UNIVERSUS nº 04 (2017/1)

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UNIVERSUS

FORASTEIROS REVISTA DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL | N° 4 | JULHO DE 2017


Foto: Laíssa Sardiglia/Divulgação Cibai

Primeira visita ao Cibai, em abril de 2017

Carta ao Leitor Q

uando o termo FORASTEIROS foi proposto como nome da publicação produzida pela turma de Escola de Reportagem VI – Revista, muitos torceram o nariz. “Tem um sentido negativo”, disse um dos alunos. “Pode ser mal interpretado”, acrescentou outro. Buscamos, então, no dicionário. Afinal, qual o sentido do termo FORASTEIRO? O Aurélio nos diz “aquele de fora da terra”; o Michaelis chama, simplesmente, de “estrangeiro”. A busca pelo significado da palavra, longe de esclarecer nossa dúvida, gerou ainda mais debate. Se na origem do termo não há uma conotação negativa, por que FORASTEIRO provoca tanto desconforto? Quando foi que a palavra assumiu um caráter negativo se, na essência, ela não é acusatória ou preconceituosa? Diante da polêmica, tínhamos duas opções. A primeira: fugir do embate e batizar a revista com outro nome. A segunda: comprar essa briga. Defender que uma palavra – assim como a nossa atitude em relação a uma pessoa – só adquire um sentido negativo quando o nosso olhar não capta a sua real essência; quando assumimos como verdade uma interpretação que não raro se mostra equivocada. Escolhemos, juntos, a segunda opção. Mexer no que é desconfortável tinha tudo a ver com o que estávamos fazendo desde o início do semestre em parceria com o Cibai Migrações – a quem devemos um agradecimento mais do que especial. Em tempos de fechamento de fronteiras para os FORASTEIROS, nada mais justo, como jornalistas, do que ir na direção contrária. Quem

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são essas pessoas? Que sonhos trazem consigo? Por que deixaram a terra em que nasceram e vieram para cá? O que elas encontraram por aqui: olhares discriminatórios ou mãos estendidas? Assim foi desenhada a proposta desta revista. Durante um semestre, convivemos com estrangeiros. Exercitamos a empatia. Tentamos “calçar os sapatos” dos personagens que perfilamos. Buscamos entender o que eles sentem. Nos interessamos verdadeiramente pela cultura que trazem. E aprendemos inúmeras lições. De solidariedade, resiliência, fé em dias melhores. De humildade, amor e uma imensa força de vontade. Nos últimos dias do projeto, tínhamos dúvidas em relação à capa. Como ilustrar tantas histórias? Foi aí que conhecemos o trabalho de Ousmane Mathurin Ndiaye, artista plástico senegalês radicado em Caxias do Sul. Pedimos a ele que representasse, por meio de um desenho, o que o Rio Grande do Sul significa para os imigrantes que aqui chegam. Ousmane desenhou um estado de braços abertos, acolhendo pessoas, sonhos e esperanças de um futuro feliz. FORASTEIROS foi um trabalho em equipe, uma produção que contou com a participação dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da UniRitter. O conteúdo desta revista nos transformou – e esperamos, caro leitor, que ele faça o mesmo com você. Mariana Oselame Professora de Escola de Reportagem VI – Revista


Sumário

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As cores do Rio Grande

Bamba, um líder nato

Cultura da Solidariedade

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Oito mil quilômetros pelo futuro de Sofia

Um colombiano no Brasil

De braços abertos

Em busca de acolhimento

Expediente REPORTAGEM DA REVISTA: Shállon Teobaldo, Leonardo Dutra, Andrew Fischer, Pâmela Bassualdo, Danrley Passos, Danrley Gonçalves, Giordana Cunha, Mariana Dornelles, Tamires Alves e Geila Passos REPORTAGEM DA PÁGINA DO FACEBOOK: Caroline Tavares, Karem Rodrigues, Matheus Suminski, Gabriel Shardong, Rosa Mantovani e Jeniffer Maciel EDITORES ASSISTENTES: Shállon Teobaldo, Leonardo Dutra e Giulia Medeiros CHEFE DE FOTOGRAFIA: Natália Silveira EQUIPE DE FOTOGRAFIA: Clícia Modesto, Eduarda Oriques, Gabriela Azzolini, Jaqueline Moura e Tainara Fazenda CHEFE DE DIAGRAMAÇÃO: Drysanna Espíndola EQUIPE DE DIAGRAMAÇÃO: Mauricio Paulini, Douglas Sarmiento, Fernando Rego, Giulia Medeiros, Karine Pinheiro, Adriano Bazzo e Nicholas Homrich PROJETO GRÁFICO: Prof. Francisco dos Santos, Douglas Sarmiento e Mauricio Paulini

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FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ORIENTAÇÃO: Prof. Mariana Oselame

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Foto: Natália Silveira

As cores do Rio Grande 4

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Nova onda migratória levanta discussões sobre o cumprimento dos direitos humanos Shállon Teobaldo

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Q

uem ouve Jorge Ben Jor cantar “moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza” logo imagina um Brasil que, infelizmente, não existe. Aglomerados em comboios, dentro de ônibus durante dias e, às vezes, atravessando o oceano em péssimas condições, homens e mulheres se arriscam diariamente em busca de um pôr do sol mais laranja na terra do futebol, do samba e do churrasco. A realidade encontrada no Brasil muitas vezes não corresponde totalmente à ilusão criada pelos imigrantes, mas a chance de ter o que comer todos os dias, de dormir sob um teto e de ter um emprego tem trazido milhares de pessoas ao país. Desses milhares, muitos chegam para colorir ainda mais a bandeira do Rio Grande do Sul. Antes composta predominantemente pelo verde, amarelo e vermelho, agora ela é uma mistura de cores dos quatro cantos do globo. Cerca de 20 mil novos imigrantes chegaram ao Rio Grande do Sul nos últimos dez anos, de acordo com o Fórum Permanente de Mobilidade Humana. A maioria vem de países latino-americanos como Haiti, República Dominicana, Colômbia e Venezuela. Outros ainda vêm do continente africano, sobretudo do Senegal. Há também os asiáticos: chineses, japoneses e coreanos. Ao longo do tempo, percebemos que o estado é formado, desde a sua origem, em 1531, por pessoas de diversas nacionalidades. Antes da chegada dos portugueses, a terra era habitada por índios. Conforme a professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Regina Weber, é preciso diferenciar,

Estimativa de imigrantes no Rio Grande do Sul Dados do Núcleo de Pesquisa do Cibai Migrações (2016) Dominicanos: 700 Colombianos: 800

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em primeiro lugar, povoamento e imigração. “Povoamento é o que ocorre logo após a descoberta do Brasil, quando cidadãos de outros países, sobretudo europeus, são convidados a morar no Rio Grande do Sul e em outros estados para povoar a terra. Imigração é passada esta fase, quando por livre e espontânea vontade, sem a interferência do governo, alguém se muda de seu país de origem para viver no Brasil”, explica Regina. Nos primeiros séculos de existência do país, portugueses, espanhóis, franceses e holandeses aparecem como povoadores – além deles, vieram os africanos, como escravos. Quando o Brasil deixa de ser colônia, em 1815, as pessoas que começam a chegar se tornam, então, imigrantes. No Rio Grande do Sul, a imigração começa em 1824 com alemães se instalando na cidade de São Leopoldo. Mais para o fim do século, em 1875, italianos e poloneses também começam a chegar. Os motivos que trouxeram estes povos, segundo Regina, passam, principalmente, por um desejo do governo brasileiro de habitar os estados. “Nessa época, eles já tinham navios melhores e por isso faziam as imigrações em levas. Os governos também financiavam a vinda de estrangeiros, pagavam terras, passagens... tudo isso incentivou pessoas de outros países a virem morar aqui”, explica Regina. Os imigrantes europeus viam a América como um lugar para viver um sonho, melhorar de vida, ter independência financeira. Eles imortalizaram essa terra idealizada em canções como “Mérica, Mérica”, cantada pelos italianos durante as viagens de navio.

