Mulheres Reais

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Emilia Duncan & Clรกudia Fares

Apoio:



Emilia Duncan & Clรกudia Fares

Belo Horizonte

Campo das Vertentes e FIEMG 2009

Apoio:


Copyright © Campo das Vertentes, Cláudia Fares, Emília Duncan

Edição Cláudia Fares e Alexandre Arbex Projeto gráfico Escritório Guili Seara Design Direção de Criação: Guilherme Seara Designers: Anna Perim, Bruna Rodrigues, Larissa Gontijo, Natália Dutra e Zumberto Croquis de moda Tatiana Rodrigues Ilustrações de figurinos ícones Otacílio Coutinho Fotos das colagens da iconografia européia Tatiana Junod Fotos do capítulo “Instantâneos de imagens de nós mesmas” Júlio Aguiar Ensaio fotográfico e fotos do capítulo “A moda de ontem na moda de Minas de hoje” Marcelo Coelho

Duncan, Emília, Fares, Cláudia Mulheres reais no Rio de dom João VI; modos de criação de uma exposição de moda / Emília Duncan e Cláudia Fares. — Rio de Janeiro: Campo das Vertentes Realizações em Arte e Cultura Ltda, Belo Horizonte: Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais — Fiemg, 2009. 224p. il. ISBN 978-85-7756-037-0 1. Moda — Rio de Janeiro (RJ) — História — Século XIX. 2. Mulheres — Rio de Janeiro (RJ) — História — Século XIX. 3. Rio de Janeiro (RJ) — Usos e costumes. 4. Rio de Janeiro (RJ) — História — Século XIX. 5. Brasil — História — João VI, 1808/1821. I. Fares, Cláudia. II. Título. CDD: 391.00981531 CDU: 391(815.31)

Campo das Vertentes Rua Desembargador Alfredo Russel, 70/202 Leblon – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22431-030 campodasvertentes@gmail.com


Patrocinado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais — FIEMG, este livro registra o processo de pesquisa e criação de figurinos e seleção de trajes originais que compuseram a exposição Mulheres Reais; Modas + Modos no Rio de Dom João VI. Exibida de 28 de maio a 6 de julho de 2008 na Fundação Casa França Brasil (Rio de Janeiro), a exposição integrou o calendário de atividades organizado e promovido pela Comissão para as Comemorações do Bicentenário da Chegada de Dom João VI e da Família Real ao Rio de Janeiro/Prefeitura do Rio. Em Belo Horizonte, a mesma exposição foi realizada na Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes, de 9 de outubro a 22 de novembro de 2009, e teve como patrocinadoras as seguintes empresas: CEMIG, BMG, Terna Participações, TBE, Oi, Andritz Hydro e Construtora Queiroz Galvão.


Abertura 10

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As mulheres do Rio de D. João VI As modas e os modos como fios de narração Mar de mundos


I - Mulheres da Realeza

O Processo de Construção de um Acervo

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Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana

28

Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon

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Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo

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Teatro da realeza

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Modas de rainhas I: D. Maria I – uma mulher do Antigo Regime

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Modas de rainhas II: D. Carlota Joaquina – uma mulher entre dois tempos

50

Modas de rainhas III: D. Leopoldina – uma mulher de seu tempo

62

Ópera da Corte

88

Caixa de memória


II - Mulheres da Realidade

94

Modos velados

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A cidade de antes: de povoado a capital do Império Português

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A casa

100

A rua: vultos encobertos

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Modos desvelados

101

Negras desnudas

102

Modas reveladoras

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Da sombra para a luz:

94

transformações da cidade 106

Brancas emergentes

107

Negras bonecas

108

Negras multiculturais

110

Negras jóias


III - O Passado no Presente 114

116

Re-Debret

130

Desfile antropol贸gico

131

Os triunfos mon谩rquicos e as escolas de samba


132

Ensaio Fotogrรกfico


Arremates de Conversas 168

170

Do Antigo Regime à moda Império –rainhas européias nos trópicos Madalena Braz Teixeira

176

Moda da Europa nas modas do Rio joanino Maria Beatriz Nizza da Silva

182

Figuras & figurinos – a África derramada no Rio de Janeiro Raul Lody

190

Debret figurinista, ou as passarelas do Rio Julio Bandeira

196

O ar dos tempos e a moda João Braga

202

Instantâneos de imagens de nós mesmas

210

A moda de ontem na moda de Minas de hoje


As mulheres do Rio de Dom João VL

Esta obra, desenhada com base na exposição Mulheres Reais —

Modas + Modos no Rio de Dom João VI, inserida nas comemorações dos 200 anos da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro promovidas pela Prefeitura do Rio, revela a moda — a indumentária e seus usos — como uma importante manifestação cultural e social do Rio de Janeiro, quando a cidade era capital do Império Português. É tecida por uma narrativa lúdica do cotidiano do universo feminino. Os trajes e acessórios foram expostos no cenário privilegiado da Casa França Brasil — primeira alfândega do Rio, projetada por Grandjean de Montigny, integrante da Missão Artística Francesa acolhida por D. João.

Trajes e acessórios autênticos do Museu Nacional do Traje e da Moda de Lisboa, do Museo del Traje de Madri e do Wien Museum — Mode Depot de Viena, e jóias de escravas do acervo do Museu Carlos Costa Pinto de Salvador integraram o conteúdo museológico representativo da exposição e estão aqui retratados, ressaltando a nobreza e a dignidade de negras e brancas de dois séculos atrás, compondo, juntamente com os figurinos e as recriações, um quadro que permite descobrir 10


as mulheres reais, através de lentes que transcendem o estereótipo e a anedota, e captam a riqueza do comportamento das mulheres da época. As mulheres reais não são apenas as da realeza — rainhas da Casa de Bragança — , mas também aquelas que ajudaram a construir hábitos e costumes da sociedade urbana carioca em formação no período joanino — tanto as mulheres de colonos protegidas por suas mantilhas quanto as mulheres africanas escravizadas, despojadas e sensualmente vestidas, únicas a circularem livremente pelas ruas e praças do acanhado povoado colonial. As modas e os modos das mulheres da realeza são recriados por intermédio de figurinos de D. Maria I, Carlota Joaquina e D. Leopoldina, permitindo uma aproximação completamente diversa das descrições estereotipadas e caricaturais. A obra capta a contingência singular de cada uma delas para revelar a Maria que não foi apenas piedosa e louca, a Carlota que está além da feiúra e da intriga, e a Leopoldina que não se limitou ao papel de mulher-mártir. As modas e os modos das outras mulheres brancas e negras da realidade brasileira, protagonistas da construção da realidade social cotidiana durante a permanência da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, são revelados na diversidade de seus trajes e trejeitos no segundo capítulo, “Mulheres da Realidade”. O terceiro capítulo, na parte intitulada “Re-Debret”, lança mão da licença poética e sugere uma releitura do Rio antigo, ao vestir mulheres de hoje com figurinos inspirados nas aquarelas luminosas do artista. Este livro, registro da exposição homônima, retrata o encontro da realidade européia e do mundo colonial, revelando matizes e matrizes do universo de nossas mulheres do passado. Mulheres que tiveram de deixar seus territórios físicos e simbólicos e reconstruir no Brasil uma nova história, fundando as bases da nossa identidade e da nossa cultura. A Comissão

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As modas e os modos como fios de narração

Este é um livro que revela o processo

de criação de uma exposição temática e sui generis que implicou a criação e confecção de figurinos para, repensando informações e preenchendo lacunas, dar corpo a trajes que não existem mais. A esse acervo construído reúnem-se trajes e acessórios do Museu Nacional do Traje de Lisboa, do Museo del Traje de Madri e do Wien Museum — Mode Depot de Viena; e jóias

do Museu Carlos Costa Pinto de Salvador — peças que são testemunhas eloqüentes dos estilos e das transformações de uma época.

Recuando e avançando no tempo da permanência da Corte portuguesa no Brasil, buscamos tecer, com os fios das modas e dos modos , uma narrativa sobre as Mulheres Reais do Rio de Dom João VI . As mulheres reais são as mulheres da realeza portuguesa (nossas rainhas) e aquelas da realidade brasileira (as colonas brancas e as africanas escravizadas). Ao abrigar dois sentidos no adjetivo real — realeza e realidade — a língua portuguesa nos ajuda a traçar uma via de mão dupla entre esses dois universos femininos. Devolvemos às nossas mulheres da realeza a condição de mulheres reais da realidade e, às mulheres da realidade, conferimos a realeza que lhes é devida. Esta é, portanto, uma obra sobre rainhas brancas e negras, negras e brancas, delas salientando a humanidade e a nobreza. 12


As modas e os modos são fios que tecem e conduzem a narrativa sobre essas mulheres e são também lentes que estabelecem a aproximação e o recuo necessários para se alcançar uma visão particular e inovadora sobre elas. Os retratos, gravuras e demais registros iconográficos são os espelhos que atravessamos para aportarmos em seus universos, tendo como bússola uma vasta bibliografia que abrangeu a história e a sociologia política, social, das mentalidades, da indumentária e da moda. De nossas rainhas brancas da realeza retiramos os mantos da caricatura e da anedota no capítulo “Mulheres da Realeza”. Um zoom em suas modas e seus modos nos permite uma aproximação que as revela na complexidade de seus universos e nos faz compreendê-las como criaturas investidas de poder e, portanto, comprometidas com imagens construídas que não correspondem necessariamente à realidade pessoal e existencial de cada uma delas. No capítulo “Mulheres da Realidade”, vislumbramos nossas rainhas negras, cujos corpos — única bagagem que a uma escrava é dado carregar — narram seus pertencimentos e cujos trajes relatam os caminhos de suas culturas. Um zoom em suas modas e seus modos nos permite estabelecer o recuo para enxergá-las sob um ângulo que não o da escravidão e do sofrimento. Aqui, trata-se de contemplá-las em sua nobreza ancestral: exuberantes, belas, coloridas, enfeitadas, dignas rainhas. Nesse mesmo capítulo, acompanhamos nossas rainhas brancas da realidade colonial em seu aprendizado de como ser e estar em um Rio de Janeiro, que, da sombra de pequeno povoado, passa à luz, ao se transformar em capital do Império Português.

No capítulo “O Passado no Presente”, realizamos o exercício lúdico de flagrar as modas e os modos do Rio joanino que atravessam as modas e os modos do Rio atual: mulheres de hoje com trajes inspirados nas aquarelas de Debret reunidas em uma produção fotográfica; peças de acervos de estilistas brasileiros mostrando que a moda é uma recriação ininterrupta; elementos da tradição dos cortejos monárquicos europeus presentes em nossas escolas de samba. Ecos que os olhos podem surpreender sem a necessidade de fazer deles motivo de uma tese a ser comprovada. O que se pretende aqui é suscitar uma reflexão poética e existencial sobre o que somos e fizemos do legado que nos coube. As curadoras da exposição

Mulheres Reais — Modas + Modos no Rio de Dom João VI 13



O mar é o meio que separa e une os mundos que vêm encontrar-se aqui. Com os colonizadores, aporta o mundo português, cuja história guarda ainda as marcas dos oitocentos anos da ocupação árabe da Península Ibérica.

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O tráfico negreiro traz para o novo continente os escravos dos vários mundos que formam a África. A Abertura dos Portos faz chegar à colônia distante o mundo da técnica e do luxo dos produtos ingleses e franceses. Navegantes, cativos, desterrados e aventureiros entram na cidade do Rio de Janeiro pela mesma ante-sala, a Baía de Guanabara, suntuosa e plácida. 16



Também por ela virá o príncipe com sua Corte, e esse mundo de cores africanas e traços do Oriente ganhará modas e modos europeus.

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A

realidade das é o fio que conduz a meada da narrativa sobre o encontro de mundos que ac o n t e c e n o R i o d e J a n e i r o n o p e r í o d o j o a n i n o . D. M a r i a I , C a r l o t a J o a q u i n a e L e o p o l d i n a :

mulheres da realeza

três mulheres cujos trajes refletem as transformações políticas, sociais, artísticas e culturais das épocas em que viveram.

20


21


O período entre o nascimento de

D. Maria I, em 1734, a morte de D. Leopoldina, em 1826, e a de

D. Carlota Joaquina, quatro anos depois, abrange quase um século de história. Essas três mulheres tiveram em comum a experiência do poder e o exercício das funções da realeza. 22


para D. Maria I, o poder era uma provação; para D. Carlota, um privilégio; para D. Leopoldina, um sacrifício.

23


A

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à sua irmã durante os anos em que foi princesa e imperatriz do Brasil.

poderes

romantismo

d i f e r e n ç a s explicam-se pelo espírito

O fará prevalecer, sobre essa razão, a sentimentalidade. Os relatos ardorosos e comoventes dos sofrimentos do jovem Werther ecoam nas c a r t a s carregadas de e m o ç ã o que D. Leopoldina, a filha do imperador da Áustria apresentada a Goethe, escreveu

N a s c i d a s o b o s i g n o d o b a r r o c o t a r d i o , D. M a r i a I

conflito

elementos da cultura espanhola e na dramatização crua das paixões humanas, c uj a v io l ên cia d efin ir á l imi tes mais estreitos para a limites racionalidade.

personificará o

religiosidade de D. Carlota será prática, isenta de superstições, e seu gosto se conformará em parte às modernas tendências da Europa. O neoclassicismo de C ar l ot a s er á o d os Bo ur bo n s il us tr a do s, m as também o de Goya, re f le t i d o a o m es mo t em po n a c on st ruç ão da im ag em nac ional da monarquia co m b a se e m

outras

espírito da época que

coube a cada uma viver.

entre os

divino e humano que caracteriza esse período.


Talvez seja impossível ver as mulheres da realeza como mulheres reais. As anedotas e caricaturas não as humanizam, apenas deformam suas imagens, e negam os traços que as singularizam para revesti-las com as representações que a tradição lhes prodigalizou. Para essas três mulheres, o desterro não terá sido apenas o da separação ou da distância: no isolamento da função monárquica, elas sofreram este outro estranho destino, que lhes deu ao mesmo tempo a majestade e a solidão.

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maria francisca gertrudes

D.

Maria I amava a música, cantava em serenatas, gostava de piqueniques e se encantava com os fogos de artifício. Era uma mulher piedosa, e sua fé beirou a bravura quando fez construir a Basílica da Estrela consagrada ao culto do Sagrado Coração, objeto de devoção que, segundo a Igreja, evidenciava a natureza humana e não a origem divina de Cristo.

Maria I, a Pia.

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isabel josefa antónia rita joana Um dia, a terra tremeu em Lisboa, provocando a morte de dois terços de sua população. Terremoto, tsunami, incêndio consumindo o mundo que lhe caberia em breve governar. Já como rainha, as perdas de três filhos e do marido, sofridas num intervalo de poucos anos, arremataram o inventário de seus dilaceramentos. Aos poucos, as cores foram dando lugar ao luto e Maria I, a Pia, teve o seu nome acrescido de mais um aposto: a Louca. Maria I retrata a condição humana, demasiado humana, de que, das contingências e da fatalidade, nem os deuses escapam.

