Machado #01

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Brasil, agosto/2010

Toulouse | Paris | Buenos Aires




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NEIL GAIMAN:

A ENTREVISTA PERDIDA Em 2008, Delfin e Sergio Fonseca foram os dois únicos jornalistas brasileiros a conseguir uma grande exclusiva, inédita até hoje, com o autor de Deuses Americanos e Sandman.

AS CIDADES VIVAS DE

108

Inédito no Brasil, o premiado escritor francês faz sua estreia nacional nas páginas de Machado.

O autor do renomado romance A Ostra e o Vento, Moacir C. Lopes, traz a história de um pacto trágico feito por Gerson e Holanda. Cada um deles cumprirá sua parte no acordo?

JEAN-CLAUDE DUNYACH

7 / 190

ADONIRAN BARBOSA Homenageado desta edição de Machado, o mestre do samba paulista tem direito à trilha sonora da revista e um álbum exclusivo.

96 VOOK

ATÉ O FIM

62 NADA 140 SILVESTRE 148 FATAL NÃO SINTO

O CENTENÁRIO DE

O INCRÍVEL

AMIGO

Dodô Azevedo apresenta o primeiro vook brasileiro.

MANIFESTO

CARTEADO


28

Bruno Drummond

32

Jorge Rocha

36

André Giusti

40

49 - 131

50

52

76

84

102

105

Estevão Azevedo

Alexandre Matias

88

Samir Machado de Machado

Alexandra Moraes

Breno Kümmel

Eduardo Nasi

Samir Mesquita

Marcelo Benvenutti

Cynthia B.

FRONTEIRAS Nossa vida é percebida de modo linear. Mas é fraturada a todo instante, a cada escolha que fazemos. Infinitas versões de quem fomos são geradas, criando, em cada uma, quem poderíamos um dia ter sido. Por conta disso, a estrada que percorremos é única. Pare para pensar: quando você se pega imaginando como seria se tivesse tomado um rumo diverso, o outro que tomou aquela direção pensa o mesmo em relação a você. São padrões que não podem ser rompidos, ainda que se possa ultrapassar as fronteiras que os separam. Machado reúne as escolhas de seus diversos convidados para que não haja, em qualquer realidade, revista igual a esta.

146 116

Lielson Zeni

134

Löis Lancaster

Salvador Camino e Fábio Monstro!

Número 1 • 3 de agosto de 2010 Contato revistamachado@gmail.com Editor-chefe Delfin Editora assistente Viviane Oliveira

152

Mariel Reis

158

Daniel Seda

162

Kelvin Falcão Klein

199

Joana Coccarelli, Hiutwig e Mario Cau

212

Victorio Montanheiro

214

Vitor e Lu Cafaggi

Coordenação internacional Marcelo Barbão, Tibor Moricz Capa Delfin, em referência ao trabalho de Andrew Kramer, criador da abertura do seriado televisivo Fringe. Trilha sonora Tiago Casagrande (AYGN) Ilustrações Joana Coccarelli, Hiutwig, Vitor & Lu Cafaggi, Lalita Fotografias Mario Cau, Kelvin F. Klein, Samir Mesquita, Sergio Fonseca Preparação de textos e revisão Viviane Oliveira Projeto Gráfico Studio DelRey



O CENTENÁRIO DE

ADONIRAN

João Rubinato nasceu antes de ter nascido. Apenas esse fato já o tornaria digno de nota. Pois, em 1910, como está em seus documentos, ainda não havia qualquer rastro de sua existência. Para poder trabalhar mais cedo e ajudar sua família, ele teve a sua documentação adulterada e, desta forma, o garoto de Valinhos que nascera em 1912 ganhou de uma hora para outra dois anos de idade. Esta é apenas a primeira de muitas histórias marcantes deste ator, humorista, radialista, compositor, boêmio e amante da vida chamado, pelos amigos e pela História, Adoniran Barbosa. O bom é que sempre há algumas para descobrir e outras, não tão conhecidas, para lembrar. Algo que cada vez menos gente se lembra é de sua passagem pelo cinema nacional. Era comum nos anos 1940 e 50 que intérpretes de fama no rádio nacional migrassem para o cinema.

Porém, poucos têm no currículo participações em filmes que mudaram a sétima arte no Brasil; Adoniran tem duas: em 1953, tirou seu característico bigode e interpretou um bandido em O Cangaceiro, primeiro filme brasileiro premiado em Cannes, e contracenou com Amácio Mazzaropi no ano seguinte em Candinho. Foi nesse filme em que, pela primeira vez, apareceu o caipira de maior fama do cinema nacional até hoje. Seus primeiros discos, compactos simples, foram um fracasso de vendas e apenas nos últimos anos de sua vida sua obra foi registrada pela tevê e em antigos long plays. Esta edição de Machado é dedicada a este patrimônio da cultura brasileira, pouco lembrado em homenagens oficiais, mas que escancarou a beleza do falar errado, a alegria da periferia paulistana e a simplicidade de um mundo que quase não existe mais.

O desafio

proposto a Tiago Casagrande para a trilha sonora desta edição de Machado era diferente de tudo o que ele já havia feito antes: criá-la com base no trabalho musical de Adoniran Barbosa. Após três meses de pesquisa e experiências, o resultado é este que você pode ouvir ao ler a revista. Ao reinventar a obra para este século, Tiago foge das referências óbvias ao compositor paulista, e isso foi intencional: “Eu realmente quis evitar isso, uma relação direta demais, que só poderia decepcionar quem ouve. Ou seria uma saída possivelmente preguiçosa”, conta Tiago.

Esta edição está unida oficialmente às comemorações do centenário de Adoniran Barbosa.



A FICÇÃO DE

JEAN-CLAUDE DUNYACH

Tibor Moricz, ao final de 2009, entrou em contato com algumas pessoas de confiança, pedindo sugestões de autores estrangeiros que pudesse entrevistar para seu novo blog. Muitos nomes ingleses e americanos foram sugeridos. Mas e os franceses? Surgiu então o nome de um escritor vital para o cenário francófono, mas desconhecido no Brasil: Jean-Claude Dunyach. A pergunta era óbvia: por que um escritor de sua qualidade continuava inédito no Brasil? Tibor concordou em fazer o meio de campo, contatá-lo e é por isso que Machado tem o prazer de trazer a estreia deste premiado autor francês em terras brasileiras.

Nascido em 1957, é doutor em matemática aplicada e supercomputação. Trabalha para a Airbus em Toulouse (sul da França). É escritor de ficção científica desde os anos 1980, e já publicou sete romances e sete coleções de histórias curtas, ganhando o prêmio de ficção científica francesa em 1983, quatro prêmios Rosny Ainé em 1992, 1998 e 2008, bem como o Grand Prix de l’Imaginaire em 1998 e Prix Ozone em 1997. Seu último romance, Étoiles mourantes (Estrelas agonizantes), escrito em colaboração com Ayerdhal, ganhou o Grand Prix de la Tour Eiffel, em 1999, bem como o Prix Ozone. Dunyach também é compositor musical.

Para saber mais

sobre a carreira de Jean-Claude Dunyach e a cena francófona de ficção científica, leia a entrevista que o autor deu a Tibor Moricz para o blog De Bar em Bar: http://tiny.cc/M01JCD


PARANAMANCO Texto: Jean-Claude Dunyach Tradução: Marcelo Barbão Arte: Delfin

Quando Paranamanco se soltou de suas amarras e voou pela noite, não fiquei surpreso. Lembrei-me das palavras do velho navegador que tinha entrevistado alguns meses antes, pouco depois que o projeto da urbanimal tinha sido abandonado. Tirei o cubo de gravação de nossa conversa de uma gaveta e o liguei, duvidando que tivesse tempo de ouvi-la inteira. – Todo um rebanho? Consegue imaginar? Vinte ou mais urbanimais selvagens flutuando como medusas no espaço. A menor poderia ter sido a capital de qualquer império, a maior... Sem dúvida, você observou Paranamanco enquanto ela orbitava o satélite de trânsito antes de pousar aqui. Você a sobrevoou durante várias horas, examinando os lugares que incorretamente chamamos de moradias; talvez tenha passeado pelas avenidas, com suas faixas desordenadas feitas por pó de meteoro. Pode acreditar que a viu, mas ela continua a enganá-lo, como resultado de seu tamanho, sua topografia com suas curvas e estranhezas. Há bairros inteiros que ainda não foram penetrados, becos que não são mostrados em nenhum mapa, edifícios de carne esperando para serem explorados. O velho parou para terminar sua bebida. Num canto da minha mesa, o cubo leitor mostrava a imagem de um bar com muita gente. Não gosto de objetos mudos. Nós os criamos para preencher nossa solidão com sua companhia onipresente, não para que fiquem quietos e as ondas de nosso próprio silêncio ecoem ampliadas. – Se quer ir ao fundo disso – falou o velho –, compre um mapa recente e depois peça que eles o levem até algum lugar da cidade. Conhece as regras: quando encontrar uma rua que não tenha sido identificada, pode dar o nome que quiser e registrá-lo no escritório de títulos de terras. Há um bônus para cada descoberta, mas claro que nem chega a cobrir os custos de comprar os 160 volumes microfilmados do mapa. Mesmo assim, quantas pessoas você acha


que andam por aí dessa forma, os ombros dobrados por causa do peso dos microfilmes e o visor? Alguns milhares? Ele balançou a cabeça e contemplou, desanimado, seu copo vazio, que estava começando a estalar com um cheiro desagradável. Depois do último gole, as paredes de vidro, sem umidade, decompunham-se rapidamente, obrigando os consumidores a pedirem outra dose, de imediato. O barulho estridente do comunicador dominou o apartamento. Eu o desconectei e voltei a ouvir. – Você tem sua própria opinião sobre Paranamanco. Ela deve estar incorreta, mas a minha não é melhor. Era um organismo vivo antes de decidirmos transformá-la em cidade. Uma criatura como aquela nunca morre de verdade. Certos bairros afastados crescem e desaparecem como uma respiração que é quase imperceptível; os filamentos vazios que planejamos usar como túneis de transporte ou esgoto principal, às vezes, são animados por estremecimentos nervosos, como os axônios de um cérebro que deixou de funcionar. – Não, Paranamanco não está completamente morta, eu a conheço há muito tempo e sei que não estou errado. Antes de aterrissar em sua superfície, observei-a no meio do rebanho, no espaço profundo. Depois a explorei por alguns meses, procurando os pontos de controle de seu sistema nervoso. Plantei milhares de agulhas aleatoriamente em sua carne antes de descobrir seus centros de prazer e montá-la como se fosse um condutor de elefante, armado com o chicote de minhas descargas elétricas. Eu a forcei a me seguir até aqui por tentativa e erro. Quando entrou em órbita, eu a fiz atracar praticamente sozinho. – Você tinha que estar lá quando aterrissamos! Paralisada pela nuvem de rebocadores presas à sua circunferência, ela soltou sua corola de filamentos multicoloridos e açoitou o ar, tentando agarrar os pássaros de metal que voavam dentro do seu campo de alcance. Era magnífica e perigosa, uma verdadeira flor carnívora. Ninguém poderia tê-la forçado a obedecer, se eu tivesse soltado as rédeas. – Claro, aqueles que supervisionaram o projeto, tomaram suas precauções. Paranamanco foi a primeira urbanimal na qual atracamos e, até o momento, ainda é a única; as outras estão estacionadas entre os asteroides, esperando que as autoridades cheguem a uma decisão. A ideia de usar uma forma de vida desse tipo como uma zona habitável na superfície de um mundo colonizado é interessante, mas não vai agradar a todos. Muitos colonizadores prefeririam que construíssemos algo mais convencional. Alguns se recusam categoricamente a se instalar em casas cujas paredes sejam feitas de tecido orgânico vivo.


– Todos nós cometemos o erro de julgar as urbanimais por sua aparência. Uma cidade é somente uma cidade, dizem os imbecis, nada surpreendente nisso. É ingênuo, até perigoso. Essas criaturas não têm nada em comum com a espécie humana, a não ser alguns pontos bem superficiais. A sua existência e arquitetura dependem de regras além do nosso conhecimento, mesmo que pareça fácil aplicar nelas as nossas próprias regras. Podemos usá-las, mas nunca poderemos entendê-las. Tenha cuidado: isto é importante! – Todos estavam pisando em ovos naquela época. Os chefes vieram aqui para supervisionar as operações e evitar quaisquer possíveis problemas que causassem muitas ondas. – Finalmente, eles autorizaram os exploradores. Foi quando os problemas começaram. Com um suspiro, servi outra bebida a ele. Tinha aprendido a reconhecer aqueles pontos nos quais as histórias perdem força se não são alimentadas – com álcool, cumprimentos ou, ocasionalmente, uma desculpa. Tudo depende de quem está contando a história. O velho não estava procurando absolvição, ele só queria beber. – Eu fui lá também. Ele olhou para o seu copo sob a luz de uma lâmpada fraca e bebeu quase metade do conteúdo com um forte ruído. – Não estava procurando fazer fortuna. Capturar Paranamanco já tinha me deixado rico e, de todo jeito, nunca acreditei naquelas histórias de tesouros escondidos nas entranhas de urbanimais. Não, estava entediado. Caçar no espaço profundo não era mais excitante. Qualquer presa teria parecido minúscula depois daquilo. – Tinha começado a beber, beber de verdade, se entende o que estou falando. Uma manhã resolvi entrar lá sem pensar muito. Acho que estava ficando cansado até do álcool e tinha medo do que viria em seguida. – Escolhi explorar o setor 18, começando da base do campo estabelecida no coração da cidade. As instruções fornecidas por uma exploração espiral das ruas do bairro, seguidas por reconhecimento via satélite das regiões ao redor. Nesse ritmo, teria demorado uns dez anos para mapear as artérias principais. Paranamanco não seria habitável antes de um século. – É impossível perceber quão vasta ela é, se não tiver tentado cruzá-la sozinho. Está cheia de ilusões de ótica, terraços falsos e artérias subterrâneas. Os satélites-guia não servem para nada. A pele da urbanimal é impermeável às ondas de rádio; até mesmo as unidades controladas remotamente se perdem. Para trazêla a proporções mais humanas, ela precisava ser marcada com iluminação e preenchida de placas, o caos de seus becos precisava ser corrigido, os bairros, ainda selvagens, deveriam ser domesticados.


– Aí comecei a identificar a rota mais direta possível até a periferia da cidade. Se todo o resto tivesse feito o mesmo, poderíamos ter completado o mapa em dois anos e dominado o terreno. – É um jogo, entenda. Desenhe o mapa e controle o território. Quanto mais preciso o seu mapa, mais eficiente é o seu controle. – Sabe como se abre um novo mundo para a colonização? Existem as lagartas mecânicas que colocam quilômetros e quilômetros de cabos de fibra ótica em algumas poucas horas. Ponha milhares dessas máquinas na superfície de qualquer planeta e elas irão colocar vários nós de comunicação e linhas de alta capacidade, ao mesmo tempo em que limpam as partes mais densas da selva. Não importa quanto tempo demore, você pode ter certeza que, depois de terminarem seu trabalho, não haverá nenhum canto ou ranhura que não tenha sido explorado. Sempre haverá uma cabine telefônica no horizonte. A qualquer momento, você estará a trinta minutos da civilização. – Eu levei uma dessas lagartas comigo… – Não sei por que, na verdade, mas elas não funcionaram em Paranamanco. Ou se perdiam ou ficavam completamente loucas. Construíram linhas fechadas que as aprisionavam ou montavam redes eletrificadas dentro das quais se escondiam, esperando por sua presa. Aparentemente, algumas foram até encontradas em um casulo de verdade, um prelúdio a uma metamorfose impossível. Só estou repetindo o que ouvi, mas você sabe tão bem quanto eu como é esse tipo de história. – Então fui na direção da periferia com aquela lagarta fazendo barulho enquanto colocava os cabos. Meus pertences estavam no alto de seu anel central, presos firmes por grampos magnéticos. Eu caminhava tranquilo, com as mãos no bolso, tão livre como um Stanley que não dava a mínima para Livingstone, enquanto ela engatinhava embaixo de mim. – A cada dez quilômetros, ela parava para colocar um novo nó de comunicação envolvido em tecido de placenta. É uma visão curiosa, mas você se cansa dela rapidamente. Depois de um dia, parei de prestar atenção. Além disso, as pessoas dizem que não se deve ficar muito perto dessas máquinas nessas horas. De vez em quando, seu amor maternal faz com que se tornem perigosas. Eu aproveitava a maioria dessas paradas para andar pelos becos estreitos na vizinhança ou tomava um gole à saúde de Paranamanco. Meus suprimentos deviam durar dois meses. Essa é a principal razão por ter trazido a lagarta comigo. Minhas malas, com todas as garrafas, eram muito pesadas para meus velhos ombros.


– Depois de dois dias, estávamos navegando entre construções erguidas como pústulas na pele betuminosa da cidade. A maioria estava vazia e sem nada, com um leve cheiro de suor seco. Outros, sobrecarregados de divisões cartilaginosas ou envoltórios cor de sangue, teriam deixado um decorador de interiores louco. Não tinha tempo para visitar todos, então dava uma olhada nos mais próximos, para poder mapear os que considerava habitáveis. – A estrada que estávamos seguindo inclinava-se gentilmente antes de se expandir para ladeiras cada vez mais estreitas que levavam ao alto dos edifícios. Geralmente, um prédio seria sobreposto sobre a artéria principal e entrávamos num túnel escuro, fora do alcance dos satélites de observação. Em tais casos, nosso progresso seria mais complicado, os faróis da lagarta varriam hesitantes a escuridão. Eu mantinha minha mão na rédea para me firmar. – Quanto mais avançávamos pelos níveis invisíveis da cidade, mais incontroláveis eram as reações da lagarta. Seus esfíncteres dilatados lançavam cachos de estruturas embrionárias, a maioria irreversivelmente deformada, escorrendo óleo de máquina. Eu chutava a membrana protetora até arrebentá-la, para aliviar sua agonia e evitar a evolução de alguma interferência na rede de comunicação. Quando regressávamos à superfície, a lagarta voltava ao normal. Parei numa clareira para que ela pudesse recarregar as baterias solares. – Foi durante uma dessas paradas que percebi que não estava mais sozinho. – Nossa trilha era fácil de seguir; tudo que precisavam fazer era ficar de olho nos cabos. Mesmo assim, eu nunca teria pensado que alguém se importaria em seguir a máquina e eu. Não estávamos carregando nada de valor, além de minha bebida, e eu dividiria com prazer uma garrafa. E nem por um minuto pensei que estávamos cercados por criaturas desconhecidas vindas das profundezas da cidade. Quem nos seguia era humano e não estava fazendo muito esforço para se esconder. – Poderia ter montado uma armadilha para eles, uma emboscada em algum beco. Eles tinham tido dezenas de oportunidades para fazer o mesmo antes, então... Parei a lagarta e esperei por eles, uma garrafa de álcool na mão. Conheço as regras. – Eles, por outro lado, não conheciam. Demoraram tanto para mostrar o rosto que eu já estava razoavelmente bêbado quando chegaram. Não me lembro muito bem o que me contaram naquela noite, na manhã seguinte, todas minhas garrafas estavam quebradas e meu crânio zumbindo. Por sorte, a garota fez um bom café.


– Eram dois. Um cara e uma garota. Da sua idade, mais ou menos. Ele tinha um olhar taciturno, com dedos longos e magros, como os de pianista. Ela era completamente diferente. Uma bonequinha em carne e osso, do tipo que nunca decepcionou ninguém e tinha decidido que era hora de se transformar. Tirando isso, era tão silenciosa quanto ele. – Depois de algumas xícaras de café, senti que deveria xingálos pela perda das minhas garrafas antes de ouvir o lado deles da história. Eles me deixaram chorar todas as minhas mágoas, depois falaram comigo. Boa ideia! Eu estava tão bravo que não conseguia fazer nada mais do que mostrar minha raiva. Além disso, gritar quase cobria o zumbido no meu crânio. – Eles tinham um mapa para me mostrar. Não de um tesouro enterrado, não era o estilo deles, ou um desses diagramas esotéricos nas quais as adivinhas charlatãs de Paranamanco se especializaram. Elas se dizem capazes de ler seu futuro nos mapas topográficos da cidade e mostram aos futuros colonizadores os melhores lugares para se estabelecerem. Se preciso, acham um bairro onde o desenho das ruas corresponde às linhas das suas mãos. Estupidez total. – Meus dois seguidores eram de um tipo diferente de doido, nada a ver com os que tinha cruzado antes. Os dois trabalhavam no departamento que seguia os dados transmitidos pelos satélites. O computador tinha marcado anomalias nas fotos aéreas tiradas de Paranamanco, inconsistências nas rotas tomadas por certas ruas, o tipo de detalhe que nem eu, nem você teríamos notado, mas que as máquinas acabam registrando. Os dois estavam investigando sozinhos há meses, até decidirem juntar suas observações. Encontraram a solução quase que imediatamente. – Um fragmento do mapa da cidade era repetido de forma idêntica 44 vezes. Um simples fragmento, mas por causa dele, um elemento recorrente, o computador travava toda vez que tentava reconstituir o quebra-cabeça de Paranamanco. Desencorajada, a garota tinha desenhado um mapa indicando as localizações do trecho em questão. – Depois que o café fez seu efeito, eles desenrolaram o mapa para me mostrar. Quarenta e quatro lugares estavam espalhados sobre o disco da cidade, sem aparente simetria ou regularidade. Mesmo assim, o padrão deles me parecia familiar. Tirei meu próprio mapa, aquele mostrando os centros nervosos do animal, que tinha desenhado durante minha exploração no espaço profundo. O meu era mais tosco, mas não havia nenhuma grande diferença na aparência. O estranho era que o meu estava deslocado uns 190 graus dos deles, um semicírculo, como se os dois fenômenos fossem de igual importância, mas opostos no significado.


– A rota traçada pela lagarta estava indo direto para o ponto mais próximo e foi por isso que eles decidiram me seguir. Acredito que suspeitavam que minhas intenções fossem iguais às deles. Como o primeiro a explorar a criatura, deveria saber mais sobre ela do que qualquer outro. Acharam que eu já tinha uma ideia do que os setores idênticos escondiam, que o governo tinha algum objetivo secreto quando fez Paranamanco aterrissar e que estava explorando o lugar através de mim. Não os desiludi. Não teriam acreditado em mim, de qualquer forma. – Quando partimos, a máquina estava carregando três pacotes em vez de um, o que não parecia afetá-la, e eu tinha uma plateia para contar minhas memórias do espaço profundo. Eles sabiam ouvir, é o que posso dizer, um pouco como você, mas você ganha para ouvir, então não conta muito. O cara, Geoff, nunca dizia mais do que algumas poucas palavras e fazia as coisas em seu próprio ritmo. De vez em quando ele olhava para trás, checando se a garota ainda estava o seguindo. Eu esqueci o nome dela, mas vou lembrar daqui a pouco. – Estávamos em um dia interessante de caminhada pela zona, o que nos deu tempo para revisar um bom número de hipóteses e inventar umas novas. A coisa mais curiosa foi que, vista do satélite, não havia nada em especial sobre o fragmento recorrente: três ou quatro ruas, completamente normais, cercadas de edifícios. A mesma coisa. Eu poderia ter passado por eles sem perceber nada. Geoff pensou que era algum tipo de ilusão de ótica e que deveríamos esperar outra coisa, túneis subterrâneos talvez, ou vastos quartos cheios de estranhas máquinas. Ele estava com a ideia fixa de que as urbanimais foram habitadas no passado por uma raça humanoide e que esta tinha sobrevivido aos seus criadores. Era uma boa história, completamente válida, especialmente quando se dispõe de 12 horas de caminhada à frente e nada mais a fazer do que explorar as ruas e dar nomes a elas quando se achar que deve. – De qualquer forma, ninguém mais sabia nada sobre as urbanimais na época e, desde então, descobrimos pouca coisa. A colonização de Paranamanco foi interrompida e não será retomada no futuro próximo. Quanto ao resto do rebanho, está viajando livre no meio dos asteroides. Se soubéssemos como matar uma cidade selvagem, a maioria de nossos problemas estaria resolvida, mas duvido que chegaremos a esse ponto. Estou começando a pensar que toda a operação é uma besteira completa, mas ninguém pede minha opinião há muito tempo. – Lá estávamos nós, caminhando à frente da lagarta, por causa da fumaça que ela solta, sem nem ter tempo para visitar as


estruturas que nos cercavam. Tínhamos toda a cidade para nós e a única coisa que nos interessava era um bloco de três ruas, que nem tinham a desculpa de serem diferentes. Naquele momento não nos importava. Só pensei nisso enquanto voltávamos. – Imagine: hoje, além de quase um milhão de colonizadores em Paranamanco, há barulho, eletricidade, 11 religiões oficiais, todo um mosaico da espécie humana na superfície de um organismo estável que teve o bom senso de ser habitável. Sei que vai demorar pelo menos meio bilhão de pessoas para o lugar começar a parecer ocupado, mas no momento em que nós três estávamos caminhando por avenidas inexploradas, não havia ninguém num raio de 200 quilômetros. Nem uma viva alma! Não acho que um oceano ou um deserto poderiam dar aquela impressão de solidão. O mais estranho é que só percebi isso quando os outros dois chegaram. – O vento começou a soprar pelas ruas vazias, de repente, e fomos procurar abrigo em uma varanda. A noite caiu lentamente. Os prédios começaram a mostrar sombras incomuns, que se esticavam em direções inesperadas. Eu não tinha tomado nada desde a noite anterior, mas minhas alucinações normais foram para as fachadas dos edifícios vizinhos e agora estavam remodelando o cenário que nos cercava. Eu precisava desesperadamente de uma bebida e sentia que meus pesadelos formavam um redemoinho ao meu redor, esperando que a noite me atormentasse. Não tinha forças para resistir. – Estávamos nos aproximando de nosso objetivo. Acho que foi o primeiro sintoma da influência de Paranamanco, apesar de que o médico da base tinha conversado comigo sobre delirium tremens com um sorriso compreensivo. Pessoas como ele sempre têm uma explicação melhor do que a sua e não há como fazer com que mudem de ideia. – Sem me consultar, eles decidiram me abandonar pelo dia seguinte inteiro enquanto iam fazer algum reconhecimento. Eu teria recusado, se soubesse, mas aquela dose dupla de pílulas de dormir no café teria derrubado qualquer um. Quando abri meus olhos, estava preso em um casulo inquebrável de cabos e a lagarta, que tinha sido reprogramada, estava me controlando, vigilante. – Eu queria avisar à base que era prisioneiro de um casal de lunáticos para que alguém pudesse vir me resgatar. Parecia fácil, já que estava cercado de cabines de comunicação. A lagarta tinha montado um campo de concentração individual onde os cabos de transmissão substituíam o arame farpado, e as cabines substituíam as torres de observação. O único problema era que eu não tinha fichas suficientes.