Haitianos: 8 mil

Senegaleses: 4,9 mil Venezuelanos: 200 Asiáticos: 500

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Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola, Somália, Nigéria e Gana: 3 mil


Novos rostos da imigração Já no século XXI, a partir de 2006, é possível perceber uma mudança nas características e origens dos imigrantes que vêm para o Estado. Enquanto, antigamente, a predominância era de europeus e brancos, o cenário hoje mostra ascendência de latino-americanos, africanos e asiáticos. Voluntário há 15 anos do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai), advogado e professor universitário, Jurandir Zamberlam acredita que as migrações são um problema dos Direitos Humanos e não apenas demográfico. ‘’Não é por falta de espaço no mundo, não é somente por terem nascido onde nasceram e sim porque seus países de origem não proveem as necessida-

Países de origem dos imigrantes que chegaram ao Rio Grande do Sul entre 1824 a 1940 Censo de 1940

des básicas, como água, alimentação, educação’’, comenta ele. Professora de Direito e Relações Internacionais na UniRitter, Tatiana Cardoso Squeff explica que os novos imigrantes vêm, principalmente, por questões econômicas. Entretanto, como não é um povoador, para ficar legalmente no Brasil o imigrante precisa pedir refúgio, pois o país não oferece um visto de trabalho. “Quando o Estado não garante educação, saúde, alimentação, saneamento básico, isso já causa violação de direitos humanos. Por situações econômicas, falta de emprego e renda, quem vem é considerado um migrante, um estrangeiro comum e não um refugiado”, diz ela.

1º Itália

7º Argentina

2º Uruguai

8º Espanha

3º Alemanha

9º Síria

4º Polônia

10º Áustria

5º Rússia

11º Romênia

6º Portugal O perfil Zamberlam explica que muitos imigrantes que chegaram ao Rio Grande do Sul nos últimos anos são extremamente qualificados. “Muitos que chegam aqui precisam enfrentar o fato de que não poderão exercer suas profissões. Há um perfil de pessoas formadas nas mais diversas áreas que, para sobreviver, aceitam empregos que não exigem o conhecimento técnico que eles possuem, como vendedores ambulantes, serviços de lim-

peza e construção”, destaca. De peles pardas e negras, mais altos que a média, olhares por vezes desconfiados, em sua maioria homens e falando em um emaranhado de línguas, latino-americanos e africanos têm buscado seu lugar ao sol – ou melhor, ao Sul do Brasil. Coordenador do Núcleo de Psicologia Social (Nups) da UniRitter, Leonardo Garavelo acredita que é preciso entender, antes de mais nada,

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Foto: Natália Silveira

o atual momento sócio-histórico global que leva pessoas a saírem de suas terras em busca do desconhecido. Para ele, os novos imigrantes se encaixam num perfil de pessoas fortes, com capacidade de resiliência, que, de certa forma, saem em busca de uma ilusão. “Há várias características em suas nações originárias que os levam a querer explorar novos países em busca de algo melhor, que nem sempre condiz com a realidade. Os países dos novos imigrantes figuram entre os menores PIBs do mundo, isso contribui bastante. Também há exploração, desvalorização do saber regional, da cultura, muita desigualdade, vulnerabilidade social, miséria, guerrilha civil, abuso de poder, doenças, ca-

tástrofes naturais”, diz Garavelo. “A receptividade brasileira também os motiva. Eu os considero guerreiros, apesar de sofrerem bastante com melancolia e depressão, principalmente pela saudade dos que ficaram”, complementa Garavelo. Para o coordenador, o principal desafio enfrentado pelos novos imigrantes ainda é o preconceito. “A língua se aprende, mas o preconceito é algo que depende de quem os recebe, de como os aceitam”, reflete. O fato de haitianos e senegaleses andarem em grupos grandes, segundo Garavelo, se dá em razão do constrangimento de eles não poderem ser quem são. “Preconceito priva a pessoa de expressar o que ela é. Nós, brasileiros e gaúchos que os recebemos, precisamos identificar nosso fascismo interno, desconstruir o preconceito, desenvolver tolerância, não refutar e rotular a diferença. Afinal, somos um povo feito de vários povos”, afirma. A falta de políticas públicas por parte do governo brasileiro para amparar os imigrantes – qualquer processo de regularização leva, ao menos,

Imigrante, emigrante, migrante ou refugiado? Imigrante: aquele que chega em um país. Emigrante: aquele que deixa o seu país. Migrante: antigamente, o termo era usado apenas para movimentação interna. Hoje se usa de forma mais ampla, para se referir a qualquer tipo de fluxo migratório. Para não causar confusão, no entanto, Regina orienta a utilização do termo imigração quando falarmos especificamente da chegada de estrangeiros em um país. Refugiado: é aquele que sai do país de origem por estar sofrendo algum tipo de perseguição pautada pela Convenção de Genebra de 51. Pode ser por raça, religião, nacionalidade, opinião política ou por pertencer a algum grupo social específico. Foto: Tainara Fazenda

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Fonte: Prof. Regina Weber e Prof. Tatiana Squeff


seis meses – faz com que muitos entrem no país ilegalmente, alguns até traficados em comboios, conforme Tatiana. Sujeitos a deportação, eles podem esperar até dois anos pela resposta de um pedido de refúgio, o que aumenta ainda mais o desespero daqueles que não têm, muitas vezes, para onde voltar. Sancionada pela Presidência em maio, a PL 2516, que é a nova Lei das Migrações, pode contribuir para dar mais direitos aos imigrantes. Até então, quem viesse de fora e quisesse pedir refúgio precisava ir até a Polícia Federal, preen-

cher um formulário, passar por uma entrevista e aguardar o parecer do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), que fica em Brasília. Com o resultado positivo, o Conare envia um documento de solicitante de refúgio, o que já dá o direito de a pessoa utilizar benefícios sociais. Se for negado, o imigrante precisa entrar com um recurso para o ministro da Justiça. “São muitos desafios: a vinda, a documentação, o trabalho, o idioma, a discriminação. A imigração é, definitivamente, uma questão a ser ainda desenvolvida no Brasil”, comenta Tatiana.

Os desafios dos imigrantes Idioma: Sem saber falar português, os imigrantes se deparam com as mais diversas situações e acabam não sabendo lidar com elas. Não há como criar diálogos simples, como perguntar onde fica um endereço, por exemplo. Educação: Alguns imigrantes conseguem trazer suas crianças, outras já nascem aqui. Inseri-los na escola não é tarefa fácil. Não há preparo dos professores e colegas, e a língua entra novamente com um impeditivo. Emprego: As leis trabalhistas são diferentes de um país para o outro. Quando eles conseguem um emprego e chega o primeiro contracheque, por exemplo, ficam muito confusos porque acreditam estarem sendo roubados por causa de descontos, como INSS, que por aqui são normais. Documentação: Muitos passam meses em situação irregular porque não têm dinheiro. Sem uma carteira de trabalho, por exemplo, eles não conseguem um emprego que pague um salário razoável e acabam permanecendo em situação financeira tão ruim quanto estavam antes de chegar aqui. Fonte: Jurandir Zamberlam

Cultura Culinária, música, literatura, sotaques. Cada pessoa que veio de um canto diferente do mundo para o Rio Grande do Sul trouxe consigo um pedaço de sua história, de seu país. Cada uma das levas de estrangeiros que povoaram e imigraram para o Estado contribuíram, de alguma forma, para a formação da cultura. Conforme Regina, a diferença, por si só, já é uma marca ao Rio Grande do Sul. “O fato de estarmos inseridos e termos sido moldados baseado nessas diferenças é um grande marco para o estado”, diz Regina. Basta observar hábitos, como gastronomia,

comportamento, festas e diversidade de religiões para perceber que os gaúchos fazem parte de várias peças de um grande quebra-cabeça. “O Rio Grande do Sul tem um caráter multiétnico, diverso. Os imigrantes também interferiram na política. Italianos e alemães, historicamente, marcaram o estado com muita projeção econômica e política. Já portugueses e espanhóis deixaram outros carimbos, pois eram mais permeáveis, fazem parte da raiz do estado. Os novos imigrantes, aos poucos, também vão deixando suas impressões digitais em nós”, explica Regina.

