Estação Central

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Estação Central


Personagens:

No consultório: Gustavo Sequeira – Paciente do Dr. Oliveira Duarte Oliveira – Psiquiatra Lúcia Moreira – Paciente do Dr. Oliveira Denise Camargo – Paciente do Dr. Oliveira D. Eugénia - Assistente do Dr. Oliveira No comboio: Gustavo Sequeira – pedinte Duarte Oliveira – escritor Henrique Pereira – empresário Sofia Pereira – mulher de Henrique Salvador Correia de Almeida – empresário Marlene Correia de Almeida – mulher de Salvador

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Iº Ato Consultório do psiquiatra Duarte Oliveira. Gustavo Sequeira, paciente habitual, espera na sala pela sua vez. Na cadeira em frente está sentada uma senhora jovem, com o rosto choroso. Gustavo hesita em meter conversa. Por fim decide-se. Gustavo É a primeira vez? Com o Dr. Oliveira? Senhora (com a voz a tremer) Sim. Já não aguentava mais. Gustavo Às vezes parece que estamos num beco sem saída. Tudo o que os amigos nos dizem é inútil... Senhora É verdade. Por isso aqui estou. Porque mais ninguém me consegue ajudar. Vou tentar mais uma vez. Gustavo Faz muito bem. E o Dr. Oliveira é óptimo. Vai conseguir resolver os seus problemas, acredite-me. A assistente vem à sala e chama a senhora. D. Eugénia Sra. D. Lúcia Moreira. Pode entrar. Gustavo Boa sorte. Lúcia Obrigada. Passado quase uma hora, Lúcia sai, visivelmente mais bem disposta. Gustavo entra na sala do Dr. Oliveira.

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Gustavo Boa tarde, Doutor. Bonita senhora. Espero que venha sempre antes de mim... Duarte Viva. Sim, é de facto uma pessoa interessante. E o Gustavo nunca perde pitada. É um bom apreciador, meu amigo. Como tem passado, desde a última vez que nos vimos? Gustavo Bem. Sinto-me bem, curiosamente. Ao contrário do que seria de esperar. Duarte Ainda bem. Continua a morar sozinho naquela casa? Gustavo Claro. Há que enfrentar os factos. Fugir não ajuda, não acha? Duarte Você é que sabe. Gustavo Tenho tido uns sonhos. Duarte Ai sim? Gustavo Muitas vezes. Nesses sonhos, sou um mendigo que vagueia por uma estação... uma estação grande de comboios, tipo Central Station... ridículo, não é? Não sei onde fui buscar esta ideia... Duarte Conte-me...

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Estação central de comboios. No grande átrio estão as bilheteiras. As filas das pessoas distribuem-se pelos vários guichets. Os placards electrónicos anunciam os horários das partidas e chegadas. Há um barulho de fundo, centenas de vozes misturadas, entrecortadas pela voz da menina dos serviços, que informa os passageiros sobre as alterações nos horários dos comboios. Da porta principal vê-se o grande relógio mecânico, de números e ponteiros dourados, que está do lado oposto às bilheteiras. Um mendigo destaca-se dos passageiros. Roupas esfarrapadas e uma mochila suja. A cara macilenta esconde-se atrás de um tom castanho escuro, misto de sujidade e de pele queimada. Percorre a estação de um lado ao outro, parando por vezes, olhando em redor, observando quem vem e quem passa. Mendigo (cantarolando “My way” de Sinatra) And now, the end is near And so I face the final curtain My friend, I'll say it clear I'll state my case, of which I'm certain (As pessoas viram-se, olhando para o mendigo) I've lived a life that's full I've traveled each and ev'ry highway But more, much more than this I did it my way (Mantendo-se na fila, as pessoas viram costas ao guichet, para ouvir o mendigo) For what is a man, what has he got? If not himself, then he has naught To say the things he truly feels And not the words of one who kneels The record shows I took the blows And did it my way! MY WAY!!!! (As pessoas viram-se novamente para o guichet, esperando a sua vez para comprar bilhete) Pois... ele comigo não joga xadrez nem fala da Bíblia... é isso mesmo que vocês estão a ouvir... se for o filho ou um amigo a convidá-lo para jogar xadrez ele joga... mas comigo não... claro que é um jogo de inteligência... estratégia... mas pelos visto eu não estou vestido para isso... como é que eu vou conseguir pensar??? Nem lhe vai dar gozo... derrotar-me tão

