Filhos d'Outrem ou d'Algures

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Alberto Branquinho

Filhos d’Outrem ou d’Algures


Edição: edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Filhos d’outrem ou d’algures Autor: Alberto Branquinho Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, maio de 2015 ISBN: 978-989-8678-99-7 Depósito legal: 392819/15 © Alberto Branquinho PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt


OBRAS DO AUTOR Prosa: – PRE-TEXTO – Edição de autor (plaquette) – CAMBANÇA – GUINÉ/Morte e vida em maré baixa – Setecaminhos (2ª. ed. revista) – CONTOS COM ENCONTROS – Setecaminhos – PARIÇÕES & APARIÇÕES – Fonte da Palavra – CAMBANÇA FINAL – GUINÉ (Guerra Colonial) – Vírgula Poesia: – SOBRE VIVÊNCIAS (autor identificado por Alberto Abrunhosa) – Setecaminhos – QUASOUTONO?! – Vírgula



HISTÓRIAS



FILHO DO BAIRRO



Nã, nã, nã senhor… Nã é nada disso. Sabe, com a minha idade, já vi muita coisa. Não sei que lhe diga, mas isto aqui nã anda bem. Nã está, nã senhor. As coisas não estão bem por todo o lado, mas aqui é pior. Aqui, pelo meu bairro. Quer-se dizer, aqui pela vizinhança. O meu bairro… o meu bairro já não existe. Agora só se forem duas, três, meia dúzia de ruas aqui à volta e mais umas travessas no meio delas. O meu bairro, assim o bairro… aquele bairro de quando eu era catraio, já não há. Eu já não sinto que há… E não foi só a velhice, a pobreza, doenças… São as casas podres. Podres e vazias. Vazias de gente. É claro que as ruas, as vielas, travessas, a subir e a descer, direitas, direitinhas, tortas, às curvas, becos, pátios, uns grandes e outros pequenos, isso está tudo aqui. Mas você sabe, o que faz um bairro ser um bairro não é isso, não é só isso. É a malta, as pessoas, as vozes, as falas, os gritos, as zaragatas, os namoricos, as zangas da vizinhança. Era o “Lá vai água!”… seja a água que fosse… Tem que ter os berros das janelas, o chamar os filhos à porta, um insulto, uma caralhada, que… não sei se você entende… até pode ser uma maneira de… de mostrar… amizade. Há muita gente que, no antigamente, veio para aqui sem ser família de ninguém, sem conhecer ninguém. Nem pais nem filhos nem amigos. Nada. Mas o pessoal tirava-lhe as medidas e, despois, via-se: Este é cá dos nossos! E prontos! Tudo bem! Outras vezes: Olha para este! Armado em carapau de corrida! Até parece da bófia! E… alça! Ou se •

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pirava ou levava uma corrida em pêlo. Isto, agora, assim… isto já nem é um bairro nem é nada. Já não é o meu bairro, prontos! Até podia haver pancadaria, discussões, porrada pois. Pois claro que havia, sim senhor! Mas, ou porque alguém se metia no meio ou porque lá no fundo, lá bem no fundo, as pessoas gostavam umas das outras ou porque eram parecidas ou porque precisavam umas das outras, assim, como não quer a coisa, começavam a dar os bons-dias, a ver se pegava e lá voltavam a falar como se não tivesse acontecido nada. Sem ressentimentos. Nã, nã eram coisas de Sporting e Benfica. Nem da política. Podiam ser namoricos entre os filhos, era o “diz-que-disse”, “quem foi que disse?”, “quem te mandou dizer que eu tinha dito?”… Coisas assim… mexeriquices, que, quando metia mulheres, era o cabo dos trabalhos. Agora não. Isto já não é um bairro. E nã sei se você me está a entender? O meu bairro nã era isso tudo por aí acima. Nã senhor! O meu bairro era esta parte mais cá p’ra baixo. Mai’ nada! Lá para cima só há, só havia… chungaria, que é a maior parte e têm a mania… têm a mania que também são cá do bairro. Os grão-finos que moram lá em cima, quase lá encostados ao castelo, esses… esses querem lá saber se são do bairro ou não. O que os preocupa é a porta bem trancada à noite. À noite e de dia. Abrem as janelas e as varandas, mas é para verem a paisage… e o rio lá em baixo. Olhe, mesmo quando vieram para aqui alguns retornados, a fugir das Áfricas, ainda começaram a chamá-los “capatazes de pretos” e outras coisas assim. Mas, depois, também vinham pretos com eles, assim a modos de serem da família e o pessoal ficou baralhado. Eles davam os bons dias a toda agente, não se metiam na vida dos outros. Acabaram a ter pena deles, da tristeza que traziam em cima dos ombros. Mas era gente de trabalho. Agarraram-se aí às vendas, casas de comidas e coisas assim e lá foram governando a vida. Já não há nenhum por aí, que me lembre. Mudaram de vida ou mudaram de ares. Você, que vinha a andar por aí, viu os drógados? Um homem vem pela rua e até tem vergonha e nojo. Tem que virar a cara para o lado. Mas já foi pior. Aparecem por aí umas gajas, que, quando chegam, parecem umas “donas”. Começam a falar por aqui e por ali e, depois, é vê•

