Cultura Portuguesa Oitocentista

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CULTURA PORTUGUESA

OITOCENTISTA Antologia CrĂ­tica

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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Cultura Portuguesa Oitocentista – Antologia Crítica organização e textos: António Martins Gomes paginação: Alda Teixeira capa: Patrícia Andrade 1.a Edição Lisboa, janeiro 2016 isbn: 978-989-8714-62-6 depósito legal: 402238/15 © António Martins Gomes

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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CULTURA PORTUGUESA OITOCENTISTA Antologia CríƟca

ÊÙ¦ Ä®þ Ê ã øãÊÝ:

António MarƟns Gomes (docente da FCSH/Universidade Nova de Lisboa – membro do CHAM)

ʽ ÊÙ Î Ý Ã ã øãÊÝ:

Cecília Barreira (docente da FCSH/Universidade Nova de Lisboa – membro do CHAM)

Fernanda Carrilho (FL/UL – doutoranda em Literatura de Viagens; docente do 3.o Ciclo e do Ensino Secundário; membro do CLEPUL e do CEC)

Miguel Filipe Mochila (FCSH/UNL – Mestre em Ensino do Português e do Espanhol no 3.o Ciclo e no Ensino Secundário; docente do Ensino Secundário)

Margarida Pereira (FCSH/UNL – Licenciatura em Estudos Portugueses)

Tiago Varanda (FCSH/UNL – Licenciatura em Estudos Portugueses)

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ÍNDICE

Preâmbulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I ͵ LIBERALISMO E ROMANTISMO 1822: ConsƟtuição PoliƟca da Monarchia Portugueza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1837: Archivo Popular (volume I) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

27

1837: O Panorama. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1845: Mendes Leal Junior, Os Tumulos: por uma Sociedade d’ArƟstas. . . . . . . .

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1846: Almeida GarreƩ, Viagens na Minha Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

65

1849: António Feliciano de CasƟlho, Felicidade pela Agricultura . . . . . . . . . . . .

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II ͵ REGENERAÇÃO E FONTISMO 1851: J. F. Henriques Nogueira, Estudos sobre a Reforma em Portugal . . . . . . .

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1871: Antero de Quental, Causas da decadencia dos povos peninsulares nos ulƟmos tres seculos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 1879: Teófilo Braga, Soluções PosiƟvas da PoliƟca Portugueza . . . . . . . . . . . . . . 119 1880: Teófilo Braga, “O centenário de Camões em 1880” . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 1881: Serpa Pinto, Como Eu Atravessei África . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 1884: José Falcão, CarƟlha do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

III ͵ DECADÊNCIA E PESSIMISMO 1890: Henrique Lopes de Mendonça, A Portugueza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 1890: Eça de Queiroz, “Novos Factores da PoliƟca Portugueza” . . . . . . . . . . . . . 167

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1890: Fialho de Almeida, Os Gatos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 1894: Guerra Junqueiro, “Balanço patrióƟco” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 1895: Oliveira MarƟns, “Ao leitor”, Portugal Contemporâneo (3.a ed.) . . . . . . . 195 1898: Sampaio Bruno, O Brazil Mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Dados cronológicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

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PREÂMBULO

O século XIX em Portugal é um período férƟl em revoluções políƟcas, sociais e estéƟcas, ao longo do qual a burguesia ganha maior protagonismo através da imprensa e da políƟca, as novas formas de ascensão social e económica. Por sua vez, o novo regime consƟtucional permite desmantelar uma organização feudal e clerical e fundar um Estado moderno e tendencialmente laico. A primeira parte da Antologia CríƟca designa-se “Liberalismo e RomanƟsmo” e enquadra as décadas iniciais da monarquia consƟtucional, período agitado por um grande confronto políƟco-ideológico. A primeira ConsƟtuição PolíƟca da Monarquia Portuguesa é o texto inaugural. Apesar da sua vigência fugaz, este documento decretado em 1822, e a parƟr do qual se assiste gradualmente a um maior equilíbrio social, assinala o fim do absoluƟsmo e legisla pela primeira vez os direitos e deveres do cidadão. Após a Convenção de Évora Monte, com a paz e a liberdade de imprensa restabelecidas, o jornalismo torna-se um poderoso veículo de propaganda ideológica. Os novos ơtulos, com técnicas mais avançadas, podem ser coleccionados e encadernados. É o caso do Archivo Popular (1837-1843), semanário cujo subơtulo – Leituras de Instrucção e recreio – propõe juntar o úƟl ao agradável numa linguagem acessível à burguesia e ao campesinato. Dos excertos aqui presentes, é de realçar uma crónica empenhada em denunciar a escravatura no Brasil através de uma impressionante descrição do mercado de escravos do Rio de Janeiro. A 6 de Maio de 1837, estreia-se O Panorama, cujo sucesso inicial se deve sobretudo a Alexandre Herculano, o seu redactor-principal. Este jornal de ideário românƟco e saber enciclopédico procura invesƟr na formação de uma 9

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sensibilidade patrióƟca e arơsƟca dos cidadãos, incuƟndo-lhes o amor ao seu património medieval; entre outras vertentes, regista o desprezo a que a arte góƟca estava votada, e promove a educação İsica como modelo de desenvolvimento saudável do cidadão. Uma década após ser decretada a criação de sepulcrários públicos, a inauguração do cemitério dos Prazeres, em Lisboa, traduz o progresso da burguesia e a crescente laicização urbana. Em Os Tumulos: por uma Sociedade d’ArƟstas (1845), Mendes Leal Junior descreve alguns jazigos erigidos à memória de quem repousa neste “jardim de pedra”, com a sua díspar ostentação de riqueza. Dos excertos incluídos, destaca-se o tom ultra-românƟco na dor e na saudade senƟdas, a fazer desta obra uma meditação agridoce sobre a brevidade da vida. Em Viagens na minha terra, Almeida GarreƩ temaƟza as consequências do rumo absurdo do vinƟsmo e opõe-se à sua feição capitalista e industrial. Nesta obra inaugural do novo romance português, o autor parte do Terreiro do Paço, onde outrora desaguavam as riquezas ultramarinas, e vai num vapor, Tejo acima, em busca das raízes da nação. Com a guerra civil e a políƟca cabralista em pano de fundo histórico, GarreƩ condena não apenas o Frade, mas também o liberalismo e a burguesia, materializados no Barão. No final da década de 40, António Feliciano de CasƟlho publica várias crónicas em jornal, coligidas mais tarde em Felicidade pela Agricultura. Imbuído de valores fisiocráƟcos, CasƟlho descreve a terra como fonte de riqueza nacional, denuncia as débeis condições de vida dos agricultores e defende o acesso desta classe à instrução primária para se obter a felicidade humana e o progresso social. A segunda parte da Antologia engloba a Regeneração e o FonƟsmo (1851-1888). A Regeneração, que Oliveira MarƟns designou como “nome português do capitalismo”, é o momento em que a nação se moderniza e aproxima dos padrões europeus, graças a uma injecção de capital estrangeiro. Com a políƟca rotaƟvista e a supervisão do ministro Fontes Pereira de Melo, fomenta-se a indústria e inauguram-se pontes e vias férreas. A economia cresce. Os Estudos sobre a Reforma em Portugal, de Henriques Nogueira, são publicados no início da Pax Regeneratoria. Neste opúsculo revolucionário, o patriarca republicano denuncia a ruína da nação sob orientação monárquica 10

