Forum de Cultura da Zona Leste - Nenhum Passo Atrás!

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ju costa Atua em inúmeros eventos na cidade, apoiando através da sua arte a RESIGNIFICAÇÃO de espaços. Seus quadros e Murais compõem o cenário urbano entre prédios, escolas, muros, e galerias de artes. Com um olhar sensível e um talento promissor, a artista retrata o poder feminino ao longo de gerações. Discute através de suas pinturas sobre a importância da ancestralidade e do reconhecimento dos povos de matriz africana e indígena. Utilizando em suas obras a frase: RADICAL É SER LIVRE!

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Fórum de Cultura da Zona Leste Organização: Elaine Mineiro, Mônica Gomes e Queila Rodrigues

PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E CAPA: Silvana Martins Revisão: Dayse Oliveira Produção Executiva: Aloysio Letra, Elaine Mineiro, Marcello Nascimento, Mônica Gomes, Pablo Paternostro e Queila Rodrigues. Fotografias: Amanda Freire, Elaine Mineiro, Queila Rodrigues e arquivos do Fórum de Cultura da Zona Leste e Movimento Cultural das Periferias Contato: forumdeculturadazonaleste@gmail.com Redes Sociais: http://forumdeculturadazonaleste.blogspot.com/ Site :https://www.facebook.com/forumdeculturadazl/ Tiragem: 1000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F745

Fórum de Cultura da Zona Leste. Nenhum passo atrás! / Fórum de Cultura da Zona Leste - São Paulo : Forma Certa Gráfica Digital, 2019. 149p.; il. 16 x 23cm

1. Periferia – Aspectos culturais. 2. Cultura – Aspectos sociais. 3. Lei de Fomento à Cultura das Periferias. 4. Periferia – Aspectos sociais. 5. Movimentos sociais. 6. Movimentos culturais periféricos – Fórum de Cultura da Zona Leste; II. Título. CDD: 306 (22ª) Bibliotecária Responsável: Patrícia Oliveira CRB-8/9415

realização

apoio

patrocínio Este projeto foi contemplado pela 1a Edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia da Cidade de São Paulo


1ª Edição

2019


Apresentação Caramba! E lá se vão 10 anos... Foi naquele 2009 que, numa garagem em Guaianases, no fundão da zona leste, uma cambada se apertava nas cadeiras e no chão de cimento queimado pra discutir propostas de políticas culturais pro bairro. Era um monte de cabeludos; tinha grafiteiro, poetisa, rapper novo, cordelista das antiga, atriz, violeiro, galera do audiovisual, do reggae, do samba, do jongo, do campinho... Gente bonita que estava mudando a cara da quebrada. E que queria mais! Tão logo a gente descobriu que encontros como este também estavam rolando em outros cantos da zona leste, da sul, na noroeste... nas bordas, no fundão! Há 10 anos o movimento da produção cultural de periferia da cidade de São Paulo já existia e era potente. Mas foi em 2013, ainda antes das famosas Jornadas de Junho, que o movimento parece ter se dado conta da força que tinha. A cultura periférica resolveu ir pra cima e dizer: Chega de patifaria! Agora, é Nóiz! Quando as várias quebradas da zona leste resolveram se olhar e se reconheceram neste olhar, não tinha mais volta. Era paixão. Era tesão. Era luta! E foi. E foi assim que iniciou o Fórum de Cultura da Zona Leste. Este livro que chega em suas mãos fala desse troço doido e bonito que surge como fruto do movimento cultural que já estava acontecendo na cidade. Movimento que tem raiz lá no hip-hop do século passado e em outras ancestralidades. Mas que no inicio da segun-

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da década do milênio vai ganhando consistência, textura e sabor. O Fórum de Cultura da Zona Leste surge deste caldo bem temperado que fervilhava na periferia neste momento histórico. E as páginas que aqui seguem são relatos, memórias, testemunhos, imagens, reflexões, palavras, tretas, mapas, celebrações desta vida coletiva que foi gestada há seis anos. O livro é um baú de sentimentos e teorias vividas na prática. Ele é as pessoas que o escrevem. Os textos, as músicas, as poesias, os sambas-enredos, os grafites que o compõem são de pessoas que fizeram a história do FCZL e ainda fazem a cultura periférica pulsar na Paulicéia. Os textos e relatos estão organizados em três grandes partes. Na primeira, a memória da construção do Fórum é apresentada a partir de diferentes aspectos. Na segunda parte vamos conhecer a experiência concreta do FCZL, suas conquistas e lutas. E, na terceira, são apontados os desafios enfrentados na execução do projeto do Fórum, quando foi contemplado pela Lei de Fomento à Cultura da Periferia. Os textos constituem um leque bastante amplo de elementos envolvidos na experiência do Fórum. Luciano, por exemplo, aponta como uma organização dos coletivos culturais na zona leste chamada TONOMAPA – levante cultural leste – que aconteceu em 2003, já continha demandas que o FCZL transformou em bandeiras de luta dez anos depois. O mestre Soró trata das relações entre o Fórum e outras lutas que o antecederam como a mobilização de resistência da Quilombaque e a Rede Livre Leste. Marcel lembra de como o Jornal Voz da Leste foi um instrumento fundamental para divulgar e debater publicamente as pautas defendidas no Fórum. O texto produzido coletivamente por parceirxs da Rede Popular de Cultura M´Boi e Campo Limpo reforça a importância que a criação do FCZL teve

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para fortalecer o movimento na zona sul. Aloysio Letra trata do que é cultura e seus dilemas na relação com o Estado. Marino compartilha a cartografia dos espaços independentes na zona leste realizada pelo Fórum e chama atenção para a importância da territorialidade das políticas culturais. Harika e Leandro fazem memória de como o debate sobre a composição do orçamento da cidade foi fundamental para que o Fórum percebesse quão desigual é a distribuição dos recursos públicos no município. Marcello e Silvinha, cada um a seu modo, narram os dilemas e questões do processo de elaboração da Lei de Fomento à Cultura da Periferia e a forma de organização do Movimento Cultural das Periferias. Tiaraju faz uma bela análise de três manifestos produzidos em diferentes momentos da organização do movimento de periferia e reforça sua atuação política. Queila faz a necessária crítica à forma desigual de como as mulheres ainda são tratadas mesmo em movimentos sociais que se afirmam de caráter emancipatórios. E Patrícia aponta para a necessidade de se criar espaços de brincar para que as mães possam de fato exercer seu direito de participação ativa. Monica trata da importância de tirar da invisibilidade os processos administrativos burocráticos que também compõem as ações culturais. Os relatos de Michele e Edson reforçam a força da ação do FCZL. E o “não relato” de Elaine é o testemunho apaixonado de quem viveu intensamente os processos e dilemas de uma utopia possível... Tudo isso recheado de muita poesia (Viva Daniel Marques!), encantos e cores da produção cultural periférica. E com toda a riqueza revelada neste livro, me enche de orgulho e responsabilidade ter sido convidado para fazer a sua apresentação. Uma alegria imensa. Por isso, queria pedir licença para incluir neste prefácio um breve relato das minhas relações com a cultura periférica e que, imagino, foi o motivo do convite.

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Tive uma experiência um tanto singular no acompanhamento e fortalecimento do movimento cultural periférico desde o inicio do milênio. Não sou artista. Sou educador e militante. Ainda jovem, a preocupação com a elaboração de políticas públicas para a juventude (sobretudo periférica!), me levou a participar das audiências na Câmara Municipal em 2001 e 2002, as quais criaram o Programa VAI no ano seguinte. A partir de 2007, já saindo da minha condição juvenil e com possibilidade financeira de comprar uma casa no centro de Guaianases, vi a cultura periférica brotar no chão do meu quintal com o Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué, com as rodas de jongo que se seguiam após o término de cada Sexta Socialista, com as poesias do Tenda Literária, com os questionamentos dos meninos do Cine Campinho, com enchente e muito pão com mortadela... Participei da concepção inicial do Fórum na casa do norte do saudoso Sr. Manoel, quando saiu o indicativo de propor a criação de um grande agrupamento dos coletivos da leste para uma reunião que aconteceria em Ermelino Matarazzo no inicio de 2013. Mas, algumas semanas depois, ainda no começo da gestão Haddad, fui convidado para uma missão que naquele momento ganhava um colorido especial que era coordenar o Programa VAI. Fui compor o time com Gil Marçal, Lucia Agata e um povo bonito da SMC que naquele tempo tentava criar a área de Cidadania Cultural. No mesmo ano foi aprovado o VAI II. Uma agitação cultural diferente tomou conta da cidade durante toda a gestão Haddad, de 2013-2016. Por mais que a gestão municipal procurasse ampliar os programas, criar novas ações, os coletivos da periferia sempre diziam: é pouco! E era. Mesmo sendo uma das pastas mais bem avaliadas da gestão Haddad, os três secretários de cultura que passaram pela SMC (Juca Ferreira, Nabil

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e Maria do Rosário) presenciaram diversas manifestações de contestação, protagonizadas sobretudo pelo Movimento Cultural das Periferias. Uma nova força política havia surgido na cidade: audiências lotadas do orçamento municipal como há tempos os vereadores não presenciavam; cortejos; manifestos... A ação do FCZL havia se ampliado e as demais regiões já haviam se juntado ao grito e articulação que vinha do final da linha vermelha. A cultura periférica se tornou um dos principais movimentos sociais e não deu “colher de chá” para a máquina pública. E eu, além de coordenar o VAI, o Mês do Hip Hop, o diálogo com o Funk e outras cositas periféricas, me tornei um dos principais interlocutores da SMC com o movimento. Ou seja, o fígado já era. Foi um desafio interessante... Nos últimos dois anos da gestão, fui coordenar uma das áreas mais sensíveis da SMC que era o núcleo das Casas de Cultura e acompanhei todo o processo de diálogo (e conflito) na construção da Lei 16.496/16 que cria o Programa de Fomento à Cultura da Periferia, uma das principais conquistas do movimento. Saio da Secretaria no final da gestão e passo a integrar a Comunidade Jongo dos Guaianás, onde estou até hoje. É preciso olhar o passado para entender o que somos, o que nos trouxe até aqui. E fazemos isso não por nostalgia, mas para fazer memória e para continuarmos a construir a história. A luta da cultura periférica só começou. Boa leitura. Saravá! Renato Almeida

Em noite de Lua cheia.

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dedicatória

Aos primeiros coletivos e coletivas dessas paragens remotas... Aos Guaianás, itaqueras, itaims... Ao sangue dos povos originários, à resistência do povo negro que, mesmo sequestrado, trouxe consigo as tecnologias e culturas que servem de base para nossa existência. Aos que vieram antes, aos que já partiram e à todas e todos que ainda hoje constroem e compõem uma cultura comprometida com as quebradas. Aos nossos! #NóisPorNóis Agradecimentos: Okupação Cultural Coragem; Espaço Cultural AFRO 2; Ocupação Cultural Mateus Santos; Rede de Cultura M’boi e Campo Limpo; CICAS – Centro Independente de Cultura Alternativa; CAP – Coletivos Culturais de Cidade Ademar e Pedreira; Espaço Cultural CITA; CDC Vento Leste; Centro Cultural Arte em Construção; Comunidade Cultural Quilombaque e todos os coletivos e coletivas que fizeram e fazem parte da construção do Forúm de Cultura da Zona Leste.

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sumário 14 FCZL: CONTRUÇÃO E MEMÓRIAS... 16 A SAGA PERIFÉRICA: BANDEIRAS E TRAJETÓRIA DE LUTA [2013-2018] POR MARCELLO NASCIMENTO DE JESUS

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ORÇAMENTO PÚBLICO EM DISPUTA POR HARIKA MAIA E LEANDRO HOEHNE

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A PAZ SEM VOZ É MEDO POR MARCEL CABRAL

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A META-LUTA DAS MULHERES PERIFÉRICAS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS: DO OIAPOQUE À ZONA LESTE AO CHUÍ. POR QUEILA RODRIGUES

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TONOMAPA - LEVANTE CULTURAL LESTE POR LUCIANO CARVALHO

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NOSSA TEORIA É A PRÁTICA POR JOSÉ SORÓ

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NÓIS POR NÓIS – REDE POPULAR DE CULTURA DE M’BOI CAMPO LIMPO POR KÁTIA ALVES, FERNADO FERRARI E LUAN LUANDO

50 PERIFERIAS DEFENDENDO O ÓBVIO! 52 A PERIFERIA PELOS SEUS MANIFESTOS POR TIARAJU PABLO D’ANDREA

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A LEI DE FOMENTO À CULTURA DA PERIFERIA: PRÁTICAS DE LUTA E OBVIEDADES DE UMA CIDADE EM XEQUE POR SÍLVIA LOPES RAIMUNDO

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CARTOGRAFIA DOS ESPAÇOS CULTURAIS INDEPENDENTES NA ZONA LESTE POR ALUÍZIO MARINO

70 FCZL EM MOVIMENTO 74 A CULTURA FORA DO SENSO COMUM POR ALOYSIO LETRA

78

A INVISIBILIDADE DOS BASTIDORES E PRODUÇÃO POR MONICA GOMES

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A IMPORTÂNCIA DO ESPAÇO DE BRINCAR NOS MOVIMENTOS DE MILITÂNCIA POR PATRÍCIA SOARES

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Zona leste tem coragem POR MICHELE CAVALIERI

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o fluxo da história por EDSON PAULO SOUZA

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EIS AQUI UM NÃO RELATO, CEGO E APAIXONADO DE QUEM VIU DIANTE DOS SEUS OLHOS UMA LINDA UTOPIA POR ELAINE MINEIRO

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POESIAS E COMPOSIÇÕES

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UM POEMA DE ZÉS, MARIAS E TUS* POR QUEILA RODRIGUES E NATALI CONCEIÇÃO

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LUCAS AFONSO

QUERO VIVER DE BOLSA Por DANIEL MARQUES

PIPA POR JULIANA JESUS

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POESIA AMOR INTEIRO POR JÔ FREITAS E ANTÔNIO HENRIQUE POETA

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ABCDÁRIO DA AUTONOMIA POR EMERSON ALCALDE

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SUJEITO PERIFÉRICO COMPOSIÇÃO: TITA REIS, RENATO GAMA, LUCIANO CARVALHO

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TEMPO COMPOSIÇÃO: ANNA BUENO

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2014, ROLEZ INHO DA MARRECADA! COMPOSIÇÃO: CORDÃO CARNAVALESCO BOCA DE SEREBESQUÉ

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OYÁ (TOADA DE MARACATU) COMPOSIÇÃO: MESTRA SORAIA APARECIDA

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G.R.E.S NENÊ DE VILA MATILDE COMPOSIÇÃO: TITA REIS, TIARAJU PABLO, THIAGO OLIVEIRA, ELAINE MINEIRO E JHONY GUIMA

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UM RETRATO DE SÃO PAULO

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GUAIANÁS É MEU LUGAR

COMPOSIÇÃO: RENATÊ PESSOA COMPOSIÇÃO: ALOYSIO LETRA

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MANIFESTO POLICENTRICO - LIVRE LESTE POR rede livre LESTE

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MANIFESTO PERIFÉRICO PELA LEI DE FOMENTO À PERIFERIA POR FORUM DE CULTURA DA ZONA LESTE

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MANIFESTO DOS COLETIVOS PERIFÉRICOS EM APOIO À DI LMA ROUSSEFF POR coletivos culturais periféricos

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Coletivo OTM O coletivo OTM (Operação Tinta no Muro) é composto por 9 artistas (Nojon) (ícone.k) (Sow) (Credo) (Bié) (Moluco)(Rocket) (Quinho) e (Tds) - nomes artísticos. Nossa união se deu através das atividades culturais que aconteciam no Bairro de Cidade Tiradentes, onde compartilhávamos o mesmo ideal que é fazer graffiti. Devido às nossas vivências juntos, criamos a Crew (coletivo) que já existe há 8 anos. Começamos a desenvolver projetos culturais no ano de 2015 com o intuito de valorizar e exaltar o bairro através da nossa arte. As pinturas realizadas através do projeto, circuito OTM 2, que foi fomentado pelo programa VAI 2018/2019, teve como proposta, criar um cronograma de arte urbana para o bairro de Cidade Tiradentes.

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A SAGA PERIFÉRICA: bandeiras e trajetória de luta [2013-2018] Marcello Nascimento de Jesus É Produtor Cultural e Professor de Geografia. Pós-graduando no curso de especialização Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular na Unifesp. Integrou durante 10 anos o Coletivo ALMA [2004/2015]. Coordenou a Casa de Cultura Raul Seixas entre 2015 e 2016. Participou de toda a construção do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL) e do Movimento Cultural das Periferias (MCP) e da Lei de Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo. Participa do Centro de Estudos Periféricos (CEP/Unifesp).

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O Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL) traz consigo novos ares de organização popular na luta por políticas públicas culturais para a periferia da cidade de São Paulo. Literalmente abriu caminhos e colocou a cultura da periferia no mapa da cidade. E dentro dela, toda a sua potência e diversidade, as suas periferias. Esta organização vem permeada e é fruto de diversas ancestralidades e movimentações de artistas, grupos, coletivos e redes anteriores que deram o caldo para emergir esta nova articulação com a força necessária, tudo temperado com uma série de opressões, angústias, inquietações e segregações sentidas na pele do cotidiano de quem vive nesta cidade. E com os pés calejados de tantos perrengues e enfrentamentos preliminares em suas quebradas, em combate aos coronelismos, políticas de balcão, na luta por políticas públicas inclusivas, é que diversos coletivos vão experimentando formas de organizações locais e regionais. E não nos esqueçamos: a saída é coletiva. E para dar a liga encontramos um termo que nos une: Periferia. É neste contexto que nasce o FCZL. Da união entre diversas coletividades, redes e movimentos culturais da zona leste, com uma série de pautas e reivindicações para o lado historicamente desprivilegiado da cidade, as periferias. E para nos organizar foi necessário nos olharmos, ouvirmo-nos, falarmos para, aí sim, conseguirmos nos entender. Entender que não somos perfeitos, que temos defeitos e contradições e que o inimigo é outro. E para nos organizarmos melhor, tivemos uma boa caminhada pelas quebradas da zona leste em diversos espaços culturais independentes para fomentar debates, estudos, intervenções artísticas, festas e cervejas. Diante de tantas demandas construímos um plano estratégico e tático com foco onde queríamos chegar e, para tal, definir as bandeiras de luta durante

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o processo de construção do FCZL foi essencial. Detalhe: sem atravessadores, independente e no estilo nós por nós. O ano era 2013. Inicialmente nos organizamos em 3 grupos de trabalho: um grupo para organizar os estudos e formações políticas; um outro para organizar e sistematizar as demandas e reivindicações e que culminou no 1º seminário de políticas públicas; e um outro para organizar uma mostra cultural para evidenciar a efervescência artística nas periferias da cidade. Obviamente que esta grande rede não se restringiu e nem se fechou aos 3 grupos de trabalho, nos quais, de forma orgânica, se misturavam entre si juntamente com as militâncias do cotidiano e da cidade, desdobrando-se em tantos outros para cumprir as tarefas que surgiam. O FCZL foi atravessado e se fez presente em diversos atos públicos e marcou presença também em disputas institucionais. Organizados, conseguimos sistematizar e sintetizar ideias em documentos com nosso posicionamento e visão de mundo, as bandeiras de luta e as prioridades, tornando públicas as nossas cartas em panfletos e mídias sociais. Dentre tantas pautas, o foco se deu no enfrentamento à governabilidade para se extrair avanços concretos. Partimos de uma visão micro para uma visão macro onde se conseguisse chegar em políticas públicas estruturantes para a cultura, em especial para a periférica da cidade, sem qualquer restrição de linguagem, o recorte era territorial, defender o óbvio ainda é preciso. Acreditávamos que era possível avançar muito mais e inverter a lógica hegemônica era nossa utopia, fazer chegar mais políticas públicas onde vive a grande maioria da população, onde está a classe trabalhadora, a grande produtora de riqueza e inversamente a que menos usufrui dela. Encabeçando a lista de pautas, desde o nosso primeiro documento público, vem a bandeira de construção de uma política pública estruturante em lei para a periferia, o que viria a se tornar a Lei de Fomento à Cultura da Periferia da Cidade de São Paulo, somente sancionada em 2016 (Lei 16.496/2016). Mas esta não foi a única. Reivindicamos a transparência no empenho dos recursos públicos; a destinação de 2% do orçamento municipal para a cultura visando a distribuição e descentralização de recursos públicos sem política de balcão; a manutenção e fortalecimento do programa VAI e criação do VAI II com dotação orçamentária própria; a criação do Fundo Municipal de Cultura; o retorno das Casas de Cultura das Subprefeituras para a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) e a criação de mais espaços culturais na zona leste; o reconhecimento e regularização de espaços públicos ociosos ocupados por coletivos culturais,

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o que mais tarde viria se tornar o Bloco de Ocupação Cultural de espaços públicos, composto por diversas ocupações culturais independentes espalhadas pelas periferias da cidade. A ampliação deste bonde e a visibilidade na cidade só foi possível graças à união de outros movimentos de outras zonas da cidade: a Rede Popular de Cultura M’Boi, Campo Limpo e Coletivos Culturais Cidade Ademar Pedreira, ambos da zona sul, a Rede Viva Periferia Viva e Comunidade Cultural Quilombaque, da zona noroeste e do CICAS (Centro Independente de Cultura Alternativa e Social), ocupação cultural composta por coletivos da zona norte, além de uma série de agrupamentos que foram se somando durante a caminhada. Foi a união destas redes que mais tarde iria se tornar o Movimento Cultural das Periferias (MCP). As lutas se desenrolaram em várias frentes, taticamente mesclando estudos, reuniões, debates, ações diretas, atos públicos e intervenções em âmbitos institucionais. Um bom exemplo é a luta pelo orçamento na cidade, na qual permeou todos estes itens citados e onde de fato foi comprovado que a população, esteja ela organizada ou não, não é bem-vinda nos espaços de poder. A participação popular é restrita, a participação política ainda é um privilégio destinado a uma hegemonia historicamente organizada. Ao longo desta trajetória, muitos enfrentamentos foram feitos para avançar, algumas vitórias, algumas derrotas e a certeza de que somos muitos a trilhar um longo caminho para uma cidadania digna e plena, onde o mercado não paute as nossas vidas e a humanidade retome o fio da história para a tessitura de um modelo societário justo e com equidade. Nesse sentido cabe a nós nos entendermos, organizar e lutar por melhores dias, onde o poder seja popular e a segregação em classes sociais uma página virada de nossa história. A luta continua.

