Mulheres malqueridas

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malqUERidAs


Bibliotecária: Helena Joana Flipsen - CRB-8ª / 5283 M582m

Michelena, Mariela Mulheres malqueridas : a reconstrução de uma identidade perdida / Mariela Michelena ; tradução: Camilla Bazzoni de Medeiros. -- Campinas, SP : Saberes Editora, 2011.

ISBN 978-85-62844-19-5 Tradução de: Mujeres malqueridas.

1. Psicologia. 2. Medicina. 3. Qualidade de vida. I. Título. CDD - 150 - 610 - 613.71


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malqUERidAs A reconstrução de uma identidade perdida


Copyright by © Mariela Michelena, 2010 Direito desta edição Saberes Editora, 2011 Título original: Mujeres malqueridas Reconstrucción de la identidad más allá de la pareja

Editores Lenir Santos Luiz Odorico Monteiro de Andrade Capa Bruna Mello Projeto gráfico e editoração Valéria Ashkar Ferreira Revisão Olivia Yumi Duarte

Av. Santa Isabel, 260 - sala 5 B.Geraldo - Campinas, SP - Brasil CEP 13084-012 Fone +55 19 3288.0013 saberes@sabereseditora.com.br www.sabereseditora.com.br

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malqUERidAs A reconstrução de uma identidade perdida

TRADUÇÃO Camilla Bazzoni de Medeiros



À minha Beba. À minha mamãe.



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Agradecimentos...............................................................................17

1. MALQUERIDAS.........................................................................19 Malqueridas................................................................................................. 22 Elas têm a palavra....................................................................................... 24 “O que fiz para merecer isto?”.................................................................. 26 Os homens e as mulheres........................................................................... 28 Apenas mulheres?....................................................................................... 31 O ciclo da repetição..................................................................................... 34 Não espere um GPS.................................................................................... 36

2. AMOR DE MÃE.........................................................................39 Por que somos capazes de amar assim?.................................................. 42 Um homem não é um bebê........................................................................ 45 O que significa “amor incondicional”?.................................................... 47 Onipotente ou indefeso?............................................................................ 50

3. A ESCOLHA................................................................................53 A ratinha vaidosa........................................................................................ 56 A agenda oculta........................................................................................... 58


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As oportunidades perdidas....................................................................... 63 A rã e o escorpião........................................................................................ 66 A quem escolher?........................................................................................ 67 Deixar-se levar é escolher........................................................................... 70 Cometer dois erros em vez de um............................................................ 71

4. A CRIAÇÃO DE UM DEUS.....................................................73 A paixão: “Um, dois, três...”...................................................................... 75 O efeito hipnótico passa............................................................................. 77 O amor é como gaspacho?......................................................................... 81 Deus.............................................................................................................. 82 Criar um deus.............................................................................................. 84 A ordem à distância.................................................................................... 86 Efeito “pausa”.............................................................................................. 88 “Suas ordens são meus desejos”............................................................... 90 Pobre deus!................................................................................................... 92

5. O PEDESTAL...............................................................................97 O conto da pilha e o brinquedo.............................................................. 100 Separação de bens e de males................................................................. 103

6. OS PECADOS CAPITAIS........................................................105 É, ou não é, amor?..................................................................................... 107 Pecados capitais......................................................................................... 110

7. A SUBMISSÃO..........................................................................113 Onde está Irene?........................................................................................ 115 Um pecado com muitas adeptas............................................................. 120

8. A INTERMITÊNCIA................................................................123 Agora sim, agora não................................................................................ 125 12


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Tirar água de pedra.................................................................................. 129 A montanha-russa..................................................................................... 131

9. A DEPENDÊNCIA...................................................................133 Andrea e Marcos.......................................................................................... 136 A clandestinidade...................................................................................... 138 “Está tudo sob controle”.......................................................................... 141 “Não” ao primeiro café!........................................................................... 146

10. A IMPOSTURA......................................................................147 Isabel............................................................................................................ 149 O fake........................................................................................................... 152 Uma vida bilíngue.................................................................................... 154 A síndrome de Cinderela......................................................................... 158 As meias-irmãs.......................................................................................... 160 Ingrid........................................................................................................... 162 Os homens.................................................................................................. 165

11. A INFIDELIDADE..................................................................167 Os triângulos.............................................................................................. 170 O que quer o homem?.............................................................................. 171 Marina e Boris............................................................................................. 174 Mãe ou amante.......................................................................................... 175 Os contos infantis...................................................................................... 177 Eva e Lillith................................................................................................ 178 O que quer a mulher?............................................................................... 181 A uma e a outra......................................................................................... 183 Rebeca.......................................................................................................... 184 Rebeca no passado, presente e futuro.................................................... 186 “A Outra” para a mulher.......................................................................... 189 Teresa............................................................................................................ 190 13


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O fascínio pela “Outra”............................................................................ 192

12. O CIÚME.................................................................................195 Pablo............................................................................................................. 197 A unidade perdida.................................................................................... 200 O triângulo do ciúme................................................................................ 203 O medo....................................................................................................... 205 A paixão e o medo..................................................................................... 208 Da dependência à autonomia.................................................................. 210

13. AS AMIGAS............................................................................213 As amigas................................................................................................... 216 Amigas testemunhas................................................................................ 219 Amigas sem fronteiras.............................................................................. 222 Amigas “termômetro”.............................................................................. 224

14. OS ORÁCULOS.....................................................................227 A leitura de cartas..................................................................................... 229 Victoria......................................................................................................... 229 Gustavo........................................................................................................ 232 O pensamento mágico.............................................................................. 235 Os livros de autoajuda.............................................................................. 238 A verdadeira função de um livro de autoajuda.................................... 241