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-las, sem vergonha, sentadas à beira das portas, como umas garinas a espetarem as agulhas. Agulhas, pois! É só arregaçar as mangas e… aí vai disto. E nos pés também! E a fumarem uma porcaria esquisita. Não, não é de noite. Mesmo de dia. No meio da manhã, à hora de almoço, à tarde. À noite não sei, que não saio à rua. Aí, é só o que vejo da janela. Às vezes até tenho medo de estar à janela muito tempo. Outra coisa que há uns tempos quase já não se via por aqui era o putedo. Agora voltaram. Não são muitas. A mim nem que elas me pagassem. Nem sei como é que há gajos que vêem alguma coisa naqueles montes de esterco. E depois também há das tais que tanto se picam nos braços como nos pés. Não entendo como é que conseguem ganhar dinheiro com aquela porcaria que têm no meio das pernas. P’ra comprar o produto. Com o tempo começam a definhar, a definhar e é só pele e osso. Depois ficam para aí caídas, a dormir no chão. Gajas e gajos. Desaparecem da noite para o dia. Não demora muito tempo e aparecem logo outras. É uma tristeza. Uma tristeza e um nojo. Algumas garinas trabalham sozinhas, mas outras também têm um chuleco, a maior parte mulatos, que andam por ali a rondar, a olhar de longe. Antigamente os gajos tinham mais classe (bem… quer-se dizer… alguns…). Andavam por aí de carro, todos artilhados, às voltas. Iam e vinham, a controlar os cabritos que as gajas faziam. Estes, agora, são uns pelintras de merda. Parece que nem se lavam. Nem fazem a barba. Agora, também, parece que está na moda não fazer a barba… E você disse “o seu bairro”, quer-se dizer o meu… É por essas e por outras que eu digo que já não tenho bairro. Qual bairro?! Desapareceu… O meu bairro agora são só alguns velhos. E os desempregados. Mais novos que eu, pois claro. Desempregados, pois! Mas você de dia não os vê por aqui. Isto, como está, não interessa nem ao Menino Jesus! Depois, há gajos que não sei o que querem da vida. Veja lá: ao filho de uma minha vizinha um tio arranjou-lhe trabalho. Ele nunca tinha trabalhado, sempre de costas direitas. Nem sabia o que era uma ferramenta… Foi lá dois ou três dias e depois nunca mais apareceu. E ao meu neto ninguém lhe arranja trabalho. É, é mais velho que o outro. Tem vinte e quatro ou vinte e cinco. O outro continua a chupar a mãe, •

