UNIVERSUS nº 01 (2014/2)

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#01 REVISTA DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNIRITTER # ANO 1 # 2O SEMESTRE 2014

CIDADE BAIXA

COMO NASCEU A POLÊMICA QUE DIVIDIU A OPINIÃO DOS MORADORES, COMERCIANTES E FREQUENTADORES DO BAIRRO MAIS BOÊMIO DE PORTO ALEGRE

GERAÇÃO RITALINA NUNCA TOMAMOS TANTOS MEDICAMENTOS CONTROLADOS. ENTENDA POR QUE ISSO É UM PROBLEMA

INIMIGO INVISÍVEL

DESDE MARÇO DE 2014 O MUNDO ENFRENTA UM VÍRUS DEVASTADOR QUE JÁ MATOU MILHARES DE PESSOAS Paulinho Moradia, do Assentamento Santa Efigênia

OCUPAÇÕES

O DRAMA DE QUEM LUTA PARA CONQUISTAR MORADIA #1 ISSUU.COM/UNIVERSUS


O PRECONCEITO NÃO ESTÁ SÓ NA COR DA PELE, ESTÁ NO QUE VOCÊ EXPRESSA NELA.

VEJA ALÉM DA PELE. 2# UNIVERSUS _ 2 _ 2014


sumário#3 04

POLÊMICA_CIDADE BAIXA: DIVERSÃO X SOSSEGO_ Maureci Junior e Luiz Soares

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PROFISSÕES_O TRABALHO DOS SONHOS A SEU ALCANCE_ Débora Pires, Leandro Cougo e Renata Scheidt

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SAÚDE_GERAÇÃO RITALINA_

Cristielle Mattos, Lucas Lautert e Sarah Lima

22

EPIDEMIA_INIMIGO INVISÍVEL_ Bárbara Scussel e Jéssica Fontoura

28

HISTÓRIA_INVESTIDAS DO TEMPO_

Bárbara Barros, Letícia Bonato e Vanessa Magnani

34

CULTURA_O VINIL ESTÁ DE VOLTA ÀS PARADAS DE SUCESSO_ Anderson Aires e Anderson Raí

42

MÚSICA_HERDEIROS DE LUPI_ Anderson Borges e Leonardo Mayer

46

GASTRONOMIA_O SUSHI NA TERRA DE VERA CRUZ_ Daniela Fragomeni eE Guilherme Gottardi

52

MATÉRIA DE CAPA_PELO DIREITO À MORADIA, OCUPAMOS_ Caroline Correa, Priscila Valério e Leonardo Pujol

62

MEDICINA_A CURA PARA A SAÚDE PÚBLICA_ Kyane Sutelo, Carlos Redel e Wagner Miranda

70

COMPORTAMENTO_O PODER DA FÉ E SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES_ Camila Arosi, Everton Cordeiro e Liliane Pereira

76

ECONOMIA_A VIDA POR TRÁS DA ARTE DE RUA_ Francine Silveira

78

VIDA_EMAGRECER COM SAÚDE É POSSÍVEL_ Alessandra Pinheiro e Marina Freitas

82

ESPORTE_ELITIZAÇÃO DO FUTEBOL_ Andre Neves e Jéssica Maldonado

#Expediente A REVISTA UNIVERSUS é um projeto da Faculdades de Comunicação Social (FACS) do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter/Laureate International Universities. A iniciativa surgiu da necessidade de criar um espaço de divulgação do material produzido nos cursos de jornalismo e publicidade. UniRitter / Laureate International Universities Campus Porto Alegre: Rua Orfanotrófio, 555• Alto Teresópolis • Porto Alegre/RS • CEP 90840-440 • Fones: (51) 3230.3333 | (51) 3027.7300 • Campus Canoas: Rua Santos Dumont, 888 • Niterói • Canoas/RS • CEP 92120-110 • Fones: (51) 3464.2000 | (51) 3032.6000 • Campus Fapa: Av. Manoel Elias, 2001 • Alto Petrópolis • Porto Alegre/RS • CEP 91240-261 • Fones: (51) 3230.3333 • Campus Exclusivo: Av. Wenceslau Escobar, 1040 • Cristal • Porto Alegre/RS • CEP 91900-000 Reitor: Telmo Rudi Frantz • Chanceler: Flávio D’Almeida Reis • Pró-Reitora de Graduação: Laura Coradini Frantz • Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-graduação e Extensão: Márcia Santana Fernandes • Coordenação do curso de Jornalismo: Laura Glüer • Coordenação do curso de Publicidade e Propaganda: Sônia Zardenunes • UniVersus: Edição: Laura Glüer, Robson Pandolfi e Rogério Grilho • Projeto Gráfico: Rogério Grilho • Diagramação: alunos do Projeto Experimental Revista e Rogério Grilho (MT 7465) • Supervisão fotográfica: Rogério Soares e Marina Chiapinotto• Publicidade: alunos de Criação Publicitária e Ana Carolina Dutra.

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4#

Cidade baixa

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DIVERSテグ

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polêmica#5

X

SOSSEGO

COMO NASCEU A POLÊMICA QUE DIVIDIU A OPINIÃO DOS MORADORES, COMERCIANTES E FREQUENTADORES DO BAIRRO MAIS BOÊMIO DE PORTO ALEGRE POR MAURECI JUNIOR E LUIZ SOARES FOTOS MAURECI JÚNIOR / LUIZ SOARES / CAMILA EMIL / ÉVILIN MATOS

#5 ISSUU.COM/UNIVERSUS


POLÊMICA

CIDADE BAIXA: DIVERSÃO X SOSSEGO

D

Doze de novembro de 2011. O bair-

ro mais boêmio da capital gaúcha acenava para mais uma noite habitual, de música eclética e muito comércio. Mas o agito, dessa vez, não ficou por conta dos clientes que frequentam o local em busca de descontração. Os protagonistas daquele episódio vestiam coletes azuis e usavam crachás da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio de Porto Alegre (Smic). Uma das maiores operações realizadas pela Smic em nome do silêncio, que contou com apoio da brigada militar, fechou 22 estabelecimentos entre bares e restaurantes. Outros nove foram autuados. O primeiro documento da cidade a definir como crime “a perturbação do sossego” foi o Decreto Lei 3.688, de 1941. Até 2011, contudo, a prefeitura tinha uma atuação mais branda sobre quem não cumprisse as regras definidas pelo decreto. A “Operação Sossego” mudou tudo. Os bares fora das normas passaram a ser autuados. E a reincidência levou ao fechamento de vários deles – uma metamorfose significativa na rotina de proprietários e frequentadores.

A mudança provocou o embate entre diversão e silêncio e dividiu a opinião dos moradores. Além disso, atingiu diretamente comerciantes e frequentadores do local e gerou uma polêmica até hoje discutida no certame político da capital gaúcha. A polêmica levou a prefeitura a homologar, em agosto de 2012, o Decreto 17.902, especificamente criado para o bairro. A normativa estabeleceu os seguintes limites de horário para o funcionamento dos bares, restaurantes, e demais casas noturnas deste bairro: 1 hora da manhã (de domingo até quinta – feira), e 2 horas para sextas, sábados e vésperas de feriados, com tolerância de 30 minutos em ambos os casos. BOÊMIO, MULTICULTURAL E POLÊMICO Endereço dos porto-alegrenses que buscam diversão à noite, a Cidade Baixa é uma região de contrastes e transformações. Durante o dia, famílias passeando com seus pets pelas ruas; grupos de amigos se divertem, bebendo e comendo nos bares e restaurantes, pon-

Por meio da Operação Sossego, os fiscais da Smic multam os estabelecimentos que estiverem excedendo o horário ou descumprindo alguma das regras de funcionamento. Caso um bar continue funcionando de forma irregular, mesmo após ter sido multado, a Smic volta e fecha as portas do local.

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Luiz Soares

tos comerciais que prestam os mais variados serviços. Ao todo, mais de 16 mil moradores habitam a região, segundo o último dados do IBGE de 2010 – Independência e Centro Histórico possuem, respectivamente 6 mil e 11 mil. Chegada a noite, o ambiente aos poucos se modifica – e o bairro vai ganhando ares de protagonismo. Então o adjetivo cosmopolita e multicultural, atribuído por frequentadores do local, pode a ser melhor compreendido. É bem claro que o bairro Cidade Baixa é o point noturno do entretenimento da cidade. Considerando-se somente locais voltados para a diversão noturna, são mais de 85 pontos comerciais, com variada opção de música, ao vivo ou mecânica, para os mais variados estilos e tribos. Rock, Pagode, Reage, Eletrônica, Sertaneja, basta escolher. No entanto, é nesse mesmo período – a noite – que as polêmicas do bairro começam. Os conflitos e as queixas sempre existiram. Mas, a partir de 2011, o embate entre moradores, comerciantes e frequentadores da Cidade Baixa se intensificou. O novo decreto aprovado em 2012, específico para o bairro, só intensificou o processo: passou a regular horários e mudanças para a operação dos estabelecimentos noturnos da região. Foi nesse momento que as operações da Smic passaram a ganhar destaque – e, ao mesmo tempo, passaram a ser o

alvo preferencial de quem defende mais liberdade para os frequentadores do bairro. Por meio da Operação Sossego, os fiscais multam os estabelecimentos que estiverem excedendo o horário e descumprindo as regras de funcionamento. Caso um bar continue funcionando de forma irregular, mesmo após ter sido multado, a Smic volta lá e fecha as portas do local. Entre o primeiro e o início do segundo semestre de 2014, 15 pontos comerciais foram fechados por estarem fora da lei. Destes, sete ficavam na Cidade Baixa. Apenas o bar Espaço do Zumbi, localizado no centro, na Travessa do Carmo n° 136, não foi reaberto, segundo informações da Smic. O diretor de fiscalização desta secretaria, Rogério Teixeira Stockey, explica que a Operação Sossego é uma iniciativa do vereador Humberto Ciulla Goulart, Secretário Municipal da Produção Indústria e Comércio. Seu principal objetivo é trazer tranquilidade para os moradores que residem no entorno de certas atividades potencialmente perturbadoras do ponto de vista sonoro. Com as sucessivas interdições de bares, a operação gerou uma reação por parte dos comerciantes. Através de sua associação, eles se organizaram para tentar mostrar que não é o comércio local o grande vilão do sossego naquela região. A primeira alegação é de que a maioria dos estabelecimentos age den-

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CIDADE BAIXA: DIVERSÃO X SOSSEGO

Évilin Matos

POLÊMICA

Com interesses particulares, por vezes, notamse dicotomias entre as formas de pensar de comerciantes, frequentadores e moradores do local.

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tro da lei. A segunda é que a desordem, muitas vezes, vem de uma minoria – ou até mesmo de um público que não corresponde à clientela dos pontos comerciais do bairro, como os motoristas que abrem os porta-malas dos carros no meio das ruas causando incômodo aos moradores. Certos de não são o problema, os empresários resolveram identificar a raiz dos problemas – e, então, passaram a buscar soluções para um convívio harmônico entre todos os interessados. UMA DESCARETIZAÇÃO DA CIDADE BAIXA? Algumas pessoas interpretam o atual movimento de intervenções e fiscalização no bairro Cidade Baixa como uma “caretização” do entretenimento e da disponibilidade de opções de lazer que o local oferece. A razão que leva a esse pensamento é de que a boemia da região pode ceder espaço para o marasmo. Assim, a Cidade Baixa se tornaria,

no futuro, algo muito menos vivo do que é hoje. Existe, inclusive, certa preocupação por parte da população que teme perder o grande ponto de referência das noites porto-alegrenses. “A vida não é só trabalho, produção... Diversão também é preciso”, afirma o do jornalista e historiador Juremir Machado, ilustre morador do bairro Bom Fim. Isso sintetiza a posição de inúmeros frequentadores do bairro. Mas nem todos compartilham essa opinião. Com interesses particulares, por vezes, notam-se dicotomias entre as formas de pensar de comerciantes, frequentadores e moradores do local. Segundo o presidente da associação de moradores da cidade baixa, Zilton Tadeu, a principal luta de algumas famílias do bairro é para preservar o sossego e a paz durante as noites. O principal problema nas noites da Cidade Baixa, apontado tanto por comerciantes quando por moradores, é o consumo de bebidas alcoólicas por menores, sujeira nas ruas e barulho excessivo emitido por


desordem na região, mas outros, como o Pinguim, são bares sérios e também acabam caindo na fiscalização.” UMA TENTATIVA DE PACIFICAÇÃO Como forma de policiar o bairro e coibir quaisquer ações que possam perturbar os moradores, a polícia militar se uniu aos comerciantes do bairro para realizar a troca diária de informações em um grupo de Whatsapp. Diversas imagens, denúncias e informações são compartilhadas todos os dias. Outra iniciativa executada para melhorar a noite no bairro mais boêmio da cidade é um curso que alguns comerciantes estão realizando no Rio de Janeiro. Lá, profissionais do Sebrae oferecem um aperfeiçoamento no qual os donos de restaurantes e bares observam mode-

Camila Emil

parte de um grupo de frequentadores do local e bares não regularizados. “No nosso mandato, com a autorização do conselho deliberativo e fiscal, estamos somente tratando do combate à perturbação do sossego público, que em nossas moradas chegou à condição de verdadeira tortura”, enfatizou Tadeu, que, ao expressar-se, deixa claro a imponência de suas posições. Além disso, o representante dos moradores também garante que os habitantes locais querem incrementar as noites do bairro, mas de uma forma diferente de como vem sendo feita até agora, e questiona a ação da prefeitura na fiscalização dos pontos comerciais. “Apenas um grande bar foi fechado, provisoriamente, o Pinguim. Foi apenas para simular que também se fecham os grandes”, explica Tadeu. “Estamos com abaixo-assinado que ainda está percorrendo o entorno residencial daquele estabelecimento.” No entanto, há também quem veja o lado positivo das intervenções da brigada militar. Os comerciantes do local, representados pelo presidente da Associação de Comerciantes da Cidade Baixa, Moacir Biasibetti, afirmam que as incursões do 9° batalhão da BM está auxiliando no processo de retomada da ordem social nas noites do bairro. “Parte dos comerciantes moram no bairro e queremos o melhor para a região”, afirma. Moacir também revela que uma das medidas tomadas pelos associados do bairro foi adotar e bancar despesas de uma viatura da BM para garantir policiamento do local. E reconhece que alguns dos estabelecimentos do bairro não agem corretamente. “Tem alguns pontos comerciais que nem da associação fazem parte. ‘Por que será?’, Eu me pergunto. Esses é que geralmente são autuados por realmente estarem estimulando a

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CIDADE BAIXA: DIVERSÃO X SOSSEGO

los bem sucedidos de bairros cariocas que possuem casas noturnas. A ideia é importar o conceito de “polo de entretenimento” e poder contornar possíveis aspectos negativos da Cidade. Responsável pela segurança do local, o capitão do 9º Batalhão da BM, Capitão Maciel, afirma que, hoje, existe uma parceria entre a polícia, os comerciantes e grande parte dos moradores. “Todos temos consciência da importância da vida noturna da Cidade Baixa”, diz Maciel. “O mais importante é garantir a segurança de moradores, comerciantes e frequentadores. E graças à parceria que formamos, o projeto Cidade Baixa Tranquila está dando certo.” O capitão faz questão mostrar os recados que a BM recebe dos moradores. Na maioria, são agradecimentos e mensagens de apoio às operações.“As operações de Balada Segura e as constantes incursões da BM no bairro até afugentam alguma parte dos nossos clientes. Mas é importante selecionar visitantes que saibam manter a ordem, e é nítido que está sendo bom para todos”, diz o proprietário do restaurante Via Imperatore. UM NOVO BOM FIM? Os conflitos de interesse entre quem quer o sossego e quem busca diversão não são novidade. Embora considere que as pessoas precisam do descanso e que o lazer e a vida noturna são fundamentais para uma grande capital, Juremir Machado reconhece que até para curtir festas é necessário moderação. O jornalista lembra que, ainda na década

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Foto Maureci Junior

POLÊMICA

de 1980, o bairro Bom Fim era dono do título de mais boêmio, e concentrava desde universitários até poetas e escritores do naipe de Moacyr Scliar. “Eu vi todos esses conflitos da Cidade Baixa acontecerem no Bom Fim”, diz o jornalista. “Havia muitos bares, entre eles o Ocidente, o bar Scaler e outros, que também eram fortes. Em alguns finais de semana o fluxo nas ruas chegava a 5 mil pessoas de diversas tribos. Era a década de 80.” O colunista do jornal Correio do Povo lembra também que as festas eram suntuosas e traziam não só música, bebidas e comida. Eventualmente, também havia brigas e consumo explícito de drogas. “Tudo o que vem junto com as festas”, classifica ele. Um tempo depois,


os moradores começaram a ficar indignados. Afirmavam que não havia como dormir, a bagunça era exagerada e se associava, ainda na visão de Juremir, a uma ideia hiperdimensionada de violência. “Os populares buscaram ajuda na esfera política e logo em seguida os horários dos bares foi delimitado”, afirma. “A dinâmica do local foi se esmaecendo. E isso meio que quebrou o Bom Fim.” Após esses fatos, o movimento noturno do bairro se deslocou em massa para a Cidade Baixa. Professor de educação física e morador do Bom Fim entre 1975 e 1998, Fernando Garrido relata com carinho os tempos áureos do velho “Bonfa”, como refere-se ao bairro. O professor descreve a região como frequentada por gente de toda a cidade, com a vida noturna intensa e com pontos de encontro de referência. Garrido lembra dos bares Luar, Scaler, Copa 70 e Bar João. “Na metade dos anos 80, com o remoção de alguns cursos da UFRGS para o campus da Agronomia, o bairro perdeu algumas das características estudantis que possuía, pois fecharam muitas repúblicas de estudantes e alguns bares clássicos”, lembra. “Nesse instante, o bairro começou a ter um clima meio hostil, já não era seguro andar pelas ruas nem frequentar os bares à noite. As drogas se espalhavam rapidamente. Parte dos frequentadores já apresentava outro perfil.” Baseando-se no que aconteceu no Bom Fim, a boemia porto-alegrense pode ganhar, novamente, um novo endereço. Não são poucos os que defendem a ideia, baseados na justificativa de que a Cidade Baixa não é o local definiti-

Se for revitalizada, a orla do Guaíba poderá ser o novo ponto de entretenimento e coração noturno de Porto Alegre. Lá, o espaço entre os bares e as residências deverá permitir uma convivência harmônica entre moradores e baladeiros.

vo para a diversão noturna. Pelo contrário, até cogitam um novo habitat para os “zoeiros” da noite. Alguns, inclusive, já têm sua sugestão. Juremir cogita que a Orla do Guaíba pode ser esse lugar. Se for revitalizada, poderá ser o novo ponto de entretenimento e coração noturno de Porto Alegre. Lá, o espaço entre os bares e as residências deverá permitir uma convivência harmônica entre moradores e baladeiros. A beira do Lago, apesar de possuir alguns problemas estruturais notórios, é um local frequentado por quem aprecia sua paisagem e gosta de praticar exercícios em alguns trechos da região. No entanto, a prefeitura de Porto Alegre prevê a revitalização e aperfeiçoamento do local. A previsão é de que o processo de revitalização da Orla tenha início nos próximos meses. A região ganhará uma

melhoria na infraestrutura, com locais para encontros públicos, mais segurança e boa iluminação, além de um bar flutuante. O investimento no projeto é estimado em torno de R$ 57,4 milhões e deve ficar pronto aproximadamente 18 meses após o início das obras. Arquiteto, urbanista e prefeito de Curitiba por três vezes, Jaime Lerner é responsável pelo planejamento estrutural e criativo do empreendimento. As discussões e polêmicas em relação à Cidade Baixa não devem parar por aí. Por enquanto, é difícil imaginar uma transformação radical no bairro, mas o entorno do Guaíba já surge como opção para a diversão e o lazer. Resta saber se o local será, de fato, o próximo destino da “agitada” noite porto-alegrense.

