Ventre de Ausência

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JOAQUIM SILVA PEREIRA

VENTRE DE AUSÊNCIA

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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sitio do Livro) título: Ventre de Ausência autor: Joaquim Silva Pereira arranjo de capa: Patrícia Andrade desenho de capa: Benvinda Pereira revisão: Patrícia Espinha paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, julho 2016 isbn: 978-989-8821-29-4 depósito legal: 412742/16 © Joaquim Silva Pereira

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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Para a Vinda e a Inês

“… Istmo é a interjeição Na planura da distância Do estio da canção...” (Istmo)

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NOTA DO AUTOR

Este conjunto de textos, díspares no tempo, no tema e na espessura, tem um fio condutor que abrange, em parabólica temporal, sonhos de infância, madrugadas de juventude, uma vida profissional e algum lazer decorrente de precária aposentação. O escrito surge, assim, como uma publicação serôdia que pretende entrar num alinhamento de escrita em que retornam, monótona mas não inutilmente, algumas das dimensões com que o homem desde sempre se confrontou. Privilegiam-se “prosoemas” sob a forma de curtos espaços de observação e reflexão acerca da relativa incomunicabilidade do indivíduo na sociedade, ademais num túnel de tempo em que explode uma vertigem de mudança que desencadeia questionamentos novos apenas compatíveis com mundividências actualizadas. Talvez seja um certo alheamento hipnótico global perante não-evidências dessa correria do tempo que angustia a espera das pouco densas respostas disponíveis no âmbito da consciência pessoal e coletiva, da vivência da cidadania e, certamente também, do carácter imperfeito da experiência democrática. A bem dizer, trata-se de uma inquietação perante uma circunstância sem avesso significante e à qual se procura escapar através de uma linguagem onde abunda o subentendido e a remissão, de modo quase sorrateiro, discreto, mas leal. 7

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“Ventre de Ausência” é constituído por uma espécie de entradas de um diário ou de livro de memórias que nunca se escreveram. São pequenas composições redigidas, sem calendário, no decurso das duas últimas décadas, sobre assuntos do quotidiano. Assume-se como exercício de diálogo solidário com os que se amam, porque se conhecem, e com amigos e desconhecidos com quem se quer partilhar palavras francas, escritas ao sabor de uma complacência que o passar dos anos gera. Querem-se, obviamente, com dimensão interjectiva tais composições, como um ventre que dá a vida, como um tiro certeiro na ausência e como um berro de revolta face ao silêncio da solidão que a distância cria, e só a presença vence, de vez. O anexo “Sem Anos de Ausência” tende a ser uma das figurações do tal alheamento hipnótico, sendo o seu alcance por demais evidente nos confrontos da arrumação global dos poemas precedentes. O livro resume-se assim a um certo trautear da letra de uma canção cuja música se ignora, mas que se espera que venha a obter a adesão do leitor.

Lisboa, Dezembro de 2015 JOAQUIM SILVA PEREIRA

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Poemas 鵹鵺

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Ampulheta Enquanto doer viril a pujança Cava o devir do tempo e a espuma Ténue da lembrança e Humedece a poeira do presente Podes inclusive magoar o desgaste Asas de ausência flutuando Rio acima devastadas pelo grito do corpo. Quanto valem a ousadia E a persistência de cada dia? Grãos de areia ampliam A rouquidão do silêncio Até aos confins da espera Que uma vaga túmida de prece e de posse Amortece o cansaço posterior do espasmo. Ergue-te pragmático(a) nas esporas Quotidianas da tenacidade Despertada a chicote no ventre Sangrante da não-desistência.

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As Armas e os Vilões Foste pronto ao embarque no cais Não te lembras nem se olhaste Tantos navios outros tantos de arrais Morto-vivo mas inteiro embarcaste; Foste ao cais e só levaste parabellum Não esqueças si vis bellum para pacem Civis fardados de enxada morenos Milicianos da vida pasmada pequenos. Na bruma centenária da costa Um barco vai e vem nem acosta Sai um morto em combate patriota Toca o hino a chorar a derrota; Passam tropas militares em acção Cobertos de outras armas que não a razão Morre um soba na enxerga da prisão Um soldado cavador vai ao chão. Só por ser cada preto é um turra Cada branco só por ser um bandido Preta ou branca é mulher é carnal Branco ou preto todo o homem é mortal; G-3 cravo de abril traição e camões Cem mil milhões de dólares rublos E depois quarenta buracos no tempo ... e a glória de falar português! Ato a história à míngua das armas do canto.