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Orçamento Público em Disputa Harika Maia Mestre em Antropologia, especialista em infância e juventude e bacharel em Ciências Sociais, atua há mais de dez anos em pesquisas acadêmicas, gestão de projetos e produção cultural. Coordenou o Programa VAI I e II por quatro anos, integrou comissão de seleção do Fomento à Cultura das Periferias e atuou no Fórum de Cultura da Zona Leste e no Movimento Cultural das Periferias entre 2012 e 2014. Hoje é consultora de projetos da Rede Conhecimento Social. Leandro Hoehne Artista do corpo formado pela PUC-SP e especialista em Políticas Públicas Para Igualdade na América Latina pela CLACSO – Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. É educador de circo do Programa Fábricas de Cultura e Colabora para a produção de conteúdos dos cursos de produção e gestão cultural da Universidade Cruzeiro do Sul. Coordenou o Teatro Municipal Flávio Império nos anos de 2015 e 2016. Co-fundador do grupo circense doBalaio.

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Porque Precisamos Entender de Dinheiro Há algum tempo, coletivos e artistas se reuniam em espaços comunitários para discutir estratégias eficazes para pensar políticas culturais na cidade que colaborassem no processo de estruturação da cena nas quebradas, uma vez que era ali que se sentia a desigualdade entre oferta e demanda de programação, fomento, espaços etc. Ali também sentiam na pele e na história os impactos que ações culturais podiam ter na população. O Fórum de Cultura da Zona Leste, organizado em muitos coletivos e articulado com outras periferias da cidade, propôs-se a tomar as rédeas e mudar esta realidade. A potência das políticas públicas de cultura, ainda que insuficientes, nos territórios periféricos gerou movimentos crescentes e organizados que se preocupavam em se apropriar do que historicamente lhes foi negado: recursos públicos e participação política. Ao mesmo tempo a cidade, rica e desigual, apresentava-se até então de forma pouco transparente em ambos os quesitos, sendo tanto a estruturação e distribuição orçamentária, quanto os mecanismos para definição da mesma, pouco participativos. Foram muitas as promessas e desculpas (todas depositadas na lentidão da máquina pública) em resposta às diferentes pautas colocadas, sobretudo pelos coletivos periféricos. Mas como questioná-las, como combater um discurso repetidamente manjado? Cansado de ser jogado neste ciclo demagógico vicioso, o Fórum resolveu focar na sua própria formação, criando grupos de trabalhos e de estudos em áreas que dessem suporte para sua atuação. Promoveu seminários internos e abertos, chamou os amigos e amigos de amigos para rodas de conversa, leu e releu leis, decretos, planos de governo, discursos e tudo o que era público e relacionado à política pública – pois defendia que o Estado (democrático e participativo) fosse o principal regulador das políticas culturais.

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A prática e as formações geraram maior conhecimento sobre o contexto político, porém, sobretudo no que tangia à discussão orçamentária, sentia-se a necessidade de aprofundamento do conhecimento técnico, saber dos números, das cifras e do projeto político concretizado através da destinação dos recursos. Entendeu-se que qualquer ação política de médio/longo prazo na esfera pública, tinha que ser prevista em orçamento e com antecedência, logo era preciso, sim, falar de dinheiro de igual para igual, com representantes do Legislativo e do Executivo. Portanto, em 2013, o Fórum revirou a Proposta Orçamentária de 2014, elaborada pela prefeitura e entregue para aprovação da Câmara. Participou das audiências públicas, escutou com atenção os políticos e os gestores, estudou o documento em todos os seus volumes, suas planilhas infindáveis e seus códigos quase indecifráveis e, o que não entendeu, foi buscar respostas junto aos gestores públicos. Era fundamental ter o domínio daquele instrumento. Ele forneceria a base que faltava para a luta política, tornaria públicas e tecnicamente representadas as disparidades dos investimentos nos territórios da cidade, abriria margem para discutir e propor políticas mais assertivas e, principalmente, daria respaldo e propriedade para que o movimento lutasse pelas suas pautas com conhecimento de causa, apresentando de forma pragmática e bem fundamentada suas propostas nas audiências públicas. O estudo tomou proporções inesperadas, foi o principal instrumento que deu base sólida para a luta por 2% do orçamento da cidade para a Cultura, articulada com demais movimentos (como os centrados nos grupos de teatro e dança, por exemplo). Também deflagrou a absurda e desigual distribuição de recursos dentro do orçamento quando comparadas às políticas destinadas às periferias e à Fundação Theatro Municipal, aos equipamentos de cultura centralizados e às Casas de Cultura, a ausência de recursos para programação ao longo do ano nos territórios, concentrados em eventos como a Virada Cultural e equipamentos como o Centro Cultural São Paulo. Mas o mais importante, talvez, tenha sido a legitimidade política de concorrer com as narrativas hegemônicas dentro de espaços políticos também hegemônicos, como a Câmara dos Vereadores e a Prefeitura, independentemente das bandeiras a serem levantadas. Como “sujeitos periféricos” renegados ao sistema político, o ato de se apropriar da linguagem de negociação e decisão política permitiu que fosse possível um levante de resistência frente à partilha orçamentária do município para a Cultura, questionar política e publicamente os números a partir de documentos oficiais. Mais do que pensar os números, foi possível balançar as estruturas por uma conquista de lingua-

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gem. Os sujeitos confrontaram os discursos com a prática, reconheceram os agentes do jogo - os parceiros, os que atrasam propositalmente o processo, quem tumultua, mas não ajuda, os que só falam e não fazem, aqueles que só brigam pela sua turma, aqueles que têm o conhecimento mas não passam para frente etc. Próprio da vida democrática, foi necessário estabelecer limites, diálogos e posicionamentos. O movimento entrou na cozinha da vida pública institucional. Não abriu mão do conhecimento recém-adquirido e da responsabilidade que ele trazia. Compartilhou o resultado de seu estudo, foi questionado pelos políticos e gestores e então apresentou todos os seus cálculos baseados nos documentos públicos.Viu que o orçamento da pasta da cultura havia diminuído, que a distribuição do recurso dos programas continuava desigual - mesmo depois da conferência municipal de cultura - e que a estrutura ainda seria deficiente e frágil, não sendo possível a expansão dos programas já existentes. Houve audiências públicas, reuniões com a frente parlamentar em defesa da cultura, presenciamos o “acordão” entre Legislativo e Executivo para frear a pauta dos 2%, fomos acusados de chatos e pentelhos por estarmos exercendo o nosso direito. Apesar de pouco retorno na alteração da Proposta Orçamentária de 2014, a principal incidência do estudo foi no amadurecimento do Fórum, na participação dele nos espaços políticos legitimados, na produção e disputa de narrativas, no conhecimento técnico por parte dos coletivos e artistas periféricos sobre o funcionamento da máquina pública e posterior apresentação e aprovação da Lei 16.496/2016 que instituiu o Fomento à Cultura das Periferias, gerido no ventre do Movimento Cultural das Periferias. No decorrer daquela gestão e mudança do então secretário e equipe, o orçamento não cresceu em porcentagem (o que dependeria de uma vontade política muito maior, envolvendo também o gabinete do prefeito), porém houve uma mudança significativa na distribuição deste orçamento, sobretudo com reformas e entregas de equipamentos culturais nas periferias, programação cultural descentralizada e parcerias com espaços de ocupação. Quebrar a cabeça com o orçamento serviu para apontar a lança para as leis como políticas estruturantes. Essa dupla jornada de luta que os movimentos têm de travar entre Legislativo e Executivo é cansativa e quase sempre se revelou injusta, pois os mecanismos de participação nunca oferecem pleno domínio das decisões coletivas. São lutas intermináveis e ainda mais duras e engessadas em gestões pouco democráticas como as que seguem.

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A PAZ SEM VOZ É MEDO

Marcel Cabral Editor do jornal Voz da Leste entre 2013 e 2015. Neste período também foram editoras Elaine Mineiro e, posteriormente, Luciara Ribeiro.

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Para tecer as linhas que seguem, eu me perguntei como escrever um texto que não fosse redundante. Afinal quem lia as edições do Jornal Voz da leste na época, ou depois dela, sabe que fizemos circular por SP as idéias do Fórum de Cultura da Zona Leste: textos e imagens foram mobilizados e os manifestos foram um bom exemplo, eram os textos-papo-reto do Fórum. Publicar um texto que não seja do jornal é assumir um risco, a aventura do desconhecido, enquanto publicar os textos do Fórum era abraçar os desafios que se desdobrariam - era assumir os riscos juntos. Acredito que esta é a missão de um jornal. Não existe imprensa isenta, a mídia tem pontos de vista bem claros, mas fazem a pessega, a cátia cega, e dissimula a verdade criando falsas realidades. A grande mídia nacional é feita por homens brancos burgueses de direita e, às vezes, de esquerda; heteronormativos e de religiões de boa família, se é que me você me entende. O Voz da leste não era isento, tinha pontos de vista bem claros e apenas publicava aquilo que julgávamos necessário e urgente, o político e o poético do jornal dançavam a batucada da emergência e da urgência. A periferia urge! O Fórum emergiu das urgências periféricas, urgências que se materializaram na luta político-cultural, que não falava apenas de cultura e arte, exigia as urgências da vida, das vidas das pessoas das e nas periferias de São Paulo. Seria impossível para nós, que fazíamos o jornal, não atentar para a grandeza da criação deste fórum. Os manifestos eram a materialidade das ideias de muitas lutas, publicá-los foi se posicionar ao lado destas lutas, pela legalidade e legitimidade delas. Publicá-las ajudou a sistematizá-las ao lado de outras matérias sobre as mesmas periferias que o manifesto falava. Era um diálogo potente e re-voltante. O jornal trazia movimento atra-

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vés de sua circulação pelos territórios; a revolta é movimento, é sair, ir e voltar, re-voltar, revoltar-se. Esse era o nosso espírito. Antes da Ditadura Civil-Militar, havia no país um grande número de periódicos, entre revistas e jornais, que circulavam impressos pelo país. Havia uma pluralidade de ideias em jornais comunistas, anarquistas, socialistas, feministas, negros, LGBTs, sindicalistas, estudantis. Jornais e revistas que tinham grande circulação e interpenetração em algumas classes. Nos anos 30 do século XX, a imprensa negra paulista fizera ampla campanha para a construção do monumento ao abolicionista Luís Gama na cidade. Na época, queriam erigir “mais um monumento da Ruy Barbosa”, mas o advogado abolicionista negro venceu e o busto encontra-se até hoje no Largo do Arouche, hoje território LGBTQIA da cidade. Nos anos 70, o Jornal Lampião da Esquina sacudiu a ditadura com sua imprensa, uma imprensa LGBT que circulou por todos os estados do país e afrontou o heteropatriarcado e o autoritarismo militar. É dentro desta tradição que situo o Jornal, estamos nas periferias e dela que falamos; que se pronunciem, não queremos a versão dos fatos da imprensa hegemônica branca que se situa no além-rios, depois dos muros, nos territórios endinheirados da cidade. A construção de uma outra cidade a partir de nós e o jornal nada mais fez que circular a materialidade da episteme periférica, seus saberes e suas memórias A missão da imprensa é fazer circular as urgências e provocar o debate, assumir os riscos e procurar soluções coletivas para nossa vida, mas em geral não é bem isso que acontece em nosso país. Com o fim da ditadura, o que sobrou foi uma mídia hegemônica conservadora e de direita. Ela produz diariamente realidades distorcidas, quando não mentirosas, sobre nossas subjetividades e leva o país para os labirintos do caos, para os odiosos precipícios da morte. Não podemos confiar nela nunca, é preciso desconfiar sempre! Democratizar as mídias é a grande causa que nos une, socializar a imaginação, anarquizar a construção política! É preciso mais imprensa periférica e mais articulada. Não somos neutros e não nos queremos ser assim, queremos possibilitar a escuta das vozes do leste e de outros pontos cardeais das bordas. Queremos falar, ser escutados e pautar os debates, as discussões políticas, as disputas pelas narrativas e pelas memórias que achamos relevantes. O Fórum é uma memória absolutamente política de uma luta que colheu frutos – A lei de Fomento à Periferia. O Grupo de Trabalho criado para a escrita da lei é um feliz exemplo da construção do amanhã coletivamente.

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Um jornal é como uma caixa de memórias materiais que se perpetuam no tempo e no espaço. Construímos a memória para o futuro e possibilitamos a criação de arquivos memorialísticos para a imaginação política do presente e do futuro. Daqui a 100 anos, quando não mais nós caminharmos por este planeta lindo, outres lerão sobre nós, outras periferias, quem sabe humano-ciborgues das quebradas saberão que a luta não começou ali, que ela é antiga, e contínua, e que elxs são os nossxs herdeirxs de vida, de cultura, de arte, que suas lutas já habitavam aqui nesta primeira década do século XXI. Este ano voltaremos a produzir o Jornal e aguardamos ansiosos por novos textos do FCZL, para ser o depositário de suas memórias, de ser lugar na sua construção crítica, e entrar em seu percurso o futuro que se anuncia em nossos horizontes de lutas.

Reunião entre integrantes do Movimento Cultural das Periferias e a então Secretária de Cultura Maria do Rosário, sobre a Lei de Fomento à Cultura das Periferias. Secretaria Municipal de Cultura. 2016.

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A META-LUTA DAS MULHERES PERIFÉRICAS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS: do Oiapoque à Zona Leste ao Chuí. queila rodrigues Poeta’brincante, artesã, fotógrafa, arte educadora e produtora cultural. Atuante em movimentos culturais periféricos desde 2009, foi uma das fundadoras e integrantes da Rede Livre Leste e do Movimento Cultural das Periferias. Atualmente integra o Fórum de Cultura da Zona Leste; é uma das pesquisadoras do Centro de Estudos Periféricos (CEP UNIFESP- Instituto das Cidades) e compõe alguns coletivos artísticos da região, dentre eles o Sarau O que dizem os Umbigos?! e o Grupo de Coco Semente Crioula. É também idealizadora do Projeto de bordado e poesia Cabocla De Lança – Estandartes Poéticos e Promotora Legal Popular.

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“Periferia, não por acaso, substantivo feminino no qual se inscreve a história corrente de inúmeras mulheres” (Trecho do Manifesto Periférico – FCZL/2013)

Lugar de mulher é onde ela quiser? Concordo, mas na prática nem sempre ou quase nunca é. Além do espaço doméstico que sempre nos foi garantido, em quantos outros espaços desejamos estar e não estamos; quantas barreiras ainda temos que romper para poder alcançá-los ou o quanto temos que nos desdobrar para estar em diversos lugares ao mesmo tempo? Os séculos XIX e XX marcam períodos importantes de luta pelos direitos humanos das mulheres, mas também traçam um paralelo entre diferentes contextos deste grupo social, já que mesmo em meio a um contexto de luta e busca por emancipação, as demandas não eram as mesmas para todas. Enquanto mulheres brancas lutavam por postos de trabalho, por exemplo, mulheres negras já trabalhavam em diversas funções desde que os primeiros tumbeiros desembarcaram por aqui. O que nos faz refletir que a importância e legitimidade de uma luta não significa que esta atinja igualmente todas as camadas sociais (neste caso todas as mulheres) e que a herança colonial e escravocrata, mesmo no chamado pós-abolição, segue presente na sociedade com outros termos e roupagens, inclusive em espaços progressistas. Portanto, ao falar sobre mulheres, é preciso levar em conta a pluralidade desse grupo social que se reflete também nas suas pautas. Mulheres negras, indígenas, brancas, campesinas, imigrantes, lésbicas, bi, trans, periféricas (...), são todas mulheres, mas não todas iguais. Há diversidade nos contextos histórico-sócio-econômico-culturais, nos corpos e na luta. Embora haja também unidade em

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alguns aspectos, há muitas pautas nas pautas das mulheres e essa é uma discussão ampla e complexa que não será possível aprofundar nesse breve texto, mas chamo a atenção para este ponto divergente para dizer que, se entre mulheres, historicamente, há lugar de privilégios e subalternidades de umas perante as outras, que dirá quando fazemos a mesma comparação entre todas elas e os homens, considerando também a sua pluralidade, em uma sociedade que sobrepõe opressões como machismo, racismo e várias fobias. Quando pensamos em movimentos sociais, nossa expectativa é que essa sobreposição de opressões desapareça, afinal estamos todxs em luta por garantia de direitos, melhorias nas condições de vida, equidade, justiça social etc. Mas a prática da luta coletiva tem suas contradições e fragilidades. E, assim como na sociedade como um todo, desigualdades de gênero e étnico-raciais aparecem e são reproduzidas mesmo dentro dos movimentos sociais, o que faz com que, para as mulheres, a militância se torne também um espaço a ser conquistado, travando mais uma luta dentro da luta, uma meta-luta. Por um lado as questões práticas como conciliar dupla ou mais jornadas de trabalho; responsabilidade com filhos ou com pais (na totalidade das vezes, além de assumirem o cuidado dos filhos, somos nós também as cuidadoras dos pais em situações de velhice ou doença); os estudos (ainda inacessível para muitas mulheres); cuidados pessoais; dentre outras demandas cotidianas, sobrecarregam e por isso dificultam, limitam ou impedem a presença e/ou permanência das mulheres nos movimentos, já que o compartilhamento dessas tarefas com os homens, sejam eles companheiros, irmãos, filhos, pais ou amigos é algo raríssimo. Por outro lado, questões simbólicas como a falta de escuta ou consideração pela fala, pautas e trajetórias das mulheres; tentativa de divisão desigual das tarefas, onde as mulheres ainda continuam a ser demandadas para atuar no espaço doméstico dentro dos espaços do movimento (limpeza, compra e preparação de alimentos, cuidado com as crianças) enquanto homens se dispõem a atuar na logística, tecnologia e principalmente no protagonismo da oratória e tomada de decisões, são algumas das muitas barreiras que nós enfrentamos mesmo dentro dos espaços de militância. Sem contar a ignorância ou falta de reconhecimento das diversas formas de organização política desempenhadas pelas mulheres, em diferentes períodos históricos, na base das lutas populares por acesso à moradia, saneamento básico, educação, saúde, cultura e por aí adiante.

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“Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades que estão em luta. A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva.” (DAVIS: 2017).

Na experiência do Fórum de Cultura da Zona Leste não foi e não é diferente. As mulheres que compuseram ou ainda compõem o movimento, em maioria negras, todas periféricas e em maior parte autodeclaradas feministas, vêm fazendo este enfrentamento prático e simbólico, nem sempre de forma didática, para impedir que nossa presença signifique apenas números ou garantia de organização em tarefas “menores”, ou que as pautas chamadas nossas, mas que deveriam ser de todxs, tornem-se bandeira coletiva apenas em momentos de conveniência. Afinal, para os homens é sempre muito bonito e vantajoso serem feministos em alguns espaços, sobretudo públicos, assim como para eles é bonito uma mulher na luta contra o machismo e opressões de gênero, desde que esta mulher não seja a “sua”, desde que não dispute espaço com ele, desde que não questione as suas vontades, opiniões e certezas e desde que mil caiam ao seu lado, dez mil à sua direita e ele não seja nem de longe atingido. Salvo exceções? O fato é que, experiências como estas, vivenciadas por mulheres do FCZL e compartilhadas frequentemente com outras companheiras que fazem parte de movimentos ou coletivos mistos, têm demonstrado e tornado cada vez mais explícito que mudanças estruturais dependem antes de uma revolução interna das relações sociais e talvez seja este o único caminho para que transformações maiores aconteçam. Só a autocrítica é capaz de evitar a autodestruição. Portanto, é tão importante quanto óbvio salientar que as mulheres, todas elas, estão tão aptas a varrer o chão quanto a contribuir com a organização teórico-política-metodológica-estratégica dentro dos movimentos e, consequentemente, para que haja coerência, legitimidade e parceria efetiva nas lutas e mudanças sociais reais, homens devem também estar aptos a partilhar todas as tarefas. Por fim, não há nenhuma novidade nas linhas que aqui escrevo. Se, enquanto movimento, somos capazes de enxergar, compreender e questionar processos históricos que dividem a sociedade entre opressores e oprimidos e nossa luta sempre foi defender o óbvio, também é óbvio e urgente romper com a lógica patriarcal que deambula neste e em outros movimentos, a começar fazendo a revolução da porta pra

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dentro. Portanto, aos companheiros de luta fica uma breve reflexão carregada de muitas vozes... Se a sua militância se concentra apenas na centralidade da classe social, não considera em pé de relevância os debates sobre gênero e étnico raciais e não inclui nas pautas de luta cotidiana a sua mãe, sua filha, sua companheira, sua irmã, as mulheres com quem você trabalha, milita ou se relaciona de alguma forma, sinto em dizer, você não é um revolucionário. Volte três casas...

referências bibliográficas DAVIS, Ângela. Conferência Atravessando o tempo e construindo o futuro na luta contra o racismo. 2017. Disponível em <http://institutoodara.org.br/wpcontent/uploads/2019/02/ebook_julho_das_pretas.pdf> Acesso 12 mar.2019. Fórum de Cultura da Zona Leste. Manifesto Periférico. 2013. Disponível em: http://forumdeculturadazonaleste.blogspot.com/p/manifesto-periferico.html Acesso: 12/03/2019.

