Revista intervenções nº 02

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Inter vençþes artes visuais em debate


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Reitor Rômulo Soares Polari Vice-Reitora Maria Yara Campos Matos Diretor do CCHLA Maria Aparecida Ramos Chefe do Departamento de Artes Visuais Liana Miranda Chaves EDITORA UNIVERSITÁRIA

EDITOR Robson Xavier da Costa CONSELHO EDITORIAL NACIONAL Drª Ana Mae Tavares Bastos Barbosa – ECA/USP – São Paulo Dr. Paulo Venâncio Filho – PPGAV/UFRJ – Rio de Janeiro Dr. Jorge Coli – PPGH/UNICAMP – Campinas Drª Lívia Marques Carvalho – DAV/UFPB – João Pessoa Dr. Erinaldo Alves do Nascimento – DAV/UFPB – João Pessoa Dr. Sebastião Gomes Pedrosa – CAC/UFPE – Recife Drª. Maria do Carmo Nino – CAC/UFPE – Recife

Diretor

Drª. Lêda Guimarães – PPGCV/UFG – Goiânia

José Luiz da Silva

Drª. Luciana Grupelli – PPGE/UFRGS – Porto Alegre

Vice-Diretor José Augusto dos Santos Filho Supervisor de Editoração Almir Correia de Vasconcellos Junior

Drª. Regina Maria Rodrigues Behar – PPGH/UFPB – João Pessoa Drª. Maria Virgínia Gordilho – PPGAV/UFBA – Salvador Drª. Maria Hermínia O. Hernández – PPGAV/UFBA – Salvador Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire – PPGAV/UFBA – Salvador Drª. Icleia Borsa Cattani – PPGAV/UFRGS – Porto Alegre Drª. Elisa Souza Martinez – PPGAV/UNB – Brasília Drª. Lúcia Helena Reily – PPGA/UNICAMP – Campinas Drª. Lúcia Gouveia Pimentel – PPGA/UFMG – Belo Horizonte Drª. Sônia Marques da Cunha Barreto – PPGAU/UFRN – Natal Dr. Rogério Medeiros – PPGAV/UFRJ – Rio de Janeiro Drª. Suzete Venturelli – PPGAV/UNB – Brasília INTERNACIONAL Dr. Fernando Hernández – Universidade de Barcelona – Espanha Drª. Marián Lopez F. Cao – Universidade Complutense de Madri – Espanha Dr. José Ramalheira Vaz – Universidade do Porto – Portugal


Inter venções artes visuais em debate Revista do Departamento de Artes Visuais da UFPB ano 2 e 3 | n. 2 | 2007/2008

Editora Universitária - UFPB João Pessoa 2009


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Intervenções: artes visuais em debate. Revista do Departamento de Artes Visuais da UFPB / Editor Robson Xavier Costa. – Ano 2 e 3, n. 2. - João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2009. 170p. Anual 1. Artes Visuais. I. Costa, Robson Xavier. – Edit.

UFPB/BC

C.D.U.: 7.01(05)

Imagem da Capa: A imagem da capa, intitulada Nausea, corresponde a uma escultura variável de grandes dimensões composta por mobiliário burocrático de aço e conjuntos de monotipias à maneira de Rorschach. Artista: JOSé RUFINO (João Pessoa, 1965) Vive e trabalha em João Pessoa – Paraíba – Brasil. Desenvolveu sua jornada artística passando da poesia para a poesia-visual e em seguida arte-pos tal e desenhos nos anos 80. O universo do declínio das plantações de cana-de-açúcar no Brasil conduziu seu trabalho inicial em desenhos (longas séries em envelopes e cartas) e instalações (Respiratio, Sudoratio, Vociferatio, Lacrymatio) com mobiliário e documentos de família e institucionais. Filho de ativistas políticos presos pela ditadura do regime militar brasileiro nos anos 60, o artista é também muito conhecido pelos seus impressionantes trabalhos de caráter político, como a grande instalação Plasmatio, primeiramente exibida na XXV Bienal Internacional de São Paulo (2000), e composta por mobiliário e grandes manchas de tinta à maneira das pranchas psicanalíticas de Hermann Rorschach, sobre cartas e documentos originais de desaparecidos políticos brasileiros. O diálogo dicotômico entre memória e esquecimento contamina seu trabalho completo. Instalações complexas têm sido elaboradas a partir de contextos institucionais, como portos (Laceratio) e estradas de ferro (Murmuratio). Como um grande “depósito de detritos de inundação fluvial” de mesas, escrivaninhas e cadeiras com raízes, “exumadas” (Léthe, 2006), sintetiza seu procedimento. Fez exibições em bienais (Havana, 1997; São Paulo, 2000; Mercosul, 1999; Venezuela, 1998, 2004; Ushuaia, 2007) e grandes exposições individuais (Museu de Arte Moderna, Recife, Brasil, 2003; Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, Brasil, 2004; Museu de Arte Contemporânea, Niterói, Brasil, 2004; Quimeras, Galeria Virgílio, São Paulo, Brasil, 2008.

Os textos são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB Caixa Postal 5081 – João Pessoa – Paraíba – Brasil CEP: 58.051-970 Impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito depósito legal.


Sumário

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EDITORIAL

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EDUCAÇÃO EM ARTES VISUAIS

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Outros olhares sobre a prática educativa em artes visuais Luciana Borre Nunes

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A influência da arte na formação do indivíduo: experiências em ONGs Lívia Marques Carvalho

33

Imagem e arte na educação de adultos: ver, fazer, falar e refletir num processo de alfabetização Valéria Fabiane Braga Ferreira

41

HISTÓRIA, TEORIA E CRÍTICA DE ARTE

43

O êxtase de Teresa: uma análise alegórica na Igreja do Carmo em João Pessoa André Cabral Honor

57

O movimento das artes plásticas na Paraíba: 1930-1945 Gabriel Bechara Filho

81

La intención paradójica del arte conceptual Mariela Brazón Hernández

91

A imagem e o imaginário das cidades brasileiras: dois momentos sob uma visão histórica Maria Berthilde Moura Filha

105

O universo poético-mítico de Raimundo de Oliveira: uma pequena revisão bibliográfica Nelia Dourado Gonçalves Maciel

117

Artes audiovisuais e invenções do cotidiano. Um estudo da teledramaturgia no ciberespaço Cláudio Cardoso de Paiva


131

História visual e historia oral: aproximações possíveis Robson Xavier da Costa

141

PROCESSOS CRIATIVOS EM ARTES VISUAIS

143

A escrita indecifrável na construção de uma poética visual Sebastião Gomes Pedrosa

151

Questões acerca do pesquisar em arte Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves

163

OS AUTORES

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NORMAS DE PUBLICAÇÃO


Editorial

Entregamos ao leitor o segundo número da Revista “Intervenções: artes visuais em debate”, equivalendo ao biênio 2007/2008, uma publicação do Departamento de Artes Visuais (DAV), do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como continuidade à publicação do seu primeiro número em 2006. A partir desse número a publicação conta com um conselho editorial internacional composto por pesquisadores vinculados aos principais programas de pós-graduação em artes visuais do país e pesquisadores colaboradores vinculados a programas de pós-graduação em artes visuais da Espanha e de Portugal. Seguindo o programa inicial proposto pela Comissão Editorial da Revista, publicamos nesse número resultados de pesquisas e estudos teóricos e/ou práticos no campo das Artes Visuais, vinculados principalmente a pesquisas desenvolvidas nos programas de pós-graduação em artes visuais e áreas afins. Essa publicação está articulada com o Projeto de criação do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais (nível de mestrado acadêmico) entre o Departamento de Artes Visuais (DAV) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em regime de solidariedade com o Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), projeto, que nesse momento está em fase de avaliação pela CAPES, visando sua futura implantação. Dessa forma, esse número da revista terá como foco pesquisas vinculadas as linhas de pesquisa desenvolvidas atualmente pelos docentes do Departamento de Artes Visuais da UFPB, Educação em Artes Visuais; História, Teoria e Crítica de Arte; e Processos Criativos em Artes Visuais. Na primeira parte da revista publicaremos três artigos vinculados à pesquisa em Educação em Artes Visuais, o primeiro da Pesquisadora Luciana Borre, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS - Porto Alegre, que discute a contribuição dos Estudos Culturais em Educação para a ressignificação do Ensino de Artes Visuais, no artigo intitulado “outros olhares sobre a prática educativa em artes visuais”. Em seguida a Profª. Lívia Marques Carvalho, Doutora em Artes pela ECA/USP e Docente do Departamento de Artes Visuais da UFPB, discute “a influência da arte na formação do indivíduo: experiências em ONGs”. A Professora Valéria Fabiane Braga Ferreira, mestre em cultura visual pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da UFG, faz a análise de uma prática pedagógica realizada no processo de alfabetização de adultos em torno de imagens, no artigo “imagem e arte na educação de adultos: ver, fazer, falar e refletir num processo de alfabetização”. Na segunda parte publicaremos sete artigos na área de pesquisa de história, teoria e crítica da arte. O Primeiro artigo de autoria de André Cabral Honor, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPB, que estuda a arte religiosa barroca como instrumento de doutrinação católico-cristã, no artigo “o êxtase de Teresa: uma análise alegórica na Igreja do Carmo em João Pessoa”. O Prof. Gabriel Bechara Filho, Doutor em Ciências Sociais pela UFBA e Docente do Departamento de Artes Visuais da UFPB, aborda a historiografia sobre o movimento artístico na Paraíba, no artigo “o movimento das artes plásticas na Paraíba:


1930-1945”. A Pesquisadora Mariela Brazón Hernández, Doutora em Artes Visuais pelo Programa de PósGraduação em Artes Visuais pela UFRJ, discute os aspectos comunicativos da Arte Conceitual, no artigo “La intención paradójica del Arte Conceptual”. A Profª. Maria Berthilde Moura Filha, Doutora em História da Arte pela Universidade do Porto – Portugal e Docente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFPB, discute os significados e o imaginário da arquitetura da cidade, no artigo “a imagem e o imaginário das cidades brasileiras: dois momentos sob uma visão histórica”. Nelia Dourado Gonçalves Maciel, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFBA, apresenta uma análise do universo da produção do artista plástico baiano Raimundo de Oliveira, no artigo “o universo poético-mítico de Raimundo de Oliveira: uma pequena revisão bibliográfica”. O Prof. Cláudio Cardoso de Paiva, Doutor em Sociologia pela Université René Decartes, Paris e Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFPB, faz uma análise das vinhetas de abertura das telenovelas brasileiras no artigo “artes audiovisuais e invenções do cotidiano. Um estudo da teledramaturgia no ciberespaço”. O Prof. Robson Xavier da Costa, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPB e Professor do Departamento de Artes Visuais da mesma universidade, analisa as relações metodológicas entre as fontes visuais e orais para o estudo da história, no artigo “história visual e historia oral: relações possíveis”. Na terceira parte da revista publicaremos dois artigos sobre pesquisa em artes visuais, o primeiro artigo de autoria do Prof. Sebastião Pedrosa, Doutor em Arte pela University of Central England – Birminghan – Inglaterra e Docente do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, intitulado “a escrita indecifrável na construção de uma poética visual”, analisando o uso da escrita como componente da obra artística contemporânea e a contribuição da pesquisadora Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves, Doutoranda em Artes pela UNICAMP, discutindo a relação artista/pesquisador, no artigo “questões acerca do pesquisar em artes plásticas”. Com esta publicação pretendemos contribuir com a produção, divulgação e publicação da pesquisa em artes visuais no Nordeste brasileiro, ampliando o espaço editorial e colocando em diálogo pesquisadores de todo o país. João Pessoa, 20 de novembro de 2008. O Editor


Educação em Artes Visuais


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Outros olhares sobre a prática educativa em artes visuais Luciana Borre Nunes*

Resumo Esta pesquisa apresenta um estudo sobre as contribuições dos Estudos Culturais em Educação para a ressignificação do ensino das artes visuais na escola, acreditando que o currículo escolar desempenha fundamental importância para a constituição de subjetividades através de sua prática educativa. Três questões emergem: como a linha de pesquisa dos Estudos Culturais em Educação pode proporcionar reconfigurações significativas sobre o ensino das artes visuais nas instituições escolares? Como o currículo escolar opera na produção de identidades e constituição de subjetividades? Quais as concepções de prática educativa na área das artes visuais presentes em uma instituição de ensino específica? Este texto é oriundo da pesquisa apresentada para conclusão do curso de Especialização em Planejamento e Gestão Escolar pela PUCRS, sendo de caráter qualitativo com abordagem do tipo documental, tendo nos planos de estudo das Séries Iniciais e da Educação Infantil a fonte material para a análise. Como relato das análises posso dizer que a instituição escolar pesquisada necessita de reflexões sobre sua prática educativa no que se refere às articulações com temáticas sociais atuais. Destaco ainda, que os questionamentos propostos pelos Estudos Culturais se tornam importantes para o constante repensar sobre o currículo escolar praticado pela escola. Palavras-chave: Estudos Culturais; prática educativa; currículo escolar.

Abstract This research presents a study about the contribution of the Cultural Studies on Education for the resignification of the scholar curriculum, believing that it plays fundamental matter for the constituition of subjectivities through its educational practice. Three questions emerge to the organization of this research in three chapters: how can the research teses of the Cultural Studies on Education, based by the post-ism, offer meaningful reconfigurations the scholar curriculum? How does the scholar curriculum work on the production of the identity and constitution of the subjectivities? What are the conceptions of the educative practice on the scholar curriculum in one specific educational institution? Because we neticed news social configuratios that are being signed by the contemporary social context. The research is qualitative with documental aproach, being the Pedagogical Politic Project and Study Plans the sourse of the analyses. As description of the analyses. I can affirm that the researched scholar institution is in need of considerations about its educative practice refering to articulations with nowadays socias thematics. I also point out that the questions suggested on the Key-words: Cultural Studies; educative practice; scholar curriculum.

1. Introdução Apresento um estudo sobre as contribuições dos Estudos Culturais em Educação para a ressignificação do ensino de artes visuais na educação de ensino fundamental. Três questões emergem para a organização deste texto: (1) como a linha de pesquisa dos Estudos Culturais em Educação pode

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Cultural Studies became more important to the constant rethinking about the scholar curriculum practiced by the school.

* Pedagoga formada pela UFRGS, especialista em Planejamento e Gestão Escolar pela PUCRS e mestranda pelo

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Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS. É professora de Séries Iniciais em duas instituições de ensino da rede privada de Porto Alegre. Também é autora de artigos e de pesquisas na área da Arte/Educação. E-mail: lucianaborre@yahoo.com.br


proporcionar reconfigurações significativas sobre o ensino das artes visuais nas instituições escolares? (2) Como o currículo escolar opera na constituição de subjetividades? (3) Quais as concepções de prática educativa na área de artes visuais presentes em uma instituição de ensino específica? Os objetivos para esta pesquisa foram: verificar as contribuições dos Estudos Culturais em Educação para a ressignificação do ensino das artes visuais na escola; refletir sobre o que o currículo escolar do ensino fundamental apresenta para o trabalho pedagógico na área das artes visuais, pesquisar quais as concepções de prática educativa em artes visuais de uma escola específica e promover o repensar sobre o processo educacional. Este texto é oriundo da pesquisa apresentada para conclusão do curso de Especialização em Planejamento e Gestão Escolar pela PUCRS, sendo de caráter qualitativo com abordagem do tipo documental, com os planos de estudo das Séries Iniciais e da Educação Infantil compondo a fonte material para a análise. Este estudo também representa as reflexões iniciais da pesquisa que está em andamento no Programa de Pós-graduação da PUCRS com o título A arte pósmoderna na escola moderna: práticas educativas em cultura visual. Os subsídios teóricos se encontraram na linha dos Estudos Culturais em Educação, tendo em Tomaz Tadeu da Silva (1995 e 1999), Marisa Vorraber Costa (2003) e Alfredo Veiga-Neto (2003) seus principais referenciais. E ainda, para refletir sobre a área da arte-educação apresento as concepções de Fernando Hernandez (2000).

2. Estudos Culturais em Educação - tramas pós-modernas Como a linha de pesquisa dos Estudos Culturais em Educação pode proporcionar reconceptualizações significativas sobre o ensino das artes visuais no currículo escolar do Ensino Fundamental, Séries Iniciais e Educação Infantil? Para seguir refletindo sobre esta questão, apresento brevemente o histórico dos Estudos Culturais e suas articulações com as concepções pós-modernas.

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Os Estudos Culturais articulam-se diretamente com reflexões referentes ao currículo escolar no momento em que combatem concepções tradicionais de cultura. O conceito de cultura como “tudo de bom” que a sociedade produz foi central para a educação moderna até que movimentos de diversos grupos sociais surgiram para combatê-lo. Por muito tempo acreditou-se que a educação era o caminho natural para “conquista” ou “elevação cultural” de um povo, favorecendo assim, a visão de que era necessária a busca pelo modelo ideal de cultura civilizada. Desta maneira, as discussões dos estudos sobre a cultura tornam-se importantes para a ressignificação de uma tradição escolar que ainda acredita e trabalha com uma suposta cultura erudita em detrimento da chamada cultura popular. Através de minhas vivências na prática pedagógica percebo que o trabalho com as artes visuais nas escolas demonstra esta concepção erudita, onde, por exemplo, a arte pode somente ser encontrada em espaços legítimos para tal, como museus ou exposições e que a interação com estes ambientes é destinada a determinados grupos sociais. Este é um dos motivos pelos quais as reflexões propostas pelos Estudos culturais se tornam relevantes, já que estes rompem com a dicotomia entre “alta e baixa cultura”. VeigaNeto amplia o aspecto histórico dos Estudos Culturais ao dizer que:


Foi só nos anos 20 do século passado que começaram as rachaduras mais sérias no conceito moderno de cultura. Os primeiros ataques vieram da antropologia, da linguística e da filosofia; e logo parte da sociologia também começou a colocar em questão a epistemologia monocultural. Mais recentemente, a poloticologia e especialmente os Estudos Culturais foram particularmente eficientes no sentido de desconstruir – ou, às vezes, no sentido até de detonar – o conceito moderno e nos monstrar a produtividade de enterdermos que é melhor falarmos das culturas em vez de falarmos em cultura. (2003, p. 11)

Os Estudos Culturais surgiram em meados do século XX, período pós-guerra, nos países britânicos, principalmente na Inglaterra, com grande expansão para os EUA, Austrália e Canadá. O movimento apresentou reviravoltas conceituais, pois questionava a centralidade de uma cultura que deveria ser almejada por todos os grupos sociais. Conseqüentemente, entender a cultura dividida em alta cultura e baixa cultura, cultura erudita e cultura popular passa a não ser tão natural nos meios sociais. Costa (2003, p. 36) diz que: “Cultura deixa, gradativamente, de ser domínio exclusivo da erudição, da tradição literária e artística, de padrões estéticos elitizados e passa a contemplar, também, o gosto das multidões”. A principal atribuição dos Estudos Culturais talvez esteja na reflexão ou desmistificação de uma tendência naturalizada de admitir um único referencial para os estudos da cultura. Inúmeros grupos sociais, como os negros, as mulheres e a classe operária iniciam discusões sobre suas atribuições na sociedade, passam a não aceitar o domínio de uma classe considerada superior e uma suposta submissão. Através de reinvidicações, questionamentos e atos públicos trazem para a discussão social as suas expressões, seu modo de viver e agir. Questionar o que era considerado alta cultura em detrimento de uma baixa cultura representa o marco das reflexões dos Estudos Culturais. Estes estudos assumiram a cultura considerada inferior e de massa, aqueles vistos como portadores de expressões não dignas de serem estudadas anteriormente, não dignas de estarem nas reflexões acadêmicas, aqueles que ainda deveriam se adequar a alta cultura para obter legitimação. Os Estudos Culturais acolhem os infames, ou seja, aqueles que não tem fama, a cultura da massa, os que precisam se adaptar para ganhar voz, que nos Estudos Culturais espaço e oportunidades para que sua voz seja escutada, buscando muito mais do que o respeito a sua cultura, buscando a legitimação, a valorização e a visibilidade. No contexto da educação, os Estudos Culturais pretendem refletir sobre questões referentes a escola e tudo aquilo que implica na constituição dos sujeitos envolvidos. Buscam questionar as práticas educativas e reestruturá-las através de constantes análises e problematizações. Percebem que diversas temáticas englobam o cotidiano escolar e que, por este motivo, a seleção de

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tem suas expressões culturais negadas e silenciadas durante a história. Tais grupos encontraram

assuntos a serem desenvolvidos no ambiente escolar podem ser arbitrárias se não questionadas constantemente e que diversos mecanismos de disciplinamento estão presentes na constituição de subjetividades. Costa (2003, p. 56) apresenta importante apreciação sobre a influência direta

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dos Estudos Culturais na educação brasileira:


Entre nós, no Brasil, as contribuições mais importantes dos Estudos Culturais em Educação parecem ser aquelas que têm possibilitado: a extensão das noções de educação, pedagogia e currículo para além dos muros da escola; a desnaturalização dos discursos de teorias e disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilidade de dispositivos disciplinares em ação na escola e fora dela; a ampliação e complexificação das discussões sobre identidade e diferença e sobre processos de subjetivação. Sobretudo, tais análises têm chamado a atenção para novos temas, problemas e questões que passam a ser objeto de discussão no currículo e na pedagogia. (2003, p. 56)

Problematizam situações usuais e que estão em voga, que estão acontecendo e merecendo discussão. Também não pretendem permanecer somente no campo das discussões, mas é através destas que acreditam que as transformações ocorrerão. Não buscam transformações bruscas, mas também tem a intenção de interferir no que é comumente aceito como natural, pois no momento em que é analisada (certa situação) já se criam mecanismos de transformações. Os Estudos Culturais inserem-se num campo ainda mais amplo que muitos autores denominam de pós-modernidade. Este se caracteriza por um período histórico no qual transitamos e que procura desmistificar ou problematizar tudo aquilo que é considerado natural na sociedade. As “grandes verdades” sociais já não caminham livremente entre nós sem passar por uma série de questionamentos. Estas são rompidas causando uma intensa sensação de desestruturação. As atuais abordagens das artes visuais ilustram muito bem o período histórico no qual vivemos. Demonstram com nitidez as transformações que a sociedade está passando. As expressões artísticas procuram desestabilizar nossas interpretações e sentidos. Um exemplo disto está na grande ênfase aos objetos do dia-a-dia que passam a ganhar e demonstrar valores que rompem com as nossas concepções naturalizadas, causam estranhamentos. Problematizar e romper com algumas tradições no ensino das artes visuais nas instituições escolares torna-se necessário devido às intensas transformações sociais que presenciamos. As artes visuais da contemporaneidade se apresentam de maneira diferenciada, elas desestabilizam emoções e percepções e evocam diferenciados sentidos. As artes visuais da atualidade apropriam-se de materiais e situações comuns para provocar nossos sentimentos e para que possamos ver o mundo com novos olhares. Torna visível tudo aquilo que nos passa despercebido. A arte contemporânea reflete aquilo que diversos outros âmbitos sociais apresentam, ou seja, demonstra a instabilidade e os conflitos das relações humanas.

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Por este motivo os Estudos Culturais em Educação apresentam a possibilidade de discutir as relações da arte visual com a escola, já que, geralmente, as práticas educativas nesta área ainda apresentam uma concepção tradicional e pouco valorizada no currículo escolar. Fernando Hernandez concorda que as artes são colocadas em posições desprivilegiadas nas escolas e ainda apresenta um motivo para tal: Diferentemente do que acontece com matérias provenientes de campos disciplinares de reconhecida presença no currículo, as matérias artísticas necessitam sempre argumentar o porquê de sua inclusão no currículo escolar. Entre outras razões, porque continuam parecendo um campo de conheci-


mento pouco útil diante de outros de garantia comprovada para conformar os elementos ideológicos para os quais a escola contribui. (2000, p. 43)

Estas concepções demonstradas pelas práticas educativas das instituições de ensino constituem as representações dos alunos e das alunas sobre as artes visuais. As maneiras de compreender o mundo são submetidas aos conteúdos selecionados como relevantes para a formação dos educandos e, por este motivo, merecem a discussão proposta pelo próximo item.

3. O currículo escolar constituindo subjetividades Através de suas narrativas e ações, o currículo escolar opera continuamente para a produção de identidades. A escola geralmente apresenta objetivos específicos para a formação de seus alunos e estes vislumbram a constituição de sujeitos que exerçam os valores de boa convivência, capazes de ascender socialmente. Seus objetivos, mesmo que inconscientemente, acabam por modelar formas de pensar e agir. Desta maneira, como o currículo escolar opera na produção de identidades e na constituição de subjetividades? A educação escolar atinge quase toda a população durante um longo período de tempo. A forma como a escola organiza suas atividades determina aquilo que seus alunos deverão aprender a conhecer e aprender a ser. Os conhecimentos que a escola acredita como importantes para serem desenvolvidos em suas atividades determinam o que os alunos aprenderão. É visível que inúmeros outros conhecimentos ficam “de fora” desta seleção do que é melhor ou de maior valor para ser ensinado. Com isto, o currículo escolar constitui, juntamente com a mídia, a família, a literatura, a música e outros âmbitos sociais, os chamados artefatos culturais, que são elementos sociais que contribuem para a composição de nossas identidades. Identidade se refere à forma como pensamos, agimos, como pensam de nós, como pensamos que

Discutir sobre o currículo escolar implica refletir sobre toda a prática educativa que envolve o cotidiano nas instituições e como estas ações se articulam para a formação dos sujeitos. O currículo é a prática de educação que circunda a escola, incluindo o que acontece fora dela. Tal prática inclui tudo que é realizado pela instituição através de seu pessoal e implica em tarefas muitas vezes percebidas como simples e despretensiosas, como a escolha daquilo que será trabalhado com os alunos, a forma de se avaliar o processo de aprendizagem, as atitudes realizadas durante as mais diversas situações, as técnicas utilizadas para o trabalho, os horários determinados, a configuração e organização espacial da sala.

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pensam de nós. Tem relação com os nossos desejos, anseios, perspectivas, pensamentos, modo de ser e agir, vontades e construções. A identidade é construída na relação social, somos produzidos por nossa família, pela escola, pela mídia, pela religião, pelo círculo de amizades, pela música e por toda esta rede de relações na qual estamos inseridos. Somos sujeitos culturais e é através disto que nos formamos. Woodward diz que: “A identidade é relacional”. (2000. p. 9)

Outro ponto importante para pensar o currículo escolar está na sua vinculação com tudo aqui-

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lo que está fora dos limites da escola. Ou seja, outras instâncias também são pedagógicas no


momento em que ensinam algo. Silva diz que: “Tal como a educação, as outras instâncias culturais também são pedagógicas, também têm uma “pedagogia”, também ensinam alguma coisa.” (1999, p. 139) Aquilo que é pedagógico é cultural e o que vem de aspectos culturais torna-se pedagógico. Isto é o que se chama de “pedagogia cultural”, onde o conhecimento escolar já não pode se limitar aos muros da escola. Silva diz que: “A forma envolvente pela qual a pedagogia cultural está presente nas vidas de crianças e jovens não pode ser simplesmente ignorada por qualquer teoria contemporânea do currículo”. (1999, p. 140) O currículo escolar diz qual o conhecimento é legítimo para ser desenvolvido. Escolhe o que acredita ser importante. Nesta escolha diversas outras opções acabam por ficar fora dos trabalhos em sala de aula. Desta maneira, um novo olhar sobre o currículo, faz-se então, necessário e importante para a reconfiguração das escolas na busca de uma educação que almeja a qualidade. Silva discorre sobre a concepção de currículo que abarca as necessidades atuais de compreensão: Assim, mesmo quando pensamos no currículo com uma coisa, como uma lista de conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente, aquilo que fazemos com essa coisa. Mesmo uma coisa como uma lista de conteúdos não teria propriamente existência se não se fizesse nada com ela. Como tal, o currículo não diz respeito tampouco apenas a idéias e abstrações que passam de mente em mente, mas a experiência, a prática... Por isso, é importante ver o currículo não apenas como sendo constituído de “fazer coisa” mas também vê-lo como “fazendo coisas às pessoas”. O currículo é aquilo que nós, professores/as e estudantes, fazemos com as coisas, mas é também aquilo que as coisas que fazemos fazem a nós. O currículo tem de ser isto em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). Nós fazemos o currículo e o currículo nos faz. (1995, p. 194)

Após pensar sobre o currículo escolar como constituidor de identidades, destaco que o trabalho

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escolar com a compreensão da cultura visual diz respeito a entender como as imagens estão presentes de diferentes formas em diversos lugares e tempos históricos e como isto se articula para formar nossas percepções de mundo. Estamos imersos em uma diversidade de imagens e não podemos ignorá-las como constituidoras de imaginários e de subjetividades. As imagens interferem em nossas visões e entendimentos do mundo. No próximo item tenho o objetivo de apresentar as concepções de práticas educativas em artes visuais de uma instituição de ensino específica e, a partir disto, realizar algumas considerações sobre tal.

4. Um novo olhar sobre o currículo de artes visuais – possibilidades e reconfigurações No presente item, apresentarei de forma sucinta as análises referentes aos Planos de Estudos das Séries Iniciais e Educação Infantil de uma instituição da rede privada de ensino, acreditando que estes documentos possam nos auxiliar na busca de reflexões sobre as concepções de prática educativa no ensino das artes visuais. Junto a isto relatarei possibilidades de reconfigurações que procurem atender as exigências que o contexto social atual nos apresenta.


Os Planos de Estudo são produzidos anualmente pelas professoras da escola e relatam a organização geral dos conteúdos que serão desenvolvidos com as turmas durante o ano. Primeiramente encontrei a grande ênfase dada à área de Português e de Matemática, em detrimento de outras áreas. Em todos os Planos estas disciplinas são apresentadas em primeiro lugar e com quantidade maior de conteúdos, estratégias de ação e habilidades previstas. É relevante pensarmos: quem determinou a importância destas áreas? Alguma vez isto foi questionado ou refletido? Isto pode nos dar pistas do que é privilegiado no trabalho pedagógico? É importante registrar que os Estudos Culturais propõem um novo olhar sobre as disciplinas que são consideradas como “as mais importantes”. Uma área não pode estar em privilégio sobre a outra, primeiramente, porque todas estão intrinsecamente articuladas e sua organização em campos separados torna-a descontextualizada. Silva colabora com tal argumentação ao dizer que uma área já não é vista em posição superior às outras: Uma vantagem de uma concepção de currículo inspirada nos Estudos Culturais é que as diversas formas de conhecimento são, de certa forma, equiparadas. Assim como não há uma separação estrita entre, de um lado, Ciências Naturais e, de outro, Ciências Sociais e Artes, também não há uma separação rígida entre o conhecimento tradicionalmente considerado como escolar e o conhecimento cotidiano das pessoas envolvidas no currículo. Ao ver todo conhecimento como um objeto cultural, uma concepção de currículo inspirada nos Estudos Culturais equipararia, de certa forma, o conhecimento propriamente escolar com, por exemplo, o conhecimento explicita ou implicitamente transmitido através de anúncio publicitário. (1999, p. 136)

Outro ponto importante foi verificar a ausência da área das artes nos Planos de estudo de duas séries. Isto origina questionamentos, como: o que será que se pensa sobre a expressão criativa do aluno? O que se trabalha nesta área? Será que a cultura visual está tão distante do cotidiano dos alunos que não necessita ser objeto de trabalho pedagógico? Acredito que a ausência das artes no planejamento anual para com as crianças reflete as concepções de professoras e professores que ainda acreditam que o ensino das artes visuais é um simples complemento a rotina de atividades “mais importantes”, um momento de “alívio” e de “descontração” que proporciona lazer. neira, o currículo sob a luz dos Estudos Culturais é o que pretendo propor. Questionar é premissa para compreender e praticar um currículo numa abordagem pós-moderna. Mais do que isto, estar sempre disposto a perguntar o porquê de certas escolhas para a abordagem em sala de aula, o porquê de se utilizar determinada obra, questionar qual a repercussão de tais escolhas e como elas podem estar se articulando para a constituição dos sujeitos envolvidos e neste caso, não só alunos, mas também professores, funcionários e familiares. Escolher um determinado assunto a ser trabalhado sempre pode ser uma posição arbitrária, afinal, na escolha de alguns temas outros são deixados de lado.

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Estes pontos apenas ilustram o “diagnóstico” realizado nesta instituição de ensino. Desta ma-

É importante refletir sobre os estudantes que atualmente encontramos nas salas de aula. Estes

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não são os mesmos de poucos anos atrás. Eles já não se calam diante de ordens, questionam constantemente, realizam inúmeras tarefas em sua rotina diária, apresentam inúmeros conhe-


cimentos sobre diversas áreas, interagem com novas tecnologias e querem muito mais do que tarefas vazias em significados e propostas que não apresentem resultados concretos. Estes novos estudantes não encontrarão as mesmas dificuldades ou oportunidades sociais de seus pais. Encontrarão uma nova forma de viver e perceber as coisas em geral. Green (1995, p. 209) indaga e reflete que as instituições escolares estão diante de uma nova geração de estudantes e esta apresenta novas formas de viver e estar presente na vida social: Estão as escolas lidando com estudantes que são fundamentalmente diferentes dos/das de épocas anteriores? Uma questão subordinada é: têm as escolas e as autoridades educacionais desenvolvido currículos baseados em pressupostos essencialmente inadequados e mesmo obsoletos sobre a natureza dos/das estudantes? Verifico “a emergência de um novo tipo de estudante, com novas necessidades e novas capacidades” (GREEN, 1995, p. 209). As crianças já não se interessam pelas mesmas coisas que em outras épocas, pois sua realidade social se reconfigurou. As crianças já não se sentem desafiadas e interessadas por listagem de exercícios, ou assuntos que elas apresentam conhecimentos mais aprofundados do que os desenvolvidos em sala de aula. Vivemos a chamada pós-modernidade, com estudantes que apresentam diferentes necessidades de formação. Com isto, cabe perguntar como a arte se apresenta neste contexto? E ainda, como uma proposta de ensino das artes visuais pode ser apresentada? Hernandez (2000, p. 123) diz que a arte é uma maneira de produção e reprodução cultural que deve ser compreendida num contexto social amplo e repleto de interesses e que a pós-modernidade, entre outras reflexões, abriu portas a importância de olhar a ‘arte’ como uma representação de significados. Este autor ainda afirma que o pós-modernista procura romper com os limites da arte da alta cultura e a cultura popular. A pertinência destas reflexões no trabalho cotidiano das escolas deve ser refletida pelos profissionais que pensam a educação das artes visuais, cabendo manter o constante questionamento sobre suas práticas educativas. Reconfigurações são necessárias para a promoção de uma educação que esteja contextualizada e pertinente às necessidades de seus alunos.

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5. Palavras finais Pretendi contribuir para que questões referentes ao ensino das artes visuais nas escolas sejam constantemente repensadas. Para tal, os Estudos Culturais em Educação sinalizam as possibilidades de reconfigurações no campo educacional que buscam atender as reais necessidades dos alunos da contemporaneidade. Neste momento, porém, mais do que concluir ou finalizar este trabalho, percebo que inúmeras questões surgiram a partir dele. Talvez isto demonstre que o assunto é inesgotável, justamente por que as relações sociais se modificam constantemente. Talvez por que seja impossível de-


marcar uma verdade ou um único olhar sobre qualquer questão ligada à educação ou por que diversos outros estudiosos, pesquisadores ou professores demonstrem opiniões e argumentações diferenciadas ao que aqui foi apresentado. No entanto, destaco que várias outras questões surgem por que uma definição sobre o que é melhor para se aplicar na prática diária das escolas torna-se impossível. Esta impossibilidade desestabiliza a todos, mas não fecha as portas para a busca de um caminho que privilegie uma educação de qualidade para os nossos alunos.

Referências COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos culturais, educação e pedagogia. Revista brasileira de educação. Cultura, Culturas e educação, maio/junho/ julho/agosto, nº 23, 2003. GREEN, Bill; BIGUM, Chris. Alienígenas na sala de aula. In: Silva, Tomaz Tadeu (org). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ______. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: Silva, Tomaz Tadeu (org.). Alienígenas na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1995. VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista brasileira de educação. Cultura, Culturas e educação, maio/ junho/julho/agosto, nº 23, 2003. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Silva,

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Tomaz Tadeu (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.


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A influência da arte na formação do indivíduo: experiências em ONGs Lívia Marques Carvalho*

Resumo O presente trabalho visa discutir a importância da arte na formação do indivíduo, tomando como referência o ensino/ aprendizagem de arte no âmbito das Organizações Não-Governamentais - ONGs, especificamente naquelas que se ocupam de crianças e adolescentes em situação de pobreza. Examina os fatores que concorreram para aumentar o crescimento dessas organizações no Brasil, descreve como se realiza o ensino de arte neste setor e analisa como e porque a arte pode favorecer a transformação pessoal e social dos educandos atendidos por essas instituições. As considerações feitas foram baseadas em um estudo de caso realizado em três ONGs da região Nordeste, além de pesquisas bibliográficas sobre o assunto. A análise dos dados indicou que a arte, quando ensinada de maneira consistente, contribui significativamente para o desenvolvimento integral dos educandos. Palavras-chave: Ensino de Arte. Organizações Não-Governamentais. Ensino não-formal. Reconstrução pessoal.

Abstract This work aims to discuss the importance of art in the development of individuals. This is done considering teaching/learning of art in the Non Governmental Organizations-NGOs, especifically those who deal with poverty stricken children and adolescents. The research deals with issues that motivate the increase of these types of organizations in Brazil and describes how art is taught in this environment. It also analyzes how and why art favors personal and social development of the subjects in these institutios. These considerations were based on a case study methodology realized in three different NGOs in the northeastern reagion as well as bibliographical research on the subject. Data analisys indicated that when art is taught in a consistent way, it contributes significantly for the integral development of these subjects.

* Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Bilbioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Especialista em Cultura Afro-Brasileira pela UFPB e Graduada em Educação Artística, Habilitação em Artes Plástica, pela UFPB. Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Coordenadora da Pinacoteca da UFPB. Foi Coordenadora do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, de 1999 a 2001. Assessora das Oficinas de Artes da Casa Pequeno Davi, uma Organização NãoGovernamental, atividade de extensão universitária, desde 1989. Autora de diversos artigos sobre ensino de arte, no âmbito Institucional e no Terceiro Setor em coletâneas e revistas especializadas. E-mail: lívia-mc@uol.com.br

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“A arte é a única coisa séria no mundo”. Essa é uma das sedutoras afirmações do escritor Oscar Wilde. Por sua vez, o pintor Mondrian julgava que a arte desapareceria na medida em que a vida adquirisse mais equilíbrio. Essas idéias, ainda que sejam considerações unilaterais, enceram em si o reconhecimento parcial da essência da arte e de sua necessidade. Sugerem, ainda, que a arte é, foi e sempre será necessária, visto que o equilíbrio entre o indivíduo e o seu meio, nem nas sociedades mais desenvolvidas pode ser presumido.

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Key-Words: Art Teaching. Non Governmental Organzations. Non Formal teaching. Personal Developmet.


A importância da arte no processo do desenvolvimento humano é um assunto que vem sendo debatido com mais constância desde o início do século XX. Os numerosos pontos de vista que ao longo dos tempos têm surgido sobre sua finalidade espelham as questões específicas de cada época, o papel da arte na sociedade e a função social da educação. Neste artigo, pretendo analisar a influência da arte na formação do indivíduo fundamentada no seu ensino, em setores não-formais, como é o caso das ONGs que atendem crianças e adolescentes em situação de risco1. Inicialmente irei discorrer sobre as circunstâncias que concorreram para a expansão dessas instituições em todo território brasileiro, em seguida passarei a discutir como e por que o ensino de arte provoca transformação no processo de formação desse público-alvo.

1. O cenário brasileiro O Brasil é conhecido por ser um dos países que possui uma das piores distribuições de renda do mundo. Ao mesmo tempo em que se situa como a 8a economia mundial, ocupa 63o lugar em termos de qualidade de vida2. Apesar de nos últimos anos o Brasil ter melhorado em alguns setores como a diminuição da taxa de analfabetismo e a elevação da expectativa de vida, nossa sociedade ainda vive polarizada por privilégios solidificados e carências profundas. As desigualdades sociais constituem, por si só, um grave problema porque impedem que uma parte expressiva de nossa população possa usufruir dos direitos mais elementares para sobrevivência do ser humano como a subsistência, a saúde, a habitação, educação e lazer. As desigualdades sociais ocasionam, ainda, a desintegração e a vulnerabilidade social, além de limitar nosso desenvolvimento como nação. Reduzir ou atenuar os problemas provenientes das distorções e desequilíbrios que afetam negativamente nossa sociedade vem desafiando, tanto os que se ocupam da elaboração de políticas públicas, como a sociedade em geral. A percepção de que apenas o Estado e o mercado não estão conseguindo reduzir as contradições geradas pelas desigualdades sociais influenciou para consolidar uma concepção de que a superação desses problemas exige a constituição de uma nova esfera, que não seja subjugada, nem aos interesses do Estado nem aos mecanismos do mercado. É nesse contexto que acontece no Brasil o crescimento, de maneira extraordinária, das atividades da sociedade civil organizada – o chamado Terceiro Setor3 –, principalmente das ONGs.

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Uma pesquisa realizada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelou que, entre os anos de 1996 e 2002, o número de ONGs cresceu 157%. Em órgãos oficiais como o Conselho da Comunidade Solidária há registro de 250 mil ONGs, atendendo a 9 milhões de beneficiários, empregando mais de 1,5 milhões de pessoas e contando com a participação de numerosos voluntários e empresas beneficentes4. A expansão dessas instituições no Brasil provém de uma combinação de fatores interpostos entre estes, a intensificação de uma crise econômica e social, surgida nas últimas décadas do


século XX, que agravou as desigualdades sociais, concorrendo para a elevação do número de reivindicações populares; a redução das ações administrativas do Estado, tornando-o menos eficiente para atender a enorme carência de prestação de serviços à população e ao padrão produtivo do mundo atual, globalizado, que requer, cada vez mais, qualificação para o trabalho, favorecendo assim os mais aptos e alijando os que não possuem escolaridade, preparo profissional e atitudes compatíveis. A expansão das ONGs decorre, ainda, do aumento da participação popular – um dos frutos da redemocratização do país –, que concorreu para a construção de uma nova postura da sociedade civil, que passou da esfera das denúncias e críticas para engendrar ações propositivas que pudessem melhorar a integração individual e social dos excluídos. Esta conjuntura contribuiu para que as ONGs se formassem e se mobilizassem para trabalhar em favor dos direitos de determinados grupos sociais. Elas têm se destacado pela utilização de metodologias e estratégias eficientes para atuar em favor dos direitos dos desprivilegiados. Entre as estratégias inovativas está a forma de associativismo praticada. Para atingir seus objetivos elas desenvolvem parcerias com diversas instâncias como governos, universidades, empresariado e outras entidades. Um dos méritos das ONGs é utilizar a educação continuada, visando à integração social e pessoal de seus público-alvo. O propósito não é ser uma alternativa à escola, mas agir paralelamente a esta, estendendo suas ações a dimensões que vão além das oferecidas no sistema escolar. De acordo com Gohn (1997), o maior número de ONGs no Brasil é voltado para o atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco. Isto é justificado pela dimensão que essa problemática vem assumindo no Brasil. Nas ONGs voltadas para esse segmento o ensino de arte é a diretriz principal dos projetos político-pedagógicos. Essa afirmação encontra respaldo em um levantamento realizado por Mary Castro (2001), pesquisadora da Unesco que organizou um banco de dados, englobando mais de 300 experiências brasileiras e constatou que todas as instituições utilizavam atividades artísticas em suas propostas pedagógicas.

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arte pode favorecer a reconstrução pessoal e a transformação social de indivíduos em situação de vulnerabilidade? Como professora de Arte e trabalhando por meio de projeto de extensão universitária desde 1989, na Casa Pequeno Davi, uma ONG da cidade de João Pessoa, me senti estimulada a estudar esse assunto. A análise do ensino de artes em ONGs foi o tema tratado ma minha tese de doutorado.5 A pesquisa realizada tomou como base um Estudo de Caso, envolvendo três ONGs da região Nordeste. As ONGs selecionadas foram: a Daruê Malungo em Recife, a Casa Renascer em Natal e a Casa Pequeno Davi em João Pessoa. Abaixo a descrição das instituições selecionadas:

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Porque as ONGs lançam mão do ensino de arte para alcançar seus objetivos? De que maneira a


O

ONG

s

Casa Pequeno Davi

Localização

João Pessoa

Público-alvo

Oficinas de Artes

Crianças e adolescentes de 7 a 18 anos

Artes plásticas; teatro, música,

de ambos os sexos, em situação de risco,

dança de rua, dança contem-

moradoras do bairro do Roger e circun-

porânea serigrafia, marcenaria

vizinhança. Total de 310 meninos/as

e arte em tecido

Crianças e adolescentes de 3 a 18 anos

d

de ambos os sexos, em situação de riso,

Música, dança, teatro e artes

a

moradoras da comunidade de Chão de

plásticas

d

Crianças e adolescentes de 7 a 18 anos

Daruê Malungo

Casa Renascer

o s

Recife

Estrela. Total 150 meninos/as

Natal

do sexo feminino, em situação de risco, moradores de Natal e região metropo-

Música, teatro e dança

litana. Total de 76 meninas.

para a pesquisa foram coletados por meio de questionários e entrevistas semi-estruturadas, aplicadas individualmente com todos os coordenadores, todos os educadores e a grupos focais de 10 adolescentes em cada ONG investigada. Foram examinados também, documentos oficiais, registros administrativos, folders e sites e outras publicações. Dados complementares foram obtidos por meio da observação. Ao longo dos anos em que venho acompanhando os trabalhos da Casa Pequeno Davi, anotei observações feitas em reuniões, oficinas, palestras, eventos, exposições, avaliações, em conversas informais com dirigentes, corpo técnico-administrativo, educadores, educandos e seus familiares. Esses materiais foram utilizados para desenvolver e enriquecer as análises e discussões. Adicionalmente, observei, também, o funcionamento habitual das outras ONGs selecionadas. A pesquisa comprovou que as atividades artísticas provocam, de fato, impacto e mudanças significativas nas vidas dos meninos e meninas atendidos por essas instituições. Vários benefícios foram mencionados como: o desenvolvimento da capacidade cognitiva; o desenvolvimento de habilidades e competências em determinadas modalidades artísticas; o favorecimento de atitudes positivas; a possibilidade de inserção no mercado de trabalho e a contribuição para efetivar os direitos das crianças e adolescentes. Entre os benefícios, o mais citado foi o fortalecimento da auto-estima positiva. A pesquisa realizada por Mary Castro, envolvendo 30 projetos sócio-culturais, em 10 Estados

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brasileiros, também reconheceu que a arte é um instrumento de transformação humana: Nessas pesquisas, a arte, o esporte, a educação e a cultura aparecem como um contraponto, elemento estratégico para enfrentar e combater a violência, para construção de canais de expressão alternativos, espaço a ser explorado, um incentivo aos jovens para afastarem-se de situações de perigo, sem lhes negar meios de expressão e de descarga dos sentimentos de indignação, protesto e afirmação positiva de suas identidades (CASTRO et alii, 2001, p. 19).