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Ana de Cesaro, YouTuber

POR DÉBORA PIRES, LEANDRO COUGO E RENATA SCHEIDT FOTOS TIAGO SCHLICHTING

C

Câmera, computador e criatividade. A aliteração não

é casual – pelo menos não se levarmos em conta que estamos falando de pessoas que ganham a vida com vídeos. Poderíamos estar falando de cinegrafistas e cineastas, mas não é o caso. Mas não. Trata-se dos youtubers: pessoas que ganham a vida – em alguns casos muito bem, obrigado – com publicidade

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profissões#13

O TRABALHO DOS SONHOS A SEU ALCANCE

TRABALHAR EM CASA. TER FLEXIBILIDADE DE HORÁRIOS. GANHAR A VIDA PRODUZINDO VÍDEOS NO YOUTUBE – E CONSEGUIR NOTORIEDADE COM ISSO. A NOVA ECONOMIA CRIOU ATIVIDADES QUE PERMEIAM O IMAGINÁRIO POPULAR COMO PROFISSÕES DOS SONHOS. ENTRE ELAS, A DE YOUTUBER. ENTENDA COMO É A REALIDADE DESSES PROFISSIONAIS – E O QUE VOCÊ PRECISA FAZER CASO QUEIRA CHEGAR LÁ.

e patrocínios a seus vídeos na plataforma YouTube. Aliando-se o equipamento mínimo, bastante acessível, e características como organização e noções de publicidade na web – além de talento e um pouco de sorte, é claro –, já é possível arriscar na área. Se, por um lado, o risco de perdas financeiras é baixo, já que o investimento inicial é pequeno, a escolha de uma

estratégia equivocada pode expor o aspirante a youtuber ao ridículo. Ainda que a rotina dessas pessoas possa ser bastante flexível, é preciso organização – e conhecimento – para montar roteiros, construir temáticas e escolher assuntos atuais com os quais o público se identifique. Parece fácil, mas o trabalho é continuo e necessita de uma renovação permanente – e de jogo de cintura

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PROFISSÕES

O TRABALHO DOS SONHOS A SEU ALCANCE

para aceitar críticas por vezes severas de alguns usuários. Então, a pergunta fundamental é: apesar dos aparentes benefícios, ter a privacidade compartilhada torna a atividade de youtuber de fato a profissão dos sonhos? A resposta depende dos objetivos e do grau de tolerância de quem pretende ter a profissão como estilo de vida. UM CASO DE SUCESSO Ana de Cesaro conquistou mais de cem mil inscritos em seu canal do YouTube. Com o intuito de compartilhar sua viagem à Europa com sua família, Ana postava diariamente vídeos dos lugares

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que conhecia de forma totalmente espontânea. Cada vídeo era uma reação eufórica de conhecer um ponto turístico novo. O que era para ser um registro pessoal acabou se tornando bastante popular. Despropositadamente, os acessos foram aumentando – e os pedidos de vídeos novos, também. A frequência das postagens permitiu a Ana cativar um público fiel, que foi crescendo a cada nova postagem. A fim de continuar com os vídeos mesmo depois de voltar de viagem, foi criado pela youtuber um projeto chamado “Ana Gostosa”. A iniciativa tem como objetivo melhorar a autoestima de quem acompanha o projeto. A ideia era


que as fãs passassem a se aceitar como elas de fato são. Em paralelo, gravava “vlogs” com um temas específicos e debatia com usuários, dando a sua opinião. Hoje, é considerada uma das maiores vozes feministas da internet – e uma formadora de opinião da grande rede. Largar o namorado, ir contra os princípios da família e se mudar para São Paulo com R$ 500,00 sem conhecer a maior cidade do Brasil. Esses foram os primeiros desafios que Ana enfrentou no início de sua carreira. Foi a persistência que garantiu à publicitária a permanência na capital paulista. Passou um tempo morando em um hostel e conseguiu um emprego numa agência de publicidade. Uma semana depois, foi demitida de seu novo emprego. Apesar do pouco tempo de emprego, foram os contatos feitos nesse período que a levaram a um contrato com uma agência de assessoria, que administraria seus vídeos. A partir de então, começou a fazer “bicos” e se dedicar cada vez mais a essa área. Hoje, é parceira de uma network, a Paramaker, e seu salário mensal é composto por uma mistura de publicidade e do número de acesso dos vídeos – índice conhecido como CPM, ou custo por mil, que tem um valor predefinido que, dependendo do youtuber, pode ser fixo ou variável. No caso de Ana, é fixo. Ou seja, a cada mil visualizações ela ganha um valor que não muda conforme o mês. Por exemplo, se o CPM for de 5 dólares e a média de visualizações por mês de seu canal for de 700 mil, ela ganhará cerca de 1.500 reais. Mas como faz parte de uma network, 40% desse valor fica com a Paramaker. Logo, é preciso batalhar para conseguir um número cada vez maior de acessos por vídeo, já que o valor por cada milhar não muda. YOUTUBE É COISA SÉRIA A publicidade dos canais do YouTube muitas vezes ultrapassaram as telas de computadores e smartphones. Uma campanha do próprio site pretende mu-

Nos Estados Unidos, o negócio já está consolidado ao lado da TV como uma espécie de entretenimento. No Brasil, por outro lado, o YouTube ainda encontra desafios para converter essa enorme audiência em dinheiro.

dar a percepção do mercado em relação à seriedade e profissionalismo presentes nos conteúdos da mídia. Os anúncios estão presentes em outdoors, estações de metrô, relógios, pontos de ônibus, cinemas e até aviões. Essa campanha é a prova de que mesmo uma plataforma como o YouTube não pode viver só de audiência – é preciso encontrar quem pague por isso. Transformar a plataforma em um pilar de entretenimento no Brasil não é fácil, por mais que ela tenha bilhões de visualizações diárias. Há um dado que deixa claro a dificuldade de fazer dinheiro com o site: o Brasil é o segundo maior mercado do YouTube no mundo em termos de visualizações, mas está longe de alcançar os patamares do primeiro colocado no ranking, os Estados Unidos – pelo menos no que diz respeito ao lado financeiro. Nos Estados Unidos, o negócio

já está consolidado ao lado da TV como uma espécie de entretenimento. No Brasil, por outro lado, o YouTube ainda encontra desafios para converter essa enorme audiência em dinheiro. A subsidiária brasileira deve fechar o ano com um crescimento de 5% em relação ao ano anterior. A empresa esperava que o aumento fosse de pelo menos 15%. O curioso é que o Youtube deverá responder por 10% de todos os acessos a mídias sociais no Brasil. No entanto, apesar da audiência e do conteúdo em abundância, monetizar os vídeos postados ainda é um grande desafio para a empresa – e, consequentemente, para quem sonha viver como youtuber. A pulverização de canais também dilui consideravelmente os rendimentos. Logo, é difícil remunerar os criadores de conteúdo. O conteúdo e a audiência já estão no Youtube. Agora, só falta o dinheiro acompanhar.

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GERAÇÃO

RI TA LI NA

UM ESTUDO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO (UERJ) MOSTRA QUE O METILFENIDATO (COMERCIALIZADO SOB O NOME DE RITALINA) É O ESTIMULANTE MAIS CONSUMIDO NO MUNDO. ENTENDA POR QUE ISSO É UM PROBLEMA.

POR CRISTIELLE MATTOS, LUCAS LAUTERT E SARAH LIMA FOTOS LUCAS LAUTERT

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saúde#17

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SAÚDE GERAÇÃO RITALINA

É

É uma tarde

de sexta-feira e você está exausto depois de uma semana difícil. Percebe que sua capacidade de concentração diminui. Anda desatento e há meses não consegue terminar aquele livro que começou. Esses são alguns dos indícios que podem levar a um diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) – identificado, muitas vezes, em uma consulta de menos de 30 minutos. O TDAH é um dos transtornos neurológicos do comportamento mais comuns da infância. O diagnóstico do problema é clínico – ou seja, feito com base na presença ou não dos sintomas do transtorno no paciente. Há, no total, 18 indicativos de que uma pessoa seja afetada pelo TDAH. Os principais sintomas são a dificuldade de prestar atenção nas atividades que acontecem ao redor e inquietude. Além disso, algumas crianças apresentam dificuldade em ouvir quando se fala diretamente com elas. O diagnóstico positivo ocorre quando uma pessoa apresenta pelo menos seis dessas características. É essencial que todos estes sintomas tragam comprometimento para o paciente no seu dia a dia – e que estejam presentes em vários ambientes, como em casa e na escola. “Não há, até o momento, nenhum exame capaz de confirmar ou negar o diagnóstico”, completa o psiquiatra membro da Associação de Psiquiatria do RS e, Thiago Pianca. “Há uma série de situações que podem levar ao diagnóstico de TDAH, mas que na verdade são outros problemas, para os quais o

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De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 8% a 12% de crianças e adolescentes no mundo possuem TDAH.

tratamento é totalmente diferente.” De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), de 8% a 12% de crianças e adolescentes no mundo possuem TDAH. Quando adultos, a maioria dos afetados deixa de apresentar os sintomas – a prevalência do TDAH entre os adultos é de aproximadamente 4%. Apesar da incidência moderada, a comercialização de Ritalina, usado no tratamento de TDAH, vem aumentando - nos últimos dez anos, o crescimento foi de 800%. Pesquisadores do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) identificaram que o metilfenidato (principal componente da Ritalina) é o estimulante mais con-


sumido no mundo – mais que todos os outros somados. O Brasil é o segundo maior consumidor – perde apenas para os Estados Unidos. E o problema é que o aumento do consumo não indica, necessariamente, que mais pessoas estão sendo tratadas corretamente. O aumento das prescrições ainda é alvo de debates na comunidade científica. Para o psiquiatra Thiago Pianca, o aumento da prescrição destas medicações pode ser um indício da maior procura por parte da população, que ouve falar de seus supostos benefícios. Neste aspecto, o maior acesso à internet tem seu papel, pois as pessoas conseguem informações com mais facilidade. “Hoje,

há mais médicos que prescrevem esses medicamentos. Os atendimentos estão mais acessíveis pelos planos de saúde”, diz. Entretanto, alguns especialistas são mais polêmicos: defendem diagnósticos equivocados e são contra a indicação do medicamento a crianças. AMIGA OU INIMIGA Como forma de questionar uma possível prescrição indiscriminada do remédio, foi criado em 2010 o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, que reúne 40 entidades acadêmicas profissionais para difundir as críticas que existem na literatura científica. Ain-

da assim, não é difícil entender por que a Ritalia é prescrita para tratar o TDAH – e tão procurada por pessoas que precisam se concentrar. Estudos mostram que o medicamento pode melhorar as sinapses cerebrais. Ou seja, ela aprimora a conexão entre os neurônios, controlando o aprendizado e a capacidade de memória. Porém, também há efeitos colaterais. Uma pesquisa do professor de psiquiatria Leonard Vaughnlea, da Universidade da Pensilvânia, indica que a Ritalina diminui a capacidade do indivíduo de produzir neurônios. O medicamento ainda pode insônia, alterações no humor, dor de cabeça e até mesmo perda de apetite sexual. “Os efeitos bioquímicos da Ritalina no cérebro sugerem risco maior de desenvolvimento de excesso de proteína, evidente em indivíduos usuários de Cocaína, por exemplo”, relata o pesquisador. Em alguns casos, o excesso de proteína ainda inibe o desenvolvimento da espinha infantil. Muitas das críticas ao medicamento também envolvem um problema comum em vários psicoestimulantes: a dependência. No entanto, um estudo publicado na revista Pediatrics, da Academia Americana de Pediatria, não encontrou essa relação. Por muito tempo, também se acreditou que o uso excessivo desse medicamento influenciaria o paciente a usar novas drogas. O neuropediatra Abram Topczewski, do Hospital Albert Einstein de São Paulo, discorda. Segundo ele, a Ritalina é uma anfetamina conhecida há cerca de 40 anos e nada tem a ver com a cocaína. “Há dez anos trato pacientes com essa medicação e não conheço nenhum caso de vício, nem do remédio e nem de outras drogas, muito menos de morte”, conta. Há casos, contudo, contradizem a pesquisa. Jonas tem 14 anos e toma Ritalina desde os 4. Sua mãe, Ruth, disse que a consulta foi rápida. Foram necessárias apenas algumas perguntas para o diagnóstico positivo de TDAH. No início, ela ficou preocupada. “Ele tinha só 4 anos. Não queria que meu filho tomas-

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SAÚDE GERAÇÃO RITALINA

controlados, sejam totalmente liberados – para que todo mundo possa tomá-los e aumentar o próprio QI. “A engenhosidade humana nos deu meios de aprimorar nosso cérebro, com invenções como a escrita, a imprensa e a internet”, defendem os especialistas. “Essas drogas deveriam ser encaradas da mesma forma: são coisas que a nossa espécie inventou para melhorar a si mesma.”

se um medicamento tarja preta assim, tão novo”, explica. O menino conta que, às vezes, a mãe não consegue comprar o remédio, devido ao valor do medicamento. A sensação é de abstinência. “É como se eu tivesse que fazer muita força pra ficar parado. Na escola, ficar sentado na sala de aula e copiar os deveres do quadro é quase impossível”, relata. PÍLULA DA INTELIGÊNCIA? O mecanismo de ação e efeitos colaterais da Ritalina ainda não estão completamente claros. É certo, contudo, que o medicamento há tempos vem ganhando a fama de “pílula da inteligência” – e passou a ser usada por estudantes universitários que, à despeito do diagnóstico de TDAH, buscam melhor desempenho acadêmico. Um estudo recém-publicado na revista Nature revela que 25% dos universitários tomam ou tomaram algum tipo de remédio para tentar aumentar seu desempenho em provas decisivas. “Depois do segundo semestre eu comecei a estagiar e não ter tanto tempo para estudar. Então, meu desempenho na faculdade caiu bastante”, lembra a estudante de direito Paola (20 anos, Porto Alegre). “Uma amiga, que faz medicina veterinária falou que tomava Ritalina para se concentrar e estudar com mais atenção. Então resolvi experimentar. Agora, tomo Ritalina pra estudar pra quase todas as provas.” A pesquisa da Nature aponta que, de fato, há uma melhora no desempenho cognitivo com o uso de Ritalina em pessoas que não possuem TDAH. O medicamento provoca uma espécie de turbo mental: intensifica a concentração, a atenção, a memória e certos tipos de raciocínio. Ou pode simplesmente ajudar a pensar melhor e por mais tempo. Um grupo de neurologistas das Universidades de Harvard, da Pensilvânia, de Cambridge e da Califórnia vai mais longe: defende que certos medicamentos, que atualmente são de venda e uso

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FEITOS E EFEITOS

O uso da Ritalina pode causar uma série de efeitos colaterais, principalmente em pessoas que não possuem um acompanhamento médico.

A proposta dos pesquisadores é polêmica e dividiu a comunidade científica. A maioria dos especialistas defende que o uso de Ritalina sem acompanhamento médico ou por pessoas que não foram diagnosticadas com TDAH é arriscado e pode trazer uma série de efeitos colaterais. “O uso do medicamento deve ser orientado aos familiares e conduzido pelo especialista”, ressalta o psiquiatra Thiago Pianca. O especialista afirma que, em doses recomendadas e com o diagnóstico correto, a Ritalina é um medicamento bastante seguro. “Problemas mais sérios, como convulsões e arritmias cardíacas, são improváveis, se respeitadas as predisposições individuais”, diz. Para quem não tem a necessidade de tomar a medicação, contudo, o risco de efeitos colaterais não parece compensar um possível pequeno ganho em atenção para pessoas que não possuem TDAH, ele afirma. “O uso sem recomendação médica pode causar efeitos colaterais mais graves e a quadros de dependência.” SIBUTRAMINA, A MELHOR AMIGA DA BALANÇA Se a busca de um melhor desempenho em exames pode levar ao uso indiscriminado da Ritalina, o mesmo pode ser dito sobre a Sibutramina – no entanto, voltada a quem busca uma maneira rápida de emagrecer. Afinal, qual a dificuldade de apenas engolir um comprimido? A Sibutramina é uma medicamento


controlado que faz com que o apetite desapareça. Por isso, está sendo cada vez mais procurada por pessoas acima do peso. Esse medicamento age em áreas do cérebro que controlam o humor e a sensação de bem-estar. Ou seja, faz com que a pessoa perca o apetite sem ficar ansiosa. A Sibutramina provoca um aumento da sensação da saciedade, agindo também sobre a compulsão alimentar e como inibidora da sensação de fome. A estudante universitária Laura lutava por para perder oito de seus 68 kg – acima dos padrões para seu tamanho, de 1 metro e 55 centímetros. Foi quando resolveu tentar o medicamento. Em um ano, ela emagreceu 14 kg. Junto com o medicamento vieram diversos incômodos: boca seca, insônia, excesso de suor, esquecimento e falta de concentração. Mesmo assim, o motivo que a levou parar com a medicação foi outro: a perda da eficácia. Voltar a engordar após parar com os

inibidores de apetite é um efeito conhecido desses medicamentos. Sem acompanhamento médico – e avisada por sua ginecologista de que, para seu caso, outros tratamentos eram mais recomendados –, Laura voltou a ganhar peso depois que decidiu interromper o uso da Sibutramina. “Minha ginecologista havia avisado que não era um remédio que me aconselharia a tomar, que era muito perigoso e que havia outras formas de emagrecer se eu quisesse”, conta a estudante. Embora o efeito-sanfona da Sibutramina possa ser um dos danos colaterais do medicamento, está longe de ser o mais grave. Segundo o psiquiatra Thiago Pianca, há registros de problemas mais graves do uso da medicação sem acompanhamento, como infarto. “Um estudo chamado Sibutramine Cardiovascular Outcomes demonstrou um aumento de 16% no risco destes eventos em pacientes obesos com história de problemas cardiológicos usando esta

Um dos maiores problemas de se tomar sibutramina é que, após parar de tomar o medicamento, a pessoa pode voltar a engordar muito facilmente.

medicação após alguns anos”, afirma o especialista. “Por isso, a droga já foi proibida em alguns países.” Não é por menos que tanto a venda tanto da Ritalina quando da Sibutramina prescinde de uma série de exigências. “Algumas farmácias não trabalham com esses medicamentos porque, além do receituário médico, o cliente deve trazer uma justificativa caso vá usar a Ritalina por mais de trinta dias”, afirma a farmacêutica Bruna Borba. “Já no caso da Sibutramina, é obrigatório a apresentação por parte do usuário de um termo de responsabilidade dado pelo médico.” A fiscalização desses medicamentos controlados acontece a partir de um conjunto de órgãos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é quem coordena as ações, com o apoio dos Conselhos Regionais de Farmácia (CRF) e da Policia Federal. Essas ações têm como intuito promover e proteger a saúde da população e evitar riscos decorrentes da distribuição e do uso indevidos desses produtos – ou seja, garantir que medicamentos controlados sejam liberados apenas com acompanhamento e prescrição médica. O desrespeito à lei pode levar a multas ou até mesmo ao fechamento do estabelecimento, além da cassação do registro do profissional do especialista. A busca por soluções imediatistas, ao final, talvez seja uma característica inerente do ser humano. Afinal, nunca antes tivemos tantas soluções imediatas para podermos fazer uma comparação histórica. “É uma aparente alternativa mais ‘eficaz’ na resolução de conflitos diários, em contraponto com os desafios de um tratamento físico ou psicológico prolongado e até mesmo doloroso.” A especialista lembra que Freud definia o mal estar como o efeito da ausência de satisfação total ou completa é inerente à condição de ser humano. “Somos seres simbólicos, incompletos e insatisfeitos por natureza.”

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epidemia#23

INIMIGO INVISÍVEL POR BÁRBARA SCUSSEL E JÉSSICA FONTOURA FOTOS MORGUEFILE / PIXABAY / ARQUIVO UNIVERSUS

O MUNDO ESTÁ ENFRENTANDO A MAIOR EPIDEMIA DE EBOLA DA HISTÓRIA. DESDE MARÇO DE 2014, MAIS DE 6 MIL PESSOAS JÁ MORRERAM. O BRASIL ESTÁ PREPARADO PARA LIDAR COM A AMEAÇA?

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EPIDEMIA

INIMIGO INVISÍVEL

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Os cerca de 75 mil moradores da

favela de West Point, na Monróvia, capital da Libéria, percebem há meses significativas mudanças na rotina do bairro. Ruas bloqueadas com arames farpados, grades trancadas, mesas e cadeiras nas portas das residências. Objetivo? Isolar os moradores em suas próprias residências – e protegê-los de um mal que assola a região. Até então, a cidade convivia diariamente com a tuberculose e a falta de saneamento. No entanto, o inimigo agora combatido é bem mais letal. Tão letal que exigiu medidas drásticas por parte do governo. No país vizinho, Serra Leoa, também localizado na porção ocidental do continente africano, mais de 1 milhão de pessoas estão em quarentena. A situação é tão grave que, desde marco de 2014, uma cerca laranja passou a dividir as pessoas saudáveis e os infectados. O cenário descrito poderia ser um roteiro da série americana de zumbis The Walking Dead. No entanto, é somente o retrato da região que, até agora, foi a maior vítima da temida epidemia do vírus ebola. Descoberto há 38 anos em uma floresta do Congo (na época, Zaire) pelo microbiologista Peter Piot, o ebola mata entre 50% e 90% dos infectados – numa comparação simples, o vírus da gripe H1N1, a gripe A, tem taxa de mortalidade entre 0,007% a 0,045%, segundo estimativas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

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Até outubro de 2014, o ebola já havia contaminado mais de 10 mil pessoas em todo o mundo – a metade desse contingente acabou morta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O que agrava a situação é a ausência de uma vacina ou tratamento eficaz. Diretora da OMS desde 2006, Margaret Chan afirma que o ebola é a emergência de saúde mais severa e aguda vista nos tempos modernos. E, para a médica chinesa, o mundo não está preparado para responder a uma emergência sanitária tão grave. “Em minha longa carreira, eu nunca vi uma epidemia que gerasse tanto terror”, afirmou Chan em um comunicado. “Nunca vi um evento sanitário que ameaçasse tanto a sobrevivência de sociedades e governos. Nunca vi uma doença contribuir de forma tão forte para o fracasso potencial de um Estado.” Com quatro novos casos registrados por hora, o ebola é descrito como “a doença dos países pobres”. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o vírus ameaça à segurança e à paz mundial. Passou as fronteiras dos países pobres africanos e chegou aos mais desenvolvidos. Na Espanha, uma enfermeira foi diagnosticada com o vírus. Nos EUA, Thomas Eric Duncan, nascido na Libéria, morreu em outubro vítima do vírus. Há ainda casos suspeitos na França, Grã-Bretanha, Espanha, Alemanha e Noruega. E, se chegar ao Brasil, será o maior desafio de saúde do país desde

as epidemias de varíola e febre amarela, no final do século 19 – doença que, aliás, pertencente ao grupo das febres hemorrágicas, o mesmo do ebola. “MUITO POUCO FOI FEITO” Por mais que os sintomas das duas doenças sejam parecidos e bem conhecidos pelos médicos, o vírus originário