15. OS TERAPEUTAS..................................................................245 Perdões ou consciência?........................................................................... 248 O lugar do terapeuta................................................................................. 252 Um alívio imediato................................................................................... 255 Psicanalista ou feiticeiro?......................................................................... 256 O divã ou a vela?....................................................................................... 257 A psicanálise.............................................................................................. 259 14


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16. A QUEDA DE UM DEUS......................................................261 “É que eu o amo”...................................................................................... 267 Palavra de deus......................................................................................... 267 “É meu investimento”.............................................................................. 271 O sentimento de culpa.............................................................................. 273 Não ligar e ponto!..................................................................................... 278 Ordem de distanciamento....................................................................... 279 O diabo ou o demônio?............................................................................ 281

17. O QUARTO DO LUTO.........................................................285 A esperança................................................................................................ 287 Certamente a esperança não é apenas prejudicial................................ 288 Elas falam................................................................................................... 289 O quarto do luto........................................................................................ 291 As lembranças........................................................................................... 294 Túnel ou poço?........................................................................................... 295 A recuperação............................................................................................ 297 Medo do que vem depois......................................................................... 300

Despedida.......................................................................................305 Bibliografia......................................................................................311

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agradecimentos Aos meus pacientes, todos eles, fonte constante de estímulo e de conhecimento. A Elina, Corina e Loreto, leitoras generosas. Às minhas fontes bibliográficas: Corina, Elina, José Jaime e Patrícia. E, como não podia deixar de ser, a Fernando, que utiliza a caneta vermelha com a precisão de um bisturi para escavar e extrair o melhor de meus textos. Nunca agradecerei o bastante pela sorte de contar com seu ponto de vista.



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Ao longo do último século, foram muito valiosos os ter­ ritórios que a mulher conquistou. O voto, a independência econômica e a possibilidade de decidir como, quando, onde e com quem terá seus filhos são conquistas indiscutíveis. Contudo, em meio a aplausos por tantas vitórias, levamos algum tempo escutando as queixas de mulheres independentes que sofrem por um mau amor. Não há muitos anos, esse lamento encaixava-se perfeitamente na lista interminável de maus-tratos e postergação social de que as mulheres eram vítimas. Seu padecimento por amor era uma queixa a mais, ou quase seria possível dizer uma queixa a menos, porque entre tantas reivindicações fundamentais, uma lágrima, uma espera, um nó na garganta ou uma insônia pareciam detalhes insignificantes. Levando em consideração a condição de menosprezo que tem sido imposta à mulher durantes séculos, interrogar-se por sua felicidade no amor tem sido como se, diante de um garoto que esmola no semáforo de uma esquina, nos preocupássemos com o estado de suas unhas ou de seus dentes. 21


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Hoje, uma vez que outros problemas mais urgentes já estão resolvidos, escutam-se com mais intensidade as vozes das mulheres que sofrem por amor. Seus lamentos ecoam num mundo que muitas já dão por conquistado. Todos nós conhecemos mais de uma mulher que se queixa de que a amam mal. Escuta-se o eco de sua dor nos lugares de trabalho, nas academias, nas animadíssimas refeições com amigas e nas séries de TV. Dizem que é um tema feminino da atualidade. Sem dúvida, conheço e frequento todos esses lugares, mas neste livro vou falar da minha experiência como psicanalista.

Malqueridas Ao falar de mulheres malqueridas, o foco será as mulheres que padecem de um mau amor; não necessariamente de mulheres maltratadas fisicamente, mas sim aquelas envolvidas em relações impossíveis, destrutivas, que choram por um amor perdido ou sem futuro – embora passem toda a vida apegadas a esse pranto e a essa relação. Mulheres fiéis a companheiros intermitentes; amores furtivos, proibidos, clandestinos; mulheres extraordinárias que se transformam em meninas atormentadas se um homem não as ama. Mulheres atadas a um sentimento de autocomiseração; condenadas a serem a forma de qualquer sapato, ou a se instalarem debaixo de qualquer sapato. Mulheres que não se cansam de escutar: “Não quero compromissos”. Mulheres submissas, mansas, assustadas, complacentes. Mulheres que são fortes diante de todos os desafios da vida, brilhantes para resol22


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ver suas tarefas, para enfrentar qualquer desafio, valentes para tudo, exceto para resguardar-se desse homem que as ama mal. Mulheres dispostas a esperar e esperar e esperar. Enganadas, traí­ das, malqueridas... De seus companheiros seria difícil delimitar onde começam os maus-tratos emocionais e onde termina a animosidade. E quando digo que as malquerem, não me refiro a NÃO as amar; ao contrário, pode ser, inclusive, que as amem muito. O que ocorre é que as amam mal. Amam alguém que não são elas, uma pessoa diferente, do avesso, e a mulher se contorce até encontrar a forma exata que se encaixe no traçado caprichoso desse mau amor. Às vezes o homem ama a “outra” que tem em sua imaginação, e pretende transformar sua amada em alguém que não é ela; a amada, assim, se desconjunta para tentar agradar-lhe. O que ele tem é apenas consideração por sua mulher verdadeira, sendo que muitas vezes nem sequer se preocupa em conhecer seus gostos, suas inclinações, suas dificuldades. Para quê? É suficiente que ela sempre esteja disponível para ele. Trata-se de um amor que costuma ficar um pouco apertado na cintura e folgado nas costas. É um amor “de outra envergadura”, que não cai bem a quase ninguém e que, não obstante, essa mulher insiste em levar adiante, apesar do sofrimento que lhe causa. Uma mulher inclinada a um amor como esse deve ter a mesma sensação de andar em sapatos emprestados: muitas vezes são apertados, pontiagudos e com um salto muito alto. Enquanto todos os que a cercam a veem fazendo malabarismos e cambaleando, ela se vê elegantís­ sima e maravilhosa, incapaz de reparar que não passa de uma mulher que sofre e que se sente profundamente infeliz. 23