– Antes de ter chegado ao operador da base, meu suprimento tinha acabado. Fui idiota o suficiente para tentar chutar a caixa e quebrá-la pensando em recolher seu conteúdo. Meu primeiro erro foi escolher uma estrutura expelida recentemente, o segundo foi esquecer o instinto maternal da lagarta. – Possivelmente seus reflexos deveriam estar alterados pela reprogramação, mas isso não a impedia de me dar um choque com a velocidade completa de seus segmentos, abrindo caminho pelos cabos que tinha montado. Participamos de um jogo mortal de pega-pega, no qual as zonas neutras eram as cabines. Pouco a pouco, estava tentando afastá-la da brecha que tinha feito na rede de cabos que me mantinha prisioneiro. Quando pensei que era um bom momento, corri para o prédio mais próximo esperando ser pego e pulverizado a qualquer momento. Eu raramente sinto medo, mas nesse dia foi diferente. – Depois de estar seguro, respirei fundo antes de olhar para trás. A lagarta não tinha me seguido, ficou sem se mover no meio de seu casulo. Atrás dela, a garota acenava em minha direção. – Eu me virei devagar, saboreando a raiva que tomava conta de mim. Estava me preparando para uma dessas explosões que fazem as estrelas parecerem pequenas. Em dois dias, esses jovens inconsequentes tinham me drogado, tirado minhas garrafas e forçado um rodeio com uma lagarta de trinta toneladas. Tinha insultos suficientes na minha mente para deixar o ar preto até o dia seguinte, talvez ainda mais, se houvesse um pouco de eco. Mas aí vi as lágrimas rolando pelo rosto da garota e fiquei em silêncio... O que mais poderia ter feito? – Desmontamos o acampamento em dez minutos. Cortei o cabo na parte enlinhada e fiz uma emenda diretamente na traseira da máquina, dando um curto circuito no novelo esquisito que tinha me mantido preso. Mais um quebra-cabeça para os arqueólogos do futuro. Eu me reservei o direito de usar uma barra de ferro para arrebentar a estrutura que guardava minhas fichas e recuperálas. Sou o primeiro vândalo de Paranamanco. Não se esqueça de mencionar isso no seu artigo. – Por que estavam com tanta pressa para ir embora? Minha voz é emitida pelo cubo com uma fidelidade irritante, fazendo a pergunta certa no momento certo. Na minha frente, na parede dos fundos do meu escritório, a luz vermelha de aviso continua piscando em vão. Não quero atender nenhum chamado, principalmente agora. – Geoff tinha desaparecido no setor desconhecido. A garota, Évalane (sabia que acabaria lembrando seu nome, Geoff a chamava de Évie), ficou com medo de continuar sua exploração sozinha


e voltou para me soltar, achando que eu pudesse ajudá-la. Dez segundos depois, ela provavelmente teria encontrado a lagarta em cima de um cadáver em forma de panqueca. Biomáquinas podem ser bem estranhas às vezes. Isso teria dado à minha lagarta uma oportunidade de expelir estruturas de carne rosada com botões feitos de olhos em vez de chaves. Só o pensamento de discar um número sob essas condições, dedos tocando olhos. Évie reconheceu que tinha sido sorte minha que Geoff houvesse escolhido esse momento em particular para evaporar. Como eu deveria responder isso? Resmunguei que a sorte tinha sorrido para mim desde que havia chegado, mas a garota era insensível ao sarcasmo. – Ela tinha parado de chorar, quer dizer, quase. Só continuava a soluçar, de vez em quando, ao mencionar Geoff. Não tinha percebido que gostava dele. Quando se vive sozinho no espaço, perde-se a sensibilidade a esse tipo de fenômeno. Não tinha ideia de como isso seria importante mais tarde. – Não havia nada de especial na área. Parecia com muitos outros bairros pelos quais eles já tinham andado antes sem nem perceber. Tiveram de voltar e procurar num satélite localizador para encontrá-lo. Geoff estava desapontado e furioso. Correu para cima e para baixo por três ruas, procurando uma passagem secreta, uma abertura escondida, sem sucesso. Depois começou a explorar os arredores, por todos os lados, voltando cada vez um pouco mais bravo. Bom, então Evie viu quando ele entrou numa varanda e nunca mais saiu. – De acordo com a garota, não havia nada de especial no interior do edifício: um labirinto de divisões cartilaginosas, um chão rústico, feito de camadas de pele morta. Como ninguém respondeu quando ela chamou, não se aventurou a ir muito longe e preferiu voltar ao acampamento, tomando o cuidado de marcar suas iniciais com tinta spray na varanda. – Nos aproximamos com cuidado. Nada se mexia, não chegava nenhum som, nenhum traço de Geoff. Eu peguei o controle remoto da lagarta, enquanto afastava a garota da varanda. “Poderíamos nos perder nesse labirinto” – expliquei para ela. – “Vou mandar o monstro entrar e explorar para nós.” “Boa ideia! Depois podemos simplesmente seguir seu cabo para encontrar nosso caminho de volta sem ficarmos presos por essas malditas divisórias.” “Depois que ela tiver dado um passeio lá dentro, não haverá muitas divisórias intactas, para dizer a verdade.” – Ela ficou vermelha, o que não era algo muito bonito e manteve o silêncio. A lagarta foi até a entrada. Seus segmentos, um a um, começaram a explorar o prédio. Podíamos ouvir o


som de tecido rasgando seguido por períodos irregulares de silêncio. Olhei dentro: o lugar estava cheio de escombros de cartilagem e estruturas que tinham sido colocadas de lado, presas em suas bolsas de placenta. O lugar perfeito para um centro de comunicação de larga escala. Anotei sua localização no mapa, por reflexo, antes de seguir com cuidado os passos da lagarta, acompanhado por Évie. – Abrimos caminho diagonal pelo edifício, tropeçando no entulho. Uma nuvem de pó de osso sujava nossas roupas. Evitávamos tossir, por medo de criar um eco que não teríamos reconhecido. Girei meu tornozelo, e Évie caiu sobre uma pilha de entulho, do qual saiu como um fantasma, com pedaços de membrana pendurados em seus ombros e cabelos como uma mortalha transparente. Ela parecia um morcego fantasmagórico. – A lagarta tinha parado na entrada de uma sala imensa, com diversos lados e que havia permanecido intacta. Évie deu a volta na máquina. Ouvi a garota gritar. Quando a alcancei, estava ajoelhada perto de Geoff que estava caído inconsciente, febril, os lábios apertados, as unhas cravadas em suas palmas ensanguentadas. – Não vimos a fonte no começo. Estávamos ocupados tentando reanimar nosso companheiro perdido e não tivemos tempo de estudar os arredores. O murmúrio discreto das gotas caindo na bacia, pouco a pouco, penetraram na minha consciência, como aqueles sonhos no começo da manhã, que anunciam um iminente retorno à realidade. Minha mente ocupada estava alerta para ruídos anormais, por menor que fossem, mas esse não era um deles, e não fiz nenhum esforço para localizar a fonte. Foi Geoff que apontou, assim que abriu os olhos, pedindo com a voz rouca, algo para beber. – Évie serviu um gole, colocando o conteúdo de seu cantil nos lábios do rapaz. Eu me levantei para desconectar a lagarta. No caminho, olhei ao redor sem perceber nada especial: o murmúrio vinha de um fio de água que caía no chão e enchia uma cavidade. Não chovia há uma semana. Lembro-me de pensar de onde vinha a água. Mas não achei aquilo importante. – Assim que Geoff conseguiu se levantar, correu até a fonte para beber, antes que pudéssemos impedi-lo. A água não pareceu ter qualquer efeito diferente sobre ele. Ofereceu-me um pouco, mas eu não tinha nenhuma afinidade com aquele tipo de bebida a zero grau. – Quando perguntamos por que tinha desmaiado, respondeu que havia batido contra uma divisória. A explicação era tão estúpida que acreditamos e consideramos o assunto encerrado. Évie se desculpou por ter me arrastado a isso por nada. Enquanto arrumávamos as coisas, Geoff recebeu seu quinhão de insultos por me deixar sozinho com a lagarta, mas eu já não estava tão bravo.


– Seguimos o cabo até o lado de fora. Nenhum de nós tentou sair do setor, até decidimos armar nosso acampamento na interseção de duas ruas principais. Évie fez um pouco de café. Sem falar nada, Geoff segurou o cantil para que ela pudesse enchê-lo. – Eu dei a ele um sedativo fraco para que pudesse descansar o resto do dia e saí para explorar tentando formar opinião sobre os prédios vizinhos. – Évie estava falando a verdade, não havia absolutamente nada para ser visto naquele setor. Era tão parecido com todos os outros pelos quais já tinha viajado, que as coisas começaram a me parecer suspeitas. Estava preso ao jogo, procurando obstinadamente em vão. Apalpei a grossa pele da cidade com esperança de detectar algum tipo de pulsação, desenhei mapas esotéricos em um velho bloco de anotações, arrancando as páginas depois de terminá-las. Resumindo, estava me comportando como um imbecil. Évie, que tinha ficado cuidando de Geoff, chamava-me de vez em quando perguntando se tinha encontrado algo e parecia não perceber que minhas respostas eram cada vez mais curtas. – A escuridão gradualmente foi me alcançando pelas ruas cheias de sombras nas quais seria fácil me perder. Desisti e me sentei perto do prato elétrico onde nossas rações noturnas estavam esquentando junto de uma xícara de café. Évie e Geoff olharam para mim, mas não fizeram nenhum comentário. Ainda bem. Não conseguia perdoá-los por romper a prazerosa monotonia de minha viagem através da cidade e suas promessas de sonhos vazios. Pela primeira vez, Paranamanco tinha me desapontado e culpa era deles. – Abri meu saco de dormir, o mais longe possível deles e da lagarta, e tentei dormir. Tinha tomado café demais para conseguir, mas, com a ajuda do silêncio, fui perdendo a consciência aos poucos, sonhando que a base iria se livrar dessas duas pedras no meu sapato no dia seguinte. – Durante a noite, tive um sonho recorrente: eu estava me chocando contra a realidade da cidade como uma mariposa cegada pela luz. Quando acordei, Geoff tinha desaparecido mais uma vez e todo o bairro parecia ter ficado louco. Havia grupos de fortes lâmpadas coloridas penduradas no alto, grandes gotas de uma seiva luminosa escorrendo. Uma videira de cabos telefônicos se espalhava pelos arredores, formando frondosas espirais barrocas pelas ruas, num abraço pouco natural. Orquídeas de neon com perfumes eletrizantes saíam das menores rachaduras nas paredes, soltando raios que ricocheteavam na pele de Paranamanco. Em algumas horas, o bairro tinha se transformado em uma floresta virgem.


– Perto do prato elétrico e da lagarta, que tinha sido completamente desconectada, Évie estava imersa num sono evidentemente recheado de pesadelos. O chão ao seu redor estava marcado por lanças transparentes compridas, bruxuleando com faíscas de tons violáceos. Precisei chutá-los para me aproximar dela. – Geoff tinha dado o resto das pílulas para dormir a ela e deixado uma nota lacônica em sua mochila antes partir. Sabia o que dizia antes mesmo de ler. Mas isso não me impediu de lê-la duas vezes, só para ter certeza que meu palpite estava certo. Aí acordei Évie, o que não foi fácil. – Ao nosso redor a cena começou a ganhar vida. O sol já estava brilhando forte. A densa floresta de fibra ótica tremeluzia perceptivelmente. Quase esperava que Geoff aparecesse, usando apenas uma tanga, pulando de galho em galho, caçando uma presa. Mas sabia que nunca mais o veríamos. E, no fundo, Évie também. – Mas ela se recusava a acreditar, apesar das provas que nos cercavam, apesar do bilhete de Geoff. Ela negava os fatos. Ei, tente convencer uma mulher que seu amante é capaz de deixá-la por um organismo vivo que mede 600 quilômetros de diâmetro, uma criatura com quem ele compartilhou seus sonhos. – Ela queria procurá-lo. Tive muita dificuldade em convencê-la a me ouvir. Sabia o que estava acontecendo com Paranamanco desde a noite anterior, em parte por causa dela. A água que ela tinha usado para fazer seu café tinha vindo da fonte. Um pouco do seu efeito perdurou, apesar da água ter sido fervida, e foi o suficiente para saber em que tipo de armadilha Geoff tinha caído. Só de pensar que poderia ter sofrido o mesmo destino me fez tremer. Foi por pouco. Devo ser uma das poucas pessoas no mundo cuja vida foi salva pelo álcool. – Falei a Évie que o líquido tinha envenenado Geoff aos poucos, que a primeira vez que o encontramos, inconsciente, era quase certo que ele tinha bebido da fonte e que, sentindo que estava a ponto de morrer, tinha preferido se distanciar do acampamento para nos poupar do espetáculo da sua agonia. O bilhete que tinha deixado era fruto de um cérebro que já estava com problemas, ela não deveria prestar atenção àquilo. Claro que não acreditou em nenhuma palavra que eu disse, mas foi a melhor mentira que consegui inventar no momento. – Ela insistia que eu contasse a verdade. Fui estúpido o suficiente para fazer isso. Uma longa fila de veículos, tocando suas sirenes, vem na minha direção. A julgar pelo som, estão longe o suficiente para que eu tenha tempo de ver a última superfície do cubo, a mais importante.


– As urbanimais são organismos incompletos – murmurou o velho, os olhos voltados para um horizonte que eu não conseguia alcançar. – Para encarar com sucesso o espaço que separa as galáxias, precisam de companhias simbióticas, jardineiros capazes de manter e cuidar delas durante a viagem. Em troca, oferecem acesso a todo o universo, bem como meios de sobreviver no vazio do espaço. – Quando aterrissei pela primeira vez na superfície de Paranamanco, ela percebeu que a raça humana poderia se dar bem com a dela. Aromatizou a água nos sonhos de Geoff para se manifestar. Depois de prová-la, ele foi capaz de se recriar nos moldes do jardim de neon que nos cercava. Não foi à toa que ele esteve caminhando nos bairros adjacentes; estava impaciente para testar seus novos poderes. Imaginei suas ruas sinuosas cheias de galhos, folhas cintilando com a luz dos raios, árvores-poste, folhagens elétricas se espalhando pelas praças da cidade e avenidas iluminadas por lindos cálices de tulipas de vidro. Percebi que Geoff não só compartilhava os sonhos de Paranamanco, como também, de certa maneira, transmitia a ela os seus. Ela sonhava em se parecer com as cidades da Terra, com enfeites de luzes multicoloridas entalhadas em metal e pedra. Tudo o que precisava era de um pouco de ajuda. – No começo, Évie se recusou a acreditar, convencida de que inventei tudo aquilo por alguma razão obscura, pois eu não sabia mais do que ela mesma. Então coloquei minhas mãos no solo quente, então uma florzinha de neon despontou e soltou seu fogo antes de morrer. – Ela finalmente entendeu que não poderíamos fazer nada por Geoff. Só uma expedição organizada pela base poderia tê-lo encontrado, se já não fosse tarde demais. A lagarta estava morta, não tínhamos mais água. Bem, eu preferia não provar a água em nossos cantis, para o caso Geoff tê-los enchido com água da fonte. Deixei Évie profundamente machucada por minhas palavras e segui os cabos, procurando uma estrutura em funcionamento. – Não tinha ideia do que meu colega, do outro lado da linha, pensaria da minha história, mas não estava preocupado. Depois de ter certeza que alguém viria nos resgatar imediatamente, voltei para o acampamento, onde não havia mais ninguém me esperando. – Évie tinha levado um dos cantis quando foi embora. Numa carta escrita enquanto eu estava fora, ela disse que estava pronta para se juntar a Geoff, para ajudar a servir a cidade. Eu me xinguei por não ter previsto isso e gritei seu nome até os ecos começarem a crescer ao meu redor, sem ousar me afastar dali. Ela nunca voltou.


– A parte mais horrível é que não havia como seu projeto dar certo. Paranamanco só estava interessada em machos. Havia entre ela e seus jardineiros um componente sexual que era essencial para sua sobrevivência. Évie era incapaz forni-la disso e acho que as urbanimais podem, de vez em quando, sentir ciúmes. – Naquela noite, uma nave guiada pelo farol da lagarta veio me resgatar. Quando o piloto viu a cena, pediu reforços. Um cordão de segurança cercou o lugar. Mas era muito tarde. A fonte de sonhos tinha secado. Nunca mais a encontramos. – Não sei como a informação pode ter vazado, mas centenas de colonizadores começaram a procurar os poços secretos de Paranamanco. Os responsáveis implementaram um blecaute de notícias, parcialmente porque não acreditavam em mim. Sou um velho bêbado, sabe? Falei muitas vezes que foi o álcool que salvou minha vida, mas eles continuavam céticos. Consigo entender o ponto de vista deles e nunca teria imaginado que alguém pudesse me entrevistar sobre essas coisas. – E você? Acredita em mim? Se não estivesse meio bêbado, eu acenderia uma fileira de luzes para convencê-lo, mas Paranamanco não gosta de álcool e creio ter perdido meu poder sobre ela há muito. Tive minha oportunidade e a desperdicei: ela não me quer mais. Alguém está batendo muito forte na minha porta; a gravação terminou. Meu artigo foi rejeitado em todos os lugares, sem explicação. Estou sendo vigiado, mas isso não importa mais. A cidade encontrou seu piloto; ela foi capaz de partir com sua tripulação de sonhadores e aventureiros, cujas mãos irão restaurar as flores nas ruas mortas. Sem dúvida, já estão bastante longe daqui. Tenho, pelo menos, um ou dois minutos antes que os meus perseguidores derrubem a porta. Penso no frasco de sonhos da cidade que o velho explorador me deu antes de ir embora pelas ruas, com suas placas tristemente convencionais, e desaparecer para sempre. Talvez eu tenha tempo de tirar a rolha, de beber, mas Paranamanco já desapareceu e não tenho certeza de poder encontrá-la.


DUNYACH.

QUEM? Como vocês sabem, Machado propõe a seus colaboradores que digam o que quiserem, como quiserem, para os nossos leitores. Mas com Jean-Claude Dunyach foi um pouco diferente.

Com a liberdade conquistada por uma carreira vencedora, propusemos que ele dissesse algo aos leitores brasileiros que tiveram, aqui, o primeiro contato com sua obra. Eis o que ele disse:

“Bem, eu escrevi alguns romances (o segundo em parceria com Ayerdhal) e dois contos onde os personagens principais eram animais vivendo no espaço, com o formato de cidades, que podiam transportar humanos (ou outros seres sencientes) pelas estrelas. Eles são chamados urbanimais e são, literalmente, cidades feitas de carne. Essa ideia veio quando eu estava vagabundeando pelas margens de um rio em Toulouse, minha cidade natal. Toulouse é uma cidade construída quase totalmente com tijolos – é chamada de “a cidade rosa”, mas na verdade ela é cor de barro, com um toque de preto aqui e ali. Cores realmente encarnadas. Então eu margeava o rio em uma manhã quente de verão, as paredes estavam mornas sob meus dedos. Quando você alcança a ponte mais antiga, há duas construções históricas, uma em cada lado do rio: a primeira é uma cúpula com uma pequena extensão no topo que se parece exatamente com um seio, e a outra é uma velha torre de igreja, ereta como... Digamos que seja muito masculino. Pois eu estava lá, rodeado por paredes mornas, contemplando ao mesmo tempo o seio e o pênis da cidade, com uma bruma fina chegando pelo rio que borrava a perspectiva e, subitamente, tive a sensação de que a cidade à minha volta estava viva, pronta para acordar. E devo dizer que ficaria muito feliz em habitar um organismo vivo, onde o chão e as paredes pudessem reagir ao toque de minhas mãos e pés desnudos. Para mim, seria o alienígena perfeito.”




LITERATOONS DE BRUNO DRUMMOND Quem mora no Rio, ou presta atenção a capas de livros, decerto já se deparou com a arte de Bruno Drummond em algum lugar. Principalmente na Revista d’O Globo, na qual ele retrata, na série Gente Fina, as pessoas que circulam pela Zona Sul carioca e pela Barra de um modo ao mesmo tempo elegante e mordaz. Um dos grandes atuais ilustradores brasileiros, Bruno chega à Machado com seus Literatoons.

É ele mesmo quem os explica: “Acho o livro o objeto perfeito. Se bobear, gosto mais do livro do que de ler. Criei a série de cartuns Literatoons para poder desenhar livros, livrarias, estantes, prateleiras, máquinas de escrever e todo universo visual e sensorial que envolvem a literatura. No momento em que se discute (ou se afirma) a sua finitude, apresento esta série como um declaração de amor ao livro”.





TRATADO

DO AMOR

SUBALTERNO Texto: Jorge Rocha

Me leve para baixo. Sim, para baixo. Porque olhar para dentro do abismo eu já olhei. E decidi que o melhor que poderíamos fazer era mesmo fechar essa porta pantográfica. Apertando alguns botões aqui e ali, faremos as engrenagens ranhetar e colocaremos este elevador em movimento. Para baixo. Sim, para baixo. Sentiu o tranco? Foi o último. Agora não mais. O que temos é suave. Ao toque, ao toque. Que me arrasta do ridículo até o sublime. Como se eu tivesse cantado, durante mais de sete minutos, uma música sobre meu lugar preferido, acompanhado por piano e um banjo espasmódico. Fôlego de piso gasto. Percebe a anacruse?


Noves fora, tronco e membros – pra não subir à cabeça –, você tem a mim em uma bandeja de platina. Antes mesmo de entrar nesse elevador, eu já contava com o conhecimento de minha situação de caracol. Roncando dentro de mim, em um lugar que não descobri ainda qual, convulsiona um desejo semovente. Semelhante às engrenagens que movimentam este elevador. Para baixo. Sim, para baixo. Eu sempre disse: um homem precisa conhecer o caminho de casa. [enquanto o elevador descia, pensei ter ouvido os primeiros acordes de lágrima, de francisco tárrega. bem no meio da balbúrdia que faz esse cardíaco pica-pau totêmico, quando resolve encarnar cover de britadeira.] Todo o medo. E sofrimento. E tristeza. E angústia. Tudo o que sentia enquanto o tempo passava. De que valem agora? Contrariando os quatro tipos diferentes de antidepressivos que me receitaram certa vez, forço a barra e tento voltar à vida. Aqui dentro. Para baixo. Sim, para baixo. Reafirmo: nem fogo, nem gelo. O inferno é espera. Cada passagem de andar antecipa você. Mas eles, eles todos aí fora, fora desse elevador, desse elevador que vai para baixo, eles não conseguem enxergar esse fato. Culpa das escamas, talvez. Nos olhos. Secos como ossos. Mas eu pude perceber. Porque fora desse elevador e debaixo do sol, as unhas do urubu me arranharam. Meu diagnóstico gravado com cinzel: pode ocorrer em osso, músculo e cartilagem. Penso que, por conta desse ferimento e da consequente opção pela descida, gangrenarei e aparecerão (aparecerão?) feridas esponjosas em forma de coraçõezinhos esturricados por todo meu corpo. E eles deverão ser recolhidos com beijos. Pois esta nada mais é do que a expiação serossanguinolenta de minha porção brega. Fecho os olhos e ouço o coro das polias emulando as unhas do urubu. Para baixo. Sim, para baixo. [você também pôde sentir? sangrando o ar? lá fora? aqui dentro?] Como um tiro certeiro. Como um tom certo em um piano. A mulher que eu quero. Numa cidade-carrossel bem diferente de onde nasci. Solve et coagula marcado nos braços: a descida ao último andar. A porta pantográfica se abre e, entre aqueles cabelos pretos, antecipo o que não sentia antes. Estou livre do elevador de Harry Angel que eu usava como habitat.





O CORREDOR Texto: André Giusti Arte: Hiutwig

O cardiologista então respondeu que mesmo as pessoas que fizeram eletrocardiograma recentemente e não apresentaram qualquer problema não estão livres de ter um enfarte de uma hora para outra. Sei, sei, fez o apresentador da rádio. O médico prosseguiu explicando que homens de trinta e cinco a quarenta e cinco anos devem redobrar os cuidados. Certo, certo. Nesses, o chamado enfarte do miocárdio pode ser fulminante, em questão de segundos, sem tempo para socorro. Claro, claro, pontuava o homem do microfone. Puxou o cadarço do tênis com força para firmar bem o calçado no pé direito, mas antes de dar o laço parou um momento, esperando que falassem mais sobre homens de sua idade. Aos trinta e seis anos começou a fazer exames regularmente, hemograma, eletro. Só que há mais de um ano sequer ia ao médico, desde que perdera o direito a plano de saúde. Sei, sei, e o médico lembrou que o pior horário para se morrer do coração era aquele mesmo, nove, dez da manhã, as artérias estavam mais contritas. E na hora em que o doutor ia explicar o resto, ele esticou o cadarço do outro pé do tênis, dessa vez com mais força que o necessário. Arrebentou. Após o barulho seco de matéria partindo, metade do cordão ficou pendente de sua mão para o nada. Irritado, perdeu a resposta do médico e acabou desligando o rádio.


Outro dia, na mesma estação, também disseram que um tênis de corrida aguenta no máximo quinhentos quilômetros. Ele corria de cinco a dez todos os dias e o tênis era o mesmo há mais de um ano. Por isso aquele cadarço se dissolvendo e o solado totalmente gasto, principalmente nas bordas externas por causa de sua pisada acentuada nas laterais. Os especialistas diziam que um tênis velho e gasto traz problemas às articulações, provoca dores nos joelhos. Mas como não sentisse nada, seguia correndo com seu tênis desbeiçado, o emblema da Nike se desprendendo. Tirou o cadarço partido para aproveitá-lo de acordo com o tamanho que ficou. Ficaram faltando uns dez centímetros. Conseguiu acertar um nó grotesco. Era ver se ele não desatava com o ritmo das passadas. Esticou a perna no parapeito da cozinha, alongou a parte de trás da coxa. Repetiu o movimento com a outra perna e depois foi para o degrau baixinho da porta que levava ao pequeno quintal. Ali, apoiava apenas a ponta do pé, deixando que o peso do corpo desabasse sobre os calcanhares, alongando as panturrilhas. Fez mais duas ou três posições, mas perdeu apenas quinze segundos em cada uma. Geralmente gastava o dobro, gostava de sentir os músculos bem esticados antes de correr, mas é que em cima da mesa repousava a lista e o dinheiro da mulher para o supermercado, a letra dela complementando o bilhete: pegar as crianças, o banho, o almoço delas, e já eram quase dez da manhã. Bateu a porta de casa, meia-água da casa grande dos sogros, depósito de tralhas que a família foi juntando ao longo dos anos. As tralhas tomaram o rumo da caridade quando ele, a mulher e as crianças foram viver ali há mais de um ano. Precisou aceitar o favor que o livrou da angústia do aluguel e o jogou nos braços de outra, a do favor de morar sem poder pagar, de enfrentar nos almoços de domingo a condenação disfarçada nos olhos dos cunhados. Engolia a última porque ao menos não vinha com ameaça de despejo. Passou beirando a casa principal e logo chegou à rua. Tentou ser rápido para evitar o encontro com qualquer um que fosse, mas a sogra olhava o tempo na varanda. Disse que depois iria lá, levar umas roupinhas para as crianças, que papel de vô e vó é esse mesmo, ajudar quando se precisa. O problema da frase é que ela tinha outro significado, outras palavras vestidas daquelas: ajudar porque o pai não anda, não resolve, não deslancha. A sogra calou, ficou o vendo bater o portão, ganhar a esquina depois de virar mancha confusa o mesmo short largo de sempre com a camiseta desbotada do time. Uma vez, assim que o portão bateu, ela disse, ele ouviu mesmo que carros passassem na hora: se saísse assim todo o dia correndo atrás de emprego…


Há mais de um ano mantinha o mesmo horário de acordar, para que ao menos isso não falassem, que acordava tarde, o imprestável. Deixava a mulher um pouco mais na cama e ia fazer o café, aprontar as crianças. Quando todos saíam e ele se via sozinho, era aí que desembestava pelas ruas do bairro. A sogra não desconfiava que ele corria era do desespero. Calçava o tênis e batia a porta, senão o enlouqueceria o telefone que em mais de um ano jamais tocou com alguém dizendo que tinha trabalho para ele. Se as folhas de todos os currículos que espalhou se rebelassem, deixassem as gavetas onde dormiam ou as latas de lixo em que foram jogadas e virassem pássaros, o sol seria encoberto e uma imensa sombra tomaria toda a cidade. Chegou a ser chamado para uma entrevista. Por engano. Foi o que descobriu quando a mocinha do RH olhou seu rosto já vincado, seus muitos cabelos grisalhos e disse apenas: desculpe, procuramos alguém com menos de trinta anos. Era por essas e outras que fincava com decisão os pés pelas ruas do bairro, cortando o vento e muitas vezes a chuva. Com o coração aos saltos nas subidas mais íngremes, ouvia a respiração mais forte até mesmo do que o motor dos carros. Nos últimos tempos, muito perguntou a si mesmo se deveria desistir. Um veneno, um salto, uma arma, mesmo um dos caminhões passando rente. Mas naquela dor que começou de repente do lado esquerdo, acompanhada do formigamento no braço e do enjoo, nunca havia pensado. Era óbvio que se acelerasse a marcha, a dor aumentaria. Dez da manhã, o último eletro há mais de um ano, 35, 45 anos, o tempo do socorro. No final da subida, a pontada foi maior, a rua sumiu das vistas turvas, as pernas não o sustentaram mais. Foi direto com a testa em uma mureta pontuda e pôde sentir o sangue encobrir os olhos, a saliva espumando escorrer do canto da boca. No peito, a dor aguda feito lança irradiava pelo braço. Nela, nunca havia pensado.