O ebola foi descoberto nos anos 70, e desde então tivemos vários picos da doença, mas o que se observa é que muito pouco foi feito. Roberto Hallal, infectologista


da África assusta principalmente pela facilidade com que é transmitido. Ronaldo Hallal, médico infectologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, é difícil precisar qual o reservatório natural do vírus, pois ele já foi encontrado em diversas espécies. Mas se sabe que os porcos são os grandes transmissores da doença, seguidos dos morcegos, macacos e antílopes – todos parte da rotina alimentar dos povos africanos que sobrevivem da caça. O vírus tem sintomas iniciais semelhantes aos da gripe comum, como febre, dor muscular e de cabeça, fraqueza, dor na garganta e articulações – que aparecem depois do período de incubação, de 2 a 21 dias. Sem o diagnóstico imediato, o quadro clínico avança e sintomas como náuseas, vômitos, erupções cutâneas e insuficiência renal e hepática debilitam o paciente. Por fim, no estágio final da doença, o infectado apresenta danos cerebrais e hemorragias em todos os orifícios do corpo. A

essa altura, o vírus já pode ser transmitido para outras pessoas. Para que isso ocorra, basta um simples contato direto com fluidos corporais do infectado, como sangue, fezes e saliva – ou, ainda, pelo contato com ambientes por onde passou o infectado. Pela fácil transmissão e por se concentrar em regiões muito precárias, onde não há saneamento básico e condições boas de higiene, a OMS decretou em agosto que o ebola era uma emergência internacional. Para Hallal, que já esteve no continente africano trabalhando na prevenção e tratamento da AIDS, o surto de ebola se deve muito também ao fato da desorganização social que a região vive. “Neste contexto, surgem constantes epidemias, e acaba sendo uma responsabilidade, não só dos países que vivem estes problemas, mas de todos nós”, opina o infectologista. “O ebola foi descoberto nos anos 70, e desde então tivemos vários picos da doença, mas o que se observa é que muito pouco foi feito.” Há um outro aspecto particularmente mórbido no ebola: o fato de, mesmo depois da morte, o paciente ainda poder transmitir o vírus. Em uma região permeada por rituais religiosos com dias de duração, os funerais são um grande risco. O médico Paulo Reis pôde ver isso de perto em sua passagem por Serra Leoa. O carioca faz parte da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras e se tornou um especialista no vírus após ter trabalhando no surto de ebola em Uganda, em 2012. Reis recorda que, no início, havia resistência dos líderes religiosos. Passados seis meses do início da epidemia, contudo, a população entendeu a gravidade da situação. “O ideal é enterrar as pessoas que morrem com o vírus o mais rápido possível para evitar qualquer risco”, diz. “Se o ritual diz que precisa esperar uma noite, tudo bem, desde que tenha sido feita a desinfecção do corpo e que ele tenha sido colocado no saco mortuário, normalmente duplo, para

Em minha longa carreira, eu nunca vi uma epidemia que gerasse tanto terror. Margaret Chan, diretora da OMS

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EPIDEMIA

INIMIGO INVISIVEL

Esse pânico de sofrer alguma mutação e o ebola se tornar uma pandemia, onde todas as partes do mundo estariam contaminadas é remota. Siomara da Cruz, farmacêutica

garantir que não haja vazamento de fluidos corpóreos.” CHANCE DE CURA É difícil não se assustar com a velocidade com que o ebola têm se espalhado pela África Ocidental e a possibilidade de chegar ao Brasil. Em 9 de outubro deste ano, surgiu a primeira suspeita de ebola no país. O africano vindo da Guiné Souleymane Bah, de 47 anos, deu entrada em uma Unidade de Pronto Atendimento, em Cascavel, no Oeste do Paraná, com quadro febril. O paciente foi colocado em isolamento e autoridades de saúde foram avisadas das suspeitas. Dois dias depois, após a realização de exames no Hospital Evandro Chagas, no Rio de Janeiro, se comprovou que Souleymane não estava com ebola. No entanto, a repercussão do caso virou os holofotes para o Brasil. Para Hallal, da Santa Casa, apesar da rápida resposta das autoridades a suspeita na cidade paranaense, o Brasil não está pronto para

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enfrentar uma epidemia do vírus. “Pelo período curto de incubação, não seria muito provável um surto de ebola”, diz. “Mas o Brasil não está preparado, pois o Ministério da Saúde recém está estabelecendo medidas para responder a essa epidemia. Eu diria que estamos em processo inicial de estruturação.” O biomédico Luciano Antônio Reolon, coordenador do curso de Biomedicina da UniRitter, tem uma posição diferente. Ele afirma que a chegada do ebola ao Brasil não deve preocupar, pois o país tem um sistema de saúde mais avançado que os países africanos. “Se formos pensar em um país como o Brasil, que tem um sistema de saúde e de vigilância epidemiológica, que não é tão atrasado e está em um padrão dentro do esperado, a resposta a um surto de ebola seria adequada”, afirmou. O que agrava essa possibilidade é a dificuldade de se encontrar uma vacina que previna a infecção ou que cure uma pessoa contaminada. Com a possibilidade de o ebola tornar-se endêmico


na África Ocidental e provocar surtos esporádicos nos próximos anos, a urgência da busca por uma vacina toma proporções inéditas. É o que afirma um grupo de cientistas da OMS e do Imperial College London em um artigo na revista cientifica “New England Journal of Medicine”. Um dos empecilhos para que, até hoje, pouca evolução tenha sido observada é a rápida mutação do vírus. É muito difícil criar algo realmente eficaz contra o ebola. Além disso, o custo elevado para a produção de vacinas e o tempo extenso necessário para a realização de testes clínicos são algumas das barreiras que fizeram com que até hoje não tenhamos uma cura. Conforme o biomédico Luciano Reolon, da UniRitter, também não há grande interesse da indústria farmacêutica em financiar estudos para a produção de remédios contra o ebola. O virologista norte-americano Thomas Geisbert, do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade do Texas Medical Branch, tem uma opinião semelhante. Em entrevista à revista Scientific American, o especialista estimou que entre uma vacina realmente eficaz contra o vírus ainda deve levar de dois a seis anos para ser desenvolvida. No entanto, é necessário, para que esse prazo se concretize, o apoio financeiro das autoridades. “Estudos em humanos são caros e requerem uma grande quantidade de dólares do governo”, afirma o especialista. “O ebola representa um pequeno mercado global. Sem grande apelo para uma grande empresa farmacêutica produzir uma vacina, por isso vai exigir financiamento de governo.” Os especialistas ainda apontam outro ponto que pode agravar ainda mais a situação: que uma mutação possa levar o vírus a criar uma forma de transmissão por vias aéreas (o que ocorre nos casos da tuberculose e da gripe, por exemplo). No entanto, a coordenado-

ra do curso de Farmácia da UniRitter, Siomara da Cruz Monteiro, afirma que essa possibilidade é bastante remota. “Os próprios pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, que estudam o vírus, afirmam que a possibilidade de o vírus sofrer alguma mutação em seu modo de transmissão e se transformar em uma pandemia, quando várias partes do mundo estariam contaminadas, é muito remota”, diz. “E se torna remota por que tem pessoas que trabalham contra isso e são feitas barreiras para evitar estas contaminações.” A previsão é que os testes em humanos das vacinas desenvolvidas, que trazem a perspectiva de contenção do ebola, poderão ter início no início de 2015. O foco inicial serão as regiões mais afetadas pela epidemia. Apesar disso, as projeções indicam que a cautela ainda é a melhor opção disponível. Para a Cruz Vermelha, bastante atuante nos países africanos, mesmo que todas as medidas de prevenção forem tomadas, o surto poderá ser contido, na melhor das hipóteses, num período de quatro meses. Já a OMS alerta que, sem medidas em âmbito mundial, a epidemia de ebola poderá crescer para 10 mil novos casos por semana dentro de dois meses.

Estudos em humanos são caros e requerem uma grande quantidade de dólares do governo. Mas o ebola representa um pequeno mercado global. Thomas Geisbert, virologista

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INVESTIDAS DO TEMPO AO LONGO DE TODA A NOSSA TRAJETÓRIA ESCOLAR, ESTUDAMOS COMO A HUMANIDADE CHEGOU ATÉ O PONTO ATUAL. GUERRAS, REVOLUÇÕES E INOVAÇÕES MUDARAM O PERCURSO DA HISTÓRIA. MAS SERÁ QUE O QUE APRENDEMOS REALMENTE CONDIZ COM OS ACONTECIMENTOS? NA VERDADE, NEM SEMPRE. A HISTÓRIA É UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO PERMANENTE. POR BÁRBARA BARROS, LETÍCIA BONATO E VANESSA MAGNANI IMAGENS WIKI IMAGES / ARQUIVO PESSOAL MARCELO MONTEIRO

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Na Era Glacial,

grupos de humanos pré-históricos povoaram diversas áreas do globo. Por meio do Estreito de Bering, esses povos primitivos vindos da Ásia chegaram ao continente americano – façanha possível devido ao congelamento das águas do Oceano Ártico, há cerca de 12 mil anos. Se foi isso que você aprendeu na escola, é melhor começar a se acostumar com a ideia de que essa teoria pode estar equivocada. Pelo menos é o que indica uma recente

descoberta de um grupo de arqueólogos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tudo começou quando os pesquisadores resolveram realizar o reconhecimento do sítio arqueológico da Fazenda de Santa Clara, na Região Oeste do Rio Grande do Sul, território nunca antes explorado. Entre os objetos encontrados estavam verdadeiras relíquias históricas: ossos, vidros e telhas, além de louças finas que foram importadas da

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HISTÓRIA INVESTIDAS DO TEMPO

Inglaterra após a abertura dos portos brasileiros, no século 19. Até aí, embora fossem descobertas relevantes, não era nada de espetacular. O curioso, no entanto, foi encontrado graças ao trabalho de roedores. Quando cavaram suas tocas, trouxeram à tona vestígios de terra e pedras para a superfície. Entre eles, havia um artefato que, mais tarde, seria datado com entre 12 mil e 15 mil anos. O achado, uma peça pequena de apenas 8 centímetros de comprimento e 3,5 centímetros de espessura, não deve ser simplesmente relegado a um museu. Ela pode ser a prova que faltava para mudar a versão que conhecemos sobre a primeira ocupação da América. O projeto do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade (LEPA/UFSM) teve início em 1996, em Quaraí (RS). Demorou mais de uma década para que o material pré-histórico fosse encontrado no sítio da Fazenda Santa Clara, que fica a 20 km do município. Academicamente, a história pode ser dividida em duas vertentes. Conforme determinou o historiador alemão Jörn Rüsen no livro Razão Histórica – Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica (Editora da UnB, 2001), o processo acontece entre a “vida prática”, que é a parte reservada ao espaço em que todos os homens vivem, e a “ciência especializada”, que se restringe aos profissionais da área, que buscam suprir as carências em relação às questões ligadas à história da sociedade como a evolução humana. O trabalho dos pesquisadores da UFSM pode ser considerado esclarecedor para as duas esferas. O professor e doutor em História pela PUCRS João Júlio Gomes dos Santos Júnior defende que todas as sociedades, em maior ou menor grau, necessitam de orientação no tempo. A interpretação do que foi encontrado no sítio arqueológico pode ser considerada um marco para o Estado, desde que existam profissionais do meio acadêmico que defendam isso. “Um determinado marco his-

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tórico para um pode não ser o mesmo para outro, depende dos ‘interesses’ e ‘ideias’ de cada”, explica o historiador. “Uma sociedade pode considerar como ‘marco’ uma revolução, uma abdicação, uma mudança de regime político ou um determinado massacre.” Assim, a relevância dessa descoberta depende da importância que a sociedade dará a eles. UM MARCO PARA O ESTADO

Uma sociedade pode considerar como ‘marco’ uma revolução, uma abdicação, uma mudança de regime político ou um determinado massacre. João Júlio Jr., historiador

“Um sítio arqueológico representa parte do passado, e o passado faz parte do presente. Portanto, os sítios são parte da história passada e presente das pessoas, formando a memória coletiva e, sendo assim, torna-se necessária a sua preservação e estudo”, explicou a mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM, Eva Pohl, em artigo publicado na revista do laboratório responsável pelo projeto. Mas o trabalho se mostrou pertinente também pela descoberta de materiais que remontam aos tempos pré-históricos. Em 2009, os pesquisadores começaram as escavações no sítio da Fazenda Santa Clara. Ao redor da casa-sede, conforme a arqueóloga Jaqueline Pes e o coordenador da pesquisa, o professor Saul Milder, da UFSM, foram encontrados materiais como cravos e louças do tipo de cerâmica fina, que apontam para uma ocupação do século 19. Mas também foram encontradas peças pré-históricas, que se evidenciaram pela presença de líticos. A datação é baseada na definição dos métodos de manufatura, da matéria-prima empregada, dos locais onde foram produzidos, a utilidade e onde esses materiais foram resgatados. Mas ao apostar na importância dos artefatos mais antigos antes da validação acadêmica, a pesquisa encontrou dificuldades. À ESPERA DE UMA VALIDAÇÃO A descoberta poderia revolucionar o modo como enxergamos a história do


que irão acrescentar, afirmar ou desfazer conclusões já obtidas.”

Novos vestígios podem trazer outras informações que irão acrescentar, afirmar ou desfazer conclusões já obtidas. Eva Pohl, mestre em Patrimônio Cultural

início da colonização das Américas. No entanto, foram publicados artigos e notícias sobre o artefato pré-histórico encontrado na Fazenda Santa Clara sem que antes a pesquisa fosse discutida no meio acadêmico. Com a morte do coordenador Saul Milder, a datação não pôde ser averiguada por outros profissionais, já que o professor não frequentava congressos e debates, como conta André Soares, atual coordenador do laboratório. “Não acredito que o pessoal que trabalha com arqueologia brasileira iria aceitar essas datas como válidas. Esse é o ponto nevrálgico. Ninguém contestou porque não foi publicado”, lamenta Soares, que também é professor doutor em Arqueologia. A continuidade do estudo ficou a cargo da produções de alunos em monografias e dissertações. Lúcio Lemes, integrante do projeto do LEPA, que se encerrou em 2012 com a morte de Milder, comentou que a datação dos artefatos existe porque os resultados do laboratório já saíram. Entretanto, essas informações não foram divulgadas no meio acadêmico, pois estão encontradas na sua tese ainda não divulgada. “A equipe estava até pensando em publicar algo a respeito para 2015, que seria o pós-doutorado do professor Saul Milder”, diz Lemes, doutorando em História pela PUCRS. “A combinação é que ele ficaria mais com essa parte das datas

e a minha tese ficaria responsável pela análise do material que saiu do sítio.” A validação das datas, segundo Lemes, ocorreu pela técnica de estratigrafia, que estuda os estratos do solo. A partir da disposição das camadas terrestres, é possível saber há quanto tempo os objetos estão soterrados. Com o uso desses métodos, precipitadamente, o professor Saul Milder resolveu dar entrevistas à mídia local, o que acabou gerando sensacionalismo com a possibilidade da importância histórica do achado. A pesquisa de Lemes busca entender o comportamento dos grupos de nômades que ocuparam a região. “A perspectiva é dar ênfase de como eles organizavam a tecnologia e como faziam uso dessas ferramentas”, destacou. O mote que provocou a especulação das datas deve ser apenas um detalhe, enquanto outros novos fatores devem surgir para desvendar a história do Rio Grande do Sul como parte importante do processo de povoação das Américas. Ainda que a versão da ocupação pré-histórica talvez não seja alterada, as escavações não podem ser recusadas quanto ao valor histórico para o Estado. “Essa descoberta trouxe novas informações e incógnitas a respeito da ocupação humana na América”, afirma Eva Pohl. “A qualquer momento, novos vestígios podem trazer outras informações

CRIACIONISMO OU DESIGN INTELIGENTE? Não é somente uma prova física que pode fortalecer a oposição a algum fato histórico. A Teoria do Design Inteligente (TDI), por exemplo, surgiu nos Estados Unidos como um movimento de contestação à teoria da evolução de “A Origem das Espécies”, livro de Charles Darwin. Os adeptos da TDI acreditam que os seres vivos são complexos demais para terem surgido pelas leis naturais, diferente do que prega a teoria tradicional. Defendem que haveria uma “inteligência avançada” que age na sua criação, no processo das células, na evolução. Tudo aconteceria com espontaneidade. No Brasil, há um comitê científico voltado ao TDI, formado por profissionais e acadêmicos de diferentes locais do país. Em declarações à mídia, o químico Marcos Eberlin defende que a TDI tenha espaço nas escolas, de maneira que os alunos fiquem conhecendo a existência de outra teoria além da idealizada por Darwin. Em novembro deste ano, foi realizado em Campinas o 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente, que reuniu cientistas e profissionais interessados na teoria contestatória. Os debates parecem estar só começando, e os adeptos encontram dificuldades na discussão. Os principais defensores norte-americanos da TDI são ligados à religião. Por isso, a teoria é vista como uma tentativa de misturar ciência com convicções religiosas. Eberlin esclarece que não existe uma relação estabelecida entre a teoria e religiões, mas que são aceitas pessoas de diferentes credos – desde que, evidentemente, acreditem no design inteligente. No final do mês de outubro, o Papa Francisco, a maior autoridade da religião cristã, afirmou durante discurso na Pontifícia Academia de Ciências no Vaticano que “a evolução da natureza não é

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HISTÓRIA INVESTIDAS DO TEMPO

incompatível com a noção de criação”, e que a Teoria da Evolução e o Big Bang podem ter fundamento. Também fez críticas a interpretações equivocadas do livro do Gêneses, que trata da origem do mundo na Bíblia, que mostram que Deus “teria agido como um mago, com uma varinha mágica capaz de criar todas as coisas”. Essas últimas declarações reforçam o posicionamento do Papa. UM NOVO DESFECHO DA HISTÓRIA Durante a II Guerra Mundial (1939 – 1945), o continente americano realizou um acordo diplomático onde constava que, se algum país da América entrasse no conflito, o restante o apoiaria, rompendo qualquer vínculo político com a Alemanha. Em dezembro de 1941, o Japão atacou a base norte americana Pearl Harbor, colocando os Estados Unidos na disputa contra o Eixo. O chanceler brasileiro Oswaldo Aranha foi o responsável por movimentar a aliança de apoio aos EUA. Ao romper as relações com o país europeu, Adolf Hitler enxergou o Brasil como um novo inimigo. A mudança de parâmetro teve sérias consequências: o líder do Terceiro Reich ordenou que suas tropas bombardeassem qualquer navio presente na costa brasileira. No total, cinco embarcações foram alvejadas na altura do litoral nordestino no intervalo de três dias. O submarino U-507, comandado pelo oficial alemão Harro Schacht, acertou o Itagiba em 17 de agosto de 1942. Após os disparos, o cargueiro afundou entre oito a dez minutos. Nele, havia cerca de 175 pessoas a bordo, totalizando 36 mortos. Entre os tripulantes que se salvaram, uma menina foi resgatada por ter se refugiado em uma das caixas que transportavam leite condensado. A história do U-507 é contada em livro homônimo pelo jornalista Marcelo Monteiro – um dos partidários da ideia de que a escrita da história não pertence

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As meninas Vera (E) e Walderez (D) são fotografadas logo após o naufrágio do navio Itagiba Foto: Arquivo pessoal Marcelo Monteiro

exclusivamente aos historiadores. Com particularidades apuradas exaustivamente, o jornalista reuniu em suas obras – além do U-507, ele também escreveu o U-93, nomeado a partir do submarino alemão que afundou navios brasileiros durante a I Guerra Mundial – detalhes antes nunca antes revelados. A pesquisa e a procura por documentos da época foram motivadas pela sua curiosidade e fascínio sobre o tema. Walderez Cavalcante tinha apenas quatro anos quando a maré a empurrou em direção à costa litorânea. Ao pisar em terra firme, mais precisamente na cidade de Valença, na Bahia, ela foi foto-


Walderez (E) e Vera (D) se reencontraram em 2011 graças ao trabalho do jornalista Marcelo Monteiro Foto: Arquivo pessoal Marcelo Monteiro

grafada junto a outra menina, também sobrevivente do ataque ao Itagiba. Vera Beatriz do Canto, filha do capitão do navio José Tito do Canto, recém havia completado cinco anos de idade. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, Vera sobreviveu graças a um barco salva-vidas. A imagem com as duas crianças transformou-se em símbolo da crueldade da Alemanha nazista – e foi utilizada por Getúlio Vargas para explicar a decisão de entrar na guerra, além de convocar o povo a apoiá-lo. Após o fim do conflito com a derrota dos países do Eixo e quase 70 anos de história terem passado, as duas sobreviventes raramente falavam sobre o naufrágio do Itagiba. Mais do que isso: não tinham notícias uma da outra. Ao descobrir que duas personagens da tragédia estavam vivas, Monteiro realizou um encontro entre Vera e Walderez, em abril de 2011. “Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida”, lembra. As entrevistas e viagens aconteceram graças aos esforços do próprio jornalista, que ao sair à procura das duas mulheres cedeu tempo e dinheiro para resolver a história. “Elas (Walderez e Vera) passaram por um episódio muito traumático, com quatro, cinco anos de idade, juntas. Foram fotografadas e nem se

lembravam da fotografia”, contou Monteiro, com a empolgação de alguém que acabou de resolveu um quebra-cabeça. O papel de Marcelo Monteiro foi essencial para a narrativa. Entretanto, o historiador é o especialista mais indicado para lidar com questões mais sérias relacionadas com o tempo. “A história está sempre sendo reescrita e possui diversas temporalidades em que o historiador é o profissional treinado para lidar. Ele nunca esgota a análise de um determinado fenômeno”, afirma o historiador e professor João Júlio Jr. O que valida a escrita histórica, segundo ele, é o confronto de análises historiográficas, que vai, aos poucos, sedimentando novas interpretações sobre determinados objetos e, com o tempo, essas inovações devem chegar aos livros didáticos. O caso das duas mulheres que foram fotografadas juntas ao serem resgatadas do naufrágio do navio Itagiba teve um novo desfecho, já que ambas desconheciam o paradeiro uma da outra e até mesmo acreditavam que nunca mais se encontrariam. Assim como o esclarecimento do que foi a participação do Brasil nas guerras mundiais, o reencontro delas serviu para elucidar a História.