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O que sustento é que em toda mulher malquerida por uma série de homens, há uma mulher que quer mal a si mesma. E quando digo que se ama mal, quero dizer que se ama com um amor tergiversado. Com suas palavras ela diz que quer uma coisa, mas seus atos revelam que deseja outra. Não estou falando de que “não se ama o suficiente”, nem me refiro a uma “baixa autoestima”. É possível que, sem saber, inclusive, se ame em excesso e se sinta, no fundo, tão forte e tão poderosa a ponto de ser capaz de salvar, por amor, todas as dificuldades que se apresentem no caminho, embora no empenho deixe o sangue e a pele. Alguém que faz um mau negócio não é necessariamente alguém que não tem dinheiro; pode ficar sem dinheiro por não ter calculado bem as contas, por causa de um negócio torto ou de um mau investimento. Contudo, ficar sem dinheiro é uma consequência, não uma causa. Ficar sem autoestima pode ser a consequência de ter investido mal o amor próprio. Às vezes, o amor próprio tem uma preocupante tendência ao heroísmo, a adornar-se a si mesmo com uma crista de super-herói, que leva sua dona a sentir-se capaz de cometer certas proezas titânicas que não lhe atribuirão nem êxito nem fama mundial, nem, sequer, lhe servirá para assegurar um lugar no céu. Apenas obterá cansaço, humilhação e sofrimento.

Elas têm a palavra Da minha experiência como psicanalista, já tive oportunidade de me deparar com muitas mulheres malqueridas. Suas 24


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histórias aparecem nestas páginas suficientemente mascaradas para que nem mesmo elas possam reconhecer-se. Todas elas têm me ensinado algo. Todas, e cada uma, têm me permitido descobrir uma fascinante e singular resposta. A todas elas, para começar, meu agradecimento. De cada uma das histórias me aproximo como se fosse a primeira, e não posso deixar de perguntar-me: “E por quê?” E por que esta mulher, tão inteligente, tão desenvolta e exitosa em seu trabalho não se dá conta do quanto está sofrendo? E, se sabe, por que aceita, como se não tivesse alternativa? E por que sofre tanto pelo final de uma relação que ia tão mal? E por que reata com ele, depois de tudo o que sofreu ao seu lado? E por que sente tanto sua falta, se apenas se suportavam? E por que espera que ele mude, se é evidente que nunca vai mudar? E por que lhe parece que esse homem é tão extraordinário, se, tampouco, é para tanto? E por que buscou outro homem exatamente igual ao anterior? De todas essas perguntas se desprende uma que é fundamental: que vantagem tira ela de tudo isso? Que estranha e secreta transação realizou ela, consigo mesma, com seu companheiro, com a vida, para crer que uma situação tão dolorosa lhe resulta rentável? Como explicar tanta resistência em abandonar esse lugar que aparentemente é tão incômodo? Tentar responder essas perguntas é o tema que irá traçar, como um fio condutor, as páginas deste livro e que o diferenciará de outros.

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“O que fiz para merecer isto?” Em meu consultório, eu não sou a única que faz perguntas. A paciente que comparece a uma consulta também está buscando respostas. Quando alguém, qualquer pessoa, homem ou mulher, sofre e reza para o outro sua ladainha de queixas, ao final, embora não pronuncie as palavras, tem dentro de si algo que reclama: “O que fiz para merecer isto?” Geralmente, repito, apesar de não pronunciarem as palavras, o tom soa mais como uma reclamação do que uma interrogação, e não parece que o afetado esteja esperando uma resposta, senão um conselho. Com frequência, o que espera escutar de seu interlocutor é algo mais ou menos assim: “Você não fez nada; isto é uma injustiça; você é estupendo(a); claro que não merece uma situação como esta. As circunstâncias são duras, e o ‘mau’ é o outro.” Claro que há sofrimentos que ninguém merece. Ninguém merece ser mal-amado, e muito menos maltratado. Porém, quando um paciente formula essa mesma queixa na consulta a um psicanalista, este entende de maneira literal a pergunta, e se coloca na tarefa de ajudar o paciente a compreender o que fez ele para merecer tal situação. Começa-se a amarrar as perguntas do paciente com as do terapeuta e se empreende um caminho conjunto em busca de respostas. Com o passar do tratamento e a ajuda do psicanalista, o paciente termina por deparar-se com o reverso de sua própria pergunta: “Ok, pode ser que eu tenha feito tal ou qual coisa para contribuir com esta penosa situação que estou vivendo...” 26


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No caso das mulheres que sofrem por amor, as respostas a estas perguntas costumam ser múltiplas. À mulher malquerida que se pergunta: “O que tenho feito?”, poderíamos começar respondendo que a primeira coisa que ela tem feito é ser mulher. E então indagaríamos, em cada caso particular, acerca de como ela caminha, à sua maneira, pelo território de sua feminilidade, um caminhar que virá determinado por sua história infantil, por uma família, uma mãe, um pai, um lugar entre os irmãos, um caráter e uma forma de ser. É certo que encontraremos traços comuns em algumas mulheres malqueridas; porém, não há uma causa única que explique todos os casos. Há que pensar melhor numa dialética constante entre o geral e o particular, entre aquilo que afeta todas as mulheres, como gênero – essa extrema grosseria da generalização, do “eterno feminino” – e o estritamente particular e pessoal, que concerne a cada mulher segundo sua própria história. Se apenas tivesse importância o geral, o universal, escrever este livro não teria sentido, porque todas as mulheres, sem exceção, estariam destinadas, condenadas a serem mulheres malqueridas. Se, ao contrário, apenas tivesse peso a história pessoal, também nos veríamos obrigados a abandonar nosso empenho, pois não teríamos nada que apontar com um só livro; teríamos, sim, que escrever um livro para cada leitora, que desse conta de sua própria biografia. Assim que, nestas páginas, iremos permanentemente do geral ao particular, e viceversa. Não são poucos os traços “do feminino” que contribuem para que uma mulher se preste a representar em sua vida o papel 27

