Três três #0 - A Cidade

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trêstrês

cidade | património | poesia | artes visuais

número 0 encontre a electricidade estética em facebook.com

junho 2012



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Benvindo | Bem Haja


TrêsT

Já não ousamos definir o humano. a ideia, a comunidade, a cidade, a socieda-

Mas encontramos nele uma vivência que se de, a arte, o amor, a liberdade, a natureza, a inscreve como probabilidade. Uma das palavra. Enfim, o terceiro é a nomeação do condições mais prováveis do humano é a porvir, do projeto ou a inscrição do desejo na impossibilidade da solidão, mesmo quando história do cosmos. O terceiro diz que vamos desejada. Até o solitário está acompanha- fazer qualquer coisa que não se reduz a dois, do. Um pensamento é uma voz em diálogo sendo que estes dois podem ser apenas variácom um contraponto dialético, responde veis do pensamento numa dialética neurótica. ao mesmo tempo que pergunta. Nisto, o Somente o terceiro liberta a dialética da psihumano é mais do que um. No mínimo, cose que se adivinha. Esta força do exterior dois.

é a única que realiza a probabilidade de ser humano. Somos nós.

Alguns cientistas sociais afirmam, contudo, que os homens nunca estiveram tão

“Três três” para não ser “trinta e três”.

sós como hoje, que nas sociedades pré- “Três três” porque reforça o terceiro. “Três -modernas o sentido de comunidade é mais três” porque a redundância tem a virtude de forte e que na atualidade esta característica estender uma ideia ao longo de uma linha. perde força a favor de uma certa individu- Um três a seguir ao outro porque podem vir alização. A indústria traz aglomerações. As a ser somados ou multiplicados. Até o três se massas diminuem os espaços. Os apertões mantém em relação, porque certamente não e as mediações juntam-se numa histeria do será a única verdade possível. progresso. Vamos para algum lado, é certo, mas não sabemos para onde. Por isso pre-

A revista “três três” coloca-se como mais

cisamos de mais alguém ou de mais alguma um átomo que faz esta soma do um ao dois coisa. Há uma necessidade do terceiro.

e a multiplicação entre o três e o três. Do quotidiano de uma cidade como as Caldas da

O terceiro pode ser o filho, o deus, a lei, Rainha - um quotidiano cheio de quotidiano,


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apresentação

sTrês

diga-se - nasce o que começam por ser vontades e continuam sendo expressões. Pessoas das mais diversas áreas do conhecimento e interesses, desde as artes-plásticas à literatura, passando pela história, a geografia, a psicologia ou a filosofia, colocam-se um dia em diálogo para descobrir um “nós” que trate a cidade e o mundo por tu e talvez por eu. Pretende-se ocupar um espaço que, estando cheio, é silencioso e desorganizado. Quer-se um palco de manifestação artística, literária, filosófica, histórica e crítica. Deseja-se sair da conversa de café - sem um “nós” dignificado, sem terceiro - para ajudar a mobilizar aquilo que no citadino faz cidade: não mais a simples funcionalidade de viver, mas a consciência de que nada é por acaso e que cada pedra que nos rodeia tem um sentido. É isso, a nossa intenção é criar sentido. Criar humano. Acabar com o silêncio da nossa conversa.


Colaboram neste número da TrêsTrês: Ana Rita Sobral, Ângelo Pacheco, Electricidade Estética, Fragata, Inês Felício, Ivo Andrade, Joel Henriques, Michel Jacinto, Pedro Mendonça, Ricardo Norte, Rita Baptista, Sandra Tirapicos

São convidados neste número da TrêsTrês: Alexandra Baptista (asBap), Ana Aragão, Anselmo Caeiro, Carlos Rebelo, Gonçalo Fonseca (Viagem a Marrocos), Lobita, Miguel d’Azur, Pad Ell Rey, Pedro Cá, Sandra Rodrigues (Viagem a Marrocos)

Os textos e imagens utilizados na revista TrêsTrês são propriedade dos respetivos autores e não poderão ser reproduzidos ou utilizados sem a autorização prévia dos mesmos. Pode contactar os autores através da Electricidade Estética.

É reservado aos autores o respeito pela utilização do acordo ortográfico


neste número da trêstrês

cidade

09 Nota editorial sobre a temática da cidade 11 Mut( ações ) 15 Uma Rua de Montras (apontamento psicogeográfico) 16 Cidade pessoal 20 Cidade em chamas

património

22 5 ideias erradas sobre Património 26 Roteiro 32 Topos

poesia

36 Aforismos em forma de Pensapoemas 45 Auvers-sur-oise 46 A oeste 47 Ilusão do regresso 49 Sem título 50 O Assalto 52 Nascidos da espuma 54 Versos Olímpicos de José Ricardo Nunes (recensão)

artes visuais

58 Everything is happening at once 62 A criatividade 64 Espectáculo e aborrecimento 70 Conto ilustrado: A Peça 95 Estrada de Marraquexe - parte I 99 A cidade, por Ana Aragão

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índice

1, 2, trêstrês


Nota editorial sobre a temática da cidade

“Une ville finit par être une personne.” (Victor Hugo)

Independentemente das mais variadas opiniões que a vida na cidade pode suscitar, a verdade é que a atividade humana, nas suas trocas comerciais, prestações de serviços ou ainda na sua vertente educativa, converge para esse centro que aglutina o ser humano na sua construção social. O olhar que ela confere permite-lhe uma troca constante de ideias e de proximidades, exilando o homem do seu espaço mais restrito, o corpo. A sua diluição num espaço maior, ou público, permite-lhe entrar numa dinâmica muito própria e estabelecer ligações oportunas, fruto das necessidades do momento. O desejo individual mescla-se então com o desejo coletivo e possibilita esta relação simbiótica de que é feita a nossa sociedade. Mais do que uma estrutura física, feita a pensar nos seus habitantes, a cidade convida o ser humano a participar numa malha (in)visível de que todos nós somos obreiros.

A reflexão de cada elemento incide sobre um

Para a estreia da TrêsTrês, optamos por esta olhar particular que cada um decide partilhar. temática: a cidade. E é na voz dos seus cola- Felizmente, a revista não se esgota no tema deste boradores que decidimos encetar um percurso número e apresenta mais textos interessantes de pluridisciplinar, passando por áreas como o pa- outras índoles. trimónio, a literatura, a história ou ainda a arte.

É neste novo espaço que convidamos o leitor


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cidade

a viajar por esta mundivisão que não pretende espírito necessária para uma evolução crítica e enraizar-se somente nas Caldas da Rainha. Fica construtiva. aqui o convite para embarcar na nossa aventura

A todos os nossos leitores: Boa leitura!

e partilhar ideias e opiniões com um conjunto de pessoas que pretende, antes de mais, manter um olhar atento ao que os rodeia e a abertura de ilustração, Ana Aragão, “axonometria à mão levantada” tinta da china sobre papel (29,7 x 420 cm, 2011


Mut( ações )

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança» Luis Vaz de Camões (1524?-1580)

Ana Rita Sobral

Nos dias de hoje, muito ouvimos falar das cida- sem lhes conhecer a etimologia; por exemplo, des e vários são os chavões que se lhe atribuem: o termo grego equivalente polis1 (que deu nome «cidade global», «cidade sustentável», «cidade criati- a um importante programa de reabilitação e requava»... entre outros!

