Três três #4 - A Cópia

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Outubro 2014

A cópia Arte e crítica Literatura Crónica

merada

Edição limitada e nu



Neste número da TrêsTrês A CÓPIA Nas veias da realidade Henrique Fialho Desviar da rota: repensando a pirataria como prática de resistência Rodrigo Saturnino Do reflexo ao desejo: a violência sacrificial Felipe Pathé Duarte Autenticidade e cópia: a realidade como reflexo da sua própria imagem Isabel Xavier A imitação nas coisas Pedro Xavier Mendonça Sobre tradução Ricardo Norte Imaginação: sobre a sociedade e a cultura Marco António Cardoso da Silva Investigações sobre as manifestações do ser Manuel Barroso Xavier

P08 P12 P18 P20 P24 P28 P32 P36

ARTE E CRÍTIC A Do outro lado do espelho (e o que encontrámos por lá) Marta Pinho Alves Pedro Bernardo, Fundação Bernardo, Casa Bernardo Pedros e Bernardos

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LITER ATUR A Uma teoria dos guindastes Maria Teresa Duarte Martinho Do largo Maria Teresa Duarte Martinho Esboço Maria Teresa Duarte Martinho Chego antes da chuva se soltar Carlos Alberto Machado Adivinha Mário T. Cabral Orquestra Mário T. Cabral Miragem Mário T. Cabral Nado-morto Jorge Aguiar Oliveira Se não tens vontade Nuno Costa Santos Aquele que nunca chega Nuno Costa Santos

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CRÓNICA A tribo dos macacos de imitação Nélia Matos

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Edição: Nuno Fragata Pedro Xavier Mendonça Ricardo Norte Rita Baptista Design gráfico: Bruno Afonso Fausto Vicente Nuno Fragata Ilustração de capa: Nuno Fragata Revisão: Isabel Xavier Pedro Xavier Mendonça Impressão: Várzea da Rainha - Impressores Dep. Legal: 355130/13 ISSN 2182-7869 Colaboradores: Bruno Afonso, Fausto Vicente, Felipe Pathé Duarte, Isabel Xavier, Nuno Fragata, Pedro Xavier Mendonça, Ricardo Norte e Rita Baptista. Convidados: Carlos Alberto Machado, Fita-Cola, Henrique Fialho, Jorge Aguiar Oliveira, Lord Mantraste e José Torres, Rodrigo Saturnino, Marco António Cardoso Silva, Manuel Barroso Xavier, Maria Teresa Duarte Martinho, Mário T. Cabral, Marta Pinho Alves, Nélia Matos, Nuno Bettencourt, Nuno Costa Santos, Pedros e Bernardos. Contactos: revistatrestres@gmail.com É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico ratificado em 2008. Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos.

APOIOS:


EDITORIAL SOBRE A CÓPIA

Sabemos que um espelho reversa a imagem de quem se vê a si mesmo. Por isso, o que aparece refletido não pode ser o que observa o reflexo. Não é isso que faz uma cópia. Mas é certamente através desse processo que existe uma cópia. Aí teremos pelo menos dois a dizerem-se entre si ou talvez a traduzirem-se, para lá de estatutos ontológicos. É neste dizer que há a perda e o ganho. O transporte incólume entre uma coisa e outra é impossível. O segundo que copia o primeiro é um novo momento, um desdobrar em acontecimento inaugural da possibilidade de mais. Copiamos, é certo, mas somos nós ou uma máquina a triangularem a relação entre dois para lá do objeto primeiro. É como três que copiamos e multiplicamos. Se possível, um a seguir ao outro, na autopoiesis que, ironicamente, nos conduz ao Outro como Outro a seguir ao Outro: três vezes, talvez nove. Copiamo-nos entre nós para respirar. E neste número (vamos contando diferenças) inspiramos e expiramos o problema da cópia. Uma crise, decerto, logo no desejo dessa hipótese. Repito: não é possível o mesmo, só uma ironia infinita perante uma expetativa que nunca se concretiza, uma repetição industrial a deitar fumo da cabeça e a tapar-nos a vista perante o reflexo. Tratamos neste número, dizia, qualquer coisa que de facto é fundamental. Na realidade, é a questão da origem, da camada que fica sobre outra camada. Cai aqui o tema da verdade, onde a cópia surge como uma falsidade invertida, uma imitação que remete sempre para o imitado. A perda é isso. O ganho é a força do novo espaço, das rugosidades da matéria, da surpresa perante a alteridade quando esperávamos uma espécie de manutenção perpétua. Não quisemos copiar ninguém. Vivemos a ambição da diferença, da novidade. É do espírito do tempo. Todavia, somos iguais a tantos. Copiamos como drama, como refrão ou eterno retorno à condição de sempre. Os textos que se seguem serão mais uns e outros. Esperemos que uma multiplicação com dignidade singular. Pedro Xavier Mendonça

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A CÓPIA O meu processo de trabalho passa por apropriar-me de imagens, neste caso da revista FACE, já desaparecida, e desenhar à vista. Depois utilizo alguns desenhos com uma linguagem de rua e misturo os dois elementos criando uma fusão entre o desenho da figura e o fundo. Neste caso a pintura foi feita à mão e o desenho através de serigrafia. Uma cópia através da cópia (processo serigráfico), mas o resultado é um original mastigado e digerido da cópia. Esta série resulta de um estudo para a edição de serigrafia, criando um novo original, pronto a ser copiado. O nome desta série é “CLN - 18 anos a dar mau nome á arte”.

Nuno Bettencourt



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NAS VEIAS DA REALIDADE HENRIQUE FIALHO

Um dos grandes paradoxos do racionalismo ocidental foi desde cedo introduzido pelo francês René Descartes (n. 1596 – m. 1650), ao resolver rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo que lhe inspirasse a menor dúvida. Porém, aquilo de que mais devia ter duvidado, o pensamento, foi o que o método cartesiano aceitou como mais evidente. A razão para duvidarmos de que pensamos é-nos oferecida pelo próprio Descartes quando, num laivo de desespero, pede aos vindoiros que nunca aceitem como cartesianas as teorias que ele próprio não tiver divulgado. Esta suspeita colocada sobre a capacidade de entendimento dos intérpretes da obra original quer apenas dizer que o cartesianismo nasce e morre com Descartes, toda a interpretação futura, por mais esforçada que seja, redundará numa falsificação do pensamento cartesiano. Para compreender Descartes devemos suspender o pensamento (ou pelo menos privá-lo das suas capacidades interpretativas), algo que se afigura impossível segundo a própria filosofia de René Descartes. A relação que o racionalismo espera manter com o seu auditório sustenta-se numa interpassividade muito em voga. Para usar uma imagem de Žižek, direi que o racionalismo é uma espécie de “tamagotchi” que espera de nós uma actividade exigida pela sua passividade. Diz-nos para fazermos e como devemos fazer, recusando qualquer tipo de derivação metodológica. Pretendendo-se claro e certo, mantém com o outro uma relação de desconfiança. Encontrará na figura do prestidigitador a sua máxima expressão. Repare-se como no ilusionismo tudo é geométrico, matemático, racional. O sucesso do truque não depende da ilusão que provoca, mas sim da racionalidade onde funda os seus alicerces. O mágico Harry Houdini (n. 1874 – m. 1926) foi um cartesiano excepcional. Não só encantou as massas com números aparentemente ilógicos, como dedicou parte da sua existência a desmascarar charlatões (verdadeiro espírito de missão do racionalista: colocar a ilusão ao serviço da razão, o erro ao serviço da certeza, o falso ao serviço da verdade). Ironia das ironias, morreu vítima do seu racionalismo quando descobriu que para existir não bastava pensar. Mas logo outro húngaro, celebrizado por Orson Welles no documentário “F for Fake!” (1973), se encarregou de, à sua maneira, perpetuar o legado de Houdini. A história de Elmyr de Hory (n. 1906 – m. 1976), falsificador cujas falsificações chegaram a valer mais no mercado negro do que os próprios originais, é absolutamente fascinante. O caso chegou a tal ponto que as falsificações de Elmyr de Hory foram elas mesmas objecto de outras falsificações. Mariana Pinto dos Santos dedica-lhe algumas páginas num excelente ar-


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tigo intitulado “It’s pretty, but is it art?” (revista Intervalo, n.º 1, 2005), concluindo que «as falsificações de Elmyr provam por um lado a falibilidade das peritagens, desmascarando a fraude social que representam os que vestem a pele do perito, e por outro lado expõem outro tipo de fraude, a motivada pela ganância dos que, sabendo que se tratam de falsos, usam o seu estatuto de especialista para os vender enquanto originais e, evidentemente, lucrar com isso». Deixando na penumbra questões de mercado, interrogo-me se não é este um exemplo do falhanço brutal do racionalismo? Recorde-se, en passant, que Elmyr de Hory conseguiu vender imensas falsificações a galeristas que as tomavam por originais. Ora, não poderá ser uma falsificação um original? E, seguindo a lógica aristotélica, uma falsificação de uma falsificação não deveria ser considerada um original? O que é a negação da negação senão uma afirmação? Não me preocupa encontrar respostas para estes problemas, mas fascina-me a ideia de uma fraude poder tornar-se autêntica, de uma farsa se tornar de tal modo real que já ninguém ousa acreditar que seja farsa. Fascina-me tanto a possibilidade de Deus poder ser autêntico como o contrário, ou seja, “o tamagotchi supremo”. Porque, em última instância, ou em primeira, toda a realidade é poética, ou seja, crepuscular, nenhuma existência se prova mais pela faculdade de pensar do que a prova a faculdade de sonhar. De certo modo, vivemos tempos em que o falso, a farsa, a fraude, de tão reais passam convincentemente por verdadeiras. Exemplos? A democracia, a mão invisível dos mercados, a amizade no Facebook... Basta estar minimamente atento para exemplos não faltarem. É como se toda a realidade assentasse numa grande mentira universalmente (ou quase) aceite com a indiferença dos ludibriados. Foi algo do género que Harold Pinter denunciou ao apontar, no seu discurso aquando da entrega do Nobel da Literatura, as mentiras com que o poder ilude as massas, transformando a realidade num mero simulacro que poucos logram detectar e muitos servem cumplicemente. As nossas próprias vidas deixam de ser representáveis à luz de uma verdade utópica, uma verdade referencial que sirva de horizonte e farol durante a caminhada. A fantasmagoria a que nos sujeitamos apaga o farol, desocupa-o, torna-o obsoleto face aos dispositivos extraterrestres que nos orientam (satélites artificiais, tamagotchis). Li algures que o maior sonho de Elmyr de Hory era criar um novo período de Picasso. Não sei se terá cumprido o sonho, mas tenho a certeza de que o próprio Picasso adoraria a ideia e facilmente assinaria as falsificações como sendo suas. Os artistas são mais divertidos do que os filósofos, mas por vezes as brincadeiras tornam-se demasiado sérias, recai sobre elas o peso da moralidade, o jogo deixa de ser uma partida mais ou menos lucrativa para passar a ser uma necessidade de sobrevivência. O filme “Die Fälscher”, de Stefan Ruzowitzky, conta a história de Salomon ‘Sally’ Sorowitsch (n. 1897 – m. 1976), cujo talento para a falsificação foi aproveitado pelos nazis na maior operação de dinheiro falso alguma vez levada a cabo. Detido num campo de concentração, numa área especificamente reservada para a Operação Bernhard, Salomon Sorowitsch teve o privilégio de sobreviver à guerra fazendo uso da sua arte, a mesma de que os alemães se serviam para exterminar o povo de Salomon. O conflito moral é evidente, mas o que mais impressiona neste exemplo - como, de resto, sempre o que mais impressiona na máquina de morte arquitectada pelos alemães durante a Segunda Grande Guerra - é a ambivalência vivida por um criminoso entre as suas vítimas. Antes de ser detido, o falsificador era um criminoso. Depois de ser detido, ela era um criminoso transformado em vítima. Ainda assim, um criminoso. Mas mais: as suas notas falsas garantiam a economia de

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morte dos alemães, eram balas na direcção dos seus. A vida de Salomon ‘Sally’ Sorowitsch foi ela própria uma falsificação, uma fraude. Os seus camaradas de cela agradecem-lhe o talento ao mesmo tempo que o censuram. Ele procura justificar-se, sobretudo perante si próprio, convencendo-se de que o que importa, naquela situação, é apenas sobreviver. Cumpriu dois sonhos: conseguiu falsificar o dólar e sobreviveu. Qualquer um destes sonhos pode também ser interpretado como um pesadelo, pois qualquer um destes sonhos resulta de uma realidade ali vivida como se fosse uma fraude. Mas não era. Sendo-o, não era. O real deste homem era a falsificação, a sua verdade era a mentira. Como no poema de Pessoa, o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. O falsificador é o poeta por excelência. Não por acaso, o escritor austríaco Thomas Bernhard (n. 1931 – m. 1989) prefere o conceito de alusão ao de exposição para a sua recomendável “Autobiografia”. Ele sabe que nenhuma vida se revela a não ser vivendo-a, toda a reprodução de um suposto facto (será possível ainda falarmos de factos num mundo de simulacros?), toda a tentativa de confissão, todo o exercício de consciência resvalará nessa ideia clara e evidente de que não é o pensamento que justifica a existência mas antes a existência o que permite oferecer ao pensamento a possibilidade de encontrar sentidos para a inutilidade da vida. É este o grande paradoxo do racionalista, ter que confiar na razão desconfiando, afinal, da sua capacidade para entender e reproduzir a realidade. Daí que o racionalista seja, entre todos, o maior dos falsificadores, como o popular Frank William Abagnale, Jr. (n. 1948), retratado no filme “Catch Me If You Can” (2002) de Steven Spielberg, cuja habilidade para lograr acabou por ser colocada ao serviço da nação. O grande mestre da fraude tornou-se num multimilionário que presta consultoria sobre fraudes, dando assim ao universo mais um exemplo da extraordinária capacidade que o mundo normativo tem para absorver as anomalias que se lhe opõem. Perante isto, só o absurdo poderá responder aos nossos anseios. Nenhuma lei, nenhuma ordem, nenhuma razão governa o mundo. O absurdo é o sangue que corre nas veias da realidade.


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DESVIAR DA ROTA: REPENSANDO A PIRATARIA COMO PRÁTICA DE RESISTÊNCIA RODRIGO SATURNINO

A pirataria, em sua acepção moderna, tem sido utilizada, de modo quase consensual e estanque, como marcador arbitrário para classificar algumas práticas consideradas no âmbito da violação dos direitos autorais. A popularização do termo pode ser entendida como fruto da diagnose dos comportamentos dissociais e de uma ação pedagógica de efeito reparatório e policialesco, na medida em que associa a reprodução, a venda e a partilha não autorizada de “bens culturais” (filmes, músicas, livros, imagens, etc.) à prática da transgressão e do roubo. Apesar das oscilações interpretativas em que a pirataria foi invocada como recurso de incriminação, todos os contextos de etiquetagem social da prática apresentam um núcleo comum de acusação cristalizada a partir da ideia da quebra de monopólios. A partir deste pressuposto, é possível afirmar a existência de um movimento pirata organizado não por uma estrutura política endêmica, mas pela distinção arbitrária, exótica e apriorística das animosidades que integram o modo recursivo da sua atividade. Neste sentido, conhecer a história da pirataria é um exercício de compreensão dos desdobramentos e das implicações sociais que a prática representa, permitindo encontrar em seu percurso recorrências que fazem dela uma rede paradigmática estilizada por jogos de perspectivas cambiantes. As flutuações aplicativas do termo revelam, também, estratégias argumentativas variantes que servem para justificar os processos acusatórios, bem como para reorganizar os estilos de vida e os processos de subjetivação do indivíduo através de um exercício de negação ancorado na recusa de estruturas sociais estandardizado-

ras. Uma breve incursão sobre algumas modalidades da prática, demonstra como a variedade de contextos em que a pirataria aparece como um marcador reificado pelo determinismo criminalístico serviu de aporte para fundamentá-la como uma prática de resistência sustentada por uma ética da dissidência.