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de malquerida; contudo, neste livro, veremos que alguns deles parecem mais relevantes que outros. Na perspectiva do particular, nos encontramos diante do peso da história infantil e sua influência na vida adulta, que fará que esses traços femininos se modelem de forma peculiar em cada mulher. Essa história infantil gerará uma espécie de “agenda oculta”, um plano secreto que escapa à lógica formal e à consciência. Trata-se de um guia silencioso que se segue às cegas. Um guia que nem sempre leva o usuário pelo melhor caminho, nem, muito menos, pelo mais tranquilo ou simples. Ao contrário, o leva a repetir situações dolorosas, algumas vezes, sem saber nem como, nem quando, nem por quê. Trata-se de um guia secreto dos nós do inconsciente, que, com frequência nos domina e nos trai.

Os homens e as mulheres Buscando analogias que permitam nos aproximar em toda sua complexidade do mistério do feminino e do masculino, penso que Hamlet, a tragédia de Shakespeare, conta com dois personagens que encarnam, cada um em sua própria tragédia, o que podemos chamar de o extremo da posição feminina e o extremo da posição masculina. Refiro-me ao casal malsucedido de ­Hamlet e Ofélia. Hamlet e Ofélia estão loucamente apaixonados um pelo outro. Tudo está bem, até que o rei, pai de Hamlet, morre em estranhas circunstâncias, e ele, como seu único filho, se vê 28


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obrigado a vingar essa morte. A partir desse momento, toda sua vida passa a girar em torno do transformar-se no digno vingador de seu pai. O resto do mundo deixa de lhe interessar, inclusive Ofélia. Apenas o move a obsessão de vingança e a dúvida de se será ou não capaz de dar conta de cumprir com o que o pai espera dele. Ao longo da tragédia, perseguido pela indecisão, Hamlet se faz muitas perguntas, porém, dentre todas elas, há uma que o caracteriza: Ser ou não ser? Sua pergunta me parece tipicamente masculina, algo assim como “sou homem suficiente para cumprir com o que espera meu pai?”; “como teria que demonstrálo?” Sua pergunta encarna a preocupação masculina, do homem que está mortificado por “ser”, por parecer o que se supõe que deva ser: um homem. Para a posição masculina, é importante demonstrar ativamente que ele “tem” o que tem que ter, e costuma passar boa parte de seus dias colocando seus atributos sobre todas as mesas. Ele “tem que ser” o mais valente, o mais potente, o mais preparado, o mais conquistador. Enfim, tem que ser sempre o primeiro de alguma lista, de alguma competição que continuamente está travando com algum outro homem em sua cabeça. De fato, na tragédia de Shakespeare, Hamlet está disposto a matar – e mata – para “ser” um homem, ser um digno filho de seu pai, para defender seu lugar no mundo. Mas e as mulheres? E o que se passa com ­Ofélia? Enquanto Hamlet está obcecado pela vingança, ocupado em elucidar se ele “é ou não é”, em averiguar o que teria de fazer para “ser” um homem como seu pai, Ofélia, alheia por completo às lutas pelo poder, apenas sabe que ela segue apaixonada por Hamlet e que 29

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ele a ignora. Incapaz de tomar nenhuma iniciativa, apenas sonha com seu amor. E assim Ofélia passa as horas perdida, entregue a perguntar-se outra coisa. Ofélia está louca de amor, e se rende, sem moderação, à sua loucura. Perdeu a razão porque ­Hamlet não a ama. Rodeada de flores, dedica os últimos dias de sua vida a desfolhar margaridas e a perguntar: “Bem me quer? Mal me quer?” Ofélia está disposta a morrer – e morre –, tirando sua própria vida por amor. Ofélia encarna o extremo da passividade feminina. A queixa de Ofélia é a que mais se escuta da boca de uma mulher, que, cedo ou tarde, se perguntará: “Bem me quer? Mal me quer?”; “O quanto me ama?”; “Como me ama?”; “Vai me amar para sempre?”; “Que tenho de fazer para que me queira mais?” Essas perguntas não costumam ser o melhor caminho para esclarecer dúvidas a respeito de uma relação abalada. Não é suficiente a resposta “Sim! Ele me ama!” Também os malvados amam muitíssimo suas vítimas, tanto que não suportam ficar sem elas ou vê-las viver longe de seu controle... Eles as amam, sim, mas as amam mal, as amam com um amor monstruoso, como um amor doentio. O desejo por elas é tanto que preferem vê-las mortas que nos braços de outro, por exemplo. Assim, essas perguntas sugerem respostas enganosas. Para começar, a resposta está nas mãos da outra pessoa, e sempre é preferível ter perguntas cujas respostas possam ser dadas por cada um; por exemplo: “Uma relação assim compensa ou não compensa?”; “É tudo o que eu quero para minha vida?”; “Estou disposta a perdoar outra infidelidade?”; “Quantos anos 30


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mais posso esperar até que se decida?”; “Devo acreditar em suas palavras, atos e promessas, ou nos fatos?”