D. Maria I Filha de D. José I de Portugal e de D. Mariana Vitória da Espanha, neta de Felipe V da Espanha e de D. João V de Portugal. 1734 — Nascimento (Portugal) 1760 — Casamento (com D. Pedro III, seu tio) 1767 — Nascimento de seu filho D. João (futuro D. João VI) 1777 — Torna-se rainha de Portugal 1790 — Primeiros sinais de loucura 1792 — Considerada incapaz (D. João assume o trono como príncipe regente) 1808 — Chegada ao Brasil 1816 — Morte (Brasil — seu filho é aclamado rei D. João VI)

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carlota joaquina bourbon e

D

uas vezes Bourbon, uma das Casas Reais mais poderosas da Europa. Infinitas vezes difamada por ser quem era: soberana na imagem que tinha de si mesma, soberana na convicção da legitimidade de suas pretensões. Inadequada a uma época em que a ambição política e a expressão explícita das próprias convicções eram prerrogativas reservadas àqueles que detinham oficialmente o poder. A ela couberam os julgamentos mais paradoxais: feia e máscula, mas sedutora; inteligente, mas intrigante. Feminista avant la lettre, sua vontade de afirmação exprimia-se sob a forma de um irrefreável desejo de visibilidade e poder. O protagonismo político do avô

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teresa caetana de bourbon e da mãe era o espelho no qual se mirava. O avô paterno, Carlos III, foi um governante esclarecido que devolveu à Espanha a prosperidade perdida. Sua mãe, Maria Luísa de Parma, deteve as rédeas do governo espanhol, em lugar do marido, Carlos IV. Entre o antigo e o novo regime, D. Carlota, guiada pelos valores da monarquia absoluta, tentou, por várias vezes, conquistar o prestígio político que acreditava lhe ser devido. Até o fim de sua vida, o orgulho de ser uma Bourbon fez dela o que ela foi. Para o bem e para o mal.

D. Carlota Filha de Carlos IV da Espanha e de Maria Luísa de Parma. 1775 — Nascimento (Espanha) 1785 — Casamento (com o príncipe D. João — futuro D. João VI) 1798 — Torna-se princesa regente de Portugal 1808 — Chegada ao Brasil 1821 — Volta a Portugal 1830 — Morte (Portugal)

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maria leopoldina de A

Gravura do Imperador Francisco I e sua família em Laxemburg 1807 © Biblioteca Nacional da Áustria.

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pedra antes de ser pedra foi um elemento moldável e flexível. Leopoldina talvez tenha amado nas pedras essa memória de flexibilidade e adaptação. Como um cristal, tornou-se forte, mas não teve o destino dos minerais, sua primeira e duradoura paixão. Não pôde deixarse ficar, resguardada das investidas do mundo, apenas sendo. Essa jovem arquiduquesa culta, amiga de cientistas, atravessou o mar imbuída do dever de se casar com Pedro I, fazer “a vontade do pai” e contribuir para o “futuro de sua pátria”. Foi além do cumprimento do dever, pois apaixonou-se por Pedro I e pelo Brasil e, junto com José Bonifácio, tornou-se a maior articuladora de nossa independência política. Leopoldina foi uma mulher da palavra, afã de expressão, diálogo e compreensão do mundo e das pessoas. Em seus exílios da infância — de certa maneira toda órfã é uma exilada — e, no Brasil, Leopoldina escreveu cartas. Nelas inventariou


josefa carolina habsburgo seu cotidiano mais corriqueiro, suas descobertas, o afeto derramado pela irmã Maria Luísa, suas paixões e seus interesses — a mineralogia, a botânica, a literatura. Leopoldina foi uma heroína romântica na radical acepção do termo: o idealismo e a sentimentalidade guiaram todos os atos de sua vida, religiosamente registrada em suas cartas até poucos dias antes de sua morte.

D. Leopoldina Filha de Francisco I da Áustria (Francisco II do Sacro Império Romano-Germânico) e de Maria Teresa da Sicília; irmã de Maria Luísa, segunda esposa de Napoleão Bonaparte; sobrinha-neta de Maria Antonieta, esposa de Luís XVI. 1797 — Nascimento (Áustria) 1817 (maio) — Casamento por procuração, na Áustria, com D. Pedro (futuro D. Pedro I) 1817 (novembro) — Chegada ao Brasil 1819 — Nascimento de sua filha D. Maria da Glória (futura D. Maria II, rainha de Portugal) 1822 — Torna-se imperatriz do Brasil 1825 — Nascimento do príncipe D. Pedro (futuro D. Pedro II). 1828 — Morte (Brasil)

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teatro

da Realeza O Teatro da Realeza tinha como palco a Corte. Nele, as rainhas protagonizavam o papel de mulheres reais, vestidas para representar o poder e impressionar os sĂşditos, ostentando luxo, opulĂŞncia, nobreza e legitimidade. 32


Embora oriundas de universos existenciais e culturais distintos, D. Maria, D. Carlota e D. Leopoldina — filhas das casas reais de Bragança, Bourbon e Habsburgo, respectivamente — não fugiam a essa regra: seus trajes deveriam refletir com esplendor os princípios da monarquia e dar-lhes materialidade. O estilo soberbo desse vestuário, que parecia elevar a figura régia acima das coisas mundanas, não podia, contudo, deixar de espelhar também as mudanças políticas e sociais ocorridas na Europa a partir da segunda metade do século XVIII até o

quanto os palácios grandiosos e ricamente decorados.

personagens reais eram tão necessários para assinalar sua soberania adornavam as

separavam a Corte do restante da sociedade: rendas, veludos, sedas, bordados e jóias que

No Antigo Regime, a suntuosidade dos vestidos reforçava a evidência das fronteiras que

primeiro quartel do século XIX.

Contudo, a Revolução Industrial inglesa e a Revolução Francesa — que marcaram a ascensão econômica e política da burguesia — democratizaram a moda. Essa mudança afetou diretamente os valores estilísticos do traje real: o artificialismo, o exagero e a rigidez deram lugar à sobriedade, à discrição e à mobilidade; a indumentária imponente ficava reservada apenas para as grandes solenidades oficiais. A importância do modo de se vestir das rainhas começava a se pautar segundo códigos novos, criados para um novo Teatro da Realeza. 33



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Infanta D. Maria Francisca Isabel Josefa, Francisco Vieira Lusitano, c.1753. © Palácio Nacional de Queluz - Lisboa IGESPAR DIDA AF Foto: Paulo Cintra / Laura Castro Caldas

Imagem e Estilo Vestido L

D. Maria Infanta O quadro que inspirou este figurino representa D. Maria ainda princesa, o que explica a ausência de insígnias e de cetro. Em atitude solene, tendo por único adorno o leque numa das mãos, transmite sua condição de futura rainha de Portugal. Aqui ela usa o robe de cour – traje monárquico fundamental nas representações do sistema absolutista. Instituído no século XVII, na França, e adotado por todas as casas reais européias, esse modelo, com pequenas variações, permaneceu praticamente o mesmo até a queda do Antigo Regime: ombros descobertos, espartilho, mangas bufantes, saia pesada usada sobre uma armação, e cauda longa. As jóias que decoram o corpete exibem a riqueza e a pujança da Corte portuguesa na época. A natureza divina da monarquia é sugerida pelo desenho das mangas, cuja forma remete à indumentária dos anjos renascentistas. O manto azul alude à devoção da princesa à Virgem Maria. 37



Imagem e E

stilo

Vestid

D. Maria

o LL

Rainha

D. Maria ve de seus tr ste um a jes mais majestos o s e alegr símbolo d e uma fas es, e fe e promiss ora de sua liz vida no Palácio A ausência de Queluz. d imagem r a coroa na em tradição r ete a uma com o fim égia nascida da espanhola dominação ( depois de 1580-1640): reconquis tada, a coroa

portugu foi oferec esa Nossa Se ida à nh da Conce ora ição, padro

eir nunca ma a do reino, e is foi um mona usada por r coroação ca. O rito da foi substit pela cerim uído ônia aclamaçã o, e a coro de a, e vez de ad ornar a ca m beça dos reis o u rainhas , era depositad almofada a sobre uma junto ao t rono.

Retrato da rainha D. Maria I e D. Pedro III, autor desconhecido, séc. XVIII © Museu Nacional dos Coches - Lisboa Divisão de Documentação Fotográfica Instituto dos Museus e da Conservação - IP Foto: José Pessoa

Este é um traje monárquico da década de 1760, uma época em que o panier, a armação lateral que abalonava as saias, já estava em voga. A manga, rematada em camadas de renda, típica do estilo rococó, era então usada nos vestidos de Corte por toda a Europa. A estampa do tecido representa motivos barrocos, com espaçamento mais suave, e cores matizadas de vermelho, herança simbólica do Império Romano, e ouro, metal nobre associado à realeza. 39


Imagem e Estilo Vestido LLL

Pós-Revolução

A simplicidade deste traje oficial de D. Maria reflete os tumultuosos tempos da Revolução Francesa, quando a exagerada ostentação material podia ser perigosa para as Casas Reais. Paris já não ditava a moda como antes, e o estilo inglês, cuja praticidade agradava a uma aristocracia vinculada à vida no campo, começava a fazer sentir sua influência.

Retrato da rainha D. Maria I, Giuseppe Troni, séc. XVIII © Palácio Nacional de Queluz - Lisboa IGESPAR DIDA AF Foto: Paulo Cintra / Laura Castro Caldas

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Este vestido mantém o desenho do corpete, a gola e as mangas tradicionais do traje monárquico, mas apresenta uma silhueta mais atenuada, que facilita o movimento, e cores mais suaves, reflexo do novo estilo em voga. Chamado “vestido à inglesa”, o modelo não traz armação lateral; seu elemento de destaque são as almofadas na parte de trás da saia, que passa a ser o foco da atenção. O penteado da rainha segue fiel ao estilo do Antigo Regime, com estrutura bem definida e adorno de plumas de avestruz, moda lançada por Maria Antonieta.



Modas de Rainhas II

D. Carlota Joaquina uma mulher

entre dois tempos

D. Carlota descendia

da dinastia

Bourbon, da Espanha. Aos 10 anos, deixou

o PalĂĄcio de Aranjuez, onde vivia rodeada pelo

luxo da Corte,

para se casar com D. JoĂŁo,

em Portugal.

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Seu enxoval foi confeccionado

por Rose Bertin – a grande

modista de Maria Antonieta. D. Carlota vivenciou a transição política européia inaugurada pela Revolução Francesa, mas viveu segundo os valores da

monarquia absolutista, pelos quais sempre lutou. Valores evidenciados em seu vestido de infanta, feito para marcar a distância das classes no

Antigo Regime: as anquinhas laterais, saltos altos, cabeleira empoada, com toques de certo exagero espanhol.

A partir da ascensão da burguesia, novas tendências estéticas dominaram

as Cortes européias, consolidando outros padrões. A chuva de plumas, pérolas e bordados, que inundara a moda do absolutismo, deu lugar a códigos mais sóbrios. D. Carlota assistiu ao fim do estilo que era expressão de suas idéias políticas – às quais se manteve sempre fiel –, mas se esforçou por acompanhar os gostos que o novo regime trouxe consigo. Se suas combinações por vezes resultavam anacrônicas e exageradas para o código recente da moda, era antes o seu temperamento passional que excedia os modos comedidos da época: a princesa que viveu em Portugal e no Brasil nunca deixou de ser uma Bourbon de sangue espanhol.

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imagem e estilo vestido L - Infanta

N esta

composição, D. Carlota aparece ainda

criança.

O leque em uma de suas mãos representa a sofisticação do gestual feminino, e o p e q u e n o p á s s a r o que ela exibe na outra s u g e r e certa proximidade em relação à natureza.

O t r a j e , típico do Antigo Regime, reflete a f o r m a ç ã o m o n á r q u i c a da princesa e os v a l o r e s a b s o l u t i s t a s pelos quais ela lutará por toda a sua vida.

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A

_____________ exagerada armação lateral da anágua em panier e o cabelo empoado, de toucado alto, traduzem o artificialismo do modo de vestir do Antigo Regime e reforçam a imobilidade corporal e hierática da pose.

A decoração do vestido e do adereço

de cabeça apresenta cores suaves e ornamentos florais, uma composição de graciosidade e futilidade típica da moda do período.

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imagem e estilo vestido ll

- moda império

C

om atitude solene, D. Carlota segura em uma das mãos um pingente com um retrato do marido, D . J o ã o . E s s e g e s t o , d e efeito formal, tinha o propósito de celebrar a aliança das dinastias n o Te a t r o d a R e a l e z a . Na outra mão, a princesa traz um livro e uma pena – símbolos típicos do saber e, por extensão, do poder.

Retrato de Carlota Joaquina de Bourbon – Infanta de Espanha e Rainha de Portugal, autor desconhecido. Col. Palácio Nacional da Ajuda – Lisboa Divisão de Documentação Fotográfica Instituto dos Museus e da Conservação - IP Fotógrafo: Manuel Silveira Ramos

Essa composição denota a queda do tradicional traje monárquico e aponta para uma nova estética difundida pela França: o estilo Diretório, que, a partir de Josefina Bonaparte, se afirmará no desenho da moda Império – vestido solto com cintura alta, de inspiração greco-romana, composto de tecidos pesados e luxuosos, e adornado com elementos medievorenascentistas.

Embora considerando Napoleão

o maior inimigo de sua família e de seu país,

D. Carlota não escapa à moda instituída durante o apogeu do seu império na França. A nova tendência recupera os parâmetros estéticos da Antiguidade clássica, e os novos ares pedem novos luxos. Os cabelos curtos, ao natural, o rosto corado, o traje despojado de armações e as jóias delicadas testemunham a adesão de D. Carlota às novidades visuais da época. A princesa adota a cor vermelha, que representa a ostentação do poder real e remete à energia de seu temperamento. O uso de tons purpúreos evoca um passado clássico ao mesmo tempo em que reforça os atributos da realeza.

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imagem e estilo vestido LLL - traje de montaria

A

partir do final do século XVIII, as

roupas masculinas começam a influenciar o guarda-roupa feminino. A

casaca de equitação, o famoso riding coat, é introduzida na França como redingote, e usada como traje de amazona. O abotoamento frontal obedece ao sentido de praticidade da vestimenta. Mais tarde, os uniformes militares e seus adornos também vão influenciar a estética dos casacos femininos. N esta composição, D. Ca r l o t a u s a u m t r a j e eqüestre semelhante ao d e s u a M ã E , D . M a r i a Luísa de Parma.

Montar a cavalo era um passatempo aristocrático tradicional, que refletia certa autonomia feminina.

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gosto de D. Carlota pela montaria e a desenvoltura com que a praticava suscitaram

críticas

ácidas

à sua reputação no ambiente colonial, onde a vida das mulheres se pautava pela reclusão e pelo recato.

O

Revista das Tropas Destinadas a Montevidéu na Praia Grande (detalhe) Jean Baptiste Debret, 1816. Col. Brasiliana - Pinacoteca do Estado de São Paulo. Fotógrafo: Rômulo Fialdini

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D. Leopoldina, uma mulher de Seu Tempo Modas de Rainhas LLL

Arquiduquesa da Áustria, princesa e imperatriz do Brasil, D. Leopoldina nasceu no alvorecer do liberalismo, uma época nova no palco político da Europa, cujo advento exigiu das monarquias a construção de uma nova representação.

No campo da moda, um estilo de vestir desenha o u t r o c e n á r i o p a r a o Te a t r o d a Realeza. A simplicidade passa a ter importante papel de comunicação. Buscam-se os valores do passado para idealizar a monarquia, cuja imagem, agora,

já não se caracteriza pela exibição do fausto e da riqueza, mas pela ênfase à sua resistência heróica e romantizada.

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Esse processo se manifesta na moda por meio da incorporação da cintura alta – silhueta do estilo Diretório e da linha Império, ambos inspirados na Antiguidade clássica – e de elementos do vestuário da Idade Média e da Renascença – o estilo Trovador (Troubadour). Assim, os detalhes de gola e mangas denotam a busca de uma ornamentação orgânica, prenunciando o que viria a ser

conhecido por estilo Romântico. D. Leopoldina encarnou esses valores nas suas modas e nos seus modos. Vestia-se despojadamente, com trajes de silhueta reduzida, sapatos baixos e cabelos naturais. Unindo, por temperamento, a nobreza do sangue à nobreza do coração, desempenhou o papel de

heroína romântica

no Teatro da Realeza.

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Imagem e Estilo Vestido L - ninfa

L

eopoldina posa como uma deidade

clássica. O Olimpo, todavia, deixara

de ser então cenário exclusivo da nobreza: pelo código dos novos tempos, também as mulheres da burguesia podiam usar trajes inspirados na AntigUidade.

