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Campinas, 27 de abril a 10 de maio de 2015 - ANO XXIX - Nº 623 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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CORREIOS

FECHAMENTO AUTORIZADO PODE SER ABERTO PELA ECT Foto: Antonio Scarpinetti

O fim da água Análises, propostas e pesquisas

Imagens: US Geological Survey/Landsat

Ademar Romeiro | Alvaro Crósta | Anete Pereira de Souza | Antonio Carlos Zuffo | Carlos Nobre | Eduardo Fagnani | Humberto Miranda do Nascimento | Igor Pescara | José Marcos Pinto da Cunha | José Teixeira Filho | Marina Ilha | Maurício Durigan | Orlando Fontes Lima Jr| Oscar Sarcinelli | Wilson Jardim

FEVEREIRO 2013

AGOSTO 2013

AGOSTO 2014

FEVEREIRO 2015

Na foto maior, represa do Cantareira no final de 2014; acima, sequência de imagens feitas do espaço mostra a diminuição do volume de água no Reservatório Jaguari, que integra o Sistema


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Campinas, 27 de abril a 10 de maio de 2015

Para além da lição de casa Fotos: Antoninho Perri

Unicamp cria Plano de Contingência para ampliar ações voltadas à racionalização do uso da água MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

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uito antes de a crise hídrica entrar para a pauta dos governantes e integrar a relação das maiores apreensões da população brasileira, a Unicamp já se preocupava em adotar medidas voltadas ao consumo racional da água. Em 1999, por exemplo, a Universidade instituiu o Programa Pró-Água, que implementou ações de conscientização e combate às perdas. A iniciativa foi tão bem-sucedida que, atualmente, o nível de consumo da instituição é semelhante ao de 15 anos atrás, a despeito de a sua estrutura física ter registrado um crescimento de aproximadamente 40% no período. Lição de casa feita, o desafio agora é melhorar ainda mais os resultados alcançados. Para enfrentar o atual período de escassez hídrica, a Unicamp lançou no final de fevereiro o seu Plano de Contingência, que pretende aperfeiçoar e ampliar as ações até aqui adotadas. “Queremos avançar em relação ao que tem sido feito. Para isso, vamos utilizar os métodos e tecnologias que temos hoje à disposição e que não existiam à época do Pró-Água”, explica o titular da Coordenadoria Geral da Universidade (CGU), instância responsável pela formulação do plano, professor Alvaro Crósta. De acordo com ele, as medidas previstas no Plano de Contingência foram amplamente discutidas e receberam a colaboração de docentes, pesquisadores e trabalhadores técnicos de diferentes áreas da Unicamp. “As ações envolverão tanto o segmento acadêmico quanto o administrativo da Universidade. Um aspecto importante a destacar é que o plano não é um documento acabado. Ele sempre estará aberto a contribuições e a eventuais ajustes”, pontua Alvaro Crósta. Segundo o professor Orlando Fontes Lima Jr, assessor da CGU, as ações previstas no Plano de Contingência estão orientadas por três vetores: conscientização, racionalização e prevenção. No contexto do primeiro vetor, adianta o docente, estão sendo desenvolvidas, pelo GGUS (Grupo Gestor Universidade Sustentável), campanhas de esclarecimento voltadas à comunidade universitária, que incluem, entre outras medidas, a distribuição de folhetos explicativos e a adesivagem das louças e metais sanitários. “Nós também já iniciamos a realização de uma série de seminários e workshops, nos quais especialistas da Universidade e de outras instituições, inclusive estrangeiras, estão discutindo a problemática da escassez de água”, elenca Lima Jr. No último dia 13 de março, por exemplo, foi realizada a primeira edição do evento “Refletir – Encontro Permanente sobre vivência e gestão na Unicamp”. Na oportunidade, integrantes da comunidade universitária assistiram a palestras e participaram de oficinas nas quais foram discutidos temas relativos ao consumo racional da água, mas também questões sobre economia de energia elétrica, reciclagem de materiais e consumo consciente. “A experiência foi muito exitosa. As pessoas se envolveram e se sentiram estimuladas a trocar experiências e a colaborar com o esforço da Universidade em busca da sustentabilidade”, avalia o também assessor da CGU, professor José Marcos Pinto da Cunha. Quatro dias depois da realização do Refletir, a Universidade promoveu o Fórum Sustentabilidade Hídrica: Perguntas, Desafios e Governança, organizado pelo Fórum Pensamento Estratégico (Penses). Durante dois dias, especialistas do Brasil e do exterior debateram as diferentes implicações da escassez de água. “Pretendemos seguir nessa linha, sempre fomentado a reflexão sobre os problemas e as possíveis soluções para eles. O objetivo é contribuirmos para a formulação de projetos que beneficiem tanto a Universidade quanto a sociedade de modo geral”, afirma Alvaro Crósta.

Outra ação promovida pelo GGUS foi a Semana da Água, que ocorreu entre 23 e 27 de março, cuja programação contou com diversas ações, entre as quais exposições, palestras e atividades no sistema educativo da Unicamp – envolvendo crianças, pais e professores –, além do lançamento da campanha de conscientização “Eu e a Água na Universidade”. No contexto da racionalização, informa Lima Jr, estão previstas diversas iniciativas, entre elas a perfuração de novos poços para a extração de águas subterrâneas. Atualmente, a Unicamp dispõe de quatro poços em operação e pretende dobrar o número. “Nós estamos elaborando estudos de viabilidade nesse sentido, inclusive em relação à área que foi acrescida ao campus de Barão Geraldo, adquirida no ano passado pela Unicamp”, diz. Outra frente que será trabalhada ainda mais fortemente, conforme o assessor da CGU, é a água de reúso, algo que já acontece hoje. Paralelamente, a instituição pretende ativar a sua Estação de Tratamento de Água (ETA), que foi construída para funcionar experimentalmente e dar suporte às pesquisas na área. “Na prática, nós estamos deflagrando a terceira fase do Programa Pró-Água, que já proporcionou importantes ganhos para a Universidade em termos da racionalização do consumo”, esclarece Lima Jr. A nova etapa prevê, entre outras intervenções, a continuidade da troca de torneiras e bacias sanitárias por modelos que controlam o fluxo da água e o uso de dispositivos (redutores de pressão e aeradores) que reduzem a saída de água das torneiras, sem comprometer o conforto do usuário. Por fim, mas não menos importante, estão as ações destinadas à prevenção. O Plano de Contingência estabeleceu a criação do Comitê de Crise e a mobilização de uma força-tarefa para o cumprimento de ações emergenciais, caso a crise hídrica se intensifique nos próximos meses, quando do início das estações seca do ano. “A nossa filosofia de trabalho é a seguinte: esperar pelo melhor, mas preparar-se para o pior”, destaca Alvaro Crósta. Além de todas essas ações e diretrizes, há diversos outros trabalhos em andamento e que deverão ser intensificados a partir das determinações do Plano de Contingência. A Prefeitura Universitária segue executando trabalhos voltados à redução de perdas de água, como a operação caça-vazamentos e a manutenção dos prédios da Universidade. “Nosso propósito é o de dar uma resposta rápida aos problemas”, assegura o titular do órgão, professor Armando José Geraldo. O Plano de Contingência da Unicamp para enfrentar a crise hídrica foi anunciado menos de um mês depois de uma reunião realizada em São Paulo, da qual participaram reitores e vice-reitores das universidades públicas do Estado de São Paulo. Na ocasião, os dirigentes divulgaram um documento com propostas para enfrentar o atual momento. O objetivo das universidades é estimular o consumo racional de água no âmbito das instituições, mas também desenvolver métodos e técnicas que contribuam para a formulação de políticas públicas na área de saneamento básico, de nodo a beneficiar a população em geral.

José Marcos Pinto da Cunha, assessor da CGU: envolvimento da comunidade universitária é fundamental para do êxito do esforço

Adesivagem em sanitários é uma das medidas da campanha de esclarecimento promovida pela Universidade

Alvaro Crósta, coordenador-geral da Unicamp: “Queremos avançar em relação ao que tem sido feito. Para isso, vamos utilizar os métodos e tecnologias que temos à disposição”

Orlando Fontes Lima Jr, assessor da CGU: ações previstas no Plano de Contingência estão orientadas pelos vetores conscientização, racionalização e prevenção

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador-Geral Alvaro Penteado Crósta Pró-reitora de Desenvolvimento Universitário Teresa Dib Zambon Atvars Pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários João Frederico da Costa Azevedo Meyer Pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore Pró-reitora de Pós-Graduação Raquel Meneguello Pró-reitor de Graduação Luís Alberto Magna Chefe de Gabinete Paulo Cesar Montagner

Elaborado pela Assessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade semanal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (019) 3521-5108, 3521-5109, 3521-5111. Site http://www.unicamp.br/ju e-mail leitorju@reitoria.unicamp.br. Twitter http://twitter.com/jornaldaunicamp Assessor Chefe Clayton Levy Editor Álvaro Kassab Chefia de reportagem Raquel do Carmo Santos Reportagem Carlos Orsi, Carmo Gallo Netto, Isabel Gardenal, Luiz Sugimoto, Manuel Alves Filho, Patrícia Lauretti e Silvio Anunciação Fotos Antoninho Perri e Antonio Scarpinetti Editor de Arte Luis Paulo Silva Editoração André da Silva Vieira Vida Acadêmica Hélio Costa Júnior Atendimento à imprensa Ronei Thezolin, Gabriela Villen, Valerio Freire Paiva e Eliane Fonseca Serviços técnicos Dulcinéa Bordignon e Fábio Reis Impressão Triunfal Gráfica e Editora: (018) 3322-5775 Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (019) 3383-2918. Assine o jornal on line: www.unicamp.br/assineju


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A lógica invertida da

mercantilização

Para economista, companhias de abastecimento priorizam lucros imediatos e não investem em saneamento Fotos: Antonio Scarpinetti

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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ma lógica mercantil, voltada para a produção de lucros e dividendos imediatos, em detrimento de objetivos de longo prazo, e a ausência de uma política nacional articulada de saneamento estão entre as causas da crise hídrica vivida pelo Estado de São Paulo, principalmente no Sistema Cantareira, que abastece a capital, afirma o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Se você observar os dados da Sabesp agora, ela continua dando lucros enormes, que ela distribui aos acionistas”, disse Fagnani. “Como o maior acionista é o Estado de São Paulo, o que acontece? Uma inversão da lógica social: em vez de o Estado financiar, via arrecadação de impostos, o saneamento, o que acontece é o lucro da Sabesp financiar o Estado”. A Sabesp, ou Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, é uma empresa de capital aberto e ações negociadas em bolsa. O governo paulista detém o controle da empresa, com 51% das ações. O restante das ações é detida por grandes grupos financeiros internacionais e nacionais. Na opinião do pesquisador, a distribuição de dividendos, somada ao monopólio do saneamento – os clientes da Sabesp não podem simplesmente trocar de fornecedor, caso estejam insatisfeitos com o serviço – ajuda a explicar a ausência de investimentos que poderiam ter mitigado a crise desencadeada pela seca recente. “O desperdício de água no Japão é 3%, na Alemanha é 5%, em São Paulo, na Sabesp, é 35%. E por que a Sabesp não investiu nisso? Em reduzir a perda de 35% para 10%? Por que a Sabesp, nos últimos 20 anos, não investiu, por exemplo, na redução dessas perdas?”, questiona Fagnani, para logo em seguida sugerir uma possível resposta: “O saneamento, em geral, é monopólio. Quer dizer, não tem concorrência – então, por que eu vou investir? Porque, o investimento reduz a parcela de dividendos que anualmente é distribuída aos acionistas”, argumenta. “Se tivessem investido para redução de perdas, provavelmente a Cantareira não estaria no problema em que está. Mais de um Cantareira é jogado fora em perdas e ineficiências da gestão privada. Por que acontece isso? Há vários motivos, mas com certeza, eu acho que também tem a ver com essa lógica privada e a pressão pela distribuição do lucro aos acionistas”.