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Mestra Soraia Aparecida (Lelê de Oyá); Mestre Moreno (Centro Cultural Nagô Capoeira Angola) e Jamesson Florentino (Maracatu Nação Baque Forte/PE) Formação FCZL: Culturas Tradicionais: resistência e cultura. Okupação Cultural Coragem. 2018.

Regina Nogueira (Kota Mulanji) e Alexandre Roberto - Cultura, economia e política. Alternativas possíveis - Seminário “Nóis por Nóis!” Okupação Cultural Mateus Santos. 2018.

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TONOMAPA - levante cultural leste

Luciano carvalho Membro fundador do coletivo Dolores. Militante do Movimento Cultural das Periferias e participante da construção do Fórum de Cultura da Zona Leste. Mestrando no programa Territorial da América latina e Caribe - Unesp e ENFF. Diretor da Saga do Menino Diamante - Uma Ópera Periférica (prêmio Shell 2011); Marruá (2012); P.U.T.O. (2013); Perestropika (cuba - 2016); Rolezinho (2017).

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Numa prosa rápida com a Elaine Mineiro, a respeito de minha contribuição com um texto sobre a construção do nosso Fórum de Cultura da Zona Leste, lembrei que os esforços coletivos em torno da organização da cultura na região datavam de outras épocas. Dentre as experiências temos uma que é especialmente importante, eu me refiro ao TONOMAPA – Levante Cultural Leste. O TONOMAPA teve início em 2003 e seguiu organizado até meados de 2006. Era uma tentativa de reunião e organização de coletivos e artistas independentes da zona leste, historicamente invisibilizados. Fui vasculhar na memória e-mails antigos. Minha memória não é lá muito boa, mas me recordo que a primeira reunião do TONOMAPA aconteceu no galpão do CdC Vento Leste, sede do Coletivo Dolores e, àquela época, sede da Trupe de circo teatro do Balaio, encabeçado por Ângela e Leandro. Neste primeiro encontro não tínhamos um nome para a organização de trabalhadores artistas da zona leste. Estavam: Renato Gama, da banda Nhocuné Soul, gente do Teatro do Motim, Paulo Rafael – guerreiro histórico do audiovisual e outras conexões artísticas –, Zulu de Arrebatá, o pessoal do Dolores e aqui já me falha a memória e não consigo mais trazer de volta aquele cenário e o restante das pessoas presentes. Sei que uma das primeiras providências daquele movimento foi tornar os encontros itinerantes, mesmo procedimento adotado pelo Fórum de Cultura da Zona Leste anos mais tarde. Passamos a fazer uma caravana por diversas sedes e espaços culturais autogestionados e espaços públicos com presença comunitária. Tivemos a alegria de ir até a nova sede do Pombas Urbanas, o galpão Arte em Construção era praticamente ruínas e sonhos. Lino Rojas e os Pombas nos receberam com aquela força que emanavam. Num canto do galpão colocamos as cadeiras em círculo, falaram dos planos, que

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efetivamente se realizaram e que Lino não pôde ver. Aos que não conhecem Lino Rojas, vale saber que era um artista e educador peruano que orientou jovens de São Miguel nos caminhos do teatro, propiciando o surgimento do Pombas Urbanas. Lino Rojas foi assassinado e seu legado ainda nos brinda com a continuidade de um dos coletivos mais significativos da arte periférica brasileira. No CEU Aricanduva estivemos com o pessoal do Saracura Demótica, um grupo de artistas incríveis do Jardim Marília e região que se encontravam pra fazer um sarau democrático e antropofágico. Na Penha, as reuniões ocorreram no Centro Cultural. Júlio e Patrícia, do Movimento Cultural da Penha, direcionaram nossos encontros pra lá por julgar importante a presença do TONOMAPA em espaços de disputa entre artistas e poder público. Quem diria que, anos depois, o Júlio coordenaria o CCP! É interessante pensar nestas conquistas que vão e vem. Um bom exemplo é o do parque Raul Seixas, que foi coordenado pelo Marcelo, do Fórum e ex-componente do ALMA (aliança libertária meio ambiente). Numa das atas, o pessoal do ALMA, Cohab II, à época representados pela Thábata, reivindicava o melhor uso do parque Raul Seixas e buscava uma intervenção direta no lugar. Quase quinze anos depois, o ALMA teria um de seus ex-integrantes a frente do Parque. Foram vários os espaços de peregrinação do TONOMAPA, chegamos a nos reunir na sede do galpão Caeté, um teatro feito pelo Adriano de São Mateus. Quando digo feito por ele não há exagero, o camarada ergueu sobre a casa de seus pais um teatro no meio da quebrada. Seu pai, nordestino e pedreiro, encampou junto com o filho o sonho de fazer teatro. Nossa turma dá um jeito pra tudo, se não tem vai lá e faz. O grupo galpão Caeté tinha uma pesquisa teatral investigativa de comédia del’arte com linguagens populares das nossas manifestações de rua. Um trabalho excelente! Se não me engano, o Adriano também se tornou coordenador da Casa de Cultura de São Mateus. Em Guaianases, nos encontramos na sede do Espaço Cultural Honório Arce. Uma iniciativa da juventude de Guaianases, em parceria com o mandato do vereador Beto Custódio. O Engenho Teatral também recebeu reuniões do TONOMAPA. Nosso anfitrião era o velho Luís Carlos Moreira, militante incansável das artes, que escrevera o Fomento ao Teatro e mais tarde foi decisivo para a redação da nossa Lei de Fomento à Cultura das Periferias. Aliás, a pauta de construir uma lei específica para as periferias era uma das principais reivindicações do TONOMAPA. Surpreendi-me ao reler algumas atas. Havia me esquecido que já tínhamos tanta assertividade sobre o tema. Abaixo reproduzo trechos de atas do TONOMAPA:

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Discussão sobre o que seria, a quem se aplicaria a tal Lei ou o Edital? Houve um debate inicial sobre a proposta da construção dessa lei ou edital que viesse a fomentar e subsidiar a produção e a circulação de cultura nas regiões distantes do centro. Surgiram várias dúvidas sobre o texto desta “futura lei”, desde quem poderia ser considerado artista de trabalho continuado e história reconhecida até o fato do texto da lei poder parecer (mesmo não sendo a intenção) bairrista e preconceituosa (Reunião do dia 22 de setembro de 2003).

Luciano, Dolores Boca Aberta: propõe para a próxima reunião que a pauta trate da criação de um grupo de trabalho para a elaboração de uma lei de fomento à cultura que atenda grupos que não se encaixam no perfil do VAI e da Lei de Fomento ao Teatro. Também propõe que o Levante pense a respeito do conceito de Guerrilha Poética (Reunião de 30 de novembro de 2005).

As reuniões do TONOMAPA seguiram com o tema da lei ao ponto de iniciar grupos de trabalho para esboço da escrita. Não avançou muito além disso. Este exercício de breve pesquisa e memória traz, além de saudades, a dimensão das dificuldades que enfrentamos pela exclusão que o sistema capitalista nos impõe. Não deixa de ser triste saber que o Galpão Caeté não se tornou uma referência cultural na cidade, ou que o grupo ALMA tenha sido despejado de sua sede na Cohab, depois de tantas benfeitorias realizadas no espaço e inúmeras ações relevantes. O CdC Vento Leste continua clandestino e sofrendo ameaças de despejo. Não conquistamos a posse de nossos territórios e a precariedade continua vigente. Os coordenadores de cultura ligados aos movimentos foram afastados. Sabemos que a história não para e muita luta e resistência ainda será exigida de nossa parte. O TONOMAPA foi uma etapa importante de nossa caminhada na busca da auto-organização. Em certa medida, o TONOMAPA se realiza no Fórum de Cultura da Zona Leste e no MCP (Movimento Cultural das Periferias). A lei foi conquistada. Não no período almejado, mas pouco mais de uma década depois. Nosso legado é composto por organizações de cultura que antecederam nossa atuação militante.

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Parece óbvio, mas nunca é demais lembrar que as atuais agitações culturais da região leste têm suas conexões com os movimentos de outrora. Destaco o MPA (Movimento Popular e Artes de São Miguel) e o Vento Leste, ambos de finais da década de 70. Não à toa que Miguel Perrela (Vento Leste), Zulu de Arrebatá e Sasha Arcanjo (MPA) estiveram presentes em ao menos uma reunião do TONOMAPA. Estes movimentos culturais promoveram, ainda durante a ditadura militar, ações culturais onde o Estado não chegava. O pessoal do Vento Leste chegou a exibir “O Homem que Virou Suco”, de João Batista Andrade, no seu cineclube de porão e trouxeram o show Clara Crocodilo, do Arrigo Barnabé, para a rua Chic-Chic, no Jardim Triana. Ambos com forte contestação do sistema vigente. O MPA ocupou a capela de São Miguel por quase um ano e promovia ações culturais e artísticas ali. Realizaram uma agitação que colocava a periferia e suas necessidades culturais e sociais no mínimo num estágio novo de atenção por parte do poder público e da sociedade da época. São feitos surpreendentes que contestam demandas muito parecidas com as que empreendemos hoje. A trajetória das lutas populares tem suas conexões e acúmulos. Somos parte de uma recente percepção e consequente organização em torno da cultura como ação política direta. TONOMAPA, MPA e Vento Leste, além de outras tantas experiências coletivas de arte e cultura das margens da cidade, precisam ser conectadas para que possamos nos ver melhor e conhecer o legado que nos compõe. Já que a minha memória não é lá estas coisas, é bom fazer uso de documentos. Encontrei a lista de contatos da primeira reunião do TONOMAPA. A lista foi enviada por e-mail pela Erika Viana (Dolores). Além dela estavam presentes: Lígia (2ª Trupe de Choque), Nica Maria (Dolores), Drica Santana (Cia Colcha de retalhos), Osvaldo Costa Jr. (Cia Estável), Thabata Ottoni (ALMA), Thiago (ALMA), Gira Oliveira (Lúdicos), Kuka Batista (Axioniudos), Moreira (Engenho), Thais Trulio (Lúdicos), Quinho Gonça (Dolores), Yane (Da Vinci), Teatro do Motim, Ezer Valin, Tita (Espaço Honório Arce), Adriano Mauriz (Pombas Urbanas), Evandro Cavalcante (Grupo Quimera), Gregory Viana (ALMA), Adriano (Galpão Caete), Paulo Rafael, Nhocuné Soul (RENATO), Zulu de Arrebatá, Sacha Arcanjo, Arma da Crítica (Silvana Moniz), Caca Lopes, Luciano (Dolores).

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José Soró e Ellen Rio Branco – Formação FCZL: Autogestão de Espaços Culturais. Okupação Cultural Coragem. 2018.

Miriam Alves e Salloma Salomão - Racismo nas Artes. 1ª Semana de Formação Política do FCZL. Okupação Cultural Coragem 2017.

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Nossa Teoria éa Prática

JOSÉ SORÓ Coordenador na Comunidade Cultural Quilombaque. Educador e Consultor em Gestão de Conhecimentos e Desenvolvimento Humano; Designer de Ambientes Pedagógicos, Supervisão e Análise de Projetos, Planejamento Estratégico, Gestão e Desenvolvimento Institucional.

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A Quilombaque já estava na atividade desde 2005, muitos encontros, atividades, festas por dentro das quebradas já rolavam, a circulação de espetáculos, artistas e agentes pela cidade permitia um modo sui generis de se comunicar, de debater, de compartilhar, de ser redes. E com isso brotavam Saraus, Jongo, Maracatu, Coco, Samba, Capoeira, a juventude e a cultura se enfiando e revitalizando várias e diferentes lutas nas periferias. Então dá pra imaginar a efervescência que as quebradas viviam por volta de 2012. A Rede Livre Leste marcava o tom da luta, ou do que chamamos hoje de uma nova estética política, com seus cortejos e intervenções inusitadas, sarcásticas, diretas, agudas, um jeito bem Daniel de ser, alinhavando uma narrativa política ao que que vínhamos praticando como luta pela arte e cultura nas periferias. Em 2012, em Perus, somos surpreendidos pela publicação de um projeto de Parque Linear para o Ribeirão Perus. Tinha virado moda construir parques lineares pela cidade assegurando proteção às várzeas e margens de rios. Nós não somos contra, pelo contrário. Decorre que o projeto era uma afronta tanto pelas inadequações quanto pela intenção de desapropriar todos os imóveis da rua onde se encontra a sede da Quilombaque e transformá-la numa praça poliesportiva. Nós simplesmente seríamos varridos do mapa. Do estupor veio a revolta – era absolutamente incoerente e imoral um projeto de proteção ambiental destruir o único lugar no bairro que promovia intensivamente ações, atividades culturais e ambientais, posto que o próprio poder público desenvolvia zero ações e atividades. Batemos tambor, botamos a boca no trombone e pelas quebradas afora artistas, grupos, coletivos começaram a se manifestar solidários a nossa situação. A disposição para as tretas se acendeu, co-

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meçamos a conversar e organizar a resistência e o enfrentamento. Dezenas e dezenas de parceiros, companheiras e companheiros se propuseram a solidariamente realizar apresentações e muitas outras formas de manifestar seu apoio. Assim, em dezembro , realizamos um cortejo pelo bairro, puxado pela Rede Livre Leste com o espetáculo Nossa Teoria é a Prática, declaramos ocupação e lançamos o movimento FICA QUILOMBAQUE. Daquele jeito, no meio da quebrada, com chuva e energia no gato, teve de tudo. Ciranda, maracatu, teatro, circo, samba, poesias, brincadeiras. Se quiséssemos resistir e enfrentar precisávamos ter força e para isso tínhamos que ocupar todas as ruas, praças, serviços no bairro e na região. Por muitos meses e dezenas de atividades em lugares, grupos e coletivos diferentes se seguiram. Mas esse dia, com um movimento de disposição forjou tudo que nós somos e o que fazemos na cidade, solidariedade ativa, generosidade, firmeza, disposição, danças, batuques, coragem, chuva, dificuldades, criatividade parece que se derreteram, misturaram-se e forjaram uma única peça, uma lança. Conto essa história e longa introdução para ilustrar o momento criador e as fibras do qual são feitas e fazem nascer iniciativas impressionantes e potentes como o Fórum de Cultura da Zona Leste em 2013. Acontecimentos dessa magnitude, mesmo cada um indo para o seu lado, não importa a distância, sempre seremos um e cada um é portador daquilo que forjamos naquele momento. Tanto que por aqui o movimento se ampliou e se amplificou, virou a Universidade Livre e Colaborativa que produziu um Território de Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP Noroeste) instrumental de planejamento urbano, aprovado no Plano Diretor em 2014, baseado na arte, na cultura, meio ambiente e educação, no desenvolvimento do ser humano e não no simples mas letal, valor da terra, também conhecido como especulação imobiliária. Para materializar o TICP criamos e estamos desenvolvendo o Museu Territorial de Interesse da Cultura e da Paisagem TEKOA JOPO’Í e as Trilhas de Aprendizagem que tramam e trançam um território educativo, promovendo e impulsionando uma economia edificante, não degradante, inclusiva e protetiva. No âmbito da cidade, esse outro jeito possível de a cidade ser, dinamizados e liderados pelo FCZL construíram duas conferências e um Plano Municipal de Cultura, diversos programas como o VAI II, Jovem Monitor, Agente de Cultura como também a capacidade de elaborar e fazer aprovar uma lei que inverte radicalmente a lógica orçamentário, perversa que concentra mais de 70% dos Recursos no Centro. Na Lei de Fomento à Cultura na Periferia, as

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periferias são o centro, ficando com 70% , 20 para as áreas médias e 7 para as periferias no centro da cidade. Lei e Programa que hoje torna possível este livro, no qual depositamos esta história. E com esse processo conquistamos identidade e pertencimento político consolidando o Movimento Cultural das Periferias. A arte, a cultura, a juventude e as próprias periferias agora são sujeito político. E a despeito dos tempos sombrios que vivemos, seguiremos avançando, construindo uma outra cidade e um outro pais. Pra nós é uma alegria e muita honra fazer parte desta história, juntos e misturados, na base do nós por nós, com o Fórum de Cultura da Zona Leste. VIVA PERIFERIA VIVA Abertura da 1ª Mostra Cultural das Periferias #pelaleidefomentoàsperiferias. Favela da Paz. 2013.

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Nóis por Nóis – Rede Popular de Cultura de M’Boi Campo Limpo Kátia Alves é moradora da Zona Sul, produtora cultural e professora de educação infantil da Rede Municipal de Educação de São Paulo. Integrante fundadora da Brava Companhia de Teatro, grupo que fez parte do Coletivo Gestor da ocupação Cultural Sacolão das Artes de 2007 a 2017 no Parque Santo Antônio. Colaboradora e agitadora da Rede Popular de Cultura M’Boi Campo Limpo e do Movimento Cultural das Periferias. Fernando Ferrari Educador popular, poeta, pai, ativista político. Compõe o Sarau a Voz do Povo, Rede Popular de Cultura M’Boi e Campo Limpo, movimento cultural das periferias, fórum em defesa da vida, rede de proteção e resistência ao genocídio e é co deputado estadual pela Bancada Ativista. Luan Luando É ator, palhaço, poeta, produtor Cultural e lutador das causas sóciopoliticas e diaspóricas das periférias da Zona Sul de São Paulo. Integrante do Sarau A voz do Povo e do Sarau do Binho.

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“... Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou. Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou...” Fragmento da Música “Um homem na estrada”, dos Racionais MC’s – Álbum Raio X do Brasil - 1993.

A realidade das quebradas da Zona Sul não mudou muito desde a composição desta música dos Racionais, na década de 90. Infelizmente, ainda temos esgotos a céu aberto e barracos de madeirite nas beiras dos córregos. Podemos dizer que saímos do ranking de região mais violenta do mundo1, mas a estatística de jovens pretos e pobres assassinados, muitas vezes pela polícia com apoio da “mão” do estado, que detém o monopólio da violência, ainda é uma das maiores do mundo. A periferia continua esquecida pelas políticas públicas. Muitos atores sociais se levantaram e se levantam contra este estado nefasto e podemos dizer que, para além da violência, a zona sul é uma região que acumula lutas e resistências históricas2. E tem uma efervescente produção cultural. Mesmo no contexto de extrema desigualdade social e precarização, os coletivos culturais realizam seus trabalhos, utilizando a arte, em suas diferentes linguagens, como ferramenta de denúncia, expondo os desmandos deste Estado, ainda, escravocrata e opressor. 1

Em 1996, a Organização das Nações Unidas considerou o Jardim Ângela a região mais violenta do mundo. Naquela época, o distrito tinha índices de homicídios superiores aos de Cali, na Colômbia, que vivenciava um dos piores períodos da guerra do narcotráfico. Região de Santo Dias da Silva, morto em 30|10|1979 pela Polícia Militar, quando comandava um piquete de greve. Uma das regiões que deu origem ao Movimento Contra a Carestia (MCC), liderado por mulheres das Associações de bairros na década de 70.

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No sentido do termo usado por Tiarajú Pablo D’Andrea em sua tese de doutorado.

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Buscando o fortalecimento da luta por melhores condições e acesso aos bens culturais e, com acúmulo de várias frentes de resistência, em 2013 surge a Rede Popular de Cultura M’Boi Campo Limpo. Neste mesmo ano, nos unimos ao Fórum de Cultura da Zona Leste e com outros coletivos para potencializar as articulações por políticas públicas para as periferias da cidade de São Paulo. Percebemos que as mazelas das “quebradas” são praticamente as mesmas, dentre elas a falta de investimento e centralização dos recursos públicos, e unir forças poderia nos garantir êxito na busca pela descentralização do orçamento público na área cultural da cidade, possibilitando que maiores valores chegassem até as bordas, tornando os trabalhos dos coletivos culturais menos precarizados. Decidimos que não íamos esperar que as políticas públicas chegassem prontas até nós. Queríamos propor leis que nos contemplassem nas diversas especificidades dos territórios e seus coletivos. Participar do Fórum da ZL corroborou para alinhar várias frentes de luta da cultura. Potencializando nossa força e garantindo nosso lugar de fala enquanto sujeitos periféricos junto ao poder público, pautando e dando a linha das nossas realidades e demandas. A Rede Popular de Cultura M’Boi Campo Limpo realizou mais de 60 encontros, percorrendo 42 espaços, entre sedes de coletivos culturais, saraus, associações de bairros, instituições culturais e educacionais, buscando agregar vários coletivos neste movimento de discussões sobre políticas públicas para as periferias da cidade. Talvez, essa articulação em rede com diferentes coletivos, das regiões periféricas de São Paulo, tenha sido uma das experiências mais exitosas nos últimos anos na área da cultura, pois considerou a diversidade de produções e dimensão territorial da cultura para elaborar a LEI nº 16.496|16, que deu origem ao Programa de Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo. Precisamos nos manter mobilizados e articulados para que os direitos conquistados, como o Programa de Fomento à Cultura da Periferia, sejam garantidos. Vivemos em constante luta para nos mantermos vivos. E sabemos que o caminho é nóis por nóis!

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Trabalhadores da construção do Itaquerão assistem ao cortejo de Abertura da 1ª Mostra Cultural das Periferias #pelaleidefomentoàsperiferias. 2013.

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Elaine Mineiro, Luciano Carvalho e Tiaraju Pablo D’Andrea - 1ª Formação FCZL: A formação dos Sujeitos Periféricos na Periferia de SP. Centro Cultural da Penha. 2013.

Uma das primeiras reuniões do FCZL em Cidade Tiradentes em que comparecem representantes da Rede M’boi Mirim e Campo Limpo e coletivos de Osasco. Início de uma articulação cultural periférica na cidade. 2013.

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Movimentos culturais e representantes do poder público acompanham a votação na Câmara dos Vereadores que culminou na aprovação do VAI II. 2013.