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Foto: Eduarda Oriques

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Bamba, um líder nato Da vida no Senegal ao protagonismo entre os compatriotas em Porto Alegre, Serigne Bamba Toure representa a vida de um imigrante proativo e engajado no Brasil Leonardo Dutra

É

em um condomínio residencial bem localizado na Zona Sul, em um sábado chuvoso do outono de Porto Alegre, que Serigne Bamba Toure recebe a reportagem para contar a sua história. A primeira informação descoberta por quem acaba de conhecer o senegalês é revelada por ele mesmo: “Prefiro ser chamado de Bamba”. A segunda nem precisa ser dita: é a sua liderança natural entre os compatriotas do Senegal. Esse protagonismo já havia sido identificado no primeiro contato com Bamba, em um apartamento na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia. A primeira conversa ocorreu

em meio a vários outros imigrantes senegaleses que se encontram em uma espécie de mesquita improvisada, aos domingos, para realizar os rituais do islamismo – mais de 90% do povo senegalês é muçulmano. Em vários momentos naquele dia, enquanto andava pelo prédio, Bamba era parado para receber alguma saudação ou conversar sobre algum assunto. Tudo isso em wolof, um dialeto muito falado no Senegal. Para entender essa relação tão forte com o reduto senegalês em Porto Alegre, é preciso, antes de mais nada, entender a história de Bamba, contada por ele em sua sala de estar.

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Foto: Gabriela Azzolini

Uma infância tranquila Nascido em 7 de janeiro de 1992, em Dakar, capital do Senegal, Bamba cresceu em uma família de classe média. É o segundo filho mais novo de um total de sete – cinco homens e duas mulheres. Um deles, inclusive, é seu irmão gêmeo. Filho de pai policial e mãe costureira, Bamba teve uma infância estruturada e uma família unida. “Eles são ótimos pais, graças a Deus. É uma família que não briga e costuma ajudar quando alguém está precisando. Eu converso com eles todos os dias”, conta, enquanto mostra uma mensagem recebida há poucos minutos no WhatsApp. “Meu pai é policial. Eu tinha várias regras! Minha família é bem religiosa e toda sexta-feira à tarde tinha oração especial. Às 13h fecha tudo e todos vão para a

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mesquita rezar durante cerca de 30 minutos a uma hora. Tive uma boa infância”, pondera. Bamba não é o único filho a se aventurar fora do Senegal. Outros três irmãos já decidiram buscar vida nova em outro país. Um deles até já constituiu família fora. “Tenho um irmão na Itália, um nos Estados Unidos e outro na Costa do Marfim. Meu irmão que mora na Itália está lá desde 1986, já é casado e com filhos”, diz. Quem ficou mora até hoje na casa dos pais. Diferente do Brasil, onde essa prática pode ser interpretada como um sinal de ociosidade, no Senegal isso é visto com bons olhos. “Lá é comum filho com 40 anos que mora na casa dos pais, mesmo que tenha casa e carro. Esse respeito faz parte da cultura”.


A busca pela qualificação Além da família, o estudo é outra questão importante para Bamba. Após o Ensino Médio, ele buscava uma especialização e então se inscreveu em uma escola policial, na área técnica. Estudou lá entre 2006 e 2009, mas não ficou por mais tempo porque o pai tinha receio de que ele fosse parar em alguma missão de paz. “Meu pai pediu para eu sair por medo de ser convocado para alguma guerra. Na época, existia uma na Costa do Marfim, onde há muita presença de senegaleses”, lembra, contando que o pai já visitou o Brasil: “Ele foi a Curitiba no começo do governo Lula para uma comissão internacional policial”. Mesmo tendo que sair da escola, Bamba conseguiu se graduar como eletricista e em informática, onde já trabalhava desde cedo. “Comecei a trabalhar, a partir de 2004, em uma fábrica durante seis meses, mas a es-

trutura de trabalho era ruim. Fui eletricista por muito tempo em outra empresa. Fazia também trabalhos indiretos para conhecidos em elétrica e informática, onde gosto mais”, conta. Em 2010, buscando continuar seus estudos, Bamba recebeu uma bolsa para tentar ingressar em uma universidade de Casablanca, no Marrocos, mas não passou. Ele queria cursar Engenharia Elétrica, mas esses três meses foram muito difíceis, principalmente pelo preconceito da população em geral. “As pessoas são mais preconceituosas do que no Brasil. Eles (os marroquinos) não se consideram africanos, e sim, europeus. Quando eu entrei na sala, ninguém sentou ao meu lado. Tu chega e fala francês, eles fazem que não entendem e pedem para falar árabe, mesmo os que falam”, lembra.

Saga na América do Sul Em dezembro de 2014, Bamba pegou um avião com destino à América do Sul em busca de melhores condições de vida. A viagem foi preparada em cinco dias, mas o pensamento já estava há tempos em sua cabeça. “Sempre pensei que, para melhorar minha vida, tinha que ir para um lugar melhor, ganhar dinheiro e voltar. Na África poderia ir para outros países, mas não teria muita diferença”, explica. Bamba diz que o objetivo era a Argentina, mas ele preferiu chegar pelo Equador por ser menos burocrático. Já em Buenos Aires, ele descobriria uma nova barreira econômica inesperada. “Fiquei em um hotel por dois dias. Na Argentina tem apenas vendedor, mas eu não sei vender”, revela. Ele decidiu, então, procurar outro país onde pudesse concluir seu propósito inicial – e viu no Brasil uma melhor chance de crescimento.

A partir daí começa a jornada rumo ao Brasil. Bamba chegou à Bolívia através de Puerto Maldonado, no Peru, e lá encontrou o principal desafio de sua viagem. No meio do matagal boliviano, seu grupo foi parado por um policial, que exigiu suborno. Nesse momento a característica de liderança fez com que ele tomasse a frente. Bamba combinou de pagar, ele mesmo,

“Sempre pensei que, para melhorar minha vida, tinha que ir para um lugar melhor, ganhar dinheiro e voltar. Na África poderia ir para outros países, mas não teria muita diferença.” Bamba

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o valor exigido. “Os policiais apontaram uma arma para a gente e pediram dinheiro para deixar passar. Eu disse para eles que meu grupo não tinha dinheiro e que apenas eu iria pagar. Dei 10 dólares. Ele perguntou se era só isso que eu tinha e liberou a nossa passagem. Têm pessoas que dão todo o dinheiro para a polícia e não conseguem se manter”, lembra. Antes de pagar o policial, Bamba combinou com o grupo que pagaria por todos, mas que iria cobrar logo após para não sair prejudicado. No entanto, ele teve dificuldade em reaver o dinheiro. “Deu briga, eles não queriam me pagar. Quando disseram isso, peguei todos os passaportes e disse

que eles não iam conseguir entrar, até pagarem”, lembra, hoje, entre risos. Ao chegar na fronteira com o Acre, onde estaria em território brasileiro, Bamba recebeu uma proposta de outro policial boliviano, que cobrou um valor mais baixo do que o habitual para permitir a entrada no país. “O policial nos disse que a pessoa que leva cobra muito caro e é menos seguro. Então nos levou em cinco pessoas. Pagamos 350 dólares cada um e fomos em um carro muito bom. Na fronteira, onde tinha policiais brasileiros, ele nos disse para baixar a cabeça. Ele mostrou o seu documento e passou”, relata.