Para o pesquisador, a Sabesp não combate a perda de água, que chega a 35% em São Paulo, porque o investimento reduziria dividendos distribuídos aos acionistas

PLANEJAMENTO

NEOLIBERALISMO “A privatização está ligada à agenda neoliberal que passou a ser hegemônica no mundo a partir de 1980, quando a ideia é a seguinte: reduz o Estado; o Estado regula; e, o mercado opera. Você abre a economia para que as empresas internacionais venham atuar no Brasil”, disse Fagnani. “A justificativa era que o Estado estava quebrado, o setor privado era eficiente e tinha recursos para investir. Mas isso era só um discurso: na verdade, isso se dá para responder às necessidades do capital financeiro. O capital financeiro busca valorização, e obtém isso onde? Entrando num setor que é essencialmente público; e o saneamento não fugiu à regra”. O pesquisador relata como, no caso brasileiro, as empresas estaduais de saneamento básico, criadas durante a ditadura militar, foram sucateadas ao longo do período de inflação alta dos anos 80, até que a privatização ou abertura de capital aparecesse como uma espécie de tábua de salvação do setor, na década seguinte.

O professor Eduardo Fagnani: “Em vez de o Estado financiar, via arrecadação de impostos, o saneamento, o que acontece é o lucro da Sabesp financiar o Estado”

SUCATEAMENTO “Em 1971 a ditadura cria o Planasa, Plano Nacional de Saneamento. Esse plano cria, em cada Estado, uma concessionária estadual, e obriga os municípios a entregar a concessão para a concessionária estadual. Os municípios foram obrigados, pela ditadura militar”, explica Fagnani. “Quem não desse a outorga às concessionárias estaduais era penalizado, não tinha direito a certos financiamentos, havia uma coerção. Como resultado, 90% dos municípios brasileiros fizeram isso”. Essas concessionárias passam a ser, então, o carro-chefe do saneamento básico no Brasil. “Essas empresas, aí que está um equívoco, também tinham que ser lucrativas: a própria receita da tarifa tinha que sustentar a empresa e os investimentos”, disse Fagnani. “Isso é que vai explicar, em parte, por que essas concessionárias estaduais ampliaram mais a rede de distribuição de água do que coleta e tratamento de esgoto: porque elas tinham de dar lucro, e o investimento

em distribuir água é mais barato e o retorno é mais rápido. E, seguindo a lógica financeira, não se vai atender onde a demanda é mais necessária socialmente, vai-se atender onde é mais rentável, onde o retorno sobre o capital é maior. Então, durante a ditadura militar você expande a água, mas a coleta de esgoto fica estacionada”. Ainda hoje, em pleno século 21, lembra Fagnani, menos de 50% da população vive em residências com coleta de esgoto; e, mais da metade do esgoto coletado não é tratado, sendo despejado no mar e nos rios. Com a crise econômica e a hiperinflação dos anos 80, o governo passa a administrar as tarifas cobradas pelas empresas estatais, incluindo as de saneamento, como modo de tentar conter a alta inflacionária. “Então a inflação era 100, você podia aumentar 60, digamos”, exemplificou o pesquisador. “Depois de cinco, seis anos assim, as estatais desmoronaram. E isso vai acon-

tecer durante os anos 80 como um todo. Aí vem o sucateamento: não se investe nem em saneamento, nem em água, nem em infraestrutura – e, quando chega a década de 90 com o neoliberalismo, o prato está feito: dizem,’ veja, está tudo sucateado, as empresas dão prejuízo, o Estado é ineficiente, etc., melhor privatizar’. Mas ninguém quer saber por que elas davam prejuízo”. No Estado de São Paulo, a onda de privatizações e de abertura de capital chega também às concessionárias municipais que haviam resistido ao Planasa. “E o que se privatiza é o filet mignon, certo? Você vai privatizar Limeira, Itu, e Ribeirão Preto, por exemplo: cidades que já tinham infraestrutura, já tinham uma situação de saneamento muito melhor que outras. O setor de saneamento básico, no Brasil, é isso: teve esses quinze anos de regime militar, depois a crise e, nos anos 90, privatiza. Privatiza ou sucateia o que restou do Estado”.

O produto dessa história, diz Fagnani, é um setor que, rigorosamente, nunca foi alvo de uma política nacional pública pensada para o longo prazo, mas viveu submetido a uma lógica de rentabilidade imediata. “Quando chega em 2007, 2008, o governo apresenta o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que incorpora a questão do saneamento, o que traz um aumento do investimento federal no setor”, disse o pesquisador. “Mas a nova política nacional de saneamento básico só é aprovada em 2012. É uma política, do ponto de vista da lei, interessante, uma tentativa de se pensar o saneamento como um problema nacional”. O problema, segundo Fagnani, é que a lógica do PAC – de liberação de recursos mediante a aprovação de projetos de investimento – não é exatamente compatível com as necessidades do programa de saneamento. “Grande parte dos municípios que mais precisam não tem capacidade de fazer isso, montar um projeto. Tem uma lógica de financiamento que é melhor do que antes, sim, mas ainda não contempla o sistema nacional como um todo, o planejamento do setor, um diagnóstico das carências nacionais e regionais. Houve uma tentativa de reformular uma política nacional de saneamento, que demorou muito tempo para sair e que não tem avançado”.

FUTURO Fagnani não vê uma solução simples para o dilema do saneamento básico no Brasil, dividido entre um setor privado voltado para a lucratividade e um setor estatal subfinanciado e sucateado. Ele afirma que as privatizações e aberturas de capital tiraram dos governos a capacidade de fazer política pública no setor. “Acho que o governo nem tem mais instrumentos para fazer um grande plano. As estatais tinham seus problemas, mas eram instrumentos de política econômica. Você vê essa questão no setor de energia elétrica: sendo do Estado, ela gera energia, gera tarifa e receita. Com essa receita, pode contratar investimento privado, financiar uma construção de hidrelétrica, por exemplo. Quando privatiza, perde-se isso. E aí o que acontece quanto se tem de investir em infraestrutura? Concessão para o setor privado. Mas aí você tem só quatro ou cinco grandes empresas capacitadas, e fica na mão delas”. No caso da água, a situação se agrava, por conta do monopólio das concessionárias e do fato de que se trata de um item essencial para a vida. “Do ponto de vista da concessionária privada, ela cobra a tarifa e, se não fizer mais nada, já dá lucro. E a lógica privada é o lucro. Não é outra. Quem vai fazer um investimento de grande porte? Não é a concessionária privada. É o Estado. O setor privado vai fazer investimentos pesados para buscar água? Não acredito. O que você tem é ou o Estado sucateado, ou uma lógica privada antagônica a um projeto para o país. E esse é o retrato de 500 anos de saneamento no Brasil”.


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Campinas, 27 de abril a 10 de maio de 2015

O mapa da Giardia em Campinas

Pesquisa publicada na PLoS ONE revela diversidade genética do protozoário nas águas da cidade

Fotos: Antonio Scarpinetti

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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diversidade genética encontrada em amostras do parasita Giardia duodenalis recolhidas em pacientes e nas águas da cidade de Campinas (SP) é alta e surpreendente, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador Maurício Durigan, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Universidade, principal autor de artigo sobre o assunto publicado no periódico internacional PLoS ONE. O autor afirma que sua descoberta chama atenção para o fato de que a contaminação das águas é um problema que precisa ser tratado em escala metropolitana, regional ou estadual, e não apenas municipal. A presença da Giardia – protozoário causador da infecção giardiose, que provoca diarreia e outros problemas intestinais, sendo especialmente perigosa quando infecta crianças – nas águas da região de Campinas já era conhecida, mas a diversidade genética, descoberta por meio do uso de marcadores moleculares, representa uma novidade importante, explica o autor, destacando que existem vários subtipos diferentes do parasita. “Há, por exemplo, subtipos de Giardia que são específicos de cães, existem que são específicos de gatos”, disse ele. “A gente tem uma colaboração na Sanasa [Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A, empresa responsável pelo saneamento em Campinas], e eles têm interesse em saber isso: se eu falasse para a Sanasa que só há Giardia de cão, digamos, a resposta seria diferente”. A maioria dos subtipos identificados no trabalho de Durigan tem o chamado “potencial zoonótico”, o que significa que podem ter mais de uma espécie de hospedeiro, com o potencial de circular entre humanos e animais. “As ferramentas genéticas permitem não só conhecer os subtipos, como também quantificar quanto tem ali naquele determinado local, então são respostas que antes não tínhamos”, explicou o pesquisador. “Agora começamos a saber, de maneira mais acurada, o que tem ali, e quais os riscos daquilo. Que existe contaminação humana e também que esses subtipos, que estão lá, podem circular entre animais e humanos”.

A Giardia é considerada um organismo assexuado – ou seja, os filhos são clones, cópias exatas, dos pais. “Nessa situação, espera-se muito pouca diversidade”, disse o pesquisador. Em linhas gerais, se houvesse apenas uma fonte de contaminação presente na cidade, todos os parasitas encontrados deveriam trazer uma mesma assinatura genética. “Mas, nesse caso, não é assim. O que apareceu foi uma altíssima diversidade: é como se Campinas fosse um núcleo de pessoas vindo de diferentes regiões. É uma cidade metropolitana – a gente tem uma altíssima diversidade genética aqui, mostrando, então, que a Giardia está chegando de diferentes locais, de diferentes regiões, e que existe uma relação entre a parte ambiental e a clínica que é, também, uma das novidades do trabalho”.

QUESTÃO METROPOLITANA

Córrego na Via Norte-Sul, em Campinas, onde foi feita coleta de amostras: resultados diferentes quanto aos perfis genéticos

DOENÇA REEMERGENTE

nadas, incluindo rios, córregos urbanos, esgoto hospitacidas, que recebem essa denominação por conta de seu Giardia duodenalis é transmitido por via fecal-oral: reaparecimento, ou do aumento do número de casos, lar, uma instalação de tratamento de esgoto e o ponto de cistos do protozoário são eliminados nas fezes de pesnos últimos anos”. Ela acrescenta: “Pelo fato de terem captação de água para a cidade no Rio Atibaia. Amostras soas ou animais portadores, de onde podem chegar à causado poucas infecções em anos anteriores, já não clínicas foram obtidas através de parcerias com hospiágua ou a alimentos, reiniciando o ciclo da infecção. eram consideradas mais um problema importante de tais, uma creche, uma clínica veterinária e uma fazenSaneamento adequado, com captação de esgoto e tratasaúde pública. Assim, uma doença reemergente pode da”. Parte das amostras veio do Hospital de Clínicas da mento da água, é o melhor modo de evitar a doença. ser explicada como uma doença que está ressurgindo Unicamp (HC). No Brasil, dados de 2014 do Sistema Nacional de em importância. E a cada ano, mais pessoas são deA diversidade genética da Giardia presente em Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério tectadas com giardiose”. Campinas aparece claramente nessas amostras, disse das Cidades, mostram que apenas 39% dos esgotos gerados são tratados, com graves desigualdades regioo pesquisador, que dá um exemplo: “Há dois córregos IVERSIDADE nais – indo de 43%, no Sudeste, para 14% no Norte. ali na Norte-Sul com Orosimbo Maia [duas importantes avenidas da cidade], o Córrego Proença e o Córrego SeO material usado no estudo de Durigan foi coletado O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) rafim. Quando eles se juntam, formam o Ribeirão Anhuem vários pontos da cidade, e inclui tanto amostras dos Estados Unidos estima que cerca de um terço da mas. Coletei amostra do Proença, do Serafim e do Anhuclínicas – obtidas de pacientes – quanto água retirada população dos países em desenvolvimento já sofreu com mas, e é possível ver que elas têm resultados diferentes contaminação por Giardia, considerada pela ONU uma de rios e esgotos. Como diz o artigo na PLoS: “Amostras quanto aos perfis genéticos”. doença negligenciada. “O Brasil não tem um sistema ambientais foram obtidas de fontes de água correlaciode notificação de surtos de Giardia, como há em países como os EUA. Então, grande parte dos surtos que acontecem, não sabemos”, disse Durigan. “Giardia é considerada um protozoário reemergente, porque há alguns anos começaram a aparecer muitos casos em muitos países, principalmente em creches”. Artigo publicado em 2000 no “International Journal of Parasitology” pelo pesquisador australiano R.C. Andrew Thompson, ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS), explica como a giardiose, que afeta milhões de pessoas em países em desenvolvimento, onde as condições de saneamento básico são precárias, passou a ser vista como uma “doença reemergente” no mundo desenvolvido. Escreve Thompson: “Inicialmente, isso se deu por causa da associação entre Giardia e surtos de diarreia em creches, cuja utilização vem aumentando nos países desenvolvidos e representam um importante fator na emergência de doenças (...) Como resultado, muitas crianças são expostas a infecções numa idade onde têm poucos hábitos de higiene e são imunologicamente suscetíveis”. A professora Anete Pereira de Souza, do CBMEG, orientadora da tese de doutorado de Durigan – da qual a pesquisa com a Giardia faz parte – explica que doenças reemergentes “são aquelas doenças já conheO pesquisador Maurício Durigan, um dos autores da pesquisa: contaminação das águas precisa ser tratada em outras escalas