Os tecidos finos, o caimento suave, os drapejados, o acabamento nos barrados – todas essas figurações evocam a simplicidade das túnicas greco-romanas, como reza o estilo Diretório. Os vestidos já não estampam ornatos florais nem signos evidentes do poder real.

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Leopoldina, Princesa Austríaca e Primeira Imperatriz do Brasil Karl Stieler, c. 1815

Trata-se agora de uma representação da realeza depurada dos excessos de ostentação e luxo que marcavam as modas do Antigo Regime.

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Imagem e Estilo Vestido LL - Moda Império

Nesse vestido, Retrato da Arquiduquesa Leopoldina, autor desconhecido, c.1817 Col. Biblioteca Nacional da Áustria – Viena Fotógrafo desconhecido

de estilo Império, já se observam elementos

pré-românticos, como o

arranjo delicado dos laços e as mangas em gomos, que remetem à

estética renascentista.

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pureza

leveza

O cacheado dos cabelos certamente reforça essa alusão. A cor branca do traje e a leveza diáfana do tecido conferem um ar de pureza divina à jovem arquiduquesa.

discrição

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A ausência de jóias esplêndidas, que não lhe faltariam numa Corte rica como a austríaca, atesta a perfeita adaptação de Leopoldina à nova estética da realeza:

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a discrição do colar de pérolas confirma sua preferência pelo gosto e PELAS maneiras comedidas da mentalidade européia de sua época.

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Imagem e Estilo Vestido LLL - pré-romântica / mãe

Este figurino é inspirado numa tela feita em 1921 por Domenico Failutti. O artista provavelmente tomou por modelo um quadro anterior à época da imperatriz Leopoldina, na medida em que a imagem registra uma indumentária com mais de cem anos de diferença em relação ao período retratado. O traje revela forte influência

romântica.

A profusão de babados na gola remonta aos rufos e pregueados renascentistas. O penteado cacheado, adornado de flores, remete à mesma época. As luvas longas, por sua vez, representam típicos acessórios do traje Império.

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O amarelo, símbolo da Casa Real de Habsburgo, remete também à cor da bandeira do Brasil. Retrato de D. Leopoldina de Habsburgo e seus filhos (detalhe), Domenico Failutti, 1921. Acervo do Museu Paulista - USP Foto: José Rosael

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Imagem e Estilo Vestido Lv - Coroação

Este figurino é inspirado no vestido usado

por Leopoldina na coroação de D. Pedro I. Criado por Debret – que, como David na França napoleônica, era o artista responsável pelos figurinos e cenários das cerimônias oficiais – o vestido revela o caráter solene da ocasião no luxo dos seus tecidos e na riqueza dos bordados em ouro.

D. Pedro I e filhos(detalhe), Simplício de Sá, 1826. Acervo do Educandário Romão de Mattos Duarte, RJ. Foto: Fausto Fleury.

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O toucado de plumas, em forma de suporte de cocar, é usado

num contexto de aproximação histórica do casal imperial com os habitantes nativos da terra, cuja identidade indumentária era comumente representada pelos adereços emplumados.

Es s a

imagem reflete a idéia de construção da nacionalidade do império brasileiro: uma conciliação da herança européia com a cultura nascida no novo continente, expressão simbólica d a a d o ç ã o d a t e r r a b r a s i l i s como pátria por parte da imperatriz .

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71


Carlota Joaquina

A roupa que fala e grita:

o orgulho de ser uma


Bourbon


















1785 Infanta Carlota Joaquina, por Mariano Salvador Maella. Museu Nacional do Prado. Traje monárquico estilo Maria Antonieta.

1780

1785 Publicação de Cabinet des modes.

1783 Retrato de Maria Antonieta, pintado por Vigée LeBrun.

Robe chemise (precursor da linha Império) _ musselina branca, cintura alta marcada, sapatilhas.

1777

Década de 1780 Os costumes da nobreza inglesa determinam a simplificação dos trajes. Surge o robe à l’anglaise.

1778 Publicação de La Galerie des modes et costumes français.

1785

1789 Início da Revolução Francesa.

1788 Morte do príncipe D. José (primogênito de D. Maria I).

1786 Morte de D. Pedro III (marido de D. Maria I).

1785 Casamento de D. João e Carlota.

1783 Maria Antonieta é acusada de humilhar a Corte e arruinar a indústria têxtil francesa.

1782 Pierre Choderlos de Laclos escreve Ligações perigosas.

1777 Morte de D. José I. Início do reinado de D. Maria I. Começam as críticas sobre os excessos de Maria Antonieta.

1

2

3


1790

1800 Moda Diretório: vestidos copiam a túnica greco-romana. Fim dos acessórios destinados a modelar o corpo.Retrato de Mme. Récamier, pintado por Jacques-Louis David (pintor oficial da Corte francesa).

1798 Oriente em voga: xale e turbante.

1797 Publicação do Journal des dames et des modes.

1795 Moda é considerada artificialista e subversiva - negação da estética do Antigo Regime.

1794 Publicação do Gallery of Fashion - Londres.

1790 Publicação do Journal de la mode et du goût. Retrato de D. Maria I (influência do robe à l’anglaise) atrib. Giuseppe Troni. Final séc. XVIII. Palácio Nacional de Queluz - IGESPAR DIDA AF Foto: Paulo Cintra / Laura Castro Caldas.

1799 Início do Consulado (França). Período em que se busca ordem, equilíbrio e distinção.

1798 Nascimento de D. Pedro de Alcântara, futuro D. Pedro I do Brasil / Campanha de Napoleão no Egito.

1797 Nascimento de D. Leopoldina (Áustria).

1796 Casamento de Napoleão Bonaparte e Josefina de Beauharnais.

1795 Início do Período Diretório (França).

1794 Fim da Revolução Francesa.

1793 Morte da família real francesa (Luís XVI e Maria Antonieta).

1792 D. Maria I é declarada mentalmente instável. Início da regência de D. João VI. A monarquia é abolida na França.

Museu del Traje _ Madri

4_Sapatos, c.1780-1800

4 Madeira, couro, metais, cetim e tafetá com aplicação de lantejoulas e fio metálico; forro e palmilha em couro de cabrito branco.

Na segunda metade do século XVIII os sapatos de salto alto, típicos do período rococó, vão sendo trocados pelos mais baixos e confortáveis, de acordo com a tendência à simplicidade da moda desse momento. São características da década de 1780 as pontas finas e levemente viradas para cima, o que denota o gosto pela chinoiserie.

© Museo del Traje de Madri

Nº Inventário MT 000863 Foto: Enrique de Murga

1800


2

3_Vestido (de dia), 1825

© Modesammlung, Museu de Viena I.N.M.2.965

I.N.M.19

1816 Debret chega com a Missão Francesa ao Rio. Morte de D. Maria I.

Algodão branco, bordado à mão com motivos florais. Decote oval, mangas curtas, cintura alta, saia terminando em cauda.

1815 Congresso de Viena. Romantismo germânico.

1814 Fim do Império de Napoleão.

1

c. 1816 Revista das tropas destinadas a Montevidéu na Praia Grande por Debret. Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foto Rômulo Fialdini. Carlota em traje de amazona.

1804

1809 Separação de Napoleão e Josefina.

1808 Família Real chega ao Brasil - Salvador e Rio. Abertura dos Portos.

1807 Transferência da família real portuguesa para o Brasil. Napoleão invade Portugal.

1806 Napoleão decreta o Bloqueio Continental.

1804 Início do Império / Coroação de Napoleão e Josefina.

2_Vestido (de dia), c. 1805

c. 1815 Leopoldina, princesa austríaca e primeira imperatriz do Brasil por Karl Stieler. Coleção viúva Otto Sachs, Rio de Janeiro. Traje Diretório.

1807 Quadro da Coroação de Napoleão por JacquesLuís David. Imagem do Império criada com base em elementos clássicorenascentistas.

1804 Retorno ao traje de gala. Luxo adaptado aos ideais revolucionários. Permanência do orientalismo - xale de cashmere.

Wien Museum | Mode Depot _ Viena 1_Sapatos, c.1825

Couro vermelho de cabra com impressão dourada, tiras cruzadas e fitas de seda cor de canela, forro de linho; sola de couro. © Modesammlung, Museu de Viena I.N.M.3.459/2

Fotos: T. Junod-Valera

3 4

Algodão branco, bordado à mão com motivos florais e rendas, decote profundo, mangas curtas e bufantes, cintura alta, saia na altura dos tornozelos terminando com dois babados.

4_Vestido (de dia), c. 1815-1816

Tule de algodão branco bordado, rendas, decote oval, mangas compridas presas nos ombros, busto atado por fita, saia ligeiramente evasê na altura dos tornozelos.

© Modesammlung, Museu de Viena

© Modesammlung, Museu de Viena

I.N.M.2.281

1815


1820

1830 Morte de D. Carlota Portugal.

6_Chapéu, c. 1800- 1810

1826 Morte de D. Leopoldina - Brasil. Morte de D. João VI Portugal.

I.N.M.4.456

1826 D. Pedro I e filhos por Simplicio de Sá. Acervo do Educandário Romão de Mattos Duarte, RJ. Foto: Fausto Fleury.

1822 Independência do Brasil. D Pedro I é aclamado Imperador do Brasil.

1821 Regresso da família real a Portugal.

1817 maio. Casamento de D. Leopoldina e D. Pedro (por procuração). Chegada de D. Leopoldina ao Rio de Janeiro - novembro.

5

Década de 1820 - estilo trovador: resgate de valores medievo-renascentistas. Estilo romântico: voltam os babados, cordões, presilhas e franjas nas saias; corselets; stomacher; mangas mais volumosas.

c. 1820 Retrato de D Carlota Joaquina, autor desconhecido. Palácio Nacional da Ajuda Divisão de Documentação Fotográfica - Instituto dos Museus e da Conservação I.P. Foto: Manuel Silveira Ramos. Traje estilo Império.

c. 1817 Retrato da arquiduquesa Leopoldina, autor desconhecido. Biblioteca Nacional da Áustria.

Wien Museum | Mode Depot _ Viena

7

5_Vestido (de gala), c. 1818

Seda façonnée (trabalhada) rosa pastel, decote quadrado com aplique decorativo, mangas curtas, cintura alta, saia evasê com apliques decorativos na barra.

© Modesammlung, Museu de Viena 7_Xale, c. 1785–1800

Cashmere de cor damasco decorado com motivos de palmas nas bordas e, ao centro, uma sucessão de elementos típicos do padrão cashmere, (boteh).

© Modesammlung, Museu de Viena

I.N.M.684

6 8

8_Ligas de meias, 1770– 1800

Tule rígido com bordado de palha, plumas de avestruz brancas, fita branca de amarrar no queixo, forro de seda.

Tafetá de seda cor crua, fitas de seda rosa. Texto bordado em seda: En ce jour et en ces lieux de vous je suis amoureux (Neste dia e, neste lugar, de vós estou enamorado).

© Modesammlung, Museu de Viena

© Modesammlung, Museu de Viena

I.N.M.16.822

I.N.M. 594/2

1830


A

s mulheres da realeza que aportam no Rio de Janeiro ENCONTRAM as mulheres da local –

realidade

colonas brancas e negras escravizadas. Nesse e n c o ntro de mundos fundam-se matrizes e esboçam-se matizes da identidade cultural b r a s i l e i r a .




A Cidade de Antes de povoado a capital do mpério ortuguês “Acham a cidade horrível, o casario acaçapado, reles, pobre, sujo. As moradias de rótula, com suas grades espessas, lembrando casas mouriscas por onde os moradores espiam, desagradam.” Luis Edmundo. A Corte de D. João no Rio de Janeiro. Uma cidade acanhada, cortada a esmo por um emaranhado de ruelas mal arejadas, enlameadas, sem iluminação; o

casario tosco, sem beleza, desagradava os olhos dos estrangeiros. Além das igrejas, conventos e fortes, não havia outros grandes edifícios urbanos. Eis o Rio de Janeiro de 1808, na verdade um povoado com cerca de 50 mil habitantes, dos quais cerca de dois terços eram escravos. A chegada da Corte

veio somar 10 mil almas a esse contingente e impôs a reformulação do espaço da velha capital da colônia. Mais que isso, sua presença exigia uma nova concepção urbana para a cidade que, a partir de então, cumpriria o papel de sede do Império Português.

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98


Joaquim Manuel de Macedo. Memórias da Rua do Ouvidor

As rótulas e gelosias não eram cadeias confessas, positivas; mas eram pelo aspecto e pelo seu destino grandes gaiolas onde os pais e maridos zelavam sonegadas à sociedade as filhas e as esposas.

A Corte recém-chegada encontrou na capital colonial um cenário urbano marcado pela influência dos

costumes orientais. Na arquitetura, o muxarabi

– herança mourisca trazida de Portugal para o Brasil – garantia à vida doméstica uma privacidade indevassável: esse balcão gradeado de treliças de madeira, chamadas de gelosias, guarnecia as fachadas e janelas

protegendo da luz e do calor o interior das casas, e da bisbilhotice

alheia a intimidade de suas

habitantes. Através de pequenos postigos, as senhoras e escravas podiam ver, sem que fossem facilmente

vistas, o que se passava nas ruas. À vontade em casa, as mulheres vestiam-se com simplicidade, cobrindo o corpo com um camisolão fresco, sem

forma, que lhes proporcionava algum alívio no clima abrasador da cidade. Vigorava nos hábitos domésticos da época uma certa familiaridade entre as senhoras e suas mucamas. Não era raro vê-las tecendo e bordando juntas ou catando piolhos uma às outras. O modus vivendi oriental estava também presente no despojamento do mobiliário e do gestual: as mulheres costumavam passar o dia sentadas em esteiras de palha, à maneira árabe, isto é, de pernas cruzadas, no

chão.

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A Rua

Vultos Encobertos

A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia (...). Manuel Antonio de Almeida. “Memórias de um sargento de milícias”

O muxarabi, na arquitetura, e a mantilha, na indumentária, simbolizam respectivamente os modos e as modas do Rio de Janeiro anterior à chegada da Corte. A rotina de reclusão caseira das mulheres da colônia variava apenas quando o calendário religioso exigia-lhes o comparecimento à igreja. Se no ambiente doméstico vestiam-se com descontração e desmazelo, quando se tratava de sair à rua, tudo mudava literalmente de figura: o à-vontade doméstico era então encoberto pela austeridade de uma pesada e escura mantilha,

casulo ambulante sob o qual elas se deslocavam a caminho da igreja. Eram estas as únicas ocasiões de sociabilidade de que desfrutavam: protegidas do olhar alheio, pontuando as ruas com seus vultos sombrios, elas espreitavam, sem ser vistas, a luz, as cores e a vivacidade da cidade exterior, território por excelência das escravas negras.


negras Desnudas

A sombra e o recolhimento das rótulas e das mantilhas se contrapõem à luminosidade e ao burburinho das ruas e praças onde transitam as escravas. São mulheres cujos modos de trabalho se refletem diretamente nas modas que vestem e na maneira como vestem. Tecidos de algodão tingidos em variados tons de azul – o índigo sendo o mais barato dos corantes – são trabalhados pelo trabalho do dia-a-dia. Roupas herdadas, fora de proporção e mal costuradas, escorregam pelo corpo ou são arregaçadas em função da liberdade de movimentos exigida pela labuta. O corpo, então, se desvela em modos que trazem à tona a ancestralidade africana: nela o vestir tinha

a função de adornar ou proteger, nunca de esconder.

O corpo da negra – território

livre onde estão inscritas sua etnia e sua cultura – é

uma escultura sobre a qual são feitas amarrações com retalhos. A faixa nos quadris – o rojão – segura as cadeiras, protegendo a coluna dos esforços. Panos possíveis, trançados de variadas maneiras, são a lembrança viva de modas e modos que sobreviveram no cativeiro.