A chegada ao Brasil Em solo brasileiro, novos desafios. Brasileia, por onde Bamba chegou, é uma pequena cidade no Acre, na fronteira com a Bolívia, onde entra a maioria dos imigrantes. Lá, ele encontrou um cenário completamente diferente do esperado. “Me assustei. Nunca achei que o Brasil tivesse isso. Pessoas andando de burro, imigrantes dormindo no chão e em lugares sujos. Eles não mostram isso na TV. Isso me incomodou muito”, conta. Ainda no Acre, o senegalês pesquisou e descobriu que o sul do país era mais propício para oportunidades de emprego. Escolheu, então, o Rio Grande do Sul como destino – também por ter descoberto que já existiam compatriotas vivendo no esta-

do. Com medo de estar em um país novo – e surpreso com a violência – Bamba se apegou à religiosidade: “Eu pensei ‘vou andar com Deus, porque ele está em todos os lugares’. Saí de lá com força e coragem”. Bamba pegou um ônibus do Acre até São Paulo e, de lá, outro em direção ao Rio Grande do Sul. Foram cinco dias de viagem. Em Porto Alegre, viu uma mudança radical de ares em relação ao norte do país. O idioma foi o principal entrave na busca por uma vida nova na cidade. Ele relembra momentos em que teve problemas para se comunicar. “Quando tentava conversar, as pessoas começavam a rir e diziam ‘não entendo haitiano, fala brasileiro’.

“Me assustei. Nunca achei que o Brasil tivesse isso. Pessoas andando de burro, imigrantes dormindo no chão e em lugares sujos. Eles não mostram isso na TV. Isso me incomodou muito quando cheguei no Acre.” Bamba

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Eu apenas ria, porque também não entendia o que eles estavam dizendo”, revela. Mas sua determinação era maior, e Bamba buscou aprimorar o português para ter mais chances de sucesso. “A língua é a chave da porta do país. Vi que precisava de um caderno e um aplicativo de tradução. Comprei um chip para o celular para conectar à internet. Depois, toda vez que alguém falava uma palavra que eu não entendia, anotava e procurava. A cada dia aprendia uma coisa nova”, explica. O objetivo mais imediato era a procura de um local para viver. Bamba lembra que teve muitas dificuldades nas duas primeiras moradias. Primeiro ele morou na Avenida Farrapos com outros imigrantes, e decidiu sair por não gostar da região. “A Farrapos não é um lugar bom para morar. Eu queria trabalhar, mas lá

não tem muito trabalhador, apenas malandros”, conta. Na sequência ele recebeu uma proposta de ajuda – e uma oferta para tirar ele e os seus amigos de lá. O grupo se mudou para o bairro Glória, mas também teve problemas. “O dono cobrava 700 reais, mas todo mês subia o valor, chegando a 1300 reais. Isso sem contar água e luz. Isso não é ajuda”, reclama. Nesse momento entraram no caminho de Bamba duas pessoas essenciais: Helena e Sofia, que ele chama de mãe e irmã. Bamba conheceu Sofia através do Cibai Migrações. Helena, mãe de Sofia, tinha apartamentos para alugar e estava disposta a ajudar. “Ela é dona desse apartamento e alugou para a gente como uma ajuda de verdade. Esse apartamento custa 2600 reais, mas ela cobra metade”, afirma, referindo-se ao condomínio na Zona Sul.

A jornada de Bamba

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Voluntariado e influência A relação do senegalês com o Cibai também é muito profunda. Ele conheceu o projeto em 2015 – um amigo o levou até lá para receber ajuda na confecção de seu currículo. Bamba, então, começou a ter aulas de português. Após conseguir se estabilizar, ele sentiu a necessidade de devolver toda a ajuda que recebeu. Decidiu se tornar voluntário, sendo o primeiro imigrante a voluntariar na instituição. “Percebi que os brasileiros têm muita dificuldade para se comunicar com os imigrantes. Como eu tinha algum tempo pela tarde, resolvi ajudar eles, até porque eu sei bastante sobre informática. Depois, comecei a ajudar com documentação também”, conta. Bamba é muito proativo. Além do Cibai, ainda toca diversos projetos. Um deles é voltado ao ensino de português diretamente do wolof, algo muito difícil de achar, mas que ajuda muito os senegaleses que chegam ao Brasil. As aulas são via WhatsApp, o que facilita a inte-

gração com outros estados – há alunos de São Paulo, Santa Catarina e até do Recife. A motivação do senegalês é a solidariedade. “Isso é um costume meu desde o Senegal. O básico da nossa religião é a solidariedade, então temos que ajudar nossos irmãos senegaleses. Eu tento ajudar todos, até quem mora na rua. Eu conheci um projeto que ajuda moradores de rua através do Facebook. Todos os meses dou 50 reais. Nunca paro”, diz. Com cinco diplomas conquistados em solo brasileiro e de olho no projeto da nova Lei de Migração que tramita no Congresso Nacional, Bamba quer desmistificar a ideia negativa em relação aos imigrantes. “A maioria dos brasileiros acha que quando chega um imigrante é porque ele está fugindo da guerra. Tem pessoas que querem apenas ir para um lugar melhor. Esses dias no Cibai tinham cinco italianos e a Itália não está em guerra. Imigrante e refugiado são coisas diferentes”, ressalta.

Futuro no Senegal Apesar do dia a dia corrido, Bamba ainda tem a família no pensamento. “Eles sentem saudades, mas estão tranquilos, porque sabem que eu sou bem formado. Mando dinheiro para eles todo mês, assim como os outros irmãos”. É no Senegal, inclusive, que ele vê seu futuro. “Sempre tive a ideia de voltar. Se eu conseguisse hoje o dinheiro, voltaria amanhã. Quero voltar para a casa dos meus pais, se Deus quiser, e abrir uma empresa de informática. Também quero ensinar agricultura. Lá tem muita terra, mas não há materiais suficientes”, diz. O desejo, segundo ele, está perto de ser concretizado. “Falta juntar um pouco mais de dinheiro

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e fazer um técnico administrativo. Acho que no final de 2018 eu volto”, conta. Perguntado se não faria falta no Brasil, Bamba deixa claro que a distância não é uma barreira. “O WhatsApp tá aí, né! Eu consigo ajudar pelo celular, não importa aonde esteja. Tenho amigos brasileiros, entre advogados e deputados. Tenho contatos até no Itamaraty. Mesmo no Senegal vou continuar ajudando no Brasil”, promete. Referência para muitos senegaleses, Bamba se opõe à ideia de ser líder. E deixa isso bem claro, ao final da conversa, na mesma sala de estar em que contou toda a sua história: “Apenas ajudo, não sou líder”, conclui.


“Se eu conseguisse hoje o dinheiro, voltaria amanhã. Quero voltar para a casa dos meus pais, se Deus quiser.” Bamba

Foto: Eduarda Oriques

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Foto: Andrew Fischer

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Cultura da Solidariedade Mesmo longe da terra natal, os senegaleses não só mantêm viva a cultura do país de origem como fazem questão de apresentá-la aos brasileiros Pâmela Bassualdo e Andrew Fischer

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Foto: Andrew Fischer

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ode parecer um grande desafio enfrentar um país novo, uma nova vida longe de casa e uma cultura completamente diferente. Mas é um desafio que pode ser superado, como mostram os imigrantes senegaleses que vivem em Porto Alegre. Mesmo longe do país de origem, eles conseguiram trazer as suas tradições até este lado do oceano – e fazem valer a riqueza cultural do Senegal. Duas demonstrações dessa rica cultura foram vistas em dois domingos do mês de maio em Porto Alegre. No primeiro, a equipe de reportagem visitou uma mesquita improvisada em que os senegaleses se reúnem, todo o domingo, para fazer as suas orações.