ZOOM Texto: Estevão Azevedo Foto: Mario Cau

1. O sistema

– A história do mundo é a história dos homens – falou o ministro, com pausas tão planejadas que parecia que aquela frase já havia sido repetida inúmeras vezes. – Desde que a História passou a ser registrada, e eu digo isso no sentido moderno, da maneira que o fazemos, desde então podemos afirmar que nada, absolutamente nada escapa ao conhecimento do homem. Antes, quando não existia a obrigação do registro diário da ação de cada ser humano, quem poderia afirmar que existia uma história? Os ouvintes se entreolharam, preocupados. Não concebiam a possibilidade, como sugeria o ministro, de um dia, mesmo que longínquo, não ter existido aquele dever, que eram ensinados a cumprir religiosamente desde crianças. Ao término de cada dia, sentavam-se diante de seu terminal, sem a companhia de ninguém (o que não era difícil: ler o relatório de outra pessoa, salvo casos especiais, era crime) e relatavam tudo o que haviam feito, com quem haviam conversado, o que de diferente houvessem visto. Todo cidadão do mundo, a partir de determinada idade, deveria escrever o seu relato. Aqueles que não tinham condições de fazêlo, por causa de qualquer tipo de deficiência motora ou mental, não eram considerados cidadãos, pois não tinham condições de influenciar a História.


– Por isso, para que não nos guiássemos por dados duvidosos, baseados em conjecturas feitas a partir de documentos tendenciosos, de relatos orais passados de geração em geração e, portanto, sujeitos a ruídos, por tudo isso é que todo o conhecimento registrado antes da implantação do novo sistema foi apagado. Os senhores devem estar pensando que foram alijados de seu passado, mas, na verdade, foram libertos do engano. Uma nova história é escrita, essa sim confiável e verossímil, todos os dias a partir do que cada um de vocês viveu. Hoje mesmo, assim que o último de vocês cumprir o seu dever e fizer o seu relato, o sistema começará a processar as informações, cruzar a massa gigantesca de dados, contrapor diferentes versões dos acontecimentos, resolver contradições (embora quase nunca existam, pois sabem vocês o que ocorre com quem mente ao sistema), desprezar banalidades. Daqui a cem anos a história desse dia estará pronta, disponível para consulta assim como a história de cem anos atrás acaba de ficar pronta faz alguns minutos. Entre as milhões de pessoas que assistiam o pronunciamento do ministro, vindo especialmente da sede da administração para as comemorações daquele dia, poucas não estremeceram diante da menção à possibilidade de mentir ao sistema. Dizia uma lenda que a história dos primeiros anos – cuja consulta obviamente não era permitida aos cidadãos comuns – mostrava que haviam sido necessárias atitudes violentas da polícia histórica para punir os que preenchiam com inverdades seus relatórios. O que, aliás, era bastante justificado. Quando, há muitos séculos, um grupo de insurgentes organizou um movimento pelo boicote da história oficial, agindo no submundo, combinando versões falsas dos acontecimentos, que eram relatadas por centenas de rebeldes para burlar o rigoroso controle, o prejuízo tinha sido de todos. Depois de descobertos e mortos todos eles, foi necessária nova análise de todos os dados das décadas – e foram muitas – em que o movimento esteve ativo, para evitar imprecisões históricas construídas pelos rebeldes. Iniciou-se o reprocessamento que duraria um novo século. E as lacunas resultantes prejudicaram quem, senão o povo? O ministro pareceu notar o sentimento da multidão, e num tom conciliador, com certo ar de deboche, continuou: – Há os que se opõem aos interesses da humanidade e são contra a verdadeira história, que é a de que dispomos. A esses eu digo: desistam de lutar. Por exemplo: uma bomba explodiu, dias atrás, em um dos nossos centros de processamento de informações. Sim, acreditem. Se tal ato for registrado no relatório de quem o cometeu, o que seria sensato, já que é crime muito maior não


preencher o relatório do que colocar bombas, a punição será branda. É impossível parar o processamento dos dados. Nem o governo tem esse controle. Duvido até mesmo que exista algum mecanismo para interrupção de seu funcionamento. Ora, é impossível parar a História. Se uma bomba destruir uma máquina, uma centena de máquinas, ou até um continente inteiro, de nada adiantará, pois o sistema é tão vasto que não há no mundo quem já o tenha visto na totalidade.

2. Um homem

Abrindo um trabalhoso caminho entre as pessoas, ele prosseguia rumo a um objetivo rotineiro, mas nem por isso menos angustiante. Antes de dormir, tinha de resolver problemas pessoais que consumiam um pouco do seu tempo de todos os dias, e, não bastasse, tinha muito o que escrever no relatório. Escrevia rápido e de maneira quase automática, o que, aliás, não era vantagem alguma num mundo em que todos, sem exceção, eram treinados desde a primeira idade a fazê-lo de maneira eficiente e correta. Na escola, antes mesmo de aprender a fazer cálculos, as crianças eram exaustivamente treinadas nas artes de narrar, ao mesmo tempo em que eram duramente castigadas se o fizessem utilizando a imaginação. Assim, ele já tinha na memória quase tudo o que escreveria sobre o dia que findava, de modo que o que o atormentava era o telefonema que daria em breve. No pequeno prédio em que morava, os vizinhos se tratavam com indiferença. Não que incomodassem uns aos outros. Pelo contrário, seguiam as mais rígidas regras de convivência, não faziam barulhos, não tinham animais, não conversavam nos corredores. Ele não era diferente. Dessa forma, sem contatos e acontecimentos, os moradores tinham menos o que contar ao sistema, evitavam erros no relatório que poderiam lhes custar caro e antecipavam o horário de dormir. A porta do prédio era tão grande que possibilitava a entrada e a saída, ao mesmo tempo, de várias pessoas. Em tal porta nunca alguém precisaria ceder a vez de passar a outro. O prédio ao lado, separado por um pequeno e escuro vão de alguns centímetros, tinha também a mesma grande porta entre as duas janelas. Do outro lado do prédio e mais adiante, para qualquer dos lados, a paisagem se repetia, parecendo, a quem andava pela rua, nunca sair do lugar. No interior dos edifícios, após a grande porta, os dois elevadores, lado a lado, sempre estavam no mesmo andar. Entrou no da direita, porque no dia anterior havia escolhido o da esquerda – jogo que repetia todos os dias. Chegou


ao seu andar. As entradas dos apartamentos eram muito próximas e poderiam confundir quem não fosse morador. Entre tantas portas, girou uma maçaneta e entrou. Seu apartamento era composto de apenas dois cômodos, e, embora nunca tivesse entrado ou sequer visto o interior de outros apartamentos, imaginava que eram iguais ao seu. O primeiro cômodo, onde dormia, tinha bem ao centro o terminal do sistema. Às vezes, no escuro, ele tropeçava na pequena mesa e praguejava, mas sabia que, não estivesse ele ali, estrategicamente posicionado, algum dia se esqueceria de usá-lo. Então sorria, satisfeito com o mal que tal posição evitava. O segundo cômodo era um pequeno lavabo. No momento, só o que importava era o telefone. Pressionou o botão que chamava o serviço de administração do governo e esperou alguns segundos até que uma voz feminina respondesse. – Bom dia, senhor, em que posso ajudá-lo? – perguntou a voz, como quem estivesse feliz por cumprir seu dever. Ele, sem demonstrar preocupação excessiva, mas com os músculos retesados, explicou-lhe seu caso. Tivera uma indisposição no dia anterior, ao acordar, que o impossibilitou de sair da cama. – Não que não eu não tenha tentado, isso não. Meu estômago doía, minhas pernas bambeavam, mas me arrastei do elevador até a entrada do prédio – a conversa longa já o deixava assustado. – Cheguei até a tocar a calçada, sim, mas desfalecia de poucos em poucos metros, e isso tornou a tarefa muito demorada. Quando vi que já estava quinze minutos atrasado, que minhas roupas estavam imundas e que continuava a me sentir mal, me arrastei de volta à cama e lá fiquei até de noite. Tudo isso foi o que eu relatei no terminal. A mulher comoveu-se discretamente, disse já estar a par de seu sofrimento. Mas, explicou, não era de sua alçada ajudá-lo, e ele perderia o salário. Resignou-se e desistiu. Tinha pouco tempo para preencher o relatório. Cumprido o dever, deitou em sua cama e, antes de dormir, seu telefonema fez lembrar de uma história que ouvira havia tempos. Em certa região do planeta, o governo, para melhorar a eficiência no atendimento aos cidadãos, buscou utilizar ao máximo a tecnologia. Até ali, onde ele morava, praticamente tudo era resolvido com um simples telefonema, como havia acabado de comprovar. Mas os custos de se manter, do outro lado da linha, pessoas que resolvessem tal volume de problemas, eram enormes. E a qualidade sempre deixava a desejar. Um cientista sugeriu, então, que algumas funções passassem a ser exercidas pelos computadores. No início, eles foram misturados aos funcionários para evitar que as mudanças


fossem perceptíveis. A inteligência e os recursos de diálogo foram estudados por anos, talvez por décadas. As vozes eram quase sempre as mesmas. Os computadores eram ensinados a agir da seguinte maneira: digamos que um cidadão perdesse o pai, vítima de uma doença terrível e, por isso, ficasse impossibilitado de pagar uma dívida. Esse cidadão explicaria sua história, sem saber que as respostas do outro lado da linha viriam de uma máquina. A máquina, nesse caso, deveria mostrar-se emocionada, mas não a ponto de incentivá-lo a acreditar que poderia encontrar ajuda. Demonstraria tristeza, mas nunca de maneira a fazê-lo crer que sua história era diferente das de milhões de outras pessoas e que merecia atenção. E, ao decretar a rígida sentença pela falta de pagamento, a máquina, para o cidadão, um funcionário humano, deveria mostrar-se dura, mas não a ponto de deixá-lo pensar que a culpa era dela, mas sim de uma instância superior, inacessível. E dele mesmo, é claro. Deveria mostrar-se preocupada em ajudá-lo, mas não de forma que ele imaginasse existir opção além da de cumprir a pena imposta. Era, portanto, muito pequena a faixa de emoções que a máquina era programada para demonstrar, mas sem que parecesse um simples conjunto de peças e mecanismos inteligentes. Para ele, tratava-se de história absurda e, o simples fato de lembrá-la, fê-lo rir na cama. O velho, que lhe contou, disse ainda que, passados muitos anos da implantação de tal mecanismo, não era mais possível afirmar que existissem funcionários naquele lugar. Os próprios cidadãos, após muito tempo de trato com os funcionários inexistentes, passaram também a assimilar alguns de seus traços de comportamento, como era de se esperar. Séculos depois, eram tão limitados em suas emoções, transitavam de maneira tão contida entre a alegria e a tristeza, entre o desprezo e o envolvimento, tal como eram programadas as primeiras máquinas, que se chegou a afirmar que em tal lugar não existiam pessoas, que eram eles próprios máquinas, parte do sistema. Dessa parte, ele se lembrava bem, mas nunca a havia entendido. Pouco a pouco, o sono venceu seus devaneios e ele dormiu.

3. Um fim

O relógio tocou e ele acordou assustado, sem saber se era dia ou se era noite. Enquanto tateava ao redor da cama em busca do despertador – mudo dessa vez – que o acordava todos os dias gritando, desejava com ardor, quase com paixão, que ainda fosse noite e lhe restasse uma chance de dormir um pouco mais. A luz não era pista suficiente, pois tinha sorte, e seu aposento era muito bem iluminado: mais claro que a noite e mais escuro que o dia, fosse


dia ou fosse noite. Era dia. Tinha que acordar, vestir-se rapidamente para compensar o tempo de indecisão e correr. Vestiu as meias e a roupa de baixo do dia anterior e, ao mesmo tempo em que colocava os sapatos, lutava para se desvencilhar da gola da camisa, presa nas orelhas. Antes de sair, uma rápida olhada no terminal, monólito no centro do quarto, cuja presença imponente fazia crer, em quem fosse dado a divagar, que estivesse ali antes da construção do edifício. O que viu o tranquilizou: era seu dia de folga. Aliviado, sorriu e descalçou os sapatos como quem descalça o mundo. Sentia-se flutuando, livre de um lastro de toneladas que o prendia ao chão do trabalho, da rotina e dos deveres. Para as raras folgas, planejava um dia de aventuras ou descanso, um passeio em direção oposta à habitual ou o completo ócio. Decidiu passear e, quem sabe, aproveitar a caminhada para visitar uma mulher. Ela era de uma de beleza que não afastaria um acomodado e de uma feiura que não espantaria um predisposto. Colocou novamente os sapatos, agora mais leves, e desceu. Enquanto caminhava, tentava não pensar. Assim, fazia o tempo se arrastar mais depressa. Imaginava um pequeno ponto branco dentro de sua cabeça e ia fazendo-o crescer e crescer, até que não restasse espaço para mais nenhum pensamento. Por um instante, porém, perdeu o controle sobre a sua criação imaginária, e ela cresceu mais que o esperado, contraiu-lhe as têmporas e o fez desfalecer. Acordou sem saber o que acontecera, quanto tempo se passara e onde estava. Depois da fileira de prédios, onde havia um cruzamento, reparou que uma grande fila estava formada. Só poderia ser algo importante, pensou, e por isso decidiu que era melhor se recuperar, abandonar qualquer outro plano e pegar um lugar. Ergueu-se e caminhou. Após duas esquinas, um viaduto, uma enorme e vazia praça, uma ponte, uma avenida e duas horas, ele finalmente avistou um vão que prometia ser o fim da fila. Apertou o passo, mas, de longe, o pequeno espaço em branco nessa linha contínua de homens e mulheres avançava cada vez mais para longe, tão grande era a quantidade de pessoas que no fim da fila se postavam. Apressou-se. A fila, porém, parecia estar viva e com metabolismo acelerado, tal a velocidade com que se alongava. Começou a correr e, por mais estranha que fosse a cena, ninguém ousava desviar por um segundo sequer a atenção da fila e olhar para o homem que corria na direção contrária. Em alguns momentos, esteve a apenas um passo de seu final, mas, antes que o alcançasse, outra pessoa tomava o lugar e logo atrás outro se colocava e a ele só restava continuar correndo. Alcançou, enfim, o último companheiro de infortúnio e assumiu o lugar vazio atrás dele. Imaginou-se tomando posse de um reino, demarcando um território selvagem.


A fila andava devagar, mas continuamente. De quando em quando, e por poucos segundos, ela parava e era nesses instantes que ele olhava em volta, analisava seus vizinhos, com uma curiosidade que começava a vencer o medo da indiscrição. Essas pausas, todos sabiam, não eram causadas por demora no atendimento ou falhas no sistema. Embora fosse a primeira vez que uma fila fosse formada em tal lugar, e o motivo de estar ali ninguém sequer imaginasse, era ridículo supor que esses pequenos espasmos no organismo sempre em atividade da fila tivesse algo a ver com o governo. Isso não. Devia-se, sem dúvida, ao senhor que, quilômetros à frente, distraíra-se enquanto coçava a perna por baixo da grossa meia, ou à menina que, vendo passar uma nuvem mais baixa e com contornos um poucos mais definidos, ousara achar que formava um desenho no céu e por isso causou problemas a todos que seguiam atrás dela. A luz do dia começava a se esconder atrás dos prédios mais altos do horizonte. O esforço ritmado começava a vencer os mais fracos e esses, caídos ao lado da linha contínua de pessoas, desistiam de seguir em busca do objetivo desconhecido. Uns pareciam dormir. Alguns se misturavam ao relevo, estirados na trajetória da fila, e eram pulados seguidamente, como uma vala ou uma lombada. Ele era de constituição frágil, mas ainda era jovem e se acreditava resistente. O céu já estrelado não o veria desistir facilmente. O que o inquietava era o relatório. Como o faria? Abandonaria tudo o que conseguira nesse dia afortunado para cumprir a obrigação? A ideia de não o fazer apavorava-o. Olhou para frente e para trás e não viu ninguém deixando seu lugar. O que os esperava no fim da fila deveria ser realmente importante. Era uma conclusão sensata. Se estivessem errados, a polícia já os teria expulsado dali. Não desistiria. Onde estaria? Todas as paisagens da cidade eram parecidas. O vento que percorria veloz os corredores entre os edifícios era gelado. O tempo já não fazia mais sentido. A fila parecia sempre haver existido, antes mesmo de existirem as pessoas e a cidade. Não sabia havia quantas horas dobrava à esquerda ou à direita nas esquinas, subia ladeiras, acelerava o passo, nunca permanecendo próximo demais do seu precursor ou distante demais de quem o seguia. Sentia fome. Iria embora. Não. O esforço que fizera para obter seu lugar privilegiado. O sucesso era dos que batalhavam, dos que perseveravam. Nos poucos metros de fila que avistava, não houve velha ou uma criança que abandonasse seu lugar. Era um novo dia e o pescoço já não suportava os efeitos do sol. A perna esquerda tiritava sem parar, o movimento repetido, para frente, para trás, para frente, para trás, perna direita para frente,


braço esquerdo para trás, pará-lo era como impedir o movimento dos astros, que iam e vinham, sem consciência. Para frente, para frente, para... Um empurrão violento o sacudiu. Acordou e continuou andando, temendo um novo incentivo vindo de quem o seguia. A cabeça lhe doía. Apoiava-se, sempre que havia uma parede ao lado. Sorriu. O esforço valia a pena, pensou, ganharia tanto quando chegasse a sua vez. Coitado de quem não se animou a tomar parte na fila. As pernas fraquejaram e ele caiu. Coitados, pensou, tomara que tenham uma nova oportunidade. Levantou-se, caiu outra vez, e, apoiando as mãos na calçada, acompanhou por mais alguns metros o caminhar acelerado da fila. Tentou soerguerse, mas as pernas sucumbiram. Deitado de costas, os pés que passavam por sobre sua cabeça tapavam, um a um, por segundos, o sol. Sol e sombra, sol e sombra, sol e sombra. Nos instantes fugazes entre as solas, viu o entardecer terminando, o anoitecer se insinuando e as estrelas se escondendo para que surgissem de novo sol e solas, infinitamente. A respiração já estava fraca e ele divagava. De repente, não viu mais a fila. Nem mais nada. Não respirou. Alguns insetos pousaram em seu pescoço, em seus cabelos, enquanto a fila o saltava. Um desses insetos, voando alto, muito alto acima da fila, acima dos prédios, via a enorme linha negra constituída pelos pontos humanos e que percorria inimagináveis distâncias fechar-se em si mesma em uma esquina e girar, sem pontas, como serpente engolindo o próprio rabo, passando pelos mesmos lugares, sem começo nem fim.



A Mテグ DIREITA DO ASCENSORISTA Texto e fotos: Samir Mesquita


Os microcontos ganharam grande visibilidade quando as pessoas tiveram de se acostumar a limites exíguos de escrita, como os 140 caracteres do twitter ou os 150 das mensagens enviadas por celulares. Mas eles não são uma novidade literária. Muitos estudiosos, inclusive, consideram os microcontos um gênero à parte dentro da Literatura, pois possui características peculiares, como exigir que o seu leitor preencha de significados todo um contexto subentendido. Há microcontos célebres. “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”, de Augusto Monterroso, é o mais famoso. Grandes nomes da literatura mundial flertaram com o gênero, como Hemingway, Tchekhov, Kafka, Lovecraft e Vonnegut. Dalton Trevisan é apontado como o escritor que formatou o atual parâmetro do microconto nacional. Augusto Sales, com os especiais em 300 toques dos sites Paralelos e Falaê, e Marcelino Freire, que logo após organizou a coletânea Os cem menores contos do século, contribuíram para popularizar novamente o microconto no Brasil. Samir Mesquita, no entanto, tornou‑se o mais proeminente microcontista nacional após os livros Dois Palitos e 18:30. Em Machado, ele nos apresenta uma micronovela, que também é um jogo. Ao longo de toda a edição, as pistas são dadas e cabe a você, leitor, juntar as peças e desvendar esta trama policial.



A ETERNIDADE EM

NICK DRAKE Texto: Alexandre Matias Arte: Joana Coccarelli

Nick Drake caminha pelo enorme jardim nos fundos da casa de seus pais, onde quase sempre viveu, em Tanworth-in-Arden, uma pequena e típica cidadezinha inglesa com casas feitas de pedra margeando ruas pavimentadas sobre pastos de um verde que parece ser a única cor viva no local. É primavera, as flores estão abrindo e Drake observa com cuidado cada desabrochar. Olha para o botão no exato momento em que ele se abre, revelando a beleza que escondia no início da estação e a estuda com calma, passeando o olhar pelos menores detalhes que só uma flor consegue sintetizar. O sol forte e amarelo não chega a esquentar; é manhã e ainda faz frio, mas as flores não se importam, continuando suas explosões de cores.


Drake senta-se no frio banco de pedra e olha ao redor: as plantas crescem mais uma vez, quase ao final de uma jornada que assiste todos os anos. O verde é exatamente o mesmo, vivo e radiante como as diferentes tonalidades das flores. Tudo se repete e a natureza parece sorrir ao confirmar esse ciclo interminável. Drake pega uma pequena flor amarela no chão e coloca entre as narinas, como se a proximidade do odor o fizesse pensar. Instantaneamente, seu olhar foge do jardim. Olhando para o chão, ele não observa nada – apenas pensa. Nos homens que teimam em fingir que suas vidas são melhores que as dos bichos e das plantas, preocupados com seus nomes próprios, reputações e linhagens. Veja as flores, todas de diferentes cores, vivendo em harmonia com as outras e com o resto do mundo. Como as plantas, toda natureza obedece uma regra cujos valores são opostos aos com os quais a humanidade sempre pareceu se ocupar. Mas o homem não se importa e insiste em bater com a cabeça nos mesmos erros, nas mesmas coisas pequenas, valores materiais e sentimentos negativos para com os outros. Nasce, cresce e morre – como todas as plantas e bichos. Mas continua achando que é melhor que os outros, seja como espécie ou como indivíduo. Seus pais aparecem na porta dos fundos da casa. Ao seu lado, um jovem mochileiro delicia-se com a beleza do jardim da casa de Drake. Sorridentes, carinhosos e quase no final de suas vidas, Rodney e Molly Drake recebem sorridentes os curiosos que querem conhecer mais sobre seu filho. Eles vêm de diversas e diferentes conexões – Sebadoh, Television, Joni Mitchell, Elton John, Scott Appel, Belle & Sebastian, Fairport Convention -, todos movidos pela música, ao mesmo tempo, clara e repleta dos únicos quatro discos do compositor, atrás de uma espiritualidade que não encontraram em nenhum outro lugar. Nem a arte, nem a religião, nem a contemplação da natureza eram suficientes para atingir o nível de profundidade que Drake propunha com sua música. Apenas com seu violão e seu canto triste e cético ou acompanhado de alguns dos melhores músicos de seu tempo, ele devolvia o homem à natureza, observando a civilização como uma criação tão natural quanto qualquer bosque ou praia. Ver aquele jardim, esclarece aos visitantes parte do mistério que é Nick Drake. Não se questiona, apenas se sente a intensidade presente no local, clara influência na concepção de vida do compositor. Ele nasceu em Burma, no dia 19 de junho de 1948, mudou-se para Bombaim ainda bebê e fixou-se na Inglaterra aos sete anos, indo morar em Far Leys, a casa que o viu crescer na minúscula Tanworth-in-Arden. O jardim dos fundos sempre esteve presente em sua infância, como o piano de sua mãe


(compositora influenciada por Noël Coward e Sandy Wilson), as histórias de seu pai e compositores clássicos, sua principal companhia musical quando criança. Naturalmente foi para o piano e logo se tornaria um instrumentista de talento, ainda que adolescente. Mas o espírito rebelde daqueles dias o levou para os Beatles e, influenciado por eles, trocou o piano por um violão, depois de muito pedir um aos pais. Era uma fase, Rodney e Molly pensaram. Mas o novo instrumento se mostrava tão completo quanto o piano – harmônico e melódico ao mesmo tempo – e poderia ser levado para qualquer lugar da casa, até mesmo para fora dela. Levava-o para o jardim e observava o céu, como esperasse que a inspiração descesse como um pássaro. O ouvido habituado ao piano o levou a experimentar diferentes afinações ao violão, fugindo do padrão do instrumento e procurando novas formas pessoais de expressão. Vinha a noite e voltava para casa, fazendo da sala de estar seu ambiente noturno. Esperava os pais dormirem e começava a tocar as próprias músicas, registrando-as num pequeno gravador que até hoje está na mesa de centro da casa dos Drake. Sentado numa poltrona laranja, dedilhava acordes tímidos à medida que procurava canções entre as notas que tocava. Insone, passava a noite acordado, indo à cozinha de vez em quando para um copo de água ou um pedaço de pão. Influenciado por Joni Mitchell e Van Morrison, começava a gravar quando o sol mandava notícias, azulando levemente o começo do dia, trazendo as músicas, que, repetidas, acordavam os pais. Molly se lembra das madrugadas que acordava ouvindo o filho para o visitante, fascinado com qualquer aspecto da vida de Nick. O pai, reservado, apenas observa a esposa contar a intimidade da família como um segredo religioso. Olha para o jardim e procura o filho, fingindo contemplar as plantas. Molly, ainda sorridente, conta da adolescência de Nick, de seus dias de escola, quando deixava a introspecção de lado ao correr no time de atletismo da escola pública de Malborough – o recorde dos cem metros rasos com barreiras ainda é dele. Mas quanto mais crescia, mais tímido ficava, aprendendo cada vez mais a usar o violão como sua forma de se comunicar com o mundo. Por conta própria, começou a se apresentar ao vivo, como uma maneira de exorcizar sua natureza intimista. A mudança aconteceu devido ao seu primeiro contato com maconha, na casa da irmã mais velha Gabrielle, em Londres. Com o auxílio da planta, tornou-se ainda mais reservado e pensativo, preocupando-se cada vez mais com a natureza humana. Recolhia-se ao jardim para fumar seus baseados sozinho e logo estava compondo canções


sem referências de tempo, lugar ou fatos. Estudava os sentimentos das pessoas e suas relações com a natureza, como a existência humana ser mais uma prova da perfeição natural à qual os homens julgavam-se superiores. Mudou-se para Cambridge aos 19 anos e na faculdade Fitzwilliams (onde estudava inglês e uma de suas maiores influências, o poeta William Blake) começou a se apresentar, primeiro nas casas de amigos, em reuniões ao redor de um violão que corria de mão em mão; depois em apresentações menores, pequenos bares universitários e festas da vizinhança. Seu medo do palco, no entanto, afastava-o de apresentações maiores e Drake costumava abrir apresentações alheias antes de abandonar a plateia, ensimesmado. Uma daquelas curtas apresentações mudaria sua vida. Foram dez minutos durante um festival organizado pelo legendário grupo folk Fairport Convention na Roundhouse. Após a apresentação do grupo, o baixista Ashley Hutchings preferiu ficar entre o público e assistir as outras apresentações que seguiriam até o dia seguinte. Quando Drake subiu ao palco, instantaneamente capturou a atenção de Ashley: com quase um metro e noventa de altura, cabelos despenteados caindo sobre o rosto, roupas que pareciam dois números menores que o tamanho que usava e um violão, ele se sentou num banco de madeira e passou a suspirar com sua doce voz canções que pareciam eternas. Pelo corpo e braço do violão, seus dedos procuravam as cordas de forma diferente, faziam acordes diferentes, alisavam a música burilada entre notas como um contraponto harmônico à melodia que sua voz cantava. Hutchings conversou com o jovem à saída do palco, pegou seu telefone e pediu para que enviasse uma fita demo à Witchseason, a empresa do produtor Joe Boyd, responsável pelos primeiros singles do Pink Floyd e por artistas como a Incredible String Band, John e Beverly Martyn, Richard Thompson e o próprio Fairport Convention. Assim Drake o fez. O resultado deixou Boyd boquiaberto. Tinha encontrado um artista completo, perfeito, quase mágico. Apenas com a voz e o violão, ele parecia clássico desde o primeiro instante, um artista romântico e solitário do século 18 que, de alguma forma, teve sua música gravada. Mas Drake tinha apenas 20 anos e vivia nos mesma década de 1960 que Boyd, o que o deixou estarrecido. Não era pouco: com seu ouvido apurado e capacidade de tirar o melhor dos artistas que produzia, Joe Boyd era uma lenda nacional e sua reputação parecia ter chegado ao topo. Mas um jovem de Tanworth-in-Arden tinha o provado que a maior qualidade da arte é sua capacidade de surpreender. Em pouco tempo, estaria com Drake no estúdio gravando seu primeiro disco.