FCZL faz pressão em Audiência Pública pela Aprovação da Lei de Fomento à Cultura das Periferias. 2013.

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A periferia pelos seus manifestos1

Tiaraju Pablo D’Andrea É músico, professor da Unifesp e pesquisador do Centro de Estudos Periféricos. É nascido, crescido e morador da zona leste. Formado em Ciências Sociais pela USP no ano de 2005, defendeu o doutorado em 2013, com a tese “A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo”. Possui dois CDs gravados: “Capacetes Coloridos” (2007) e “Latinoamerisamba” (2015). 1

Os três manifestos analisados neste texto encontram-se publicados na íntegra ao final deste livro.

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A década de 1990 foi marcada por uma série de medidas neoliberais que penalizaram a classe trabalhadora brasileira. Nas periferias paulistanas, o cenário era desolador. O aumento da pobreza e da violência transformava esses territórios em ambientes de guerra. Naquele contexto, o rap emergiu como uma tentativa de explicação do mundo, além de afirmar a pertença a esses territórios. Uma consciência periférica surgia. Em paralelo ao rap, e sendo influenciadas por seu arcabouço discursivo, uma série de iniciativas culturais começaram a surgir nas periferias. O intuito era pacificar a quebrada, promover o encontro e dar vazão às subjetividades periféricas por meio da arte e da cultura. Desse modo, saraus, cineclubes, grupos de teatro, comunidades do samba, posses de hip-hop, dentre outras expressões, começam a crescer em número e potência. Os três manifestos que serão discutidos na sequência deste texto fazem parte dessa história. Eles expressam um momento onde o grau de diálogo entre si e de organização desses coletivos já estava maior, representando historicamente o momento em que as ações em grupo em cada uma das quebradas começavam a se transformar em movimento. Nota-se uma progressão dialética entre os três manifestos.Vamos a eles. Manifesto Policêntrico, escrito pela Rede Livre Leste, em 2010. Nota-se ser um manifesto de um movimento ainda em formação. Seus protagonistas foram principalmente grupos de teatro juvenis, que não contemplavam a totalidade das manifestações culturais. No entanto, já se prenuncia que a união seria a questão chave para a própria sobrevivência desses coletivos. Esse manifesto tinha uma questão principal: a relação com o poder público. Segundo o manifesto, os financiamentos públicos que começaram a existir nos anos 2000 foram um avanço, mas não con-

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templavam as necessidades dos coletivos. Também se reivindicava uma maior participação na formulação das políticas públicas e dos editais e mais recursos financeiros. Outros pontos do manifesto que cabem ser ressaltados são a luta por espaços físicos para serem usados como sede dos coletivos e a necessidade de reconhecimento da capacidade dos jovens de fazerem arte de qualidade. Nesse manifesto, escrito por jovens da zona leste de São Paulo, ainda não há uma crítica explícita a má distribuição de recursos na cidade como um todo. Duas frases colocadas no final do manifesto chamam a atenção. A primeira delas aponta: “Sem representatividade e com sede em todos os lugares”.Bem antes das Jornadas de Junho,nota-se como já circulava nas periferias um pensamento autonomista que criticava a verticalidade do sistema representativo assim como da espacialidade da cidade. Ao ser um manifesto “policêntrico” e possuindo sede em “todos os lugares”, desmontava a ideia de que existem territórios melhores que outros. Este manifesto possui limitações, mas foi este embrião que forjou a escrita potente de manifestos posteriores. Manifesto Periférico, escrito pelo Fórum de Cultura da Zona Leste e encampado pelo Movimento Cultural das Periferias, em 2013. É um manifesto maduro. Neste manifesto já é possível de se observar uma reflexão mais avançada sobre o papel dos coletivos culturais. Escrito na zona leste, o manifesto foi assumido por um movimento que perpassava todas as periferias. A principal motivação desse manifesto foi a luta pela implementação da Lei de Fomento às Periferias. Para tanto, o manifesto define o que é periferia, para com isso delimitar quais seriam os territórios beneficiados com a lei. No entanto, o avanço desta definição é que ela foi feita por moradores da própria periferia, cuja vivência e sensibilidade davam vazão a uma epistemologia periférica, na qual a experiência em um determinado território é a principal questão para a formação de uma visão de mundo. Eram sujeitos periférico/as contando a própria história. Alguns pontos do manifesto valem a pena ser ressaltados. A afirmação de que a periferia tende a heterogeneidade cultural perpassada por uma certa homogeneidade econômica é perfeita e combate uma série de ideias pré-concebidas sobre a periferia. O manifesto é perfeito também quando afirma que a condição periférica é uma condição de desigualdade em relação a outros espaços da cidade. Há uma crítica à lógica mercantil que torna tudo homogêneo e que pressiona para a mercantilização dos bens culturais produzidos na periferia. Por outro lado, o Estado tampouco fica impune.

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Talvez o ponto mais polêmico esteja na afirmação da necessidade de assumir a condição periférica como “marca identitária”. Em meu ponto de vista, periferia não é marca. No que tange a polêmica questão das identidades, tenderia a afirmar que a identidade periférica não é mais uma a ser escolhida na prateleira dos produtos identitários, como aponta certa visão pós-moderna. Para assumir a identidade periférica, só sendo periférico. É mais uma questão de consciência da pertença a um certo lugar no mundo do que propriamente uma escolha. Polêmicas e questões inconclusas à parte, este manifesto deu um grande impulso à luta pela implementação da Lei de Fomento às Periferias, posteriormente aprovada. Na última frase do texto, observa-se um “É nóis por nóis!” Esta frase sintética aponta mais uma vez um distanciamento das cabeças pensantes da periferia com relação ao Estado ou com relação a qualquer grupo externo a ela que venha a tutelá-la, seja de esquerda ou de direita. Manifesto dos Coletivos Periféricos em apoio à Dilma Rousseff, escrito por Coletivos Periféricos de São Paulo, no ano de 2014 Se o primeiro manifesto foi restrito a zona leste e o segundo manifesto já alcançava as periferias de toda a cidade, este terceiro manifesto correu periferias de todo o Brasil. A história do seu nascimento é emblemática. Depois do primeiro turno das eleições de 2014, um grupo de participantes de movimentos culturais estava preocupado com a possível vitória do candidato do PSDB, Aécio Neves, nas eleições presidenciais. O grupo então teve uma ideia: fazer uma reunião convocando coletivos para discutir as eleições. A reunião, realizada em um ponto da zona leste de São Paulo, juntou mais de 100 pessoas de todas as quebradas. Depois de uma análise de conjuntura do Brasil e de uma discussão acalorada, decidiu-se pelo apoio a candidatura de Dilma Rousseff. Uma das ações tiradas foi a escrita de um manifesto. O manifesto apresenta um apoio crítico à candidatura do PT e uma pauta de reivindicações que ainda não havia sido atendida nos governos anteriores. Mesmo que houvesse pautas específicas para a área da cultura, o manifesto dá vazão a reivindicações de uma série de setores da sociedade brasileira, expressando visão de mundo e de totalidade. Tendo sido assinado por centenas de grupo de todo o Brasil, o manifesto foi um momento importante da virada daquela campanha. Não à toa o bairro de Itaquera foi escolhido para o comício da virada. Nele, alguns integrantes dos movimentos culturais puderam entregar nas mãos de Dilma o manifesto e dizer-lhe, ao pé da orelha, em tom de

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confidência:“Se afasta da direita e fica com o povão. O povão está com você”. Infelizmente o conselho dos coletivos culturais não foi ouvido. No fim do manifesto, vale ressaltar a frase: “um pé no voto, uma vida na luta”. Os coletivos das periferias sabem que as eleições são apenas um momento de uma vida que deve ser de entrega, em nome da plena emancipação do povo brasileiro. Os manifestos aqui apresentados expressam uma parte do compromisso desses sujeitos periféricos/as com essa emancipação.

Mural de reivindicação para o então secretário de Cultura, Juca Ferreira, no primeiro seminário de políticas públicas realizado pelo FCZL.

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Intervenção poética A Periferia nunca dormiu - Barquinhos distribuídos na plataforma do Metrô Itaquera durante o Debate Livre Leste sobre as manifestações de junho. 2013. 19º Encontrão ZL na Ocupação Cultural Mateus Santos. 2018.

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A Lei de Fomento à Cultura da Periferia: práticas de luta e obviedades de uma cidade em xeque

Sílvia Lopes Raimundo Sílvia Lopes Raimundo é geógrafa e docente do Instituto das Cidades (Unifesp - Campus Zona Leste). Como pesquisadora do Centro de Estudos Periféricos, trabalha com temas ligados à educação popular, movimentos culturais e formação do território urbano nas periferias de São Paulo.

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A escrita da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, pensada com o intuito de promover e valorizar as ações artísticas e os trabalhos desenvolvidos nos bairros periféricos, mostra a relação dos movimentos culturais com o território urbano. Uma espécie de dialética da esperança que se materializa no território nesses tempos sombrios. Na tentativa de criar políticas públicas mais abrangentes, com participação da sociedade civil exercendo seus direitos, reafirmou-se a possibilidade de romper com a tradição de promover a cultura dita erudita, aquela mesma, sempre concentrada nas áreas centrais da cidade, em detrimento da cultura de todos, produzida também nas periferias. A Lei de iniciativa popular, como foi destacada inúmeras vezes pela Queila Rodrigues, reconheceu pela primeira vez a importância da dimensão territorial como base para a distribuição dos recursos públicos para cultura, chamando atenção para a existência de uma cidade para além do centro expandido, território para a construção de outra geografia cultural. A escrita do texto a seguir baseou-se nas entrevistas, observações e anotações feitas nos cadernos de campo durante a pesquisa etnográfica e em um dossiê1, organizado pacientemente pelo Marcello. Neste texto valorizamos as entrevistas nas quais destacamos a construção do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL) e a escrita da Lei de Fomento à Cultura da Periferia. Por isso, o texto que segue também é de certa forma da Elaine Mineiro, Queila Rodrigues, Jesus dos Santos, José de Souza Queiroz (Soró), Aurélio Prates e Marcello Nascimento de Jesus – militantes da cultura e dos direitos humanos, com histórias que se entrelaçaram durante os processos de luta e resistência. 1

JESUS, Marcello Nascimento de (org.). Dossiê de Políticas Públicas Para a Periferia. Movimento Cultural das Periferias. São Paulo. Inédito. s/d

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Corpo coletivo: redes, tramas e revanche A ideia da lei nasceu relacionada ao surgimento da militância política dos movimentos culturais de Guaianases, São Mateus, Ermelino Matarazzo, Itaquera e São Miguel Paulista, bem como às articulações por políticas e equipamentos públicos, como foi o enfrentamento pelo uso das Casas de Cultura de Guaianases e Itaim Paulista e como ainda é a batalha pela criação da Casa de Cultura de Ermelino Matarazzo. Com períodos de certa inflexão, bastante comuns em movimentos sociais, uma significativa movimentação aconteceu a partir da organização de um Fórum, origem do Fórum de Cultura da Zona Leste, criado no início da gestão municipal de Fernando Haddad (2013 -2016). Desde então, a partir do desejo de reforçar as articulações entre os coletivos, muitos encontros – inicialmente Encontro Zona Leste, depois Encontrão do Fórum de Cultura da Zona Leste – aconteceram. Quando começaram esses diálogos entre os coletivos, ficou evidente que as necessidades e demandas mais frequentes coincidiam. Os participantes dos encontros logo perceberam que os problemas de São Miguel ocorriam também na Cidade Tiradentes, na Cidade Patriarca e em muitos outros lugares. Então, a partir dessa evidência, decidiram reunir mais pessoas desses bairros e de outros para conversar melhor sobre as necessidades, definir pautas e pensar estratégias de luta. Uma das primeiras iniciativas desse coletivo maior foi criar três grupos de trabalho para as demandas definidas como mais relevantes. Um grupo para pensar uma mostra, outro para criar atividades de formação e um terceiro para organizar a comunicação do Fórum. Mais tarde, com outros interesses e prioridades, Casas de Cultura, Políticas Públicas e Bloco de Ocupações. E depois para outros. Em princípio, esses grupos de trabalho conseguiram organizar a Mostra Cultural das Periferias – Pela Lei de Fomento às Periferias –, o Encontro de Formação sobre o “sujeito periférico”, conceito desenvolvido pelo Tiaraju Pablo D’Andrea, e o Seminário de Políticas Públicas para a Periferia, esse último crucial para definir a criação da Lei de Fomento e a participação na 3ª Conferência Municipal de Cultura como prioridades. Ao participar da Conferência, o Fórum conseguiu emplacar a necessidade de um novo fomento como uma das principais prioridades do Plano Municipal de Cultura. Nesse momento chegou o Fernando Ferrari, articulador na trama com as zonas Sul, Noroeste e Norte. E assim, logo depois com o Jota, Rita Carneiro, Cleiton Fofão, José Soró e Juninho Sendro, as peregrinações alcançaram outros lugares, alinhavando Zona Leste com o Sacolão das Artes, a Comunidade Cultural Quilombaque e o CICAS (Centro Independente de

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Cultura Alternativa e Social). Nesse caminhar, a medida que a trama da rede foi sendo trançada, a lei que por um tempo foi somente uma ideia, ganhava visibilidade por onde esse grupo ampliado passava. O início do processo de escrita foi bem difícil porque o objetivo era contemplar os desejos e os ideais do grupo que desejava criar uma lei para a cidade com as periferias. Um grupo de trabalho, criado em princípio pelo Fórum de Cultura da Zona Leste e, posteriormente, fortalecido por artistas e militantes de outras áreas da cidade, pesquisou diversos materiais e leis voltadas para cultura,discutiu e escreveu o texto da lei pelas periferias. Poucas pessoas foram nos primeiros encontros, em princípio Queila Rodrigues, Elaine Mineiro, Rita Carneiro, Luciano Carvalho, Marcello de Jesus Nascimento, Fernando Ferrari, Harika Maia e Leandro Hoehne, mas depois muitas outras também contribuíram em reuniões presenciais ou em conversas virtuais, muitas vezes feitas na madrugada. Durante esse processo, o grupo também contou com o auxílio do Luiz Carlos Moreira, diretor do Grupo Engenho Teatral e um dos articuladores e redatores da Lei de Fomento ao Teatro. Com participação relevante, o Moreira contribuiu não somente com orientações sobre a estrutura do texto característico de lei, como nos debates, que, ora desgastantes, foram fundamentais para fortalecer o grupo em relação aos seus princípios originais. Como o Moreira, muitas pessoas se aproximaram e se afastaram por divergências no campo das ideias, na experiência política ou simplesmente por pressões do cotidiano. Os movimentos têm um pouco disso, quando o processo é demorado, surgem outras questões e as pessoas vão se afastando. E foi em um desses períodos de baixa, em 2015, que começou a peregrinação para apresentar o texto consolidado, colher impressões e ouvir críticas. Nessas andanças pela cidade, a trama da rede foi se fortalecendo com a chegada e o apoio do Fórum do Hip Hop, Fórum de Artes Negras, Fórum do Reggae, Liga do Funk, Secundaristas e ocupantes da Funarte e, dessa forma, fazendo surgir um novo movimento. Agora, na defesa do óbvio, realidade tão bem revelada em mapas e já se identificando como Movimento Cultural das Periferias (em formação), o movimento procurou fazer, de forma concomitante, conversas com representantes da Secretaria Municipal de Cultura e com os vereadores na Câmara Municipal, duas articulações políticas fundamentais. Defendendo o óbvio: as trilhas da aprovação da Lei de Fomento à Cultura da Periferia As conversas com a Secretaria Municipal de Cultura tiveram alguns momentos conflituosos, marcados por uma dificuldade de separar o uni-

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verso da gestão (seu histórico) do Movimento Cultural. Talvez pela conjuntura e pelo fato de alguns técnicos e gestores terem papel importante na democratização da cultura, a partir dos programas criados pelas administrações do Partido dos Trabalhadores em São Paulo e, de certa forma, também na formação de alguns integrantes do movimento cultural, houve por parte da Secretaria uma expectativa de que o movimento abrandasse suas ações. Pelo outro lado, apesar da consciência do quanto o Núcleo Cidadania Cultural era importante para a formação de vários jovens da periferia,o movimento considerava crucial a escrita da nova lei. É importante considerar que o Brasil viveu, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, um crescimento da crise econômica e política, momento marcado por grandes protestos conhecidos como Jornadas de Julho, atos inicialmente chamados para protestar contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, encabeçada pelo Movimento Passe Livre, que mais tarde foram reivindicados pelo Movimento Brasil Livre. Esses últimos, patrocinados pelos setores mais conservadores, fomentaram ainda mais a crise política até o golpe, concretizado com o impeachment da presidenta. Uma conjuntura política que pode explicar em parte a dificuldade da gestão municipal em aceitar de pronto a proposta de criação da Lei de Fomento à periferia. Talvez por isso, tenha havido uma expectativa de que em função da crise nacional, de seus desdobramentos em São Paulo e da relação histórica entre os envolvidos, o movimento se retraísse e se conformasse com os programas existentes. Durante esse impasse, o Movimento precisou explicar que esses programas não atingiam a totalidade das demandas contempladas pela Lei proposta. Explicaram que os programas VAI 1 e VAI 2 eram importantes, possibilitavam a estruturação dos coletivos, a compra de equipamentos, materiais de consumo, alimento, transporte, contudo não permitiam a sobrevivência e a formação dos contemplados. Por outro lado, o novo fomento garantiria não somente a existência dos coletivos, mas o direito ao exercício de uma profissão dignamente. Por fim, apesar das pressões de trabalhar nessa conjuntura política, os representantes da secretaria também contribuíram para a revisão da última versão do texto da Lei, pouco alterando os conteúdos fundamentais. Já na Câmara, um ambiente de difícil movimentação e quase nenhum bem-estar, os trabalhos de articulação foram realizados por um núcleo de pessoas dotadas de paciência e muita capacidade de diálogo. Pelos corredores e gabinetes, o Marcello Nascimento de Jesus, Cleiton Ferreira, Aurélio Prates, Jesus dos Santos, Aloysio Letra e Fernando Ferrari, às vezes acompanhados pela Ingrid Felix, Aluizio Marino, Edson Paulo Souza, André Luiz dos Santos (o Pirata), José Soró,

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Pablo Paternostro e Luciano Carvalho, circularam de maneira insistente, buscando conversar com os vereadores, dar visibilidade as ideias centrais da Lei e acumular apoios. Ainda que os deslocamentos por São Paulo sejam muito difíceis, esse grupo menor recebeu apoio de muitos outros militantes em diversas atividades como as audiências públicas e as reuniões do Colégio de Líderes, das comissões de Finanças e Orçamento, de Educação e Cultura, da Juventude e da Justiça. Ao dialogar com os vereadores, o movimento buscou articulações que possibilitassem a condução do projeto, sua análise e aprovação no plenário – fato que aconteceu através do trabalho da Comissão de Educação e Cultura, responsável por realizar uma audiência pública e encaminhar o projeto à Câmara para a votação na qual foi rapidamente aprovada por unanimidade. Ao final, podemos concluir que durante esse percurso, o Movimento Cultural das Periferias realizou pelo menos duas grandes ações. Além de criar um movimento de resistência social propositiva, construiu e fortaleceu espaços de denúncia da realidade nas periferias, das condições de vida de seus moradores e deles próprios. Porque, como bem falou a Elaine Mineiro, “apesar do imediato também ser fundamental, temos consciência da realidade”. Dessa forma, a construção da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, o imediato daquele momento, trouxe, ao mesmo tempo, possibilidades de resistir produzindo uma cultura contra-hegemônica e condições para denunciar como é viver nas periferias, lugar onde o jovem negro morre antes de envelhecer. Uma revanche na cidade que recusa se enxergar na sua totalidade.

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Cartografia dos espaços culturais independentes na zona leste

Aluízio Marino Aluízio Marino é mestre e doutorando em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC. Especialista em Gestão de Projetos Culturais pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC). Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP). Compõe a equipe de pesquisadores do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade - FAU USP). Seus temas principais de pesquisa são o planejamento e a cartografia contrahegemônicos.

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A zona leste da cidade de São Paulo possui diversos espaços culturais independentes. O Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL) conseguiu mapear 59 desses espaços, categorizados da seguinte maneira: 29 Pontos de Cultura, 20 Bibliotecas Comunitárias e 10 Ocupações Culturais. Os Pontos de Cultura são instituições ou coletivos reconhecidos pelo programa Cultura Viva, uma política cultural criada em 2004 pelo Ministério da Cultura, cujo objetivo é estimular iniciativas culturais existentes. As bibliotecas comunitárias são espaços de estímulo à leitura e a produção literária. As Ocupações Culturais são equipamentos públicos, abandonados pelo Estado e reivindicados por coletivos culturais, que transformam um espaço ocioso em um centro cultural comunitário. O objetivo desse mapeamento é dar visibilidade a uma produção cultural potente, mas também precarizada. Sua potência está na ação cultural e seus impactos territoriais (MARINO, 2016), pois nesses locais e em seu entorno acontecem oficinas, ensaios, saraus, slams, e outros formatos de formação e difusão artística. Entretanto, todo esse potencial é desperdiçado ou mesmo ignorado pelo Estado - a lógica da política cultural e o modelo de financiamento à cultura não garantem as condições adequadas para o desenvolvimento desses espaços e suas comunidades. Nas duas últimas décadas surgiram editais públicos que contemplam a manutenção desses espaços (Pontos de Cultura, PROAC Território das Artes, VAI 2 e Fomento à Cultura das Periferias). Eles são importantes e um avanço em relação às práticas anteriores de indicação e favorecimento, ou seja, combatem a velha “política de balcão”. Entretanto, o modelo de financiamento via editais para espaços culturais independentes precisa ser substituído, pois acaba precarizando os trabalhadores da cultura envolvidos na gestão e na programação artística.