Nesse mesmo sentido, Vilanova, coordenadora pedagógica do Projeto Axé, afirma: Utilizam-se ainda as diferentes linguagens e manifestações artísticas como forma de despertar a consciência a partir de uma concepção dialética de ser humano e cultura. Não se reduz a arte a uma mera função cognoscitiva, a mera expressão de vivência emocional. A arte é, sobretudo, uma maneira de despertar para o autoconhecimento, para o processo de sentir de cada sujeito, além de apresentar-se como uma perspectiva de iniciação profissional ou mesmo profissionalizante (VILANOVA, 2000, p. 153).

2. Como e por que a arte favorece as transformações pessoais e sociais O processo educativo levado a efeito nas ONGs se diferencia muito do ensino formal. Enquanto nas escolas formais os conhecimentos transmitidos são sistematizados e organizados em uma determinada seqüência, muitas vezes distantes da realidade dos alunos, nas ONGs, os conteúdos são adaptados às demandas específicas de cada grupo e não há mecanismo de reprovação no caso de não aprendizagem. Em Educação não-formal e cultura política, Maria da Gloria Gohn (1999) menciona a importância

a liberdade, a flexibilidade e a possibilidade de construir os conteúdos de aprendizagem que sejam significativos para cada grupo. O compromisso principal do ensino é com as questões consideradas importantes para determinados grupos. Desse modo, a Daruê Malungo que atende a uma comunidade de maioria negra, deu preferência ao ensino da dança e da música afro-brasileira para transmitir uma herança e construir significados e, assim, resistir a preconceitos e outras formas de discriminações. Ao passo que a Casa Renascer que trabalha com meninas que entraram na prostituição infanto-juvenil ou estão em risco de seguir esse caminho, enfatiza o ensino do teatro porque, através dos personagens, elas expressam seus sentimentos, suas dores e alegrias, dando uma resignificação para suas vi-

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Assim, como é característica da educação nos espaços não-formal, as ONGs têm diante de si

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que a educação não-formal passou a ter no panorama mundial, a partir dos anos de 1990. A autora atribui esse fato às mudanças econômicas e sociais geradas pelo processo de globalização, ao aumento de estudos e pesquisas e reflexões teóricas sobre o assunto e ainda pela contribuição de agências e organismos internacionais como a ONU e a UNESCO. Considera, ainda, que os documentos elaborados na conferência realizada em Jomtien, Tailândia, em 1990, denominados, “Declaração mundial sobre educação para todos” e “Plano de ação para satisfazer necessidades básicas da aprendizagem”, contribuíram significativamente para a expansão do setor não-formal. Os documentos citados, no que se refere à América Latina, apontam para a importância de se estender a visão de educação e de ampliar os meios existentes, fazendo-se alianças, de modo a contribuir para universalizar o acesso à educação e fomentar a eqüidade. O trabalho de ONGs na área da educação é recomendado porque essas instituições, segundo Gohn, detêm know-how em metodologias e estratégias adequadas para revalorizar as culturas e conhecimentos existentes nas comunidades atendidas.


vências. O teatro possibilita, ainda, por meio de apresentações de peças teatrais, levar a público as temáticas discutidas nas oficinas, contribuindo, assim, para ampliar as discussões e reflexões sobre o assunto. Comumente as aulas de arte nas ONGs são ministradas em formato de oficina, com carga horária entre 6 a 4 horas semanais. Mesmo as mais pobres, dispõem de salas apropriadas, instrumentos e recursos adequados para cada modalidade de arte ensinada. Chama atenção o grande esforço para que os conhecimentos sejam transmitidos de maneira envolvente, prazerosa, de modo que os educandos se sintam apoiados e se mantenham atraídos e interessados em permanecer nas oficinas. Há um grande interesse, tanto em aperfeiçoar as habilidades técnicas, quanto em transmitir os conteúdos teóricos específicos de cada linguagem artística. Essa medida se explica porque a produção artística requer o domínio teórico e o domínio de técnicas e materiais específicos como equipamentos, ferramentas e instrumentos. Esse domínio possibilita aos educandos se tornarem aptos para criar e produzir com confiança, competência e qualidade estética. É exatamente a qualidade do que é produzido que os leva a se sentirem capazes, além de vislumbrarem a possibilidade de virem a se ocupar profissionalmente dessas atividades. Para Garcia (2001), os educandos dos projetos não-formais têm um comportamento diferente em relação ao seu esforço para realizar seus trabalhos, daquele, habitualmente encontrada nos ambientes escolares: Os adolescentes não querem brincar de fazer coisas, experimentar, mas querem construir e se constituir como sujeitos históricos. Não querem brincar de ouvir música, querem compor, tocar, cantar, constituir uma banda; não querem apreciar e desejar a capoeira, querem gingar; não querem construir cinzeiros de argila que trincam e se quebram, querem esculpir; e assim, não querem apenas consumir modelos, querem produzir e, nessa produção com qualidade se sentirem capazes de criação e, através disso, se constituírem como seres capazes. (GARCIA, 2001, p 155).

À medida que os educandos passam a manejar bem os elementos construtivos de cada arte, a

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expressar suas idéias com competência, tornam-se mais confiantes. A repetição sistemática de situações nas quais eles sejam bem sucedidos, à medida que passam a receber o reconhecimento no ambiente familiar e na comunidade em que vivem eles se sentem mais autoconfiantes. O reconhecimento social faz com que eles modifiquem a maneira de se autoperceberem e, conseqüentemente, fortalece a auto-estima. Para MOYSÉS (2001, p. 18): O autococeito é a percepção que a pessoa tem de si mesma, ao passo que a auto-estima é a percepção que ela tem do seu próprio valor... Como a própria palavra denota, o autoconceito procede de processos cognitivos. Ele é fruto da percepção que a pessoa tem de si mesma. Como todo processo de percepção, está sujeito a uma série de fatores externos e internos à própria pessoa. Informações que vamos colhendo aqui e ali, a nosso respeito, fruto de opiniões alheias, formam, possivelmente, os primeiros rudimentos do nosso autoconceito. A essas informações vão se somando aquelas ori-


ginárias das avaliações que nós próprios fazemos do nosso desempenho, das nossas ações, das nossas habilidades e características pessoais. Vão se formando, na nossa estrutura cognitiva, uma área de conhecimento acerca de nós próprios. Aquilo que achamos que somos, tanto do ponto de vista físico quanto do social e do psicológico, vai assim ganhando corpo.

A auto-estima é um aspecto bastante valorizado nas ONGs porque, de um modo geral, o público-alvo incorpora valores negativos e alimenta, sobre si mesmo, sentimento de desvalia. Como o processo educativo é baseado no fazer artístico, no processo de criação, os educandos são avaliados em áreas subjetivas, portanto menos cheias de dogmas, sem o critério de certo ou errado. E, é a partir do momento que eles passam a julgar-se aptos, a se reconhecer como competente em alguma área, a presumir “Eu posso”, “Eu sou capaz de”, que se inicia o processo de transformação pessoal. É a autoconfiança que vai impulsionar a esses meninos e meninas a terem sonhos, a fazerem projetos, a traçarem metas que possam resultar no seu desenvolvimento e na sua integração social. As atividades artísticas realizadas nas oficinas das ONGs são também uma oportunidade para que esses meninos e meninas possam expressar melhor suas idéias e sentimentos. A arte, por ser a concretização dos sentimentos e idéias em formas expressivas, transmite significados que só podem ser transmitidos pela arte e por nenhuma outra linguagem como a discursiva, por exemplo. São também oportunidades para que as crianças e adolescentes que vivem um cotidiano marcado pelas privações e a falta de horizontes possam brincar, criar, inventar, fantasiar, dar existência a um universo imaginário, propor novas realidades, conhecer emoções vividas por outros. Colocar a arte ao alcance de todos é de fundamental importância, visto que, a experiência artística favorece o desenvolvimento do indivíduo em todas as suas dimensões, porque envolve o sentir, o pensar, a razão e a emoção. A professora Anne Banford que coordenou para a UNESCO uma pesquisa internacional sobre a

Assegurar meios para que eles tenham acesso aos bens culturais, está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos fóruns internacionais que tratam das questões em prol da juventude é usual recomendarem a formulação e a implementação de políticas educativas que possam assegurar aos jovens de ambos os sexos, a possibilidade de criar e se expressar por meio de atividades artísticas, como está disposto na “Declaração de Lisboa”, fruto da I Conferência Mundial dos Ministros Responsáveis pela Juventude, realizada em Portugal, em agosto de 1998 (cf. CASTRO, 2001, p. 547-562). Os debates nesses fóruns têm levado os participantes, inspirados na filosofia dos direitos humanos, a concluir que o conhecimento sobre arte e o fazer artístico não deve ser considerado apenas como uma atividade complementar à formação, mas como um direito de cada cidadão.

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A arte é ainda ensinada nas ONGs para efetivar os direitos dos meninos e meninas atendidos.

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influência do ensino de arte em intituições formais e não-formais, em mais de 60 países, concluiu que há evidências consistentes e significativas de que, um programa de arte bem constituído contribui para melhorar a competência e habilidade em artes, além de contribuir para desenvolvimento de aspectos relacionados ao campo cognitivo dos alunos. (BAMFORD, 2006).


Assim, as instituições que desenvolvem trabalhos educativos em prol de crianças e jovens em situação de pobreza procuram acatar esse tipo de recomendação, principalmente porque consideram que a maior parte dos meninos e meninas que vive em situação de pobreza vem sendo privado de muitos de seus direitos fundamentais desde a primeira infância. A democratização do acesso aos bens culturais é muito importante, porque, em geral, esse segmento social mora em localidades desprovidas de equipamentos e serviços culturais. Além disso, a maioria, por limitações de ordem econômica, não tem acesso à produção artística e cultural a não ser as divulgadas pela mídia. Desse modo é necessário criar condições para que todos tenham acesso ao saber e à arte, pois a arte é sempre produto de uma cultura e de um determinado período histórico, além de revelar aspectos essenciais da condição humana. Por ser construída socialmente a arte é íntérprete de uma realidade social. A ampliação das referências estéticas cria condições para que os indivíduos desenvolvam a compreensão acerca do mundo e de si próprio, interpretem sua própria realidade e se posicionem criticamente diante dela. Na complexidade do mundo contemporâneo, como Ana Mae Barbosa vem insistindo, o saber interpretativo é tão importante quanto o saber científico, pois permite que o indivíduo estruture cognitivamente sua prática de vida a fim de transformá-la. (BARBOSA, 1997)

4. Considerações Finais A importância da arte na formação do indivíduo foi analisada tendo como referência seu ensino e aprendizagem em ONGs que atendem crianças e adolescentes em situação de pobreza. As considerações levantadas foram baseadas em um Estudo de Caso realizado em três ONGs, localizadas na região do Nordeste brasileiro, na Paraíba e nos dois Estados circunvizinhos. Saliento a extraordinária expansão do número dessas organizações em todo território brasileiro e discuto os fatores que concorreram para esse fato. Reconheço que o avanço dessas instituições resulta principalmente da adoção de meios apropriados para atuar ao lado de grupos com interesses e demandas específicas, nos quais as ações do Estado têm dificuldade para alcançar e não é do interesse dos setores privados. E, chamo a atenção para o fato de o ensino artístico fazer parte das diretrizes pedagógicas de praticamente todas as ONGs voltadas para esse segmento social.

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A pesquisa revelou que a arte é considerada nas ONGs um recurso de extraordinária importância para que estas realizem seus objetivos. Diversos propósitos foram apontados. Alguns são relacionados diretamente à área de arte como: socializar o acesso aos bens culturais, desenvolver habilidades e competências em determinadas modalidades artísticas e desenvolver a capacidade cognitiva. Outros são de ordem sócio-afetivos, direcionados ao desenvolvimento pessoal como: fortalecer a auto-estima, favorecer a obtenção de atitudes positivas, possibilitar a inserção no mercado de trabalho, inclusive fazer valer direitos que crianças e adolescentes devem ter. Entre esses propósitos, o mais enfatizado foi o fortalecimento da auto-estima.


O fortalecimento da auto-estima é uma condição considerada de valor fundamental para o trabalho das ONGs que atendem crianças e adolescentes em situação de pobreza, pois a condição de privação em que vivem e a dificuldade de se inserirem no meio social corroem a valorização de si mesmo e o amor-próprio. Necessitam, portanto, fortalecer as estruturas sócio-afetivas para que possam buscar seus próprios meios de superar as barreiras que os excluem. Para que o ensino de arte proporcione o desenvolvimento integral do indivíduo e contribua para o desabrochar de identidades mais seguras e confiantes é necessário que se estabeleça um programa de ensino de arte consistente e que considere as necessidades específicas dos grupos constituídos, de modo a proporcionar aos educandos competência e habilidade nas linguagens artísticas específicas. Realizar bem os exercícios pode contribuir para erguer a auto-estima. Ao se perceberem fazendo algo bem feito, recebendo aprovação, sendo aplaudido, valorizado, os educandos descobrem-se com competências em áreas que até então lhes eram desconhecidas. A repetição sistemática de situações, nas quais os educandos sejam bem sucedidos, termina por lhes elevar a auto-estima. A gratificação pelo reconhecimento social modifica a maneira como esses meninos e meninas se autopercebem. A crença em si e o se querer bem, estão relacionados à visão de futuro, à esperança, ao desejo de vir a ser. O ensino artístico apresenta-se, ainda, como uma possível iniciação profissional embora a inserção no mercado não tenha sido considerada o objetivo principal nas ONGs avaliadas. Esse aspecto está sempre presente, tanto na mente dos dirigentes e educadores quanto na dos educandos e seus familiares, tendo em vista a dificuldade desse segmento social quanto à inserção no mercado. A arte é vista também como uma questão de direito. Está determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente e é uma recomendação feita por organismos internacionais como a ONU. Uma vez que as ONGs se propõem promover os direitos de seu público-alvo, isso é mais um motivo para a inclusão de arte nos projetos dessas instituições. nessa situação, seu desenvolvimento pessoal estará comprometido e sob permanente ameaça. Acredito ser indispensável criar chances de integração social e, ao mesmo tempo, gerar condições que proporcionem a afirmação pessoal. Para enfrentar o desafio de oferecer possibilidades reais de reconstrução de um projeto de vida, é necessário empregar uma pedagogia, como a educação em arte, que tenha a força de interferir positivamente no plano da auto-imagem e da auto-estima e que estimule o educando a buscar o seu desenvolvimento como pessoa e como cidadão. A crença em si e o se querer bem, estão relacionados à visão de futuro, à esperança, ao desejo de vir a ser.

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A exclusão social penaliza toda uma geração de brasileiros. Enquanto crianças e jovens viverem

Os resultados revelaram que as atividades artísticas têm se mostrado eficazes para desenvolver

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auto-avaliação positiva, elevando assim a auto-estima. As atividades artísticas abrem um leque de oportunidades para os educandos, explorando e criando competências, permitindo conquistas reais, capazes de sustentar “um novo olhar sobre si mesmo”.


Notas 1

A expressão situação de risco tem sido empregada para referir-se a meninos e meninas, em geral de baixo poder aquisitivo, que sofrem privações das necessidades básicas e estão sujeitos a danos físicos, intelectuais, morais, emocionais e afetivos. 2

Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Terceiro Setor é uma expressão aplicada para designar um conjuto complexo e abrangente de intervenções da sociedade civil. Inclui as ONGs, os movimentos sociais, as organizações voluntárias e a participação da filantropia empresarial. 3

4

Fonte: Conselho da Comunidade Solidária.

5

Doutorado realizado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a

orientação da professora Ana Mae Barbosa. Concluído em 2005.

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Plantando Axé: uma proposta pedagógica São Paulo: Cortez, 2000.


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Imagem e arte na educação de adultos: ver, fazer, falar e refletir num processo de alfabetização Valéria Fabiane Braga Ferreira*

Resumo Construído em colaboração com vários atores, este projeto reúne ação educativa e pesquisa. A descrição e análise de um prática pedagógica realizada com adultos em processo de alfabetização é um dos objetivos do projeto. Outro, da mesma importância é refletir sobre vivências compartilhadas em torno de imagens, tanto em espaços de exposição de arte quanto em salas de aula. Palavras-chave: imagem, ensino, arte, alfabetização, adultos.

Abstract With the collaboration of different actors, this project congregates action and research. A description and analyses of pedagogical practice with adults undergoing the literacy process in a public school is the one of project objectives. Other equally important objective is to collectively reflect about shared experiences with images occurred in a contemporary art exhibition space and in a school classroom. Keywords: image, teaching, art, literacy, adults.

1. Apresentação Utilizando a investigação docente como abordagem, essa pesquisa examina experiências vividas com adultos em processo de alfabetização numa escola pública de Goiânia, privilegiando as ações de ver, ouvir, fazer e refletir em interação com arte e imagem. Vivências compartilhadas tanto em espaço de exposição quanto em sala de aula são registradas, descritas e analisadas. Entrelaçando estes focos, a pesquisa busca interpretar e compreender sentidos e significados que esses adultos dão às experiências vividas durante o projeto.

Sou Valéria, arte educadora. Meu interesse pela alfabetização começa em 1988. Desde então trabalho com crianças entre dois e oito anos de idade, na rede particular de ensino. Alfabetizar é parte do meu cotidiano. Comecei a pensar na possibilidade de trabalhar a alfabetização com outra faixa etária. Com a orientação e parceria de Irene, me aproximei de questões que acercavam o tema.

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2. Situando o tema...

* Arte-educadora, Licenciada em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais/UFG e Mestre em Cultura Visual

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pelo Programa de Pós-graduação na mesma instituição. E-mail: vafabiane@gmail.com.


Trabalhar com adultos, em idade além daquela formalmente instituída para alfabetização, significava conviver com um grupo em condição socioeconômica diferente daquela com a qual sempre havia trabalhado na rede particular de ensino. Trabalhar com um grupo de outra faixa etária, provocaria a necessidade de construir outras formas de ver, saber, informar-nos e interrogar-nos sobre alfabetização. Essas diferenças reforçavam a busca por caminhos e abordagens alternativas de interações cujos significados desconhecíamos. Curiosidade e desafio pavimentavam o desejo de expandir a compreensão sobre processo de alfabetização, de investigá-lo sob outra perspectiva, tanto social quanto cultural.

3. Escolhas metodológicas No caso desta pesquisa, a dimensão metodológica investigativa combina, a partir de uma perspectiva qualitativa, a pesquisa-ação e a pesquisa participante. De acordo com Gadotti, “a sua teoria [de Paulo Freire] da codificação e de-codificação das palavras e temas geradores (interdisciplinaridade) caminhou passo a passo com o desenvolvimento da chamada pesquisa participante”. (GADOTTI E FREIRE, 2005) Trabalhei, portanto, no cruzamento entre a pesquisa participante e a pesquisa-ação, com foco na ação conjunta de professora e alunos/as. A convergência entre essas duas dimensões, a pedagógica e a investigativa, não significa que o pensamento que guia uma ação pedagógica – uma metodologia – e aquele que acompanha a atitude inquiridora estejam desvinculados. A combinação destas duas dimensões metodológicas é tema de trabalhos que evidenciam a função do/a educador/a como investigador/a, privilegiando a pesquisa-ação/participante (COCHARAN-SMITH E LYTLE, 2002) como parte da docência. Com o intuito de esclarecer como estas metodologias se entrelaçam neste estudo, descrevo, a seguir, o contexto da pesquisa e a imagem que aquele ambiente gerou em mim durante o processo de investigação.

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4. Nas trilhas conceituais de Paulo Freire e Ana Mae Barbosa Para montar a base conceitual desta trajetória, busco Paulo Freire e Ana Mae Barbosa, cujas idéias propõem que “na teoria dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em co-laboração” (FREIRE, 2004, p. 165). Barbosa salienta a importância do diálogo no processo educativo caracterizando-o “como força reconstrutora” (BARBOSA, 2002) que pode ampliar e reconstruir relações. Assim tentei caminhar durante esta pesquisa, refletindo em co-laboração com os sujeitos que “contribuem com sua generosidade, com suas vidas” (HERNÁNDEZ, 2004, p. 13) para a concretização deste trabalho.

5. Sujeitos que fazem a pesquisa Os sujeitos desta pesquisa integram a turma que reúne 1ª e 2ª séries, no período noturno (Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos – EAJA). Eram onze pessoas, entre 28 e 64 anos, na sala de aula no primeiro dia (07/06/04). Em sua maioria, eram pessoas nascidas na zona rural, vindas


do interior de Goiás e de outros estados das regiões norte e nordeste. Moradores de bairros próximos à escola, eles exercem atividades diversas. Todos têm jornada de trabalho de mais de oito horas diárias. Não se conheciam até então apesar de freqüentarem a mesma escola e sala. Não sabiam de onde vinham e o que faziam. Na primeira etapa do projeto recebemos a colaboração de duas estagiárias do 4º ano do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), Guilhermina de Oliveira e Sandra Santana Silva, e do Coordenador da Galeria da FAV, professor Ms. Carlos Sena. Na etapa seguinte, também colaborou a mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, Naia La Bella. A participação de diferentes colaboradores/as reforça as opções metodológicas do projeto ao privilegiar a colaboração e a ação de diversos atores na construção de experiências que fazem convergir, a um só tempo, objetivos pedagógicos, culturais, sociais e educativos.

6. Percursos e processos No início do projeto a Galeria da FAV anunciou a abertura da exposição “Diálogos Possíveis 2”. Esta exposição interessava por se tratar de proposta que reunia, no mesmo espaço expositivo, obras de professores/as e alunos/as da FAV. A possibilidade de ver uma exposição onde trabalhos de professores/as e alunos/as eram colocados ‘em diálogo’ nos pareceu oportuna para intensificar o tipo de relação que também pretendíamos estabelecer. Iniciamos então um processo cujo objetivo era preparar a visita à referida exposição. A visita contou com a participação de todas as turmas do EAJA, de 1ª à 4ª série e não apenas a turma com a qual trabalharíamos posteriormente. Foram quatro encontros para concretizar esta primeira etapa: dois que antecederam a visita (com duração de trinta minutos cada), um para a visita à exposição e outro posterior à visita (com duração de quarenta minutos). que o projeto de pesquisa trabalharia com a turma inicial do EAJA, que no caso era uma turma seriada formada pela 1ª e 2ª séries. Esta turma tinha 15 alunos/as, alguns novatos na escola. Durante a segunda etapa do projeto realizei, no decorrer de dezesseis semanas, encontros semanais de uma hora com os/as alunos/as. Este período teve início em 07/06/2004 e término em 22/11/2004. Esta etapa inclui a visita à Exposição “Para ver de(s) perto”. A terceira e última parte do projeto foi denominada “Diálogos de Trabalho”. Os/as alunos/as foram receptivos a este convite e demonstraram interesse para o diálogo proposto. Nesta etapa foram realizados sete encontros/entrevistas com cinco alunos: três homens e duas mulheres que estiveram presentes na maioria dos 16 encontros da etapa anterior (junho a novembro de 2004). Ao negociar uma permissão para identificá-los como colaboradores/as neste estudo, decidiram

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Após esta primeira etapa, definimos, juntamente com as professoras e coordenador da escola,

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por não usar seus nomes reais. A criação de um nome fictício foi um momento especial em que todos opinaram, rindo e sugerindo nomes uns aos outros, inventando novos personagens. Conforme decidiram, foram chamados a partir daquele momento: Alfredo, Jeremias, Rivaldo, Alice e Fernanda.


7. Caminhos analíticos e interpretativos Relia as anotações buscando ênfases, relembrando e revendo as situações descritas, criando relações, buscando sentidos. As perguntas e interesses que no início da pesquisa eram muitas, foram aos poucos afunilando para duas questões: Como os sujeitos percebem e dão significado para experiências com imagem e com arte? Que vínculos criam entre as experiências artísticas e suas experiências de vida? A partir destas questões meu interesse convergia para as falas dos educandos/as. Destacando o papel da linguagem verbal nesse projeto interpreto as falas que evidenciam a relação dos educandos/as com o ver, o aprender/ensinar, e o fazer. As falas revelam envolvimento e valoração dos educandos/as em e com as ações do projeto. Conforme explica Arendt “ a ação sempre estabelece relações” (1995, p. 203). Na análise, atento para as reflexões proporcionadas por e a partir de ações que se materializam nas narrativas. Através das falas eles/as manifestam opiniões, perspectivas e modos de compreender a dinâmica educativa na escola. Manifestam visões sobre aprender e ensinar arte. Criam relações entre a imagem, o fazer e suas vidas e vivências anteriores e presentes. A análise tem como foco os temas que sobressaíram nas narrativas: relação com as imagens, com o aprenderensinar, e com o fazer.

8. Reflexões A união de ação pedagógica e pesquisa focou, através do diálogo, uma construção colaborativa de vários atores em torno de experiências vividas no processo de interação com arte e imagem. A influência ou o impacto dessas experiências na vida dos/as participantes – alunas/os e professora/investigadora – deixou registros que enriqueceram minha visão de mundo, minhas concepções sobre arte, alfabetização, escolarização e, principalmente, sobre o trabalho pedagógico.

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Através desta pesquisa constato que a investigação docente, apesar do reconhecimento da sua importância e da literatura produzida sobre o assunto, continua representando um desafio pessoal, intelectual e profissional. As reflexões que esta pesquisa provocou me conduzem a três pontos que sintetizam este trabalho e a necessidade de dar continuidade à investigação docente tanto sob uma perspectiva crítica quando interpretativa. Os pontos que ressalto no decorrer desta pesquisa são: (a) conflito entre estrutura e liberdade; (b) intensificação da prática do diálogo, e (c) criação de territórios comuns e incomuns de aprendizagem. O conflito entre estrutura e liberdade me coloca – educadora e pesquisadora - numa disputa de um “cabo de guerra” que apresenta, de um lado, ações pré-estruturadas e de outro, a expectativa de liberdade. Entre os dois extremos, deparo-me com embates entre esquemas tradicionais de ensino e de aprendizagem estabelecidos pela teoria e prática da escolarização e com a necessidade da criação de espaços para atender necessidades, interesses e, especialmente, potencialidades de uma prática educativa dialógica, construída de forma colaborativa.


Este conflito entre estrutura e liberdade põe em evidência a importância da tomada de decisões no processo de ensino e pesquisa mostrando, sobretudo, a necessidade de investigar e refletir “sobre quê conhecimento deve ser interpretado e utilizado” (COCHRAN-SMITH E LYTLE 2002, p. 17). De um lado, prescrições e normativas e de outro, o vigor de processos e produtos que vão se desenhando em conjunto. A flexibilização do trabalho docente proporcionada pelo diálogo e a interação entre educandos/as e professora/pesquisadora oferecem liberdade na construção do conhecimento. Essa liberdade aponta e conduz para várias possibilidades pedagógicas. Visualizar possibilidades e mediar diálogos foram ações que me permitiram lidar com o conflito entre estrutura e liberdade. Um fazer pedagógico dialogado não se prende a generalizações e impõe a preponderância de um ritmo onde a ‘circunstância educativa’ gera experiência auto-formadora e crítica. Outro ponto que ressalto é a criação de territórios comuns e incomuns que estimularam a troca e o reconhecimento do outro. Um exemplo é o diálogo sobre a origem de cada um, suas culturas, seus primeiros espaços de formação. O bairro, a rua, a casa, a escola, espaços que entraram na sala de aula e criaram territórios de saberes, de lembranças e de experiências. Além de territórios comuns surgiram territórios incomuns. A reflexão sobre a arte contemporânea, sobre o artista e seu trabalho, sobre o público e as interpretações que o olhar constrói foram temas que expandiram a experiência para territórios ainda não visitados, porém provocadores de questões e sensibilidades. Esses ‘territórios incomuns’ encontram em Freire sua expressão contundente: “o mundo pronunciado, (...) se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (2004, p. 78). O ‘mundo pronunciado’ faz-se, por exemplo, na experiência dos educandos/as com a arte contemporânea, com o espaço de uma galeria de arte que ‘se volta problematizado’ nas questões, opiniões e interpretações geradas pela experiência. Questões-chave do mundo da arte se tornam objeto de reflexão conjunta: qual o papel do artista? O que é ou não é arte? Quem é o artista?

Incorporar o diálogo como elemento desencadeador de trânsitos entre ver, fazer, falar e refletir e como ‘gerador’ de territórios comuns e incomuns de experiências com arte e imagem é pensá-lo como um rizoma que permeia e nutre estas ações, juntamente com dúvidas, resistências e preferências, transportando-as com as subjetividades de cada um/a para dar sentido às experiências vividas. Barbosa defende o diálogo como fundamental na educação e, segundo ela, Freire “está no centro dessa idéia”. O diálogo “como força reconstrutora”, “como estimulador do pensar” (BARBOSA, 2002) reposiciona os sujeitos em relação às suas filosofias de vida, seus fazeres e valores.

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é também refletir sobre meu papel nesta pesquisa. É como se esse trabalho funcionasse como espelho que reflete e refrata concepções, hábitos, expectativas e desejos. Ao experimentar a posição de investigadora-aprendiz, ouvinte e participante, pude também contemplar minha imagem de educadora projetada no processo, nas ações e falas dos participantes.

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Estrutura e liberdade, diálogo, territórios comuns e incomuns... Refletir sobre a prática docente


O diálogo é também responsável pelas manifestações de autonomia dos educandos/as. Autonomia “que vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas” (FREIRE, 2004, p. 107) e não como ponto final ou resultado alcançado. Autonomia que é experimentada nas pequenas decisões como, por exemplo, observei durante o processo de fazer tapetes. Montar o bastidor, escolher as cores, trabalhar com um colega e opinar sobre o trabalho do outro são experiências que solicitam e reforçam tomadas de decisões, posicionamentos subjetivos e práticos. Rivaldo avaliou e identificou o limite dessa autonomia, consciência que sua fala expressa de maneira concreta: “Se eu tivesse tempo e tivesse assim... material pra mim trabalhar, eu já tinha feito. Eu achei muito bom!”. Outras falas também apontam para os limites da autonomia, para a precariedade de condições materiais e sociais que impedem a continuidade de certos fazeres na escola e fora dela. Mas instala-se o desejo, ‘força reconstrutora’ que abre caminho para outras experiências. José conta da sua decisão: “aprendi fazer também. Fiz até uma gradinha lá em casa assim, preguei uns preguinhos...”. Fazer e aprender não estão desvinculados nas falas dos educandos/as. “Como é bom a gente saber que tem alguma coisa para fazer!” é uma exclamação que reverbera na minha memória. Neste caso, fazer, aprender e prazer estão integrados. A experiência da tecelagem é a principal referência quando pedi para fazerem uma apreciação do processo que vivenciaram. Fernanda generalizou, para em seguida destacar esta experiência: “Eu aprendi muita coisa. Nossa senhora! Eu lembro até hoje do tapete. Eu gostei de fazer o tapete. Tecer...” A tecelagem também avivou a memória de Alice: ‘Eu aprendi muita coisa. Na verdade foi dentro dessa sala aqui que nós fizemos aqueles tapetinhos”. Alfredo foi direto e, como Rivaldo, ressentiu a impossibilidade de continuar: “Aquele negócio do tapete. Eu não inventei, não. Mas se continuava... eu consigo”. Territórios comuns e incomuns de saberes foram criados através do diálogo. As lembranças de Alfredo, Alice, Fernanda, Jeremias e Rivaldo fizeram da sala de aula um espaço de reconstrução, de provocação de desejos, de manifestação de histórias de vida que se encontram nas imagens, na experiência de ver, fazer, falar e refletir. Bosi adverte que “se o adulto não dispõe de tempo ou desejo para reconstruir a infância, o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro” (1994, p. 83).

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O conflito entre estrutura e liberdade, a intensificação do diálogo e a criação de territórios comuns e incomuns são pontos que remetem a Black et all (2002) quando perguntam “Quanta autoridade e controle deveria ter um professor e [em decorrência], “que ‘voz’ tem valor ou pode ser escutada na aula?” (Op. cit. 2002, p. 274). Eles afirmam, ainda, que “não apenas temos que reagir frente ao que eles admiram, mas também saber escutar como vêm o mundo” (Op. cit. p. 274, grifo meu). Estes autores analisam seu trabalho pedagógico e concluem Nos demos conta de que o ensino e a aprendizagem são atividades sociais. Se dão a partir de interações com os textos, os conceitos, as teorias e sobretudo, com interações entre sujeitos. Além disso, cremos que é ponto chave


implicar-nos constantemente com o conhecimento de nossas crianças assim como em nosso próprio auto-conhecimento de forma que possamos maximizar e enriquecer nossas interações (BLACK et al, 2002, p. 275).

Neste estudo, diálogo e interação caminharam juntos. O conhecimento dos alunos/as e minha reflexão como educadora que investiga sua prática possibilitaram um exercício contínuo de auto-conhecimento construído sobre o que acontecia na aula e depois dela, numa busca sistemática por um processo que Shulman (apud COCHRAN-SMITH e LYTLE, 2002, p. 31) denomina “ecologia da aula”. A ampliação e o aprofundamento do conhecimento docente foi um dos resultados que esta pesquisa trouxe para minha prática profissional. Vi-me em tempo de interrogações, de inseguranças e de reavaliações. Tenho claro, como diz Belzer, que “tudo que faço como educadora mostra a importância e o valor de incorporar o conhecimento e as crenças dos estudantes como parte do conteúdo de aprendizagem da aula” (apud COCHRAN-SMITH e LYTLE, 2002, p. 375). Investigar a prática docente é praticar a docência como pesquisa do outro, de si mesmo, de ações e de narrativas. Barbosa destaca a idéia de Freire para quem “a educação é um processo de ver a nós mesmos e ao mundo à volta de nós” (2005, p. 12). As visitas às exposições de arte contemporânea fizeram Rivaldo repensar valores e reconstruir sua perspectiva sobre a atividade artística. Sua fala descreve seu processo e sua interação com este território até então incomum: “Isso é uma coisa que eu nem sabia. Dessa aula de arte. Só perguntando, só informando palavras, formando desenhos... eu não sabia disso. É muito importante. Vai desenvolvendo a pessoa, a pessoa que vai trabalhando”. Alfredo, Alice, Fernanda, Jeremias e Rivaldo parecem me pedir para não concluir esta pesquisa. Pedem-me para continuar revendo-os enquanto revejo a mim mesma. Provocam-me para olhar, de forma renovada, o trabalho docente com imagem e arte. Estimulam minha prática e incitam minha reflexão sobre sentidos da experiência visual, sobre ensinar e aprender e, principalmente, sobre um fazer que incorpora o ver e a voz daqueles que se encontram para reconstruir suas perspectivas de mundo e de si mesmos.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana, 7 ed. Rio de Janeiro: Revista Forense Universitário, 1995. BARBOSA, Ana Mae. Arte e Reconstrução Social. (entrevista). In: Lílian Amaral. 2002. Fita 2. Videocassete (25min): vhs, ntsc, color, port. BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. Arte/Educação Contemporânea: consonâncias interna-

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Referências

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de 2004. p. 4-5. Entrevista.


Hist贸ria, Teoria e Cr铆tica de Arte


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O êxtase de Teresa: uma análise alegórica na Igreja do Carmo em João Pessoa André Cabral Honor*

Resumo A igreja de Nossa Senhora do Carmo – ordem primeira – e a Igreja de Santa Teresa de Jesus – ordem terceira – compõem parte do conjunto arquitetônico carmelita da cidade de João Pessoa. Construções do séc. XVIII, ambas se inserem no contexto de arte religiosa barroca como instrumento de doutrinação católico-cristã. Utilizando-se da metodologia proposta por Panofsky, este trabalho almeja realizar uma análise do painel do êxtase de Santa Teresa de Jesus existente na Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Por meio de um levantamento das representações européias do séc. XVII será feita a análise da construção histórica da reprodução da imagem do êxtase de Santa Teresa que culmina na famosa escultura de Bernini, constituindo um padrão que servirá de base inspiradora a diversas representações posteriores, inclusive o painel existente na Igreja de Nossa Senhora do Carmo da capital paraibana. Palavras-chaves: Barroco; Pintura; Cristianismo; Alegoria.

Abstract The church of Our Lady of Mount Carmel – prime order – and the church of Saint Teresa de Jesus – third order – are part of the Carmelit architectonical buildings in the city of João Pessoa. Built in the eighteenth century, both are part of the baroque religious context as instruments of christian doctrination. Using Panofsky methodology, this paper intends to make an analysis of Santa Teresa de Jesus’s painting located in the church of Our Lady of Mount Carmel. Surveying the eighteenth century’s European representation, it will make an analysis of the historic construction of Saint Teresa’s ecstasy reproduction, whose peak is Bernini’s famous sculpture, constituting a model that inspires many of subsequent images, including the panel located in the church of Our Lady of Mount Carmel in Paraíba State capital. Keys words: Barroque; Painting; Christianity; Alegory.

dependente e autônoma, mas que sempre se imbrica com os desejos pessoais e a realidade social em que o autor está inserido. Trazer essa manifestação cultural para o ramo da História, mais especificamente como fonte histórica, abre um caminho tortuoso e fascinante de análise de um aspecto da sociedade em que consciência coletiva e manifestação pessoal se entrelaçam num complexo painel social. A análise da obra de arte transformada em fonte histórica deve ser embasada por duas questões: a primeira, relaciona-se com o artista em si, deve-se tentar identificar quem foi o autor de determinada obra para que se possa traçar a matriz disciplinar do seu trabalho. Algumas vezes

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Arte. Expressão máxima da cultura humana. Conclamada pelos artistas como manifestação in-

* Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em História pela Universidade Federal

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da Paraíba, foi bolsista CAPES com o projeto “Alegorias, símbolos e cultura barroca: o Carmo em João Pessoa”, sob orientação da Profª Dra. Carla Mary S. Oliveira. Trabalhou em colégios de João Pessoa, e foi estagiário voluntário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba–IPHAEP (2005 a 2007). E-mail: cabral. historia@gmail.com.


é impossível atribuir a autoria de uma obra, ou conhecer a fundo a vida de seu autor. Contudo, através de métodos e um bom aporte teórico, é possível identificar quais as influências por detrás da obra de arte. O segundo questionamento, tão fundamental quanto o primeiro, é ainda mais conhecido pelos historiadores e refere-se ao contexto histórico do trabalho artístico. A idéia é trabalhar a obra de arte como um elemento no qual indagações pessoais e sociais se interpõem e se intercalam em um discurso dialético. Na concepção de Barroco desenvolvida por Benjamin e trabalhada neste artigo, esses dois questionamentos se tornam ainda mais pertinentes. Empregando o conceito de arte barroca como instrumento de doutrinação – utilizandose para isso o discurso alegórico – torna-se mais clara a compreensão da sociedade a que a obra de arte se refere, já que esta se impõe como um discurso direcionado cuja finalidade é a catequese. Nesse contexto se inserem as Igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de Santa Teresa de Jesus, as quais, juntamente com o convento carmelita, hoje palácio episcopal, compõem o conjunto arquitetônico carmelita da cidade de João Pessoa. Construídas no século XVIII, encontram-se plenamente inseridas no contexto da contra-reforma católica e dos desígnios do concílio de Trento. Os problemas e dúvidas levantados sobre a legitimidade da adoração de imagens e relíquias e a suposta contradição desta prática com a doutrina cristã levaram a Igreja Católica a se debruçar sobre o assunto. Extinguir a adoração não era uma saída fácil já que o culto as imagens e relíquias era tão enraizado dentro da cultura católica que seria quase impossível para a Igreja se abster dessas representações: A Igreja romana, como presença manifesta de Deus na Terra, necessita da arte, assim como da evidência espetacular dos próprios rituais, para tornar visível aos fiéis, desvelando-a plenamente, a própria essência – e para demonstrar que natureza e história, expressões da vontade de Deus, refletem a sua lógica. (ARGAN, 2004, p. 52)

No intuito de servir como meio de representação da entidade a ser adorada, a iconografia assume também a função de ferramenta de doutrinação através de conjuntos alegóricos. Para solucionar o problema da disseminação desenfreada de relíquias e imagens, as regulamentações tridentinas1 impuseram uma série de regras, por vezes rigorosas, para a elaboração e utilização dessas imagens; dentre elas foram proibidas as representações de nudez e de ‘negligência’ na disposição dos personagens retratados. Segundo Lichtenstein:

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Apesar dessas disposições geralmente restritivas para os artistas, a Contrareforma soube criar um novo elã, não só renovando a imaginação inventiva de pintores, escultores e arquitetos, mas também investigando novas formas de sensibilidade e de emoção estética. (2004, p. 66)

É nessa legitimação do uso das imagens dentro da Igreja Católica que se consolida o conceito de Barroco. Carregada por volutas e elementos alegóricos, a estética barroca está imbuída da necessidade de tornar a arte religiosa uma ferramenta de doutrinação católica-cristã. O monumento barroco é construído dentro de uma ordem que busca levar o espectador à única forma possível de salvação: a fé.


A alegoria se mostra como a principal ferramenta do barroco para a construção do percurso de doutrinação por meio de imagens. Vive-se uma época em que a missa, com exceção do sermão, é professada em latim e poucos são os alfabetizados: torna-se primordial a utilização de outros meios que venham a apoiar a catequização de seus fiéis. Segundo Benjamin (1986, p. 30): Quando a escrita quer assegurar-se do seu caráter sagrado - sempre de novo, será envolvida pelo conflito entre valor sagrado e compreensibilidade humana - tende a conjuntos complexos, à hieroglífica. é o que acontece com o Barroco. Externa e estilisticamente – tanto na drasticidade tipográfica quanto na metáfora sobrecarregada – a escrita tende à imagem. [grifo nosso] (BENJAMIN, 1986, p.30).

Figura 1 Transverberação de Santa Teresa. Adriaen Collaert e Cornellie Galé; 1613; gravura a buril.

versal, e o mais importante, eterna. A alegoria é a morte do símbolo e de seu significado direto e imediato, pois ao contrário do símbolo, cujo conteúdo provém da imagem, a alegoria é a dramatização de um conceito. “Quando, sob o olhar da melancolia, o objeto se torna alegórico, quando ela lhe retira a vida, ele permanece morto, mas salvo na eternidade;” (BENJAMIN, 1986, p. 36). O destino inescapável de todos os seres é a morte, e esta é eterna, assim como o espírito que abandona a parte física do ser humano. Somente nos deparamos com a eternidade através da morte do corpo. A alegoria barroca segue a mesma lógica. O objeto morre para que o conteúdo se eternize. A vida é o processo de eternização do espírito, assim como “Do ponto de vista da morte, a vida é o processo de produção do cadáver” (BENJAMIN, 1984, p. 241). Para o Barroco, a alegoria é a escrita criada por Deus, tal qual a sagrada escritura.

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Portanto o elemento alegórico fala. Melhor, ele escreve. E escreve algo numa linguagem uni-

É nesta transposição do conceito imediato de uma imagem que Hansen procura definir o ele-

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mento alegórico:


Retoricamente, a alegoria diz b para significar a, como se escreveu, observando-se que os dois níveis (designação concretizando b e significação abstrata a) são mantidos em correlação virtualmente aberta, que admite a inclusão de novos significados. Além disso a alegoria pode funcionar por mera transposição: o significado da designação b pode ser totalmente independente do significado da abstração a (...). (2006, p. 15)

Somente através deste conceito de alegoria é que é possível atingir as diversas camadas de significações por detrás da alegoria barroca. Os anjos e suas volutas, que adornam as imagens e passagens dos santos cumprem uma ordem que ultrapassa a simples apresentação de determinadas passagens ou personagens católicos. No barroco tal cena nunca é aleatória, mas cumpre uma função de doutrinação. Os exemplos de fé que se espalham pelas alegorias nas igrejas barrocas devem conduzir o cristão à retomada de seu caminho natural: a salvação através da imanência. A imagem de Santa Teresa d’Ávila2 está presente tanto na Igreja da Ordem Primeira de Nossa

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Senhora do Carmo quanto na Igreja da Ordem Terceira de Santa Teresa de Jesus. A vida desta santa é apropriada pela ordem carmelita como modelo de virtuosidade, sua história tornou-se uma alegoria dentro da obra de arte barroca. Nestes monumentos duas imagens se relacionam com o êxtase3 da santa: uma localizada no forro da Igreja de Santa Teresa de Jesus, e outra pintura em madeira situada em um painel ovalado na Igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo.

Figura 2

Transverberação de Santa Teresa. Antonie Wierix; s.d.; gravura a buril.


O êxtase teria sido o momento em que Teresa de Ávila se viu completamente arrebatada pelo amor de Cristo. Na figura 1, podemos ver a primeira imagem datada com maior precisão, representando a sua transverberação. Um anjo aponta uma flecha em direção a Teresa, que se encontra de braços abertos para receber o amor divino. É possível afirmar que a cena se passa em um convento, já que se vêem as grades nas janelas do recinto. Em uma representação provavelmente posterior a essa (fig. 2), porém de datação muito próxima, se pode perceber uma releitura da gravura anterior. A santa também se encontra de braços abertos e um anjo aponta uma flecha/lança em direção ao seu coração. Um detalhe aproxima as duas gravuras, o que corrobora com a idéia de releitura. Na figura 1 podemos perceber na sua parte superior, envolto por nuvens e de braços abertos, a figura de Jesus alado4 (fig. 3), que parece comandar a cena, em oposição aos outros cinco anjos que aparecem. Na figura 2, também povoada por cinco querubins, podemos observar, na parte superior, o mesmo elemento do homem adulto e barbado, só que ali se trata do próprio Deus Pai (fig. 4). O Cristo da cena anterior, que como Deus abençoa a Santa, transfigurou-se na representação do Pai como o grande mentor de toda a ação da cena. A figura 1 – e provavelmente também a figura 2 – foi produzida antes mesmo que Teresa de Ávila fosse canonizada, o que indica uma pequena dimensão do impacto que as idéias reformistas e a personalidade da santa tiveram não só dentro da Igreja Católica, mas também fora dela. Sua imagem – como santa e exemplo a ser seguido – já estava difundida e enraizada na sociedade antes mesmo que a Igreja a oficializasse.

Figura 3 Jesus alado abençoando Teresa.

Figura 4 Deus abençoando Teresa. Detalhe da gravura de Wierix.