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e defende a República, a “santa” padroeira que impõe os valores de liberdade, igualdade e fraternidade entre os povos. Outro tema incontornável nesta Antologia é a Geração de 70, cujo programa se enuncia nas Conferências do Casino: a Revolução como factor de agitação social, o republicanismo como anseio políƟco, o realismo como expressão da arte, o posiƟvismo como orientação ideológica, e o anƟclericalismo como reivindicação laica. Em Maio de 1871, Antero de Quental profere uma palestra inƟtulada “Causas da decadência dos povos peninsulares nos úlƟmos três séculos”, onde indica as origens do declínio ibérico e propõe a respecƟva solução políƟca, moral e económica. A questão políƟca é também destacada por Teófilo Braga, em dois textos desta Antologia: em Soluções PosiƟvas da PoliƟca Portugueza (1879), responsabiliza a monarquia pelo declínio da nação e apresenta a república como o patamar mais elevado do ser humano; em “O centenário de Camões em 1880”, assinala o entusiasmo em torno do jubileu do poeta, um efeito do espírito posiƟvista, e dá a esta efeméride uma aura patrióƟca, laica e republicana. A odisseia de Serpa Pinto deu origem à obra Como Eu Atravessei África (1881). Apesar de ser um romance, como o autor o designa, contém estudos, mapas, informações cienơficas e considerações de ordem políƟca, económica e ideológica, tais como o tráfico negreiro, a esterilidade de missões por culpa de alguns missionários, a ganância de muitos europeus, ou a conduta reprovável de determinados povos. Os excertos aqui apresentados descrevem um pouco da cultura africana e do seu modo de vida. Em 1884, José Falcão publica a CarƟlha do Povo. Redigido num esƟlo acessível e panfletário para doutrinar a “gente do campo”, com vista à sua emancipação, este bê-á-bá políƟco obtém sucesso logo no primeiro ano. Apesar de responsabilizar o regime monárquico pela crise, o ideólogo defende a implantação da República em Portugal por via eleitoral, sem sangue derramado. A úlƟma parte da Antologia inƟtula-se “Decadência e Pessimismo” e integra o momento finissecular, numa conjuntura de grave crise económica e de diversas manifestações, tanto contestatárias como derroƟstas. Perante o fiasco liberal, a década de 90 é esƟgmaƟzada pelo humilhante UlƟmato inglês. A marcha A Portugueza, com letra de Henrique Lopes de Mendonça, é uma obra criada no âmbito do senƟmento de revolta perante a dissipação do 11

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sonho africano, e torna-se rapidamente um instrumento capital na difusão dos ideais republicanos. Em Abril de 1890, Eça de Queiroz publica o ensaio “Novos Factores da PoliƟca Portugueza”, onde apresenta algumas ideias-chave dos “Vencidos da Vida” e antevê duas soluções políƟcas: ou uma “revolução de baixo” com a implantação da república, ou uma “revolução de cima” com um cesarismo monárquico. Os excertos aqui conƟdos são transcritos a parƟr do manuscrito original, descoberto nos cofres do BCP e doado à Biblioteca Nacional de Portugal em 2007. A postura críƟca políƟca e social de Fialho de Almeida levou-o à construção de crónicas interessanơssimas em Os Gatos, em cujas páginas miou pouco, arranhou sempre e não temeu nunca. Nesta Antologia, destacamos dois pequenos textos ilustraƟvos da modernidade da sua escrita sobre questões ainda bem actuais: a moda das aparências e do consumismo, e o repórter de jornal. O “Balanço patrióƟco” é, por sua vez, um texto políƟco que Guerra Junqueiro insere na primeira edição de Pátria, poema que narra a capitulação portuguesa ao UlƟmato inglês. Mais do que no próprio poema, o “Balanço” criƟca a dinasƟa briganƟna, faz a apologia de valores republicanos como o laicismo e o patrioƟsmo, e apela à mudança de regime políƟco. Em 1895, sai a terceira edição de Portugal Contemporâneo, obra onde Oliveira MarƟns examina a “chaga ascorosa” da monarquia consƟtucional. No prefácio, revela a situação de decadência nacional, agravada com a revolução no Brasil e o UlƟmato inglês, e reafirma o seu pessimismo ao referir que, apesar do progresso, a sociedade portuguesa vivia ainda de recursos externos e não do trabalho. Em 1898, vem a lume O Brazil Mental. Corroborando o pensamento anteriano e marƟniano, Sampaio Bruno conclui que a crise peninsular se deveu a uma estratégia económica errada: deixámos de viver da Índia e do Brasil, mas ainda não sabíamos viver de Portugal. Neste ensaio, o filósofo releva o sucesso da revolução de 1889 e do posiƟvismo na mentalidade brasileira, a prova de que o regime monárquico deve dar lugar à república, sinal do progresso social e da emancipação dos povos.

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Exceptuando alguns erros Ɵpográficos, foi manƟda a ortografia, a acentuação e a pontuação dos textos na sua edição original, o que permite o contacto directo com a especificidade da escrita oitocenƟsta, já em português moderno e bastante acessível à leitura.

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I LIBERALISMO E ROMANTISMO

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ConsƟtuição PoliƟca da Monarchia Portugueza (1822)

Introdução Na sequência da Revolução Liberal de 1820, os representantes da nação, eleitos para as Cortes Gerais Extraordinárias através de um sistema semelhante ao previsto na ConsƟtuição Espanhola (Cádis, 1812), elaboram os 240 arƟgos que compõem a primeira ConsƟtuição PolíƟca da Monarquia Portuguesa, decretada a 23 de Setembro de 1822. Apesar da sua efémera vigência de aproximadamente cinco anos em duas décadas (1822-1823 e 1836-1838), este documento apresenta um conteúdo imbuído do espírito iluminista e da ideologia liberal, assinalando, na conƟnuidade de outros exemplos europeus, o fim do “Quero, Posso e Mando” absoluƟsta e o início da monarquia consƟtucionalista, o regime primordial do Estado de direito e democráƟco. Como resultado da aplicação deste diploma reformador, Portugal assiste gradualmente à abolição de privilégios sociais e a uma distribuição mais equitaƟva dos poderes políƟcos: a nobreza e o clero perdem muitos direitos ancestralmente adquiridos e a burguesia ascende a um estatuto mais condigno com a sua cada vez maior importância social. A ConsƟtuição PolíƟca de 1822 está dividida em seis ơtulos: I – Dos direitos e deveres individuais dos portugueses (art.os 1 a 19); II – Da nação portuguesa e seu território, religião, governo e dinasƟa (art.os 20 a 31); III – Do poder legislaƟvo ou das Cortes (art.os 32 a 120); IV – Do poder execuƟvo ou do Rei (art.os 121 a 175); V – Do poder judicial (art.os 176 a 211); e VI – Do governo administraƟvo e económico (art.os 212 a 240). 17

