Eu sou bipolar

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Eu sou bipolar (con)viver com a doenรงa bipolar


Edição: edições Partenon ® Título: Eu sou bipolar – (con)viver com a doença bipolar Autor: António Portela Capa: Patrícia Andrade (com fotografia de Duarte Belo) Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, maio de 2015 ISBN: 978-989-99291-8-0 Depósito legal: 393077/15 © António Portela PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt


António Portela Colaboração de Maria Eduarda Colares

Eu sou bipolar (con)viver com a doença bipolar

Assuntos pertinentes para doentes bipolares e outras perturbações mentais



Agradecimento A toda a minha família que me acompanha e ajuda. Em particular à minha Mãe, à minha amiga Teresa Belo – sem o seu empenho este livro não seria possível – e ao meu médico, que muito considero, Doutor António Trigueiros.

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ÍNDICE Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 I. Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 II. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 1º capítulo: Definição. No que consiste a doença bipolar . . . . . 35 2º capítulo: Mania e depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 3º capítulo: Delírios, alucinações, vozes e números . . . . . . . . 67 4º capítulo: Sintomas e sinais de mania e depressão . . . . . . . . 79 5º capítulo: Sintomas e sinais de delírios, alucinações e vozes . . . 91 6º capítulo: As vozes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 7º capítulo: A doença do acreditar . . . . . . . . . . . . . . . . 107 8º capítulo: Grandes medos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 9º capítulo: Pressão e stress . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 10º capítulo: Saúde mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 11º capítulo: Textos pessoais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 12º capítulo: O que fazer perante a doença . . . . . . . . . . . 167 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Índice de figuras, gráficos, quadros e esquemas . . . . . . . . . 179

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Prefácio António Portela escreveu um livro sobre a doença que alterou o rumo da sua vida. Podemos pensar a doença como um disfuncionamento dos mecanismos reguladores conduzindo a uma rotura mais ou menos acentuada e prolongada com o próprio e com a vida. A possibilidade desta rotura é inerente à nossa existência. O processo terapêutico passa por uma tomada de consciência da patologia. Trata-se de um percurso de aprofundamento pessoal e elaboração e integração destas vivências, profundamente disruptivas, reconstruindo a continuidade de si próprio e da relação com os outros. Este livro documenta exemplarmente este processo procurando o António dentro de si as respostas, pesquisando informações científicas que sustentem a construção desta narrativa da vida, e simultaneamente projectando um futuro. Este livro é pois o resultado de um conseguido trabalho de mentalização e de criatividade que o António pretende partilhar com os leitores acreditando que pode servir de estímulo e reflexão a outros. António Lorena Trigueiros Médico Psiquiatra – Pedopsiquiatra Lisboa, Abril de 2015 11



I. APRESENTAÇÃO

Nasci em Lisboa, em 1978, e chamo-me António, mas os meus amigos tratam-me por Portela, o meu apelido. Isto, por si só, revela o que se esperava que fosse o meu percurso. Eu explico: como é de tradição nos colégios privados – e eu frequentei um colégio privado – os alunos irão completar os seus cursos superiores e virão a ser conhecidos socialmente pelo apelido, antecedido do respectivo Dr., Eng.º, Arquitecto ou Professor. Assim, o médico ou o advogado não será o Dr. António ou Pedro ou Paulo, mas sim o Dr. Portela, Soares ou Fonseca. Portanto, eu, tal como os meus colegas, estava destinado a completar a minha formação académica e ser conhecido pelo apelido, acompanhado pelo título. No meu caso tal não aconteceu, pois nunca cheguei a terminar o curso superior.

O MUNDO ANTÓNIO

Desde o início da vida escolar até aos 9 anos, frequentei a Escola João de Deus. Foram tempos despreocupados e felizes. Nada fazia 13