Apenas mulheres? Vamos falar de “mulheres malqueridas” para entender por que são maioria, dado que também há “homens mal-amados”. Exceto a Barbie, não conheço nenhuma outra mulher que seja cem por cento uma mulher, nem nenhum homem, exceto ­Rambo, que seja cem por cento um homem (e digo Rambo porque me parece que nem sequer o Ken, o companheiro da Barbie, tem sua identidade sexual muito definida). O ser humano se distingue, dentre outras coisas, por sua disposição à bissexualidade. Diante de cada pessoa concreta, mais que de “homens” e de “mulheres” em estado puro, cabe falar de posição masculina ou posição feminina, identificando “feminino” com passividade e “masculino” com atividade. Para explicar em que sentido identifico o par feminino/masculino com o par passividade/atividade, vou recorrer à expressão biológica mais elementar: a fecundação. Do ponto de vista mais descritivo, na fecundação, cor­rendo risco de ser considerados politicamente incorretos, podemos afirmar que o óvulo espera (passivamente) a chegada do espermatozoide, enquanto o espermatozoide há de buscar (ativamente) o encontro com o óvulo. Assim se forja a história de amor entre o óvulo e o espermatozoide. O que acontece quando essa expressão biológica elementar se faz mais complexa, ou seja, quando falamos de seres humanos? 31

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Então contamos com um leque muito variado, em que o feminino e o masculino, a passividade e a atividade, se misturam em distintas proporções, trazendo, como resultado, uma gama muito ampla de atitudes humanas, que recorre desde os extremos mais caricaturescos da homossexualidade – na qual se supõe, por exemplo, que um homem se coloca claramente numa posição feminina, ou uma mulher numa posição indiscutivelmente masculina –, à suposta heterossexualidade, sem mácula, representada pelos ícones do “macho ibérico” e da “mulher-objeto”, passando pela executiva agressiva, do “ordeno e mando”, uniformizada com seu impecável terno, ou o metrossexual ar­rumado, que se depila, usa o secador de cabelo durante mais tempo que sua mulher e gasta em cremes tanto ou mais que ela. Uma vez esclarecido que parto da ideia de um gradiente masculino-feminino de infinitas combinações, quero destacar que na posição feminina passiva há uma maior disposição para sofrer por amor que na posição masculina ativa. Para Simone de Beauvoir, o estilo de amar, considerado como “tipicamente feminino”, é a consequência inevitável da situação de desvantagem social em que se encontra a mulher, uma situação de dependência que a impede de situar-se na vida como sujeito e ser protagonista de sua história. Segundo seu ponto de vista, a mulher, condenada a depender de um homem, não teria outra alternativa que transformar esse homem num deus, e, a partir daí, converter sua condição de escrava numa virtude, e o amor, em sua única razão de ser. O curioso é que a mulher não se rebela contra esta situação, mas sente-se orgulhosa de sua escravidão e experimenta uma espécie de honra de serva. É assim 32


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o amor para a mulher: mais que uma forma de expressão afetiva, ele se constitui uma religião. Pessoalmente, compartilho da opinião de Simone de ­Beauvoir quanto à situação da maioria das mulheres há escassos decênios. Porém, esta colocação se faz insuficiente para explicar a situação de um enorme número de mulheres que sofre de amor na atualidade. Hoje em dia, há cada vez mais mulheres que contam com uma situação econômica estável e que são as únicas donas de rendas financeiras de sua vida. Qualquer um conhece uma mulher que conquistou um lugar próprio no mundo sem depender de nenhum homem. Sabemos que, apesar de persistirem as diferenças por razões de sexo, cada vez há mais mulheres que alcançam postos de alta responsabilidade na política, nos negócios, na cultura etc. Simone de Beauvoir se sentiria orgulhosa de todas elas, porque são a demonstração de que sua luta e suas palavras, inspiradoras do feminismo mais fecundo, não foram em vão. E apesar de todo esse sucesso, a mesma Simone de ­Beauvoir se surpreenderia se comprovasse até que ponto as consultas psicológicas seguem se nutrindo de mulheres autônomas, emancipadas, independentes, que, escondidas, choram desconsoladas as feridas que deixa um amor malsucedido, como costumavam chorar suas antecessoras. Essas mulheres brilhantes, reconhecidas, a quem não há quase nada para conquistar do ponto de vista profissional, seguem imitando Ofélia e, às escondidas, desfolham a triste margarida do “Bem me quer? Mal me quer?” Visto assim, o argumento da subordinação econômica e social da mulher a respeito 33

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do homem não é suficiente para explicar este estilo feminino de amar. Temos que buscar a explicação em outra parte. Neste caso “a verdade não só está ali fora”, na sociedade, senão também “aqui dentro”, na mesma condição feminina, o que veremos no próximo capítulo.

O ciclo da repetição Fazer-me as mesmas perguntas ao longo de tantos anos tem me levado a conceber a ilusão de que é possível respondê-las. O amor é um animal estranho e caprichoso que se move sem bús­ sola, e suas razões escapam a toda lógica consciente. O amor é um animal que se alimenta de certezas absurdas e de verdades falsas. O caso é que a experiência terapêutica repetida com estes tipos de casos tem me permitido vislumbrar um padrão reiterativo. A repetição é uma marca de identidade da conduta humana. Costumamos repetir às cegas desde a conduta mais sublime até a mais inapresentável. Quero que, por meio do livro, recorra comigo uma espécie de ciclo que se repete, e que começa com toneladas de ilusões e expectativas que, sem entender muito bem o porquê, naufragam muitas vezes num amor lastimoso. Depois de nos aproximar dessa disposição tipicamente feminina para o amor incondicional e o sacrifício, continuaremos a história com a própria eleição de casal, que sempre é fruto de tudo, menos do azar. Refiro-me aos casos nos quais se estabelece um tipo de relação em que a mulher transforma o homem em 34