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Da sombra para Transformações da o príncipe regente (...) mandou logo nos meses de sua residência no rio de janeiro por janelas de vidraça essa última muxarabis árabes. a ordem era singelíssima se dizer que por meio dela completou revolução nos costumes nacionais. oliveira lima. d. joão vi no rio de janeiro A chegada da Corte portuguesa e a Abertura dos Portos às Nações Amigas determinam a reeuropeização

da cidade, que, até

então, guardava fortes traços orientais na fachada das casas, no aspecto urbano e nos hábitos sociais. A fisionomia arquitetônica da capital sofre transformações: as grades de treliça mourisca são proibidas por lei e a transparência entra na ordem do dia com a importação

do vidro

em suas mais variadas formas – vidraças, cristais, candelabros e lentes. A cidade vive, então, o que Gilberto Freyre chamou de processo de

desassombramento: tudo que estava à sombra deveria vir à luz. Seus habitantes, que não tinham quase nenhuma vida social, passam a freqüentar as festas da Corte. Para isso, têm de se paramentar à altura da nobreza, pautar o talhe de suas roupas

segundo os critérios europeus de elegância e adquirir novos hábitos, como o de usar talheres e o de sentar-se à mesa para as refeições. As novas necessidades de consumo são satisfeitas com a larga importação de

produtos de luxo vindos da Inglaterra e, mais tarde, da França, cujo comércio fazia da Rua Direita (atual Rua 1º de Março) o ponto irradiador das novas modas e dos novos modos. 104


a Luz: cidade primeiros substituir recordação dos (...), mas poded. joão uma

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Brancas Emergentes modas européias estava ligado à vontade de diferenciar-se e de guardar o selo europeu, da civilização, era a marca de um O gosto pelas

COMPLEXO DE INFERIORIDADE inconfesso e inconfessável em relação ao europeu (silvia hunold lara) Emergindo do

fundo escuro das suas

mantilhas, as mulheres brancas começam a se

dar conta das transformações sociais por que passa a velha capital colonial. A missa e os ofícios religiosos deixam de ser os únicos espaços de sociabilidade.

As novas modas e os novos modos que chegam com a Corte atraem sua atenção. Com a Abertura dos Portos e a vinda de negociantes estrangeiros, uma profusão de artigos de luxo ganha as ruas da cidade. As

mercadorias inglesas, que

dominam os primeiros anos de livre comércio, logo passam a enfrentar a concorrência dos

produtos

franceses, importados após a queda de Napoleão. Casimiras, musselinas, cambraias, rendas, adornos, plumas, chapéus, figurinhas de modas e outras novidades oferecem diferentes

alternativas de estilo, mas “copiar”

é a pala-

vra de ordem para as senhoras que desejam es-

tar à altura das damas da nobreza e das estrangeiras

“civilizadas”. O excesso, o gosto pela

dância,

abun-

transforma-se em meio de expressão e

visibilidade social, e as combinações resultantes

nem sempre são felizes. Não são raros os viajantes

que assinalam o exagero como traço marcante da moda das mulheres da terra.

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Negras Bonecas O ornato dos servos é o crédito dos senhores. (silvia hunold lara, mulheres

escravas, identidades africanas)

Belas bonecas negras vestidas da moda européia, vitrines vivas da opulência e grandeza de suas senhoras: a aparência das escravas domésticas reflete a riqueza e a posição da casa a que pertencem. O uso dos sapatos, prerrogativa das negras libertas, é uma exceção permitida e necessária que reforça o jogo das aparências. Para se parecerem com as européias e, ao mesmo tempo, se distinguirem das escravas, as mulheres brancas da elite da terra copiam as modas vindas de além-mar. Mas, estranha contradição, fazem

das mucamas as suas réplicas perfeitas,

espelhos de seu status! Paramentadas como verdadeiras bonecas, as jovens negras subme-

tem-se a essa elaboração visual, que, contudo,

não consegue extirpar os traços da africanidade vivamente presentes na altivez da tez escura, nos ca-

corpos e rostos muitas vezes escarificados. belos, nos dentes limados, nos

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Negras Multiculturais C

tomavam livremente emprestadas e africanas, criando uma moda passagem do tempo. mary karasch, a v

Com a chegada da Corte, a população da cidade

aumenta , o comércio expande-se e, no movimento das ruas, tornava-se

cada vez mais freqüente a presença de uma personagem emblemática do período: a

escrava de ganho. Caso não se ocupe das tarefas da casa, a escrava

é obrigada a pagar a seu senhor uma quantia em dinheiro para trabalhar na cidade, uma espécie de aluguel pelo seu tempo e por seu próprio corpo. Para ganhar seu preço, vendedoras de pão-de-ló, angu, refrescos e doces, equilibram, sobre turbantes e rodilhas, cestas, bandejas e objetos, podendo, enfim, deixar pulsar a tradição africana de mulheres comerciantes. Muitas, ao fim de alguns anos, conseguem assim comprar a alforria. Colorem as ruas com um

estilo feito de sobreposições exemplares de referências e épocas, criando um vestir

brasileiro arquetípico: saias

de tecidos grosseiros tingidos se avizinham daquelas de algodão inglês estampado de gosto alegre; peças de roupas herdadas se alargam 108

com os gestos; os xales, última moda européia, se tornam objetos de desejo; e os panos-

da-costa – bens valiosos trazidos da África – somam-se a outros panos, que se

amarram nos quadris (rojões), conferindo ao tecido mil e uma utilidades. Privadas do direito de propriedade, suas jóias de ouro e de prata são ao mesmo tempo o seu pecúlio e a sua graça. Toda uma variedade de amuletos pende de suas cinturas: as figas – peça de origem romana – representam o sincretismo de uma tradição européia com os cultos fálicos africanos;

tradição


brasileiras

tradições européias, brasileiras elegante que se sustenta com a

vida dos escravos no rio de janeiro (1808-1850).

AS MOEDAS SERVEM PARA ATRAIR DINHEIRO; OS DENTES PROTEGEM CONTRA OS INIMIGOS; E AS MINIATURAS DOS PRODUTOS VENDIDOS PRENUNCIAM PROSPERIDADE.

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negrasjóias AS JÓIAS TRANSBORDAVAM NOS COLOS E PESCOÇOS, PUNHOS E BRAÇOS; NAS CINTURAS, POSTAS POR CORRENTÕES E NAVES, ESTAVAM AS PENCAS, TENDO EM MÉDIA DE 20 A 50 OBJETOS. raul lody. jóias de axé: fiosde-contas e outros adornos do corpo, a joalheria afro-brasileira. As escravas de ganho e negras alforriadas ostentam nas jóias seus sinais de poder. Nas peças do acervo do Museu

Carlos Costa Pinto, de Salvador, os temas, as imagens e as técnicas da ourivesaria mesclam estéticas da África Ocidental e da tradicional joalheria portuguesa, marcadas pelo estilo dominante dos artefatos preciosos do Magrebe. Nelas se reconhecem os usos e tecnologias ancestrais das culturas fânti, axânti e nok, detentoras de conhecimentos milenares na cunhagem de metais, especialmente do ouro. Essa tecnologia e seu design difundiram-se em várias regiões do Brasil, dando origem a peças que constituem o luxo e, ao mesmo tempo, o

pecúlio das mulheres negras. Os adornos, figurando na composição das roupas, identificam a crioula, personagem social afro-descendente. Prata e ouro combinam-se para realçar a textura das saias, dos panos-da-costa, dos bordados e rendas que revestem corpos barrocamente dourados. Mas, além de poder e beleza, as jóias representam, nas suas ricas variações, a pluralidade

da fé: a simbologia dos santos,

orixás e divindades marca o lugar da mulher de origem africana no episódio das festas.

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01. Brinco de crioula em ouro e pedra verde. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma 02. Brinco de crioula em ouro e coral. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma 03. Correntão de crioula com bolas lisas e gomiladas com cruz lisa, em ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes

09. Correntão de crioula com bolas confeitadas e lisas, em ouro. Bahia , séc. XVIII. Foto: Haroldo Abrantes 10. Pulseira de crioula em placas, em ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes 11. Pulseira de crioula em placas, em ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma

04. Correntão de crioula com bolas confeitadas e crucifixo-relicário, em ouro. Bahia, séc. XVIII. Foto: Haroldo Abrantes 05. Brinco de crioula em ouro e cornalina. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma 06. Correntão de crioula em filigrana, em ouro. Bahia, séc. XVIII. Foto: Haroldo Abrantes 07. Pulseira de crioula, em coral e ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma 08. Pulseira de crioula em placas, em ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma

12. Pulseira de crioula em placas, em ouro e coral. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes 13. Penca de balangandans com 28 peças, em prata. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes

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15 14. Correntão de crioula com pomba e roseta, em ouro e pedra vermelha. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes 15. Correntão de crioula de grilhões, em ouro. Bahia, séc. XIX. Foto: Haroldo Abrantes

16 Peças do acervo do Museu Carlos Costa Pinto - Salvador - BA

16. Penca de balangandãs com 31 peças e corrente, em prata. Bahia, séc. XIX. Foto: Saulo Kainuma

113





Re-olhar Jean Baptiste Debret, artista viajante que revelou as ruas cariocas como passarela dos costumes e da vida da cidade. Também cenógrafo e figurinista, Debret registrou nas suas aquarelas uma percepção detalhada do dia-a-dia do universo colonial, um mundo repleto de cores e formas não-européias e, por isso, chamado “exótico”.
















Mar de mundos



Teatro da Realeza



Teatro da Realeza — Modas de Rainhas I

2

1



Teatro da Realeza — Modas de Rainhas II

1

2

3

138

1. D. Carlota Infanta 2. Moda ImpĂŠrio 3. Traje de montaria




1

1. Leopoldina — traje pré-romântico 2. Traje da coroação

Teatro da Realeza — Modas de Rainhas III

2





Ópera da Corte — D.Carlota Joaquina





Caixa de Mem贸ria


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152


Modos Desvelados — Negras semidesnudas


Novas Modas, Novos HĂĄbitos: a mesa do nobre

foto: JĂşlio Aguiar


Modas Reveladoras — Brancas Emergentes


1

Modas Reveladoras

2

1. Negras multiculturais 2. Negras bonecas



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Desfile Antropológico — Rio de Janeiro





Desfile Antropológico — Belo Horizonte


165



167


Arremates de Conversas


N

este capítulo estão reunidos textos daqueles que foram

nossos interlocutores nas diversas fases e circunstâncias deste processo de trabalho. São, portanto, textos que arrematam conversas norteadoras e inspiradoras dos caminhos escolhidos para a construção da narrativa sobre as nossas Mulheres Reais.


Do Antigo Regime à moda Império Rainhas Européias nos Trópicos

As primeiras 11 toneladas de ouro e os primeiros 2.500 quilos de diamantes provenientes do Rio de Janeiro chegaram a Lisboa em 1699, abrindo o século XVIII com auspícios de luxo, pompa e prosperidade. A abundância estendeu-se a todos os domínios da vida artística e

cultural, da arquitetura à pintura e à escultura, do mobiliário às formas decorativas feitas em vidro, cerâmica, azulejo e laminárias, das tapeçarias e ornamentos têxteis ao traje e à joalheria. D. João V e seus descendentes habituaram-se a poder desejar e usar quaisquer espécies de atavios pessoais e a encomendar no estrangeiro, predominantemente em França, objetos de qualidade e alto preço. Essas mercadorias de luxo eram custeadas pelas receitas de ouro, diamantes, açúcar e madeiras exóticas do Brasil, pelo tráfico de

escravos 170

da África e pelo comércio de


especiarias, sedas, algodões e outros produtos provenientes do Oriente. Idêntico aparato e magnificência ostentava a Corte madrilena, que se beneficiava de fabulosos recursos provindos das colônias sul-americanas, sobretudo do Peru e do México. Não se deve ignorar que o Século de Ouro espanhol ocorrera cem anos antes, no século XVII, e propiciara o desenvolvimento de uma poderosa aristocracia, autodesignada pelo título de Grandes de Espanha, que detinha os principais cargos da administração do respectivo e universal Império. Tanto D. João VI de Bragança (1767-1826) como D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830) tinham sido educados em ambientes faustosos e palacianos, no contexto de monarquias

absolutas. O meio em que cresceram e a

vida cortesã que absorveram desde crianças tinham um caráter Antigo Regime, tal como toda a sua entourage. Muito embora se tenha notícia da participação de portugueses em acontecimentos contemporâneos tão importantes como a Declaração dos Direitos Humanos, em 1776, a Independência dos Estados Unidos da América em 1784, e a Revolução Francesa em 1789, as pessoas régias estavam alheias a essas repercussões políticas e sociais, e a nova era que estes acontecimentos anunciaram chegou oficialmente a Portugal apenas em 1820. Esse processo de destituição do absolutismo monárquico e de instauração do liberalismo constitucional exprimiu-se, no campo da estética e das manifestações culturais, como um movimento de superação do estilo barroco pela norma do neoclassicismo. A adesão a um padrão estético mais sóbrio, despojado de artifícios, característico do neoclassicismo e da moda francesa do Diretório explica, por exemplo, por que no mobiliário do período de D. Maria I e D. João figuravam, em vez da antiga imponência do estilo imperial, a simplicidade linear do classicismo. A Corte portuguesa não fica de fato alheia a essa ruptura com o barroco. A comparação das primeiras imagens da esposa de D. João, a princesa D. Carlota Joaquina, ainda em Portugal, com seus retratos pintados no Brasil demonstra a rapidez dessa transição à nova ordem artística. A figura de D. Carlota é, aliás, muito controversa: desde cedo ela se mostrou uma mulher com vontade própria e com opinião política. É interessante analisar sua busca por uma posição de protagonismo na Corte, sua procura 171


incessante pela visibilidade política, seus conflitos com o marido a quem se julgava intelectualmente muito superior. Seu empenho em ter um reino sob sua regência no Sacramento, província localizada no Mar de La Plata e que acabará por vir a ser a República do Uruguai, é um episódio deveras significativo de sua luta constante para conquistar sua emancipação política, econômica e pessoal. É de referir também o fato de ter instituído, em 1801, com autorização do príncipe regente, uma ordem exclusivamente destinada às senhoras, com a designação de Ordem das Damas Nobres de Santa Isabel. Essa ordem concedia certa dignidade social às damas com quem lidava e lhe permitia organizar uma espécie de poder paralelo na Corte, uma ousadia para a qual os portugueses não estavam preparados. Embora fosse uma rainha de fortes convicções conservadoras, D. Carlota desempenhou, em Portugal e, mais tarde, no Brasil, um solitário vanguardismo em termos de moda. Em primeiro lugar, porque entendeu que os calores tropicais não se coadunavam com o uso de sedas, e, por isso, elegeu o algodão como tecido para uso quotidiano e mesmo para algumas cerimônias mais íntimas. O algodão, barato e proveniente da Índia, tinha o apreço da Corte e da moda Império, que então estava em voga na Europa. Em segundo lugar, como se pode observar nos retratos que lhe são feitos, usava tons fortes e violentos como o vermelho, o que não estava de modo nenhum nos hábitos cortesãos. O grande cronista Debret salienta ainda a profusão de jóias com que D. Carlota se adornava para transmitir a imagem do poder pessoal e real que tanto a empolgava. Na verdade, o Século das Luzes em que D. Carlota se tinha formado criara e dera espetacularidade ao corpo para além da expressão física da realeza e da aristocracia do Antigo Regime. Colocava-se uma vasta gama de preciosos adornos, como as jóias que acompanhavam todas as manifestações da vida social e dos seus diversificados rituais. A sobrecarga ornamental traduzia uma ostensiva consagração de notoriedade e de autoridade. A simplificação do traje masculino posterior à Revolução Francesa pouco efeito teve junto à Corte portuguesa, 172


pois o calção continuava a ser dominante no Rio; do mesmo modo, se envergavam ainda as casacas e coletes bordados com cós alto, manufaturados em seda. A moda