No segundo, participou do evento SUNU Culinária, promovido pela Associação dos Senegaleses de Porto Alegre, que reuniu estrangeiros e brasileiros em um almoço de confraternização. Fé, dança, cor, tempero e acolhimento foram alguns dos sentimentos presentes naqueles domingos. Entre comidas apimentadas, orações, música e teatro, os senegaleses ensinaram lições de solidariedade e humanidade. As poucas horas em que a reportagem esteve imersa nessa cultura foram mais do que suficientes para compreender que os milhares de quilômetros que separam Brasil e Senegal não podem dividir os dois povos.

O Brasil é um país de imigrantes que não entende os imigrantes O calor daquele primeiro domingo nos fez querer parar sob a sombra de uma árvore. O encontro com o líder da Associação Senegalesa de Porto Alegre foi marcado no Centro Humanístico Vida, uma fundação social em que são realizadas ações de saúde, lazer, educação, e cultura, localizado na Av. Baltazar de Oliveira Garcia, zona norte de Porto Alegre. Procuramos por água e bancos para sentar, sem saber exatamente onde buscar no meio de tanta gente que participava de eventos que estavam acontecendo por ali. Diferentes

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pessoas passaram pelo nosso grupo, mas nenhuma era quem esperávamos. Durante uma hora, sentados, aguardamos pelo nosso guia. Com traje típico em preto, adornado com desenhos em prata, Bamba, um homem alto e de sorriso simpático, nos encontrou em meio à multidão. Caminhava sempre à frente com outro homem. Falava pouco, mas ostentava o sorriso de quem convida um amigo para jantar em sua casa. A duas quadras do ponto de partida, enquanto conversávamos, um som começou a ecoar pela rua.


Era similar a uma reza. Em um prédio espremido entre algumas casas, encontramos uma reunião religiosa senegalesa. Um choque cultural que jamais poderá ser esquecido. À primeira vista era uma construção comum de três andares. Uma grade de ferro separava um pequeno pátio coberto da porta de entrada. Bamba nos levou por um corredor que terminava nas escadas com o corrimão de ferro de cor branca. Três lances depois, no último andar, entramos no que parecia ser um apartamento. Com uma antessala, dois quartos e uma varanda que estava lotada de roupas estendidas para secar, o pequeno local estava cheio. Cheio de sorrisos, de simpatia e simplicidade. Mas não era só isso que nos aguardava. O estreito corredor entre a porta e a parede de um dos quartos nos levava a uma sala ampla, com uma pequena cozinha improvisada ao canto. No chão, dezenas de sapatos amontoados. Na sala, pessoas sentadas no chão, em cima de um tapete macio. “Vocês precisam tirar os sapatos aqui”, foi o que ouvimos. Nas paredes, faixas com frases escritas em um idioma que aparentava ser árabe. Pela porta de vidro era possível ver uma roda de senegaleses com livros abertos. Eles entoavam uma canção, emocionada, que parecia vir do fundo da alma. A reunião de grandes homens vestindo roupas coloridas se destacava pela organização. Um círculo pequeno no meio juntava alguns homens – à volta deles havia um círculo maior. Todos estavam sentados no chão, com uma espécie de terço que os ajudava a não perder o número de preces. De volta à sala, sentamos no tapete para começar a entrevista. A pergunta inicial não poderia ser outra: “Como adaptar suas tradições quando se está tão longe de casa?”. Com o gravador fora da mochila, pés descalços e muitas perguntas, fomos tecendo uma conversa que vez ou outra era interrompida pelas orações – altas o suficiente para se fazer ouvir da avenida. Omar-Diongue, vice-presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre, era o nosso entrevistado. Falava com propriedade. Nos contou sobre moradia, burocracia, preconcei-

to, cultura – e até explicou aspectos da religião, o islamismo. No canto da sala uma mulher e uma criança usavam o véu que cobria os cabelos. “É uma regra da religião, mulher tem que usar. Tem umas que respeitam 100%. Outras não. Mas em toda religião tem regras”, disse. Enquanto conversávamos, alguém nos ofereceu café. O cheiro era diferente, assim como o gosto. Os copinhos de plástico azul eram distribuídos com sorrisos, seguidos de muita simpatia. “Nós não sabemos nada, Deus que sabe tudo”, disse Omar. Na parede ao lado da porta de vidro, onde estavam os homens em roda, havia uma imagem que descia do teto ao chão. Era o retrato do líder religioso do Senegal, que foi levado à força para o exílio acusado de portar armas para a guerra – o que segundo o nosso entrevistado, era mentira. “Ele é uma pessoa muito importante para nós. Ele ensina a gente a viver, como respeitar as pessoas. Ele escreveu na parede seus livros sobre o profeta, sobre educação e respeito”, continuou. Para todos os lados que se olhava, via-se muita cumplicidade e alegria. “Uma coisa que eu posso dizer é que temos solidariedade. Se alguém tem um problema, chama a gente e estamos lá para tentar resolver”, disse Omar. Mas o que o sorriso estampado dos senegaleses escondia, a profundidade dos olhos mostrava. Os imigrantes sofrem muito com a burocracia e desconfiança dos brasileiros. A maior dificuldade – além da documentação e linguagem – é arrumar moradia. De acordo com Omar, as imobiliárias cobram taxas abusivas, ou simplesmente escolhem não alugar para senegaleses. “Eu tinha uma imagem diferente do Brasil, um país tolerante, um país que acolhe os imigrantes”, lamentou. A desconfiança dos locatários faz com que grupos de senegaleses residam em casas direto com o proprietário, com menos burocracia e sem as taxas. “Moramos juntos para conseguir juntar dinheiro”, resumiu Omar. Encerramos a conversa quando Omar precisou participar da oração final. Bamba, nosso guia, nos acompanhou até a porta. Enquanto calçamos os sapatos novamente, todos ficaram de pé. A sala se tornou pequena com tantos homens alUNIVERSUS | FORASTEIROS | N° 4 | JULHO DE 2017

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tos. No cantinho, um menininho de uns poucos anos de idade parou de brincar no celular. Isso foi o suficiente para entender que aquele era um momento sério. Ao sair, por onde passávamos recebíamos convites para acompanhar a janta. “Só vai levar quinze minutos”, dizia um jovem. Aceitamos, porém o gás terminou e levaria uma hora para chegar. A noite caía. Durante a espera, Bamba conversava conosco. Todos que passavam por ele o cumprimentavam em sinal de respeito. Com os lábios,

tocavam a mão de Bamba e, em seguida, a levavam à testa, como um pedido de benção. Apesar dos inúmeros pedidos para ficar, descemos as escadas. Um lugar que muitos acreditam ser tão fechado se mostrou o mais hospitaleiro possível. Fomos tratados como amigos de longa data fazendo uma visita. Antes de nos despedirmos de Bamba, ele nos convidou para participar de um almoço especial que ocorreria em duas semanas: o SUNU Culinária.