PERCURSOS E AMPLITUDES: DAS ÁGUAS NEUTRAS PARA A REDE DESCENTRALIZADA As primeiras utilizações do termo são encontradas nos textos da Odisseia de Homero e designavam, de forma negativa, o confisco e a revenda da propriedade privada. Até ao ano de 1700, a pirataria serviu de recurso cambiante para identificar os atos que violavam o direito soberano do Estado ou dos comerciantes sobre suas propriedades através da invasão de seus domínios marítimos. A ausência de acordos entre os governos propiciava uma constante mudança de perspectiva a respeito do conceito. O maior problema da designação da pirataria marítima era definir os limites territoriais do mar entre um império e outro. É mister admitir que o “conceito” de pirataria no âmbito marítimo foi instituído para resolver um problema geopolítico em que a batalha pela expansão das fronteiras de dominação comercial era evidente. Neste sentido, a pirataria implicava um problema não apenas sobre o roubo daquilo que se transportava, mas principalmente sobre o domínio do monopólio do meio de transporte.


Lord Mantraste e José Torres

público. As diversas investidas de controle da sua circulação, laureadas por acordos internacionais (leia-se as ações da NSA -National Security Agency e projetos de parceria público-privadas de vigilância social como o PRISM, ACTA e SOPA) reafirmaram os conflitos que emergiram no cenário digital a partir do início da década de 1990, ocasionados pela quebra do monopólio da informação. A ação dos chamados phonefreaks a partir da criação de um sistema capaz de interferir no domínio de gigantes, como a norte-americana AT&T, exemplifica uma das primeiras intervenções no âmbito das sucessivas resiliências que foram surgindo no quadro de digitalização da informação (Lapsley, 2013) No campo cultural, o caso das cassetes-pirata simboliza a força da pirataria como prática evasiva de resistência a um mercado exclusivista. O fenômeno dos anos de 1980 é um marco tanto da formação musical de uma geração inteira, como também do surgimento de novos modelos de negócio, mesmo os “clandestinos”. Do mesmo modo, casos como o da Napster, dos torrents e das redes P2P – ao permitirem o consumo descentralizado de música, no primeiro caso, e de uma grande variedade de conteúdos, no segundo – engrossam as estatísticas e as acusações baseadas na subtração da propriedade privada e na transgressão do copyright.

RESISTÊNCIA E REFLEXIVIDADE Geralmente, o argumento dos que defendem a pu-

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Fora do mar, a terminologia foi transportada para o universo editorial já a partir do século XVI - quando as leis dos italianos e dos ingleses concederam monopólios de impressão a editores específicos e estabeleceram o controle do Estado – sendo utilizada, também, para designar os editores que faziam impressões sem autorização dos autores ou sem o pagamento pelo direito de exploração da obra. No espectro eletromagnético, a pirataria serviu como aporte revivalista de um movimento de resistência na década de 1950 contrário à exclusividade das concessões para estações de rádios, através das chamadas rádios-piratas. A questão da exploração exclusiva de espaços ‘etéreos’ entrou na agenda pública ainda em 1920, quando a Coroa Britânica garantiu o monopólio da British Broadcasting Corporation (BBC) para impedir transmissões alternativas. O resultado foi previsível e as rádios-pirata se multiplicaram. Em 1967, a BBC perdeu a exclusividade, de modo que as transmissões de ondas sonoras passaram a ser admitidas pelo governo britânico como um bem público. O campo digital foi o próximo a ser incluído nos interesses comerciais de gigantes das telecomunicações. A reorganização do mercado na década de 1960 nos Estados Unidos demonstrou como a libertação das tecnologias de difusão e distribuição de informação estabeleceu um novo campo de disputa entre piratas, governo e capitalistas. Os privilégios comerciais e a proteção intensiva dos ‘bens’ que emergiram deste novo mercado colocaram em maior evidência a fragilidade de temas caros aos humanistas, como o direito à privacidade, à liberdade de expressão e a luta contra a privatização do bem

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nição da contrafação e da partilha “não autorizada” é resumido pela alegação de que a pirataria subtrai das empresas e dos autores o direito de desfrutar, financeiramente, do seu trabalho por não receberem o que lhes é devido através da venda e do consumo clandestino. A tônica comum sobre o assunto, aparentemente apoiada pelo conceito kantiano de “respeito”, concentra-se em acepções conjunturais sobre os impactos e os efeitos destas práticas em relação à produção, à circulação e à distribuição de bens e serviços. Estas hipóteses, baseadas no interesse, na racionalidade e na utilidade, mantêm como núcleo discursivo a interpretação da pirataria como responsável pelo atraso no crescimento econômico. Ao contrário deste grupo, estudiosos e ativistas questionam esta redução interpretativa apoiandose na defesa dos benefícios da livre circulação da informação (em suas diversas configurações) como um fator essencial para capacitar as pessoas e para criar novos modelos de negócio. Os críticos também ressaltam o problema da pirataria a partir de uma visão política ao considerá-la como fruto da inoperância do aparelho jurídico. A intensa punição dos acusados é vista como uma tentativa de suprir uma falha no mercado digital ocasionada por três importantes fatores: a) a digitalização da informação; b) o barateamento da parafernália tecnológica e c) a mudança na ética dos utilizadores em relação à ontologia da propriedade intelectual devido ao emparcelamento por ela sofrido no contexto de sua desmaterialização. Quem contesta a ineficiência da lei nos casos que envolvem a pirataria, acredita, também, que o aumento expansivo da prática, nomeadamente no âmbito da Internet, tem privilegiado o interesse empresarial na privatização da informação através de uma pressão corporativista baseada na gênesis do direito à propriedade. Neste sentido, a pirataria seria admitida como paradigma para a criação de políticas de incriminação, monitorização e vigilância dos utilizadores e de armas tecnológicas que dificultam o seu processo. No interlúdio da desordem política e dos conflitos internacionais originados pela (in)definição da pirataria, as fronteiras da sua simplificação como crime e prática “desviante” têm sido contestadas através de novas abordagens encontradas na agência dos que lutam pela reordenação do campo semântico da lei em relação à hegemonia do capitalismo informacional. Tais iniciativas parecem inaugurar novos contornos do protagonismo social ao serem instauradas a partir de um esboço de negação das relações monopolistas e territoriais da informação, o que permite associar a pirataria com uma prática reflexiva transformadora (Cf. Ferreira, 2007). No campo tecnológico, a ação oposicional dos Hackers, dos Anonymous e do Wikileaks reverbera-

-se como práticas de resistência ao controle abusivo da informação que circula na Internet a partir de um discurso que defende a urgência de uma Internet livre e aberta. Do mesmo modo, o quadro legal da propriedade intelectual e a confusão da política mundial em relação às fronteiras do ciberespaço são contestados através da criação de organizações políticas na forma de Partidos Piratas, intencionados em reexaminar e reordernar a ideia de Estado Nação a partir de uma nova gramática jurídica que interprete as inovações tecnológicas de modo favorável à criação de um novo modelo de sociedade. Alguns grupos interpretam a pirataria como ornamento de novos modelos de negócio ao incentivar a criação de alternativas para novas profissões e para o desenvolvimento econômico em áreas periféricas da economia. A explosão do Tecnobrega no Brasil, a popularização do papel do DJ através das rádios-piratas, o mercado informal dos vendedores ambulantes que andam na kandonga e a Indústria do Cinema de Nollywood na Nigéria exemplificam como o movimento pirata não está interessado apenas em protestar a ordem estabelecida. Ele também parece empenhado em proporcionar inovações, que apesar de serem consideradas ilegítimas, corroboram para a reinvenção dos mercados e para o surgimento de novos empreendimentos. No interior da chamada “Sociedade da Informação”, outrora interpretada como preconização de uma nova era e hoje marcada pela vigilância, pelo sequestro da privacidade e pela comercialização dos gostos pessoais, o movimento pirata aparenta representar uma espécie de vanguarda disruptiva das estruturas estruturantes. No campo da economia, prefigura como motor-chave do que Schumpeter chamou uma vez de destruição criativa; no espectro sociológico da agência, como ethos auto-determinativo que utiliza a acusação como recurso operatório para afirmação de uma subjetividade própria e no campo do direito, coloca em dúvida o processo de rivalização artificial dos produtos intelectuais que tem sido feito através da afirmação de um arcabouço legal baseado na ideia monopolista do copyright.

NOVAS SUBJETIVIDADES As interfaces da pirataria estabelecem uma rede de práticas e de relações de poder que alarga a sua episteme para o campo da política. Ao abandonar a sua condição restritiva de marcador criminológico, transforma-se em problema político, afirmando-se como uma categoria social e um dispositivo, no sentido dado por Foucault (2000), que designa várias práticas sociais orientadas por um denominador comum: o de desajustar qualquer sistema monopolista. Neste sentido, a pirataria assume a forma de


de política de vida, ou seja, aquela que diz respeito às condições que nos libertam de modo a fazermos opções. Desta forma, a pirataria passaria de política de incriminação a uma política de opção encarnada pelo agenciamento individual e/ou coletivo (Giddens, 1997). Esta mudança paradigmática depende da profanação da lei, entendida como único instrumento capaz de objetivar, codificar e representar o que se entende por “boas práticas”. Os exemplos de alteração das chaves de interpretação da pirataria citados acima transparecem os aspectos produtivos da prática ao irromper com sanções normalizadoras através de mobilizações emancipatórias, levando coletivos e indivíduos a conquistarem um certo tipo de autonomia e autenticidade política. A ação desencadeada não depende de um agente mediador, mas de sua auto-realização enquanto sujeito consciente daquilo que o dispositivo oferece para formação de sua subjetividade e na produção de um saber e de um poder que lhe é próprio. Neste sentido, podemos admitir que as clivagens e as reflexividades do dispositivo da pirataria proporcionam um exercício cambiante que ora se apresenta como estratégia de nomeação dos atos ilícitos, ora como um recurso operacional para o fortalecimento de um novo mercado capitalista, ora como mecanismo positivo para criação de novas identidades e novos poderes. Como símbolo radical da ruptura, a pirataria é o epicentro de contraponto aos constrangimentos legais. Desta forma, a eletividade de sua ação incentiva-nos a refletir sobre a episteme política que está imbricada na sua representação como eixo fundamental de resistência. Do mesmo modo em que os contextos de coerção da lei e de subjetivação dos indivíduos a que os piratas marítimos estavam subjugados representavam um contexto idealizado para sua renitência civil, o deslocamento da pirataria para novos campos de disputa de poder, como o da informação digital, serve também como pressuposto para o exercício de uma prática crítica em relação à violência instrumental dos dispositivos legais e protecionistas criados para punir os supostos delitos cometidos contra a propriedade intelectual. É nesta direção que a ação afirmativa do movimento pirata, antecedida pelo contexto da força coerciva dos progressos da legislação dos direitos autorais e das patentes, busca alternativas para uma ação política consubstanciada no engajamento e na luta contra a privatização do bem comum. Os afrontamentos entre os diferentes discursos sobre a pirataria, faz do dispositivo um terreno fértil para a supressão moral da unidade do poder jurídico ao deslocar a sua centralidade anacrônica para o campo da ação emancipatória a partir de novas interpretações sobre o estigma da repressão da pirataria. Entretanto, esta análise só seria possível na medida

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um construto submetido por lógicas de dominação e por retóricas argumentativas, independente do grupo que dela se utiliza e das práticas que a consubstanciam. Como um dispositivo, a pirataria é um polo integrador de um conjunto encadeado e disperso de forças que reúne não apenas os agentes sociais que a praticam, mas também os discursos, as leis, as medidas administrativas e os artefatos tecnológicos que fazem dela uma instância variante do poder e do saber. Estes grupos, apesar de não estabelecerem uma conexão direta, partilham entre si uma unidade de ação representada pela prática que realizam, formando a gênese do movimento pirata. É nesta perspectiva que a pirataria permite ao sociólogo uma análise que a interprete não apenas como indicador social da quantificação de perdas e ganhos econômicos, mas como objeto recursivo atuante na constituição e na organização de novos modos de produção de subjetividades baseadas numa prática de resistência sustentada por uma ética da dissidência (Ferreira, 2007; Dreyfys; Rabinow, 1995:135). O cenário de insistente visibilidade da pirataria como delito estabelece um aparato que não só torna os sujeitos capturados por uma perspectiva normativa, como também colabora para tornar o agenciamento destes mesmos sujeitos em recurso concreto e reflexivo para sua ação. Admiti-la deste modo implica dizer que a variedade aplicativa da categoria em suas diversas acepções incentiva o sujeito a pensar na prática que realiza, tornando-o um objeto de si mesmo ao confrontar-se com as qualificações externas que os dispositivos normativos imputam aos acusados nos “jogos” de poder. Neste sentido, a discussão de sua multilinearidade e de suas tensões favorecem sua compreensão a partir dos elementos e dos aspectos que a constituem favorecendo o seu entendimento a partir da existência de um dispositivo da pirataria, já que a sua análise demonstra como a categoria contempla um extenso quadro de alternâncias enunciativas e aplicativas servindo de base orientativa na formação ética de novos sujeitos e de novos agenciamentos políticos. Na linguagem foucaultiana, como um dispositivo, a pirataria, expurgada por aquilo que ele chamou de concepção jurídica-discursiva (Foucault, 2001) ao se referir ao poder, só pode ser admitida como prática de resistência ao ser refutada pela história dos jogos teóricos da lei, estes que são os responsáveis por promover as associações e as conotações negativas assumidas historicamente na formulação do pensamento ocidental acerca do crime, do roubo e da pirataria (Cf. Pogrebinschi, 2004). Ao afastar-se da hipótese repressiva (Foucault, 2000), ou seja, substituindo o discurso jurídico que o estigmatiza pelo seu caráter analítico que o liberta, o dispositivo da pirataria fundamenta, ainda, aquilo que Giddens denominou

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em que a pirataria deixasse de ser interpretada apenas por um ângulo normativo e proibitivo. O seu enquadramento teórico jurídico-discursivo a partir de olhares homogênicos, hierárquicos e vigilantes reduz tanto a sua força analítica como, acima de tudo, bloqueia a sua riqueza plural e multifária enquanto estratégia não-dualística da produção positiva de novos poderes. Não implica dizer que a pirataria enquanto prática de resistência conduz o sujeitado a uma condição soberana de existência própria ou à formação de um projeto político coletivo, revolucionário e contestatário. No entanto, não podemos admiti-la como atitude “apolítica”. O seu caráter resiliente conduz o indivíduo a uma prática que se transforma em um estilo de vida, independente do seu caráter hedonista, celebrativo ou militante. Em seus variados formatos, ela se exterioriza não como um ato de conformação mas de confrontação com a higiene e com os limites da lei enquanto postulado ambíguo da gestão de ilegalismos intoleráveis, que ela diferencia – a par dos que ela permite como privilégios da classe dominante – a fim de formalizá-los, proibi-los, isolá-los e torná-los objetos de domínio.