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a desgraçada! Lá anda com o carro, um Audi vermelho, para cá e para lá, sem fazer nada e a mãe a definhar. A trabalhar, a ganhar para ele. Ela deve ter ido falar com o irmão, que tem uma oficina e convenceu-o a dar trabalho ao sobrinho. Desgraçada! Havia de ser comigo! Mas a maioria do pessoal que você vê agora por aqui é: chineses, indianos, banglas, paquistãos… Lojistas e carregadores. E condutores. Os chineses são uns gajos lixados para o trabalho. Não têm horário. Trabalham que nem uns cães e há outros que parecem escravos deles. Vivem uns em cima dos outros e, fora da casa, é só trabalho, trabalho. No meio disto, só comem. Trabalham e comem. Isto para não falar dos pretos e dos romenos. Os romenos, alto lá com eles! Mas o trabalho principal deles não é por aqui. Como é que estes gajos, que são mais que as tias, entraram cá e estão aqui como se isto fosse a terra deles? Os que mais me chateiam… chateiam e metem nojo são os das barbichas e barretes na cabeça. E essas gajas que andam para aí de cara tapada. ‘Tão com vergonha de quê?! Parece que estão sempre no Carnaval! Ainda bem que não são muitos. Os chineses andam lá na vida deles, trabalham em qualquer canto. Nem sei como é que eles conseguem arranjar tempo p’ra fazer tantos filhos. Não são todos, mas, a maior parte deles, têm uma quantidade de putos que já se desenrascam a falar português. Vão nascendo, nascendo, crescendo e, qualquer dia, afogam a gente. Você espreitou p’rás lojas? Têm de tudo – cuecas, peitilhos, gravatas, lenços, chapéus, ciroilas, calças, camisas, camisolas, tachos, panelas… E coisas esquisitas p’ra comer. Sei lá o quê! Tudo! São tantas bugigangas que, a olhar para aquilo tudo, fico com dor de cabeça. Só de olhar. Deve ser tudo contrabando… E a comida deles! Nem que me pagassem comia aquilo. Mas vêm para aí uns finórios, nossos, cá da nossa terra, compram e compram a eles coisas para comer, que nem eu sei o que é. Enfiam aquilo tudo nos sacos e… adeus. Vão para o carro, mais os sacos e nunca mais ninguém os vê. Você já os viu a comer? A comerem com aqueles paus piqueninos, naquelas tigelas miúdas e nos pratos piqueninos, que, até, são de plástico. Ou parecem. Aquilo cheira tão mal, que até enjoa. Eu, quando os •

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vejo a comer, fujo. Fico enjoado só com o cheiro. Eles são tantos que até parece que estão a empurrar os outros gajos das lojas do lado. E blé, blé, blé, torotó, bli, blá, blé, tóraró, óbé, óba, blé, blá… a falarem entre eles e lá se entendem. E nós, népias! Mas olhe que se não fossem eles… e os outros, isto aqui estava tudo morto, quase sem movimento nenhum. A malta daqui já está velha. Senta-se por aí nos bancos ou na Praça ou à porta e lá ficam a conversar, mas pouco, mais a deixar passar o tempo. Já nem às tascas vão. Também quais tascas? É só olhar à volta e pouco há. Ou quase nada. Querem é sossego e que não os chateiem. Algumas das velhotas e velhotes meus conhecidos, se é que ainda não morreram, já quase nem saem de casa. Só à janela. Às vezes lá aparecem… quando faz bom tempo. As pernas já não ajudam nada. Por isso tudo é que eu digo – o meu bairro?! Isto não é bairro nem é nada! Já não tenho bairro. Se pudesse, fugia. O Totoloto não quer nada comigo. Agora andam a dizer que a Câmara vai mexer nisto. Quem é que acredita? Com a crise, onde é que há dinheiro para tratar desta porcaria toda? Limpar isto tudo… Lixo de ruas, lixo de casas, lixo de gente… Miséria, meu senhor, só miséria! Passam aí uns turistas a olhar p’ra isto tudo. Olham, olham. Fazem fotografias. Olham para dentro das lojas, olham para cima, para as casas velhas sem ninguém, com as janelas e os vidros partidos. Não sei que graça eles acham a isto. Às vezes um ou outro entra numa loja, andam por ali a cheirar e, à sorrelfa, fazem umas fotografias. Assim a medo, parece que têm medo que a gente se chateie. Não sei, mas acho que, no fundo, no fundo, estão é a fazer pouco da gente. Às vezes compram qualquer coisita. Mas as lojas são quase todas dos banglas, dos paquistãos, que são assim a modos que indianos (monhés, como a gente lhes chamava) e mais dos chineses. Há um ou outro português, mas poucos. Até já pensei: estes turistas pensarão que eles todos são portugueses? Noutro dia estava além um preto grande, gordo, beiçudo, bêbado como um porco (ou drógado, sei lá!), desses gajos que dormem na rua, meio vestido, meio despido. Estava encostado à parede, no meio •