Império caracterizava-se por vestidos compridos e decotados, de cintura alta e pequena manga curta de balão. Essa silhueta desenhava uma coluna em tudo semelhante às que se tinham recentemente descoberto nas escavações de Pompéia e Herculano. A luva era alta e o sapato raso, dando azo a uma marcha natural. A ausência dos espartilhos e a maleabilidade dos tecidos mais comuns, cassas e algodões da Índia, conferiam à mulher a idéia da fragilidade, em contraste com a forte carga agressiva, de feitio militarizante, que a indumentária masculina assumia numa época em que toda a Europa estava em guerra. Os penteados das senhoras usavam-se em caracóis sobre a face, presos com travessas, fitas e redes de ouro, ou ainda com penas, plumas, aigrettes ou jóias. A moda Império estendeu-se a diversas classes sociais do Rio de Janeiro e influenciou todo um diversificado leque de damas, senhoras, meias-senhoras, amas, babás, criadas e escravas. Todas elas vestiam os algodões da Índia que chegavam nas embarcações vindas de Lisboa com o despacho real e com todos os produtos de que o Rio necessitava para se desenvolver como capital do Reino. Algodões brancos e imaculados, como ditava a moda, mas também de cor, às riscas, às listras, xadrezes ou madras. Havia-os ainda pintados e estampados manualmente, como depois se vieram a copiar e imitar, com os carimbos 173


vindos da Índia e com prensas e maquinetas fabricadas localmente. Os bordados e as rendas eram-lhes apostos por senhoras talentosas ou por bordadores ou bordadeiras profissionais. Desse modo, a escolha era bem mais variada do que se possa imaginar. Depois de D. Maria I e D.Carlota Joaquina, o Rio viu desembarcar D. Leopoldina de Áustria (1797-1826). A arquiduquesa austríaca chegou ao Brasil em 1816 para se casar com o príncipe D. Pedro (1798-1834) e trouxe no seu guarda-roupa, como mandava o figurino de época, a indumentária Império. D. Leopoldina era uma intelectual, sobrinha de Maria Antonieta, e conhecia bem os resultados e as conseqüências de uma revolução. Muito embora o Império austríaco vivesse em idêntica, se não em maior pompa e magnificência, que o espanhol, a maneira de ser de D. Leopoldina não era agressiva e arrogante como a de sua sogra, D. Carlota Joaquina. Pelo contrário, a jovem princesa era tímida e pouco loquaz, amiga da leitura e das novidades artísticas e científicas que seus compatriotas corriam a dar-lhe no final dos respectivos trabalhos de campo. Isolada e mal vista pelas senhoras da Corte, não tinha grandes amigas e sofria com os desmandos amorosos de D. Pedro. Teve no entanto sete filhos em dez anos de casada. Assim, os divertimentos e as festas não poderiam fazer parte das suas atividades preferidas. Era uma senhora ligada aos estudos que procurava lenitivo à sua dor e sofrimento no campo intelectual e cultural. D. João VI permaneceu no Rio até 1820, à margem das revoluções, mas seguindo o figurino da moda francesa, que era a preferida pela Corte. Além das notícias políticas, o Embaixador Sousa Coutinho e seu sucessor, o Marquês de Marialva, iam enviando de Paris trajes, bordados, jóias e diamantes. A indumentária passou também a comporse com a joalheria, pois, tanto no fabrico dos tecidos como nos bordados e rendas que adornavam os trajes, vieram a se introduzir com freqüência fios de ouro, de prata e de aço polido. O artifício contribuía para dar brilho, fulgor e luminosidade aos vestidos e às casacas de gola alta usados pela administração napoleônica e também pela Corte portuguesa e brasileira. À aclamação de D. João VI, celebrada no Rio em 1818, após a morte de D. Maria I, seguiram-se outros e não menos 174


importantes momentos festivos. Ainda um ano antes, várias festas foram realizadas no Brasil para o casamento de D. Pedro com D. Leopoldina de Áustria, e, dois anos depois, para o nascimento da herdeira e futura rainha D. Maria II. Um forte desenvolvimento econômico motivado pelo governo in loco e os desejos de autonomia, entretanto fortalecidos, conduzem D. Pedro a declarar a independência do Brasil, no célebre dia 7 de Setembro de 1822, sagrandose Imperador em 1o de Dezembro do mesmo ano. A cerimônia de coroação de D. Pedro como Imperador do Brasil foi decalcada da sagração de Napoleão, que acontecera em Paris 20 anos antes. Nesse contexto, não se pode deixar de realçar a força da exaltação do exótico local nas representações simbólicas que marcaram a afirmação do novo regime político. A escolha das penas de tucano e de outras aves brasileiras para dar complemento e adorno à coroa e ao manto imperial de D. Pedro denota bem essa intenção. A figuração estética desse movimento de emancipação política era reveladora de um romantismo nascente, que atendia à representação da cultura ameríndia em paralelo com a manifestação erudita e cortesã. Essa combinação, em boa verdade, só parece ter sido possível pela influência dos intelectuais que conduziram e acompanharam D. Pedro após o – também romântico – Grito do Ipiranga, que deu origem à autonomia do Brasil: “Independência ou Morte!”. Madalena Braz Teixeira

Pesquisadora da Universidade Lusófona

BOUCHER, François. Histoire du Costume en Occident de L’Antiquité a nos Jours. Paris: Flammarion, cop. 1965. BUTAZZI, Grazietta. La Mode, Art, Histoire & Societé. Paris: Le Livre de Paris – Hachette, cop. 1983. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica pelo Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia, 1989. FERREZ, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender - 1817. Rio de Janeiro: Fundação João Moreira Salles, 1976. PORTUGAL. Museu Nacional do Traje, Roteiro do Museu Nacional do Traje. coord. edit. Madalena Braz Teixeira. Lisboa: IPM, cop. 2005. PORTUGAL. Museu Nacional do Traje, Traje Erudito e Traje Popular Português, Leal Senado de Macau: Ed. Macau, 1983. PORTUGAL. Museu Nacional do Traje. O Traje Império e a sua época 1792-1826. coord. edit. Madalena Braz Teixeira. Lisboa: Museu Nacional do Traje, 1992.

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Moda da Europa nas Modas do Rio Joanino

C

hegou o príncipe regente D. João ao Rio de Janeiro acompanhado pela família real, pelos servidores do Paço, pela nobreza, pelos funcionários públicos, todos eles trazendo na bagagem os trajes que usavam na Corte de Lisboa. Mudança de clima, do inverno lisboeta para o calor carioca de março de 1808, o que certamente provocou algumas alterações no vestuário, não sendo mais suportados os pesados tecidos usados em Portugal.

Por ocasião do embarque em Lisboa, foi comunicado àqueles que iriam atravessar o Atlântico que não se tratava de mudança de “trastes”, mas sim de pessoas, e que as bagagens deveriam ser reduzidas ao mínimo possível. De qualquer modo, as damas do Paço e todas as mulheres nobres que acompanharam seus maridos certamente selecionaram entre seus trajes aqueles de que mais gostavam, e também não esqueceram suas jóias e adornos. Ao chegarem ao Rio de Janeiro, 176


não podiam deixar de comparar seu modo de vestir com aquele que estava em uso entre as cariocas. Um inglês, Thomas O’Neill, que fazia parte da escolta cedida pela Inglaterra para garantir a segurança da família real na travessia do oceano, comentou que o vestuário das mulheres do Rio de Janeiro era “preto e quente”, e considerou seu traje “muito antiquado”: “A popularidade da anágua de cetim preto, ricamente guarnecida e ornada com um laço, dá uma idéia do gosto local.” E o manto preto lançado sobre os ombros era também muito comum, bem como os véus que ocultavam o rosto.1 Mais tarde o prussiano von Leithold observou que, na saída dominical para a missa, as mulheres vestiam-se de preto, geralmente de seda, com meias de seda branca, sapatos da mesma cor e sobre a cabeça um véu preto de fino crepe que cobria grande parte do corpo. Aquelas que freqüentavam os espetáculos teatrais e a ópera ostentavam, segundo o mesmo estrangeiro, um luxo indescritível, com jóias de pedras preciosas e pérolas, vestidos bordados a ouro e prata, ousadamente decotados à moda francesa da segunda década do século XIX. Na cabeça colocavam quatro ou cinco plumas, também importadas de França, inclinadas para a frente, e na testa diademas de diamantes e pérolas. 2 Na verdade, o espetáculo teatral exigia menos luxo do que as cerimônias de Corte. Muitas vezes, as mulheres usavam flores no cabelo, brincos compridos e vistosos, um xale pelos ombros e abanavam-se com um leque mais ou menos valioso. Embora a sociabilidade feminina fosse ainda restrita, o guarda-roupa para sair nem por isso era

menos luxuoso, conforme o depoimento

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de von Leithold: “As damas de qualidade e as mulheres em geral possuem amplos guarda-roupas de linhos e sedas de toda a classe, guarnecidos de outros enfeites.” Era o contraste, notado pelo cônsul francês Maler, entre a roupa de estar em casa, simples, leve e confortável, e a roupa de sair ornamentada e, por vezes, pesada demais para o calor do Rio de Janeiro. A cidade era, então, o paraíso dos armarinhos de luxo, que vendiam fitas largas e estreitas, lisas ou lavradas, na sua maior parte de seda, mas também de veludo; galões de ouro e de prata; guarnições bordadas; franjas; rendas de várias qualidades, inclusive de fio de ouro para “véus de ombros”; tiras bordadas “para coleiras”; entremeios; cordões de seda; bordaduras de ouro. Símbolo de fortuna e de prestígio social, as jóias femininas incluíam os alfinetes de peito, os pentes para o cabelo, as “memórias”, os cordões de ouro, os anéis. A maior parte desses ornatos era de ouro e as pedras usadas com mais freqüência eram as esmeraldas, as grisólitas, 178


os topázios brancos ou amarelos, os diamantes rosa, as águas marinhas. Quanto aos tecidos para o vestuário feminino, as sedas vinham em geral do Oriente, mas, em 1818, o cônsul francês Maler propunha a seu governo uma ofensiva das sedas francesas, embora recomendasse sobretudo as mais leves e de uma cor que evitasse sua deterioração num clima quente e úmido como o do Rio de Janeiro. Os linhos encontravam um mercado mais restrito do que os algodões, uma vez que as bretanhas, objeto de luxo, só eram usadas pelas classes mais opulentas. 3 Os negociantes estrangeiros, sobretudo os franceses depois da paz européia em 1815, procuraram satisfazer o gosto dos europeus então residentes na nova Corte e certamente, por mimetismo, as elites locais, masculinas e femininas, passaram a adotar algumas modificações em seu trajar. Os vestidos femininos eram feitos de tecidos leves, muitas vezes bordados de ouro ou prata ou então com barras e rendas: cassa, filó, garça “para baile”, musselina, seda. Podiam ter cauda ou não, conforme o fim para que se destinavam. Os acessórios do traje feminino incluíam os chapéus de palha ou de seda, os sapatos também de seda, os xales dos mais variados materiais, as mantinhas de garça e seda. A presença da Corte e o afluxo de estrangeiros ao Rio de Janeiro tornou mais vital, para as altas camadas da sociedade local, seguir a moda européia na forma de trajar. Como escrevia o prussiano von Leithold, “o mundo elegante veste-se, como entre nós, segundo os últimos modelos de Paris”. As francesas que, por motivos familiares ou econômicos, se instalaram no Rio de Janeiro depois da paz européia, foram certamente das que mais contribuíram para divulgar o gosto pelas modas parisienses. Mesdames Suisse e Neveu ofereciam à clientela carioca “um grande sortimento de chapéus de senhora no último gosto”; Mme. Lussan dispunha de 179


uma variedade de “vestidos, chapéus, flores, penas”, além de “todas as outras qualidades de moda para mulher”. Era a invasão francesa das “modas” no plural, tradução imediata do francês, no sentido de adornos, enfeites, acessórios. Já, em 1815, Luís dos Santos Marrocos, funcionário da Biblioteca Real, relatava numa carta para a família em Lisboa que, de alguns portos de França, tinham chegado alguns navios “com muitas modas, enfeites e bugiarias”. Com efeito, como podemos confirmar através da correspondência do cônsul francês Maler, os primeiros envios de mercadorias francesas consistiram fundamentalmente em artigos de luxo que, embora adquiridos ansiosamente pela população rica e sofisticada, rapidamente saturaram o mercado carioca. Segundo seus cálculos, apenas um oitavo da população urbana do Rio de Janeiro consumia esses

objetos de luxo.

Para se ter uma idéia da oferta dessas modas e enfeites, basta percorrer a publicidade feita na Gazeta do Rio de Janeiro: Charles Durand anunciava luvas, leques, penachos, fitas, filós bordados de ouro e de prata, flores artificiais, garças, véus; Bellard vendia plumas de várias cores, rendas de França, fitas; Amerval oferecia “bolsas para a cabeça, de flores e cabelo”, sacos de veludo para senhoras “muito bem bordados”, entremeios, lenços para o pescoço de renda bordados. Uma princesa austríaca como D. Leopoldina não se queixava, em carta para sua irmã Maria Luísa, de falta de mercadorias para comprar no Rio de Janeiro. Pelo contrário, contou que se conseguia tudo em matéria de adornos e que ela se servia de um costureiro que tinha sido o da irmã em Paris. Como gostava muito de passear a cavalo pelos arredores de São Cristóvão, precisava de um traje de montar e isso ela preferiu que lhe fosse enviado da Europa. Vivendo um pouco isolada na Quinta da Boa Vista, 180


queixando-se de não ter distrações e de não ir ao teatro, D. Leopoldina era de opinião de que o traje de Corte era o mais feio que já vira, apesar de ela ter procurado seguir em tudo os costumes cortesãos do Rio de Janeiro. 4 O que significava para uma dama o vestido de Corte? Debret deixou-nos uma imagem do traje das damas do Palácio em que as plumas no cabelo, as jóias, as luvas brancas e a cauda complementam o vestido estilo império. Em 1821, por ocasião de um baile, foi publicada pela Impressa Régia a etiqueta a ser seguida: “As senhoras irão vestidas de Corte, mas sem manto. As que dançarem, porém, levarão vestidos redondos, luvas e o enfeite de cabeça mais ligeiro e próprio para aquele fim.” Ou seja, a liberdade de movimentos exigida pela dança levava à substituição do traje pesado e rígido por outro mais leve. A presença da Corte e também a chegada de estrangeiros provocaram sem dúvida uma mudança no traje feminino, mas é preciso levar em conta os grupos sociais. Só as damas que freqüentavam o Paço e o Teatro S. João se preocupavam com as modas francesas. O resto da população feminina pouco alterou os trajes com que saía à rua. Maria Beatriz Nizza da Silva

Universidade de São Paulo

(1) Jean Marcel Carvalho França. Outras visões do Rio de Janeiro. Antologia de textos, 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, pp.319-320. (2) T. Von Leithold e L. Von Rango. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. (3) Ver minha publicação de parte da correspondência consular francesa na Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (São Paulo) 3: 105-115, 1986/1987. (4) D. Leopoldina. Cartas de uma imperatriz. São Paulo: Estação Liberdade, 2006, pp. 315, 319 e 324.