Dreyfys, Hubert; Rabinow, Paul (1995), Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Ferreira, Vítor Sérgio (2007), “Política  do corpo e política de vida: a  tatuagem  e  o  body piercing  como  expressão  corporal  de  uma  ética  da  dissidência” in Etnográfica, nº 11 (2): 291-326. Foucault, Michel (2000), Microfísica do Poder: Rio de Janeiro: Graal Foucault, Michel (2001), A História da Sexualidade, Volume1: A vontade do saber.Rio de Janeiro: Graal. Giddens, Anthony (1997), Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras: Celta Editora. Lapsley, Phillip (2013), Exploding The Phone: The untold history of the teenagers and outlaws who hacked ma Bell. New York: Grove Press. Pogrebinschi, Thamy (2004), Foucault, Para além do poder disciplinar e do biopoder. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, nº63:179 – 202.


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FELIPE PATHÉ DUA RTE

LES MIROIRS FERAIENT BIEN DE RÉFLÉCHIR UN PEU AVANT DE RENVOYER LES IMAGES. Mote Não existe espaço não-violento entre os homens. Ainda que a violência possa ser em potência, quando em acto precisa de um escape para descarregar o impacto. Sabemos que o acto é despertado pelo desejo mimético. E há quem chame ao tal escape catarse ou expiação. Mas tudo começa no reflexo, que também é confronto. I Narciso, o das “Metamorfoses” de Ovídio, padece da condição de Jacob Marley, sócio de Ebenezer Scrooge, a improvável personagem do “Conto de Natal” de Charles Dickens. Está morto, mas o seu reflexo não. Insisto em repetir que está morto, pois disso depende a compreensão destas linhas, como dizia Dickens acerca de Marley. Narciso pode ser desejo e consciência de si; mas também reflexo, confronto heteronómico e violência. Todos somos Narciso no momento do espelho de água. Porém, o nosso desejo não surge somente pelo objecto. É despertado a partir do desejo de um outro que foi eleito como modelo. Ou seja, desejamos porque alguém que temos como modelo também deseja. O amor à primeira vista é já sempre em segunda mão. O coup de foudre perdeu toda a poesia…Portanto, a autonomia do desejo é falaciosa: Narciso deseja-se a desejar. II Avancemos um pouco mais nesta reflexão. É René Girard1, antropólogo e filósofo francês, quem afirma que o desejo, essência da natureza humana, é mimético. Não há originalidade, surge por determinação social ou reflexo do que queremos ser. Narciso não é sozinho ao ver-se. E é nessa relação, em que também há confronto e posse, que nasce o desejo. Cria-se assim uma área de potencial conflito: o mo-

delo transformar-se-á em adversário, desencadeando uma rivalidade mimética circular em que o imitador se transfigura no modelo do seu modelo. Os rivais encontram-se numa duplicidade simétrica. Esta perigosa indiferenciação pode apagar o objecto de desejo! E, não havendo mediação, o conflito é iminente. Marlowe é quase Kurtz quando chega ao “Coração das Trevas”. A dualidade que acompanha esta história de Joseph Conrad esbate-se no final: o primeiro vai-se tornando no segundo, que é seu rival e modelo. Com efeito, é precisamente essa rivalidade mimética que, ao apagar a diferença, desencadeia violência. O sujeito e o modelo não podem ser rivais. No Antigo Testamento Caim matou o justo e modelar Abel. O desejo mimético da relação que o último tinha com Deus despertou vontade de morte do primeiro. O reflexo sugere paixão e, por ela, também inveja. III Facilitando na Antropologia, podemos dizer que a crise mimética leva a um conflito que poderá pôr em causa determinada ordem cultural ou grupo social. O desejo e, logo, a rivalidade começam como fenómenos isolados que podem evoluir para uma disseminação mimética, envolvendo os vários membros de determinada comunidade. O ponto interessante de Girard é afirmar que, nas sociedades primitivas, a erradicação desta violência passava pela escolha arbitrária de uma vítima cuja supressão eliminaria a rivalidade latente, reconciliando as divergências. A violência só seria ludibriada através de um escape, de algo para devorar e que, ao mesmo tempo, a estancasse. O sacrifício é esse elemento devorador que contém a tensão e possibilita a harmonia social. É uma expiação que sublima catar-

Cf. Girard, René; La Violence et le Sacré; Paris: Pluriel, 2011.

JEAN COCTEAU

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DO REFLEXO AO DESEJO: A VIOLÊNCIA SACRIFICIAL


Nuno Fragata

fecundo de toda a significação humana. Assim, as acções de martírio por parte de alguns seguidores da violência religiosa são, nesta perspectiva, um ritual de purificação individual e de purificação do mundo. Este tipo de acção violenta é demonstrativo e acarreta sempre um significado simbólico. O acto de violência religiosa é como que um ritual religioso público que quer ter um forte impacto para quem assiste. São por isso acontecimentos de “performance” – querem fazer um discurso simbólico (!) –, e actos “performativos” – querem mudar as coisas (!). Estamos pois no campo de uma violência que se assume como expressiva e existencial. Partindo da ideia de reflexo, desejo mimético e sacrifício expiatório, pode ler-se o sentido mais exotérico de muitos ritos de culturas arcaicas. Porém, não fiquemos por aí. Esta linha também é mister interpretativo para a catarse social das sociedades modernas, onde o elemento fundador de várias comunidades partiu do pretenso tiranicídio - Le Roi est mort, vive le Roi! IV Narciso, ao ver-se, deseja-se e morre. Alice, não: o seu espelho não tinha reflexo… O primeiro pressupõe infinidade e rosto; o segundo, uma solitária e pouco fecunda experiência de labirinto sem o reflexo crú da realidade. Vanitas, vanitatum et omnia vanitas. No final todos somos narcisos em desejo e pulsão de morte. Entonces Bioy Casares recordó que uno de los heresiarcas de Uqbar había declarado que los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número de los hombres. Jorge Luís Borges, Ficciones

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ticamente a violência. Constrói-se assim um sistema antropológico-fenomenológico para explicar a estrutura da violência nas sociedades, identificando-a como origem da cultura e da religião. Hoje, temos o sistema judicial que racionaliza a violência, desempenhando as mesmas funções do sacrifício nas sociedades primitivas. Mas, para além do racional, o sagrado também está pleno de violência. Isaac é quase sacrificado por Abraão. Cristo, o cordeiro de Deus, morre pelos pecados dos homens. O shaheed, mártir da jihad islâmica, mata-se por um Islão mais puro. Agamémnon sacrifica Efigénia para aplacar a ira de Artemis e vencer Tróia. É uma violência sacrificial necessária como pré-condição para a coesão social. A estabilidade da estrutura político-social é mantida através de um mecanismo que permite a expiação sobre uma vítima (grupal ou individual), que carrega todos os males e sobre a qual é canalizada a violência. A violência é por isso fundadora de cultura e religião. E estas duas dimensões detêm rituais que a simbolizam e representam, perpetuando essa mesma violência sacrificial da vítima expiatória que catalisa todo o mal do grupo e que, por isso, passa a ser fonte de todo o bem. O processo transcendental da violência sacrificial é, segundo Girard, a génese do sagrado. O ritual simbólico assume um papel atenuador da violência na sociedade. Mas quando os ritos não conseguem produzir o equilíbrio para a não-violência surge a crise sacrificial, e efectiva-se a violência. “O rito é a repetição de um primeiro linchamento espontâneo que trouxe a ordem de volta à comunidade”, diz Girard. O sacrifício, pejado de significado simbólico, re-presenta a luta contra o caos e contra a violência. O universo místico e ritual advém do facto de a violência ser o elemento fundacional e

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AUTENTICIDADE E CÓPIA A REALIDADE COMO REFLEXO DA SUA PRÓPRIA IMAGEM ISA BEL X AVIER

Quando escreveu o célebre ensaio “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”, Walter Benjamin alertou-nos para o facto de essa possibilidade transformar a perceção que temos dos objetos artísticos, despojando-os da aura de que até então estavam revestidos, ou seja, do seu caráter ritualístico ou sagrado. Segundo ele, “A obra de arte reproduzida será cada vez mais a reprodução de uma obra orientada para a reprodução. Por exemplo: a partir de uma chapa fotográfica é possível tirar um grande número de cópias; não faz sentido interrogarmo-nos sobre qual será a autêntica” (Benjamin, 2006, 215-216). Nesta asserção, a transformação operada em nós, por influência da reprodução técnica, para além de estética, é sensorial. Modifica-nos sensorialmente. A proximidade e a distância passam a ser conceitos fluidos, dependentes das tecnologias ao nosso dispor. Também a questão da visibilidade ganha novos contornos num mundo em que a TV faz programas como Big Brother ou Secret Story. Ao contrário da perspetiva contida em obras como a de Foucault, nas quais a vigilância é tida como algo punitivo, nesses programas a vigilância é associada ao princípio do prazer. As personagens representam-se a si mesmas numa situação criada de propósito para o efeito, totalmente artificial, mas que se torna, enquanto dura, a realidade daquelas pessoas. Andy Warhol foi pioneiro desse tipo de práticas, captando o dia a dia da factory, nome que dava ao local onde vivia e trabalhava com outros artistas, em filmes nos quais se evidenciava a dimensão lúdica que a gravação de imagens e de sons dos respetivos ocupantes podia

significar. Explorando-as enquanto forma de arte. Presentemente, dada a banalização da captação de imagens, assiste-se ao declínio da distinção entre privado e público e à internalização da observação permanente como um facto. Para isso contribuem também as câmaras de vigilância que proliferam no espaço público urbano. Ao contrário do que se poderia esperar, a vigilância assim exercida foi perdendo o estigma da manipulação, sendo socialmente aceite enquanto ganho adicional de segurança. Perdeu-se o horror à vigilância porque ela já não é exercida pelo Estado, mas pela sociedade mediatizada que se observa a si mesma. A preocupação pela vigilância conduz ao investimento numa política de suspeição, na qual a priori todos somos potencialmente culpados ou, pelo menos, suspeitos. É a sociedade de controlo de que nos falava Foucault em toda a sua extensão. Os espaços de confinamento, criados à semelhança do panótico de Bentham, paradigma da sociedade de vigilância (Foucault, 2009), corresponderam à linguagem analógica, enquanto as novas formas de controlo se ligam à linguagem digital. Bentham projetou uma visibilidade universal mas sob um olhar vigilante. Queria proceder à eliminação das áreas obscuras do Homem. No seu panótico o mais importante era a dissuasão, correspondendo por isso a um duplo sistema, que atingia simultaneamente o olhar e a interiorização, ou seja, a consciência de que se pode estar a ser observado, vigiado. Subjacente à conceção do panótico está a necessidade de máquinas de exercício do poder e seria bastante interessante analisar quanto as máquinas que atualmente garantem o funcionamento da sociedade de


Lord Mantraste e José Torres

do continuar a opor a antiga dualidade ontológica aparência/ser. Na verdade, a maior parte do nosso saber provém dos meios de comunicação; o saber assim adquirido fica incorporado no saber que temos por experiência própria, sem disso termos plena consciência. A realidade é mediada ou mediatizada, não imediata, o que provoca uma “nostalgia da realidade” (Innerarity, 2010, 95). Baudrillard fala em “greve dos acontecimentos” (1992, 14). “Os meios de comunicação social não descrevem uma realidade exterior: são autores, eles próprios, num campo social de forças em que exercem influência e que neles a exerce também. (…) Os meios de comunicação não nos informam sobre o que acontece, mas sim sobre o que os outros consideram ter um valor de acontecimento. Não observam acontecimentos: observam observações” (Innerarity, 2010, 95/96) Já Baudrillard, autor conhecido pelo radicalismo das posições que assume, alertara para o facto de as representações se terem transformado em mercadorias. Para ele, as simulações começaram por ser produzidas pelos media e pelas novas tecnologias, para acabarem por se estabelecer através da manipulação dos signos em geral. Signos que não se apresentam como economia, mas como signos culturais. Segundo este autor, julgamos viver numa sociedade em que a comunicação está facilitada, mas toda a comunicação se baseia na lógica do código e da equivalência. É como se as nossas vidas estivessem simuladas dentro destes equipamentos. Como reação compensatória, queremos viver experiências que nos remetam para a realidade pura, crua e intensa, estabelecendo o

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controlo ainda estão sob a influência do modelo que instaurou a sociedade de vigilância. Há uma tensão própria que deriva da observação constante vivida na sociedade de controlo. Daí o apelo de Peter Weibel: “Observar o observador, supervisionar o supervisor, monitorizar o monitor – eis um princípio básico da democracia” (Weibel in Levin, 2001, 76). Mas é indubitável que os novos media têm um potencial democratizante. Autores como Jameson destacam o facto de vivermos em rede, o que torna impossível determinar a origem e o fim da informação. Tudo se passa segundo o paradigma rizomático, não fundacional, situação que coloca em causa as hierarquias tradicionais de poder, com consequências profundas ao nível da cidadania. Hoje em dia, mais do que poder existem exercícios de poder. O poder é sempre relacional e é um jogo. O poder depende do seu próprio funcionamento (técnicas, funções, modelos), isto é, o poder é uma prática. Os media constroem as suas audiências e o mundo de que essas audiências se apercebem. “ O processo de mediação ativa serve sempre para juntar lugares separados no espaço ou no tempo, algo que se cumpre gerando um espaço comum para estes lugares ou, mais significativamente, transformando as condições de os experienciar” (Koch in Latour, 2010, 748). Central no espaço comum é a questão da equivalência, que remete para a regra da representação, a regra do mesmo. Innerarity, por sua vez, alerta para o facto de não haver uma realidade objetiva sobre a qual se organizam opiniões subjetivas. Ou seja, não tem senti-

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A CÓPIA culto da experiência imediata: produção em pânico do real e do referencial. Em objetos manufaturados ou em experiências que procuram ser mais reais do que a própria realidade (hiper-realismo). A omnipresença dos media, ou seja, a possibilidade de transmitir no momento em que acontecem as imagens desses acontecimentos através da internet, modifica e cria uma nova dimensão da “consciência de si”. Como se esta dependesse dessas imagens para existir. Como se a própria existência da realidade dependesse da captura das imagens que cria. Processa-se uma televigilância global através da net muito maior da que alguma vez foi processada pelos mass media, naquilo a que Paul Virilio chama “advento do tempo real universal” e também “novo mercado da visão” ou “acesso direto permanente” (Virilio in Levin, 2001, 109). Há uma democratização do voyeurismo que nos expõe nas nossas atividades mais privadas. O preço de termos transformado o nosso computador num monitor de vídeo que nos permite saber o que está a acontecer em todo o mundo, é sermos nós mesmos também visualmente controlados. Cria-se uma nova perspetiva: a do tempo real. Ocorre uma generalização das perspetivas individuais, que provoca no todo uma situação de instabilidade, de generalizada irracionalidade. A imagem coincide com o seu objeto, sem intervalo, o que pode causar uma profunda transformação da nossa relação com o real. A digitalização da informação pode causar o declínio das sensações imediatas. Numa visão aproximada, Weibel afirma que “voyeurismo, exibicionismo e narcisismo são transformados de critérios psicológicos individuais em critérios de categorias sociais” (Weibel in Levin, 2001, 208). Já Foucault havia considerado a existência de mecanismos de poder suportados por mecanis-

mos libidinais, psicológicos por trás dos mecanismos de vigilância. “As imagens dos mass media mostram a inconsciência social, os desejos e medos coletivos reprimidos. (…) Através de dados reais produzem as imagens para os mass media de modo a tornar o que é reprimido socialmente visível” (Weibel in Levin, 2001, 210). A propósito, Weibel cita Lyotard: “O trabalho essencial do artista é mostrar que há coisas invisíveis no visível”, e Baudrillard: “Produzimos para as imagens.” Ou seja, a realidade torna-se o reflexo da sua própria imagem. Por sua vez, Úrsula Frohne afirma: “No contexto deste desenvolvimento, a teatralização de todas as esferas da vida privada e pública provou ser uma das mais marcantes feições da nossa experiência diária na cultura contemporânea” (Frohne in Levin, 2001, 255). Resta dizer que a captação e a transmissão das imagens dos acontecimentos através dos novos media podem provocar uma intensificação da experiência, na medida em que a partilha das imagens confere ao acontecimento um novo significado, ampliando-o, pelo menos em termos de público. Em todo o caso, tal como alerta João Barrento, “Nesta era da imagem que, no entanto, não é um tempo do olhar, o mundo está aí, ainda e sempre, à espera de ser… Não interpretado (o seu sentido escapar-nos-á sempre), não transformado ou revolucionado, mas simplesmente olhado com olhos de o ver, e ao que nele ainda brilha” (Barrento, 2011, 98).