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BEATLES, ROLLING STONES, DAVID BOWIE E OUTROS ÍCONES DA MÚSICA MUNDIAL. TODOS JUNTOS, MILIMETRICAMENTE ALINHADOS EM DIVERSAS PRATELEIRAS ORGANIZADAS. UM LUGAR POUCO ILUMINADO COM CHEIRO DE INCENSO NO AR. CAMINHANDO UM POUCO, O VISITANTE DÁ DE CARA COM JOHN LENNON,

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AO LADO DA BANDA LIVERPOOL, PRIMEIRO GRUPO DE ROCK DO RIO GRANDE DO SUL. SE VOCÊ PENSOU QUE ESTAMOS DE VOLTA AOS ANOS 1980, ESTÁ ENGANADO: ESSA CENA SE PASSA EM PLENO SÉCULO XXI, EM UMA LOJA DE VINIL NO CENTRO DE PORTO ALEGRE – LOCAL CULTUADO POR MUITOS QUE O ENCARAM COMO UMA SEGUNDA CASA. PR O

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Foto Evilin Matos

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CULTURA O VINIL ESTÁ DE VOLTA ÀS PARADAS DE SUCESSO

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O vinil voltou com força. Em

2013, segundo a British Recorded Music Industry (BPI), principal representante da indústria da música gravada no Reino Unido, a indústria fonográfica britânica vendeu cerca de 550 mil cópias em vinil. A dupla de rock eletrônico Daft Punk vendeu 49 mil cópias do álbum “Random Access Memories”, lançado em vinil em 2013. Neste ano, Jack White vendeu cerca de 60 mil cópias de seu disco Lazaretto, batendo o recorde de vinil mais vendido nos últimos 20 anos, que pertencia ao Vitalogy, do Pearl Jam. A informação é da Nielsen SoundScan, sistema que mede as vendas de música e vídeo nos Estados Unidos e no Canadá. Se no exterior o “bolachão” está voltando com força, no Brasil o mesmo fenômeno pode ser observado. O principal reflexo disso é a reabertura da Polysom, fábrica localizada no Rio de Janeiro e única a produzir o material na América Latina. Devido a problemas financeiros e à pequena demanda pelos vinis, a empresa havia fechado as portas em 2007. No final de 2008, os proprietários da Deckdisc começaram a observar o aquecimento do vinil na Europa e nos Estados Unidos. Adquiriram os maquinários da Polysom e a reativaram. No primeiro semestre deste ano, a empresa declarou aumento de 126% em suas vendas. Os artistas da música, de olho nessa fatia de mercado também, já vão “me-

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A Polysom, única empresa que prensa vinis na América Latina, divulgou aumento de 126% em suas vendas.

xendo seus pauzinhos” para abocanhar esse público cada vez maior. Cachorro Grande, Fernanda Takai, Nação Zumbi e Pitty são alguns dos músicos que estão aproveitando essa onda para relançar seus recentes trabalhos no formato. O FENÔMENO VINIL Sonoridade e nostalgia são elementos que podem ter dado o efeito boomerang ao “bolachão”. O fator é apontado por aficionados pela velha mídia. A busca por um som mais fiel ao da gravação na fita master – que é utilizada para a confecção do vinil – faz com que haja uma imersão musical por parte do degustador de música e não apenas um “escutador”. Diferentemente do MP3, por exemplo, em que o som não forne-


ce tudo o que foi arquiteto pelos artistas na produção. A qualidade do Long Play (LP) está diretamente ligada ao seu peso. Quanto maior for a gramagem – ela pode variar de 90g à 180g –, melhor é o som obtido. Segundo o radialista Cagê Lisboa, essa é a mídia que permite uma mergulho musical e revela que ouvir um LP é um ritual. “Eu chego em casa faço um chimarrão, pego minha mulher e a gente vai ouvir um vinil”, diz Cagê. “Isso é a arte de ouvir música, o vinil está resgatando isso.” Isso tudo, segundo o radialista, remete o sentimento nostálgico de sua infância, quando ouvir vinil era como assistir televisão, pois toda a família se reunia em torno do toca discos, para apreciar música boa. A volta do vinil também

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se justifica como um combate à pirataria – não é possível copiar este formato de mídia, o que se torna uma válvula de escape para as bandas. Sem falar que o vinil é muito mais rentável a um artista que um CD ou lojas virtuais, como o iTunes, da Apple. Devido ao fato de que lá se pode adquirir músicas avulso ou álbuns completos, tudo em MP3, por um preço que pode ser inferior a US$ 1,00. Os LPs, por sua vez, têm preços que variam conforme o estado de conservação e sua raridade. O retrô está, de fato, na moda. Basta olharmos, por exemplo, para a indústria alimentícia: a garrafa de vidro da Coca-Cola voltou a figurar com mais frequência nas mesas brasileiras; o chocolate Lollo, famoso na década de 1980, voltou graças ao apelo dos saudosistas. Mas essa onda costuma abocanhar muitos consumidores pela cultura de massa graças ao modismo. O estudante de engenharia civil Vicente Trindade, 18 anos, é categórico ao dizer por que adotou o vinil, e revela que também se deixou levar pela tendência. “Ele é mais bonitão. O som, que eu sei, é bem melhor que CD e MP3. Sem falar que está na moda”, confessa, enquanto exibe o disco da banda Californiana Kyuss, que comprou na itinerante Feira do Vinil, da capital dos gaúchos. No entanto, o fenômeno, segundo Cagê, não é novo – e indica que o vinil está longe de ser apenas um modismo. “O que ocorre a uma década no centro país, como em São Paulo, só chegou no Rio Grande do Sul a menos de cinco anos”, informa. O comunicador realiza bazares de vinil em Porto Alegre e cidades do interior do Rio Grande do Sul, como Pelotas e Santa Maria. “O interesse das pessoas é cada vez maior. Então, me parece que modismo não é”, destaca. No tempo em que a reportagem esteve no local de venda dos discos, que também comercializava cervejas e hambúrgueres artesanais, percebeu-se uma grande curiosidade de muitos pelos LPs. Mas apenas um adquiriu um álbum – e

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pechinchou o valor de R$50, conseguindo levar por R$40.

Quando deu a baixa do vinil, eles vinham com 200 vinis e trocavam por 10 CD’s. Quando deu a alta do vinil, eles vinham com 200 CD’s e trocavam por 10 vinis. Getúlio Costa, proprietário da loja A Boca do Disco

HERÓIS DA RESISTÊNCIA No início da década de 1990, uma nova mídia começou a se popularizar no mercado fonográfico. Tratava-se do Compact Disc (CD), novo formato que prometia mais capacidade de armazenamento, maior durabilidade e o fim do “maldito” ruído presente em alguns bolachões. O início desta década pode ser considerado a decadência do vinil, pois muitas pessoas se impressionavam pelos belos CDs. Graças à cultura de massa, essa nova forma de armazenar música se popularizou e fez com que, cada vez mais, o vinil se tornasse obsoleto. Muitos donos de lojas de disco eliminaram seus estoques de Long Plays para traba-


lhar apenas com os CDs que eram encarados como o futuro da indústria fonográfica. Mas nem todos se precipitaram: “Eu não me reinventei. Eu só ganhei dinheiro. Quando deu a baixa do vinil, eles vinham com 200 vinis e trocavam por 10 CD’s”, Getúlio Costa, proprietário da loja A Boca do Disco. “Quando deu a alta do vinil, eles vinham com 200 CD’s e trocavam por 10 vinis.” A loja persiste no seguimento há mais de 20 anos, e é uma das principais referências no mercado dos discos na capital dos gaúchos. No centro de Porto Alegre, os amantes do vinil podem se deliciar por pelo menos 12 lojas especializadas no formato. Os adeptos podem conferir discos desde o Mercado Público até o viaduto da Otávio Rocha. Com a massificação, os produtos tendem a ser cada vez mais descartáveis e supérfluos. Baixamos tantas músicas em MP3 que mal paramos para analisar a qualidade do som ou a história que existe por trás da faixa. Ouvimos apenas por ouvir. Isso é um dos motivos pelo qual o LP está voltando com tanta força nesse mercado tão competitivo e mutável. “O vinil é definitivo. A internet é para o ‘ouvidor’, não para o colecionador. O colecionador quer o disco na mão, o encarte a capa”, destaca o dono da Boca do Disco. A loja de Getúlio contém mais de 10 mil discos nacionais e importados e atende a diversos tipos de gosto. A procura pelo LP está cada vez mais alta e a indústria da música está ciente disso. “Eles pegam o disco original e começam a remasterizar. Lançam quatro, cinco vezes o mesmo disco. Então é uma máfia. Eles conseguem vender várias vezes o mesmo disco”, destaca Getúlio. Outra loja, na esquina entre a Rua da Conceição e a Avenida Farrapos, é destino certo para quem procura por variedade de discos e artigos ligados a música. Trata-se do Museu do Som, que atua no mercado a mais de 40 anos. A loja habitua no centro da cidade há cerca de 15 anos. Antonio Célio Xavier, de 66 anos, viveu boa parte da história do “bo-

lachão”. Seu Xavier passou pelo auge, a decadência e está vivendo atualmente o retorno dessa mídia. “Antigamente eu vendia apenas disco, depois passei a vender CD’s também. Atualmente fui obrigado a diversificar um pouco. Hoje, vendemos filmes e aparelhos de som. Temos de tudo um pouco”, explica o comerciante. O início da década de 1990 foi um verdadeiro terror para quem trabalhava com discos de vinil. A transição para os CD’s não era fácil. Como sobreviver vendendo uma mídia tão especifica quanto o vinil? Essa dúvida rodeava o mercado fonográfico da época. Muitos não suportaram essa mudança. “Sobrevivi roendo a corda. Sou meio casca dura. Continuei trabalhando com isso porque gosto muito de disco e do público do disco”, destaca Xavier, com tom de nostalgia. A loja conta com mais de 25 mil discos. Os estilos variam, desde títulos como a trilha sonora do filme Dirty Dancing (1987) até clássicos das bandas Black Sabbath e Pink Floyd. Há que acredite, ainda, que o vinil nunca saiu de moda. É o caso do aposentado João Machado, de 75 anos, dono de uma livraria que também vende LPs – e que vive o vinil desde criança. “Eu sempre gostei de vinil. Acho as capas

Sobrevivi roendo a corda. Sou meio casca dura. Antonio Célio Xavier, dono da loja Museu do Som

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CULTURA O VINIL ESTÁ DE VOLTA ÀS PARADAS DE SUCESSO

REINVENTAR-SE É PRECISO: O ULTRA-VINIL O excêntrico Jack White fez de seu último álbum, Lazaretto, uma “revolução” para o mercado de LPs. Ele lançou o ultra vinil, de 12 polegadas, que é segundo o próprio White cheio de truques. Diferente dos vinis tradicionais, onde a agulha fica na borda do bolachão, neste a agulha precisar ficar no centro do vinil, para tocar o lado A. O músico lembra que isso já foi feito no lendário disco dos Beatles, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, mas pouco explorado por outros artistas. Outra surpresa é a de que o álbum possui duas faixas “escondidas”, no centro do disco, uma no lado A e outra no B e que podem ser ouvidas em 45 (lado B) e 78 (lado A) rotações por minuto (rpm). Há também uma projeção do anjos da capa do disco, enquanto ele é tocado, isso acontece devido à alta rotação do vinil.

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lindíssimas”, afirma João, que tem uma coleção de discos em um dos espaços da loja, que também é a sua casa. “Comecei a colecionar com uns 12 anos, era o menor de 78 rotações que tinha uma música de cada lado.” Nas estantes, encontram-se discos que vão desde Roberto Carlos até trilha sonora de uma pornochanchada – tipo de filme erótico com tom humorístico comum na década de 70. Essa diversificação de gêneros mostra que o vinil reproduziu tudo aquilo que havia na música da época, como acontece hoje na era da música digital. Mas o aposentando se rende à tecnologia e acaba ouvindo muitas das suas canções favoritas, como as da cantora de tango argentina Susana Rinaldi ou do músico Osny Silva, o rei do rádio. Tudo no Youtube – sua vitrola está quebrada. O engenheiro Luciano Cauduro ainda vê com receio o crescimento desse mercado. Organizador de uma feira de vinis em Porto Alegre, ele acredita que chegará o momento em que o comércio de LPs atingirá seu limite, devido ao público ser muito segmentado. “Por mais que esteja difundido, graças à cobertura da mídia, ainda hoje é um público bem restrito”, enfatiza. O engenheiro salienta que hoje o vinil é voltado para “audiofilistas”, ou seja, fanáticos por música. “A mídia analógica não foi superada pela digital.” Herança. Essa é a palavra que define a história de Christian Jung, de 47 anos, e de seu filho Fernando Jung, de 12 anos. Só que quem deu o pontapé inicial para esse reencontro com o vinil foi justamente o filho, que levou seu pai à feira de vinis. O adolescente acredita que esse retorno acontece porque as pessoas estão no modo retrô, ou, como nas palavras dele, “no estilo Old School”. Para uma geração que nasceu com tocadores de MP3, que comportam milhares de músicas, surpreende-se com o vinil. “É muito legal ver o que as pessoas ouviam antigamente e pensar que, hoje em dia, um CD pode ter dois vinis, e

A mídia analógica não foi superada pela digital Luciano Cauduro, engenheiro

um MP3 uma loja inteira”, analisa. O pai aproveita esses momentos com o filho e se teletransporta para a época em que curtia e que nem escutava em sua época. “Tem sido bacana por isso, eu me reencontro no passado. Vendo as coisas que eu escutava e ver que ele está escutando música de qualidade”, brinca. Mais que um novo mercado que se reabre, o vinil traz consigo a socialização, de acordo com o historiador Matheus Dagios. “Isso faz você sair de casa, conhecer pessoas novas e bater um papo sobre som”, salienta. Os dados confirmam algo que não passava de especulação há alguns anos. Ainda está com dúvidas em relação a essa afirmação? Segundo o último relatório disponibilizado pela Nielsen Soundscan, em julho deste ano (2014), as vendas de vinis nos EUA aumentaram 40,4% em relação ao ano passado. O vinil, por incrível que pareça, voltou para amenizar a crise que a indústria fonográfica mundial vive desde a popularização da internet.

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LUPI HER DEI ROS de

“ATÉ A PÉ NÓS IREMOS, PARA O QUE DER E VIER.” “FELICIDADE FOI-SE EMBORA E A SAUDADE NO MEU PEITO, AINDA MORA.” SE VOCÊ CANTAROLOU LENDO TRECHOS DESSAS MÚSICAS, PROVAVELMENTE SABE DE QUEM SE TRATA.

POR ANDERSON BORGES E LEONARDO MAYER FOTOS LEONARDO MAYER / ROBERTO CARUSO

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MÚSICA HERDEIROS DE LUPI

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Lupicínio Rodrigues,

ou simplesmente Lupi – como era chamado pelos amigos o grande ícone da música de ceresta –, deixou herdeiros em todos os ramos musicais, que hoje buscam inspirações nos seus grandes sucessos. Nascido em Porto Alegre no longínquo 1914, foi o quarto filho de Dona Abigail e de seu Francisco. Uma família grande, de 21 filhos. O cantor começou na vida boêmia precocemente, aos 14 anos, quando havia feito sua primeira música, “Carnaval”, para um bloco chamado Prediletos. Trabalhando como bedel na universidade de direito em 1938, Lupicínio Rodrigues venceu o concurso de prefeitura de Porto Alegre em comemoração ao centenário da revolução farroupilha. Com a música “Triste História”, chamou a atenção de Noel Rosa: “Esse garoto vai longe”. Lupi foi vivendo e compondo músicas marcantes. Ele é conhecido também por ter sido um dos criadores da

temática dor de cotovelo – letras mais melancólicas falando sobre amores que não davam certo ou amados e amadas deixadas para trás. Para compor, Lupicínio Rodrigues não usava o violão. Ia assobiando e colocando as ideias no lugar. Teve muitos sucessos, como “Se acaso você chegasse”, samba feito em parceria com o pianista e carioca Felisberto Martins, amigo que ajudou Lupi a divulgar suas músicas no Rio de Janeiro, onde ganhou força. O sucesso veio rápido. No salão de atos da UFRGS, ocorreu um workshop para músicos bandolinistas. Lá, Hamilton de Holanda – carioca de 38 anos morador de Brasília – ministrava uma palestra. Hamilton estudou música na Universidade de Brasília (UnB) e, desde o início do curso, nutria a ideia de concluir a graduação compondo um Concerto para Bandolim com Orquestra. Desde sua mocidade, foi influenciado em casa por seus pais e – claro – por

Como tem Nelson Cavaquinho no Rio de Janeiro, tinha Lupi aqui no Rio Grande do Sul Hamilton de Holanda

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Lupicínio. Para o músico, Lupi tratava a tragédia amorosa de uma maneira ímpar. “Ele fazia composições com letras trágicas melosas mas, que, no fundo, são belas poesias”, explica Hamilton. “Ao mesmo tempo em que é triste, esse paradoxo é o ponto de êxtase da música de Lupi. Ele conseguiu fazer isso de maneira muito especial. Como tem Nelson Cavaquinho no Rio de Janeiro, tinha Lupi aqui no Rio Grande do Sul. Lupicínio é um baluarte.” Quando perguntado de suas preferências, já saiu logo cantando duas músicas: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora...Você sabe o que é ter um amor meu senhor, ter loucura por uma mulher”, cantarolou, emocionado. “Pra mim, essas duas músicas são as marcantes.” O que mais chama a atenção do cantor – e bandolinista reconhecido internacionalmente – é a maneira simples e original como Lupi conseguiu contar todas essas desilusões amorosas. “Desde pequeno, tocava com músicos mais antigos e experientes nas cerestas, e as músicas dele estavam no repertório. Lupicínio sempre é lembrado no meu dia a dia”, completou Hamilton. Um gaúcho que tem o Lupi como fonte de inspiração é o também bandolinista Elias Barboza. Quem dera: o avô dele, Claudio Barboza, foi um dos grandes acordeonistas que, junto com Lupicínio, iniciou o Clube do Choro, em Porto Alegre. “Lembro até hoje de quando eu escutava o LP em que meu avô gravou junto com Lupi no Clube do Choro. No início do vinil, escutava meu avô fazendo uma breve apresentação. Aquilo me emociona”, relembra o músico. “Saber que meu avô fez parte da história de um grande ídolo é muito inspirador.” A música de Lupicínio não influenciou somente os músicos, mas também grandes compositores e poetas. É o caso de Vaine Darde, compositor gaúcho famoso pela música “Herdeiro da pampa pobre”, interpretada pela banda Engenhei-

Quando falam do Lupi, sempre se imagina um cara que vive de bar em bar. Porém ele tinha um lado caseiro muito grande Artur José Pin­to

ros do Hawaii. Vaine participou de mais de 100 festivais, tafonas e califórnias da cação, e carrega uma bagagem de mais de 30 títulos de primeiro lugar. Ele conta que sempre teve Lupi como um ícone. “Acho que há toda uma geração de músicos gaúchos que se inspiraram e ainda se inspiram no Lupi, principalmente nas composições românticas”, afirma. “Eu mesmo tenho uma música em parceria com o Gaúcho da Fronteira que foi inspirada nos temas dele.” Diretor e dramaturgo, Artur José Pinto mergulhou na história do cantor para criar e levar “Lupi – O Musical” aos palcos. Ele conta algumas histórias pouco conhecidas do cotidiano do cantor e compositor que inventou a dor de cotovelo. “Quando falam do Lupi, sempre se imagina um cara que vive de bar em bar. Porém ele tinha um lado caseiro muito grande”, revela. Durante a semana, segundo o diretor, ele era o boêmio mais escrachado. Já no final de semana, gostava mesmo era de ficar em casa. “Tinha um sítio ali na Zona Sul onde criava porcos, galinhas, curtia muito essa vida. Engraçado é que ele tinha uma verdadeira ‘carta de alforria’ da mulher, que deixava ele ficar na farra até as 4h da manhã, se passasse desse horário a casa caía.” Para Artur, outro fato que marca a história do músico é que quase se aposentou pela Bossa Nova e Jovem Guarda. “Na década de 60, ele sofreu muito com a invasão da jovem guarda, do rock,

da tropicália, da bossa nova. O gênero em que ele compunha ficou em segundo plano, principalmente em Porto Alegre”, conta. Segundo o diretor, entrar na vida de Lupi foi inspirador. “O Lupi tem uma malemolência incrível e transformar isso em peça para o teatro é muito difícil. Ele era muito mais do que um músico e um compositor que colocava nas músicas a dor de cotovelo. A minha principal intenção foi contar a historia do artista pai, amigo e amante.” Outro produtor musical e compositor que carrega a herança deixada por Lupi é Thiago Suman. “Carrego muito do Lupi nas minhas músicas. Meu avô, que faleceu no início deste ano, apresentou o Lupi pra mim e para o meu irmão gêmeo quanto tínhamos 16 para 17 anos”, lembra. “Era um disco do Wilsom Paim em que ele interpretava as músicas do Lupicínio. Foi Paixão à primeira vista.” Thiago conta que encontrou diversas vezes o Wilsom Paim e nunca contou a ele a história por trás do disco. “Mas outra vez encontrei o Antonyo Rycardo, que fez a parte de cordas do disco, e ele achou sensacional. Disse que essa é a proposta da arte. Essa identificação, esse toque,” relata. Em 2015 Thiago e o irmão completam 10 anos de música. Dentro desse período, já são mais de 100 participações e premiações em festivais de música, com destaque para a Califórnia da Canção Nativa, em 2009.