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Esse resultado mostra que a contaminação da água por parasitas – não apenas a Giardia – precisa ser tratada numa perspectiva metropolitana e regional, não apenas municipal, afirma Durigan. “Uma coisa importante que estamos mostrando é que não adianta uma cidade tratar bastante o esgoto, como a Sanasa faz em Campinas, se a região metropolitana não trata. Porque, no final das contas, as outras cidades estão jogando todo esse esgoto no mesmo rio. As soluções aqui têm de ser metropolitanas. Isso é o que a gente quer enfatizar. Não adianta uma cidade como Campinas fazer a sua parte se as demais não fizerem”. A determinação dos tipos genéticos da Giardia encontrada em Campinas poderá permitir rastrear as contaminações até a fonte. “Quando a gente consegue caracterizar esses cistos de Giardia, pensando em trabalhos a médio e longo prazo, com diversos colegas trabalhando também, podemos começar a detectar possíveis fontes de contaminação”, disse o pesquisador. “A partir do momento em que temos uma caracterização genética, praticamente como se fosse um exame de paternidade, será possível, no futuro, começar a estabelecer, nas regiões do Estado, e até do Brasil, o perfil de Giardia dessas regiões. Então, nós temos uma expectativa boa de fazer um rastreamento dessa doença”. Esse rastreamento, de acordo com ele, apontará cidades que não tratam esgoto, ou que precisam melhorar o tratamento que já fazem. Durigan elogia o trabalho desenvolvido pela Sanasa na cidade, principalmente em seu apoio à pesquisa. “É um lugar que não precisaria fazer pesquisa, mas eles fazem pesquisa, estão sempre vários passos adiante da lei. Foram eles que vieram me procurar para fazer essa colaboração: estão realmente interessados em ver o que tem na água: qual Giardia que é, começar a quantificar isso”.

MULTIDISCIPLINAR

O artigo, publicado na PLoS no fim do ano passado, representa o primeiro capítulo da tese de doutorado de Durigan, que tem, além da orientação da professora Anete, como coorientadora a professora Regina Maura Bueno Franco, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia da Unicamp. A troca interdisciplinar entre genética e parasitologia, disse o pesquisador, foi fundamental para o trabalho. “Se eu estivesse apenas aqui na genética, ou apenas na parasitologia, isso não teria sido realizado”, disse ele. “Foi um esforço conjunto, da professora Regina Maura e da professora Anete, bem como a professora Maria Zucchi [Maria Imaculada Zucchi, da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios], na parte analítica dos dados, na parte de genética de populações – só com trabalho interdisciplinar que se consegue chegar a essas respostas mais detalhadas, mais específicas. Senão, não vamos ter uma visão completa dos fatos”. “Não é muito comum, no Brasil, a associação de geneticistas com parasitologistas, o que é uma pena, pois organismos tão pequenos, de difícil identificação, só podem ser estudados quanto à variabilidade se utilizarmos a genética, empregando técnicas modernas de análises como sequenciamento, análise da expressão global, e bioinformática, entre outras”, disse a professora Anete. “A genética, hoje em dia, munida de ferramentas fantásticas como os marcadores moleculares, pode desvendar e explicar muitos segredos da vida, a transmissão de características, a composição das populações, entre outros aspectos, de absolutamente qualquer organismo vivo”.


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Campinas, 27 de abril a 10 de maio de 2015

A hora de um novo

Para especialista, crise abre caminho para a implementação de novas regras para o setor

marco regulatório Foto: Antonio Scarpinetti

Represa do Sistema Cantareira, em foto feita no final de 2014: pesquisador critica a política que desestimula a construção de grandes reservatórios de água

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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Cantareira, maior sistema de captação e tratamento de água administrado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e responsável pelo abastecimento de 8,8 milhões de clientes na Grande São Paulo, entrou em abril de 2015 com ainda menos água do que no mesmo mês do ano passado, e a situação de poucas chuvas no verão, causa imediata da crise hídrica paulista, deve se repetir pelas próximas décadas, advertiu o professor Antonio Carlos Zuffo, especialista em Engenharia Hidráulica da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. “Devemos entrar num período seco pelos próximos 30, 40 anos”, afirmou ele, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “Isso é o que vai fazer com que, daqui para frente, a história de falta de água seja mais recorrente: a situação vai voltar ao que aconteceu nas décadas de 30 a 70. Eu acredito nesse ciclo. É um ciclo que não é precisamente exato, varia entre 35 e 50 anos”. “As décadas de 30, 40, 50 e 60 foram de baixas precipitações”, disse o pesquisador. “O que nós tínhamos de notícias, até metade da década de 70, era a de falta de água. Tanto que houve investimentos em projetos como o do Cantareira, que foi idealizado na década de 60 porque era necessário resolver o problema da falta de água para o abastecimento urbano da Região Metropolitana de São Paulo”. Além do Cantareira, na mesma época foi planejado o Sistema Juquiá, que não saiu do papel. “Porque começou a chover mais em meados da década de 70, e o consumo per capita da população, de lá para cá, caiu praticamente pela metade. A produção de água dos sistemas aumentou, porque as chuvas, a partir do meado dos anos 70, aumentaram entre 20% a 30%. As vazões dos sistemas produtores começaram a aumentar. Então,

fomos beneficiados no passado, nesses 40 anos, com o aumento da produção da energia elétrica e o aumento da produção de água de todos os sistemas de produção de água e energia hidroelétrica”. Os planos para o Juquiá foram retomados neste ano, por conta da crise hídrica. “O Juquiá, hoje chamado de São Lourenço, originalmente previa a transposição para São Paulo entre 69 a 80 m3 por segundo. E o São Lourenço está sendo construído agora para 4,7 m3 por segundo. Menos de 10% do que o idealizado originalmente. E ele não vai dar resposta para a crise desse ano, mas só daqui a três, quatro anos”. O pesquisador afirma que a seca de 2014 foi muito parecida com a registrada no Brasil em 1953. “Os impactos em 53 foram diferentes porque a população era muito menor. Então, a região metropolitana de São Paulo não era tão grande como hoje, nem toda a população era atendida por saneamento, 80% da população brasileira era rural, não urbana como atualmente. Não havia uma demanda por água, pelos sistemas, como hoje”. Com o início do novo ciclo de seca, “devemos ter dois impactos”, disse Zuffo: “Na produção de energia elétrica, com a redução nas precipitações. E também com todos os outros sistemas produtores de água reduzidos. Então, agora a gente vai pagar o preço”.

ENERGIA O pesquisador critica a política, de fundo ambiental, de desestimular a construção de grandes reservatórios de água, adotada a partir da década de 80. “Parece que virou quase um pecado mortal a construção de reservatórios de regularização”, disse. Por conta disso, afirmou, hoje sofremos com a falta de energia. “A energia subiu muito de preço, porque tem de ser complementada pela geração térmica, que é muito mais cara e poluidora que a hidroeletricidade. Isso afeta também os sistemas de abastecimento. Ninguém construiu mais reservatórios, e na falta de chuvas a gente não tem de onde tirar água. Sem ter os reservatórios, Foto: Antoninho Perri

O pesquisador Antonio Carlos Zuffo: “O instrumento de gestão que nós temos é a cobrança pelo uso da água bruta”

quando há chuva você sofre com enchente e quando tem a falta de chuva você sofre com a falta d’água. Deixamos de investir na nossa segurança hídrica. Estamos sentindo o que é a falta de segurança hídrica”. Os reservatórios, explica Zuffo, têm duas funções, armazenar água no período de abundância, evitando ou minimizando os efeitos das enchentes, e fazer do armazenamento da água, “uma poupança”. “É um seguro hídrico que diminui o risco de desabastecimento. E durante o período seco, você consome esse volume que foi acumulado, mantendo ao abastecimento de energia e o abastecimento público”. Ele vê, na rejeição à construção de novos reservatórios, um reflexo dos impactos ambientais e sociais dos grandes projetos de engenharia da ditatura militar, mas diz que é necessário levar em conta, também, os benefícios trazidos por obras como a construção de usinas hidrelétricas. “Você tem o desenvolvimento da região onde existe esse empreendimento. Veja o caso de Ilha Solteira (SP). O canteiro de obras é uma cidade, tem uma universidade. E Três Lagoas (MG), que fica do outro lado da divisa, também se beneficiou muito com a represa”. Usinas a fio d’água, que não contam com grandes reservatórios, representam um risco a mais em situações de estresse hídrico. “Trabalhando a fio d’água, baixou a vazão, diminui a produção de energia elétrica. Sem grandes reservatórios de regularização, nós comprometemos toda a produção de energia elétrica, e é isso que vivemos hoje: temos uma matriz renovável, mas estamos usando térmica, com impacto na nossa conta, que aumentou e ainda vai aumentar mais”.

GESTÃO Zuffo vê na crise hídrica uma oportunidade para se definir um novo marco regulatório para o setor. “O instrumento de gestão que nós temos é a cobrança pelo uso da água bruta”, disse. “Todas as concessionárias, quando captam dos rios, têm que pagar por isso aos comitês de bacia. O instrumento previa que a arrecadação dessa cobrança seria suficiente para investir nas obras dentro da bacia: estação de tratamento de água, de esgoto, rede de drenagem”. O pesquisador afirma que esse desenho foi “sabotado” com o congelamento do preço pago pelas concessionárias, a partir de 2004. “A política previa que a cobrança pelo uso da água bruta deveria ser investida em infraestrutura, não a tarifa cobrada do usuário final, que é o único preço que sobe. E a Sabesp é uma empresa público-privada que visa lucro, então com o aumento da tarifa você vai aumentar a margem de lucro da empresa”. Quando é a concessionária que faz as obras de infraestrutura, essa infraestrutura passa a ser propriedade dela, e não mais da bacia, o que também viola o cenário previsto na política existente. “Em tese, se a concessionária de saneamento não estiver fazendo um trabalho satisfatório, você pode trocar de empresa. Agora, se ela for dona da infraestrutura, você não consegue trocar, porque teria de fazer a indenização do que ela construiu”.

Ele dá como exemplo o regime de concessão de estradas. “Você vai fazer uma concessão de estrada: a via é do Estado. Mas tem uma concessionária que tem que fazer a manutenção e operação e cobra pedágio para isso, para manter o serviço. Se ela não estiver operando bem, você pode tirar essa concessão e passar para outra. O Estado ganha quando vai fazer a concessão: a empresa tem de operar e é mais eficiente que o Estado”. “Só que no setor da água você não tem esse marco regulatório”, disse. “Essa seria uma oportunidade para discutir o marco regulatório para o setor”.