Bibliografia: Barrento, João (2011) O mundo está cheio de deuses. Lisboa: Assírio e Alvim Baudrillard, Jean (1991) Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água Editores Baudrillard, Jean (1992) L’illusion de la fin ou La grève des évènements. Paris, Galilée Benjamin, Walter (2006) A Modernidade. (Obras Escolhidas de W. B., edição e tradução de João Barrento). Lisboa: Assírio & Alvim Foucault, Michel (2009) Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes Innerarity, Daniel (2010) O Novo Espaço Público. Lisboa: Teorema Editores

Levin, Thomas Y.; Frohne, Úrsula; Weibel, Peter (2001) CTRL (Space) Rhetorics of Surveillance from Bentham to Big Brother. The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, London

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Latour, Bruno (2010) Making Things Public – Atmospheres of Democracy: The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, London

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A IMITAÇÃO NAS COISAS PEDRO X AVIER MENDONÇ A

Não há técnica que não queira ser humana. O instrumento dá-se como parte de um corpo antropomórfico, mesmo quando a isomorfia não se reconhece como tal. A “natureza” lançou na humanidade a humanidade e esta traz a “natureza” como holismo. Estamos aí para sermos mais, dir-se-á; ou menos, poderão outros responder chamando a atenção para os excessos quantitativos. Em qualquer caso, uma mudança, um deslocar ou um equilíbrio dentro do mesmo, numa multiplicação que arrasta os pontos anteriores, um espraiar com memória e expressão de todos os elementos precedentes. Uma coisa que acontece sem novidade, pois a novidade como tal seria irreconhecível. Damo-nos ao exterior com a diferença a surgir na recomposição que não deixa de trazer sempre a marca de um corpo que se copia. Só assim nos reconhecemos e nos vemos, a nós, no tempo, bem identificados. A técnica como imitação do humano ou como sua extensão que traz dele características fundamentais - as quais permitem, precisamente, conceber a ideia de que nos estendem - é uma noção que faz parte da intuição dos primeiros pensadores da tecnologia do ponto de vista das ciências sociais e das humanidades. Hermínio Martins (2011) refere-se à obra de Ernest Kapp como uma das primeiras que explora esta perceção, comparando diferentes tecnologias com os respetivos órgãos humanos. Os instrumentos técnicos seriam resultado de uma projeção orgânica. Por exemplo, o martelo imitaria a mão e o telégrafo o sistema nervoso. O conhecido estudioso da comunicação Marshall McLuhan (1974), posteriormente, também adota esta ideia, hiperbolizando o papel dos meios tecnológicos na comunicação de mensagens. O filósofo da tecnologia Don Ihde (1979), por sua vez, defende mesmo que alguns instrumentos constituem-se como autênticas incorporações dos membros humanos, tendendo a uma certa transparência, isto é, a desaparecerem enquanto meios, tornando-se, portanto, corpo. Por nunca se ausen-

tarem por completo, o autor chama-lhes semi-transparências. É o caso da pinça ou do giz – provocam um efeito extensivo quase transparente no corpo que os manuseia. A par do sonho da simbiose entre homem e máquina de J. Licklider em artigo de 1960, a dialética entre corpo e matéria técnica é um jogo de espelhos que, além de refletir, reconstrói a imagem mútua quer dos organismos vivos quer dos tecnológicos. Contudo, a tendência para a automação da tecnologia produz artefactos que se afastam da necessidade de serem mantidos pelo gesto (Leroi-Gouhran, 1983). Baudrillard (1969) chega a afirmar que os objetos do século XX deixaram de atender à ergonomia do corpo humano, desenvolvendo-se numa lógica funcional divorciada das disposições corporais do Homem. Um diagnóstico talvez exagerado, ainda que seja difícil negar que os objetos contemporâneos modificam-se de forma muito mais rápida do que a evolução biológica é capaz de acompanhar ou a aprendizagem comportamental consegue produzir. Esta transformação movida pela inovação não deixa de ver na humanidade um modelo, ainda que um trans-humano ou um Outro humano que adivinhamos já aí a partir da imaginação de engenheiros, designers e ficcionistas. O aceleramento leva-nos para novos reconhecimentos ou para o reconhecimento do Outro em nós. Há reproduções desta visão na bioarte, num modelo que projeta a alteridade nos animais mediante alterações genéticas e orgânicas de cunho estético (Garcia, 2010). Encontramos também vários exemplos deste jogo de espelhos nas tecnologias que hoje enformam o nosso quotidiano, uns na face humana, outros na tecnológica. Os casos comezinhos são os massificados, e aí os mais interessantes. Um deles é o dos tropos que alguns objetos adquirem do corpo humano para se designar as suas partes, como se não houvesse outra hipótese. As cadeiras têm braços e pernas, as mesas só têm pernas e os parafusos têm cabeças.


de processo para que se disponibilize. A diferença de processos permite uma espécie de metáfora que poderíamos chamar material. Pala lá das disponibilizações – “affordances”, no dizer de Gibson (1979) – tudo o resto pode ser variável, muito diferente até, mas sempre comparável. O ecrã é comparado à secretária e as pastas informáticas a pastas de cabedal. As “affordances” mantêm-se. Porque nada disto se concretiza isoladamente, as disponibilidades dão-se em cascata (Michael, 2000), intersetam-se em possibilidades de movimentos, práticas, fluxos. E aí a isomorfia confunde-se com traços da mesma corporalidade e o corpo com repetições e semelhanças atómicas unidas numa só dinâmica. Por estes enlaces ocorrem relações de aprendizagem do homem sobre a tecnologia e da tecnologia sobre o homem, as quais permitem os laços que produzem a cascata. Aprender trata-se também de reconhecer, de encontrar em si o que já existia, qual reminiscência platónica das ideias pré-existentes na alma, mas desta feita sem platonismo e num certo empirismo metafísico (Latour, 2005), isto é, encontrando as possibilidades do mundo no mundo. Vigotsky (1978), como estudioso da aprendizagem, refere-se ao que chama “Zona de Desenvolvimento Proximal” enquanto ponto limite no qual um novo conhecimento é suficientemente entendível para ser compreendido, mas sem poder ser demasiado distante do quadro cognitivo prévio do aluno de modo a ser assimilado. Ora, na forma como a tecnologia e o humano interagem ocorre de parte a parte algo semelhante: as tecnologias não podem propor novas funcionalidades completamente irreconhecíveis pelos utilizadores, tal como o humano não pode tentar comportar-se perante a tecnologia de formas díspares ao que se disponibiliza. Por isso, assistimos constantemente a forças de imitação mútua que têm como função, na realidade, diferenciar, criar a novidade ou a transformação, mas por via de um caminho minimamente orientado e conhecido. O paradoxo é

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Estas partes tipicamente humanas são projetadas em formas técnicas aparentemente idênticas. Que outra coisa é aquilo que sustenta um corpo senão uma perna? Que outro nome poderia ter o que suporta um tampo e tudo aquilo que nele pousa? O nosso reflexo nas coisas não poderia ser mais explícito. O mundo partilha formas e “soluções” funcionais que de um certo ponto de vista não são essenciais a qualquer ente, mas difundem-se pelos vários e as suas situações. Não obstante, a partir das formas humanas “tradicionais” constituem-se imitações técnicas que, não sendo humanidade em si mesmas, a multiplicam como eficiências eletivas, digamos assim, isto é, casos que resultam e por semelhança nos reproduzem. É por esta razão que, quando consideramos a corporalidade antropológica, devemos vê-la articulada com as práticas que a constituem numa dada circunstância espacial e temporal. Por exemplo, um corpo em frente a um computador não é um corpo isolado. Faz-se da sua relação com o ecrã, o teclado e um eventual edifício. Aqui o artefacto ganha uma expressão especial na sua relação com outros artefactos, numa triangulação com o ser humano. Neste domínio encontramos por vezes processos de imitação entre tecnologias com o objetivo de facilitar o reconhecimento por parte dos utilizadores. Um dos exemplos mais evidentes é o “desktop” e as pastas dos ecrãs de computador. A expressão anglófona “desktop” remete para o tampo de uma secretária, algo que o Windows não é. As imagens de pastas no ambiente de trabalho do computador também imitam as pastas físicas onde se guardam e transportam objetos. Em ambos os casos, usa-se uma referência externa para identificar uma referência interna, a secretária remete para onde se visionam os documentos e as pastas para onde estes são guardados. Estas analogias permitem que os utilizadores reconheçam em novas tecnologias funcionalidades que já existiam noutras, ainda que o suporte seja totalmente diferente. Uma função não depende de um só tipo

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A CÓPIA que a imitação conduz à singularidade e até a uma certa originalidade. O robot radicaliza esta projeção mútua na relação entre os seres humanos e a tecnologia. Começa por ser uma automação, sendo nisso já qualquer coisa de humano - no sentido até da individuação referida por Simondon (1989), isto é, da progressiva composição integrada, quase independente - mas passa a ser uma antropomorfia na imitação das formas e comportamentos humanos, sendo esta versão aquela que mais povoa a imaginação da ficção científica. Imaginamos que criamos um ente igual a nós. Assola-nos um misto de tentação demiúrgica e desmobilização do trabalho físico. Por um lado, o homo faber quer-se capaz da criação absoluta do Outro, ainda que quase o mesmo; por outro, deseja implicitamente deixar o fardo do labor que ainda se lhe exige para a produção de coisas. Se estas lhe forem semelhantes, talvez um dia se liberte de si. A imitação nas coisas é um divórcio das coisas que aí começam por estar. É a construção da alteridade que em nós se adivinha. A fabricação é um imenso espelho retorcido e a cópia a falácia da industrialização.

Baudrillard, J. (1969) El Sistema de Los Objetos. Mexico: Siglo XXI. Garcia, J. L. (2010) “Bioarte, Biotecnologia e Metacriação”, José Pais Machado e Maria de Lourdes Lima dos Santos (Eds.), Novos Trilhos Culturais: Práticas e Políticas (pp. 137-157). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Gibson, J. J. 1979. The Ecological Approach to Perception. Londres: Houghton Mifflin. Ihde, D. (1979) Technics and Praxis. Boston: D. Reidel Publishing Company. Latour, B. (2005) Reassembling the Social: an Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: University Press. Leroi-Gouhran, A. (1983) O Gesto e a Palavra 2 - Memórias e Ritmos. Lisboa: Ed.70. Licklider, J. (1960) “Man-Computer Symbiosis”, IRE Transactions on Human Factors, Electronics Volume HFE-1, pp. 4-11, Março, disponível em http://groups.csail.mit.edu/ medg/people/psz/Licklider.html Martins. H. (2011) Experimentum Humanum, Civilização Tecnológica e Civilização, Lisboa Relógio; D’Água. McLuhan, M. (1974) Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, Editora Cultrix: São Paulo. Michael, M. (2000) “These boots are made for walking...: mundane technology, the body and human-environment relations”, Body and Society, 6, 3-4: 107-126. Simondon, G. (1989) Du Mode D’existence des Objects Techniques. Paris, Aubier. Vigotsky, L. S. (1978) Mind in Society: The Development of Higher Psychological Processes. Cambridge e Mass.: Harvard University Press.


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SOBRE TRADUÇÃO RIC A RDO NORTE

“AQUI, O DIÁLOGO É NECESSÁRIO COMO TOCHAS NUMA CAVERNA” MANDELSTAM CONVERSAS SOBRE DANTE

Vou começar por separar, pois tantas vezes nos intoxicamos com fumos que poderiam ser evitados, e tão poucas vezes distinguimos o que é comum. António Machado, sobre a aparência de construção do comum, diz: “Crescerá o volume total da ciência quando o saber se especializa? Essa é a grande ilusão e o consolo dos especialistas. O que sabemos entre todos! Oh, isso é o que não sabe ninguém!”. Far-me-ei acompanhar por poetas e não por especialistas, porque os caminhos que desejo percorrer são talhados com palavras e versos que me movem, que me mudam, que me traduzem. E não por conceitos gerais, aplanados pela quotidianidade que nos fixam e asseguram. O título “sobre a tradução” deve ser traduzido “na tradução”, no movimento de trazer à palavra. Porque nada está simplesmente presente, para que possa ser apreendido na sua simplicidade. O que aparece, em virtude desse mesmo aparecer, pode nos escapar. Olhar para uma coisa sem a ver, percorrer um texto sem o ler, é uma experiência que fazemos todos os dias. Começo por separar, no sentido contrário do especialista, não para dominar, mas para que possa juntar de modo mais necessário, para que se dê a ver o que de cada vez se descobre sob uma nova lei. Começar por separar, quer dizer que nem tudo é traduzível e nem tudo é tradução. À tradução que se entende como substituição de palavras equivalentes, que transfere um texto de uma língua para outra, mostrando a mesma expressão sob outra aparência, para a qual o único problema seria de ordem cultural (no sentido de procurar formas reconhecíveis em modos de vida diferentes), não lhe chamarei tradução. Essa é a primeira separação, um conjunto de sinais que somente teriam de encontrar os seus

equivalentes para que a mensagem fosse conduzida ao espírito dos leitores – não é o que irei chamar tradução. O que tratarei como tradução é o que experiencia precisamente a ausência de equivalentes, porque fundamentalmente equivalentes são as bibliotecas, os departamentos de investigação e todos os grupos de pesquisa, mas onde reside uma diferença abissal é entre a biblioteca e um poema de René Char que pode mudar o mundo de um indivíduo. Para o dizer com Cummings “ o que faz girar qualquer mundo não é a diferença trivial entre uma Somerville e uma Cambridge, mas a diferença incomensurável entre qualquer uma delas e a individualidade” (eu: seis inconferências). Separei para poder dizer que só há tradução onde se traz à palavra o intraduzível. Disse que me faria acompanhar por poetas, isto porque considero Poesia, no sentido mais largo do termo, uma celebração, onde celebrar é fazer-se celebração. Não é a comunicação o campo da poesia mas a comunhão. Tomar a sua parte “entre os homens parciais a favor do homem inteiro”, como diz Emerson, experienciar que “crescer não é possível sem vibrar”, com René Char. O que é que quer dizer “ser absolutamente moderno” em Rimbaud? Que celebrar não se coaduna com rituais estabelecidos, os quais se empobrecem na sua repetição sucessiva até se tornarem num esqueleto formal do que eram, e que a tarefa do poeta é ser capaz de mergulhar no desconhecido da sua época “e trazê-lo na mão, como Prometeu trazia o fogo”, para que possa possuir “a verdade numa alma e num corpo” (carta a Paul Démeny). Quando Proust nos diz que “ O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração.” Como é que me posso manter nos significados habituais que possuo