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do lixo, a dar pão às pombas. As gajas eram mais de vinte, à volta dele. Pousadas na cabeça, nas pernas dele, no chão, nos braços, todas numa geringonça de luta pelas migalhas. Vai uns turistas viram aquilo e toca de tirar fotografias que nunca mais paravam. E o preto ria-se, ria-se. Não sei se de satisfação das pombas ou das fotografias. Até tive vergonha! Já não sabia se me havia de chatear com o preto ou com os turistas, mas, desde catraio, que me dizem que temos que ser simpáticos p’rós turistas… Olhe… fui-me embora. Mas, uma coisa lhe digo: é que, apesar desta misturada de gente, quase não há assaltos. Só aparecem por aí dois polícias. Às vezes. De dia. De noite não sei. Aqui há uns dez ou quinze anos que eu não saio de noite. Antigamente até era perigoso ser polícia aqui. Tinham que andar por aqui a meter na ordem a malta que por aí andava. Havia muitos bares e tascas e, à noite, apareciam muitos magalas, muitos a fazer a despedida de embarcarem p’ra África. Muitos bêbados e muitas putas. Era um bairro com muita vida. Essa vida… Mas nã havia droga. Até as putas e os chulos tinham mais classe. Ou, então, era eu que era mais novo, nã tinha medo de nada e achava tudo bem. Às vezes penso nisso e digo para mim: “Tu é que estás velho”. Mas, olhe que não é. Onde é que eu ia pensar que um dia o meu bairro ia ser um sítio podre e cheio de gente esquisita, que parece que saiu daqueles filmes esquisitos que a gente, às vezes, via no “Piolho” e saltou das fitas para aqui. Mas não vá você pensar maldade. Olhe que eles nunca me fizeram mal nenhum. Só que enchem as lojas, enchem as ruas, enchem as casas que ainda estão boas e eu não percebo nada do que estão a dizer uns para os outros. Nem os entendo quando falam para mim, mesmo quando querem falar em português. Têm que repetir duas ou três vezes. Mas ainda não lhe falei dos ciganos. Às vezes aparecem por aí e fico a ver os gajos. Toda a gente sabe que eles são faquistas, mas acho que eles se cortam um bocado com medo dos paquistãos. Eles já lhes devem ter feito alguma, que, agora, até os cheiram ao longe. Quando eles aparecem por aqui, em grupo, avisam-se uns aos outros. É o que me parece. Juntam-se à porta de uma loja a vigiá-los e é blá-blé-blé-blóbló, a falar •

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entre eles, a vê-los passar. E dois ou três falam nos telemóveis. Aquilo deve ser a avisarem outros lá mais à frente. Mas olhe que são ciganas e ciganos, assim mais afiambrados, que compram, aqui, muita coisa aos chineses. Metem tudo em sacos pretos, grandes e lá vão carregados que nem mulas. Devem ir vender, depois, isso tudo nas feiras. Isto tudo foi por causa de falar na polícia. Não os vejo, mas já me disseram que andam por aí à paisana. Se os chamam, aparece logo a carrinha. A esquadra também não é muito longe. Mas esta não é gente de armar sarilhos. Eles querem é que os deixem trabalhar e ganhar dinheiro. Ainda ontem, o Belarmino Cordas e o Toino Fadista, ali no Largo, chamaram-me e perguntaram: – Olha lá! Ontem ouviste alguma coisa na televisão? – De quê? – perguntei eu. – Diz que a Câmara sempre vai fazer obras por aqui… Eu nã acredito. Obras nas casas? Só se for pintá-las por fora para os turistas não verem aquela podridão. Nas ruas, ainda vá que não vá. Mas se forem obras nas casas, o bairro fica sem o ar antigo… podre. E é assim que as pessoas que vêm cá gostam de ver. Ora, diga lá! É ou nã é? Quem não gosta são os que vivem aqui. Vir aqui “cheirar” e tal e coisa e depois ir embora, isso também eu! Obras? Nã!! Olhe que de todos estes bichos do Jardim Jalógico que vieram aqui parar, aqueles que eu gosto mais (você nem vai acreditar!) são… os chineses. É esquisito, não é? Mas, olhe que são os mais simpáticos. Não sabem, às vezes, dizer “bom-dia”, mas passam por mim, lá à porta de casa e riem-se p’ra mim. E dizem qualquer coisa que eu não entendo. E olhe que até me ajudam quando estou a levar coisas pelas escadas. Sem lhes pedir. Vivem no meu prédio alguns. Depois de a minha mulher morrer, dos nossos… só sou eu e um casal. Não me chateiam com barulhos, não andam bêbados e estão sempre a rir quando me vêem. As moças novas e as crianças têm um riso tão lindo, que, até, parece que riem com a boca, com os dentes, com os olhos e… até com as sobrancelhas. Não me ofereçam é da comida deles… Isto tudo anda por aí muito mal. Há muitos anos, fiquei espantado quando vi um homem, à noite, envergonhado, à procura de comida •