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facilmente... é preciso um adversário à altura... passa-se o mesmo com a Bíblia... não discute comigo. Recusa-se. E ensina aos outros. Mais uma vez, não devo estar vestido para isso... não faz mal. Eu cá me arranjo. I did it my way... MY WAY!!!! (Passa um casal. Colocam-se numa fila para a bilheteira. O mendigo interpela a senhora) Desculpe. A senhora é portuguesa? Do you speak portuguese? Senhora (meio curiosa, meio desconfiada) Sim, sou portuguesa. Mendigo Ah. Ainda bem que responde. As portuguesas são mal-educadas. Sempre que as cumprimento viram-me a cara. Uma vez estava em Marselha e saí com uma rapariga loura, bonita, sabe? Pedi-lhe um beijinho e disse-lhe: “Vous êtes três belle!” Sabe o que me respondeu? Senhora Não... Mendigo “Vai-te embora, senão chamo imediatamente a polícia!” Sou um homem de Deus. Nunca lhe iria fazer mal. Uma portuguesa emigrante. Malcriadas, é o que elas são. Senhora Nem todas. Só algumas. Mendigo A senhora não é. De facto, até é bem simpática. A minha mulher era parecida consigo. (O marido dá o braço à mulher, tentando acabar com a conversa) Marido Querida, temos que ir. A fila está a andar rapidamente.

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Mendigo Aliás, era parecida consigo em duas coisas... Uma era o tom de pele... branca, branca como nunca vi... e depois detestava apanhar sol... não é como eu, que sou filho dele... nem sei qual a minha cor de pele original... mas sim, noutros tempos era mais branco de que hoje, mas ela... ela era inacreditável... às vezes comparávamos os nossos tons de pele. Eu era preto ao pé dela. Senhora Eu também não sou assim tão branca... só um bocadinho... e gosto de me bronzear, estar ao sol... é tão bom... Marido Querida... vamos... está quase a chegar a nossa vez. Mendigo O cabelo dela era parecido com o seu. O mesmo corte. Senhora A sério? Mendigo Verdade. Só que eu disse-lhe para fazer madeixas. Ficou ainda mais bonita. Senhora E onde está essa bela esposa? Mendigo Oh, minha senhora, não lhe consigo explicar a minha vida num minuto. Senhora Presumo que desapareceu...morreu... talvez o senhor não estivesse aqui se ela ainda estivesse consigo...

Mendigo

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Vá... vá... tem que partir... olhe o seu marido... está aflito. Gostei de a conhecer. É muitíssimo educada e é uma senhora linda. “Bonne voyage!” Senhora Obrigada. Adeus Sr... Mendigo Gustavo. Apenas Gustavo. Adeus Sra... Senhora Sofia. Adeus. Sofia apressa-se a juntar ao marido, que é o próximo a ser atendido pelo guichet. De longe observa Gustavo, que se retira e continua a falar alto e a andar pelo meio da estação. Gustavo Há mulheres que valem a pena! A beleza está diante dos nossos olhos, a cada instante... às vezes andamos distraídos... (falando para um qualquer passageiro) Hello Mr... did you see that woman? Unfortunately, she’s married... marié... Ne comprenez-vous? Intouchable... C’est la femmme de l’autre... (cantarolando) I've got you under my skin I've got you deep in the heart of me So deep in my heart that you're really a part of me I've got you under my skin. (O mendigo chama a atenção de um passageiro, que está no fim da fila) I`d sacrifice anything come what might For the sake of having you near, In spite of a warning voice that comes in the night It repeats, repeats in my ear Don't you know you fool, you never can win Use your mentality, wake up to reality" And each time I do, just the thought of you Makes me stop before I begin, Because I've got you under my skin. (Desta vez, é o passageiro que se mete com Gustavo. Sofia continua a observar e a tentar ouvir Gustavo, apesar de este se ter afastado.)

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Passageiro Parece gostar muito de Sinatra. Só pode ser um conhecedor. E que afinado que canta. Parabéns pelo bom gosto. Gustavo Obrigado senhor. Apenas gosto de viver. Agradeço a Deus cada dia que passa e tento gozá-lo da melhor forma... Passageiro Não nasceu aqui certamente... quero dizer... à mercê do sol e do acaso. Não adotou as paredes altas da estação como abrigo. Pelo menos desde sempre... Gustavo O senhor é observador. Repara nos outros. Cada vez há menos pessoas assim. Normalmente andam de cara pregada no chão. Cheios de pressa e embrenhados nos seus pensamentos. Passageiro Tem razão. Vivemos numa época de grande individualismo. Um contra-senso, quando ao mesmo tempo se querem alargar fronteiras entre países e gentes... Gustavo Há anos que vagueio sozinho... talvez me dessem alguma mãozinha se me portasse como um pedinte normal... tenho a marca imunda das roupas esfarrapadas... mas depois abro a boca... e todos se afastam... não tenho lugar nesta sociedade... Passageiro Teve uma educação esmerada... o seu discurso... o seu pensamento... fala línguas na perfeição... viajou muito... como veio parar aqui? Gustavo Como já disse à bela senhora lá atrás, é uma longa história. Não se conta no tempo que o senhor vai demorar na fila para comprar o seu bilhete. Desculpe.