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O SUSHI A CULINÁRIA JAPONESA ESTÁ ARRAIGADA NO DIA A DIA DO BRASILEIRO. MAS COMO SERÁ QUE A DELICADA IGUARIA É RECEBIDA NO PRATO DE UM POVO QUE GOSTA DE MISTURAR E ADAPTAR EM SEUS CARDÁPIOS?

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Foto Malcolm Koo

VERA CRUZ

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gastronomia#47

TEXTO E APURAÇÃO DANIELA FRAGOMENI APURAÇÃO GUILHERME GOTTARDI DIAGRAMAÇÃO JORDANA PASTRO IMAGENS MALCOLM KOO / ÉVELIN MATOS

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A caixinha

bem-fechada está localizada entre os sanduíches naturais e os quindins, no freezer aberto do supermercado. Foi produzido ontem e poderá ser consumido até amanhã. No conteúdo, encontram-se lombo de salmão cru – criado em cativeiro no Chile –, arroz cozido com vinagre, açúcar e alga marinha desidratada. Os ingredientes, preparados à técnica milenar japonesa, formam o sushi. Hoje queridinho dos brasileiros, o prato sofreu modificações em sua receita original e em sua forma de consumo – até divide espaço com o arroz e o feijão no prato do brasileiro. Especialistas afirmam que o sushi não pode ficar pronto e exposto por horas em buffets. Alguns desses sushis, servidos até em churrascarias, podem causar repugnância aos mais conservadores. Mas a farta diversidade gastronômica brasileira, somada aos pratos internacionais, forma uma mistura incomum e curiosa.

Hoje queridinho dos brasileiros, o prato sofreu modificações em sua receita original e em sua forma de consumo, divide espaço com o arroz e o feijão no prato do brasileiro

No Japão, o sushi é consumido como um tipo de fast food, explica Guilherme Higa, descendente de japoneses, que morou no país asiático por 12 anos. Ele conta que existem dois tipos de sushiya-san (local que serve sushi) no Japão: o sushiya-san normal, como a maioria dos estabelecimentos existentes no Brasil, e o kaiten-sushi, onde uma espécie de esteira percorre as mesas com pratinhos de diversas cores, contendo duas peças de um determinado tipo de sushi. No Brasil, os restaurantes orientais não são os únicos a oferecerem o prato, que acaba sendo tratado como os demais alimentos cozidos, expostos por horas em buffets. Apesar do controle de temperatura, o sushi perde qualidade e sabor. O SUSHI COMO DEVE SER O sushi pode ser encontrado em lugares improváveis. Além dos supermercados, também é degustado em praças de alimentação de centros comerciais, redes de fast food e até em carrocinhas de comida na rua. Para Higa, alguns desses sushis servidos ao “jeitinho brasileiro” não são lá muito adequados. A origem do peixe e o ponto do arroz, diz ele, são indispensáveis para o preparo de um bom sushi. “Tenho preferência em frequentar estabelecimentos administrados por nikkeis (descendentes de japoneses) devido à fidelidade com que produzem o sushi feito do Japão”, conta Higa. O sushi é um prato que deve ser consumido na hora do preparo, explica o

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GASTRONOMIA

O SUSHI NA TERRA DE VERA CRUZ

sushiman Tiago Lacerda Tadano, que viveu por oito anos no Japão. “O sushi é um produto em que se misturam dois ingredientes que não combinam no tipo de conservação”, diz Tadano. “O arroz tem que estar em uma temperatura de cerca de 20 graus, enquanto o peixe deve estar em uma temperatura abaixo dos sete graus. Em um buffet, você nunca conseguira obter esta harmonia.”

Alguns especialistas consideram as interferências internacionais positivas ao prato. Adaptações à receita do sushi foram fartamente introduzidas por norte-americanos, onde há décadas o prato é apreciado. A influência americana adicionou frutas frescas, cream cheese (tipo de queijo cremoso) e fritura à receita. A adaptação foi tão bem aceita que até mesmo os japoneses às utilizam. “Cabe ao sushiman ter a sensibilidade do cliente que ele está atendendo”, detalha o professor Maguil Tadashi Korogui, especialista em comida asiática da PUCRS. Segundo ele, o mais importante é saber que o cliente espera do produto. “Não adianta eu preparar um sushi pequeno para um cara grande, ou para uma mulher fazer um sushi muito grande.”

Évelin Matos

Foram as adaptações de ingredientes nacionais à alta gastronomia que deram reconhecimento internacional à comida brasileira

INTERFERÊNCIAS POSITIVAS NO ‘BOM SUSHI’

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O MITO DO PRATO LEVE Para Korogui, que também é dono e sushiman do restaurante Temari, em Porto Alegre, o fato de o sushi estar exposto em diversos lugares pode ser um atrativo para que as pessoas experimentem e tomem gosto pelo prato. O chef diz que por um lado é um incentivo para que as pessoas aprimorem o paladar e se tornem um dia apreciadores do ‘bom sushi’. A DIVERSIDADE DO BRASIL Arroz, feijão e farinha de mandioca são ingredientes nacionais que podem apenas retratar de longe a diversidade gastronômica do país. Mas quando se trata de comida do Norte, as variáveis aumentam significativamente. Colunista de gastronomia da Folha de Boa Vista, principal jornal da capital roraimense, Denise Rohnelt cita pratos internacionais adaptados aos ingredientes do Norte que resultaram em combinações raras: o ravióli de maniçoba, o risoto e pupunha e o hambúrguer de picanha com jambu. Todos eles apresentados utilizados por chefs paraenses. Foram as adaptações de ingredientes

O sushi pode ser considerado um prato leve. Ele põe o peixe no prato do brasileiro, que em geral têm um baixo consumo do produto. Para a nutricionista e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pauline Pacheco (27), o sushi é basicamente arroz e peixe e se consumido da forma tradicional japonesa tem um baixo teor calórico. Por outro lado, quando associado à fritura ou ao cream cheese, torna-se um prato mais calórico. A nutricionista lembra que a culinária tradicional japonesa não é feita somente de sushi. “A diferença na alimentação que faz ganhar peso além do que você precisa é equilíbrio. Pergunte-se: o que esse alimento tem de bom pra mim além do sabor e da energia?”, questiona. “Nesse ponto, o sushi apresenta algumas vantagens.” Outro cuidado que o apreciador do sushi deve ter é com o molho de shoyu, por conter muito sódio. É recomendado o uso moderado, apenas molhando uma parte do peixe.

QUANTAS CALORIAS TEM UM PRATO DE SUSHI? Os temakis, ou cones, variam de 100 a 250kcal, de 5% a 12,5% das energias diárias considerando uma dieta de 2000kcal. Sozinho ele pode ser um lanche da tarde. Um combinado de peças variadas com cerca de 14 peças varia de 500 a 650 kcal com sushis empanados. Sem sushis empanados pode-se encontrar combinações com 400kcal. Isso significa dizer que 12 a 18 peças são mais que suficientes para almoço ou janta (sem contar a bebida!). Fonte: nutricionista Pauline Pacheco CRN 9499

vounojapa.com

No Japão não se come sushi com hashi (pauzinhos), por isso que vem um guardanapo quente para limpar os dedos. Se come o sushi com as mãos. O motivo é que ele é frouxo, e no momento em que a gente pega com o hashi ele desmancha. Essa é a grande diferença, o sushi brasileiro e o sushi americano a gente faz ele bem prensado e dá para comer ele até com garfo que ele não vai desmanchar. Maguil Tadashi Korogui, professor do curso de culinária oriental da PUCRS

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O SUSHI NA TERRA DE VERA CRUZ

O QUE É MANIÇOBA? Prato típico paraense feito com a folha da maniva da mandioca brava, que fica cozinhando por mais de 48 horas para retirar o ácido cianídrico, e acrescentam as carnes de porco, como uma feijoada verde.

A Caesar Salad é um prato com o qual eu me divirto colecionando versões absurdas pelo Brasil afora. Certa vez me trouxeram um prato de alface e um potinho de maionese junto, mais nada! Não se pode oferecer uma Caesar Salad que não tenha um molho com azeite, limão, anchova, parmesão, mostarda e facultativamente uma gema. Adelaide Engler, chef de cozinha

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Fonte gnt.com

GASTRONOMIA

nacionais à alta gastronomia que deram reconhecimento internacional à comida brasileira. Expoente do movimento, o chef Alex Atala, dono restaurante D.O.M. em São Paulo, eleito o 7º ‘melhor do mundo’ 2014 pela revista inglesa Restaurant, foi consagrado por divulgar os produtos brasileiros, em especial os amazônicos. Denise menciona outros chefs também conhecidos pelo uso dos ingredientes nacionais em receitas, entre eles estão Claude e Thomas Troisgros, pai e filho que pertencem à família vanguardista de chefs franceses; Helena Rizzo, premiada com o 1º lugar no concurso melhor chefe mulher do mundo pela Veuve Clicquot e pela revista Restaurant e Roberta Sudbrack, conhecida por ter sido a primeira chef do Palácio da Alvorada, em Brasília – hoje, seu restaurante no Rio de Janeiro integra também a lista dos melhores do mundo. Nesses restaurantes, o cliente encontra receitas com produtos nacionais apresentados em diferentes formas e valorizados no centro das criações. Sagu, biscoito de polvilho, pupunha, pipoca, peixes amazônicos, goiabada, pão de queijo e a farofa: todos ingredientes comuns nas criações. Ingredientes exóticos, como formigas amazônicas, também fazem parte desta miscelânea. Denise conta que muitos produtos comuns na Amazônia ainda são considerados exóticos. Para ela, a utilização dos peixes de água doce, dos ingredientes como jambu, tucupi, carimã, goma de


mandioca, das frutas pupunha, tucumã, cupuaçu, pimentas murupi e olho de peixe estão na lista dos produtos pouco conhecidos para as pessoas do Centro-Sul. A jornalista, que esteve recentemente no Peru para a feira gastronomia “Mistura”, conta que lá as adaptações dos ingredientes locais também são feitas com a cozinha clássica. “Essa é a forma que muito chefs têm encontrado para unir técnica com ingredientes de origem.” O ALEGRE ENTREVERO DA COMIDA NACIONAL Para a chef Adelaide Engler, que estudou gastronomia na Europa e trabalhou com renomados chefs, alguns costumes brasileiros podem ser imperdoáveis aos mestres da cozinha. O hábito nacional é adaptar os pratos tradicionais da culinária internacional. Junto com os Estados Unidos, o Brasil é campeão na adaptação das receitas. Diferentemente da onda da fusão, quando na alta gastronomia se tornou tendência com a inserção de alguns ingredientes exóticos em receitas tradicionais, o brasileiro gosta de misturar. Algumas receitas dão certo. Outras, nem tanto. Pizza de frango com borda de catupiry, lasanha de carne seca, hambúrguer de picanha, sanduiche de coração de galinha e peixe com molho de queijo são alguns exemplos que deixariam um europeu intrigado. “O número um dos pecados cometidos é quando se passa de-

mais o ponto de uma boa carne”, conta Adelaide. Cozinhar demais os legumes é um costume estranho para americanos. Molhos pesados, com muitos ingredientes nas massas italianas, contrariam as receitas tradicionais. A chef menciona também que o costume de se tomar vinho tinto com qualquer tipo de prato é outra característica dos brasileiros, que parecem querer colocar o mundo em seus pratos. No Brasil, nos tradicionais restaurantes a quilo, onde grande parte da população faz suas refeições, no mesmo prato não é raro encontra arroz, feijão, lasanha, carne de boi, peixe, salada e até mesmo algum sushi. “Três ou quatro carboidratos no mesmo prato é estranho para qualquer pessoa que entenda o mínimo de nutrição”, comenta Adelaide. Com tantas opções alimentares, a recomendação dos especialistas, chefs e nutricionistas é de que a pessoa tenha um consumo alimentar consciente. Desde a escolha do que se coloca no prato à valorização dos ingredientes locais. Matar a fome não deve ser a única preocupação na hora da escolha. As técnicas gastronômicas, aliadas à cultura e aos ingredientes regionais, são uma tendência mundial. “A moda no mundo todo é o retorno ao natural, à comida fresca da terra, sem agrotóxicos e valorizando os produtos locais.”

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CONHEÇA A HISTÓRIA DE PESSOAS MENOS ABASTADAS QUE, CANSADAS DE ESPERAR PELAS PROMESSAS DO PODER PÚBLICO, OCUPAM TERRENOS OCIOSOS PELA CIDADE EM BUSCA DE UM LAR PARA CHAMAR DE SEU TEXTO E FOTO CAROLINE CORREA, PRISCILA VALÉRIO E LEONARDO PUJOL DIAGRAMAÇÃO CAMILA DELVAUX

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A vida seguia razoavelmente

bem até Saionara Santos da Silva apresentar problemas de saúde. De tanto se arquear para limpar o chão, a faxineira de 40 anos, pele morena, cabelo pelo ombro e cintura fina não pôde mais trabalhar. Carregar peso ou se esforçar demais era rogar por dores no corpo. Desde junho, a responsabilidade integral de prover o lar ficou por conta do marido, o auxiliar de segurança privada Nelson Santos, de 47 anos. Só que sustentar uma casa onde mora com a mulher, a enteada e a filha desta envergou o orçamento do porteiro. Não havia condições de se manter quite com os credores, especialmente com o aluguel, que toma boa parte do salário de 1.100 reais. A alternativa era dar ouvidos ao burburinho que circundava a vizinhança, no bairro Rubem Berta: ocupar um terreno, erguer uma casa e brigar na Justiça pela posse. Em parte, assim foi feito. Na madrugada de sexta para sábado, 16 de agosto de 2014, Nelson, junto a dezenas de pessoas, ingressou em uma área de 65 hectares conhecida como “Fazendinha”. A propriedade, localizada na estrada Antônio Severino, Zona Norte de Porto Alegre, funcionava como hotelaria de animais. Onde antes pastavam os cavalos, agora estacas demarcavam lotes, barracos eram improvisados e pessoas pastoreavam. Mesmo com espacinho garantido na ocupação – que mais tar-

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Leandro Otenir Ribas é um dos líderes do Fórum das Ocupações Urbanas

de recebera o nome “Bela Vista” –, a família de Nelson segue alugando o apartamento onde viviam. Vão até lá para satisfazer as necessidades fisiológicas, tomar banho e lavar roupa. Até que consigam erguer uma casa, não podem trazer sua mobília. Precisam estar dia e noite nos dois barracos erguidos com folhas de compensado. “Quem não dorme na ocupação perde o lote”, ressalta Nelson, que deixa às mulheres a incumbência de salvaguardar o terreno quando trabalha, madrugada sim, madrugada não. Negro alto de estatura larga, fica em desvantagem frente à pequena cadeira de praia que usa para sentar nas horas vagas. Seja acompanhado do sol ou da chuva, vela, encurvado, o seu lote. Além de garantir que ninguém o tome, fica alerta caso o proprietário da terra apareça.

O dono da área, segundo o Tribunal de Justiça (TJ), é Augusto Sergio Mottola Garcia. Ele morava em frente ao terreno, mas se mudou após desentendimentos com os ocupantes. “O homem quis intimidar e expulsar quem estava aqui ou estava chegando”, lembra um morador que prefere não se identificar. A ameaça não funcionou. Dez dias após a ocupação, cerca de cem famílias habitavam o terreno quase inóspito da Zona Norte. Dois meses depois, o número beirava os 400. Sem ninguém arredar o pé, o proprietário entrou com pedido de reintegração. Em 7 de outubro, quando a reportagem visitou o local, completava-se uma semana do deferimento a favor de Augusto. Isso significa que, a qualquer momento, a Brigada Militar pode aparecer no assentamento e expulsá-los. Embora tenham um lugar


Todo o terreno da Ocupação era um descampado que servia como depósito de corpos e desova de carros. Juliano Fripp, do conselho fiscal da São Luiz

para dormir, apenas descansam o corpo e não a mente. Na ocupação Bela Vista, todos dormem de olhos abertos. ONDE CORPOS JAZIAM, HOJE VIVEM FAMÍLIAS Segundo o Censo 2010 do IBGE, Porto Alegre possui 48 mil domicílios vagos. Considerando-se o crescimento vegetativo da população, de 1,4 milhão de habitantes, o déficit habitacional é de aproximadamente 40 mil moradias. Sem condições de pagar aluguel, milhares de famílias sem-teto ocupam áreas ociosas da cidade. O Loteamento São Luiz, por exemplo, era um desses terrenos improdutivos. Nele, vivem hoje 300 famílias – cerca de 1.200 pessoas. A sexta-feira (26 de setembro), dia em que a reportagem visitou o local, foi um dia digno de pri-

mavera – fez calor à tarde e frio à noite. O vento tiritava. A escuridão, habitual para as 8 horas da noite, era ainda mais pesada por causa da falta de iluminação nas ruas do loteamento – salvo por fagulhas clandestinas de luz que escapavam por entre as frestas das casas. Juliano Fripp, membro do Conselho Fiscal da Cooperativa Habitacional São Luiz, foi o anfitrião. Levou-nos até um galpão, onde alguns homens jogavam sinuca. O local, que ora serve como bar, ora como sala de reuniões, é dirigido por Leandro Otenir Ribas, de 39 anos. Ribas, que também é presidente da ocupação, morava no bairro Sarandi até decidir entrar no terreno. “Era um dia de inverno chuvoso quando ocupamos”, recorda. Ele cita a noite de 19 de julho de 2012, onde dezenas de pessoas sem condições de pagar aluguel formaram tendas

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e armaram barracas na área localizada na avenida Baltazar de Oliveira Garcia, próximo à divisa com Alvorada. “Era um descampado que servia como depósito de corpos e desova de carros”, enaltece Fripp. Dois anos depois, o lugar é praticamente um novo bairro na Capital. De acordo com o Plano Diretor, o terreno de 12 hectares é uma reserva de contenção ambiental pertencente ao município. Entretanto, a escritura – contestada pelos moradores – está em nome de Valdir Oliveira Silveira, empresário conhecido na região como “Foguinho”. A compra, registrada no tabelionato de Alvorada na presença de Valdir e do posseiro da terra, o agricultor Alencorte Machado Feijó, foi efetuada em 6 de setembro de 1989. A data não chamaria atenção se não fosse por um detalhe: o então posseiro morreu no mesmo dia. A certidão de óbito atesta como causa mortis “insuficiência respiratória, pneumonia aspirativa, diabete melito tipo II”. “Não entendo como alguém tão moribundo pode ir ao cartório no mesmo dia que morre”, contesta Fripp com ironia. “Doente desse jeito, deveria estar no hospital”, completa Ribas. Coincidências (ou não) à parte, a Justiça determinou reintegração de posse a favor de Foguinho. Ao citarem a decisão do tribunal, o semblante dos representantes do Loteamento São Luiz se fecha. Ficam sufocados pela incerteza. Leandro, em silêncio, levanta e encosta a porta do galpão. O vento segue soprando frio lá fora. Carlos Moraes, conhecido como “Cigano”, mora em um casebre na São Luiz doado pela sobrinha

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O PRÓLOGO DOS ASSENTAMENTOS Conforme dados da Organização das Nações Unidas (ONU), mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas. No País, o índice é ainda maior: 85% dos brasileiros habitam as cidades. Para o Grupo de Assessoria Popular da UFRGS (GAP), fatores como a construção de Brasília e o incentivo à industrialização indicaram uma mudança na configuração espacial da população


brasileira ao longo dos anos. “Essa análise histórica permite compreender, de certa forma, o arranjo da organização populacional nos centros urbanos atuais, marcados por ampla desigualdade social e econômica”, diz Andressa Soilo, membro do GAP. Os grupos sociais de poder econômico mais elevado, em tese, vivem em locais com melhor infraestrutura: saneamento básico, iluminação pública, serviços de saúde, educacionais e bancários. Também têm maior facilidade de locomoção e proximidade aos locais de trabalho. Em contraponto, famílias menos abastadas sofrem os impactos de áreas pouco desenvolvidas, e o acesso a esses serviços é dificultado. “A injustiça social é vista como uma fatalidade. O pobre deve ficar esperando que futuramente vá ter as condições devidas”, reclama Jacques Alfonsin, assessor jurídico de movimentos populares. Embora a Constituição Federal de 1988 possua um capítulo específico sobre política urbana, apenas em 2001, com a formulação do Estatuto da Cidade, é que foram estabelecidas normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar, além do equilíbrio ambiental. Segundo a economista Beatriz Tamaso Mioto, doutoranda pela Unicamp e especialista em desenvolvimento econômico e políticas habitacionais na América Latina, a lei definiu duas questões fundamentais para a política habitacional: a função social da cidade e a função social da propriedade. Ela afirma que a ideia é relativizar o direito de propriedade, que passa a ser subordinado ao que os municípios definirem como “bem comum”. “Na prática, isso ocorre mediante a realização dos Planos Diretores, cuja participação da sociedade civil, incluindo os movimentos sociais, é garantida por lei”, explica. O Plano Diretor da cidade, portanto, define as propriedades socialmente inutilizadas ou subutilizadas. Por meio de mapeamento, essas propriedades estão