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Para além da inesƟmável importância histórica deste documento jurídico, a ConsƟtuição PolíƟca de 1822 representa igualmente a necessidade de “oficializar” um novo estado de espírito na sociedade portuguesa. Nesta perspecƟva, ao iniciar o seu arƟculado com a enumeração dos direitos conquistados pelos cidadãos (muitos já contemplados na ConsƟtuição dos Estados Unidos da América de 1787, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), podemos considerar este texto como um produto mental de um tempo de convulsão social, em plena consonância com o lema da Revolução Francesa: “Liberté, Égalité et Fraternité”. Todo o Título I transmite o respeito pela vida humana, a contrastar com a repressão inquisitorial e a arbitrariedade judicial do anterior regime, e defende o ser humano como indivíduo, garanƟndo por escrito os primeiros direitos inalienáveis de todos os membros da comunidade portuguesa, tais como: liberdade, segurança e propriedade (art.os 1 a 6), liberdade de pensamento (art.o 7) e de imprensa (art.o 8), igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art.o 9), abolição da tortura, de vários casƟgos cruéis e infamantes e da confiscação dos bens pessoais (art.o 11), ou direito ao sigilo de correspondência (art.o 18). Por sua vez, os “escassos” deveres são enumerados num único arƟgo (19): cada cidadão deve ser justo, venerar a religião, amar e defender a pátria, cumprir as leis do Estado, respeitar a autoridade e contribuir para a despesa pública. O Título II define o território da nação portuguesa, reparƟda pelos cinco conƟnentes: Portugal e ilhas adjacentes, Brasil, e restantes colónias na África, Ásia e Oceânia. Curiosamente, este documento jurídico averba pela derradeira vez todo este vasto império, na medida em que o célebre “grito do Ipiranga”, dado por D. Pedro a 7 de Setembro de 1822, marca o início da perda das colónias portuguesas; a Carta ConsƟtucional (1826) já não contempla o Brasil como parte dos seus territórios ultramarinos, cujo processo de independência é retomado tardiamente no século XX e concluído em 2002 por Timor-Leste, o úlƟmo território sob jurisdição portuguesa. Apesar de todo o empenho dos redactores da ConsƟtuição de 1822 em dessacralizar o regime absoluƟsta, a declaração inicial do texto (“Em nome da Sanơssima e Indivisível Trindade”) e o monopólio da fé concedido à Igreja Católica Apostólica Romana, à excepção de cidadãos estrangeiros (art.o 25), 18

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revela ainda a aceitação tácita da velha e desejada aliança entre o trono e o altar. Só em 1911, já com a República Portuguesa, é legislada a separação do Estado da Igreja. A segunda parte menciona ainda que o Governo da nação é a monarquia cons tucional hereditária (art.o 29), os três poderes polí cos são independentes (art.o 30), e a dinas a reinante é da Casa de Bragança, sendo D. João VI o rei (art.o 31). O princípio da separação dos três poderes é especificado nos Títulos II, III e IV deste texto fundacional do cons tucionalismo português: o legisla vo pertence às Cortes; o execu vo ao Rei e Secretários de Estado, por si nomeados; e o judicial aos juízes. É de salientar a importância atribuída aos critérios para a definição dos eleitores dos deputados das Cortes e das respec vas eleições (art.os 33 a 74), um processo que, de início, apresenta inúmeras restrições aos cidadãos em função de factores como o poder económico, a literacia ou a condição familiar, mas que vai sendo cada vez mais alargado através do sufrágio directo e universal com que as democracias actuais se caracterizam. É ainda nesta mesma parte que nos apercebemos como ainda estão bem longe os tempos de reconhecimento social da mulher como cidadã por direito próprio1: se a condição feminina implica a sua exclusão do acto eleitoral, no caso da sucessão dinás ca o caso é, mutaƟs mutandis, idên co, uma vez que está prevista uma série de condições e limitações “se a sucessão da coroa cair em fêmea” (art.o 144). Neste sen do, podemos reforçar uma ideia expressa anteriormente: apesar das marcas ní das da forte dependência clerical, este documento legisla vo também dá início à dessacralização do poder, uma vez que o rei perde a autonomia legisla va e a autoridade régia passa a emanar a par r da nação (art.o 121). Deste modo, é contrariada a suprema e infalível “vontade de Deus”, e anulado o direito divino dos reis, teorizado pelo filósofo quinhensta Jean Bodin.

A primeira mulher autorizada, a tulo excepcional, a votar em Portugal acontece apenas em 1911, nas primeiras eleições do regime republicano. O sufrágio universal feminino teria de esperar ainda pelos cravos de Abril. 1

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Por úlƟmo, é de destacar a aposta estratégica da políƟca liberal na educação com vista à formação da cidadania, nomeadamente ao inscrever no texto consƟtucional a obrigatoriedade de criar escolas “em todos os lugares do Reino, onde convier,” para ensinar os jovens de ambos os sexos “a ler, escrever e contar, e o catecismo das obrigações religiosas e civis” (art.o 237). A sedição militar da Vila-Francada, ocorrida em Junho de 1823 por influência miguelista, irá suspender esta ConsƟtuição, sucedendo-lhe a Carta ConsƟtucional de 1826. Este documento, outorgado por D. Pedro IV e marcado essencialmente pela ConsƟtuição brasileira de 1824, é mais conservador: os direitos dos cidadãos deixam de constar no início e são relegados para o derradeiro arƟgo (145); o rei, ao adquirir o poder moderador, torna-se mais intervenƟvo no tabuleiro políƟco. Apesar de tudo, e mesmo conƟnuando a não permiƟr a liberdade religiosa, a Carta prevê já o direito à instrução primária para todos os cidadãos. A Revolução de Setembro de 1836 suspende-a, sucedendo-lhe a ConsƟtuição de 1838. Com a lenta introdução de medidas legislaƟvas, vai-se desmantelando uma organização de estrutura feudal e de dependência clerical, para se erguer um Estado moderno e cada vez mais laico, em cuja acção a burguesia vai reivindicando um papel intervenƟvo na acƟvidade políƟca, a nova forma de projecção social e económica. Assim, com vista à consolidação efecƟva do liberalismo e da monarquia consƟtucional, são tomadas medidas legislaƟvas por ministros como Mouzinho da Silveira e Joaquim António de Aguiar (também conhecido pelo “Mata-frades”), que, entre as décadas de 30 e 40, fazem aprovar um conjunto de leis para pôr fim a muitos direitos e privilégios da clerezia e da nobreza, nomeadamente a abolição do dízimo religioso e de impostos senhoriais (1832), a exƟnção dos pequenos morgadios, isto é, dos bens herdados exclusivamente pelo filho varão (1832), e a exƟnção das ordens religiosas, com a respecƟva nacionalização dos seus bens (1834). ÄãÌÄ®Ê Ã Ùã®ÄÝ ¦Êà Ý

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Bibliografia essencial: AAVV. 1822. ConsƟtuição poliƟca da monarchia portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional. C ã ÄÊ, Marcelo. 1968. ConsƟtuições portuguesas. 2.a edição. Lisboa: Verbo. M®Ù Ä , Jorge. 1994. As consƟtuições portuguesas: de 1822 ao texto actual da ConsƟtuição. 2.a edição. Lisboa: Verbo.