prever que uma transformação profunda iria condicionar toda a minha vida futura. Era uma criança alegre e divertida, que não gostava de matemática e que adorava os recreios, como a maioria das crianças. Preocupações, não as tinha, a não ser uma contínua que nos confiscava berlindes e carrinhos. Foi nesta época, aos 4 anos, que fui atropelado por um carro e fiz um traumatismo craniano grave. Acordei do coma apresentando poucas sequelas, o que se pode considerar um milagre. Não posso dizer que tenha visto uma luz muito brilhante ao fundo de um túnel, nem veio um senhor de vestes brancas falar comigo, mas não posso deixar de acreditar que sobrevivi por intervenção divina. É a minha crença. Durante um ano, fui obrigado a usar na cabeça uma espécie de capacete almofadado, tipo capacete de aviador. Ao longo desse período, senti-me excluído, posto de lado pelos meus companheiros de brincadeiras, um sentimento que voltaria a sentir mais tarde, como doente mental, em relação à sociedade. Ultrapassada essa fase, o meu percurso continuou de acordo com o previsto. Entrei para o Colégio São João de Brito, onde se prolongou a época dourada da minha vida, numa pré-adolescência despreocupada e feliz. Demasiado despreocupada, talvez. O meu professor de português do 7º, 8º e 9º ano, o Padre Caria, um excelente professor, elogiou sempre muito as minhas redacções, mas eu estava mais ocupado a olhar pela janela durante as aulas do que a dar atenção ao que se dizia. Despreocupação em excesso? Talvez. Inconsciência dos verdes anos? Quem a não tem! Tecnicamente chamaram-lhe défice de atenção e talvez ele tenha estado na origem do meu atropelamento. Sou, na realidade, extremamente distraído e só a ajuda rápida de um colega me impediu de voltar a ser atropelado, desta vez por um autocarro, quando tinha uns 15 ou 16 anos. 14


Nessas fases, entro num mundo só meu. O Mundo António. No Mundo António, posso passar todos os dias por uma mesma rua e ser absolutamente incapaz de dizer que lojas lá existem. Mas não era um mundo escuro, o mundo que eu criara para mim. Eu era divertido, engraçado, brincalhão. Conseguia o feito de pôr a turma toda a rir e isso deixava-me muito contente. Já os professores não partilhavam desse contentamento, o que me levou a somar três faltas de castigo, sendo uma delas porque a professora de matemática achou que eu estava a gozar com ela, o que não era sequer verdade. Três faltas de castigo davam, no colégio, direito a uma suspensão. Devemos aqui contextualizar o Colégio São João de Brito. Trata-se de uma instituição de excelência por causa da educação altamente responsável dos seus alunos. Tem as infra-estruturas e o pessoal docente capaz de motivar o aluno a aspirar a ser sempre melhor. Neste panorama, em plena responsabilidade, o colégio não poderia simplesmente mandar-me para casa com uma suspensão. Foi então proposto aos meus pais que a minha suspensão fosse convertida em trabalho ao serviço da escola, que incluía varrer as (enormes) instalações, trabalhar na cantina e servir os meus colegas. Isto permitiu-me perspectivar todo o trabalho desempenhado pelo pessoal do colégio e ter conhecimento do funcionamento de toda a instituição, por detrás das aulas. Resta dizer que não servi ninguém e não cozinhei nada. O pessoal do refeitório gostou de mim e era tratado com todo o carinho. Em vez de comer o que costumava levar de casa, passei uma semana a comer a comida do refeitório. E que refeitório! Dois gelados e dois sumos todos os dias e mais ainda, se eu pedisse ao pessoal. Que maravilha para um miúdo! Acabou por ser um bom negócio. Saí a ganhar. 15


Do 7º ao 11º ano não guardo grandes memórias. No 12º ano, fui transferido, por ter chumbado a matemática, primeiro para a escola oficial da Cidade Universitária e depois para o Colégio Moderno. Na escola oficial, tive o meu primeiro contacto com os alunos que não frequentam os colégios privados. Foi uma lufada de ar fresco. Conheci muitos jovens da minha idade, que me surpreenderam por serem mais indivíduos, com características próprias, e menos elementos de um grupo em que as características individuais se diluíam. Isso tornava-os pessoas muito mais interessantes. Em vez de um ou dois grupos, existiam tantos grupos quantas as necessidades de as pessoas se sentirem representadas – e havia uma grande diversidade de pessoas. Ali era possível ser-se diferente. O Colégio Moderno recebeu-me muito bem. Tudo o que posso dizer desta instituição de ensino é altamente positivo e dela e do tempo aí passado, guardo memórias preciosas e inesquecíveis.

O INÍCIO DOS PROBLEMAS

Aos 20 anos, concorri ao ensino superior e fui aceite no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão). Nessa época, eu não tinha adquirido ainda o grau de amadurecimento necessário para frequentar um curso tão difícil, numa faculdade tão exigente. Eu era ainda o António Brincalhão, que me encontrava como peixe na água nos cafés e convívios, mas que não se sentia minimamente motivado para a sala de aula. Hoje reconheço que este curso foi uma má opção. Teria sido mais adequado um curso técnico- profissional. Sem qualquer tipo de motivação, não me esforcei nada durante o ano todo, contudo propus-me ir aos exames de segunda época. 16


Passei todo o verão a estudar, sem férias nem um dia de descanso, de manhã à noite, só parando para comer. Não tinha os cadernos das aulas práticas nem teóricas de nenhuma cadeira, mas apenas as sebentas e a bibliografia. Isso significava não ter nada, visto que as sebentas continham toda a matéria, quer tivesse sido dada nas aulas, quer não e eu não sabia o que era matéria para os exames. Lancei-me na tarefa insana de estudar tudo, de desbravar todas as matérias que me eram completamente desconhecidas. E isto sozinho, sem o apoio de um professor, numa maratona completamente insensata, cuja meta eram os tão temidos exames de segunda época. Acabei por conseguir aprovação em cinco cadeiras. O problema é que para transitar de ano precisava de aprovação em seis. Chumbei. Terminados os exames, fui passar três dias ao Norte, para assistir às Feiras Novas, em Ponte do Lima, uma das maiores se não a maior festa tradicional do país.