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Detalhe da gravura de Collaert e Galé.

A representação da transverberação de Santa Teresa (fig. 5) feita pela pintora espanhola Josefa de Óbidos é o primeiro exemplar que foi possível identificar como portador de elementos barrocos. A presença do anjo com a flecha em todas as representações leva a uma análise da figura mi-

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tológica grega do Cupido (Eros). Filho de Vênus (Afrodite) e Vulcano (Hefesto), o personagem era


representado como uma criança dotada de asas que carregava consigo um arco com flechas, que despertavam o mais intenso amor naqueles por elas atingidos, quer fossem homens ou deuses. As representações iconográficas que foram atribuídas aos querubins levam a crer que se trata de adaptações da iconografia do Cupido. Sua presença no êxtase de Santa Teresa, transverberando seu coração com uma flecha, arrebatando-a eternamente com o amor de Cristo, pode indicar a apropriação e a releitura do mito de Eros na doutrina cristã.

Figura 5

Transverberação de Santa Teresa, Josefa de Óbidos, c.1672; óleo sobre tela; 108 x 140 cm. Igreja Matriz de Cascais, Portugal.

Porém, é na escultura que a passagem da transverberação de Santa Teresa se eterniza. O italiano Bernini traz em sua obra o ápice da escultura barroca (fig. 8), que servirá de inspiração para todas as obras posteriores, dentre elas a imagem de êxtase encontrada na Igreja de Nossa Senhora do Carmo em João Pessoa (fig. 6). Será através de uma desconstrução da imagem local em conjunto com a escultura de Bernini, que será possível traçar ponderações sobre os seus significados em comum e as suas dissonâncias.

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Dentro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo a pintura que representa a transverberação de Santa Teresa parece ocupar uma posição estratégica para os fiéis. O percurso que se faz até o arco cruzeiro, porta de entrada do altar principal, reservado para os membros da ordem primeira carmelita5, é povoado por imagens de santos6 e doutores da ordem carmelitana. Seus sacrifícios, seus martírios, enfim, um pouco de sua história se conta nessas representações. É uma indicação ao fiel do caminho a ser seguido, das privações pelas quais se pode passar, das tentações que se deve suportar para chegar até o objetivo maior: a salvação pelas mãos do divino que se encontra alegorizada no altar-mor.


Figura 6

Transverberação de Santa Teresa, anônimo, segunda metade do século XVIII; madeira policromada. Medalhão sobre o altar lateral à direita do arco-cruzeiro. Igreja de Nossa Senhora do Carmo, João Pessoa.

A Igreja pode estar falando ao cristão, através de suas alegorias, que é necessário superar todas essa privações para que o fiel possa ser transverberado pelo amor de Cristo. E somente após a entrega de si mesmo ao amor divino é que o fiel se encontra pronto para passar a outro plano espiritual e assim ser protegido pelo manto de Nossa Senhora do Carmo (fig. 7), como nos indica a azulejaria existente ao lado direito do altar-mor. Desta forma aconteceu com Santa Teresa, quando já era freira carmelita, ao ser arrebatada pelo amor de Cristo. Impossível não perceber a inspiração da pintura no painel do Carmo (fig. 6) em João Pessoa na cena esculpida por Bernini (fig. 8). Todos os seus elementos centrais se encontram: o Anjo com sua flecha, a santa arrebatada pelo amor de Cristo e o sol que ilumina a cena. delicadamente a flecha e num sorriso infantil, porém travesso, aponta-a para a Santa. No painel do Carmo o anjo adquire feições adultas, porém não perde de vista a idéia do cupido como o semeador da paixão. A flecha é o instrumento que fecunda o amor. Segundo Chevalier (1992, p. 435-437), ela é o “símbolo do intercâmbio entre o céu e a terra”. Em ambas as imagens a flecha aponta para baixo, adquirindo, desta forma, uma propriedade divina. No painel do Carmo, segue-se uma linha vermelha que delineia o trajeto até o coração de Teresa. Talvez pela altura em que a pintura se encontra, o autor quis tornar ainda mais visível a necessidade de que o coração do fiel seja tres-

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A alusão ao mito grego do cupido fica ainda mais nítida na imagem de Bernini7. O anjo segura

passado pelo amor divino. A flecha também representa a superação da vida ordinária através da conquista de uma virtude que está além do alcance. Aos freqüentadores da igreja, a flecha

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alegoriza uma resposta de Deus aos anseios e martírios daqueles que o seguem.


Figura 7

O manto de Nossa Senhora, anônimo; azulejaria monocromática portuguesa da segunda

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metade do século XVIII. Igreja de Nossa Senhora do Carmo, João Pessoa.

Figura 8

O êxtase de Santa Teresa D’Ávila , Gianlorenzo Bernini, 1645-1652; mármore e bronze dourado. Capela Cornaro, Igreja de Santa Maria Della Vitoria, Roma.


Arrebatada pelo amor divino a santa entra em uma espécie de transe. Na escultura de Bernini, seu rosto esboça uma nítida sensação de prazer que se assemelha a um orgasmo. A posição da mão e dos pés são de exaustão corporal devido ao imenso fervor que esse amor causou, ajudando, assim, a composição de um êxtase. Reforça-se ainda a idéia com a imagem da flecha que, segundo Cirlot (1984, p. 256), “sua forma, tem um sentido fálico inegável, em especial quando aparece em emblemas contraposta a um símbolo do ‘centro’ e de caráter feminino como o coração”. No painel do Carmo, a santa se encontra de olhos fechados com as pernas e o braço na mesma posição, porém sem a expressão de prazer no rosto8, o que oblitera a imagem de êxtase. Teresa parece estar num sono profundo descansando numa nuvem, ao contrário da estonteante escultura de Bernini que nos traz uma Teresa semi-consciente, ainda extasiada de prazer. Iluminando a cena podemos ver os raios de sol, que já aparecem sutilmente em forma de um tubo de luz na gravura de Antonie Wierix (Fig. 2). Porém, na escultura de Bernini estes adquirem um papel essencial para a composição da cena, importância essa que será copiada pelo painel do Carmo. Bernini destaca os raios de sol ao cobri-los de ouro contrastando-os, brilhantemente, com a imagem esculpida em mármore branco. No painel do Carmo, a luz dos raios do sol perde um pouco da força por se tratar de uma imagem colorida, porém o artista buscou compensar essa perda espalhando um tom amarelo pela figura, como se o anjo e a santa estivessem sendo iluminados pelos raios, acrescentando às figuras suas sombras, o que acentua o efeito do sol. Uma das imagens mais difundidas nas iconografias religiosas é a representação do sol. A fasci-

A Igreja de Santa Teresa da Ordem Terceira Carmelita possui uma alegoria fascinante que se relaciona com o êxtase de Santa Teresa. Num dos painéis pintados sobre madeira em seu teto (fig. 9) temos a imagem de Jesus Cristo de pé com uma flecha na mão (fig. 10) entregando-a a Teresa de Ávila. O medalhão parece nos indicar que o papel de transverberar o homem com o amor divino é passado a Santa Teresa. Jesus confia à Teresa a missão de trespassar a humanidade com a flecha do amor de Cristo. Para a ordem carmelita, ela possui o dom, entregue pelo próprio Jesus, de propagar o amor cristão. Por essa razão sua história de vida, que inclui provações e tentações do demônio9, é um exemplo a ser seguido.

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nação por este símbolo, que não se deixa olhar diretamente mas cuja presença permite visualizar o mundo, faz com que ele esteja presente como alegoria divina desde os cultos das sociedades pré-colombianas até a doutrina católica romana. A imagem do sol, ou de seus raios, denota a presença de Deus, “se não é o próprio Deus é, para muitos povos, uma manifestação da divindade” (CHEVALIER, 1992, p. 836). Dentro da doutrina católica também simboliza a presença de Cristo, revelando a Santa Teresa a verdade sobre os homens e o mundo, preenchendo-a com conhecimento. Ele é a fonte de energia que dará forças ao cristão para enfrentar o caminho a ser percorrido até a salvação eterna. Da mesma forma que o sol é o sustento das plantas, Cristo é o alimento a ser tomado pelo fiel. A identificação do sol com Cristo se realiza também pelo fato que o astro-rei morre ao entardecer e ressuscita ao amanhecer, assim como Jesus que morreu para ressuscitar ao terceiro dia.

Dentro desta imensa galeria de figuras quase inidentificáveis e imagens desgastadas pelo tem-

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po, uma mulher, uma santa católica, entra em um êxtase profundo e eterno. Sua vida é trespas-


Figura 9

Cristo entregando flecha a Santa Teresa, anônimo, segunda

Figura 10 Detalhe da cena anterior.

metade do século XVIII; madeira policromada; detalhe do forro do teto, Igreja da Ordem Terceira de Santa Teresa, João Pessoa.

sada não só pela flecha do amor divino atirada pelo pagão Cupido, mas também por um dilúvio de imagens que devassam os detalhes mais íntimos de uma trajetória dedicada ao ideal do amor cristão. Sua vida torna-se uma alegoria da imanência, pois só assim o fiel poderá alcançar aquilo que Walter Benjamin via como finalidade máxima do drama barroco: a salvação.

Notas 1

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2

Conjunto de regras e princípios elaborados nos Concílios de Trento. Santa Teresa d’Ávila também é canonizada como Santa Teresa de Jesus.

Êxtase. [Do gr. Ékstasis, pelo lat. extase] S. m. 1. Arrebatamento íntimo, enlevo, arroubo, encanto. 2. Admiração de coisas sobrenaturais; pasmo, assombro. 3. Psiq. Fenômeno observado na histeria e nos delírios místicos, e que consiste em sentimento profundo e indizível que aparenta corresponder a enorme alegria, mas que é mesclado de certa angústia: fica o paciente quase de todo imobilizado, parecendo haver perdido qualquer contato com o mundo exterior (FERREIRA, 1986, p. 745). 3


Numa de suas visões São Francisco de Assis viu Jesus Cristo com asas, imagem que ficou no imaginário católico e foi reproduzida diversas vezes em obras de artes. 4

As ordens possuem a seguinte hierarquia: ordem primeira que é composta dos frades de vida conventual e voto perpétuo; ordem segunda composta pelas freiras, monjas e irmãs, que fazem votos e vivem em clausura; e a ordem terceira que se compõe de leigos, homens e mulheres, que fazem o ano de noviciado e o professam. 5

Essas imagens encontram-se espalhadas em painéis de azulejos, pinturas em madeira, altares e símbolos da paixão gravados. 6

Bernini fez diversas esculturas com figuras mitológicas, dentre elas: O rapto de Perséfone; Apolo e Dafne; O Sátiro e a Ninfa e também a Fontana dei Fiumi (fonte dos quatro rios), na Piazza Navona, em Roma. 7

Os motivos que levarão o autor do painel a não copiar também a expressão de prazer talvez nunca possam ser conhecidos. Duas hipóteses parecem ser as mais factíveis: a de incapacidade do artista de representar tal delicadeza na feição da figura feminina ou por censura à expressão de prazer por considerá-la ofensiva, lembrando-se de que a obra Bernini é do século XVII, no auge do Barroco, enquanto que este painel data, provavelmente, da segunda metade do século XVIII no que os teóricos chamam de barroco tardio. 8

O forro da Igreja da Ordem Terceira de Santa Teresa possui treze medalhões que retratam os principais momentos da vida da Santa de Ávila: suas tentações pelo diabo, suas visões, e suas obras, encontram-se espalhadas nessa rica iconografia. 9

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31 ago. 2007.


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O movimento das artes plásticas na Paraíba: 1930-1945 Gabriel Bechara Filho*

Resumo O artigo aborda o movimento artístico na Paraíba no período de 1930 a 1945. Trata-se de uma fase de retração da produção local quando apenas os caricaturistas e desenhistas ligados à imprensa diária sobrevivem. Na mesma época, importantes criticos de arte paraibanos na capital federal de destacam sem terem, no entanto, a preocupação de trazerem para a Paraíba as inovações vividas no meio artistico do Rio de Janeiro. Palavras chaves: Arte; Paraíba; 1930-45.

Abstract The article approaches the artistic movement in Paraíba in the period from 1930 until 1945. It is about a phase of retraction of the local production when only the caricaturists and draughtsmen linked to the daily press survive. In the same epoch, important art critics from Paraiba in the federal capital highlight without having the worry of bringing to Paraiba the innovations lived in the artistic environment in Rio de Janeiro. Key-Words: Art; Paraíba; 1930-1945.

presença de Epitácio Pessoa na Presidência da República e após a Revolução de Trinta, alguns artistas de outros Estados começaram a aportar à capital paraibana em busca de mercado, desde os anos vinte. O caricaturista e decorador de residências pernambucano J. Miranda expôs na cidade em maio de 1932. Assim como o paraibano Rubem Diniz, ele vendia seus produtos artísticos em duas frentes. Para as famílias mais abastadas, ao invés de quadros, ele oferecia a pintura decorativa para as paredes da casa, comércio que se expandiu desde o início do século XX quando os papeis importados foram sendo substituídos por mão de obra local. Ainda na década de trinta esse hábito era muito usado, como atestam os artistas do grupo Santa Helena, em São Paulo, que sobreviviam basicamente dessa atividade. Ao mesmo tempo ele aproveitava a voga da caricatura que ganhou força logo após a revolução e a entrada das classes médias urbanas na cena política. Apesar do apoio sempre presente da imprensa para esse tipo de evento, a recepção foi muito fria. A década começava com um refluxo de demanda para obras de arte: É pena que a sociedade conterrânea, no seu indiferentismo absoluto pelas coisas da arte, deixe às moscas a exposição do inteligente patrício. Mas o que há de se fazer? Em matéria de pintura nosso povo ainda se interessa todo ante as estampas lytograficas, pavorosamente inexpres-

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Diante da repentina importância que a Paraíba reconquistou no âmbito nacional depois da

* Professor do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Graduado em Licenciatura em Filosofia pela UFPE,

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Mestrado em Sociologia pela UFPB e Doutorado em sociologia pela UFBA. Coordenador do Núcleo de Arte contemporânea da UFPB 1095-7, Coordenador do Programa de reciclagem em Educação Artística da UFPB 1990-1995. Critico de Arte, Fotógrafo e Curador. E-mail: gbecharafilho@hs24.com.br.


sivas, das casas que negociam com as efígies dos mártires do cristianismo. (AS CARICATURAS DE J. MIRANDA, 1933, p. 8). Não havia galeria de arte como na maioria das capitais brasileiras, em João Pessoa a “Galeria Nobre” era um desses estabelecimentos que vendia além de artigos religiosos, estampas, quadros e molduras (GALERIA NOBRE, 1936). É perceptível nesse comentário a tensão existente no âmbito do gosto da população local entre a tradição devocional católica que ainda dominava o interior das casas e o laicismo dominante nos círculos minoritários da intelectualidade quase sempre agregada à imprensa e que buscava substituir os antigos ícones domésticos por imagens mais identificadas com as transformações vividas naquele momento. Mudar essas antigas imagens religiosas não era apenas uma questão estética, mas denotava uma aceitação no interior da família brasileira de uma modernidade laica, aberta a mudança, e, portanto, portadora de um sentido político de transformação que se traduzia no plano imagético. Mas a Paraíba, Estado brasileiro com o predomínio agrário, onde os costumes burgueses mal tinham sido adotados, foi surpreendida como a maior parte do mundo, pela Indústria Cultural que introduziu novo padrão cultural nos idos dos anos trinta.

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Edgar Morin ressaltou que a partir dos anos 30 emergiu um novo tipo de imprensa, de radio, e de cinema não mais segmentado em classes e níveis sociais, mas dirigido a todos. Nascida nos EUA, a Indústria Cultural também chamada de Cultura de Massas, dirigia-se ao público médio visando atingir todos os segmentos da sociedade. Esse fato corresponde à emergência da classe média e do setor terciário nas economias centrais. Essa cultura tinha caráter homogeneizante e cosmopolita, relativizando as culturas nacionais e regionais sem, no entanto, negá-las, mas as incorporando através do sincretismo e do ecletismo. Fundada na ética hedonista centrada no lazer, ela tornava irrelevante o culto da arte tradicional como objeto de culto estético (MORIN, 1967). A retração no hábito de cultivar exposições de artes plásticas afora as mostras populares de caricaturas não pode ser entendida, portanto, apenas em função da crise financeira das elites e a emergência das classes medias urbanas. A tímida iniciativa das oligarquias regionais de incentivar uma produção regional foi atropelada não apenas pela centralização do estado brasileiro pós-Revolução de Trinta, como pela centralização da Indústria Cultural internacional que cada vez mais penetrava nos mais distantes rincões. Se na Bahia o parco investimento das elites locais, nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, no setor das artes plásticas, propiciou uma cultura de resistência regional de feição arcaizante e conservadora, ainda que singular e expressiva, na Paraíba a retração foi quase total por força dos novos hábitos introduzidos pela Indústria Cultural e a ausência de um esboço mínimo de campo artístico, minimamente consolidado, como na Bahia. Ao ver sua base social de apoio ameaçada, as elites passaram a valorizar a cultura subalterna antes objeto de escárnio. Sem essa mudança de enfoque, diante da crise gerada pelo impacto da nova visualidade trazida pela Indústria Cultural, afora as mudanças políticas, será difícil entender a grande valorização da cultura popular nos círculos das elites nordestinas, notadamente a baiana e a pernambucana. A Paraíba, no entanto, seguiu caminho distinto, pois o comando


do Estado foi repassado para uma das famílias oligárquicas que não se sentia ameaçada em sua base pela nova ordem. Nem havia na Paraíba uma preocupação de preservação da cultura popular, uma vez que a urbanização era incipiente e o controle das oligarquias sobre a capital era total, ao contrário do que ocorria em Recife e Salvador. A busca através da cultura de um denominador comum entre as elites e as classes populares subalternas que começou a preocupar as elites na Bahia e em Pernambuco, a partir dos anos quarenta inexistia na Paraíba. Nem havia tampouco o cuidado de manter a produção artística local como signo de sua identidade regional. Afinal o oligarca que comandava a política paraibana monitorando de longe, não era igualmente escritor e, portanto, o emblema cultural maior do próprio Estado? A valorização das etnias que foram subalternas na história brasileira tão presentes nas formulações de Gilberto Freyre, em Pernambuco e Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, inexiste na intelectualidade paraibana. Quanto à presença dos negros na Paraíba, o médico e desenhista Arnaldo Tavares se adiantou em falar ao sociólogo Roger Bastide, quando esse visitou o Estado em 1943, que ela se reduzia a alguns resquícios de quilombos, para concluir mais adiante, seguindo a ótica da teoria do branqueamento: Por aí devemos ficar tranqüilos. Nós não somos tão negros como eles pensam...” Seremos, contudo, uma raça tipicamente sul-americana, com a lembrança muito fugaz do negro... (TAVARES, 1943, p. 5).

O início dos anos trinta viu surgir uma voga artística semelhante, tanto em João Pessoa, como em Salvador que, certamente, era um fenômeno presente em outros estados. Proliferaram, por essa época, as exposições de caricaturas que já eram populares, desde a primeira década do século e que ganharam importância com os movimentos sociais urbanos de classe média, tendo culminado esse processo, logo após a Revolução de Trinta e declinado, gradativamente, com o início da II Grande Guerra. A importância social desse movimento artístico que tinha à frente jornalistas e trabalhadores da imprensa, ainda necessita de um estudo à parte para avaliar a sua significação, nesse período de declínio da arte acadêmica e início da consolidação do modernismo no Brasil, até mesmo para melhor compreendermos artistas modernos como Di Cavalcanti e Lula Cardoso Ayres que começaram pela arte da caricatura.

Essas mostras tinham sempre um grande fluxo de visitantes pela atualidade de seus motivos e pelo imediatismo e interatividade subjacente ao seu trabalho, uma vez que boa parte dessas obras era realizada ao natural durante a mostra. O artista amazonense Cláudio Damasceno que visitou a Paraíba em 1939 realizou uma seção de demonstração num dos salões do Paraíba Palace, local onde mais tarde ocorreu a mostra. Era uma estratégia de envolver uma clientela potencial para os trabalhos da mostra (A PRÓXIMA EXPOSIÇÃO... 1939).

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imagens, o ritmo introduzido pelas novas mídias. A arte desses artistas, no entanto se distanciava da caricatura do século XIX que foi exercida até mesmo por artistas ilustres da Academia como Pedro Américo. Era menos realista, desprovida de detalhes e mais próxima do despojamento do desenho moderno. O caráter descompromissado do gênero e a sua proximidade com a modernidade abriam espaço para ousadias impensáveis nos códigos tradicionais das artes visuais.

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Em geral eram artistas espontâneos ligados ao jornalismo que buscavam acompanhar, através de


Os caricaturistas dessa época tinham como carro-chefe, para atrair o público, as charges dos políticos locais e com isso visavam atingir a clientela da sociedade que ao se permitir ser retratada ao lado das autoridades, com elas mostravam-se identificadas. Esse padrão na montagem das exposições dos caricaturistas já estava presente desde as primeiras mostras realizadas na capital paraibana em 1915, mas ganhava, no início da década de trinta, um perfil diferenciado diante da mudança no quadro político e da crise do sistema oligárquico agrário-exportador. Se antes eram, sobretudo, as autoridades e membros das famílias oligárquicas as retratadas, agora também apareciam os trabalhadores do comércio, funcionários públicos, jornalistas e profissionais liberais do setor terciário que ganhavam, igualmente, o direito de terem suas imagens expostas no espaço público. Ser retratado denotava importância social, isso ficava visível quando membros das oligarquias faziam questão de expor em vitrines, seus retratos pintados a óleo, no início do século pelos artistas paraibanos Genésio de Andrade, Frederico Falcão e Olívio Pinto, ou mesmo por artista em visita, como o pernambucano Baltazar da Câmara (BECHARA FILHO, 2001). Mas a grande voga da caricatura nessa época não foi um fenômeno isolado, ele acompanhou a proliferação dos ateliês de fotografia e de fotógrafos ambulantes em busca de instantâneos dos transeuntes das ruas. A classe média urbana queria se fazer mostrar como agente atuante e não mais ator passivo dos acontecimentos políticos e sociais, ela queria mostrar a sua própria face, seja pela fotografia, como pela caricatura. Outra característica desses caricaturistas era a mobilidade pelo contato que tinham com as empresas de jornais de Estados da região e, em razão disso, costumavam circular pelas capitais vizinhas. Alguns deles expunham acompanhados de outro artista, como fez o paraibano Rubem Diniz ao lado do pernambucano Rodriguez Filho em 1933, seu contato no Recife (NOTAS DE ARTE, 1933). Além de Damasceno (AM) (1939), J. Miranda (PE) (1932), Rodrigues Filho (PE) (1933), Fausto Silveira (PE) (1932) Lauria (AL) (1932) a Paraíba também teve a visita do famoso caricaturista baiano Manoel Paraguassu em 1932 que expôs no Paraíba Hotel.

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Quanto ao paraibano Rubem Diniz sua atividade artística começou no final dos anos vinte, mas seu trabalho só ganhou grande divulgação na década seguinte quando teve de enfrentar, sozinho, o desafio de manter na Paraíba um espaço mínimo de atuação para as artes plásticas, face à retirada da geração anterior de cena, recolhida em outros afazeres profissionais. Como caricaturista ele buscava interagir o máximo possível com os acontecimentos da vida pública local, tendo escolhido a data do aniversário da Revolução de Trinta, o 4 de outubro, em 1931, para abrir sua mostra com trabalhos retratando os principais líderes do movimento, além de algumas “telas de fantasia”. A exposição teve grande freqüência de público e sucesso de vendas sendo quase todos os trabalhos adquiridos (EXPOSIÇÃO DE RUBEM DINIZ, 1931). É importante constatar que o artista ao pôr, lado a lado, paisagens de fantasia e caricaturas de personalidades da atualidade política, tentava atingir, simultaneamente, dois segmentos de público consumidor, as elites tradicionais que desde a década de vinte havia se habituado a consumir pequenas telas para decorar o interior de suas residências e a classe média emergente que


Figura 01 Rubem Diniz. Foto.

Figura 02 Rubem Diniz. Caricatura.

até então consumira oleogravuras e que agora era convidada a consumir imagens de ícones políticos de grande apelo popular e numa linguagem mais acessível. Possuir uma dessas imagens em casa era de alguma forma compartilhar do momento político, que se vivia posicionando-se ao lado do grupo hegemônico que acabara de ocupar o poder. Esses trabalhos serviam também, eventualmente, como moeda de troca para pequenos favores ou para complementar as lisonjas dirigidas em forma de oferenda aos políticos, na busca de empregos.

Américo e Aurélio de Figueiredo, no Rio de Janeiro, com Hernani Sá que atuou no início dos anos vinte e cuja morte precoce interrompeu seu trabalho. Rubem Diniz é o nome que o sucede no final da década de vinte atuando diretamente com o jornalismo (BECHARA FILHO, 2001). Com o início da ditadura do Estado Novo a caricatura entrou em declínio e só será retomada na Paraíba pelo artista baiano Antonio Fonseca, em 1942, numa exposição de cunho político AntiEixo que aconteceu em várias capitais. A mostra constava de caricaturas dos principais líderes políticos dos países do Eixo (UMA EXPOSIÇÃO ANTI-EIXISTA, 1942).

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A caricatura na Paraíba teve seu primeiro momento de destaque, afora os trabalhos de Pedro

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Rubem Diniz chegou a trabalhar em Natal por dois anos onde obteve relativo sucesso antes de partir definitivamente para o Rio de Janeiro, não tendo mais atuado na Paraíba. Ele fazia parte de uma geração de artistas espontâneos sem passagem por qualquer adestramento técnico sistemático. Esse, inclusive, era o perfil dos artistas da Paraíba cuja atividade era vista não raro como uma excentricidade por uma sociedade de forte base rural. Rubem fez exposições em 1930, em 1931, uma em Alagoa Grande patrocinada pelo prefeito local, em 1933 e 1936. Depois disso não há mais registro de sua atividade artística na Paraíba tendo ido para o Rio de Janeiro no final da década.


Todos os artistas que expuseram e fizeram o movimento artístico nos anos vinte como Olívio Pinto, João Pinto Serrano, Frederico Falcão e Amelinha Theorga desistiram de expor comercialmente até 1946. Desse grupo os três primeiros se dedicaram à fotografia e abriram ateliês de fotografia em algumas das principais ruas da cidade. A década de trinta é um momento de expansão do mercado fotográfico em todo mundo com o aperfeiçoamento das maquinas fotográficas e o barateamento de custos. Isso possibilitou uma maior oferta e ao mesmo tempo uma maior demanda pela fotografia. No lugar da única fotografia registrando o casamento, agora era possível adquirir um álbum inteiro com vários aspectos do evento e dos convidados à festa. Os principais momentos da vida social passaram a ser fotografados em detalhes como a primeira comunhão, a formatura, o batizado e as bodas de ouro. Os estabelecimentos industriais e comerciais pediam álbuns das empresas e os governos procuravam documentar também em álbuns suas principais realizações. O que era antes uma fotografia única e isolada para registro de um evento significativo, passava a ser dezenas, numa busca incessante da fotografia de acompanhar o ritmo sincopado do cinema. Esse fenômeno já acontecia nos anos vinte, mas foi na década de trinta que ele se generalizou pela queda no custo de produção de imagens, em função da produção em massa dos insumos em escala mundial que tornava seus preços mais acessíveis. Olívio Pinto o mais atuante artista dos anos vinte, se apresentou como fotógrafo à Rua Duque de Caxias n. 576 com ampliações em sépia, pastel e carvão dos retratos de Antenor Navarro, Odon Bezerra, José Américo e Epitácio Pessoa. Tratava-se de retratos de pessoas de destaque da revolução de trinta ou a ela ligada com grande prestígio no meio local. Interessante notar é o apelo de técnicas de pintura mesclado com o retrato. Essa tradição que ainda guardava um resquício de reconhecimento pelo retrato tradicional de pintura, amplamente utilizado no século XIX, sobreviveu com força ainda em plena década de 30 do século vinte pela mão dos fotógrafos locais que começavam a substituir pouco a pouco a mão de obra dos profissionais estrangeiros ou de outros estados que durante décadas controlavam o mercado de fotografia local. A arte na Paraíba nos anos 30 e 40 do século passado sobreviveram de iniciativas escassas de artistas populares sem nenhuma preparação acadêmica ou informação cultural sobre a arte que se realizava em sua época. Esse foi o caso do artista-artesão Miguel Guilherme nascido em Sumé a 15 de agosto de 1902, filho também de artesãos.

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Sua atuação se intensificou a partir dos anos trinta quando começaram as primeiras encomendas para pintar forros nos tetos de igrejas, como a matriz de Monteiro em 1932 e depois o teto da matriz de Campina Grande dedicada a N. S. da Conceição. Em 1935 executou ainda as pinturas da capela de São Sebastião na Fazenda Feijó, em Sumé. Em 1940 construiu seu atelier na cidade de Sumé onde atendia encomendas devocionais. Na capital paraibana João Pinto Serrano, artista atuante desde os anos vinte, recebeu encomendas de pintura religiosa para a Igreja de Lourdes e Catedral de N. S. das Neves. Ele dividia seu tempo entre essas encomendas artesanais e seu atelier fotográfico. O estreito espaço que os artistas da geração de vinte havia conquistado para o consumo de obras de arte junto aos particulares tendeu a desaparecer com a multiplicação de studios de fotografias, por essa época. O baixo poder aquisitivo da população e limitado capital cultural das elites locais, numa época onde


Figura 03 Miguel Guilherme – auto-retrato, 1940.

a política dominava todas as discussões sociais e a indústria cultural avançava, restava muito pouco espaço para a continuidade da experiência ocorrida nos anos vinte. A pintura na Paraíba havia regredido a condição de simples artesanato decorativo como já havia ocorrido durante o século XIX. Sem ter havido investimentos em escolas de arte, ou bolsas de estudos para as vocações promissoras, como acontecia em alguns estados brasileiros que enviavam seus artistas para estudar no exterior ou no Rio de Janeiro, os artistas nascidos na Paraíba eram todos autodidatas, desde Genésio de Andrade, na virada do século XIX para o XX, até a geração dos anos vinte.

1. Artistas e críticos da diáspora Durante muito tempo a historia da arte na Paraíba, como de resto em muitos estados brasileiros, era marcada pela diáspora de suas jovens vocações. Foi assim na segunda metade do século XIX com Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo e continuou sendo até o final dos anos cinqüenta do século XX pela ausência de qualquer investimento no setor das artes plásticas na Paraíba. Nem mesmo a prática de bolsas de estudo que foi comum em vários estados brasileiros onde não havia escolas de arte, desapareceu no século XX. A única bolsa dada, em 1943, ao jovem Sady Casimiro por ocasião de um concurso em homenagem ao centenário de Pedro Américo,

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quando aportavam à capital paraibana, refratários às poéticas modernas e com um público diminuto interessado na aquisição de obras de arte, vivendo a avassaladora entrada da Indústria cultural que varria as antigas expectativas em relação à arte tradicional e, sobretudo, pressionados pela necessidade de sobrevivência profissional, boa parte desses poucos artistas migraram para a fotografia, tendência já presente em escala mundial, entre muitos artistas plásticos.

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Sem poder competir com artistas com melhor nível técnico de outros estados, que de vez em


tinha a pretensão anacrônica de promover a repetição do fenômeno do pintor de Areia. No mais, foram em vão as tentativas para que artistas da década de vinte, como Olívio Pinto e Amelinha Teorga conseguissem uma bolsa para estudar, ao menos, no Rio de Janeiro (BECHARA FILHO, 2001). Não havia na Paraíba, bem como em Recife, Salvador, Curitiba ou Porto Alegre condições mínimas para o artista local tentar uma vida artística fora da Capital Federal. Foi por isso que o jovem pessoense Tomás Santa Rosa buscou o caminho do Rio de Janeiro arriscando sua confortável carreira no Banco do Brasil para dedicar-se as artes plásticas. Santa Rosa apesar de guardar em sua obra uma proximidade temática com a Paraíba, seja em seus quadros retratando pescadores ou em outras cenas que evocavam tipos populares não retornou ao Estado, nem procurou manter com a capital paraibana, sua cidade natal, qualquer vínculo que pudesse renovar a arte local, como tentou fazer, no início do Século XX o artista Aurélio de Figueiredo (BECHARA FILHO, 2001). A intimidade de Santa Rosa com o grupo de artistas modernos brasileiros do eixo Rio São Paulo era muito grande. Já em 1933 esteve ao lado de Jorge Amado mantendo contato em São Paulo com o Clube de Arte Moderna (CAM), tendo ambos se hospedado na casa de Tarsila de Amaral. Os dois artistas se tornaram intermediários entre os artistas do Rio e os de São Paulo para os salões do CAM. Mas ao contrário de Jorge Amado que teve papel decisivo na divulgação da arte moderna na Bahia, Santa Rosa, nascido na capital paraibana, se afastou completamente da vida cultural local e assim como os demais artistas da diáspora da Paraíba, restringiu-se a desenvolver apenas seus projetos pessoais na Capital da República. O grupo paraibano do Rio era muito influente na área artística e mantinha entre si laços de amizade, a exemplo do próprio Santa Rosa e do escritor e critico José Lins do Rego, com quem o pintor morou logo que chegou, o crítico Rubem Navarra, o ministro José Américo de Almeida, o empresário e jornalista Assis Chateaubriand que apoiou a arte moderna desde a primeira hora, o procurador da República Adhemar Vidal , o critico Simeão Leal e o usineiro Odilon Ribeiro Coutinho.

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Se José Lins tinha estreitos laços de amizade com José Américo, Simeão Leal chegava a ter laços de parentesco com esse (CAMARGO, 1984). José Lins do Rego por sua vez, mantinha intimo contato com o pintor Cícero Dias, no Rio de Janeiro, amizade que soube cultivar, ao lado de Gilberto Freyre, ainda no Recife. Ele escreveu alguns artigos sobre arte moderna que foram publicados no jornal A União de João Pessoa. O contato de José Lins com as artes plásticas se deu bem cedo no Recife quando ainda era redator-chefe de um jornal local. Foi ele quem abriu primeiro espaço para o pintor Lula Cardoso Ayres publicar o seu primeiro trabalho de caricatura na imprensa, em 1922 (VALLADARES, 1979). A maioria desses paraibanos, com exceção de José Américo, havia produzido criticas de artes plásticas e mantinha intima relação com o meio artístico do eixo RioSão Paulo, desde a década de 30, até o final dos anos 50. Santa Rosa teve vários de seus artigos publicados no jornal A União, órgão oficial do Estado da Paraíba, assim como José Lins do Rego. O primeiro participou dos júris de seis Salões Nacionais no período de 1940 a 1950 além de estar presente nas duas primeiras Bienais de São Paulo. José Américo chegou a ser acionado pelos artistas do Grupo Bernadelli do Rio de Janeiro para eles não serem desalojados dos porões da Escola de Belas Artes, o que lhe daria transito fácil junto a esse importante grupo


de renovação da arte brasileira. O Ministro foi pessoalmente à sede duas vezes para impedir a expulsão do grupo. Os artistas, em retribuição, doaram os desenhos que estavam fazendo na ocasião e José Américo logo os emoldurou para decorar as paredes do seu gabinete (MORAIS, 1982). Da atividade critica permanente na imprensa carioca, vale destacar as colunas de Rubem Navarra “Movimento Artístico”, no Diário de Noticiais, além de escritos seus no Suplemento Literário do jornal A Manhã (GRINBERG, 1996). Rubem Navarra cujo nome verdadeiro era Rubem de Agra Saldanha (1917-1955) chegou ao Rio de Janeiro na década de 40 de Campina Grande e foi levado para a crítica de arte por incentivo do casal Arpad Szenes e Maria Helena Vieira. Sua atuação na imprensa carioca foi muito intensa com artigos publicados na Revista do Brasil, Revista do Rio, Revista Acadêmica, Revista Sombra, Revista Leitura e os jornais O Jornal, Correio da Manhã e o jornal A Tarde, de Salvador. Era um dos nomes mais respeitados da critica brasileira nos anos quarenta. Para avaliarmos a importância dessa geração de paraibanos ilustres em postos chaves na Capital da Republica e sua grande influência, seja junto ao poder, seja ao lado da opinião pública e entre os artistas, basta lembrar que a fundação da Associação Brasileira de Críticos de Arte se deu no gabinete de Simeão Leal, em 1949, onde ele exercia importante cargo na área cultural do Ministério da Educação. Simeão foi indicado em 1950, representante brasileiro na Bienal de Veneza, encarregado de organizar a seção Brasileira da Sociedade Internacional de Críticos de Arte e delegado do Brasil nas conferências da Unesco, em Paris, no ano de 1951. Outro intelectual com grande penetração nos meios artísticos modernos do Rio de Janeiro foi o usineiro Odilon Ribeiro Coutinho possuidor de uma rica coleção de obras de arte dos principais artistas modernos brasileiros. Ele chegou a encomendar a Portinari, em 1950, um painel sobre a coluna Prestes (BALBI, 2003). Apesar disso nenhuma ação de Odilon se fez presente no sentido de ao menos exibir seu acervo para o público paraibano uma única vez sequer. A intimidade desse grupo de paraibanos com os modernistas no Rio de Janeiro deu-se desde o início dos anos trinta quando em decorrência da Revolução de Trinta e de surgimento de novas oportunidades na capital federal, ocorreu uma grande diáspora. Avenida Rio Branco encontrava-se, durante as tardes, a nata da intelectualidade do Rio como Murilo Mendes, Cícero Dias, Manuel Bandeira, Sergio Buarque de Holanda, Rodrigo de Mello Franco, além do paraibano Ademar Vidal que havia apoiado os artistas paraibanos nos anos vinte (BASTOS, 1993). No bar Vermelhinho, situado em frente da ABI, circulava na década seguinte, boa parte da intelectualidade brasileira desde poetas como Drummond, músicos como Villa-Lobos e inúmeros artistas plásticos e críticos, entre esses últimos, Simeão Leal, segundo depoimento de do pintor Inimá de Paula (GRINBERG, 1996). Nenhum Estado da federação dispunha, afora Pernambuco e São Paulo, de um transito tão ín-

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No “Café Simpatia” , entre 1930 e 1932, confluência das ruas Miguel Couto e do Rosário com a

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timo com a geração de artistas plásticos modernos do eixo Rio-São Paulo, como esse grupo de artistas, críticos e escritores paraibanos que tinham entre si laços cordiais de amizade, respeito e admiração.


Mas apesar de todo esse capital cultural acumulado pela elite paraibana nas décadas de trinta, até meados dos anos cinqüenta, nada foi feito para que os benefícios da renovação cultural que ocorria no Rio de Janeiro pudessem contribuir para recuperar e incentivar as tímidas iniciativas locais no âmbito das artes em geral e principalmente das artes plásticas. Nenhuma exposição sequer foi trazida à Paraíba, nem mesmo de desenho ou aquarela. O que essas ilustres personalidades acumularam de prestígio e influência na Capital Federal, elas o guardavam para si ou no máximo para eventuais amigos, mas sem nenhum retorno ou socialização para o seu estado de origem, malgrado a retórica nostálgica e regionalista, a partir da qual eles se projetaram nacionalmente. Como veremos esse individualismo que talvez fosse a marca distintiva da cultura do Estado, como bem sugere os versos amargos de Augusto dos Anjos, contrastava com a generosidade comunitária que marcou os projetos culturais da Bahia, desde a década de trinta e, principalmente, a partir da redemocratização de 1946. Sobrava apenas a nostalgia bucólica e telúrica como nessa confissão feita a Cícero Dias por José Lins do Rego: “Muito mais desterrado sou eu, meu querido Cícero, aqui nessa baia da Lagoa Rodrigo de Freitas, muito mais longe estou de nossas terras de massapé, meu grande Cícero” (CAMARGO, 1984). Mas ao ser indagado se gostaria de voltar à sua terra, José Lins respondeu suspirando: Querer quero. Mas infelizmente, não posso. Adoro o Nordeste, amo imensamente a Paraíba. Mas agora já me é impossível abandonar o Rio de Janeiro. Aqui já me aclimatei, aqui tenho os meus afazeres, minhas filhas, foram criadas aqui. Mas apesar de tudo, a saudade da Paraíba me acompanhará sempre. (ROMANCE, ESPORTE, VIDA, 1946, p. 9-13)

Santa Rosa, José Lins, Adhemar Vidal e Simeão Leal possuíam, inclusive, pequenas coleções de obras de arte modernistas que nunca tiveram a preocupação de mostrar ao público paraibano, como fez na Bahia, Jorge Amado, no final dos anos 40. Em 1948, Santa Rosa afirmou num artigo de sua coluna Letras e Artes que o ambiente artístico brasileiro se concentrava na Capital Federal e em São Paulo onde as atividades culturais ficavam restritas a esses dois centros sem maior difusão nas outras regiões. Para a numerosa população da província, a formação do gosto artístico, nas

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condições em que vive é quase impossível... Exposições de pintura, de escultura, de objetos de arte, de livros, revistas ilustradas estrangeiras, veículos essenciais de informação, fontes de conhecimento imediato, chegam-lhe acidentalmente, ou nunca chegam. O que se pensa sobre arte, na província, sujeito às condições do ambiente, sofre geralmente um considerável recuo de tempo. ...O lado técnico, então, absolutamente sem rumo, eivado de noções erradas, se encontra num estado de semiprimitivismo, pior ainda que uma absoluta ignorância.


Esse é o panorama da vasta província abandonada e povoada de idealistas sacrificados. (BARSANTE, 1982, p. 158).

Segundo ele, a maioria dos artistas espalhados pelo país não participavam do Salão Nacional, estando assim a iniciativa federal beneficiando uma área muito restrita de artistas. O artista aponta como uma das soluções para superar as dificuldades continentais do país a edição de uma revista de arte que pusesse em conexão as várias regiões com a Capital Federal.

Apesar das idas e vindas dos interventores Argemiro de Figueiredo e Rui Carneiro ao Rio de Janeiro nenhuma ponte foi feita entre o governo e esses notáveis intelectuais e artistas paraibanos. A Paraíba era apenas a terra da saudade evocada por imagens idealizadas de Santa Rosa, uma oportunidade para se conseguir uma vaga de senador, como fez Chateaubriand, um reduto vigiado de longe por José Américo, um registro de história familiar, em José Lins ou simplesmente um lugar de veraneio em Tambaú como fazia com freqüência, Simeão Leal.

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Figura 04 Santa Rosa, Tomás. Chafariz da Paraíba, [s/d]

Imagens estereotipadas das baianas, com uma paisagem que sugere o jardim botânico do Rio,

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um chafariz mineiro para finalmente fazer alusão a uma imagem idealizada da Paraíba. Tal mistura se justificava em função de sua busca, nem sempre bem sucedida, de síntese da brasilidade. A Paraíba, no entanto, era apenas uma referência distante que ficou para trás.


2. As exposições Em geral os artistas anunciavam com antecedência sua exposição na imprensa local depois de visitar pessoalmente a redação dos jornais. Antes da abertura da mostra, alguns deles exibiam seus trabalhos em casas comerciais, nas vitrines das ruas mais freqüentadas pelo público burguês, virtual comprador dos seus trabalhos. Foi o que aconteceu com o caricaturista e paisagista Rubem Diniz ao expor um de seus trabalhos na vitrine da casa A Imperial em 1930 (EXPOSIÇÃO DE ARTE, 1930). Às vezes alguns artistas faziam um vernissage especial aos jornalistas horas antes de abrir a exposição. Era costume também, por ocasião da vinda de artista de outros estados ou países, fazer uma visita ao Governador do Estado. Essa tradição na Paraíba já era conhecida desde 1915, quando começaram a aparecer os primeiros artistas expositores. Assim o alagoano F. Lauria que atuava no Recife, antes de abrir sua exposição fez uma visita ao interventor Gratuliano Brito (SERÁ INAUGURADA HOJE..., 1932). Alguns artistas como Lauria tinha uma estratégia comercial exclusiva dirigida ao emergente público feminino, pois logo após encerrar a sua exposição, abriu outra dedicada apenas a esse segmento de público (LAURIA..., 1932). Na busca de ampliar a clientela alguns caricaturistas tanto na Paraíba como Rubem Diniz como Paraguassu na Bahia recorreram a mostras no interior do estado. Se as aberturas das exposições ainda não eram acompanhadas de coquetéis, seguindo exemplo do padrão nacional e até mesmo internacional adotado até os anos cinqüenta (KAHNWILER, 1989), tinham quase sempre a presença de um orador convidado que era seguido da fala dos artistas. Mesmo as exposições não sendo garantia de vendas, elas representavam um espaço de afirmação no plano social desses artistas, quase sempre oriundos do operariado ou da classe média. Elas eram quase sempre prestigiadas pelas autoridades locais como o representante do governo do Estado, do prefeito e chefe de polícia, além de jornalistas e “outras pessoas de distinção social”. Numa época em que o peso do estado ganhava em importância, a presença das autoridades ou de seus representantes dava ao evento uma legitimidade que abria possibilidades de comercialização das obras.

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Um costume muito comum nas aberturas das exposições de artes plásticas, nas três primeiras décadas do século passado, era a presença da banda da polícia militar postada na entrada do evento, anunciando a chegada de cada um dos visitantes. Ela dava o tom solene à mostra ainda pouco divulgado no meio local e chamava o público, integrando-o ao repertório das solenidades de prestígio social. Eram dois os pontos de maior convergência das exposições de artes plásticas no período de 1930 a 1945, o Clube dos Diários, já bem freqüentado nos anos vinte e o Parahyba Palace, local de grande acesso ao público, por se situar no ao lado do Ponto de Cem Reis, lugar de concentração de todos os debates da cidade. Algumas das mostras também ocorreram no Pavilhão do


Figura 5 Paraíba Palace. Antiga entrada.

Chá, espaço semi-aberto também de grande fluxo de público em função do bar a ele agregado, na Livraria Moderna que ficava na Rua Duque de Caxias n.470, onde se vendiam artigos de pintura e desenho (LIVRARIA MODERNA, 1936), no Hall do cine Rex e ainda na Escola Normal, quando se exigia mais espaço expositivo e seleção de público. habituou a adquirir obras de arte, principalmente a partir dos anos vinte, tinha uma população marcadamente de funcionários públicos formada em grande parte pela migração de famílias em declínio econômico com a decadência dos engenhos de açúcar. A elite econômica de perfil rural tinha baixo capital cultural pela falta de instituições como escolas de ensino superior e demais entidades voltadas à cultura. Ademais, a cidade encontrava-se isolada e distante dos grandes centros, sua vida cotidiana era ainda uma extensão da vida rural. A pequena elite econômica, ligada principalmente ao comercio e aos bens de serviço, buscavam primeiro outros símbolos de distinção como o automóvel, o Rádio, eletrodomésticos, telefone e mesmo propriedades rurais e casas de veraneio. Os objetos de luxo estavam restritos aos bens de consumo mais ostensivos como jóias, vestimentas ou então mobiliário. Obras de arte eram vistas quase sempre como um adorno supérfluo. O escritor Horácio de Almeida, um dos poucos colecionadores de obras de arte da época, notadamente antiguidades, assim descreve o interior das casas, em João Pessoa:

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João Pessoa, ao contrário de Salvador onde havia uma rica burguesia comercial e agrária que se

Os salões particulares pelo que temos visto são limpos de quadros à óleo e

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os que são quase todos de valor duvidoso, menos um de Portinari que José Simeão aportou com ele à terra, adquirida não se sabe como.