Excertos EM NOME DA SANTISSIMA E INDIVISIVEL TRINDADE AS CORTES GERAES EXTRAORDINARIAS E CONSTITUINTES DA NAÇÃO PORTUGUEZA, inƟmamente convencidas de que as desgraças publicas, que tanto a tem opprimido e ainda opprimem, Ɵverão sua origem no desprezo dos direitos do cidadão, e no esquecimento das leis fundamentaes da monarchia; e havendo outrosim considerado, que sómente pelo restabelecimento destas leis, ampliadas e reformadas, pode conseguir-se a prosperidade da mesma Nação, e precaver-se que ella não torne a cair no abysmo de que a salvou a heroica virtude de seus filhos; decretão a seguinte CONSTITUIÇÃO POLITICA, a fim de segurar os direitos de cada um, e o bem geral de todos os Portuguezes.

Titulo I – Dos direitos e deveres individuaes dos portuguezes Capitulo unico AÙã®¦Ê 1 A ConsƟtuição poliƟca da Nação portugueza tem por objecto manter a liberdade, segurança, e propriedade de todos os Portuguezes. 2 A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ella não prohibe. A conservação desta liberdade depende da exacta observancia das leis.

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3 A segurança pessoal consiste na protecção, que o Governo deve dar a todos, para poderem conservar os seus direitos pessoaes. 4 Ninguém deve ser preso sem culpa formada, salvo nos casos e pela maneira declarada no ar go 203 e seguintes. A lei designará as penas, com que devem ser cas gados, não só o Juiz que ordenar a prisão arbitraria e os officiaes que a executarem, mas tãobem a pessoa que a ver requerido. 5 A casa de todo o Portuguez é para elle um asylo. Nenhum official publico poderá entrar nella sem ordem escrita da competente Autoridade, salvo nos casos e pelo modo que a lei determinar. 6 A propriedade é um direito sagrado e inviolavel, que tem qualquer Portuguez, de dispôr á sua vontade de todos os seus bens, segundo as leis. Quando por alguma razão de necessidade publica e urgente, for preciso que elle seja privado deste direito, será primeiramente indemnizado, na forma que as leis estabelecerem. 7 A livre communicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo o Portuguez pode conseguintemente, sem dependencia de censura previa, manifestar suas opiniões em qualquer materia, comtanto que haja de responder pelo abuso desta liberdade nos casos e pela forma que a lei determinar. 9 A lei é igual para todos. Não se devem portanto tolerar privilegios do foro nas causas civeis ou crimes, nem commissões especiaes. Esta disposição não comprehende as causas, que pela sua natureza pertencerem a juizos par culares na conformidade das leis. 11 Toda a pena deve ser proporcionada ao delicto, e nenhuma passará da pessoa do delinquente. Fica abolida a tortura, a confiscação de bens, a infamia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis ou infamantes. 22

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12 Todos os Portugueses podem ser admiƟdos aos cargos publicos, sem outra disƟncção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes. 18 O segredo das cartas é inviolavel. A Administração do correio fica rigorosamente responsavel por qualquer infracção deste arƟgo. 19 Todo o Portuguez deve ser justo. Os seus principaes deveres são venerar a Religião; amar a patria; defendella com as armas, quando fôr chamado pela lei; obedecer á ConsƟtuição e ás leis; respeitar as Autoridades publicas; e contribuir para as despesas do Estado. Titulo II – Da nação portugueza, e seu territorio, religião, governo e dynasƟa Capitulo unico AÙã®¦Ê 20 A Nação portuguesa é a união de todos os Portuguezes de ambos os hemisferios. O seu território forma o Reino-Unido de Portugal Brasil e Algarves, e compreende: I. Na Europa, o reino de Portugal, que se compoem das provincias do Minho, Trás-os-Montes, Beira, Extremadura, AlemTejo, e reino do Algarve, e das Ilhas Adjacentes, Madeira, Porto Santo, e Açores: II. Na America, o reino do Brasil, que se compõe das provincias do Pará e Rio Negro, Maranhão, Piauhi, Rio Grande do Norte, Ceará, Parahiba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergippe, Minas Geraes, Espirito Santo, Rio de Janeiro, S. Paulo, Santa Catharina, Rio Grande do Sul, Goiaz, MaƩo Grosso, e das ilhas de Fernando de Noronha, Trindade, e das mais que são adjacentes áquele reino: III. Na África ocidental, Bissáo e Cacheu; na Costa de Mina o forte de S. João BapƟsta d’Ajudá, Angola, Benguella e suas dependencias, Cabinda e Molembo, as ilhas de Cabo Verde, e as de S. Thomé e Principe e suas dependencias: na costa oriental Moçambique, Rio de Senna, Sofalla, Inhambase, Quelimane, e as ilhas de Cabo Delgado: IV. Na Asia, Salsete, Bardez, Goa, Damão, Diu, e os estabelecimentos de Macáo e das Ilhas de Solor e Timor. 23

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A Nação não renuncía o direito que tenha a qualquer porção de território não comprehendida no presente arƟgo. 25 A Religião da Nação portugueza é a catholica apostolica romana. PermiƩe-se comtudo aos extrangeiros o exercicio parƟcular de seus respecƟvos cultos. 29 O Governo da Nação portugueza é a monarchia consƟtucional hereditaria, com leis fundamentaes que regulem o exercicio dos tres poderes poliƟcos. 30 Estes poderes são legislaƟvo, execuƟvo, e judicial. O primeiro reside nas Cortes com dependencia da sancção do Rei. O segundo está no Rei e nos Secretarios d’Estado, que o exercitão debaixo da autoridade do mesmo Rei. O terceiro está nos Juizes. Cada um destes poderes é de tal maneira independente, que um não poderá arrogar a si as aƩribuições do outro. 31 A dynasƟa reinante é da serenissima casa de Bragança. O nosso Rei actual é o senhor D. João VI. Titulo III – Do poder legislaƟvo ou das Cortes Capitulo I – Da eleição dos Deputados de Cortes Ùã®¦Ê 32 A Nação Portuguesa é representada em Cortes, isto é, no ajuntamento dos Deputados, que a mesma Nação para esse fim elege com respeito à povoação de todo o território Português. 33 Na eleição dos Deputados tem voto os Portuguezes, que esƟverem no exercicio dos direitos de cidadão (art. 21 22 23 24), tendo domicilio ou pelo menos residencia de um anno em o concelho onde se fizer a eleição. O domicilio dos Militares da primeira linha se entende ser no concelho, onde tem quartel permanente os corpos a que pertencem. 24