A injustiça social é vista como uma fatalidade. O pobre deve ficar esperando que futuramente ele vá ter as condições devidas. Jacques Alfonsin, assessor de movimentos populares

sujeitas a sanções. Entre elas, o pagamento de IPTU progressivo, que busca inibir atitudes a fim de especulação. Também estão previstos a edificação e o parcelamento compulsório, que, na prática, é a desapropriação cuja finalidade pode ser a habitação popular – também classificada de Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS). A ocupação Saraí, localizada na esquina da rua Caldas Junior com a avenida Mauá, no centro de Porto Alegre, é referência quando se trata de imóveis que foram declarados pelo Estado como AEIS para fins de desapropriação. O prédio, que passou por quatro ocupações nos últimos dez anos, é um símbolo do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), que reivindicou o local – sem uso por seu proprietário – como moradia social. Após reformas, o edifício que ficou sem função por quase 20 anos servirá de habitação popular para mais de 50 famílias. Beatriz Mioto entende que a desapropriação é mais do que uma alternativa. “É um instrumento legal e democrático importante, que pode garantir diversos direitos e benefícios para os cidadãos e melhorar as condições de vida em toda cidade.” No caso da São Luiz, Juliano Fripp esclarece que a área estava ociosa há mais de dez anos. Portanto, era vista como vazio urbano, utilizado por Foguinho, o dono, apenas para especulação imobiliária. “Acho uma injustiça pessoas não terem onde morar e terrenos ficarem desocupados”, diz. “É direito constitucional ter moradia e por isso ocupamos. Se preciso, vamos enfrentar a polícia, o governo, seja quem for para garantir este direito.” Prova da resistência mencionada por Fripp foram dois protestos simultâneos realizados em 28 de agosto de 2014. O movimento foi organizado pelo Fórum das Ocupações Urbanas, grupo que reúne moradores dos quase 30 assentamentos espalhados pela Região Metropolitana de Porto Alegre. Logo que amanheceu, algumas famílias sem-teto se aglomeraram em frente ao Tribunal

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de Justiça, na região central da capital; outra turma bloqueava a entrada da cidade pela avenida Assis Brasil, na Zona Norte. Ambos reivindicavam o congelamento das reintegrações de posse e a criação de uma Vara especializada em conflitos urbanos. De acordo com Paulo René, advogado do Fórum das Ocupações Urbanas, a criação do juizado agilizará os processos de regularização fundiária e o estudo a respeito da matéria por parte dos juízes. “Isso pode mudar o curso da reforma urbana no município”, projeta. Após quatro horas de protesto, manifestantes e três desembargadores oficializaram em reunião uma ata com o pedido da nova Vara – que até a conclusão desta reportagem, a pauta seguia em análise pela corregedoria. Era o fim do caos no trânsito, mas não das mentes atormentadas daqueles que não sabem até quando ficarão nos terrenos que ocupam. “Eu vou trabalhar e penso: ‘Será que minha casa vai estar no lugar quando eu voltar?’”, pondera Alexandro Nunes, morador do Assentamento Urbano Sustentável Santa Efigênia, situado em um terreno pertencente ao INSS, na estrada Vila Maria, zona sul de Porto Alegre. “Por isso essa Vara especializada é mais do que necessária”, acentua Silvonei Almeida, líder da Ocupação 21 de Abril, da Zona Norte. Atualmente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul contabiliza 2,3 mil processos de pedido de reintegração de posse. AS BASES LEGAIS DA DESOCUPAÇÃO Desde que foi expedida a reintegração de posse do loteamento São Luiz, em 30 de julho de 2013, a preocupação é constante. A angústia de um futuro despejo palpita na mente de cada ocupante – que perde o sono só de imaginar tal situação. “Tem dias que a gente não dorme direito pensando nisso. Se tivermos que sair, vamos para onde? Aluguel? Não temos condições”, diz Andra Karen Carbonel, moradora da ocupação há

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Losinete Pinheiro, açougueira: mesmo com a reintegração de posse da São Luiz expedida, irá comprar uma casa pré-fabricada

mais de um ano. “Quando são poucas pessoas até se dá um jeito, mas somos dez. Não tem como.” Das dificuldades encontradas na manutenção das ocupações, a principal se encontra no setor político – pelo fato do ramo imobiliário possuir maior força no processo que analisa propostas socioeconômicas dos solos urbanos e redes de infraestrutura. Isso porque, segundo a economista Beatriz Mioto, a terra, no Brasil, sempre foi considerada uma forma segura e fácil de valorizar o patrimônio individual. “Portanto, é distante do entendimento da maioria da população a ideia de relativizar o direito de propriedade em prol do bem comum.” Conforme a ONU, a relação entre habitações e desocupações força a obrigação legal dos governos de respeitar, proteger e satisfazer os direitos à moradia. Na maioria das vezes, não é o que

acontece. Para o advogado Jacques Alfonsin, quem não cumpre a função social da propriedade deveria perdê-la. “Tinha que confiscar a área”, julga. “O descumprimento da função social”, segue ele, “é uma violação de direitos alheios porque é um espaço físico necessário.” Jussara Carbonel, integrante da São Luiz, completa: “Aqui era tudo deserto. Agora, é bem movimentado e só com pessoas de bem”. Como que por vocação, a Justiça (quase sempre) ordena a reintegração de posse ao proprietário. Antes da evacuação, é feito um levantamento técnico e social da área. O relatório, depois de concluído, é encaminhado ao Comando de Policiamento da Capital (CPC), que analisa o contingente necessário para garantir a integridade da ação. Depois, é marcada a data para a retirada dos moradores, que são notificados com ante-


cedência do despejo. “Os membros da ocupação são informados do dia e hora da reintegração para que não sejam pegos de surpresa”, explica o comandante do 20° batalhão da Brigada Militar (BM), tenente coronel Marcelo Tadeu Pitta Domingues. Embora proponha que as desocupações ocorram de maneira pacífica, o comandante pondera que, caso haja divergência no lidar da reintegração – como as que aconteceram durante a reintegração de posse do antigo Hotel Aquarius, em São Paulo, onde moradores entraram em confronto com a polícia –, atitudes mais drásticas podem ser tomadas. “O foco da discussão é sempre no processo judicial e a nossa função é executar a reintegração de posse. Jamais, diante do contexto [de expulsá-los de casa], a BM vai tirar as pessoas à força. Mas se precisar, assim será feito”, alerta. Perguntado quando ocorreriam as reintegrações da São Luiz e da Bela Vista, assentamentos dentro do perímetro do seu batalhão com mandado expedido, o comandante diz que não há previsão. Cerca de duas horas após a reportagem chegar ao galpão de Leandro, o advogado Paulo René realizou uma espécie de conferência no local. Na presença das principais lideranças do Fórum das Ocupações, anunciou, de microfone em mãos e voz ardente, uma noticia alvissareira. “Todos podem dormir tranquilos. Como estamos em período eleitoral, a BM não tem efetivo para realizar qualquer tipo de reintegração”, disse. “E como vem chegando a verão”, racionalizou, “os policiais precisarão ser deslocados para o litoral [para reforçar o contingente de salva-vidas]. Sendo assim, é bem provável que qualquer desapropriação só ocorra a partir de março.” A boa nova fez o medo descer da garupa dos moradores e sair do recinto a pé. Os rostos atentos e cerrados logo deram lugar a sorrisos. Todos comemoravam e esboçavam felicidade, exceto um vira-lata que, à despeito do discurso inflamado de René, ficou encolhido em

baixo da mesa de sinuca, olhando para o nada com desdém. Só queria se proteger do vento que soprava lá fora. Três dias depois do afago, um projeto de lei que pretende transformar 15 ocupações urbanas de Porto Alegre em AEIS – entre elas a São Luiz e a Bela Vista – foi protocolado na Câmara de Vereadores. Segundo a proposta, dirigida pela bancada do P-SOL, 10 mil pessoas seriam beneficiadas. Enquanto isso, mais ocupações surgem na cidade. Quando visitados, no dia 18 de outubro, fazia apenas duas semanas que os moradores da Santa Efigênia estavam no local – diferentemente da experiência de dois meses da Bela Vista e dos dois anos da São Luiz. Agravados pela chuva, em meio ao mato e à lama, limpavam o terreno para erguer as malocas. A área será dividida em 60 lotes, um por família. Mas a intenção é ousada: erguer um condomínio de oito blocos, totalizando 300 apartamentos. “A gente está esperando o INSS entrar com o pedido de reintegração de posse. Quando o órgão entrar na Justiça, aí teremos condições de iniciar uma negociação pelo terreno”, revela Paulo Pimentel, o Paulinho Moradia, presidente do assentamento.

Os ocupantes são oriundos de áreas próximas e moradores despejados de outros terrenos. “Eu não consigo mais pagar aluguel, embora tenha carteira assinada. O jeito é ficar aqui”, conclui Paulinho. A DEIXA DERRADEIRA Valdir Oliveira Silveira, o Foguinho, dono da área onde se encontra o Loteamento São Luiz, não foi localizado. Procurado por UniVersus, o advogado do proprietário, Gilberto Moura Pereira, informou por telefone que não faria declarações sobre seu cliente, nem sobre o caso, pois tratava-se de algo que “seria interpretado de maneira política”. O proprietário do terreno onde está instalada a Ocupação Bela Vista, Augusto Sergio Mottola Garcia, também não foi encontrado – tampouco sua advogada, Raquel Oliveira de Oliveira. O INSS, por meio de sua diretoria, afirmou que o caso do Assentamento Urbano Sustentável Santa Efigênia ainda está sob análise. A Brigada Militar não confirmou a suposta falta de efetivo para cumprir qualquer reintegração nos próximos dias. Durante uma semana, foi pedido ao Departamento

Tem dias que a gente não dorme direito pensando nisso. Se tivermos que sair, vamos para onde? Aluguel? Não temos condições Andra Karen Carbonel, moradora da São Luiz

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Era para ser 60 famílias, mas já chagamos a 70 porque a cada dia aparecem novas. Aceito elas porque me corta o coração ver que essa gente não tem lugar para morar. Paulinho Moradia, presidente da Santa Efigênia

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de Habitação (Demhab), órgão da Prefeitura de Porto Alegre, uma explicação sobre as políticas habitacionais na cidade, especialmente sobre as ocupações urbanas, mas a assessoria de imprensa alegou que a pessoa responsável pelo assunto não estava conseguindo “espaço na agenda” para atender os questionamentos. O Tribunal de Justiça agiu da mesma maneira: por duas semanas, a


divisão negou as investidas da reportagem para comentar o que é levado em consideração na hora de julgar casos de reintegração de posse. Todos os assentamentos citados na reportagem foram visitados um mês após a realização das entrevistas. Na São Luiz, tudo estava “nos conformes e sem muitas novidades”, segundo Leandro Otenir Ribas, presidente do Lo-

teamento. Na Bela Vista, algumas casas – inclusive de alvenaria – substituíram as malocas. Onde ficava um dos barracos da família de Nelson Santos, uma casa de madeira foi edificada. “Lembra como era? Olha como ficou!”, diz, gabando-se do feito. As obras também estavam a todo o vapor no Assentamento Urbano Sustentável Santa Efigênia. Além de novos casebres, o terreno contava com

mais pessoas do que planejado. “Eram para ser 60 famílias, mas já chagamos a 70. A cada dia, aparecem novas. Aceito-as porque me corta o coração ver que essa gente não tem lugar para morar.”, explica Paulinho Moradia, presidente da ocupação. “Não posso dizer não. O ser humano tem direito à moradia”, repetia. “Tem direito à moradia.”

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A CURA PARA A SAÚDE PÚBLICA TEXTO E FOTOS KYANE SUTELO, CARLOS REDEL E WAGNER MIRANDA

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Quarta-feira, 8h30. Um car-

ro deixa o Hospital Conceição levando um médico, uma enfermeira, uma técnica em enfermagem, medicamentos e curativos. O destino é a vila Mário Quintana, na Zona Norte de Porto Alegre. Ao sair da instituição de saúde, a equipe se encaminha até uma das residências da vila. A rua, desnivelada e de terra batida, dificulta o acesso do carro, que patina diversas vezes e fica, por mais de cinco minutos, preso em uma esquina. O paciente é um homem de 43 anos com câncer de pulmão. Seu pai, um senhor idoso já acostumado com as visitas, recebe todos com um sorriso no rosto. O filho, mesmo com o tratamento recebido, já não tem chances de se recuperar.

As visitas e os cuidados dos profissionais farão com que, pelo menos, o restante da sua vida seja mais digna e se estenda pelo maior tempo possível. Os medicamentos são deixados pela equipe, enquanto a enfermeira Diane de Oliveira Machado faz novos curativos. A profissional, que trabalha há 4 anos no hospital, está na metade deste tempo atuando no atendimento domiciliar. Com sorriso no rosto e demonstrando atenção ao conversar com os pacientes, Diane reforça na prática sua opinião sobre a importância deste trabalho. “Nos faz repensar nosso papel como cidadãos, sobre o que podemos fazer para contribuir com essas realidades”, enfatiza a enfermeira.

Junto a Diane, o médico Sati Jaber Mahmud, coordenador do programa, e a técnica em Enfermagem Inara Hock Gorniski, formam uma das quatro equipes que atuam no Grupo Hospitalar Conceição (GHC). No total, cerca de 110 pacientes são tratados todos os meses pelos profissionais. Uma média de 60 visitas são feitas semanalmente. Eles são responsáveis pelo atendimento em toda Zona Norte da capital, o que abrange uma área de 400 mil habitantes. Para receber o programa de visitas domiciliares, que atende pelo nome “Melhor em Casa”, o paciente passa por uma avaliação no hospital. Se a situação dele permitir que fique em casa, recebendo uma vez por semana atendimen-

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to médico, ele é transferido para sua própria residência. Um familiar fica encarregado de ser o cuidador, recebendo orientações dos médicos e ficando responsável pelo tratamento menos complexo ao paciente. Todo medicamento, curativos e até mesmo o alimento são fornecidos pelo hospital. Empréstimo de equipamentos, como macas, também ficam por conta do Sistema Único de Saúde (SUS). No Conceição, o Programa de Atendimento Domiciliar (PAD) existe há 10 anos. Antes da criação do Melhor em Casa pelo governo federal, em 2011, a atividade ficava por conta do próprio hospital. Com menos recursos, o trabalho era mais difícil, segundo Sati. Mesmo que os profissionais – no total, 22 pessoas trabalham no setor – sejam contratados pelo Conceição, eles respondem ao gestor municipal, que repassa a verba vinda da União. “Com o Melhor em Casa”, afirma Sati, calculando o tempo de internação médio dos pacientes, “1.500 leitos são liberados mensalmente no hospital.” “Às vezes, dependendo do quadro do paciente, a situação piora no hospital, pois ele não recebe tanta atenção quanto em casa”, explica o médico. Para ele, a satisfação, tanto do paciente quanto da família, é total. O valor do atendimento domiciliar também é um fator importante. De acordo com o médico, o custo da internação é de menos de um quarto em relação que à hospitalar. “O dia do paciente custa de R$ 600 e R$ 900 no hospital. Em casa, o valor médio é de R$ 180 diários.” Mas a estrutura oferecida pelo hospital ainda é atrativa para a qualidade dos tratamentos. Na segunda casa visitada pelo Melhor em Casa, a situação é precária. Na vila Mário Quintana, a equipe entra por uma viela com barro e madeiras para facilitar a travessia, em um aglomerado de casas humildes. Ao chegar à casa do paciente, de 46 anos e que sofre de câncer na laringe, eles começa a prestar um atendimen-

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Não vejo a hora de essas coisas (tumores no pescoço) saírem daqui, para poder ter a minha vida normal de volta Paciente terminal do Melhor em Casa

to duplo: de saúde e social, mostrando preocupação com a entrega das cestas básicas e com a educação das crianças – são seis, no total. A família estava com falta de medicamentos para cuidar de seu patriarca, e as crianças não estavam frequentando a escola. Motivo: o bairro estava com toque de recolher por conta de uma guerra entre duas gangues. A esposa é a cuidadora; cães e gatos ficam ao redor do paciente e a higiene do local não é a ideal para alguém com uma traqueostomia. Os profissionais fazem os curativos, avaliam o estoque de remédios e deixam novos mantimentos ao doente. Enquanto isso, o paciente se mostra inquieto com os tumores. “Não vejo a hora dessas coisas saírem daqui para poder ter a minha vida de volta.” Apesar da esperança do paciente, voltar a sua vida normal, mesmo com os cuidados médicos, é algo que não vai acontecer: a doença já não tem como regredir.


Ao chegar ao terceiro domicílio, a situação é diferente: uma localidade melhor e uma boa estrutura são aliadas para a recuperação do doente. Quase não precisando mais do auxílio dos médicos do programa, o homem de 34 anos levou quatro tiros em uma tentativa de assalto, resultando uma paraplegia. Mesmo sem poder recuperar mais os movimentos, a alegria contagia pela casa. A vida do paciente, aos poucos, se direciona para uma possível normalidade (ele estava de saída na hora que a equipe chegou). A ESTRATÉGIA POR TRÁS DO ATENDIMENTO A aposta em programas de atendimento domiciliar não é só uma questão de custo. De acordo com uma pesquisa da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, cada dia de hospitalização corresponde a 1% no aumento do risco de infecção por bactérias multirresisten-

tes. Esse é o quarto maior motivo de mortes no mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, a taxa de mortalidade por infecções é de 15%, conforme dados do Ministério da Saúde. “Dispositivos como cateter venoso ou sonda aumentam o risco de infecção quando utilizados dentro do hospital”, explica o médico Fabiano Ramos, chefe do setor de infectologia do Hospital São Lucas, da PUCRS. “Em casa, mesmo que sejam necessários esses mesmos equipamentos, a possibilidade de infecção é muito menor.” Conforme explica o especialista, isto ocorre porque o uso excessivo de antibióticos nas instituições de saúde promove o desenvolvimento de novas bactérias e mutações nas existentes, tornando-as mais resistentes a tratamentos. No atendimento em casa, o risco de infecções envolve bactérias conhecidas da medicina, de fácil reversão. A visita dos médicos em casa é provi-

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A CURA PARA A SAÚDE PÚBLICA

dencial na situação da população local. Com 1,4 milhão de habitantes, Porto Alegre possui 7.230 leitos hospitalares, segundo dados de 2013 da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE) – aproximadamente cinco leitos para cada mil habitantes, dentro do número considerado mínimo pela OMS. Contudo, há uma grande demanda por parte de moradores de outras cidades do Rio Grande do Sul, o que mantém a taxa de ocupação alta. Nas principais emergências da capital gaúcha, o número de leitos chega no máximo a 64, como é o caso do Hospital Nossa Senhora da Conceição. Porém, frequentemente a ocupação do espaço é de mais de cem pessoas, impedindo uma atenção integral ao paciente. Em países como Japão e Alemanha, por exemplo, a média é de 13,7 e 8,2 leitos para mil habitantes, respectivamente. A disponibilidade de leitos no Sistema Único de Saúde brasileiro tem sido um tema muito debatido e questionado. Atualmente, o número de leitos disponíveis na rede pública e conveniada do Brasil não chega a 350 mil. Em 2010, eram quase 360 mil. No entanto, para o Ministério da Saúde, isso não representa retrocesso. O órgão utiliza estudos da OMS para atestar que alternativas à internação hospitalar são tendência pelo mundo. No Reino Unido, considerado referência para o SUS, houve uma redução de 26% nos leitos hospitalares entre 2003 e 2012. Por isso, o Ministério da Saúde defende a não-utilização de uma referência fixa de quantidade de leitos pelo número de habitantes. EXISTE CURA PARA A SAÚDE PÚBLICA? O número de médicos também é ponto preocupante na saúde pública. No Rio Grande do Sul, são 2,37 profissionais para cada mil habitantes, segundo dados do último Indicador e Dados Básicos para a Saúde, do MS, divulgado em 2012 e reforçado pelo estudo Demografia

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Médica no Brasil, do Conselho Federal de Medicina, em 2013. Ainda conforme o último estudo, o Rio Grande do Sul é o quarto com maior número de médicos do país, atrás apenas de Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Para o Ministério da Saúde, apesar do déficit, o desenvolvimento do setor é evidente no quesito qualidade. Um exemplo é o sistema de saúde mental, que teve a criação de mais de 2 mil Centros de Atenção Psicossocial no país. Outra melhoria foi o atendimento a domicílio, proporcionado a aproximadamente 11 mil pessoas em todo o Brasil pelo Melhor em Casa. Além disto, inclusão social e outras medidas são consideradas pelo órgão as principais responsáveis pelo desafogamento das instituições de saúde. O atendimento domiciliar, em específico, pode melhorar não só a realidade atribulada dos hospitais e a saúde do paciente: está ligada também à sua vida prática. Os problemas da rotina já começam ao sair de casa. O transporte público de Porto Alegre tem qualidade questionável, considerando-se que menos de 30% da frota possui ar-condicionado. Além disso, o gasto para ir e voltar é de aproximadamente R$ 6,00. Assim, a possibilidade de receber cuidados em


casa torna-se mais atraente. A preservação do tempo disponível à rotina da casa e família também são considerados importantes. Para a psicóloga Tatiane Baggio, do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o atendimento em casa é importante se houver equipamentos adequados – e, principalmente, o acolhimento familiar. “No hospital, a pessoa fica longe de suas coisas. Isso também prejudica, depois de algum tempo, o psicológico.” Porém, a especialista destaca que o home care também pode trazer problemas, como a dor ou a depressão, tendo que se avaliar a especificidade de cada caso. “Ele vai voltar para sua rotina. No entanto, tem de se acostumar a não conseguir fazer as coisas sozinho, como tomar banho ou andar. Isto, às vezes, resulta num quadro de negação.” Outras dificuldades de se prestar atendimento médico longe do ambiente hospitalar são a falta de estrutura e equipamentos presentes nas instituições, além das rotinas e as regras existentes nos hospitais que não fazem parte do cotidiano de um paciente internado em casa. Em suas visitas, os profissionais elaboram planilhas com os horários dos medicamentos e tentam adequar o ambiente o máximo possível. Ainda assim, eles não têm total controle da rotina do paciente. “O que podemos fazer é orientar e dar recomendações, mas na casa do paciente, quem manda são ele e a família”, conta a enfermeira Diane. Na América Latina, América Central e México, há experiências interessantes nesse sentido. Um exemplo são as visitas médicas às residências de idosos, realizadas em Montevidéu, no Uruguai, para manter sua independência por mais tempo. Porém, essas iniciativas têm poucas políticas específicas para a Atenção Domiciliar no nível federal, sendo ligadas normalmente a instituições privadas hospitalares. Os dados são do estudo “Experiências de atenção domiciliar em saúde no mundo: lições para o caso bra-