Five Leaves Left, de 1969, teve seu nome tirado do aviso que as embalagens de seda pra cigarro inglesas trazem quando estão chegando ao fim: “faltam cinco folhas”. A sensação de se estar chegando perto do fim são bem retratadas nas fotos do disco: na capa, Drake olha desolado para fora de uma janela; na contracapa, encostado num muro de tijolos à vista, ele observa apenas o borrão que um engravatado provoca ao passar correndo por ele. “Quando o dia acabar/ O sol afunda na terra/ Com tudo que foi perdido e ganho”, canta “Day is Done”, “Quando a noite esfriar/ Uns passam, outros envelhecem/ Só para mostrar que a vida não é feita de ouro”. Nos somos apresentados à música de Drake: um canto quase mudo, quente ainda que estático, um gemido sem dor. Sua voz observa o mundo ao redor e o traduz em forma de metáforas campestres. O violão, dedilhado delicadamente, funciona como uma estrada de paralelepípedos por onde o autor caminha, olhando os céus, as árvores, os campos. Tudo soa árcade e pastoril e os outros instrumentos convidados no disco apenas ajudam a manter esta atmosfera: congas, um violoncelo, piano, o baixo de Danny Thompson, piano e, claro, as cordas impressionistas de Robert Kirby, sugerido pelo próprio Drake quando começou a se irritar (embora apenas demonstrasse ansiedade e impaciência, nunca raiva, no estúdio) com o arranjador que Boyd sugeriu para acompanhar suas músicas. Drake o conhecia de Cambridge, mas Kirby nunca havia feito nada em um estúdio de gravação – como o próprio Nick. O resultado foi surpreendente: com cores frias e pinceladas borradas dadas pelas cordas do quarteto que acompanha o cantor em quase todas as faixas. “Fruit Tree”, quase ao final do disco, é a peça central de Five Leaves Left. Sem muitos rodeios, Drake canta sobre o reconhecimento tardio, sobre a morte não como um fim, mas como um motivo para nos lembrarmos da vida. Canta sobre ele mesmo.

FRUIT TREE

(Árvore frutífera) “Fama é uma árvore frutífera Que não soa Não desabrocha Até que os ramos encontrem o chão Homens de renome Nunca encontram um jeito Até que o tempo voe Além de seu último dia Lembrados por um instante Uma ruína atualizada De um estilo ultrapassado A vida é uma memória Que aconteceu há muito tempo Teatro de tristezas De uma peça há muito esquecida Parece tão fácil Apenas deixe-a passar Até que pare e pense Que você nunca pensou sobre o porquê Seguro no ventre De uma noite sem fim Você descobrirá que a escuridão Pode dar a maior luz Seguro na profundeza da terra É quando saberão que você valeu a pena Esquecido quando aqui Lembrado por um instante Uma ruína atualizada De um estilo ultrapassado Árvore frutífera Ninguém te conhece, só a chuva e o ar Não te preocupas Olharão quando tiveres ido Árvore frutífera Abra seus olhos para um novo ano Todos saberão Que esteve aqui quando tiveres ido”


“Faltam cinco folhas” também nos remete ao outono, estação que observa as plantas cederem à fria temperatura. Mas o disco termina com o sol de sábado, nos preparando para seu próximo álbum. “O sol de sábado veio mais cedo certa manhã/ Num céu tão claro e azul/ O sol de sábado veio sem aviso/ Ninguém sabia o que fazer/ O sol de sábado trouxe faces e pessoas/ Que não pareciam muito em seus dias/ Mas quando me lembro destas pessoas e lugares/ Eram muito bons em seu jeito/ Em seu jeito/ O sol de sábado não virá me ver hoje”. Five Leaves Left foi bem recebido pela crítica, que o comparou a Tim Buckley, Van Morrison e Donovan, saudando a nova descoberta de Joe Boyd com entusiasmo. Mas o público não percebeu o primeiro fruto de Drake e, convencido que sua introspecção fora responsável pelo fracasso de vendas, decidiu trazer o sol de sábado para o novo disco, Bryter Layter. Convicto de que poderia fazer seu trabalho mais aberto e ensolarado, Drake abre seu novo álbum com os mesmos motivos entristecidos de Five Leaves Left, embora as cordas de Robert Kirby insinuem o nascer do sol. A presença da banda em “Introduction” é discreta, mas “Hazey Jane II” mostra as novas cores quentes da música de Drake, com Richard Thompson na guitarra, Dave Pegg no baixo e Dave Mattacks na bateria (todos do Fairport Convention) e as nuances em allegro dadas pelo arranjo de metais de Kirby. “At the Chime of the City Clock” volta-se às tonalidades frias das cores do timbre vocal do compositor, mas o sentimento é mais populoso, menos isolado. “Fique em casa, sob o assoalho/ Fale apenas com os vizinhos/ Os jogos que você joga/ Fazem as pessoas dizer/ Que você é tão esquisito quanto só”. “One of These Things First” é ainda mais urbana: “Eu poderia ter sido um marinheiro/ Poderia ter sido um cozinheiro/ Um amante da vida/ Um livro/ Eu poderia ter sido uma placa, poderia ter sido um relógio/ Simples como uma chaleira, firme como uma pedra/ Eu poderia estar aqui e agora/ Eu poderia, deveria/ Mas como?/ Eu deveria ter sido uma destas coisas antes”. Ele quase canta a reencarnação, como se já tivesse passado por diversas vidas no passado, remetendo ao budismo discreto de “River Man”, do disco anterior. Entramos então no espiritualismo de Drake. O compositor sempre esteve vinculado à natureza e ao idílio que a vida poderia ser se o homem não destruísse e pilhasse seu próprio habitat. Entre a ecologia e a poesia, ele canta a integração com os ciclos que a natureza discorre, o dia e a noite, as estações do ano, a vida e a morte. Todos estamos sujeitos a essas provações e a civilização humana parece lutar contra isso, criando suas próprias lógicas, fugindo da natureza e do instinto que nos conecta com o todo. Nick é fascinado com as pequenas coisas que vivem na terra –


plantas, bichos e homens como seres à disposição dos caprichos cíclicos dos movimentos do Sol, da Terra e da Lua. Obedecemos a regras que não podemos mudar e tentar ir contra isso é voltar‑se contra si mesmo. Devemos, portanto, contemplar as pequenas coisas da vida e aprender com cada uma delas. É o desafio proposto por William Blake: “Ver um mundo num grão de areia/ O paraíso numa flor selvagem/ Ter o infinito na palma da mão/ E a eternidade em uma hora”. Bryter Layter é permeado por este tipo de abordagem. “Você se sente remanescente/ De algo passado/ Você acha que as coisas/ Estão se movendo muito rápido”, canta em “Hazey Jane I”, “Faça por você/ E tenha certeza que fará o mesmo por mim, um dia/ Então tente ser verdadeira/ Mesmo que de sua forma nublada/ Você consegue dizer que está se movendo/ Sem um espelho pra ver/ (…) É tudo tão confuso/ É difícil acreditar”. Acompanhada da viola e do cravo de John Cale, em “Fly”, confessa: “Eu caí de muito alto na primeira vez/ Agora apenas sento no chão do seu jeito”, e logo emenda com a autobiográfica “Poor Boy”: “Nunca soube por que vim/ Pareço ter esquecido/ Nunca perguntei de onde vim/ Ou como parei aqui/ Sou um pobre garoto/ E um aventureiro/ As coisas que digo soam mais estranhas/ Que o domingo tornando-se segunda”. “Você me amaria pelo meu dinheiro?/ Você me amaria pela minha cabeça?/ Você me amaria através do inverno/ Você me amaria até eu morrer?”, pergunta em “Nothern Sky”, antes do triste instrumental de “Sunday”. Apesar do disco ser considerado por Boyd não apenas a obra-prima de Drake, como sua melhor produção, Bryter Layter novamente não vendeu. Mesmo com as boas críticas, o que ainda mais deprimiu o autor. Tinha apenas 21 anos e sentia o peso do mundo nas costas. Queria se comunicar com as pessoas (”Se canções fossem as linhas de uma conversa”, cantou em “Hazey Jane II”, “tudo seria mais fácil”), mas elas pareciam não querer ouvir. A depressão de Drake aumentou quando Boyd vendeu sua companhia para a gravadora Island. Voltou à casa dos pais e entrou em profunda reclusão. Falava pouco com os outros e sempre demonstrava estar passando por uma terrível dor interior, embora sua imagem muda no escuro parecesse não revelar nenhuma emoção. Um dia, Chris Blackwell ligou para Drake oferecendo sua casa na Espanha para passar alguns dias. Sem pestanejar, foi. Voltou e telefonou para John Wood, o engenheiro de som que acompanhou Boyd em seus dois discos. Queria gravar um disco. Sozinho, entrou no estúdio e, em duas noites de 1972, tinha Pink Moon pronto. Voltou apenas à faixa-título, para acrescentar um doce, mas triste piano na parte instrumental. Nenhum outro instrumento,


“Eu era verde, mais verde que o monte Onde as flores nascem e o sol brilha Agora sou mais escuro que o mais profundo mar Me ajude, me deixe ficar”

PLACE TO BE

“Todas as fotos que mantém na parede Todas as pessoas que virão ao baile (…) Conte o gado que passa pela cancela Mantenha um carpete tão grosso no chão Mas ouça-me chamando E não me dará uma carona”

FREE RIDE

“Sei que te amo Sei que não me importo Você sabe que eu te vejo Você sabe que não estou lá”

KNOW

“Você pode dizer que o sol está brilhando, se quiser Eu posso ver a lua e está claro Você pode pegar a estrada que te leva às estrelas Eu só posso pegar a estrada que me vê por dentro”

ROAD

“Veja e me verá no chão Pois sou o parasita desta cidade”

PARASITE

“Caindo rápido e livre você procura um amigo Caindo rápido e livre pode ser o fim”

HARVEST BREED

“Eu vi escrito e ouvi dito Aí vem a lua rosa Nunca uma lua esteve tão alto A lua rosa vai pegá-los todos”

PINK MOON

nenhum segundo take, emoção bruta e sem edição – menos de meia hora com apenas Drake e seu violão. Após perceber que ele não queria nenhum arranjo ou outra adição instrumental, Wood pediu que levasse a fita para a gravadora, explicando que era um álbum diferente dos anteriores. Nick chegou à porta do escritório da Island e não conseguiu dizer uma palavra, apenas entregando a fita dentro de um envelope pardo sem nenhuma etiqueta ou anotação para uma secretária. Alguns dias após a entrega, vieram a descobrir que não era a demo de um novo artista, mas o novo álbum de Nick Drake. Pink Moon é o momento mais amargo de sua carreira. As canções pareciam repletas de um sentimento cru que o autor deixava sair à força, contra sua vontade. A culpa para suas palavras não terem sido compreendidas era também sua, embora Drake nunca tenha pedido a pena de ninguém. Era apenas uma sensação de frustração, de não cumprir o que deveria ter feito, de lamentar a própria existência e não conseguir curá-la. Mas, comparando o produto com o autor, nota-se claramente o esforço do artista para que aquelas canções saíssem: Drake mal conseguia conversar com as pessoas, mas gravou um álbum inteiro tomado pela confissão. Depois de Pink Moon, cujas canções ele nunca cantou para ninguém a não ser no estúdio, voltou a cair em depressão, sendo tratado clinicamente. Odiava remédios e os tomava sem a regularidade que os médicos lhe prescreviam, sentia que envenenava seu corpo e só fazia isso por seus pais. Cada vez mais se isolava e fugia do mundo exterior. Ao mesmo tempo, sua lenda crescia. Embora seus discos vendessem pouco, eles eram disputados por ouvintes que encontravam uma sabedoria adolescente mágica acompanhada de uma biografia que justificava não apenas a utopia hippie, como o romantismo dramático que aos poucos tomaria conta da música popular. David Geffen, dono da gravadora Asylum (casa de Joni Mitchell e Jackson Browne), queria incluir


Nick em seu catálogo, mas, tanto Chris Blackwell, quanto Joe Boyd, insistiam em relançar seus discos por conta própria. Até que um certo dia, no começo de 1974, decidiu voltar a gravar. Gravou quatro canções e sorriu com a possibilidade de ter suas músicas gravadas num álbum da cantora francesa Françoise Hardy, interessada confessa no projeto. Voltou a conversar com os amigos e, aos poucos, deixava o casulo da casa dos pais. Não tocava em público ainda, mas era claro que o sol havia voltado a brilhar na vida do jovem Drake, que parecia disposto a retomar a carreira. Nem suas noites de insônia eram poupadas, preferia dormir direito e acordar cedo para se readaptar à luz do dia. Para ajudar dormir, os médicos receitaram Amitriptilina. Nunca ninguém havia lhe dito que mais de uma pílula era demais – e era. Quando Molly Drake acordou no dia 25 de novembro de 1974, o filho não havia acordado ainda. Estranhou. Foi mexer em sua cama e ele não reagia. Nick Drake, 26 anos, estava morto. Todos os motivos levam a crer que a morte de Drake foi acidental. Já havia confessado a amigos próximos que havia pensado em suicídio nos momentos mais tristes de sua vida, mas que se considerava covarde para cometê-lo. E 1974 havia sido um excelente ano para o cantor que, aos poucos, voltava a tocar violão na sala de estar da casa dos pais e a receber e atender telefonemas de amigos. Um lapso fatal, que encerrou sua prematura carreira como se esta fosse uma lenda, uma história fantástica. Três discos mágicos, cada um à sua maneira, mostrando adjetivos e cores diferentes para o mesmo tipo de sentimento, o mesmo tipo de relação com a sociedade e o ambiente em que vivia, sempre abordados da mesma forma prematuramente madura que Drake parecia ter sobre a vida. Nos anos seguintes, uma caixa (Fruit Tree) reuniria seus discos para a posteridade, ampliando sua lenda pessoal. Gravações da época de Five Leaves Left foram encontradas em 1984 e reunidas às quatro últimas faixas gravadas por Drake (entre elas, a mórbida “Black Eyed Dog” – um presságio da morte?) no álbum Time of No Reply. Deste disco, vem “I Was Made to Love Magic”, síntese de sua espiritualidade e importância musical.

Nick Drake: A Skin Too Few O ótimo documentário que Jeroen Berkvens fez no início da década sobre Nick Drake é obrigatório para fãs e bem didático para quem quer conhecer um pouco mais sobre esse mito moderno britânico. Pode ser assistido na íntegra no YouTube.

“Nasci para amar ninguém Ninguém para me amar Só o vento na alta verde relva O gelo numa árvore quebrada Eu nasci para amar a magia Tudo é surpresa para conhecermos Mas vocês perderam essa magia Muitos anos atrás”

I WAS MADE TO LOVE MAGIC


O MUNDO URBANO DE EDUARDO MEDEIROS Nos últimos dois anos, o mercado de quadrinhos acompanhou a decolagem de um trio gaúcho rumo às boas histórias, prontos para grandes voos. Eles são Rafael Albuquerque, Mateus Santolouco e Eduardo Medeiros. Juntos, eles fizeram a festa de quem está atento às novidades da arte sequencial brasileira. É deles a festejada quadrilogia denominada Sexo, Drogas e Rock’n’Roll, com as revistas Powertrio, Overdose, Cabaret e Encore.

Quem vê o traço de Eduardo Medeiros pode julgá-lo, apressadamente, como caricato e, desta forma, impor o rótulo obrigatório do humorismo ao seu trabalho. Mesmo que o bom humor faça parte natural de suas histórias e ele seja colaborador da Mad, Medeiros também é um grande narrador em outros estilos. O seu trabalho está intrinsecamente ligado ao seu mundo urbano, que nem sempre é engraçado. Nesta Machado, ele apresenta uma amostra disso a vocês.
















SEM O TRIPÉ Texto: Breno Kümmel Arte: Joana Coccarelli

Sem desmanchar o sorriso, ele pediu para que eu me afastasse. Respondi, repetindo, que queria filmar a alegria dele naquele momento, que de longe não daria pra gravar tão bem, que ele, daquele jeito, seria só uma manchinha na tela, distante. Acrescentei ao meu argumento que de perto eu pegaria não só a expressão dele na queda, como também o grito que ele ia dar. Ele falou que era bobagem, que todos os gritos de bungee jump eram iguais, tudo besteira, só teatrismo. Teatrismo, perguntei, e ele explicou, sabe, theatrics, não sei se existe a palavra em português, mas dá pra entender, né. Fez o “th” com a língua entre os dentes e assoprando, certinho, com toda aquela espontaneidade que eu nunca tive. Ele então botou a mão em concha na orelha para que eu prestasse atenção no grito da próxima pessoa que pularia, um rapaz não muito diferente dele. O tal se jogou e soltou um grito como aqueles ouvidos em especiais de esporte radical na televisão. Igualzinho. O único ali que não ria era meu filho, falando de novo que aquilo era muito falso, que quando você tá caindo a última coisa em que você pensa é gritar, a sensação é muito forte, gritar ali é um esforço consciente, é só pra se mostrar. É assim nas montanhas-russas, ao menos. Disse que a primeira vez que ele foi numa montanha-russa (devia ter uns dez anos) espalhou para os amigos que ia gritar feito louco, mas na primeira descida já viu que não tinha nada a ver, que era preciso um esforço enorme para abrir a boca e fazer sair sua voz, e mesmo quando conseguiu emitir algum som parecia que estava cochichando, era ridículo comparado com o da velocidade do trem desarrumando seu cabelo e farfalhando sua camiseta larga demais. Imaginava que com o bungee jump o caso seria o mesmo. Só pose.


Perguntei como ele se justificou para os amigos quando desceu do brinquedo. Ele riu, disse que apenas mentiu, disse ter gritado feito um louco, afinal, eles nunca descobririam: o trem tinha gente o bastante fingindo para que seu grito, ou melhor, seu silêncio, não fosse identificado. Claro, essa conversa toda foi filmada. A câmera estava ligada desde nossa saída do carro, no estacionamento. Queria registrar cada momento. Com aquele, alcancei vinte minutos gravados. Tínhamos tempo de sobra na mini-dv. De novo ele colocou a mão em concha na orelha, a sobrancelha erguida como se apontasse para o próximo que ia pular. Realmente, o grito era igualzinho. Eram todos iguais. – Não falei, é tudo exibicionismo. Prefiro ficar de boca fechada, assim ela não fica toda esturricada quando eu voltar. De fato, todo mundo que pulava gritando (isto é, todo mundo que pulava) pedia um gole d’água assim que subia de volta à ponte. Provado seu ponto, apontou para uma curva que a estrada fazia mais à frente, falando que lá seria um bom lugar para filmar o pulo, que de lá eu pegaria o todo, inteiro, daria uma ideia completa da coisa. Eu dei de ombros e obedeci: o aniversário não era meu, afinal de contas. A fila dos que pulariam estava um pouco grande, na demora daria para ir até lá e me preparar. Desliguei a câmera e dei partida no carro, botando o ar condicionado no máximo para atenuar um pouco a temperatura. Cheguei no lugar e parei no acostamento. Aproveitei aquela nova proximidade do carro para procurar de novo o meu tripé. Sempre tive problemas em manter a câmera firme na mão e, daquela distância, seria ainda pior. Supostamente o maldito estaria lá. (Foi uma das primeiras coisas que vi quando cheguei em casa, deitado no chão do meu quarto, esquecido.) Minha raiva de não ter encontrado o maldito dissipou um pouco quando me virei pra trás e vi a ponte. Realmente, tinha sido a escolha certa. Aquele ângulo era muito melhor, dava pra ver tudo, tudo. E o lugar era lindo. A ponte se erguia sobre o rio lá embaixo com imponência, como se tivesse orgulho de si mesma, toda sua estrutura de aço, asfalto e concreto, um monumento no meio do nada, só mato em ambos lados. Apesar da ferrugem que pintava de laranja partes das vigas, lembro de ter escutado recentemente na televisão alguns engenheiros do governo garantindo que ela ainda não comprometia a construção. Não conseguia agora lembrar qual notícia tinha motivado a realização desse estudo... Seria irônico (irônico?) alguém pular de bungee jump e a ponte, de repente, desabar levando todo mundo junto.


Claro que não contei nada desses meus devaneios à minha mulher. Mal a convenci de que o moleque já tinha mais do que a idade suficiente pra fazer o que queria. Ela relutou sem parar, demorou um ano para o deixar fazer o maldito pulo. E, mesmo convencida, disse que não presenciaria o evento, eu que levasse e trouxesse, que não confiava nos amigos idiotas dele pra fazer uma coisa tão perigosa e irresponsável e nem sabia por que estava permitindo aquilo tudo, uma sandice sem tamanho. Ela, às vezes, dizia palavras como “sandice”. Pensei que ele ia ficar chateado de não poder ir com os amigos, já que é o costume, todo mundo se junta num só carro (preferivelmente 1.0, para deixar as subidas mais emocionantes) e vai, rindo o caminho todo, que nem nas propagandas das montadoras com um pop rock tocando seu refrão ao fundo sobre como a vida é maravilhosa. Acabou que ele nem se importou muito por isso, dizendo que ele até preferia fazer sozinho, que no final das contas na ponta da corda só cabe um. Já era hora. Eu filmei todo o local, fiz um panorama completo do cenário. Dali não se ouvia nada das pessoas da ponte, o único som captado era um ou outro pássaro piando. Dei o zoom (mais ou menos a metade do máximo possível, que era um absurdo) e vi o meu filho lá, camisa vermelha, se acoplando naquele elástico vermelho. O funcionário de lá dava as instruções finais de segurança, fazendo toda a gesticulação de praxe, como todas as outras vezes, parecia uma aeromoça bombada. Ri sozinho da própria piada. A imagem da câmera chacoalhou loucamente, filmando tudo menos o ponto do pulo. Tentei me controlar, ficar quieto, estabilizar a mão. Se continuasse daquele jeito, o filme estaria arruinado. Vai que o filme do pulo vira filme do mato da ponte, ou do asfalto onde parei o carro, ou de talvez outra coisa. Não. Eu precisava registrar esse momento adequadamente. Nunca mais haveria um momento como aquele, e aquela era a única chance de tê-lo para sempre. Às vezes eu me pegava pensando em coisas assim, a irrecuperabilidade das coisas da nossa vida. Não é só nos momentos únicos, mas nas migalhas mínimas da nossa rotina. Por exemplo, hoje de manhã foi a milésima sétima vez, digamos, que eu tomei café com adoçante por obrigação, e eu nunca mais vou tomar café com adoçante por obrigação pela milésima sétima vez, a próxima será a milésima oitava, uma coisa parecida, ao mesmo tempo que totalmente outra. Isso tudo piora se pensarmos nos momentos verdadeiramente únicos, como agora. Não só por ser a primeira vez (quase sempre a mais marcante), mas por ser algo que não se faz todo dia, nem


mesmo todo ano. Até eu convencer minha mulher a deixar de novo, ia demorar ao menos mais um ano, meu cabelo mais branco, o aniversário um número acima, mais maduro, mais consciente, pronto para ultrapassar... Aquele momento nunca se repetiria. Por isso, era importante me concentrar na filmagem e não ficar de devaneios, perdido. Voltei meus olhos à tela da máquina, firmando um pouco mais minha mão. Meu filho finalmente subiu, passando a perna por cima do corrimão. Seus olhos estavam fechados (dava pra ver pelo zoom). Ele agora estava perfeitamente enquadrado: a câmera tinha steadyshot, mas, pra garantir, também encostei o cotovelo no corpo e segurei meu pulso da câmera com outra mão. Ele abriu os olhos e baixou a cabeça, inclinando o corpo para o abismo com as duas mãos segurando a barra atrás, parecendo aquelas esculturas que ficam a frente de navios antigos, de madeira. Soltou-se. Alguns segundos de queda livre. Pareceu que tinha cumprido seu pequeno voto de silêncio: nem ao menos ergueu os braços, como se faz comumente. Ele só descia. E eu acompanhava tudo no meu visor. A corda começou a esticar, indo daquele embolo enrugado de quando está em repouso para uma linha reta mais e mais esticada a cada metro que passava, parecendo não afetar a queda, como se fosse enfeite, para, só uns segundos depois, começar a fazer efeito, a diminuir a velocidade na descida até chegar ao mínimo, o ponto mais baixo da queda, ou o mais alto da tensão do elástico: o momento seguinte é o da volta, em que ele começa a subir, bem menos do que de onde caiu, claro, mas, mesmo assim, o quique deve ser algo... Ele parou no ápice da subida e voltou a descer, dessa vez mais devagar. A corda então se soltou e ele caiu até o fim, até as pedras do rio lá embaixo. Não sei qual foi o som do impacto, ele não chegou até onde eu estava. Não sei também por que depois daquilo não me lembro de ter escutado mais nada até chegar em casa. Visualmente, ainda tenho tudo claro na minha memória: fechei o visor da câmera, coloquei-a no meu bolso (coube, e ainda sobrou espaço), entrei no meu carro, girei a chave, botei o câmbio automático no D e acelerei. Lembro das árvores no caminho, algumas com galhos projetando sombras no asfalto irregular, sem sinalização, como tinha sido na ida. Lembro que ultrapassei dois caminhões, um bem no início e outro mais pro meio. Um deles tinha uma frase engraçada escrita atrás, letras maiúsculas e vermelhas, sujas de terra. Não lembro qual cd tocava; era dele, que, a muito custo, tinha me convencido a


ouvir naquela viagem. Não lembro dos sons calmos do campo na viagem de volta, não conseguiria compará-los aos ruídos irritantes da cidade. Cheguei em casa, tirei a câmera do bolso, desafivelei meu cinto e deitei na cama, tudo numa ação só. Acordei horas depois com o berro horrorizado da minha mulher. Ela havia conectado a câmera no computador e visto o filme. Meses depois, sentado na minha sala, recebi de um colega de meu trabalho um link para um site que eu nunca tinha visto. “Olha só que escroto”. No primeiro segundo vi o que era. Pelo visto, minha ex-mulher, ao passar o filme pro computador, colocou-o numa pasta compartilhada que outras pessoas podiam acessar, provavelmente algum software de compartilhamento de arquivos que meu filho usava. Algum anônimo curioso deve ter feito o download e espalhado por aí. Descobri depois que o link era de um site famoso de conteúdo mórbido. Fotos de autópsia, pacientes de emergência, acidentes brutais, burrices aleatórias que terminavam muito mal, suicídios travestidos de espetáculo, tudo sempre com todos os detalhes. Pelo contador no canto da página, dezenas de milhares de pessoas haviam visto a morte do meu filho. O que estava lá não era exatamente o mesmo que eu gravei. A resolução tinha sido diminuída (pro tamanho do arquivo não devorar a banda do servidor), e a qualidade do som também, mas esse não foi removido, como se faz muitas vezes. Mais drásticos tinham sido os cortes. Também no esforço para manter o arquivo pequeno, eles cortaram tudo o que consideraram desnecessário. A preparação, ainda em casa, as esporádicas gravações feitas durante a viagem de carro, todos esses preâmbulos, a conversa na ponte, a discussão sobre o ponto de onde o pulo deveria ser filmado, até mesmo a minha risada solitária da ideia da ponte desabando com o pulo. Para compensar, talvez, foi adicionado um replay em câmera lenta no final do arquivo, a partir do exato momento em que o elástico arrebenta e ele começa a cair de verdade até o impacto lá embaixo. A notícia na revista disse que não foi o elástico que arrebentou, mas a pecinha que unia o meu filho à corda. Foi uma daquelas notinhas no canto da página, no início da revista, onde tem um monte de coisinhas juntas, a maioria curiosas e engraçadas. Pequenos eventos.


