia do existencialismo tipo sartriano. A revolta era individual, porém, somente poderia se manifestar como algo coletivo. Foi esta junção entre indivíduo e sociedade, pessoal e coletivo, que tornou a explosão fascinante, e de uma certa forma inédita. O individualismo da sociedade de consumo tem traços em comum com a revolta anterior. Não se pode negar isso. Um deles diz respeito ao uso da dimensão simbólica na esfera da política. Mas não nos esqueçamos: 68 paralisou todo um país, mobilizou intelectuais, artistas, operários, o governo e as forças policiais, o que é distinto de uma festa rave na qual após a descarga frenética das emoções individuais, todos retornam ao lar. JU – Uma das bandeiras de 1968 era o discurso contra a sociedade de consumo – em última instância contra a “mercadorização”. Porém, o mercado – e conseqüentemente o consumo – avançou sobre todos os quadrantes do planeta. O que deu errado? Renato Ortiz – Se pensarmos que Maio de 68 tinha uma proposta política, certamente diríamos: algo deu errado. Mas creio que 68 não continha nada desta natureza. Tratava-se, como diziam os franceses, de um “acontecimento”, algo que nos desvendava, não a forma como deveríamos atuar, mas muito mais a idéia de que o “sonho” era possível.

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a opinião da socióloga Maria Ribeiro do Valle, o 1968 brasileiro guarda peculiaridades que o descolam da conjuntura internacional, embora não estivesse totalmente desvinculado de movimentos registrados em outros países, sobretudo na América Latina. A especialista debruçou-se sobre o período. Suas investigações resultaram no livro 1968: o diálogo é a violência – Movimento Estudantil e Ditadura Militar no Brasil, a ser lançado pela Editora da Unicamp dia 18 durante a Feira do Livro da SBPC. Na obra, a docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (Araraquara) detém-se nos fatos que causaram o endurecimento do regime militar no país – e a reação subseqüente. A morte do estudante Edson Luís, a Sexta-Feira Sangrenta, a Passeata dos Cem Mil, a Guerra da Maria Antônia e o 30º Congresso da UNE, realizado em Ibiúna, são alguns dos episódios reconstituídos pela professora no livro. Na entrevista que segue, Maria Ribeiro do Valle, que participa de mesa-redonda sobre o tema no dia 18 na SBPC, analisa a conjuntura da época. Foto: Siarq

O diálogo é a violência

Acima, estudantes da USP deixam o prédio da Maria Antônia, em São Paulo; abaixo, tanque em rua do Rio no dia do golpe: jornais mostram a polícia como a força necessária para a manutenção da ordem Foto: Agência Estado

JU – Em que medida, na sua opinião, a globalização pulverizou – ou banalizou – as conquistas pós-68? Renato Ortiz – A globalização da economia e a mundialização da cultura configuram uma nova situação na qual se organiza a ordem mundial. Isso tem implicações políticas que vão muito além do tema de 68. A existência de uma modernidademundo, na qual operam instituições transnacionais, a emergência de uma esfera planetária do consumo, redimensionam a forma de se fazer e pensar a política – que já não mais se limita ao Estado-nação. Não se trata apenas das “conquistas de 68”, é todo um quadro político que se redefine. JU – As bandeiras hoje são outras, a começar da própria sobrevivência da espécie, em todas as suas dimensões – na ambiental, nas hordas de imigrantes, no sem número de excluídos, no advento de novas tecnologias (e suas conseqüências) etc. O senhor acredita no advento de um novo 68? Renato Ortiz – As bandeiras são certamente outras. Há inclusive o surgimento de utopias novas como a Ecologia – embora não me seduzam tanto, malgrado sua importância inconteste – e até mesmo o ressurgimento de esperanças de natureza religiosas. Muito se falou sobre o “fim das utopias”. Eu sempre fui cético em relação a certas posturas intelectuais: “fim” da história, das ideologias, da cultura de massa, da arte, do trabalho. Esse tipo de afirmação tem muito de retórico e pouco de realidade. O que 68 nos ensina é que a ordem social, qualquer que seja ela, nunca é imutável. Nas suas frestas insinuam-se as inconsistências – dizia-se antes, as contradições. Neste sentido, 68 pode ser visto como uma metáfora. Ela é uma janela para o futuro, um espaço no qual se aninharia o indeterminado.