lificação urbana ), cujo habitante se designava

Em Portugal, uma cidade é, segundo a Lei por polites e cujos assuntos a si relativos e n.º 11/82 de 2 de junho: «Aglomerado popula- ao seu governo eram os politikos (como diria cional contínuo, com um número de eleitores Fernando Pessa: «E esta, hein?»). superior a 8000, possuindo pelo menos, metade

Conhecer a evolução e a história da Cidade,

dos seguintes equipamentos coletivos: museu cujo objetivo primordial era organizar as popue biblioteca; estabelecimentos de ensino trans- lações enquanto comunidades, é um passo para portes públicos, urbanos e suburbanos (…) melhor compreender a relação do Homem com Mas importantes razões de natureza histórica, o meio construído e que o envolve. cultural e arquitetónica poderão justificar uma

A Revolução Agrária durante o Neolítico,

ponderação diferente dos requisitos enumera- permitiu a sedentarização do Homem, em locais dos». Estatisticamente, existem 156 cidades em escolhidos quer pelas suas caraterísticas naturais, Portugal. Os critérios definidores variam quer pelo seu caráter sagrado; iniciando o seu de país para país, mas de comum entre eles domínio sobre o ambiente envolvente, o Homem podemos referir a densidade populacional e a conseguiu excedentes alimentares e subsequente crescifuncionalidade da mesma. Porém, a ideia daquilo mento populacional, o que conduziu à divisão da que concebemos como cidade vai para além produção social e ocupação com outras tarefas, do critério estatístico. As civitas (cidades em como o comércio. Os primeiros aglomerados latim) conferem valores aos indivíduos que nelas populacionais conhecidos remontam a 7000 habitam, e desta terminologia foram gerados a.C. na Anató l ia (Turquia), e as primeiras termos que usamos comummente, muitas vezes grandes cidades foram Uruk e Ur (no Iraque) 1

- Programa POLIS - Programa de Requalificação Urbana e

Valorização Ambiental de Cidades que mobiliza agentes como a União Europeia, a Administração Central e Autarquias Locais nacionais, através de cooperação e parcerias.


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cidade

e Damasco (Síria). Já na Antiguidade as grandes trial, enquanto as cidades do oriente cresceram cidades foram Alexandria, Bagdá, Cairo e exponencialmente, como lugares privilegiados de Roma, esta última já com mais de um milhão de trocas comerciais que sempre foram. habitantes no século I a.C. (e, provavelmente, a

No território, hoje, europeu, surgiram diversas

única com este número até ao início da Re- tipologias de cidade: a cidade feudo-medieval, a volução Industrial). No território, hoje, por- cidade renascentista, a cidade barroca, a metrótuguês, Braga, Porto, Coimbra, Lisboa e Évora, pole moderna, a cidade espetáculo... Cada uma foram as primeiras cidades a surgir, logo desde com caraterísticas próprias associadas, quer de a divisão administrativa romana, muito em «urbanismo», quer de «urbanidade»... Hoje tamparte por questões demográficas ou estratégi- bém, as megacidades, com mais de 10 milhões cas para a defesa do território.

de habitantes, que se expandem por quilómetros,

Entre as cidades do oriente e do ocidente sem- sobretudo nos países em vias de desenvolvimenpre existiram distinções, por exemplo, o cresci- to, nos quais se assiste a uma explosão urbana, mento demográfico estacionário que as cidades consequência da recente industrialização e boom europeias mantiveram até à Revolução Indus- demográfico, como o que decorre no México.

fotografia, Pedro Cá, 2010


Existem cidades que extrapolam as suas são atribuídas são, no entanto, mutáveis, e se, fronteiras, como cidades globais (Londres, por exemplo, num passado próximo assistimos Nova Iorque, Tóquio), cidades com maior ao crescimento das periferias contrastante com mobilidade, maior aglomeração de pessoas, mais o declínio dos centros históricos, hoje em dia é edifícios, mais serviços mas também maior a tendência contrária que se verifica: o discurso impessoalidade... O sentido de comunidade e de político sobre a «cidade compacta» promove um vivências comuns que levaram a que os homens retorno aos referidos centros, bem como, simulse agrupassem, primordialmente, já raro se taneamente, o desenvolvimento de pequenas e encontra presente nas cidades de hoje, onde a médias cidades, dialogantes numa rede policênsolidão acomete numerosos indivíduos. Assis- trica a nível nacional. timos também a uma banalização dos espaços

As cidades têm uma dinâmica própria, com

citadinos (ou urbanais), o que pode levar a que funções e finalidades que assentam muitas vezes as cidades percam algumas das suas qualidades e em critérios morfológicos, mas que podem especificidades, que outrora as diferenciaram de surgir através de uma orgânica quase espontânea, outros espaços de habitação/vivências humanas, embora complexa: são locais onde o Homem bem como entre si.

habita, trabalha, circula, usufrui… São organis-

Não existe necessariamente uma dicotomia mos vivos que se expandem (como por exemplo urbano-rural como teorizada no passado, mas é a ensanche em Barcelona) e que se embelezam inegável um conjunto de ideias intrinsecamente (como as Avenidas de Haussmann em Paris), associado ao conceito de Cidade: o cosmopoli- que embora definhando, podem sempre ser tismo, o urbano, a liberdade, o contacto promo- requalificados, revitalizados e assim rejuvenescer, vido entre bairros, infraestruturas caraterísticas, mas mais do que o meio construído, os espaços ruas, rossios (ponto privilegiados de trocas), os constroem-se para e com pessoas que neles haespaços vazios, as ruas estreitas e seus interstí- bitam, entidades multiplurais, heterogéneas, com cios, os lugares regenerados, os que se adaptam, as suas vivências e simbologias, fazendo assim o as redes que se geram… As qualidades que lhe que designamos de CIDADE.


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cidade

fotografia, Lobita, 2012, autor desconhecido, www.urbminds.com


fotografia, Lobita, 2012 www.urbminds.com


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Uma Rua de Montras (apontamento psicogeográfico)

Carlos Rebelo

As trocas da terra, travestidas com chapéus de lazeres solares (o país onde há bois nas praias), estrafegam-se numa rua passarela de lojas maçadoras. Porque afunila o espaço e concentra o meu comércio, e afunila o meu espaço, entro nela quase sempre pela Praça, com a ilusão aditiva do espetáculo de cidade. A direção efetiva do meu caminho, e do caminho que a cidade me deu, faço-a com a validade das suas composições, e dos ritmos que pretendo imprimir em mim. Na deriva só reconheço o poder do arquiteto morto. E então ando cuspido, jatos pelas ruas comissurais, do Parque à Praça, e verto nos caminhos do vendedor-arquiteto, mas a esse engano-o quando digo ”só estou a ver”.

Nas lojas trocamos pelas mãos, cá fora trocamo-nos em olhares. Entro na rua em fluxo lácteo e sei que não paro, não és bem tu quem passa por mim. Como um demónio que me assalta tu trocas de corpo. É bom que chegues, que te cheire e que saiba quem és, os sonhos em que vemos o corpo de uma pessoa e sentimos a alma de outra. Canibalizo a rua na presença do meu corpo cinético, comigo vem o tempo, estende-se em terras, em tijolos e cimento, vejo-o a passar na fita de casas, uma mais nova que a outra, e o meu passo mais velho que o anterior. E nestas ruas que não acabam depois da carne, num tempo já para lá das pessoas, sou vegetal, estou lá atrás no tempo, sou raízes do Parque e avanço outra vez. Faço-me duro e falo, sem conversa. A fita de casas mede circular um tempo em espaço de reta. E nesta rua te reencontro, e a mim, em corpos diferentes. O vocábulo, o meu tronco ao fundo no futuro desta rua e já sem seiva, é oco. Se me parasses de fazer crescer apical partia as montras desta rua com ramos largos e fortes, o tempo quebrado, o super comércio.