O que podemos fazer é orientar e dar recomendações, mas na casa do paciente quem manda é ele e a família. Diane de Oliveira Machado, enfermeira

sileiro”, de Clarissa Terenzi Seixas, mestre em Enfermagem pela Universidade Federal de Minas Gerais, Caroline Gomes de Souza, estudante do curso de Gestão de Serviços de Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de Kênia Lara Silva e Roseni Rosângela de Sena, ambas doutoras em Enfermagem e professoras da UFMG. Ainda segundo a pesquisa, na maior parte dos países europeus e no Canadá, a situação é diferente. O investimento público é maior, o que possibilita uma distinção entre alguns tipos de serviços da área – internação domiciliar, cuidados paliativos, cuidados de enfermagem em domicílio e serviços de assistência social. Outra questão é a articulação entre serviços de atendimento domiciliar e de base comunitária, que, no Canadá é incentivada por meio de programas para pessoas com Alzheimer, entregas de refeições à domicílio e o programa de visitas amigáveis. No Brasil, as Unidades de Pronto Atendimento (UPA), que fazem parte da Política Nacional de Urgência e Emergência, lançada pelo Ministério da Saúde em 2003, são estruturas novas voltadas às comunidades. Uma vez que as pessoas recebem o primeiro atendimento no espaço, só são encaminhadas para os hospitais em caso de maior necessidade. Assim, desafogam o sistema hospitalar. As UPAs funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana. Na estrutura do local, raio-X, eletrocardiografia, pediatria, laboratório de exames e leitos de observação facilitam na resolução de 97% dos casos, segundo o Ministério da Saúde. O sistema pode ser dividido em três tipos: I, II, III. Variam conforme a capacidade, de 5 a 20 leitos de observação, e a população da região, entre 50 e 300 mil habitantes. PRIMEIROS PASSOS DO MAIS MÉDICOS O programa Mais Médicos, do Governo Federal, completou em outubro um

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MEDICINA

A CURA PARA A SAÚDE PÚBLICA

ano de implementação como lei definitiva. A medida surgiu com o propósito de trazer profissionais de outros países para atender nos postos de saúde das periferias. Apesar do curso de medicina ainda ser o mais procurado entre as carreiras universitárias, segundo dados do IPEA de 2013, essas unidades sofriam constantemente com a falta de atendimento por escassez de médicos. Para sanar esses problemas, 14 mil profissionais de saúde estrangeiros foram dispostos por todo o país. Apenas no Rio Grande do Sul, atualmente são 1.081, atuando em 369 municípios. Conforme o Ministério da Saúde, o auxílio desses médicos já reduziu em 20% o número de encaminhamentos para hospitais. O Melhor em Casa, por exemplo, é uma medida do Mais Médicos. Além da iniciativa, a criação de 39 novos cursos de medicina em 11 estados brasileiros também integra o programa. Quatro deles serão ministrados no RS, nos municípios de Erechim, Ijuí, Novo Hamburgo e São Leopoldo. Desde sua criação, contudo, o programa sofre duras contestações – vindas, principalmente, de médicos e conselhos regionais de medicina. A principal reivindicação do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) diz respeito à política de condução do programa. Para o presidente da entidade, Fernando Weber Matos – que faz questão de enfatizar no início da entrevista a posição favorável do Conselho frente ao programa –, os médicos estrangeiros deveriam ser submetidos ao exame nacional de revalidação de diplomas, algo que não acontece atualmente. “O Cremers nunca foi contra o Mais Médicos nem à vinda de médicos estrangeiros. Apenas não concordamos com a maneira como essa política foi conduzida”, diz Matos. “Os participantes do programa não comprovam sua capacitação através do Revalida, exame elaborado pelo próprio Ministério da Educação. Por isso, não

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temos garantia de que realmente sejam médicos”. No entanto, o Ministério da Saúde rebate a contestação do Conselho. “É importante esclarecer que profissionais do Programa têm autorização de atuação específica para a localidade para onde foram encaminhados e apenas na Atenção Básica”, destaca o diretor do departamento de planejamento e regulação da provisão de profissionais de saúde do Ministério da Saúde, Felipe Proenço. “Caso houvesse o exame de revalidação de diploma, os profissionais aprovados estariam autorizados a exercer a medicina livremente”, acrescenta. “Ou seja, concorreriam com os profissionais brasileiros no mercado nacional e poderiam se fixar em qualquer região do país e não nos locais de maior necessidade.” Além da revalidação do diploma, o Cremers apresenta outros argumentos contrários à política do Mais Médicos.

Para o Conselho, os profissionais brasileiros nunca receberam oportunidade de interiorização – com salário de dez mil reais, alimentação, moradia e transporte, elementos que são oferecidos aos intercambistas. De outro lado, Proenço afirma que, antes mesmo de ser lançado, o programa passou por uma fase de debate, na qual as diversas esferas de governo, entidades profissionais e sociedade civil puderam trocar ideias e fazer sugestões. “Houve contribuição a consolidação do modelo definitivo a ser adotado.” E conclui destacando o atual modelo que, segundo ele, vem funcionando de forma eficaz, possuindo a aprovação da população brasileira. Recentemente, o Ministério da Saúde divulgou uma pesquisa de satisfação realizada pela UFMG e pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe). O estudo mostra que as


O Programa Mais Médicos abrange apenas a atenção básica. A medicina preventiva é importante, sem dúvida, mas seus resultados só aparecem depois de 15 ou 20 anos. Felipe Proenço, do Ministério da Saúde

questões relacionadas ao atendimento foram as que mais evoluíram na opinião dos entrevistados: 86% dizem que a qualidade da assistência melhorou após a chegada dos profissionais do programa. Mas ao que parece, ainda há de melhorar. Questionado sobre o que pensava de um dos desígnios do Mais Médicos, o de melhorar o atendimento no Sistema Único de Saúde, o presidente do Cremers expõe a precariedade do atual SUS. “O Programa Mais Médicos abrange apenas a atenção básica. A medicina preventiva é importante, sem dúvida, mas seus resultados só aparecem depois de 15 ou 20 anos”, diz. “Os doentes que sofrem hoje ainda têm dificuldades de acesso ao SUS, ainda levam anos para conseguir exames e cirurgias, situação que nem milhares de intercambistas podem resolver. O que o SUS precisa é de financiamento e gerenciamento adequados.” Mesmo com as ressalvas acerca do Mais Médicos, o Cremers afirma que jamais tomará medidas contrárias ao programa. “As ações feitas até agora somente buscaram o cumprimento da lei – aplicação do Revalida, apresentação de documentos adequados, exame de proficiência na Língua Portuguesa, visto que uma das principais queixas dos pacientes é a dificuldade de comunicação com os intercambistas”, explica Matos. Já para o Ministério da Saúde, o Mais Médicos pode ser considerado o início de uma transformação importante nas condições de saúde e de vida da população brasileira, em especial às pessoas que não contavam com uma equipe completa na Unidade de Saúde próxima

dos locais em que vivem. “A aprovação por parte das pessoas que estão sendo beneficiadas pelo programa nos faz acreditar que estamos no caminho certo e que os resultados positivos do Mais Médicos ficarão ainda mais evidentes com o andamento e a consolidação do programa”, finaliza. Alheia à troca de farpas entre os conselhos e o Ministério da Saúde, a equipe do Melhor em Casa chega agora ao último atendimento do dia. Na visita, os profissionais vão até a frente da casa do paciente. Antes de entrarem, avistam, duas casas adiante, um senhor sentado em uma cadeira de rodas, que começa acenar e chamá-los. Eles, com um sorriso no rosto, se direcionam até o homem, abraçam e conversam, trocando carinhos e elogios. Era um ex-paciente que hoje já não precisa de cuidados dos médicos. Mas sua gratidão se manteve. De volta à visita ao último enfermo da manhã, a equipe adentra o pátio como se estivessem visitando um parente. Todos vão se ajeitando na casa do homem, com diabetes, que precisa de cuidados para sua perna. A intimidade é algo que se destaca nos contatos. Entre curativos e avaliações, assuntos variados são tratados, como política e família. Ao fim de mais um dia de trabalho, o balanço é positivo. Afinal, em meio as divergências de governo e entidades organizadas sobre a condução da saúde pública, há quem tire proveito das iniciativas criadas para compartilhar o melhor de si com o próximo. E, no caos atual do setor, talvez a solidariedade seja o melhor paliativo.

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comportamento#71

FÉ O PODER DA

E SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES POR CAMILA AROSI, EVERTON CORDEIRO E LILIANE PEREIRA DIAGRAMAÇÃO JORDANA PASTRO FOTOS CAMILA AROSI

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COMPORTAMENTO

O PODER DA FÉ E SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES

E

consciência. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Psicologia Transpessoal, Paulo Cogo afirma que esse caso é um exemplo de uma religião absolutamente dogmática. Existe uma interpretação do texto sagrado ao pé da letra em que o sangue tem um significado sagrado. Para uma testemunha de Jeová não permitir a transfusão sanguínea, é preciso assinar um documento nesse sentido. Mas para o médico, é um dilema ético, porque seu papel é ajudar o paciente a se curar. Nos casos em que há intervenção judicial, a criança que recebeu a transfusão sanguínea pode ser excluída da família e banida da comunidade.

Em setembro de

2013, médicos do Hospital Nossa Senhora da Conceição, na cidade de Tubarão (SC), precisaram de uma liminar da justiça para realizar a transfusão de sangue de uma criança recém-nascida. O bebê nasceu com apenas 900 gramas. Sem o procedimento, suas chances de sobreviver são mínimas. O motivo do pedido da liminar pelos médicos é que a religião dos pais não permite o procedimento. Para os testemunhas de Jeová, religião seguida pela família, o sangue é símbolo da vida e, por isso, não é permitido o uso em recursos médicos de transfusão ou armazenamento. O recurso judicial foi autorizado com base no artigo 5° da constituição, que garante a todos o direito à vida e à saúde com prioridade sobre outros direitos, incluindo a liberdade de crença religiosa. Israel Medeiros da Rocha, 34 anos, é das Testemunhas de Jeová desde a adolescência. Há oito anos, Israel é um dos principais líderes da igreja que tem uma de suas sedes localizada no bairro Medianeira em Porto Alegre. Ele explica que, conforme a Bíblia, é proibida a ingestão de qualquer espécie de sangue. E que a ingestão de sangue não se dá apenas pela boca. A transfusão de sangue é também, para eles, uma forma de ingeri-lo. Por isso, ele defende que as Testemunhas de Jeová não façam sob hipótese alguma esse procedimento. No entanto, relata que a Bíblia também afirma que todos têm o livre arbítrio e que cada um deve seguir a sua própria

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Há oito anos Israel é um dos principais líderes do movimento que tem uma de suas sedes localizada no bairro Medianeira em Porto Alegre.

A CURA PELA FÉ Nilton Deoclydes, 63 anos, acredita que a cura de uma infecção grave causada por uma apendicite há 20 anos veio após receber uma visita religiosa no hospital em que estava internado. No centro espírita frequentado por ele, todos os dias mais de 200 pessoas procuram por ajuda para a cura de enfermidades. De acordo com a pesquisa “Religião e Saúde: Um estudo sobre as representações do fielcarismático sobre os processos de recuperação de enfermidades nos grupos de oração da RCC em Maringá (PR)”, desenvolvido por Darci Aparecida Martins Corrêa. O ser humano da sociedade contemporânea não é mais capaz de conviver com o sofrimento e as dores advindas dos padrões de sua cultura. Ele é fragmentado e tutelado por uma vertente médico-científica-industrial, que vai se constituir na base sobre a qual se sustenta o discurso da doença, e não mais o da saúde, senão como uma condição de exorcizar da dor. A religião, por outro lado, levar uma pessoa à busca da recuperação de suas enfermidades por meio da aproximação com um Deus mágico, poderoso e divino, que transcende o humano – ou seja, a recuperação religiosa pelo poder da palavra


ou da intervenção divina. O pesquisador Rui de Souza Josgrilberg entrevistou pessoas que obtiveram recuperação de enfermidades enquanto frequentavam grupos de oração. O resultado, publicado no artigo “A Concepção de símbolo e religião em Freud, Cassirer e Tillich”, indica que participarem dos grupos de oração da RCC encontraram, no momento da oração e da pregação da palavra, uma esperança que ajudava a suprir suas necessidades. O trabalho demonstrou que existe um poder na crença e na fé de promover curas pela força que exercem sobre o psiquismo humano. A PSICANÁLISE EM RELAÇÃO À FÉ Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Psicologia Transpessoal, Paulo Cogo afirma que a psicanálise vê a religião como uma ilusão. Em “O Futuro de uma ilusão”, Sigmund Freud afirma que o papel da religião na sociedade é fazer com que o indivíduo não se deparasse com o vazio de sentimentos. Assim, a religião completaria o ser humano. Muitas vezes, parece que o discurso

cientificista se opõe à crença religiosa. Na verdade, a oposição é contra uma religião dogmática, que acredita numa interpretação única e absoluta de qualquer texto sagrado. A psicologia entende que todo texto sagrado é simbólico, histórico, interpretativo e aberto. Ele tem significado em um determinado contexto e uma determinada época, segundo Cogo. No estudo “A Associação entre Vida Religiosa e Saúde: Uma Breve Revisão de Estudos Quantitativos”, o médico Eymard Mourão Vasconcelos faz um compilado de pesquisas que indicam uma relação entre a saúde e a participação de rituais religiosos. Quase todas as religiões ditam comportamentos com relação à saúde, à doença e à morte. Para as pessoas que seguem uma religião, muitas das doutrinas ou ensinamentos de sua fé oferecem orientação moral e prática com relação a como promover, conservar ou recuperar a saúde ou o bem-estar físico e emocional. O estudo mostra que as pessoas que relatam uma identidade religiosa têm mais probabilidade de seguir as regras da sua religião do que as pessoas que relatam não ter nenhuma afiliação religiosa. E isso inclui a adoção de hábitos saudáveis.

A oposição é contra uma religião dogmática, que acredita numa interpretação única e absoluta de qual­quer texto sagrado. A FÉ NA HISTÓRIA Existem teorias ligadas aos antigos filósofos que relatem a respeito da fé na sociedade, na religião e na política. Um dos pensadores mais agudos sobre essa gama de influências da fé na sociedade e na história foi Agostino de Hipona (354-430 d.C.). Sobre isso, ele escreveu amplamente, em especial no clássico “A cidade de Deus”. O lugar do culto, da religião e de suas práticas na sociedade e política também já foi discutido por Platão (em especial nos diálogos “República” e “Eutífron”) e por Aristóteles (em especial em “A Política”). Para o professor Roberto Hofmeister Pich, Bacharel em Filosofia e Teologia, esses autores viam como natural, e mesmo positivo, que os líderes políticos tivessem piedade religiosa. Agostinho considerava fundamental para a civilização ocidental a chegada do cristianismo, vencendo as religiões antigas e estabelecendo, com os imperadores Constantino e, depois, Teodósio, a era da verdadeira religião, que deveria, sim, ser defendida também pelas autoridades políticas. O cristianis-

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COMPORTAMENTO

O PODER DA FÉ E SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES

O Brasil é um estado laico, e isso consta na sua constituição. No entanto, a influência da religião sobre indivíduos é profunda.

mo, a partir do século IV (381), torna-se religião oficial do império romano. Antes disso, havia experimentado tanto a clandestinidade quanto a perseguição. Historicamente, convicções religiosas tiveram influência profunda sobre indivíduos e coletividades. Mas a questão que fica é: até que ponto a fé concorre com outros aspectos da existência de indivíduos e coletividades? Para conseguir essa resposta, basta lembrar que decisões históricas tiveram motivação na fé, como a oficialização do cristianismo no Império Romano (por Constantino I), as Cruzadas (séculos 12-14) e as Guerras

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Religiosas, nos séculos 16-17, entre países católicos e protestantes na Europa. Os fenômenos de separação entre fé religiosa e vida política são recentes. Basicamente, é uma proposta do Iluminismo e prosperou lentamente na França pós-revolução (pós 1789). A partir dali, a semente da liberdade religiosa e das constituições com características laicas estaria posta. Em uma explanação ampla sobre a influência da fé na sociedade, Rodrigo Toniol, antropólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da UFRGS, afirma que questões médicas


e matrimoniais fazem parte da política brasileira há pouco mais de 15 anos. Toniol relata que, no início da década de 1990, quando nossa política ainda estava se recompondo da Ditadura Militar, essas questões não tinham espaço no Congresso Nacional. Em sua visão, o que ocorreu nos últimos dez anos com muita força é que essas questões, por conta do trabalho das organizações não governamentais, dos grupos sociais, das entidades LGBTs e das que apoiam o direito reprodutivo das mulheres, por exemplo, começaram a pautar esses temas e levá-los com força para Brasília. “Ocorre que alguns políticos passaram a fazer desses assuntos uma plataforma de governo e de atuação política”, diz o pesquisador. “Então, surgiu também o outro lado, tanto a plataforma de atuação política que se coloca à disposição desses temas quanto aqueles que usam a fé para em nome da família, da religião ou dos princípios cristãos para ir contra essas questões.” A FÉ NAS DECISÕES POLÍTICAS A influência da fé nas decisões políticas é profunda. Mesmo que autoridades políticas não professem culto religioso específico, levam em consideração as opiniões religiosas das coletividades. O Brasil é um estado laico, e isso consta na sua constituição. No entanto, a influência da religião sobre indivíduos é profunda. Se levarmos em consideração questões relacionadas ao aborto, casamento gay, eutanásia, procedimentos médicos, as religiões têm divergência entre si – católicos são mais conservadores sobre esses pontos, protestantes se mostram mais liberais. Em um país de maioria católica e de expansão do protestantismo conservador, há certa tendência à resistência quanto à legalidade das práticas acima. A união civil entre pessoas do mesmo sexo já foi aceita pela justiça. Os demais pontos, contudo, exigem alterações mais complexas na legislação. “Não creio que, nos próximos anos, as

decisões políticas deixarão de sofrer o impacto de líderes e políticos religiosos”, diz Toniol. VOTOS MOTIVADOS POR RAZÕES RELIGIOSAS As eleições de 2014 mostraram que a religião está, cada vez mais, entrando com força na política nacional: o número de candidatos que associam a fé a seu nome cresceu 54% em relação a 2010. E a capacidade de eleger um candidato depende diretamente do nível de interferência e do número de adeptos de um culto. O pesquisador Rodrigo Toniol explica que a igreja Universal do reino de Deus consegue sistematicamente eleger representantes indicados por ela. Isso está relacionado com a própria estrutura de organização da igreja, já que há uma hierarquização com bispos, pastores e obreiros. Então, um candidato indicado pela igreja tem a visibilidade de todas as outras unidades dessa mesma linha. Já a Assembleia de Deus, que possui uma das maiores populações entre os pentecostais, consegue eleger candidatos com menor facilidade, pois sua estrutura não é tão hierárquica a ponto de aglomerar todas as igrejas. Ela funciona por células, e não existe um candidato que represente todas as unidades dessa igreja. Ainda que a Constituição Federal declare o Brasil um país laico, Toniol explica que a religião não precisa ser deixada de lado na política. O próprio direito à liberdade religiosa é uma abordagem liberal da constituição sobre questões da religiosidade. O professor Roberto Hofmeister acrescenta ainda que, hoje, a influência da religiosidade sobre a política e a população pode ser considerada pequena. “Creio que é possível dizer que a religião já exerceu influência mais direta sobre os indivíduos, em particular em nossa sociedade”, afirma ele.