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Figuras & figurinos A África derramada no Rio de Janeiro

O corpo possível

A condição escrava obrigava total

despojamento dos sinais aplicados ao corpo, sendo o próprio corpo a única memória e bagagem com suas marcas definitivas por escarificação, dentes limados, uma maneira, entre outras, de distinguir e de buscar um sentimento de pertença em terras além Atlântico. Corpos quantificados na sobrevivência de travessias cruéis. Corpos remarcados em ferro e em fogo, pelas mutilações e ações que ficavam para sempre como as referências mais profundas, na pele e na carne. Corpos

africanos

que também buscavam reencontrar sinais, símbolos que ativassem ancestralidade e reconstruíssem memórias. Imaginários em permanente revelação. Cultura, destino, oralidade, religiosidade, em processos de reinvenção. Cumpria retraduzir folha, flor, fibra, conchas, diferentes pigmentos naturais que pudessem recuperar desenhos, formas e texturas, em contextos de violência, de trabalho forçado, de vida 182


comprometida apenas com a capacidade física de produzir. Contudo, na necessidade de simbolizar, de mostrar alguma singularidade e, principalmente, na busca pela liberdade foram sendo construídos muitos e diferentes corpos africanos no Brasil. Panos, inicialmente para tapar as vergonhas, como falava Vieira. Panos de algodão natural, de trama larga, o mesmo usado para embalar mercadorias, pois o escravo foi uma mercadoria preciosa, valiosa. Pano por quase todo o Brasil Colônia foi coisa rara; rara para todos, inclusive para os portugueses. Panos, muitos aproveitados de roupas usadas de europeus, naquilo tudo que fosse possível colocar no corpo do trabalho, no corpo africano. Corpo de exibição nos ganhos ou em outras ocupações, também de exibição nas festas, nas procissões, adornado, enfeitado com rendas, fitas, bordados, e até com alguns panos estimados, panos da costa. Tecidos de algodão com desenhos que aproximam do desejo de reencontrar a África, na busca da memória ancestral. Panos de Alaká, os mesmos da costa, misturados aos xales ibéricos, franjados, alguns de fios de seda. Momentos de usar muitos panos, comunicando poder na fartura de possuí-los. Fala-se, então, do após 1808, nos confrontos e reencontros de estilos, de muitas roupas européias vindas da Corte, outras já tropicalizadas nos usos possíveis ou mesmo construindo estéticas próprias.

As muitas viagens

Desenhos, aquarelas, traços de documentalistas, formam memórias tradutoras do olhar etnográfico, inicialmente descritivo e ao mesmo tempo acrescido de emoção estética e de estilo artístico. É a mediação entre a realidade e as técnicas possíveis, fixadas em imagens/cenas que têm vocação e destino de verdades sociais. Assim, cada imagem é um repertório de descobertas, de sinais que se apresentam conforme o encontro pleno e memorial, realizado entre a leitura e a observação do que se vê, no caso, no mergulho africano do 183


Rio de Janeiro do século XIX. Buscam-se atualidades do olhar pleno de sentimentos, orientadores dessa caminhada que quer conhecer comportamentos, modos, modas, rituais cotidianos, rituais episódicos nas festas, religiosidade, papéis sociais de homens e mulheres. Fluem no corpo possível memórias ancestrais e, assim, as Áfricas chegam, ficam, dominam em regime colonial, da Igreja ungida de poder, de busca econômica onde a salvação da alma é o objetivo da vida. O corpo africano é exposto ao trabalho, ao exercício de todas as atividades desejadas e que sejam legalmente ordenadas nas regras e nos limites coloniais. Contudo a voz, a emoção, e o pensamento do colono oficial português nascem de uma longa e profunda formação também africana. O contato de africanos com o Brasil se dá a partir da presença do colono português, profundamente africanizado pelo Magrebe, povos muçulmanos do norte do continente africano. Por muitos séculos a Península Ibérica – Portugal e Espanha – foi dominada e também civilizada por sofisticados sistemas culturais e sociais dos afro-muçulmanos, orientando a estética do morar, do vestir, a valorização dos jardins, dos pomares, das áreas verdes, além das muitas descobertas nas ciências, na navegação, na astronomia; nas tecnologias de trabalhar a pedra, a madeira, os metais, especialmente na ourivesaria com a filigrana, entre outras formas de marcar estilos e estéticas. Com o escravagismo de povos da África, a partir do século XVI, mais de quatro milhões de pessoas, por um período de 350 anos, foram trazidas para o Brasil. Inicialmente, grandes contingentes da África Austral, especialmente dos antigos reinados do Congo e de Angola, com os povos Banto, da Costa Ocidental e da Costa Oriental, especialmente de Moçambique. Essa chegada no Brasil dá-se para os trabalhos com o açúcar, depois o ouro, o café e para serviços nas cidades. Assim, o corpo do trabalho amplia-se na revelação do corpo cultural. 184


Em cada corpo um ideal de beleza Falar de beleza e identidade tendo por base a África, um continente multicultural, reunindo centenas de línguas faladas por milhões de pessoas é falar de formas especiais de ver o cotidiano, o sagrado, o meio-ambiente, enfim, a vida, em um dos mais ricos lugares de tradição e de invenção do mundo. Florestas tropicais, amplos litorais, o deserto do Saara entre outros ecossistemas, fazem os cenários das primeiras ocupações territoriais humanas. Pois, o continente africano reúne o mais antigo testemunho de tecnologias e arte do homem sobre a terra. Por isso afirma-se: a África é a pátria do homem.

Áfricas no Brasil, africanizações, afrobrasileirismos são identificados em cores, padrões, texturas, adornos vários que formam compreensões de beleza onde o corpo é o grande e principal tema. Corpos revelados, corpos desnudos, corpos para compreender verdadeiros sentidos e sentimentos na busca da liberdade. Expressão, volume, luminosidade e novas concepções espaciais trazem da África derramada no Rio de Janeiro encontros, confrontos, reciclagens permanentes de panos e muitos outros materiais. 185


Nas praças das cidades estavam as negras, vendendo comidas e bebidas, ou carregando objetos, além de outros serviços que exigissem força ou fossem considerados infames e, por isso, desempenhado também por forros ou alugados para prestação de serviços urbanos. Esses trabalhos revertiam em lucros para os senhores que recebiam os “ganhos” pela atividade pública, ou por libertos que reproduziam o sistema comercial vigente. A mulher, ganhadeira ou quitandeira, exibia nas suas roupas distintivos próprios da sua condição de mercadora. Assim, nos registros iconográficos de alguns documentalistas estão diferentes tipos de turbantes, camisas, batas, saias, escarificações nos rostos, posturas compondo bancas e anunciando os produtos da venda. Compondo as roupas, objetos mágicos, uns de cunho propiciatório, outros invocativos e próprios das atividades nas ruas, buscando proteção, lucro material entre outras benesses. Esses objetos, invariavelmente dispostos na cintura por argolas individuais, compunham nas tiras de couro, entre outros materiais, conjuntos organizados de valor simbólico determinado para cada peça. Entre os objetos incorporados às roupas dos ganhos, bolas de louça, figas, saquinhos de couro, dentes de animais; encontrando-se, ainda, medalhinhas, crucifixos e outros símbolos cristãos relidos na funcionalidade mágica, adquirindo, assim, novos significados. Mulheres negras libertas reproduzem os ofícios dos ganhos, tendo outros escravos para ampliar o trabalho, e exibem sinais de poder, 186


especialmente nas jóias, e alguns complementos a ouro, como abotoaduras para compor e detalhar mangas das camisas de crioula. Vê-se nessas jóias técnicas moçárabes como a filigrana em prata e ouro, bem como alguns modelos de correntões de pescoço, brincos e outros objetos de adorno corporal com a chamada joalheria crioula afro-brasileira. Nas peças de ouro sobressaem mais o volume e a força quantitativa do que a variedade de tipos. Mas são, contudo, barrocas, quando ajaezam corpos e trajes de gala, entre outros os de beca: camisa bordada, saia plissada em tecido fino preto, pano da costa, também preto, turbante rendado, chinela à mourisca e ouro, muito ouro, engordando corpos para as festas. As pencas ou molhos de balangandãs, ou de amuletos feitos especialmente de prata, estão incluídos nesses trajes. São jóias que marcam o ideal de riqueza e poder dos senhores coloniais, bem como de algumas libertas, conhecidas como mulheres do partido alto. Nessa ampla joalheria é reconhecido o desempenho de tecnologias tradicionais dos fânti, axânti, nok, detentores de conhecimentos

187


milenares no trabalho com metais, ouro em especial. Assim, vieram catar ouro em Minas Gerais, destacando-se na fundição, na moldagem e em outros trabalhos da ourivesaria. Nesses imaginários desses povos da África Ocidental, de área conhecida como Mina (Togo, Gana), vê-se a exuberância de jóias de caráter monumental feitas de ouro, dourando entalhes sobre madeira, peças de couro, além do pó de ouro sobre o corpo, marcando, assim, lugares de beleza de famílias reais. Dessa joalheria africana são reconhecidas peças comuns, lá e cá. São bolas em folha de ouro detalhadas em filigrana, formando colares e novos adornos de pescoço como medalhões, e pulseiras de canutilhos de ouro, coral encastoado e outros tipos de pedras, combinando, ainda correntões de elos largos e filigranados, alguns arrematados por cruz palmito, outros por rosáceas e pomba do Divino Espírito Santo. Gira em torno dos correntões – também chamados correntões cachoeiranos – a tradição de cada elo ser originário de uma aliança portuguesa conquistada após uma noite de amor. Tudo funciona, tem uso e destino no corpo, corpo geral, síntese e criação permanente que une imaginários da Europa, do Oriente mais próximo após a abertura dos portos, co-formando adornos e roupas afro-descendentes. Ainda para o corpo, relíquias geralmente guardadas em breves, muitos feitos de prata, ouro, madeira entalhada e dourada, marfim, cristal entre outros materiais que pudessem proteger, exibir e destacar o que continham de preciosidade em testemunho da fé católica. Os escapulários de N. S. do Carmo, feitos a ouro, são um exemplo significativo. Herdeiros desses bentinhos são os patuás em saquinhos de couro e tecido, contendo diferentes preparados como pós, raízes, folhas, búzios, ou mesmo orações. Os saquinhos de couro contendo algumas suratas do Alcorão eram acrescidos de sangue de carneiro, para funcionarem como amuletos protetores do corpo, do trabalho, das coisas do amor, da saúde, do sexo, entre outros. Alguns patuás são secretos e estão em roupas de baixo, junto ao corpo, nos seios, costas, umbigo e em outras partes. Essas questões, objeto mágico e corpo, fortalecem a leitura histórica e etnográfica das pencas, que eram sempre portadas na cintura, área que marca a fertilidade, sabendo-se que alguns conjuntos eram usados bem próximos ao baixo-ventre ou mesmo junto a ele. 188


Por um olhar real

Os conceitos de roupa ganham novas dinâmicas, como também os modos, reforçando tendências da terra. Criações nativas para corpos adaptados, africanizados, abrasileirados. Também é uma busca pelo adorno, materiais diversos como folhas compondo turbantes: arruda, guiné, folhas de uso europeu e africano. Jóias convencionais portuguesas, jóias de imaginários africanos, contudo barrocas, como se verdadeiramente as talhas douradas dos altares se avolumassem nos corpos vestidos em roupas rendadas, bordadas, de saias fartas de outros muitos panos. Sente-se uma intensa busca do corpo, recuperado nos ofícios, na casa, na rua, nesse encontro desejado de pertença. Mulheres africanas e afro-descendentes, mulheres reais, de carne, sangue, espírito, memórias, identidades, juntos formando esse corpo tão real. Panos, tapagens, invenções das necessidades, aproveitamentos do possível, nos materiais mais diversos, alguns conhecidos, outros em descoberta, fragmentos de roupas européias e, principalmente, a permanente resistência, no alcance da liberdade. Raul Lody

Antropólogo


Debret Figurinista, ou as passarelas do Rio

Como

Jacques-Louis David, Jean-Baptiste Debret, seu primo por afinidade, desenharia, a partir de 1816, além da bandeira e das condecorações brasileiras, os modelos de uniforme e os vestidos de grande gala da Corte dos Braganças. Entre os imigrantes franceses que desembarcaram em 1816 na primeira semana do reinado de D. João, o Reino Unido luso-brasileiro teve em Debret o principal elemento para modernizar a moda da Corte no

Rio de Janeiro.

A obra do pintor de história irá mostrar a grande diferença entre o vestir afrancesado da Corte e das novas elites a contrapelo das vestimentas das negras e das “antigas brasileiras”. As calçadas cariocas oferecem ao artista viajante duas passarelas de costumes: aqueles que criou e aqueles que encontrou.

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O primeiro choque de cultura sobreveio ao desembarque das infantas portuguesas com a cabeça raspada e desinfestadas de parasitas. Os piolhos iriam ditar a primeira nova moda na colônia quando algumas brasileiras, ao verem princesas carecas, acreditaram que deveriam cortar suas longuíssimas e tradicionais cabeleiras. Para imitar o estrangeiro, elas não hesitaram em acabar com uma tradição secular.


Ainda no século XVIII, John White, cirurgião-mor da primeira armada britânica de colonização, testemunhou o prodígio capilar das brasileiras. Esse inglês descreve com admiração uma dessas magníficas cabeleiras que formavam os meticulosos coques de penteados à chinesa rentes a cabeça: “Estava eu um dia em casa de um brasileiro rico, a quem notei a surpresa que me causava a prodigiosa quantidade de cabelo das senhoras do Brasil. Acrescentei que me parecia impossível crer que fossem naturais. Para dissuadir-me do erro, chamou a mulher e, desfazendo-lhe o penteado, me fez ver que as tranças atingiam o solo. Ofereci arrumá-los novamente, o que aceitou polidamente.” As “figurinhas” do Capitão Carlos Julião ilustram essas brasileiras vestidas com tecidos chineses e indianos vindos dos empórios portugueses d’além África. As brasileiras já vestiam-se com requintes orientais antes de a moda tomar conta da Europa no último quartel do século XVIII. Costumes asiáticos e a importância desses penteados estão patentes também nas delicadas aquarelas com que Debret retratou as jovens das elites. Os cabelos são puxados, colados ao crânio, para serem montados graciosamente com flores. Penteados que contrastam com o pesado e caricatural toucado de plumas e pedrarias dos vestidos de grande gala das damas de honra, tanto no Reino Unido, como no Império. Para comprovar sua autoria, Debret os desenhou nos mínimos detalhes, indo à minúcia do tipo de bordado em prata que deveria acompanhar os trajes. Ele ousou, contudo, menos que Jacques-Louis David nas cores e efeitos das roupas que desenhou. Não há nenhum figurino masculino de Debret com o atrevimento do estudo de uniforme para o Consulado de autoria de seu mestre: calças azuis, botinhas de marroquim combinando com uma cartola vermelha de plumas e uma sobrecasaca amarela; tudo adornado vistosamente com bordados em ouro. Como já descrito, esses excessos seriam reservados no Brasil às damas. 191


Debret também foi o único artista a realizar o registro de um Brasil pregresso à chegada da Corte. Um contraste de mundos que Gilberto Freyre teve a sensibilidade de perceber na sua obra. A ausência de iconografia para provar essa continuidade asiática no Brasil até 1808 está presente na obra do holandês Jan Huyghen van Linschoten (1563-1611) sobre Goa, que escapou a Freyre. Pode-se revisitar até certo ponto as imagens de Linschoten em Debret. O francês mostra de forma cabal o embate de duas culturas, a européia e a brasileira, a primeira invadindo a segunda. Assistiu à metamorfose das antigas elites cujos significados eram, até então, norteados por padrões e estilos que secularmente vieram da Índia e da China a partir do Quinhentos, desde o início da construção da América portuguesa. Até a Abertura dos Portos, o Rio de Janeiro, sob a posse ciumenta do Antigo Regime português, fora uma plaga isolada, cujo universo exótico se assemelhava àqueles surgidos na imaginação do irlandês Jonathan Swift (1667-1745) nas Viagens de Lemuel Gulliver (1726). O Brasil era uma mistura dessas nações fabulosas, de “Lilliput” e “Brobdingnag”, do Oriente com o Ocidente. Um mundo exótico de elementos repletos de coloridos não-europeus, matrizes da indiana Goa e da chinesa Macau, das costas de Malabar e Formosa, que seriam revisitadas por Gilberto Freyre: “ao findar o século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o bangüê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva e em forma de pagode, as pontas de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz, o alféloa, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de Cochim, o chá da China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimatado com o mesmo à-vontade que no Brasil.” Ao falar de arte e civilização nos trópicos, Freyre ainda cita o historiador inglês Charles Boxer que destaca “terem-se os Lusos deixado influenciar na sua arte pelos estilos asiáticos de decoração de cerâmica e móvel; pelos tapetes e tecidos; pelas sedas e porcelanas”. 192