Cidade pessoal Pedro Mendonça

Uma cidade pode ser pessoal ou impessoal. A persistência de uma ou de outra depende das coisas e das pessoas que as habitam. Uma cidade é tanto mais pessoal quanto os indivíduos estão nas coisas e estas são colocadas como expressão de gente. Numa cidade impessoal até as pessoas são disposições materiais que servem como meios, instrumentos ou locais de passagem. A vida de uma matéria citadina está no tempo e na singularidade da sua vivência enquanto lugar onde se pára e repara. Como as pessoas, também isso faz da cidade pessoa. Qualquer cidade pode ser a nossa pessoa, mas também muitas outras pessoas. Todas as cidades têm praças, ruas ou jardins. Mas só algumas têm a nossa praça, a nossa rua ou o nosso jardim. Podemos existir em cada um desses espaços junto aos que fazem a cidade e nos fazem a nós. Somos multidão, paradoxalmente, singular. Esta singularidade está em permanente mutação. É uma configuração cujas combinações se transformam ao sabor das construções materiais e das construções de pessoas. Sem complicar: construções que se constroem, que se multiplicam inventando complexidades em cada nova multiplicação. Não se trata de soma, mas de novidade. Por isso, modificar uma cidade é uma coisa muito séria: modifica as pessoas. Fá-lo colectiva e politicamente. É a política a entrar nas


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cidade

nossas vidas, como toda a política que é política. A modificação das pessoas que gera cidades é outra força, mais fraca, inicia-se num ponto entre muitos que se espalha subjectivamente. Pode, de facto, criar marcas, mas essa energia frequentemente morre na força da matéria que resiste. São raras as pessoas que fazem cidades no sentido material: só políticos, engenheiros ou arquitetos. Quando a cidade faz as pessoas é diferente. Sucede como um círculo que do seu exterior afecta o interior objectivamente. Poucos escapam. São objectos a fazerem pessoas, a criarem os seus espaços, os seus passeios, os seus horizontes. Abrir uma praça é forjar encontros e extensões na vida das pessoas. Erguer muros é limitar movimentos, mas também visões do futuro. Uma janela não é uma janela, é um olhar. Por isso, a cidade impessoal não existe em absoluto. Vai existindo na passagem das pessoas. É uma cidade em que não estamos porque não lhe acedemos, ainda que vivamos nas suas casas. É uma cidade de outros, de desconhecidos que enchem de desconhecimento aquilo que queremos como pertença. A cidade é então uma extensão que desejamos nossa, mas que por vezes não nos chega, apesar de nos movermos nela.


fotografia, Lobita, 2012, autor desconhecido, www.urbminds.


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cidade


Cidade em chamas Miguel d`Azur

Há um desassossego, inquietante, a reinar sobre o silêncio estridente dos corpos em chamas. São edifícios de carne, são edifícios de sangue que vagueiam sem rumo aparente. É um olhar em riste, uma palavra apedrejada, um coração desprovido do seu calor. Tudo, a soma de assomos de sonhos destituídos de azul. Será do chão?, gasto pelas pegadas de barro que os viandantes teimam em deixar, qual lastro que os impede de levantar voo. Ou será da visão?, demasiado distante do imo que nos liga. Inquieta-me esse desassossego tingido de acalmia ilusória. Os corpos mexem-se, mas não se movem; a boca fala mas nada diz. É a cidade das aparências a produzir ilusões. À minha volta corações exangues desagregam o sal das suas lágrimas. E o que é uma lágrima sem sal?! O que é uma boca sem sorriso? A candura dos dias sem negrume ausentou-se. A luz, agora opaca, deixou de atravessar a íris como então. Os dias pesam, mas esses dias são os mesmos para as formigas e os pássaros e as plantas. E deles tenho tudo a aprender. É um fluir constante, desprovido de lassidões humanas. Só eles são dúcteis como o ramo e leves como o vento, a ombrear a voz do rio que galga as mais diáfanas realidades. Da cidade em chamas ao amanhecer da natureza, basta um crer. O verdadeiro tálamo está na essência e voltar ao Ser é voltar a ser, sem falsas aparências ou ilusões acerbadas, apenas a humildade de querer ir mais além, onde a esperança continua a irrigar a terra de promessas. Dezembro 2011


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cidade

“Eu e a cidade”, pintura de Ludwig Meidner, 1913 © Ludwig Meidner-Archiv, Jüdisches Museum der Stadt Frankfurt am Main


5 ideias erradas so O Património não é o antigo Tal como não se restringe a uma tipologia unívoca de objetos, o Património também não se atém a uma temporalidade única (ainda que apenas vagamente definida como o antigo, quer este seja o «tempo dos afonsinhos», quer o «não tão distante assim» tempo dos nossos O Património não são os monumentos Ideia que, felizmente, começa a desmitificar-se.

avós). Em certos bens será certamente o valor de

O Património não são apenas os grandes antiguidade que se sobrepõe, mas outros valores edifícios de valor histórico e/ou artístico; o concorrem para a sua categorização como PatriPatrimónio não é, sequer, apenas a obra huma- mónio: o valor artístico, o simbólico, o histórico na, referindo(-se) também a áreas naturais, mais ou o documental, o valor de raridade ou o de ou menos selvagens. Este conceito tem vindo, exemplaridade. aliás, a dilatar-se progressivamente, aludindo

Até porque o Património não é apenas o «anti-

hoje a um vasto universo, tanto material (objetos go» Hospital Termal das Caldas ou o Castelo de móveis, edificações, paisagens...) como imaterial Óbidos como realidades físicas; é toda a simbólica (tradições orais e musicais, ritos, festividades...).

que os envolve, tudo o que sobre eles se escreveu,

A característica comum entre todos os bens tudo o que neles se realizou. E também todas as abarcados neste conceito, será o reconhecimento ações que sobre eles se façam hoje e os reinventem, coletivo (desde a unidade mínima local, até o que implica desde logo um discernimento não à unidade máxima global) do seu valor, bem só retrospetivo, mas também atual. como da sua fragilidade. No fundo, o Património será aquilo que é mais importante transmitir para continuarmos a ser a melhor parte de nós, enquanto sociedade.


património

obre Património

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Inês Felicio

O Património não deve ser endeusado E com isto se quer dizer que nem tudo aquilo a que se atribui valor pode, nem deve, ser conservado. Em 1.º, lugar porque com o progressivo alargamento do conceito, vamos acumulando cada vez mais coisas para «carregar às costas». Em 2.º lugar, porque a manter tudo na mesma, fosse lá qual fosse o ponto de imutabilidade de-

Património e Criação não são antítese

finido, a ação quotidiana tornar-se-ia impossível.

Conservação essa que não significa «cristalização».