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Passageiro Tem ar de quem gosta de viajar... vaguear por vaguear, porque não apanha o comboio comigo? Vá lá, pago-lhe o bilhete e vai ter tempo para me contar a história da sua vida... Gustavo É muita generosidade sua, senhor. Estou sem palavras... Passageiro A propósito, chamo-me Duarte Oliveira. Ao seu dispor. Gustavo Gustavo Sequeira. Há anos que não conhecia ninguém assim. Obrigado. Duarte Aguarde um pouco. Estou quase no guichet. (Sofia e o marido acabaram de comprar os bilhetes e dirigem-se para a plataforma dos comboios. Sofia vira-se constantemente para trás, percebendo que Gustavo agora acompanha um desconhecido). Gustavo Duarte... e o destino? Desculpe estar a perguntar-lhe... estou pronto a partir... tenho a casa às costas, uma casa leve, por acaso, esta mochila é tudo o que tenho... mas para onde vai o comboio? Duarte Estou quase lá. Só faltam duas pessoas na fila. Mais dois minutos e já temos os bilhetes. Disse-me que estava pronto a partir... Gustavo Claro que sim! Duarte Já está. Venha daí.

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Gustavo (em voz alta, despedindo-se da plateia) Vou-me embora, estão a ouvir? Vou partir para o desconhecido, fazer uma longa viagem, livrar-me destas paredes que me sufocam, que me ensurdecem, com o eco das vossas vozes, das vozes das meninas simpáticas dos altifalantes... sim, livrar-me daquele relógio dos ponteiros gigantes que nunca descansa, o desgraçado, sempre tic tac, tic-tac, quantas vezes endoideci a ouvi-lo, cheguei a delirar, pensando que me raptava com as suas hastes douradas e me comprimia no ponteiro dos segundos, malvado gigante do tempo... (para um passageiro que vai a passar) Ouviu? Nem sequer tinha direito ao ponteiro das horas! Sim, o mais pequeno, iria comprimir-me as pernas, mas libertava-me o tronco e a cabeça e aí, meu amigo, era eu que lhe baralhava as ideias, está a entender? Eh, eh, trocavalhe os ponteiros, andávamos todos para trás no tempo, não era divertido? Olhe, você, por exemplo, em vez de estar com esse ar apalermado a olhar para todos os placards sem conseguir descobrir o seu comboio, estava a andar para trás como o caranguejo, para fora desta estação e voltava a casa, que se calhar era de onde nunca deveria ter saído... Duarte (Arrastando Gustavo pelo braço) Basta, meu caro. Agora vai pregar para outra freguesia. Gustavo Acabou-se “The Voice”. Nunca mais me vão ouvir. Ah, mas vão sentir a minha falta, ah isso é que vão! Sem terem nada para se distrair, para comentar, para gozar “Olha aquele maluco que ali vai... por acaso até nem canta mal... viste o ar sujo? Passei por ele, cheirava tão mal! Ai, porque é que os deixam dormir aqui dentro? O ar fica pestilento! Devia era estar internado, coitado! Não deve ter família!” Vão sentir a minha falta, ai isso garanto-vos eu! Duarte (Vincando ainda com mais força o seu braço no de Gustavo) Estamos com pressa. O comboio parte daqui a uns instantes. Deixe o discurso para mais tarde. Oportunidades não lhe irão faltar. O mundo precisa da sua crítica.