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A precarização desses trabalhadores ocorre porque: (i) os editais contemplam uma parcela pequena dos espaços culturais existentes, “é di tal não é de todos”; (ii) na maioria dos casos os recursos destinados a cada espaço são limitados, consequentemente a remuneração dos profissionais envolvidos é na realidade uma “ajuda de custo”, que dificilmente alcança o valor do salário mínimo; e (iii) os projetos aprovados nos editais possuem tempo limitado, de no máximo dois anos, sem garantia de continuidade e proporcionando insegurança. Essa situação faz com que os espaços culturais independentes não desenvolvam toda sua potência, com isso as comunidades perdem oportunidades de cultura, lazer e profissionalização. O resultado é ainda pior para os cidadãos que residem nos locais mais periféricos, distantes do centro, onde existem poucas opções de equipamentos culturais públicos. O próprio Plano Municipal de Cultura (PMC) - documento construído com ampla participação da sociedade civil que estabelece as diretrizes para a política cultural até 2025 - reconhece essa realidade e a importância dos espaços culturais independentes. A distribuição dos equipamentos culturais na cidade, contudo, ainda é bastante desigual. Além da ampliação da rede de equipamentos, é preciso articular os existentes entre si e com os coletivos e agentes culturais existentes no território (SMC, 2016. p. 30). A cartografia desenvolvida pelo FCZL colabora com o cumprimento da meta 7 do PMC:“Criação de novos arranjos institucionais para gestão colaborativa de equipamentos culturais e estímulo a espaços culturais independentes”. Especificamente a ação 7.2: “Mapear imóveis públicos ocupados e ociosos, regularizá-los e realizar parcerias para gestão colaborativa desses espaços com instituições de interesse público e coletivos culturais com comprovada relevância e histórico de atuação”. A necessidade de um outro modelo de financiamento para os espaços culturais independentes já está no horizonte do planejamento da política cultural do município. Entretanto, isso ainda não ocorreu na prática. Pelo contrário, verifica-se que o PMC é desconsiderado pela atual gestão, o que inclusive motivou uma investigação do Ministério Público1. Com isso, infelizmente permanece a situação de precariedade na maioria dos espaços mapeados. 1

Matéria no portal G1: “MP investiga possíveis irregularidades na implementação do Plano Municipal da Cultura em SP”. Disponível em: https://goo.gl/XnVQFJ

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Dar visibilidade a essa situação é fundamental para superá-la. Além disso, é fundamental que os trabalhadores da cultura e coletivos culturais debatam e construam propostas de política cultural que proporcionem as condições necessárias ao desenvolvimento de suas potências. As experiências do FCZL e do Movimento Cultural das Periferias caminham nesse sentido, já que configuraram espaços de discussão, troca de saberes e construção de alternativas – tais como a própria Lei de Fomento a Periferia, que embora tenha se transformado em um edital, reconheceu a dimensão territorial da cultura (ROLNIK, 2016). A territorialidade da política cultural e do financiamento à cultura é uma das chaves para a superação dos limites do modelo edital. Território e cultura são dimensões inseparáveis, são elas que dão o sentido de pertencer a um lugar (SANTOS, 1992), uma “quebrada”. Coletivos culturais e trabalhadores da cultura possuem vínculos com suas quebradas, esses vínculos são parte da potência presente na ação cultural. A relação que esses espaços estabelecem com o entorno podem, por exemplo, orientar a construção de políticas sociais que deem respostas efetivas a problemática da violência urbana. Considerações sobre o mapa: A cartografia foi elaborada pelo autor, utilizando o software livre de georreferenciamento QGis. O mapa base representa a zona leste em quatro regiões administrativas, definidas pelo PMC para orientar a territorialização da política cultural do município. Fonte de dados: Movimento Cultural das Periferias; Bloco de Ocupações; Diário Oficial do Município de São Paulo; Plano Municipal de Cultura; Centro de Estudos da Metrópole; GeoSampa.

Referências bibliográficas MARINO, Aluízio. Ação Cultural e Territórios Insurgentes: “Uma pesquisa-ação com coletivos culturais de São Paulo e Bogotá”. Dissertação de Mestrado. UFABC. Santo André, 2016. ROLNIK, Raquel. Lei de Fomento à Periferia de SP inova ao reconhecer a dimensão territorial da cultura. Publicado em 04/08/2016 em Blog da Raquel Rolnik. Disponível em: https://goo.gl/Dtv194 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. Edusp: São Paulo. 1992. Secretaria Municipal de Cultura. Plano Municipal de Cultura, 2016.

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Pra sempre Daniel Marques, Bruno Morelatto e Antônio Henrique Poeta!

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A cultura fora do senso comum

Aloysio Letra É um ser cultural, atua como articulador cultural em grupos periféricos, trabalha nas áreas de teatro, performance, audiovisual e na música como cantor e compositor. Escreve no blog Negrume e é membro da Associação dxs Profissionais do Audiovisual NEGRO (APAN). Mora em Guaianases, zona leste de São Paulo.

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Oprê! Me deram a honra de escrever sobre a importância das discussões culturais do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL). Para isso darei alguns passos atrás para rascunhar aqui um desenho do que seria cultura e que valores comumente se atribuem a ela. Cultura Cultura: do latim “colere”. Cultura significa cultivar. Em relações humanas teria então o sentido de cuidado com o meio (social ou cultural). Cultura é a relação do humano com o meio nas mais variadas formas: na relação com a natureza (agricultura), na comunicação com os outros seres (linguagens), nos costumes de um povo ou grupo, nas cosmovisões e, por último e não menos importante, na criação de interações com o meio para cuidar do futuro que é comum a todos. Resumindo muito, cultura é um “guarda-chuva” que cobre muitas áreas do pensamento e do comportamento coletivo, inclusive o pensamento crítico e político. Para o senso comum atual, muitas vezes cultura é vista como acúmulo, ou como quando se pergunta se “fulana ou ciclano tem cultura”: “foi ao teatro?”, “leu tal e tal livro?” e por aí vai. Dessa forma, muitas vezes o termo cultura se desprende do cotidiano e, de certa forma, no senso comum vira algo que “está fora”, que precisa ser alcançado, que uns têm e outros não. O Estado e os meios de comunicação têm papel fundamental nessa distorção do que vem a ser cultura. Estado e Cultura Foi o Estado que durante muitos e muitos anos apartou a população do direito de discutir e escolher quais caminhos deve trilhar em sociedade. Estamos falando dessa sociedade: a sociedade “brasileira”. Coloco “brasileira” entre aspas porque um território que não reco-

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nhece os direitos humanos essenciais de parte da população (povos originários, negros, mulheres e LGBTQI) não merece ser chamada de nação. Friso que para mim não existe Brasil. Nunca existiu. É fábula. Foi o Estado Brasileiro que, para justificar seus atos e “pelo progresso da nação”, inventou que povos originários (para eles indígenas) não tinham cultura, por isso mereciam ser subjugados. Foi o Estado brasileiro que comercializou e escravizou pessoas negras. Foi e é o Estado Brasileiro que não reconhece direitos individuais e coletivos de povos originários, negros, mulheres e população LGBTQI, fazendo que estejam aquém de suas potencialidades. Este Estado não por acaso, na Ditadura, apartava a população de linguagens culturais, que eram vistas como emancipadoras ou questionadoras do estado das coisas. Assim, a população “brasileira” quase nunca se via como detentora do poder de mudança cultural, logo não pôde mudar a política, que segue com poucas mudanças estruturais. Não era a população que decidia antes da democratização e, após ela, tivemos e temos uma democracia tímida na qual apenas de quatro em quatro anos se pode votar em alguém que quase sempre é membro da “elite” dessa sociedade (geralmente homens brancos), ou seja, esses eleitos geralmente ignoram as particularidades e necessidades de outros meios sociais em que não conviveram. E cultura, cultura também é convívio. Convívio e empatia. Há bibliografia vasta que pode confirmar as afirmações aqui descritas. De Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales e Joel Rufino dos Santos nos anos 80, passando por Sueli Carneiro e Rosane Borges nos anos 2000 até chegar a Djamilla Ribeiro, Joice Berth ou Silvio Almeida na recente coleção Feminismos Plurais. Apesar das provas estatísticas e das teses dos “excluídos da nação” estarem há anos registradas e editadas em diversos livros, o epistemicídio e a pouca abertura dos meios de comunicação mantém abafadas estas tantas vozes: as vozes da maioria minorizada. A periferia e o trânsito de idéias Por outro lado, desde sempre houve e haverá grupos organizados para alterar o estado das coisas, alterar o dito status quo, que é geralmente eurocêntrico e mais recentemente rendido a um fanatismo a valores e interesses estadunidenses. Neste sentido, movimentos sociais, organizações comunitárias, alguns grupos religiosos, grupos de mulheres ou comunidades tradicionais afro-brasileiras e “indígenas” sempre se debruçaram sobre como sobreviver numa sociedade que não foi fundada para reconhecer suas presenças, direitos e suas necessidades especí-

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ficas. Acredito que na atualidade, após a explosão dos saraus, slams e depois de um maior acesso da classe trabalhadora às Universidades Públicas, as periferias têm sido um dos catalizadores e organizadores de uma frente ampla por uma sociedade mais justa, igualitária, uma sociedade que busque equidade entre todas e todos membros de seu meio. Eu acredito que é justamente nesse tipo de atuação que os encontros e eventos organizados pelo Fórum de Cultura da Zona Leste está inserido. Por estarmos na era da internet, vez ou outra este tipo de iniciativa é visibilizada para outras regiões da cidade e o resultado é o trânsito de ideias de uma periferia a outra, o que faz com que uma experiência seja replicada de quando em quando em regiões diferentes. Eu pude nos últimos 5 anos ser testemunha ocular e um colaborador ativo em coletividades que têm garantido redes de proteção de direitos e que, a duras penas e com poucos recursos, fazem com que as pessoas tenham consciência do tipo de sociedade em que vivemos. As experiências das quais estive mais próximo foram a do FCZL e do Movimento Cultural das Periferias, este último, organização que congrega diversas coletividades das periferias. Durante o ano de 2017, o FCZL se debruçou sobre temas e temáticas importantes, garantindo visões de articuladoras e articuladores das mais variadas atuações. Esses encontros foram fruto de outras tantas articulações, feitas por coletivos de periferia nos últimos 4 anos. Cada um dos encontros deu conta da paridade de gênero e étnico-racial, de forma que a pluralidade (e não só a diversidade) enriquecesse os temas e as conversas, que tinham participação ativa da comunidade e facilitadores mulheres, negros, bichas, lésbicas, indígenas etc. Os temas perpassaram questões estruturais como a economia, a população negra no mercado de trabalho, racismo nas artes e na cultura, machismo, sexismo, patriarcado, genocidioS e cartografias da exclusão. Todo esse material é disponibilizado em vídeo na página do facebook, incluindo, além das falas de convidadas, as perguntas e comentários do público. O FCZL junto de centenas de coletivos e organizações de periferia vem fazendo um trabalho que estimula o convívio comunitário e discussões amplas, que provam que cultura é política e que a população de quebrada muitas vezes tem alternativas de pensamento além do senso comum e do que é veiculado na mídia tradicional. É importante que você, que lê esse livro periférico, visite outros bairros e amplie o leque de opções de diálogo e de organização: Pelo direito a cidade e por uma cidadania realmente participativa na cultura e na política! Saravá às mudanças!

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A invisibilidade dos bastidores e produção

Monica Gomes Formada em Administração de Empresas, tem experiência em gestão de projetos culturais e sociais. Inicia a atuação em projetos culturais com o coletivo Espaço Cultural Honório Arce em 2007. Participou da formação do Jongo dos Guaianás, do Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué e da Aldeia Quilombo Guaianás, nos quais atua até hoje. Atuou na formação do Movimento Cultural d@s Guaianás. A partir de 2013 se integra às atividades do Fórum de Cultura da Zona Leste.

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As atividades culturais dos coletivos, principalmente das periferias, depararam-se nas duas últimas décadas com a produção cultural via projetos. A produção cultural espontânea, feita nas quebradas, é diferente da produção feita a partir de projetos, a qual envolve projetar as ideias no papel, elaborando um plano de trabalho e orçamento. É visível o conflito que há entre o processo criativo e o fazer artístico com as questões burocráticas em que estão envolvidos os projetos, que requerem uma organização com planejamento e controle das ações propostas. Os coletivos se deparam com a produção administrativa, com a burocracia e com trabalho dos bastidores não vistos pela grande maioria, mas que são necessários para a execução do projeto e para a prestação de contas. O Programa VAI (Programa de Valorização a Iniciativas Culturais), por exemplo, é uma boa escola para os coletivos aprenderem a lidar de forma responsável com recurso público, assim, quando avançarem para outros projetos, como o de fomento, terão mais facilidade para relatar todo o processo de atividades e dos gastos e, acima de tudo, saber mensurar quanto tempo gastarão com estas tarefas. De modo geral, os recursos disponibilizados a esses projetos culturais não cobrem todas as demandas necessárias para a execução com qualidade, principalmente se comparados com recursos de empresas do ramo cultural. Um exemplo disso é a dificuldade em se contratar pessoas para prestação de serviços em eventos. Isso tem como efeito negativo também o fato de que pessoas de outros coletivos geralmente dão algum tipo de apoio voluntário, o que é injusto, pois são trabalhadores culturais que também precisam gerar renda para viver nesse mundo do capital. Diante desse contexto, o próprio coletivo fica responsável por toda a pré, durante e pós-produção.

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Além disso, em se tratando de dinheiro público, há a necessidade de acompanhamento sistemático da previsão orçamentária, que deve ser cumprida a fim de se evitar problemas com a prestação de contas e, consequentemente, com a devolução de parte dos recursos. Apesar de alguns avanços, essa questão ainda tem sido amadora em alguns projetos, pois é comum que as pessoas “fujam” do assunto de planilhas e reuniões orçamentárias, não dando a devida importância. Esse fator pode gerar dificuldades na execução do projeto, devido a, por exemplo, orçamentos mal elaborados. Ao escrever projetos é importante pensar em alguém que tenha facilidade e/ou formação para lidar com essas questões, ficando na responsabilidade administrativa e financeira, enquanto outras/os integrantes cuidam das demais demandas. Geralmente, na produção há atividades a que são dadas mais importância, como comunicação, divulgação, contratação de artistas, registro, enfim, são demandas que necessitam de atenção para deixar tudo encaminhado, para que a atividade aconteça sem muitos problemas e/ou imprevistos. Porém, a produção de eventos vai muito além da ação do dia, com atividades que muitas vezes se tornam despercebidas, mas que sem elas os eventos não acontecem ou, se acontecem, pode ser de maneira precarizada, como, por exemplo, a organização e limpeza do espaço, antes, durante e depois, fazer compras de materiais e alimentos etc. Ainda é comum ver mulheres nessas etapas, seja executando ou percebendo as necessidades para delegar tarefas aos demais, para que elas não sejam as únicas na execução, mas ainda assim precisam ficar lembrando e/ou cobrando para que tudo transcorra bem. Outro exemplo de participação maior das mulheres é na organização dos comes e bebes para convidados e/ou artistas e o público convidado. As pessoas do coletivo dificilmente conseguem acompanhar e aproveitar o evento. Talvez isso ainda seja reflexo de uma inexperiência de vivência em coletivo, de saber planejar e principalmente distribuir as tarefas, de modo que todos os envolvidos consigam ter uma visão e compreensão de todo o projeto e das atividades necessárias que incidem para que tudo seja executado como planejado. A ação final em si é importante, mas o conjunto da obra é ainda mais. E para tal, o comprometimento e engajamento coletivo são fundamentais. Entender que todas as etapas e tarefas são importantes é o primeiro passo. Conseguir mensurá-las em termos de tempo de dedicação é o desafio de qualquer coletivo para se distribuir as tarefas de modo que consiga se chegar ao objetivo almejado sem sobrecar-

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regar ninguém. Equalizar o tempo de dedicação versus a remuneração pode tornar as coisas mais fáceis e prazerosas para todos. Enfim, a burocracia dos projetos precisa ser enfrentada, tanto internamente com a apropriação de todo o processo envolvido, quanto externamente, travando embates com o poder público para se chegar a um entendimento de que o excesso de burocracia pode até inviabilizar a execução dos projetos trazendo frustração e desgaste entre os envolvidos. Por outro lado, em termos de organização interna e de como se organizar, seja via projeto ou não, é necessário maturidade, empatia e entendimento de quão rico é todo o processo de criação e consolidação de um coletivo e de suas ações para se chegar mais próximo da tão sonhada horizontalidade e a autogestão. Trilhar é preciso, trilhar é processo e só o processo nos trará maturidade, consciência e potência. Avante!

Vander Che É morador do bairro Ermelino Matarazzo, na zona leste da cidade de São Paulo. Historiador, artista visual, grafiteiro, agitador cultural fez parte de vários movimentos culturais da cidade e atualmente faz seus trabalhos no espaço chamado Garagem Ateliê. Sonhador e utópico Vander Che acredita no poder que a arte tem em transformar vidas e locais espaços coletivos e de troca de experiências das mais diversas. Arte é transformação.

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A IMPORTÂNCIA DO ESPAÇO DE BRINCAR NOS MOVIMENTOS DE MILITÂNCIA Patrícia Soares Mãe, Arte Educadora e Doula, atua de forma itinerante nas periferias da cidade com a Coletiva Brincaderia, promovendo atividades onde se tem como ideal a preservação do brincar, através dos jogos lúdicos, construção de brinquedos com materiais de reuso entre diversas atividades, para além do brincar, pontuando também diálogos sobre infância e maternidade.Atuou no Coletivo Multiplicando Doulas, atendendo mulheres e também como educadora nos cursos de formação colaborativo que o coletivo oferece.

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“A humildade exprime uma das raras certezas de que estou certo: ninguém é superior a ninguém.” Paulo Freire

Pensando a Infância como uma pauta interseccional para se discutir e construir dentro dos espaços de militância, antes de compartilhar minha experiência de criação do Espaço do Brincar nas atividades do Fórum de Cultura da Zona Leste, abordarei algumas das questões estruturais que rondam o ser Criança em uma sociedade que não valoriza a genialidade e sensibilidade da mesma. Pouco se fala das opressões cotidianas com a qual crianças e jovens lidam nessas fases da vida, porém temos pesquisas que abordam tais questões desde o início do século passado, mais precisamente em 1903, Patterson Du Bois traz o termo Adultismo. Em 1929, aparece na literatura psicológica francesa a descrição da influência dos adultos sobre as crianças e jovens. Esta definição foi substituída na década de 70 por artigo jornalístico, propondo que o Adultismo é o abuso de poder que os adultos têm sobre as crianças e jovens, popularmente usado para descrever qualquer descriminação contra crianças e jovens - é distinto do Idadismo que é simplesmente o preconceito em razão da idade, não especificamente contra a juventude. O Adultismo é supostamente causado pelo medo de crianças e jovens e é associado a uma visão de si mesmo com negociações sobre a rejeição e exclusão de subjetividade das mesmas, e isso sempre esteve presente na cultura ocidental. Podemos classificar Adultismo da seguinte forma: Adultismo Internalizado: Faz com que crianças e jovens se questionem sobre sua própria legitimidade e duvidem da sua capacidade, perpetuando a “cultura do silêncio”. Outros exemplos de

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Adultismo Internalizado incluem várias formas de violência impostas a crianças e jovens, tais como castigos corporais, abuso sexual, abuso verbal e a comunidade de incidentes, que incluem políticas de isolamento para ambientes onde crianças não são bem-vindas ou a perseguição das mesmas sem causa justa. Adultismo Cultural: Muito mais ambíguo, porém muito mais prevalecente, é a forma de discriminação e intolerância em relação a crianças e jovens. Qualquer restrição ou exploração de pessoas por causa de sua idade, como oposição a sua capacidade de compreensão e criação. Na maioria das vezes as pessoas falam e agem de forma diferente com as crianças, como se as mesmas não pudessem compreender. Adultismo Institucional: Pode ser aparente em qualquer instância de viés sistêmico, onde há formalmente limitações de exigências que são colocadas em pessoas simplesmente por sua idade. Políticas, leis, normas, estruturas organizacionais e procedimentos sistemáticos podem servir como mecanismos para alavancar o Adultismo em toda sociedade. Essas limitações são muitas vezes reforçadas por meio da força física, coerção e muitas vezes vistas como padrões duplos. Esse tratamento é cada vez mais visto como uma forma de gerontocracia1. A literatura tem identificado Adultismo dentro do contexto de desigualdade social e opressão das crianças, onde para as crianças são negados os direitos humanos e são desproporcionalmente vítimas de maus tratos e exploração. Com o objetivo de fortalecer o protagonismo infanto-juvenil e a participação, principalmente das Mães, o Espaço do Brincar nasce com uma proposta educativa e libertadora dentro dos princípios da Arte Educação, Ludicidade Consciente e do Livre Brincar. Quando paro para pensar nesses movimentos, entendo que todas as faixas etárias precisam ser contempladas, com atividades transformadoras e com caráter de formação, penso também que mães periféricas, muitas vezes ficam de fora desses encontros e de muitas outras atividades por conta da seguinte problemática: não existem espaços que de fato dialoguem com a infância, espaços onde a capacidade criadora desses seres sejam respeitadas e trabalhadas. E quem mais além das Mães pode pautar nossas necessidades nos Movimentos de Militância? Somos nós, com autenticidade, que podemos falar sobre as opressões diárias do ser mãe, a dificuldade de se ter um parto digno, de conseguir uma vaga na creche da rede pública, vol1

Forma de organização de poder onde quem lidera são os adultos e anciãos.