Os lugares, os objetos, as «coisas», são agentes

Cuidar do Património é, antes de mais,

de vivências sociais; a seleção do que preservar mudança: edifícios que perdem a sua fundeve ir ao encontro dos interesses das pessoas ção primária, objetos que perdem o seu valor comuns. Não deverá, portanto, ser imposição de originário, mas outros valores surgem, são-lhes uma «elite especializada», mas sim decisão dis- pedidos novos usos, novas funções. cutida publicamente, sem dogmatismos. Aposta

É verdade que, infelizmente, em Portugal a po-

que, obviamente, não é fácil, mas se o Património lítica patrimonial vive sobretudo da preservação é por definição um valor coletivo, é a todos nós de «fósseis» e de intervenções de emergência; que pertence escolher. O auxílio dos especialistas é a maioria das vezes não se pensa em verdadeira (muito!) bem vindo de seguida, com propostas de fruição, ou até em abrir portas... As novas tecnolocomo melhor conservar.

gias, por exemplo, assumidas como recurso fundamental para a investigação e a conservação do Património, deveriam ser aposta maior no que concerne à intervenção criativa, quer no âmbito da educação, quer no do lazer. A patrimonialização não deve ser entendida como um reconhecimento passivo de um valor


existente, mas sim como um movimento ativo de reenquadramento e revivificação, daquilo a que se atribui valor. Muito Património é uma herança, sim, mas todo ele é, sobretudo, um projeto.

O Património é agente de desenvolvimento Como memória, permitindo o sentimento de continuidade e identidade civilizacional, sem a qual o Homem, ente histórico, não pode evoluir, ainda que seja para criar ruturas. Como fruição, sendo elemento estruturante do bem-estar humano. Como «edutainment», histórico e documental, mas também de valores estéticos e de cidadania.

Addendum É obrigação do Estado fomentar, apoiar e

E também como recurso económico, trazendo a levar a Cultura a toda a gente, mas não é sua promoção e um acréscimo de turismo ao obrigação exclusiva; quando deixamos nas mãos local/região envolvente. É preciso não ter receio do Estado toda a responsabilidade pela valoride usar palavras ainda «proibidas» em Portugal, zação e reabilitação do Património, arriscamos a no que concerne ao Património: produto, ges- que este se torne um instrumento de controlo e tão, marketing… A cultura está a mudar e não é propaganda política. Não pode existir verdadeira possível travar a mudança; é preciso gerir a mu- separação entre quem valoriza e quem utiliza o dança. E à ideia de conservação, tal como não se Património; os peões da gestão patrimonial são opõe a ideia de criação, também não se opõe a de os locais, que vivem o dia-a-dia ao seu lado, e são rentabilização. Mais do que sobre as «coisas», o Património diz respeito às pessoas, e mais do que sobre o passado, diz respeito ao futuro.

(devem ser) os seus principais fruidores.


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Algumas referĂŞncias cibernĂŠticas:

http://warburg.sas.ac.uk/index.php?id=117

http://www.iccrom.org

http://www.onzeonze.com.br/blog360/tour-

http://www.ovpm.org/en/compilation_case_ saofrancisco/index.html studies_conservation_and_management_histo-

http://trans-ferir.blogspot.com

ric_cities

http://musingonculture-pt.blogspot.com

fotografia, Carlos Rebelo, sd


Roteiro Inês Felicio

As pessoas são também os lugares que ha-

A Arte Nova será, por ventura, um dos estilos

bitam. Os edifícios que residimos, as ruas que artísticos germinados nessa época, e um pouco caminhamos, são elementos exteriores que por toda a Europa, que mais tem vindo a cativar participam da construção interna do nosso o interesse comum, ao mesmo tempo que pareequilíbrio emocional, fazendo parte do nosso ce tardar quanto ao interesse da história da arte bem - ou mau - estar.

portuguesa. Sem entrar - para já! - nas problemá-

Caldas da Rainha foi lugar de actividade ticas teóricas que envolvem esta estética «nova» efervescente na transição do século XIX para dentro duma linguagem «velha», afirmemos que o XX, atestada ainda hoje por algum patri- as Caldas são uma das cidades portuguesas com mónio edificado. Algum dele em estado razo- maior número de exemplos edificados de AN,1 ável, outro, ruinoso, diversos exemplares ain-

1 Integrando a Rede de Cooperação “Arte Nova”: protocolo assinado pelas câmaras munida hoje acompanham de pé a nossa passagem cipais de Aveiro, Cascais, Estarreja, Figueira da Foz, Ílhavo, Leiria, Lisboa, Loures, Porto e Vila quotidiana. Nova de Gaia.


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património

embora estes se encontrem, em grande medida, dispersos: são quase sempre pormenores, apontamentos, pelos quais quase sempre passamos desapercebidamente, e pelos quais quase sempre vale a pena demorar um pouco mais o olhar - uma estética fragmentada, como de resto, qualquer perceção de Cidade o é. Todo o património é, antes demais, local, e se chega a ser significativo numa escala maior, é-o por extensão - seja apropriação, assimilação, e/ou disseminação. Geografia e História são inseparáveis. Mas a Arte, como o Património, possuem uma extraordinária capacidade de narrar histórias, e os objectos assim definidos são recorrentemente chamados a produzir sentido,

fotografia, Rita Baptista,R Almirante Cândido dos Reis. Padrão relevado. Fab.Faianças CR

dentro e fora do seu contexto, gerando a refle- uma mediação artística (campo de atividade xão e o debate entre indivíduos de diferentes entre a dúvida e a possibilidade) entre o ido e o lugares, ou até de tempos diversos.

presente. Mas, sobretudo, pretendemos facultar

Assim, procedemos à inventariação de diversos um novo olhar a quem caminhe pelas ruas da elementos artísticos da referida conjuntura, bem cidade, despertando em si um outro prazer, e como a pesquisa histórica relacionada, visando dando azo à poesia na sua transição quotidiana. quer a apropriação do pensamento artístico contextualizado na sua historicidade, quer a sua significância posterior. E iremos desfolhando histórias, de uma forma nem puramente estética, nem cientificamente bruta. Com este Roteiro arrogamo-nos o papel de fotografia, Rita Baptista, R Capitão Filipe de Sousa, 52-53. Fab., Sacavém, sd



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patrim贸nio

fotografia, In锚s Felicio, R Miguel Bombarda, 35-39, CR, sd



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patrim贸nio

fotografia, In锚s Felicio, R Miguel Bombarda, 34-36, CR, sd


Topos Carlos Rebelo


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patrim贸nio

fotografia, Carlos Rebelo, sd



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patrim贸nio

fotografia, Carlos Rebelo, sd


AFORISMOS EM FORMA DE PENSAPOEMAS Anselmo Caeiro

I Falam de homens que tudo sabem e tudo entendem Eu olho para eles e nada entendo Por isso, viro-me para o meu jardim e escuto O silêncio da terra a erguer flores de alma A voz das árvores a ensinar-me a ser raiz

II

Se digo eu, penso tu Se digo tu, penso nós Se penso nós, sou livre

III O verdadeiro iniciado não ostenta o que é É todo ele símbolo e verdade, caminho e ressurreição

IV

Há tanto oiro em ser criança Tanto ser em não saber Que quero ser eternamente criança Ver, dentro de mim, o que almejo saber


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poesia

ilustração digital, Pad Ell Rey, 2012


VI Esquecer é aprender a ver Não ver é reaprender a ser Não ser é desaprender a morrer

VI

Não é a religião que define uma pessoa São as suas acções que definem a sua religiosidade!