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Da presente disposição se exceptuão: I – Os menores de vinte e cinco annos; entre os quaes comtudo se não comprehendem os casados que verem vinte annos; os officiaes militares da mesma idade; os bachareis formados; e os clerigos de ordens sacras: II – Os filhos-familias, que es verem no poder e companhia de seus pais, salvo se servirem officios publicos: III – Os criados de servir; não se entendendo nesta denominação os feitores e abegões que viverem em casa separada dos lavradores seus amos: IV – Os vadios, isto é, os que não tem emprego, officio, ou modo de vida conhecido: V – Os Regulares, entre os quaes se não comprehendem os das Ordens militares, nem os secularisados: VI – Os que para o futuro, em chegando á idade de vinte e cinco annos completos, não souberem ler e escrever, se verem menos de dezessete quando se publicar a Cons tuição. 34 São absolutamente inelegiveis: I – Os que não podem votar (art. 33): II – Os que não tem para se sustentar renda sufficiente, procedida de bens de raiz, commercio, industria, ou emprego: III – Os apresentados por fallidos, em quanto se não jus ficar que o são de boa fé: IV – Os Secretarios e Conselheiros d’Estado: V – Os que servem empregos da casa Real: VI – Os extrangeiros, posto que tenhão carta de naturalisação: VII – Os libertos nascidos em paiz extrangeiro.

Titulo IV – Do poder execu vo ou do rei Capitulo I – Da autoridade, juramento e inviolabilidade do rei A

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A autoridade do Rei provem da Nação, e é indivisível e inalienavel.

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Archivo Popular (volume I – 1837)

Introdução Em 1641, logo a seguir à Restauração, surge o primeiro jornal português, com um extenso ơtulo: GAZETA, EM QUE SE RELATAM AS NOVAS TODAS, QUE OVVE NESTA CORTE, E QUE VIERAM DE VARIAS PARTES NO MES DE NOVEMBRO DE 1641. Esta “folha noƟciosa”, inaugural do nosso periodismo, era editada em Lisboa com alguma irregularidade e difundia as valorosas campanhas do exército português, a vida políƟca e administraƟva, bem como outras noơcias relevantes da nação e do estrangeiro. Apesar da sua aparição extemporânea no panorama europeu, a imprensa periódica em Portugal afirma-se sobretudo a parƟr de 1820, o ano em que a revolução liberal suprime a censura opressora do Estado e da Inquisição. Nos anos seguintes, surgem dezenas de jornais até se instaurar um novo conflito políƟco entre liberais e absoluƟstas, do qual resulta um decréscimo de publicações. Após 1834, com a derrota das forças miguelistas e a consolidação definiƟva do regime liberal, o jornalismo ganha um forte impulso: nascem novos ơtulos e aumenta exponencialmente o mais variado género de imprensa. É o caso do Archivo Popular, hebdomadário que vem preencher um hiato no mercado editorial, ao nível das suas caracterísƟcas singulares; o primeiro número surge a 1 de Abril de 1837, um mês antes da estreia de O Panorama, e termina no séƟmo volume, a 30 de Dezembro de 1843.

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Este “semanário pintoresco”, com sede em Lisboa na Rua Larga de São Roque (a actual Rua da Misericórdia), Ɵnha oito páginas, saía ao sábado, e o seu proprietário, em acumulação com as tarefas de redacção e Ɵpografia, era António José Cândido da Cruz (1804-1857), que se Ɵnha iniciado nesta área com a direcção de O periódico dos pobres (do n.o 1 – 30 de Setembro de 1826, ao n.o 72 – 31 de Março de 1848). O Archivo Popular patenteava, a começar pelo ơtulo, o seu espírito uƟlitário: podia ser coleccionado e encadernado por anos, tendo cada volume um índice de temas e autores abordados por ordem alfabéƟca, para facilitar e orientar as pesquisas do leitor. Por sua vez, o subơtulo – Leituras de Instrucção e recreio – anuncia a tentaƟva de conciliar o úƟl com o agradável de uma forma equilibrada, graças a uma original miscelânea temáƟca. No seu alinhamento editorial, o Archivo Popular opta por excluir a actualidade políƟca, apostando antes numa transmissão de saberes de índole enciclopédica através de uma linguagem acessível tanto a uma burguesia ávida de cultura como a um campesinato mais ilustrado. Neste senƟdo, muita da informação aqui divulgada tem um senƟdo práƟco e prende-se com os cuidados básicos a ter ao nível da saúde pública urbana e rural, ensinando nomeadamente a exterminar insectos, a afugentar formigas e ratos, ou a preparar um remédio contra a morrinha das ovelhas. Prestando atenção à saúde em geral, elucida como se faz um tratamento contra as picadas de abelhas, as formas de prolongar a vida, ou como se curam as verrugas; ensina ainda a fazer uma pomada caseira para feridas e chagas, enaltece as qualidades do enxofre para tratamento do reumaƟsmo, e explica o modo de aplicar sanguessugas ou cataplasmas contra a ciáƟca, à base de mel e cal viva. Sem esquecer a importância da puericultura, ensina a adormecer uma criança ou como se faz um remédio contra a tosse convulsa, à base de incenso, alfazema e rosas vermelhas, ingredientes muito mais eficazes do que a tradicional beladona. A alimentação, cada vez mais Ɵda em conta para as questões sanitárias, é também abordada no Archivo Popular aos mais diversos níveis, contribuindo com sugestões bastantes úteis: Ɵrar o ranço ao azeite, manter a carne fresca, conservar vários géneros alimenơcios, preparar e curar as carnes, Ɵrar o mau gosto ao peixe corrupto, fazer um excelente caldo a parƟr dos ossos, preparar 28

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um bom café, conservar o toucinho sem ranço, ou informar a gente do campo sobre os graves sintomas resultantes da ingestão de pão bolorento (cf. textos antologiados). Para melhor rentabilizar o sector primário da ac vidade económica, este hebdomadário disponibiliza um “catecismo” agrícola temá co, ensina a converter as ervas em estrume, difunde regras para diversas sementeiras e dá instruções para o cul vo do arroz e da papoila. Podemos ainda encontrar aspectos generalizados de actualidade cien fica, tais como as novas fontes de energia e as potencialidades do gás na iluminação pública (cuja inauguração ocorrerá em Lisboa onze anos mais tarde, a subs tuir o azeite), ou a astronomia, com a explicação de eclipses e as datas previstas de futuras ocorrências. Por sua vez, a zoologia é outra disciplina relevante para este semanário, sendo a vivissecção também aqui mencionada: a propósito da vitalidade de alguns animais e insectos, relatam-se algumas experiências macabras, tais como a tartaruga que viveu dezoito dias sem cabeça, o cágado que viveu durante seis meses sem miolos, o gafanhoto sem intes nos que mexia as pernas após cinco meses, ou o bicho do queijo preso com um alfinete sobre um papel durante onze semanas. De acordo com o moderno espírito român co, o historicismo e o exosmo são outras áreas do saber que também marcam presença nas páginas do Archivo Popular. Neste sen do, encontramos biografias de figuras notáveis como Mary Stuart, Lord Nelson, Nero ou Saladino; entre os heróis portugueses, estão Viriato, Duarte Pacheco e D. João II, cuja “inteireza de carácter” se antologia. Há ainda espaço reservado para a descrição de alguns episódios importantes, como a tomada de Santarém, ou até de monumentos, como o convento da Batalha, as ruínas de Cartago, e a mesquita do sultão Ahmed, em Constan nopla. Por sua vez, o Archivo Popular vem também testemunhar o crescente fascínio burguês por civilizações exó cas e culturas distantes, sendo vários os números a descreverem a magnificência oriental, a tradição mexicana, as mulheres albanesas e tártaras, ou os costumes mais extravagantes. Como exemplo, destaque-se a descrição de uma visita ao mercado dos escravos do Rio de Janeiro, onde “sе effeituava este trafico vil, e que tanto deshonra a humanidade”. Trata-se uma interessante exposição de factos que documen29