O CURTO-CIRCUITO

Parti, portanto, para o Norte, com a ideia de descansar da maratona de estudo, de me divertir e descontrair. Não cheguei a gozar estas férias. Logo na viagem comecei a sentir o meu primeiro delírio. Era o início da doença bipolar. Gostava de ter engenho e arte para explicar exactamente no que consiste um delírio, mas, em boa verdade, não tenho. Ninguém tem. Honestamente, o delírio, a mania, a depressão são indescritíveis. Haverá sempre algo que ficará de fora de qualquer explicação que se tente dar. Sempre. O que eu procurei com este livro foi criar 17


uma aproximação à doença mental, reunindo as minhas experiências pessoais de 14 anos de doente bipolar, com a pesquisa efectuada em livros que li (e cuja bibliografia se encontra no fim deste livro), para que possa ser entendido por todos, doentes ou não. Mas a experiência em si e as sensações são impossíveis de transmitir e não se encontram em dicionário ou livro algum. São demasiado pessoais. Eu pergunto ao João como se sentiu com a morte dos pais e ele não saberá dar-me uma descrição exacta de como se sentiu. É impossível. Ele dirá que sentiu uma tristeza profunda. O que é uma tristeza profunda? É igual à minha tristeza profunda? Não é possível definir. O delírio que comecei a sentir na viagem prolongou-se pelos três dias que permaneci em Ponte do Lima, acompanhou-me no meu regresso a Lisboa e não mais me abandonou durante os quinze dias seguintes, até “acordar”. E, durante esses dias, a sensação era sempre a mesma: sofrimento. Conhecem o conceito de infinito? O delírio é sofrimento infinito. É a melhor forma que tenho para o definir. Durante o tempo que passei nesse meu primeiro delírio, olhava para a família e para os amigos e estava perfeitamente convencido de que eles me queriam matar. Sentia-me enclausurado num universo paralelo de dor e sofrimento onde, a cada minuto, julgava que ia morrer. Estive um ano, após o delírio, em repouso absoluto. Sem estudar nem trabalhar, sem fazer nada. Afinal, tudo tinha começado por eu ter ido além dos limites aceitáveis ao estudar para os exames. A pressão psicológica fora enorme. E, como dizem os americanos, burnout. Queimei os fusíveis. Na minha interpretação, essa foi a verdadeira origem da minha doença. O excesso de trabalho e de tensão. 18


A TRANSFORMAÇÃO

O António Brincalhão morreu. Em seu lugar surgiu o António taciturno, calado, que não se dava com ninguém e era visto como um ser anti-social, o que era verdade. Transitei para uma Faculdade menos exigente, para um curso mais prático, de Gestão Hoteleira, pensando-se que assim, sem pressão, tudo voltaria ao normal. Tive notas muito altas, inclusive um relatório de uma visita de estudo que me valeu um 20 e uma ida do reitor à sala de aula para me elogiar. Nada disto, contudo, me interessava. Encontrava-me em alerta máximo permanente contra a doença. Sentia a sua ameaça constante e um dia ela decide manifestar-se e tenho um delírio quando estava na Faculdade. Isso pôs fim a toda e qualquer ideia de estudos. Decidi trabalhar. Fui operador de caixa num supermercado, ajudante de cozinha, recepcionista e administrativo. Em qualquer destas funções fui um bom trabalhador, até que a doença voltou a insinuar-se, interferindo com as minhas prestações e levando-me a abandonar o trabalho. Fui para o fundo de desemprego e no Centro de Emprego, foi-me sugerido que tirasse um curso para melhorar as minhas possibilidades de arranjar trabalho. Inscrevi-me num curso de contabilidade com a duração de um ano, que frequentei quase até ao fim. E então voltei a adoecer. Uma das tragédias da minha vida foi escolher estudar e trabalhar em áreas para as quais não tenho qualquer aptidão. Um conselho que eu dou a toda a gente, jovens ou menos jovens, é que não insistam num caminho que não é o vosso. É pura perda de tempo. Ao 19


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