(...) Na Paraíba poucas são as coleções particulares e é pena que os homens de gosto por estas bandas sejam em número reduzido e não dispõem de maiores recursos. (ALMEIDA, 1942, p. 4).

Diante dessa situação, poucos se dispunham a enfrentar os riscos de uma atividade artística profissional. Os insumos eram caros e a expectativa de retorno não era garantida. Não havia nenhuma escola de arte onde pudesse se aperfeiçoar e com isso ganhar legitimidade junto à sociedade local como acontecia em Salvador, Porto Alegre e Recife. Afora isso, o poder aquisitivo de uma comunidade composta majoritariamente de funcionários públicos era baixo. Por isso até mesmo a maioria dos artistas de fora preferia produzir aquarelas que tinham baixo custo e podiam ser vendidas por preços mais baixos do que quadros a óleo pintados com caras tintas importadas. Mesmo assim, com a revolução de Trinta, o nome da Paraíba conseguiu atrair alguns artistas aventureiros na expectativa de algum lucro. A maioria deles era caricaturista que traziam algumas paisagens decorativas ao gosto da classe média e compatível com o seu poder aquisitivo. João Pessoa chegou a despertar a atenção do grupo de artistas modernos de Pernambuco como Augusto Rodrigues, Percy Lau, Helio Feijó e Elezier Xavier. Nos anos trinta a estrada João Pessoa-Recife, apesar de precária e de chão batido garantia a comunicação entre as duas capitais por terra. Mesmo tendo sido todos anunciados na imprensa só encontramos registro, dentre os artistas pernambucanos, da exposição de Elezier Xavier, no Paraíba Palace, em 1936 com quarenta quadros, entre retratos, paisagens pernambucanas e estudos Os trabalhos desse artista são de perfil expressionista, abordando nos retratos o drama social dos retirantes. Diferente da exposição do artista acadêmico gaúcho Miguel de Barros, em 1935, mais voltado para o público de elite, a exposição de Elezier, no Paraíba Palace teve a visitação de “numerosas pessoas de todas as classes sociais” (XAVIER, 1936). O local já sinalizava um maior contato com o público em função de sua localização na confluência principal da cidade. Quanto a Helio Feijó e Percy Lau, eles tiveram seus trabalhos divulgados na revista Ilustração, periódico paraibano da época (EXPOSIÇÃO HÉLIO FEIJÓ-PERCY LAU, 1936). De estados mais distantes visitaram ainda a Paraíba, afora os caricaturistas, o já citado Miguel de Barros, em 1935, o italiano Alfredo Norfini, em 1933, o bahiano Plínio de Almeida, em 1936. Além disso, foi organizada uma mostra de arte húngara em 1940, trazida pelo Sr. Nicolau Rotman. Miguel de Barros teve um destaque social mais significativo, com presença do Interventor pres-

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tigiando o evento nas duas oportunidades que visitou a Paraíba. A primeira delas, em 1935, no Salão Nobre da Escola Normal onde se realizavam muitos concertos da Sociedade Cultura Musical. Era um espaço de elite no mais suntuoso dos edifícios da capital paraibana construído na década de vinte. O evento teve um caráter mais solene, pois a vernissage se deu à noite às vinte horas e não como a maioria das mostras que ocorriam no período da tarde. O artista tinha um trabalho de fatura impressionista e formação acadêmica com alguns temas de alusão nacional como o retrato de Zumbi dos Palmares destacado e reproduzido pela imprensa. A mostra, muito visitada teve um “publico seleto” e “grande entusiasmo em


Figura 6 Miguel de Barros. Foto.

nossas rodas artísticas, sendo mesmo, tida como um verdadeiro acontecimento a registrar em nossa vida cultural e mundana”. Alguns quadros foram vendidos e o pintor prometeu trazer até o final da mostra, quadros novos feitos a partir da paisagem paraibana (NOTAS DE ARTE, 1935). Miguel de Barros, pintor gaúcho que se radicou em São Paulo onde abriu uma das primeiras galerias de arte paulistas, à Rua Barão de Itapetininga, era também conhecido como Barros, o Mulato, uma denominação que denota uma valorização da negritude que aconteceu na década de trinta tanto nos meios intelectuais, principalmente de Recife e de Salvador, onde se deram os dois congressos Afro-Brasileiros, como no nascente movimento negro brasileiro. Não por acaso, o quadro que o artista fez questão de reproduzir tanto na sua exposição em João Pessoa como em Salvador foi Zumbi dos Palmares.

O Bahiano Plínio de Almeida, redator do jornal A Tarde de Salvador, abriu sua mostra no Paraíba Hotel em 1936 com 60 telas, a maioria paisagens feitas ao natural. Era um pintor de perfil acadêmico com premio de viagem à Europa pela Escola Nacional de Belas Artes. Não há registro de vendas apesar da grande visitação de público o que era muito comum naquela época quando o poder aquisitivo da classe média era muito restrito.

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Clube Astrea voltado ao público feminino e de perfil mais popular, pois incluía caricaturas. Esses artistas eram aventureiros e buscavam vender seus trabalhos montando exposições em vários estados brasileiros uma vez que o mercado do eixo Rio-São Paulo, além de ser restrito tinha grande concorrência. Isso explica a peregrinação do artista, radicado em São Paulo, Alfredo Norfini que também visitou a Bahia no mesmo período. Ele trazia aquarelas com paisagens de várias regiões do Brasil onde esteve como Belém, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre (EXPOSIÇÃO DE AQUARELAS, 1933).

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Logo após a mostra da Escola Normal no mês seguinte o artista abriu outra exposição no


Mesmo o gaúcho Miguel de Barros com toda a estratégia de vendas voltada para a elite econômica, não conseguiu um sucesso de vendas (INAUGUROU-SE HOJE... 1936). A exposição húngara promovida pelo marchand Nicolau Rotman trazia à Paraíba trabalhos de artistas húngaros, certamente migrantes fugidos da Grande Guerra e alguns deles radicados na Argentina. Percebendo as limitações do mercado de arte nas grandes cidades, esses aventureiros saíam em busca de novos mercados nas várias capitais brasileiras de porte médio tentando vender seus produtos vistos quase sempre como curiosidade exótica e distante (EXPOSIÇÃO DE ARTISTAS HÚNGAROS, 1940). Além do caricaturista Rubem Diniz, registra-se como uma das poucas vocações paraibanas que arriscou a se lançar no mercado de arte, Milton Chaves que realizou uma exposição de bico de pena no Paraíba Hotel, em 1940.

Figura 7 Rubem Diniz. Argemiro. Bico de pena. [19--].

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Figura 8 Milton Chaves. Rui Carneiro. Bico de pena, 1940.

Milton Chaves foi outro artista ligado à imprensa que fez uma exposição individual no Paraíba Palace, em 1940, e chegou a anunciar uma segunda, no mesmo ano. Numa época onde a imagem era muito importante por conta do cinema e da publicidade, a ilustração ganhou um papel muito ativo até o final dos anos cinqüenta. Muitas vocações começaram pela ilustração depois que a voga das caricaturas entrou em declínio. O trabalho de Milton Chaves é semelhante aos bicos de pena de Rubem Diniz e eram produzidos baseando-se na fotografia. Os jornais apelavam para a ilustração de modo a suprir as deficiências técnicas da reprodução de fotos. Outro artista que utilizou essa linha de trabalho transpondo fotografias para o bico de pena foi o fotógrafo Eduardo Stuckert, professor do Liceu que tinha um studio de fotografias famoso na cidade. Além disso, fazia cartões postais da capital desde os anos trinta, em concorrência com


o pintor e fotografo Olívio Pinto. Stuckert foi o único artista paraibano a realizar uma exposição individual no Museu de Belas Artes na época, lugar disputadíssimo pelos artistas brasileiros. Certamente, o prestígio dos políticos paraibanos no governo federal tenha facilitado a abertura de portas para o MNBA. Foram 46 paisagens paraibanas em bico de pena e nanquim retratando Tambaú, Mamanguape, Cabedelo, vendedores ambulantes e tipos locais. Realizada em 1942 no Rio de Janeiro a exposição foi prestigiada pessoalmente pelo interventor Rui Carneiro (EXPOSIÇÃO DE EDUARDO STUCKERT, 1942). Curiosamente não há registro de nenhum critico paraibano radicado no Rio de Janeiro ou intelectual notável da Paraíba, entre os vários que cercava o governo federal por essa época, afora o Interventor Rui Carneiro. Stuckert, assim como o fotografo e desenhista Walfredo Rodrigues, participou de ilustrações e elaboração de capas de revistas como Ilustração e Manaíra. Foi nesse campo da ilustração que dois artistas paraibanos conseguiram elaborar alguns trabalhos de perfil moderno, introduzindo, assim, o modernismo na arte da Paraíba, pelo menos dez anos depois da exposição do pernambucano Joaquim do Rego Monteiro, em 1924, que realizou a primeira mostra de arte moderna no Estado (BECHARA FILHO, 2001). O trabalho de bico de pena do médico Arnaldo Tavares para a Revista Manaíra em agosto de 1940 revela uma nítida influência das ilustrações de Di Cavalcanti que eram conhecidas já na década de trinta em todo o Brasil por revistas como O Malho.

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Figura 9 Arnaldo Tavares. Ilustração, 1940.

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Figura 10 Di Cavalcanti. Capa de O Malho, 2 ago. 1934.


Dessa forma o modernismo nas artes plásticas difundiu-se pelo Brasil já que os modernistas não saíram dos guetos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Essa influência marcante de Di Cavalcanti pode ser observada já na década de trinta no trabalho de Rubem Diniz, que ilustrou capas da revista paraibana “Ilustração” . Foi nessa publicação que o artista mostrou seu talento, principalmente pela linguagem bastante despojada e quase abstrata de seus desenhos. Isso fica bem evidente no seu trabalho de capa para a revista Ilustração “Phantasia Tropical”, em 1937, e “Coqueiros” , em 1939. No trabalho “Coco”, em 1938, sobre as danças populares da praia de Tambaú, o artista aproxima-se do esquematismo do desenho do também ilustrador pernambucano Lula Cardoso Aires e do movimento empregado por Di Cavalcanti em alguns dos seus trabalhos. Artistas dedicados exclusivamente à ilustração, como Cortez no Rio de Janeiro, assimilaram aspectos da ilustração e do desenho moderno que circulavam por todo o Brasil, influenciando, certamente, Rubem Diniz. Nesses três trabalhos de Rubem vale a pena destacar o papel significativo que as praias nordestinas ganharam na vida social da região nos anos Trinta.

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Figura 11 Rubem Diniz. Phantasia Tropical, 1937.

Figura 12 Rubem Diniz, Coco, 1938.

Significativo é notar essa diferença de tratamento dado pelo público, em todo o Brasil, entre o trabalho gráfico que poderia ser de estilo moderno, sem maiores restrições, e as exposições de pintura que no máximo poderia ser em estilo impressionista. Isso ocorria por ser a ilustração considerada como artefato descartável e de consumo da Indústria Cultural e não como arte para ser exibida no circuito oficial que deveria obedecer a um tratamento mais tradicional. Infelizmente, por não contar com um movimento editorial significativo a arte desses dois artistas não tiveram espaço para se desenvolver. Apenas Arnaldo Tavares retomaria seu trabalho na Paraíba no final dos anos quarenta.


A fotografia, no entanto, foi a arte que mais catalisou profissionalmente as atenções das artes visuais na Paraíba a partir dos anos trinta até o final da guerra. Isso não foi por acaso, além das razões que já apontamos da entrada maciça da Indústria cultural onde as imagens fotográficas e cinematográfica exerciam papel predominante, o baixo poder aquisitivo da classe média de João Pessoa grande consumidora de fotografias, o momento político vivido na Paraíba e a rapidez dos acontecimentos, exigiam uma mídia mais ágil para um público cada vez mais ávido por imagens reais dos acontecimentos. Não esqueçamos que a década começou com o retrato de João Pessoa fotografado em Recife minutos antes de seu assassinato, foto que se tornou um ícone nacional. Transposto para a tela na Paraíba e no Rio de Janeiro, a imagem saiu em procissão solene pelas ruas dessas duas cidades. A imagem fotográfica ganhou uma força que a pintura jamais poderia traduzir. Em função deste boom da fotografia o pintor Olívio Pinto que teve atuação importante nos anos vinte, abriu seu atelier de fotografia na Rua Duque de Caxias n. 576, em 1931. O Foto Pintura se tornaria um dos mais importantes studios de fotografia durante três décadas, documentando em forma de postais a paisagem da capital. Olívio oferecia seus serviços fotográficos aliado à pintura, pois suas ampliações poderiam ser em sépia e pastel. Na sua pequena galeria de retrato constava a imagem de figuras destacadas do meio local como o Interventor Antenor Navarro, Odon Bezerra, José Américo e Epitácio Pessoa. (EXPOSIÇÃO DE ARTE FOTOGRÁFICA, 1931). O próprio nome do studio revela essa migração da pintura local para a fotografia o que se repetiria com os artistas Frederico Falcão e João Pinto Serrano. Não foi por acaso que as duas exposições de artista paraibano na primeira metade da década de quarenta, afora os bicos de pena de Milton Chaves, em 1940, foram as do fotografo e cineasta Walfredo Rodrigues. A primeira delas “Do tempo dos azulejos e beirais”, em 1942, apresentava fotos antigas da cidade e imagens de recantos de ruas coloniais no momento em que a cidade partia em direção a Avenida. Epitácio Pessoa e adjacências. Por seus preços mais acessíveis a exposição teve amplo sucesso com a aquisição de inúmeros trabalhos pela classe média paraibana (DO TEMPO DOS AZULEJOS..., 1942). arte da Paraíba na cidade de Areia, em 1943, dedicado a homenagear o pintor Pedro Américo que naquele ano completava cem anos do seu nascimento. As múltiplas festividades oficiais envolvendo esse evento caracterizaram-se pela superficialidade das ações simbólicas e retóricas. De concreto desapropriou-se a casa onde nasceu o artista para funcionar um museu, reeditouse um livro de autoria do embaixador Cardoso e Oliveira sobre o artista, e encomendou-se um busto, cópia do existente no Rio, para ser instalado na cidade de Areia. Além disso, foi feito o translado do mausoléu de João Pessoa para a cidade de Areia, como originalmente o artista pedira (A PRÓXIMA COMEMORAÇÃO..., 1943), e uma exposição de reproduções de obras de Pedro Américo foi exibida no Paraíba Palace depois seguiu para ser exposta no museu (CENTENÁRIO DE PEDRO AMÉRICO, 1943).

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A ação governamental de apoio às artes plásticas reduziu-se à criação do primeiro museu de

A exumação do corpo de José Américo foi transmitida pela rádio oficial Tabajara. No auditório

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da rádio foram proferidas várias palestras. Motivado pelos acontecimentos germinou-se a idéia


da criação de um museu do sertão abordando temas antropológicos sobre o homem da região; essa idéia, inspirada em Gilberto Freyre, não foi além dos discursos retóricos que se multiplicaram na imprensa e nas solenidades. Entre as manifestações na imprensa local, destacou-se um articulista que apontou para as dificuldades sentidas pelo artista plástico na virada do século XIX para o XX, ignorando completamente a ausência quase que completa de atividade artista na própria época na Paraíba por falta de estímulo: A incompreensão que asfixiou o pintor Pedro Américo foi a mesma que reduziu um grande paisagista da tempera de Teles Jr. a transformar a arte em ofício e passar a vida ensinando desenho e retocando retratos. (CENTENÁRIO DE PEDRO AMÉRICO, 1943, p. 4).

O evento teve uma mobilização sem precedentes com uma comitiva de 200 pessoas no trem da Gret Western, cidade de Alagoa Grande donde partiram depois em ônibus para a cidade de Areia. Presentes na comitiva encontravam-se o Bispo, a banda, a imprensa, e membros do Instituto Histórico e da Academia de Letras, além de políticos e autoridades (CENTENÁRIO DE PEDRO AMÉRICO, 1943b). Nessa ocasião foi lançado o prêmio Pedro Américo pelo decreto lei n. 417, de 28 de abril para

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custear com uma bolsa de estudos no Rio de Janeiro um jovem talento (PRÊMIO PEDRO AMÉRICO, 1943). Da comissão julgadora participaram Horácio de Almeida, autor de um livro sobre Pedro Américo lançado durante os festejos; Leon Clerot, pesquisador e desenhista; e Clodoaldo Golveia engenheiro e arquiteto, autor do Liceu Paraibano, entre outras edificações modernas da cidade. Foi contemplado no concurso o aluno do Liceu Sady Casimiro que um ano depois mandava um desenho seu de auto-retrato. Tentou-se de forma anacrônica repetir o feito cem anos antes quando foi criada a primeira bolsa de estudos para o jovem Pedro Américo bancado pelo governo da Paraíba.1

Figura 13 Sady Casimiro. Auto-retrato. 1944.

No momento em que a Paraíba tinha um grupo de artistas e críticos de arte atuante no Rio de Janeiro que poderia, nessa ocasião, dar uma contribuição importante para deslanchar a atividade artística na cidade com um perfil renovador, montava-se um grande cenário para reforçar


a arte acadêmica cujo maior representante foi o paraibano Pedro Américo. Não por acaso, na mesma época, publicou-se no jornal oficial “A União”, um artigo de Rafael de Holanda sobre a exposição de Lasar Segall promovida pelo governo Vargas no Museu Nacional de Belas Artes que qualificava o artista como “embaixador da arte degenerada” (HOLANDA, 1943). No ano seguinte o artista primitivo Pedro da Rocha de Campina Grande, fazia sua individual no Paraíba Palace com 27 trabalhos a óleo com motivos regionais (SERÁ INAUGURADA..., 1944). O movimento artístico na Paraíba ficou ainda mais tênue durante a primeira metade da década de quarenta. Em 1945 houve apenas a exposição do pintor pernambucano Agenor César, com 50 quadros a óleo e aquarela, sendo que três retratando a cidade de Areia na Paraíba. O governo do Estado que desde a década de vinte não adquiria obas de arte comprou um trabalho do artista retratando a cidade de Areia. Afinal, Areia era a cidade natal da velha oligarquia Leal que governou a Paraíba junto com a família Machado durante vinte anos de 1894 a 1915 e cujo poder foi retomado por José Américo de Almeida, em 1930, continuando inabalável por mais cinqüenta anos.

Nota Sady Casimiro estudou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro onde veio a se formar e a ensinar como professor até a sua aposentadoria. 1

Referências A PRÓXIMA COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE PEDRO AMÉRICO. A União, João Pessoa, p. 3 e 4, 10 fev. 1943. A PRÓXIMA EXPOSIÇÃO DE CLÁUDIO DAMASCENO. A União, João Pessoa, p. 7, 14 jun. 1939. ALMEIDA, Horácio. Arte antiga na Paraíba. A União, 2 fev. 1942.

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AS CARICATURAS DE J. MIRANDA. A União, João Pessoa, p. 8,15 maio 1933.

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CENTENÁRIO DE PEDRO AMÉRICO. A União, João Pessoa, p. 4, 1 maio 1943b.


CENTENÁRIO DE PEDRO AMÉRICO. A União, João Pessoa, p. 4, 16 abr. 1943. DO TEMPO DOS AZULEJOS E BEIRAIS À CIDADE DE HOJE. A União, João Pessoa, p. 3 e 5, 10 out. 1942. EXPOSIÇÃO DE AQUARELAS. A União, João Pessoa, p. 11, 19 fev. 1933. EXPOSIÇÃO DE ARTE FOTOGRÁFICA. A União, João Pessoa, n. 143, p. 8, 28 jun. 1931. EXPOSIÇÃO DE ARTE. A União, João Pessoa, p. 2, 15 jan. 1930. EXPOSIÇÃO DE ARTISTAS HÚNGAROS. A União, n. 280, p. 3,14 dez. 1949. EXPOSIÇÃO DE EDUARDO STUCKERT. A União, João Pessoa, p. 7, 10 mar. 1942. EXPOSIÇÃO DE RUBEM DINIZ. A União, João Pessoa, p. 3, 9 nov. 1931. EXPOSIÇÃO HÉLIO FEIJÓ-PERCY LAU. A União, João Pessoa, p. 3, 7 jun. 1936. GALERIA NOBRE. O Povo, João Pessoa, p. 2, 2 abr. 1936. GRINBERG, Piedade Epstein. A ENBA na imprensa carioca nos anos 40: A repercussão dos embates acadêmicos e modernos. In: 180 anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, p. 443-450. Anais do Seminário EBA 180. HOLANDA, Rafael. Arte degenerada. A União, João Pessoa, p. 7, 3 jun. 1943. INAUGUROU-SE HOJE A EXPOSIÇÃO DO PINTOR PLÍNIO DE ALMEIDA. A União, João Pessoa, p. 8, 21 mar. 1936. KAHNWEILER, Daniel-Henry. Minhas galerias e meus pintores. Porto Alegre: L&PN, 1989. LAURIA, PINTOR DE ALMAS. A União, João Pessoa, p. 8, 15 set. 1932. LIVRARIA MODERNA. Folha do Estado, João Pessoa, p. 5, 21 dez. 1936. MORAIS, Frederico. Núcleo Bernadelli: Arte brasileira nos anos 30 e 40. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense, 1967. NOTAS DE ARTE. A União, João Pessoa, p. 8, 21 abr. 1933. NOTAS DE ARTE. A União, João Pessoa, p. 8, 21 ago. 1935. Paraíba. A União, João Pessoa, p. 5, 1943.

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La intención paradójica del arte conceptual Mariela Brazón Hernández*

Resumen En este artículo exponemos algunas consideraciones de corte semiológico sobre el poder comunicativo del Arte Conceptual, sus ramificaciones y expresiones afines. El eje central de las reflexiones es la vinculación entre la fruición estética y los códigos implícitos – tanto los trabajados por el artista, como los que domina el propio fruidor. Son examinados los diálogos que se establecen entre la intencionalidad creativa del artista conceptual y la reacción del público ante ese tipo de obra. Palabras clave: Arte Conceptual, Fruición Estética, Semiología, Comunicación.

Resumo Neste artigo expomos algumas considerações de corte semiológico sobre o poder comunicativo da Arte Conceitual, suas ramificações e expressões afins. O eixo central das reflexões é a vinculação existente entre a fruição estética e os códigos implícitos –tanto os trabalhados pelo artista, quanto os que domina o próprio fruidor. São examinados os diálogos que se estabelecem entre a intencionalidade criativa do artista conceitual e a reação do público perante esse tipo de obra. Palavras chave: Arte Conceitual, Fruição Estética, Semiologia, Comunicação.

dades comunicativas y de la posibilidad de ser considerada como elemento integrante de un lenguaje asaz característico: el lenguaje artístico. Así, diversas tesis han visto la luz, amparadas inicialmente en premisas vinculadas a las teorías lingüísticas, para luego ampliarse progresivamente en los sentidos dictados por las particularidades artísticas.1 Quizá entre los estudios más interesantes de la semiología del arte estén los que se dedican al problema de la fruición estética, entendida como la capacidad que poseen los receptores para el disfrute y el entendimiento de la obra, de acuerdo al sistema de códigos que manejan, tanto éstos, como los emisores, que en este caso son los artistas. Más atrayente aún se torna el asunto cuando nos concentrarnos en una de las manifestaciones artísticas contemporáneas que más ha sido blanco de polémicas y juicios, entre otras razones por su hermetismo, su inaccesibilidad al público y por la manera radical como rompió con ciertos presupuestos tradicionales. Nos referimos al Arte Conceptual, surgido a finales de los años 60 en Europa y Norteamérica, con la determinación de hacer predominante la idea o concepto subyacente a la obra, y de despertar la reflexión sobre el arte, su práctica y los procesos asociados.

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Desde hace varias décadas la obra de arte ha sido objeto de estudio en función de sus cuali-

* Pesquisadora em História das Artes Visuais; Doutora em Artes Visuais (Escola de Belas Artes – UFRJ); Mestra

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em Artes Visuais (Escola de Belas Artes – UFRJ); Graduada em História da Arte (Universidade Central da Venezuela) e em Ciências da Computação (Universidade Central da Venezuela). Atualmente reside em Salvador, Bahia, onde realiza pesquisas sobre Arte Cinética, Relações Arte-Ciência e Arte Latino-americana. E-mail: marielabrazon@yahoo.com.br


Concebir la obra de arte como texto,2 según Eco, parece guardar relación con la factibilidad de que sus “reglas de generación” sean concordantes “con sus propias reglas de interpretación”.3 En el caso particular del arte contemporáneo, este vínculo puede resultar para muchos, más que natural, necesario, debido a los grandes giros que sorpresiva y continuamente da el arte, a la diversidad de sus propuestas y a las rupturas que la esencia misma del fenómeno artístico ha vivido en nuestros días. Para semiólogos como Eco, adoptar la noción de texto en el estudio del arte implica abrir los límites de lectura de la obra en función de “otros textos, otras experiencias del autor y del lector, independientemente del soporte material con que han sido realizados”.4 Esto significa que la lectura del arte se ha de enriquecer con datos que, lejos de ser superfluos o externos al fenómeno de estudio, puedan a mpliar nuestra visión del mismo. Antes de juzgar el poder comunicativo del Arte Conceptual, se hace necesario recordar dos factores que tomaremos en cuenta en nuestra reflexión. Siguiendo las ideas de Gillo Dorfles, reconocemos al menos dos categorías de fruición de la obra de arte. Por una parte, está el disfrute de la misma en función de la información que ella transmite; esta categoría corre el peligro de caer rápidamente en la obsolescencia ya que a medida que una obra es más conocida, ella pasa a ofrecer progresivamente menor cantidad de datos novedosos. Por otra, está el disfrute en función de los valores implícitos en la obra (valores que pueden ser fácilmente confundidos con los placeres que produce su comprensión). Dorfles señala: “…en el caso de obras menos accesibles, la dificultad de la fruición hará que el valor sea puesto en segundo plano y no prontamente reconocido”,5 por lo que el público prestará más atención al cociente informativo de la obra. Ahora bien, en el caso específico del Arte Conceptual es bastante común que el espectador sienta inquietud, antes de disfrute. Es claro que el público más familiarizado con el fenómeno artístico conceptual tendrá una idea más precisa de cuál tipo de arte está confrontando. Veremos a seguir cómo actúan, tanto artistas como público, ante esta situación de desinformación (que puede ser producida por desconocimiento de las intenciones de los creadores, de los códigos manejados en la obra, de los códigos manejados por el espectador, etc.) y de reserva (situación evidente cuando, por ejemplo, el público no consigue reconocer valores en la obra y procede a criticarla abiertamente). El Arte Conceptual – a diferencia de los movimientos predecesores – se aboca a reflexionar sobre el fenómeno artístico más desde un ángulo cognoscitivo que perceptivo, dejando en un segundo plano el componente material y dando preponderancia al proyecto o idea por encima de la concreción final. Los artistas conceptuales aspiran a “...estimular la capacidad imaginativa del observador con incitaciones específicas a la acción o a la reflexión”.6 El binomio signifi-

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cante/significado se inclina a favor del segundo componente, el cual está asociado al plano de contenido de la obra, a menudo de difícil elucidación para el espectador común. Como afirma Simón Marchán Fiz, refiriéndose a la obra conceptual, “su recurso a medios relativamente desmaterializados se apoya en significantes diversos, reducidos a la mínima expresión y superando 8

las imágenes “bellas” y consistentes del arte tradicional”. Nótese que en el Arte Conceptual se amplían los límites expresivos de la obra, en el sentido de multiplicar opciones hacia nuevos materiales y/o técnicas, pero, a la vez se le resta trascendencia a la ejecución material, haciéndola en ciertos casos prácticamente desestimable. Así, el proceso de significación – “acto que une significado y significante”9 – se presenta, al menos parcialmente, escindido.


Obsérvese la gran cantidad de elementos novedosos que el espectador común enfrenta al entrar en contacto con una obra conceptual: nuevos propósitos en el arte (ligados a las reflexiones personales de los artistas, quienes pretenden, en no pocos casos, transmitir mensajes muy individuales10); nuevos materiales (que, a menudo e inevitablemente, atraen la atención hacia el plano expresivo de la obra, aunque ésa no sea la intención del artista); nuevos límites en lo que respecta a los dominios del arte (pues, como lo indica Karin Thomas: “El arte [conceptual] alcanza el problema límite de su praxis, e interfiere en cuestiones de la teoría del conocimiento”;11 y nuevas relaciones entre materialidad e intencionalidad, es decir, pluralización de las correspondencias existentes, ya sea entre el contenido que se quiere transmitir y los elementos matéricos que participan en su concreción, o entre el cuerpo matérico escogido y la gama de posibles significados que pueden ser transmitidos. Es claro que sería extremadamente simplista llegar a creer que el artista conceptual desea transmitir mensajes unívocos. Ni los mensajes son unívocos, ni la intención es transmitir algo definitivo. En relación a la unicidad comunicativa del arte contemporáneo, recordemos que ya Umberto Eco señalaba en su Tratado de Semiótica General (1975) lo conveniente que resulta, en vez de insistir en una correspondencia simple entre significado y significante, recurrir al concepto de “función semiótica” entendida como “...correlación (de dimensión variable) entre el plano de la expresión y el plano del contenido”.12 Este concepto surge cuando Eco y otros estudiosos perciben que, lejos de existir una correspondencia singular y fija entre un significado y un significante, lo que existe es una correspondencia múltiple entre varios significados y varios significantes. Desde este punto de vista, el discurso se presenta bajo una óptica más compleja, y la interpretación de la obra se hace más abierta, dado que las posibilidades de lectura se diversifican.13 En relación al propósito de transmitir “algo”, creemos que el artista conceptual lanza al aire, más bien, preguntas y reflexiones, y no sentencias, interesándose por ser más un analista que un comunicador social – lo cual, sea dicho de paso, no excluye el deseo de ser visto, exhibido y comercializado. Recordemos, en este sentido, la opinión de Joseph Kosuth, cuando sostiene que el Arte Conceptual es actividad no debe limitarse a la formulación de propósitos artísticos, sino que debe ir más allá, analizando la función, el significado y el uso de cualquier proposición (artística). (KOSUTH apud LUCIE-SMITH, 1980, p. 430)

En varios casos, lo que el público o los críticos piensan de la obra guarda relación muy endeble con lo que originalmente se planteó el autor de la misma; a menos que aquéllos hayan sido informados, por vías complementares, de las intenciones del artista. También sucede con frecuencia que la reflexión del espectador va más allá de lo que inicialmente quiso transmitir el artista; y así, “el momento creador se sitúa en la realización del boceto, que convierte al observador en integrante activo de la producción artística, en cuanto que éste, en cierto modo, elabora la idea”.14

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…un interrogante que se plantean los artistas, que han comprendido que su

Hechos como éstos nos obligan a considerar como necesaria la apertura de los métodos de análisis del arte contemporáneo, en función del desbordamiento que han sufrido sus límites. Los

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parámetros de juicio deben acompañar esta démarche. Es completamente desacertado esperar


del Arte Conceptual lo mismo que esperábamos del arte más tradicional. Dicho arte no está hecho para que guste, entonces... ¿por qué ha de llamar tanto la atención, o hasta preocupar, el hecho de que no agrade o que disguste? Por el contrario, en vista de que el mismo propone, entre otros objetivos, el fin de la contemplación y aceptación pasiva de la obra de arte, deberíamos dar más atención, como críticos e historiadores, justamente a las opiniones de los espectadores que lo enjuician y condenan, y tratar de detectar en ellas la esencia de cuestionamientos inéditos sobre el arte mismo. Recordemos que el Arte Conceptual en muchos casos se propone “atacar” la pasividad demostrada por las masas ante ciertas “verdades” establecidas en la tradición artística, las cuales aparentan estar suficientemente claras para todos. Mientras que, por una parte, las propuestas conceptuales pretenden hacer que el espectador reflexione críticamente, por otra, están inevitablemente ligadas al Yo del artista. La conexión, difícil de desentrañar, entre significado y significante (es decir, entre la idea a transmitir y el vehículo material de la misma), produce “opacidad”15 en el discurso. Las dificultades que surgen al querer emitir un mensaje en cierta medida específico, darle preponderancia a la idea por sobre la materialización de la misma, estimular al lector de la obra haciéndolo reflexionar y, a la vez, lograr que se lleve a cabo algún tipo de comunicación, no pasaron por alto para la mayoría de los artistas conceptuales. Recordemos, en este sentido, las palabras de Sol LeWitt en sus conocidas Sentencias sobre arte conceptual (1968): La obra de arte se puede entender como un conductor que va de la mente del artista a la del espectador. Pero puede suceder que no llegue hasta el espectador, o que no salga de la mente del artista. (LEWITT apud MARCHAN FIZ, 1988, p. 414)

Las observaciones anteriores son más o menos válidas según sea la vertiente del Arte Conceptual a la cual nos estemos refiriendo. Por ejemplo, la tendencia lingüística – cuyo mayor exponente es Kosuth – revela una fuerte intención analítica del fenómeno artístico. Sus propuestas se han caracterizado por la atención dada a los “modelos del lenguaje científico”, a su hermetismo y a su desinterés en el objeto material.16 Kosuth nos da una idea de cuan rigurosas son sus ideas cuando afirma: “Las obras de arte son proposiciones analíticas. Es decir, si son vistas dentro de su contexto – como arte – no proporcionan ningún tipo de información sobre ningún hecho”.17 Otras tendencias conceptuales mantienen, hasta cierto punto, nexos con el arte de inicio del siglo XX, en la medida en que “profundiza[n] el análisis de la percepción como fundamento de conocimiento”.18 Sin llegar a dar al objeto mayor relevancia que a la idea, los exponentes de esta tendencia no lo condenan a su desaparición, pero sí a su reformulación.

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Inclusive dentro de una modalidad específica de raíz conceptual, como es el body art,19 es posible identificar ciertas manifestaciones más dispuestas a transmitir informaciones al espectador (ej. la corriente cinésica del body art, que es la que se preocupa por el sistema gestual del ser humano),20 y otras más vinculadas a la “auto expresión” del artista, en acciones que no necesitan tanto la presencia del espectador (ej. el body art antropológico, que es aquel centrado en la problemática del cuerpo).21 Algunos artistas conceptuales, como Agnes Denes, consideran necesario “acompañar” sus obras con textos.22 Esos textos, lejos de ser “agregados” externos a la obra, son parte integrante de la


misma. Según Lucie-Smith, algunos tienen como objetivo dar al espectador ciertas informaciones para entender el proceso mental del artista.23 En ocasiones, cumplen la misma función de las leyendas, sin las cuales un plano o un esquema no podrían ser interpretados. Estas “claves” están allí para ayudar al “lector” de la obra de arte, enriqueciendo su repertorio de códigos, a fin de hacer más “transparentes” las intenciones del autor. Esta ayuda que recibe el espectador ha sido objeto de crítica por parte de ciertos artistas conceptuales que piensan que las palabras son del todo innecesarias para completar la significación de una obra, pues entorpecen su fruición. Otros han empleado el recurso en forma un tanto excesiva, al instalar enormes paneles explicativos cerca de las obras, con la intención de textualizar lo más posible su contenido. En nuestra opinión, estos casos resultan altamente pesados para el espectador, debido a la transferencia excesiva de información. En ellos se corre el riesgo de reducir las posibilidades de participación del público, el cual acaba actuando de manera aún más pasiva de como lo haría ante obras tradicionales. La propia naturaleza del Arte Conceptual parece no aceptar tan fácilmente recursos explicativos provenientes de sistemas de comunicación convencionales, como el lenguaje oral o el escrito, dado que la información complementar actúa más como “ruido” que como dato.24 El contacto con la obra conceptual, si bien no necesariamente comunica con claridad un mensaje determinado – en el sentido más estricto de la palabra –, despierta, sí, en el espectador la curiosidad, la formulación de preguntas y de posibles respuestas vinculadas a lo que está apreciando. Las palabras de Sol LeWitt son bastante explicativas en este sentido, cuando asegura que “la percepción de ideas conduce a nuevas ideas”.25 El que entra en contacto con el Arte Conceptual no permanece sin reacción. Por el contrario, en la gran mayoría de los casos cuestiona, piensa, trata de explicar lo que ve, llegando, en la “peor” de las hipótesis, a juzgar negativamente y hasta condenar la adjudicación de valores artísticos a la “obra” que contempla. Como diría Gillo Dorfles, el Arte Conceptual es “una forma viva del arte”, pues sorprende, causa rechazo, “actúa como despertador”. Mientras el Arte Conceptual continúe distanciado de nuestro “sistema de esperas” caerá más difícilmente en el desgaste y la obsolescencia.26

Sabemos entonces que el Arte Conceptual plantea el autoanálisis del Arte. No obstante, urge cuestionarse: en relación a la reflexión del espectador, ¿cuáles serían las herramientas o pistas que se le han de dar como punto de partida?, ¿hasta qué punto esas pistas tienen el compromiso de ser esclarecedoras? y, en relación a la reflexión del artista, ¿qué papel le resta cumplir al espectador cuando la meditación del autor ya se haya concretado materialmente en la obra? En la obra conceptual está en juego, por una parte, la posición del artista, plasmada a menudo con mucha complejidad, dado que los indicios que ofrece para “entender” su reflexión son

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significativa del dominio de reacciones posibles. Antes de juzgar el nivel de comunicabilidad alcanzado por ese tipo de arte, habría que tener presente que “...de lo que se trata, por encima de un antiobjetualismo a ultranza e indiscriminado, es de desplazar el énfasis en el objeto a favor […] de la conducta perceptiva, imaginativa o creativa del receptor”.27 Al menos teóricamente, los conceptualistas conciben como parte importante de su obra la reacción del público, el cual busca, más que información “lógica”, algo que es “ilógico, intraducible, referente a una información personal e íntima”.28

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Pensamos que las actitudes “negativas” ante la obra conceptual son una parte importante y


herméticos y, por lo tanto, difíciles de decodificar. Por otra, está la reflexión del espectador, que en algunas obras de Arte Conceptual es vista por el artista como parte misma de la obra, pero que en la mayoría de los casos no llega a completar la bidireccionalidad de la comunicación. En cualquiera de las dos situaciones, después de elaborada/fruida la obra, la posición ante el Arte – tanto la del artista como la del público – se modifica. Algo se activa en la conciencia de estos individuos, que afectará sus reacciones futuras ante el fenómeno artístico. Eco lo puntualiza claramente en su texto La definición del arte, cuando dice: ...aún intentando plantearse como comunicante, el arte busca una renovación de los esquemas perceptivos e intelectivos, lo que produce una dialéctica entre la ruptura de los hábitos perceptivos y el intento de hacer asequibles los nuevos esquemas. (ECO, 1970, p. 247)

El Arte Conceptual es una manifestación altamente intelectual. En lo que respecta a su intención de hacer reflexionar al público en cuestiones artísticas, pensamos que lo logra, aunque parcialmente, entre otros motivos porque las reflexiones no llegan al nivel de profundidad que esperan sus creadores. Muchos de sus valores son difícilmente reconocibles por el espectador común, pues la atención de éste se orienta prioritariamente hacia el estatus de “arte” o “no-arte” de ese objeto/hecho tan complejo que tiene ante sí. Sin embargo, para los lectores más familiarizados con procesos intelectuales abstractos (matemáticas, diseño, lingüística, cine, nuevas tecnologías) el interés es un poco mayor, ya que reconocen algo familiar en ese tipo de arte, algo perteneciente a su entorno que les permite entender mejor las intenciones del autor. Es probable que el desgaste fruitivo del Arte Conceptual sea más lento que el de las manifestaciones artísticas tradicionales, y esto debido, en parte, a las dificultades recurrentes que tiene el público para aproximarse a ese producto. No obstante, muchas manifestaciones de cuño conceptual manejan con eficacia ciertas categorías estéticas que favorecen el contacto entre obra y fruidor, como la belleza formal (ej. land’s art) y la variedad visual (ej. video art), o simplemente activan sectores esenciales de nuestro ser, como la curiosidad ancestral del hombre por su cuerpo (ej. body art). Por lo tanto, no podemos afirmar rotundamente que el Arte Conceptual esté condenado a su incomprensión y por ende a la imposibilidad de ser disfrutado. Pensamos que es más acertado afirmar que el Arte Conceptual se debate paradójicamente entre dos aguas: una, que aspira llegar al espectador y sacarlo de su pasividad crítica ante el fenómeno artístico, y otra, que tiene como objetivo hacer que la esencia semántica de la obra se desprenda casi exclusivamente del Yo del artista – lo cual, en muchas ocasiones, lleva al Arte Conceptual a un solipsismo pocas veces visto en otros momentos de la historia del arte.

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Entre las cualidades más interesantes de este tipo de arte están su vitalidad y la manera como contagió a las expresiones posteriores de un interés por la idea, por el contenido más que por la forma, por el concepto más que por el objeto en el cual se materializa. El Arte Conceptual abrió las puertas a una nueva manera de ver y entender lo artístico, de comprender algo que de por sí es altamente complejo y en gran medida inexplorado: la estructura y comportamiento del Arte, de sus mensajes y conceptos, de sus premisas y consecuencias. Es, en fin, un autoanálisis, extremadamente denso para algunos y apasionante para otros. El arte de raíz conceptual


es hasta cierto punto, como diría Baldeweg, un “mensaje para nadie”.29 Un mensaje para cuyo disfrute profundo tal vez no estemos aún lo suficientemente preparados. No obstante, es un arte que nos toca profundamente, alejándonos del peligroso letargo inherente al desgaste y obsolescencia del mensaje estético. 30

Notas Partiendo de las bases propuestas por Ferdinand de Saussure en su libro Curso de Lingüística General (1916), fueron desarrolladas a partir de los años 60 diversas vías de aproximación a la obra de arte, mediante la extensión de conceptos estructuralistas. De manera muy sucinta, recordemos el abordaje de la escuela italiana (Eco, Dorfles, de Fusco, Maltese, etc.) que trata la obra de arte como un signo lingüístico que genera puentes entre un determinado referencial (tan simple o complejo como se quiera) y un sujeto que procesa y organiza los estímulos. También vale la pena citar la aplicación de la teoría de la información en el análisis de la obra de arte, llevada a cabo por Max Bense y Abraham Moles, entre otros, la cual adopta conceptos como “redundancia” y “entropía” para hablar del contenido del mensaje estético desde un punto de vista probabilístico. Algunos teóricos prefirieron establecer relaciones entre el signo artístico y otros dominios, como en el caso del checo Jan Mukarovsky, quien, sin abandonar lineamientos estructuralistas, articula el estudio de la obra con su contexto social. 1

2

Según Dressler, un texto es un “«enunciado lingüístico cumplido», o sea una entidad lingüística comunicativa percibida como autosuficiente”. Dressler apud CALABRESE, Omar. El lenguaje del arte, p. 177. 3

Ídem.

4

Ibídem, p. 178.

5

DORFLES, Gillo. Símbolo, comunicación y consumo, p. 52-53

6

THOMAS, Karin. Diccionario del arte actual, p. 18.

Emplearemos conceptos como éstos pues ellos pueden ser útiles en una reflexión sobre las propiedades comunicativas del arte. El binomio significante/significado es propuesto originalmente en el campo de la teoría lingüística y retomado por los semiólogos del arte. Los dos componentes del signo lingüístico son: el significado que es la “representación psíquica de la «cosa»” y el significante que es la cosa misma. En el caso de la obra de arte, el significado nos remite a lo que la obra comunica, y el significante a la propia obra de arte, es decir, el vehículo expresivo del cual se sirve el artista. Cfr. BARTHES, Roland. Elementos de Semiología, p. 45 y ss. MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto: (1960-1974), p.252.

9

BARTHES, Roland. op. cit., p. 49.

Esto es notable en ciertas obras conceptuales, sobre todo en el arte conceptual de tendencia lingüística o en el body art. En ellas observamos una alta individualidad en las propuestas. 10

11

THOMAS, Karin. op. cit., p. 18.

12

Eco apud CALABRESE, Omar. op. cit., p. 180.

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7


Cfr. DORFLES, Gillo. op. cit., p. 17-18. La ambigüedad es un valor positivo de la obra de arte, pues permite que sea apreciada cada vez de una manera diferente y que caiga más lentamente que otros productos culturales en el olvido producido por la obsolescencia. Ibídem, p. 18-19. 13

14

THOMAS, Karin. op. cit., p. 18.

15

Los conceptos de “transparencia” y “opacidad” son empleados en la teoría de análisis fílmico.

Haremos uso de ellos conservando su significado esencial, ya que consideramos que pueden ser adecuados para ilustrar ciertas ideas sobre del Arte Conceptual. Ellos fueron propuestos originalmente por Schaff (1966), en su “Introducción a la Semántica”, y retomados por el crítico e historiador Alfredo Roffé en el ensayo “Una aproximación al análisis fílmico” (1990). En este texto se explica que la transparencia es una “cualidad” del mensaje “...por la cual parece que [éste] se produjera como hecho natural - y no cultural- y toda la información semántica y estética que trasmite es recibida tan natural y directamente por el receptor, que no se da cuenta de la existencia y conformación del soporte material de esa información, de lo que suele llamarse la expresión del mensaje”. La “opacidad” presenta características opuestas. ROFFÉ, Alfredo. op. cit., p. 105. 16

Ibídem, p. 253 y ss.

17

Kosuth (originalmente en Arte y Filosofía) apud MARCHÁN FIZ, Simón. op. cit., p. 416.

18

Ibídem., p. 266.

El body art es el arte que coloca como medio significante al propio cuerpo; así, el artista se convierte en sujeto y objeto de la obra. Palabras de María Luz Cárdenas en el ciclo de conferencias “Las rupturas decisivas: una aproximación a los cambios fundamentales del arte del siglo XX”. 19

20

Cfr. MARCHÁN FIZ, Simón. op. cit., p. 244 y ss.

21

Ídem.