No vídeo não dava pra ver direito se foi isso mesmo que aconteceu. Deve ter sido. Daquela distância, também, é difícil. Mas não foi necessária qualquer modificação para facilitar a visualização, como às vezes fazem (um círculo destacando certa parte da imagem para que se preste atenção naquele canto em específico). Estava tudo bem claro. Eu não conseguia parar de ver aquilo. O vídeo estava em loop por causa da configuração do player, eu nem precisava me mexer para que ele passasse de novo. Se não fosse isso, não sei se eu teria coragem de ver mais de uma vez, mas, sendo assim, não consegui tomar a iniciativa de parar aquilo. Duas, doze, duzentas vezes, o resto da tarde ali, todas minhas obrigações diárias adiadas para depois. No fim do expediente, cada segundo já estava cravado na minha mente, cada detalhe, cada folha mexida pelo vento, cada leve trepidação da câmera, cada frame, cada pixel. O filminho durava 27 segundos. Reduziram (e resumiram) tudo para menos de meio minuto. Apesar das pequenas oscilações da filmagem, a gravação estava bem feita. Não havia aquele padrão amadorístico de sempre centralizar, independente do que estava acontecendo. A centralização foi feita de acordo com as exigências do objeto filmado. Na ponte o garoto estava no topo do quadro, o abismo embaixo recebendo sua devida ênfase. Ao saltar, ele foi lentamente se aproximando do meio, até atravessá-lo perto do ponto mais baixo. Na primeira volta, durante mais de um segundo, a câmera ficou parada, esperando que a figura subisse até chegar ao centro do quadro, aí então voltando a acompanhar seu trajeto. Na segunda descida, o mesmo procedimento, sem nenhuma interrupção no movimento da câmera, sem nenhum tropeço, sem nenhuma mudança quando a corda se soltou, a imagem simplesmente acompanhou até o corpo dele atingir as pedras molhadas do rio lá embaixo. Um segundo em cima do corpo e o filme termina. E, durante todo esse tempo, silêncio. Nenhum comentário, nem antes, nem depois, nada. Nenhuma palavra. Era quase como um retorno do cinema mudo, agora colorido. Nenhum grito.



ASHLEY Olhem só os elegantes mortos na fase da janta. Eles trazem algo mais além de pastas de dentes e comentários fúteis. São pessoas de sorriso fácil e que abraçam a lata que estava vazia. O salário foi fraco e as orelhas vinham sempre perdidas entre buchas e olheiras de pessoas que acham que escrevem. Eu senti os olhos de Ashley em minha perturbação noturna. O sexo entre a lama de minha discórdia interna. Ashley vinha sempre nua e com a sobrancelha recortada. Recortes da sobrancelha de Ashley. Meu fígado teve hepatite e eu vomitei gordura animal. Meu pulmão teve pneumonia e cuspi catarro com sangue. Minhas bolas inflamaram e mijei porra amarelada com sangue. Minha alma sofre de uma doença incurável, Ashley.


Texto: Marcelo Benvenutti

Meus cabelos crescem e as ondas do mar desaparecem frias e longas no horizonte norte da merda em que vivemos. O garçom do bar, aquele merda, vem me falar de fantasmas do passado. De mortos enterrados que me torturam e me assombram. Antes tivesse nunca conhecido os fantasmas. Antes tivesse De Niro vindo com suas vacas e nós dois bebêssemos numa cadeia imunda a virgindade tardia do poeta. Mas a noite veio e trouxe álcool e desespero e felicidade. Me divirto com a tragédia, Ashley. Mal sabem eles que o alimento do gênio é a intensidade da inexistência. Eu inexisto. Certo dia, plantei uma flor. A flor da paixão intensa. A flor da paixão cresceu entre as ervas daninhas do ódio reprimido. A flor desabrocha e seu instante líquido é célebre, intenso e maravilhoso. Quanto mais intensa a paixão, mais curto é o desabrochar da flor, Ashley. Fiquei com medo que as ervas matassem a flor. Então cortei as ervas daninhas. Elas cresceram de novo. Cortei mais uma vez. Cresceram de novo. Cortei outra vez. Cresceram mais fortes. Então, envenenei e salguei a terra em que elas cresciam. Elas continuaram crescendo. E a flor morreu. Ashley, não corte as ervas do ódio. Elas crescem junto com as flores do amor. Se você tentar matar o ódio, o amor morre de desgosto. O equilíbrio da vida está em deixar que as ervas cerquem a flor. Fora isso, só existe o deserto dos sentimentos. A indiferença burguesa da vida falsa. As mentiras de apartamento, Ashley. Eu amo cada momento dessa minha doença. Dessa doença que chamo de minha.





NUKA-COLA OU

RÁPIDA CRONOLOGIA DE UMA HISTÓRIA REAL Texto: Samir Machado de Machado Arte: Hiutwig


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Na metade da década de vinte, um pequeno empresário de nome William Bailey proclamava os benefícios à saúde do consumo de um tônico, composto de água triplamente filtrada ao qual se adicionava um microcurie de isótopos de rádio-226. Fora batizado com o nome de Radhitor, e, para cada médico que o receitasse, era repassada uma porcentagem sobre as vendas. A ausência de um diploma de médico (fora expulso da faculdade por trapacear numa prova) não o impediu de se anunciar como especialista. Do tônico, de fabricação própria, dizia-se capaz de curar gripes, tosses, asma, diabetes, anemia e doenças mentais variadas, sendo alardeado como “a cura para os mortos-vivos” e “o eterno amanhecer”.


As vocações esportivas e galanteadoras do senhor Eben Byers foram desenvolvidas desde cedo. O destino arranjou para que viesse ao mundo dentro de uma família abastada, herdeiro de um industrial do aço em ascensão, e é pouco provável que tenha trabalhado algum dia em sua vida. Era apaixonado por golfe, corridas de cavalo e mulheres. Em certa ocasião, regressava de um campeonato esportivo, quando o trem que fretara fez uma parada brusca. Eben caiu de seu beliche e machucou o ombro. Impaciente, queixou-se de dores ao seu médico que lhe receitou um novo tônico. Como as dores sumiram pouco tempo depois, creditou o sucesso de sua recuperação à bebida e não a poupou de elogios aos amigos. Adquiriu caixas e mais caixas, bebendo pelo menos três doses diárias ao longo dos anos seguintes, serviu-a aos amigos, e deu até mesmo a um de seus cavalos. Tinha já quarenta e sete anos, mas sentia-se cada vez mais rejuvenescido.

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Não há nada que vocês possam me dar que eu já não possua, disse Eben em tom jocoso e um tanto insolente aos seus amigos, quando perguntado sobre o que queria de aniversário. A cada dia, Eben tornava-se mais e mais irritadiço. Suas oscilações de humor, dizia-se, eram devidas às terríveis dores de cabeça que lhe acometiam cada vez com mais frequência. A irritação ocasionava-lhe momentos do que chamava de lucidez social, quando decretava que todos à sua volta ali estavam unicamente movidos por interesse ou oportunismo. Aos poucos, parou de frequentar a sociedade e, mesmo que os convites chegassem à sua residência, ninguém mais esperava – ou desejava – vê-lo. Sua aparência cada vez mais adoentada não contribuía para fazer dele uma companhia agradável.


Já não saía mais de seu quarto, a ponto de perder a conta das semanas. Tão cedo tinha se tornado público o diagnóstico de que sofrera envenenamento por rádio, o promotor público veio visitá-lo. Minha saúde era ótima, disse ao promotor, e tudo estava bem, até meus dentes caírem. Eben aguardava por uma solução, e acreditava que cedo ou tarde ela viria. Não havia sido informado ainda de que não haveria cura. O promotor não escondeu o asco por sua aparência decrépita e, constrangido, fez perguntas sobre quantas daquelas garrafas havia tomado Eben, mas este não sabia ao certo. O mordomo calculou, por alto, cerca de mil e quatrocentas. Após a partida do promotor, Eben mandou trazer um espelho ao seu quarto e ergueu-se da cama e observou a si mesmo: a cabeça estava envolta em bandagens, de onde grande parte do cabelo já caíra. A pele tornou-se macilenta e amarelada. Duas cirurgias retiraramlhe o maxilar e parte da mandíbula. Movia-se devagar pois sabia que seus ossos estavam porosos e frágeis, buracos em seu crânio e abscessos em seu cérebro foram detectados em exames de raios x. Seu corpo desintegrava-se lentamente. Mudarei meu nome para Valdemar, disse, com um sorriso, mas o mordomo não compreendeu. Já leu Poe?, perguntou Eben, mas ele respondeu com uma negativa. Então é melhor que não leia, não antes que eu fique curado. E sorriu mais uma vez, confiante.

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Quanto mais seu corpo e cérebro se deterioravam, mais a memória se fortalecia, lembranças retornando a cada dia como se tivessem sido vividas há muito pouco tempo. A infância, a juventude e a velhice precoce induzida pela doença, unidas numa única mente. Eben não perdeu a noção do tempo presente, mas sendo seu presente aquele eterno limbo sobre a cama, deixou a mente afundar em suas memórias. Tivesse alguma habilidade artística, poderia pintar retratos fidedignos de quase todos que conheceu em vida. Todos os livros lidos até então retornavam frescos à mente, como leitura recém terminada. Quando chegou o dia em que foi avisado que não haveria cura, Eben ergueu-se da cama outra vez, esquecido da doença, observou o espelho e comentou como estava de bom aspecto naquele dia, que logo estaria de volta em plena forma. O mordomo não compreendera, julgou o patrão louco. Não via que Eben já não enxergava mais aquilo que seu corpo era. Ao contemplar-se no espelho, via-se ainda moço, ao tocar no maxilar inexistente, via ainda o queixo vigoroso de outrora. Quando tudo acabar, dizia, quando meu corpo terminar de se dissolver e mesmo a lembrança que outros tiveram de mim se apagar, eu ainda vou estar aqui, e tocou o vidro frio com a ponta dos dedos gastos.


A doze dias de seu quinquagésimo segundo aniversário, foi dado como morto. Foram tiradas radiografias durante sua autópsia, constatando a intensa presença de radiação em seus ossos e sua carne. Por segurança, o corpo foi enterrado em um caixão de chumbo. Ao limpar o quarto onde seu falecido patrão dormia, o mordomo ficou a observar o espelho, na esperança de que algo de surpreendente se revelasse, de que a promessa de seu patrão, de permanecer ali para sempre, se concretizasse. Não é possível que um homem de vida tão plena e morte tão extraordinária tenha partido sem deixar uma marca de seu assombro para trás. Chegou a perder a conta de quanto tempo, nos dias e nas semanas seguintes, observou aquele espelho sem, entretanto, jamais ver algo diferente do reflexo de um quarto vazio. Por sua vez, o dr. Bailey não foi processado, pelo contrário, o mercado tornou-se mais e mais competitivo, sendo necessário diversificar os negócios com outra gama de produtos radioativos, de filtros de água a supositórios afrodisíacos. Foi somente muitos anos depois, enriquecido e feliz, que morreu – de câncer, é claro.

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O PRIMEIRO

VOOK DO BRASIL ESTÁ AQUI Que a leitura ao redor do mundo está mudando, ninguém pode negar. Machado é uma das provas desta mudança. Mas a transposição de suporte, de analógico para digital, não é a única. O papel possui diversas limitações contornadas nos meios digitais. O futuro da leitura e do registro de informações em livros não para de ser inventado nos nossos dias. Uma das mais recentes inovações é o vook, um formato que une, além de texto, também sons e imagens. O vook proporciona ao leitor uma experiência diferenciada de apreciação de uma obra literária. Machado apresenta, nesta edição, o primeiro vook brasileiro, criado por Dodô Azevedo, um dos mais badalados nomes da literatura brasileira deste ano. Para iniciar sua viagem, não vire a página. Apenas clique aqui:

http://tiny.cc/vook

Fotos: Mario Cau



A TAL DA

ASA DA COXA Receita: Eduardo Nasi Arte: Lalita

O peito foi alçado a parte mais nobre do frango, o que é apenas, em parte, compreensível – é light, OK, mas é insosso como papelão e não light e saboroso como um peixe. Tampouco é saboroso como outras partes do frango que acabaram demonizadas. Isso é injusto, uma boa coxa é muito mais saborosa, tem textura e sabor mais interessantes e é um corte que tem até ares de comfort food. E ninguém morre de comer uma coxa bem feita de vez em quando, convenhamos. A receita desta edição, contudo, não é de coxa em si, mas das minicoxas das asas, os chamados drummets. Na verdade, eu sempre fiz a mesma receita com coxas. Pra variar ou porque não encontro bons drummets orgânicos ou caipiras no mercado. Mas o tamanho, que é menor, dos drummets me conquistou porque acho que tem mais a ver com o prato, orna melhor com arroz. De qualquer forma, é uma receita que surgiu simples, a partir de uma série de improvisos, e acabou ficando complexa. Sinta-se à vontade, portanto, para improvisar em cima dela.


O que precisa Um pacote de drummets (nos supermercados, tem entre 300g e 400g. Prefira orgânicos e caipiras, aliás.) Duas xícaras de arroz integral cateto (e não o agulha. O cateto é mais caro, tem gente que diz que é arroz de cachorro, mas a verdade é que ele tem um grão mais consistente e é mais saboroso.) Cinco xícaras de água fervente (pode ir deixando ferver enquanto você prepara os demais ingredientes) Uma cebola média; Três dentes de alho; Uma pimenta vermelha (se não quiser que fique forte, tire as sementes); E dois tomates grandes (todos os ingredientes acima precisam ser picados) Um punhado de azeitonas verdes (pode ser sem caroço, mas eu prefiro com) Cebolinha e manjericão frescos (se você quiser arriscar: folhas de coentro) Azeite de oliva Sal e pimenta do reino moída na hora Um bom parmesão ralado para servir

Como fazer 1. A água está fervendo, certo? 2. Derrame um fiozinho de azeite de oliva no fundo de uma caçarola e leve ao fogo. Ponha a cebola, o alho e a pimenta. Quando começar a dourar, jogue o frango e os tomates e mexa. 3. Quando o frango começar a dourar, ponha o arroz e deixe fritar um pouco. 4. Despeje a água fervente. Tampe a panela deixando uma fresta e esqueça por uns 20 minutos – até o arroz começar a secar e ficar no ponto. 5. Hora de pôr sal e pimenta do reino. O arroz integral não abre muito bem 6. Quando estiver quase, quase pronto, acrescente as ervas. É a chance de se arriscar com o coentro. 7. Secou? Apague o fogo e deixe a panela tampada por cinco minutos. 8. Agora mexa, prove e, se o tempero estiver correto, o prato está pronto pra servir.






O SUICIDA Texto: Moacir C. Lopes Arte: Joana Coccarelli

Esta é a história da consentida morte de meu amigo Gerson Torres Andrade, náufrago da corveta Camaquã, afundada em 1944, às costas do Recife, quando duas ondas gigantescas e simultâneas, de través, emborcaram-na. Jogaram-se ao mar os que se encontravam no convés e compartimentos acima. Sem onde se agarrar, alguns foram atacados por tubarões atraídos pelo sangue, outros iam afundando por esgotamento. Nem tão nadador ou atleta, Gerson assumira-se com um instinto de sobrevivência acima das suas forças naturais e determinou que seria o último a se render. Quatro horas boiando a lutar contra as ondas e tubarões, os poucos que sobreviveram, eram resgatados por um caça-submarino e conduzidos a Recife. Eu o usei como personagem de um de meus romances. Dera baixa da Marinha de Guerra com um grupo de amigos. Foi morar na Rua Carmo Neto com Aramis, Itané, João Palma Neto, que se tornaria escritor como eu, e Holanda.


Holanda era o reverso de todos nós. Bronco, ex-torneiro mecânico de bordo, de uma pureza amorfa, que só lhe cabia como futuro permanecer marinheiro; cama e mesa garantidas para a velhice. Mas, como Gerson resolvera pedir baixa da Marinha, ele, quase adendo ao corpo do amigo, tinha de acompanhá-lo. Inseparáveis durante anos em caminhadas por beiradas de cais dos portos do Nordeste, na falta de tato e jeito para conquistar mulheres itinerantes no vagar das noites, acostumado a viver entre porões e anteparas de navios, imune à ambição e prazeres, apaixonava-se pela mulher que Gerson conquistava naquele porto, não porque disputasse com ele o amor, mas apaixonava-se porque Gerson se apaixonava, apaixonava-se pela paixão de Gerson pela mulher, pelo transitório amor dela por Gerson, gozava em silêncio e sem tatear o corpo da mulher à hora do espasmo, mesmo que se encontrasse distante da casa, sentado na calçada ou no terreiro, humilde e só, aguardando o momento do gozo de Gerson para gozar o seu gozo, apenas mental, que não lembrava sequer de acariciar seu próprio órgão genital, era apenas transferência, a incorporação de um elo quase ectoplásmico entre os dois, nem havia de sua parte inconsciente homossexualismo. Era como o amor de um vaga-lume por uma estrela, ou de um sapo que engole vaga-lumes na esperança de adquirir luz própria e se iluminar de orgulho. E ali, no seu canto, esperava Gerson saciar-se do corpo da mulher para voltar a aspirar, através dos pulmões do amigo, orvalho e os restos da madrugada. Por isso, e só por isso, tinha de acompanhar o amigo na transferência para a vida civil. Gerson, ao primeiro emprego, começa a namorar e se casa. Como um ser mutilado de significado e objetivos, Holanda vai ocupar diminuto quarto em casinha de subúrbio, ganhando meramente, numa oficina mecânica onde fora trabalhar como torneiro, o suficiente para o aluguel e a alimentação, sem bebida, sem mulher, sem passeios, sem cinema ou coreto de alguma praça. Rareavam-lhe os cabelos, uns três dentes haviam sobrado das intempéries, não devia pronunciar mais que dez palavras ao dia e, nelas, cometia onze erros de pronúncia, concordância ou regência. Lendo numa revista estrangeira que era lançada nos Estados Unidos a insipiente indústria de esquadrias de alumínio, Gerson intuiu que ele mesmo poderia introduzir a novidade no Brasil. Num galpão, em sociedade com outro colega e sem capital de giro, valeram-se da confiança de fornecedores de matéria-prima. Foi depois do golpe militar advindo de uma crise econômica que abalou o país. O negócio evoluiu rapidamente, mas, sem suporte de capital, faliu com a mesma velocidade, e ele se viu atacado pelo mesmo


estado de neurose que o abateu após o naufrágio do Camaquã, a caminhar pelas ruas escuras do Recife, agarrando-se aos postes a qualquer buzinada de automóvel, fugindo ao olhar dos transeuntes, em noites seguidas de pesadelo e insônia. Agora, eram devedores à sua porta, eram duplicadas protestadas, cobradores profissionais o ameaçando de morte ao lhe exibir cheques sem fundos. Foi quando ele me procurou, no Flamengo, onde eu morava. – Soube que uns grupos estão se organizando no interior de Goiás e Mato Grosso para uma contrarrevolução. Entre eles, encontram-se marinheiros, talvez conhecidos nossos, que penetraram na mata para não serem presos. Você, que deve ter ligação com essa gente, podia me arranjar um contato. Fiz com que visse que eu não poderia ajudá-lo. Às tantas da madrugada, tomou outra decisão. – Pois vou desaparecer. – Para onde, Gerson? – Para o mais longe. Só você ficará sabendo. Não conte a ninguém, sob qualquer circunstância. Nem para a minha mulher. ***** Só muito depois vim a conhecer detalhes sobre a consentida morte de Gerson Torres Andrade. Por certo, ele não deixaria de se despedir do Holanda. Seu desaparecimento corresponderia a deixá-lo sem qualquer parâmetro de conduta. Assim, à primeira claridade daquele domingo, bateu à porta do quarto dele. Esfregando os olhos como se iluminasse com a presença de Gerson, que viria talvez despender momentos mais amplos de convivência, sorriu-lhe. – Meu amigo Holanda, venho me despedir de você porque estou fugindo da cidade. – Fugindo? Não pode fazer isso! Era como se Gerson ameaçasse amputar-lhe os membros, arrancar-lhe as vísceras, não mais lhe restando perspectiva de vida. – É isso, Holanda. O mundo se estreitou de tal forma que as paredes ficaram contra mim sem me deixar saída. Desculpe, mas talvez não nos vejamos nunca mais. Holanda começou a vestir as calças e a blusa suja de limalhas e de gordura nas mangas, onde limpava a boca depois das refeições. – Eu vou com você, Gerson. – Não seja tolo! Sim, ele não tinha problema nem ideologia política contrariada.


Não havia credores em seu encalço, suas ambições não iam além daquele quarto; conseguia dormir sem pesadelos, não ria nem chorava porque suas emoções eram pequenas. Era um homem realizado, na estreiteza do mundo que conquistara. – Vou com você! – repetiu. Gerson o abraçou como quem afaga uma criança sem coordenação motora que utiliza os braços de outro para agarrar-se à vida, as pernas de outro para caminhar, a voz de outro para falar, os pulmões de outro para respirar. Mas agora, naquele momento, era o Holanda quem se propunha a ser seus braços, suas pernas, seu sentir, seu respirar. Sequer ajeitou a cama. Abriu um caixote de sapatos onde guardava suas economias: daria para poucas passagens de ônibus ou de trem. Apanharam ônibus para Belo Horizonte. Meteram-se num outro ônibus para Goiânia. Longe de Brasília, pois lá também transitavam credores paulistas. Dormiram encolhidos, barba crescida, hálito de não escovar dentes e de expelir angústia, despenteados, porque nem pente dava jeito, dores no corpo por conta dos bancos duros, sapatos e roupas e mãos sujas, porque nem valia a pena lavá-las quando iam urinar em mictórios de paradas obrigatórias. Uma bisnaga de pão lhes bastava para almoço e jantar. Caminharam por arrabaldes de outras cidades e vilas. Pela manhã entraram num vagão de trem, desceram no final da linha e dormiram sob árvores. Encontraram a margem de um pequeno rio. Gerson resolveu tomar o rumo contrário ao descer das águas, como se buscando a nascente pudesse retornar ao ventre materno para chorar lá dentro, sem ninguém notar. Num entardecer qualquer, sem calendário, Gerson comunicou sua decisão: – Não há jeito. Tenho que deixá-lo mesmo. Eu vou me matar, Holanda. O amigo continuou olhando nos olhos de Gerson. Não perguntou por que, como ou quando. Nem pensou em demovê-lo. Apertou com as duas mãos uma das mãos do amigo e foi incisivo: – Eu me mato com você. Como se, àquele aperto de mão selando o compromisso, configurasse a transposição definitiva de seu corpo e de sua mente para o destino final de Gerson. Um dia depois, em pequeno vilarejo, localizou um boticário: – Senhor, meu jegue caiu num barranco e quebrou o pé. Está sofrendo muito. O senhor podia arranjar um veneno bem forte, capaz de causar morte rápida e sem o fazer sofrer mais do que está sofrendo?


O boticário observou demoradamente os dois estranhos, hesitante, entrou para o cômodo dos fundos, regressou ao balcão meia hora depois, com uma garrafa que fora de vinho onde, agora, havia um líquido esverdeado. Já no terreiro, os dois amigos contaram as moedas restantes e compraram duas garrafas de cachaça. Seguiram a clareira, caminharam até escurecer, distante do rio, preferindo local de mata mais fechada, sem rastros humanos. Quando era escuro em volta, sentados sobre folhas secas, Gerson combinou com Holanda: cada um esvaziaria uma garrafa de cachaça, na boca, inteirinha. De imediato, sem dar tempo à cachaça, dividiriam a porção de veneno em partes iguais, nos dois vasos. Meia garrafa de veneno para cada um. Quando o efeito da cachaça anuviasse a mente, e pouco antes de perderem a consciência, cada um esvaziaria na boca a sua porção de veneno. Olharam-se com ternura, trocaram o último sorriso, apertaram as mãos. O mundo se apagou para ambos. Muita horas depois, ou dias, quem sabe, Gerson abriu os olhos, pensou flutuar até aos galhos das árvores, liberto do corpo. Enfim. Holanda já devia ter abandonado o seu, tão inerte, ao lado. Mas logo se ergueu Holanda, apoiando o braço em seu ombro. Então apalpou cada centímetro de seu próprio corpo. De repente, Gerson achou que os prados e as campinas eram belos, plácidos, de permanente tranquilidade, de uma harmonia de cores, sons e reflexos de sol. E o vazio de uma paz interior, sem os sobressaltos de um corpo tenso e aflito. Enfiou o braço no braço de Holanda e saíram caminhando. Só recordavam a direção do povoado. Ao apontarem no extremo da rua, escutaram crianças gritando: – Eles estão vivos. À porta da botica, ergueu o dedo para o boticário: – Que espécie de veneno era aquele? – Ora, moço, nadinha, uma fantasia. Umas essências tolas colorindo a água. Por que veio escolher logo a mim para ser cúmplice da sua morte? Gerson sentou-se bem no meio da rua, levou as mãos à cabeça, a tentar reintegrar-se a si mesmo. De repente, lembrou a ocasião em que, tendo afundado seu navio, flutuando no mar encapelado, rodeado por tubarões, agarrava-se desesperadamente à vida. Abraçou Holanda, beijou-lhe a fronte. Precisava comunicar-se urgentemente com o Rio de Janeiro. Não havia telefone, nem agência do Correio, nem ônibus, caminhão ou carro-de-boi. Recomendaram-lhe conversar com o


vigário, na sede do município, algumas léguas adiante. O aguadeiro os conduziria no seu burro. Holanda preferiu permanecer onde estava, sentado no meio da rua, com os dedos entrelaçados sobre os joelhos vergados. Gerson contou ao vigário sua saga. Soube que havia no povoado um radioamador que era acionado em casos de emergência. Com sua ajuda, conseguiu contato com outro radioamador do Rio de Janeiro, dando seu nome e o de Holanda, pedindo que procurassem por sua mulher. Pela madrugada, através dos respectivos radioamadores, Gerson e a mulher se falaram. Eu voltarei para enfrentar todos os problemas, ele disse. Há sempre, em algum canto, dentro ou fora da gente, uma solução para qualquer problema. À noitinha, sua mulher voltava ao radioamador para informar ter conseguido passagens de avião do Correio Aéreo Nacional do aeroporto mais próximo até o Rio de Janeiro para ele e Holanda. Quando este recebeu a informação, demorou no rosto de Gerson seus olhos tristes, como se sentisse que, solidário na morte, teria ganho em definitivo a sua amizade, só sua e para sempre. E agora a perdia. – Eu não volto, Gerson. E ali permaneceu, sentado, joelhos vergados, dedos entrelaçados, queixo nas mãos, olhando para a terra. Uma semana depois, Gerson procurou o radioamador da Tijuca, no Rio de Janeiro, que entrou em contato com o mesmo radioamador que o salvara, para saber notícias de Holanda e insistir que regressasse. Foi informado que ele permanecera no mesmo povoado, no mesmo lugar, no meio da rua, na mesma posição, por alguns dias, recusando até alimento e água. Depois, saiu caminhando lentamente na direção dos prados, campinas e pantanais. Nem seu corpo jamais foi localizado.