ESPAÇONAVE Com a redução prevista nas chuvas, a tecnologia passa a ser um importante aliado no gerenciamento dos recursos hídricos. “Vamos ter que entrar com pesquisas em cima de tecnologias para diminuir o consumo, vamos ter que ser mais eficientes no uso da água”, disse Zuffo. “Foi o que aconteceu, por exemplo, com a máquina de lavar roupa. Quando eu era criança, via propaganda na televisão de uma máquina de cinco ciclos: a cuba enchia de água cinco vezes. Hoje não, você vê praticamente lavagem a seco, o enxágue é feito centrifugando e com esguicho e água, então o que se economiza, comparado com o que se gastava antes com a lavadora de roupa, é uma redução muito grande”. Os processos industriais também vêm se adequando à situação: “a indústria ganha eficiência porque a água está faltando e é cara, então quando se mudam processos, economiza-se água. Isso deve ser uma tendência daqui para frente”. Quanto ao poder público, é preciso reduzir desperdícios e investir mais no tratamento de efluentes. “Vamos ter que investir muito na redução de perdas na rede, que supera os 40% em São Paulo”, disse. Quanto aos efluentes lançados em rios, o tratamento adequado gerará um aumento da disponibilidade de água por aumento de qualidade, numa situação em que a disponibilidade por quantidade está comprometida. “O Rio Tietê em São Paulo, por exemplo, que tem uma vazão de 60 metros cúbicos por segundo, no período seco. Esse volume não está disponível por falta de qualidade. Então é preciso interceptar os lançamentos de efluentes, tratar e lançar o efluente tratado. Em vez de receber carga poluente, ele vai receber um efluente com qualidade melhor do que a própria água no leito, e gradativamente ele vai sendo recuperado. E aí sim nós teremos esse volume de água disponível, também, para utilização”. Zuffo diz que “já entramos numa economia de espaçonave”. “Economia de espaçonave é quando o meio ambiente já não tem mais condições de autodepuração, porque a carga que se joga nele supera essa capacidade. Então, se nós diminuirmos isso, o rio consegue voltar a ter sua capacidade de autodepuração. Você lança uma carga bem pequena, ou já tratada, e um processo físico, químico, natural seria suficiente para recuperar o restante da qualidade. Mas esse seria também um processo para o longo prazo”.


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O perigo dos emerg MANUEL ALVES FILHO manuel@reitoria.unicamp.br

O

s métodos de tratamento utilizados no sistema de saneamento básico brasileiro são eficientes para remover contaminantes clássicos, mas não estão capacitados para fazer o mesmo em relação aos contaminantes emergentes, que recebem esta classificação por ainda não serem legislados e que são potencialmente nocivos à saúde humana. A conclusão é da tese de doutorado do químico Igor Cardoso Pescara, defendida no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, sob a orientação do professor Wilson Jardim. Na pesquisa, Pescara analisou a eficiência dos processos empregados em cinco estações de tratamento de esgoto (ETEs) e duas de tratamento de água (ETAs) nas cidades de São José do Rio Preto e Campinas, ambas no interior do Estado de São Paulo, para a remoção, entre outros, de hormônios endógenos, hormônios sintéticos e produtos de uso industrial, como o bisfenol, substância classificada como estrógeno. De acordo com o professor Wilson Jardim, o principal objetivo do trabalho, desenvolvido no Laboratório de Química Ambiental (LQA) do IQ, é fornecer subsídios para promover a alteração da portaria 2914, publicada em dezembro de 2011 pelo Ministério da Saúde, que dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano. “Estamos concluindo um documento com esta sugestão e o encaminharemos brevemente ao ministério”, adianta. A proposta dos pesquisadores é que a água distribuída à população brasileira não apresente mais que 0,1 micrograma de cafeína por litro, substância utilizada como traçador de inúmeros contaminantes emergentes. O docente do IQ explica a razão de a cafeína ter sido escolhida como referência para analisar a eficácia dos tratamentos empregados pelas ETEs e ETAs. “Optamos pela cafeína porque ela corrobora, por assim dizer, com o entendimento popular segundo o qual ‘onde há fumaça, há fogo’. Ou seja, onde a substância está presente, existe grande probabilidade da presença de outros contaminantes, especialmente de interferentes endócrinos. Nos testes que realizamos em laboratório, esta correlação ficou claramente estabelecida. Nós dividimos esses testes em quatro classes de concentração de cafeína. Todas as amostras que continham mais de 10 microgramas por litro da substância apresentaram atividade estrogênica. Não tivemos nenhum resultado falso positivo”, atesta Wilson Jardim. A vantagem dessa metodologia desenvolvida no LQA, acrescenta o orientador da tese de doutorado, é que ela é fácil de ser aplicada, tem baixo custo e não requer a análise individualizada dos cerca de 800 contaminantes emergentes conhecidos atualmente. O Brasil, segundo o professor, é muito carente de dados sobre esses compostos. O país também sabe muito pouco sobre a capacidade que as ETEs e ETAs têm de remover esses compostos da água fornecida à população. “Este é um problema muito sério, que preocupa até mesmo os países que têm 100% de sa-

Estação de tratamento de água em Sousas, Campinas: pesquisador constatou que, nas ETAs analisadas, índice de remoção foi de cerca de 40%

neamento básico, o que não é o nosso caso. Mesmo nas nações desenvolvidas, há registro da presença de contaminantes emergentes na água potável”, pontua Wilson Jardim. Atualmente, conforme o docente, o Brasil apresenta entre 100 e 10.000 vezes mais desses compostos em seus mananciais e na água tratada que os países da Europa. “Nós estamos em situação muito ruim”, constata. Para reverter esse quadro, entende o cientista, é necessário que o país amplie o conhecimento sobre três fatores: a fonte, a rota e o receptor final dos contaminantes emergentes. “Nós dispomos de dados e normas que nos permitem garantir a qualidade da água, mas em relação aos contaminantes clássicos. Entretanto, com a mudança nos hábitos de consumo das pessoas e com o adensamento populacional, entre outros fatores, esse número de substâncias potencialmente tóxicas presentes na água cresceu exponencialmente. Hoje, nossos ‘inimigos’ são outros e, portanto, não podemos combatê-los com armas antigas”, observa. A analogia feita pelo professor Wilson Jardim merece atenção. Ele conta que participou, no ano passado, de uma reunião do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), no México. Na oportunidade, representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS) advertiram os presentes para a necessidade de o problema dos contaminantes emergentes ser atacado em plano global. “A razão para o alerta está

plenamente comprovada pela ciência. Nós já dispomos de evidências incontestáveis de que a esses compostos emergentes têm causado sérios danos à fauna aquática. Está comprovado, por exemplo, que eles podem provocar a feminização de peixes, alteração no desenvolvimento de moluscos e anfíbios e decréscimo de fertilidade de aves”, elenca o professor da Unicamp. Wilson Jardim lembra que os cientistas ainda não sabem, no entanto, que tipo de problema a exposição crônica a esses contaminantes pode causar aos seres humanos. “Manda o bom senso que não esperemos 20 ou 30 anos para obtermos essa resposta. O melhor a fazer é alterar a legislação e passar a exigir a remoção desses compostos o quanto antes”, pondera. Alcançar esse objetivo, reconhece o docente do IQ, não é uma tarefa fácil. Segundo ele, alguns setores, especialmente as empresas responsáveis pelo serviço de saneamento básico, são muito resistentes a mudanças. Uma das razões desse comportamento é de ordem financeira. O docente da Unicamp conta que, quando representantes das empresas produtoras de água, legisladores e tomadores de decisão sentam à mesa, o diálogo nem sempre é fácil. “As pessoas estavam acostumadas a pensar em outras classes de compostos. Quando falamos de 800 contaminantes emergentes, elas ficam atordoadas. A reação imediata é de que é impossível legislar sobre tantos compostos, pois não haveria dinheiro e logística suficientes para isso. É aí que entra o método de análise que desenvolvemos a partir da cafeína. Em vez de analisarmos centenas de substâncias, vamos analisar somente uma, que servirá de traçador da qualidade da água em relação aos compostos emergentes”, reforça. A despeito das dificuldades de diálogo entre os atores envolvidos com a questão, Wilson Jardim considera que as conversações têm apresentado evolução. “Caminhamos muito nos últimos anos, principalmente com a inserção das universidades nas discussões para a formulação de políticas públicas para o setor de saneamento. A ciência ainda não tem resposta para todos os problemas. Estamos longe de determinar, por exemplo, quanto de hormônio sintético pode haver na água, de modo a assegurar a saúde da população. Isso ainda vai demandar uma série de estudos. Entretanto, se atacarmos o problema usando indicadores como o que desenvolvemos, já estaremos avançando significativamente nessa direção”, considera.

A TESE

Wilson Jardim, orientador da pesquisa: trabalho pretende fornecer subsídios para a alteração da portaria que dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano

Em seu trabalho, Pescara analisou os métodos de tratamento utilizados por uma ETE e uma ETA de São José do Rio Preto [as únicas do município] e de quatro ETEs [Anhumas, Capivari, Piçarrão e Samambaia] e uma ETA [Sousas] de Campinas. O pesquisador explica que coletou amostras de água em cada etapa do processo. “Cada uma dessas estações utiliza uma técnica de tratamento. A opção leva em conta o espaço físico disponível e o volume de água recebido, entre outros aspectos. Em Campinas, tive a oportunidade de analisar mais de uma técnica de tratamento de esgoto, o que me permitiu verificar quais promoviam as melhores remoções de contaminantes”. Pescara esclarece que, em Rio Preto, o Serviço Municipal de Água e Esgoto (SeMAE) mescla, no momento da distribuição, a água captada do Rio Preto com as águas extraídas dos aquíferos Guarani e Bauru. Já em Campinas, a Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A (Sanasa) abastece a população somente por meio da água captada do Rio Atibaia. De forma resumida, o autor da tese constatou que o grau de eficiência dos métodos empregados pelas estações é bastante variável. Segundo ele, o


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Estudo do Instituto de Química comprova que sistema de saneamento básico brasileiro não é capaz de remover contaminantes não legislados da água Fotos: Antonio Scarpinetti

Estação de tratamento de esgoto de Campinas: métodos removem em torno de 90% dos compostos emergentes presentes na água

Igor Pescara, autor da tese de doutorado: “Numa análise bastante objetiva, é possível dizer que o nosso sistema de saneamento ainda não está devidamente preparado para lidar com os compostos não legislados”

índice de remoção dos compostos emergentes por parte das ETEs girou em torno de 90%, enquanto que das ETAs ficou por volta de 40%. “Podemos dizer que, em relação às ETAs, a etapa da coagulação foi a que apresentou os melhores resultados quanto à remoção de contaminantes, ainda que não tenha atingido o nível que preconizamos”, afirma. Quantos às ETEs, Pescara informa que a etapa do tratamento biológico, especialmente o anaeróbio, foi o que promoveu a maior remoção dos compostos emergentes. “Numa análise bastante objetiva, é possível dizer que o nosso sistema de saneamento ainda não está devidamente preparado para combater esses novos inimigos, para utilizar a mesma figura do professor Wilson Jardim. A boa notícia é que temos armas suficientes para enfrentálos, ou seja, nós dispomos de tecnologias capazes de promover essa remoção com bastante eficiência. O que está faltando, como também já foi dito, é alterarmos a legislação para que possamos oferecer água de melhor qualidade aos brasileiros”, acrescenta. Entre as técnicas mencionadas por Pescara está o processo de ultrafiltração, que utiliza membranas com poros minúsculos. Esse material promove a retenção dos contaminantes. Há também métodos destrutivos, como a ozonização. Quando aplicado na água, o ozônio reage com os contaminantes, produzindo moléculas inócuas e gerando oxigênio como subproduto. “É importante observar que essas técnicas não são excludentes. Elas podem funcionar em conjunto. Obviamente, elas impactam no custo de tratamento da água. O curioso é que tais métodos já vêm sendo usados

para o tratamento de água de reúso, mas não para o tratamento da água distribuída à população”, registra o professor Wilson Jardim. Em Rio Preto, além de analisar a eficiência dos processos de tratamento da ETE e da ETA, Pescara também investigou a quantas anda a qualidade da água extraída dos mananciais [superficial e subterrâneos] da cidade. “O que pude constatar foi que os compostos emergentes estão presentes tanto no Rio Preto quanto nos aquíferos Guarani e Bauru. Em outras palavras, esses mananciais, inclusive o aquífero Guarani, que a priori deveria estar mais protegido, já sofrem o impacto dos contaminantes liberados pelos produtos que usamos no dia a dia, como anticoncepcionais, itens de higiene pessoal, agrotóxicos etc”.