En el caso particular de Agnes Denes, recordemos una inscripción al margen de una de sus obras: “Study of Distortion series - Isometric Systems in Isotropic Space - Map projections defined-undefined boundaries and space relations mathematical form projected over fluid space”. Denes apud LUCIE-SMITH, Edward. Art in the seventies, p. 31. Sin esta nota sería difícil conocer el proceso intelectual que guía la elaboración de la obra. No obstante, aun conociendo este contenido textual, faltaría manejar los códigos propios de un dibujante técnico para poder entender y fruir más profundamente la obra. 22

23

Ídem.

Cfr. BERGER, René. Arte y Comunicación, p. 19. En relación al concepto de “ruido”, Dorfles aclara: “Con el término «ruido» se suele indicar todo elemento no deseado, no puesto intencionadamente por el codificador, toda molestia capaz de atenuar la comprensibilidad del mensaje”. DORFLES, Gillo. op. cit., p. 42.

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24

25

LeWitt apud MARCHÁN FIZ, Simón. op. cit., p. 415.

26

Cfr. DORFLES, Gillo. op. cit., p. 19 y ss.


27

MARCHÁN FIZ, Simón. op. cit., p. 251-252.

28

DORFLES, Gillo. op. cit., p. 47.

29

En el ensayo “Arte Post Conceptual” (1976), Navarro Baldeweg señala, refiriéndose a las obras

del artista postconceptualista Mel Bochner: “Me interesa el hecho de que estos fenómenos son de algún modo mensajes para nadie. En todo ámbito y en todo momento se están registrando mensajes para nadie”. Baldeweg apud MARCHÁN FIZ, Simón. op. cit., p. 433. Los comentarios hechos en este ensayo no pretenden establecer conclusiones cerradas sobre los asuntos discutidos. Por el contrario, buscan ofrecer apenas una entre diversas aproximaciones posibles a ciertos aspectos de la problemática planteada. Aquí hicimos referencia, fundamentalmente, a la obra de varios teóricos que pueden ser considerados como “pioneros” del estudio semiológico de la obra de arte. Dicho abordaje puede establecer interesantes diálogos con estudios más recientes, los cuales ya no colocan como punto de orden la necesidad de un estudio “científico” de la obra de arte (como sí lo deseaban la mayoría de los autores aquí citados), ni enfatizan en aspectos formales de la misma (actitud altamente criticada por teóricos posteriores). 30

Referências BARTHES, Roland. Elementos de Semiología. Madrid: Alberto Corazón, 1971. BERGER, René. Arte y Comunicación. Barcelona: Gustavo Gili, 1976. CALABRESE, Omar. El lenguaje del arte. Barcelona: Paidós, 1987. CÁRDENAS, María Luz. Las rupturas decisivas: una aproximación a los cambios fundamentales del arte del siglo XX (Conferencia). Caracas: Espacios Unión, mayo 1996. (Digitado por la autora de este ensayo). DORFLES, Gillo. Símbolo, comunicación y consumo. Barcelona: Lumen, 1975. ECO, Umberto. La definición del arte. Barcelona: Martínez Roca, 1970.

MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto: (1960-1974). Madrid: Akal, 1988. ROFFÉ, Alfredo. Una aproximación al análisis fílmico. En: Pensar en Cine. Caracas: CONAC, 1990. THOMAS, Karin. Diccionario del arte actual. Barcelona: Labor, 1978.

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___________. El Arte hoy: del expresionismo abstracto al nuevo realismo. Madrid: Cátedra, 1983.

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LUCIE-SMITH, Edward. Art in the seventies. New York: Cornell University Press, 1980.


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A imagem e o imaginário das cidades brasileiras: dois momentos sob uma visão histórica Maria Berthilde Moura Filha*

Resumo O objetivo deste artigo é analisar a arquitetura da cidade enquanto “imagem” que decodifica os “significados” próprios do “imaginário” de quem as concebeu, a cada tempo. Procura-se demonstrar como através da arquitetura e dos espaços urbanos é possível apreender o conteúdo e a história das cidades, lidas como se “fossem páginas escritas”. Fundamenta-se esta análise em alguns teóricos da arquitetura, direcionando a mesma para a realidade brasileira, em particular sobre dois momentos específicos. O primeiro reporta-se à “cidade do poder colonial”, onde havia o predomínio na paisagem urbana de edifícios “representativos” deste poder. O segundo corresponde à “cidade burguesa” que construiu seus “símbolos” a partir de um ideário de modernização e civilização, vigente na transição entre os séculos XIX e XX. Através da leitura destas “imagens” pertencentes a diferentes épocas, se decifra o “imaginário” e os “símbolos” de cada tempo. Palavras-Chave: cidade; imagem; significado; arquitetura.

Abstract This article has as an object to analyze the architecture of the city as an image that decodes the meanings of the imaginary itself from its author, in his time. It’s shown up how content and history of the cities throughout their architecture and urban spaces are possible to be read as if they were written pages. This analysis is based upon some architectural theorist studies and they’re driven to the Brazilian reality, mainly about two specific moments. The first of them reports to the “colonial power of the city” where there were amounts of representative buildings of this power in the urban landscape. The second one to “bourgeois city” that built its symbols from an idea of modernity and civilization, effective between the XIX and XX century transition. The reading of these images from different ages allows us the comprehension of the imaginary and the symbols of each time. Key Words: city; image; meaning; architecture.

Ítalo Calvino, em seu livro “As Cidades Invisíveis” explora as impressões que os lugares podem

Ao descrever a passagem de Marco Polo pela cidade de Tamara, Ítalo Calvino teve por objetivo demonstrar como é possível, através da imagem do espaço edificado, identificar os significados que as cidades guardam como resultado do ideário que povoava a mente de quem as construiu ou de quem hoje as habita. Diz:

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causar aos seus observadores. Tendo por narrador o viajante veneziano Marco Polo, são visitadas diversas cidades imaginárias, cada uma delas carregada de especificidades que possibilitam transmitir mensagens diferenciadas àqueles que as percorre.

Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (1986), mestrado

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em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (1997) e Doutorado em História da Arte – Dep. Ciências e Téc. do Patrimônio – Fac. de Letras – Universidade do Porto (2005). Atualmente é professora Adjunto I da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de História da Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: cidade de João Pessoa, história urbana, vida urbana e preservação do patrimônio. E-mail: berthilde_ufpb@yahoo.com.br


Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas: a torquês indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo de guardas; a balança, a quitanda. (CALVINO, 1990, p. 17)

Em contrapartida, outros edifícios de Tamara não apresentavam qualquer “figura” remetendo à função ou importância que os mesmos tinham para leitura do texto urbano. Assim, acrescenta: Se um edifício não contém nenhuma insígnia ou figura, a sua forma e o lugar que ocupa na organização da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio real, a prisão, a casa da moeda, a escola pitagórica, o bordel. (CALVINO, 1990, p. 18)

Estas observações feitas por Ítalo Calvino são resultado de uma obra de ficção. Mas colocandoas em contraponto com o pensamento de alguns teóricos da arquitetura logo se afirma a validade das mesmas quanto a capacidade que a cidade tem de narrar através da sua imagem, o seu próprio conteúdo e a sua história. Aldo Rossi considera que “a partir da arquitetura, talvez mais do que de qualquer outro ponto de vista, é possível se atingir uma visão globalizante da cidade e, portanto, uma compreensão da sua estrutura” (ROSSI, 1995, p. 160). Embora reconheça que a “arquitetura não represente mais que um aspecto de uma realidade mais complexa, de uma estrutura particular”, ela é vista, ao mesmo tempo, como um “dado último verificável” dessa realidade, constituindo o ponto de vista mais concreto a partir do qual se pode entender a cidade (ROSSI, 1995, p. 13). Esta mesma idéia é apresentada por Ítalo Calvino ao encerrar a passagem de Marco Pólo por Tamara: O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. (CALVINO, 1990, p. 18)

Rossi reafirma esta forma de ver o espaço urbano “como construção, como arquitetura”, cuja “autonomia” permite estudá-lo tomando por ponto de partida sua própria “estrutura espacial”, buscando levantar dados sobre a cidade que não podem ser fornecidos por outros campos de estudo como a sociologia ou a economia (ROSSI, 1995, p. 4-6).

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Em sua narrativa, Ítalo Calvino faz referência àquelas edificações de Tamara identificadas através de figuras indicativas de suas funções. Ao contrário, há edifícios que dispensam este tipo de informação complementar uma vez que falam por si: o palácio, a prisão, a escola. Por sua vez, Rossi explica que a cidade pode ser vista a partir de três funções principais, que são: o tráfego, as residências e as atividades fixas, as quais têm o caráter de coisa pública, “feita pela coletividade, para a coletividade” com o propósito de atender a diversas funções urbanas (ROSSI, 1995, p. 115). Em geral, as “atividades fixas” têm uma concepção arquitetônica que as associa a sua função específica, e entre estas edificações algumas acabam por extrapolar essa destinação e se elevam a um valor significativo, a exemplo do palácio, da prisão, da escola.


Estas “edificações significativas” se distinguem através da sua forma arquitetônica, bem como por seu caráter excepcional no tecido urbano. Elas passam a ter não só um valor enquanto edificação, mas assumem a condição de fato gerador de uma forma da cidade, e se tornam palavras chave fundamentais para compreensão da escrita urbana. Aprofundando nesta questão Aymonino define a cidade “como um grande artefato arquitetônico”, uma paisagem composta por um conjunto de “fatos construídos” - edifícios, espaços livres, sistemas viários - que não podem ser entendidos isoladamente, pois são “parte de um todo que é a cidade” (AYMONINO, 1984, p. 23-24). Mas é preciso atentar que a cidade não é estática, mas sim “uma criação nascida de numerosos e diversos momentos de formação”. Cada um desses momentos assume características que os diferencia de acordo com as “forças que se aplicam à cidade”, as quais podem ser “de natureza econômica, política ou outra”. Mas não se trata apenas de conhecer essas forças em si, mas de estabelecer uma relação entre elas e a arquitetura da cidade entendendo as mudanças que se concretizam no espaço (ROSSI, 1995, p. 66). Portanto, pode-se analisar a cidade como “fato material, como artefato, cuja construção ocorreu no tempo” (ROSSI, 1995, p. 6). Ou ainda, extrapolando a análise da estrutura material, explorar também “a idéia que temos da cidade como síntese de uma série de valores” concernentes ao imaginário coletivo, entendendo-a não apenas como “o lugar da condição humana, mas uma parte dessa condição, que se representa na cidade e em seus monumentos, nos bairros, nas residências, em todos os fatos urbanos que emergem do espaço habitado” (ROSSI, 1995, p. 23). Neste sentido Aymonino refere-se à cidade como um “lugar artificial de história” no qual cada época procura representar a si própria nos monumentos arquitetônicos. Para tanto, de acordo com os valores dominantes na sociedade, elegem algumas edificações que para além das necessidades e dos motivos contingentes porque foram construídas, são exploradas enquanto elementos representativos que assinalam um determinado tempo (AYMONINO, 1984, p. 11).

O segundo momento analisado é a “cidade burguesa” que se afirma na transição entre os séculos XIX e XX, fundamentando-se em um ideário de modernização e civilização, expresso através da inserção de novas tipologias arquitetônicas na paisagem urbana, transmitindo o imaginário da sociedade daquela época.

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construção e mutação das cidades brasileiras, sob o viés da relação “mutável, mas constante no tempo, entre a tipologia dos edifícios e a morfologia urbana” (AYMONINO, 1984, p. 7). Nesta leitura são analisados dois momentos bem específicos destas cidades. O primeiro corresponde à “cidade do poder colonial”, na qual as igrejas tinham evidência como símbolos de uma das mais fortes instituições que deu sustentação ao processo de colonização do Brasil.

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É com este olhar que nos propomos a percorrer as páginas escritas que relatam o processo de


1. A imagem da cidade do poder colonial no Brasil A época do descobrimento do Brasil caracterizava-se por uma religiosidade exacerbada, que constituía parte importante na vida do homem quinhentista. A Coroa portuguesa, devota do catolicismo e creditando a descoberta da “Ilha de Vera Cruz” a uma ação divina colocou a cristianização como um dos objetivos da colonização. Propôs-se a enriquecer os céus, resgatando almas para o patrimônio de Deus, ao mesmo tempo em que explorava as riquezas materiais ofertadas pela terra. Sendo assim, cristianizar era parte integrante do projeto colonizador dos portugueses sem que, com isso, os propósitos materiais e o fortalecimento do poder monárquico português se tornassem menos relevantes. Neste difícil processo de construção do Brasil, iniciado sobre tabula rasa, duas importantes estruturas edificadas constituíam os baluartes de apoio para os portugueses que aqui chegavam trazendo como bagagem uma severa formação católica: as fortificações e as igrejas. Se a fortificação defendia o corpo, a igreja amparava o espírito. Era o espaço e o símbolo da fé que depositavam em Deus e onde buscavam a proteção e a força que necessitavam para suportar todas as agruras daquela terra, ao mesmo tempo promissora e inóspita. Por sua vez, a Igreja privilegiava “o quadro construído como garantia do funcionamento do

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modelo social” (CHOAY, 1985, p. 65). Neste contexto, tinha grande importância a implantação das construções religiosas como forma de assegurar os padrões estabelecidos para a sociedade cristã, afirmando estas como um esteio fundamental na sustentação do processo de colonização. Aliando esta atuação marcante da Igreja ao desejo de expressar sua presença perante a comunidade é possível entender porque os pontos focais das nossas cidades mais antigas eram dominados pelas casas religiosas. (Fig. 1)

Figura 1 - “ST. SALVADOR/ Ville Capitale du Bresil”. Gravura da cidade de Salvador, no final do século XVII, na qual é possível observar a presença da arquitetura religiosa, através das torres e das proporções monumentais das igrejas. Estão indicadas na legenda da gravura as seguintes igrejas: Carmo (C); Jesuítas (D); Catedral (E); São Bento (K). Fonte: REIS FILHO, 2000.


Observando essas cidades constata-se que a presença dos símbolos da religião católica na paisagem urbana é um traço característico. Essas construções eram implantadas em locais privilegiados de forma a dominar a cena, evidenciando-se diante das demais edificações. Segundo Murilo Marx, “Elas são o primeiro objeto percebido ao longe” (MARX, 1988, p. 118). Mas as igrejas e mosteiros não só dominavam os pontos mais evidentes do relevo. Na estrutu-

Figura 2 - “MARIN D’OLINDA de Pernambuco”. Gravura da vila de Olinda, por volta de 1630, tendo destaque em sua paisagem a imagem das igrejas. Estão indicadas na legenda da gravura as seguintes igrejas: no ponto mais alto a Matriz de São Salvador; Jesuítas (B); São Francisco (C); Misericórdia (D); São Bento (E); São Pedro (L); Carmo (R). Fonte: REIS FILHO, 2000.

As ruas, tendo por princípio servir para circulação, sofriam também a influência do sagrado,

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ração do espaço urbano todos os demais elementos, de alguma forma, estavam condicionados à presença dessas edificações. As poucas áreas livres então existentes coincidiam com os adros das construções religiosas. O aglomerado urbano, quanto maior, exibia diversos conjuntos compostos de adros diante de capelas ou das casas das ordens religiosas, constituindo todos esses conjuntos pólos que dominavam o espaço citadino.

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sendo mais valorizadas aquelas que davam acesso a uma igreja ou mosteiro. Neste caso, essas ruas tornavam-se objeto da atenção e do controle das autoridades, civis e eclesiásticas, uma vez que constituíam o cenário por onde passavam as procissões e cortejos, manifestações das mais relevantes para a época.


O adensamento urbano também se dava em função desses mesmos marcos da religião, com o casario “disputando os pontos privilegiados que, à falta de outros, eram aqueles mesmos terreiros” que antecediam as igrejas. Até os poucos edifícios públicos então existentes “corriam para se instalar a reboque das opções anteriormente feitas pelos edifícios religiosos” (MARX, 1988, p. 110). Pode-se dizer que a religião sendo uma necessidade premente no contexto do Brasil colonial se fazia representar no espaço urbano, e a sua presença física através das edificações, exercia uma grande influência sobre a configuração do tecido urbano definindo a estruturação da paisagem citadina. (Fig. 2) Mas a partir de meados do século XVIII, diversas cidades brasileiras tiveram um crescimento econômico e populacional mais representativo. Com isto, o meio urbano adquiriu novas significações para os diferentes agentes sociais: para os comerciantes este era o local onde exerciam suas atividades de ganho; para os grupos menores, como os artesãos, a cidade representava uma oportunidade de afirmação e autonomia profissional; para os escravos, uma possibilidade de contato com um mundo menos rigidamente estratificado e, para os grandes proprietários, uma área de competição com os novos grupos dominantes. Progressivamente, desenvolveu-se um tipo de vida mais nitidamente citadina e no cotidiano, as ruas e espaços públicos ganharam uma maior freqüência da população decorrente das novas atividades urbanas e de outras formas diversificadas de convívio social e lazer que começavam a surgir. A sociedade foi, aos poucos, se desvinculando da exclusividade das cerimônias de cunho religioso, preponderantes ao longo de séculos. Lentamente, as cidades foram sendo pontuadas pelas novas tipologias de arquitetura surgidas em função das “necessidades e possibilidades que o cotidiano começava, em termos urbanos, a impor e a oferecer a todos” (MARX, 1988, p. 138). Esses novos edifícios vinham suprir as deficiências referentes à assistência (alguns hospitais e asilos), à educação, ao lazer, etc. Neste momento, uma tipologia arquitetônica foi emblemática enquanto elemento representativo dos valores da sociedade da época. Eram os teatros, que começaram a surgir nas principais cidades do país para atender uma demanda crescente de lazer e cultura da elite urbana. As encenações teatrais, a princípio utilizadas pela Igreja como meio de difusão do ideário cristão, passaram a ser um espaço de lazer profano para a sociedade em processo de laicização.

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Salvador, sendo a sede administrativa da colônia até 1763 foi a primeira cidade a erguer o seu “Teatro da Praia”, cuja ordem para edificação foi dada a 27 de Novembro de 1760 pela Câmara Municipal (HESSEL e RAEDERS, 1974, p. 37/39). No Rio de Janeiro, quando capital do Vice-reinado, surgiu o “Teatro do Padre Ventura”, empreendimento particular em funcionamento, provavelmente, a partir de 1767 (HESSEL e RAEDERS, 1974, p. 41). Em Minas Gerais, devido à existência de uma elite identificada com as atividades intelectuais, surgiram teatros


em algumas cidades. Em Vila Rica inaugurou-se a 6 de Julho de 1770, a Casa da Ópera da Rua Santa Quitéria (ÁVILA, 1978, p. 29/31). Começava a ser difundida a idéia do teatro como uma instituição altamente educativa, resultando no Alvará de 17 de Julho de 1771 que aconselhava: o estabelecimento dos teatros públicos bem regulados, pois deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade, visto serem a escola, onde os povos aprendem as máximas sãs da política, da moral, do amor da pátria, do valor, do zelo e da fidelidade com que devem servir aos soberanos e por isso não só são permitidos, mas necessários. (SOUZA, 1960, p. 110)

A partir desse Alvará ergueram-se no país, com o apoio oficial, outras casas de espetáculos. Os teatros, juntamente com alguns outros equipamentos, passaram a compartilhar a paisagem urbana com as construções religiosas sem, no entanto, rivalizar com estas no cenário citadino que ainda era dominado pelos símbolos da religião. Por exemplo, em Recife a Casa da Ópera da Rua da Cadeia Nova, existente em 1772, é descrita como um edifício térreo, sem características arquitetônicas externas que indicassem seu fim (SOUZA, 1960, p. 301). Essa predominância das construções religiosas sobre a paisagem urbana, de certa forma assegurada pelas Constituições Sinodias do Arcebispado da Bahia, em voga durante todo o período do Brasil colonial, foi reafirmada ainda quando da implantação da Constituição Política do Império do Brasil. Diz o Artigo 5, do Título I, da referida constituição que: A religião catholica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo. (Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1822. Apud. MARX, 1988, p. 164).

Mas se as novas tipologias de arquitetura impostas pela secularização da vida urbana, por muito tempo, se acomodaram entre o casario já existente, aos poucos, elas vão se implantar diante de largos, acrescentando à cidade outros espaços públicos que constituíam pólos diversificadores da vida e do cenário urbano. Esses novos elementos não vinham substituir aqueles já definidos por força da religião, mas a estes se agregar. (Fig. 3)

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o início da colonização. A presença desse artigo na Constituição de um novo Estado que então se formava demonstrava a importância atribuída às construções religiosas e reafirmava o poder da Igreja junto a Coroa portuguesa. Por muito tempo ainda, as cidades brasileiras vão ter sua imagem associada àqueles mesmos símbolos que as caracterizavam desde o início da colonização. É o que nos leva a crer testemunhos como o de George Gardner, ao descrever sua chegada ao Rio de Janeiro em 1836: “vista de bordo, a cidade apresentava um aspecto imponente por sua posição e por suas numerosas igrejas caiadas de branco” (GARDNER, 1979, p. 29).

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As igrejas católicas deveriam continuar dominando sobre o perfil do casario, como fizera desde


Figura 3 - Gravura da cidade do Recife, mostrando o Campo das Princesas, em meados do século XIX, com os edifícios do Teatro Santa Isabel e o Palácio do Governo. Fonte: FREYRE, 1940.

Assim como os teatros se multiplicaram durante o século XIX, o mesmo aconteceu com outros equipamentos requeridos pelo contínuo desenvolvimento da vida urbana. Crescia o número de escolas, hospitais, mercados, edifícios para a administração pública. Por essa época, esses edifícios começavam a ser recebidos como símbolos de um novo momento das sociedades urbanas, expressando o grau de civilização e desenvolvimento das localidades onde eram implantados. Tudo isso alimentava uma idéia de evolução, a busca de um progresso constante, que vai marcar, em especial, o final do século XIX. No caso específico dos teatros, esses tinham ampla receptividade já que eram vistos como agentes da formação social e cultural de um povo, abrindo espaço para o exercício das regras de civilização que deveriam guiar qualquer população que desejava civilizar-se.

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O teatro era de fato, o espaço mais propício para moldar uma população segundo os padrões de civilidade assimilados a partir de realidades externas. Atuava para o refinamento do gosto do público, ensinava as pessoas a comportar-se educada e disciplinadamente, e constituía uma opção de lazer onde as oportunidades de entretenimento eram muito restritas. Em busca de todos esses benefícios é que as cidades se empenhavam em construir seus teatros, desejando possuir um espaço para receber as companhias teatrais que traziam novidades, notícias, hábitos e modas de outros lugares, sendo estes assimilados pela sociedade que construía um ideário de civilização a partir de novos parâmetros. Assim, ao final do século XIX estava germinando um ideário que vai propiciar a construção da “cidade burguesa”, concebida a partir de novos valores sociais e da adoção de uma forma diferenciada de projetar o espaço urbano, onde se dispensou maior atenção para com as questões referentes à imagem e à estética da cidade.


2. A imagem da cidade burguesa A fim de entender a ascensão da cidade burguesa, faz-se necessário, em primeiro lugar, identificar o contexto em que surgiu no Brasil o desejo de construir cidades modernas e civilizadas. Este germinou durante o século XIX, mas ao findar aquela centúria os embates políticos entre imperialistas e republicanos vai ser decisivo para definição da nova imagem das cidades. Os republicanos atacavam o Império, apresentando-o como uma instituição castradora do progresso, ao mesmo tempo em que difundiam a idéia de um país moderno, possível de ser construído após a institucionalização do novo regime. Por fim, proclamada a República, era preciso concretizar a imagem anteriormente apregoada e construir uma identidade para o país, consideradas como elementos básicos para formação de uma nação (CARVALHO, 1990, p. 49-53). É sob a divisa “Ordem e Progresso” que a República vai construir suas bases junto à sociedade. Para cativar uma população constituída de grande número de analfabetos, a palavra escrita não se apresentava como o melhor veículo de propagação dos ideais republicanos. Por isso, fizeram uso de instrumentos de leitura mais direta, como as imagens, as alegorias, os símbolos, capazes de atrair a simpatia e a aceitação do povo (CARVALHO, 1990, p. 10). A cidade foi um dos símbolos mais importantes, adotado pelo ideário republicano. Apregoavam que o progresso do Brasil estava diretamente relacionado com a urbanização: a cidade modernizada e bela apresentava-se como o “lugar de construção dos paradigmas da ordem moderna, baseado nas idéias de ciência, progresso e civilização” (PECHMAN, 1993, p. 1). Trabalhava-se com o imaginário social para fazer da cidade esse símbolo dos novos tempos do país, tirando partido dos elementos que mais atraíam a coletividade - os serviços, os transportes, o incremento do consumo e do lazer citadino. Desta forma o poder público favorecia a assimilação do meio urbano como o centro irradiador da novidade, da civilização, do progresso. O lugar “onde as coisas acontecem”. Para tanto, a cidade precisava atender a requisitos de higiene, estética, funcionalidade e rentabilidade, adequados à nova ordem capitalista e burguesa, que preconizava mudanças no meio social, com a introdução de formas diferenciadas de comportamento urbano, regido por valores e modelos próprios dos países mais desenvolvidos (PESAVENTO, 1993, p. 9-11). po experimental” da nova concepção de cidade, idealizada para surgir como a imagem do Brasil moderno, expressando o potencial do país através de obras suntuosas que constituíam símbolos do progresso e da civilização. Neste sentido, em 1904, teve início uma grande reforma urbana comandada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, tendo por objetivo transformar a capital federal em uma cidade que representasse o país com dignidade, dando ênfase à construção de um cenário de cidade moderna e espelhasse o progresso do país. Este modelo passou a ser emblemático para as demais capitais brasileiras, impulsionando os poderes locais e a sociedade a seguir o exemplo do Rio de Janeiro.

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Naquele momento o Rio de Janeiro, sendo a capital da República, vai ser uma espécie de “cam-

Para construção desta imagem, tornava-se cada vez mais importante a presença das avenidas

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largas, das praças, jardins, passeios, e de uma arquitetura monumental, que fizesse o enquadra-


mento de toda a cena. A arquitetura, entendida como as faces que definem os espaços urbanos e lhes configura a imagem, ganhava evidência na concepção desses cenários, sendo alvo de normas que regulavam sua estética ou, quando se tratavam de edificações de forte referência para a cidade, eram tratadas com monumentalidade. A reforma urbana empreendida por Pereira Passos, tratando-se de um projeto para melhoramento e embelezamento do Rio de Janeiro, certamente teve como principal referencial a Paris de Haussmann. Acreditava-se que para apresentar o Brasil como um país moderno, era preciso a sua capital ter a mesma grandiosidade e beleza que Paris ostentava. Para tanto, “as largas avenidas, os elegantes magazines, os floridos jardins deveriam moldar a imagem do novo Rio, não mais identificado com suas tradições, com sua história, mas com as grandes civilizações européias” (PECHMAN e FRITSCH, 1984, p. 175). As elites econômicas davam total apoio à reforma urbana do Rio de Janeiro. Para a burguesia, a reconstrução da imagem da cidade se apresentava como um dos caminhos para o estabelecimento de uma nova ordem social, burguesa e progressista. Era corrente a idéia de que seguir o modelo de Paris era a forma mais rápida para se “anular a realidade de uma situação periférica no mundo, através da construção física e simbólica de uma capital civilizada e cosmopolita” (FREIRE, 1993, p. 1). A crônica publicada pelo periódico Renascença, de Abril de 1904, noticiava o início das obras dizendo: O mêz de março, que findou, desta vez, por bem aventurada excepção, sem calores excessivos e sem o tremendo cortejo de molestias e desolações, viu o inicio das grandes obras que hão de transformar a colonial cidade do Rio de Janeiro, numa bella, arejada e architectonica metropole moderna. (Renascença, Rio de Janeiro, Abril 1904, p. 41-44. Apud. DEL BRENNA, 1985, p. 173)

Entre todas as intervenções então realizadas no Rio de Janeiro, a Avenida Central pode ser

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apontada como o grande símbolo do progresso do país, marcando uma nova era na civilização brasileira. (Fig. 4)

Figura 4 - Capa do periódico “ A Avenida”, de Março de 1904, apresentando a Avenida Central como um novo cenário e símbolo da modernização da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: DEL BRENNA, 1985: 159.


Para assegurar a qualidade estética das edificações erguidas na Avenida Central e garantir-lhe a condição de principal cartão postal do país, foi promovido um “concurso de fachadas”, com o objetivo de impedir que aí se manifestasse a antiga forma de construir. Verifica-se que a renovação da linguagem plástica dos edifícios contribuía para a recomposição dos ambientes urbanos, enriquecidos por novos significados e símbolos. (Fig. 5)

Figura 5 - A Avenida Central com seus prédios “modernos”, exemplo da renovação estética

Neste contexto, crescia o número de edifícios públicos que surgiam para atender funções decorrentes do desenvolvimento econômico, político e social, mas que deveriam também marcar presença na cidade. Na Avenida Central, ao lado de edifícios destinados às melhores casas de comércio, às grandes companhias, aos clubes e hotéis, o governo construiu a Escola de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal, o Teatro Municipal e o Palácio Monroe, todos tratados como monumentos que se impunham como importantes referenciais da cidade modernizada. O surgimento desses prédios públicos vinha transformar o conceito de arquitetura e de monumento por parte da cultura oficial, pois aos palácios da capital federal cabia o papel de representar e exaltar a grandeza e a prosperidade da cidade, e de marcar a ordem burguesa estabelecida no meio urbano.

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que caracterizou a cidade da burguesia. Fonte: TABET e PUMAR, 1985.

O Teatro Municipal foi, talvez, uma das obras mais polêmicas da administração Pereira Passos.

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A abertura e alargamento de ruas, urbanização de praças, construção de escolas e outros equipamentos, já demonstravam a intenção estética que permeava toda a reforma urbana do Rio de


Janeiro. Mas a prioridade dada à realização de um teatro monumental, para usufruto da elite, em detrimento de outras obras, como as habitações populares necessárias para amparar as famílias atingidas pelas desapropriações, parecia ser a confirmação de que essa reforma tinha como um dos seus principais objetivos, dotar a cidade de belos cenários que expressassem a prosperidade do país e servissem para o convívio de uma sociedade civilizada. (Fig. 6)

Figura 6 - O Teatro Municipal do Rio de Janeiro, um dos novos monumentos da ordem burguesa. Fonte: TABET e PUMAR, 1985.

Na ânsia de renovar e embelezar a cidade ultrapassava-se limites, quebravam-se tabus. Até mesmo as antigas igrejas, que por muito tempo dominaram a paisagem da cidade, estavam sujeitas a desaparecer, para dar lugar às ruas, praças e edifícios de caráter profano. Esse fato pode ser, em parte, entendido como decorrência da queda do poder dessa instituição, verificado com a separação entre Estado e Igreja, após a República.

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A imprensa noticiava em 1904: “A picareta, grande benemérita desta cidade, vai enfim, cair sobre a igreja de S. Joaquim” cuja demolição se fazia necessária para o prolongamento de uma das ruas do centro do Rio de Janeiro (A Igreja de S. Joaquim. O Commentario. Abril, 1904. Apud. DEL BRENNA, 1985, p. 175). Todo este processo vivenciado no Rio de Janeiro, e depois repetido em outras capitais brasileiras, a exemplo de Salvador e Recife, pode ser mais bem entendido a partir da análise que Aymonino desenvolveu sobre a cidade capitalista-burguesa. Afirma este autor que nesta encontra-se um fator que favorece a produção da arquitetura como representação, pois ocorre uma acumulação


“de capitais, do supérfluo, que envolvem, necessariamente, um salto qualitativo, a passagem da necessidade à possibilidade, o desejo ou a vontade de representação” (AYMONINO, 1984, p. 11). Essa “vontade de representação” é identificada como uma das características mais presentes nas cidades brasileiras do início do século XX, momento marcado por forças de natureza econômica, política e social refletidas sobre o urbano, impondo e possibilitando uma reestruturação do mesmo com a intenção de se construir os espaços simbólicos do progresso e da modernização almejados pelo poder público e pela burguesia que se projetava naquela imagem de cidade. A cidade capitalista-burguesa expressava a intenção que havia de construir espaços que “magnificavam os atos da vida cotidiana da comunidade urbana, assim como o cenário engrandece e magnifica os gestos do ator” (ARGAN, 1993, p. 43). Sendo assim, os cenários urbanos que resultaram da aplicação de um projeto estético próprio das cidades brasileiras dos primeiros anos do século XX, são entendidos como espaços arquitetonicamente elaborados, com a intenção de marcar aquele período de progresso e civilização vivido pelo país, surgindo como materialização do ideário de uma elite social. Observar este fato remete a identificar a intenção com que se constroem as cidades. A determinado tempo se pode esperar que a cidade simplesmente cumpra algumas funções que justificam sua existência; em outro período, pode-se pretender que a paisagem urbana seja bela, grandiosa e imponente, servindo para a representação da sociedade que nesta cena vive o seu cotidiano. As cidades do Brasil colonial cumpriam as parcas funções que lhes cabia, entre estas, a de sediar os edifícios erguidos para exaltação da Igreja Católica, referências imprescindíveis para a sociedade daquela época. Por sua vez, as cidades brasileiras do início do século XX tinham o semblante da burguesia com seu ideário de progresso e modernidade. Momentos distintos de uma mesma história, cujas imagens cravadas na arquitetura da cidade permitem ler e decodificar o imaginário de quem as edificou.

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ÁVILA, Affonso. O Teatro em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Ouro Preto: Prefeitura Municipal de Ouro Preto, 1978. AYMONINO, Carlo. O Significado das Cidades. Lisboa: Editorial Presença, 1984.

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Referências

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CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985.


DEL BRENNA, Giovanna Rosso. (org). Uma cidade em questão II: O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Rio de Janeiro: Index, 1985. FREIRE, Bianca Pinheiro de. O sonho de ser Paris: Buenos Aires e Rio de Janeiro na virada do século. In: V Encontro Nacional da ANPUR, Belo Horizonte, 1993. FREYRE, Gilberto. Um Engenheiro Francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1940. GARDNER, George. Travels in the interior of Brazil. PUC, 1979, p. 29 HESSEL, Lothar Francisco e RAEDERS, Georges. O Teatro no Brasil da Colônia a Regência. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. MARX, Murilo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1988. MOURA FILHA, Maria Berthilde. O Cenário da Vida Urbana. A definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na virada do século XIX / XX. João Pessoa: Centro de Tecnologia / Editora da UFPB, 2000. PECHMAN, Robert Moses. A cidade dilacerada: ordem e urbanismo. In : V Encontro nacional da ANPUR, Belo Horizonte, 1993. PECHMAN, Sérgio & FRITSCH, Lilian. A reforma urbana e seu avesso: algumas considerações a propósito da modernização do Distrito Federal na virada do século. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero. v. 5. n. 8/9. Set/1984, Abr/1985. p. 139-195. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural e as representações do urbano. In: II Seminário de História Urbana, Salvador, 1993. PUC Rio de Janeiro. Departamento de Artes. Uma cidade em questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC / FUNARTE / Fundação Roberto Marinho, 1979. REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo, 2000. Cd-rom. ROSSI, Aldo. Arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. SOUZA, J. Galante de. O Teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1960. TABET, Sérgio Roberto; PUMAR, Sonia. O Rio de Janeiro em antigos cartões postais. Rio de

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Janeiro: Ed. do autor, 1985.


O universo poético-mítico de Raimundo de Oliveira: uma pequena revisão bibliográfica Neila Dourado Gonçalves Maciel*

Resumo Este artigo se propõe adentrar, de forma introdutória, no universo da produção do artista plástico baiano Raimundo de Oliveira, através de uma pequena revisão bibliográfica dos três principais eixos deste estudo. Constituindo parte da dissertação, ainda em elaboração, intitulada: O universo poético-mítico de Raimundo de Oliveira, esta explanação decorre sobre os pontos mais importantes para a compreensão do processo criativo do artista, na análise de como se deu a construção de seu repertório de signos tão singulares e tão significativos a partir de uma resignificação da cultura popular, estabelecendo possíveis relações com outros artistas e com as manifestações festivas e religiosas que o artista vivenciou. Tentando assim contribuir para o preenchimento de uma imensa lacuna da história da arte baiana e brasileira, devido ao grande reconhecimento de sua obra nacional e internacionalmente, que, no entanto, ainda permanece pouco estudada. Palavras-chave: Arte Brasileira; Cultura popular; Raimundo de Oliveira; Revisão Bibliográfica.

Résumé Cet article se propose connaître, de forme introductoire, l’univers de la production de l’artiste plastique originaire de Bahia Raimundo de Oliveira, à travers d’une petite révision bibliographique des trois principaux axes de cette étude. En constituant partie de la dissertation, encore dans élaboration, intitulée: L’univers poétique - mythique de Raimundo de Oliveira, cet exposé s’écoule sur les points le plus important pour la compréhension du processus créatif de l’artiste, dans l’analyse de comme s’est donnée la construction de son répertoire de signes aussi singuliers et aussi significatifs à partir d’une nouvelle élaboration de la culture populaire, en établissant possibles relations avec autres artistes et avec les manifestations de fête et religieuses que l’artiste a vécu intensément. En essayant ainsi de contribuer au remplissage d’une immense lacune de l’histoire de l’art originaire de Bahia et brésilien, dû à la grande reconnaissance de son oeuvre que, néanmoins, encore reste peu étudié.

O trabalho de dissertação, em andamento, intitulado O Universo poético-mítico de Raimundo de Oliveira, vem sendo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação de Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia, sob orientação da Dra. Rosa Gabriella de Castro Gonçalves. Sendo este projeto muito significativo tanto para a classe artística, como para a sociedade em geral, visto que tenta recuperar a memória deste artista plástico baiano, detentor de uma obra grandiosa e singular, considerado um dos grandes artistas da primeira geração de modernistas da Bahia, ainda desconhecido pelo grande público. Buscando assim, atender a uma parte da demanda da historiografia da arte baiana e brasileira de um modo geral.

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Mots-clés: Art Brésilien ; Culture populaire ; Raimundo de Oliveira ; Révision Bibliographique.

* Bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Mestranda da Linha de

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Pesquisa - História da Arte Brasileira, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. Integrante do Grupo de Pesquisa “Matéria, conceito e memória em poéticas visuais contemporâneas.” Bolsista CAPES/Demanda Social. E-mail: neilamaciel@gmail.com.


Durante o processo de definição do tema deste estudo, as obras consultadas foram se apresentando de maneira tal que as mesmas facilitaram o recorte temporal, espacial e a definição do artista a ser pesquisado. Na revisão bibliográfica foram estabelecidos três troncos principais para a orientação dessa pesquisa: contexto histórico, a construção da identidade nacional e os conceitos de cultura popular; as pesquisas e os procedimentos do fazer artístico moderno e a ruptura com a preocupação formal, que trouxe toda uma série de experimentalismos presentes na arte contemporânea com novas linguagens, desdobramentos, apropriação e deslocamentos de objetos, signos, símbolos e conceitos; e a análise da obra do artista Raimundo de Oliveira através do estudo de seu processo criativo e suas relações de apropriação, resignificação, deslocamentos, etc. de elementos pertencentes à cultura popular da Bahia, particularmente da religiosidade popular vivenciada pelo mesmo na cidade de Feira de Santana em meados do século XX. Raimundo de Oliveira Falcão nasceu em 1930 na cidade de Feira de Santana, até hoje considerada o maior entroncamento de viajantes e mercadorias do Brasil e morreu em 1966 em Salvador – Ba. Sua breve vida contrasta com sua produção artística, numerosa e extremamente rica, como também a sua complexa existência. Filho único, de mãe muitíssimo devota, cresceu envolvido pelas liturgias da igreja católica, pelo imaginário cristão, pelo sonho materno de vêlo tornar-se padre e por toda uma série de personagens do universo sertanejo da Bahia. Sua cidade natal, Feira de Santana, nasceu do cruzamento de estradas, dando origem a uma privilegiada posição geográfica, tornando-se o maior entroncamento rodoviário do Norte e Nordeste brasileiros. Localizada na zona limítrofe entre duas regiões com realidades antagônicas, o Recôncavo e o semi-árido. Essa localização geográfica transformou a cidade num centro de convergência de fluxos migratórios, procedentes, principalmente, do interior baiano e de outros estados nordestinos. Por ser um local de passagem abrigava temporariamente diversos grupos de viajantes com seus trajes, costumes, suas culturas e manifestações. Levando o que a cidade tinha a oferecer-lhes, mas também depositando em seus moradores, e no próprio andamento da cidade uma parcela dessas tão variadas manifestações culturais. E é justamente nesse trânsito de influências que esta análise, que faz parte da construção desta dissertação, pretende aprofundar sua interpretação nos trabalhos deste artista.

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O interesse pela pintura foi despertado ainda criança, influenciado pela prática de sua mãe, D. Leolinda Falcão de Oliveira, apelidada de D. Santa, que costumava pintar panos de prato e de serviço para a igreja e que sempre representou o elemento principal de todas as influências que, de uma forma ou de outra, condicionaram sua personalidade. Mais tarde, ainda criança, teve aulas de pintura com D. Alcina Dantas, famosa encarnadora de santos. E ainda teve aulas de desenho com a professora Hermengarda Oliveira. No fim dos anos quarenta viaja para Salvador e em 1950 se matricula na Escola de Belas Artes da UFBA. Provavelmente o que mais tenha lhe marcado neste período fora o encontro com a primeira geração de artistas modernistas que havia se formado após a Segunda Guerra Mundial, Mário Cravo, Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Rubem Valentim. Posteriormente, sendo o próprio, incorporado nesse conjunto de artistas. E, de acordo com todas as fontes pesquisadas até então, sua maior influência e admiração era direcionada à Mário Cravo Júnior. Durante sua passagem pela Escola de Belas Artes


experimentou a técnica da gravura e desenvolveu uma série de estudos em preto e branco com a mesma temática religiosa e triste que exercitava desde os estudos iniciais, salvo algumas poucas exceções. É possível constatar que desde os primeiros trabalhos dois elementos se fixaram em sua obra: em primeiro lugar, a temática religiosa, santos, imagens, retratos religiosos, narrativas bíblicas; e os traços auto-retratados, segundo componente caracterizante de sua pintura. O ângulo ponteagudo do queixo, o nariz grande, o rosto longo e comprido faziam parte das características de seus personagens. Sua personalidade era singular, sempre vestido de preto, possuía um riso mais físico do que de alegria, e uma ingenuidade incomparável, segundo depoimentos. Porém, sempre atencioso, extremamente delicado com todos. Era tímido, mas tinha muitos amigos na Bahia, São Paulo, Rio e até em Buenos Aires e Paris. Muitos dos quais presenteou com várias de suas obras.

Figura 1 Pietá. Óleo s/ tela. 72x92cm. 1957. Col. Desembanco. Salvador, Bahia.

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tura de Feira de Santana, neste momento ainda não havia fixado sua temática 100% religiosa e ainda experimentava diversas técnicas como guache, nanquim, xilogravura, aquarelas e óleos. No ano seguinte levou para sua cidade uma exposição intitulada “Exposição de Arte Moderna de Feira de Santana”. Onde contou com a participação de vários artistas reconhecidos: Poty, Pancetti, Aldemir Martins, Jenner, Scliar, Carybé, entre outros, além do próprio. Com o tempo, seus trabalhos foram deixando de ser tão escuros e sombrios e aos poucos adquiriu um ar bíblico, narrativo, e cada vez mais alegre, iluminado, colorido. Participou de diversas exposições coletivas, Salão Universitário, Salão Baiano e em 1953 realizou uma individual na Galeria Oxumaré com desenhos e pinturas. Até esta data, sua pintura assemelha-se a de Rouault, com a figura realçada como elemento central e dramatizada pelo contorno grosseiro e deformado, além da escolha temática. Ainda nos anos cinqüenta, abandona a Academia e passa a residir ora em São Paulo, ora no Rio de Janeiro, onde aprofunda sua experiência expressionista e o desenvolvimento de seu universo de anjos, santos, e a partir de então suas narrativas de passagens da bíblia.

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Sua primeira exposição foi realizada ainda em 1951, no saguão da entrada principal da Prefei-


A Via Crucis, e toda uma série de passagens elaboradas e trabalhadas insistentemente. Em 1957 realizou uma individual em Buenos Aires e em 1965 em Paris. Os trabalhos dos anos 60 representam o ponto mais alto de sua produção. Havia definido sua poética e aderido definitivamente a pintura à óleo. As formas foram sendo simplificadas com maturidade e muito estudo. Trabalhou intensamente nos últimos cinco anos, em meio a inúmeras crises, próprias de sua existência conturbada. Entretanto, apesar destas transformações, que podem ser consideradas desdobramentos, visto que Raimundo assume uma nova dimensão visual, mas a força que a aciona e a sustém continua sendo a mesma, isto é, a profunda religiosidade que sempre o envolveu. Era um artista com raízes e valores espirituais da Idade Média na época moderna. O conjunto de sua obra permite muitas aberturas e possíveis interpretações. Todos os depoimentos de amigos, artistas e críticos convergem para o entendimento de sua extraordinária construção pictórica. Dotada de sentimento e espiritualidade, plena da religiosidade popular. Daí a importância de se estudar as influências, as referências e aproximações presentes em seu trabalho. Toda a presença da religiosidade e da cultura popular como um todo se mostram inevitáveis para quem deseja se aprofundar na riqueza de sua obra. Repleta de símbolos e de atribuições de significados através das cores, análogos aos do imaginário popular, na qual, por exemplo, o diabo é vermelho e o anjo branco. A bíblia se uniu ao imaginário popular. As procissões com seus pequenos anjos negros, coloridos, adornados com as frutas típicas dos trópicos, e toda uma intimidade própria da religiosidade popular. Talvez esteja aí sua grandeza, sua peculiaridade. Um relato da bíblia numa visão brasileira, nordestina. Não só pelos elementos acrescentados às cenas, como cajus, abacaxis, mangas, pandeiros, tamborins, mas pela interpretação de toda uma vivência religiosa do catolicismo brasileiro. Tantas procissões, romarias, pagamentos de promessas, santeiros, festas de largo, altares decorados, todo um universo cristão influenciado pelas matrizes africanas e indígenas, fazem parte do seu universo simbólico e imagético. Está impregnada em sua obra, os terços, os lobisomens, os ex-votos, as bandeiras do divino, as ladainhas, as procissões, os romeiros com seus anjos, seus demônios e seus estranhos hinos. Sua arte foi profundamente mística, e foi gestada a partir destas imagens no contexto social, religioso e cultural daquela Feira de Santana de meados do século passado.