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um deus e passa a ocupar o lugar de sua serva, sua dona. Repas­ saremos o que se chama por “pecados capitais” de uma relação; algumas dessas situações, atitudes ou vícios inevitáveis, mas que, em excesso, se convertem em pecados que levam a mulher a se ver envolvida em relações destrutivas e sem futuro. Recorreremos a vários dos ingredientes típicos desses tipos de relação: a infidelidade, a “Outra”, os zelos. Repas­saremos, também, alguns dos recursos que deixam uma mulher presa neste tipo de relação: no melhor dos casos, começa a funcionar uma espécie de “radar”, que a leva a buscar ajuda e companhia; também recorre às suas amigas, que se transformam em pilares firmes que a sustentam; além disso, busca conselhos com o mesmo interesse num livro de autoajuda, no horóscopo ou em cartas de tarô, e, finalmente, quando nada disso funciona e o sofrimento persiste, recorre a um terapeuta para pedir ajuda psicológica. Veremos que cada uma dessas “tábuas de salvação” cumpre uma função diferente, tem suas peculiaridades e nenhuma delas substitui as demais. A maioria destes amores impossíveis, por sorte, não são eternos, e aquele que até ontem era um deus e ocupava o lugar mais alto de um pedestal, numa bela manhã, cai sem remédio e quase sem explicação. Um belo dia desaba o véu que não deixava a mulher ver com clareza e o seu ídolo se apresenta em toda sua humanidade. Será quando ela estiver preparada para desprender-se internamente dele, embora tenha se separado há muito tempo atrás. Caído o ídolo do pedestal, começa o processo de reconstrução da mulher, que há de atravessar um duelo inevitável. 35

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Veremos que são muitas e amiúde variadas as estratégias que pode empregar uma mulher para evitar esse duelo, para deixálo de lado; porém, sem esse duelo, não há final. Nos casos de pior prognóstico, uma mulher ainda convalescente de um amor falido, que não conhece as verdadeiras razões que a mantiveram atada a essa relação, prepara-se – sem saber – para empreender outra relação, tão igual e prejudicial quanto a anterior, na qual repetirá o mesmo ciclo. Só quando a mulher consegue determinar que papel tem desempenhado ela mesma em seu sofrimento, nessa desgraçada história, então poderá restituir sua própria identidade, seu valor e sua razão de ser, para além da relação que mantém com um homem. Só então será capaz de se relacionar consigo mesma e com os demais, de uma maneira menos destrutiva e mais proveitosa. Se consegue isso, dará desfecho à roda da repetição, e sua próxima história de amor, sua própria história, será outra.

Não espere um GPS Neste livro, você não encontrará receitas infalíveis. Sinto muito, mas elas não existem; a menos que alguém esteja disposto a curar-se de sua própria humanidade e a vacinar-se contra as paixões. Você encontrará descrições, explicações que respondem a outros tantos “porquês”; esclarecimentos que acompanham, que tranquilizam, que lhe permitirão compreender-se e conhecer-se melhor. Neste livro, encontrará algo assim como o traçado de um mapa, uma sorte de cartografia emocional que 36


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indica quais são os rios, quais são as montanhas, que por aqui há precipícios, e que esta é uma estrada local, e não uma rodovia. Assinalam-se alarmes, alertas, zonas marcadas com bandeiras vermelhas que advertem: “É proibido estacionar”. Será indicado que deste lado está a imensidão do oceano, e ao outro extremo, um limite intransitável. Porém, trata-se de um simples mapa, sem GPS. Não encontrará indicações do tipo “agora vire para a direita, e no próximo semáforo, à esquerda, e ao final do trajeto chegará ao seu destino: a felicidade!” Neste livro ofereço apenas um mapa. A bússola e a decisão última do caminho a seguir estão nas mãos de cada um.

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O que a mulher entende por amor... não é apenas abnegação; é um dom total do corpo e da alma, sem restrições... Esta ausência de condicionantes é o que torna seu amor uma fé, a única que tem. F. Nietzsche


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A forma exagerada de amar de algumas mulheres já fez correr rios de tinta, e as razões que explicam por que uma mulher está disposta a amar dessa maneira não são menores. Neste capítulo, vamos focar um dos traços universais que explicaria por que uma mulher tem essa curiosa disposição ao sacrifício e à entrega, e como essa inclinação está diretamente ligada à maternidade. Do ponto de vista da lógica evolutiva, a mulher foi feita da melhor maneira possível para assegurar a sobrevivência da espécie, muito bem dotada para constituir-se como um órgão de criação. Alguém tem que cuidar da cria, alguém tem que postergar suas próprias necessidades em nome das necessidades do bebê, e a mulher costuma desempenhar esse papel, já que é aquela que está sempre e necessariamente presente no momento do parto. Apenas ela pode dar à luz; apenas ela pode amamentar. Este traço tem implicações extraordinárias para a história da humanidade e, sem dúvidas, levando a um extremo, veremos que pode ter implicações patológicas para a própria mulher quando 41


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exerce esta qualidade fora do contexto evolutivo e maternal para o qual é previsto. Um homem não é o mesmo que um menino, embora muitos homens se empenhem em reclamar sua equivalência.

Por que somos capazes de amar assim? Noemi, uma paciente ex-malquerida, dizia numa sessão: Em minha vida, há muitas coisas que me interessam e às quais podia dar prioridade sem nenhum esforço, porque são coisas das quais gosto. Meu trabalho no laboratório me apaixona, a fotografia, meus cursos de cozinha, minhas amigas. A verdade é que não me faltam coisas com as quais me entusiasmar; porém, quando aparece “O Homem”, é como se tudo passasse a um segundo plano. O homem passa por cima de tudo, inclusive por cima de mim mesma. Depois me sufoco, claro. Contudo, sou assim; minha vida gira em torno de ter uma pessoa e colocá-la no centro de tudo. Talvez tenha a ver com o desejo de ter um companheiro para formar uma família e ter filhos. Para mim, é muito importante ter filhos, e me angustia pensar que eu não possa conseguir.