ções já estão provadas de antemão. Mudar a vida, deixar que a vida se mude e que a palavra seja fruto de uma espera que não violenta mas que se ruboriza de pudor das sucessivas violações. O pudor, que rapidamente o “burguês” apelida de cobardia, é ao contrário a coragem do amante que renasce sucessivamente na espera da sua amada. Se não mudarmos a vida, ficaremos na constatação do princípio da carta “que palavra e acção deixaram de rimar”— e o poeta em vez de flutuar nesta impossibilidade, é aquele que não se deixa sufocar, ou antes, porque sente o sufoco, parte em busca do desconhecido tenha ele que forma tiver. — é a exigência do seu amor que faz o poema — uma celebração comum de uma lei particular a cada um — “ser absolutamente moderno” é descobrir que a cada instante somos chamados a encontrar o lugar onde a palavra é acontecimento – e que isso não acontecerá naturalmente, e como nos diz o poeta (na carta do vidente que temos vindo a citar) desta vez a palavra irá à frente da acção. De que modo é que a tradução se articula com o que chamei “celebrar”? Precisamente ao deixar-se ser posta em movimento pela preparação da “Festa”. Como é que poderia traduzir o que quer que fosse se não me implicasse inteiramente no que pode dizer o que é dito, no que fica por dizer do que é dito? Lembremo-nos da resposta de Rimbaud à sua mãe quando esta lhe perguntou o que significavam as suas histórias: Eu quis dizer o que isso diz, literalmente e em todos os sentidos. Tsvetaeva di-lo de outro modo: “Nos meus versos como no mar: várias correntes.” Comecei o texto por separar, tentarei agora juntar. Ligar o que parece ser uma simples evidência, que Aprender a traduzir é aprender a ler. Ler não é outra

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destas palavras, sem entrar num ritmo de dilatação que me renova por inteiro o que entendo por espaço, por coração, deixando desfazer-se lentamente como um caramelo a interpretação do tornados sensíveis? Ser absolutamente moderno é saber “que a musa nos abandonou” e que a tarefa do artista é ser capaz de ver, mas que sabe que “ver é conceber”(Cézanne), sem nenhuma passividade, que um acto é uma cerimónia. Ser absolutamente moderno é não poder esquecer a condição que nos impõe os nossos tempos, nos quais não somos transportados pela musa como Píndaro era, que cantar hoje é inseparável do outro grito de Rimbaud “há que mudar a vida”. O abandono da musa não vem deixar o poeta entregue ao que se chama hoje uma poesia do ruído (qualquer destas definições é já uma fuga ao esforço a realizar, e, mesmo que a forma por vezes esteja em relação ao ruído, não poderia haver uma poesia do ruído ou do fragmento, ou de tantas outras divagações temáticas que a crítica por vezes teima em essencializar), passamos demasiado rápido – do abandono da musa ao sujeito que se recria. Lembremo-nos da inocência do “cobre que se vê transformado em clarim”. Dentro da contradição aparente, afirmo o abandono da musa e a simultânea existência da inspiração — tomando como articulação das duas coisas o “Há que mudar a vida” — e o que é a inspiração senão um movimento de impregnação, a distensão do arco num espaço novo, depois da expiração — de uma crítica no seu sentido mais activo, da separação do ar retido; afastamento do que seria fatal se se mantivesse imóvel, de tudo o que persiste em se fixar sobre o nosso átrio desconhecido — de que modo “mudar a vida” senão deixarmos que a vida se mostre como vida, ou seja, que não avancemos sobre ela armados até aos dentes, sem a depormos num tribunal onde todas as acusa-

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A CÓPIA coisa senão juntar o que faz sentido junto, mas será assim tão óbvio? O óbvio, assim como evidente, tem o seu sentido no movimento quotidiano, no qual aderimos a uma leitura já feita das coisas. Não lemos o mundo, mas movemo-nos numa determinada leitura do mesmo, que nos permite agir sobre as coisas de modo eficiente. A própria noção de eficiência é fruto de um certo modo de pôr em conjunto, que nos nossos dias se tornou “o valor” por excelência. Portanto, a leitura nunca está no campo do evidente, por isso mesmo, o evidente é o que requer de modo mais intenso a questão. Espontaneamente, entendemos traduzir como tornar algo familiar, mas traduzir no seu sentido mais fértil – é conduzir à palavra o inabitual e deixar que a palavra o acolha. Pôr em conjunto é recolher, e isso é o que ainda nos diz a palavra λεγω – eu colho, eu digo – que em latim, lego, dirá “eu leio”, mas manterá o sentido de recolher. Esta, à primeira vista estranha metamorfose, diz-nos algo de profundo sobre a língua, que se mantém na passagem do grego para o latim. Sem entrar em suposições de origem, poderemos dizer que falamos porque podemos ler o mundo – mas mais radical é a descoberta que só há mundo onde a palavra o diz. Aprender a traduzir é aprender a ler. Todos os grandes textos ensinam a ler (o que não quer dizer que não possam ser mal lidos). Precisamente porque nascem de uma relação de escuta e atenção e não de um modo de utilização do já conhecido, todo o utilizável se entende sempre sobre um conjunto de coisas já adquiridas, se permanecermos no esforço da instrução, e da utilidade, avançamos sobre o texto com as nossas “teorias” e deslizamos sobre ele, sem que entremos nas suas sendas. Proust escreve em O prazer da leitura: “O espírito do letrado, sem actividade original, não sabe isolar nos livros a substância que poderia torná-lo mais forte; enche-se da sua forma intacta, que, em lugar de ser para

ele um elemento assimilável, um princípio de vida, é apenas um corpo estranho, um princípio de morte.” Levinas disse uma vez que em vez de perguntarmos “o que é que isso quer dizer”, se devia perguntar “o que é que isso pode dizer”— esta pequena fractura abre um abismo que coloca o ponto directamente no que estávamos a dizer da tradução. Traduzir é na sua própria língua perguntar o que cada palavra pode dizer. Podemos pensar na obra do poeta Francis Ponge (que nunca se considerou como tal) como o paradigma deste trabalho de tradução (paradigma no sentido em que admitimos que nenhum plano é possível). Todo o trabalho de Ponge é a inteira dedicação a que a “coisa” tratada venha à palavra – “coisa” não é para ele um mero objecto, uma “coisa” pode ser um prado, um sabão, o fim do outono, uma mulher grávida, e ao contrário do objectum que pressupõe e depende do subjectum, a “coisa” precisa de ser reconhecida como algo que requer um olhar novo, uma aproximação e questionamento que a vão libertar para que seja ela que se diga – a sua obra (que é um estar a caminho) inclui todas as procuras, formulações e reformulações que o próprio Ponge ou publica posteriormente ou integra no “poema” ele mesmo – as suas hesitações, os seus despistes, tudo faz parte do seu trabalho de escuta, tudo o que escreve é este obstinado caminho de diferenciar a coisa na sua qualidade própria – se Ponge usa a metáfora no começo como analogia, não é senão para se aproximar da coisa e em seguida destruir a metáfora e separar de modo mais eficiente. A sua responsabilidade é a de quebrar toda a sedimentação sensitiva que se acumula na palavra e, portanto, no modo como as coisas nos são dadas. A sua vontade de rescrever o dicionário surge deste movimento de querer restituir à palavra a capacidade de dizer a coisa, pois nas definições abstractas do dicionário a coisa está ausente – por ex. Mimosa: Género de plantas legu-


minosas a que pertence a sensitiva; o que é que nos é dado de uma mimosa nesta definição? Nada – Ponge não define, Ponge formula, procura formular como pode acontecer numa ostra por vezes “formular-se uma pérola” – das dez páginas onde Ponge procura “traduzir” uma Mimosa mostrarei apenas uma linha e verão a que distância nos encontramos do dicionário: “1. Cada ramo de mimosa é um poleiro de pequenos sóis toleráveis, de pequenos entusiasmos repentinos, de alegres embolias terminais”. Cézanne numa conversa com Joachim Gasquet: “ Se ele (o artista) intervém, se ele ousa, ele, débil, misturar-se voluntariamente com aquilo que ele deve traduzir, ele infiltra a sua pequenez. A obra é inferior” – Ponge, numa entrevista para a televisão: “ Tenho que deixar que a coisa se mostre sem que os meus sentimentos intervenham, eles intervêm sempre, não há dúvida, mas a minha procura é partir da coisa para o sentimento e não do sentimento para as coisas”

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Aprender a traduzir é aprender a ler, mas para que possamos recolher o que foi escrito, temos que abrir caminho por nós próprios e descobrir uma lei que nos é dirigida, metermo-nos a caminho, é descobrir que de cada vez que começo o caminho, tenho que escutar o que me é encaminhado. A hospitalidade é algo central quando se fala de tradução, e não se trata somente de acolher uma língua estrangeira numa língua materna, digamos que o que tem que ser acolhido antes de qualquer língua estrangeira é a própria palavra na nossa língua. Não há tradução sem alteridade, e é o trabalho da tradução mostrar o outro e não o substituir ou reduzir ao próprio. Se a nossa língua é língua por um acolhimento da palavra, por uma necessidade de reconhecimento do outro, a hospitalidade tem então um lugar central no processo de tradução. Deixar que o reconhecimento do outro nasça simultaneamente com o agradecimento.

Normalmente a hospitalidade tem as suas regras bem definidas, estamos prontos a acolher, mas no nosso quarto de hóspedes, sem que nada desarrume o nosso modo de estar. Ora, o verdadeiro acolhimento é aquele que cede todo o espaço àquele que é acolhido. Cada vez que coloco em abrigo algo em detrimento do hóspede, cometo uma falta de atenção – uma falta de atenção é uma falta de amor.

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IMAGINAÇÃO: SOBRE A SOCIEDADE E A CULTURA M A RCO A NTÓNIO C A RDOSO DA SILVA

A premissa da evolução em sociedade prende-se na essência com a capacidade de criar novos utensílios e modelos, e a imaginação tem um papel primordial no desenvolvimento destas vantagens. A par da evolução técnica tem existido sempre uma relação cultural directamente associada, senão vejamos como exemplo os primórdios da civilização e as pinturas rupestres nas grutas de Lascaux; rapidamente reconhecemos um aspecto social de conjunto e uma relação directa do imaginário com o quotidiano. Esta explanação serve apenas para inicialmente nos integrar numa lógica de pensamento imaginativo que pressupõe uma relação entre imagens e pensamento. Mais tarde exploraremos esse entendimento inteirado num imaginário que é movido também com base no colectivo. As ligações que pressupõem um pensamento imaginativo detêm-se entre planos, entre a realidade e a concepção, entre o psicológico e o sensorial. Segundo Sartre, a imagem de alguma coisa existe em nós num plano diferente da existência física dessa mesma coisa, ou seja, o que se nos inscreve nunca poderá ser o próprio objecto no plano do indivíduo, mas a aquisição através dos sentidos de algumas das suas propriedades. A imagem mental é portanto uma cópia da coisa real, uma existência própria condicionada por valores externos e limitações mecânicas do corpo e, se a imagem mental é a cópia da coisa real, então sempre que se reproduz algo, na base está uma cópia sensível e sensorial inscrita na psique e mediada pelo pensamento. Assim sendo, podemos dizer que a construção do imaginário é uma demanda pessoal; no entanto, muitas vezes revêem-se pontos comuns referentes a vivências conjuntas, e retemos algumas características que serão similares nas generalidades das construções imaginativas, mediante épocas e particularidades das mesmas. Quando propomos uma relação entre o imaginário e qualquer outra condição, imediatamente dirigimos a questão para um imaginário consciente, “[…]a ima-

gem é um certo tipo de consciência. A imagem é um acto e não uma coisa.” (Sartre, 2008, p. 137). Se um acto pressupõe a mediação do pensamento, então devemos cingir-nos apenas a associações imaginativas conscientes, e não nos deixarmos confundir com produções imaginárias resultantes de meros estados de alteração de consciência, de modo a focar o interesse na correspondência imaginativa presente no fenómeno cultural e social. Durante o período pré-histórico, a reprodução da imagem, na maior parte das vezes, pressupunha representar o “acto”, como animais, caçadas, etc..., eventos significativos para o grupo que eram retratados com recurso à cópia da imagem do “real”. A partir do aparecimento da escrita os pressupostos alteraram-se. Ribot diz-nos que “[...] a hipótese de um pensamento puro sem imagem e sem palavras é muito pouco provável...” (1914, p. 67), e no caso de um pensamento imaginativo não só é pouco provável como a palavra se torna complementar e cada vez mais preponderante no decorrer da história da imagem. Vejamos aquilo a que se pode chamar período de pendor religioso. Este espaço temporal é passível de ser dividido por duas épocas, sendo estas separadas entre as antigas religiões pagãs e a posteriori o Cristianismo. Em ambas reconhecemos a importância da palavra (também escrita) no domínio do pensamento imaginativo. Numa primeira fase, na antiguidade, encontramo-nos perante religiões como a egípcia, mesopotâmica, suméria, romana, entre outras. Nestas religiões estão representadas várias divindades ligadas a movimentos internos da sociedade de maneira a dar resposta a processos estruturais comunitários ou fenómenos operantes. Embora estas sociedades mantenham as suas próprias divindades, o interessante é, no fundo, quase todas elas partilharem características antropomórficas. Esta fusão imaginária entre homem e animal e a sua representação remetem-nos para uma as-


de vanguarda, quase todos precedidos de um manifesto de intenções. Se nos reportarmos a Husserl, a imagem é consciência organizada, e aí podemos aproximar as imagens materiais das imagens psíquicas e torná-las uma quase essência da coisa que nos é transcendental. A ideia que nos transmite de imagem-lembrança, que se reporta ao real, subentende que esta nos preenche os vazios deixados pelas palavras criando uma espécie de signo, o que por sua vez pressupõe uma significação lógica associada. No que se trata de novas imagens criadas, Husserl considera-as uma síntese activa, ao contrário da percepção que é puramente passiva. A intencionalidade é portanto a natureza do acto imaginativo. A modernidade ao nível da intencionalidade é talvez o clímax imaginativo da fase científica anterior ao surgimento tecnológico do áudio visual. Durante o período científico o conhecimento e o desenvolvimento de mecanismos de ajuda à percepção têm uma influência directa sobre o imaginário da sociedade. A par desta evolução, a educação escolar ampliada vem facultar a disseminação da palavra escrita, o conhecimento torna-se mais abrangente, e mesmo sendo o imaginário uma procura pessoal inseparável de um aproximar ao “real”, a comunicação de imagens e ideias converte-se socialmente em alavanca para o entendimento do “real” em consciência. Embora ainda nos mantenhamos no período cientifico, a partir de meados do século passado até aos nossos dias, deparamo-nos com um fenómeno gradualmente crescente de interferência directa das tecnologias de informação, telecomunicação e áudio visual no quotidiano. Esta relação de proximidade da imagem-cópia à imagem-lembrança, e também a capacidade de tornar produtos imaginários em ficções animadas com bastante verosimilhança, tende a dilatar o espectro do imaginário individual e a avolumar por consequência a quantidade de produtos imaginativos disponíveis. Esta fluência imaginativa