São esses mundos que estão presentes em Debret, cuja genialidade está no fato de ter desenhado tanto as suas próprias criações de vestimentas para a Corte, uniformes de ministros e damas de honra, como em ter registrado a moda tradicional brasileira, cuja influência da cultura que trouxe consigo ajudaria em muito a fazer com que desaparecesse. A cidade que, em 1808, havia passado de 50 mil, chegava, em 1817, a 110 mil habitantes e ultrapassava seus limites perdendo sua secular identidade colonial. É com sensibilidade de cronista visual que o pintor de história percebe a velocidade da metamorfose que assistia: “Eu não poderia deixar de registrar o mais rápido o Brasil de 1816, uma vez que, nesta bela plaga, mais do que em qualquer outro lugar, os rápidos progressos da civilização adulteram a cada dia o aspecto primitivo e os hábitos nacionais dos Brasileiros.” Entre as aquarelas assinadas, uma das mais comoventes é a da jovem pedinte de boa família, que anda descalçada, mostrando, em penitência, o rosto, os braços e os pés nas ruas do Rio, coberta apenas por um fino véu transparente. Debret transmite, contudo, à personagem tamanha dignidade na cena em que “se humilha recebendo esmola de um vendedor de carne de porco”, que parece um quadro de júbilo, mesmo que seu pé descalço esteja a poucos centímetros do esgoto que corre da casa malcheirosa, afamada pela imundície. A aura de religião protegeria sua relativa nudez. Essa é também a única aquarela onde aparece uma mulher da sociedade descoberta na rua como, mutatis mutandis, uma casta godiva carioca; sugerindo a famosa cavalgada da dama de Coventry, a brasileira se penitencia sobrepujando-se ao vexatório e à humilhação. Ela esmola por uma missa em voto de humildade, o que contrasta com seus braceletes e colares de pedras preciosas, símbolos 193


da classe a que pertence. Seu vestido mais curto que o tradicional brasileiro, é enfeitado com babados e laços sobre a saia de flores chinesas, mas tem o propósito de revelar os pés nus. Uma moça que poderia muito bem ser também uma das jovens senhoras presentes na aquarela Visita a uma Chácara, litografada como prancha 10 do segundo volume do Viagem Pitoresca. Nela, uma matrona gorda e majestosa com turbante, ao mesmo tempo em que desvela severidade, tem apenas um xale vermelho e uma saia de algodão branca, com as grandes tetas caídas sobre o ventre, sendo abanada por uma escrava, também com seu tronco desnudo, que traz a máscara de lata como uma mordaça em seu rosto. Sentada à asiática numa marquesa e os cabelos penteados segundo a moda chinesa, ela segura seu leque como uma personagem oriental de Joseph Conrad em Lord Jim numa ilha perto de Java: “a rainha, uma gorda mulher enrugada”. Exotismo e crueldade se mesclam nesta cena que parece o interior de um serralho, onde aos poucos se desvela o purdah brasileiro com a presença exclusiva de mulheres e crianças no recinto – os homens param antes do umbral da porta. Debret, com este raro registro iconográfico, mostra a real singeleza da moda inserida nesse costume muitas vezes descrito, e expresso, por exemplo, na instituição do Recolhimento do Parto, da reclusão de esposas e filhas. Já Gilberto Freyre, ao se referir à rua proibida, fala de uma francesa, a quem chama de “mulher-homem”, como uma das primeiras a ousar quebrar o tabu. Ela atreveu-se a romper a defesa da calçada e sair fora da “proteção” de um contexto religioso: “A dona de casa que saísse rua afora para fazer compras corria o risco de ser tomada por uma mulher pública. Mme. Durocher – virago, uma mulher-homem, vestindo-se de sobrecasaca, calçando-se com botinas de homem – foi uma das primeiras mulheres a andarem a pé pelas ruas do Rio de Janeiro; e causou escândalo.” Da opulenta casa de campo, o artista francês chega às moradias miseráveis cariocas, cuja indigência descreveu em detalhes. Enquanto na matrona avantajada sua nudez significava opulência oriental, aqui representa apenas penúria. O importante é que a viúva esquálida, cujos seios também nus pendem secos de um tronco

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descarnado, também não sai à rua. Como a filha descabelada, as duas esperam, sentadas à asiática e prisioneiras do recinto, que a escrava, cuja postura ereta lhe presta uma altivez de cariátide – seu capitel, uma barrica cheia de bananas –, traga para elas os recursos da rua proibida. No cômodo, tudo parece estático, a esteira, o gato dormindo, o estrado, a rede, o pote quebrado, a lamparina de lata presa na parede de taipa, o almofariz no cubículo ao fundo, menos as galinhas e os pintos que ciscam na porta e no centro da composição. Se as roupas criadas para a Corte e seus atavios de ouro e prata são uma reafirmação da França e da escola de David, a seminudez tropical, de brancas no interior e negras na rua, é um rompimento de Debret com o neoclassicismo. Essa obra vai além do vestir de rainhas, ela toca nas fantasias de uma dinastia que, como Próspero na Tempestade , buscou fazer do infortúnio, felicidade, e chega às mulheres negras e brancas, que ocupavam a passarela das calçadas cariocas. Soube esse pintor de história que era figurinista e cenógrafo, acima de tudo, também registrar os figurinos e cenários de brasis que não eram os seus. Ao classificar tipos e padrões, ele permitiu nessa arqueologia iconográfica identificar desaparecidos costumes, indianos e chineses, que vieram de outro hemisfério, para além do Cabo da Boa Esperança. Julio Bandeira

Escritor

BANDEIRA, Julio, e CORRÊA DO LAGO, Pedro. Debret e o Brasil, Obra Completa 1816-1831. Rio de Janeiro: Capivara, 2007. BANDEIRA, Julio. Jean-Baptiste Debret, Caderno de Viagem. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. BORDES, Philippe. Jacques-Louis David, Empire to Exile, cat. expo. Massachusetts: Yale University Press, 2005. CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Riscos Iluminados de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro e Serro do Frio, aquarelas por carlos Julião. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960. DEBRET, J.-B., Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. Paris: Firmin Didot, 1839. FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962 FREYRE, Gilberto. O Luso e o Trópico. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961. LINSCHOTEN, Jan Huyghen van. Itinerário: viagem ou navegaçao para as Indias Orientais ou Portuguesas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. TAUNAY, A. d’Escragnolle. “Rio de Janeiro de antanho”, in Revista do IHGB, t.90, v.144, 1921.

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O ar dos tempos e a moda

O

tempo. Tão implacável, tão imaterial, tão fugidio

e ao mesmo tempo tão denunciador de si próprio. A Bíblia Sagrada, no livro do Eclesiastes nos diz que “há tempo para tudo e tudo tem o seu tempo”. Marcar época, datar um período, denunciar uma era, registrar uma estação, documentar um momento, tudo isso é também função do próprio tempo. O processo criativo, peculiar à condição humana, é uma das maneiras da produção cultural que é capaz de dizer a que período esta criação pertence. O ar dos tempos, o espírito de uma época, o “zeitgeist” – como dizem os alemães – é uma forma de, ao mesmo tempo, entender e construir cada período da própria história

Ao criar, o ser humano determina estilos. O que é próprio do artista pode tornar-se coletivo e caracterizar assim o estilo de uma época. Esse estilo tem ornamentos específicos que dão identidades a uma cultura ou ao tempo em que foi produzido. É a essência estética marcando o ar

com aquilo que lhe é característico.

de um tempo.

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Aplicado a diversos universos criativos, o estilo, que inicialmente foi entendido na literatura, migrou para diversas outras áreas da produção cultural como as artes, a arquitetura, a música e também a moda e, mais atualmente, também para o design. Os estilos aparecem, muitos são aprovados, crescem em aceitação, tornam-se coletivos, ganham verdadeira identidade, atingem um apogeu, marcam época, começam a se desgastar, decaem, desaparecem e outros se sobrepõem àqueles que ali estavam estabelecidos. Assim é a característica das formas artísticas. O tempo as desgasta e uma nova idéia se sobrepõe que, por sua vez, também será suplantada por outra proposta, e assim sucessivamente. O tempo, ao mesmo tempo, traz o novo e consome o já existente. O tempo aniquila uma voga para lançar outra, que futuramente será derrubada em favor de uma outra e, assim, os tempos constroem suas especificidades estético-estilísticas. A moda, talvez, seja uma das práticas criativas mais mutantes e capaz de determinar padrões de beleza; tendo, simultaneamente, a capacidade de atingir e ser assimilada por um grande número de pessoas. A moda, muitas das vezes, é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que é elitista, é também democrática, pelo menos nos momentos mais contemporâneos. Trata-se de uma manifestação estética capaz também de datar o tempo e que traz em si a característica de ser impermanente, transitória, efêmera e, portanto, é sempre suplantada por uma nova identidade que passará a ser o novo gosto e que, por extensão, marcará um novo tempo. Sendo assim, torna-se fácil reconhecer um período 197


usando da estratégia de analisar uma imagem através das roupas portadas pelas pessoas que nela aparecem; e conseqüentemente reconhecer a época. Alguns traços, alguns volumes, algumas cores e tecidos, alguns ornamentos, entre outras coisas, identificam a moda dos diversos períodos do seu processo histórico. A História tem o compromisso de investigar e chegar a conclusões que esclarecem os fatos que marcaram e construíram os seus respectivos períodos. E a História da Moda é um viés historiográfico que, além de ser dos mais curiosos, é também instrutivo e elucidador do ar de um tempo. A estética, o estilo, o ornamento e o gosto também fazem parte do universo dos vestíveis, que são verdadeiras correspondências temporais dos contextos aos quais pertencem, aliados ao pensamento, ao comportamento e aos valores de suas respectivas épocas. Portanto, modos geram modas. O início do século XXI é marcado, tanto em pensamento quanto na conseqüente prática, por uma miscelânia de possibilidades que tornam o nosso tempo tão híbrido quanto a imaginação permitir. A releitura, uma prática existente na moda há longa data, tornou-se uma realidade freqüente desde os anos 1980 e muito contribuiu e ainda contribui, para mesclar, miscigenar, ecletizar, ou seja, hibridizar o ar do nosso tempo. A releitura na moda não tem o compromisso de reproduzir fielmente a roupa de uma época, mas sim de trazer à tona algo que ficará esquecido num passado, próximo ou distante, e que, seja por saudosismo ou qualquer outra razão, sensibiliza as pessoas que criam roupas e são retomados com novas interpretações ao gosto de um novo tempo. Assim o fazemos atualmente. Se, no final do século XX (anos 1980 e 1990), a prática da releitura visitava apenas um determinado período, o início do século XXI já o faz misturando períodos distintos para criar uma nova possibilidade. É o 198


conceito do hibridismo que verdadeiramente caracteriza o ar do nosso tempo em diversas áreas do processo criativo, especialmente na moda. E, neste universo, acaba recebendo o nome de “cross-over” ou “cross-culture”. É um verdadeiro atravessamento de períodos, estéticas, culturas e essências favorecendo uma infinidade de possibilidades, quantas a imaginação e a criatividade permitirem.

Nem sempre há uma lógica ou uma previsibilidade de retorno a um determinado tempo. Vontades, saudades, conceitos, (re)descobertas, e comemorações históricas são fatores que contribuem para um retorno das identidades vestíveis de uma época adaptados às realidades estéticas, técnicas e tecnológicas de um outro tempo. Comemorar é celebrar, é reviver, é manter atual algo que aconteceu no passado, mas que marcou de alguma maneira, seja pela importância histórica, seja pela representação simbólica, ou seja, para manter vivo o acontecimento no contexto sociocultural. O Brasil comemora em 2008 os 200 anos da chegada da Corte portuguesa a solo nacional, primeiramente a Salvador e, logo depois, ao Rio de Janeiro. Os nossos nobres de alémmar agora aqui estavam. Mudanças, muitas mudanças. Novos ares, novos tempos. O Brasil passou a ser uma outra nação com a monarquia aqui estabelecida. Como a

palavra mudança

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está intimamente ligada ao conceito de moda, seria redundante e previsível dizer que a moda também mudou. E retratar essas significativas mudanças ocorridas nas roupas desse período merece apreciação pública, possibilitada com a publicação deste livro. A idéia da tríade passado – presente – futuro, representada pela realeza e pela realidade das mulheres do dia-a-dia , ilustra e representa o passado por intermédio de D. Maria; o presente (1808), por D. Carlota Joaquina e o futuro e os novos tempos por intermédio de D. Leopoldina. Três estilos de roupas, três momentos históricos, três cabeças coroadas que se entrelaçam fazendo História e História da Moda no Brasil, ladeadas de outras mulheres - escravas ou não –, criando a realidade do Rio de Janeiro e, por extensão, de todo o restante da nação. Fatos históricos merecem comemoração. Moda histórica que foi influenciada e que agora influencia outras possibilidades. A antecedência, o momento e a conseqüência lidos 200


e relidos pela criatividade de nossos estilistas que, contemporâneos ao ar do nosso tempo, influenciam-se e mesclam-se em propostas diversas inspiradas num momento de extrema relevância para a história nacional. E, hoje em dia, com o reconhecimento da moda brasileira no cenário internacional, é louvável que os governantes, que também promovem a produção cultural, lancem seus olhares para esta expressão estética que é a moda. São os próprios brasileiros que dedicam suas interpretações e criações de moda, olhando e valorizando suas próprias raízes.

O ar do nosso tempo, complexo e híbrido, também valoriza o simples e o autóctone, legitimando o grande mote da moda contemporânea “Global Fashion, Local Tradition”. “Tradição local”, eis a contribuição da moda brasileira que se faz auto-referente para conseguir projeção e reconhecimento aqui e extra Terra Brasilis. O presente mirando-se no passado e projetando o futuro. João Braga

Historiador da moda

201


Instantâneos de imagens de nós mesmas

A jornalista Adriana Bechara descreve em flashs os trabalhos de estilistas brasileiros contemporâneos que confirmam a moda como processo ininterrupto de criação artística e cultural.

N o look de André

Lima uma máxima de seu estilo: a exuberância. O volume de tafetá é trabalhado na forma de uma flor sedutora e voluptuosa. André canaliza a mulher dominadora, sensual e expansiva, como uma Tieta do Agreste, reflexo de uma herança ibérica e passional. A tradução desse estilo transforma medo em desejo de ser cafona. Afinal, a mulher clássica e contida já está bem representada no universo fashion. A mensagem subliminar é: ame-o ou deixe-o. 202


A silhueta Império, códigos monárquicos e técnicas artesanais de época convivem com previsões futuristas, personagens urbanos e tecidos ultra hightech. Desse mix entre passado e futuro, rainhas e andarilhas virtuais, poesia e rock, surge a mulher cerebral e sensível de Gloria Coelho.

A imagem principesca e pouco acessível de quem tem o mundo aos seus pés é subvertida por tecidos trabalhados por Samuel Cirnansck com efeitos destruídos e nada burgueses. Ele queima, mancha e rasga preciosas sedas antes de se utilizar das mais clássicas modelagens femininas. Dessa ambigüidade surge a linguagem contemporânea e urbana de uma mulher deliciosamente decadente.


O resgate de um glamour perdido e descaradamente carioca é embalado por uma sofisticação vintage, muito antes de o fenômeno tomar conta do vocabulário fashion, pela grife Sta. Ephigênia. Enquanto capital federal, o Rio teve primeirasdamas e embaixatrizes de elegância internacional, mulheres como Carmen Mayrink Veiga ganham o posto de rainhas da altasociedade. As referências a Dior, Saint Laurent e Chanel são temperadas por um humor ímpar, de quem sabe rir de si mesmo e traduzir os desejos por novos clássicos.