HERÓIS Texto: Lielson Zeni

Arte: Gustavo Ravaglio         Delfin

“O mito é o nada que é tudo” Fernando Pessoa Eis a minha. Tenha a bondade de incluir a tua: “I genuinely think it’s this squeamishness that’s behind the American superhero myth. It’s the only country where it’s really taken hold. As Brits, we’ll go to see American superhero films, just like the rest of the world, but we never really created superheroes of our own.” Alan Moore


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– Mas o que você acha? Que era um super-herói de verdade mesmo? – Olha, não sei. – Pra mim, foi só um golpe de marketing muito do mal sucedido, tanto que a empresa que bancou desapareceu. – Hoje, rapidinho parava no YouTube e no Twitter. – É, alguém ia filmar isso. – Mas não existe imagem nenhuma do cara em ação?

– Olha, sem querer ser chato... – Eu sei, eu sei: desfocada e não dá pra ver porra nenhuma, mas é uma evidência. – Não podia ser alguém fazendo parkour? – Sem chance. Esses prédios têm mais de cinquenta andares e estão a uma distância de oito metros um do outro. – E como ele se chamava: Capitão Vermelho? Vingança Vermelha? – Meu, por que esses caras têm que ter uma cor no nome? Mão Azul, Lamparina Dourada, Vilipêndio Negro! – Vilipêndio Negro?


PRÓLOGO Há o leitor de perdoar a pequena confusão causada por meu colega. O prólogo, todos sabemos, antecede o começo do livro. Acabamos, no afã dos começos dos trabalhos, por inverter a ordem dita natural. Optamos por resumi-lo, portanto: Ilustre leitor, diferentemente daqueles contos góticos de morte e mistério, eu não peço a você que “tenha coragem de me acompanhar”, pois o que tenho para relatar é bastante simples. Mas, por favor, não entenda o simples por fácil ou sem desafio a suas habilidades de interpretação. Não, nada disso! O que penso é, na verdade, em trazer-lhes algo qu...


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O herói sobrevoa a cidade à procura de alguém que possa precisar de seus préstimos. Impávido e correto, com sua aguçada visão, observa cuidadosamente. Entretanto, são seus ouvidos supersensíveis que percebem um grave problema no outro lado da cidade. Em velocidade supersônica, nosso herói atravessa quilômetros em poucos segundos. Ao chegar ao ponto de onde veio, o pedido de socorro: o paladino parrudo é surpreendentemente atingido por um enorme projétil. Com isso, o valente combatente do crime cai pesadamente, causando um forte estrondo quando chega ao chão. Não fosse sua invulnerabilidade, o valente herói teria sido destruído pela imensa árvore.


Quando se levanta, ouve a pavorosa gargalhada do vilão, o monstruoso Vilipêndio Negro. Nosso super-herói sabe que precisa detê‑lo! Mas como ele fará isso?


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Acho engraçado, não..., cômico ainda



ERRATA

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Novamente, perdoe-nos, preclaro leitor, mas nem todos nossos artifícios técnicos funcionam como gostaríamos que eles funcionassem. Por um problema já identificado e sanado, tivemos interferências onomatopaicas por conta de uma queda nas torres de narração elétrica. Que se sigam as coisas como devem. Mais uma vez,, perdoem-nos pela interrupção.

Acho engraçado, não..., cômico ainda estar aqui depois de tantos anos. Todos eles bem na minha frente, e nem imaginam que eu sou muito mais do que represento ser. E representar é o que eu faço melhor. Represento enquanto falo, seguindo regras que considero básicas: 1) trato mal que vem aqui – vario entre o cidadão furioso e o blasé pouco-caso; 2) enalteço obscuros e desprezo unanimidades – na parede está escrito Alan ‘Less’; e 3) sempre tenho uma façanha, uma desventura, uma peripécia pra contar. Funciona. Eles riem. Mas ainda falta meia hora. Que caralho!


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– Como assim Vilipêndio Negro? – Ah, cara... não acredito que você não sabe quem é o Vilipêndio Negro. Rubão! Rubão! – Diga... – Explica pra mula aqui quem é o Vilipêndio Negro. – Porra, não me fode. É um personagem de merda, dum desenho de merda, que fez a criançada pirar. Mas vende umas revistas e ajuda a pagar minha cerveja. – Que perda de tempo, cacete! O tal superherói não tinha nome, a gente nem sabe direito se o cara é real. – Mas deram um nome pra ele... – Deram. – E qual era? – Assim: tu tem que entender que era uma outra época, quem trabalhava nas redações de jornal tinha um perfil diferente de hoje. – Qual era a porra do nome? – (...) Paladino Embuçado. – Pau andino embuceta? – Embuçado, porra! Significa “mascarado”. – Meu cacete! Paladino Embuçado. Por isso que ninguém se lembra do nome do cara.


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O Paladino Emboscado se esquiva de golpes mortais do temível Vilipêndio Negro, enquanto seu cérebro astuto planeja um contra-ataque. Percebendo uma fraqueza em seu adversário, nosso herói voa para fora do alcance do vilão. Enquanto Vilipêndio Negro gargalha com arrogância e soberba, taxando o bravo defensor de nossa cidade de “covarde”, o Paladino Embotado faz uma curva no ar, mais rápido que o movimento de cabeça do malévolo destruidor e o golpeia fortemente o flanco. O adversário grita de dor e cai ao chão. Nosso herói para no ar diante dele e ordena que se renda. Entretanto, rapidamente, o vil antagonista se põe em pé e acerta cruelmente a face do combatente da justiça. O Paladino Enforcado parte pra cima de Vilipêndio Negro, que também corre em sua direção. Qual deles sobreviverá a isso?

Mesma coisa todo dia. Chego aqui e tenho que abrir essa porta pesada, e seguro a porta e mais meio mundo nesse ombro aqui. (...) No final do dia, só penso em jogar aquela porta no chão e tomar a última caneca de café na frente do último cliente. Eu não ofereço, claro. Faz parte do personagem. Durão, um Bruce Willis. Não, mais fodão: Clint Eastwood. Adoraria usar um chapelão daqueles e dar uns tiros em cidades empoeiradas. Mas estou aqui com revistas empoeiradas, camisetas do Homem-Aranha empoeiradas, dados de RPG empoeirados, chão empoeirado, clientes empoeirados, vida empoeirada. Do pó vieste, ao pó retornarás e eu adiantando minha parte. Que barulho foi esse? Parece um trovão. Fecho em 5 minutos... Levo a sério o horário, nunca fecho antes, nem depois. Fecho na hora de fechar. Vou pegar o último café. Mais pó, agora no fundo da caneca...


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– Enfim, qual é a tua com esse Paladino Embuçado? – Ele é um personagem genial! Ele é um super-herói de verdade. Não que nem aqueles babacas que leram gibi demais e vestem collant e capa pra distribuir sanduíches ou soltar carros. Esse cara agiu umas três vezes, prendeu uns caras, fugiu da polícia pelos telhados e nunca mais foi visto. – Ih, cara... esse tema de heróis no mundo real já é tema morto. Saiu de moda. – Que moda o caralho! Isso dava um bom livro e uma boa história em quadrinhos! Saca só: – Pode falar, mas não sei se eu quero. – Que cacete! Escuta: vou escrever um livro reportagem sobre o Paladino. Ia ser do caralho se no meio do livro tivesse umas sequências em HQ das aventuras dele. Vou roteirizar essa merda a partir da pesquisa e queria que você desenhasse. – Interessante... e a grana? – Negócio de risco. Quando a gente emplacar o livro, direito autoral relativo ao teu trabalho. – Isso dá quanto? – Rapaziada, junta a papelada, essa foto mal tirada, pega o teu moleque e vaza. Tô fechando a bodega AGORA. – Pô, Rubão. Dá mais um tempo, nem vi as revistas que eu ia comprar... – Volta amanhã! Tu conhece o caminho e sabe que hora eu abro. Tchau! Até amanhã. – Mas... – É, Rubão, será que... – Qual parte de “cai fora” vocês não entenderam? Vou pegar um café ali e quero os dois saindo quando eu voltar. Beleza?


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O choque da pancada entre eles reverbera por quilômetros, gerando um estrondo que se assemelha ao mais forte dos trovões. O Vilipêndio Negro parte pra cima do Paladino Embrumado. O vilão golpeia sem descanso nosso herói. O defensor da justiça consegue escapar do monstruoso adversário e se recuperar. Desfere, então, um golpe que mataria qualquer ser humano normal. Mas o Vilipêndio Negro não é humano, tampouco normal, e gargalha de nosso prestimoso super-herói. Embasbacado diante da inutilidade de seu melhor golpe, o Paladino Empanado é surpreendido por uma dúzia de golpes do poderoso vilão. Nosso herói é derrubado ao chão e continua a ser atingindo pelos duros golpes do monstro. O que poderá ele fazer para se salvar? Alguém ajudará o Paladino Engatilhado? Haverá ainda esperanç...


– Joaquim, vamos? A loja vai fechar. – Ahn? – Pega os bonecos e vamos embora. Dá tchau pro tio Rubão.


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Às vezes, juro que penso em retomar minha vida e voltar a ser o que já fui. Uma esperança, um abridor de caminhos e não um fechador de portas. Ser novamente um s... que porra é essa... ei, vocês dois aí. Fora da minha loja. Isso é obra sua? O personagem que fala conosco? Não faz de conta que não tô falando com você. Você e o cara quietão aí, se arranquem daqui. Tô fechando a loja. Senhor Rubão, há algo que precisa entender. O senhor é um personagem e somos os responsáveis por guiar e apresentar as ações desta narrativa... Eu não preciso entender PORRA nenhuma. Não me interessa quem eu sou ou quem vocês são. A loja é minha! Fora! Mas somos os narradores! Se nós dois sairmos, a história acaba! Meu cacete! Você é burro ou tá tentando me irritar? Só vaza daqui. Isso, te manda. E você aí, também. Fora! Que é que você tá fazendo? O que é isso na tua mão?






Texto e arte: Lรถis Lancaster

ZUTI, ALHURES

CAPร TULO 1


“Here this song might offend you some...” Frank Zappa, Wind up workin’ in a gas station

– O que aconteceria se Pinóquio dissesse “meu nariz vai crescer!”? – Ha! Essa é uma atualização daquela clássica frase “estou mentindo agora”. O que esse paradoxo mostra é apenas que o sujeito da enunciação é diferente do sujeito do enunciado. Em outras palavras, o Pinóquio em pessoa que teria dito isso é diferente do sujeito do pronome possessivo “meu” implícito na frase, porque ele está em outro nível ficcional (note bem que não estou dizendo “na realidade”, já que ele também é um personagem e aqui no texto essa diferença se reduz ao mínimo.) Bom, vamos ao que interessa: o Pinóquio não disse em que momento seu nariz ia crescer. E nem se ele dissesse “meu nariz vai crescer agora” daria pra saber se ele está mentindo ou não. Onde é o “agora” na palavra “agora”? Na sílaba “a”, na “go” ou na “ra”? Digamos que ele fale “meu nariz vai crescer às 12:00h do dia tal”. Isso quer dizer que ele vai estar de outro tamanho tal nesse momento? Mas se ele passar de tal tamanho, cambiante, movente, não se pode dizer que ele “está” com tal tamanho. Se Pinóquio, enfim, disser:”meu nariz estará com 30 cm de comprimento às 12:00h do dia tal”, cortamos o devir em todos os pontos, certo? não é o presente movente, é o futuro esperado, nem a ação que está ainda acontecendo - ela já aconteceu. Se isso for mentira, NAQUELE MOMENTO o nariz do Pinóquio vai começar a crescer, e chegará a 30cm DEPOIS. De qualquer forma, a frase de Pinóquio será sempre mentira. .)(.


Meu, o tempo tá voando. E muito mais rápido que as coisas que ele leva. Não dá pra agir nelas, já foram pra trás. Se a cada cinco minutos que eu olho no relógio não tivesse passado quase um mês. E se o que eu pensei falei mesmo, às vezes parece que os cinco tão ouvindo, agem direitinho e só eu que estou chapada até o caroço, mas aí alguém fala e você pensa “caralho, isso não faz o menor sentido” e não sabe se não faz por sua própria causa. Alguém botou sal na minha mão e eu só não lembro que lambi com tanta segurança porque lembro bem que qualquer coisa que acontece demora um nada pra ficar distante como um sonho. Estive deitada por um tempo, alguém botou um colchão onde eu fiquei abaixando a cabeça por horas pra deitar e aí, justamente nessa hora estourou um dos balões que o pessoal tinha enchido quando só tinha batido a onda do fumo e ainda reinava um clima sociável. Não parece isso agora. Parecem faixas, meu, saca? Como no farol, pretas e brancas, como o preenchimento e a ausência das coisas e o eu-saber-quemsou vira uma pulguinha como menta ao tato, no meio dessas pausas enormes. Vou me perder, aí bate um medo da porra, mas alguém fala alguma coisa pra mudar a música, tá bodeando e eu penso “taí, há algo além de mim”. Levantei – engraçado, agora lembro que levantei, talvez tenha sido bem agora – e fui mudar a canção pra Falling Ditch, se não me engano. Formo quase-imagens para isso, igual se estivesse lendo um livro, de tão distante. Olho o relógio de novo. Ainda estou deitada no colchão, e o balão ainda não arrebentou. Que música péssima! Descubro um pouco tarde que o péssimo é ser tão influenciada por um bando de sons saindo de uma caixinha. O Pepê e a Noinha levantam pra ir embora. Eu começo a rir, rir pra caralho. Primeiro porque eles não têm a mínima condição de dirigir, ou talvez tenham, eu é que não posso julgar. Segundo porque eu estou rindo desesperadamente desse fato, feito uma boçal catatônica. Terceiro, porque estou quase morrendo de engasgo por estar rindo há mais de um minuto sem parar, e mesmo assim não consigo parar, que medo.


Meu, que medo. Eu nem sei mesmo se estou gargalhando e se alguém está ouvindo, já que parei e está tudo tão longe. Lembro que além da bola que estourou havia outra, vermelha. Fiquei com ela na mão por décadas. Sem dúvida ela tinha algo impressionante, só era impossível dizer o quê. E de repente ficou claro como o dia: o quê? Alguém perguntou. A Truce vomitou na minha calça? Alguém me diz “não, Zuti, ela foi ao banheiro”. Obviamente o Jôlti tava delirando, porque ela está aqui, deitada com a cabeça no meu colo. Isso leva a perceber que já me sentei no sofá do lado da janela de novo e parece que a Noinha e o Pepê estão do outro lado da sala, que também parece estar no espelho de si mesma. É porque eu tava rastreando com antena avariada. O quê? Começo a rir de novo. Para, sua imbecil. Medo. Eu vou desmaiar, alguém precisa me dar um sal. Truce, você desmaiou? Não, né? Mas tá quase, meu. Sim, agora sei que concordei com todos. Alguém, que não eu, pediu o sal. Isso mostra que não estava mesmo no chão. Só depois é que vou ficar olhando tudo de baixo pra cima e ver o Pepê à esquerda quando ele está à direita, isso mesmo, posso ver agora. Na câmera, que a Noinha ligou e botou na minha mão. Truce, olha pra cá. Meu Deus, a Truce sumiu. Schina, você viu a Truce? Não, você não me disse nada, nem vem. No banheiro? Quem levou? Tudo isso tão distante, como eu vou chamá-la quando ela se lembrar de mim? Agora botaram uma bala na minha boca. Muito tempo depois chequei na memória: é bala Soft. Que medo, vou me engasgar. Caralho, chega de paranoia! Ninguém tá se aproveitando do estado da Truce lá dentro. Se bem que eu ouvi umas vozes. A bala já está quase no fim. Não a vi, mas sei que é vermelha. Como eles todos magicamente sabem qual é o início da frase que acabei de falar, e eu mesma nem lembro. Um estouro. Que merda é essa? Ah, é só o medo. Que sensação péssima, ter medo e não ter... como deixar de ter! Tem coisa mais assustadora? Tem, não voltar nunca. Então volte. Lembre, tem uma bala na sua boca, ainda está inteirinha, é seu fio nesse labirinto de instantes.


O Pepê falou, além disso. Escutou algo que eu disse e falou. Pepê, vai embora? Sim, deixa eu levantar desse chão pra te abraçar. Tu trouxe a Noinha, meu, e ensinou ela a defumar essa erva no óleo, agora ela tem o segredo, é uma bruxa. E o pior é que é um cookie mesmo, gostoso pra caralho. Ela quase cai em cima de mim. Que viagem, ha ha ha! Não, Zuti, você tá engasgando! Respira pelo nariz! Ha, ha. Eu vou morrer. Calma. Só não pode ficar com medo. De que? São tiros lá fora? Fogos. Combinam com o protetor de tela. Só essa música é que está um saco, vou mudar. Gente, será que eu consigo levantar? Pareço suar frio com o frescor da menta. É claro que eu não vou com eles. Faz “oi” pra câmera, Tru! Eu vou é chamar um táxi, já é quase meio-dia do dia seguinte que a gente tá aqui, meu, parado. Se tivesse uma câmera escondida na sala, veria algo assustador a todos nós. Cinco chapados, em silêncio por horas. De repente um fala “antena avariada” e o outro responde “tira o balão” e aí começa a algaravia: todo mundo achando que se entende. E entende? A Truce vomitou, tô sentindo o molhado na calça. Mas onde ela foi, então?



MANIFESTO SILVESTRE:

O ELOGIO DA NARRATIVA Texto: Luis Eduardo Matta Arte: Joana Coccarelli

Publiquei, em 2003, o primeiro de uma série de artigos defendendo a consolidação de uma literatura de entretenimento feita por escritores brasileiros, o que causou certo rebuliço e me tornou, ainda que por poucos dias, alvo de toda sorte de impropérios. Na época, apelidei essa literatura de “LPB – Literatura Popular Brasileira”, numa analogia, feita ao acaso ao longo do texto, com a música. Minha tese era – e continua sendo – a de que é escassa no Brasil uma literatura menos preocupada com os rigores estéticos, com a experimentação e com a abordagem aprofundada de temas existenciais ou sociológicos e mais voltada para a narrativa despretensiosa. Isto é: uma literatura sem ambições intelectuais, cujo principal objetivo seja o de contar uma história interessante e bem construída de começo, meio e fim, em linguagem direta e acessível, capaz de emocionar leitores de diversos estratos sociais e culturais.


Muita gente pensou erroneamente que a LPB era um manifesto ou, mais ainda, um movimento literário com adeptos, signatários e metas estabelecidas. O fato é que meus artigos sobre a LPB se prestavam apenas à exposição de uma percepção muito particular a respeito da trajetória da literatura brasileira, forjada durante anos de aprendizado como leitor e como pessoa sobre a nossa cultura e o nosso país. Felizmente, o tema também conquistou simpatizantes – pessoas com inquietações semelhantes, mas que, por uma razão ou outra, não haviam tido, ainda, a oportunidade de se manifestar, encontrado a maneira certa de fazê-lo. O tema, afinal, soa polêmico, sobretudo para os que não admitem mudanças ou vivem enclausurados nas suas certezas, recusando-se a ouvir ou dialogar. Na verdade, uma análise mais detida e objetiva mostra que não se trata de uma proposta tão polêmica. Ainda porque a ideia de uma literatura de entretenimento brasileira – pelo menos da forma como expus nos artigos – não passa por uma denúncia da tradição literária brasileira. Tampouco, pela literatura que se produz atualmente no Brasil. Sempre defendi o princípio da convivência. A literatura de entretenimento, dessa maneira, abriria um caminho a mais dentro das nossas letras, sem sequer cogitar a extinção dos já consolidados ou condenar o surgimento de outros. A ficção brasileira vive, hoje, um extraordinário momento criativo. Nunca se escreveu tanto e de tantas maneiras por aqui como agora e, do mesmo modo, nunca foi tão simples publicar e ser lido. Autores de várias vertentes estão emergindo com trabalhos originais, muitos dos quais bem feitos, de nítida voz própria e com uma assumida influência pop – uma característica comum entre aqueles que cresceram a partir da década de 1980. Nossa ficção de terror, por exemplo, já é uma realidade. Com amplo público leitor cativo e protagonizando uma infinidade de eventos alternativos, ela possui, hoje, um reconhecimento que seria improvável, digamos, há vinte ou trinta anos. O mesmo ocorre com a ficção científica e o romance policial, durante décadas desprezados no meio literário, e hoje em curva ascendente. Esses e outros gêneros, historicamente marginalizados, vêm ganhando força, graças à internet que conectou escritores e leitores de todo o país, revelando a existência de pontos em comum entre pessoas que viviam isoladas e que não imaginavam haver milhões de outras com anseios e opiniões convergentes sobre literatura. A comunicação propiciada pela internet e seu caráter interativo e agregador têm sido fundamentais para essa aparente distensão do cânone literário. Aos poucos, vamos percebendo que há um amplo espaço no Brasil para todo tipo


de ficção e que, para figurar no panteão da literatura brasileira, uma obra não precisa, necessariamente, estar em absoluta conformidade com os critérios do meio acadêmico e nem a ele prestar contas, já que não depende do seu reconhecimento para ser legitimada. Foi nesse clima que, na Bienal do Livro de 2009, alguns profissionais do meio literário – escritores, editores e jornalistas – se conheceram e, unidos por pontos de vista e objetivos similares em relação à causa da literatura de entretenimento, decidiram abrir um canal de comunicação com a sociedade para divulgar suas ideias. Nascia, então, o Manifesto Silvestre, este sim, um movimento, ao contrário da LPB. A meta fundamental do manifesto é estimular os escritores brasileiros de entretenimento a assumir, sem receio de serem desautorizados, que, sim, o que eles fazem é literatura. É acabar com a noção de que entretenimento não passa de um passatempo vazio e superficial, de algo “menor”, e propor aos autores uma espécie de retorno à narrativa, à arte de contar histórias, sempre observando a qualidade e tendo em conta que a criação de uma obra de entretenimento exige o mesmo rigor e apuro de qualquer obra literária que almeje ser levada a sério. Eu, pessoalmente, não me preocupo muito com os humores da crítica acadêmica, mas é chegada a hora de a universidade flexibilizar seus conceitos e se abrir, como, ao que parece, já está acontecendo. A literatura brasileira, afinal, está mudando de fisionomia, ampliando seus horizontes, agregando novas tendências e todos que a estudam e se preocupam com ela precisam acompanhar esse processo, sob pena de ficarem alijados da realidade e cada vez mais distantes do já rarefeito diálogo com o conjunto da sociedade. A própria palavra “entretenimento”, vista com desprezo, deveria ser repensada e tratada com mais respeito. Pois a literatura que trilha esse caminho com responsabilidade é muito difícil de ser concebida. Exige planejamento, pesquisa, precisão linguística (até para ser inteligível) e um olhar atento sobre a multiplicidade da realidade, já que o seu propósito, em geral, é recriar na ficção, não o umbigo do escritor, mas situações que não estão necessariamente presentes no seu cotidiano. A crença de que um texto para ter valor precisa ser complicado e prolixo é equivocada. Toda literatura é capaz de transmitir ideias e levar pessoas a refletir. Quantas histórias interessantes não se perderam nas mãos de autores atrapalhados que, no afã de serem levados a sério, se forçaram a adotar uma verborragia rebuscada e cansativa, e, com isso, acabaram não conseguindo passar adequadamente o seu recado?


Do mesmo modo que a culinária de uma família não pode ser composta apenas de lagosta, caviar, trufas e açafrão, a cultura de um país não se faz somente com gênios. Se na língua inglesa a literatura conta com o talento de nomes como Ian McEwan e Ken Follett (no Reino Unido) e Phillip Roth e Dan Brown (nos Estados Unidos) – cada qual brilhando à sua maneira e sem competir entre si – nada impede que criemos um ambiente parecido por aqui. Como declarou o célebre crítico José Paulo Paes, um dos primeiros intelectuais que, até onde sei, se debruçou com seriedade sobre a questão da literatura entretenimento no Brasil: “(...) Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite dos leitores daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento (...)”. O trecho foi extraído do ensaio “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: o mordomo não é o único culpado)”, que integra a coletânea A aventura literária (Companhia das Letras) cuja leitura recomendo com vigor.


MANIFESTO SILVESTRE

EM DEFESA DA NARRATIVA, DO ENTRETENIMENTO E DA POPULARIZAÇÃO DA LITERATURA Nós, autodenominados “grupo silvestre”, signatários deste manifesto, apresentamos algumas propostas para a literatura brasileira contemporânea. 1. Em literatura, entretenimento não é passatempo. É sedução pela palavra. 2. Tudo é linguagem, mas a narrativa é a base da literatura. Uma história bem contada é o objetivo que perseguimos. 3. A ficção brasileira precisa ser acessível a uma parcela maior da população. O que não significa produzir narrativas pobres ou mal elaboradas. Rejeitamos o rótulo de superficialidade. Escrever fácil é muito difícil. 4. Respeitamos os jogos de linguagem, experimentalismos e academicismos, mesmo não sendo este o nosso caminho. 5. Estamos preocupados com a formação de leitores assíduos e frequentes para a ficção brasileira. 6. A literatura não pode se limitar a uma elite que dita regras e que determina o que deve ser lido e respeitado. 7. O autor pode e deve se esforçar pela disseminação de sua obra, o que significa se envolver com a distribuição, o marketing e demais processos da produção. 8. Gostamos de enredos ágeis e cativantes. E valorizamos títulos que chamem a atenção do leitor e despertem a vontade de chegar até o livro. 9. Não colocamos o desejo soberano de ser lido como única origem do processo criativo. Mas queremos espaço para aqueles que têm tal desejo. 10. Almejamos que a crítica dê espaço para todas as correntes da ficção nacional, não limitando os juízos de valor sobre a literatura a conceitos pré-determinados.

Felipe Pena Luis Eduardo Matta Tomaz Adour Barbara Cassará Halime Musser André Vianco Pedro Drummond Moisés Liporage Luiz Antônio Aguiar Delfin Helena Gomes Raphael Draccon Sérgio Pereira Couto Ana Cristina Rodrigues Estevão Ribeiro Vera Carvalho Assumpção Martha Argel Raphael Draccon





A PROSA GAUCHESCA DE

RICARDO GÜIRALDES Ricardo Güiraldes (1886-1927), foi um dos mais importantes escritores do início do século XX na Argentina. Além de diversos volumes de contos e poesias, escreveu o romance Don Segundo Sombra, um clássico da chamada literatura gauchesca (publicado no Brasil pela L&PM). Apesar disso, também esteve ligado a movimentos de vanguarda, criando, com Jorge Luis Borges, Brandán Caraffa e Pablo Rojas Paz, a revista Proa – de pouca repercussão na Argentina, mas comentada em outros países.

O conto publicado nesta edição de Machado está em seu primeiro livro, Cuentos de Muerte y de Sangre (1915), produzido entre suas viagens de Buenos Aires a Paris, onde viveu boa parte de sua vida e lugar em que se decidiu pela carreira de escritor. Apesar de sua importância para a literatura argentina, permanece praticamente desconhecido no Brasil. A obra do autor, já em domínio público, pode ser lida na Biblioteca Digital Argentina do jornal Clarín.