VII

Quem nada esquece tudo guarda Quem tudo guarda nada esquece Não guardes o que o deves esquecer Não esqueças o que deves guardar

VIII Pensar perturba o sentir Sentir é outra forma de pensar

IX

A doença do mundo é uma doença do fingimento Hoje, finjo não ver uma criança com fome Amanhã, fingirei não ver a miséria do mundo


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poesia

ilustração digital, Pad Ell Rey, 2012


X

Não quero ser nada e a nada aspiro Do nada se erguem os pinheiros e as fragas Do nada se moldam os seres e as formas Ser, simplesmente, como a consciência das libélulas Seres-nada-sem-consciência, seres leves de somente ser

XI

Fascina-me observar a árvore do meu quintal Na copa vejo raízes a apontar para o céu No solo sei de raízes que crescem para a terra Não será o cimo e o baixo a mesma coisa? Tudo ligado a um só e mesmo tronco Tudo ligado pela substância da matéria, etérica e telúrica Fascina-me a árvore do meu quintal, um mestre sem o saber

XII

Nos recessos do fogo habita a chama da água Que flui e reflui como as ondas do mar E no seu imo o ar envolve-lhe a boca Para cuspir a terra engendrada E esculpir o que só o fogo consegue preservar


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poesia

ilustração digital, Pad Ell Rey, 2012


XIII NĂŁo banalizes o sentimento de outrem O respeito ĂŠ a mais pequena das flores Por isso requer uma rega mais dedicada


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ilustração digital, Pad Ell Rey, 2012


Joel Henriques


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AUVERS-SUR-OISE

A minha terra não é Auvers-sur-Oise nem dela a arte. Tem campos por onde caminho ausente, com mulheres, e não guardo mágoa.

Existirá vida depois da morte, para ninguém no fim da página. Seriam abundantes as searas de trigo. Também já não sinto raiva.

Há pessoas com o nome de Margarida, Francisco e Manuel. O aglomerado tem os seus tolos. Sabem o seu nome verdadeiro.

Há ramos de acácia em flor, passará a primavera, mas eu não moro num quarto, habitarei no interior dela.


A OESTE

Se vivesse para sempre a oeste, o sol cairia no horizonte com a mesma frequência, não nasceria menos que a oriente.

A minha existência permaneceria idêntica depois do labor de séculos e com os mil anos do teu enleio inventaria outro dia.

Amar-te seria a única certeza do crepúsculo depois de cada tarde e na aurora mereceria poemas de despedida a noite sonolenta.

A claridade a mais, dividia-a contigo. Não queria ser eterno. A minha vida teria o mesmo tamanho se vivesse para sempre a oeste.


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ILUSÃO DO REGRESSO

Há quem semeie a palavra saudade na terra e contudo frutifica. É triste se o regresso se tornou ilusão. Mais ainda searas de trigo.

Não fica à espera de D. Sebastião por dentro do nevoeiro. A brisa é o único protesto se mais alguém prova do seu sabor.

A memória segue o ritmo das estações por estrada verdadeira. E a lenha em troncos apesar da pena arde contra o frio.

Transigência, pórtico reconstruído, quem ama o que perdeu receba ao menos a colheita de frutos da palavra adeus.


Ricardo Norte


49

poesia

Devia pois desviar-me da porta, tentar reconhecer o quarto. Perceber por entre as deslocações o que se altera e desdobra, o que nasce no roçar do interior na superfície. Fechar a janela e encostar a face à mutação, aos objectos que jamais se silenciam, que repercutem a noite da minha estranheza. O pé sobre a cadeira dá evocações ao construir de um corpo, a um desejo fosforescente da luz. Tudo se agiganta quando o som dos grilos invade a luz amarelada do quarto. E não saber dizer nada, que não desmembre o movimento cardíaco da audição. Nunca o silêncio se esvazia do nascimento. Um crepitar de lenha ao lume, é o som dos grilos sobre o silêncio.


O Assalto Joel Henriques

Todos os anos acontecia o mesmo como se de uma lei da natureza se tratasse. Desapareciam os damascos, na primeira semana em que amadureciam, da árvore do quintal da casa.

É verdade que a natureza tinha gerado os frutos como dádivas, mas repete-se

a indignação humana. Os donos dos frutos tinham direito a saboreá-los. Não era a natureza quem roubava a natureza, julgavam. Os anos da vida passavam, a morte assaltava existências casa a casa, mas ao contrário de outros crimes ninguém conhecia o autor. Os habitantes consideravam-se detentores do destino. Puniam os criminosos como quem pune a fronteira do tempo.

A família inteira reagia deste modo, à exceção do dono do quintal, homem

experimentado na despedida de muitos momentos. O luar brilhava como as estrelas no último orvalho da noite. O dono do quintal cortava troncos de lenha de ramos caídos com o vento enlouquecido da tempestade. Revelava o seu interior ainda húmido à luz do meio-dia.

Indignavam-se com o roubo dos frutos, mas não os comiam, mais por ressen-

timento do que por amor às dádivas da terra. O dono do quintal sabia, provavelmente, que o ladrão merecia mais os damascos do que os familiares.

Só a morte permanecia irremediável e, no entanto, os homens que conheciam

os labirintos do mundo, para esse crime, não inventaram um criminoso, mas um Deus que sinceramente adoravam.

Os outros habitantes da casa protestavam de modo veemente, com a convicção

bem pensante dos espíritos vulgares. Reclamavam de modo crescente, sem concessões, dia após dia, ao longo do verão em que se registavam os roubos. No entanto, nada lhes era possível, na medida em que desconheciam o autor dos frequentes assaltos.


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prosa

Até que veio um verão de luar branco, iluminando por completo a noite. A mulher, que saíra à rua, presenciara o crime e tomou consciência de quem o perpetrava. Denunciou de imediato o autor na mesa de jantar, discursando mais do que saboreando os alimentos, como se as suas palavras tivessem a claridade dos dias de agosto. E os filhos incriminaram o vizinho como se fossem a tarde mais luminosa do ano.

Imaturos, lembravam ao dono do quintal histórias da infância. Proprietários

que velavam árvores durante a noite inteira, dormindo ao relento, a quem roubavam os frutos em pleno dia. Capazes de derrubar as suas próprias árvores em nome da vingança.

Tanto reincidiram no reparo que o dono do quintal prometeu-lhes conversar

com o assaltante dos damascos, embora com grande angústia. Para si, as palavras eram as únicas pedras que nasciam das árvores. Duras no destino, mas afetuosas na origem. Sabia que qualquer frase no início era como um ramo de frutos. * Bateu à porta. A família, encandeada, no futuro, pela claridade inclemente de uma tarde sem sombras, pelo reflexo artificial dos muros, recordaria para sempre a decisão dos seus passos. No entanto, no início dessa noite, o luar iluminava a escuridão de forma tranquila. − Se me guardar o quintal, dou-lhe uma caixa de frutos todos os anos. A partir de então nunca mais lhe faltaram os damascos.


Nascidos da espuma Miguel d`Azur

Somos pouco, tão pouco que o ínfimo é o nosso lar e a (i)mortalidade o nosso destino. O murmúrio das fragas diz-nos que a existência é sólida, rija como um tronco de árvore, mas a espuma dos dias revela-nos que somos seres frágeis e perecíveis. Quem parte, para a outra margem, sobe a jusante esse pequeno ribeiro que tantas vezes é ignorado, mas de que todos sabem a existência. Quem parte, parte mais leve, pois salvo do peso das sombras eclode borboleta, livre e diáfana na exposição das suas cores, quase palpáveis, quase visíveis ao olhar. Como tu, nasci da espuma dos dias e celebro o instante bem vivido para esboçar um sorriso genuíno, o de quem tudo alcançou: a partilha anelar, a felicidade (con)sentida. Somos pouco, bem sei. Talvez um grão de areia nas mãos do tempo, talvez um simples sopro, digno de ser registado na memória do coração.