A vida de Noemi é uma vida rica e divertida, pois ela gosta de coisas muito diferentes e desfruta de cada uma delas com entusiasmo. É muito apreciada nos círculos por onde anda. Em princípio, não precisa de um determinado homem, nem para 42


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manter-se economicamente, nem para ficar bem. Sem dúvida, quando esse determinado homem aparece em sua vida, Noemi se esvazia para deixar-lhe todo o espaço, e se ele se vai, ela fica oca. Nessa sessão, Noemi propunha uma explicação a todas essas concessões que ela realizava. Ela entendia que isso ocorria por seu desejo de ter filhos. Penso que, talvez, havia certa razão nesse pensamento. Minha forma de entender isso tudo é que muitas mulheres se entregam a um mau amor não apenas “para” poder ter filhos, visto que são capazes e estão dispostas a ter e cuidar de seus filhos. Explico-me. Noemi fala de uma entrega total na qual todos os seus interesses, inclusive ela mesma, passam a um segundo plano. Eu só conheço um estado vital em que uma doação semelhante por parte de um ser humano a outro seja necessária: é na relação da mãe com o filho durante a gravidez e os primeiros meses do bebê. Não há maior entrega do que compartilhar o próprio corpo. Durante as primeiras semanas de vida do bebê, não há melhor remédio do que prolongar essa situação de entrega incondicional que houve durante a gestação. O bebê está completamente indefeso e sua dependência é absoluta. Para assegurar a sobrevivência a um ser tão frágil, é necessária uma entrega da mesma magnitude: a entrega tem que ser extrema. É necessário que a mãe esqueça-se de si mesma e de suas próprias necessidades durante um certo período. Em meu livro Un año para toda la vida, dedicado ao primeiro ano de vida da criança, comparei a disposição que tem a mãe para entregar-se ao bebê com a paixão. 43

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Dizia, então, que a mamãe consegue apaixonar-se loucamente por seu bebê, esquecer de si mesma e de suas próprias necessidades, para atendê-lo incondicionalmente. Trata-se da capacidade denominada por Winnicott (pediatra e psicanalista inglês) como “preocupação maternal pri­ mária”. Se seu bebê chora, a mãe se esquece de comer, e não se importa em passar a noite em claro, ou mesmo que o bebê a suje, grite e volte a sujá-la. Ela o olha, embevecida, ele choraminga e segue sem dormir; ela o olha, ele sorri e... não resta dúvida: tratase do ser mais maravilhoso da Terra! Hoje, recorro à “preocupação maternal primária” para explicar a paixão. Se, portanto, se afirma que “a mamãe de um bebê recémnascido se comporta como uma mulher apaixonada”, hoje digo que “uma mulher apaixonada se comporta como se fosse a mãe de um bebê recém-nascido”. Há mulheres, muitas mulheres, por sinal, dispostas a exercitar o músculo da entrega incondicional que tem preparado para um bebê com o primeiro “mequetrefe” que passa por sua porta. Ninguém, exceto o bebê, necessita de uma entrega tão radical. Um homem que telefona não é um bebê que chora porque tem fome. E, sem dúvida, muitas mulheres são incapazes de deixar passar despercebida uma chamada telefônica, e respondem com a mesma solicitude com que responderia ao bebê que reclama à sua mãe o alimento no berço. “O melhor para a criança”; “Eu posso esperar”; “O pobrezinho ainda é muito pequeno”; “Eu, por meus filhos, sou capaz de qualquer coisa”, são frases que escutamos constantemente, 44


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sem nos surpreender. A mãe está sempre ali. De alguma maneira é o que se costuma esperar de uma mãe mais ou menos normal e corriqueira. Independentemente da exigência radical do bebê recém-nascido, a maternidade predispõe a mulher a estar preparada para o futuro. Não digo que esteja instintivamente obrigada a fazê-lo; digo que a predispõe. Ao pai, diferentemente, os filhos, particularmente em seu primeiro ano, permanecem um pouco mais distantes. Não me refiro a que não se ocupe ou que não tenha que fazê-lo; digo que sua preocupação tem características radicalmente diferentes das da mãe. Em geral, os homens estão menos dispostos do que as mulheres a se colocarem em segundo lugar em relação ao filho. Frequentemente, os vemos, inclusive, competindo com o pequeno pelo afeto e atenção da mãe. Já escuto as vozes dos que protestarão, recordando que conhecem um pai que é “uma mãe”. Sei, eu também os conheço. Falo da maioria. Lembremos, de novo, aquilo da posição masculina e feminina. Um homem com capacidade para assumir, em determinadas circunstâncias, uma posição feminina pode estar muito mais disposto e preparado para esquecer-se de si mesmo em nome de um filho.