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sociação interna de duas imagens que se associam para formar uma terceira imagem híbrida que tem subjacente uma ideia. Em Ribot a ideia de imaginação criadora assenta sobre três pilares para a construção de uma imagem inovadora: um factor intelectual que se reporta a analogias ou semelhanças; um factor emocional sustentado por combinações de consciência num sentido afectivo comum; e um factor inconsciente na medida em que mesmo conscientemente não temos acesso às novas combinações, estas são geradas espontaneamente. Esta reflexão de Ribot adapta-se sem dúvida ao pensamento social e cultural do período religioso, mesmo ao Cristianismo que, embora tenha como premissa o Homem à imagem de Deus, mantém características semelhantes aos seus predecessores. Os Anjos ou mesmo o Espírito Santo valem-se do antropomorfismo e continuam a privilegiar uma representação de associação de imagens, suportada pela palavra, como mediador dum imaginário comum de cariz sociológico. Este período cultural onde a religião exerce um forte estímulo na sociedade e na imaginação prolonga-se no seu auge até ao Renascimento, perdendo fulgor em função daquilo a que se pode chamar de período científico. O período científico, imbuído numa das suas vertentes do pensamento Cartesiano, promove a razão e a lógica acima de qualquer outro atributo. O pensamento científico e as conquistas associadas ao desenvolvimento técnico impulsionam a revolução industrial e culminam na reorganização das sociedades ocidentais. Esta modificação social termina em divisões por estratos nas comunidades e possibilita uma dissociação política que admite novos imaginários comuns ligados a aprendizagens técnicas, percepcionais e ideológicas. Tudo isto ligado a uma visão cada vez mais antropocêntrica, constituí uma parcela importante ao nível da sociedade na construção dos movimentos de vanguarda. A palavra torna-se um elemento significativo nos movimentos

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A CÓPIA e a velocidade a que ocorre, frequentemente, torna o produto imaginativo proposto, e exposto em consciência, indisponível para outros que não possuam as imagens-lembrança ou os ideais partilhados, impossibilitando assim a leitura dos signos oferecidos. As artes visuais como dianteira da cultura imagética e do imaginário de produção individual compadecem muitas das vezes deste sintoma. Nota-se isto cada vez mais nas propostas artísticas que expõem a necessidade de referências de apoios materiais presentes, tais como textos ou imagens que funcionam em paralelo com a própria mostra. O aumento considerável de propostas imaginativas é no entanto discrepante do imaginário de consumo social massificado, e existe a exigência de um período de tempo para a sedimentação e aceitação de novas propostas fora de círculos específicos. A tendência geral para as grandes produções imaginativas na contemporaneidade, ao contrário do período religioso ou até grande parte do período cientifico, deixou de ser acerca de questões influenciadoras da vivência, ordem social ou perceptiva e passa a narrar-se sobre si mesma como forma de retorno financeiro. Existe um mercado da imaginação alicerçado numa questão anteriormente menos pertinente, no entanto, é demasiado cedo, e dada a rapidez de circulação de informação, imagens-cópia e produtos imaginativos finais, para se poder apontar no imediato uma direcção derradeira dum imaginário social pertinente e definidor de época.

Bibliografia: Sartre, Jean-Paul (2008) – A imaginação. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket Ribot, Théodule. (1913). le problème de la pensée sans images et sans mots. Revue Philosophique De La France Et De L’etranger, 76, 50-68. RIBOT, Théodule (1900) – L’Imagination Créatrice. Paris: F. Alcan


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INVESTIGAÇÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES DO SER M A NUEL BA ROSO X AVIER

INTRODUÇÃO

Neste ensaio tentarei investigar algumas das manifestações que caracterizam a experiência humana. A “cópia” é um tropo útil que pode ser utilizado na análise interpretativa dos sinais que recebemos durante a nossa existência. Proponho-me, talvez num estilo um pouco arrojado mas sempre sincero, a discutir aquilo a que (contingentemente) chamei o Ente Científico, o Ente Artístico e o Ser Primordial.

O ENTE CIENTÍFICO

O ente científico dedica-se a copiar o mundo. Uma teoria científica é uma imagem do mundo fenomenológico, criada por sugestão do que aí vai acontecendo. Este empreendimento é sem dúvida criativo, mas essencialmente racional. A ciência tenta explicar o mundo através das suas cópias, mas amiúde se esquece de que as suas teorias são isso mesmo: somente cópias. Há um velho dilema na história da ciência: será que a ciência, na sua marcha de teoria em teoria, de cópia em cópia cada vez mais fidedigna, se aproxima da verdade última do universo? Será que a ciência é, por assim dizer, uma empresa realista – no sentido em que descreve um mundo real, material e independente do observador? (E, como classicamente se problematiza, continuará esse mundo a existir se nenhum ser humano cá estiver para o observar?) Ou, por outro lado, na esteira de uma abordagem mais instrumentalista, será a ciência apenas um empreendimento utilitário, as teorias apenas instrumentos que explicam fenómenos, incapazes de responder a questões mais fundamentais e metafísicas sobre o universo? Esta dupla questão tem muitas ramificações e pode ser exemplificada por inúmeros casos da história da ciência. Talvez o espírito do debate possa ser captado através de uma simples pergunta: se, para explicar o mesmo fenómeno experimental, existem duas teorias científicas diferentes, qual devemos escolher? Note-se que cada teoria propõe não só uma explicação, mas também uma visão ontológica do mundo. Por exemplo, durante muito tempo a eletricidade foi interpretada como um fluido imponderável e não como um fluxo de eletrões; a luz pode ser interpretada tanto como um corpúsculo (fotão) quanto como uma onda


Lord Mantraste e José Torres

que se propaga. Antes mesmo do advento da mecânica celeste moderna no século XVII (cuja figura principal foi Isaac Newton), o problema era claramente bem colocado no contexto da astronomia grega antiga: os astrónomos tinham diversos modelos para explicar as trajetórias dos astros no céu. Qual o modelo que deviam adotar? A resposta predominante era pragmática e deveras instrumentalista: o trabalho do astrónomo não era o de filosofar sobre os segredos mais profundos do cosmos, mas apenas o de “salvar os fenómenos” (em grego: σῴζειν τὰ φαινόμενα, sozein ta phainomena). Em suma, para o instrumentalismo, o critério para escolher um modelo científico teórico, em detrimento de outro, assenta na sua capacidade de explicar dados empíricos, independentemente da natureza metafísica dos seus postulados1. Julgo que a abordagem instrumentalista capta qualquer coisa de interessante sobre a natureza do empreendimento científico – que ela é, em última instância, vazia, incapaz de captar a essência do universo. Ainda assim , a abordagem realista é a mais abraçada social e academicamente. O cientista tornou-se uma espécie de cartógrafo enamorado pelos seus mapas: esqueceu-se de que aquilo que existe de mais verdadeiro e primordial se encontra no contacto direto com o terreno que ele mapeou; o cientista já só sabe olhar o mundo através do filtro conceptual que desenvolveu, através dos mapas (leiam-se as cópias) que compôs do terreno.

1 Para tornar esta explicação mais palpável e extravagante, proponho-vos um cenário alternativo. Quando viajamos de metro, sentimos as mudanças de velocidade (i.e acelerações) do comboio no nosso corpo (ao ponto de perdermos o equilíbrio!). Em geral, a física explica que estas “sacudidelas” se devem à lei da inércia, a uma tendência natural que os corpos têm de permanecer no seu estado de movimento, estado esse que é contrariado quando o metro se põe em movimento. Ora, poderse-ia apresentar uma teoria alternativa verdadeiramente ousada; qualquer coisa como: “quando o comboio se põe em movimento, um conjunto de duendes invisíveis empurram os viajantes no metro ao ponto deles perderem o equilíbrio”. Segundo a abordagem instrumentalista, não haveria nenhum problema em postular a existência de duendes invisíveis, desde que essa teoria salvasse os fenómenos tão bem ou melhor do que a teoria canónica.

O ENTE ARTÍSTICO

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Se o ente científico se dedica a copiar o mundo, o ente artístico cria mundos. O artista não receia a sua criatividade nem o poder da sua intuição. A intuição do artista pode ser intensa ao ponto de despedaçar a realidade imposta pelas cópias do cientista. Para Platão as artes eram imitação, como por exemplo a pintura (A República, Livro X). Uma pintura é uma cópia de uma cópia – uma cópia do mundo fenomenológico que, por sua vez, é uma cópia imperfeita das formas transcendentais. O estatuto do pintor é, por isso, muito inferior

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A CÓPIA ao do filósofo, o ente que compreende para lá da ilusão. Certamente que um artista que se dedique somente a copiar o mundo não será um artista no sentido mais profundo que proponho; será talvez, um bom cientista a pintar o mundo – um ente que domina a técnica de copiar, mas que não a transcende. Talvez se possa sugerir que os cânones humanistas são um exemplo representativo do espírito que encara a arte como imitação – imitação da natureza e imitação da vida. Por outro lado, a arte moderna sugere uma confiança revitalizada no poder ilimitado da criatividade. A perspetiva muda numa inversão assaz coperniciana – parafraseando Oscar Wilde, a vida passa a imitar a arte (The Decay of Lying: An Observation). Este tipo de artista não estará portanto preocupado em saber se copia ou não o mundo. A arte vem antes da cópia e a natureza é que a copia. Para este ente, as imagens da vigília chegam a confundir-se com imagens oníricas. A natureza será, quanto muito, um manancial permanente de inspiração, e, no limite dionisíaco do espetro (adotando a linguagem de Nietzsche), deixa de obedecer a qualquer tipo de lógica. É bem possível que a estátua Galateia ganhe vida e Pigmalião chegue a consumar o seu amor por ela… Recuperando a metáfora da secção anterior, o ente artístico está só superficialmente interessado em mapear a realidade. Para o artista, não importa assim tanto se os mapas representam algum terreno, ou seja, se têm algum referente direto no mundo. Citando Wilde mais uma vez – “(…) A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é a de a admirar intensamente. /Toda a arte é deveras inútil” (The Picture of Dorian Gray). Levando a sua visão ao extremo, o artista corre o risco de se tornar escravo do que admira, escravo da beleza. Afogado na embriaguez que emana do poder estonteante da sua criatividade, a sua realidade é a sua arte, os mapas tornam-se o terreno, e o terreno os mapas. Neste limite, ele aproxima-se (pelo lado oposto!) do cientista que se tinha enamorado pela perfeição das suas descrições da realidade exterior – o artista está enamorado pela perfeição das suas criações intimistas. Julgo que, ao tocarem os extremos, ambos se transviam, ambos perdem o contacto com o terreno primordial que está ao alcance de todos os seres.

O SER PRIMORDIAL

A pergunta que sugiro agora é a seguinte: será possível contactarmos imediatamente com a realidade térrea? Haverá algum tipo de experiência pura, para lá do filtro conceptual do cientista e das criações apaixonadas do artista? Teremos sempre de recorrer a cópias para investigar


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Na tradição Oriental, a meditação é a via clássica para se (re)contactar com um estado mais puro e simples de ser. No Ocidente, tornou-se hábito falar em Mindfulness– em português, “estado de atenção plena”.

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o mundo, ou haverá outro caminho? Naqueles momentos fugazes em que nos sentimos em paz, em que sintonizamos harmoniosamente com o universo, em que os sentidos se revelam profusa e transparentemente sem (pre)conceitos, em que o cantar do pássaro e o farfalhar do arbusto soam suspensos numa linguagem infinitamente mais perfeita que todas as linguagens humanas – nesses instantes raros, sim, acredito que somos somente, acredito que contactamos com o que há de mais sagrado e primordial na natureza. À falta de palavras, há quem fale em Deus ao ter esta experiência. Podemos chamar-lhe o que quisermos: Deus, Energia, Vida… Mas quanto mais tentamos dizer de que se trata, mais a sensação se esconde, se desvanece, se esgueira languidamente entre os dedos, como o monte de areia que se tenta possuir ao fechar o punho (quando na verdade ele já estava ali mesmo, pronto a ser experienciado sobre a palma da mão). Possivelmente, todos presenciamos (e escolho esta palavra com cuidado) este estado de espírito ao longo das nossas existências, apesar de estarmos demasiado distraídos para lhe dar a devida atenção.2 Aquele que sabe simplesmente ser não necessita de cópias nem artefactos; ele simplesmente é para além de cópias (ao contrário do “ente” que se manifesta “através de”). Com isto não me refiro a uma espécie de compreensão platónica de formas transcendentais. Talvez o “essencial” não seja nem racional nem transcendental, talvez ele emane de todos os seres constantemente, e seja desde sempre e para sempre acessível aos sentidos. Que possamos estar suficientemente atentos ao que os nossos corações nos segredam, que possamos recuperar alguma espiritualidade roubada pela frieza civilizacional, e que estejamos dispostos a ouvir o que há de mais verdadeiro em todos nós e que nos visita de tempos a tempos. Não é suposto estas minhas investigações avulsas terem pretensões de tese – porque para uma tese há sempre uma antítese, donde se extrai uma síntese, que será nova tese… (ad eternum?). Não há nada de essencial nas categorias que identifiquei, e muito menos pretendo sugerir positivisticamente um caminho único (sob o risco de este meu ensaio se assemelhar mais a um conjunto de colagens sem um fio condutor muito claro). Especulo que o Ente Científico, o Ente Artístico e o Ser Primordial vão-se manifestando em nós sem nenhuma ordem especial. O meu objetivo terá sido tanto melhor cumprido quanto melhor estas reflexões forem capazes de sugerir sensações e ideias positivas, úteis e reveladoras ao leitor.