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prosa


Versos Olímpicos de José Ricardo Nunes (recensão) Joel Henriques

O Olimpo está associado aos poetas

até ao tempo de hoje. De modo paradoxal, já não é modalidade dos Jogos Olímpicos. José Ricardo Nunes escreve sobre a realidade, evitando qualquer refúgio, o que será a fórmula geradora do seu livro.

O autor, para utilizar distinção de

Barthes, não produz um texto de prazer: «aquele que contenta» e «vem da cultura sem romper com ela». Escreve um texto de fruição: «aquele que desconforta» e «faz vacilar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor».


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recensão

Tem na sua base uma antropologia

atualizada em que o homo sapiens se transmuda em homo economicus/ ludens e em homo faber/ mithicus. Os Versos Olímpicos são a poética do autor. Exprime-a por meio de uma alegoria engenhosa e lúdica, que utiliza como principal material os conceitos da experiência, em contraponto à economia e aos mitos modernos. O poeta procura «a retórica que vem da prosa// para os versos, contaminada/ pelo sangue».

O livro começa com a cerimónia de aber-

tura: «Entram no estádio e desfilam/ as delegações». São «figurantes» com «desejo de glória». Servem «o comércio global». A segunda dimensão é a própria realidade habitada por espetadores, aos quais resta «o poder de mudar livremente de canal».

A terceira dimensão da alegoria é o próprio

sujeito poético, «sentado neste sofá suburbano que treme à passagem do comboio». No entanto, com os seus versos, compete em cada modalidade com os atletas superando-os sempre, até na derrota.

Os 22 poemas do livro, além da intro-

dução que já referimos, referem mais sete temas abordados de forma sucessiva: a vivência da poesia, a poética, o poeta, o mundo, a sociedade,


a recompensa do poeta e a conclusão.

derno», escreve «são cada vez mais jovens

A poesia é vivida como o salto à vara, os vagabundos», expressão de errância e da

em que o poeta perde sempre, porque o imagi- inutilidade da rebeldia militante. No poema nado remete para o inatingível, mas afirma: «E «Suplente» radica a experiência de leitura no como tu, saltador à vara,/ sei que um colchão facto de não ser titular da equipa de futebol, espera por mim», ou seja, a consolação. No onde desejaria jogar e de querer ocupar o tempo fim aguarda-o a sala de imprensa, metáfora da no banco. De facto, não acredita nos objectivos recepção. No entanto, como um bom livro, o que nobres associados à poesia; em «Florete», afirma: o poeta escreve é remetido para o cárcere de uma «não devia ter havido vencedor». estante.

José Ricardo Nunes habita um mundo

José Ricardo Nunes defende uma con- em que «Já não é possível confiar em palavras

cepção de poesia baseada na lucidez: «Em boa e em que o tempo, valor da tradição reduz-se a verdade, concluíra já a prova/ quando saltei para «Quarenta dias. Apenas quarenta dias». O cavalo a piscina». Por outro lado, o mundo estremece e o cavaleiro não são um só: «às vezes oiço de com a pena de escrever como o soalho com os fora a minha voz». O escritor não controla o corpesos dos halterofilistas, o que remete para uma po, o que o prejudica no concurso de obstáculos. leveza concreta.

Por outro lado, perdeu a confiança nos grandes

O autor descrê no leitor: «Deus vê com ideiais. No poema «Judo» afirma: «com o calor

os atletas/ e corre por dentro dos espetadores», da luta (...) acaba sempre o rosto por cair», seja rio do esquecimento. Ao mesmo tempo descon- qual for o lutador. fia da omnipotência do poeta: «o corpo foge à

O sujeito poético considera, em «Deca-

minha voz», o que está na origem do «desassos- tlo», que a sociedade o educa para ser o melhor sego», evocação de Fernando Pessoa, ou, para em tudo, «sem o ser realmente em nada». A poser mais exato, do seu livro apenas: Porque, no esia é uma adição em «Controlo Anti-doping». atual contexto, nem sequer é possível a volúpia O poema «Pugilismo» retrata uma sociedado esquecimento.

de em que a força demolidora se encontra

Em relação ao poeta, em «Pentatlo mo- associada à mentira: o atleta tem de se sa-


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recensão

ber esquivar. O poeta não se encontra sequer água/ e na água não posso escrever». Por outras à margem. Para comemorar a vitória, é atirado palavras, para o autor, só na realidade é possível à água, que o sujeito identifica com a página; inscrever a poesia.

*

depois de uma corrida de canoagem em que é apenas mais um membro da equipa e em que

O Olimpo, de facto, não se encontra

existe um timoneiro. Não há lugar para a memó- noutra dimensão; mas, para mim, que recenria: «As coisas/ já não exigem as suas palavras». seio, também não apenas na evidência. Existe Como um testemunho, o autor passa «agora va- sempre que um poeta deseja o mundo e o que zio de mão em mão/ pelas pistas dos estádios». de multiforme contém, por meio das palavras,

Neste contexto, qual será a recompensa como realidade mais verdadeira, tenha ou não

da poesia? Como nos «400 metros com bar- lugar no quotidiano. reiras», corrida de testemunho, o poeta será na melhor das hipóteses «o primeiro dos últimos». Resta-lhe o salto em altura, imagem da leitura, que é também um salto de fé: «Prescindo de assistir à minha prova». O poeta considera os aplausos merecidos, em «Trampolim de 20 metros»: «Procurei a perfeição em longas horas/ de frio e solidão». No entanto, opta por uma postura reservada: «Ninguém sabe o que se passa dentro de água» e procura demorar-se o mais tempo possível no fundo.

José Ricardo Nunes conclui os Versos

Olímpicos com o breve poema «100 metros mariposa». Lança-se à água, metáfora da página, e o corpo segue em frente: «Braçadas difíceis, confesso: a imagem dissolve-se/ e depois é só


Everything

is happening at once

No seguimento das obras do novo museu responsáveis, “surge da imaginação colectiLeopoldo de Almeida, no Centro de Artes, va”, proveniente de outros projectos antee consequente dificuldade à entrada dos res- riores, como a G.A.L.P. e o Gueto, procutantes museus integrantes daquele espaço, rando desta forma “preencher um pouco o houve quem dissesse recentemente que a vazio que existe nas Caldas da Rainha em Cultura nas Caldas da Rainha se encontrava relação a exposições de arte e outras acções em crise. Opiniões são válidas. O que não se criativas que se possam aceder gratuitamenadmite, é passar ao lado do que se tem feito te”. Trata-se de um espaço aberto, em que para fomentar a verdadeira cultura nesta ci- não existe um grupo de pessoas a escolher dade nos últimos meses. Não estamos nem as obras a expor. Não interessa o que se exdevemos estar depententes dos Museus Ins- põe, mas o sim o expor, estando o artista titucionais e suas obras permanentes, não completamente à vontade nos projectos que descurando a sua importância na história pretende desenvolver. Na E.E., existe uma cultural da nossa cidade, e por conseguinte, abertura institucional, cujos eventos ou exde Portugal.

posições são possíveis sendo uma “questão

Apesar disso, o Caldas Late Night não de se estudar as possibilidades existentes a morreu nem tampouco está confinado a 25 nível de meios e de espaços”. e 26 de Maio. O CLN tem decorrido o ano