Publicação Tese: “Ocorrência e remoção de contaminação emergentes por tratamentos convencionais de água e esgoto” Autor: Igor Cardoso Pescara Orientador: Wilson Jardim Unidade: Instituto de Química (IQ)

Estudo integra linha de pesquisa A tese desenvolvida pelo químico Igor Cardoso Pescara está inserida numa linha de pesquisa que vem sendo conduzida há cerca de 30 anos no Laboratório de Química Ambiental (LQA) do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, sob a coordenação do professor Wilson Jardim. Em 2012, os pesquisadores concluíram uma investigação realizada em 21capitais brasileiras mais o Distrito Federal, onde vivem cerca de 40 milhões de pessoas. De acordo com o resultado dos testes feitos em 98 amostras coletadas no cavalete (cano de entrada) de residências espalhadas pelas cidades consideradas, a água potável fornecida aos brasileiros apresentava contaminação por compostos emergentes. Além de cafeína, que funciona como traçador de outras substâncias potencialmente danosas à saúde humana, os cientistas também encontraram nas amostras analisadas concentrações variadas de atrazina (herbicida), fenolftaleína (laxante) e triclosan (substância presente em produtos de higiene pessoal). No caso da cafeína, as duas capitais que apresentaram maiores níveis de contaminação pela substância foram, respectivamente, Porto Alegre e São Paulo. O estudo já demonstrava naquela época que os mananciais dos quais é extraída a água que abastece a população estão contaminados por esgoto. Também fornecia evidências de que as estações de tratamento não estavam dando conta de remover os compostos emergentes do produto que chega às torneiras das residências, o que foi comprovado pelos testes analíticos promovidos na tese de Pescara. A pesquisa de 2012 mereceu manchete da edição 527 do Jornal da Unicamp. A reportagem, intitulada “Potável, porém contaminada”, foi vencedora da terceira edição do Prêmio Yara de Comunicação 2013, na categoria “Jornalismo Institucional”, promovido pelo Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.


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Estado esvazia

comitês de bacias CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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forma centralizadora com que o governo paulista vem lidando com a crise hídrica está produzindo uma “crise institucional, uma crise de poder” e a perda de credibilidade das estruturas existentes para a gestão da água no Estado de São Paulo, principalmente dos comitês de bacias hidrográficas, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador José Teixeira Filho, especialista em gestão de recursos hídricos e diretor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade. Um comitê de bacia hidrográfica é um órgão colegiado, integrado por representantes do Estado, dos municípios e da sociedade civil, incluindo usuários de recursos hídricos, da área atendida. No caso da crise do Sistema Cantareira, estão envolvidas as bacias dos rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí e Alto Tietê. “Os comitês de bacia são os responsáveis pela gestão, por cuidar das bacias”, disse Teixeira Filho. No entanto, afirma o pesquisador, os comitês foram alijados do processo de tomada de decisão sobre o enfrentamento da emergência atual. “Quando o governo do Estado cria seu comitê de gestão da crise, os comitês de bacia são deixados de fora”, relata. “O que estranho, também, é que os comitês de bacia não se manifestaram de uma forma muito dura, muito clara, sobre a importância de sua participação, de sua experiência acumulada”. Criado em fevereiro, o comitê da crise hídrica envolve, principalmente, secretarias estaduais, como a de Recursos Hídricos, Saúde e Meio Ambiente, e empresas de saneamento básico da região metropolitana de São Paulo. Teixeira Filho lembra que os comitês têm experiência de vários anos na gestão das bacias, no debate dos problemas de escassez e de qualidade da água, além de um acesso direto à sociedade civil. “O governador não tem esse acesso”, disse. “Acho que essa centralização está gerando um incômodo, e esse incômodo terá que ser discutido com o governador do Estado após a crise. Nós temos um problema de crise institucional: não temos só uma crise da água, temos uma crise institucional, da gestão da água. Essa gestão passou a ser centralizada, quando o princípio do comitê é descentralização e participação nas decisões. Quando se concentram as decisões, a tendência é aumentarem os conflitos”.

“O pagamento do uso da água, e os valores cobrados, isso também foi pactuado, foi negociado no comitê, que tem uma grande facilidade de contato com a sociedade civil. O governador não tem, mas o comitê tem”. Teixeira Filho acredita que seria muito mais fácil negociar com os usuários reduções de consumo e economias de água “com um personagem que está próximo, não que está muito distante”. “E quem está próximo aos consumidores é o comitê de bacia, não é o governador do Estado”. O diretor da Feagri teme que a centralização da resposta à crise tenha abalado a credibilidade da estrutura atual de gestão da água, na qual os comitês de bacia têm, ou deveriam ter, um papel central. “Talvez haja a necessidade de um novo pacto. Porque o comitê de bacia trabalha sistematicamente com a credibilidade. O comitê não gera obrigações legais: os resultados de suas negociações são implementados porque as deliberações têm credibilidade”, disse. “No momento em que se quebra isso, cria-se uma situação grave. Nós vamos ter que refazer o pacto entre a sociedade civil e o governo do Estado. Porque existia um acordo, de que o governo aceita as decisões do comitê. Se, quando surge uma emergência, ele tira o comitê do processo de tomada de decisões, isso sinaliza que ele não acredita que o comitê seja legítimo para atender a essas demandas. Isso é grave, é muito ruim”. Teixeira Filho diz ainda que, além do peso político, os comitês de bacia têm uma competência técnica que foi desprezada pelo governo. “Esses grupos trabalham, já há mais de 20 anos, com a questão da gestão das águas. Se debruçam sobre esse assunto. Nada mais justo que

essas pessoas, que têm essa experiência, que têm esse envolvimento, sejam chamadas pelo governador do Estado e tenham uma participação”. “No momento em que se tem essa situação de crise, de excepcionalidade, não dá para abrir mão da experiência, do conhecimento local”, disse. “Então isto mostrou uma fragilidade do sistema de gestão. Acredito que o governador do Estado foi muito infeliz nessa parte, de deixar de lado essa experiência”. Ele não acredita que a rapidez necessária para reagir a uma situação de crise justifique a exclusão dos comitês do processo. “Porque a estrutura já está montada, você tem os representantes, a qualquer momento pode chamar uma assembleia extraordinária, enviar informações aos representantes para que possam repartir isso com seus representados. A questão do tempo não seria uma justificativa. Porque tudo isso já estava montado, muito bem montado e muito bem estruturado”. A questão da água, disse ele, não é num problema técnico. “Quanto à questão técnica, nós temos pessoas da maior capacidade, que podem dar boas respostas. O problema não é técnico, é como se encaminham as decisões. Pode-se encaminhá-las com mais ou menos conflito”.

MANEJO A causa imediata da crise hídrica atual é a seca – as chuvas muito abaixo da média – disse Teixeira Filho, mas isso não é motivo para que os comitês de bacia descuidem da atenção para com o uso do solo e a gestão da qualidade da água. Ela dá um exemplo da complexidade das questões envolvidas. Foto: Antoninho Perri

O professor José Teixeira Filho: “Quando se concentram as decisões, a tendência é aumentarem os conflitos”

PACTO E CONFLITO O especialista lembra que os comitês têm uma prática constante de negociação com a sociedade e de formação de pactos e consensos, e dá como exemplo a cobrança pela captação de água – não apenas pelo uso da água já tratada e distribuída por uma concessionária, mas pela captação da água bruta, para uso, por exemplo, em atividades industriais ou agrícolas. Foto: Antonio Scarpinetti

Para José Teixeira Filho, a cultura da cana-de-açúcar exerce interferência indireta na disponibilidade de água, ao gerar “caminhos preferenciais”

Centralização do governo desencadeia crise institucional no campo da gestão da água, alerta especialista “Na bacia do Rio Piracicaba, havia uma proposta de que todos os cursos d’água passassem a ter classe 2”, disse ele, explicando que há quatro classes de qualidade de água, sendo a classe 1a da água que pode ser distribuída para consumo humano com um mínimo de tratamento e a 4, a água imprópria para abastecimento. “Hoje, em algumas seções de captação, em municípios da bacia do Piracicaba, estamos em classe 3. O objetivo era passar isso para classe 2, num horizonte próximo. Para isso, foi feito um esforço enorme do comitê de bacia no tratamento do esgoto. Só que o que estamos observando é que todo esse esforço não garante que possamos ter classes 2 em todos os cursos d’água. Então, há necessidade de uma outra abordagem”. Essa abordagem envolve intervenções nas regras que regem as atividades industriais e agrícolas que acontecem ao longo da bacia. “Principalmente na parte agrícola, onde temos que alterar, muitas vezes, o manejo, regulamentar o manejo de algumas atividades, ou mesmo fazer com que algumas atividades, infelizmente, não sejam mais permitidas na região”, disse. “O comitê deve se debruçar, nos próximos anos, para estudar regras e regulamentos para que esses processos, não só na parte agrícola, mas também industrial, comecem a se organizar mais para a preservação da qualidade de água. Não só da quantidade, mas da qualidade de água”.

AGRICULTURA O pesquisador nega que haja desperdício deliberado de água na agricultura praticada ao longo da bacia do Piracicaba – o uso agrícola chegou a ser citado como um dos “culpados” pela crise no abastecimento urbano desencadeada pela seca recente. “O que talvez nós tenhamos que melhorar, são os rendimentos e os processos”, disse ele. A redução do consumo de água é possível. Mas esse esforço está sendo realizado por vários setores produtivos na bacia do Piracicaba desde 1995. “Porque já se sabia que, na implementação da nova politica de gestão de recursos hídricos, viria o pagamento pelo uso da água”, relatou. “Então, vários setores produtivos vêm fazendo um esforço de reduzir a quantidade de água usada. Isso é importante a população saber”. Ele lembra que a cultura da cana-de-açúcar não é irrigada, mas exerce uma interferência indireta na disponibilidade de água, ao gerar “caminhos preferenciais” que fazem com que água fique menos tempo na superfície do solo, reduzindo a quantidade de água infiltrada que chega aos reservatórios subterrâneos. “Por isso falo em regulamentação: temos que começar a pensar em qual a situação mais indicada no manejo da cana, como aumentar as condições de infiltração e assim garantir que a água esteja disponível na estiagem”. Quanto ao impacto da agricultura na qualidade da água, Teixeira Filho diz que é importante regulamentar e orientar corretamente os agricultores quanto ao uso de insumos como defensivos agrícolas. “É complicado, por exemplo, usar produtos sem ter segurança climática, das condições do tempo. Se há uma previsão de chuva em 24 horas, 48 horas, não se deve usar o produto”, pois ele pode ser carregado para os cursos d’água antes mesmo de se mostrar efetivo. “É preciso oferecer uma assistência técnica mais intensiva para os pequenos produtores. Chamo de pequenos produtores aqueles que não têm, muitas vezes, uma programação prevista, e sim corretiva – onde há a identificação de problema e depois a correção. Uma ação preventiva seria muito mais interessante e de um custo menor, não só econômico como ambiental”. Detalhes como a manutenção dos equipamentos que disseminam o produto sobre a plantação, para que o tamanho da gota seja o ideal, também fazem uma grande diferença no aspecto ambiental. “Se você não tem essa calibração correta e aumenta o tamanho da gota, aumenta-se também o que chamamos de deriva: a quantidade de substância que não atinge o alvo. E fica no ambiente, para ser transportada. Tudo isso prejudica a qualidade da água”. “Os manejos do solo, a perda de solo agrícola, são questões que são importantes, que no futuro, principalmente na bacia do Piracicaba, serão objeto de discussão intensa. Mas esses regulamentos, eles devem ser pactuados e negociados com a sociedade civil”, ponderou o pesquisador, trazendo à tona, mais uma vez, o importante papel de mediação dos comitês de bacia. “Sabendo das situações negativas que podem vir disso, que é o caso de aumento do custo da produção, mas com um benefício maior da sociedade: da qualidade de vida melhor, uma perspectiva de saúde pública melhor. E redução no custo do tratamento de água mais adiante, sem dúvida”. “Todas essas questões são conhecidas pelo comitê de bacia”, insistiu. “São discutidas no dia a dia. Elas aparecem a partir dos representantes que compõem o comitê, que trazem suas preocupações. Há uma experiência acumulada nesses anos, e é importante que ela seja utilizada pelos gestores públicos, pelos tomadores de decisão”.