FACUNDO Texto: Ricardo Güiraldes

Tradução/Traducción: Marcelo Barbão Traspuestas las penurias del viaje, cayó al campamento una noche de invierno agudo. Era un inconsciente de veinte años, proyecto tal vez de caudillo; impetuoso, sin temores e insolente, ante toda autoridad. De esos hombres nacían a diario en aquella época, encargados luego de eliminarse entre ellos, limpiando el campo a la ambición del más fuerte. Apersonado al jefe, mostró la carta de presentación. Cambiaron cordiales recuerdos de amistad familiar y Quiroga recibió a su nuevo ayudante con hospitalidad de verdadero gaucho. Concluida la cena, al ir y venir del asistente cebador, el mocito recordó cosas de su vivir ciudadano. Atropellos y bufonadas sangrientas, que aplaudía con meneos de cabeza el patilludo Tigre. Contó también cómo se llenaba de plata merced a su habilidad para trampear en el monte. El Tigre pareció de pronto hostil: – ¡Jugará con sonsos! Insolente, el mocito respondía: – No siempre, general..., y pa probarle, le jugaría una partidita a trampa limpia. Quiroga accedió. Los naipes obedecían dóciles, y el Tigre perdía sin pillar falta. En su gloria, el joven, besaba de vez en cuando el gollete de un porrón medianero, y no olvidaba chiste, entre los lucidos fraseos de barajar. Inesperadamente, Quiroga se puso en pie. – Bueno amigo, me ha ganao todo. Recién el mozo miró hacia el montón, escamoso, de pesos fuertes, que plateaba delante suyo.

Ultrapassadas as penúrias da viagem, caiu sobre o acampamento uma noite de inverno aguda. Era um inconsciente de vinte anos, projeto talvez de caudilho, impetuoso, sem temores e insolente frente a toda autoridade. Nasciam muitos homens assim naquela época, encarregados depois de se autoeliminarem, limpando o terreno para a ambição do mais forte. Aproximando-se do chefe, mostrou a carta de apresentação. Trocaram cordiais lembranças de amizade familiar e Quiroga recebeu seu novo ajudante com hospitalidade de verdadeiro gaúcho. Concluído o jantar, durante as idas e vindas do assistente cevador, o mocinho se lembrou de coisas de sua vida cidadã. Atropelos e palhaçadas sangrentas, que aplaudia com movimentos de cabeça, o cansado Tigre. Contou também como se enchia de prata por causa de sua habilidade para trapacear no monte. O Tigre ficou, repentinamente, hostil: – Jogará com tontos! Insolente, o mocinho respondia: – Nem sempre, general…, e para provar, jogaria uma partidinha sem trapaças. Quiroga concordou. Os naipes obedeciam dóceis e o Tigre perdia sem pegar nenhuma sacanagem. Em sua glória, o jovem beijava de vez em quando o gargalo de um garrafão e não esquecia de brincar, entre as lúcidas frases do embaralhar. Inesperadamente, Quiroga ficou de pé. – Bom, amigo, você ganhou tudo que eu tinha. Só então o moço olhou para o monte, esca­ moso, de pesos fortes, que brilhava na sua frente.


O general se retirava. Então, um horrível temor acabou com a audácia do ganhador. As lendas brutais agitaram o rosto, fechado, do barbudo. – General, vamos à revanche! – Mas, amigo, poderia perder o ganhado e mais alguma coisa... – Não importa, general, é justo que o senhor também ganhe. – Empenha? – Como será? As mandíbulas rangiam de medo. Quiroga arregaçou as mangas, estalou seus dedos toscos. – Bom, meus estribos contra cem pesos! E mandou o assistente trazer as prendas. Facundo começou a recuperar, quando igualaram pesos, sorriu dizendo ao hóspede: – Bom, amigo, vou me recolher e até amanhã. Mas o mocinho, querendo apaziguar aquele que achava estar ferido, tinha de se dedicar a sua desgraça. Balbuciou estúpidas desculpas de terror. Facundo voltou a se sentar, com essa advertência: – Culpe apenas seu empenho pelo que acontecer… ao homem tonto, o espinho do peixe... vou jogar até o último, já que assim o senhor quer... Se ganhar, sele ao amanhecer e não cruze mais meu caminho...; se perder, será mais do que o senhor acredita. – E é, meu general? – Bah! Qualquer coisa. Voltou a falhar o naipe inconsciente. Quiroga trapaceava descaradamente perante a passividade do adversário, que olhava, como através do delírio, a figura irreal, engrandecida pela lenda. Quando o último peso foi seu, chamou o assistente, ordenando com um sinal explicativo: – Leve o mocinho para dormir… e que descanse muito, não? O rapaz quis se jogar de joelhos e tentar suplicar, mas Quiroga, indiferente, juntava os baralhos e o assistente era mais forte.

El general se retiraba. Entonces, un horrible terror desvencijó la audacia del ganador. Las leyendas brutales ensoberbecieron la estampa, hirsuta, del melenudo. – ¡General, le doy desquite! – Vaya, amigo, vaya, que podría perder lo ganado y algo encima... – No le hace, general; es justo que también usted talle. – ¿Se empeña? – ¿Cómo ha de ser? Las mandíbulas le castañeteaban de miedo. Quiroga arremangó la baraja, que chasqueó en sus dedos toscos. – ¡Bueno, mis estribos contra cien pesos! Y mandó al asistente traer las prendas. Facundo comenzó a recuperar; cuando igualaron pesos, sonrió diciendo al huésped: – Bueno, amigo, a recoger, y hasta mañana. Pero el mocito, queriendo apaciguar al que creía herido, había de cinchar hacia su desgracia. Balbuceó estúpidas excusas de terror. Facundo volvió a sentarse, con esta advertencia: – No culpe sino a su empeño lo que suceda... al hombre sonso la espina’el peje... voy a jugarle hasta lo último, ya que así quiere... Si gana, ensille al amanecer, y no cruce más mi camino...; si pierde, ha de ser más de lo que usted cree. – ¿Y es, mi general? – ¡Bah!, cualquier cosa. Volvió a fallar el naipe inconsciente. Quiroga trampeaba con descaro ante la pasividad del contrario, que miraba, como al través del delirio, la figura irreal, agrandada de leyenda. Cuando el último peso fue suyo, llamó al asistente, ordenándole con una seña explicativa: – Llévelo a dormir al mocito... y que descanse mucho, ¿no? El muchacho quiso arrojarse de rodillas e intentar súplicas, pero Quiroga, indiferente, juntaba las barajas, y el asistente era más fuerte.



O SONHO Texto: Mariel Reis Arte: Hiutwig

1O táxi parou diante do edifício. Um senhor baixo e gordo

desembarcou. Vestia-se com apuro, sem nenhum exagero e trazia somente uma pequena mala como bagagem. Pagou a corrida sem contrariedade, mesmo pressentindo que estava sendo roubado. Não importava. Era um jogo, pensou. A cabeça tomada por outra ordem de pensamento, sua preocupação não se relacionava a um taxista ladrão. Tinha coisas mais sérias para se ocupar. Andava lentamente em direção à recepção do hotel, com o bilhete da reserva nas mãos. A aparência do atendente não lhe inspirou simpatia, talvez por se tratar de um homem com uma cor de pele acentuadamente negra, isso o obrigava a recordações incômodas, talvez a causa de sua antipatia tinha nascido desse acaso. Procurou esquecer-se do fato. O carregador se aproximou. Não havia nenhuma necessidade, falou em um espanhol incompreensível. O atendente lamentou o fato de não terem um elevador, obrigando o hóspede idoso àquele tipo de esforço. Ele não agradeceu as palavras do rapaz, prosseguiu com vontade de lhe dizer que não era um idoso, seu aspecto era o de um homem envelhecido, mas sua mente seguia lúcida e ágil. Lentamente experimentou o peso do corpo em cada um dos degraus, parava como se esperasse a qualquer momento a construção ruir.


O corpo havia se esquecido disto. Era o que chocava. Quando atingiu o andar do quarto, recuperou a confiança, caminhando rápido, com as chaves na mão. A porta escura do aposento custou a entender que ele forçava passagem, tendo então que empurrá-la com violência para abri-la. O interior do quarto estava escuro e abafado. Na escuridão, tateou a parede em busca do comutador da luz, encontrando-o quase por acaso. Quando acendeu a lâmpada, o interior do aposento mostrou-se pobre. A porta do banheiro entreaberta. Uma cama e uma cômoda. A televisão pendurada em uma prateleira fixada em um corte na parede. Um pequeno frigobar com bebidas fortes, copos e refrigerantes. Pela janela, acanhada na paisagem do quarto, investigava o jardim do outro lado da rua. Dormiria. Não conseguira dormir na viagem. Tirou os sapatos, ajeitando-os em um lugar embaixo da cama. Ligou o ventilador de teto. Outro detalhe que passou despercebido. O cansaço estava lhe tirando a capacidade de percepção do ambiente, portanto era imperativo que descansasse depressa se não quisesse ter mais surpresas.

2Devia ser esse o sonho. Eu pouco me lembro. Mas devia

ser do modo inusitado. Minha filha crescida, subindo ao meu apartamento. Como sei que era minha filha? Ora, a pinta em sua bochecha. Aflita, me pedia para sentar. Dirigiu-se até a cozinha. Ouvi o barulho de uma colher mexendo em um copo. Voltava a minha filha. Copo de água na mão. Pediu-me que ficasse calmo. As mãos trêmulas. Os olhos parecendo sair das órbitas. Retribuí o pedido. Levantei-me para que ela se sentasse. Eu estava velho. Não o bastante para ter dificuldade em me mexer. Meu corpo parecia ágil. Era de fato ágil. Meus cabelos embranqueciam. Minha pele tinha uma cor passada. Estava velho. O computador ligado. Escrevia sei lá o quê. O cursor interrompido, piscando, como a notícia que minha filha me trazia. Devia ser um sonho. Na última vez que conversei com minha mulher sobre minha filha, ela me disse: “Casou-se com um estrangeiro. Mora fora.”. Perguntei: “Onde?”. Na França. Lembro que liguei para um amigo que frequentemente estava por lá para lhe perguntar sobre o bairro. Tive um conforto grande quando soube que o lugar era realmente bom. Quando conheci o marido dela, num sábado, o aniversário era o de minha mulher. Meus filhos se revezavam a dançar com ela. Gracejavam as demais visitas. Os meus olhos estavam fixados


no cavalheiro que acompanhava a minha filha. Era alto, branco, cabelos aloirados. Tinha olhos azuis profundos. Apertou-me as mãos. O aperto de mão quente, caloroso e forte. Meus filhos – Amim Caetano e João – não demoraram a integrá-lo à alegria da festa. Minha mulher estava vestida lindamente. Rodopiava no colo de Amim. Minha filha, com olhos de constelação, segredou-me: “É o homem da minha vida”. Agora ela estava ali inquieta. Não sabia para onde olhar. As mãos não encontravam sossego. “Pai”. Tanta dor em uma única palavra. Era a minha filha. A mesma pequenina com medo dos fantasmas que eu inventava. “A mãe”. Teve dificuldade em continuar. Não conseguia me comunicar com a ausência que se insinuava em seu corpo. O desespero se desenhava lentamente nas palavras. Devia ser um sonho. Eu já supunha, através do relato fechado, a sombra que se aproximava. Meu coração se contraiu. Eu pouco me lembro. Não era esse o trato. Deus não me deu ouvidos. Por que naquela manhã? Comprando flores? Não tinha o direito. Disse a Ele que estaria sempre à disposição, custaria menos levar meu corpo cansado. Ele não me deu ouvidos. Caprichoso. Meus filhos chegam chorando. Amim pai. Todos vocês estão.” João não conseguia parar de proferir catástrofes aos céus. Minha filha agora é amparada pelo marido. Diminuo. Achatado pela parede de silêncio que me rodeia. Afasto as fotografias do aparador. Minha mulher está lá, bonita. Vestida como naquele primeiro dia. Deus trapaceou, meu filho custa a entender, trapaceou. Por que não quis levar meu corpo cansado? Por que preferiu a ela? Os outros doentes da rua, por que não os escolheu? Se ela estivesse aqui, não me deixaria cometer uma heresia dessas. Bateria na minha boca. Agora aguardo a ansiosa visita, tenha o rosto que for. Não me importa. Se dura ou caroável. O poeta me empresta indignação e acolhimento em seus versos. A casa está arrumada. A mesa está posta. Sim, a vida não passa de um sonho. Tudo isso não passará do intervalo entre esta noite e outra.







Texto e arte: Daniel Seda



RÉQUIEM PARA MAGOGA Texto e fotos: Kelvin Falcão Klein Arte: Joana Coccarelli

Estava em Ushuaia, aquela que é tida como a cidade mais austral do mundo, ou ainda, a cidade do fim do mundo, o ponto mais ao sul da Argentina. Estava em Ushuaia e passava um pouco de frio. Havia levado alguns livros comigo, uma vez que estava na cidade justamente por conta deles, mas não havia levado roupas em quantidade suficiente e tive que alugar um casaco. O fato é que, mesmo assim, mesmo com frio e mesmo com uma quantidade razoável de livros na mochila, tive sucesso na tarefa difícil de encontrar uma livraria na cidade. A livraria ficava em frente ao antigo prédio da Companhia Ítalo-Argentina de Energia Elétrica. O tempo já havia comido algumas letras e, em breve, comeria o resto.



Foi nessa livraria, encontrada por acaso, que comprei Requiem para Magoga, de Alfonso Valenzuela um escritor peruano que eu não conhecia até então. Alfonso Valenzuela - e esta é a única referência que encontrei a seu nome - foi incluído por César Aira em seu Diccionário de autores latinoamericanos, outro livro bastante difícil de encontrar, que me informa que Requiem para Magoga é o segundo livro de Valenzuela, o primeiro de contos. Sua estreia aconteceu com o romance Más allá de la casa, publicado em 1952, quando Valenzuela tinha apenas vinte e três anos. Essas informações não me estavam disponíveis no dia em que encontrei aquela livraria em Ushuaia, de forma que minha aquisição tenha sido guiada por outras razões: o preço do livro (irrisório, risível), a estranheza do nome (um escritor peruano com o nome Valenzuela lembrava muito a cifra de Bolaño para o nome do poeta Mario Santiago: Ulises Lima) e a disposição na prateleira. Isso porque, ao buscar um livro de Enrique Vila-Matas na estante, observei que o volume imediatamente vizinho a ele impedia a sua retirada. Eram muitos para pouco espaço, tornando impossível a movimentação, a respiração dos livros. O vizinho de uma edição amarelada de Impostura era justamente Requiem para Magoga, que, literalmente, caiu sobre minha cabeça. O dono da livraria, talvez curioso com minha movimentação suspeita, só levantou o olho do jornal que lia atrás do balcão. Vi simultaneamente: a cabeça calva, os óculos, a vitrine fosca e, além dela, um céu nublado. O tempo em Ushuaia era convidativo para qualquer coisa, menos para a caminhada que, em quinze minutos, eu seria obrigado a dar. A partir desse momento tudo ficou muito claro: por conta de uma economia de movimentos decidi ficar com os dois livros, em homenagem ao trabalho que deram e à resistência que ofereceram para sair do lugar.


Estava então com uma edição repetida de Impostura (poderia dar de presente, trocar com alguém, é um livro de Vila-Matas de pouca circulação) e com uma companhia completamente atípica, Requiem para Magoga. O livro de Valenzuela não chega a cem páginas. A fonte é grande e o papel tem uma gramatura baixa. A impressão é de baixa qualidade e não existe numeração (a primeira coisa que pensei foi que dificultaria bastante se precisasse citar o livro em algum trabalho eventual). Parece um daqueles impressos clandestinos que Juan Villoro comenta em Los subterráneos de la iniquidad. São dez contos breves sem título. O único nome que apresentam vem da numeração, sempre por extenso: um, dois, três etc, como se o nome não importasse, ou como se qualquer nome fosse aceitável, ou como se estivessem ainda inacabados. O primeiro (um) eu pude ler ali mesmo, no caminho dos livros até o balcão. Conta a história, de maneira truncada e fragmentada, de um sacrifício, em forma de relato em primeira pessoa feito por um sacerdote ou um documentarista de alguma era perdida. O problema parece ser o fato de que a população precisa da carne de um animal de hábitos pecaminosos, bípedes que urravam a noite inteira (“eram veementemente sodomitas”, diz o texto), e a culpa é enorme. Homens valentes (e o narrador se coloca junto deles) decidem estabelecer um ritual para que a carne fosse purificada no instante de seu assassinato. Os animais reagem e a carnificina dá errado, as primeiras tentativas redundam em fracasso e os macacos sodomitas misturam-se aos homens. “A fome apaga a diferença”, escreve Valenzuela. O conto termina com a descrição da mesa sendo posta. Foi essa, portanto, a primeira história que pude ler de Requiem para Magoga. Quando cheguei ao balcão, o dono da livraria, depois de ver o livro que eu tinha em mãos, disse que não poderia vendê-lo. Disse também que não sabia o que aquele livro estava fazendo nas estantes. Não era para comercialização, ele disse. Não entendi, tentei argumentar. Mostrei o outro livro, sugeri levar outros, para aumentar a compra e assim convencê-lo a partir do bolso. Levar talvez algum lançamento de Jorge Bucay, que estava em exposição ao lado de Laura Esquivel e Isabel Allende. Depois de uma longa deliberação, concordou em me vender o exemplar com uma condição: se ele encontrasse outro na loja eu poderia levar, caso contrário, não. Ele levou uma pequena escada retrátil até o ponto onde eu havia desencavado o livro. Assim que subiu e começou a vasculhar a parte alta da estante, deixei algumas notas no balcão (mais do que suficiente para os dois livros que eu, por fim, acabei levando) e saí, subindo a rua com pressa. Enfiei os livros na mochila e dobrei a esquina seguinte e então na outra.



O segundo conto (dois) de Requiem para Magoga – que li dentro de um bar algumas quadras distante da livraria (Belgrano com Retamar) – é narrado na terceira pessoa. Valenzuela toma a palavra pela primeira vez, e o faz para contar a história de uma escritora jovencisima, como ele escreve. Uma menina que rabisca com tinta preta toda a extensão das paredes do quarto em que mora, um cubículo que herda depois da morte da mãe. O conto enumera as horas do dia de María Conchita, uma terça-feira, da manhã até a noite. Conchita no trabalho. Conchita nas ruas. Conchita escapando. Conchita chorando no metrô. Conchita em casa. O mais interessante é que as horas iniciais do dia são longas, e Valenzuela mostra isso no texto, com períodos longos e digressões. O estilo das últimas horas é quase telegráfico, como se preenchesse um diário de forma burocrática: “Conchita tira as sandálias. Conchita abre a janela.” etc. O que é ainda mais interessante é o fato de Conchita ser uma escritora, uma poeta, com um olhar ficcional sobre as coisas, como afirma o narrador. Não há nenhuma justificativa ou desculpa para isso, Conchita é o que é e Valenzuela nos apresenta sua vocação como um ato consumado. Ainda que seja evidente que o conto vai, aos poucos, morrendo e se esvaindo (e isso mostre o apuro técnico de Valenzuela), há uma resistência metafísica que deseja não ver isso acontecer. Mesmo hoje, relendo o conto, a sensação é a mesma. O terceiro conto (três) é da mesma família: são três amigos que se reencontram depois de anos separados. A narrativa é atabalhoada, as vozes se misturam e demora bastante para ficar claro onde estão e sobre o que falam (como um fluxo de consciência compartilhado), se estão caminhando na rua apressados ou se estão finalmente em algum bar, noite ou dia e outras referências possíveis. Poucas páginas são tão bem urdidas quanto aquelas em que Valenzuela apresenta a exaltação


característica que acompanha todos os encontros adiados e esperados. Os amigos se interrompem mutuamente, gritam, riem alto, relembram fatos pela metade (como se o leitor também conhecesse, como as batatas no bolso de Leopold Bloom em Ulisses). Aos poucos as vozes se esvaziam – aquele que gritava não grita mais, aquele que lembrava ansioso passa a falar do tempo e, assim, a noite termina. Esse foi o último conto que li naquele dia. Horas depois já estava me preparando para viajar. No dia seguinte chegava a Buenos Aires. Não voltei à livraria em Ushuaia, não sei se o dono encontrou outro exemplar de Requiem para Magoga. Evidente que fiquei curioso para saber a razão daquela resistência tão atípica para me vender o livro. Mas não queria alongar a situação e o livro, no fim das contas, já era meu. Em Buenos Aires, já na universidade, comecei a mostrar o livro de Valenzuela para as pessoas que tive a oportunidade de conhecer. Para mim, era natural não conhecer o livro, minha ignorância era justificável, mas não era confortável. Muitos ficaram surpresos pelo fato de nunca terem sequer ouvido falar do autor. Talvez ressentidos com a minha surpresa diante da surpresa deles. Até que o livreiro no saguão de uma das entradas da universidade, observando a movimentação que acontecia perto dele, chamou-me e perguntou sobre o livro. Foi ele quem me mostrou o Diccionario de Aira e o verbete reservado a Valenzuela. Santino (era esse o nome do livreiro) não conhecia Requiem para Magoga, mas tinha um exemplar de Más allá de la casa à venda em sua outra banca, perto do Zoológico. Fui até lá e o comprei imediatamente. No dia seguinte, já me reconhecendo, Santino me informou que Valenzuela participaria de um debate sobre sua obra em uma livraria na avenida Corrientes. Nada mais apropriado. Naquela altura eu já tinha terminado a leitura de Requiem para Magoga e também a leitura do romance recém adquirido. O título só fica claro depois do último conto do livro (dez), que menciona um povoado chamado Magoga. Não fica claro se o povoado está abandonado ou não e qual o tamanho exato da cidade. Um homem percorre todas as casas durante a noite, unindo todas elas com um rastro de gasolina. Também não fica claro se o homem está louco ou se obedece a ordens, ou se as duas alternativas são verdadeiras. Enquanto realiza sua tarefa, que dura a noite inteira, o homem recapitula os principais acontecimentos de Magoga: uma enchente, dois assassinatos, uma colheita farta. O fogo que termina por consumir a cidade se confunde com as primeiras luzes do dia. É claro que fui encontrar Valenzuela, na tarde daquele mesmo dia, seguindo as instruções de Santino. O lugar estava vazio quando cheguei.


Só havia um funcionário atrás do balcão, esfregando copos. Era um bar misturado com uma livraria. Pedi um café e um chocolate. Enquanto esperava fiquei estudando um mapa de bolso de Buenos Aires e relendo partes de Requiem para Magoga. Particularmente marcante foi a descrição claustrofóbica de um túnel, que Valenzuela apresenta no quinto conto do livro (cinco), aquele que trata de uma fuga frustrada da prisão de San Miguel de Tucumán em 1923. É o único conto que dá uma localização temporal precisa. Em compensação, nenhum nome é dado nesse conto. Os homens arquitetam a fuga, pesam as possibilidades, atravessam o túnel, são capturados e nenhum nome é revelado. Esperei duas horas e finalmente chegou o escritor acompanhado de um grupo de pessoas. Eles ficaram conversando entre si por mais duas horas. O que Santino havia me passado como um debate não era nada mais que um encontro (talvez semanal, talvez quinzenal) de Alfonso Valenzuela com alguns amigos (dois senhores tão velhos quanto ele, duas mulheres de meia-idade e um homem pelos seus quarenta anos). Santino também me avisou que era muito fácil reconhecer o autor peruano: além de muito velho (tinha quase oitenta anos), era muito alto, muito magro, a cabeça completamente lisa e sempre uma gravata vermelha no pescoço. Quando percebi que a tertúlia se encerrava e que Valenzuela se preparava para ir embora, eu me adiantei com Requiem para Magoga nas mãos e lhe pedi uma dedicatória.



Por um momento pensei que ele também diria nunca ter visto aquele livro na vida. Também se surpreendeu com meu achado e pediu que lhe contasse como eu havia encontrado aquela edição. Saímos juntos para a rua e nos despedimos na calçada. Voltei para o hotel folheando mais uma vez Requiem para Magoga. O que me pareceu fascinante, e que recordo ainda hoje, é o fato de Valenzuela antecipar muitos livros e autores com tanta antecedência. Considerando que Requiem para Magoga é da década de 1950, torna-se bastante perturbador encontrar naqueles contos tantos ecos do que já havia encontrado em Roberto Bolaño, Osvaldo Lamborghini, Copi e outros narradores posteriores. Parece-me bastante evidente que Valenzuela lidou com um tempo que não era o seu, ou seja, que estava profundamente deslocado dentro do tempo cronológico que lhe foi imposto pelo nascimento e pelo contexto histórico restrito. Seus contos não contam apenas uma história – as histórias que contam são desculpas sutis para uma invasão no futuro, para marcar pontos de referência em um deserto não habitado. Diante disso não é surpreendente o silêncio em torno de seus livros e o completo desconhecimento que acomete o mundo diante de seu trabalho. Quando passei na frente da antiga casa de Jorge Luis Borges é que me dei conta desse processo complexo de vertigem temporal na obra de Valenzuela. Borges previu que o grande escritor funda seus precursores a partir da leitura que sua obra proporciona do passado, e o exemplo que utilizou foi Kafka. A diferença é que Valenzuela recebe múltiplos influxos a partir de Requiem para Magoga,


absorvendo todos antes que existissem. O conto da menina que rabisca as paredes do quarto é um retrato de Sophie Podolski, a poeta belga suicida que estava nascendo enquanto Valenzuela escrevia. É certo que ele também está muito próximo de alguns de seus contemporâneos, como Juan Rulfo e Juan Carlos Onetti, e, também, extremamente afastado de tantos outros, como Borges ou Manuel Puig. A maneira como lida com os atos violentos e gratuitos do ser humano lembram Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sábato (principalmente se pensarmos na função ritualística do fogo no conto sobre a cidade de Magoga). A biblioteca que se arma ao redor de Valenzuela é vasta e tomaria uma vida. Voltei para casa pouco tempo depois daquele encontro e o livro de Valenzuela foi para minha estante, em busca de outras companhias. Requiem para Magoga é como um Aleph das minhas leituras: parece condensar e antecipar todos os livros que leio depois dele. É claro que são apenas detalhes, uma visão, um lenço no bolso de alguém, a palavra utilizada para abrir um parágrafo, um nome próprio atípico, uma cifra, um palíndromo, uma lista de materiais para cavar um túnel ou para queimar uma cidade, duas ou três vozes no escuro, um pássaro na janela e um divórcio. É claro que é um esforço de leitura da minha parte querer valorizar um livro que chegou até mim depois de uma história tão curiosa, e um autor que às vezes parece ter sido inventado por mim. Se eu pudesse confiar em César Aira eu diria: “está no Diccionario”, se eu pudesse confiar em Santino eu diria: “Santino o conhece, Santino me vendeu Más allá de la casa”. Qualquer dia desses o livro some e não vou poder confiar nem em mim mesmo.




A ENTREVISTA PERDIDA DE

NEIL GAIMAN Por Delfin

Fotos: Sergio Fonseca


Algumas pessoas já ouviram falar desta entrevista, que se tornou um pouco lenda. Não é. A história, na verdade, começa muitos meses antes, em 2007, quando tentei entrevistar Gaiman por e-mail para a Rolling Stone Brasil, à época do lançamento de seu romance Lugar Nenhum no país. Na época não deu em nada, mas Lorraine Garland pediu para que eu não perdesse contato, pois talvez o escritor inglês viesse em breve para uma nova visita ao Brasil. Não deu outra: em poucos meses, a coordenação da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) anunciava a vinda de Neil Gaiman, um dos mais proeminentes autores de literatura fantástica da atualidade e mundialmente conhecido por Sandman, uma das principais séries da história da HQ americana. Agenda daqui, conversa de lá, amarra tudo e, em 2 de julho de 2008, lá estávamos nós, na Pousada do Ouro, em Paraty. Por uma série incrível de desencontros, esta entrevista feita para a RS Brasil permanceceu inédita por dois anos. Não mais.


Nota do editor No intervalo de tempo entre a realização e a publicação desta entrevista, algumas coisas ficaram naturalmente desatualizadas. Os textos acessórios procuram atualizar a informação, bem como esclarecer o leitor sobre obras e autores pouco conhecidos do público brasileiro.