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ARTE E CRĂ?TICA Nuno Bettencourt


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ARTE E CRÍTICA

DO OUTRO LADO DO ESPELHO (E O QUE ENCONTRÁMOS POR LÁ) M A RTA PINHO A LV ES

Dois filmes da década de 1990, Strange Days (pt: Estranhos Prazeres, 1995) e eXistenZ (1999), elegem a mesma premissa como fio condutor das suas estórias: a necessidade inevitável de fuga à realidade e a criação de mundos alternativos. Em Strange Days, filme realizado por Kathryn Bigelow, com argumento original de James Cameron, a necessidade de manter o mundo à distância decorre da insustentabilidade da vida quotidiana, demasiado violenta, plena de tensões sociais e ausente de perspectivas. Esta realidade, da qual se procura evasão, é-nos mostrada pelo ponto de vista de um ex-polícia, Lenny Nero, transformado em dealer de uma nova substância inebriante: filmes feitos directamente a partir do córtex cerebral. Quem vir estes filmes pode aceder directamente às emoções e experiências excitantes vivenciadas por outros e senti-las como suas. Tal como os seus clientes, também Nero vive alguns momentos de alheamento da realidade. A fuga permite-lhe o reencontro com a sua memória e a perpétua consumação de um amor perdido. A sua antiga amante, para quem retorna, virtualmente, todos os fins de tarde, chama-se Faith. A Faith é, assim, substituída por uma nova fé. A fé na tecnologia, reconfortante e apaziguadora. A personagem descreve assim as potencialidades da droga pós-moderna: «Isto não é uma versão melhorada de televisão. Isto é a vida real. É um bocado da vida de alguém. É puro e sem cortes, directamente do córtex cerebral. Está lá, está a fazê-lo, está a ouvi-lo. Está a senti-lo. Se quiser esquiar sem sair do escritório pode fazê-lo «(...) A entrada neste universo paralelo guardado num mini-disc faz-se através do Superconductor Quantum Interference Device (SQUID), um aperelho que tem a dupla capacidade de registar e emitir as imagens. O SQUID é um gadget rígido tentacular que deve ser posicionado no topo da cabeça de modo a conectar-se com o cérebro, e está ligado, através de um sistema wireless, a um aparelho receptor, do tamanho de um iPod, que deve ser guardado a curta distância do primeiro.

eXistenZ, o outro filme referido, escrito e realizado por David Cronenberg, propõe uma justificação aparentemente diferenciada para a necessidade absoluta de evasão. Supõe-se inicialmente que esta decorre de um sentimento de total segurança que torna a vida de todos os dias demasiado enfadonha para ser suportada. A protagonista da estória, Allegra Galler, uma idolatrada designer de jogos de realidade virtual, incita o seu parceiro a voltar com ela para o jogo, depois de este o ter suspendido: «Estamos seguros, é enfadonho» - afirma. «Queres voltar para o restaurante chinês porque, aqui, nada acontece». Neste filme, a realidade é vista como multidimensional e o salto para outras dimensões diferentes das já experimentadas, como prometedor de novos prazeres e emoções. O indivíduo é caracterizado como um peão dentro do jogo que é comandado por uma força superior. O companheiro de Allegra, Pikul, surpreende-se com o seu próprio comportamento. Aquela tranquiliza-o dizendo que é necessário, para dar continuidade ao jogo, que cada personagem assuma o seu papel previamente definido. Pikul deve resignar-se a representar esse papel sob pena de desequilibrar a estrutura. Este sorri perante a necessidade de abdicar do seu livre arbítrio. É o preço a pagar pela entrada no território prometido. Em eXistenZ, a porta para o hiper-real é um dispositivo, designado por POD (casulo), muito distinto do SQUID. Aliás, ao longo do filme, e das diversas dimensões de realidade por onde vão sendo conduzidas as personagens, este reconfigura-se, de modo a adequar-se ao seu contexto. Contudo, apresenta quase sempre um aspecto orgânico, disforme, mas sensual, que reage com espasmos e gemidos ao contacto humano. Accionado por um botão semelhante a um mamilo, o POD apenas funciona ligado ao corpo do utilizador, a sua fonte de alimentação. A ligação é feita por um fio em formato de cordão umbilical que penetra no corpo humano através de um orifício feito na base da coluna do utilizador, chamado bio-port.


a entidade que tudo pode. O novo deus dissemina a ideia de perda do telos existencial e faz acreditar que só um novo universo o pode restituir. «A única maneira de saber a finalidade do jogo é jogando-o» – diz Allegra a Pikul. Em ambos os filmes, a realidade encontra, no entanto, maneira de invadir o mundo cibernético e resgatar as personagens, embora, nunca sem resistência. Em Strange Days, Nero opta pela realidade, num momento de revelação, em que compreende que não pode abdicar da sua condição humana, ainda que esta lhe pareça difícil de suportar. É Mason, amiga de Nero, a personagem que durante toda a estória se recusa a utilizar o SQUID e a usufruir das anunciadas delícias proporcionadas pela hiper-realidade, que o incentiva a optar. Nero recusa a irrealidade e a prótese que lhe prolonga os sentidos e amplia a memória. Já em eXistenZ a conclusão é eivada de maior subjectividade. Como assinalámos, a estória desenvolve-se em vários patamares de realidade sendo que o principal desafio das personagens, e também o do espectador, é a identificação de signos que possam estabelecer a distinção entre a realidade real (exterior ao jogo) e a realidade virtual. No entanto, a crescente imbricação entre estas e a redundância dos sinais leva a uma situação de perfeita indefinição. A realidade, o estádio fundador, é indistinguível dos restantes. Ainda assim, em todos os patamares, é apresentado um movimento de contestação contra aquilo que é designado como a grande desfiguração da realidade. Isto é, há sempre alguém que contesta a artificialização da realidade e tenta matar o obreiro dessa ilusão: o designer do jogo. Apesar disso, acabamos por nunca chegar a saber se alguma vez conseguiremos interromper o loop. O filme encerra-se com a perturbante questão: Ainda estamos no jogo? Nunca saberemos. Aquilo que nos parece a realidade pode ser apenas mais uma estratégia de substituição e imitação dos seus signos. As próteses, nesta estória, carnais e voláteis penetram no corpo e misturam-se como este. Não é possível renunciar-lhes.

A CÓPIA

O POD e o utilizador condicionam-se mutuamente. Quer em Strange Days, quer em eXistenZ, a existência não real é muito mais apetecível do que a real. A irrealidade, a fantasia, surge em ambos os filmes como um porto de abrigo. O que ajuda a venda do produto, seja este a substância ilícita do primeiro filme ou consola de jogos do segundo, é a verosimilhança, a possibilidade de confusão do mundo aí gerado com aquele que se pretende ocultar. Mas se, num primeiro momento, se exige a similitude com a realidade, apagam-se, em seguida, alguns dos seus sinais. O que se quer, afinal, é uma realidade sem desilusão, que perpetue o prazer e interrompa a dor. Uma realidade expurgada de culpa e de responsabilidade. Nero diz a um cliente que este pode trair virtualmente a mulher sem correr o risco de ser apanhado. Allegra mata sem escrúpulos. Doravante, nenhuma acção pode comprometer. Estamos perante a possibilidade de refúgio num mundo esterilizado, sem consequências. É a realidade sem real. No novo universo é sempre possível pôr a experiência em pause. Além disso, nada nos vincula às decisões tomadas, podemos dizer algo e em seguida o seu contrário e fazer delete das opções erradas. Esta procura de fuga à realidade é, afinal, a tentativa de escapar à natureza humana, entendida como falível e perecível. A fascinação com um mundo tecnológico e exponenciador da capacidade cognitiva e performativa parece ter sublimado o receio do desaparecimento do humano. A consequência é que já não é o indivíduo quem controla a acção. Quem o faz é a máquina tecnológica e o sistema que a engendrou. A decisão é do designer, do criador. Nada é feito que não esteja pré-determinado. Trata-se de uma experiência religiosa em que nos submetemos à vontade de um deus que nos monitoriza, manipula e tranquiliza. «Confie em mim, sou o seu padre, o seu psiquiatra, a sua ligação ao painel de controlo das almas. Sou o mágico (...)» – propõe Nero. Esse deus é a ciência que, associada à tecnologia, é hoje

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ARTE E CRÍTICA Nuno Fragata

Estamos, assim, perante duas visões distópicas em que uma admite o regresso à realidade fundadora e a outra considera que o mundo real ficou perdido entre muitas outras camadas de realidade. Uma que demonstra a possibilidade de libertação em relação à força opressora a partir do momento que questiona as suas regras e outra que se submete acriticamente ao seu domínio e que assim se torna incapaz de lhe escapar.


A CÓPIA

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ARTE E CRÍTICA

PEDRO BERNARDO FUNDAÇÃO BERNARDO CASA BERNARDO PEDROS E BERNA RDOS Nota Editorial: pedimos a alguém muito próximo do Pedro Bernardo que, em articulação com ele, nos falasse sobre este projeto que só na aparência copia outro. Ofereceram-nos esta voz coletiva, que mostra a singularidade de uma experiência única, um conjunto de espaços expositivos fora do circuito habitual, nas Caldas da Rainha.

Como começou ? Não sei; nem quando, nem porquê. Pode ser uma cópia. Pode já ter sido copiado. Mas nunca deixou de ser uma realidade única e muito particular, que continua a ser construída por muitos. Por todos os que quiserem participar, com o Pedro Bernardo como ingrediente aglutinador; sem existir, mas fazendo por magia que outros existam e contactem com a nossa existência. O Pedro tem de estar por perto, pode não ser pessoalmente, mas a sua presença tem de estar presente. Caso contrário, as coisas vão deixando de acontecer, tranquilamente... Tão tranquilamente como quando começaram. Passando a acontecer noutro lugar, com o Pedro por perto, de uma forma tão serena, natural e simples... Como uma cópia. As exposições e as performances foram acontecendo ao longo destes últimos anos; ontem mesmo aconteceu uma, e para a semana vai com certeza acontecer outra. Desde que queiramos elas acontecem. Numa primeira fase nem temos a noção de que estamos a presenciar e a fazer parte de um processo criativo que nunca se repete, embora seja constantemente mais do mesmo. As variáveis são muitas. Podemos ter a ilusão de que é algo do mesmo, mas não. O túnel foi-se transformando e, de repente, nunca mais consegue estar vazio. As suas paredes passam a transportar um sentido, que mesmo quando estão vazias não deixam de ter sentido e de nos fazerem sentir a sua presença. O seu cheiro também existe e marca o espaço, assim como a sua textura e a sua luz, ou a falta dela. É um espaço totalmente construído por um conjunto de artistas que passaram a dar um sentido a um túnel escuro, vazio e mal cheiroso. Um sentido composto por muitas direções. Difícil? Talvez, mas possível.

O museu Bernardo é mais, mais tudo. Mais difícil, mais exposto, mais vulnerável, mas também possui uma capacidade incrível de se transformar, mostrando que com vontade, entrega e trabalho é possível usá-lo, senti-lo e transformá-lo. A Casa Bernardo é uma jovem, fresca e irreverente, com uma necessidade constante de sair das suas paredes e percorrer o mundo, ou de o abraçar. A Fundação Bernardo é tudo isto, construída a partir de cruzamentos, criados por uma cidade imaginária onde os carros conseguem andar sem motor. É verdade que não conseguem ir a todo o lado, e embora o Pedro tenha tido a intenção de convidar as pessoas a entrarem, no centro da rotunda de distribuição CaldasObidosA8, nem sempre existiram as condições necessárias para estacionar o carro no local sonhado. Em tempos surgiu este sonho. Tanta coisa a que nos podíamos agarrar; Centro, Circunferência, Infinito. Que nos permitia sonhar com outras viagens. Era um local ideal, ou idealizado, mas não foi possível. Mas logo foram criadas as condições para que esse carro fosse transportado para mais longe, e um dia estacionou em frente ao Mosteiro de Alcobaça. Local onde outros amigos em tempos estacionaram para nos ajudar a fundar Portugal. Mais uma vez o Pedro não foi original na escolha do sítio. Ou terá sido o local que escolheu o Pedro, e ele não teve mérito nenhum ? Nunca se sabe quem escolhe o quê e quem copiou o quê. Para que possam assinalar apropriações indevidas do Pedro, e de quem o acompanha, passo a assinalar o seu percurso. Se estiver iludido agradeço que me indiquem os autores originais. A origem. Basicamente é o que andamos à procura, uma origem que nos indique um principio para que um dia possamos encontrar um fim.


1) 2ªAssembleia Geral, Associação P. Bernardo, Quintal do Museu Bernardo, 16.04. 2011 2) Don’t worry baby, Casa Bernardo, 22.05.2011 3) Ivo Andrade, Junho das Artes, 26.06.2011 4) André Banha e Jorge Feijão, Museu Bernardo, 13.03.2012 5) João Belga, Ghost Rider, Túnel da Fundação, 09.07.2013 6) Rita Sá, Casa Bernardo, 22.10.2011

de residências artísticas nacionais e internacionais e conquistaram uma importância não só a nível nacional, mas também internacional. Tendo dado origem à criação da Fundação Bernardo. Fundação? Será que cumpre os requisitos? Terá copiado os estatutos e a atitude de outra fundação idónea? Precisa de os copiar, caso contrário não existe, não pode existir. É necessário copiar para existir, ou será para desistir? Neste caso o Pedro optou por não copiar. A fundação Bernardo não tem estatutos, ou se os tem é como se não tivesse (alguém da associação se responsabiliza por isso). O Pedro nunca se deixou prender por eles. É simples, os projetos existem enquanto as pessoas quiserem que aconteçam, quando deixarem de querer,... os projetos deixam de acontecer. Se nós quisermos o Pedro continua a tirar partido das ideias dos outros e os outros continuam a tirar partido das ideias do Pedro. Copiem por favor esta ideia. A apropriação é constante e é necessária. Esta ideia não me pertence, mas obtive as autorizações necessárias para a utilizar, como condição este texto não tem autor e pode ser apropriado por quem estiver interessado, pois a sua autoria não pode ser nomeada, pois reflete o percurso de vários Pedros e Bernardos.

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O Pedro a partir de 1990 realizou várias viagens pelo mundo, através das quais colheu uma vasta experiência cultural que inevitavelmente imprime hoje nos seus variados projetos artísticos. Em 1996, o Pedro Bernardo abriu as portas de sua casa, no centro da cidade, para dar a ver o projeto de exposições chamado “Art Atack”, organizado por um grupo de notáveis artistas das Caldas. No ano seguinte, em 1997, o “Art Atack” apresentava a sua última exposição, num momento marcante e contagioso da história da Arte Contemporânea nas Caldas, pois em paralelo decorria a Bienal de Escultura e Desenho, e a inesquecível exposição individual da artista Marina Abramovich. Terminava então este projeto, mas ficava reforçada a vontade de continuar com novas ideias e objetivos ainda mais exigentes. Até 2004, mais exposições e viagens, e nesse ano, com o incansável contributo de muitos amigos e artistas, abre novamente as portas de sua casa para a realização de exposições, no agora conhecido espaço do “Túnel”. Segue-se em 2007 a Inauguração do Museu Bernardo, e em 2009 da Casa Bernardo, ambos os projetos sediados em antigas casas de família. Até hoje, estes 3 espaços já receberam várias centenas de artistas, milhares de visitantes, dezenas

7) Colecção Bernardo e Centro de Artes de Sines, 10.12.2011 8) UIU, Última Exposição, Casa Bernardo, 13.03.2013 9) Gustavo Sumpta, O Fim da Violência, Casa Bernardo, 09.07.2013 10) Pedro Amaral, Happy Meal, Túnel da Fundação, 01.12.2013 a 01.02.2014 11) Valério Ismaeli, Aurora Celeste, Túnel da Fundação, 06.05.2014

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LITERATURA Nuno Bettencourt


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LITERATURA UMA TEORIA DOS GUINDASTES

Ainda somos quatro, no último andar (Eu, dois filhos, um cão) No guindaste, sete pedras e colar trapézio (O circo persegue a cidade) No parque, um carro pára outro parte (Alguém aparece alguém esquece) Automóveis são miniaturas (Brinquedos arrumados) Árvores têm cabelo triste (Ramos espigados) E o grande estádio avança: Vagaroso, navio Num mar de facto estrada Maria Teresa Duarte Martinho Lisboa, 2014


DO LARGO

Sou do Largo Com fonte e cavalo no telhado (animal epiléptico acordado até abrir a manhã) Estou no Largo Entre fonte e cavalo (animal eléctrico adormecido até abrir a manhã) De que Largo sou ainda? Largo com fonte e sem cavalo? Sem fonte e um cavalo só? Um dia todo noite, sem manhã? Maria Teresa Duarte Martinho Lisboa, 2014