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tam os momentos iniciais da luta contra a escravatura no Brasil, e revela o empenho da imprensa na denúncia desta degradante exploração económica do homem pelo homem. O tema merece-nos algumas linhas. A escravidão no Brasil teve início no século XVI, quando os colonizadores portugueses começaram a usar a mão-de-obra africana no culƟvo do açúcar e na extracção do ouro. Após serem transaccionados como mercadoria, os escravos eram levados no porão dos navios negreiros em condições desumanas; à chegada eram novamente vendidos, sendo desƟnados às tarefas mais duras, em fazendas de açúcar ou minas de ouro, onde eram bastante maltratados. Em 1831, surge a primeira lei contra a escravatura no Brasil, proibindo o tráfico negreiro, mas a ordem foi ignorada tanto pelas autoridades como por comerciantes e proprietários de escravos. Em 1845, o parlamento inglês aprova o Aberdeen Act, lei vitoriana que autorizava a Marinha Britânica a arrestar todos os navios envolvidos neste tráfico em qualquer porto ou mar; em resultado desta pressão, a Lei Eusébio de Queiroz (1850) exƟngue o tráfico negreiro e ordena a expulsão de traficantes do território. Em 1885, a Lei dos Sexagenários concede a liberdade aos escravos com mais de 60 anos, e a Lei Áurea, três anos mais tarde, erradica finalmente a escravidão no Brasil. O relato do Archivo Popular, publicado seis anos após a promulgação da primeira lei anƟ-esclavagista no Brasil, confirma a manutenção deste infame negócio, e alude às duríssimas condições de alojamento, alimentação e saúde de centenas de escravos negros, muitos deles em idade jovem e quase todos marcados com ferro em brasa, sendo tratados e examinados como se fossem animais antes de serem vendidos (cf. texto antologiado, de 26 de Agosto). Incluindo algumas fábulas, epitáfios e histórias com moralidades, o Archivo Popular traz-nos ainda a nostalgia de um tempo distante da industrialização massificada da escrita e dos seus novos utensílios, ao encontrarmos receitas caseiras para fazer Ɵnta de escrever, entre outros conselhos práƟcos tais como: Ɵngir o marfim, socorrer um afogado, apagar os incêndios das chaminés, ou evitar o fumo das luzes acesas no seu quarto, por prejudicar as pessoas atacadas do peito. Na parte final de cada número, há sempre um pequeno espaço reservado para algumas anedotas, relacionadas essencialmente com a políƟca, o clero, 30

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a vida familiar, ou certas profissões. A valorizar o Archivo Popular, publicado ao longo de sete anos, e a jus ficar o seu segundo sub tulo – “semanário pintoresco” – encontramos várias estampas a preto-e-branco de cidades como Barcelona, Amesterdão, Glasgow, ou Malta, ou de monumentos como o Aqueduto das Águas Livres, o Templo romano, o Aqueduto de Évora ou o Kremlin.

Bibliografia essencial: T

, José. 1965. História da Imprensa Periódica Portuguesa. Lisboa: Portugália Editora.

Excertos AVISO SOBRE O PÃO BOLORENTO O costume que tem a gente do campo de fazer huma grande fornada de pão, que deve durar para oito e ás vezes quinze dias, nos faz hum dever de manifestar alguns accidentes produzidos pelo uso do pão bolorento: estes accidentes sao assaz graves para se confundirem com os simptomas de hum violento envenenamento. As creanças são as pessoas sobre quem parece obrar mais o bolor do pão. Os simptomas manifestão-se por congestões na cabеçа, colicas violentas, vomitos, sonolencia, e algumas vezes convulsões: o vomitar quasi sempre alivia, de modo que se deve provocar este effeito nos doentes, e conserva-Ios depois em hum regime calmante. O pão, principalmente o de milho, cria facilmente bolor, quando não he bem cozido, ou se guarda em logar humido. Deve pois haver o mais escrupuloso cuidado em cozer bem, e conservar secco hum alimento, que he a base do nosso sustento. Geralmente nos campos se cuida muito pouco das substancias alimentarias; e todavía este objecto merece bem a a enção dos chefes de familia. Quantos incommodos se experimentárão na saude, devidos ao bolor do pão, e que se a ribuão a mui diversas causas? N.o 1 – Sabbado, 1.o de Abril

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MEIO DE EVITAR O PREJUIZO DO FUMO DAS LUZES He bem sabido quanto o fumo da luz prejudica ás pessoas atacadas do peito, e sendo muitas vezes indispensavel conservar luz accesa no seu quarto, eis-aqui o meio de evitar o mal que o fumo lhes póde fazer. Molhe-se em agua limpa hum bocado de esponja de tres ou quatro pollegadas de diametro, e suspenda-se com hum cordel, ou de outro qualquer modo, por cima da chamma da lampada, ein altura sufficiente para que se nao queime. Esta esponja absorve completamente o fumo: mas he necessario ter o cuidado de a lavar bem em agua quente, todas as vezes que servir. N.o 6 – Sabbado, 6 de Maio

VITALIDADE DE ALGUNS ANIMAES Cortando-se a cabeça a qualquer animal quadrupede mammifero, ou a huma ave, todos sabem que os resultados sao fataes, pois que immediatamente se lhe segue a morte: porém não acontece assim com alguns individuos que parecem os mais inferiores da classe animal, pois nelles os golpes mais terriveis e fataes só passado muito tempo exercem influencia sobre as suas funcçôes vitaes. Lewenhoek teve onze semanas hum bicho do queijo pregádo com hum alfinete sobre hum papel, e apenas o largou fugio como se fôra no momento em que havia sido pregado. Vaillant apanhou hum gafanhoto do Cabo da Boa Esperança, e depois de lhe ter rado os intes nos, encheo-lhe o vácuo de algodão, e passou-lhe hum alfinete pela barriga; pois no fim de cinco mezes ainda mechia as pernas como no primeiro momento. Redi abrio a cabeça de hum cágado, e lhe rou os miolos; em breves dias se lhe formou huma pellicula que cobrio a ferida, e o animal viveo ainda seis mezes. Spalanzani rou o coração a tres lagartos, e logo que os largava saltavão pela casa fóra, e ainda todos tres erão vivos passadas quarenta e outo horas – Hum escaravelho a quem se tenha cortado a cabeça, posto sobre huma meza andará e conhecerá que vai cahir quando chega ás bordas. Huma tartaruga sem cabeça viveo dezoito dias. O coronel Pringle cortou a cabeça a algumas moscas de certa especie que ha em Africa; huma dellas viveo ainda quatro mezes, e outra seis, porém o mais singular he que as que guardou com as cabeças apenas lhe vivêrão alguns dias – Sabe-se que cortando sublmente a cabeça a hum caracol, elle se recolhe e deixa ficar por algum tempo na sua concha, e por fim lhe nasce outra cabeça, e vive como dantes. N.o 13 – Sabbado, 24 de Junho