Jornal da Unicamp – Quais os fatos que diferenciam e aproximam o 1968 brasileiro da vaga internacional? Maria Ribeiro do Valle – Acredito que seja preciso desconectar o Brasil da conjuntura internacional para dar a devida importância ao que ocorreu no país. A grande imprensa passou a “comemorar” 1968 a partir do maio francês. Acho essa visão um tanto eurocêntrica, mesmo porque nosso 68 come-

çou em janeiro, com a passeata no restaurante Calabouço, que, em março, seria invadido pela polícia. A invasão resultou no assassinato do estudante Edson Luís, o primeiro da ditadura militar. Cerca de 50 mil pessoas compareceram ao enterro. Para efeito de comparação, basta dizer que foi o mesmo número de pessoas que participou do enterro de Getúlio Vargas, em 1953. Enfim, era muita gen-

te na rua – e estamos falando numa época de ditadura. O episódio teve uma repercussão muito grande, mobilizando grande parte da sociedade brasileira. Ademais, a morte de Edson Luís é simbólica, já que se torna um marco do movimento estudantil na passagem da luta contra a ditadura na medida em que os estudantes passam a defender a Continua na página 23 """


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23 Foto: Evandro Teixeira

A Passeata dos Cem Mil, realizada no Rio de Janeiro: manifestação foi chamada de “Marcha da Família às avessas”

‘A conjuntura brasileira não ficou a reboque da internacional’ violência revolucionária para tentar transformar o regime. Por exemplo, a morte de Che Guevara, em 1967, repercute no Brasil. Este e outros episódios interferem nas diferenças entre o maoísmo, o guevarismo e outras tendências no que diz respeito àquelas defendidas pelo movimento estudantil. Mas isso ocorre a partir de um movimento que está acontecendo no país, e não o contrário. Temos que ter consciência da importância do Brasil nesse processo. Não que não tenha havido simultaneidade no âmbito da conjuntura internacional – a guerra do Vietnã, a revolução cultural na China, o movimento negro nos Estados Unidos, entre outros exemplos, transcorreram no mesmo período. Muitas vezes esses acontecimentos repercutem em outros países. Entretanto, acho que não dá para colocar a conjuntura brasileira a reboque da internacional. JU – Ela não foi determinante. Maria Ribeiro do Valle – Há a especificidade brasileira, que pode ser traduzida na luta estudantil, cujas vertentes mais visíveis são as reivindicações pela reforma universitária e pelo ensino gratuito – a questão dos excedentes e o acordo MEC-Usaid se inserem nesse contexto –, e a luta política, que é contra a ditadura militar. Vem daí a importância do movimento estudantil, já que ele é um dos principais atores na luta contra a ditadura. Por isso, também coloco minha ênfase na dimensão política desse movimento. Tivemos as greves em Osasco e Contagem, a dimensão cultural e comportamental – que também foram muito importantes – mas os estudantes eram os grandes protagonistas, até por serem de classe média e pela própria repercussão que as manifestações tiveram na mídia. Nesse contexto, as mobilizações e os assassinatos ganhavam as ruas e atingiam a

população. Havia uma visibilidade pública muito grande. JU – O fato de os estudantes serem de classe média teve algum peso nessa conjuntura? Maria Ribeiro do Valle – A classe média e, portanto, parte dos estudantes, no momento do golpe de 64, vai apoiar os militares. Esse quadro muda anos depois. Um exemplo emblemático foi a Passeata dos Cem Mil, que ocorreu uma semana depois da Sexta-feira Sangrenta, na qual foram mortos 28 populares em passeata convocada pelos estudantes no Rio. A Passeata dos Cem Mil é inclusive chamada de Marcha da Família às avessas, numa referência explícita à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, por meio da qual a classe média manifestava apoio aos militares. Fica claro, em 1968, quando a repressão do regime fica mais visível, que a classe média queria participar da política. Ela apóia o golpe contra a “subversão”, mas também não queria ficar fora da vida política do país. Com isso, vários apoiadores do golpe passam para a oposição. JU – Em seu livro, a senhora mostra como a violência emergiu do “diálogo” entre o movimento estudantil e a ditadura militar. Quais foram as conseqüências desse embate no cenário político e na sociedade? Maria Ribeiro do Valle – Em 1966, a UNE é retomada pelos estudantes de esquerda. Já neste ano os estudantes se manifestavam, mas corriam da repressão – a tática era outra. Em 1968, porém, os estudantes passam para o enfrentamento. No episódio da morte do Edson Luís, por exemplo, eles dizem que “neste luto começa a luta”. Eles passam a adotar a violência para enfrentar as ações da polícia do regime. JU – Passam a adotá-la como tática?