Três cores e duas bandeiras Aquela manhã de maio começou como um típico domingo de outono: frio e chuvoso. O céu estava cinza e a chuva caía fina deixando pequenas poças de água pelas ruas. O centro de Porto Alegre estava praticamente vazio – poucas pessoas se deslocavam para o trabalho ou para algum outro destino qualquer. Apesar de o clima estar perfeito para se aconchegar nas cobertas, um grupo considerável de pessoas tinha um almoço marcado no Centro Cultural Companhia de Arte, na Rua dos Andradas, nº 1780. No cardápio, práticos típicos do Senegal. Por volta do meio-dia os convidados começaram a chegar ao evento, o SUNU Culinária, promovido pela Associação dos Senegaleses de Porto Alegre. Na entrada, um rapaz magro, alto, de pele escura e sorriso alegre cumprimentava quem chegava. Tanto senegaleses quanto brasileiros compraram ingressos para o evento. Alguns estavam molhados por causa da chuva que ainda insistia em cair, já outros carregavam guarda-chuvas. Mas todos estavam entusiasmados com a oportunidade de experimentar um pouco da cultura de outro país na esquina de casa. O ambiente era uma mistura de cores e sons. O burburinho era em duas línguas distintas: português e wolof, um dos idiomas falados no Senegal. Na medida em que o local enchia, a fome aumentava e a fila para o buffet ficava maior. Mamadou Abdoul Vakhabe Sene estava entre os senegaleses que foram matar a saudade da terra 22

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natal. Em uma daquelas conversas rápidas de fila, descobrimos que Mamadou mora no Brasil desde 1979 e leciona Gastronomia no SENAC. Como dividíamos a mesa, sentamos para continuar o assunto. Ele contou que a paixão pela culinária brasileira nasceu quando trabalhou na embaixada do Brasil, no Senegal. E quando surgiu a oportunidade de conhecer o país que tinha tomado conta do seu coração, ele veio, como diriam os gaúchos, de mala e cuia. Mamadou contou ainda que carnes, legumes e verduras são os ingredientes principais das receitas senegalesas. Na maioria dos pratos do país é possível encontrar carne de gado, frango ou peixe, cenoura, batata, pimentão, tomate e cebola. E, é claro, vários temperos, entre eles a pimenta, que dá um sabor marcante à comida. Para celebrar gaúchos e senegaleses, as mesas estavam cobertas com tecidos vermelhos, amarelos e verdes, já que as duas bandeiras têm as mesmas cores principais. Os pratos mais populares do almoço foram Yassa, Thieboudienne e Mafê – cada um com tonalidades e aromas distintos. Porém, mesmo com temperos e ingredientes diferentes, as três iguarias tinham um sabor que levava o paladar em uma viagem no tempo. Lembravam o gosto e o aconchego da comida caseira das matriarcas da família, porém, com o toque exótico do oriente. Mesmo com o restaurante já cheio, mais pessoas chegavam. Umas sentavam-se às mesas e


outras iam direto para a fila do buffet. Alguns brasileiros demonstravam olhares de surpresa com os pratos típicos. Todos os senegaleses pareciam voltar à terra onde nasceram através da comida, que alimentava tanto o corpo quanto a alma. Quem terminava a refeição era convidado a conhecer o segundo andar do prédio. Para isso, era preciso passar por um pequeno palco de madeira, decorado com uma grande bandeira do Senegal, e subir um lance de escadas. No topo estavam duas mesas pequenas cobertas com um tecido azul claro. Nelas, animais, adornos de madeira e pinturas em vidro representando a rotina de mulheres senegalesas. Algumas senhoras dirigiram-se para a mesa das joias. As senegalesas olhavam com familiaridade para os objetos. As brasileiras, com interesse. A sala que ficava logo em frente tinha arquibancadas repletas de pessoas e um palco iluminado por holofotes. Nele, cinco tambores e cinco lugares que foram preenchidos por cinco rapazes altos, vestindo trajes coloridos contrastando com as peles negras. A música parecia vir de diversos instrumentos por causa dos diferentes sons. As batucadas alegres dos tambores faziam o coração bater no ritmo das canções. Os espectadores da sessão musical batiam palmas e movimentavam o corpo no compasso do som. Mesmo que a harmonia da música não fosse conhecida, o entusiasmo que demonstravam era como se estivessem ouvindo a música preferida em um churrasco de domingo. Depois de trinta minutos de melodias típicas, os artistas despediram-se abaixo de uma chuva de aplausos e seus lugares foram tomados pela próxima atração. A peça de teatro mostraria como os imigrantes costumam ser tratados em algumas agências de emprego. Uma jovem usando óculos de grau entrou no palco e sentou. A sua entrada foi seguida da aparição de um rapaz aflito com um currículo nas mãos. Ele procurava trabalho, mas a funcionária apenas olhou o papel que o homem entregou e disse: “Não temos vagas para esse tipo de pessoa”. Algumas pessoas na plateia balançavam

a cabeça discordando da atitude da personagem. Bamba, um dos representantes dos senegaleses, falou para a mulher: “Como você pode dizer que não tem vaga se vocês estão pedindo cem pessoas para trabalhar?”. Ela arregalou os olhos, mas manteve-se firme: não tinham vagas. Logo em seguida, outros dois atores subiram ao palco para apoiar o rapaz que buscava trabalho. A cada fala preconceituosa dita pela mulher, os outros quatro respondiam com fortes argumentos, desfazendo mitos sobre a cultura senegalesa. “Devemos conhecer antes de falar. Pensar antes de reproduzir e abrir a cabeça”, foram as palavras que encerraram a peça. Os atores foram aplaudidos e a plateia ficou reflexiva por alguns instantes. A encenação deixou uma lição muito clara: o preconceito é filho da ignorância. Os cinco artistas que tocaram os tambores anteriormente retornaram ao palco. Porém, desta vez, eles convidaram o público para participar da apresentação. Alguns senegaleses que estavam na plateia e já se mexiam no ritmo dos tambores aceitaram o convite e foram dançar. Eles vestiam-se com roupas típicas, das cores mais variadas. As mulheres usavam tons vibrantes nos trajes e na maquiagem. Seus cabelos negros eram envoltos em turbantes coloridos. Todos dançavam com rapidez, movendo todo o corpo com agilidade e um enorme sorriso no rosto. Durante meia hora os espectadores tornaram-se parte do musical, dançando e batendo palmas imitando a percussão dos tambores. Esta foi a última atração do dia. A plateia aplaudiu de pé e dirigiu-se para a saída. Apesar de o evento ter sido encerrado, a maioria das pessoas não quis ir embora. Foram conversar em frente ao Centro Cultural. “Que apresentação linda”, “Ótima comida”, “Eu não sabia que a cultura do Senegal é tão rica”, foram alguns trechos das conversas. As risadas que ecoavam nas ruas e os sorrisos daqueles que iam embora foram refletidos no tempo que começava a mudar. Deixamos o local com pesar, como quem se despede de um amigo querido.

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Em busca de acolhimento Mesmo recebendo a ajuda de muitos brasileiros, os imigrantes que chegam ao país ainda são alvo de preconceito Danrley Passos

“N

ão temos vagas para senegaleses”. Foi com estas palavras que a peça de teatro organizada pelo SUNU Culinária — um evento realizado pela Associação dos Senegaleses de Porto Alegre – mostrou a realidade de imigrantes que buscam vagas de emprego. O olhar preconceituoso dirigido a raças, gêneros ou nacionalidades ainda persiste na sociedade – e também atinge os imigrantes. Por razões naturais, de guerras ou trabalho, é grande a quantidade de pessoas que buscam uma vida melhor em outros países. Não raro, no entanto, elas esbarram no preconceito, que não escolhe motivo para existir. Apenas o fato de vir de uma região mais vulnerável pode tornar alguém alvo de discriminação. Omar-Diongue, vice-presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre, sabe bem disso. Ele chegou no Brasil há quatro anos motivado por uma situação bem comum no seu país de origem: a busca por oportunidades em outro lugar para poder ajudar a família. No caso de Omar, a ajuda é para a mãe. “Tem algumas pessoas que não pretendem sair, pois estão