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CATAPLASMA CONTRA A SCIATICA Tomão-se 8 onças de mel, sobre que se lança huma pouca de cal viva, e applica-se á parte doente. He excellente applicação a dores rheumaƟcas. N.o 8 – Sabbado, 20 de Maio

MODO DE APAGAR PROMPTAMENTE O FOGO QUANDO PÉGA NA FERRUGEM DAS CHAMINÉS Deite-se no brazido da chaminé hum punhado de enxofre em pó, e tape-se immediatamente com hum cobertor, ou outra qualquer coisa, toda a abertura inferior da chaminé, de modo que o fumo nao possa sahir para a casa; deixando apenas hum pequeno buraco ou abertura para dar passagem a huma corrente de ar, e conservar a chamma do enxofre. A ferrugem apagada sera demora começa a cahir toda em baixo, e o incendio acaba. Os incendios das chamines são frequentes, e assustão, e pódem ser perigosos: este meio de o exƟnguir he assaz facil; porém no momento nem tudo lembra. N.o 10 – Sabbado, 3 de Junho

REMEDIO EFFICACISSIMO CONTRA A TOSSE CONVULSA DAS CRIANÇAS O doutor Dohrri cita muitos casos em que curou promptamente a tosse convulsa das crianças com as seguintes fumigações, depois do uso inuƟl da belladona e outros medicamentos energicos. – Incenso 2 libras; bonjoim, e estoraque calamita, de cada coisa meia libra; flores d’alfazema e rozas vermelhas, de cada coisa 4 onças. Lança-se quanƟdade suficiente em hum brazeiro acceso, para que a criança fique envolvida no espesso fumo que procede da combustão d’estes ingredientes. N.o 15 – Sabbado, 8 de Julho

INTEIREZA DE CARACTER Tendo os piratas Francezes apresado um navio portuguez, que vinha carregado de ouro, marfim e outras preciosidades, mandou elrei D. João II, que entâo gloriosamente reinava, embargar todos os navios francezes que se achavão surtos nos portos de Portugal, como em represalia: acodirão logo os francezes, e promptamente resƟtuirão toda a carga do navio: feita a resƟtuição, mandou elrei averiguar se com 33

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effeio estava tudo no navio e do mesmo modo que antes de ser apresado; vierão-lhe diser que faltava hum papagaio. Nao quiz elrei que se levantasse o embargo sem que apparecesse o papagaio, dizendo: “que naquelle caso nao se tratava da res tuição de roubo, mas sim de desafrontar a handeira portuguesa ultrajada; e por tanto era necessario que a sa sfaçâo fosse escrupulosa e cabal. “Admiravel inteireza de caracter que fez entâo o nome portuguez respeitado, quanto seus maravilhosos descobrimentos o havião feito glorioso. N.o 17 – Sabbado, 22 de Julho

MODO DE CONSERVAR O TOUCINHO SEM RANÇO O seguinte methodo de conservar o toicinho he tanto mais u l, quanto he simples, facil, e pouco custoso. Depois de ter o toicinho estado dezesete dias com o sal, em huma caixa de madeira para esse fim preparada, faz-se huma cama de feno no fundo, evai-se-lhe me endo o toicinho em grandes pedaços envolvidos em feno, de modo que cada peça fique bem separada da outra por huma camada de feno. Depois de estar a caixa ou salgadeira cheia, ataca-se bem com feno, põe-se-lhe a tampa, e guarda-se em logar secco. O toicinho assim conservado não ganha jámais ranço, e conserva hum excellente gosto. N.o 20 – Sabbado, 12 de Agosto

O MERCADO DOS ESCRAVOS Tendo chegado ao Rio de Janeiro, fômos visitar o mercado dos escravos, para vêrmos o modo por que alli sе effeituava este trafico vil, e que tanto deshonra a humanidade. Achámos centenares de desgraçados negros, quasi nús, arrebanhados nos armazens: nhão-lhes rapado as cabeças; e fazia estremecer vê-los todos accocorados no chão, ousando apenas mover-se. A maior parte dos expostos erão creanças, e quasi todos marcados com ferro em braza, e em geral essa marca havia sido applicada nas partes nobres: algumas raparigas nhão este cruel ferrete sobre os peitos!! Em consequencia da immundicie em que vem me dos a bordo das embarcações, amontoados e agrilloados n’huma parte da coberta; e tambem pelos máos alimentos que ahi lhes dão, que consistem apenas em hum bocado de carne salgada, toucinho, e farinha de pão, ou de feijão, estas miseraveis creaturas vem reduzidas á pele e osso, quando desembarcão; em breve todo o corpo se lhes enche de pequenas borbulhas, que arrebentão, e vão lavrando, tornando a final em huma só chaga. 34

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A miseria e a fome lhes faz perder o lusidio da pele, torna-se-lhe aspera e escamosa, e bem depressa aqueles desgraçados se podem mais comparar a animaes selvagens, do que a figuras humanas. Quando se vendem os negros, são examinados como se fossem cavallos; para lhes rar o ar melancolico, costumão misturar-lhes na comida pimentão, gengibre, e até tabaco; se isto não basta, quando se espera o comprador, chove-lhes em cima uma nuvem de sôcos, pontapés, e chicotadas, ou os espicação, como em nossas feiras costumão os lavradores fazer aos bois para os tornarem espertos. O dono da armação de escravos sahe fóra em procura de freguezes, e os offerece como se fossem generos ou mercadorias de commercio, assegurando e exaggerando a bondade da sua raça. Imediatamente faz levantar os negros, que o comprador designa, e com um açoute na mão os obriga a mostrarem a sua agilidade. Examinão-lhes os dentes, apalpão-lhes fortemente as espaduas e canellas, fazem-lhes em fim quantos exames he uso fazer-se aos cavallos. Desde o amanhecer até á noite encontrão-se milhares de negros ladinos vagando pelas ruas em procura de trabalho: os mercados e os cáes estão cheios delles, e nem hum só passo se pode dar pela cidade sem que venha logo hum negro pedir alguma cousa. Estes escravos sao obrigados a sustentar-se á sua custa, e a levarem á noite a seus senhores huma certa quan a, ordinariamente de huma a duas patacas, aliás sao cas gados: porém se ganhão mais do que a quan a pedida, isso pertence-lhes, e o vão ajuntando para pagar quando em outros dias não achão trabalho. Muitos senhores mandão trabaIhar os seus escravos nas pedreiras, outros os mandão em busca de bichinhos, os quaes hoje são mui procurados para ornatos de ves dos e grinaldas para senhoras. A sêde do ganho he tal que se tolerão, e até se promovem, as maiores indecencias com as escravas, com tanto que isso dê dinheiro. Arrancão-se os filhos ás pobres mãis; vendem-nos por cincoenta ou sessenta patacas; o dono dos escravos casa-os, e descasa-os a seu bel prazer, e vende quando lhe faz conta a mulher e o marido a diversas pessoas, de modo que muitas vezes não se tornão mais a vêr. E ousão ainda queixar-se, esses especuladores de carne humana, do empenho com que as nações cultas da Europa tem procurado abolir este vergonhoso trafico? “MeIhor era que se nao me essem com os negocios alheios, gritão elles; pois cada nação tem o direito de governar-se como quizer.” E nao tem todos o direito, se lhes responde, de advogar a causa da humanidade, e defender o fraco contra o oppressor poderoso? N.o 22 – Sabbado, 26 de Agosto 35