A alma tropicalista e multicolorida de um pássaro exótico permeia o conceito de uma marca que já faz história nas passarelas brasileiras, repleta de referências a um certo estilo marcante de mulheres entre as décadas de 1970 e 1980. A Neon traduz o desejo de chegar e ser notada, com estampas libertárias e estridentes, marca registrada em túnicas, maiôs e biquínis. Com um humor sofisticado, Dudu Bertholini e Rita Comparato homenageiam volumes, decotes e uma forte presença feminina que domina os ambientes de forma dramática e alegre.


A nões de jardim, flores de plástico e papel de parede que imita madeira estão entre os dez mais do universo kitsch brasileiro. E é desse universo urbano e pop que Marcelo Sommer extrai o desejo do estilista pelo não -correto, por pisar confortavelmente em solo conhecido e traduzir isso para uma moda jovem, que não rejeita materiais baratos ou o lugar-comum das residências brasileiras.

A feminilidade subserviente das mulheres bordadeiras, caseiras e de alma decorativa ganha tradução contemporânea e estilística de uma sofisticada intérprete: Isabela Capeto. Temas recorrentes do universo brasileiro, como azulejos portugueses, bordados e rendas são seus trunfos na conquista de uma consumidora urbana, globe-trotter e muito brasileira.


No universo particular de Ronaldo

Fraga passeiam a poesia, o

balé, a arte e a literatura. Desse caldeirão cultural, ele extrai sua forma de expressão: a moda. Cada desfile é um mergulho profundo no tema escolhido, com uma narrativa própria e emocionante. Sua silhueta é característica, com uma tendência às formas amplas, ao comprimento midi. Recursos artesanais fazem um cross -over com estampas pop seguindo sempre o mesmo propósito: passar uma mensagem. Na peça escolhida estão as listras. Uma estampa que carrega em seu DNA os presos, palhaços e escravas.

A contribuição de Jefferson Kulig para a moda brasileira está na experimentação de fórmulas. Seja nos materiais, cores ou formas, Jefferson se aprofunda em pesquisas baseadas em conceitos químicos e físicos das roupas. Como um cientista que busca o novo de forma empírica, ele joga por terra os conceitos predeterminados para encontrar seu próprio caminho. No balonê irregular de uma saia, está também presente o movimento de quem se curva para servir ou segura as saias diante das águas de um rio. É uma singela metáfora que transpõe o cerebral para o espontâneo.


A liberdade do corpo brasileiro surge de forma sui generis ao desafiar conceitos europeus. Nada traduz melhor este traço marcante do ser brasileiro no vestir que a personalidade da nossa moda praia. Em sua máxima potência está a tradução de Amir Slama na Rosa Chá para os observadores internacionais, hoje com desfiles em Nova York. O maiô decorado com costelas de metal é uma subversão tropical do estilo de Paco Rabanne nos anos 1960. Como um esqueleto de peixe, a peça transpõe um simples maiô ao conceito de alta-costura.

Lino Villaventura tem a capacidade de elevar o artesanato brasileiro em tecidos à categoria de obra de arte, transformando roupas em fantasias luxuosas, e modelos em entidades de nossa cultura ancestral. São mulheres-cobras e personagens folclóricos e espirituais que representam a riqueza da floresta e da natureza tropical que tomam conta de suas passarelas, avessas a tendências ou a um vestir imediato, despertando o espírito sonhador, dramático e teatral da mulher brasileira.


U m trabalho de modelagens inusitadas é despertado por Mareu Nitschke pelo desejo de subverter o corpo feminino, construindo a partir de formas arquitetadas para a transformação e reinvenção desse corpo. São saias que viram vestidos e viceversa, que jogam com as múltiplas possibilidades do vestir. O antagonismo surge nos materiais como uma forma rica de abrir o leque de possibilidades para ocasiões e uma nova personalidade feminina. Neste look, a corseletaria, de origem nobre, vem trabalhada em jeans e ganha uma nova leitura ao lado de rendas fetichistas e nada católicas.

O look da 2k2, marca que une moda e figurino em uma nova proposta, é específico e se encaixa no conceito de exclusividade que a moda adora. Claudia Kopke e Lucia Karabtchevsky entram no jogo das amarrações escravas, baianas, graciosas. A saia ampla e longa, em efeito ombrée ou sombreado, faz do tingimento primitivo e artesanal um contraponto ao Tyvec, material tecnológico e atual, super era 2000. O jogo de informações “contraditórias” revela uma das mais belas virtudes brasileiras: a de misturar ingredientes teoricamente descombinados que criam novas harmonias e possibilidades.


C onectado com o glamour e a opulência, Fause

Haten mostra que a

riqueza muitas vezes pode transbordar em materiais simples como o algodão. Tudo depende de como se observa o mundo. E seu olhar é capaz de transformar tudo em glamour, com pitadas subversivas. A gola de camisa subverte o faceiro vestido de babados. Mas, nesse caso, três grandes camadas em corte no fio pontuam o jogo de informações. A camisaria traduz a formalidade e a urbanidade e a masculinidade. Já os babados falam de uma descontração proveniente do calor, da praia e da feminilidade. A cara de um país que tem metrópoles praianas e praias urbanas. 209



A moda mineira por ela mesma: estilistas do presente relêem o passado

Bárbara Bela cria moda para mulheres reais, mulheres que, apesar das exigências do dia-a-dia, não descuidam da elegância e do bem vestir. Como Dona Leopoldina. Romântica e apaixonada, nossa princesa usava trajes de seu tempo, desenhados no estilo império: o recorte abaixo do busto e o uso de longas luvas refletiam o espírito clássico e refinado da imperatriz. Sua paixão pela literatura, pela botânica, e especialmente pela mineralogia, está representada no bordado deste look, exprimindo a sua busca ávida por novos territórios do conhecimento. Leopoldina foi uma mulher real de seu tempo e, ao mesmo tempo, à frente dele, sendo uma inspiração para todas nós.


P ode-se identificar nas composições de Sônia Pinto uma nítida conexão com os modos velados da exposição dessas “Mulheres Reais”. E com as mulheres irreais que transitam pela vida apagando os faróis e acendendo a luz interna. Há sempre um manto, um xale, uma sobrepeliz, um véu que filtra a realidade. Velar e desvelar. Cobrir e revelar o corpo: santa missão e grande arte. Sair da sombra e ganhar a luz com distinção de rainhas ou escravas, ostentando, ao mesmo tempo, a solenidade da realeza e a vivacidade da cultura nativa.

C om a palavra, o mestre Renato

Loureiro: “Escolhi este look todo tingido no chá que dá um ar vintage e que me remete a um passado no qual bordados, brocados, sedas e volumes eram utilizados para vestir a nobreza. Fonte de inspiração para a moda em todos os tempos”.


N o look de Ronaldo

Fraga, além da forma, a escolha é principalmente a do tecido, estrutura exclusiva, 100% algodão, simulando um tear artesanal e que, ao mesmo tempo, nos lembra a base de algodão usada pelos escravos. Ela nos traz o perfume das festas populares. O volume é constituído por uma sobreposição de peças – calça, bata e coletão – que nos remete à despretensão da mulher comum ao misturar peças de seu guarda-roupa. O chapéu e os sapatos, embrulhados com o mesmo tecido, foram chamados de marmita de bóia-fria.

Victor Dzenk criou uma versão contemporânea do figurino de D. Maria, nele imprimindo o seu traço mais marcante: a estamparia digital e os vestidos em malha e seda, fluidos e sensuais. As peças foram confeccionadas na estampa “Patchwork Barroco” que traz cores e desenhos bem similares aos dos tecidos usados por D. Maria em sua época. Três peças compõem esse look: um corselet com aplicação de bordados em formas barrocas, confeccionado com fios dourados, que sobrepõe uma camisa em seda pura, com laço império na gola, conferindo ao look um toque de modernidade sem perder a elegância e, finalmente, uma saia em seda pura para a qual o estilista propõe um abandono das pesadas estruturas dos figurinos originais da época, substituindoas por fios de nylon, que sustentam a peça trazendo leveza à produção.


A partir do final do século XVIII, as roupas masculinas começam a influenciar a moda feminina através dos trajes de montaria. O hipismo era o esporte aristocrático por excelência e, portanto, o look montaria fazia parte do guarda-roupa das mulheres da realeza. Tendência forte nos últimos invernos, esse look teve grande adesão das mulheres no Brasil e no mundo. Seguindo essa tendência, Mabel Magalhães compôs um que combina a calça montaria e uma peça de alfaiataria masculina com elementos reais como o bordado de linha e a camisa de seda com rufos na gola e punhos.

Graça Ottoni resgata ícones da época imperial e imprime ao look criado seu estilo moderno e sofisticado. Uma mulher jovem, dinâmica, romântica, porém participante, que constrói sua identidade e vive intensamente seu tempo. O trabalho de Graça Ottoni se desenvolve através da laboriosa experimentação de tecidos e formas, uma busca constante pela modificação e uma viagem pelos caminhos da reflexão poética e existencial.


O look da Coven tem estreito parentesco com o que vestia a negra multicultural, que reunia em seu vestir tradições européias e africanas: cores fortes, peças sobrepostas, muitos colares e pulseiras –influência da joalheria portuguesa – e os indefectíveis amuletos. Este vestido de tricô, produzido com fio Mirror, em forte tom de azul, confeccionado com babados em tecnologia, sobrepostos em diferentes proporções, completa-se com colares de metal dourado e prateado com temática floral. Seu nome, Diva, remete e, ao mesmo tempo, homenageia o valor da negra multicultural dos tempos do Rio de Dom João VI.

E sta peça de Patrícia Motta reflete uma história de inspirações que atravessa gerações. Peças femininas contemporâneas são marcadas pela nobreza e a silhueta dos detalhes trabalhadas em uma matéria-prima natural, o que faz de cada personagem um personagem único! Nesta peça fica evidente a permanência e, ao mesmo tempo, a transformação dos elementos ao longo do caminho da moda.


E ste look tem como fonte de inspiração as Negras Semidesnudas que, com os restos de tecidos que lhes eram dados por suas senhoras, construíam amarrações que protegiam seus corpos sem, contudo, encobrir sua beleza. Usando tecidos existentes em suas coleções, a Patachou reinterpreta essas amarrações, colocando em evidência no presente esse forte traço africano que, no passado, fazia do despojamento no vestir uma expressão de beleza e sensualidade.

C omo uma Penélope moderna que fia e desfia, para nunca ter que terminar, Mary design tece suas coleções com fios de tecido. Filha de alfaiate, os retalhos foram os primeiros materiais que teve aos pés. Ali no chão do Vale do Jequitinhonha, aprendeu a tornar o desprezível ser prezado. Neste trabalho, seus fios se enovelam, dão nós e entrenós. Miscigenam materiais, desorganizam escalas de cores. A coleira inspirada na tribo africana Massai, com tramas de cestaria indígena, une técnicas e culturas. Na cabeça, a rodilha tem vontade própria, aramada por dentro, contorce e enlaça para onde for a direção dos ventos. Do veludo luxuoso da corte aos trajes andrajosos dos escravos, Mary resgata valores criando adornos carregados de memória, que ora denunciam, ora anunciam novos tempos.


M ais que a feiúra e intriga, segura de sua própria imagem, Carlota Joaquina é uma rainha feminina e inteligente. É para e por ela que Apartamento 03 propõe um vestido de organza pink de construção espanhola. Dona Carlota Joaquina de Bourbon encarna a imagem da mulher convicta de sua visibilidade e de seu poder.

O desejo de fazer moda num contexto maior, eis o que define a marca Auá, da designer Patrícia Guerra. Para isto, amplia o espectro de seus colaboradores: povos indígenas, artistas plásticos, designers, arquitetos... Gente de todo o mundo, é o que quer dizer a palavra Auá em língua tupi. Experimentando novos materiais e cores, Patrícia Guerra recria nas saias amplas, nas amarrações e na sensualidade o vestir das africanas do Brasil de D. João VI.

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exposição mulheres reais — modas & modos no rio de dom joão vi

Produção

Campo das Vertentes Realizações em Arte e Cultura

Colaboradores

Produção executiva

Arte de panejamento (Rio de Janeiro): Gabrielle Schönburg-Bandeira Arte de panejamento e montagem dos figurinos-ícones (Belo Horizonte): Regina Gilson Conteúdo: Bruno Astuto Relações institucionais com a Áustria: Gloria Kaiser Fotografias (Re-Debret): Lucas Bori Stylist (Re-Debret e Desfile Antropológico – Rio de Janeiro): Antonio Frajado Produtora de Moda (Desfile Antropológico – Belo Horizonte): Carol Andreazzi

Figurino

Consultores

Curadoria

Emilia Duncan e Cláudia Fares

Idéia original

Kika Gama Lobo

Coordenação geral Cláudia Fares

Direção de arte e de figurinos Emilia Duncan

Lúcia Fares e Daniela Arantes Tatiana Rodrigues

Projeto museográfico Lídia Kosovski

Adaptação do projeto museográfico (Belo Horizonte) Lidia Kosovski e Marcello Lipiani

Direção de arte do segmento “À mesa como convém” Ana Maria de Magalhães

Projeto multimídia Marcello Dantas

Coordenação de iconografia Tatiana Junod

Design de sinalização da exposição (Rio de Janeiro) Beatriz Serson

Design de sinalização da exposição (Belo Horizonte) Guilli Seara Design

Cenotécnica (Rio de Janeiro) Attila Neves

Cenotécnica (Belo Horizonte) Artes Cênicas e OPA! Cenografia e Montagens

Iluminação Belight

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Antropologia: Raul Lody Arquitetura e urbanismo: Alfredo Brito e Roberto Anderson História da Arte: Júlio Bandeira História da Moda: João Braga Museologia: Heloisa Duncan e Elizabeth Baez


Equipes Curadoria Assistente de curadoria: Beta Germano Pesquisa Alexandre Arbex, Beta Germano, Carol Lobato, Conrado Vivacqua, Marina Rabelo, Teresa Graupner Figurino Chefe de ateliê: Otacílio Coutinho Figurinista assistente: Julia Ayres Assistente de figurino (Rio de Janeiro): Carol Lobato Assistente de figurino (Belo Horizonte): Isabella Cardoso Adereços: Clívia Cohen, Regina Gilson e Rossana Rodrigues Arte têxtil: Ana Maria Moraes Fotos Still: Isabela Bertazzi Costureiras: Jarina Neves, Sueli Gehadt, Adélia Andrade, Maria Margarida, Elô Alexandrino, Chica Sias Alfaiate: Cris Pinheiro e Macedo Leal Bordadeiros: Beth Lobato e Paulo Piovesan Envelhecimento de tecidos: Ilma Ferreira Peruqueira: Divina Lujan Sapateiros: Mariangela Pimentel – Artefatos de Couro Confecção de jóias especiais D. Maria I: Marco Apolônio D. Carlota Joaquina e D. Leopoldina: FRM Negras Multiculturais: Lucia Lima

Segmento “Re-Debret” Produção de figurino e montagem: Patrícia Monteiro Caracterização: Uirandê Holanda Elenco: Ana Leal, Andressa Silva, Carol Amorim, Dara Marinho, Erica Damasceno, Ilma Santos, Jessica Barbosa, Lidy Weber, Louz Barboza, Marília Coelho, Moara Marinho, Rosângela Sobrinho, Selma Miranda, Thais Damaso, Vanessa Fonseca Museografia Assistentes de museografia: Patrícia Faedo, Marina Piquet, Júlia Marina, Luciana Massena, Noel Rabacov, Josué Vieira, Sabrina Britts Multimídia Co-direção e coordenação: Daniela Kallmann Animação e composição digital: Daniela Ferrari Instalação: Iramá Gomes e José Neumann Assistente de produção: Ana Gallo Produção: Magnetoscópio Design de sinalização da exposição (Rio de Janeiro) Renata Negrelly e Thaís Mello Design de sinalização da exposição (Belo Horizonte) Yannick Falisse e Zumberto Produção Assistente de coordenação: Anna Carolina Barros Assistentes de produção (Rio de Janeiro): Luciana Hudson e Lélia Borges Assistente de produção (Belo Horizonte): Isabel Brandão

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