Além das exposições semanais que pode-

inteiro e esse é o espírito que deve ser fo- mos acompanhar, artista a artista, a associamentado. Para tal contribuiu o novo espaço ção organiza igualmente o Evento 34, que se Electricidade Estética e encontra-se em fun- trata de um leilão de arte, de periodicidade cionamento desde 7 de Outubro de 2011, mensal, e é ainda, responsável pela Zine Bocuja aparição surge numa altura em que se realis e os ciclos e conferências A Arte Fora começa a desenhar uma preocupação por de Si. Este último pretende apostar sobretuparte de alguns grupos, no que diz respei- do em pessoas que não estejam directamente to à cultura feita nesta cidade. Apesar desta ligadas às artes, provenientes da literatura, preocupação geral, a E.E., segundo os seus psicologia, filosofia, etc., mas que pensem


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o fazer artístico. O espaço tem criado uma

tinuam a promover a expressão artistica,

continuidade expositiva no que diz respeito

tendo-nos presenteado logo no inicio do

à dinamização cultural da cidade, contudo, a

ano com a Colecção Bernardo em expo-

E.E. não avança para um balanço, conside-

sição no Centro de Artes de Sines, que

rando esta fase “como um período de testes,

desta forma levou ao exterior das Caldas

planeando inaugurar em Outubro deste ano,

da Rainha artistas que trabalharam e con-

sendo que só nessa altura poderá ser pensa-

tinuam a desenvolver o seu trabalho nesta

do realmente que papel poderá ter a E.E. na

cidade. Não estou com isto a fugir ao as-

cidade”.

sunto aqui proposto, da cultura aqui re-

Na senda desta malha artistica, ajudam de

alizada, mas a enaltecer os frutos dados

igual forma o grupo TRICOT, contribuindo

pelo esforço colectivo dos espaços aqui

nos meses de Fevereiro e Março para com a

emergentes.

cultura caldense. Se por um lado, na E.E.,

Além desta exposição, pudemos ver no

temos a hipótese de assistir às obras em dois

Museu Bernardo em Fevereiro a exposi-

dias, aqui a exposição adquire mais o signi-

ção de José da Fonseca, Memórias Pré-

ficado de verdadeiros happenings, na medi-

-Holocausto, assim como The Great Rock

da que pudemos assistir apenas às 5ªs Feiras

and Roll Swindle e Hated: G.G. Hallin,

dos meses referidos, à noite, não existindo

no seguimento de Cine Dad’s not Punk

qualquer repetição do evento. O local não é

do Ozzy Project que também participou

fixo, tornando-se a casa do artista o espaço

no projecto Tricot. A 17 de Março inau-

de acção ou na casa de alguém, como se inti-

gurou a “Última Exposição” de UIU, na

tulam algumas das intervenções. O facto de

Casa Bernardo, que resultou duma residência

acontecer no mesmo dia expositivo da E.E.,

artistica em que praticamente todo o trabalho

promove (in)conscientemente um itinerário

foi desenvolvido na casa, tendo terminado no

ao público.

dia 12 de Maio.

Não menos habitual ao público atento,

Mais do que é apresentado nestes espaços,

tanto o Museu como a Casa Bernardo con-

resta enaltecer talvez o mais importante: conti-

artes visuais

Ângelo Pacheco


nuidade expositiva. O saber que não estamos confinados a eventos espaçados e longíquos e que a arte não está limitada ao institucional. E para isso, estes grupos revelam algo único e importante em comum: vontade. Sem ela nada disto seria possível. É o acreditar nas pessoas que torna real todo este movimento. Haverá o tempo do pensar e questionar o que se fez e o que se vê. Contudo, neste momento, reina a expectância: conseguiremos manter este ritmo?


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artes visuais


A criatividade

Sandra Tirapicos

A vontade de entendimento da psique a tempos libertar algum do seu vapor, atrahumana tem sido uma preocupação des- vés de impulsos que conseguiremos ou não de os tempos remotos da nossa espécie controlar. É neste controlo que se define o enquanto homo sapiens sapiens, haven- sujeito “patológico” ou “saudável”, conceido uma clara noção da sua complexidade tos que se definiram com base na ameaça obser vada através de um único espelho, que se constitui para si próprio e/ou para o compor tamento. Porém sabemos que a os outros. Como é sabido, a integração do psique vai muito para além da acção, haven- sujeito num grupo não se restringe apenas à do várias possibilidades de intenções para sua perigosidade enquanto elemento passível um mesmo comportamento. Insere-se aqui de desagregar o mesmo, há todo um conjuno estado inconsciente da nossa psique que to de normas directas e indirectas específicas Sigmund Freud no início do século passa- a cada identidade social (ou grupo). do incluiu na sua explicação da estr utura

O conflito que está na base do preenchimento

psicológica. O inconsciente é, segundo o mesmo, do inconsciente, segundo Freud, impulsiona um estado, ou melhor um espaço mental a libertação energética reprimida, transque guarda o que aguarda ser aceite, uma for mando-se numa pulsão mais ou menos espécie de armazém de produtos altamente involuntária e mais ou menos realizada, inflamáveis socialmente e/ou moralmente. exactamente por não poder mos realizar O armazenamento desta junção energética os nossos desejos reprimidos totalmente, proibida necessita como é óbvio de tempos transfor mamo-los um pouco por for ma a


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artes visuais

que não sejam identificados como ameaça- como consequência ou causa da sua maior dores e embora não se realize totalmente a estabilidade interior, é claro que quando se vontade, realiza-se um pouco, o suficiente fala em estabilidade, esta é sempre a emopara “suportar” durante mais um tempo o con- cional. O entendimento do mundo interior flito mental que obviamente cria sofrimento, e/ou exterior é uma procura incessante de até um novo impulso surgir. Esta máscara quem cria, sendo o criador o que também é hábil que a nossa psique cria (sempre como criado, sendo o obsevador também o sujeifor ma de nos proteger) tem o nome de to activo do que obser va. A inter venção “mecanismo de defesa”, defendemo-nos de é uma acção, após intenção voluntária ou nós próprios e dos outros, de sermos sujeitos não, desde os lugares recônditos do nosso a maiores sofrimentos e assim sobrecarre- armazém mental até aos espaços mais ou garmos mais o nosso armazém que tem um menos conscientes, é sempre a par tir do espaço limitado, obrigando a mais mecanis- nosso sentir pessoal, do nosso olhar, da mos de defesa até não haver mais suporte nossa interpretação sobre o que consideramental, nesta altura o risco de “descompen- mos como real, dentro e fora de nós. Este sação” é grande e o sujeito pode “colapsar” artigo pretende ser uma introdução ao tema psicologicamente, perdendo as suas defesas da psicologia na ar te, apresentando de e descontrolando-se ao nível emocional de forma mais ou menos rudimentar explicatal forma que a objectividade, a clareza mental, ções e teorias de autores que se debruçaram ou seja, a lucidez perde as suas característi- sobre o tema bem com de artistas mais ou cas base.