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Raimundo saiu da Escola de Belas Artes sem concluir o curso, porém se dedicou de forma incansável ao estudo do espaço, das formas, das cores, na composição de cada quadro. Criando um vocabulário próprio, único, apesar de ser perceptível todas as influências de símbolos populares que o marcaram. E para tentar entender essas tais influências, fora necessário partir para uma definição de um conceito de cultura popular, incluindo também a noção de identidade e o contexto histórico da construção cultural brasileira. Uma das principais referências deste primeiro tronco foi a publicação do sociólogo Renato Ortiz Cultura brasileira e identidade nacional (2006). A partir de estudos resumidos, resultantes de discussões realizadas pelo Grupo de Sociologia da Cultura da UNB, o autor retoma as diferentes maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consideradas, com a preocupação de compreender como a questão cultural se estruturou numa sociedade que se organiza distintamente do passado. Procurando


saber qual o significado da noção de cultura brasileira hoje. Ortiz partiu da Antropologia, e integrou vários conceitos como os de “sincretismo”, “memória coletiva”, “mito”, “símbolo” em suas análises sobre os autores nacionais do final do século XIX, até os mais atuais.

Ortiz traz o pensamento de Corbusier, que criticou as definições propostas por diversos intelectuais que tentaram descobrir os traços definitivos do caráter brasileiro: “Para Corbusier, a procura de uma estrutura ontológica do homem brasileiro seria na verdade a busca de uma “estrutura fásica [...]” (ORTIZ, 2006, p. 137), ou seja, que se modificaria no decorrer das diferentes fases da história. Ortiz concorda em parte, mas diz que “[...] a identidade nacional é uma entidade abstrata e como tal não pode ser apreendida em sua essência.” (2006, p. 138) E finaliza afirmando que o processo de construção da identidade nacional se fundamenta sempre numa interpretação, visto que a cultura enquanto fenômeno de linguagem é sempre passível de interpretação, mas em última instância são os interesses que definem os grupos sociais que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela manifestação.

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darwinismo social, o evolucionismo de Spencer, que apesar de serem teorias distintas entre si, abordam o aspecto único da evolução histórica dos povos, adotados pelos cientistas da época. O evolucionismo é adaptado ao pensamento brasileiro com dois aspectos particulares: meio e raça. Estes dois elementos tornam-se imprescindíveis para algumas reflexões sobre a construção de uma identidade brasileira. A partir daí, o historiador descreve como os intelectuais da época elegeram o nativo, o mestiço como representação da identidade nacional. Tomando o “povo brasileiro”, que não era nem branco, nem negro e nem índio, mas um povo mestiço, como um elemento simbólico que desvencilharia o Brasil da metrópole. Porém a problemática da miscigenação se apresentou a estes intelectuais como um grande dilema, visto que havia a necessidade de se construir o Ser nacional, embora o racismo predominasse. Já no início do século XX o mito das três raças se difunde na sociedade, “possibilitando” aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, se reconhecerem como nacionais, mascarando os conflitos raciais. Valoriza-se então as tradições como presença do passado. A ideologia da mestiçagem, proposta por Gilberto Freyre, entre outros, quer transformar aspectos considerados negativos em positivos, daí então, o popular é concebido e objetivado enquanto memória nacional, isto é, mito unificador do Ser e da sociedade brasileira. A noção de cultura popular trouxe a idéia de “tradição”, seja na forma de tradição-sobrevivência ou na memória coletiva que age de forma dinâmica e adaptável no cotidiano das pessoas. É somente a partir dos anos sessenta, com a expansão dos meios de comunicação, como a televisão e o cinema, que popular passa a significar consumo. Porém Ortiz defende a cultura popular como plural, heterogênea, onde as diferentes manifestações folclóricas – reisados, congadas, folias de reis – não partilham um mesmo traço comum. Sendo talvez, segundo o pesquisador, mais adequado se falar em culturas populares. O movimento modernista buscou nos anos 20 uma identidade brasileira, que se prolongou em Mário de Andrade em seus estudos sobre o folclore, sendo este interpretado pelo autor “[...] como universo simbólico de conhecimento, que se aproxima do mito e se revela como o saber do particular.” (ORTIZ, 2006, p. 138)

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No primeiro momento apresenta as teorias raciais do século XIX, o positivismo de Comte, o


Num segundo momento, onde se apresenta de fato a questão do fazer artístico, foi fundamental encontrar embasamento num texto que analisasse os pontos referenciais do moderno e das transformações ocorridas na arte desde o inicio do século XIX. O artigo de Luciano V. Simão. Da arte: sua condição contemporânea (1998). traz reflexões essenciais para o entendimento do segundo tronco. Para construir uma análise sobre a condição contemporânea da arte, o autor teve como base as questões conceituais que foram sendo desdobradas a partir das experiências pioneiras das vanguardas históricas com as transformações que se colocaram nos fazeres atuais, principalmente a partir dos anos 60. No primeiro momento apresenta um retrospecto sobre a questão do valor. Onde a objetividade no julgamento da arte advém da constituição de um corpo de valores de época. Segundo Simão o jogo da arte ficou ocultado do século XV até quase o século XX, pelo véu da genialidade do artista. E, somente o ready-made de Marcel Duchamp, em sua concepção de antiarte, negando toda a possibilidade de julgamento estético fundado no objeto, expõe e ironiza as regras deste jogo. Propondo um ato reflexivo acerca do valor da arte. Além do valor, o conceito de novo é uma problemática recorrente. O autor diz que “o novo

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pode se dar pelo menos de duas formas: por desdobramentos ou por deslocamentos de significados.”(SIMÃO, 1998, p. 39), conceitos chaves para o entendimento das práticas artísticas apresentadas na contemporaneidade. O desdobramento se institui a partir de um aspecto, de alguma forma, periférico a antigas experiências, incorporando em novas versões nas suas operações atuais. Isto se dará sempre no limite do possível, de modo a estabelecer uma relação com a tradição, até mesmo para enfatizar seu ponto de ruptura. Simão traz vários exemplos, dentre eles, a inauguração de uma nova estética pelo Impressionismo onde “a ruptura com a estética realista se dará no momento em que sua pintura deixar de ser uma representação do real para se afirmar como um equivalente da realidade” (op. cit. 1998, p. 41). Já a intervenção por deslocamento de significado altera a linha mestra que direciona o fazer artístico, criando um caminho paralelo de pesquisa. Para o autor, o grande deslocamento empreendido no século XX são as invenções de Marcel Duchamp, sobretudo nos ready-made. Visto que seus objetos esvaziam por completo a identificação da arte com a estética estrutural do objeto apresentado. Desloca, ou seja, “transfere a noção de arte, antes localizada no objeto, para a especulação reflexiva acerca da natureza artística dos objetos de arte.” (op. cit. 1998, p. 42) O objeto de arte não é eliminado como veiculo de informação, mas a noção de forma transfere-se do objeto acabado para a estruturação mental. Assim, funda-se um novo circuito de relações entre o artista, a arte e o espectador. Retornando para o desvio do moderno, apresenta quatro vertentes de fundamentação do fazer na Arte Moderna, a formal-construtiva, a formal-expressiva, a simbólica e a conceitual. Sendo que as três primeiras vertentes já estavam enunciadas nas pesquisas desenvolvidas pelos pósimpressionistas, enquanto a última, a conceitual, será uma inflexão da arte do século XX. O que primeiramente caracteriza essas vertentes é a tentativa de estabelecerem para a arte, por meio de seus elementos, como o ponto, a linha, o plano, o volume, a luz e a cor, o estatuto de signo que se funda na sua própria configuração. Para a vertente formal-construtiva todo e qualquer


sentido é adquirido da forma enquanto estrutura e ordem e da matéria enquanto articuladora do espaço. Ao valorizar a forma enquanto construção tendeu-se a se distanciar do referente da realidade fundando uma arte calcada no discurso geométrico. A formal-expressiva valoriza o processo, o andamento que a própria matéria dá ao objeto artístico. Acontece através de uma troca de energias entre o “criador” e a matéria que está sendo manipulada. Já para a vertenteconceitual, interessa a manipulação do objeto, a inversão dos significados coletivos do senso comum, a eliminação das barreiras entre os diversos meios artísticos, mudando por completo a forma tradicional de exibição da arte e sua própria concepção como algo permanente, para situá-las no campo da efemeridade. Simão deduz que “o aparente esgotamento da estética modernista se deu a partir da desconstrução de alguns de seus paradigmas ligados a essa concepção formalista.”(1998, p. 49) A ruptura com esse discurso, por parte dos artistas contemporâneos, baseia-se na negação do objeto de arte auto-suficiente, já provido de informação formal. A idéia de obra, até então entendida como produção de objetos excepcionais, de onde surge a noção de “obra-prima” é agora de todo desprezada. Apresenta ainda a pop arte, o minimalismo e alguns exemplos de artistas que utilizam as linguagens não mais como fim, mas como meio. E conclui afirmando que “o que temos não é mais uma arte preocupada com as questões do plano pictórico, mas com a recuperação de certa visualidade que incorpore a frivolidade de nossa existência.” (op. cit. 1998, p. 51) O terceiro tronco é talvez o mais importante para a construção da análise que esse estudo se

Artista plástico nascido em Feira de Santana, Bahia, em 1930 e morto em 1966, cuja trajetória foi marcada por sua vocação religiosa, numerosas e profundas crises existenciais, mas sobretudo por um aprofundamento temático e formal, além de um sucesso obtido num mercado de arte, que ainda se firmava no Brasil, e que o mesmo fizera parte, viajando bastante, recebendo encomendas e expondo em diversos lugares importantes, participando de mostras coletivas e individuais em galerias reconhecidas, Bienais, Salões, etc. Intelectuais, artistas e amigos como Jorge Amado, Wilson Rocha, Juraci Dórea, Antonio Celestino, Carlos Eduardo da Rocha, Odorico Tavares, Edivaldo Boaventura, Eduardo Portella, Jayme Mauricio e James Amado, apresentaram suas considerações, análises, descreveram memórias, que permitem aos pesquisadores adquirirem uma compreensão, ainda que incompleta, do percurso deste artista, ainda pouco conhe-

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Esta obra é uma reunião de escritos póstumos sobre a vida e obra de Raimundo de Oliveira.

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propõe. As referências são escassas, existindo algumas publicações como, por exemplo: Um periódico do CEB (Centro de Estudos Baianos), que no nº 61 dedica três páginas à análise da arte de Raimundo, p. 12-14, escrito por Antônio Alves Coelho. Contribuição ao estudo das artes brasileiras II (1982); Uma importante análise, embora pequeníssima, na página 394 do Dicionário das Artes Plásticas no Brasil, escrito por Roberto Pontual; e Wilson Rocha que traz um capítulo intitulado “Reflexões sobre a pintura de Raimundo de Oliveira” em seu livro Artes Plásticas em questão. No entanto, o trabalho organizado por Antonio Celestino, intitulado A via crucis de Raimundo de Oliveira, de 1982, tornou-se a publicação mais importante nesta investigação, sendo o único livro escrito integralmente sobre o artista, além de possuir muitas reproduções com boa qualidade. A investigação ainda poderá se aprofundar através dos procedimentos técnicos que serão adotados no decorrer do curso.


cido na contemporaneidade, e a elaboração de novas abordagens. A maioria dos textos aborda majoritariamente a biografia do pintor, relatos das relações que os escritores mantiveram com Raimundo, constituindo importante documento, visto que não é mais possível uma aproximação direta nem com o artista, nem com seu contexto histórico.

Figura 2

Cristo entrando em Jerusalém. Óleo s/ cartão. 55 x 76cm, 1961 Col. Thomas Farkas.

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Antonio Celestino abre o livro descrevendo como o conheceu, e conta que em apenas quatro anos de convívio pode perceber toda complexidade de sua personalidade e acompanhar o desenvolvimento de sua melhor fase artística. Afirma, entretanto, que houve três fases essenciais na trajetória de Raimundo; “[...] uma fase inicial de aprendiz, inteiramente sem qualquer valor artístico nem qualquer caráter plástico.” (CELESTINO, 1982, p. 7), algo que pode ser contestável, visto que estabelecer valores artísticos determinantes torna-se na maioria das vezes um equivoco, já que os paradigmas vivenciados no modernismo, que ainda permitiam este tipo de análise, não abrange todos os aspectos da arte. Segue ainda afirmando que sua segunda fase seja sombria, “[...] versando sobre assuntos de ordem religiosa, [...] sempre com a mesma constante de pungente aflição, figuras arrastando consigo a amargura transposta da visão castigada do artista.” (op. cit. 1982, p. 8) Nesta etapa, experimenta diversas técnicas, como guache, nanquim, xilogravura, esta por influência de sua passagem pela Escola de Belas Artes. Segundo Celestino, suas figuras constituem um pouco de seu retrato físico e mental, ainda tímidas e presas. Na terceira e última fase, quando o artista se liberta de uma tristeza profunda, já no final de década de 50, quando passa a viver alternadamente em São Paulo e Rio de Janeiro, produz muitos trabalhos quase todos com cenas bíblicas, cuja definição pela pintura à óleo já havia acontecido, assim como a explosão de cores e a estruturação de suas narrativas elaboradas de forma consciente e trabalhadas exaustivamente. “[...] são seus quadros uma elegia de parábola singela, com cores


puras, traços bem definidos, liberdade de composição, linguagem larga e feliz.” (op. cit. 1982, p. 8) Antônio finaliza o texto ratificando a importância da obra realizada por Raimundo de Oliveira, um dos poucos reconhecidos internacionalmente. Edivaldo Boaventura, como amigo e conterrâneo, traça um importante retrospecto da vida do artista feirense. Ele tenta buscar as origens de sua pintura numa espécie de análise contextualbigráfica através do levantamento de sua trajetória. Sendo este levantamento facilitado pela convivência com o pintor até pelo menos fins da década de 50. Freqüentador, desde criança, da casa da família Falcão, descreve com detalhes minuciosos traços da personalidade de Raimundo que já se faziam presentes desde muito cedo. Aponta possíveis professoras, que mais o estimularam do que ensinaram. Já nesse momento, ainda durante os anos quarenta, os elementos, figuras e narrativas da bíblia eram constantes em sua criações. Além de um outro elemento que já era fixado em sua obra desde o começo, seus traços físicos auto-retratados. Comenta também sobre sua passagem pela Escola de Belas Artes e a forte influência do artista Mário Cravo sobre sua produção e o modo de encarar a arte. “Do que posso avaliar da convivência com Raimundo, nenhum outro artista ou professor influiu tanto nele como Mário Cravo [...]” (CELESTINO, 1982, p. 11) Estimulado pela vivência na capital baiana e o contato com os artistas da segunda geração de modernistas, aumentou seu interesse pela história da arte e pelo desenvolvimento formal de sua obra. Boaventura descreve o Raimundo dessa época como uma pessoa alegre com muitos amigos, presenteando-os sempre com seus trabalhos. Expôs muito durante a década de 50, mesmo antes de atingir sua fase mais madura. Aos poucos seus quadros foram se tornando menos escuros e sombrios, e seu vocabulário formal se firmando cada vez mais. E foi nesse momento que a convivência entre o artista e o escritor foi diminuindo até que Raimundo passa a viajar constantemente e passar mais tempo no sudeste, atendendo aos pedidos da Galeria Bonino, da qual era contratado. O único artista baiano contratado por uma grande Galeria, diga-se de passagem. Para finalizar o artigo, faz um apelo pela conservação da memória desse artista de Feira de Santana, “[...] não só pela memória, mas também pelo alto significado que sua arte alcançou.” (CELESTINO, 1982, p. 16)

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nagem”. Começando com uma lembrança do tempo em que moravam num pensionato na Avenida Sete, destinado aos jovens estudantes feirenses. Sendo esta lembrança a de uma última conversa, antes de Raimundo viajar para São Paulo, antes de uma importante exposição. E que algum tempo mais tarde soube que havia retornado à Bahia e logo após seu retorno, em meados de janeiro de 1966, suicidou-se de forma inesperada, num modesto quarto do Hotel São Bento. Logo após esta primeira memória, Juraci também descreve os primeiros passos, seu envolvimento com a efervescência cultural da capital baiana, e relata a organização, promovida juntamente com o professor Dival Pitombo, de uma grande exposição de arte moderna na cidade de Feira, com grandes nomes do cenário nacional como Poty, Caribé, Pancetti, entre outros, além do próprio Raimundo. Numa análise de sua produção, tentando compreender as influências marcantes da cultura popular, Dórea constata estar impregnado em sua obra, os terços, os lobisomens, os ex-votos, as bandeiras do divino, as ladainhas, os romeiros com seus anjos e demônios. Dentro do texto, para reafirmar seu pensamento faz uma citação de Quirino da Silva,

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Juraci Dórea, outro artista conterrâneo constrói o que ele chama de “uma derradeira home-


onde este conclui que Raimundo “[...] é tocado da mesma religiosidade dos velhos santeiros da Bahia. Aprendeu com eles, a mesma técnica de simplificar a forma; sua maneira de desenhar não se perde na abundância de detalhes, [...] toda a paleta de Raimundo foi emprestada dos altares, dos nichos, dos oratórios.”(CELESTINO, 1982, p. 22) Fazendo assim uma interpretação dos elementos característicos presentes nas narrativas bíblicas realizadas por Raimundo. Buscando, portanto, nas origens culturais uma análise inicial de sua poética. Carlos Eduardo da Rocha denota o sentimento, a espiritualidade que deram forma e expressão a pintura de Raimundo de Oliveira, plena da religiosidade popular, da ingenuidade e da pureza das coisas mais simples de seu povo, de sua terra. O chama de artista primitivo, mas no amplo conceito universal da História da Arte. E afirma: “era moderno sobretudo pela criação e abstração de novos espaços, pela deformação da figura humana, pela estilização de convenções, de influências egípcias e principalmente pelas composições tão pessoais.”(CELESTINO, 1982, p. 38) Não conseguindo agradar ao público baiano, amantes de valores tradicionais, com seu expressionismo violento, sua dramaticidade, deformação e abstração de espaços e da realidade. Descreve seus trabalhos, cujos espaços não eram construídos com as linhas retas, horizontais ou verticais dos renascentistas, ou nem mesmo as linhas diagonais tão ao gosto do barroco, mas com círculos, que determinavam as suas centrifugações apontadas, as quais compunham um novo dinamismo, distribuindo as figuras de modo muito singular, repetidas em vários enfoques.

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Wilson Rocha, num dos textos mais profundos em relação à sua obra, chama a atenção para a cor nas pinturas de Raimundo, onde esta torna-se signo, possuindo mais um valor simbólico que reconhecimento físico, material. Trata da dimensão da cor, no momento que esta traz uma nova visão plural do espaço, que não parte somente das formas, mas da cor enquanto elemento principal. De acordo com Rocha, a luz, vista como um princípio científico, como símbolo ou como metáfora, sempre representou um signo psíquico do homem. “O desenvolvimento da cor, a evolução da forma e a especulação do espaço atingem uma parte plenamente constituída, criando e dispondo melhor de seus meios.” (CELESTINO, 1982, p. 57) Segundo o mesmo, a emoção visual e o deslumbramento com as igrejas barrocas da Bahia, influenciava diretamente na sua maneira de pintar, tornando-se mais impressionante a cada ano, intensificando o caráter e a eloqüência expressiva da cor e da forma, desenvolvendo-se como um verdadeiro drama. E contesta as afirmações de que Raimundo fosse um primitivo, um naif, visto que este seguiu um caminho bastante severo de estruturação, de objetivação formal, em toda sua visão plástica, de sua força criadora. Rocha afirma ainda que as visões do pintor envolviam e convocavam revivescências de culturas milenares que se integravam na contemporaneidade de suas imagens, inseridas na alma medieval nordestina de sua origem. “Ele se inspirou nas lendas religiosas e inventa uma espécie de bíblia historiada em miniatura dignas dos manuscritos etíopes e os bordados coptos é, entretanto, de uma absoluta modernidade.” (CELESTINO, 1982, p. 59) Wilson conclui afirmando que a arte de Raimundo é oração, exorcismo, ex-voto. Uma entrega de sentimentos, desejos, pedido de perdão, que ele passou a vida inteira pedindo. O livro traz ainda, em seu final, a carta de despedida, escrita num pedaço de papelão, destinada aos amigos, no dia de seu suicídio. Deixando evidente sua perturbadora existência. Seu pedido de perdão por não suportar este mundo e suas injustiças.


Figura 3

O profeta Elias. Óleo s/ tela. 80 x 100cm. 1965. Col. Franz B. Hantke

Diante desses textos, artigos, recortes de jornais, anúncios de exposições e das reproduções de trabalhos pertencentes as suas três fases, encontrados até então, se torna possível concluir, ainda nesta primeira etapa do processo, que são muitas as aberturas para “entrar” na obra de Raimundo de Oliveira. Esta tão rica de contradições, síntese e transmutação de poéticas místicas, induções e intuições racionalizadas, conhecimento histórico e religioso unidos na intemporalidade de uma metafísica do imaginário e da atmosfera da religiosidade popular. Este artigo pretendeu apresentar informações importantes, porém, ainda em processo de amadurecimento, visto que, permanece em andamento a coleta de dados, entrevistas e formatação do texto final. No entanto, desde já imbuído do desejo de contribuir para o resgate da memória deste importante artista brasileiro.

CELESTINO, Antonio et al. A via crucis de Raimundo de Oliveira. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982 COELHO, Antônio Alves. Contribuição ao estudo das artes brasileiras II. Salvador: CEB, 1969 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006. PONTUAL, Roberto. Dicionário das Artes Plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969

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Referências

ROCHA, Wilson. Artes Plásticas em questão. Salvador: Omar G., 2001 SIMÃO, Luciano Vinhosa. Da arte: sua condição contemporânea. In FERREIRA, Glória; VENANCIO

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FILHO, Paulo (org.). Revista Arte & Ensaios nº 5. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.


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Artes audiovisuais e invenções do cotidiano. U m estudo da teledramaturgia no ciberespaço. Cláudio Cardoso de Paiva*

Resumo Apresentamos aqui alguns elementos para uma exploração estética e social das vinhetas de abertura das telenovelas da Rede Globo, a partir de uma mirada nos vídeos capturados no You Tube, um dos sites mais populares da internet. Metodologicamente, fizemos um mapeamento seletivo dos clipes que - de algum modo - traduzem uma certa idéia de modernidade brasileira. Assim, temos as inferências de uma modernidade acústica, visual, estética, cultural liberada pelas aberturas das telenovelas, e esta modernidade - para o melhor e para o pior - contrasta enormemente com a realidade de uma nação ainda em vias de desenvolvimento. Elegemos algumas séries de imagens ficcionais, que nos permitem vislumbrar historicamente alguns estilos de identidade e alteridade, subjetividade e sociabilidade a partir das imagens e sons das aberturas telenovelas e minisséries brasileiras por meio das releituras e transmutações para a ambiência informacional da internet. Palavras-chave: teledramaturgia; telenovelas; minisséries; internet; vídeos.

Abstract We present here some elements for an aesthetic and social exploration of the vignettes of opening of the soap operas of the Net Globe, from one aimed in the videos captured in You Tube, one of the sites most popular of the Internet. We made a selective mapping of the clips that - in some way - translate a certain idea of Brazilian modernity. Thus, we have the inferences of a modernity acoustics, appearance, aesthetic, cultural set free for the openings of the soap operas, and this modernity - for optimum and worse - contrasts enormously with the reality of a nation still in development ways. We choose some series of fiction, that in allow historically to glimpse them some styles of identity, subjectivity and sociability from the images and sounds of the openings Brazilian soap operas and minisseries by means of the reviews and translations for the environemment of the Internet. Key-words: teledramaturgy; soap operas; sitcoms; internet; videos.

* Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba (1984), mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília (1988), mestrado em Sciences Sociales – Universite de Paris V (Rene Descartes) (1991) e doutorado em Sciences Sociales – Universite de Paris V (Rene Descartes) (1995). Atualmente é professor associado I da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação e Estudos Culturais, atuando principalmente nos seguintes temas: televisão, sociedade, estética e teoria da comunicação e da informação, novas tecnologias e cibercultura. Tem atuado em duas áreas da pesquisa científica: FICÇÃO TELEVISIVA SERIADA e ESTUDO DAS MÍDIAS DIGITAIS (PIBIC/CNPq/UFPB), participando da linha de pesquisa CULTURAS AUDIOVISUAIS, PPGC/UFPB. E-mail: claudiocpaiva@yahoo.com.br.

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Antes de tudo se faz necessário colocar algumas questões sobre a televisão, a teledramaturgia e o ciberespaço, entendendo a conexão destas instâncias como uma vigorosa expressão da modernidade estética e cultural. A televisão assimila e difunde os modos de pensar, falar e agir, as narrativas e as conversações no cotidiano de milhões de pessoas; abrindo um canal de acesso

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1. Introdução


para os atores sociais ingressarem numa vertiginosa contemplação do mundo. Neste espaço televisivo se instalam as telenovelas, uma modalidade de arte industrial e tecnológica, que goza de enorme prestígio no Brasil e nos mercados internacionais. Sendo o motor fundamental de uma cultura midiática que agrega afetos e sensibilidades, a teledramaturgia faz parte estruturante do imaginário de várias gerações brasileiras, pelas suas narrativas memoráveis, imagens amadas e personagens inesquecíveis, e pela poética musical de suas trilhas sonoras, que acolhem e redistribuem as vozes e letras dos melhores cantores e compositores do país, resgatando reminiscências, memórias acústicas e sentimentais do grande público. A internet, sendo um meio ágil de comunicação interativa, recolhe e transfigura as informações das mídias tradicionais e as atualiza em tempo real, com grande poder de integração. O resgate do universo da televisão e das telenovelas que - há mais de meio século - tem norteado a imaginação de milhões de brasileiros, por intermédio da internet, consiste num acontecimento importante para a experiência cultural, por vários motivos, mas principalmente porque tornou possível se compactar os capítulos, reprogramar o começo, o meio e o fim das narrativas, ver e rever as estórias constituintes de uma moderna tradição audiovisual brasileira. Se ontem era necessário para os intelectuais levarem a sério a televisão (e a teledramaturgia), hoje é preciso levar a sério a internet. Primeiramente porque a internet consiste num importante canal de entretenimento para milhões de pessoas plugadas nos computadores e que pode também servir como uma ágil ferramenta de busca na pesquisa da comunicação e dos produtos culturais como as telenovelas. Depois porque durante muito tempo os pesquisadores no campo da televisão e da teledramaturgia enfrentaram grande escassez de material empírico em suas investigações. Além disso, o material videográfico disponibilizado na internet, nos sites e páginas eletrônicas, como o YouTube, pode gerar avanços no campo da investigação científica. E finalmente, os vídeos da internet constituem exemplos de uma modernização tecnológica, que pode gerar formas de ampliação dos horizontes mentais e propiciar modalidades de desenvolvimento sociocultural, instigando a imaginação vigilante e criativa, através de experiências lúdicas, perceptivas, sensoriais e cognitivas. A internet transformou os processos de comunicação vertical em processos de comunicação transversal, dialógica e interativa. O slogan do site de vídeos já diz tudo: “YouTube é a sua própria rede, seu próprio canal”. O usuário, telespectador, como cliente, leitor, cidadão, pode montar, desmontar, remontar a sua própria programação.

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De agora em diante, podemos acessar as imagens das telenovelas da Globo, um produto historicamente guardado a sete chaves, inacessível ou só recentemente vendido no mercado brasileiro e internacional. Mas a “facilidade de acesso” às imagens da ficção televisiva configura uma operação que não se realiza sem tensões e conflitos. O ato de acessar passa pelo raio de ação dos hackers, crackers, piratas da internet, que permanentemente fazem capturas ilícitas dos conteúdos privados tradicionais, causando a euforia dos usuários e a ira dos empresários das mídias. Tudo isso apresenta novos desafios para os pesquisadores no campo da Comunicação, diante das novas modalidades de produção, distribuição e consumo dos produtos culturais.


Cumpre sublinhar o caráter performativo da internet e das páginas eletrônicas como modalidades de comunicação interativa, que permitem aos indivíduos “fazerem coisas” com as imagens, sons e textos disponibilizados no espaço virtual e assim experimentar processos dialógicos e interativos. Reside aí o caráter revolucionário da internet, em seu sentido democrático, tribal, comunitário, como afirma Pierre Lévy (1997). De telespectadores nos tornamos sujeitos ativos no processo comunicacional; podemos desmontar e remontar as configurações tradicionais da teledramaturgia, ao acessarmos os vídeos das telenovelas disponibilizadas no website YouTube. A partir de alguns comandos digitais, os internautas e telespectadores podem reeditar a ficção televisiva, de acordo com as suas intenções lúdicas, estéticas, cognitivas, pedagógicas. O ato minimalista de compactar as cenas das telenovelas nos vídeos do YouTube (que podem ser transferidos e arquivados na segurança dos DVDs) traz grandes vantagens. Encontramos, por exemplo, narrativas ficcionais com alto padrão de qualidade, mas que podem se tornar cansativas durante o longo período de exibição na tv. Há telenovelas com um bom argumento, roteiros originais ou bem adaptados, com textos lúcidos e inteligentes, que são eticamente corretas no tratamento dos temas complexos, mas que tendem a ser saturadas, diluídas, fragmentadas, devido às interrupções dos spots publicitários, devido às obsessões com a audiência e aos próprios condicionamentos normativos do broadcast televisivo. Mas com o transporte dos conteúdos da televisão para a internet este processo sofre transformações. Daí a relevância de tratarmos do tema da transfiguração das telenovelas para o formato digital da internet, esta cibermídia, que prenuncia um novo estilo de televisão e que aos poucos vai se instalando no espaço público. ma, porque produz inovações estéticas, sensoriais, cognitivas e também quanto ao seu sentido, porque possibilita novos modos de usar, de fazer e de interagir com as mensagens. Raptados da televisão para o computador, os elementos de teledramaturgia realizam parte dos sonhos de milhões de telespectadores, desejosos de rever, relembrar, resgatar reminiscências e identificações projetadas nas telenovelas. Para os aficcionados não deixa de ser algo extraordinário a inauguração de um espaço midiático em que se instalam trechos importantes da ficcionalidade, as vinhetas de abertura, as cenas marcantes, os capítulos decisivos, os finais surpreendentes. Para os pesquisadores, reencontrar as narrativas ficcionais na internet é instigante porque assegura o acesso a um farto material de análise. Todavia, sendo mais do que apenas um simples estoque de material empírico, clipping ou arquivo de dados, as “imagens roubadas” de seu nicho midiático original (a televisão) e redistribuídas no ambiente liberado da internet abrem novas perspectivas para a pesquisa. Em rede, podem ser vistas, revistas, retrabalhadas pelos pesquisadores que podem conferir um novo sentido a este gênero de narrativa, outrora exclusivo da mídia eletrônica. É nesta direção que gostaríamos de explorar a arte controversa da teledramaturgia transportada para o formato hipermidiático da internet e miniaturizado pelo site de vídeo YouTube.

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A cultura midiática propiciada pelos sites de vídeo tem algo de revolucionário quanto à sua for-

Podemos lançar uma mirada nas imagens contemplativas do YouTube, com base nos estudos

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das imagens em movimento do cinema, televisão, filmes publicitários e videoclipes, conforme propõem Deleuze (2005), Peixoto (1986), Machado (2000) e igualmente a partir dos estudos


das imagens da teledramaturgia, realizados por autores como Lopes (2002), Melo (2002), Borelli (2000), Balogh (1996). Para se lançar um outro olhar sobre as artes da teledramaturgia, é preciso explorar os novos nichos da cibercultura. Porque a tv e a ficção seriada estão migrando para os formatos digitais e porque os televidentes e internautas têm expandido as suas intervenções, seguindo o rastro das narrativas ficcionais através do ciberespaço (nos sites sobre telenovelas, nos blogs, nas listas de discussão, nas comunidades virtuais). Não podemos esquecer que a realidade virtual, ontologicamente, já se fizera presente – avant la lettre – no universo da teledramaturgia, tanto na forma1 quanto nos conteúdos ficcionais. Só para ilustrar, relembramos as telenovelas O Espigão (1974), Dancing Days (1978/79), Final Feliz (1982/83), antecipando os cenários e as temáticas futuristas, Explode Coração (1995/96), introduzindo a internet e o namoro eletrônico no corpo da narrativa, O Clone (2001/2002), discutindo a engenharia genética. Além disso, já havia os efeitos especiais, que ora funcionavam como suportes da enunciação teledramatúrgica, ora como estrelas coadjuvantes concorrendo com os personagens. Mirando a nova culturalidade propiciada pelas conexões da televisão, cinema e internet é preciso aceitar o fato de que entramos em outra fase comunicacional. De olho na cibercultura, convém permanecermos atentos para os seus efeitos psicomotores, sensoriais, estéticos, cognitivos, como sugerem Marcondes Filho (1996), Lemos (2002), Santaella (2003), Machado (2007). Por outro lado, revisitar os textos de Bachelard (1993), Durand (1997) e Maffesoli (1996) pode ser instigante, entre outras coisas, porque estes pensadores reconhecem o imaginário e a imaginação simbólica como vetores de ações afirmativas. Cada um destes autores – indiretamente – abre caminhos para entendermos o significado das telenovelas e sua inserção no novo cenário da cibercultura. Porque são pensadores que buscam romper com os totens e tabus da ciência positivista; pensam de maneira pluralista, diferencial, integrando a parte maldita, o excedente, o que parece banal para o espírito iluminista; são pertinentes porque respeitam as práticas individuais e coletivas em sua dimensão errante, nômade, dinâmica, complexa e vitalista. O olhar movido por uma antropológica da comunicação concede importância aos símbolos na construção do imaginário, respeita o sentido das mitologias antigas e sua ressonância no campo das mitologias contemporâneas, concebe as imagens como estruturantes dos vínculos comunitários e reconhece o despertar da percepção e da cognição por meio dos estímulos audiovisuais.

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Contemplar a inserção das artes tecnológicas no ciberespaço consiste num modo de aproximar gerações distintas e práticas comunicativas diferentes. Reunir num mesmo enfoque as telenovelas da Rede Globo e os vídeos do Google (que hospeda o site YouTube) implica na disposição para decifrar um novo hábito intersemiótico e sociocultural causado pela penetração da ficcionalidade num ambiente comunicacional radicalmente novo. Quando os internautas vêem os fragmentos das telenovelas no computador tem-se inaugurada uma outra experiência cultural e isto ganha maiores proporções quando os usuários se empenham em modificar as trilhas sonoras, criando novas composições. Algo surpreendente se realiza quando alguém usa sua competência técnica e comunicativa, para comprimir uma narrativa com seis meses de duração


num formato narrativo mais curto, com duração média de dez minutos. Quando eliminamos as repetições, os comerciais e os excessos, podemos degustar um produto inteiramente novo, cuja reedição nos permite resgatar os melhores jogos de linguagem, as tramas mais brilhantemente elaboradas, os instantes fundamentais da dramatização, a conexão equilibrada entre as imagens, sons e textos. Um exercício de decupagem, remontagem e contemplação das cenas e episódios das telenovelas e minisséries remete-nos a um outro estágio de entendimento do trabalho da teledramaturgia; isto é possível com o auxílio dos meios informacionais. Assim, podemos recuperar cenas raras de Beto Rockfeller, Selva de Pedra (em sua primeira versão), Pecado Capital, O Astro, Pai Herói, Saramandaia, Carinhoso, etc, enfim, fotos, fotogramas, cenografias de novelas antigas, que hoje nos parecem geniais também pelos seus métodos de encenação artesanais, inventivos, improvisados. Metodologicamente, realizamos um mapeamento seletivo - à guisa de leitura e interpretação – dos sites de vídeos, contendo as vinhetas das aberturas das telenovelas e minisséries da Rede Globo, e para examinar as aberturas, como critérios de seleção, delimitamos uma videografia a partir de alguns eixos temáticos2:

2. Subversão do poder hegemônico e da ordem social Uma das cenas mais marcantes no contexto das vinhetas de abertura das telenovelas é a adaptação do filme de Chaplin, O grande ditador (1940), para a ficção de O dono do mundo (1992). A inserção da melodia Luísa, de Tom Jobim, conferiu um sentido leve, irônico, intimista à abertura de uma história que se propõe a fazer uma sátira corrosiva do monopólio do poder. O uso da figura de Hitler ridicularizado por Carlitos antecipa a intencionalidade de denunciar a corrupção, a parte maldita dos poderosos, que destroem a tudo e a todos que se interpõem em seu caminho. Esta é uma abertura interessante também pela maneira como utiliza os equipamentos cibernéticos para construir uma encenação crítica e bem humorada do poder hegemônico. Rei sou eu? Pela via da comédia, este vídeo faz a uma viagem no tempo, passando pelas lutas das tribos na pré-história, mostrando os romanos se digladiando, vikings em guerra, os duelos medievais, os franceses revolucionários, os combatentes na segunda guerra mundial. São passagens rápidas interrompidas por cortinas de fumaça e ao som das batidas de uma música pop, frenética, juvenil, que, de modo inteligente, instala a paródia do poder, alertando as novas gerações para as fases históricas do poder e as formas sociais de resistência durante o longo percurso da humanidade.

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Um outro exemplo de paródia e subversão do poder se mostra na abertura da telenovela Que

Já antiga e ainda hoje atraente, a vinheta de novela Roda de Fogo (1987) desvela camadas fan-

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tásticas, oníricas, simbólicas da imaginação do poder. Os arquétipos do tigre, do fogo, do anel, dos cavalos alados, dos corpos masculinos figuram o simbolismo do poder, evidenciando suas motivações inconscientes, ocultas, reprimidas, que neste clipe moderno se epifanizam como expressões artísticas minimalistas, plenas de significação. Traz um raro exemplo de sintonia entre


as imagens em movimento e a canção da trilha sonora na abertura, “Pra começar” (composta por Antonio Cícero e cantada por Marina), e igualmente, conota uma epígrafe fidedigna ao argumento da telenovela, que coloca a representação do poder e seus distúrbios no centro da cena.

3. A imaginação da morte As mortes dos personagens célebres da ficção, como Odorico Paraguaçu (O Bem Amado), Salomão Hayalla (O Astro), Odeth Roithman (Vale Tudo), Carlão (Pecado Capital), Diadorim (Grande Sertão Veredas), José Inocêncio (Renascer), Senador Caxias (O Rei do Gado), são episódios, cujos efeitos no imaginário popular são imensuráveis. O ato de poder recolher e rever estas cenas gratificam enormemente os telespectadores. Em primeiro lugar porque tornam evidentes, nas interpretações dos personagens, os gestos, as atitudes, as emoções dos seres imaginários diante da morte, com as quais os telespectadores se identificam. A sonoplastia, as canções, as trilhas musicais, a engenharia sonora, tudo isso concorre para a intensificação das sensações, emoções, sentimentos até explodir a catarse. Depois porque atualizam a experiência extrema do Ser, a morte, a finitude. E finalmente porque estes personagens trágicos causam um arrebatamento muito forte, pois sendo intensos, profundos, abismais, servem de depositório para os afetos e identificações dos milhões de seres humanos contemplando os seus trajetos existenciais.

4. A imaginação do trabalho A vinheta de abertura de Roque Santeiro parece adequada para se discutir os níveis de representação e de simulação destes pequenos objetos de arte tecnológica, incorporados pelos vídeos de abertura das telenovelas disponibilizados pelo site YouTube. Na mensagem da abertura de Roque Santeiro a relação entre a imagem e o objeto é direta, ali se projetam as representações do trabalho. Gente batalhando, homens e mulheres carregando peso, retratos do esforço humano na luta pela sobrevivência. Chapéus de palha, enxadas, carros de boi, pessoas caminhando em fila indiana rumo ao labor na roça. São símbolos do Brasil arcaico, agrário, camponês, mas - sobretudo - de gente que trabalha na terra. E, com estas imagens primitivas se mesclam imagens de um país estampado pelas figuras da modernização, em que tratores, motos, automóveis, aviões encerram semioticamente um grande painel do Brasil urbano. Em linguagem de videoclipe e no embalo de uma batida melódica de música popular, num estreitíssimo espaço de tempo constrói-se uma vigorosa metonímia audiovisual do país.

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De maneira similar, a abertura de O rei do gado representa também o mundo do trabalho, os vaqueiros, a terra, o gado, desnudando um cenário do Brasil agrário, campesino e a trilha sonora, com tonalidades épicas, funciona como hino de louvor ao trabalho. Mas a abertura é, ao mesmo tempo, conservadora, lírica, cafona, colorida e popular, chegando ao extremo de mostrar o rei do latifúndio (Antonio Fagundes) pintado de dourado, glorificando o coronel, como o vencedor, o herói, o rei. Bastante interessante é observar o resultado do diálogo intertextual entre a abertura e a narrativa da novela, a primeira é conservadora glorifica o poder do patrão, enquanto a segunda faz uma crítica corrosiva aos abismos sociais, econômicos e políticos do país.


5. A epifania da natureza Há vinhetas de abertura que são como epígrafes coloridas, brilhantes e luminosas das narrativas, mantendo como fio condutor a simulação da natureza; nos vídeos da internet se permitem ler, na mesma medida em que se pode falar em “modalidades de leitura” dos audiovisuais, do cinema, da televisão, no sentido empregado por Santaella (2003). A temática do mundo natural no vídeo, a graça, a beleza e o terror do mundo selvagem, as mitologias universais mixadas com as mitologias globais, urbanas, contemporâneas, exemplificam a insersão dos televidentes numa ambiência ecológica hiperrealista; avultam-se aqui as imagens de pureza e perigo dos paraísos artificiais. A simbologia da metamorfose é muito forte na estruturação do imaginário coletivo. De algum modo, tudo aquilo que a antropologia anunciara a respeito das imagens se epifaniza aqui triunfante, e se coloca à disposição dos usuários que podem usufruir os prazeres da arte do vídeo das telenovelas remixada no computador. Nessa direção, pensadores como Durand (1997), Barthes (2003), Morin (1989), Baudrillard (1997), Maffesoli (1996) apresentam-nos idéias instigantes para uma “antropológica da comunicação”, atualizando um olhar sobre a televisão e o ciberespaço. Assim, as leituras formidáveis dos mitos, ritos, imagens e símbolos, das culturas antigas e recentes configuram chaves interpretativas para entendermos a forma e o sentido das culturas audiovisuais, digitais, interativas. Exibem-se nas imagens ficcionais a apresentação fantástica e exuberante das belezas naturais, mas por outras vias, tornadas possíveis somente a partir dos registros e mediações tecnológicas da tv, do vídeo e da internet. As telas e redes promovem uma simbiose inédita entre o natural e o industrial, o ecológico e o tecnológico, o orgânico e o artificial. As narrativas tradicionais e as culturas da tradição oral ganham outras dimensões e propiciam novas traduções das sensibilidades populares, pelo viés das artes tecnológicas, conforme nos permitem observar autores como Barbéro & Rey (2001).

As imagens e sons da natureza são revitalizados no estoque do merchandising ecológico, turístico, cultural: misturam-se as evidências e sonoridades da vida urbana, esportiva, saudável, e ao mesmo tempo, emanações da vida místico-religiosa, sensual e erótica do cotidiano. A simulação da juventude, da vida abastada, eternização do lazer cotidiano e as imagens das férias de verão aparecem também nas aberturas de novelas como Água Viva. A vida selvagem, o prazer do risco, o vigor e a violência simbólica da natureza, das águas, matas, florestas, as imagens do mundo (des)conhecido matizam a abertura mais marcante, na telenovela Pantanal, feita pela extinta Rede Manchete.

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por meio de novas intervenções hipermidiáticas, cibernéticas. O novo atualiza e revigora o antigo, que por sua vez explica o sentido das novas experiências culturais. É nessa perspectiva que entendemos a nova configuração do mundo natural, da natureza simulada e da ecologia virtual, cada vez mais evidente por intermédio das tecnologias audiovisuais, telemáticas. É por aí que se formam os novos estilos de identificação, novos matizes de subjetividade e sociabilidade.

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As simulações do misterioso, do sublime, do extático e do transcendental se reformulam aqui


Num registro semiótico oposto, o romantismo hightech, a virtualização do éden terrestre, o simulação dos paraísos artificiais, mixados com a música apolínea, ascética, transcendental, fazem o glamour de algumas aberturas de novelas e minisséries edulcoradas, desde Riacho Doce (1990); esta última é interessante, pois, mostrando a ilha de Fernando de Noronha, em conexão com lirismo da música de Bhramms, cria um dos efeitos mais arrebatadores no contexto estético dos audiovisuais. Uma mirada altiva, apolínea e extasiada sobre o Rio de Janeiro se faz perceber, por exemplo, na abertura de uma telenovela como Paraíso Tropical (2007): kitsch, cara, démodé e... extremamente popular. Há vinhetas de abertura feitas sob medida para a exportação das imagens exóticas do Brasil – como Paraíso Tropical - cujo poder de sedução reside em agregar o visual espetacular da praia de Copacabana com o bolero consagrado, Sábado em Copacabana, cantado por Maria Bethânia. São conjuntos de imagens, que, postadas no website do YouTube, resgatam reminiscências sensoriais, perceptivas e sentimentais dos telespectadores. Em suas dispersões, todos estes títulos concorrem para a armazenagem e organização de um repertório acústico e visual que define matizes culturais bem expressivos. Estes clipes reúnem imagens urbanas da vida cotidiana com a simulação midiática da natureza. Os vídeos de abertura tematizando a ecologia, disseminados na internet, instigam uma reflexão sobre a condição dos seres urbanos, cuja relação com a natureza se perfaz a partir das telas e redes, dos ambientes artificiais naturalizados. A natureza contemplada pelas lentes das telenovelas e transfigurada pelos dispositivos telemáticos da internet, remete a uma nova interação entre os seres urbanos, as narrativas ficcionais e a representação do mundo natural. Uma semiologia mais profunda nos revelaria aí o sentido de um resgate da natureza animal do ser humano, através de mídias seguras, confortáveis, mostrando a sua parte atraente, terrível e desconhecida.

