Revista Raízes Jurídicas

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mental precisa ser vista como sendo ligada a um sistema de práticas, isto é, todo um conjunto de dispositivos de uma determinada cultura, de formas de organização da rede médica, de um sistema de detecção e profilaxia, de formas de assistências e distribuição de cuidados, “critérios de cura, definição da incapacidade civil do doente e de sua irresponsabilidade penal; em resumo, todo um conjunto que define, numa cultura dada, a vida concreta do louco. (...) a loucura é um fenômeno cultural, muito mais do que fisiológico.”16 O segundo e o terceiro questionamentos, que dizem respeito ao modo como a cultura excluiu o desviante, procuram ser respondidos por Foucault através de uma análise da formação e da constituição histórica do conceito de louco. Afirma Foucault, que somente numa época recente é que o Ocidente deu à loucura um status de doença mental, isto é, somente com o surgimento de uma medicina positiva é que o louco saiu de sua condição de “possuído” para ingressar no campo das patologias mentais, 17 quer dizer, tornou-se ‘doente mental’, em razão da obra da Psiquiatria, o monólogo da razão sobre a loucura. Para a historiografia psiquiátrica tradicional, o louco da era medieval e do renascimento eram considerados doentes ignorados, em especial pelas malhas do poder religioso, que lhe impunham significações e classificações místicas. Desse modo, a história dos loucos não diz respeito à própria cientificidade, como se quisera sempre afirmar, mas, antes disso, constitui uma história das idéias religiosas. Foucault ressalta, por exemplo, que a própria Igreja católica teve duas formas bem distintas de relacionamento com a loucura, sempre com vistas à manutenção de seu poder régio e social: num primeiro momento, procurou a interferência da medicina, por volta de 1560 a 1640, a pedido dos parlamentos, dos governos e das hierarquias eclesiásticas, para prosseguir com as Inquisições, comprovando que os loucos eram, na verdade, pessoas que através de suas imaginações desregradas demonstravam pactos e ritos diabólicos, que precisavam ser contidos e excluídos; num segundo instante, por volta de 1680 a 1740, quando houvera a explosão do misticismo protestante e jansenista, em virtude das perseguições do final do reinado de Luís XIV, novamente tornou a Igreja católica a procurar a medicina, convocando inúmeros médicos para demonstrar, então, que todos os atos e movimentos violentos dos humores dos espíritos eram, na verdade, manifestações do êxtase, da inspiração, do profetismo, da possessão pelo Espírito-Santo.18 A partir dessa interpretação, afirma Foucault que o nascimento do “olhar” da medicina positivista esteve, inicial e lateralmente, ligado ao episó-

16 LEPARGNEUR, Hubert. Introdução aos ..., p. 76 e 78. 17 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 75. 18 FOUCAULT, Michel. Doença mental e ..., p. 76.

152 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 2 jul/dez 2011


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