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Fotos: Antonio Scarpinetti

Embalada como

commodities Para pesquisador do Instituto de Economia, dependência do mercado externo faz país ‘exportar’ água CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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lém de fundamental para a saúde e o bem-estar humano, a questão hídrica é crucial para economia brasileira, que depende da geração hidrelétrica de energia e que, com sua pauta exportadora dependente de commodities, “exporta água”, nas palavras do professor Humberto Miranda do Nascimento, pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico (Cede), do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Somos uma economia que depende da exportação de primários, de commodities, agrícolas e minerais”, lembrou ele. “Então, exportamos água. Que é usada não só na agricultura, mas a mineração utiliza muita água, não só no processo de extração, mas também no de transporte”, explicou. “E isso se agrava, também, porque a atividade de mineração está sendo muito mais extração e exportação bruta, sem se fazer algum beneficiamento antes, e exportar com algum valor agregado. O que acontece é o contrário: a gente manda para a China, que elabora o produto e depois vende de volta ao Brasil, mais caro”. Nascimento relata uma experiência pessoal que teve com o impacto da pecuária no manejo das águas no Centro-Oeste brasileiro: “No Mato Grosso vimos uma cidade, Nova Xavantina, onde passa o Rio das Mortes, com mata ciliar intacta. A prefeitura e as pessoas que entrevistamos disseram que não havia problema de contaminação com esgoto, mas o fato é que águas do rio estavam baixando”, contou. “Por quê? Gado. Os criadores fecham córregos para poder dar água aos animais, e os córregos ficam impedidos de alimentar o rio. Se a água não sai, fica represada, ou sai em menor quantidade dos córregos, isso se torna um problema para o rio”.

PLANEJAMENTO URBANO

O pesquisador adverte, no entanto, que uma análise da atual crise hídrica com base apenas no volume absoluto consumido por cada setor – mais na agricultura e indústria, menos no abastecimento urbano residencial – é simplista. Ele lembra que o principal ícone da escassez é urbano: o reservatório da Cantareira, que abastece mais de 8 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo. “Quando a gente fala do consumo, o consumo humano, em termos proporcionais, é menor que na indústria e na agricultura, que é altíssimo. Mas tem

um problema aí: que é o problema da concentração urbana, nas áreas metropolitanas principalmente”, afirma. “Essa expansão da mancha urbana torna a situação complicadíssima”. “A região metropolitana de São Paulo é uma imensidão, você concentra uma boa parte da população aí, e o Sistema Cantareira tem que dar conta disso tudo. É algo muito difícil de gerir, e cada vez que a mancha urbana cresce, e a população cresce, isso fica mais complicado”. Outros problemas que ligam o crescimento urbano “num ritmo meio anárquico”, nas palavras do pesquisador, à questão hídrica são a expansão desigual entre rede de água e de esgoto, o uso de “gatos” em ligações de água e elétricas – “o gato de energia também é indiretamente de água, já que a geração é hidrelétrica”, lembra ele – e a crescente impermeabilização do solo, com a formação das ilhas de calor urbanas, que aumentam a frequência de chuvas e de enchentes. “É muito mais fácil expandir uma rede de água, até mesmo com ‘gatos’, do que uma rede de esgoto”, disse Nascimento. “É muito estrutural: não dá para acompanhar a expansão se não tiver planejamento urbano associado a essa questão”. E ele não vê a escassez de água como um fator limitante do crescimento desordenado da cidade. “Não é limitante porque, inclusive, isso não é nem pensado”, afirma. “Você está pensando em abastecer as pessoas agora, mas o gestor imagina que daqui a pouco o problema vai passar porque as chuvas vão regularizar e, pronto, acabou o problema. Errado. Ninguém está preocupado se a cidade está crescendo de forma desordenada ou não. Porque esse é o problema essencial: é o crescimento desordenado da cidade”. Essa expansão populacional, somada à forma como as desigualdades sociais se desenham no espaço urbano, acaba levando as pessoas para áreas periféricas, muitas vezes áreas preservadas no entorno de represas e mananciais. “Aí a gente cai numa situação como a da Represa Billings”, disse Nascimento, citando o grande reservatório da região do ABC paulista, e cujas margens são alvo, há anos, de ampla ocupação irregular. Em janeiro deste ano, a imprensa noticiou o início da formação de uma nova favela num trecho seco da represa. A água da Billings apresenta vários tipos de contaminação e é, no geral, considerada imprópria para consumo, mas a Sabesp – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – e o governo do Estado chegaram a cogitar extrair a água poluída da represa, submetendo-a a tratamento especial, como uma das formas de contornar a atual crise. “Como se explica a Billings? É um problema gigantesco – e não por falta de soluções técnicas. O que aconteceu ali foi que, simplesmente, foi-se deixando a ocupação ocorrer. Os prefeitos jogam o problema para o governador, o governador joga para São Pedro, e por aí vai”, comentou. “O problema da Billings existe há anos. Tratar a questão da Billings como a salvação da pátria é uma desculpa, porque já se devia ter planejado isso muito antes. A questão é: por que não se pensou no longo prazo?”

GESTÃO Nascimento faz questão de frisar que não é correto tratar a crise hídrica atual como uma “fatalidade”. “O discurso que foi feito para a sociedade, principalmente pelo governo paulista, é de que foi tudo uma fatalidade, que se de repente chover, o problema acaba”, criticou. “Qual a falácia desse discurso? Na verdade, se você analisar os dados de regime de chuvas e a questão dos reservatórios em São Paulo, você teve momentos muito bons de cheia, uns três anos muito tranquilos”, disse. “Costumo falar que o planejamento é feito na época de abundância, porque na escassez é o salve-se quem puder. Na crise você não vai planejar, vai tentar acudir. Esse é o problema.” O pesquisador lembra que a Sabesp é uma empresa de capital aberto, com ações negociadas em bolsa, e que “a lógica do mercado é diferente da do setor público, porque tem de dar uma taxa de retorno para o investidor”. De acordo com ele, “essa lógica é incompatível com uma empresa cuja finalidade é pública”. “À medida que o setor público absorve os métodos de gestão privados, ocorre um choque de realidades. O privado é regido por resultados financeiros de curto e médio prazo, o setor público não, ele tem de garantir direitos ao cidadão”. Ele cita o caso do advogado paulista que processou a Sabesp e obteve o direito de não ter sua água cortada em meio à crise de escassez. “O compromisso do setor

Billings, cujas águas estão contaminadas: para Humberto Miranda do Nascimento, “tratar a questão da represa como a salvação da pátria é uma desculpa, porque já se devia ter planejado isso muito antes”

público com o cidadão é fixado em lei”, disse o pesquisador. “Esse exemplo mostra a dificuldade de se fazer a gestão, nos moldes privados, de um bem público. Porque você tem que garantir isso, é um direito do cidadão”. Além da contradição da empresa de capital aberto com mandado público, Nascimento aponta uma questão cultural: “O Brasil é um pouco assim, ele reage na crise. A gente não é previdente nesse sentido. Insisto: a questão da gestão dos recursos hídricos está colocada há algum tempo. É uma crise anunciada”. Ele diz que é preciso combater a ideia de que o Brasil “é o país da abundância de água, abundância de florestas, abundância de terra”. “Isso não existe mais, acabaram-se esses mitos que a gente tinha”, afirma. “Essa ideia de que a gente pode usar e desperdiçar. O desperdício é antieconômico e antissocial”. O combate ao desperdício passa por estratégias de gestão e, mais uma vez, o pesquisador vê conflito entre os objetivos públicos e privados. “Todos falam em usar métodos de gestão, mas gestão do quê? Porque gestão, por aqui, é do lado financeiro. Não é pensada, no caso do setor público, para uma finalidade mais ampla, para o atendimento final do usuário”. Esse vício, diz ele, pode ser visto em vários sistemas de interesse coletivo, como de transporte, de saúde e de abastecimento de água. “A ideia de eficiência é usada no sentido de fazer caber no orçamento, não de prestar um bom serviço”.

O pesquisador Humberto Miranda do Nascimento: “Somos uma economia que depende da exportação de primários, de commodities, agrícolas e minerais”


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Pastagens recuperadas= mais água no Cantareira Melhorias em pastos diminuiriam em até 70% taxa de sedimentação no Sistema, aponta pesquisa Fotos: Antonio Scarpinetti

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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mera recuperação das pastagens degradadas que existem na área do Sistema Cantareira já poderia ter um impacto significativo na qualidade e na disponibilidade da água produzida ali, reduzindo a taxa anual de sedimentos que chegam aos rios e córregos em até 70% do que é observado atualmente. Esse resultado é superior ao que poderia ser obtido com a manutenção das pastagens ruins associada à recomposição da mata ciliar, que traria uma queda na taxa de sedimentos de apenas 25%. Já a combinação entre recomposição da mata e melhora nas pastagens faria o assoreamento anual também cair em até 70%, mas traria o benefício adicional de aumentar em 44% a cobertura florestal nas Áreas de Proteção Ambiental de corpos d’água do sistema. Essa análise faz parte da tese de doutorado “Custo efetividade na conservação de serviços ecossistêmicos: um estudo de caso no Sistema Produtor de Água Cantareira”, defendida por Oscar Sarcinelli no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Na relação entre custo e efetividade – que busca medir os ganhos de qualidade ambiental, visando a produção de água, em relação aos custos dos investimentos necessários –, o cenário de recuperação das pastagens, sem recomposição da mata, foi o que se mostrou mais promissor. Na tese, o pesquisador comparou os custos financeiros e os benefícios ambientais, principalmente para a questão da água, de três cenários: recomposição da mata ciliar; recuperação das pastagens; e uma combinação de ambos. “O professor Ademar sempre brinca que o melhor desenho seria a gente conseguir reflorestar todo o Cantareira”, disse Sarcinelli ao Jornal da Unicamp, referindo-se ao professor o IE Ademar Romeiro, orientador de sua tese. “Mas há as circunstâncias socioeconômicas da região, a necessidade da população que está lá ter uma forma de se desenvolver, de usar das pastagens”. O chamado Sistema Produtor de Água Cantareira compreende uma área total de drenagem de 227,8 mil hectares, e é considerado um dos maiores sistemas de abastecimento de água para consumo humano do mundo. É formado por cinco reservatórios interconectados, e provê água para mais de 13 milhões de pessoas, na região metropolitana da capital e no interior do Estado. Cerca de 42% da área é coberta por florestas, remanescentes da Mata Atlântica. As pastagens ocupam quase 38% do total. O restante se divide entre plantações comerciais de eucalipto (11%) e zonas urbanas (4%), além da área tomada pelos reservatórios propriamente ditos.

PASTO E MATA CILIAR O Sistema Cantareira tem 37,4 mil hectares de Área de Proteção Permanente (APP) que, de acordo com a lei, deveriam estar ocupados com mata ciliar. Na realidade, porém, só 54% dessas áreas, pouco mais de 20 mil hectares, seguem preservadas. Os 46% restantes estão tomados por atividade humana, principalmente pastagens. “A floresta protege o solo da erosão e faz com que uma boa parte da água da chuva se infiltre. E ao se infiltrar, a água embaixo da floresta vai lentamente percolando, vai alimentar os lençóis freáticos, e depois essas águas vão verter justamente para as represas, de maneira que quando não estiver chovendo mais, na época seca, tem água subterrânea que continua fluindo para as represas”, disse o orientador da tese, Ademar Romeiro, explicando o papel da mata como provedora de serviços ecossistêmicos – no caso, da água que vai para os reservatórios do Cantareira. “Então, quanto mais floresta houver, mais água estará disponível no período das secas, porque ela se infiltrou mais no período das chuvas. Principalmente por esta razão é que a floresta é um produtor de água”. Romeiro lembra, no entanto, que a área coberta de pastagem também pode fornecer esse serviço ecossistêmico de produção de água. “Mas, atualmente, não fazem isso. Porque as pastagens estão todas degradadas. O que isso quer dizer? Pastagens ralas, sem cobertura, o capim muito pouco, muito ralo, de maneira que a água não é infiltrada”, afirma. “A água que cai sobre as pastagens na região praticamente não se infiltra, corre direto, produzindo erosão, sujando a água das represas, portanto aumentando o custo de tratamento, e o excedente da água se perde”.