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6. Figuras mitológicas, fantásticas, sobrenaturais Os temas religiosos, bíblicos, milenaristas, que perseguem o imaginário ocidental ao longo do tempo, retornam reciclados, nas experiências tecnológicas do designer austríaco Hans Donner, um gênio que revolucionou as artes visuais da programação de Rede Globo de Televisão. As iconicidades do início, da apoteose, do fim, nas vinhetas de abertura de O clone, Torre de Babel e O fim do mundo atualizam o sentido de uma escatologia estética que rege o imaginário ocidental. E aí reside o triunfo das artes audiovisuais, televisivas, digitais: de maneira similar às artes pictóricas do passado e do cinema recente, a visão dos acontecimentos extremos é sublimada pela harmonia apolínea da linguagem videográfica e, no entanto, o seu conteúdo é explosivo, dionisíaco, uma vez que se nutre das vibrações e desordens do mundo natural. As aparições das imagens radicais (os estranhos nascimentos, os imprevistos, as conjunções insólitas, o apocalipse, o fim do mundo, o sobrenatural) – que têm arrebatado os sentidos humanos no itinerário da civilização – persistem como elementos-chave na história audiovisual da teledramaturgia; hoje ainda funcionam como elementos extraordinários que, atualizados pelos


meios digitais, promovem e renovam as experiências fundamentais da estética, da poética, da catarse. Num outro registro, as figuras mitológicas retornam nos emblemas da metamorfose, uma alegoria importante, desde Ovídio – sinalizando o desejo humano de eternidade, da vida indestrutível, tão evidente nas aberturas das novelas Tieta, A indomada e Pedra sobre Pedra, em que as mulheres se fundem aos objetos, assumindo formas teratológicas, de animais, vegetais, outros seres e entidades orgânicas. E ainda nessa direção, encontramos os desenhos, as animações, em linguagem de videoclipe - nas aberturas das telenovelas – que também se estruturam com base nas antigas mitologias, ligadas às imagens da duração, infinitude e eternidade, como comprova, por exemplo, a vinheta de abertura de O beijo do vampiro. Desde Saramandaia o mito das alturas, o vôo de águia, o complexo de Ícaro, a mitologia das asas, da levitação e da velocidade, tudo se mostra muito evidente, hipertrofiado pelas operações industriais, tecnológicas, de simulação do mundo natural, artificializado a partir das tomadas aéreas dos helicópteros e aeronaves; por meio dos sistemas de distanciamento, redução, aproximação, ampliação das maquetes, curiosos processos arquitetônicos são montados, criando efeitos notáveis. Estas operações podem ser estudadas, a partir da captura dos vídeos na internet e servir como instrumentos de novas realizações plásticas, estéticas, narrativas, pelas gerações da cibercultura. Escapando ao universo do realismo fantástico, do surrealismo, da magia, um grande arsenal de imagens configura as aberturas das novelas, ora servindo como espécies de epigrafes dessa videoliteratura forjada pela ficção televisiva, ora como signagens independentes das narrativas. Tais imagens encarnam a substância híbrida que incorpora as emanações do sincretismo místicoreligioso brasileiro, como na abertura de Porto dos Milagres, em que Iemanjá, a divindade do candomblé, ganha forma, cor e volume no ambiente aquoso, transparente, azulado, do fundo do mar. na interpenetração dos elementos anacrônicos, opostos, diferentes, na maneira como cada peça na realização da teledramaturgia mantém a sua autonomia e completude, na forma como se realizam os jogos do ilusionismo ótico dos audiovisuais, típicos da sensibilidade barroca. Em verdade, a conjunção do arcaico e o tecnológico, o sensual e o cognitivo, o orgânico e o sintético, que povoam a cultura das redes, em que se inserem o telespectador e o internauta, a tv e a internet, as telenovelas históricas e os vídeos ficcionais, tem tudo a ver com o que os teóricos denominam como “neobarroco” (CALABRESE, 1987) ou “barroquização do mundo” (MAFFESOLI, 1996).

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Como nos ensinam os estetas Wolfflin (1996), Dors (1968), Gombrich (2000), há algo de barroco

7. A imaginação tecnológica da televisão

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Encontramos algumas aberturas excepcionais de telenovelas que mantêm cuidadosa sintonia entre as imagens, os sons e os temas dos enredos ficcionais. Este é o caso da telenovela Selva de Pedra (1986). O designer Hans Donner criou efeitos especiais para essa abertura que se tor-


nou histórica na imaginação poética dos aficcionados pela teledramaturgia. Para isso, fabricou imagens de arranha-céus que brotam da terra seca, elevando-se vertiginosamente para o alto. A simulação dos prédios, feitos em ferro e vidro espelhado, em cores azuis metálicas e prateadas, contrasta com o ambiente de um terreno arenoso, rude, vermelho. As formas geométricas das construções focalizadas em movimentos ágeis, filmados pelas microcâmeras, de cima, dos lados, de todas as partes, captando os detalhes, os dorsos, os perfis das figuras, traduzem a idéia de modernização industrial das selvas de pedra. Por efeito de ampliações técnicas, as superfícies dos prédios espelhados crescem e tornam visíveis os semblantes do atores-personagens da trama, em movimentos ritmados, combinando com a trilha sonora. Em justaposição, a vinheta sonora se constrói a partir de batidas produzidas em sintetizador que vão ressonando moduladas, gradativamente, à medida que os prédios irrompem do solo até se decantarem de forma mais amena, remontando de forma remasteurizada a trilha sonora da telenovela Selva de Pedra, em sua edição original de 1972, um hit de sucesso, “Rock’n roll lullaby” (na voz de B.J.Thomas), um rock romântico dos anos 70. Num outro registro, o trabalho de Hans Donner rebusca a idéia de modernização a partir dos arrojados efeitos tecnológicos na abertura da telenovela A indomada (1997). Ali, então, já perfazendo um roteiro visual e sonoro mais sofisticado, Donner busca conciliar a imagerie da abertura com o espírito da narrativa. Uma ninfa (Maria Fernanda Cândido), vestida de vermelho, corre em disparada num cenário virtual, escapando dos obstáculos metálicos, dos ferros, das grades e para isso se metamorfoseia assumindo as formas do fogo, da água, dos estilhaços de pedra. Enquanto corre, sempre para frente, como que movida pela força da natureza, sob os seus rastros vão brotando campos, folhagens, uma vegetação que cresce com agilidade. Simultaneamente, ouvem-se as batidas modernas de um maracatu entoado por vozes femininas, que aglutinam semioses distintas, reunindo as figuras acústicas da tradição africana e a visibilidade futurista, incorporadas pelos metais líquidos em movimento. Como a protagonista da novela (Helena/Adriana Esteves), a personagem da abertura encarna o sentido de força, persistência e emancipação.

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Tais motivações estéticas, mesclando o mundo tradicional e o moderno, com ênfase numa visão metafórica, cuja iconização remete ao complexo industrial-tecnológico como signo da modernização, retornariam ainda na vinheta de abertura da novela Renascer (1993). Uma imensa gota d´água hiperbolizada irriga o solo desértico ao cair no chão, fazendo brotar uma planta que se torna árvore gigantesca e sobe às alturas, seguida de perto por uma câmera computadorizada e em seguida se abre, fazendo surgir, de seu interior, um prédio ultra-arrojado, em metal e vidro que se despedaçando vai dar visibilidade a um cenário rural, mas logo a seguir o chão se racha, arrebenta-se e daí surge um cenário urbano infestado de prédios, que serão engolidos por uma espécie de envelope digital que fechará a vinheta com o ícone que serve de slogan publicitário da telenovela. A canção de abertura, “Nada cai do céu”, na voz de Ivan Lins, consolida a reunião do novo e o antigo, com o acento forte nas imagens de progresso e modernização, através do uso de aparatos industriais e tecnológicos.


8. Imaginação ficcional da história O encaixe e desencaixe das cenas do Brasil real com as cenas do Brasil simulado na tv são – por sua vez – momentos inesquecíveis, com extrema força simbólica, cuja epifania gera um grande impacto. Anos Rebeldes, Um só Coração, JK e Amazônia – por exemplo - são obras que condensam um alto nível de emanação estética, sensorial, histórica e cognitiva. As visões fotográficas e as sonoridades antigas alertam para uma outra maneira de se fazer uma aproximação da história; encontrá-las dentre os vídeos do YouTube é um luxo tanto para os amadores quanto para os estudiosos. As imagens especulares da história fisgadas pelas narrativas ficcionais da televisão e disseminadas nos vídeos interativos da internet, atuam como estímulos para os internautas que fazem seus links, pontes, conexões com outras fontes históricas, filosóficas, estéticas que fervilham na internet e assim, podem ampliar a sua rede sensorial e cognitiva. Os vídeos de ficção transportados da televisão para a internet podem constituir visões minimalistas do Brasil. Em sua ágil e dinâmica exibição, desnudam traços reveladores de uma psicologia do masculino e do feminino, que transparece na iconização dos temas de abertura. São imagens visuais e imagens acústicas que têm uma influência estética, motora, sensorial muito forte sobre os telespectadores, pois movem figuras, símbolos e sinais que lhe são velhos (des)conhecidos. As lentes e câmeras dessas máquinas de visão detêm o raro poder de se aproximar “em close” dos rostos, dos corpos, da pele, ampliando sensualmente os detalhes. Ao acessarmos a internet reencontramos trechos importantes de representações sérias, atentas, vigilantes da cena social e cotidiana. Quando alteradas, modificadas, estética e tecnicamente, as imagens de ficção (das telenovelas, das minisséries), viram uma outra coisa e naturalmente incitam novos elementos significativos, novos saberes e fruições. Os quadros miniaturizados são simulacros afetivos, irônicos, reveladores de uma outra dimensão – ao mesmo tempo - pública e intimista do Brasil.

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gravadores, significa um reforço e intensificação do ato de espiar pelo buraco da fechadura. Quando apreciamos as telenovelas postadas no YouTube, entramos em sintonia com as comunidades virtuais, constituídas pelos fãs, curiosos, colecionadores e estudiosos. Ocorre aqui uma intensificação dos exercícios do ver como uma aceleração dos motores que mobilizam as sensações, os sensores, as percepções e as sensibilidades. Nossos gestos e atitudes ganharam novas proporções a partir dos atos de digitar, acessar, baixar, capturar e remixar; além disso, podemos realizar leituras imersivas, transversais; é assim que a vidência tecnológica readquire o estatuto de pré-entendimento. Com os meios de comunicação de massa, as evidências (das telenovelas e minisséries) nos surgiam produzindo efeitos de verdade; no mundo da cibercultura podemos questionar a solidez destes efeitos de verdade, por meio de outras leituras transversais, nos livros virtuais, sites de busca, correio eletrônico. E, por outro lado, podemos também experimentar novas linguagens e experiências artísticas, adicionando novos efeitos de verdade e ilusão à corporeidade das narrativas. O YouTube nos instiga a renovar tais experiências e realizar o nosso

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Explorar os espaços da internet, guarnecidos por um vigoroso equipamento de lentes, câmeras,


próprio cinema, reorganizando as imagens, os sons, os seres e as coisas virtuais. Novos mecanismos de realização estão à nossa disposição a partir das “cibermídias”. A reinvenção das artes do cinema nos favorece, iluminando uma nova idéia de televisão, e por outra via, temos também a oportunidade de pensar o outro lado dessa operação, ou seja, a “nova tv” antropofagizando o cinema.

9. Para concluir Escrever sobre a inserção das telenovelas da Globo nos vídeos do Google, no ciberespaço do YouTube, é apontar para um tipo de transgressão inédita. Significa enfrentar as experiências anárquicas dos aficcionados pelos computadores, um ambiente infestado por hackers, piratas, gênios e inventores que não cessam de criar conexões intermidiáticas (onde fluem texto, imagem, som, foto, vídeo, animação). Ao mesmo tempo podemos apreciar o modo como se realiza o desejo de liberdade dos telespectadores e a liberação dos seres ficcionais para fora dos aparelhos de televisão. Os tipos sociais, psicológicos, as cenas fictícias, noturnas, longínquas, os personagens afetivos perdidos no tempo das histórias de ficção, tudo isso retorna a partir de uma curta série de procedimentos digitais realizados na manhã do século XXI. Falar em telenovelas no ciberespaço é também enfrentar algo de muito novo que se desenha no campo da comunicação e da cultura; é enfrentar a nova desordem econômica, política e cultural da sociedade em rede, em que convergem e se associam empresas e mercados diferentes, em que se inscrevem distintas formações culturais, reunindo as imagens locais e globais. Logo, cumpre estudar atentamente a zona fronteiriça da comunicação, em que dialogam a cultura de massa da televisão e a cultura hipermidiática da internet.

Notas 1

Neste sentido basta lembrar de Hans Donner, o mago da tecnologia e da virtualidade, na Rede Globo, com suas vinhetas, comerciais e aberturas das telenovelas, revolucionando o visual da emissora. 2

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As imagens de produtos como Selva de Pedra (1986). Roda de Fogo (1987). Roque Santeiro (1985/86). Vale tudo (1988/89). Que rei sou eu? (1989). Tieta (1989/90). Riacho Doce (1990). O dono do mundo (1992). O fim do mundo (1996). O rei do gado (1997). A indomada (1997). Torre de Babel (1999). O auto da compadecida (1999). Terra Nostra (2000). Porto dos Milagres (2001), por exemplo, podem ser interpretadas a partir de alguns eixos temáticos.

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História visual e história oral: aproximações possíveis Robson Xavier da Costa*

Resumo Este trabalho objetiva discutir as relações entre a História Visual e a História Oral na pesquisa histórica, a partir da dissertação “Trajetórias do Olhar: pintura naïf e história na arte paraibana”, defendida no PPGH da Universidade Federal da Paraíba no ano de 2007. Neste trabalho utilizamos a técnica de entrevista de história de vida, associada à leitura e análise das pinturas naïfs, como parte integrante do corpus documental da pesquisa. Buscamos nas imagens estudadas pontos convergentes com os relatos dos entrevistados, formas recorrentes nas obras e sua relação com a história de vida dos artistas. Nesse trabalho constatamos a existência de uma relação intrínseca entre a temática representada nas pinturas naïfs e as experiências de vida relatadas pelos entrevistados. Palavras-Chave: pintura naїf; história visual;história oral

Abstract This work aims at discussing the relationship between Visual History and Oral History in the historical research. The starting point is the dissertation “Trajetórias do Olhar: pintura naïf e história na arte paraibana” submitted to the Post-Graduation Program in History at UFPB in 2007. In this work, we used the technique called life story interview combined with the reading and analysis of naïf paintings, as a part of the documental corpus of the research. We searched the images studied for convergent aspects to the artists` life story. In this work we established the existence of an intrinsic relationship between the themes represented in the naïf paintings and the life experiences reported by the artists during the interviews. Key-Words: Naïf paintings; Visual History; Oral History.

1. História Visual: introdução

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* Professor efetivo Assistente I e ex-chefe do Departamento de Artes Visuais (DAV) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutorando em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFRN - início 2009), Mestre em História (2007 - UFPB), especialista em Educação e Tecnologia da Informação e Comunicação (UFPB - 2005), Sociologia (UFPB/ CEFET - 1997) e Educação Especial (UFPB - 1995), com formação em Arteterapia pela Clínica Pomar do Rio de Janeiro (2004), Licenciado em Educação Artística - Artes Plásticas (UFPB - 1993). Editor e membro da Comissão Editorial da “Revista Intervenções: Artes Visuais em Debate” do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAP, Sócio Honorário da Sociedade Brasileira de Arteterapia - SBA e Líder do Grupo de Pesquisa em Arteterapia e Educação em Artes Visuais (GPAEAV), credenciado pelo CNPq. Premiado em 1º lugar na categoria Ensino Fundamental no Prêmio Arte na Escola Cidadã - 2003 - Instituto Arte na Escola - Fundação IOSCHPE e em 1º lugar no prêmio Arquidy Picado - 1998 - na categoria pintura contemporânea (conjunto da obra) no IV Festival Nacional de Arte - FENART - FUNESC - João Pessoa - PB. Atua na área de Artes Visuais, Arteterapia e Educação, com ênfase em arteterapia e educação em artes visuais, pesquisando os seguintes temas: Artes Visuais, Arte Contemporânea, Arquitetura da Arte, Educação em Artes Visuais, Arteterapia, História Visual e Formação continuada de Professores. Eleito como 2º secretário da ANPAP para a gestão 2009-2010. E-mail: robsonxcosta@yahoo.com.br.

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A sociedade do espetáculo é também a sociedade das imagens. [...] A história se faz com fontes e imagens, da qual os homens lançam mão em todos os tempos, é uma fonte que oferece beleza e profusão de detalhes históricos. Uma imagem contribui, também, para o melhor


entendimento das formas pelas quais as pessoas representam sua história e sua historicidade e se apropriam da memória cultivada individual e coletivamente. Imagens são, e de maneira não necessariamente explícita, plenas de representações do vivenciado e do visto e, também, do sentido, do imaginado, do sonhado, do projetado. São, portanto, representações que se produzem nas e sobre as variadas dimensões da vida no tempo e no espaço. (PAIVA, 2004, p. 13-14). Com a ampliação das fontes de estudo da história a partir dos Analles, um grupo crescente de historiadores têm se interessado pela pesquisa com imagens. Considerada como fonte documental, a imagem ganha status de grande objeto para a pesquisa histórica. O estudo das imagens está na raiz dos estudos históricos e tradicionalmente têm sido utilizadas como ilustração ou reforço às fontes documentais escritas; no entanto, as imagens nunca foram tão bem aceitas como fonte documental como nos estudos historiográficos mais recentes. A historiografia envolvendo imagens tem se dedicado principalmente à fotografia e ao cinema, devido às representações essencialmente figurativas dessas imagens, ao seu potencial ideológico e social, como no caso do foto-jornalismo. As representações fílmicas e fotográficas ganharam lugares privilegiados na história atual. A pintura histórica, o desenho, a gravura, a escultura, a arquitetura e outras técnicas tradicionais também deixam de ser exclusividade dos estudos da história da arte. Essas ricas fontes de saberes históricos no mundo contemporâneo, invadido pelas imagens, não podem ser privilégio da história da arte, mas da história como disciplina, como área de conhecimento, tornando-se base empírica de informações e objeto da pesquisa histórica. O uso da expressão “história visual” (MENEZES, 2005) pouco corrente na historiografia, nos parece bastante promissor devido à abrangência das questões que aborda e a possibilidade de abarcar os vários campos de estudos da imagem. As diversificadas possibilidades de leituras, desde as tradicionais imagens das chamadas “Belas Artes” até os cartazes, outdoors, camisetas, imagens impressas (livros, revistas, jornais, etc.), imagens digitais, virtuais e uma infinidade de outras fontes possíveis, são elementos de estudo para a história visual, entretanto, a cautela e a precaução são imprescindíveis para a incorporação da imagem ao computo da história. Segundo Paiva:

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É preciso saber filtrar todas essas imagens, todos esses registros iconográficos, para tanto, nunca é demais voltar aos velhos ensinamentos em torno da crítica interna e externa das fontes, que todo historiador deve empreender, talvez sem a rigidez modelar, esquemática e classificatória que se pretendeu e se praticou no passado (PAIVA, 2004, p.18).

A imagem não pode ser encarada como um registro de um fato, é necessário o questionarmos, como, por quê, e por quem, a imagem foi produzida. É preciso conhecer seus limites, suas técnicas, seus recursos, os estilos, os contextos nos quais as imagens foram produzidas. [As imagens são] condicionada [s] pela forma de olhar de uma época, que envolve desde enquadramento, angulação, foco, iluminação até a escolha do [s] objeto [s] e ser [em] registrado [s] (VIDAL, 1998, p.77).


Os dados iconográficos são complexos e instigantes. Além de questionados devem ser investigados quanto à originalidade das fontes imagéticas, quanto às apropriações de significados sobre as imagens e as intenções dos produtores/autores no momento da criação. Além do explícito, o não explícito deve ser avaliado na imagem. As informações subliminares, os silêncios visuais permeados no texto, as escolhas composicionais e os vazios presentes nas representações visuais, devem ser elementos de investigação. Esses elementos exigem do historiador uma prática interdisciplinar com a contribuição de abordagens de estudo de outras áreas de conhecimento que favoreçam leituras densas das imagens na história. A imagem não é o retrato de uma verdade, nem a representação fiel de eventos ou objetos históricos, assim como teria acontecido ou assim como teria sido. Isso é irreal e muito pretensioso. A história e os diversos registros históricos são sempre resultados de escolhas, seleções e olhares de seus produtores e dos demais agentes que influenciaram essa produção [...] isso significa que as fontes nunca são completas, nem as versões historiográficas são definitivas. (PAIVA, 2004, p. 20). O estudo das imagens permite ao historiador caminhos menos ortodoxos em sua práxis, favorecendo uma compreensão do potencial simbólico evocado pelo estudo da produção visual ao longo do tempo. Procurar compreender o repertório iconográfico e ampliar os aportes de estudo do documento histórico, decifrando símbolos, signos, figuras, representações visuais em geral conectadas com sua época, sua cultura e suas dimensões humanas, é trabalho de historiador. As práticas culturais representadas por meio das imagens são compreendidas pela história como práticas de linguagens, ampliando as possibilidades de leitura de textos (linguagem verbal, oral e escrita) para textos visuais (linguagem não-verbal). Ao utilizar as imagens como fontes de pesquisa o historiador diversifica seus objetos de investigação e pode estabelecer relações mais profundas com a cultura humana e suas variadas formas de representação. Embora as imagens permitam múltiplas formas de leituras, nem todas elas são válidas para o de seu tempo” (PAIVA, 2004, p. 33). A leitura da imagem deve ser inserida em seu contexto histórico, o que leva o historiador a uma seletividade na análise dessas fontes. Dessa forma, o estudo das imagens na história apresenta especificidades, uma delas é a necessidade premente de teorização sobre o visual, à tentativa da representação de um texto visual transformado em texto escrito, requerendo do historiador uma metodologia que dê conta da diversidade de frentes de conhecimentos necessários para a compreensão das informações pre-

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historiador; é preciso lembrar que “as leituras, assim como as versões históricas são todas filhas

sentes na imagem estudada. Existem muitos meios para mediar às relações entre imagens e os textos escritos, variando conforme o contexto da pesquisa e o tempo histórico trabalhado. Em pesquisas com história do

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tempo presente uma das formas de mediar essa dualidade é a metodologia da “história oral”.


A oralidade, as histórias contadas sobre as imagens possibilitam o contato com informações capazes de enriquecer a leitura visual, a partir do diálogo com outras fontes documentais. “Para que a observação seja eficaz, é indispensável usar todo e qualquer tipo de fonte (fontes materiais, escritas, orais, hábitos corporais, etc.) – ainda que as materiais possam predominar [...] enfoque semelhante valeria para uma “história visual” (MENEZES, 2005, p. 26). O uso dessas fontes ou o estudo de uma “história visual” pode favorecer os estudos históricos e muni-los de aparatos metodológicos capazes de permitir um entendimento das teias das representações visuais.

2. História Oral x História Visual A história oral gestada na obra de autores do porte de LE GOFF (1994) e THOMPSON (1992) tiveram grande impacto sobre os estudos de memória e oralidade. No Brasil, a obra de Ecléia Bosi, “Memórias de Velhos”, foi fundamental para o desenvolvimento da prática da história oral no país; embora a autora não cite textualmente a história oral, seu trabalho passou a ser sinônimo de um tipo de pesquisa com o uso de entrevistas, gravador, arquivos, diálogos, fitas, transcrições, todo um aparato tecnológico necessário para a realização desse tipo de prática historiográfica. Os trabalhos do Programa de História Oral do CPDOC/FGV/RJ1 também são referências clássicas para o estudo do campo da história oral no país. Na prática da história oral utiliza-se o relato e as entrevistas, os “documentos vivos”, pessoas que vivenciaram os fatos, testemunhos da história, esta prática “(...) constitui um lugar privilegiado para uma reflexão sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do social pelos indivíduos de uma mesma formação social.” (FERREIRA apud MEIHY, 1995, p. 19). Montenegro, no seu trabalho “História Oral e Memória” (2003), faz uma análise crítica do que ele chama de “esconderijos da memória” para verificar quais as histórias que o povo guarda na memória de forma consciente sobre a revolução de 1930. Parafraseando Montenegro, entendemos que existem “esconderijos nas Imagens”, espaços de silêncios temporais, textos nas entrelinhas, símbolos e significados guardados que devem ser decifrados. Essa relação com as mensagens pode ser acessada nas imagens com o auxílio da história oral em parceria com a história visual.

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Da mesma forma que as imagens podem retratar a subjetividade dos autores/artistas, os dados oriundos da oralidade também retratam as memórias simbólicas dos entrevistados; sendo assim, a história oral pode tornar-se uma forte aliada na compreensão das imagens e do seu contexto em uma história atual. Trabalhar com imagens mediadas pela oralidade permite o entendimento das relações visuais dos ícones, símbolos culturais e o conhecimento da produção visual contemporânea. A compreensão de uma história visual complementada por recursos da história oral permite uma ampliação do campo de estudos da cultura histórica, por meio de uma análise das representações visuais de um determinado período. Como corpus documental as imagens e a oralidade permitem inferências sobre o tecido social que não seriam possíveis apenas com os documentos escritos.


3. Trabalhar com imagens e oralidade é possível? Para trabalhar com imagens o historiador pode fazer recortes temporais de grupos representativos de imagens e de artistas a fim de efetivar leituras comparativas das mesmas, relacionandoas com outras fontes documentais. Dito com outras palavras, estudar exclusiva ou preponderantemente fontes visuais corre sempre o risco de alimentar uma “história iconográfica”, de fôlego curto e de interesse antes de mais nada documental. Não são, pois documentos os objetos de pesquisa, mas instrumentos dela; o objeto é sempre a sociedade. Por isso, não há como dispensar aqui, também, a formulação de problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais, associadas a quaisquer outras fontes pertinentes. (MENEZES, 2005, p. 28).

Ao representar determinadas fontes de informações das formas de organização social, dos valores, dos costumes, do vestuário, das concepções de mundo, das posturas pessoais e coletivas, as imagens constituem uma fonte de permanência de memórias que podem perdurar no tempo histórico e remeter a longas durações. As imagens devem ser analisadas observando sua produção, sua leitura, seu contexto, da mesma forma que as fontes orais. Como objetos materiais, com características físicas e químicas, as imagens são coisas, seu sentido é dado pelas relações sociais, pelas interações que os indivíduos produzem em determinados grupos sociais, situados no tempo e no espaço. “É necessário tomar a imagem como um enunciado, que só se apreende na fala, em situação. Dá também a importância de retraçar a biografia, a carreira, à trajetória das imagens.” (MENEZES, 2005, p. 28). Definir a imagem como documento visual permite ao historiador utilizá-la como fonte historiográfica ou como parte das representações sociais, situando-as em um universo da história social da cultura, como testemunhas da história ou como objetos da história. das diversas formas de utilização. Espelhos de uma realidade multifuncional, caleidoscópica e pós-moderna, as imagens e as palavras são faces de um mundo predominantemente complexo. Os estudos atuais do corpo, das mulheres, dos afro-descendentes, dos índios, os estudos multiculturais, têm no estudo das imagens e da oralidade seus campos mais frutíferos de ação. A história não pode deixar de considerar a importância do estudo da aproximação entre as imagens e a oralidade para a compreensão das profundas transformações que ocorrem no Século XXI. Menezes (2005) propõe marcos estruturais para as pesquisas monográficas de quadros utilizando uma história visual que são: a) O visual, que engloba a “iconosfera” e os sistemas de comunicação visual, os am-

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Como parte do cotidiano, as imagens e os textos orais exercem inúmeras funções sociais a partir

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bientes visuais, a produção/circulação/consumo/ação dos recursos e produtos visuais, as instituições visuais, etc.


b) O visível, que diz respeito à esfera do poder, aos sistemas de controle, à ditadura do olho, ao ver/ser visto e ao dar-se/não-se-dar a ver, aos objetos de observação e as prescrições sociais e culturais de ostentação e invisibilidade, etc. c)

A visão, os instrumentos e técnicas de observação, os papéis do observador, os modelos e modalidade do olhar. (MENEZES, 2005, p. 30-31).

Segundo esse autor, essas três premissas devem permear qualquer estudo da imagem pela história, permitindo sua compreensão analítica como objeto de estudo mapeado pela história cultural. Tanto quanto a história visual a história oral também lida com sistemas de comunicação, com instituições, com esferas de poder, com os instrumentos e técnicas de observação, interpretação e análise dos relatos coletados. Aproximando a história oral da história visual o pesquisador pode articular conhecimentos interdisciplinares que favorecem a compreensão do estudo das imagens no mundo contemporâneo.

4. Imagens e História de Vida – Relato de Caso A opção pela utilização da história oral em nossa pesquisa acadêmica ocorreu durante a aplicação e da elaboração da dissertação intitulada “Trajetórias do olhar: pintura naïf e história na arte paraibana”, defendida no PPGH da UFPB em maio de 2007, levamos em conta que as fontes visuais não seriam suficientes para o desenvolvimento do trabalho, foi necessária a coleta de dados por meio de entrevistas de história de vida, com os artistas selecionados: Alexandre Filho, Isa Galindo, Tadeu Lira e Analice Uchôa. Além dos artistas, entrevistamos o professor e crítico de arte Hermano José e a marchand Roseli Garcia, pela importante vinculação dos dois profissionais ao universo dos artistas naïfs paraibanos; o primeiro por seus estudos acadêmicos, como professor do Departamento de Artes da Universidade Federal da Paraíba e a segunda, pelo contato com o mercado de arte local. Ao todo realizamos seis (06) entrevistas durante o ano de 2006, compreendendo um total de

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quinze (15) horas gravadas e transcritas, que foram analisadas nessa pesquisa. Durante a realização das entrevistas foi possível sentir a disponibilidade dos artistas em colaborar com o trabalho. Durante os primeiros contatos, nos apresentamos como pesquisador e aluno do Mestrado do PPGH/UFPB com o objetivo de realizar um trabalho acadêmico de análise da produção artística de um grupo representativo de artistas naïfs paraibanos, que representam uma forte vertente da produção artística local; cumprindo as exigências do Programa de Pós-Graduação a partir de um interesse pessoal e da relevância do tema em questão. As entrevistas foram realizadas no período entre 21 de março e 28 de dezembro de 2006. Com todos os participantes foram realizados contatos e visitas que antecederam as entrevistas, a fim de acompanhar a produção artística dos mesmos e estabelecer a proximidade necessária ao longo do desenvolvimento da pesquisa requerida pela metodologia de história de vida (ALBERTI, 2004, p. 37-38).


Depois de transcritas, as entrevistas foram impressas e entregues aos entrevistados para possíveis correções e/ou modificações no texto. Os textos foram devolvidos pelos entrevistados para o pesquisador com algumas modificações juntamente com o documento de autorização para publicação. Para a realização das entrevistas partimos de um roteiro básico, tendo como foco as experiências de vida dos entrevistados no período da infância, adolescência e na idade adulta: sua vida na família, suas relações sociais, o início do seu trabalho, a sua profissionalização como artista, o desenvolvimento da técnica, a maturidade da obra, a trajetória no mercado de arte, entre outras variáveis. Como trabalhamos com a técnica de história de vida, o roteiro serviu apenas de guia para o desenvolvimento das entrevistas, levando em conta que: Numa entrevista de história de vida, diversamente, a preocupação maior não é o tema e sim a trajetória do entrevistado. Escolher esse tipo de entrevista pressupõe que a narração da vida do depoente ao longo da história tenha relevância para os objetivos do trabalho. Assim, por exemplo, se no estudo de determinado tema for considerado importante conhecer e comparar as trajetórias de vida dos que nele se envolveram, será aconselhado realizarem-se entrevistas de história de vida. (ALBERTI, 2004, p. 38).

Lidamos, ao longo do processo, com a heterogeneidade de características individuais dos depoentes no contexto das entrevistas, que incluíram uma versão filmada em mini-DV, como forma de registro visual para posterior edição. Trabalhamos com entrevistados mais extrovertidos que, mesmo intimidados diante da câmera e do gravador, falaram fluentemente sobre sua vida, enquanto outros demonstraram embaraço permanente e dificuldade de expressar em palavras aquilo que sentiam, exigindo do entrevistador habilidade e sensibilidade na condução do processo e conhecimento prévio sobre a obra e a trajetória profissional dos mesmos. Ao devolvermos as imagens das entrevistas gravadas em DVD, juntamente com as transcrições

O relato das testemunhas para o computo de uma pesquisa na área de História e Artes Visuais pode tornar-se uma importante contribuição para o esclarecimento de alguns aspectos, até então pouco estudados ou citados na literatura corrente da área, permitindo ao pesquisador a inferência necessária sobre alguns pontos essenciais vinculados à subjetividade inerente ao trabalho artístico: “[...] A evidência oral, transformando os “objetos” de estudo em “sujeitos”, contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON, 1992, p. 137).

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escritas e as fotos digitalizadas das obras para os entrevistados, percebemos que o registro ganhou uma nova dimensão, desencadeando um entusiasmo com o resultado de suas participações no registro de suas trajetórias de vida e de sua obra.

Procuramos questionar as fontes primárias (imagens e relatos de vida) e manter o diálogo en-

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tre os poucos documentos escritos e testemunhas, em busca de respostas para as questões levantadas na pesquisa, tomando como mais relevantes, para nossas pretensões de análise, os


depoimentos. Entendendo que “[...] se as fontes orais podem de fato transmitir informação fidedigna, tratá-la simplesmente como um documento a mais é ignorar o valor extraordinário que possuem como testemunho subjetivo, falado” (THOMPSON, 1992, p. 139). Durante as entrevistas, na medida do possível, procuramos evitar a presença de outras pessoas além do entrevistado, o pesquisador e o técnico de audiovisual, para permitir que o caráter confessional da história de vida fosse mantido. Apesar disso, identificamos no discurso, principalmente das mulheres, uma forte presença masculina oculta ou o peso do julgamento familiar. Nem sempre foi possível garantir esse isolamento, algumas vezes fomos interrompidos por solicitação expressa do entrevistado, outras por interferências externas, como telefonemas ou visitas inesperadas à residência, ao ateliê ou à galeria, locais de realização das mesmas, causando algumas interrupções inevitáveis durante as entrevistas. Gravamos as entrevistas em vídeo e fitas de áudio analógicas, posteriormente transferimos as mídias citadas para DVD e papel, respectivamente. Ao longo do trabalho anotamos dados relevantes para a pesquisa e outras informações que, porventura, não foram gravadas. Após as entrevistas realizadas, revisamos o material transposto para DVD, para o caso de ser necessário acrescentar qualquer informação adicional, suprindo lacunas porventura presentes nas entrevistas, identificando a necessidade ou não de uma nova entrevista, o que em nenhum dos casos foi necessário. Transcrevemos pessoalmente às 15 horas de entrevistas, por considerarmos esse processo essencial para o conhecimento e a revisão dos textos das entrevistas segundo as recomendações do corpo metodológico da pesquisa e tentando transcrever, na medida do possível, aspectos da grafia fiéis à oralidade. Desta forma também foi possível relembrar o ambiente, as pausas, os silêncios propositais, os gestos, a entonação da voz e a ênfase explicitada pelo entrevistado ao longo do processo. Mesmo com todo o cuidado durante a transcrição, sabemos que o texto final, fruto do trabalho feito pelo pesquisador e das considerações e modificações feitas pelos entrevistados, é sempre um novo texto no qual transparecem as subjetividades envolvidas. Segundo Thompson:

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A gravação é um registro muito mais fidedigno e preciso de um encontro do que um registro simplesmente escrito. Todas as palavras empregadas estão ali exatamente como foram faladas; e a elas se somam pistas sociais, as nuances da incerteza, do humor ou do fingimento, bem como a textura do dialeto. (...) Um falante, porém, pode sempre ser imediatamente contestado e, à diferença do texto escrito, o testemunho falado jamais se repetirá exatamente do mesmo modo. (THOMPSON , 1992, p. 147).

Sempre haverá entre o pesquisador e o pesquisado uma situação diferenciada de status, pelo menos, momentâneo. Enquanto durar a entrevista, o pesquisador é o senhor da situação, uma vez que a sua análise sobre os fatos acontecidos será divulgada na academia, tornando a fala do entrevistado, mediada por meio da imagem, uma vez que as entrevistas foram filmadas, uma forma de representação no sentido proposto por Chartier (1999).


Entendemos que este estudo aponta para a construção da memória de um aspecto particular da relação entre as fontes visuais e orais na pesquisa histórica, por meio do diálogo entre diversas áreas do conhecimento como a História, as Artes Visuais e a Antropologia, áreas que perpassam os conteúdos trabalhados, tornando-os mais significativos para a construção da história visual no Brasil.

5. Considerações Finais A construção de uma “história visual” possibilita a articulação de saberes históricos a partir do estudo multidisciplinar do imaginário, da história da arte, da cultura visual, da antropologia, da sociologia e da escrita da história em uma forma aprofundada de análise multidisciplinar, objetivando a avaliação do fenômeno da representação visual na história humana. As relações entre a oralidade e as imagens permanecem como um campo aberto para a investigação histórica e como uma possibilidade para o campo de investigação da história cultural em curso.

Nota CPDOC/FGV/RJ – Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. 1

Referências ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. BURKE, Peter. O que é história cultural? Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ________. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru/SP: Edusc, 2004. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre prática e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas/SP: UNICAMP, 1994. MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2003. MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. In Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 23, nº 45, 2003, pp. 11-35. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. (org.). (Re) introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo:

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Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999.

Xamã, 1996. PAIVA, Eduardo França. História & imagens. 2ª ed. Belo horizonte: Autêntica, 2004. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro:

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Paz e Terra, 1992.


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Processos Criativos em Artes Visuais


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A escrita indecifrável na construção de uma poética visual Sebastião Gomes Pedrosa*

Resumo O artigo questiona primeiramente o uso da escrita como componente da obra de artistas da atualidade. Este uso assume diversas conotações. Num primeiro o autor se refere à obra do artista americano Cy Twombly e a motivação pela qual ele criou uma obra impregnada de pintura e escrita. Num segundo momento o autor reflete em seu próprio processo de criação o qual tem a escrita como elemento propulsor e constata que muitos são os enfoques que poderão ser abordados como construção de uma poética visual. Palavras-chave: Escrita/ imagem; Arte do Séc. XX; Cy Twombly.

Abstract The article firstly questions the adoption of writing as a component of the work of contemporary artists. This practice assumes several connotations. In a first instance the author mentions the work of the American artist Cy Twombly and his motivation to create a work impregnated by painting and writing. In a second round the author reflects in his own creative process in which he uses the written as a propelling means, and concludes that many are the approaches that can be done as a meaning to build up a visual poetry. Key words: Written/ Image; 20 th Century Art; Cy Twombly.

Quem já não passou pela experiência estética de ter em suas mãos um livro ou texto impreg-

Annateresa Fabris nos informa sobre o livro de Michel Butor, Lês mots dans la peinture, disseminador de uma reflexão sobre esse fenômeno na produção de alguns artistas (FABRIS, 2001, p. 61). Independentemente do motivo ou do aspecto intuitivo e subjetivo que leva o artista a fazer uso de palavras e texto na obra plástica, Butor afirma que

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nado de visibilidades que o levasse a se abstrair da semântica que a palavra sugere e ficar seduzido simplesmente pela materialidade do objeto? Encontramos vários artistas na atualidade que têm feito uso da escrita como componente de sua poética visual. O que impulsiona um artista a utilizar palavras ou letras em sua obra plástica? Os elementos da linguagem visual já não bastariam para a construção de um vocabulário visual autônomo? Porque a hibridização de elementos gráficos e pictóricos em uma obra plástica? Por que eu mesmo venho fazendo uso da escrita ou marcas gráficas em minhas gravuras, desenhos e colagens?

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* Professor Associado, vinculado ao Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE. Arte/Educador e artista plástico, com título de doutor obtido em 1993 pela University of Central England in Birmingham, na Inglaterra. Membro sócio da ANPAP desde o início dos anos 1990.Tem participado de várias exposições de arte, no Brasil e na Europa. E-mail: sgpedrosa@yahoo.com.br.


as letras constituem um sistema de elementos formais diferenciados que devem ser articuladas entre si para permitir o surgimento do discurso. O alfabeto, por sua vez é feito de figuras cujas combinações dão lugar a formas fortes, a propriedades plásticas denominadas textura ótica do texto (FABRIS, 2001, p. 61).

Não é justamente mediante essa textura ótica de que fala Burtor que o nosso olhar é atraído ao depararmos com o mais primitivo pictograma ou mesmo um texto escrito em língua oriental? A escrita na obra de artistas desde o século XX assume diversas conotações. Algumas obras se apresentam com o uso da escrita como densidade matérica da letra; outras se apresentam como exploração do significado da palavra em torno da qual a obra ganha forma e se materializa; outras ainda, resultam do impulso gestual do artista na construção de uma grafia inventada. De certo modo, qualquer que seja o procedimento, o artista se apropria da palavra semelhante ao modo como Duchamp se apropriou do objeto para construir uma poética ou questionar sobre o status quo da arte de seu tempo. Em qualquer que seja o procedimento de apropriação que o artista utiliza a escrita em sua obra, essa apropriação é pensada, transformada e impregnada de questões ambíguas e de identidades próprias postas pelo artista. Se há uma conexão entre essas obras é sua gênese na escrita, ou no gesto em que o artista parece permitir a projeção enigmática dos sentimentos e do próprio corpo, como fazia o calígrafo na antiguidade. Interessado em conhecer melhor meu processo de criação de poéticas visuais, tenho observado como alguns artistas do Século XX e da atualidade têm feito uso da escrita como componente de sua poética visual. Este artigo, no entanto, não objetiva apresentar uma panorâmica exaustiva ou revisão histórica sobre a relação da escrita como texto visual na arte do Séc. XX. Para isto seria necessário expandir a análise e aprofundar os conceitos1. Antecipo que não vejo Cy Twombly como fonte de inspiração para a construção de minha poética visual, mas como exemplo de um artista que toma a gestualidade de um calígrafo da antiguidade para fazer de sua ação performativa uma poética. Na identificação portanto, de artistas do Século XX que incorporam palavras em seus trabalhos, me deparo com a obra de Cy Twombly.

1. A pintura/escrita de Cy Twombly

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Quando ainda era estudante de arte nos anos 1950, Cy Twombly foi fortemente marcado pela ´glyphomania` que norteava alguns programas do currículo do Black Moutain College onde estudava2. O clima da escola e o foco de atenção centrado em elementos de antigas culturas levaram Twombly a se interessar em primitivas escritas de diferentes civilizações, como a chinesa, indiana e egípcia. Twombly, hoje vivendo e trabalhando na Itália, foi contemporâneo de Rauschenberg com o qual trabalhou no início de sua carreira; ambos se influenciaram mutuamente para em seguida tomarem rumos bem diversos. Ao se deparar com a obra de Cy Twombly o espectador poderá ter a impressão de que o artista desenha e pinta impulsionado pelo acaso. Isto parece acontecer de modo particular às obras produzidas nos anos 1950 e 1960 e principalmente à pintura intitulada de ‘Academy’, datada de 1955. Num primeiro instante quando se olha esta obra a impressão é que o artista rabisca


a superfície do quadro aleatoriamente, numa atitude quase gestual, como fazia Pollock. Num olhar mais cuidadoso é possível perceber a deliberação do artista em fazer uso da palavra como partida para a sua pintura. Embora a pintura evidencie rabiscos ilegíveis, quando o espectador se detém e a olha com mais cuidado, a palavra ´fuck`, quase indecifrável, torna-se legível e ganha ainda outro significado quando o espectador ler o título do quadro, completando-se o significado semântico que possivelmente Twombly quis atribuir: manifestar sua provocação ou frustração. ´Fuck´Academy`, é uma maneira de xingamento comum mas também irreverente entre os falantes da língua inglesa. Num ensaio crítico sobre a obra de Twombly, Richard Leeman observa que palavras surgiram com vigor em suas pinturas na série pintada em Roma durante o verão de 1957. Embora persistam os ´rabiscos` nas pinturas dessa série, destacam-se palavras latinas, certamente pelo contato direto com a cultura e a língua estrangeira, como por exemplo na sua pintura de 1957 intitulada de ´Olympia` são legíveis as palavras Olympia, Roma, Morte, Amor. Mas, por que o uso de palavras quando o artista está lidando especificamente com a atividade pictórica? Talvez, como afirmou Roland Barthes, as palavras que Twombly usa de pé sobre a cena, sem cenário, ou acessórios: Virgil (nada mais que nome), Orpheus. Mas também sua glória nominalista é impura: o grafismo é um pouco infantil, irregular, desajeitado, sem relação alguma com a tipografia de arte conceitual: a mão que os desenha dá a todos esses nomes a falta de habilidade de alguém que está tentando escrever; e por isso, outra vez, a verdade do Nome melhor aparece. Será que o aluno não aprende melhor a essência de uma mesa ao copiar o seu nome insistentemente? Ao escrever Virgil em sua tela, foi como se Twombly condensasse em sua mão a própria grandeza do mundo de Virgílio, todas as referências que esse nome abarca. É por isso que os títulos de Twombly não levam à analogia. Se uma tela chama-se ´The Italians` não procure os italianos em outro lugar exceto, precisamente, em seu nome. Twombly sabe que o Nome tem um poder absoluto (e suficiente) de evocação: escrever ´The Italians` é ver todos os italianos. Os nomes são como aqueles vasos que lemos em não sei qual o conto de As Mil e Uma Noites: os gênios estão presos dentro deles. Se você abrir ou quebrar o vaso, o gênio sai, eleva-se, dissipa-se como fumaça e enche todo o ar: quebre o título e toda a tela se esvai (BARTHES, 1979, p. 88).

O comentário de Barthes me leva a pensar em minha própria motivação para o uso da escrita em minha obra artística. “Será que o aluno não aprende melhor a essência de uma mesa ao copiar o seu nome insistentemente?” A indagação me faz reviver tarefas compulsivas impostas pelo professor de português no início de minha vivência escolar em que fui obrigado a ler um inteiro número de “Digest Reading” grifando toda vez que aparecesse a palavra “essência”. Mas retornemos a Cy Twombly.

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são acontecimentos escritos, nomes; elas também são fatos: mantêm-se

Um fato significativo na vida de Twombly que possivelmente influenciou sua percepção foi

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prestar serviço militar; o que aconteceu no período entre novembro de 1953 e agosto de 1954. Neste fato nada de excepcional, mas nestas circunstâncias ele produziu uma série de desenhos,


sempre à noite, no escuro, quando as luzes de seu alojamento eram forçosamente apagadas. Se o gesto de escrever ou desenhar pressupõe uma conexão entre o olho e a mão, em desenhar completamente no escuro Twombly retirou do ato de olhar a responsabilidade do controle, da evidência e neste sentido ele liberou o desenho ou pintura do controle do olho. Assim, ele liberou o desenho – atividade gráfica – do ´disegno`- o princípio racional de pintar ou desenhar`; uma ação, que no dizer de Roland Barthes se evidencia o ´desejo da mão`. Com este método o artista atingiu um tipo de ´automatismo psíquico puro`, já desejado pelos surrealistas. De fato, método ou técnica semelhante foi extensivamente explorada pelos pós-surrealistas como Arshile Gorky, Roberto Matta e Motherwell. Este último compartilhando com Cy Twombly, no Black Moutain College, conceitos e interesses estéticos. A obra de Twombly é profícua e o interesse na escrita permanece ativo. Parte de sua produção indica o quanto ele é compulsivo na construção de sua pintura; por exemplo, ´Panorama`, pintada em 1955. Nessa pintura Twombly faz uso de verdadeiras garatujas espalhadas em todas as direções da superfície do quadro. O título atribuído sugere paisagem, aliás, título de uma pintura do início de sua carreira. ´Panorama`, não só pela analogia que a palavra sugere mas até mesmo por sua dimensão (2,54 m X 3,40 m) nos remete a uma paisagem, mas o signo gráfico é a tônica em toda composição e nos sugere resíduos de uma aula de matemática deixados sobre uma lousa negra (Fig.1).