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Adolescência Presa à rédea da adolescência Estaciona oblíqua no cimento a mala Rectângulo de azul em desmaio Roupagens íntimas e letras de coragem Cheira a mobil oil taberna e macadame Manhãs searas campos de raparigas. Claras camionetas aéreos convés Escrituras pagãs remédios e ferraduras Sementes nascimentos e óbitos Partida chegada tabela labuta descalça Onze e quinze dezassete muitas horas Pingo pingo conta-gotas de segundos. Verões acendem pilhas quadradas de dias Lágrimas espremidas em precoce vindima O tempo devora os próprios filhos e os destes Sua mó esmaga sem dó as distâncias da lembrança Um pó mortífero se infiltra na diária resignação e Renasce imortal o desejo na carne das noites.

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Nesga de Pensamento Desdobra-se uma nesga de pensamento E aquieta-se num vaso a lembrança Uma semente castanha nasce Na superfície tímida da carne; Apaga-se o rasto de um olhar No sopro do imperativo categórico Sobreviver tenaz no mar alto E resistir inexpugnável de espera; Numa réstia de maré sem hora marcada Os despojos do desejo agonizam Na infinitude tardia da tarde.

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Bagagem Nula Sempre que o bafo dos dias embaciar A palidez quotidiana da usura Exorciza o tédio e a banalidade Dos passos e dos gestos a ritualidade Sob o açaime do pão de cada dia Ousa da imaginação a loucura No torno diário da ambulância do esforço Num contra-relógio contra o cansaço. Porque a maré negra da angústia Não recua não se lava nem dilui Num cinzeiro num tinteiro de café Nem jorra sequer a água da alegria Ressequida na lágrima-desespero Do assassínio delonga da espera Nos lençóis murchos da ausência. E porque a madrugada mancha de púrpura As pegadas dolorosas da procura Não deves recusar os braços da noite Nem a rara fidelidade dos corpos Transportes de bagagem nula Num golpe de mão ao túmulo vazio.

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Chove… Auto-suspende-se a relha do arado Que lavra sôfrega de azul a planície Branca da celulose. Suicida-se na Solidão antonioniana o flash sideral Que fere de inquietação uma paisagem Dorida. Chove... Metamorfoseia o pesadelo em quotidiano E vice-versa fuzila as parabólicas Do sono um rasto rouco de rumor A água acorda passos sonâmbulos. Chove... Anoiteces-me de cor a um canto da alma E amanheço-te coberto de amargo desejo Reteso de relento e torpor. Quero Reencontrar o teu protesto quente Frente a frente ao gelo do medo.

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Rebelde e Submisso Apetece às vezes medir Abraçar o estuário de lés a lés Parar o tempo e do seu leme a roda Pedir contas aos pensamentos Cruzar enviesado o rio formoso À latitude do mar exausto da palha Gaivota sonora e silêncio de quilha; A norte um berro rebelde e vadio Submisso a sul um silêncio de bronze Onda incauta anoitece a poente A nascente um relâmpago alumia Céu vazio de crianças, aves e flores Prometeu se queima humano no fogo Sacos de areia e pedaços de ser.

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Indignação Súbita De súbito me indigno Chego mesmo a revoltar-me Da traição breve dos gestos E da relativa fidelidade de ser Porque um grito discreto Fere o ventre primário da ausência E um eco rouco indefinido Mora nas praias do corpo. Quase me dói fria a distância Que me cavalga as entranhas E me possui uma impossuída posse Tanto mais que um tango de langor Se ergue violino na floresta negra Como indignação súbita Frente aos portões de vidro Do prazer da morte e do espasmo. Às vezes quero possuir a morte.

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Istmo Istmo é a cintura ferida E o magma do corpo Fenda cavada no pensamento Istmo é a ilíada da voz E o da tua boca vórtice Traição de logos e eros. Istmo é a cilada Sentinela chacinada No gume gládio do olhar Istmo é o refrão Do mar contra a escarpa Entre ondas de sorriso. Istmo é a interjeição Na planura da distância Do estio da canção.

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