Pastagens em represa do Cantareira: terrenos para gado ocupam quase 38% da área de 227,8 mil hectares do sistema

O professor Ademar Romeiro: “Há 20 anos que os gestores sabem tudo o que precisa ser feito, tudo, e não fizeram nada”

Na elaboração da tese, Sarcinelli ouviu dos pecuaristas os motivos que alegam para avançar sobre as faixas de preservação nas beiras de rios e nascentes. “Nas entrevistas, o que eles dizem é que as propriedades são pequenas, com pastagem extensiva. Ou seja, mesmo que seja um minifúndio, a relação de unidade animal por hectare é muito baixa. Então, eles falam que falta pasto, por isso ocupam as áreas de preservação”. Romeiro acrescenta: “Nas áreas onde, por razões econômicas e sociais, a pastagem deve permanecer, porque é o meio de vida de pessoas, ela pode ser manejada, tratada, com manejos de pasto, de maneira que o pasto fique realmente com volume grande de capim, que proteja o solo da erosão e infiltre a água também”.

DEMOGRAFIA Mudar o estilo da pecuária, para uma prática mais intensiva, que não requeira tanta área, poderia ser uma opção, mas enfrenta resistências. Sarcinelli menciona a falta de apoio técnico e financeiro para a adoção de procedimentos mais sofisticados. Já Romeiro lembra que a idade média do pecuarista na região da Cantareira é alta, o que gera uma dificuldade demográfica. “A intensificação, o manejo melhor, aumenta muito a produtividade, mas exige uma atenção maior, dá mais trabalho. Essa disposição para intensificação é que é um problema, eu diria que é um problema, porque os jovens não querem ficar no campo”. O “custo de oportunidade” para um jovem se manter numa atividade rural na Cantareira – sendo que tem a metrópole muito próxima – é alto, aponta o orientador. “Então eu diria, qual a disposição dos jovens, que

Oscar Sarcinelli, autor da tese: “Mesmo que seja um minifúndio, a relação de unidade animal por hectare é muito baixa”

já existem em menor número por conta da mudança na demografia do país, de se manterem como agricultores? A minha avaliação pessoal é de que é zero”.

EXEMPLOS O orientador ressalva que, embora a recuperação dos pastos, sem recomposição da mata, possa ser útil em termos ambientais e eficiente no diz respeito aos custos, a estratégia mais completa – que envolve o resgate tanto das pastagens quanto da floresta no entorno dos cursos d’água – “é barata, é muito barata”. “Se considerar a arrecadação da Sabesp, sai muito barato”, disse ele, referindo-se à Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. O custo estimado de implantação desse sistema completo de recuperação ambiental, de acordo com a tese, é de R$ 580 milhões. “E não é R$ 580 milhões todo ano, é para implantar, depois tem só um custo de manutenção”, acrescentou. “Além disso, pela lei, que já existe há muitos anos, há a cobrança pelo preço da água. A água tem um valor. Não é só o custo de tratamento, captação e distribuição. A água tem um preço. E esse preço ainda não é bem calculado, é mais simbólico”. Romeiro diz que já existem estudos que mostram que a população, ao menos na região de Campinas (SP) aceitaria pagar mais pela água. “É algo assim, de 1 real a mais na conta da população que pagaria isso tranquilamente. Então, não se faz isso por inação dos poderes públicos, que nessa crise da água ficou evidente”, criticou. Romeiro cita o caso da cidade de Nova York, que há décadas adotou um programa de ajuste do uso e ocu-

pação do solo em sua área de mananciais, localizada nas montanhas Catskill. “Nova York, empiricamente, fez esse ajuste para ter água limpa em quantidade”. Num exemplo mais próximo, menciona o município de Extrema (SP), localizado na área da Cantareira. “A prefeitura de Extrema paga o custo do leite, por hectare. Então, ‘se o senhor ganha 10 reais por hectare, produzindo leite, aqui está o dinheiro. Pago 10 reais por hectare, e nesse lugar o senhor põe a floresta’. Essa é a ideia”. Com esse programa, diz Romeiro, Extrema “subsidia” água para São Paulo. “Nós é que deveríamos estar pagando para eles”, afirma. Programas assim, disse ele, são amplamente conhecidos por gestores públicos. “Isso é uma coisa muito conhecida, não é novidade. Os gestores de água do Estado de São Paulo sabem disso há 20 anos. É um ponto importante: há 20 anos que sabem tudo o que precisa ser feito, tudo, e não fizeram nada. Repito: nada. Literalmente, nada”.

Publicação Tese: “Custo efetividade na conservação de serviços ecossistêmicos: um estudo de caso no Sistema Produtor de Água Cantareira” Autor: Oscar Sarcinelli Orientador: Ademar Romeiro Unidade: Instituto de Economia (IE)


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Um ciclo insustentável Fotos: Antonio Scarpinetti

Especialista em gestão da água ressalta que adoção de medidas e uso racional podem reverter o estresse hídrico

Poluição no Rio Tietê, no município paulista de Bom Jesus de Pirapora: para pesquisadora, com o uso racional da água tem-se a diminuição do volume de esgoto gerado

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

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o Brasil, ainda hoje tem-se uma cultura de uso não racional de água, estimulada pela percepção de que se trata de um recurso abundante que “nunca vai faltar”, disse a diretora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, professora Marina Ilha. Ela é especialista em questões de gestão da água em edificações e lotes urbanos e tem orientado pesquisas sobre o tema. “Temos desenvolvido pesquisas nessa área no Brasil, de modo mais incisivo a partir do final da década de 80, e no início eram poucos os que se preocupavam com o uso eficiente da água, as pesquisas estavam mais voltadas para as questões relacionadas com a oferta de água”, declarou ela, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “O enfrentamento da crise hídrica precisa contar com a gestão conjunta da oferta e da demanda de água”. “As edificações necessitam de abastecimento de água potável, o uso da água gera esgoto sanitário, a impermeabilização das superfícies diminui a infiltração de água no solo e a redução da cobertura vegetal resulta na diminuição da evapotranspiração, ou seja, tem-se um ciclo da água nas cidades totalmente insustentável”, explicou. “E aí as consequências são essas que temos vivenciado: de um lado, maior ocorrência de enchentes e, de outro, crises de abastecimento causadas tanto pelas modificações climáticas como pelo uso não eficiente da água, entre outras questões”. A pesquisadora afirma que existem várias medidas que podem ser implementadas para que se tenha um ciclo da água sustentável nas cidades. Associadas à gestão dos recursos hídricos, essas medidas podem contribuir para reverter o estresse hídrico em que se encontram algumas regiões do país. Como consequências imediatas do uso racional da água tem-se a diminuição do volume de esgoto gerado, dos insumos necessários para o tratamento de água e de esgoto, da energia necessária caso a água venha a ser bombeada, entre outros benefícios, disse Marina.

REGRAS DIFERENCIADAS Marina acredita que a legislação sobre edificações deveria prever exigências diferenciadas sobre o uso eficiente da água, dependendo do tipo de edificação e da situação de estresse hídrico local. “O estabelecimento de regras generalizadas pode levar ao descumprimento das mesmas”, adverte. “O consumo de água nas indústrias tem uma grande margem de redução, tanto pelo emprego de tecnologias economizadoras como de sistemas de água não potável”. A pesquisadora defende também o aumento do reúso de água urbano, em que o efluente da estação de tratamento de esgoto apresenta qualidade, na maioria das vezes, maior do que a da água do rio em que será lançado. “As cidades brasileiras não foram projetadas com rede de abastecimento de água não potável e depende-se do uso de caminhões-pipa para a distribuição, o que contribui para uma participação ainda tímida dessa fonte. Há necessidade de melhorar esta logística de distribuição, tendo em vista que a implantação de rede dupla de abastecimento urbano apresenta impedimentos que a tornam inviável economicamente. Alem disso, há necessidade de adaptação da rede predial, já que a água não potável não pode ser misturada à potável”.

RACIONAL, NÃO RACIONADO A pesquisadora ressalta que o uso racional ou eficiente da água não é o mesmo que racionamento. “O conceito que trabalhamos é: reduzir o consumo de água, sem prejuízo do desempenho”, disse. “É reduzir o desperdício e as perdas”. Em alguns casos, disse ela, o consumidor final nem percebe que menos água está sendo utilizada. “Medidas tais como o controle das pressões no sistema predial de água, o emprego de tecnologias economizadoras e procedimentos voltados para o uso eficiente implicam em grandes economias de água”. Ela cita, como exemplo, a pressão da água nas torneiras de lavatórios. “Quando você vai lavar as mãos, você quer lavar as mãos, não a roupa”, disse. “Muitas vezes, a pressão é tão elevada que pouquíssima água, daquela que saiu da torneira, está sendo utilizada para efetivamente lavar as mãos, muito daquele volume está sendo desperdiçado. Além de um projeto bem feito, há tecnologias economizadoras que podem ser previstas nesses locais”. A pesquisadora lembra que é preciso pensar no uso eficiente da água não somente no projeto de novas edificações, mas também na redução do consumo nas edificações existentes. “A instalação de tecnologias economizadoras nos pontos de consumo, tais como torneiras economizadoras, arejadores, reguladores e restritores de vazão podem ser instalados de forma fácil e rápida”, disse ela. “Mesmo a troca de bacias sanitárias convencionais, que podem utilizar até 12 litros por descarga, por modelos economizadores que empregam 7 litros por descarga ou até metade desse valor, quando há componentes de duplo acionamento, não exige grandes obras e resulta em reduções significativas do volume consumido, e, o que é mais importante, não altera o desempenho para o usuário”. Há algumas situações, contudo, em que o fator humano é determinante e a adoção de procedimentos voltados para o uso eficiente da água é mais efetiva, adverte. “Tem sentido lavar pisos do jeito que muitos lavam aqui, no Brasil? Com mangueira? Levar uma folha desde um local a outro com água, o que poderia ser facilmente feito com uma vassoura? Não tem sentido”, exemplifica. “Sempre tivemos essa ideia de que uma limpeza bem feita requer muita água, e isso precisa ser modificado”.

causar alergias e outras doenças”, disse Marina. “Problemas advindos de uma má gestão podem ‘condenar à morte’ soluções importantes que, no futuro, podem ser indispensáveis”. A pesquisadora lembra que a água pluvial pode se contaminar durante a passagem por telhas e calhas, além de entrar em contato com a poluição ambiental. “As edificações não dispõem de técnicos que realizem o monitoramento da qualidade da água, e é importante alertar a população dos riscos”. Já as chamadas “águas cinzas” são as provenientes de lavatórios, chuveiros, banheiras, máquinas de lavar roupas. “Implantar sistemas de reúso de águas cinzas em edificações existentes requer modificar todo o sistema de esgoto, de modo a separar as chamadas ‘águas negras’, das bacias sanitárias, que no sistema convencional são coletadas em conjunto com as águas cinzas”, explicou a pesquisadora. “Ou seja, pode ser inviável economicamente”. Marina afirma que em edificações comerciais e industriais, onde há equipes de gestão para fazer o monitoramento da qualidade da água não potável, o aproveitamento de água de chuva pode e deve ser feito. “Recentemente, orientei uma tese de doutorado sobre o uso de um coagulante natural para tratamento da água residuária de usinas de concreto para fins de reúso na própria usina”, relatou ela. “Verificamos que mais da metade do consumo de água potável poderia ser substituído por água de reúso, após passagem por um sistema de tratamento. Essa tese recebeu, no final de 2014, o 1º lugar no prêmio de inovação e sustentabilidade da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), na categoria de pesquisa”. Ela relata que existem outros “tipos de águas” que também podem ser aproveitados, como as chamadas “águas claras”, efluentes gerados em sistemas de resfriamento, sistemas de vapor e condensado, de destilação, entre outros. “Pesquisas que desenvolvemos no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp indicam que grandes volumes de água poderiam ser reutilizados para fins não potáveis no campus como um todo, onde existem vários equipamentos e sistemas similares aos que estudamos”. Mas a implantação em edificações existentes nem sempre é simples. “Há necessidade de um sistema separado de abastecimento de água potável, incluindo reservatórios, bombas, além dos tubos e conexões, além do sistema de tratamento, cuja instalação demanda espaços muitas vezes inexistentes na edificação”.