Maria Ribeiro do Valle – Exatamente. Eles passam a defender a violência dentro do registro da violência revolucionária. Por sua vez, a ditadura já tem, em janeiro de 1968, a proposta de um ato institucional que feche o regime, o que acabou resultando na decretação do AI-5, no final do ano. Tínhamos, então, da parte da chamada linha dura, uma tentativa de criar, a partir desses embates com o movimento estudantil, um bode expiatório para a decretação deste ato. JU – Qual era o discurso que legitimava a adoção de medidas discricionárias? Maria Ribeiro do Valle – Eles diziam que a violência era utilizada pelos estudantes e que, por conta disso, não restava outra alternativa ao governo que não fosse a repressão. JU – Na época havia no movimento estudantil uma miríade de tendências. Elas conviviam sem conflitos? Em que medida o discurso do governo de que havia divergências no interior do movimento interferiu nas ações? Maria Ribeiro do Valle – É preciso ler o movimento estudantil enquanto movimento de massas. Por mais que ele fosse feito por estudantes das mais variadas tendências, nesses episódios os estudantes “fechavam”. Registravam-se as disputas internas, mas a partir do momento em que uma das posições saía vitoriosa, eles se uniam. Houve sim uma tentativa do governo e da própria imprensa de divulgar enfaticamente a divergência no interior do próprio movimento para combatê-lo mais facilmente. No primeiro semestre, os principais episódios são no Rio de Janeiro. E aí, fica muito evidente, tanto com a morte do Edson Luís como na Sexta-Feira Sangrenta, que a polícia é a grande “culpada” pela violência. Em julho, as

passeatas são terminantemente proibidas. A partir daí, os estudantes que defendiam a luta de massas nas ruas – que preconizava a utilização da violência – vão em busca de uma nova tática. Eles partem então para a ocupação “militar” das faculdades. A mais importante delas foi a ocupação da Filosofia da USP que desemboca na Guerra da Maria Antônia, em outubro. Com isso, os estudantes que defendiam as ações de massa já estavam derrotados. Não havia mais jeito de convocar passeatas. A partir daí, os protagonistas passam a ser os estudantes favoráveis a uma vanguarda armada. Tanto a Guerra da Maria Antônia como o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, que é o último episódio do movimento estudantil de repercussão nacional em 68, estão no contexto da militarização do movimento estudantil. Tanto que o Congresso de Ibiúna era clandestino. Foi pensado sob essa ótica da luta armada. JU – Sua obra revela, em abordagem inédita, como a imprensa, ao sabor das circunstâncias, apoiou as medidas discricionárias do regime militar. Este apoio legitimou a barbárie? Maria Ribeiro do Valle – A imprensa, por mais que apoiasse o regime, dava muita visibilidade aos combates e à repressão policial. A imagem dos estudantes sendo agredidos ganhava as páginas dos jornais. Isso levava a população a reagir. Em julho, quando são proibidas as passeatas, há um grande apelo do governo para que a imprensa deixe de veicular os acontecimentos estudantis. Para os militares, a veiculação dos episódios contribuía para o apoio da população às manifestações. Já há, aí, um ensaio da censura que estaria por vir. Até esse momento, ficava claro que o responsável pela violência era a polícia. No segundo semestre, esse discurso do governo por meio do qual, desde o início do ano, era

atribuída a violência aos estudantes, começa a colar na prática com a atuação política dos estudantes, já que eles começam a defender a lutar armada, tanto na Maria Antônia como no 30º Congresso da UNE. A população, que já estava alarmada com a atuação dos militares, se volta também contra os estudantes. Em julho, por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro estava sitiada. A imagem militarista que os estudantes começam a endossar e a admitir provoca o recuo da população. No segundo semestre, com o recrudescimento da violência, começam a ser registrados assaltos a bancos e outras ações isoladas. O terrorismo de direita e de esquerda passa a atuar. A forte atuação do Comando de Caça aos Comunistas [CCC], que estava também alojado no Mackenzie, é emblemática nesse contexto. Diante desse quadro, a imprensa, sobretudo a paulista, começa a falar dos extremismos. Ela passa a mostrar os estudantes como sendo os terroristas de esquerda. Tanto na Maria Antônia como em Ibiúna, os jornais mostram a polícia não mais como desencadeadora da violência, mas sim como a força necessária para manutenção da ordem. Com isso, começa a pedir uma resposta do Costa e Silva no sentido de acabar com esses extremismos. JU – Nesse contexto, em que medida o papel da imprensa contribuiu para a decretação do AI-5, em dezembro de 68? Maria Ribeiro do Valle –A imprensa muito contribuiu para divulgar o clima de terror, inserindo inclusive os estudantes no extremismo de esquerda e pedindo a ação “mediadora” de Costa e Silva frente à “intranqüilidade e insegurança de toda a nação” desencadeadas pelos terroristas de esquerda e de direita. Ela só não contava que, mais tarde, seria um dos grandes alvos do governo. Com o AI-5, a censura foi selada.