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bem no Senegal. Mas no geral, nós temos dificuldades para conseguir oportunidades, por isso a gente vem para o Brasil”, diz Omar. A adaptação do senegalês foi rápida. A prioridade foi o domínio do português, ainda no início de sua experiência no Brasil. A trajetória no país, aliás, não tem apenas fatos positivos. Apesar da rápida adaptação, o preconceito também esteve presente. Em Caxias do Sul, para onde foi em busca de vagas na construção civil, Omar sofreu discriminação por parte de colegas de trabalho. “Me acusaram dizendo que eu comi a comida deles. E por que isso? Porque eu sou negro”, conta, resignado. Segundo ele, isso acontece “em todo lugar”. Omar ainda cita a exploração por parte dos empregadores. “Eles contratavam senegaleses porque ‘trabalhavam direto’ e poderiam ser usados no serviço pesado”, conta. Como vice-presidente da associação, Omar também já ouviu dúvidas de outros senegaleses que o perguntavam sobre essa exploração. Além da xenofobia, o trabalho pesado e em excesso, principalmente na construção civil, era


“Acham que negro não morre, não sente doença. Negro sente todas essas coisas.” Omar -Diongue

Foto: Andrew Fischer

destinado aos senegaleses. Para os brasileiros, o trabalho era visivelmente mais leve. “Acham que negro não morre, não sente doença. Isso é falta de conhecimento, pois negro sente todas essas coisas”, diz, citando essa diferenciação também como preconceito. A falta de conhecimento propaga o pensamento de que África é sinônimo de pobreza. “Muita gente não quer estudar. Tem brasileiro que acha que na África não tem Coca-Cola”, reclama Omar. “Quando me perguntam, eu digo para procurar no Google: o que é Senegal, onde é Senegal, Senegal tem o quê. Quando eu vim para o Brasil, me diziam que só tinha favela. Mas isso me motivou para pesquisar. Quando procurei, vi que era mentira”, comenta. Omar participou da peça de teatro citada na abertura dessa matéria. Realizada no SUNU Culinária, a peça abordou temas como o preconceito e a cultura dos países africanos, mostrando situações pelas quais a maior parte dos imigrantes passa.

Preconceito “disfarçado” Roosvens Elossi Marc, de 31 anos, diz que o preconceito acontece, mas não de uma forma direta. Natural de Gonaïves, o haitiano, que está no Brasil desde 2013, fala por experiência própria. “Um olhar diferente, tu vai sentir isso, mas diretamente a pessoa não vai aparecer lá e te xingar assim. Mas indiretamente já aconteceu”, comenta, dizendo que o preconceito ocorre de forma “disfarçada”. Ele ainda conta que existem casos de preconceito com amigos, principalmente na construção civil. A vinda de Marc, como é conhecido, também foi motivada pela busca de oportunidades. Estudante de Engenharia Civil no Haiti, ele foi obrigado a trancar a faculdade por falta de recursos. Buscou oportunidades para continuar estudando em Porto Alegre – e cursa Técnico em Edificações, na Escola Técnica Parobé. Marc, inclusive, já é técnico de Segurança no Trabalho e frequenta aulas de português no Cibai. UNIVERSUS | FORASTEIROS | N° 4 | JULHO DE 2017

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Foto: Natália Silveira

Oito mil quilômetros pelo futuro de Sofia Luisa Alvarez deixou a Colômbia no início de janeiro com apenas um objetivo: dar uma vida melhor à filha de quatro anos

Mariana Dornelles e Giordana Cunha

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estindo blusa de pijama, calça capri de malha e chinelos de borracha, Luisa Fernanda Alvarez nos recebe com um sorriso no rosto na casa em que foi acolhida em Porto Alegre. A um metro do portão, a servidora pública aposentada Vera Regina Correa, mais conhecida como dona Vera, rega as folhagens e pede para que a gente se sinta à vontade. Ao entrar na cozinha, vemos uma mesa de madeira e, sobre ela, os brinquedos da filha da Luisa, Sofia, quatro anos recém-feitos. Vera entra logo atrás de nós. Pede para que a

gente sente, desliga a televisão e oferece um café. Quando a conversa começa, ela decide deixar a mesa para Luisa ficar mais à vontade. A vida da jovem de 21 anos nunca foi fácil. Desde pequena, ela, os seis irmãos e a mãe trabalhavam com reciclagem em Medellín, na Colômbia. Luisa relata que em certos momentos a comida faltava na mesa. Com 16 anos ela se deparou com um novo desafio: a gravidez. Sem o apoio do pai da criança, terminou os estudos e decidiu partir em busca de um futuro melhor para Sofia.

A viagem Foram 15 dias de viagem até o Rio Grande do Sul. O trajeto, que custou cerca de três mil reais, passava pelo Equador, Peru e São Paulo. Na fronteira entre Peru e Brasil, Luisa foi surpreendida por um roubo. “Levaram nossos documentos, grande parte das roupas que tínhamos e o pouco dinheiro que carregávamos”, conta, enxugando as lágrimas. No Consulado Geral da Colômbia, em São Paulo, Luisa conseguiu passagens para chegar a Por-

to Alegre. Ao chegar, não tinha para onde ir e morou por alguns dias na rodoviária. “Quando Sofia queria dormir eu me sentava em cima das malas e ficava com ela no colo”, lembra. Foram noites mal dormidas e dias se alimentando graças à boa vontade de quem passava. Com a incerteza de um lar, Luisa procurou o Cibai Migrações em busca de ajuda. “Lá em São Paulo já indicaram a igreja”, explica. O Cibai foi responsável pela ligação entre Luisa e dona Vera.

O coração solidário de dona Vera “Na Colômbia isso não acontece. Ela é um doce”, Luisa fala, se referindo à solidariedade de dona Vera, com quem convive há dois meses. Mãe de quatro filhos adotivos, dona Vera viu eles formarem suas próprias famílias. Com o tempo, a casa se tornou grande demais só para ela. “Pagava uma moça que ficava três dias na semana comigo e outra para dormir aqui. Aí pensei: por que isso se eu posso ajudar alguém?”, relata, explicando como decidiu acolher Luisa e Sofia como se fossem suas filhas. “No momento em que as vi, me apaixonei”, lembra. Foi dona Vera quem deu os 312 reais para Luisa fazer o visto de permanência provisória no Brasil. ”Com o visto, ela já pode providenciar CPF, RG e Carteira de Trabalho”, ressalta Rossana Zevalle, responsável pelo atendimento na secretaria do Cibai. O documento demora em torno de quatro meses para

ficar pronto. Após dois anos com a permanência provisória, é renovado para mais nove. Em razão da demora na documentação, Luisa ainda não conseguiu encontrar um emprego. “Achei que ia ser mais rápida a conquista de algum trabalho”, lamenta. O plano para quando a colombiana tiver uma renda é colocar a filha na escola. “Este é meu maior objetivo. Quero que ela tenha um bom futuro e aprenda o português”, diz Luisa.  A única forma de Sofia se adaptar ao novo idioma é aprendendo com a mãe, que ensina tudo o que sabe. “Já ensinei ela a escrever o próprio nome. Agora estou ensinando as vogais”, conta, orgulhosa. Sofia faz sucesso por onde passa. Com o cabelo encaracolado e uma alegria contagiante, ela encanta todos a sua volta. “Ela já conquistou a vizinhança toda. Todos se apaixonaram por ela”, relata dona Vera. UNIVERSUS | FORASTEIROS | N° 4 | JULHO DE 2017

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Foto: Jaqueline Moura

Um colombiano no Brasil Aos 64 anos, Hernan Medina tem muita história para contar; com medo da violência provocada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), ele deixou o país natal em busca de uma vida melhor Danrley Gonçalves