A professora Marina Ilha: “O enfrentamento da crise hídrica precisa contar com a gestão conjunta da oferta e da demanda de água”

Alterar comportamentos, no entanto, pode se mostrar complexo. “Mudar procedimentos é mais difícil, porque as pessoas, muitas vezes, são sensíveis aos problemas ambientais, estão preocupadas com a devastação das florestas, com a poluição ambiental, com a extinção dos animais, mas isso nem sempre se traduz na mudança de hábitos simples do dia-a-dia, tais como fechar a torneira enquanto se ensaboa a louça ou se escova os dentes, diminuir o tempo de banho, etc.” Ao longo dos últimos anos a FEC realizou várias pesquisas voltadas para o uso eficiente da água nos edifícios, resultando em dissertações de mestrado, teses de doutorado e iniciações científicas, além de trabalhos de final de curso dentro da Engenharia Civil. “Os resultados foram sempre muito positivos, com a identificação de estratégias que podem resultar em grandes reduções no consumo de água”, disse Marina. Ela lembra que dissertações e teses estudaram o uso da água no campus Zeferino Vaz da Unicamp. “Por meio da detecção e conserto de vazamentos e instalação parcial de tecnologias economizadoras, obteve-se uma redução de 25% do consumo, ainda na década passada. Medidas propostas naquela época passaram a

ser incorporadas nas novas edificações, o que fez com que o consumo do campus se mantivesse nos mesmos patamares, mesmo com o aumento de cursos e instalações ao longo dos anos”. “Também na década passada desenvolvemos uma ampla pesquisa em 93 escolas municipais de Campinas”, lembrou. “Entre os resultados obtidos, propusemos um índice de percepção dos usuários para o uso racional da água nesse tipo de edificação, permitindo identificar as atividades em que há mais desperdício”.

REÚSO E ÁGUA DA CHUVA A pesquisadora adverte para soluções que, improvisadas diante da crise hídrica atual, podem acabar acarretando problemas de saúde pública se não forem bem administradas, como o aproveitamento doméstico de água da chuva ou o reúso de água sem o tratamento correto e a gestão da qualidade da água não potável. “No momento em que fontes alternativas de água são alocadas nas edificações, de quem é a responsabilidade pela qualidade dessa água? Mesmo que não seja para beber, o contato com a água com contaminantes pode

INCENTIVO Marina defende o uso de incentivos para a adoção de medidas economizadoras de água. “Obviamente que a tarifa também é uma forma de induzir ao uso eficiente, mas há que se levar em conta que a água é um bem essencial, sendo necessário manter tarifas sociais”, lembrou. A pesquisadora enumera algumas possibilidades, como a redução de impostos condicionada ao emprego de medidas de uso racional; e programas, em larga escala, de substituição de componentes convencionais por economizadores, com subsídios para a compra e instalação. “Esses são exemplos de incentivos que podem ser muito mais efetivos do que simplesmente estabelecer porcentagens de redução de consumo padronizadas, que tem sido a sistemática adotada no país”, disse. “As concessionárias de água e esgoto também precisam incentivar para o uso eficiente de água nos edifícios, uma vez que isso pode possibilitar a oferta de água para mais pessoas com a mesma infraestrutura instalada e garantir o abastecimento em situações de crise”, declarou.


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A era dos extremos

CARLOS ORSI carlos.orsi@reitoria.unicamp.br

Fotos: Júlio Cavalheiro/Secom/Defesa Civil de Santa Catarina

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os últimos 14 meses – entre outubro de 2013 e fevereiro deste ano – o Estado de São Paulo assistiu à pior seca já registrada desde que começaram os registros meteorológicos no Sudeste brasileiro, há mais de 80 anos, disse ao Jornal da Unicamp o climatologista Carlos Nobre, atual diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. “Só para dar uma ideia, de outubro de 2013 a março de 2014, choveu cerca de 50% do que deveria ter chovido nesses seis meses”, declarou. “De outubro de 2014 ao final de março de 2015 choveu 75% do que seria esperado. E 25% abaixo da média ainda é bem seco, mas muito diferente da mega seca que foi há um ano”. Nobre participou da elaboração de vários relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, que avaliam as causas e impactos do aquecimento global. Ele explica que a relação entre a mudança climática, em curso atualmente no mundo, e fenômenos extraordinários específicos, como a recente seca paulista, é mais complexa do que uma simples ligação linear entre causa e efeito. “Não é bem assim, não é tão simples”, adverte. “Não dá para afirmar que, sem a mudança climática antropogênica, esta seca, possivelmente a maior em 100 anos, não teria acontecido”, disse ele. “Não se pode afirmar, categoricamente, que não haveria a seca se o planeta não tivesse aquecido.” O que a mudança climática faz – “e fará cada vez mais no futuro”, de acordo com o pesquisador – é exacerbar a variabilidade natural e aumentar a frequência dos fenômenos climáticos extremos. “Uma seca como essa que afligiu São Paulo em 2014 é um fenômeno muito raro. Vamos supor que pudéssemos dizer que isso acontece, naturalmente, uma vez a cada 100 anos”, disse. “O que a mudança climática faz, e fará mais ainda no futuro, é diminuir esse período de recorrência. Não sabemos qual a diminuição ainda, precisamos estudar muito. Mas podemos dizer que eventos dessa natureza, que eram muito raros, vão acontecer com mais frequência, nos extremos com menos ou com mais chuvas”, explicou. “É isso que mudança climática faz: havia uma certa variabilidade de fenômenos extremos muito raros, e de repente, por conta da mudança climática, começam a ficar mais frequentes”. Esse aumento da frequência torna os eventos extremos mais prováveis ao longo do tempo. Além disso, a mudança climática pode, também, intensificá-los. “Vai acontecer mais vezes, e pode até acontecer com intensidade maior, talvez até com intensidade nunca registrada”, disse, lembrando a seca sem precedentes em São Paulo. “Não se pode dizer que o fenômeno extremo só passou a acontecer como resposta direta ao aquecimento”, reiterou. “O que se pode dizer é que o aquecimento vai mudar a natureza probabilística desses extremos climáticos do ciclo hidrológico e vai torná-los mais frequentes”.

Escombros e casas destruídas depois da passagem de tornado na cidade catarinense de Xanxerê, no último dia 20: exacerbação da variabilidade natural

ILHAS DE CALOR Especificamente na cidade de São Paulo, explica Nobre, o efeito climático dominante é o da ilha urbana de calor, gerado pelo crescimento e adensamento de mudança da cidade, com a eliminação de áreas verdes e a impermeabilização do solo. A temperatura média global à superfície elevou-se em 0,8º C desde a revolução industrial. “Mas em São Paulo, nos últimos 70 anos, subiu entre 3º C e 4º C, em média”, disse o pesquisador. “Dependendo do lugar - tomando, como exemplo, um dia ensolarado da primavera, sem nuvens - a diferença entre a temperatura da periferia de São Paulo e

a do centro pode chegar tranquilamente a 6º C, 7º C”, acrescenta. “Nesse caso, no centro de São Paulo, o aquecimento urbano, da ilha urbana de calor, já saturou. No entanto, à medida que a cidade vai se urbanizando, vai se concretando, há mais pavimentação e o desaparecimento da vegetação, esse efeito vai cobrindo uma área maior, vai crescendo como uma bola”. De acordo com os cenários do IPCC, se nada for feito para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa nas próximas décadas, as temperaturas médias globais poderão chegar (no ano de 2100) de 3º C a Foto: Giba/Ascom/MCTI

O climatologista Carlos Nobre: “O que se pode dizer é que o aquecimento vai mudar a natureza probabilística desses extremos climáticos do ciclo hidrológico e vai torná-los mais frequentes”

4º C acima dos níveis pré-industriais. “Na região do Estado de São Paulo, haveria uma elevação de 3º C, 3,5º C. O impacto no Brasil central seria de 4º C, 5º C e o impacto na Amazônia em 5 º C, 6 º C” enumera Nobre. “Isso é o que a maioria dos cenários indica, no caso de continuarem aumentando as emissões”. No melhor cenário, caso sejam tomadas medidas para impedir a subida de mais 2ºC na temperatura média global, acima dos níveis pré-industriais até 2100, a temperatura no Estado de São Paulo subiria da ordem de 2º C. “Mas como já subiu 0,8º C, nós temos ainda, nesse cenário benigno, 1,2º C para chegar nesse marco simbólico de 2º C”, disse Nobre. “Para isso, temos que chegar a emissões de gases de efeito estufa negativas em 2100. Quer dizer, tirar o dióxido de carbono (CO2) da atmosfera”.

CHUVAS O pesquisador lembra que não é possível prever como serão os próximos verões em São Paulo, se secos ou chuvosos. “Cientificamente, não há previsibilidade, com alto grau de acerto, para além de poucos dias. O que dá para dizer numa escala de décadas, de um século, que a cidade vai estar mais quente”, disse. “E a ilha urbana de calor traz um aumento da chuva. Chove em São Paulo, hoje, 30% a 35% mais do que chovia há 80 anos. Isso é um efeito direto da ilha urbana de calor.” Numa perspectiva mais geral, para o Estado ou a região Sudeste como um todo, os cenários de longo prazo do IPCC indicam uma pequena modificação no volume de chuvas, mas sem sinal claro. “Alguns cenários mostram uma tendência à pequena diminuição das chuvas. Outros, uma pequena elevação. O Sudeste é uma região de transição”, explica. “Lá no Nordeste, os mo-

delos indicam uma diminuição da chuva. No Sul e em parte da Argentina, um aumento das chuvas. O Sudeste ficou no meio, num lugar onde o sinal é positivo ao sul e negativo ao norte. Há uma situação de maior incerteza”. “Mas não se prevê uma mudança climática com maior volume de chuvas, a longo prazo. Então, não vai virar um deserto”, acrescenta. “O que muda é a natureza das chuvas. Deve-se gerar maior número de dias com pancadas fortes de chuvas e, igualmente, maior número consecutivo de dias secos”.

ADAPTAÇÃO O aumento na variabilidade do clima e na probabilidade de fenômenos climáticos extremos já está exigindo esforços de adaptação por parte dos agentes públicos. “A cidade tem que ter uma preparação para esse novo cenário. E tem que se adaptar rapidamente, porque ele já está acontecendo”, alerta Nobre. “Não é para daqui a 20, 30, 50 anos”. “Já estamos vivendo uma situação de grande mudança nos regimes climáticos”, disse. “Portanto, toda a infraestrutura e a estrutura de abastecimento de água têm que levar em consideração essa variação, colocando em ação uma série de mecanismos de aumentar resiliência”. Como exemplo de ação uma necessária, cita o reflorestamento das bacias dos rios. “Isso é muito importante, tanto para melhorar a qualidade da água e aumentar a vida útil dos reservatórios, como também para moderar os picos de inundação. O reflorestamento ajuda a redistribuir a água, com menos vazão na época de chuva e mais vazão na época seca do ano”, explica. “Só estou dando um exemplo de uma atividade típica de adaptação à maior volatilidade climática. Outro caso muito concreto - e que todos estão sentindo, paulistanos e paulistas - é a crise hídrica”.


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