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tar ao mercado de trabalho, entre outras coisas que rondam o ser Mãe. Nesses espaços, pensar a infância não seria também uma forma de prepararmos um futuro menos dolorido que nosso passado e atual presente? Pensar na criança é pensar no adulto de amanhã, esse que irá contribuir no sistema de diversas formas, e quando elas crescem em um espaço libertador e acolhedor, de instrução e fazer artístico, estamos caminhando para uma sociedade de humanos mais conscientes e sensíveis. Coloquemos em ênfase o valor da criança como um construtor de novas realidades. *** Foi extremamente gratificante e também um grande passo dentro de minha luta inserir o Espaço do Brincar nas formações e encontros do Fórum De Cultura da Zona Leste. A começar pela estrutura, pessoas para auxiliar, verba para poder oferecer uma alimentação digna para as crianças e material para trabalhar. A liberdade de expressar esse espaço com a importância que ele tem, Mães participando e pautando suas necessidades, e a tranquilidade em deixar seus filhos em um espaço acolhedor e sério. As atividades foram elaboradas pensando em potencializar o protagonismo infanto-juvenil, a criatividade, o pertencimento e aproximação de ideias sustentáveis e de reaproveitamento de materiais de descarte, que podem e são transformados em possibilidades lúdicas adequadas (a oficina de instrumentos musicais como o chocalho é um exemplo). Atividades que estimulem os indivíduos nos mais diversos âmbitos (psicomotricidade, alfabetização, recreação, reflexão e sociabilidade). Contar as versões reais de nossa história de forma lúdica foi também uma das atividades importantes para a formação dos pequenos, produzir e modelar com massinha caseira, jogos e brincadeiras de rua, resgatando o brincar que hoje, na era digital, tem sido esquecido, foram atividades marcantes em nossos encontros, e os desenhos livres que foram ótimos para mim, enquanto adulta, compreender os sentimentos das crianças naqueles momentos de troca. Que possamos cada dia mais pensar e produzir para nossas crianças, que suas necessidades intelectuais sejam vistas e que sua genialidade seja reforçada e não sucumbida.

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zona leste tem coragem!

Michele Cavalieri É moradora do Conjunto José Bonifácio - Itaquera. Produtora e articuladora cultural da Okupação Cultural Coragem. Integra também o projeto Reggae na Rua. Desenvolve atividades culturais no bairro onde mora desde 2012.

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Nos anos de 2017 e 2018, a Okupação Cultural CORAGEM teve o prazer de receber as atividades do Fórum de Cultura da Zona Leste, fomentados pelo 1º edital da Lei de Fomento à Cultura das Periferias. Foram realizados diversos encontros que abordaram temas importantes e de grande relevância e que contribuíram para um melhor entendimento em torno de assuntos de cunho cultural, político e econômico. Estes encontros contaram com a presença de convidados que estão atuantes nessas cenas e que ajudaram a construir e desconstruir ideias, através de rodas de conversa, sempre lotadas pelo público, e que contavam com transmissões ao vivo para que mais pessoas pudessem ser alcançadas. Além desses encontros recheados de empoderamento e luta, as atividades do Fórum contou também com diversas intervenções culturais, música, cidadania, espaço infantil e muito mais, o que abrilhantou ainda mais estes eventos. Reforço que, para a Okupação Cultural Coragem, espaço importante que se localiza na Zona Leste de São Paulo, ter recebido um evento realizado pelo Fórum de Cultura da Zona Leste foi engrandecedor e marcante para a história da ocupação e do bairro.

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o fluxo da história

“A roda é o fluxo da historia, o movimento da maré” Ray Lima

Edson Paulo Souza é formado em Educação Artística pela Universidade Cruzeiro do Sul (2008), com Extensão em Teatro de Rua – UNESP (2010). Integrante e um dos fundadores do Grupo Buraco d`Oráculo, no qual atua desde 1998. Atuante em projetos desenvolvidos pelo grupo, destacando-se o Circular Cohab’s e a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista. Ministra oficinas de Teatro e desenvolve, junto ao Buraco d`Oráculo, pesquisa sobre formas de atuação para o teatro de rua.

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Estar em movimento contínuo é acompanhar o movimento da história, seus avanços e seus reversos. Buscar o nosso chão, encontrar aquilo que o operariado definia de “chão de fábrica”, local que se colocavam em produtividade, mas também que tinham o contato com os companheiros de trabalhos, com seus iguais, podendo dialogar e criar a possibilidade de organização. A ideia de coletividade sempre foi, e será, o melhor chão de fábrica para aqueles que se lançam a construir formas simbólicas de diálogo com o seu entorno. Principalmente se este entorno encontra-se afastado e apartado de bens culturais e de desenvolvimento de políticas públicas estruturantes. Quando os pertencentes a um coletivo reconhecem que, à medida que se afastam da definida “região central” de um grande centro urbano, e se identificam cada vez mais negros, pobres e desterritorializados, definem e criam sua identidade. Estar em movimento é vital à existência e para a construção de sua própria história. Para existir é necessário resistir, e nossa existência está ligada em nos reconhecermos como “seres periféricos”, mulheres e homens que não aceitam que a história seja a mesma escrita por aqueles que sempre estiveram presos em gabinetes, casa-grande e outros centros de poder e opressão. Muitas são as tentativas de organização, de imprimir as próprias páginas da história. Uma das mais significativas e atuais é, sem dúvida, o Fórum de Cultura da Zona Leste, que nasce impregnado de todos os anseios por luta e aglomera a coletividade periférica que nele reconhece o campo de luta, o chão de fábrica. Realizando até o momento diversas atividades, dentre elas Formações Políticas, Seminários e Mostras Culturais, além de inúmeras reuniões organizacionais, aglomerando atividades de inúmeros coletivos que se espalham pela imensa Zona Leste paulistana e encontram-se atuantes, revitalizando espaços públicos ociosos e também fazendo da suas ações de arte pública, aquela que transforma lugares e espaços em ambientes de reflexão acerca do fazer artístico, das relações sociais e políticas. O Fórum, com sua premissa de ser um local de soma de conhecimento, torna-se um local de encontro de ideias e ideais, socializando ações e trazendo à tona as contradições que nos cercam. Assim o Fórum de Cultura da Zona Leste segue escrevendo a sua história, que é nossa por pertencimento, pois enquanto integrante de um coletivo que se situa às bordas da cidade e da história oficial, reconhecemo-nos nas ações do Fórum, e juntos seguimos o fluxo... O fluxo da maré, que vai e vem, calma e violenta, mas sempre renovadora.

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Eis aqui um não relato, cego e apaixonado de quem viu diante dos seus olhos uma linda utopia Elaine Mineiro É mãe da Malu, fotógrafa, articuladora cultural, educadora, já integrou diversos coletivos periféricos como Movimento Cultural das Periferias, CPDOC Guaianás, Coletivo No Batente, Coletivo da Albertina e Jornal Voz da Leste, atualmente é integrante do Grupo Samba das Pretas, Comunidade do Jongo dos Guaianás e do Fórum de Cultura da Zona Leste.

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Entre cariris, tretas e estudos, nosso corpo e militância forjado também pelo território ousou gritar pelos cantos da cidade que estávamos ali para exigir,com luta, o que de direito era nosso. Em Ermelino Matarazzo, redes, coletivos e artistas independentes se reuniram no espaço de um dos grupos. Não muito longe em tempo e espaço, em Guaianases, outros artistas solicitaram o espaço público da Casa de Cultura para fazer uma reunião, portas do espaço público prometida, porta do espaço público fechada, sintomático o tratamento dado, era justamente a nossa pauta. A reunião rumou à casa do norte na mesma rua, a ideia de ambos os encontros era discutir como os diversos coletivos de arte e cultura da periferia da cidade poderiam se organizar em relação as propostas do novo governo para cultura, e também como continuar um legado existente de organização e luta pela produção, fruição e fomento à arte por ali produzida. Uma organização que desse conta de reverberar pela cidade e para o poder público os anseios comuns aos produtores de arte das periferias da cidade. Primeiro acordo, juntar as duas reuniões. Muitas mãos, diversas e às vezes divergentes na sua construção, uma rotina de escuta e colocação constante e muitas vezes educativa pra quem não foi educado a ser liderança, a quem ao contrário foi muitas vezes negado o direito a apreensão do que é se colocar no mundo. Eram muitos os anseios colocados, muitas as injustiças a reparar, muitas “lamentações”, um muro de lamentações, mas, um oceano de tradição na luta, uma ancestralidade de soluções criativas, de criações cuspidas, roubadas, apropriadas, reinventadas abrindo o caminho e riscando o chão. Reuniões e reuniões para se chegar a convergências sobre um único ponto de pauta, atas, manifestos, destaques se misturaram a poesias, a irreverência, misturaram-se a falta de

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paciência de quem é sempre o estudo e quase nunca protagonista, a raiva acumulada de que sempre ganha e nunca leva. “Belicosos” nos chamaram. O fato é que gritamos, gritamos a plenos pulmões defendendo o que era óbvio, gritamos e metemos o pé na porta. A produção periférica circula pelas bordas, encontra-se nos saraus, espalha-se pelas praças e visita os seus aos domingos, um coletivo periférico muitas vezes explode, pula o córrego, atravessa a ponte e vira dez, não é rachadura é broto germinando. A produção periférica tem mãe e pai, avô e avó. A produção periférica não faz caricatura de si mesma, ela olha pra si e fala de si, é preta, é militante, a produção periférica quebra a cabeça porque quer uma estética acessível, quebra a cabeça porque quer produzir musical com orçamento de almoço, quebra a cabeça porque não tem palco, quebra a cabeça porque quando tem palco não pode subir descalço, quebra cabeça para resistir todo dia, e resiste. Era fundamental mostrar aos quatros cantos essa produção, e mostramos, criamos a Mostra Cultural da Zona leste. Sem reinventar a roda, sem empreender em cima de quem sempre esteve ali produzindo, a ideia era simples: ajuntar as agendas, reunir o que já estava sendo feito e dispor dos espaços que coletivamente organizávamos pra essa produção circular. Uma semana já seria suficiente, uma semana de arte periférica... Não deu! Corrigidos novamente pela prática tivemos que estender a mostra por mais de um mês, tivemos que expandir nosso território pela cidade, extrapolar a cidade, a gente é conturbado assim mesmo, essas fronteiras políticas da geografia não nos seguram. A mostra cresceu e virou Mostra Cultural das Periferias e, durante suas três edições, circularam coletivos e artistas de todos os cantos, teve o RAP de Rincón Sapiência do Fundão da leste e teve o Coco de Senzala cheio de causos com Mestre Zé Negão do Camaragibe- PE, teve os “Sambas Escritos” e Fanzines, teve tanta diversidade que não cabe neste texto. Teve também a certeza que nossa estética e discurso, que nossas ações, embora potentes, precisavam de constante estudo, de muita pesquisa e reflexão. Coube então pensarmos de forma ampla nossa formação. Mas, quantos dos nossos estavam prontos naquele momento para organizar nossas ideias e práticas no papel? Quais dos nossos furaram o bloqueio dos muros da academia sem abandonar nosso navio? Muitos. Dissertações e teses. Senta aqui com gente e conta como anda decifrando a gente por aí. Olhar no papel a nossa história é lindo e emocionante, é contraponto à história oficial, diz o samba que é a história que a história não conta, então a gente sen-

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tou e ouviu, a gente leu, a gente entendeu o que estava entendido há muito tempo. Um salve aos que estudam e lutam com o trajeto sofrido no transporte público, aos que passam fome nos bancos das universidades, aos que estudam dando orgulho aos seus. Do lado de cá também tem produção cientifica, somos Sujeitos de nossa história. Também pudemos mesclar nossa produção acadêmica com as nossas giras encentrais, pudemos ouvir nossas mestras da cultura popular, as mulheres que lutaram nos anos em que sofremos uma ditadura Civil/Militar, aprendemos sobre a estrutura do Estado, sobre economia, sobre o direito à cidade, sobre as lutas do povo preto, dos povos originários, discutimos nossa maneira de amar, nossas subjetividades e nossas necessidades objetivas. Estudar é um caminho sem volta. E como periféricos que somos, a realidade prática nunca saiu de férias, ausência de política e excesso de polícia, nossos corpos e nosso CEP, em grande medida, determinam como seremos tratados pelas políticas públicas e aqui está um dos motivos centrais para essa organização existir. Nós, como trabalhadoras e trabalhadores da cultura, sofremos como toda classe trabalhadora com salários miseráveis, falta de direitos e investimentos. A posição adotada pelo Fórum, nesse sentido, sempre foi a luta pela garantia de condições dignas de trabalho, por condições dignas de ocupar os espaços que são nossos, pela distribuição de recursos. Ou espaços do território que ficavam inviáveis, como as casas de culturas, antes espaços fomentadores de fruição e criação de arte, mas que vinham sendo subutilizados ou inviabilizados por conta do coronelismo das sub-prefeituras, os teatros dos Céus atolados na burocracia e nos pequenos poderes, ou mesmo os nossos próprios espaços de ocupação, praças, terrenos ou imóveis públicos abandonados por descaso do poder público e revitalizado pelos coletivos, trabalho tão bem feito que aguçava a ambição da especulação imobiliária. Por essas e outras nossa ocupação pegou o ônibus, o trem, e foi ocupar os espaços dos homens de colarinho, que susto, segurança em alerta, deu periférico em audiência pública, em gabinete de secretário, na “casa do povo”, e fomos com as contas feitas, a conta óbvia que virou mapa e mostrou que recursos saem da quebrada em forma de imposto, mas ficam com preguiça de voltar, afinal é longe. Mas o tradutor de pobres dos caras estava quebrado, não tio, não é política de balcão que a gente quer... Temos que avançar na política, a gente ta exigindo políticas estruturadas em lei. Então escrevemos a nossa lei, em muitas mãos, em mãos calejadas, desa-

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creditadas, mãos geniais. Você que tá lendo esse texto, se não viveu essa história, imagina aqui comigo – se viveu só lembra –, sentar na quebrada com gente da quebrada dizendo o que tem que estar e o que não tem que estar na lei, chamar os mais velhos e mais sabidos para ajudar, mas não ser direcionado por ninguém. Foram dias, meses, anos, circulando pelas quebradas, juntando tudo que foi discutido e colocando no papel, pacientemente, com a ousadia de quem não tá perguntando se já foi feito nem se pode, mas tá dizendo como tem que ser. Voltar na quebradas, levar o que foi escrito, e ter a aprovação de todos, dos nossos mais velhos, nossos educadores, dos nossos, fez a gente ficar forte pra apresentar a lei, lutar pela sua aprovação e defendê-la com unhas e dentes, alguns diziam que a gente estava criando um muro (como esse povo não tinha visto esse muro ainda), certa vez me disseram, que a gente tinha ciúme da escrita da lei, não era ciúme, não, era orgulho, um orgulho do caralho, a gente tá tão acostumada a não ter orgulho da gente mesma, mas, daquela vez eu estava orgulhosa, de mim, de quem caminhou ao meu lado, até dos nossos erros eu me orgulhava, por que tudo era a expressão do nosso processo. Ganhamos. Vencemos quem disse que aquele era o limite da nossa luta, e de quem disse que aquilo era apenas uma utopia. E no fim de tudo descobrimos que era só o começo, que chegamos ao início mais uma vez, ainda precisamos mostrar nossas produções, ainda precisamos fazer formação, ainda precisamos de um outro mundo possível, ainda precisamos de outras mil utopias, ainda há muito para se fazer, ainda estamos em luta. E “Só a luta muda a vida”, um viva às mudanças.

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Cortejo de abertura da 1ª Mostra Cultural das Periferias #pelaleidefomentoàsperiferias. 2013.

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15º Encontrão ZL. Okupação Cultural Coragem. 2017.

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Fala do então Secretário Juca Ferreira durante o 1º Seminário de Politicas Públicas para as Periferias, organizado pelo FCZL. Primeira vez em que o Fórum apresentou publicamente a proposta da Lei de Fomento à Cultura das Periferias como uma das pautas do movimento. CDC Vento Leste. 2013. Queila Rodrigues e Fernando Ferrari. “Hackeamento” do evento de lançamento da Plataforma SP Cultura para leitura da CartaManifesto Denúncia sobre as Casas de Cultura redigida pelo FCZL e assinada por diversas coletividades e movimentos. “Chega de frouxura! Queremos mais cultura!”. 2014.

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Mural de reivindicações. 1º Seminário de Políticas Públicas para as Periferias, organizado pelo FCZL. CDC Vento Leste. 2013. Cortejo de abertura da 1ª Mostra Cultural das Periferias #pelaleidefomentoàsperiferias. Itaquera. 2013.

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Juliana Jesus. Performance poética. Debate: Genocídios - 1ª Semana de Formação Cultural e Política FCZL. Okupação Cultural Coragem. 2017.

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Apresentação e consulta pública sobre o texto (em processo) da Lei de Fomento à Cultura das Periferias em Perus. Comunidade Cultural Quilombaque. 2014.

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Mestra Soraia Aparecida (Lelê de Oyá) e Mestre Toinho (Maracatu Nação Baque Forte/PE). Okupação Cultural Coragem. 2018.

Mestre Zé Negão (Camaragibe/ PE). 2ª Mostra Cultural das Periferias: Lado Leste. CDC Vento Leste. 2017.

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Cortejo de abertura da 2ª Mostra Cultural das Periferias: Lado Leste. Cohab II. 2017.

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Aloysio Letra. Intervenção Artística - UniDiversidade de Saberes - Racismo e a exclusão do negro no mercado de trabalho livre. Okupação Cultural Coragem. 2017. Katiara Oliveira e Márcio Farias. UniDiversidade de Saberes - Racismo e a exclusão do negro no mercado de trabalho livre. Okupação Cultural Coragem. 2017.

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Aurélio Prates. Unidiversidade de Saberes – Economia da Mentira. Okupação Cultural Coragem. 2017. Rincón Sapiência. 2ª Mostra Cultural das Periferias: Lado Leste. Okupação Cultural Coragem. 2017.

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foto acima: H-tá. foto abaixo: Rafael Araújo. Intervenção artística Coletivo Bichx Solto. Debate Sociabilidade e empregabilidade: enfrentamentos da população LGBT. Ocupação Cultural mateus Santos. 2018.

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foto acima: H-tá e Andréia Rosa. Intervenção artística Coletivo Bichx Solto. Debate Sociabilidade e empregabilidade: enfrentamentos da população LGBT. Ocupação Cultural mateus Santos. 2018. foto abaixo: Glória Orlando. Encontrão ZL. Okupação Cultural Coragem. 2017.

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QUERO VIVER DE BOLSA Daniel Marques

Peço que me ouça, De hoje em diante Quero viver de bolsa! Bolsa família, Bolsa estudante, Bolsa aluguel. Bolsa meio pagante, Bolsa casa, Casa própria. Quero bolsa cheia de comida Pra encher a minha barriga E da minha família. Quero bolsa eletrodoméstico Pra ter fogão, videogame E máquina de lavar Uma geladeira novinha Pros alimentos estocar. Quero bolsa roupa Pra sair elegante Ir nas mesmas festas da madame E matar ela do coração Adentrar todos os cantos Exercer meu direito de cidadão

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Quero vale cultura Que valha a pena, Ver escultura, Teatro, Cinema Tudo de grátix. Sombra, água fresca E muito maix! Me dê a bolsa viagem. Quero visitar o cais Ir pro exterior Ser tratado que nem doutô Dentro de um avião Tomar champanhe e comer salmão. Dispenso a vara de pescar, Me dê o peixe já pescado, Porque hoje eu tô cansado. Foi nóis que sustentô esse país no braço No lombo, Com suor, E muita lágrima. Me dê todas as bolsas que valha, Valham a pena, De tanto esforço e sacrifício Reparação histórica É disso que preciso!

Daniel marques Ator, poeta, dançarino, percussionista, arte-educador e ativista cultural. Militante por questões étnico-raciais, LGBTQIA, periféricas e sociais na Zona Leste de SP. Idealizador do Sarau O que dizem os Umbigos?! e do Coletivo Bichx Soltx; integrou também a Trupe ArruaCirco, o Coletivo ALMA e os Grupos Loucura Alternativa, Batucafro, Batakerê e Porto de Luanda, dentre outros. É um dos fundadores da Rede Livre Leste; do Fórum de Cultura da Zona Leste; e do Movimento Cultural das Periferias. Bixa preta, poeta’encantado, feliz à beça segue sorrindo e dançando ao som de um batuque na lua. Okê Arô!

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UM POEMA DE ZÉS, MARIAS E TUS* Queila Rodrigues e Natali Conceição

Lá vai Zé da Leste. Cabra da peste! Que ninguém conteste o seu caminhar Bem cedo se lança na fila da vida no meio de tantos é só mais um, só. Espremido, enlatado, quase deformado, passando a catraca o seu corpo faz nó. De ponto em ponto, quase fica tonto, mas logo se ajeita, tem que aguentar. Sessenta minutos é só um instante pro destino distante que custa chegar. As estações vão só começando e nem cochilando consegue sonhar. Com mais uma hora de muita demora, chega ao destino que não planejou. Veste o uniforme e escuta calado, o grito exagerado de que se atrasou. Desconto na certa! A porta tá aberta, melhor nem falar... De que adianta explicar direitinho, todo o caminho a quem nunca foi lá? Trabalha, trabalha, trabalha e se cansa, mas nunca alcança o que devia ganhar. Tantas oito horas que no fim dos dias, somadas com outras, mal dá pra almoçar. E aí vem a volta o mesmo, ao quadrado. Mas só de revolta, me recuso a narrar. Prefiro chegar ao ponto que altera, no instante que surge sem se esperar. Caminho de casa, os olhos mal abrem, o corpo mal sente, a voz já calou. Mas não é que tropeça num monte de gente, que o opaco cinza em cor transformou! No meio da praça, bonito e de graça, tem circo, teatro e dança de roda. Não tem diferença entre jovens e velhos, e com a sua chegada ninguém se incomoda.