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LITERATURA ESBOÇO

Só na sala sou um esboço Que o pintor fixa - E em mim fixa-se a si: A mão que aponto à testa Não me pertence, é o desejo dele A rondar pensamentos meus (Por tudo divago Em cada veia devaneio) A mão que pouso no colo Não é minha, é o seu desejo A tocar-me disfarçado de pérolas (Não uso pérolas e ferem-me mãos Em forma de corda) Só na sala sou um esboço Um corpo azul Feminino só nos folhos Maria Teresa Duarte Martinho Lisboa, 2014


CHEGO SEMPRE ANTES DA CHUVA SE SOLTAR

Chego sempre antes da chuva se soltar um compasso a menos no fio do tempo o corpo molhado e frio sem porquê depois o desamparo da chuva triste no tempo fora do tempo em mim há sempre em mim uma hipótese de chuva mas não é o saber antecipado das estações espero para acertar o passo a cadência ter o tempo certo da chuva que enregela no rigoroso tempo meteorológico opô-lo ao meu ante-tempo desobediente que desautoriza a tristeza dos seres e faz da chuva apenas coisa adjectivada por ora é apenas a chuva tornada causa limiar de outras improváveis consequências Carlos Alberto Machado

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LITERATURA ADIVINHA Ei ô, vê se adivinhas onde é que eu estou Se na cabeça que esta mão ampara ou se Na outra que está a escrever esta adivinha. E porque não no coração, que é onde me assusto? E onde é que eu fui quando estou a dormir? Também eu sei falar de impressões sensíveis Nervos, neurónios, sinapses, trocas eletroquímicas Mas eu não sou um entre muitos, sou um eu E de qual impressão sensível nasci? A que hora do dia, a que hora da noite? (Eu sei que tenho uma cédula pessoal) Em que sinapse, em que hemisfério? Se fosse assim trazia um botão de acender e apagar. Portanto, não vale a pena ires por aí. Vê se adivinhas porque é que eu não estou Naquele cão grande e bem que poderia estar Ele não me larga por um só instante, por um só E se ele sofre sou eu que sofro as dores dele Mas não te iludas, se ele morrer é ele que morre. Ou seja, porque é que o meu corpo é fundamental Se eu não for o meu corpo, como aposto tu pensavas. Ei ô, vê se adivinhas onde é que eu estou Se eu já fui e ainda não sou Porque é que eu preciso do Tempo Como dum espelho, sendo eu tão volátil? Nem eu próprio te posso ajudar com as fotos do álbum. Quando descobrires vem dizer-me o meu nome Porque eu sei o de tudo e não me lembro do meu. Mas se não adivinhares também não faz mal Não é por isso que eu deixo de viver e brincar. Deixemos passar, quando menos esperarmos Tudo se resolverá, tudo se resolverá. Mário T Cabral Casa das Tramoias, quinta-feira, 22 de Agosto, AD2013 (Nossa Senhora Rainha) [O Livro das Adivinhas / Corpus Mysthicum]


ORQUESTRA A minha língua há de ser, por certo, um músculo Mas é difícil de aceitar que seja apenas um músculo. Pode antes ser um bicho, uma serpente, um cão Amarrado à porta do Hades, a mando de Deus e do Diabo. Ela tem vontade própria, inspeciona tudo o que entra e sai E de algum modo estou cativo dos seus caprichos; Só como o que ela quer, só penso o que ela deixa. Posso sempre embebedá-la... mas que lucro tiro dela entaramelada? Parece uma casa de luto e não duvido que fui eu o defunto. Não sei como é que ela sabe aquilo que eu não sei Quando dei por mim, já ela tinha enveredado há muito tempo Pelo exotismo das rotas portuguesas. Os padres do deserto ensinaram a domar este cavalo selvagem Mas, por estranho que pareça, não estiveram atentos Às suas artes de circo, Pégaso veloz no azul imortal Eles que sabiam de cor as Escrituras. O que eu quero dizer é isto: A minha língua há de ser, por certo, um músculo A mim parece mais um pianista E que eu não conheça a partitura não me apoquenta Desde que acompanhe sem desafinar Os outros músicos da orquestra nesta peregrinação As vacas, os porcos, as galinhas, as ovelhas, as cabras, os patos Os cães, os gatos e as mais diversas aves escondidas nas árvores E até o vento nestas árvores em flor. Mário T Cabral Peregrinação à Serreta, Quarta-feira de Cinzas de 2013

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LITERATURA MIRAGEM Porque haveremos nós de gostar assim tanto do branco Quando o branco é assim aberto pela luz do sol inteira E se gostamos tanto assim deste branco que é já azul Porque fechamos os olhos se nunca viram nada assim?

Barcos de pesca parados nas águas imóveis interiores As redes enroladas em mastros refletem-se tremeluzem As mãos em pala observam os peixes que vêm caçar As estrelinhas de prata que vieram refrescar-se com sal.

Que nome haveremos de dar a este branco assim azul A chave está numa enseada secreta com portal romano Aquela criança ainda não passou para fora do portal O que ela disser, mas ela não sabe falar como nós.

Se fosse este o nome não gostaríamos assim dos bosques E nós também amamos a luz coada no meio das clareiras O cheiro da humidade por toda a parte do nosso corpo Aqui somos nós os tais peixes que procuram o alimento.

Ou da roupa colorida estendida a aprender a voar na corda A corda vai do tronco duma árvore ao da outra árvore Aves cantam para a dança dos lençóis e das toalhas de rosto Apanha-se a sombra fugidia do Mistério atrás dos arbustos.

Que haveremos nós de gritar à criança? Que não suba Que não atravesse o pórtico da comunicação connosco? Ela é filha do mar com as pedras da calheta, nossa irmã Prepara-se para atirar às ondas aquilo que procuramos. Mário T Cabral Casa das Tramoias, Quinta-feira, 1 de Agosto A.D. 2013


NADO-MORTO cansado, meu cérebro espia para lá das persianas as excrescências do medo feridas abertas boiando nas sanitas dos cubículos estupros onde a mão abafando a boca mata um grito e os candeeiros acesos para restos de ninguém a sirene estilhaça a calmaria dos desfigurados pela rotina pantomineira devastando as criações humanas um entretenimento para manter adormecidas dores parasitárias horrores de existir sem se ver a gangrena agonizando na memória estatelada no chão rente ao pulsar dos charcos de suores entre as pregas dos lençóis sem sombras de resto algum onde o tudo ganho se torna perdido no colo dos nossos braços o nado-morto, o resto, da nossa maltratada vida nos ghettos despejam-se gente com defeito e dá-se o que pouco importa: um qualquer crime – crânios vazios sempre deram um bom abrigo – uma espécie de verdade em parte incerta algemando num sonho bifurcado um resto de nada espelhando um umbilical resto devolvendo os filhos para morrer numa patética perseguição ao centauro cativo, na impossibilidade de ensinar a forma e o modo, como se deve entrar num caixão porque quando velhos cada último sono é sempre o último sono

Jorge Aguiar Oliveira Abril de 2014

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esta noite viaja comigo a dor dum verso colada às lentes dos óculos para nada mais ver até este resto de vida cegar de vez

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LITERATURA Se Não Tens Vontade Se não tens vontade de escrever um poema, escreve-o. A poesia é a procura que o coração não quer fazer. Fácil é desviar os olhos das flores, impedir os perfumes de se revelarem, fechar o sol com a persiana. Escreve, escreve como quem canta aquela canção da qual só sabes metade da letra. Escrever um poema é inventar a letra até ao fim. Nuno Costa Santos


Aquele Que Nunca Chega Escreve na autoestrada o poema daquele que nunca chega. Passa por árvores que já cumpriram o destino de ser árvores. Segue com a velocidade dos mortais, acelera com a pressa dos imperfeitos num mapa sem poisos e localidades. Então abranda e deixa-te ultrapassar pelo passado que, ele sim, encontrou um sítio aonde chegar. Nuno Costa Santos

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CRĂ“NICAS Nuno Bettencourt


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CRÓNICAS

A TRIBO DOS MACACOS DE IMITAÇÃO NÉLIA M ATOS

Gostamos de ser originais. Gostamos de dizer não à cópia. Gostamos de pensar que somos tão diferentes dos outros. Mas depois não resistimos… e na televisão vemos programas de imitações, gostamos que os nossos cantores favoritos se mantenham fiéis à sua sonoridade e até nas prateleiras do supermercado proliferam os produtos de marca branca (cópia dos originais de outras marcas que os inventaram ou cópias de marcas que os copiaram de alguém). Mesmo nós somos assim: compramos a roupa que está na moda, queremos que o bolo saia exactamente como na fotografia da receita e as nossas casas estão cheias de ideias que vimos numa revista de decoração, numa loja de móveis ou na casa de uma amiga. Acho sempre graça quando vejo num programa tipo “Querido, mudei a casa” uma dica de decoração “super original”. É que mesmo que seja original, a partir do momento em que passa na televisão, dezenas, quem sabe centenas, de casas pelo país fora vão copiar aquela dica. É esse o objectivo. Mesmo a originalidade tem de ser copiável para ser interessante. Ninguém quer saber de uma dica de decoração original se não der para copiar. E isto é válido para o resto. O que é original é bom, e do que é bom nós queremos ter uma parte. Nem toda a gente pode ter a Mona Lisa, mas qualquer um pode ter uma cópia do enigmático sorriso num íman no frigorífico. Então nós somos todos uns macaquinhos de imitação? Bem… sim… e não… Não é preciso ler Darwin nem ir ao jardim Zoológico para o ver nitidamente. Para ver o macaco de imitação em acção basta olhar para nós. E olhar para uma altura em que não temos de o esconder… Basta olhar para as crianças. Desde que me sentei a escrever, o meu filho de ano e meio pegou num marcador e foi fazer o mesmo, foi “escrever”. Antes disso esteve a brincar com o seu novo brinquedo favorito: uma caixa de ferramentas. O pai montou um móvel novo cá em casa há uns dias

e agora é ele que anda, sala fora, de chave de fendas de brincar na mão, a fingir que anda a aparafusar e desaparafusar coisas. Dica para quem ainda não tem filhos: é completamente escusado comprar brinquedos caros e cheios de sons e luzinhas para estas idades. Eles preferem sempre os nossos brinquedos com sons e luzinhas. Esqueçam lá o telemóvel colorido de plástico e à prova de criança para ele brincar: o nosso é que é giro! As crianças adoram brincar com as nossas chaves a sério e as nossas garrafas de água e as nossas canetas (sim, ele chegou agora à conclusão que a minha caneta é muito mais interessante que os marcadores dele. Só um instante, enquanto eu mudo de caneta…). O meu filho está a passar pela fase em que as melhores brincadeiras são as de faz-de-conta. Ao imitar comportamentos e brincadeiras, ele está a aprender, estudar e treinar a nossa cultura. Ele quer saber quem somos nós, quem é esta tribo onde ele nasceu e o que fazem. Quer fazer parte dela. Todos passámos por isso. Todos nós imitámos os nossos pais e os outros adultos que cuidavam de nós. Monkey see, monkey do. Todos nós, e não só em crianças, procurámos a nossa identidade colectiva através da cópia de comportamentos. Em adolescentes voltámos a fazer o mesmo para nos integrarmos num grupo de amigos. Mesmo em adultos, de cada vez que queremos aprender alguma coisa, muitas vezes começamos pela cópia: os guitarristas aprendem os acordes das músicas favoritas, os pintores estudam e fazem as suas versões de obras famosas, até os cientistas começam por repetir as experiências de outros cientistas. Copiar é uma forma de aprendizagem mas é também uma forma de identidade. É a cópia que nos permite transmitir as tradições, manter a nossa herança cultural, ligar-nos às raízes. Copiamos e, com isso, aprendemos e ligamo-nos ao passado, aos nossos mestres ou simplesmente aos que amamos. Um dia, o meu filho vai-se sentir tão bem na sua


Nuno Fragata

tribo que vai começar a questionar o seu papel. Vai querer explorar a sua individualidade. Em que é que ele é diferente e único? Nesse dia ele vai conhecer a criatividade, a imaginação e a originalidade. A identidade colectiva não nos chega. Queremos mais. Queremos identidade individual. Os guitarristas começam a compor músicas novas. Os pintores começam a criar as suas próprias obras. Os cientistas começam a fazer descobertas inovadoras. A cópia dá-nos bases, mas a originalidade dá-nos asas. E a originalidade também faz parte de nós. Tira-nos das nossas zonas de conforto, faz-nos voar e ir mais longe, faz-nos crescer. É a originalidade que nos dá identidade pessoal. O círculo fecha-se quando a nossa originalidade, aquilo que nos faz únicos, começa a causar ondas de impacto na nossa tribo. Quando outros cientistas reproduzem as nossas descobertas, quando outros aprendizes de guitarra tocam as nossas músicas, quando as nossas obras são as que os aspirantes a pintores começam por desenhar. Ao contribuirmos para a herança cultural, estamos a fazer parte de algo maior do que nós. E a cópia torna-se a melhor forma de elogio. Na procura de identidade colectiva e de identidade pessoal, a cópia e a originalidade têm cada uma o seu papel. Fazem parte de nós, das nossas vidas, do nosso desenvolvimento, da nossa identidade biológica e cultural. Afinal, basta uma pessoa para abrir caminho, mas o caminho só se torna uma estrada se outros o seguirem.

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LITERATURA


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A ILUSTRAÇÃO PARA A CAPA DO Nº4 DA REVISTA TRÊSTRÊS É CRIADA A PARTIR DA CAPA DA REVISTA LIFE DE MARÇO DE 1966, ÉPOCA EM QUE A SÉRIE DE TELEVISÃO BATMAN PROTAGONIZADA POR ADAM WEST CONQUISTA AUDIÊNCIAS E SE TORNA UM FENÓMENO DA CULTURA POPULAR DO SÉC. XX. SURGE TAMBÉM COMO REMISTURA E HOMENAGEM AO TRABALHO DE AUTORES COMO DICK SPRANG, JIM APARO E NEAL ADAMS. PARTE DA CRONOLOGIA DE DESENHADORES QUE MARCAM A EVOLUÇÃO DA PERSONAGEM DA DC COMICS. A ILUSTRAÇÃO PARA A CAPA E CONTRACAPA REMISTURA E REINTERPRETA ILUSTRAÇÕES E FOTOGRAFIA COMO UM EXERCÍCIO DE RECORTE E COLAGEM, DE PROCURA DE UM SENTIDO PRÓPRIO NA IMAGEM FINALIZADA E, ACIMA DE TUDO, COMO HOMENAGEM, “DEMONSTRAÇÃO DE VENERAÇÃO E RESPEITO” . A ILUSTRAÇÃO PARA O VERSO DA CAPA E CONTRACAPA, COMO HOMENAGEM, SERÁ UM “LUGAR QUE SE ASSINALA A UM DETIDO PARA PODER ANDAR EM LIBERDADE” , INDICANDO O DELIMITAR DE UM TERRITÓRIO DE CRIAÇÃO. NÃO REFERENCIA AUTORES E IMAGENS COMO FAZ A PRIMEIRA ILUSTRAÇÃO, REFERENCIA A PRIMEIRA ILUSTRAÇÃO. A HOMENAGEM TORNA-SE EXPLORAÇÃO, APONTA CAMINHO E REFLEXÃO, TORNA-SE WORK IN PROGRESS.

NUNO FRAGATA SETEMBRO 2014

1 . in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/homenagem [consultado em 18-08-2014]. 2. Idem


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