Miracleman

O mais famoso imbróglio dos quadrinhos atuais foi enfim solucionado no começo de 2010, quando a Marvel anunciou um acordo com o criador do personagem, Mick Anglo, para a publicação de suas histórias nos Estados Unidos. O personagem, finalmente, poderá ser chamado pelo seu nome original, Marvelman. Para conhecer um pouco mais sobre o processo, que se arrastou por mais de dez anos e envolveu nomes como Alan Moore, Dez Skinn, Todd McFarlane e muitos outros do mercado dos quadrinhos americanos: http://tiny.cc/M01MAR

Neil começa perguntado sobre meu gravador de mp3, demonstrando alguma nostalgia em relação aos antigos gravadores de fita; contando sobre quando foi entrevistado por uma repórter que perdeu a entrevista inteira feita num gravador de mp3 ao abrir os dados no computador. Sem possibilidade alguma de refazer, ele a disse que isso não teria acontecido se ela tivesse gravado a conversa em um cassete.

Eu gostaria de começar com uma palavra: Miracleman. A bagunça é maior agora do que era há alguns anos? É enorme, exceto pelo fato de que não é exatamente uma bagunça. De fato, é muito estranho. A versão que vou te contar é muito reduzida. Até onde chega a minha compreensão hoje em dia, parece que, em 1982 ou 83, quando Dez Skinn afirmava deter os direitos de Miracleman para trazer o personagem de volta, ele não os detinha. Então, Mick Anglo... Sim, Mick Anglo. O único que detém todos os direitos autorais sobre Miracleman é Mick Anglo. Quando eu estava escrevendo o personagem, ele estava falando com a Eclipse (editora que publicava o personagem à epoca, nos EUA), dizendo “me desculpem, mas vocês não têm os direitos para trabalhar com este material” e trabalhava num acordo com a Eclipse. Então a editora faliu e eles nunca mais falaram comigo sobre o assunto. Parece que Mick Anglo tem todos os direitos. E Todd McFarlane não tem nada, eu não tenho nada, Alan Moore não tem nada. Obviamente os artistas possuem, talvez... O que nós temos é o que nós criamos. Mas nós não temos os direitos autorais de fato sobre isso. Mick Anglo é o verdadeiro dono. As pessoas que fizerem um acordo com Mick, que, até onde eu sei, estava empenhado em trabalhar tentando acertar as coisas com todo mundo. E eu fiquei esperando: “Quando nós chegarmos a um acordo, tudo bem”. Você poderia falar um pouco sobre o Fundo Legal de Defesa dos Quadrinhos (Comic Book Legal Defense Fund)? Acho que poucas pessoas no Brasil conhecem esse seu trabalho.


O fundo é uma organização norte-americana. Existem algumas no Canadá, uma na Inglaterra. Mas a primeira a se estabelecer foi nos EUA. Isso porque a constituição americana garante a liberdade de expressão. Esta liberdade não é garantida em muitos países. Na Inglaterra não existe esta garantia, pois não há constituição e você não está legalmente resguardado e seu discurso não está realmente protegido. Você pode ser processado por incitar o ódio, por incitar o pecado, por dizer às pessoas que as coisas são diferentes do que dizem a elas. E nos EUA tudo é diferente. Gosto da ideia de que você tenha o direito à liberdade de expressão e o direito de falar sobre como as pessoas se expressam, do modo que você pode combater um discurso de que você não gosta, posicionando-se contra ele. Acho que isso é ótimo, isso é a melhor coisa. Então eu percebi que nos Estados Unidos não é exercida, não é valorizada como nos lugares onde a população não tem este direito garantido. Eu vivo nos EUA há quinze anos e apoio o Fundo Legal de Defesa dos Quadrinhos quando tenho tempo. Porque o quadrinho é o veículo mais fácil de censurar (ou tentar) e de atacar. É mais difícil censurar um livro hoje em dia. Por quê? Nos livros você precisa demonstrar uma quantidade razoável de trechos que tenham conexão entre si para fundamentar sua crítica. É complicado decretar que ele deva ser censurado baseado em um único trecho isolado. Com os quadrinhos é muito fácil. Você mostra um único quadro ou algo descontextualizado na obra em quadrinhos e acusa: “é isso o que suas crianças estão lendo”. Pra se ter uma idéia de como é, você procura por um quadrinho classificado como adulto, isola do contexto, tira uma única cena e diz que é isso que suas crianças estão lendo. Os mais ingênuos acabam abrindo mão, porque custa milhares de dólares para se defender. Teve um caso em Rome, no estado da Georgia, no qual um homem chamado Gordon Lee foi processado porque alguém que trabalhava em sua loja de quadrinhos deu uma revista gratuita para um garoto, pois o Halloween estava chegando. Por acaso, ele deu um quadrinho para leitores maduros, um quadrinho adulto para uma criança de nove anos. Não era uma revista pornográfica, tinha apenas uma história que narrava o encontro de alguém com Pablo Picasso nos anos trinta. E Picasso está pintando nu. Eram pouco painéis, mostrando o pintor trabalhando. Em um quadrinho específico, Picasso está andando e o seu bingolim [ele usou o termo “little teeny weeny”] está balançando. Então disseram: “A-há! É uma ereção!”. Bizarro.

Georgia vs. Gordon Lee

Um dos casos de maior repercussão nos Estados Unidos envolvendo os quadrinhos após o Macartismo, ganhou as páginas de grandes jornais e espaço em importantes programas de televisão. Para conhecer melhor o caso, inclusive o painel que gerou toda a controvérsia: http://tiny.cc/M01LEE


Gosto da ideia de que você tenha o direito à liberdade de expressão e o direito de falar sobre como as pessoas se expressam, do modo que você pode combater um discurso de que você não gosta, posicionando-se contra ele.


Sim, bizarro assim. Este criminoso aos olhos do Comic Code [a cartilha de bons modos do quadrinho americano] era muito inocente. E ele pegou cem mil dólares do dinheiro do fundo para se defender. E o processo, no que deu? O que os acusadores queriam? Queriam-no fora do negócio. Porque se você processa o dono de uma loja de quadrinhos por distribuir obscenidade, especialmente em cidadezinhas americanas, querem que se feche a loja, jogue um galão de combustível por cima e ateie fogo. Ok. Mas o que fiz inicialmente, quando comecei a colaborar com o Fundo, foi fiscalizar o abuso nas taxas, coisas de tesouraria. Hoje em dia, ainda faço isso algumas vezes, bem como estou no conselho de diretores. Isso ocupa muito do seu tempo? Depende do que está acontecendo. Por vezes, quando o Fundo está trabalhando no encerramento de um grande caso jurídico, o conselho de diretores se reúne numa longa reunião para decidir sobre questões adjacentes. Quando confrontou Todd McFarlane, você fez um acordo com a Marvel para pagar as custas do processo e, em troca, você escreveu 1602 e Os Eternos. O acordo era para escrever duas séries em quadrinhos. Como foi trabalhar com heróis depois de todo o seu trabalho com Sandman? 1602 foi muito mais divertido. Eu não sei exatamente se eu faria a série se ela não tivesse acontecido no exato momento em que aconteceu. Foi logo após o 11 de Setembro e eu tinha que fazer uma história para a Marvel. Tudo o que eu sabia era que não queria coisas explodindo. Então escrevi uma história onde não havia coisas para serem explodidas. Foi quando comecei a pensar no que eu gostava na Marvel. Eu realmente gostei, pessoalmente, da experiência de descobrir seus personagens quando era um garoto. Eu adorava e tive sorte, porque foi nessa mesma época que reimprimiram na Inglaterra as primeiras histórias de personagens como Dr. Estranho, Nick Fury... Eu as li desde o começo. E pensei em como seria legal fazer o mesmo para algum leitor contemporâneo. É esse tipo de diversão, de alegria que eu queria nos personagens. A alegria da descoberta. A alegria da descoberta. Por que não fazer isso? É algo em que eu realmente gostaria de trabalhar. Então peguei os personagens que me agradavam e muito daquele modo como eu me divertia quando era criança. Foi um trabalho muito importante para mim

11 de Setembro

Os quadrinhos, assim como todo o universo cultural norteamericano, sofreu profundas influências após o atentado em Nova York. Principalmente, os quadrinhos de herói passaram a focar temas mais próximos da realidade, envolvendo o novo inimigo da América, o terrorismo. Por uma triste coincidência, no próprio 11 de setembro de 2001, era publicada uma história do Superman em que os mais altos edifícios de Metrópolis (a Nova York da DC Comics) eram atacados.


Jack Kirby

O grande criador do universo de heróis da Marvel Comics, juntamente com o parceiro Stan Lee, trabalhou no mercado de quadrinhos e de animação e é, até hoje, considerado como um dos cinco maiores profissionais dos comics (o quadrinho americano). Seu trabalho é constantemente revisitado e influencia todas as gerações de artistas e roteiristas que pretendem trabalhar no mainstream. Os últimos trabalhos de grande relevância utilizando seus personagens foram as séries Crise Final e Sete Soldados da Fortuna, ambas escritas pelo escocês Grant Morrison para a DC Comics, e Os Eternos, retomado por Neil Gaiman para a Marvel. Para saber um pouco mais sobre aquele que era considerado o Rei dos Quadrinhos: http://tiny.cc/M01KIR

eu peguei essas versões clássicas dos personagens e as modifiquei. Coloquei-as algumas centenas de anos no passado e o que eu obtive? Meu Demolidor, por exemplo. Meu Matt Murdock tem muito em comum com a linha narrativa que eu gostava quando era menino, quando ele inventa o seu irmão gêmeo Mike, que era um tipo falador etc. O que eu mais gostava no Demolidor estava ali. Foi divertido trabalhar com quase todos. O único personagem que eu não pude trabalhar do jeito que eu queria foi o Homem de Ferro. Ou melhor, eu não podia trabalhar os cavaleiros da era elizabetana para fazer esses personagens, certamente o motivo para fazer logo Os Eternos. Porque eu percebi, ao fim de 1602 e de Os Eternos, que todos os personagens Marvel que eu gostava estariam nelas. Como foi para você recriar Os Eternos, personagens clássicos de Jack Kirby? Não se pode recriar Kirby, acho que é impossível, quem tenta fazer isso sempre fica aquém. O melhor a se fazer é provar uma das ideias de Kirby, tomá-la e ver o que pode ser feito a partir dela. Porque a verdade é que Kirby é como Eisner: único em seu gênero. Nunca vai haver ninguém como Jack Kirby. A variedade de ideias vencedoras concentradas é absolutamente mágica. Isto é Kirby. O ponto é que, quem trabalhasse com a sua obra, trabalharia ao lado daquele que foi o melhor cara dos quadrinhos mainstream. Você está lendo Crise Final? Sim, mas só li até agora o primeiro. E Sete Soldados da Vitória? Sim, e Sete Soldados, que adorei. Muitas pessoas aqui no Brasil não gostaram de Sete Soldados, o que me surpreende, pois é mesmo uma história muito boa. Grant Morrison [escritor de Crise Final e Sete Soldados da Vitória] é, hoje, o melhor escritor dos quadrinhos mainstream. E nessas séries você tem Kirby, e tudo o que Kirby fez. Eu tive essa chance ao escrever Os Eternos. O que me disseram foi: “Essa foi a ideia de Kirby, temos os personagens que ele criou e ferramos tudo de um modo que não sabemos como voltar atrás. Você pode consertar? Você pode levar isso de volta a um ponto em que possamos aproveitar no universo Marvel? Pois cada vez que tentávamos inseri-los nesse universo, era como se misturássemos uma taça de vinho e um copo de um formidável óleo de motor: colocávamos a mistura no carro e não funcionava bem. Você pode tornar isso algo que possamos colocar no carro?”. Esse foi o meu trabalho em Os Eternos, disseram‑me para terminar a história, fazê-la andar bem e, então, deixá-la. Fiz o que eles queriam, era


Foi logo após o 11 de Setembro e eu tinha que fazer uma história para a Marvel. Tudo o que eu sabia era que não queria coisas explodindo. Então escrevi uma história onde não havia coisas para serem explodidas.


Porque a verdade é que Kirby é como Eisner: único em seu gênero. Nunca vai haver ninguém como Jack Kirby.


parte do que era o meu trabalho com esses personagens que, olha só, foram criados por Kirby e que nos últimos trinta anos foram estragados nas tentativas de inseri-los no universo Marvel. Por exemplo, há uma versão desses personagens em que eles têm uniformes e fingem ser super-heróis. O que se queria é que os reluzentes Eternos voltassem ao front para se tornarem parte do universo novamente. O que eu amei sobre trabalhar com esses personagens é que eles são de Jack Kirby. Pode-se ver que o problema era que, quando se tentava combinar os universos de Kirby e da Marvel, eles não eram compatíveis. O que eu poderia fazer? Como eu poderia construir essa ponte? Eu não tinha ideia. Ainda assim, John Romita Jr. [desenhista da série Os Eternos] ficou maravilhado. Eu disse a ele: “John, me dê uma ideia do tamanho desse mundo que temos.” “Uma página dupla sangrada.” “Os Celestiais vêm junto.” “Esse é o maior mundo que temos!” (risos) Sobre Violent Cases. Ela finalmente foi publicada no Brasil, recentemente. Uau. Depois de mais de vinte anos de sua publicação original, o que você acha desta história? Apenas isso: sinto que a história era melhor do que eu merecia naquele momento. Há uma velha história sobre um capitão e seu exército, centenas de anos atrás. Ele vê por todo lado alvos com flechas cravadas exatamente no centro. Ele pensou que, quem quer que tivesse atirado aquelas flechas, era o melhor artilheiro que havia por ali. Ele então chegou à vila mais próxima e perguntou quem era a pessoa que atirava tão bem. Apontaram para um homem quieto no seu canto. Era um corcunda. Ele não acreditou e foi perguntar: “Você é o arqueiro?” e ele disse que sim. Então o capitão disse: “Poderia me mostrar?” e o corcunda concordou. Então ele lançou uma flecha contra uma parede e, em seguida, desenhou o alvo em volta dela. (risos) Para mim, Violent Cases parece como uma flecha acertada num círculo pintado à sua volta. Acho muito bom e eu não sabia o que eu estava fazendo, nem Dave McKean sabia. De alguma forma, isso fez com que a história ficasse muito melhor. Era a primeira vez que eu fazia aquilo, achava que podia fazer algo bem diferente do que estava sendo feito, que soasse como a mim mesmo, sobre a minha infância. Construí algo do qual duvidava, mas que permanece incrivelmente sendo um achado. Exceto quando eu me vejo ali, com 26 anos, acendendo meu cigarro no primeiro quadro, (risos) mas posso conviver com isso. Éramos jovens e bonitos e as coisas eram assim.

Violent Cases

Foi a primeira graphic novel escrita por Neil Gaiman, sendo também sua primeira parceria com o artista plástico Dave McKean. Publicada originalmente por uma pequena editora inglesa em 1987, tornou-se rapidamente um sucesso de crítica e, posteriormente, de público. Foi a história que abriu as portas do mercado dos quadrinhos para Gaiman, com o qual apenas flertava até então. Para saber mais sobre a história, que fala sobre a infância do autor inglês: http://tiny.cc/M01VIO


Cerebus

Este quadrinho independente, escrito e desenhado pelo canadense Dave Sim (com a colaboração do desenhista Gehrard em boa parte da duração do título), iniciou sua jornada editorial em 1977 e ganhou notoriedade por sua qualidade artística, pelos roteiros brilhantes e pela promessa feita pelo seu criador de produzir mensalmente a revista por 300 edições – o que equivale a 25 anos de trabalho ininterrupto. A saga de Cerebus, um porco-daterra falante e de temperamento explosivo, se encerrou em março de 2004, com mais de 6.000 páginas de conteúdo, configurando assim a maior obra em quadrinhos já escrita por apenas uma pessoa. Para saber mais sobre Cerebus: http://tiny.cc/M01AAD

Henry Darger

Um dos mais reclusos autores americanos era um criador compulsivo, a ponto de sua obra mais famosa, A história das garotas Vivian, possuir mais de 15 mil páginas e 15 volumes. Considerado louco por muitos, mas retratado como reservado por quem o conhecia, Darger influencia até hoje a cultura popular, inclusive bandas e artistas plásticos. Para saber mais sobre o obsessivo criador: http://tiny.cc/M01DAG

Última sobre quadrinhos. Alguma chance dos leitores verem você novamente à frente de um título mensal? Eu não acho que voltaremos a um mundo em que se deva ficar num título mais do que alguns meses. Posso estar errado. Acredito que o problema de entrar nessa novamente é do mesmo tipo enfrentado por Frank Miller em All Star Batman & Robin, quando ninguém sabe quando os próximos números vão sair. Eu não gostaria disso, acho que isso seria ruim para todos. De fato, eu ainda amo os quadrinhos. As coisas vão continuar acontecendo. O problema, para mim, é que ainda me lembro, como era quando me perguntavam, há dez anos, sobre Sandman. E eu não podia fazer mais nada. Levaria uma semana ou, às vezes, meia para fazer um roteiro de 24 páginas de quadrinhos e não há mais espaço em minha vida. E preciso disso. As pessoas me dizem que eu poderia fazer um conto, um filme, um roteiro para televisão, adaptar para qualquer meio e eu apenas ouço. Quando pensei em te perguntar isso, foi por causa de Dave Sim e da loucura de sua vida após 150 números de Cerebus, quando ele percebeu que ainda faltava a outra metade. O que você acha de Cerebus? Cerebus é, de muitos modos, o mais interessante quadrinho mensal de todos. Certamente o mais longevo. Há de se observar o aprendizado de Dave Sim à medida em que ele amadurece; que há um nível em que precisamos vê-lo chegar no ponto em que Cerebus é maior do que qualquer coisa em sua vida e em sua mente. E acho que estive próximo desse ponto em Sandman. Acho que é muito estranho e peculiar que um criador chegue a um lugar como esse em sua cabeça, porque acho que este ponto é fronteiriço entre a arte que se está criando e aquele em que você se torna um desajustado e tudo começa a ruir. Acho que este é o ponto em estava alguém como Henry Darger, que ia para casa, fazia seu trabalho e criava, toda noite, volumes e mais volumes. Eu acho que Sim, em Cerebus, correu esse risco, especialmente na segunda metade da obra, em que tudo era autorreferente. O problema que artistas e escritores têm é como começar. Temos uma vida durante a qual nos envolvemos em conflitos contra um monte de pessoas. E, quanto mais sucesso temos, mais acabamos por cair nessa. De repente, chega um ponto em que, por exemplo, Stephen King diz que podemos lutar contra os romances com escritores e a gente se pergunta “Por quê?”. Eu fiz uma promessa para mim mesmo de que eu nunca escreveria um romance sobre um escritor. O detalhe é que conheço esse material, é interessante, sei como publicar o trabalho, como lançá-lo, posso contar a história e então penso que sim, mas daí viro só mais uma


Levaria uma semana ou, às vezes, meia para fazer um roteiro de 24 páginas de quadrinhos e não há mais espaço em minha vida. E preciso disso.


Acho que aí a questão sobre a criação é o dividir com os outros, sair pelo mundo – o que é a coisa mais importante para criar personagens.


porra de escritor escrevendo sobre escrever. Acho que aí a questão sobre a criação é o dividir com os outros, sair pelo mundo – o que é a coisa mais importante para criar personagens –, e Sim não estava realmente se reunindo ou se encontrando com outras pessoas, estava vivendo apenas em sua cabeça, criando Cerebus. E acho que esse é o maior problema que a segunda metade de Cerebus tem, pois a revista se torna cada vez mais Dave Sim. Eu me preocupo com as opiniões de Dave. Eu falo com as pessoas que dizem “por que ler o trabalho de alguém que está louco?”ou “por que leria algo criado por alguém cujas opiniões eu desaprovo?”. Creio que este seja o ponto que Sim não entende, a necessidade de se abrir, se estender ao outro. E eu gosto de seu trabalho, adoro a forma que fui marcado por ele, a princípio. Mas o que fazer? Ele é uma criança do seu tempo, uma criança de suas ideias e é assim que ele passa seu tempo. Na próxima edição: Neil Gaiman fala sobre literatura para adultos e infantojuvenil, cinema e seu último trabalho, o hoje premiado O livro do cemitério.

Dave Sim

O criador de Cerebus talvez seja o mais bem sucedido exemplo de criador independente de quadrinhos no que concerne a manter, ao longo de mais de 30 anos, a integridade de sua obra. Mas, com o tempo, as tempestuosas opiniões de Sim o levaram a se separar da esposa, a criar inimizades no mercado de quadrinhos e, finalmente, imergir num universo recluso e de ideias polêmicas, como o que ele chama de “antifeminismo”. Conheça um pouco mais sobre a carreira deste criador controverso de quadrinhos em: http://tiny.cc/M01SIM e http://tiny.cc/M01MGY



O Ă LBUM PESSOAL DE

ADONIRAN BARBOSA Fotos gentilmente cedidas, pertencentes ao Acervo Pessoal de Adoniran Barbosa









GALERIAS


JOANA COCCARELLI


1) Ecstasy 2) Playmate


JOANA COCCARELLI


1) Mayan Warrior 2) Chess Queen 3) I was in love I was created


HIUTWIG


1) Hiu 3 2) Terror 3) Hiu 1 4) Hiu 2


MARIO CAU


1) Siesta 2) This way! 3) Banquinho 4) Dia fraco


MARIO CAU


1) Vira-lata 2) Pris達o domiciliar





SEM LER OU ESCREVER Provavelmente nenhum de vocês conheceu Victorio Montanheiro, nascido em 1911 na cidade de Socorro, estado de São Paulo. Não têm como saber, então, que ele foi uma criança das mais pestinhas, pulando em cima das costas do avô enquanto ele levava a marmita para os filhos que trabalhavam nas roças de café. Filho de italianos, aprendeu desde cedo a não ter vergonha de calejar as suas mãos. Escolheu o ofício de carpinteiro. Na juventude, trabalhava mais de doze horas por dia, sem qualquer proteção, respirando pó de madeira para poder, um dia, sustentar uma família, como seu pai disse que seria.

Teve mais filhos do que podia contar em uma de suas mãos. No entanto, nos anos 1940, perdeu a esposa em condições traumáticas e desconhecidas. Preferiu nunca mais tocar no assunto. Casou novamente, viajou pelo país, conheceu pessoas e lugares, mas sempre teve um núcleo muito seleto de amigos fiéis. Trabalhou até os seus últimos dias, construindo rodas de moinho que hoje são uma lembrança querida para quem o conheceu. Victorio morreu no último dia 16 de junho. Nos seus 99 anos, nunca soube ler ou escrever e, mesmo assim, desvendou o enigma do mundo. Esta Machado também é dedicada a ele.




Jean-Claude Dunyach, francês, é engenheiro aeronáutico, compositor e um premiado autor de ficção científica.

Tiago Casagrande é verde e tem antenas.

Joana Coccarelli (aka narghee-la) é carioca, jornalista e artista plástica com foco em colagens manuais.

Estevão Azevedo publicou O som de nada acontecendo (contos, Edições K) e Nunca o nome do menino (romance, Terceiro Nome).

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Jorge Rocha é jornalista e professor universitário. Despacha no blog O Jornalismo Morreu!. www.verbeat.org/blogs/exu Twitter exucaveiracover

verbeat.org/aygn bereteando@gmail.com Twitter bereteando

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Marcelo Benvenutti, portoalegrense, é autor de Arquivo Morto (2008) e participa da coletânea Geração Zero Zero. http://marcelobenvenutti.blogspot.com

Löis Lancaster é compositor, poeta, contrabaixista, doutorando em Literatura Comparada, pintor digital, estudante da Língua Russa. http://www.fotolog.com/roncevaux Twitter roncevaux

Luis Eduardo Matta é escritor de thrillers para adultos e adolescentes. Publicou, entre outros, 120 horas, Morte no colégio e O véu. www.lematta.com Twitter lematta

André Giusti é escritor e jornalista, autor de A liberdade é amarela e conversível e A solidão do livro Emprestado. É carioca e mora em Brasília. www.andregiusti.com.br

Lielson Zeni lê, escreve, vê, comenta, revisa, media. É do UHQ, mestre em literatura, roteirista. Mora em Curitiba.

Daniel Seda é poeta e escritor multimídia. Realiza vídeos, instalações e performances públicas de caráter coletivo.

Dodô Azevedo é escritor, professor de Filosofia, Mestre em Linguística e autor de Pessoas do Século Passado. Atualmente, finaliza o romance Fé na Estrada.

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Mariel Reis, carioca, autor de John Fante Trabalha no Esquimó, Ed. Cáliban. Colabora em diversos periódicos.

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Vitor Cafaggi sempre adorou ler quadrinhos e, há dois anos, descobriu que também pode criar os seus.

Lu Cafaggi é autora das tiras Los Pantozelos, publicadas em seu blog. Só. Por enquanto.

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Samir Machado de Machado é escritor, designer e publicitário. Organizou a coletânea Ficção de Polpa para a Não Editora.

Cynthia B. vagava sem rumo até 2008, quando conheceu o controverso cartunista Allan Sieber. E deu nisso aí. Em breve, lançará seu primeiro álbum.

MINI


Lalita é ilustrador e comediante. Tem duas filhas, um papagaio e torce para que seu time, o XV de Jaú, volte logo para a primeira divisão.

Samir Mesquita, escritor, é autor dos livros de microcontos Dois Palitos e 18:30. Também se dedica à fotografia.

Tibor Moricz é escritor, publicitário e organizador de coletâneas. Autor de Síndrome de Cérbero e Fome. http://esooutroblogue.wordpress.com tmoricz@hotmail.com Twitter tmoricz

Barbão mora em Buenos Aires. Lê, escreve e traduz, nem sempre nessa ordem. Publicou a novela Acaricia meu Sonho em 2007.

Eduardo Nasi é jornalista.

Twitter EduardoNasi

Sérgio Fonseca é carioca. Apaixonado pelo Rio. Fotografa para ouvir e contar histórias. www.sergiofonseca.com.br foto@sergiofonseca.com.br Twitter sergiofonseca

Breno Kümmel (diz-se Químel) publicou um livro de contos em 2006, chamado Estrada de Espelhos, e um conto em 2008 pela Mojo Books. breno_k@yahoo.com Twitter brenokummel

Tem gente que gosta de cachorros, gente que gosta de chocolate. Eu gosto de desenhar. e de tapete. Eu sou a Hiutwig. prazer. www.flickr.com/photos/byhiutwig Twitter hiutwig

Alexandra Moraes, 28, é jornalista.

Bruno Drummond é ilustrador e publica a série Gente Fina aos domingos na Revista d’O Globo.

http://cadernodeescritura.wordpress.com

barbao@gmail.com

Twitter alechandracomx

Alexandre Matias é editor do caderno Link do jornal O Estado de S. Paulo e mantém o blog Trabalho Sujo.

BIOS

Eduardo Medeiros é ilustrador e, juntamente com Rafael Albuquerque e Mateus Santolouco, publicou a série Mondo Urbano pela editora norteamericana Oni Press.

Kelvin Falcão Klein é escritor, doutorando em Literatura e pai do Miguel.

Fábio Monstro! foi produzido na Zona Franca de Manaus. Mora no Rio há 10 anos. É ilustrador, diretor de arte e (eventualmente) DJ.

Salvador Camino é editor do portal de entretenimento Ambrosia.

Moacir C. Lopes é autor, entre outros, do romance A Ostra e o Vento, adaptado para o cinema por Walter Lima Jr. Andrey do Amaral é agente de Moacir C. Lopes: andrey@andreydoamaral.com

Mario Cau é quadrinista e ilustrador. Autor da série de quadrinhos Pieces, que homenageia os momentos poéticos da vida. www.mariocau.com Twitter mariocau

Twitter falcaoklein


www.studiodelrey.com.br


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