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Tamanha surpresa, pois Zé não sabia, que a arte também é um direito seu. E que não precisa vestir-se de outro pra compreender o que já viveu. Pois Zé! Quem diria... que em tua calçada fosse encontrar, atores, atrizes, palhaços e sonhos, criados por quem também mora lá. E esta (mu)dança lhe trouxe esperança, lhe encheu de vontade de contribuir, pra colorir esse mundo cinzento que só transformado pode sorrir. * Poesia escrita para intervenção artística da Rede Livre Leste, durante o projeto “Nossa teoria é a prática”, contemplado pelo Programa VAI em 2012.

queila rodrigues Poeta’brincante, artesã, fotógrafa, arte educadora e produtora cultural. Atuante em movimentos culturais periféricos desde 2009, foi uma das fundadoras e integrantes da Rede Livre Leste e do Movimento Cultural das Periferias. Atualmente integra o Fórum de Cultura da Zona Leste; é uma das pesquisadoras do Centro de Estudos Periféricos (CEP - UNIFESP- Instituto das Cidades) e compõe alguns coletivos artísticos da região, dentre eles o Sarau O que dizem os Umbigos?! e o Grupo de Coco Semente Crioula. É também idealizadora do Projeto de bordado e poesia Cabocla De Lança – Estandartes Poéticos e Promotora Legal Popular. Natali Conceição Atriz e musicista. Desde 2003 atua e desenvolve trabalhos com o grupo teatral Pombas Urbanas, Coletivo Mãe da Rua de Teatro. Também é Coordenadora o grupo de cultura popular “As Três Marias, o Sol e a Lua” e integra o grupo “Samba das Pretas”.

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mari oliveira É artista plástica, arte educadora, designer e artista de rua (grafiteira). Trabalha como “uma operária da Arte”, coloquialmente dizendo, desde 2015. Todos seus esforços e ações estão direcionadas para a produção artística de forma ativista em questões sociais, com objetivo de conscientizar as pessoas que apreciam seu trabalho.

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Pamela Candido Rosa Grafiteira intitulada pelo nome artístico de Bien Rosa, além de arte educadora, poeta, designer de moda de rua e articuladora cultural. É uma das idealizadoras do Coletivo Cultural Abayomi Ateliê, projeto preocupado com a formação da identidade cultural na periferia, também atua com a promoção de eventos socioeducativos, possibilitando à comunidade, o contato com o movimento hip hop, atividades artísticas e promoção cultural.


Lucas Afonso

Licença aqui, O que vou falar é de coração Na humildade, como sempre Não sou dono da razão Cada um tem seu olhar Vou passar minha visão Não me convence Que alguém vai trazer paz com arma na mão Pra cima de noiz? Não! Para! Noiz sabe a cor e a direção Que as arma tão apontada Já tem uns dia, né? Não vem pagar de Loko Fundo do poço tem escada Dá pra descer mais um pouco Não vou pagar pra ver Irmão, imagina a loucura: Seu filho chegando tarde A rua tá toda escura Vem descendo apagada Bem devagar a viatura E levam seu moleque Que não merecia uma dura

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O que cê vai fazer? Qual vai ser sua postura? Lembrando que votou num louco Favorável à tortura? Noiz se perdeu, não é possível, tio Noiz tava em outro nível Hoje debato no WhatsApp Se racismo é admissível? Tá de brincadeira Quer mel na mamadeira? Quebrada é fel, pagou de Hitler É só na madeira! Deus é mais! Faz isso não! Me faz passar vergonha não. Salário tem que ser igual Se os dois faz a mesma função Noiz tem que ser honesto Faz a reflexão Mulher não tem que ganhar menos Por causa da gestação Dá uma atenção! Cuidado com a mão que cê beija E com a intenção de quem destila ódio Dentro da igreja

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Esquecemos os princípios? Independente da crença Não conheço religião Que cultua com violência Não perca sua essência Nosso legado é eterno Vamos fazer a diferença Com caneta e caderno Sem ditadura, censura Noiz quer acesso à cultura Ao invés do leito da cela Ir pra sala de leitura Não cai em ideia furada Noiz sabe a realidade Não precisamos de acesso à arma Queremos quebrada lá na faculdade Acessando os conhecimentos Entendendo a história do Brasil Quem sabe noiz fica mais ligeiro E para de crer em qualquer fake news Não vende o seu valor, eu juro Nosso silêncio tem um custo Na injustiça, em cima do muro É o lado do injusto

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Por favor, me ouça Nossa voz tem força Não vai na ideia de quem suja Mas não lava uma louça Eu tô na rua Na luta Me perguntaram Se compensa Se eu não tenho medo De morrer no meio da desavença “Bagulho tá loko, Luquinhas Pior do que você pensa Mataram Moa, Marielle Já não ficam só na ofensa” Tão ensinando crianças A fazer a arma com o dedo Ao mesmo tempo Meus amigos tão morrendo muito cedo Eu tenho muito a perder Mas vou te contar um segredo Minha esperança inda tá aqui Eles levaram só meu medo.

Lucas Afonso É MC, Arte-Educador, Mestre de Cerimônias do Slam da Ponta, poeta do Coletivo Filhos de Ururaí, Campeão do Slam Brasil 2015 e semifinalista da Copa do Mundo de Poesias, na França em 2016.

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PIPA

por Juliana Jesus

Lembranças de um Dedão sangrando Porque acabou de perde o Tampão Tentando marca mais um Gol As traves era o chinelo Atravessado com Prego Porque a correia quebrou Mas o solado tá novinho Pega-Pega Esconde-Esconde Mãe da Rua E PiPa Mano PIPA Pipa era dahora Aliás PIPA Era o apelido do meu Parça Nossa infância não podia ter sido melhor

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Era... Pega-pega, esconde-esconde, mãe da rua, pião, bolinha de gude, mãe da Mula... Skybunda descendo o morro de barro Com a garrafa debaixo da bunda E depois cê tá ligado Era PiPa E Mano Pipa Pipa era dahora Aliás Pipa Pipa era o apelido do meu Parça Nóis era uns Muleques criativo Pensa em uns Muleques criativo era Nóis Era pique uma vocação pra arquitetura Tá ligado Era prego, martelo, madeira e lona Preta Pronto Se ergueu mais um barraco na invasão Preto igual a cor da nossa pele Preto igual o lugar onde nóis morava Preto como diria minha velha Igual a nossa situação E depois cê tá ligado Era PiPa E Mano Pipa Pipa era dahora Aliás Pipa Pipa era o apelido do meu Parça Mas em 2016 as ideias mudaram E a lembrança agora é de um corpo Sangrando no chão Porque acabou de perde sua vida Tentando marca mais um Gol

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E as traves Era o tênis de um playboy novinho Mano quem dera ele conseguisse Marca esse Gol Mas... O Playboy se saiu mais rápido da cena Os PM chegaram e o PiPa SUBIU Pega-pega sirene vermelha e azul Esconde-esconde a coragem esvaindo Entre os dedos Mãe da rua quem tá com o fuzil na mão E Pipas subindo E Mano Pipa Pipa era dahora Aliás Pipa Pipa era o apelido do meu Parça Do João Vitor Do Rafael Do Wesley Do Guilherme Do Fernando Do Alex Do William Do Bruno Do Rodrigo Do esposo Do vizinho Do Amigo Tanto faz

Juliana Jesus é arteira, filha, neta e cria de Dona Tereza Josefa, da Silva Rosimeire, da Silva Iracema, das Silva. O primeiro passo é imaginar. Aconteceu.

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Manulo Sauro Morador do bairro de São Miguel Paulista, iniciou sua relação com a arte através dos HQs e, em seguida, com desenhos e pinturas. Em meados de 1985, por influência da cultura HipHop nas quebradas, começou a pintar graffitis nas paredes do bairro. Com o passar dos anos fez parcerias com outros grafiteiros e crews (turmas) da Zona Leste. Formouse em Técnico em Desenho de Comunicação na E.E. Carlos de Campos (1998) e Artes Plásticas na Faculdade São Judas (2006). Atualmente é um dos coordenadores do projeto multicultural Arte e Cultura na Kebrada e instrutor de Artes.

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POESIA AMOR INTEIRO

por Jô Freitas e Antônio Henrique Poeta

Como pode se gabá que ela Minina bunita e faceira Tem o dom de existir. Toda calma e sedutora de trança ou careca Me parece meio sapeca Vejo no seu caminhar O seu sorriso remonta constelação infinita seu olhar hipnotiza Faça que penses no amor Com seu cabelo avoado O gingado que tem na dança Tem o brilho de uma criança quando estás a brincar Bailando parece que o vento estás a soprar Chega me arrepio todo Quando ela vem me tocar Suas mãos são como algodão Suas palavras como navalha Pode ser quente o carinho Ou tempestade que arrasta Ele é divertido também meio ogro Tem suas delicadezas e também muito grosso Tem suas particularidades E também seus tabus

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Sabe ser doce é sincero e também sabe ser luz Tem seu jeito maloca isso não me incomoda Às vezes muito calado outras fala até umas zoras E desse jeito seguimos tentando fazer unidade Somos bem diferentes Mas cada um sendo metade Desse amor desajeitado Mas é acertado quando os dois lados Só pensam em fazer um ao outro feliz.

Jô Freitas é poeta, atriz, idealizadora do Sarau Pretas Peri e poeta do Sarau das Pretas. Artista nordestina adotada por São Paulo, se denomina cenopoeta por vir do teatro, da poesia e da dança. Seu trabalho poético está neste universo “performático” sendo um grande diferencial na cena cultural poética. Já viajou alguns países apresentando seu trabalho e ministra oficinas de Cenopoesia, Poesia e Performance em São Paulo e fora. Lançou em novembro de 2018 seu primeiro livro “FLORES” em homenagem à Antônio Henrique. Antônio Henrique Poeta Poeta de Suzano e com alma sendo morada do mundo, era cantor, compositor, fotografo, e idealizador da banda Kilimanjaro. Teve como vivência as ruas e as palavras. Poeta negro e periférico, destinou seus 32 anos em escrever sua história poética e artistica para nunca ser esquecido na luta do povo preto, produziu seu primeiro EP “Amor” da banda Kilimanjaro lançando em dezembro 2018. Como ele disse: “Se as flores esperam pela primavera, eu esperarei o tempo que flores.”

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ABCDÁRIO DA AUTONOMIA Por Emerson Alcalde

Prum projeto político-pedagógico progressista primeiro pego palavras próximas POESIA Quando queremos quota questionam quá-quá-quá Realizamos rebelião resistindo retrocesso reacionário Saberes secundaristas sonhados Sempre seguidos seja sentido Samambaia seja Sapopemba Tentativas transitivas travam trabalho Temos testemunhado Tratamento tolerante transforma todxs Unir uns utópicos urgentemente ultrapassando unção ufanista utilizando unidade universal Veredando via verborragia vendo violência vitimando vocês vivas vastas valentes Xenofóbicos xingam: xilogravuras, xamãs, xangôs Zumbi zarpando zepelim zelando zoom Alfabetizar amorosamente alcança amadurecimento Aprendiz acolhido atingindo assunção assumindo autonomia Beabá bancário, basta! burocratização baronesa Botando baderna, bradando: bando bolivariano Competências curriculares consultando comunidades coparticipando construindo conhecimentos críticos com curiosidade

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Docentes dispostos dialogando democraticamente dignificando discentes descrentes dos direitos disponíveis Emocionante: escolas educando epistemologicamente Esperançosos exigindo ética, ética é estética Formadoras formadores freireanos falas fundamentais Formulações fatalistas, fenece, fórmula farisaica Gestão genocida gera grupos gentrificados Greves, guardas, gás, golpes, gol Humanos históricos hoje habitando holisticamente Havendo humildade habilidades híbridas humanizarão Indago: in impeachment inexiste ideologia? Justiça jeitinho Jogral jovens juntos Lendo letreiros, lugares, leva levantes latinos Linguagem lírica liberta lapida Memorização: método mecanicista maligno Melhoraram magistério, mas ministérios malvados mercantilizaram Neoliberais negaram nivelamento nacional Não noticiam neutramente Negligenciam nossas narrativas Obstruiremos obstáculos obscuros ofuscando o ódio. opressores omissos Ordenamos ouçam os oprimidos

Emerson Alcalde é escritor, poeta, slam master do Slam da Guilhermina e mestre de cerimonia dos Slams: Sófálá – Red Bull Station, Slam Interescolar SP, Madalena Slam Jazz, Slam Nacional em Dupla - FPA, Torneio dos Slams - Estéticas das Periferias. Autor dos livros: (A) MASSA e O Vendedor de Travesseiros. Já se apresentou na Venezuela, Argentina, Canadá, Trinidad e Tobago (Caribe) e França. Vice-Campeão do Mundo de Slam de Poesia, de Paris em 2014.

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Ítalo Raphael Pratica a arte urbana desde 2008, atuando mais na zona leste, de Guaianases a Ermelino Matarazzo. Seu trabalho é mais conhecido por seu personagem de cabeça “quadrada” e mente aberta, e que faz menção a ideologia de paz e amor. Já participou de projetos culturais e alguns editais de graffiti pela cidade. Atualmente trabalha também como designer e ilustrador freelancer e dá aulas de graffiti na Ocupação Cultural Mateus Santos.

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SUJEITO PERIFÉRICO

Composição: Tita Reis, Renato Gama, Luciano Carvalho

Sujeito periférico À noite em vinhos e cigarros Entre folhas e canetas Traça planos e projetos Poemas e canções Amores, ilusões De manhã acorda cedo, é real Trem lotado, passageiros sonolentos compartilham o mesmo sentimento

refrão

Sujeito periférico À noite corpos fustigados Entre ombros e soluços Força os cílios contra o teto Poentes sem paixões Sem grana sobra um riso De manhã acorda cedo, é real Trem lotado, passageiros sonolentos compartilham o mesmo sentimento

refrão

Tita Reis Músico, cantor e compositor nascido e criado na zona leste de São Paulo desde 2000 tem sua trajetória ligada aos movimentos culturais da periferia participando de diversos coletivos como Dolores Boca Aberta, Jongo dos Guaianás, Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué e Forum de Cultura da Zona Leste. Em 2011 lançou seu primeiro CD “Sujeito Periférico”, prepara o lançamento de seu segundo album para 2019 . renato gama Músico, musicoterapeuta e produtor musical, vem desenvolvendo trabalhos musicais a partir de texto de: Paulo Rafael, Conceição Evaristo, Sérgio Vaz, Neide Almeida entre outr@s, junto à Sá Menina Produções Artísticas vem produzindo diversos artistas. Luciano carvalho Membro fundador do coletivo Dolores. Militante do Movimento Cultural das Periferias e participante da construção do Fórum de Cultura da Zona Leste. Mestrando no programa Territorial da América latina e Caribe - Unesp e ENFF. Diretor da Saga do Menino Diamante - Uma Ópera Periférica (prêmio Shell 2011); Marruá (2012); P.U.T.O. (2013); Perestropika (cuba - 2016); Rolezinho (2017).

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tempo

Composição: Anna Bueno

tempo, tempo, movimento cores, vibração novos e novos velhos ares lugares, olhares encontro consigo mesmo descanso e trabalhar da mente assim mesmo: simultaneamente tempo que vem sempre vem e se for, traz um novo há tempo não desespere! o tempo sabe quando deve vir quando deve ir seu movimento é perfeito não lhe cabem queixas ele vem, vai, leva, traz, deixa no exato momento de giro de movimento de movimento tempo, tempo tempo.

Anna Bueno Paulistana, nascida e criada na zona leste de SP, formou-se em violão popular pela FASCS, foi educadora musical nas Fábricas de Cultura e escolas de música. Em 2015 gravou seu primeiro disco através do programa VAI. Graduada em Letras, estudante de Psicologia, prepara-se para lançar seu primeiro livro de poesias.

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2014, ROLEZINHO DA MARRECADA!

Composição: Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué

Oh nóis aqui de novo na festa do povo Brincando o carnaval (que legal) Na rua você sabe como é, o batuque da alegria É Boca de Serebesqué Na rua, esse espaço de disputa Palco de glórias, samba e luta Mais uma vez vamos sonhar (oh sonhar) Que a rua seja toda prosa Sem calçada toda nossa E a criançada brincadeiras alegrar Trânsito de carros alegóricos A buzina é a batida do surdão E a manifestação Seja pra brindar revolução (revolução) E mesmo Que a farda e a tristeza Jabor e a globeleza E a cara feia do coxinha que acordou Tente calar as ruas O rolezinho da galera Não vão deter a primavera O marreco vai pra rua os Guaianás chegou Confete e serpentina me chamar que eu vou Botar a fantasia e no bloco da folia Sambar como o povo que não desafina A rua é do povo como o céu é do condor Então me chama pra sambar que eu vou E quando a passeata ou o bloco passar Se entrega amor, se joga amor Quéquéqué Quéquéqué E viva os Boca de Serebesqué Quéquéqué Quéquéqué Os vira copos do Serebesqué

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refrão (2x)

Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué Fundado em 2008 o nome “cordão” presta uma homenagem as antigas agremiações carnavalescas de São Paulo, “Boca de Serebesqué” significa uma pessoa que fala demais, pelos cotovelos, de tão esquisito acabou sendo adotado como nome do bloco. Seus fundadores queriam com isso recriar no bairro a atmosfera do carnaval de rua, despretensioso, ingênuo e brincalhão, desde então desfilam pelas ruas do bairro com o batuque e a alegria de um bloco de sujos.


OYÁ (Toada de Maracatu)

Composição: Mestra Soraia Aparecida

Oyá, olha a Oyá Oyá menina, Oyá guerreira, Oyá tão bela com seu Ilá Guia seus filhos, Cuida do baque Abre os caminhos pro Lelê de Oyá, ooooo

soraia aparecida Mestra Soraia Aparecida, é fundadora da Cia de Cultura Popular Lelê de Oyá. Educadora de dança dos orixás, foi integrante da Cia Afro II, referência em danças afro brasileiras na década de 1980. Foi percussionista da Cia Porto de Luanda, grupo precursor em trazer para a zona leste a linguagem do maracatu de baque virado. É também integrante dos grupos Agô Anama, Baque Cidade e do Cordão Folclórico Sucatas Ambulantes.

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G.R.E.S NENÊ DE VILA MATILDE CARNAVAL 2019 ENREDO: A MAJESTADE DO SAMBA CHEGOU! CORRI PRA VER, PRA VER QUEM ERA... CHEGANDO LÁ, ERAM A NENÊ E A PORTELA. COMPOSITORES: TITA REIS, TIARAJU PABLO, THIAGO OLIVEIRA, ELAINE MINEIRO E JHONY GUIMA

A zona leste chegou... Guerreira!!! É congo, é jongo, é capoeira Quilombo do povo, paixão batuqueira Em vila matilde e madureira

refrão

Sou eu De oswaldo cruz das baianinhas Entre pierrôs e colombinas Saudades dos antigos carnavais Eu sou O guardião do estandarte Sou tradição sou baluarte Templo de sambistas imortais Eu sou a águia que arrepia Eu sou a lágrima que inunda a passarela Se o rio de ontem me deu poesia Hoje São Paulo da portela “Oranian, fiz um mundo nascer” Oxóssi, Iansã, Ilu Ayê No pé da jaqueira “esquindolelê (refrão) Olha só quem vem lá”, lá vem nenê A bênção, madrinha Me dá licença, minha história vou contar Vila esperança, chapéu de lado Quanta lembrança de um “mundo encantado”

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bis

refrão


Chica da silva brilhou A pauliceia desvairou Já fui senzala hoje sou O “rei do ziriguidum” Sapucaí sambou no meu culungundum “Salve o manto azul e branco” Coisa mais bela É a nenê É a portela Escolas do samba verdadeiro Orgulho do negro brasileiro

Jhony Guima é cantor, compositor e multiinstrumentista. Morador de Guaianases, integra os grupos musicais Nhocuné Soul e Segundas Intenções, dentre outros projetos. Também possui carreira solo. Thiago Oliveira é cavaquinista, percussionista e bancário. Morador do Jabaquara, foi membro da bateria da Águia de Ouro e tem sambas ganhos no carnaval de São Paulo. Integra o grupo Bando de Amigos, dentre outros projetos. TITA REIS (veja biografia na pág. 132) TIARAJU PABLO (veja biografia na pág. 52) ELAINE MINEIRO (veja biografia na pág. 90) A composição deste samba-enredo foi feito por compositorxs não frequentadorxs das escolas de samba. Dois deles já haviam disputado eliminatórias de sambas-enredos em escolas grandes, mas há muito tempo atrás. Três delxs eram sambistas mas não participavam de escolas de samba e nunca haviam participado de eliminatórias. Todxs tinham em comum o fato de participarem de coletivos artísticos e organizarem batucadas populares. O fato de se reunirem para concorrer com samba em uma escola de samba para o carnaval de 2019 tinha um aspecto de ineditismo, de aventura, de principiantes, ainda mais em uma escola de samba com a história da Nenê de Vila Matilde, resistência negra da zona leste de São Paulo. O samba composto agradou os compositores e, de forma surpreendente, pegou na quadra. A parceria, com seu amadorismo, mas também com postura e respeito, foi passando as fases eliminatórias. Quando ninguém esperava, os principiantes tinham chego a final. A apresentação no dia da final foi uma festa. Muitas amigas e amigos de coletivos artísticos participaram da brincadeira. No resultado final, o samba não ganhou. Um outro samba muito bonito foi escolhido. No entanto, a parceria de principiantes não ficou triste. Tinham aprendido muito no processo e sabiam que voltariam a concorrer. Uma vez provado o gosto da maçã do samba, nunca mais se abandona o pecado de sambar.