menos conhecidos que se enquadraram nas

A transfor mação do sofrimento mental explicações de quem se dedicou ao entenem a l g o pos i tivo tanto para o p r ópr io dimento da mente humana, que está a dar sujeito como para o que o envolve tem o os seus primeiros passos de um caminho nome de “sublimação”, que na arte em ge- muito longo a percorrer. ral é muito comum. O artista necessita de se expressar, para si e/ou para os outros,


espectáculo e aborrecimento

“A árvore não se pode tornar senão chama florescente, o homem uma chama falante,

Ricardo Norte

o animal uma chama errante.” Novalis

O mundo enquanto espectáculo faz com flui que nos submerge e se levanta como que lhe retire realidade e afaste de mim uma parede, sem ponto de fractura. Um a possibilidade de agir. Per maneço num discurso monocórdico, onde a iluminação tempo descritivo que é a ausência mesma ceg a ou a sombra dissimula, mas sempre do tempo, sem nenhum momento privile- os dois extremos; ou sobre-exposição ou giado em que me decida a alguma coisa, escuridão, mas nunca claro-escuro, sem sem poder perguntar nem querer, aconte- desigualdade, sem escolha. Uma uniforcimento já feito antes de ter começado. mização tal, que nenhuma palavra se esO téd io e a i mpos s i bi l i dade de per ma - cuta. Uma aniquilação do outro do r uído. n ece r na i ndeci s ão faz em com que todas Para exemplo basta ver o que acontece a s hi s tór i as, enq u a nto não forem pesa - em todos os centros urbanos: não é só o da s, d ireccionadas no meu tempo, num olhar que é saturado de signos, mesmo sentido que se faz pela minha existência, que eu queira fechar os olhos, «emprenho enquanto alg o concreto, ou melhor en- pelos ouvidos», como se costuma dizer, quanto único ponto de contacto com o pois não há r ua central que se preze, que concreto, não sejam mais que sufoco e me não obr ig ue a consumir os mais b e produção de ir realidade.

los discur sos de pr opag anda comer cia l.

A b i b l i o t e c a i n f i n i t a é u m m u r m ú r i o A sobr e posição é tal, aper ta de tal m o d o s e m f i m à s p o r t a s d a m o r t e . D i s c u r s o a r ede, que não per mite par ar par a p en s o b r e d i s c u r s o, p e n s o q u e m e o i ç o, e sar sobr e ela: liter almente sobr e, p o is é u m m o v i m e n t o d e r o t a ç ã o s o b r e e s t e esta ocultação é queda, abandon a r-s e r u í d o q u e s e c o n f u n d e c o m a m i n h a é cair, é, nas palavr as de Simone Weil, e s p o n t a n e i d a d e . Tropeço no silêncio, os entr eg ar-se à g r avidade 1 . músculos da cara contraem-se e a gargan-

Este estar privado da fractura, do tempo

ta aperta, mas nenhum som da boca aber- (pois não há tempo sem esta relação de ta, que possa perfurar esta bar reira imó- estranhar-se, de se inter rog ar) é privação vel, que paradoxalmente flui, de tal modo de liberdade. A tendência geral para um 1 ZAMBRANO, Maria - O sonho criador. Lisboa: Assírio e Alvim, 2005.


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a u m ento d e vel oci dade e de i ni nter r up - poder mos dele dispor, sem esse vazio que çã o d os d is cu rs os es cravi z a m o ho mem. per mite acontecer alguma coisa. D e ta l m odo, q u e nã o s ó não há tem -

«Em verdade, em verdade te dig o que,

p o pa r a d eci di r, como é dada a ilusão se alguém não nascer de novo, não pode d e d eci s ã o j á toma da com a ma i or das ver o reino de Deus» (João 3; 3); o tempo n a tu r a li d a d es. É natu ral i dade pois este é o meio do homem, pois é a sua possipr oces s o de ocultação de si mesmo é en- bilidade de realização, de renascimento, e tregar-me a um estado anterior a qualquer só no tempo se pode nascer. Nascer é andúvida, ser corpo entre corpos, natureza tes demais sair do estado onde a pergunta que nos embala num sono onde ainda não não tem lug ar, onde domina uma ordem sonhamos que sonhamos.

estrangeira a mim mesmo, com a qual não

Por isso de um sonho como de um es- me posso relacionar. Perguntar é pois popectáculo são coisas de onde se sai, e der despir-me das imagens que me envolsai-se para o tempo, pelo tempo, por vem, que não per mitem qualquer tipo de dispor mos dele e da liberdade, princípio transparência. No sonho não há qualquer de movimento. Fora do sonho nada se tipo de nudez, mas encontramo-nos semdá como imediato, e eu não me conhe- pre mergulhados nos mais diversos estaço senão como aquele que padece de si dos sem que possamos agir em relação mesmo, que vigia. Que eu não me tenha a isso. Mas na vigília há uma escolha de a mim mesmo, que não me alcance de nudez, que representamos e que nos reuma maneira imediata, define uma rela- presenta o mundo, uma máscara mas sob ção com o por vir. Uma relação que se in- um hor izonte, sob um possível. Ag ir é tercala de vazios onde o tempo sucessivo mudar-me, não sem limites, mas pr eci se abisma e recomeça a cada reflexão. O samente com os limites, questionan d o sonho é, como diz Zambrano, um tem- -os e r ecolocando-me per ante eles. A g ir po sem dono 2 , onde ficamos suspensos é per ceber que não sou suf iciente a m im do seu uso, submergidos no seu fluir sem mesmo, que não posso mudar imediata2

WEIL, Simone – Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999.


mente, mas que o amanhã me define como ainda não eu. «Tudo fala» 3 diz Nietzsche, mas este tudo que pressupõe a fala para lá do Homem, coloca a palavra no centro do silêncio, como um ovo à espera de ser fecundado. 3 NIETZSCHE, Friedrich – Assim falava Zaratustra. Lisboa: Relógio d’agua, 1998.


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Conto ilustrado: A Peรงa asBap


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Estrada de

Marraquexe Textos: Gonçalo Fonseca Ilustração: Sandra Rodrigues

Parte 1 A estrada do Alentejo

Tânger

O Caminho de Arzila

TANGER


´

A estrada do Alentejo O autocarro desliza pela auto-estrada do Sul, percorrendo as planícies alentejanas. Colo o rosto ao vidro e perscruto a paisagem. Nada se consegue ver, apenas se vislumbram vagas sombras informes e solitárias. Mentalmente recito um poema de viagens a destinos distantes e de estradas sem fim. Dentro do autocarro, há escuridão, silêncio e sono. Só as variações do motor quando reduz, quando acelera, se fazem sentir. Às vezes, parece que flutuamos na noite.

Tânger anuncia-se nas escotilhas salpicadas pelas águas do estreito. O ferry-boat baloiça pesaroso nas ondas inquietas e o mar é uma extensa cortina cinzenta, que às vezes se entreabre para deixar passar cargueiros e outros ferries. Enquanto esperamos que o funcionário dos serviços fronteiriços, encerrado na sua minúscula cabine de tédio, carimbe os nossos passaportes, observamos os outros passageiros. O funcionário folheia as páginas, escolhe um espaço em branco e num gesto gasto imprime a sua autorização.


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O caminho de Arzila faz-se por uma estrada que corre junto ao oceano. Atravessamos aldeias de casas inacabada e lojas improvisadas em barracões. À sua frente, estacionam-se camiões de cores estonteantes. Viradas para as praias, crescem urbanizações turísticas. Há humidade a impregnar o ar, o sol é baço e o mar uma paisagem de prata. De trás de arbustos surgem miúdos com cabazes cheios e figos e maçãs. Equilibrando-os acima da cabeça com uma só mão, acenam aos carros.


Ana Aragão

ilustração, Ana Aragão, “between the lines”, caneta sobre papel (29,7 x 38 cm), sd


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ilustração, Ana Aragão, “half ”, caneta sobre papel (29,7 x 21 cm), sd



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ilustração, Ana Aragão, “axonometria à mão levantada” tinta da china sobre papel (29,7 x 420 cm, 2011 lettering, Fragata, 2012


ilustração, Ana Aragão, “ceci n’est pas un arbre”, acrílico sobre cartão (70 x 50 cm), sd lettering, Fragata, 2012


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