Figura 1 Cy Twombly – Panorama, 1955. Tinta industrial, crayons e pastel sobre tela. 2,54m x 3,40 m

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Twombly pintou este quadro de pé, com giz branco sobre a lona com demão de tinta industrial preta; a escala gigantesca do quadro impedia o artista a ter uma leitura panorâmica do mesmo enquanto pintava. Novamente este fato nos transporta ao acontecimento de Twombly fazer seus desenhos no escuro quando servia o quartel. A maneira compulsiva e gestual de cobrir toda a superfície de marcas, vai aos poucos sendo abandonada e revertida ao uso mais controlado de marcas e linhas, numa organização de hachuras, às vezes reduzidas a pequenos traços verticais e horizontais ou linhas fechadas, produzindo formas que são recorrentes em um conjunto de obras o que significa que não são marcas fortuitas, mas resultantes de um gesto deliberado.


Numa série de trabalhos sem títulos, realizados na primavera de 1959, Twombly redefine sua atividade gráfica; os elementos são reduzidos às vezes, a pequenas curvas ou linhas sinuosas, traços verticais, pontos isolados ou agrupados em seis ou oito marcas, ou filas horizontais, semelhantes a uma escrita. São marcas coerentes com seus desenhos de símbolos arcaicos, registrados em seus primeiros cadernos de rascunho. Sua empatia pelos desenhos pré-históricos é evidente e ele chega a afirmar em uma carta escrita em 1952 que “os desenhos pré-históricos de Lascaux são a primeira grande arte da civilização ocidental” (LEEMAN, 2005, p. 53). Segundo a afirmação de Leeman na monografia acima citada é possível considerar palavras pela sua substância gráfica, independentemente do significado que ela imprime, como por exemplo, uma linha aberta não descritiva, um arabesco. Assim acontece com a assinatura de Twombly que passa a ser incorporada em suas pinturas em volta de 1956/58. Deliberadamente a assinatura ganha a superfície do quadro, sai da periferia para o centro da pintura e adquire uma autonomia plástica. A assinatura deixa de funcionar como rótulo ou etiqueta para ser a própria pintura, subvertendo assim, o sistema ou a tradição de pintar. A dimensão gráfica não lingüística da palavra manuscrita pode ser interpretada como a distinção entre o signo intransitivo (uma ortografia pura, não delineada, um traço ou marca agindo sobre uma superfície ou plano) e transitivo (o signo de alguma coisa; às vezes de um pictograma, às vezes de um ideograma). Interpretando o signo e sua substância material abstrata dessa maneira, não é exclusividade da palavra manuscrita, pois no caso de um desenho figurativo é possível, também, ´abstrair` a linha de sua função descritiva a fim de vê-la como um arabesco ou linha sinuosa.

A contribuição de Cy Twombly para a arte do Século XX e de agora é notável. Sua pintura e produção gráfica desafiam a crítica comum em estabelecer categorias à produção artística. Twombly subverte a distinção tradicional entre pintura e desenho, trabalhos feitos com pincel ou com lápis, palavras escritas e imagens, escultura e pintura. Em sua obra, elementos como grama, redemoinhos, molhos de gravetos, ideogramas e garatujas se confrontam em significantes narrativas; elementos biomórficos lembram orifícios, pólipos, franjas ou formas estouradas parecendo impregnados de sexualidade; delicadas hachuras e traçados interagindo com grafitti ou letras e palavras destacadas evocam múltiplas associações e criam novas relações entre imagem e texto.

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´bela escrita` e tudo que envolve uma informalidade; a escrita de Twombly é a sobra de uma indolência, portanto de uma extrema elegância” (BARTHES, 1979, p. 88). Barthes contrasta a transitividade do ato de escrever com o gestual que é algo como o excedente de uma ação. O gestual é o indeterminado e inesgotável de toda razão, pulsão, indolência que circunda a ação com uma atmosfera. Assim, a mensagem busca produzir informação e o signo busca produzir uma intelecção do gesto que produz todo o resto – a sobra – no dizer de Barthes, sem necessariamente produzir nada. A natureza intransitiva da palavra manuscrita, isto é, sua linha, sua substância gráfica, é a mesma como na garatuja, naquele nível fundamental do indivíduo, onde escrever e desenhar são indistinguíveis enquanto gerados pelo gesto, de modo prazeroso.

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Roland Barthes esclarece: “No caso de Twombly a estetização não tem a ver com a caligrafia ou


2. A escrita na minha obra plástica Re-visitando a obra de Twombly me sinto instigado: primeiramente pela coerência conceitual e formal como ele constrói sua obra; depois pela escala monumental como ele pinta. Tomá-lo como parâmetro estético e conceitual talvez não seja muito apropriado. No entanto, o interesse em elementos da escrita primitiva e na ´glyphomania` talvez nos seja comum. Confesso que guardo comigo uma pequena ´frotage` que fiz ao visitar o interior da pirâmide de Queops no Egito em 1982. Minha intenção era me apropriar de vários hieróglifos através de frotages para transformá-los num projeto artístico. Os cuidados pelo patrimônio artístico egípcio naquela época me impediram de tal aventura. As gravuras que tenho realizado ao longo desses últimos quatorze anos têm a escrita primitiva como elemento propulsor; elas dizem respeito à própria ação do ato de gravar: um processo nunca totalmente direto que me permite acrescentar sempre um elemento de surpresa ao traço inicial, semelhante a um trabalho de alquimia. Minhas gravuras se manifestam como marcas de aparência primitiva que lembram a origem da escrita e nos deixa a pensar sobre a conquista do entendimento da própria existência do homem na terra. Nos acervos pré-históricos que visitei as quase imagens ou pictografias, aparentes garatujas, antes mesmo de se tornarem letras ou alfabetos, certamente registram as preocupações do homem primitivo, a sua investida no desenvolvimento da agricultura, a necessidade de estabelecer registros de grãos armazenados; por isso, listas de sacos de grãos ou cabeças de animais aparecem nas ‘tábuas’ gravadas no final do 4º milênio antes de Cristo. Entre muitos documentos antigos a “Tábua de Uruk” nos mostra um texto organizado em colunas listando os limitados bens dos Sumérios. Também a pintura do corpo entre os povos mais remotos da história é sempre uma escritura de caráter hieróglifo; a cada rabisco, cada cor, mancha ou decoração era atribuído um valor simbólico.

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As minhas gravuras não têm a intenção de investigar a metamorfose da escrita ao longo dos séculos. Faço uso das marcas e dos signos como pretexto para a gravação de imagens na superfície metálica, distanciando-me, ao mesmo tempo, deles enquanto entro no exercício da criação plástica para permitir a projeção enigmática dos sentimentos e do próprio corpo, como fazia o antigo calígrafo. Surgem então, não mais os pictogramas primitivos, nem o esmero da gravura renascentista, mas sim, gravuras que nos remetem a uma escrita indecifrável. E neste aspecto, me aproximo de Cy Twombly. Ele, por circunstâncias próprias, criou uma metodologia ou mesmo, poderíamos afirmar, uma metáfora: desenhar no escuro para liberar o olho da mão. Lembro que no meu processo em escrever as primeiras palavras eu era completamente analfabeto e não diferenciava muito bem as letras do alfabeto. Para me fazer ocupado numa classe de alfabetização, a professora me deu a tarefa de copiar uma página inteira; o sacrifício foi grande, pois eu não entendia o que estava copiando e a escrita resultava em garatujas informais. Ao enveredar na aventura de construir uma obra plástica, descobri-me desenhando garatujas e inventando um alfabeto intuitivamente, embora sempre coletando imagens de escrita primitiva e relacionando aos artistas da atualidade que utilizam aspectos da escrita em seus artefatos.


Acreditando que a ação ou gestos de escrever ou desenhar pressupõem uma conexão entre o olho e a mão, inicio uma gravura, muitas vezes colocando-me ou esforçando-me por me colocar sob o impulso da mão, isto é, esforço-me para não permitir o controle do olhar sobre as marcas produzidas, num desejo talvez de ´voltar a ser criança´. A imagem bruta que desse gesto inicial resulta nem sempre me satisfaz. É necessário gravar e re-gravar a matriz; adicionar marcas, usar o ´raspador` e o ´brunidor` e eliminar outras marcas. Uma prova de estado à cada gravação. Na superfície da matriz vão surgindo garatujas, como um alfabeto inventado; garatujas que lembram escrita antiga como os cuneiformes, marcas gestuais em combinação com textos invertidos impossibilitados de leitura. Marcas organizadas, marcas aleatórias. Pontos, cruzes, a letra A. Tomando o comentário de Roland Barthes ao trabalho de Cy Twombly, no cenário de uma chapa de cobre, “algo acontece... algo que participa de vários tipos de acontecimento (...) o que acontece é um fato, uma coincidência, uma saída, uma surpresa e uma ação (BARTHES, 1979). Acontecem alguns rabiscos, algumas manchas, alguns borrões ou uma escrita indecifrável com o desejo de construir imagens. Mais recentemente, influenciado pelo método de Twombly de desenhar no escuro, repensei o

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Figura 2 Sebastião Pedrosa. Sem título. 2007; grafite, tinta acrílica, tecido, folha de ouro sobre cartão. 50 x 35 cm.

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meu próprio método de construção de imagens. Tenho investido em desenhos que são feitos gestualmente sem muita preocupação com o resultado final. Mesmo de olhos abertos deposito marcas indiscriminadamente sobre a superfície do papel ou outro material como suporte. Mas não me atenho ao método dos expressionistas abstratos nem permaneço simplesmente no desenho guiado pelo automatismo psíquico adotado pelos surrealistas. Num segundo movimento a folha de papel é quadriculada sistematicamente, numerada e recortada em pequenos módulos. Numa outra superfície a imagem é reorganizada com a seqüência numeral alterada. Às vezes são justapostos o primeiro e último módulo e assim sucessivamente, às vezes obedeço a um movimento pendular ou espiralar na reorganização dos módulos (Fig. 2). Com isto consigo


me liberar das marcas preconcebidas, criando imagens que partem de uma escrita indecifrável para construção de poéticas visualmente apreciáveis. Em re-visitar Twombly, e em outros momentos, outros artistas do Séc. XX que contaminam suas poéticas visuais com a escrita não busco justificar minhas idiossincrasias no campo da criação plástica, no entanto, acredito que enquanto procuro ver a obra de artistas que têm esse interesse, tomo consciência de que não há um limite preciso entre as linguagens, pois a ‘hibridização’, em todos os sentidos, é uma das características da arte atual. Nessa busca, verifico também de que muitos artistas procuram também em suas poéticas a visualidade da palavra escrita e que muitos são os enfoques a serem abordados na construção de uma poética visual estreitando a relação escrita e texto visual.

Notas Este artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla em que o autor vem investigando nos últimos três anos. 1

Cy Twombly nasceu e cresceu em Lexington, Estado da Virgínia, E.U.A. Mudou-se para Nova York em setembro de 1950 e se inscreveu no Art Students League o que lhe ajudou a abrir fronteiras para contatos com o cenário artístico da Metrópole. Daí conheceu importantes artistas como Motherwell, Pollock, Rothko e Rauschenberg. 2

Referências BARTHES, Roland. On Barthes’writing on Twombly por Richard Leeman. In: LEEMAN, Richard, 1979, p. 158-160. ______. Cy Twombly. Disponível em: www.1uol.com.br/bienal/23bienal/especial/petw.htm. Acesso em: 26 de outubro de 2008. FABRIS, Annatereza. Da palavra ao fim da palavra. In: Doação Paulo Figueiredo Museu de Arte Moderna/catálogo organizado por Rejane Cintrão; apresentação de Ivo Mesquita; São Paulo: MAM, São Paulo, 2001, p. 61-76.

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LEEMAN, Richard. Cy Twombly, a Monograph. Paris: London and Éditions Flammarion, 2005.

Lista das Ilustrações Figura 1: Cy Twombly – Panorama, 1955. Tinta industrial, crayon e giz sobre tela; 254 x 304,4 cm Figura 2: Sebastião Pedrosa: Sem título, 2007; grafite, tinta acrílica, tecido, folha de ouro sobre cartão. 50 x 35 cm.


Questões acerca do pesquisar em arte 1 Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves*

Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive.

Fernando Pessoa

Resumo Este texto tem por objetivo discutir questões relacionadas à produção de pesquisa em arte2, frente às particularidades do artista/pesquisador, do interlocutor, do objetivo, do objeto de pesquisa e da maneira com a qual esta se caracteriza como o testemunho de um processo.

Abstract This text has the objective to argue about questions related to Art3 academic researches, facing the particularities of the artist as academic researcher, the interlocutor, the objective, the object of the research and the way it characterizes itself as the testimony of a process.

1. O Artista Pesquisador, o Interlocutor e o Objetivo O artista é sempre pesquisador – pesquisador de fontes, de referências, de estímulos – e destas aproximações intermediadas pelos conteúdos deste artista (mais ou menos subjetivos), se constitui sua produção. O artista pesquisador acadêmico4 somaria a esta uma outra tarefa: a de evidenciar seu modo, a de construir um refletir sobre o processo do fazer passível de ser compreendido5, por seus pares, neste meio. A pesquisa acadêmica em arte seria, assim, também o exercício de explicitação de forma a considerar a possibilidade de compreensão, pelo outro, de potenciais somas, agregações e formas de conhecimento (advindos da exploração de particulares métodos, ou destes os resultados), preservando as características do seu objeto. Ou seja, a inserção, na dinâmica entre a pesquisa e a produção, do garantir de uma inteligibilidade.

narrativa transposta a uma outra linguagem, inteligentemente não lacunar, a um determinado ouvinte/leitor/receptor, não é interessante nem desejável. Se um artista escolhe exatamente

* Doutoranda em Arte na Universidade Estadual de Campinas/ Unicamp realizando estágio sanduíche em Londres sob supervisão do Prof. Dr. Michael Neve/ UCL, Mestre em Arte/ Unicamp (2004), bacharel e licenciada em Educação Artística/ Unicamp (2001). Especialista em Arteterapia/ Unicamp (2003) e especialista em Arte e Novas Tecnologias na Universidade de Brasília/ UnB (2005). Filiada à AATESP sob inscrição n. 058/1105, Membro do Conselho Diretor da AATESP (2006-2008), Coordenadora e docente do curso de Especialização em Arteterapia da Universidade São Marcos (Master School), Membro do grupo de estudo ’Desenvolvimento, linguagem e práticas educativas‘ – UNICAMP. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4364335240213211 / E-mail: tati.fecchio@gmail.com

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Tornar ‘inteligível’ a obra seria um contra senso, explicitar este objeto-dinâmico tornando a

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Mas o quê tornar inteligível?


o recurso de expressar-se sem ser pelas palavras é porque a imagem6 7 é inevitavelmente seu texto, por ela acontecerá sua compreensão, elaboração e expressão. Não que as influências se limitem às visualidades – somos artistas letrados e aprendemos desde há muito a crítica, diferentes lógicas, contextos pessoais ou culturais – mas a produção será prioritariamente imagética, deixará extravasar inevitavelmente a relação com a ordem formal da composição. Poderíamos neste sentido pressupor que a expressão de um artista será em menor grau a da escrita formal/acadêmica8 e em maior grau funcionará nas articulações possíveis através de um pensamento, mais ou menos racional, articulado na interface das idéias e suas possibilidades de efetivação em formas visuais, não necessariamente nesta ordem. Assim, embora seja pertinente à pesquisa em arte na Academia o compartilhar compreensível, é exatamente nesta tarefa que se encontra o maior desafio. Como exigir ou submeter alguém, que por opção já escolheu outro código, a traduzir este objeto em palavras? Talvez exista de fato a este artista/pesquisador um temor e, por conseqüência, um temer frente à possibilidade ou risco de simplificação desta visualidade, de seus desdobramentos não-dizíveis, tornando-as excessivamente evidenciadas num resultado que tem sua riqueza exatamente em implicações particulares e subjetivas de apreensão. Poderia haver assim demérito nesta revelação? Seria necessária esta revelação? Correríamos o risco de transpor em poucas palavras o imponderável da nossa predileção? Conseguiríamos ou desejaríamos, em alguma medida, compartilhar senão segundo a própria obra? O que implicaria o explicitar destas dinâmicas? E se esta explicitação transcrita não for satisfatória ao leitor? Cabe a nós construir uma ‘legenda’ à Obra? O artista não apreendende a totalidade de seu trabalho; este, depois de realizado, é obra aberta e assim passível de ser completada e de agir no mundo. Neste sentido o evidenciar sobre a obra pelo autor apenas indica mais uma possibilidade de aproximação, que pode ou não ser adotada. Explicar a obra ´em outras palavras´ não é, portanto, o objetivo da pesquisa em arte. Assim, o que compartilhar e como fazer para que seja garantida a possibilidade de apreensão na Academia, em prol da construção de um conhecimento, sem corrermos o risco de destruir nosso objeto? Como efetivamente aproximar este conhecimento do interlocutor de forma integra e densa?

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Se à construção de um conhecimento cabe o compartilhar, uma possibilidade seria a de conduzir o interlocutor a este tempo/espaço no qual o artista circula e a partir do qual experimenta, pesquisa e produz. Há, neste sentido, de se criar algo de meta-método – encontrar uma maneira, não destrutiva da riqueza do objeto/obra, para falar sobre ele, escolher uma forma de objetivar o processo sem simplificar as dinâmicas da criação, instrumentalizar o interlocutor para que ele possa acessar a lógica desta investigação, desta forma de estar, desta forma de conhecimento sobre o mundo e sobre o humano. Este poderia ser um caminho possível à ´educação´ deste leitor em um código especifico pois há o desejo de que dele se saiba, perceba, compactue, sinta e acompanhe. Assim, uma possibilidade que nos apresenta é a de conduzir nosso par pelo processo de pesquisa e não à tradução do objeto.


Mas inteligível para quem? Inteligível neste caso para a Academia, em prol da construção em soma de Conhecimento ― que no fundo são legitimados neste âmbito pela aceitação do outro também acadêmico. E quem é este outro? Pois dele depende a forma com a qual eu digo, dele prescinde ao menos metade do sucesso em comunicar. A comunicação estaria facilitada se houvesse como receptor um outro artista ou alguém que tem a formação acadêmica também em arte9 o que poderia, a princípio, facilitar esta comunicação pela vivência e por conseqüência compreensão das dinâmicas de um artista, por experiência. Mas há duas negativas a esta situação. A primeira delas advinda de um interlocutor que embora tendo tido a formação em arte nunca tenha conseguido acessar as dinâmicas de um artista; ou a de um interlocutor que não tenha simplesmente tido proximidade ao fazer neste campo, como um historiador da arte ou um historiador, e que provavelmente nutre uma relação diversa, não menos intensa, com a apreensão sobre o fazer em arte. Há de se supor que este interlocutor não é bruto e que, de qualquer forma, está sujeito à ação da obra. Assim, mesmo que o interlocutor seja um não artista, não haveria por que supô-lo insensível, não haveria porque supor que entre ele e a obra não aconteçam apreensões, apenas que a ele faltaria o que falta aos que não são artistas. Considerado isto, cabe ao artista pesquisador cuidar não para que sua obra se realize no apreciador, isto ela o fará de qualquer forma; mas novamente, e em prol de um compartilhar ampliado sobre as formas de construção, apreensão e relação, relate sobre o seu processo. Seu trabalho estando desta forma novamente e em outro nível acessível a estes leitores, em todas as possibilidades potenciais de leitura. No método da pesquisa científica10, na grande maioria dos casos, decompomos, esmiuçamos, hipotetizamos, verificamos, concluímos/inconcluímos, provamos. Há de haver a possibilidade O que embasa esta explicitação e inteligibilidade do pesquisador ´cientista´ é o encadeamento lógico, apoiado numa seqüência clara e passível de ser rastreada e verificada, preferencialmente passível de ser repetida; objetiva, deve apresentar raciocínios e aferições dentro de uma proposta ´posta´ a priori, previamente concebida. Assim, o levantamento das referências, de outros trabalhos que tratem do mesmo assunto, a leitura destes, sua assimilação e um posicionamento em relação ou defrontamento/confrontamento passam a constituir um lastro/referencial de partida. A partir de então as pesquisas passam por uma etapa de levantamento de dados sob

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da repetição, há de estar presente a possibilidade da negativa a algo posto.

infindas formas e métodos, todos em função do objeto ou do objetivo/interesse da pesquisa. Ao final, estes dados coletados são confrontados ao levantamento inicial para a eles agregar na afir-

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mativa ou negativa constituindo-se assim uma contribuição à construção de um conhecimento.


Seria diferente a pesquisa de um artista em sua produção? Há referenciais iniciais? A princípio sim. Há referências a um conhecimento anterior, um lastro poético/imagético com base na afinidade ou não a questões conceituais ou plásticas anteriormente postas no próprio trabalho ou no trabalho de outros com os quais há diálogo. Há conclusões ao final? A princípio também sim, talvez não num final pré-concebido, definido, absoluto, mas finais parciais dentro de um grande processo que é mesmo o desenvolver do conjunto de toda a obra. Igualmente este resultado assim alcançado se relaciona ao ponto de partida ou aos conhecimentos de referencia, contribuindo, acrescendo ou mesmo negando questões anteriormente postas. Há um objeto de estudo definido? Há, embora este objeto assim definido não seja, na grande maioria das vezes ao artista hoje em dia dentro do âmbito acadêmico, uma hipótese formal ou estritamente vinculada à técnica, mas sim o processo de dar forma a um conjunto de inquietações (podem ser questões) mais ou menos objetivas. Se há objeto de estudo, este é aqui o suceder dinâmico de questões e de respostas, dentro de um processo, a uma missão11. O objeto se transforma, muitas vezes, na própria pesquisa; sendo o resultado produto espontâneo e inevitável deste processo. Não há necessariamente uma hipótese, mas há seguramente um resultado. Haveria um método definido ou métodos pré-estabelecidos aos quais recorrer e aplicar? Talvez aqui resida também uma diferenciação. O modo em arte é fluido, fluido pois fruto de maneiras de sujeitos diversos que constroem formas e métodos de expressão particulares. A maneira de ´levantar´ e ter acesso aos dados através de um determinado método aqui se torna variável, não há um padrão uma vez que o desenvolver da pesquisa é o que muitas vezes vai determinar o próprio percurso, a própria condução das etapas seguintes, o método não é pré-determinado12... e deve ser assim pois a produção em arte parte do pressuposto desta especificidade e liberdade do fazer/expressar, individual. É claro que podemos identificar entre artistas maneiras parecidas, mas não é este o pressuposto, nem uma apriorística; o pressuposto aqui é o da diversidade. Não cabe aqui imaginar possível um simples migrar de padrões e métodos de pesquisa externos a este campo de conhecimento que se delineia de forma muito particular, pois pressupõe características deste humano em sua diversidade criativa, na sua individualidade; não necessariamente em resultados passíveis de generalizações, reprodutíveis ou comprováveis, mas em formas de conhecimento através de maneiras de ser, pensar, estar e interagir em relação ao mundo.

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Não havendo uma forma fechada de pesquisa, o artista pesquisador acadêmico ao descrever seu método, talvez mais do que descrever seu resultado, cria e constrói a possibilidade de compartilhar sobre formas de apreensão, reflexão, relação, ação e interação. Assim se configurando como uma respeitosa forma de inteligibilidade, com o par e com a obra, o explicitar das dinâmicas que naturalmente acontecem num processo de produção, referindo-se a elas necessariamente como parte integrante do Modo, a fim menos de cuidar da ampliação das formas de acesso a um resultado; mas, principalmente, de cuidar, no evidenciar de seu processo, da constituição agregada de formas de conhecimento que extrapolariam o já advindo da própria produção/criação em si em relação ao apreciador.


2. A Pesquisa em Arte como Testemunho Uma das formas13 de encaminhar esta questão é considerar a pesquisa como o testemunho de processos que advém de uma ordem de iteração humana com o interno e com o externo. Não é necessariamente racional, nem objetiva, nem passa necessariamente pela codificação recorrente nos relatos de pesquisas habituais, o testemunho pressupõe o evidenciar dos processos de construção de um pensamento visual. O resultado da pesquisa em arte pode oferecer, como forma de construção de conhecimento, o relato e o testemunho de infindas maneiras de interação. Neste sentido apresento abaixo o testemunho de um processo de criação. Este trabalho foi realizado como exercício para a percepção das dinâmicas que ocorriam durante o realizar de uma produção plástica14 ; a proposta era a de notar e registrar, cada um a sua maneira, o modo pelo qual se dava o processo de criação. O resultado desta atividade foi o seguinte trabalho

O registro escrito realizado durante este fazer, sempre me questionando sobre o que estava acontecendo e o que estava vivenciando, foi o seguinte: - organizar o espaço previamente

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Rosto com Quatro Olhos, Tatiana Gonçalves, Desenho com caneta e lápis grafite sobre papel, 2007.

- pausa, concentração - memória, instrução, motivação pelos últimos desenhos - projeção no espaço

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- marcação por traços iniciais


- início de um diálogo idéia/forma - controle pelo olhar - estado mais sensível - associações desencadeadas - lembranças, referências de outras imagens - no conteúdo – muitas vezes o desenho/forma como falsa sobrevalência - reforçar o foco - compulsividade Vejamos. Houve antes de iniciar o contato do material de registro no suporte um olhar calmo ao espaço destinado à composição. Ao espaço e ao notar de suas características; um papel retangular, de coloração amarronzada não regular. A este se seguiu um momento de concentração no qual houve a criação de certo vazio, vazio este que se seguiu ao acesso, pela memória, de trabalhos realizados anteriormente. Estes trabalhos não foram consultados, mas de alguma forma as questões que estavam neles sendo elaboradas foram retomadas.

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De fato as duas produções anteriores tinham sido as seguintes

Rosto Africano, Tatiana Gonçalves, Desenho com caneta e lápis grafite sobre papel, 2007.

O Olhar, Tatiana Gonçalves, Desenho com caneta preta, lápis de giz seco sobre papel, 2007.


A presença do rosto, o foco no olhar, as texturas criadas, as assimetrias, as densidades, as sobreposições, eram todas questões de uma pesquisa em processo no desenvolvimento destas produções. Assim, após este acesso, como que retornei ao suporte e vi sobre ele uma pré-imagem a ser

Detalhe 1 de Rosto com Quatro Olhos

Detalhe 2 de Rosto com Quatro Olhos

A imagem passou a se revelar por detalhes sutis que foram intensamente, a partir deste momento, percebidos e sentidos. Acima estão dois deles: no Detalhe 1 a linha que sai do olhar e quase chega ao volume do nariz foi um elemento de atenção e, no Detalhe 2, a sensação de que deveria haver um recuo maior entre o olhar da esquerda e o centro da composição, o que foi construído com a sombra em grafite, foi um segundo elemento de interesse.

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realizada, projetei literalmente uma forma/idéia já mentalmente construída, embora de forma muito nevoada, ao suporte. Foi apenas então que de fato teve início o registro cuidadoso, não lento, de alguns traços iniciais, como uma marcação, um esboço. Foi a partir desta exteriorização que houve uma mudança efetiva de ritmo neste processo. Passou a haver efetivamente um diálogo dinâmico entre a forma construída e aquela idéia primeira, que aos poucos se transformava e se enriquecia de outros elementos não anteriormente concebidos. Como se este processo por si fosse cheio de uma independência e mesmo de uma identidade com a qual eu passei aos poucos a me ver quase em batalha com o que se ia constituindo. Batalha não mais entre a idéia primeira e sua realização, mas dentro da dinâmica a dar respostas e a interagir com o que se apresentava fundamentalmente ao meu olhar. O olhar passando a ser elemento de certo controle, controle do traço que se dava, como se a minha idéia fosse parar no limite da ferramenta de grafar. O olhar e o registrar neste momento passaram a ser constituintes de um outro estado, mais sensível, como uma suspensão, no qual as percepções externas passaram a não ter prevalência, no fundo passaram a sequer se constituir.

Neste dia me recordo que houve um desligamento do entorno e uma absorção total neste pro-

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cesso que se tornou como que atemporal, seu tempo passando a ser o ritmo desta troca entre


perceber, reagir e fazer. O reagir, se por vezes impulsivo e espontâneo, em outros momentos impregnado de um mundo de referências; referências estas que são pertinentes, importantes e recorrentes a mim como autora. Neste sentido é que foram desencadeados neste diálogo associações a partir do interesse poético e a partir do estímulo visual em que o trabalho passou a configurar. Certamente, neste trabalho, duas referências se apresentaram: as lágrimas transbordantes de Frida Kahlo e as texturas/emaranhados de Klimt. Durante este processo percebi que, paralelamente a todas estas dinâmicas que estavam acontecendo, havia uma resistência a deixar o desenho se seduzir por resultados plásticos agradáveis. Assim, o diálogo neste fazer pressupôs também a atenção em não permitir o desfocar do real interesse, de uma real busca por mim almejada diversa do que considero por visualmente confortável. Assim o movimento de evitar formas agradáveis ou sedutoras configurou como parte integrante da forma de um sujeito a realizar o trabalho (da mesma forma que a opção diferente a esta seria verdadeiramente a opção de um outro sujeito). É neste sentido que a composição resultante é sempre efetiva, sendo as partes, no fazer, sempre em relação. Por fim houve um movimento de valoração, momento este no qual aconteceu certo recolhimento meu em relação ao processo, deixando de estruturar a narrativa mais geral da composição, passando a valorizar partes específicas através de texturas e sombras. Nesta etapa alguns elementos secundários da composição foram valorizados e trazidos à tona, como o grande círculo que se forma englobando olhos, nariz e boca.

Detalhe 3 de

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Rosto com Quatro Olhos

Detalhe 4 de Rosto com Quatro Olhos

Detalhe 1 de O Olhar

Detalhe 1 de O Rosto Africano

Nesta etapa também notei certa compulsividade na atenção minuciosa a determinados detalhes e a recorrência ou predileção por alguns elementos.


3. Considerações Finais No intuito de exercitar este compartilhar pertinente ao pesquisador em arte é que este estudo assim se apresenta. Tanto na tentativa de aproximação do olhar do interlocutor, quanto na transposição à linguagem escrita sobre o processo criativo como uma das formas a contribuir com as possibilidade de compartilhar na Academia. No intuito de fazer efetivamente somar ao fazer uma outra tarefa: a de evidenciar o modo, a de construir um refletir sobre o processo do fazer passível de ser compartilhado. A de constituir um exercício de explicitação de forma tal a considerar a possibilidade de compreensão pelo outro de potenciais somas, agregações e formas de conhecimento (advindos da exploração de particulares métodos, ou destes os resultados), preservando as características do objeto ou produção realizada; a inserção, na dinâmica entre a pesquisa e a produção, do construir outras formas de acesso. De forma alguma se alude aqui que a leitura de um trabalho se resume ao que o autor desejou ao realizá-lo, muito pelo contrário, a obra tem vida própria; mas o relato do processo em si é que pode ser considerado como possibilidade de acesso a uma forma de conhecimento em relação ao mundo e, portanto, passível de compartilhamento. Conhecimento sobre práticas do humano, dinâmicas de criação, sobre formas de construção, sobre o desenvolvimento e exploração de métodos, sobre formas de apreensão e elaboração. A Academia servindo como espaço compartilhado de testemunhos de processos, acolhendo novas possibilidades de registro e perpetuação de saberes.

Notas 1

Este trabalho foi desenvolvido como apresentação de conclusão do Curso AT 313 Seminário ministrado no primeiro semestre de 2007 sob Docência da Profa. Dra. Lygia Eluf. 2

Esta diferenciação é esclarecida por Brites em O Meio como Ponto zero, sendo a pesquisa em Arte aquela advinda da pesquisa do processo do fazer artístico e sendo a pesquisa sobre Arte aquela advinda de uma pesquisa sobre algo realizado no campo da Arte.

4

Desta forma não estamos aqui contestando sobre a possibilidade de desenvolvimento de conhecimento por artistas na academia, muito pelo contrário, acreditamos ser este um local propício e acolhido a esta reflexão. 5

Fora dela não há a demanda desta forma de inteligibilidade aos pares.

Com a arte conceitual teremos a inserção de letras e textos na articulação expressiva, que passa a recorrer então também a conceitos. Ainda assim na organização destes elementos prevalece o caráter compositivo visual. O que se pretende aqui dizer não é a imposição a um sujeito de uma forma inalterável de expressão, nem que a palavra como signo não possa ser utilizada como recurso compositivo e conceitual, mas pontuar sobre a escolha espontânea por determinado código e não outro. 6

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This differentiation is clarified by Brites in The Way as Point Zero, being the research in Art that one happened of the research of the process of artistic making and being the research on Art that one happened of a research on something made in the field of Art.

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3


O desenvolvimento deste texto se pauta, inicialmente, ao campo das artes visuais, embora seus argumentos possam ser transpostos com facilidade a outros campos expressivos em Arte. No caso da música o som, no caso da dança, o movimento, no caso do teatro, a narrativa cênica. 7

8

Embora muitos artistas, desde há muito, empreguem hoje as palavras em suas composições como sinais, códigos ou imagens. 9

Uso aqui genericamente a nomenclatura Arte para designar aqueles que têm a graduação em algum dos campos da Arte na forma com a qual se encontra hoje: Artes Visuais, Teatro, Música, Dança, Multimeios. Embora terminologias em discussão hoje em dia, acessar neste sentido interessante artigo de Eça, Tereza ´Para acabar de vez com a Educação Artística´ publicado nos anais do III Congresso de Beja de Educação Artística realizado em 2008. 10

Considerando inclusive e de forma importante a certa não racionalidade e a imponderabilidade também presentes nos estudos das ciências. 11

A questão de missão aqui proposta como a referida por Hilmann em O Código do Ser.

Talvez daqui advenha a dificuldade de compreensão desta modalidade de pesquisa aos moldes dos relatos das pesquisas científicas tal qual regularmente valorizados (e financiados) – a linearidade e a objetividade muitas vezes não podem ser definidas a priori, o que seria desrespeitoso ao processo pois tantas vezes não linear, não reprodutível e não necessariamente racionalmente encadeado. A mazela aqui é que muitas vezes, em função desta característica, se pressupõe a não constituição de conhecimento, o que é uma falácia. 12

13

Que não se pretende a única para superar a tensão posta da pesquisa em Arte na academia.

Em disciplina ministrada sob orientação da Profa. Dra. Lygia Eluf à pós-graduação na Unicamp em meados de Março de 2007. 14

Referências ADAMS, L. S. The methodologies of art: An introduction. Boulder, CO: Westview Press, 1996. ARNHEIM, R. Art and visual perception: A psychology of the creative eye. Berkeley: University of California Press, 1974. _________ . El pensamiento visual. Buenos Aires: Editorial Universitária, 1971. BERGER, J. Ways of seeing. London: British Broadcasting Corp., 1972. BRITES, B.; TESSLER, E. O meio como ponto zero. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002.

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ELKINS, J. Why Art cannot be taught. A handbook for art students. Chicago: University of Illinois Press, 2001. HEIDEGGER, M. Da experiência do pensar. Porto Alegre: Globo, 1969. HILLMAN, James. O Código do Ser. Rio de Janeiro: editora Objetiva, 1997. KEPES, G. Language of vision. Chicago: Paul Theobald, 1944. KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


KUTH, K. The Artist’s voice. New York: Harper & Row, 1963. MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. NOVAES, A. (org.). Artepensamento. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. OLIVEIRA, Benedal de. Arte e Dialética. Rio de Janiro, Pallas, 1983 OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Editora Vozes,1999. _______ . Acasos e criação Artística. Rio de Janeiro: Campus,1995. PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix, 1972. SULLIVAN, G. Art practice as research: inquiry in the visual arts. London: Sage, 2005. TARKOVSKI. Esculpir o Tempo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998. ZAMBONI, S. A pesquisa em Arte: um paralelo entre Arte e Ciência. São Paulo: Autores

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Associados, 1998.


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Os Autores

Luciana Borre Pedagoga formada pela UFRGS, especialista em Planejamento e Gestão Escolar pela PUCRS e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da PUCRS. É professora de Séries Iniciais em duas instituições de ensino da rede privada de Porto Alegre. Também é autora de artigos e de pesquisas na área da Arte/Educação. E-mail: lucianaborre@yahoo.com.br

Lívia Marques Carvalho Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Bilbioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Especialista em Cultura Afro-Brasileira pela UFPB e Graduada em Educação Artística, Habilitação em Artes Plásticas, pela UFPB. Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Coordenadora da Pinacoteca da UFPB. Foi Coordenadora do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, de 1999 a 2001. Assessora das Oficinas de Artes da Casa Pequeno Davi, uma Organização Não-Governamental, atividade de extensão universitária, desde 1989. Autora de diversos artigos sobre ensino de arte, no âmbito Institucional e no Terceiro Setor em coletâneas e revistas especializadas. E-mail: livia-mc@uol.com.br

Valéria Fabiane Braga Ferreira Arte-educadora, Licenciada em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais/UFG e Mestre em

Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba, foi bolsista CAPES com o projeto “Alegorias, símbolos e cultura barroca: o Carmo em João Pessoa”, sob orientação da Profª Dra. Carla Mary S. Oliveira. Trabalhou em colégios de João Pessoa, e foi estagiário voluntário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP (2005 a 2007). E-mail: cabral.historia@gmail.com

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André Cabral Honor

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Cultura Visual pelo Programa de Pós-graduação na mesma instituição. E-mail: vafabiane@gmail.com


Gabriel Bechara Filho Professor do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Graduado em Licenciatura em Filosofia pela UFPE, Mestrado em Sociologia pela UFPB e Doutorado em sociologia pela UFBA. Coordenador do Núcleo de Arte contemporânea da UFPB 1095-7, Coordenador do Programa de reciclagem em Educação Artística da UFPB 1990-1995. Critico de Arte, Fotografo e curador. E-mail: gbecharafilho@hs24.com.br

Mariela Brazón Hernández Pesquisadora em História das Artes Visuais; Doutora em Artes Visuais (Escola de Belas Artes – UFRJ); Mestra em Artes Visuais (Escola de Belas Artes – UFRJ); Graduada em História da Arte (Universidade Central da Venezuela) e em Ciências da Computação (Universidade Central da Venezuela). Atualmente reside em Salvador, Bahia, onde realiza pesquisas sobre Arte Cinética, Relações Arte-Ciência e Arte Latino-americana. E-mail: marielabrazon@yahoo.com.br

Maria Berthilde Moura Filha Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (1986), mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (1997) e Doutorado em História da Arte – Dep. Ciências e Téc. do Patrimônio – Fac. de Letras – Universidade do Porto (2005). Atualmente é professora Adjunto I da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de História da Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: cidade de João Pessoa, história urbana, vida urbana e preservação do patrimônio. E-mail: berthilde_ufpb@yahoo.com.br

Nelia Dourado Gonçalves Maciel Bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Mestranda da Linha de Pesquisa – História da Arte Brasileira, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. Integrante do Grupo de Pesquisa “Matéria, conceito e memória em poéticas visuais contemporâneas.” Bolsista CAPES/Demanda Social. E-mail: neilamaciel@gmail.com

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Cláudio Cardoso de Paiva Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba (1984), mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília (1988), mestrado em Sciences Sociales – Universite de Paris V (Rene Descartes) (1991) e doutorado em Sciences Sociales – Universite de Paris V (Rene Descartes) (1995). Atualmente é professor associado I da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Comunicação e Estudos Culturais, atuando principalmente nos seguintes temas: televisão, sociedade, estética e teoria da comunicação e da informação, novas tecnologias e cibercultura. Tem atuado em duas áreas da


pesquisa científica: FICÇÃO TELEVISIVA SERIADA e ESTUDO DAS MÍDIAS DIGITAIS (PIBIC/CNPq/ UFPB), participando da linha de pesquisa CULTURAS AUDIOVISUAIS, PPGC/UFPB. E-mail: claudiocpaiva@yahoo.com.br

Robson Xavier da Costa Professor efetivo Assistente I e ex-chefe do Departamento de Artes Visuais (DAV) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutorando em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFRN – início 2009), Mestre em História (2007 – UFPB), especialista em Educação e Tecnologia da Informação e Comunicação (UFPB – 2005), Sociologia (UFPB/CEFET – 1997) e Educação Especial (UFPB – 1995), com formação em Arteterapia pela Clínica Pomar do Rio de Janeiro (2004), Licenciado em Educação Artística – Artes Plásticas (UFPB – 1993). Editor e membro da Comissão Editorial da “Revista Intervenções: Artes Visuais em Debate” do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP, Sócio Honorário da Sociedade Brasileira de Arteterapia – SBA e Líder do Grupo de Pesquisa em Arteterapia e Educação em Artes Visuais (GPAEAV), credenciado pelo CNPq. Premiado em 1º lugar na categoria Ensino Fundamental no Prêmio Arte na Escola Cidadã – 2003 - Instituto Arte na Escola – Fundação IOSCHPE e em 1º lugar no prêmio Arquidy Picado – 1998 – na categoria pintura contemporânea (conjunto da obra) no IV Festival Nacional de Arte – FENART – FUNESC – João Pessoa – PB. Atua na área de Artes Visuais, Arteterapia e Educação, com ênfase em arteterapia e educação em artes visuais, pesquisando os seguintes temas: Artes Visuais, Arte Contemporânea, Arquitetura da Arte, Educação em Artes Visuais, Arteterapia, História Visual e Formação continuada de Professores. Eleito como 2º secretário da ANPAP para a gestão 2009-2010. E-mail: robsonxcosta@yahoo.com.br

Sebastião Gomes Pedrosa

Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves Doutoranda em Arte na Universidade Estadual de Campinas/ Unicamp realizando estágio sanduíche em Londres sob supervisão do Prof. Dr. Michael Neve/ UCL, Mestre em Arte/ Unicamp (2004), bacharel e licenciada em Educação Artística/ Unicamp (2001). Especialista em Arteterapia/ Unicamp (2003) e especialista em Arte e Novas Tecnologias na Universidade de Brasília/ UnB (2005). Filiada à AATESP sob inscrição n. 058/1105, Membro do Conselho Diretor da AATESP (2006-2008), Coordenadora e docente do curso de Especialização em Arteterapia da Universidade São Marcos (Master School), Membro do grupo de estudo Desenvolvimento, linguagem e práticas educativas – UNICAMP. E-mail: tati.fecchio@gmail.com

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UFPE. Arte/Educador e artista plástico, com título de doutor obtido em 1993 pela University of Central England in Birmingham, na Inglaterra. Membro sócio da ANPAP desde o início dos anos 1990.Tem participado de várias exposições de arte, no Brasil e na Europa. E-mail: sgpedrosa@yahoo.com.br

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Professor Associado, vinculado ao Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da


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REVISTA INTERVENçõES: ARTES VISUAIS EM DEBATE NORMAS DE PUBLICAÇÃO PARA COLABORADORES A “Revista Intervenções: Artes Visuais em Debate”, recebe artigos, ensaios, relatos de pesquisa, entrevistas e resenhas em qualquer período do ano. Os trabalhos serão encaminhadas ao Conselho Editorial para avaliação e possível publicação no próximo número da revista. 1. A revista “Intervenções: Artes Visuais em Debate” é uma publicação do Departamento de Artes Visuais – DAV – do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA – da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – seu objetivo é a publicação de artigos e pesquisas acadêmicas originais e inéditas, em português e/ou espanhol, sobre as questões relativas às artes visuais, a cultura e ao estudo das imagens.

4. Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a 10 linhas e 3 a 5 palavras-chave, além do abstract (tradução do resumo e das palavras-chave para o Inglês, Espanhol ou Francês), digitados em corpo 11 e espaço simples.

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3. Os textos devem ter no máximo 20 páginas, tamanho A4 (artigos, ensaios, relatos de pesquisa e entrevistas), incluindo imagens, gráficos, referências bibliográficas e notas no corpo do texto, as resenhas devem ter no máximo 5 páginas, tamanho A4.

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2. Os originais, sob a forma de artigos, ensaios, relatos de pesquisa, entrevistas e resenhas serão submetidos ao Conselho Editorial, responsável pela pertinência para publicação das colaborações encaminhadas, e/ou a pareceristas ad hoc. Os nomes destes serão mantidos em sigilo, bem como os nomes dos autores dos originais a serem avaliados serão omitidos aos pareceristas. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor modificações no texto, conforme a necessidade de adequá-lo ao padrão editorial e gráfico da publicação.


5. As resenhas devem ter título próprio, diferente do título do trabalho resenhado. Devem ainda apresentar referências completas do trabalho resenhado. 6. Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word e salvos no formato texto, com página no formato A4 (margem superior 4 cm, inferior 3,5 cm, esquerda 3 cm, direita 2 cm, cabeçalho 1,25 cm e rodapé 2,3 cm) em fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinhas simples e parágrafos justificados. 7. A permissão para a reprodução de imagens é de inteira responsabilidade do(os) autor(res). As imagens deverão ser gravadas no formato tif ou jpg, com resolução mínima de 300 dpi, apresentadas no corpo do texto e também como arquivo separado em CD. 8. O texto enviado para publicação deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica do(a) autor(a) em no máximo 5 linhas, digitadas em corpo 11, espaço simples. Também deve se fazer acompanhar do e-mail do autor e endereço completo, telefone e fax. 9. Os autores receberão 03 exemplares da revista quando seus artigos forem publicados. 10. As notas de rodapé devem ser empregadas apenas para informações complementares e não com a finalidade de apresentar referências bibliográficas das citações. 11. O texto, as citações e as referências devem seguir rigidamente as regras estabelecidas pela ABNT, de acordo com a resolução vigente.

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12. Os originais devem ser enviados acompanhados de um termo de cessão de direitos de publicação do trabalho (duas vias) contendo a assinatura do autor(es) com firma reconhecida. 13. Os originais devem ser enviados por e-mail, encaminhados em três cópias impressas (duas delas não identificadas) e uma cópia em CD-ROM, com etiqueta informando o nome do autor, nome do arquivo do texto e especificações complementares do programa usado, para o seguinte endereço:


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

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Revista Intervenções: Artes Visuais em Debate Editor: Prof. Robson Xavier da Costa Campus I, Cidade Universitária, S/N CEP: 58.059-090 – João Pessoa – PB – Brasil Fone: (83) 3216.7002 ou (83) 8702.9453 E-mail: robsonxcosta@yahoo.com.br


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