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MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

norte-americano Richard Feynman, ganhador do Nobel de Física de 1965, provocou ceticismo na platéia quando antecipou, durante conferência apresentada em dezembro de 1959, que a ciência seria capaz de manipular e arranjar os átomos como se fossem os tijolos que compõem uma parede. Os espectadores jamais poderiam imaginar que a palestra, apresentada por ocasião de um encontro da Sociedade Americana de Física, seria considerada, anos depois, como fundadora das bases para o desenvolvimento da nanociência e da nanotecnologia. Atualmente, os dois termos foram fundidos, dando origem a um terceiro, a nanotecnociência. Graças aos conhecimentos gerados e aplicados por essa área, as pessoas já podem se beneficiar de medicamentos ditos “inteligentes”, roupas que não mancham e equipamentos eletrônicos miniaturizados, apenas para citar três exemplos. E o que é melhor: isso tudo promete ser apenas uma pequena representação diante do que a nanotecnociência ainda pode proporcionar. Na mesma conferência, Feynman previu que, no futuro, os 24 volumes da Enciclopédia Britânica seriam inscritos na cabeça de um alfinete. O pressuposto evidentemente não fazia parte de um objetivo prático, mas sim simbólico. Entretanto, decorrido quase meio século, cientistas israelenses anunciaram, em 2007, ter gravado os textos do Velho Testamento sobre uma superfície de 0,5 milímetro quadrado de silício, coberta por uma camada de ouro de 20 nanômetros. “Ainda não se trata da Enciclopédia Britânica, mas estamos praticamente lá”, avalia Peter Alexander Bleinroth Schulz , professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. De acordo com ele, embora a maioria da população ainda não tenha percebido, os produtos gerados pela nanotecnociência já estão incorporados ao seu dia-a-dia. “Isso acontece, penso eu, por dois motivos. Primeiro, por tratar-se de um assunto pouco debatido fora da academia e da indústria. Segundo, porque a educação científica ainda é incipiente na sociedade como um todo. Na tarefa de tornar esse tema mais familiar às pessoas, o jornalismo científico tem um papel fundamental”, considera. Nas palavras do professor Peter Schulz, a conjugação desses fatores faz com que a nanotecnociência seja um “estranho íntimo” das pessoas. Mas afinal, o que vem a ser essa nova área do conhecimento? O docente da Unicamp explica que o termo nanotecnociência foi cunhado recentemente, em razão de os pesquisadores entenderem que nesse segmento não é possível dissociar ciência e tecnologia. Ademais, prossegue ele, determinados avanços da ciência fundamental somente foram possíveis em razão dos progressos tecnológicos e vice-versa. “Percebemos que é muito difícil distinguir um aspecto do outro. A ciência nem sempre cumpre uma seqüência linear, que parte da pesquisa básica, passa pelo desenvolvimento tecnológico e culmina com o produto”. Peter Schulz assinala que a nanotecnociência é uma atividade essencialmente multidisciplinar. Quase que invariavelmente, os estudos exigem a participação de especialistas de diversas áreas, que vão da física à biologia, passando pela química. Dito de maneira simplificada, o objeto de estudo da nanotecnociência é o átomo, que constitui a menor parte de qualquer matéria. O prefixo “nano”, do grego, significa

O

O estranho

íntimo Representação mostra densidade eletrônica em uma superfície com desordem programada, em cálculo realizado por Rodrigo André Caetano durante seu doutorado no IFGW Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz , professor do IFGW: físico defende um diálogo mais aberto e transparente com a sociedade

“anão”. A partícula vem sendo emprestada pelos cientistas para designar unidades de medida. Um nanômetro, por exemplo, corresponde a um bilionésimo do metro. Apenas para dar um exemplo do que isso representa, um nanômetro é o comprimento de dez átomos de hidrogênio enfileirados ou a distância de três pares de base do DNA humano. Para usar uma frase que já se tornou corrente no universo da nanotecnociência, o que os pesquisadores fazem é trabalhar com escalas extremamente pequenas para alcançar grandes resultados. Na opinião de Peter Schulz, por ser uma área relativamente nova, a nanotecnociência ainda oferece muitas possibilidades. Num horizonte mais próximo, considera, deverão surgir novos medicamentos “inteligentes”. Estes devem incorporar ainda mais fortemente o que os especialistas denominam de Drug Delivery Systems (DDS). Uma vez administrada no organismo, a droga vai ser “entregue” exatamente no local onde deve atuar, como nas células cancerígenas. Nesse caso, o princípio ativo normalmente é encap-