Um homem não é um bebê O certo é que com frequência atendo mulheres presas em relações destrutivas e sem futuro, que têm transformado seu namorado, amante ou marido em “seu bebê”, e ao qual exigem que 45

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dependa delas e que lhes permita demonstrar sua desmedida capacidade de entrega e sacrifício. Uma vez aceito esse “pacto secreto”, elas sacrificam tudo em nome daquele homem, lhe rendendo tributo como a um rei e o adorando como a um deus. Tal e qual contava Noemi na consulta, quando aparece o “bebê” na cena, os horários vêm marcados por seu relógio. A própria respiração lhe pertence, e O Homem decidirá se essa mulher vai respirar ou se vai se afogar em dor. É produzida uma espécie de diferenciação quase física e uma incondicionalidade irracional. Não obstante, essa entrega tem um outro lado. Em troca, essa mulher recebe o troféu de se sentir indispensável. O Outro, o menino, o homem, precisa de algo, e ela, em sua imaginação, é a única que o tem e que pode lhe dar. Se ela tem o que ele necessita, ela é tudo. Nesse tipo de relação, não há lugar para o perdão, porque não há ofensa possível. Quando se coloca como a mãe de um bebê recém-nascido, a mulher deve estar preparada para os maus-tratos, para a indiferença, para o choro inexplicável, para suas vontades inconvenientes, para sua ingratidão e sua arrogância. Os maus-tratos não são identificados como tais, porque esse é o “seu bebê”, e isso o converte em um deus adorável. Logo dormirá, e ao dormir, a deixará descansar. Logo sorrirá, e um único de seus sorrisos apagará qualquer ofensa. O problema surge quando se faz exatamente o mesmo com um homem barbado. Isso é o que converte uma mulher em malquerida: suportar seus bufões, sua indiferença, sua traição e seus acessos de cólera com um estoicismo maternal. Ela se converte em malquerida quando um sorriso é suficiente, ou apenas uma 46


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pausa, para que se precipite a dar a discussão por encerrada e lhe encha de beijos e de perdões. Estará num papel de malquerida quando apenas um chamado do companheiro baste para saná-la de um desprezo, de um insulto, de uma traição, de um abandono. Ela estará novamente ali, disposta a tudo, transformada numa perfeita malquerida, ademais encantada de haver recuperado seu lugar junto a esse que a faz sentir-se tão importante. Esse tipo de entrega sem restrições se conhece como “amor incondicional”.

O que significa “amor incondicional”? Às vezes, as palavras, de tanto serem usadas, se desgastam, perdem a força e diluem seu significado. Por isso, vou me deter um pouco neste conceito que se utiliza com tanta frequência e às vezes se executa com uma certa ligeireza, sem demasiada consequência do horror que se supõe. Um amor incondicional, como a palavra indica, é um amor sem condições. É um amor que não se rege pelas leis de mercado; nada de “custe o que custar, pago por estar ao seu lado”. Um amor incondicional não está sujeito à oferta e à demanda; em um amor incondicional, não há nada parecido com “se você se comporta bem, o amo; se se comporta mal, não o amo”. Um amor incondicional é um amor que nasce, cresce, se desenvolve e quase nunca morre, independentemente da pessoa que o conduz. Essa pessoa não precisa fazer nada para merecer um amor assim. Não há nada que possa fazer para perder esse amor do qual é objeto, por mais dano que ocasione. Com a mesma arbi47

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trariedade com a que Deus reparte sua graça, quem ama com um amor incondicional o outorga porque ama, porque lhe dá vontade e porque, em seus amores, é ele quem manda. Haja o que houver, o amor incondicional seguirá ali, imune à realidade. Não é um amor vinculatório, que se estabelece entre uma e outra pessoa para que algo flua com certa reciprocidade... não! O amor incondicional não necessita de reciprocidade, pois este seria um amor falido, um sinal de debilidade. Na realidade, o amor incondicional não necessita de nada. É um amor que ­ignora o outro, porque se basta e sobra de si mesmo. Ali, do alto de seu “Olimpo”, o amor incondicional não cometeria a gros­seria de inclinar-se ou diminuir-se por causa dos maus-tratos ou pela indiferença que a outra pessoa manifesta. Um amor incondicional é imenso, incomensurável, mas não sabe descer à Terra para conhecer e amar um ser humano comum. Irene é uma malquerida que veremos em várias destas páginas. Falava assim de Juan, o jovem com quem vivia e que não a tratava muito bem: Juan não precisa conquistar méritos para que eu o queira. Ele, em princípio, só por ser ele – ou por ser jovem – já tem todos os méritos ganhos, porque eu mesma os dei. E é claro que todos os méritos que lhe dou também lhe tiro, assim que, enquanto o vejo, cada vez mais maravilhoso, eu me sinto cada vez mais insossa...

Com o passar do tempo e do tratamento, compreendemos o quanto Irene precisava sentir-se indispensável, e como estava 48


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disposta a transformar Juan em alguém que não era, com o obje­ tivo de alcançar esse lugar privilegiado junto a ele. Um dia, ela disse: Se penso melhor, percebo que há uma grande parte de minha relação com Juan na qual ele não apita nada.

Irene havia descoberto algo fundamental. O fato é que ela estava loucamente apaixonada por Juan, porém não sabia muito bem por qual Juan. Como ela mesma disse, o Juan verdadeiro, o de carne e osso, o que se levanta a cada manhã de mau humor, “não apita nada” no amor imenso que ela professa. E nisso consiste a incondicionalidade. À primeira vista, parece que um amor assim tem muitas vantagens para o que recebe esse presente; porém, se olharmos mais de perto, é uma espécie de fraude. Criar e amar um deus é mais simples que conhecer e ver se queremos e aceitamos um homem normal e comum, tal como é. Há uma frase popular que descreve muito bem esta situação: Não te amo pelo que és, mas sim pelo que sou quando estou contigo. Parece que Irene tinha criado a frase. Ela não ama Juan pelo que ele é; ela inventa um Juan extraordinário de quem ela é a artífice, a dona de um deus que elaborou sob medida. Isso a transforma em alguém de suma importância. Quando está com Juan, Irene diz que se sente muito diminuída, mas, no fundo, estar ao lado de Juan a faz sentir-se muito importante, indispensável. Seu sentimento de diminuição junto ao “seu Juan” é o preço que paga por entrar no clube das donas de um deus. 49

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