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76# A VIDA POR TRÁS DA

ARTE DE RUA POR FRANCINE SILVEIRA FOTO LETÍCIA BONATO

É 76# UNIVERSUS _ 2 _ 2014

É ali, sentado em frente

ao Rua da Praia Shopping, que Silvio ganha a vida. Foi desenhando rostos e paisagens que o pintor de 56 anos fez sua história nas ruas do centro de Porto Alegre. Silvio desenha desde 1985, mas, muita oportunidade ou interesse de sua parte, Silvio nunca expôs suas obras em outro lugar. Ainda que o dinheiro que ganhe não seja muito, ele se mostra surpreendentemente alegre e entusiasmado. E está sempre ansioso pelas datas festivas, quando aumentam os pedidos de caricaturas, paisagens, entre outros desenhos. Silvo diz que, nos dias de baixa procura, fica pintando quadros para deixar na reserva – porque sempre pode aparecer alguém que queira comprar. E é ai que a criatividade do artista se destaca. Mas criatividade não é tudo: é preciso uma pitada de sorte para chamar a atenção do público – sempre apressado – que passa pelo centro. Assim como Silvio, muitos artistas se abrigam nas ruas de Porto Alegre vendendo sua arte. Seja de forma musical, teatral ou cultural. Muitos deles sobrevivem desse trabalho e escolhem a rua por não ter oportunidade de mostrar sua arte em outros espaços culturais da cidade. A arte de rua teve mais visibilidade depois que a lei de número 11.586, de março de 2014, que possibilitou apresentações em locais públicos ou logradouros, foi sancionada pelo prefeito da capital gaúcha. Daí em diante, as apre-

O artista precisa ter além de sorte, criatividade para chamar atenção do público apressado que passa pelo centro.

sentações de folclore, dança, teatro, capoeira e estátuas vivas em troca de doações espontâneas do público ficaram totalmente liberadas. A ECONOMIA DA RUA O centro de Porto Alegre não abriga somente artistas. Flanelinhas, panfleteiros recicladores de lixo também têm a rua como local de trabalho. Em 2009, o Ministério do Trabalho e a Brigada Militar reconheceram a profissão de flanelinha. A ideia inicial era regularizar o trabalho dessas pessoas para eventos culturais e esportivos na cidade. Com uniforme azul e amarelo, camisa bran-


economia#77 Quando eu sai da minha cidade, achei que conseguiria algo melhor. Mas quando a gente precisa, temos que nos agarrar na primeira oportunidade que encontramos. permitiu que ele conseguisse sustentar dignamente sua família. “Quando eu sai da minha cidade, achei que conseguiria algo melhor”, lembra o flanelinha. “Mas quando a gente precisa, temos que nos

agarrar na primeira oportunidade que encontramos.” UM CONTINGENTE DE DESASSISTIDOS

Foto Letícia Bonato

ca e gravata preta, os funcionários se diferenciam diante dos demais flanelinhas que ainda trabalham ilegalmente na capital. Foi nessa fase de mudança e reconhecimento da profissão que Manuel Garcia, de 32 anos, chegou a Porto Alegre. Vindo de Soledade, no interior do Rio Grande do Sul, Manuel buscava as oportunidades que não encontrava em sua cidade natal. Na capital gaúcha, também não encontrou muita sorte. Por ter escolaridade baixa, as chances de emprego sempre foram muito pequenas. Por isso, resolveu trabalhar com o que podia. Há cinco anos, adotou a profissão de flanelinha no Centro da cidade. Depois da gravidez de sua esposa, Vivian, as coisas ficaram ainda mais difíceis. E foi esse trabalho que

Em 2011, a Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (Fasc) divulgou dados de uma pesquisa sobre a população que vive em situação de rua na cidade. Na época, 1.347 pessoas moravam nas ruas. Quase 13% desse total eram formados por jovens com idades entre 18 e 24 anos, a maioria com ensino médio incompleto. Por ser um local movimentado, o Centro é o lugar mais visado pelos moradores de rua. O número não é pequeno, e levou a prefeitura de Porto Alegre, em julho de 2014, a aderir ao programa de política nacional para a população em situação de rua. O termo abrange os principais temas como violência contra moradores de rua, moradia e desemprego, além de garantir a formação de novos profissionais. No início do ano, a prefeitura já havia investido 6,5 milhões de reais em espaços físicos de acolhimento para pessoas em situação de rua. É difícil avaliar o impacto dessas medidas. Por isso, a FASC vem trabalhando em um novo censo, que irá dizer se houve evolução na situação dos moradores de rua.

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EMAGRECER

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vida#79

COM SAÚDE

É POSSÍVEL

POR ALESSANDRA PINHEIRO E MARINA FREITAS IMAGENS FREEIMAGES.COM

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VIDA

EMAGRECER COM SAÚDE É POSSÍVEL

D Logo vi que isso não era necessário, que eu estava bem e me gostava como eu era. Bruna Ribas, estudante

A busca da juventude é traduzida em elasticidade e mobilidade e o apagamento de traços envelhecedores Debora Elmann, professora de design de moda do Senac-RS

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Dieta

“seca-gordura”, detox, gluten-free e até do vinagre. O fato é que atualmente, estamos cercados por dietas malucas. Além das revistas femininas e de fitness abordarem constantemente o assunto, a disseminação da internet também colabora – e muito – na hora de procurar as mais esquisitas técnicas de emagrecimento. Para a nutricionista Joseline Silva Sturmer, a busca constante pelo corpo perfeito vem da cobrança da mídia e da própria sociedade. “Esses meios associam a felicidade a esse tipo de perfil. É uma busca eterna e, ao mesmo tempo, uma insatisfação geral com a imagem corporal do próprio indivíduo”, reflete a profissional. Aos que buscam constantemente a fórmula da dieta milagrosa, é melhor desistir: esta mágica não existe. “Não existe dieta milagrosa, assim como não existe alimento milagroso”, diz a nutricionista. O que existe é um conjunto de alimentos que ajudam na prevenção ou no tratamento de várias patologias.

hoje. Gregos e romanos já se dedicavam a impor limites alimentares, em prol de obter um corpo mais saudável. Na Grécia Antiga, o filósofo Hipócrates - considerado o “pai da medicina” - já passava suas orientações aos seus pacientes. Para ele, quem estivesse acima do peso deveria ingerir apenas uma refeição por dia, carregada de alimentos gordurosos e sem proteínas. Após sete dias de regime milagroso, Hipócrates indicava que eles começassem a vomitar a refeição do dia. As técnicas inusitadas continuaram a nos acompanhar conforme a nossa evolução. No século 19, tivemos o primeiro rascunho do que seria uma dieta regada à proteínas e poucos carboidratos, desenvolvido pelo advogado e também gastrônomo francês Jean Anthelme Brillat-Savarin. Além de receitar esta fórmula para os que queriam emagrecer, Jean ainda formulava a “dieta do engorda” para mulheres que gostariam de ganhar mais peso ou que tinham tendências à anorexia.

UM CASO MILENAR

O ESBOÇO DE UMA GERAÇÃO SAÚDE

Segundo Debora Elmann, professora de design de moda do Senac-RS, a beleza não é algo absoluto, mas tem assumido diversas faces segundo a cultura e o período histórico. “Quanto a beleza física, por exemplo, a do homem sempre foi ligada a força e a da mulher assume variantes da fertilidade, fragilidade, ingenuidade, sensualidade, conforme as expectativas sociais sobre ela na época”, analisa. Para Debora, o corpo feminino se libertou dos padrões da maternidade, porém adotou a juventude como um novo modelo de idealização. “A busca da juventude é traduzida em elasticidade e mobilidade (corpo magro e ágil) e o apagamento de traços envelhecedores, como manchas, rugas e flacidez”, aponta a professora os novos objetivos do padrão feminino. A utilização das dietas não vem de

Ainda segundo a nutricionista Joselaine, a nova geração está mais atenta a saúde, procurando saber mais sobre a melhor maneira de se alimentar corretamente. Para ela, com a ciência em evolução, a nutrição também vem crescendo lado a lado. “Esta forma de pensar acaba aproximando mais o significado de saúde e o saber se alimentar”, afirma. A constante presença de jovens em academias e escolas de dança promove um novo perfil a ser estudado. O professor de dança Anderson Zanini acredita que este comportamento seja muito positivo, já que é possível emagrecer através dessas duas opções. “A respeito da dança, é possível sim emagrecer praticando esta atividade. Em qualquer modalidade dela conseguiremos perder peso”, ressalta o professor. Atualmente, não existe uma técnica


preferida, porém Anderson aponta a zumba e o ballet como duas das alternativas mais procuradas nas escolas. Por ser uma atividade física com movimentos de dança e coreografias ritmadas, a zumba ajuda a perder mil calorias por aula. O ballet, além de trabalhar a musculatura e o alongamento do corpo, promove a coordenação motora e o equilíbrio do aluno que pratica. Robson Carvalho, personal trainer, conta que esta busca pelos exercícios físicos pode colaborar para a melhora da autoestima e para o aperfeiçoamento do condicionamento físico. “O exercício físico é um fator determinante para a qualidade de vida, melhora o humor dos praticantes, além de ser peça fundamental para a saúde do corpo e da mente”, declara o profissional. Aos que gostariam de começar a pra-

ticar mais estas atividades, Robson ressalta que quem é adepto a exercícios físicos, está colaborando para a prevenção de doenças e problemas futuros, do mesmo modo que está contribuindo para melhorar a sua força e longevidade. AUXILIO PROFISSIONAL E ACEITAÇÃO: ALGUNS DOS INGREDIENTES PARA O CORPO PERFEITO Bruna Ribas, 20 anos, nasceu em uma família um pouco acima do peso. Ainda criança, a estudante de pedagogia já apresentava sinais de que precisaria de cuidados alimentares. Levada pela mãe, aos 10 anos de idade, realizou a sua primeira consulta com um endocrinologista, devido a preocupação da responsável. “Nesta mesma época, minha avó e

TRÊS ATIVIDADES QUE IRÃO TE AJUDAR Zumba Esta modalidade da dança mistura quase todos os ritmos e pode

queimar até mil calorias em uma hora. O bom de tudo isso é que você nem precisa saber dançar para começar a praticar. Quem faz em Porto Alegre: Ciclos Academia Rua Riachuelo, 1335 - Centro Histórico, Porto Alegre / RS

Muay Thai A arte marcial tailandesa trabalha com a musculatura do corpo, deixando as regiões mais definidas e eliminando os quilos indesejados. O treino é bastante agitado e é indicado para quem quer melhorar o seu condicionamento físico e ganhar mais flexibilidade. Quem faz em Porto Alegre: Academia Kyokushin Rua São Manoel, 347 / Rio Branco - Porto Alegre / RS

Crossfit É um programa de treinamento de força e condicionamento ge-

ral, que se baseia em movimentos funcionais, feitos em alta intensidade. Tem o objetivo de aperfeiçoar todas as capacidades físicas com treinos disciplinares. Quem faz em Porto Alegre: Crossfit Poa Rua Euclides da cunha, 498, Partenon – Porto Alegre / RS

minha mãe já participavam de um grupo chamado Centro de Recuperação e Estudo da Obesidade, que tinha como objetivo a reeducação alimentar, alinhada a uma prática intensiva de exercícios”, afirma a estudante. Sem sucesso nas primeiras tentativas, a chegada da adolescência veio para auxiliar a universitária neste processo de cuidados com o peso. Para Bruna, era interessante começar a gostar de um corpo mais definido, porém a vontade ainda não era suficiente para buscar procedimentos saudáveis. “Comecei a fazer uso de outros métodos para emagrecer não muito legais, como o consumo de alguns remédios. Mas logo vi que isso não era necessário, que eu estava bem e me gostava como eu era”, confessa. A aceitação do próprio corpo foi fundamental. Bruna percebeu qual era o seu biotipo e começou a se dedicar a aperfeiçoar ele na medida certa. A estudante logo se matriculou em uma academia e começou um cuidado saudável com o próprio corpo. Os altos e baixos ainda a acompanharam por um bom tempo, mas a jovem afirma que atualmente aceita o seu corpo do jeito que é. “Faço pilates duas vezes por semana e, quando tenho tempo, eu e meu namorado caminhamos pela cidade. Não me importo muito em estar com o peso em que estou hoje em dia”, conta a estudante que afirma se gostar do jeito que é atualmente. Para ela, ser saudável não precisa de muito, apenas uma boa alimentação, alinhada a prática de exercícios diários. Um hábito saudável de se alimentar e a prática de atividades físicas regulares são caminhos já bastante conhecidos. Joselaine ainda sugere uma reeducação alimentar definitiva, optando por incluir alimentos saudáveis no dia a dia, não realizando apenas dietas a curto prazo. “Dessa forma conseguimos emagrecer sem o perigo de retornarmos a engordar”, sugere a nutricionista.

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esporte#83 TRANSFORMAÇÃO DOS ESTÁDIOS, SUPERVALORIZAÇÃO NA COMPRA DE ATLETAS, PREÇO ALTO DOS SALÁRIOS. SÃO MÚLTIPLOS OS FATORES QUE LEVARAM OS CLUBES A ELEVAREM O PREÇO DOS INGRESSOS – E A DEIXAR DE FORA DOS ESTÁDIOS A PARCELA MAIS POBRE DE SEUS TORCEDORES.

ZAÇÃO DO FUTEBOL POR ANDRE NEVES E JÉSSICA MALDONADO DIAGRAMAÇÃO JEAN LAZAROTTO IMAGENS FREEIMAGES.COM

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T

Essa mudança era necessária até para que o clube pudesse atrair investidores que fossem arcar com os custos da obra. Flávio Ordoque, diretor da vice-presidência de Comuni­cação Social do Inter

Em meados de

2014, período em que o mundo observou o Brasil com uma atenção inédita, os torcedores sentiram no bolso as consequências das reformas dos estádios, construção de arenas e das melhorias na infraestrutura ao redor desses espaços. O fenômeno, contudo, está longe de ser novo. Segundo estudo da Pluri Consultoria, empresa que trabalha com pesquisas e análises no cenário do futebol, o preço dos ingressos aumentou 300% nos últimos dez anos. O aumento do custo do futebol e estímulo à associação são algumas das justificativas dos clubes. Um dos maiores e mais conhecidos clássicos do futebol brasileiro sofreu uma inflação de mais de 1000% desde 1994 (veja mais na tabela ao lado). O aumento foi muito acima da inflação acumulada entre 1994 e 2013, de 333%. Somente entre 2009 e 2013, o preço do ingresso dobrou. O maior custo dos bilhetes se soma a outros gastos para quem vai aos jogos, do deslocamento ao consumo dentro do estádio. Para quem opta por ir de carro, o gasto com estacionamento varia de acordo com a proximidade do estádio. Na Arena do Grêmio, por exemplo, o custo varia de R$ 15 para quem para em pátios de residências distantes do estádio a R$ 50, para quem escolhe o local destinado pelo clube aos torcedores. Linhas de ônibus, que saem do centro de Porto Alegre deixam os torcedores em frente à Arena, além do metrô, para quem não se importa de caminhar um pouco, aliviam o bolso de quem prefere

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usar o transporte coletivo. Mas há ainda custos como a alimentação. Um refrigerante, por exemplo, não sai por menos de R$ 5 dentro ou nos arredores do estádio. A cerveja – sem álcool, é claro – custa em média R$ 8. Mas há quem discorde que esteja havendo uma elitização. Beto Carvalho, executivo de marketing do Grêmio Foot-­Ball Porto Alegrense, defende que “o termo elitização talvez pareça um pouco demasiado para denominar a inserção dos novos e modernos estádios no contexto do futebol brasileiro”. Para ele, a qualidade dos novos equipamentos e, sobretudo, a diversidade de opções de lugares no estádio estabelecem uma maior amplitude na oferta e diferentes custos-benefícios para os torcedores. Esse fenômeno pode ser exemplifica-

do pelas mudanças recentes nas estruturas dos dois principais clubes gaúchos, Grêmio e Internacional. Flávio Ordoque, diretor da vice-presidência de Comunicação Social do Inter, salienta que houve uma adequação à ao maior grau de exigência dos torcedores, que levaram os clubes a mudar seus parâmetros de qualidade. “Agora, o público que vai ao Beira-Rio está em um estádio sede da Copa do Mundo 2014, senta nas mesmas cadeiras usadas no Estádio Wembley (estádio nacional da Inglaterra), em um local coberto”, diz o dirigente. “Essa mudança era necessária até para que o clube pudesse atrair investidores que fossem arcar com os custos da obra.” Beto acrescenta que a composição de preços, em qualquer esfera mercadológica, está atrelada a diversos fatores. “No caso do futebol, os valores de

INFLAÇÃO DOS BILHETES DATA JOGO 13/03/1994 Flamengo x Fluminense 30/04/1995 Flamengo x Fluminense 10/02/2008 Flamengo x Fluminense 05/04/2009 Flamengo x Fluminense 31/01/2010 Flamengo x Fluminense 13/03/2011 Flamengo x Fluminense 11/03/2012 Flamengo x Fluminense 14/04/2013 Flamengo x Fluminense 08/02/2014 Flamengo x Fluminense *3000 cruzeiros reais

VALOR R$ 8,25* R$ 20 R$ 20 R$ 30 R$ 30 R$ 30 R$ 30 R$ 40 R$ 100

ESTÁDIO Maracanã Maracanã Maracanã Maracanã Maracanã Engenhão Engenhão Engenhão Maracanã


investimento no negócio e os custos operacionais dos novos estádios, certamente, impactam nesta composição”, afirma. “O preço é definido por quem vende, mas seu valor precisa necessariamente ser percebido por quem compra. É fundamental essa relação adequada de interesses para que haja sintonia entre oferta e demanda.” O ESVAZIAMENTO DOS ESTÁDIOS Segundo pesquisa da Revista Placar, a maior média de público do Campeonato Brasileiro de 2013 foi do Cruzeiro, campeão no ano passado. A raposa levou ao estádio uma média 28.830 torcedores por jogo, um número alto em comparação a média geral: 14.951. Parte da explicação está nas reformas realizadas nos estádios em 2013, véspera da Copa do Mundo. O Internacional, por exemplo, que disputou as partidas como mandante na cidade de Caxias do Sul, no estádio Centenário, bateu um recorde negativo: somente 6.580 torcedores. Com sua Arena recém inaugurada, o Grêmio levou aos jogos 21.243, quase quatro vezes mais que o rival. Em 1971, quando o Campeonato Brasileiro ganhou essa denominação, 20.360

torcedores foram aos estádios. Quarenta anos depois, em 2011, essa média caiu para 14.976, segundo o Futdados. E o preço das entradas pode estar no centro da explicação. Quando o Campeonato Brasileiro passou a ser disputado em pontos corridos, em 2004, o ingresso que custava R$ 9,10. Hoje, os valores não baixam muito dos R$ 45. Para Amir Somoggi, consultor de marketing e gestão esportiva, não há propriamente uma diminuição de público, mas uma mudança de perfil. Pelo contrário: a inauguração das arenas levou aos jogos pessoas que antes não frequentavam o estádio. “O público vem aumentando em 2014. Em 2013, tiveram times que tinham seus estádios fechados. Mas a redução do público não é absoluta: falando de série A, a média de público no início da década era menor do que a atual”, explica. Até a 21ª rodada da série A do Campeonato Brasileiro de 2014, a média de público era de 16 mil pagantes, um crescimento de 7,1% em comparação a 2013. No entanto, à despeito das estatísticas, muitos torcedores decidiram que os preços pagos não valem a pena. “Deixei de ir apenas por causa do custo dos ingressos. Claro que houve melhorias e que hoje me sinto mais confortável, mas

O preço, na minha opinião, está caro e por mais que tenha conforto. Eu sou e sempre serei fã do antigo Beira-Rio, onde parecia que a torcida, pelo seu apoio, era mesmo o 12° jogador do time. João Antônio Fagundes, torcedor

o custo é alto demais”, diz o gremista Giovani Gafforelli. “Com o dinheiro que gasto para assistir ao jogo no estádio, posso fazer um churrasco para toda minha família e assistir à mesma partida pela TV a cabo.” O colorado João Antônio Fagundes, que não frequenta o Beira-Rio desde 2009, tem uma opinião semelhante. “O preço, na minha opinião, está caro e por mais que tenha conforto”, diz. “Eu sou e sempre serei fã do antigo Beira-Rio, onde parecia que a torcida, pelo seu apoio, era mesmo o 12° jogador do time.” As reformulações realizadas nos novos estádios não foram uma exigência apenas da FIFA, mas do desejo de muitos torcedores que pediam melhores condições para torcer. Muitos dos estádios reformados ou construídos nos últimos anos têm um patamar de qualidade semelhante aos melhores estádios da Europa. As arquibancadas do setor destinado à torcida Geral do Grêmio, por exemplo, se assemelham ao espaço destinado à torcida

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CUSTO DO INGRESSO EM OUTROS PAÍSES PAÍS RENDA PER CAPITA INGRESSO MÉDIO Brasil US$ 12.340 R$ 38,00 Espanha US$ 28.976 R$ 71,62 Itália US$ 32.522 R$ 74,71 Alemanha US$ 41.168 R$ 43,79 Inglaterra US$ 38.591 R$ 84,21

QUANTIDADE x RENDA PER CAPITA 645 ingressos 804 ingressos 865 ingressos 1.868 ingressos 911 ingressos

do Borussia Dortmund, da Alemanha. Se os estádios brasileiros têm um padrão de qualidade semelhante ao europeu, o mesmo pode ser dito do valor dos ingressos. Na Alemanha, o preço médio dos ingressos é de R$ 43. No Brasil, é de R$ 38. No entanto, enquanto os alemães possuem uma renda per capita superior a 40 mil dólares anuais, entre os brasileiros esse valor é de apenas 12 mil dólares (veja mais na página ao lado). PREÇO ALTO, RENDA BAIXA O aumento no preço dos ingressos nem sempre significa uma receita elevada para os clubes – em parte em função da baixa lotação dos estádios. Para Amir Somoggi, o valor arrecadado nos bilhetes ainda é muito baixo. Com isso, os clubes precisam ter criatividade para manter as contas em dia. Grêmio e Internacional investem muito em campanhas em busca de novos sócios. O Inter, especificamente, é o clube com o maior número de sócios no Brasil: 120 mil. “Hoje, em vários jogos, sequer temos ingressos à venda para não-sócios em razão de termos que atender a demanda dos associados”, afirma Flávio Ordoque. “Nosso estádio comporta pouco menos da metade do número total de sócios.” Para garantir uma maior lotação – e, consequentemente, maior renda –, a solução encontrada pelo Internacional

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para também ter em seu estádio público alto em todos os jogos foi a implantação do check in e check out. O sistema permite ao sócio-torcedor sinalizar se vai ou não comparecer ao jogo. Abrindo mão da sua cadeira, ela é colocada “à venda”. Se o espaço for ocupado, o torcedor recebe 25% do valor bruto do ingresso em descontos na mensalidade. Para possibilitar aos não sócios uma entrada a preços mais acessíveis, o Grêmio busca oferecer preços variados e em diferentes locais do estádio. Hoje, na Arena, há ingressos de R$ 5, para menores de 12 anos, R$ 15 para sócio na arquibancada, R$ 20 para sócios na cadeira alta. “A oferta de lugares diferenciados, pouco comum em estádios mais antigos, traz o oportunidade mercadológica de composição de produto/ preço com preços mais elevados”, diz Beto Carvalho. “Cabe, assim, aos administradores destes novos estádios, o desenvolvimento de uma política de preços que seja atrativa ao torcedor e, ao mesmo tempo, proporcione receita compatível à manutenção e rentabilidade destes estádios.” Com os novos recursos e uma linha de trabalho que busca diretamente ouvir e atender as solicitações do torcedor, os clubes trabalham para que essa queda na presença dos torcedores não dure muito tempo.


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