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Um Retrato de São Paulo COMPOSITOR Renatê Pessoa

Capa de revista Facebook cloro n’água da piscina 5 sacos alvejados desentupidor de pia Oi tô vivo é claro que é bem vindo Tim Tim por Tim Tim Verso e prosa no grafite no lambe na avenida Na cabeça do mendigo na igreja na sacristia No telhado nessas ocas nos olhos da minha tia No retrato lá no zap no nude na putaria No elevado Costa e Silva na vale na gritaria No peixe no boi na vaca no povo na Mariana Nos 5 memes mais fodas da lista dessa semana No “like” no Mcdonald’s na gôndola do mercado No rubor do pomo da maçã todo envenenado No alimento no tóxico no tópico do agronegócio No corante caramelo 1 2 3 4 na placa que me diz siga Na placa que me diz pare dispare dispare bala de borracha que me cale Caixa econômica eletrônica sapato tarja preta

Marisa Soou É articuladora cultural, educadora, grafiteira e empreendedora social, idealizadora do Coletivo Cultural Abayomi Ateliê, trabalha com o constante estudo na busca pelo resgate das nossas raízes por meio da ancestralidade, utilizando a linguagem visual, arte urbana e produção têxtil como suporte para fomentar a cultura da periferia e a valorização da autoestima por meio da arte e posicionamento crítico, que estimula o desenvolvimento social e o progresso cultural.

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No alarme que me diz viva 6 horas na terça-feira Na feira na minha sacola na carne na frigideira No capítulo final da novela na sexta-feira Na terra mal demarcada na falta da moradia Na jornada de trabalho que impede de ver o dia Na arte mal fomentada na margem periferia Na perna de pau no circo no asfalto na correria No apto dormitório guindaste na construtora Na bola pelada balada ressaca boa à toa No alto dos prédios chiques varanda gourmet com vista Na letra na carne em riste na força na academia Brasileira de gente na academia dividida Latente patente decore a tabuada da vida Vida é cousa sagrada morte não é brincadeira cemitério etéreo necrópole urbanescera Renatê Pessoa é cantador de São Paulo. Tem o canto como tradição familiar e considera forte influência da bagagem regional que Dona Madá (mãe), natural de Rubim (MG) transfundiu de forma oral nos sentidos e saberes do canto. Estudou o canto erudito em regime particular e canto popular na Etec de Artes em São Paulo. Desenvolveuse, aprimorou-se e estudou de forma independente participando de aulas, performances, apresentações, projetos, workshops e vivências com diversos artistas atuantes na cena cultural brasileira da atualidade. Como cantor e compositor, admirador da arte independente genuinamente paulistana, frequenta de forma assídua os Palcos-Saraus em diversos pontos da capital.

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Guaianás é meu lugar

Compositor: Aloysio Letra (Registro Biblioteca Nacional n° 726/19) Gênero: Samba de partido alto

Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Meu trabalho, meu ofício É viver só de cantar (2x) Sou de origem humilde De pequenininho soltei minha voz Anos atrás aprendi a ser batuqueiro de canto feroz (2x) Quando meu canto deságua acaba a mágoa o gonguê faz cantar Mas eu mantenho o respeito, carrego no peito o meu patuá (2x) Guaianás é terra de índio, de preto, de bantú, de jeje-nagô. Amo meu povo, meu leito, aceito o preceito que Deus me deixou (2x) (Amo meu povo, meu leito, sou filho de Ketu mamãe confirmou) Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Meu trabalho, meu ofício É viver só de cantar (2x) Sou de São Paulo. O meu pai é da Bahia. Minha mãe é mineirinha veio aqui pra trabalhar. Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Calango dengo, calango, calango dongo Já tomei tombo no jongo, vim aqui só pra versar Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Ouvi o canto lá da Dona Anicide O batuque já progride só de ouvir ela cantar Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Senti o bumbo do samba Cururuquara O quilombo Jabaquara também pude visitar ¬Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar

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Sou batuqueiro lá do Porto de Luanda Ando aqui por essas bandas. Zona leste vai cantar! (Ogunhê!) Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Eu vim pro samba e não tô de brincadeira Vim saldar os capoeira. Berimbau vai ressoar Sou da Santa Teresinha Guaianás é meu lugar Salve a memória do samba Largo da banana. Todos Orixás! Camará! Guaianás é meu lugar (2x)

Aloysio Letra É um ser cultural, atua como articulador cultural em grupos periféricos, trabalha nas áreas de teatro, performance, audiovisual e na música como cantor e compositor. Escreve no blog Negrume e é membro da Associação dxs Profissionais do Audiovisual NEGRO (APAN). Mora em Guaianases, zona leste de São Paulo.

Rodrigo motta é artista visual, educador e editor de publicações independentes. Atuou nos coletivos La Panela, Cultura ZL, Slam da Guilhermina e colaborou na criação do Movimento Cultural Ermelino Matarazzo. Em 2014 criou a editora independente Motta Press. Foi finalista do Prêmio Miolo(s) 2015 nas categorias HQ e Projeto Gráfico. Em 2018 criou a Banca Curva, espaço colaborativo de publicações independes e arte impressa no centro da cidade de São Paulo.

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MANIFESTO policentrico - livre leste No ano de 2009 coletivos artísticos da periferia da Zona Leste, surgidos diretamente de políticas públicas desenvolvidas na periferia, como o Núcleo Vocacional e Programa VAI, unem-se para ocupar espaços públicos com arte e chamar a atenção para a falta de reconhecimento de suas ações, assim nasce a Rede Livre Leste (RLL). Nesse mesmo ano ocorre o 1º Debate Policêntrico, um encontro entre coletivos artísticos jovens para discussão sobre os desafios e possibilidades de sustentabilidade de seus projetos. Em 2010 a RLL completa um ano no mesmo período em que é realizado o 2° Debate Policêntrico e o 1° Fórum de Teatro em Comunidade, cujos temas debatidos por jovens artistas trouxeram à tona a urgência na criação de medidas e políticas públicas que garantam a continuidade/emancipação/consolidação dos grupos jovens surgidos na ultima década. Diante disso, os coletivos Cia. do Outro Eu, Grupo doBalaio, Núcleo Teatral Filhos da Dita, Trupe Arruacirco, Trupe Trapos dell’Arrua, enquanto articuladores da Rede Livre Leste, assumem o compromisso na construção de um manifesto que deixe claro os questionamentos vividos: o Manifesto Policêntrico. Reconhecemos que a implementação de políticas públicas ocorridas na última década possibilitou a ampliação do acesso ao patrimônio cultural , entretanto, este avanço gerou demandas que não são contempladas pelas políticas públicas culturais em vigor. Compreendemos que as mudanças se dão em processo, mas não podemos nos isentar de uma posição crítica frente às deficiências presentes na aplicação de tais políticas. Como grupos jovens, questionamos: • O pouco reconhecimento dos artistas jovens, enquanto produtores de cultura; • A falta de uma política de desenvolvimento e fomento cultural a longo prazo voltada aos jovens, que contemple as quatro esferas fundamentais em um trabalho artístico: formação, produção, difusão e pesquisa; • A mercantilização da cultura por parte das políticas de isenção fiscal, que ao entregar a tarefa de fomentar as artes às lógicas do mercado dificulta ainda mais o acesso aos recursos por parte das iniciativas jovens; • A lógica de acesso aos editais de incentivo público direto, que priorizam os coletivos que possuem personalidade jurídica, registro profissional e que são conhecidos no meio artístico dominante/ mercado; 1

conforme BRASIL. Constituição (1988) - Artigo 216, Seção II, Capítulo III, Título VIII

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• • •

A necessidade de conquistar espaço dentre núcleos restritivos, formados por coletivos repetidamente premiados/ contemplados nos editais públicos de incentivo direto, para também ser reconhecido como um produtor de cultura; O preconceito com relação aos méritos artísticos dos projetos socioculturais realizados em comunidade, tidos frequentemente como assistencialistas e rotulados como esteticamente inferiores; A dificuldade de firmar parcerias para obtenção de espaços físicos/sedes em longo prazo, para o desenvolvimento de projetos, agravados pelo preconceito em relação ao jovem considerado despreparado, incapacitado, irresponsável, etc. A quantidade de espaços públicos ociosos, abandonados e lacrados pelas instâncias públicas responsáveis, enquanto diversos grupos artísticos encontram dificuldades para encontrar um local onde possam se reunir, ensaiar, promover ações culturais, etc.; A burocratização e o boicote de grande parte dos espaços públicos, em geral despreparados para receber iniciativas culturais.

Portanto, reivindicamos: • Participação dos jovens nas comissões de avaliação de projetos, enquanto representatividade; • Ampliação dos recursos financeiros disponíveis, para que sejam possíveis políticas que melhor atendam às necessidades dos coletivos artísticos jovens; • Que sejam re-pensados os meios de acesso aos editais públicos, para que uma maior diversidade de propostas e projetos culturais sejam contemplados; • Maior transparência na avaliação de projetos culturais; • A criação de outras possibilidades de apoio e suporte, por parte do poder público, que viabilizem a continuidade das iniciativas culturais dos artistas jovens; • Uma real articulação entre as instâncias do poder público (legislativo, executivo e judiciário), cujas brigas, de interesse político, inviabilizam ainda mais o apoio à cultura. Este manifesto representa a opinião de grupos que primam pela construção do discurso na ação. Portanto, que seja este documento a própria ação manifestada, coerente à realidade diversa de atuação artística, política e social dos jovens da periferia da cidade de São Paulo.

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MANIFESTO PERIFÉRICO PELA LEI DE FOMENTO À PERIFERIA SALVE PERIFERIAS! Pra entender os escritos e as vozes do lado de cá, antes, é preciso entender o que vemos como PERIFERIA. Compreendemos PERIFERIA como espaço urbano geograficamente identificável, abrigo das classes trabalhadoras brasileiras, da maioria da população negra, indígenas urbanos e imigrantes e cujos traços culturais são entoados pela heterogeneidade resultante do encontro (nem sempre pacífico) desta convivência multicultural atravessada pela desigualdade social. Periferia, não por acaso, substantivo feminino no qual se inscreve a história corrente de inúmeras mulheres. Museu sem teto ou paredes, bolsões de expressões ancestrais, tradicionais e experimentações inovadoras, cuja geografia é território, marca identitária e também espaço de exclusão econômica, com excesso de polícia e ausência de políticas públicas que procurem agir na resolução das consequências de um processo histórico de brutalidades sociais, desigualdades e injusta distribuição de riquezas. O termo PERIFERIA convocado neste manifesto representa um ato político. Assumi-la como marca identitária significa evidenciar as disparidades sociais, econômicas, geográficas e culturais historicamente impostas, assim como, neste contexto, considerar a desproporção de verbas públicas destinadas à produção cultural das quebradas. Reconhecer a capacidade de sua população em mediar as contradições por meio da produção cultural e da elaboração cotidiana de mecanismos que garantam a sobrevivência coletiva é compreender este território periférico como lugar de resistência política. Ainda que as periferias tenham características específicas entre si, a unidade está aí: relacionam-se com a questão urbana em posição de desvantagem política, visto que historicamente os olhos das políticas públicas buscaram privilegiar investimentos nas áreas centrais da cidade, estimulando, mesmo que não intencionalmente, novas lógicas de convivência, sociabilidade e manifestações culturais nos territórios periféricos. O que buscamos é a reparação histórica, é inverter a lógica do mercado. Fundamentados no ponto de vista de quem vive e produz cultura neste lugar, a periferia, e por entender a tirania do processo de mercantilização que a tudo padroniza e homogeneíza; que busca transformar em mercadoria toda a produção humana e que, portanto, exerce forte pressão às manifestações culturais nas quebradas para que se transformem em produtos à venda. Reivindicamos do Estado sua contraparte, assegurando políticas públicas que viabilizem nossas práticas artísticas e culturais não baseadas no lucro e na exploração; que existam mecanismos de fomento onde a gratuidade seja garantida, a autossustentabilidade econômica não seja uma meta, a subjetividade das periferias não seja transformada em mercadoria e que as nossas produções não estejam reféns de um gosto universalizado, tampouco nossas particularidades simbólicas sejam catalogadas como moeda de troca. O governo do Estado, há cerca de duas décadas, é pautado por políticas neoliberais, sem praticamente qualquer política pública voltada para grupos culturais ligados aos movimentos sociais. Na cidade de São Paulo, embora exista políticas mais arejadas e com maior diálogo com os movimentos, ainda há muito por fazer e avançar. Nossa contribuição parte da premissa de que a discussão sobre financiamento direto, garantido em lei, e descentralização de verbas é necessária e se faz urgente.

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Defendemos que os estados e municípios parem de despejar milhões de reais, fruto de arrecadações dos cidadãos, para o pagamento de JUROS das dívidas públicas – que representa hoje 13% do orçamento do município de São Paulo1, em detrimento do investimento de apenas 0,7% de seu orçamento na cultura2 (situação repetida nas esferas estaduais e também federal). Esta política de irresponsabilidade social engessa todos os governos, independentemente da coloração partidária e desconsidera a maior parte da população, a população periférica, produtora das riquezas com a força de seu trabalho e, ao mesmo tempo, distanciada do usufruto desta produção. FOMENTO PERIFERIA Enquanto sujeitos periféricos residentes e atuantes às margens da metrópole, propomos e defendemos a criação de uma LEI de FOMENTO à PERIFERIA, capaz de estruturar econômica e poeticamente as coletividades das quebradas. O QUE É o FOMENTO PERIFERIA? É uma Política pública de investimento direto, estruturada em lei e com dotação orçamentária própria, cuja iniciativa potencializa a capacidade criativa e a articulação dos coletivos artísticos periféricos, levando em conta a sua pluralidade materializada em poéticas diversas. A QUE(M) SE DESTINA? Direcionada à produção cultural periférica, cujo protagonismo é o de coletivos culturais com atividades continuadas. O QUE APOIA? Fomentará pesquisas, criação, formação, difusão e manutenção das atividades artístico-culturais, assim como manutenção dos espaços públicos ociosos por estes coletivos, ocupados e geridos com garantia de autonomia política e administrativa. NO QUE DIFERE DE OUTRAS LEIS E EDITAIS? Diferente de outras iniciativas também importantes como o VAI II e Pontos de Cultura, por contemplar não somente sedes “pontos específicos” e por dispor de maior aporte econômico às parcelas contempladas. O Fomento Periferia cobre uma lacuna que inviabiliza os saltos poéticos a que estamos inscritos. OU SEJA... Uma POLÍTICA PÚBLICA proposta e produzida por agentes culturais periféricos de modo a distanciar-se da lógica mercantilista, do caráter eventual das ações culturais e da competitividade desigual dos editais, considerando a cultura um direito humano, garantindo a descentralização dos recursos e uma produção cultural autônoma, singular e continuada, orientada pelas relações sociais estabelecidas por/entre agentes artístico-culturais e suas comunidades. É nóis por nóis! FÓRUM DE CULTURA DA ZONA LESTE #pelaleidefomentoàperiferia

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http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,divida-pode-afetar-sp-por-mais-30-anos-afirmacruz,1104322,0.htm. Acesso em 16/12/2013.

2

Estudo realizado pelo Fórum de Cultura da Zona Leste baseado em dados oficiais publicados pela SEMPLA. Acesse o conteúdo completo em http://passapalavra.info/2013/11/87836.

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Manifesto dos Coletivos Periféricos em apoio à Dilma Rousseff Nós, movimentos e coletivos artísticos, culturais, sociais, políticos e religiosos, organizados que subscrevem este texto, atuantes nas periferias de São Paulo, vimos por meio deste declarar nosso voto contra a direita autoritária, preconceituosa e excludente representada na candidatura de Aécio Neves do PSDB. Diante do atual cenário político, acreditamos que a oposição a esta ideia se representa na candidatura de Dilma Rousseff. Como trabalhadores e trabalhadoras, moradores de favelas e periferias da cidade de São Paulo, temos presente na memória a barbárie que se instalou nestas regiões quando o PSDB governou o país entre os anos de 1995 e 2002. Também sentimos na pele a política deste partido à frente do governo do estado de São Paulo. Os governos do PSDB têm representado a criminalização dos movimentos sociais; a repressão contra a população pobre, preta e periférica e o preconceito contra os diferentes setores marginalizados da sociedade como os negros, índios, diferentes orientações sexuais e religiosas, nordestinos e pobres em geral. Preocupados com o retrocesso político e social proposto pela classe social que o PSDB representa, afirmamos nossa opção pela vida e contra a barbárie, ao apoiarmos a candidatura de Dilma Rousseff para a presidência do Brasil. No entanto, gostaríamos de pontuar algumas pautas muito importantes para a população moradora da periferia de São Paulo e da periferia dos grandes centros urbanos do país. Estas pautas incidem diretamente em nossas vidas, e devem ter uma atenção maior por parte daqueles que ocupam os principais cargos públicos. Reivindicamos que o Governo Federal assuma o compromisso de priorizar Políticas Públicas de Estado para a população pobre, preta e periférica, assim como o fortalecimento dos movimentos sociais e dos setores historicamente marginalizados como os índios, negros e o combate à homofobia. Destacamos e exigimos prioridade nos pontos elencados a seguir: • Demarcação de todas as terras indígenas e quilombolas (observa-se que as da cidade de São Paulo estão na mesa do Ministro José Eduardo Cardozo – Assina Cardozo); • Reforma urbana; • De maneira imediata, exigimos multas e desapropriações de terrenos e imóveis que não cumprem sua função social; • Pelo fim dos despejos; • Reforma agrária; • De maneira imediata, exigimos a desapropriação das fazendas que se utilizam de trabalho escravo, com punição aos responsáveis; • Combate ao uso de agrotóxicos na produção alimentar; • Investimento na produção agrícola realizada pelo pequeno agricultor; • 10% PIB pra Educação Pública, Gratuita e de Qualidade; • Saúde 100% Pública, Gratuita e de Qualidade; • Pela legalização do aborto; • Ampliação de ações de combate a violência doméstica e da mulher; • Pela criminalização da homofobia; • Democratizar os meios de comunicação e suas concessões (abertura das rádios e TVs comunitárias); • Pela instituição de uma constituinte exclusiva e soberana para a reforma do sistema político; • Criação de uma agenda permanente de encontros regulares com os movimentos sociais; • Redução da jornada de trabalho de todas e todos trabalhadores para 40 horas semanais. Mais tempo livre para família, estudos, lutas e ócio já! • Criação e aprofundamento de mecanismos de participação popular; • Pela taxação das grandes fortunas; • Fim imediato da violência policial e desmilitarização das polícias; • Por uma política nacional de desencarceramento;

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• Punição imediata dos responsáveis pelo genocídio da população preta, pobre e periférica; • Consolidação da Defensoria Pública e de sua interlocução popular; • Punição imediata dos responsáveis pelos crimes cometidos na Ditadura Militar (1964-1985); • Criar Comissão da Verdade para punir os crimes na Democracia; • Pela abertura de uma CPI para investigar e punir os responsáveis pelos mais de 500 incêndios em favelas ocorridos entre 2008 e 2012 no município de São Paulo; • Construção do Memorial da Memória e da Verdade nas Periferias no período Ditatorial e no pós-ditatorial; • Transporte 100% público, gratuito e de qualidade; • Aumento dos investimentos em infraestrutura nas periferias urbanas, com melhora da qualidade dos transportes e construção de mais linhas de metrô nessas regiões, com recursos federais; • Pelo aprofundamento dos processos de integração com países latinoamericanos e africanos; • Garantia de internet gratuita de qualidade para todo território brasileiro; • No âmbito cultural, reconhecemos avanços em programas como o Cultura Viva e os Pontos de Cultura, dentre outros. No entanto, seguem abaixo pautas importantes que julgamos serem necessárias para produzirmos mais arte e cultura e de melhor qualidade, fundamentalmente aquela produzida pela população moradora da periferia: • 1% do PIB para a cultura pública (ou seja, financiamento direto); • Fim das Leis de renúncia fiscal; • Criação de Políticas Culturais Públicas de Estado estruturadas em Lei priorizando as áreas com alto índice de vulnerabilidade social; • Defesa e Promoção das culturas tradicionais (indígenas, terreiros, ciganos, imigrantes) para o combate à intolerância cultural e religiosa; • Ampliação dos equipamentos para produção e promoção de cultura nas periferias urbanas e rurais (casas de cultura, bibliotecas, teatros, cinemas, etc.); • Atendimento e fortalecimento das propostas levantadas nas conferências de cultura municipais, estaduais e federal; • Ampliação do Plano Juventude Viva no combate ao racismo institucional que promove o genocídio da juventude pobre, preta e periférica; • Avançar na promoção da cultura voltada para a primeira infância, terceira idade e pessoas com deficiência; • Criação de uma conferência de cultura para infância; • Aprovação imediata da PEC 150 (garantia de recursos para a cultura); • Votação Imediata da Lei PNLL e a implementação dos PMLLs (Plano Nacional do Livro e Leitura); • Garantir que pelo menos 10% dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal sejam destinados à Cultura; • Aprovação da lei Griôt; • Ampliar os programas VAI e Agentes Comunitários de Cultura para todo Território; • Criação de lei de apoio à ocupação de espaços públicos ociosos e/ou abandonados, por coletivos culturais locais; • Ampliar a ações intersetoriais entre Cultura, Educação, Esporte e Economia Solidária e Direitos Humanos; • Incluir o Futebol de Várzea dentro das políticas de cultura do MINC; Cremos que somente amplas mobilizações populares podem de fato fazer avançar estas pautas. Comprometemo-nos a construí-las. Contamos com o apoio do governo Dilma Rousseff. Cabe ressaltar que temos plena consciência dos limites da via eleitoral. No entanto, segue sendo uma trincheira de luta, dentre outras. Abandonar esta trincheira por completo, neste momento, pode decorrer em graves consequências para o país, principalmente para as classes populares. Um pé no voto, uma vida na luta! Outubro de 2014

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Alan Vitor Corrêa, conhecido como “Alvico”, é professor de sociologia na rede pública do Estado de São Paulo e articulador cultural na Ocupação Cultural Mateus Santos, situada no bairro de Ermelino Matarazzo. Nas artes visuais, é ilustrador e graffiteiro e em seus trabalhos procura sempre inserir reflexões e críticas sociais, procurando agregar um sentido político ao seu trabalho.

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