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num caixote de lixo. Agora, meu senhor, são mais que muitos. E de dia. E sem vergonha de serem vistos. A fome é mais forte. E, quando eu era rapaz, gozávamos com os velhotes, pobres e viciados no tabaco, que andavam à pirisca. Apanhavam-nas do chão e faziam cigarros de papel de jornal. Olhe, agora, é à porta das lojas, nos cinzeiros grandes, na rua. Já vi um rapaz, de uns trinta e tal anos, que tirava os filtros das beatas e, depois, com os dedos, desfazia-as para dentro dum saquinho de plástico. Isto está uma desgraça! Parece dos tempos da grande guerra, como contava a minha mãe. Você veio aqui por causa do fado ou não foi? Diga lá! Há fados e mais fados velhinhos, a falar do bairro e das ruas do bairro. E você, antes, já tinha estado aqui no bairro? Quer dizer: aqui há uns anos. Já? O fado! Eh! Eh! Eh! Eh! Antigamente, quando eu era mais novo, até o peito se me enchia de orgulho quando ouvia (mesmo na telefonia!) um fado a falar do meu bairro ou de uma rua do meu bairro. Não precisava ser a Amália. Podia ser um fadista qualquer, mesmo que não fosse conhecido. Agora?… Isto é tudo uma aldrabice! Mas continuam a cantar por aí, que eu ouço. Mas é de dia, aos sábados e aos domingos… Devem ter medo de vir p’ráqui cantar à noite… Agora… têm é que fazer fados a falar de chineses e de paquistãos… Você andou por aí quanto tempo? Vinte minutos… meia hora? Passou por muitas… vielas (como dizem os fados…) e quantas casas de fados viu? Dizia-me noutro dia um gajo que passou por aqui: – Mas canta-se fado nas tascas. – Tascas? Quais tascas? Há para aí umas coisas… Tascas? Tascas como no antigamente? Nã!!! Nã senhor! Aqueles gajos que estão lá mais para além, ao pé do rio… têm a mania que são os donos do fado, só porque estão à beira-rio (não sei porquê… até já nem há marinheiros…). Eles sim, é que tiveram ajuda da Câmara. Nós somos um bairro enjeitado. Enjeitado pela Câmara e pelo fado moderno. Ainda há para aí um velhote que canta umas coisas. Já não tem é força de peito, mas, depois de beber três copos de tinto, dá-lhe o jeito. Dá ares ao Marceneiro, com voz rouca, etc. e tal, mas o peito já não aguenta. Às vezes, quando puxa mais, para acabar, acaba… •

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mas é com um ataque de tosse. Se vierem as tais obras da Câmara, talvez lhe arranjem uma goela nova… Mas fique você ciente que nem toda a gente aqui pensa como eu. Nem a maioria. Olhe que se você for falar por aí com eles (ou com elas…), muitos, não sei se é por raiva, por inveja ou por causa do disco que já têm na cabeça há muito tempo, desde que nasceram, vão-lhe dizer que este é o bairro mais bonito de Lisboa. E, depois, falam-lhe, de certeza, na Capelinha, na Santa e não sei que mais. Olhe, a mim, com as beatas que lá andam à roda dela (que até parece que mandam na Santa, coitada!), aquilo mete-me nojo. Há que anos que não ponho lá os pés! Não é por causa da Santa, não senhora, que ela não tem culpa nenhuma, que Deus a abençoe! Olhe… a Câmara é que devia tomar conta daquilo tudo. E mandar lá como deve ser, pôr aquilo na ordem! Está com pressa? Pois! É só mais um bocadinho… só para lhe dizer que o meu bairro, é esta parte aqui de baixo, porque lá em cima é outro… O meu bairro foi, era o meu pai, o pai que não tive, que não tive e… que não conheci. Agora sou eu que não o conheço. Portanto, eu, que não tive pai, o meu bairro era onde me sentia bem e aconchegado. Desde rapazinho. Agora, o meu bairro já não existe. Não tive pai… e já não tenho mãe. E, depois de ter ficado viúvo, cada vez que penso nisso, mais sinto que sou… um ENJEITADO! Desculpe lá este… este… desabafo. Obrigadinho pela cerveja e desculpe lá… qualquer coisinha.

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