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oi na capital da Colômbia, Bogotá, que Hernan Gonzalez Medina, de 64 anos, viveu a maior parte de sua vida trabalhando como administrador de empresas. A reportagem ouviu a história de Hernan em um sábado de abril, em frente à paróquia Nossa Senhora da Pompéia, também sede do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (CIBAI). Era dia de aula gratuita de português, ministrada por voluntários. Durante a aula, os alunos falavam sobre as suas vidas – e os seus sonhos. Hernan contou que deixou o país natal com medo da violência provocada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que vem realizando sequestros e mortes com cunho político e ideológico – o grupo também é conhecido pelo tráfico de entorpecentes. “Estamos sendo perseguidos pelos narcoterroristas”, disse o colombiano. Mas não foi esse o único motivo que o trouxe a Porto Alegre. “Vim também pela minha admiração pelo Brasil”, disse. Hernan está no Brasil há três anos. Antes, passou pela Venezuela, onde ficou dois anos. “Saí da Colômbia em 2012, passei 2012 e 2013 na Vene-

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zuela e 2014, 2015 e 2016 aqui”, conta. A viagem até o Brasil foi feita em ônibus, e a entrada no país foi via Roraima. De Roraima, novamente de ônibus, ele viajou até o Rio Grande do Sul. “Demorei muito porque vim por terra, trabalhando e viajando, trabalhando e viajando”, diz. O colombiano andou de norte a sul do Brasil. Passou por cidades como Boa Vista, Belém, Teresina, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, até chegar, enfim, a Porto Alegre. E é justamente na capital gaúcha que Hernan tem encontrado as maiores dificuldades em conseguir emprego. “Em outros lugares consegui trabalhar. Aqui não achei trabalho e estou em um albergue municipal, porque em Porto Alegre não tem casa do imigrante”, explica. “Fico com os moradores de rua, por estar em situação de rua”, conta o colombiano. Mesmo diante das dificuldades, Hernan permanece otimista. “Dificuldades são normais. Geralmente é por falta de dinheiro, mas se supera. Aqui no Brasil tem boa comida, tem muita boa solidariedade. Os brasileiros são muito nobres”, avalia.


Foto: Natália Silveira

De braços abertos Se existe o preconceito, também existe o acolhimento. Em Porto Alegre, instituições religiosas e organizações da sociedade civil não medem esforços para ajudar os imigrantes Shállon Teobaldo, Tamires Alves e Geila Passos

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ecomeçar a vida em um novo país pode ser uma experiência contraditária, em que o imigrante vê, ao mesmo tempo, o melhor e o pior do ser humano. Em Porto Alegre, por exemplo, ao mesmo tempo em que sofrem preconceito, discriminação e dificuldades de toda a ordem, os estrangeiros também encontram as portas abertas em dezenas de instituições que têm, como missão, ajudar. O Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai), ligado à Igreja da Pompeia, é uma dessas instituições. A vocação para o trabalho com imigrantes remonta os anos de 1900, quando o padre italiano João Batista Scalabrini iniciou um trabalho com estrangeiros na Índia. Beatificado em 1997 pelo Papa João Paulo II, Scalabrini é a personificação do versículo bíblico que orienta o trabalho do Cibai: “Porque tive fome, e me destes de comer. Tive sede, e me destes de beber. Era estrangeiro, e me acolhestes” (Mateus, 25:35). Sediada no Centro de Porto Alegre, a instituição já atendeu cerca de 200 mil imigrantes desde que foi fundada, em 1953. Hoje, os voluntários auxiliam, diariamente, de 30 a 40 esFoto: Natália Silveira

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trangeiros – a maioria haitianos e senegaleses. Os números são altos: somente em 2016, 7.083 imigrantes foram atendidos, o que indica a importância de instituições como essa. “Não basta abrir as portas, é preciso acolher e dar condição de vida. E o governo não está fazendo isso”, explica o padre Valmir Baldo, diretor do Cibai. Para ele, a questão das migrações é um tema “vivo e real”. “As migrações desafiam a sociedade e quebram muitas velhas estruturas que pareciam intocáveis. A migração segue sua história, querendo ou não querendo a sociedade. É a tal da sociedade líquida do sociólogo polonês Zygmund Bauman, onde as estruturas já não são fixas nem intocáveis”, destaca. O padre Valmir conta com auxílio do padre Marcio André da Silva nas atividades junto aos imigrantes. De acordo com o padre Marcio, entre as formas de auxílio oferecidas pelo Cibai estão orientações quanto à documentação, confecção de currículos e aulas gratuitas de português. “O Cibai está sempre de portas abertas para auxiliar os imigrantes”, destaca. Além dos padres, o projeto conta com voluntários que abraçaram a causa da imigração.


Foto: Natália Silveira

Um deles é a advogada Aline Medeiros que se dedica, desde 2013, a ajudar os imigrantes. Frequentadora da paróquia, Aline ficou sabendo pela mãe, também paroquiana, que a igreja começaria um projeto de aulas de português gratuitas para estrangeiros. No início, hesitou. Achava que não poderia contribuir, mas mesmo assim resolveu conhecer a iniciativa. “Vi que realmente não tinham professores suficientes e os migrantes precisavam se comunicar para entrar no mercado de trabalho. Aí eu me apaixonei pelo projeto”, afirma. Aline dedica grande parte de seu tempo ao voluntariado. No último ano, assumiu funções junto à coordenação do curso gratuito de português, onde coleciona histórias emocionantes. “No começo eu não queria dar aula porque pensava que iria perder o sábado, que era um dia dedicado para mim. Mas aí tu chegas na aula e vê aqueles olhinhos cansados, mas prestando muita atenção em ti. Não tem retorno melhor

Foto: Tainara Fazenda

que isso”, conta. Esse também é o aprendizado do advogado e professor aposentado, Jurandir Zamberlam, que há 15 anos atua como voluntário no Cibai. Filho de agricultores do interior do Estado, Jurandir contou com bolsas de estudo para concluir os estudos – e hoje ele vê o trabalho voluntário como uma forma de retribuição pelas oportunidades que teve. “É uma decisão de partilhar com as pessoas. Eu sou o que sou hoje porque os outros me deram oportunidade. Então, eu quero doar um pouco dessa experiência”, conta. O convívio com os imigrantes e a participação em congressos e seminários sobre o tema fizeram com que Jurandir mudasse a visão sobre o assunto. “Quando entrei aqui tinha uma visão da migração como um problema demográfico, uma questão de números. Agora eu sei que é um problema de direitos humanos”, afirma.

Foto: Tamires Alves

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Nossa Capa Artista plástico formado na maior escola de arte do Senegal, a Beaux Arts, de Dacar, Ousmane Ndiaye Mathurin mora em Caxias do Sul há três anos com a esposa Binetou e o filho Bathie, que nasceu no Brasil. Especialista na arte em vidro, Ousmane cria peças coloridas e vibrantes, inspiradas na temática africana. “A arte faz parte de Ousmane. Me ajuda muito. Me faz ter, todo dia, um projeto”, diz. Convidamos o artista para ilustrar a capa da revista FORESTEIROS, pedindo que ele

dividisse conosco como os imigrantes enxergam o Rio Grande do Sul. “Tem bastante imigrante que saiu de lá deixando mulher, criança, pai, mulher grávida... buscando uma vida melhor”, explica, mostrando o mapa da África que ilustra a contracapa da revista. Quando chegam ao Rio Grande do Sul, segundo Ousmane, esses imigrantes encontram mais acolhimento do que discriminação - e esse sentimento está representado nos braços abertos de um homem, no centro da capa da

revista. “Todo lugar tem gente ruim. Mas tem muita gente boa também”, resume. Ousmane faz parte do coletivo Math Art e, atualmente, vive da arte que produz. MATH ART ARTE AFRICANA Quadros, esculturas, tecidos e colares Telefones: (54) 98165-8360 | (51) 99538-3781 E-mail: mathartbrasil@gmail.com Rua Sinimbu, 1912, apt. 22 Caxias do Sul - RS


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