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TINTA DE ESCREVER Muitas são as receitas para fazer nta. Entre ellas as seguintes merecem a preferencia. Infunda-se em 1 libra e meia de agua da chuva ou de rio pura, 3 onças de galhas de boa qualidade peladas e cortadas em pedacinhos; exponha-se por dois dias ao sol, ajunte-se 2 onças de vitriolo de boa côr e pulverisado; misture-se tudo mexendo com hum páozinho de figueira, e exponha-se de novo por dois dias ao sol; ajunte-se entào 1 onça de gomma arabia, clara e luzidia em pó, e 1 onça de casca de roman. Ferva-se tudo a fogo brando, e engarrafe-se. Outra – Huma libra de nozes de galha, 6 onças de caparrosa verde, 6 onças de gomma arabia e 4 canadas de cerveja ou de agua. Pisão-se as galhas em hum gral, infundem-se рог vinte e quatro horas em agua quente sem ferver, e ajunta-se ao mesmo tempo a gomma arabia moida que se dissolve, e finallmente ajunta-se a caparrosa ou vitriolo verde pulverisado. Côa-se por huma peneira de crina. Outra que se faz em huma hora – Tome-se 1 onça de vitriolo romano, outro tanto de gomma arabia, e 1 onça e meia de nozes de galha pisadas; deita-se tudo em 10 onças de vinho branco ou de vinagre. Dentro de huma hora pode empregar-se. Convém aquecer o liquido hum pouco ao lume. N.o 26 – Sabbado, 23 de Setembro

ANEDOCTAS Hum ministro de bastante influencia na corte dizia a hum moço abbade, que lhe dirigía con nuos elogios: “Vós os pretendentes, em quanto tendes que pedir, sois mui prodigos de louvores; mas em vos apanhando servidos, só vos lembrais de nós para nos desacreditar. – Oh! não receeis que comigo tal aconteça: eu sempre tenho que pedir.” Sabido he que os jesuítas empregavão todos os meios para adquirir bens e riquezas. O rei de Polonia, duque de Lorena, conversava hum dia com dois destes padres na sua sala, quando chegou o seu mestre d’obras, que elle havia mandado chamar para perguntar-lhe como se poderia conseguir que o seu fogão não deitasse o fumo para a sala, “Nada ha mais facil, senhor, lhe respondeo o mestre d’obras: mandai pôr hum jesuita no alto da chaminé, porque he bem sabido que estes senhores a rahem tudo a si.”

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Hum bispo de Coimbra, querendo encommendar a hum amigo em Lisboa huma duzia de alabardas para os verdeaes2 da universidade, mandou ao seu secretario que escrevesse a carta, e este por descuido escreveo albardas em vez de alabardas. O amigo recebendo o aviso, fez logo apromptar a encommenda, e a reme eo para Coimbra. O bispo conhecendo o mo vo do engano, lhe escreveo por sua mäo: “Fico entregue das albardas, e posto nao serem o que eu queria, são mui bem mandadas e melhor merecidas: serão 6 para o meu secretario por escrever albardas em logar de alabardas; e as outras 6 para mim por assignar a carta sem a lêr.” Huma senhora, que nao passava por mui bem casada, perguntou a huma sua amiga de que meios se servia ella para viver tão bem com seu marido. – “Fazendo tudo o que lhe agrada a elle, lhe respondeo a amiga, e soffrendo com paciencia o que me nao agrada a mim.” Hum uzurario estava em ar gos de morte. O seu confessor o exhortava ao arrependimento de seus рeссаdos, e para fazer a sua exhortação mais pathe ca, lhe apresenta hum Santo Christo. O moribundo considerou-o fixamente, de modo que o confessor julgando-o tocado de devoção, lho entregou ás mãos. “Pouco vale, diz o doente res tuindo-lho; não posso emprestar sobre elle mais que meia moeda.” Hum sugeito, que havia do hum alto emprego na administração da fazenda pública, construia huma bella casa para sua habitação. Passando por alli certo cavalheiro do seu conhecimento, elle o convidou para ver as suas obras, e lhe foi mostrando sala por sala, fazendo-lhe observar o seu gôsto e magnificencia. Chegando ao úl mo andar, lhe perguntou: “E que me dizeis a esta agua furtada?” – Que he, lhe respondeo o cavalheiro, como todo o resto da casa.

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Archeiros que trajavam de verde. 37

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O Panorama (1837)

Introdução O jornalismo em Portugal nasceu da conjugação de três factores: o progresso da Ɵpografia, a melhoria das comunicações e das relações postais, e o interesse do público pela informação. Deste modo, o aparecimento do jornal não foi imediato face à invenção da imprensa com caracteres móveis. Em Portugal, começaram por aparecer, desde os finais do século XVI, impressos sem carácter regular que surgiam pontualmente para noƟciar acontecimentos importantes, a nível interno ou externo. No século XVIII, o poder da censura condicionou a cultura nacional, impedindo que a imprensa se desenvolvesse e ocupasse um lugar mais presƟgiante. Afinal de contas, como defende Joel Serrão, ela não era mais do que um “instrumento dócil ao serviço dos poderes consƟtuídos”. (Serrão 1979, 249). A ConsƟtuição de 1822 veio legislar a liberdade de imprensa, abolindo a censura prévia do Estado e da Inquisição. Inicialmente, os governos liberais proclamaram a liberdade de opinião, aumentando a diversidade de informação jornalísƟca. Porém, a censura acabou por regressar, provocando um declínio no número e na qualidade das publicações; segundo Joel Serrão, a nossa imprensa “vivia em estado de profunda apaƟa e [...] os jornais não Ɵnham qualquer vivacidade ou dinamismo.” (Serrão 1979, 249). Em consequência da paz restabelecida após a Convenção de Évora Monte, em 1834, e da promulgação da lei sobre a liberdade de imprensa, de 22 de Dezembro, são criadas condições para que o jornalismo se torne um 39

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