sulado em nanopartículas que cumprem a função de transportá-lo. “Também deveremos ter novidades na área da eletrônica. O limite é fazer com que um bit de informação seja equivalente a um átomo”, antecipa o docente da Unicamp. Embora revele otimismo em relação às possibilidades abertas pelas pesquisas em nanotecnociência, Peter Schulz também considera ser recomendável ter cautela e responsabilidade no que toca a alguns aspectos. De acordo com ele, um cuidado indispensável, sobretudo por parte da comunidade científica, é não criar falsas expectativas na população. Para evitar que isso ocorra, o físico defende um diálogo mais aberto e transparente com a sociedade. “Penso que é preciso informar as pessoas, em linguagem acessível, sobre o estágio dos estudos e as reais possibilidades de sua aplicação. Temos que evitar o que aconteceu, por exemplo, quando do início do Projeto Genoma Humano. À época, as pessoas foram levadas a acreditar que, uma vez decodificado o genoma, a cura para todos os males e mais alguns estaria no horizonte de alguns anos. Como

sabemos, isso não está acontecendo”. Outra preocupação do docente da Unicamp está relacionada com as eventuais conseqüências ocasionadas pelos produtos e processos gerados pela nanotecnociência. Esse ponto, adverte, tem sido pouco estudado pela ciência. “Os recursos e esforços para se verificar se existem efeitos colaterais, para checar se determinada tecnologia pode ou não ser poluidora, não são tão amplos quanto deveriam ser”, constata. Um episódio recente ilustra bem esse problema. Uma empresa fabricante de equipamentos eletroeletrônicos produziu uma linha de refrigeradores, lavadoras de roupa e condicionadores de ar que utiliza uma tecnologia batizada de Silver Nano. Dito de modo simplificado, os filtros dos aparelhos são impregnados de nanopartículas de prata, material que tem elevada propriedade bactericida. Ocorre, entretanto, que após o lançamento dos produtos, que foi precedido de intensa campanha publicitária, alguns setores começaram a levantar a hipótese de que, após serem lançadas ao meio ambiente, as nanopartículas de prata pudessem matar também microorganismos benéficos. “Isso levou os Estados Unidos a propor leis específicas para o uso dessa tecnologia, o que teve influência no marketing criado em torno dessa linha de eletrodomésticos”, informa Peter Schulz. De acordo com ele, esse episódio é emblemático do ponto de vista da responsabilidade do cientista em relação às implicações do seu trabalho. “Não podemos perder a perspectiva de que a pesquisa científica envolve a ética e a opinião pública”. O físico revela gostar muito de uma frase da socióloga espanhola Amparo Lasen, que estuda os fenômenos relacionados à comunicação por meio da telefonia e internet. Segundo ela, “toda grande mudança tecnológica é um conjunto de embates e negociações entre as partes interessadas”. Ou seja, a aplicação do conhecimento científico também é permeada por uma série de interesses, situação que nem sempre é transmitida à sociedade. “Considero interessante a idéia de que o cientista tenha uma responsabilidade que vá além do laboratório. Penso que tal postura não representa qualquer entrave ao desenvolvimento científico. Ao contrário, é bastante útil a ele. A ciência precisa perder um pouco da sua pretensa neutralidade”, avalia. Atualmente, Peter Schulz desenvolve estudos relacionados com simulações numéricas, cujo objetivo é desvendar as propriedades de dois sistemas, ambos candidatos a uma possível nanoeletrônica. Num deles, o pesquisador investiga os atributos eletrônicos das moléculas da DNA. “Como o DNA tem a capacidade de se auto-arranjar, a pergunta que estamos tentando responder é: o que será que acontecerá se programarmos uma seqüência artificial de guanina, citosina etc? Essas bases nitrogenadas vão se transformar em condutores ou isolantes? E mais: será que se eu inserir uma partícula de ouro, esse sistema vai se transformar num dispositivo eletrônico?”. O outro estudo conduzido pelo docente da Unicamp relaciona-se com um novo material, o grafeno, uma espécie de folha de dimensões nanoscópicas composta apenas por átomos de carbono, com propriedades eletrônicas extremamente promissoras. “Estamos tentando compreender melhor essas características. Numa segunda etapa, vamos tentar manipular esse material em escala nanométrica. O objetivo final é empregá-lo na eletrônica, em substituição, por exemplo, ao silício usado na fabricação de chips de computadores”, detalha o cientista.


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