Muros

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MARIA ÂNGELA PIRES

MUROS Poemas e uma Evocação

Lisboa 2014

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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: Muros autora: Maria Ângela Pires revisão: Mafalda Falcão paginação: Alda Teixeira arranjo de capa: Patrícia Andrade fotografia da capa: João Lavinha 1.ª Edição Lisboa, Julho 2014 isbn: 978-989-878-76-8 depósito legal: 378229/14 © Maria Ângela Pires

publicação e comercialização:

Av. de Roma, n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt

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abreviando Como tantas outras pessoas, escrevi durante parte da vida para a gaveta. Escrevi sobretudo poemas, que passaram por jornais e por antologias. Um livro, que publiquei em Luanda, em 1966 (quando cheguei a Angola para ficar 8 anos), coligiu os poemas da minha ‘adolescência literária’. Organizo agora uma colectânea muito pessoal, para poder entender-me comigo própria e quando a poesia, como modo de exposição aos outros, já não me perturba demais. Assim, estes poemas vêm de tempos e ritmos de vida diferentes (1972 a 2013), isto é, do tempo do amor, ao da memória e ao dos lugares, numa sequência que se distingue somente por duas cidades: Luanda e Lisboa. Citando António Boto,“poesia não é mais do que/a lembrança purificada…” eu assumo, agora e sem qualquer pretensão, esse caminho. Devo registar aqui, com antiga gratidão, que o jornalista Rodrigues Vaz foi quem publicou, em situação de alguma improbabilidade, 9 poemas no Diário de Luanda (suplemento de Artes e Letras), entre 1972 e 1974. É, afinal, um livro de Muros (os meus) e para ele fui buscar ao Flickr uma fotografia do João Pires Lavinha, que expressa muito bem essa visão.

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Ao João e ao Pedro, meus sobrinhos, que têm permanecido muito perto de mim nos últimos anos, dedico, com o afecto que eles conhecem, estes ‘Muros’.

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Em homenagem a minha mĂŁe, que se chamava EmĂ­lia, e me ensinou a cantar

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EVOCAÇÃO

“(…) Em pequena, sempre a ouvi cantar. Tinha uma linda voz de lisboeta habituada ao fado e eu pedia-lhe que cantasse esta…e mais esta…e mais esta. Nunca perdia a paciência e fazia-me a vontade. Repetia as cantigas das Revistas a que ela assistira, vestindo “aquele vestido de malha de seda que me assentava tão bem”, dizia. Eu tinha comigo um caderninho e escrevia as letras devagar, com a minha caligrafia de 2.ª classe e as hesitações da minha ignorância (escrevia ‘sedutor’ com ’c’ e ‘impunemente’ parecia-me uma palavra de que só os adultos saberiam o significado). Depois, sentada no chão, junto aos joelhos dela, qual pássaro folgado, fazia-a (com o mimo cruel que me era consentido) cantar vezes sem conta as mesmas melodias, até eu as aprender e dar por satisfeita. Muitas vezes, ela chorava e ia cantando. Embora o seu choro baixinho me afligisse sempre, eu não interrompia a minha lição de canto, enquanto ela costurava no seu ofício, e exigia-lhe o tempo da aula até ao fim. E quem sabe se as lágrimas da minha mãe e a música que nos envolvia não eram para mim, nesses tempos de infância inconsciente, mais feitas de mel do que de amargura. Foi assim, na verdade, que registei esses momentos do meu egoísmo de menina, leve e sem pecado”.

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map. 1989

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POEMAS Luanda, 1972-1974

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Maria Ângela Pires

QUEM DISSE?

A qui estou

no meu canto construído a rir-me da vida Livro após livro lido o meu cigarro aceso e os meus ócios profundos de Beleza Quem disse que a solidão é assim tão triste?!

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Publicado em 19.7.1972 no Diário de Luanda/Artes e Letras

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IN-CONFORMIDADE

Não

Não fiques aí à espera Há mais sol daquele lado Há mais silêncio na noite Há mais verde na floresta Há mais fogueiras acesas Há mais brilho nas estrelas Há mais cadência no mar Não há bocas a mentir Não há olhos de cobiça Não há corpos a trair Anda Anda comigo Não tenhas a tentação parada das estátuas 16

Publicado em 13.12.1972 no Diário de Luanda/Artes e Letras

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Maria Ângela Pires

CICLO

Dentro do tempo consciência envelhecem as mãos

o sangue corre devagar com a tranquilidade do que não vale a pena sabe tu que me cansei do mito da lucidez que é o maior e mais ainda do amor se forem duas coisas distintas conheço o rasto das aves porque fui atrás delas e não desisti num ponto qualquer desisti só quando ganhei altura bastante e o longo dos rios me assustava por transportarem vida indefinidamente num tracejado de negro e esmeralda o medo de respirar ar puro também me atraiçoou. Demasiadamente o sonho responsável culpado cada vez mais até se opor ao movimento dos dias como uma verdade a outra verdade

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Publicado em Junho/1973 no Diário de Luanda/Artes e Letras

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PESTE

Todas as aves emigraram

(não importa o que fizeram as galinhas) Todos os cães uivaram todos os ratos apareceram misturados com fumo os porcos-espinhos comeram-se uns aos outros e havia martelos com sílabas de maldições caídos nos telhados já partidos Foi então que as rosas descobriram sombras de crianças brincando à cabra-cega e respeitosamente se curvaram no chão havia lama e chuva apodrecida

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Publicado em 31.1.1973 no Diário de Luanda/Artes e Letras

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Maria Ângela Pires

POEMA DO SOL CULPADO

Intolerável é este sol tropical que resiste

e ofusca. Descaramento de luz que não pede licença e não consente sombras e espanta os dias todos de claros-escuros muito definidos como criança que faz desenhos ingénuos e parte os bicos dos lápis Intolerável é o olhar furtivo e as mãos nos bolsos porque os automóveis não andam nos passeios e nos passeios toda a gente anda a pé e se mistura Intolerável é a mão estendida repugnante o andrajo a pele enrugada e os olhos os olhos que dizem estou vivo (se ao menos fossem mortos curvados ou estátuas violentadas pelo tempo e sem respiração…) Intolerável é a força retorcida que se pisa e o formigueiro que nasce debaixo dos pés o asfalto que estala as pedras que saltam os raios que dançam sobre os telhados lisos e alvos Intolerável é o brilho ardente das estrelas o aroma das flores o cantar alegre e superior dos pássaros o riso das crianças que dão as mãos nas rodas o silêncio absoluto da noite por ser absoluto o luar que está presente em todos os segredos e a mania romântica dos poetas mentecaptos

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Intolerável é o Resto o que fica colado à terra o que foge no sentido das palmeiras mais altas e não se aprisiona Intolerável é este sol tropical que resiste e ofusca

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Publicado em 28.2.1973 no Diário de Luanda (Artes e Letras)

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