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Sofia apressa o passo também, agarrada pelo marido. A sua cabeça está num rodopio, tentando ouvir e ver o que se passa com Gustavo. O marido começa a perder a paciência. Marido Sofia, querida, não sei o que te chama tanto a atenção. Será aquele pedinte nauseabundo? Já estive para chamar a polícia... é um autêntico desacato... não há direito... Sofia Pois acho que tem a sua graça. Pelo menos atreve-se a dizer o que pensa, apesar de sujo e maltrapilho. Nem todos são assim... Marido És tão sonhadora. Vives noutro mundo. Olha, apressa-te, senão o pobre desgraçado faz-te perder o comboio. E acredita, é a viagem de uma vida. Sofia (apressando ainda mais o passo) Está bem, está bem, ainda não me disseste para onde vamos. Gosto de surpresas, mas não exageres! Marido Tens tempo para descobrir. Gosto de te sentir curiosa. Sais dessa apatia. Aliás, hoje estou surpreendido... o pedinte, a viagem... estás em pulgas! Sofia Sim, estou contente. Qual é a plataforma? Marido É a sete. Aquele comboio colorido, com carruagens a perder de vista. Não acaba, já reparaste? Corre, está mesmo na hora! Vamos em primeira. Sofia (A correr) Está cheio! Gustavo e Duarte correm também, entrando uma carruagem atrás.

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O comboio apita, dando início à grande viagem. Lá dentro está uma enorme confusão, com as pessoas ainda a confirmar lugares e a arrumar bagagens. Duarte (Empunhando a bagagem por cima dos passageiros) Venha, venha, Gustavo. O nosso compartimento deve ser o próximo. Gustavo Bom, isto é chique a valer! Já lá vão os tempos em que era um lugar comum... Caro Duarte, não leve a mal a minha curiosidade... sou um cidadão do mundo, as fronteiras não existem aos meus olhos... mas para onde vamos? Duarte Antes de mais quero pousar a minha bagagem, saber onde vou dormir, sentar, relaxar. Sei que só tem a mochila. Não é o meu caso. Sinto-me pesado. Depois vamos até ao bar e aí, voilá, tem todo o tempo do mundo à me pouser des questions... Aqui está o nosso compartimento... ajude-me, isso, puxe para trás... abriu! Gustavo Espaçoso! Um ar muito confortável. Casa de banho privativa, Duche... um apartamento móvel. Onde durmo? Em baixo ou em cima? Duarte Escolha. É-me indiferente. Mas devia aproveitar para tomar um duche. Livrarse dessas roupas gastas e malcheirosas. Vai sentir-se outro. Gustavo É o que farei. Duarte Tenho roupa a mais. Deixe-me ver... temos mais ou menos o mesmo corpo... sou um pouco mais forte, é verdade, nada que um cinto não resolva. Umas calças de ganga e uma camisa. Roupa interior. Aqui tem. Espero por si no bar. Preciso de uma bebida. Gustavo Obrigada Duarte. Vou ser muito rápido. Vai ter que me explicar a razão de tamanha generosidade. Deixa-me perplexo. E já agora, para onde vamos...

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Duarte Até já. Gustavo sai do compartimento pouco depois, vestido com as roupas de Duarte. A barba está feita e a camada de sujidade desapareceu, dando lugar a um tom de pele mais claro. Espantado com a sua aparência caminha devagar à procura do bar, observando as pessoas à sua volta. Sofia caminha em sentido inverso, até que tropeçam um no outro. Gustavo É você! Quem diria... também aqui! Que coincidência! Sofia Desculpe, conheço-o? Gustavo I've got you under my skin I've got you deep in the heart of me So deep in my heart that you're really a part of me I've got you under my skin. Sofia Não acredito! O mendigo da estação! Gustavo Gustavo, já agora. Sofia Sim, claro, o Gustavo. Não estava à espera! Gustavo É linda mesmo quando é arrogante, Sofia. Sofia Não o imaginava assim! Com aquelas roupas, tão escuro, barba cerrada... não lhe consegui ver o rosto, apenas ouvi a voz... e que voz! Desculpe mais uma vez... mas é que... está muito diferente, seria difícil reconhecê-lo! Gustavo Estou diferente... para melhor, presumo?

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Sofia Sem dúvida... Gustavo Vamos ter todo o tempo do mundo para observar as diferenças. Parece que este é um comboio especial... Sofia Foi um presente do meu marido. Fazemos 10 anos de casados. Desconheço o destino, faz parte da surpresa... Gustavo Já somos dois. Quero dizer, quanto ao destino. Sofia Como é que ainda há pouco andarilhava pela estação e agora está enfiado neste comboio? Gustavo Conheci uma pessoa que me convidou. Sofia Assim, sem mais? Gustavo Tal e qual. Sofia Que coragem. Seria incapaz. Gustavo Não tinha nada a perder. Sofia Compreendo. Mesmo assim, é atirar-se para o desconhecido... Gustavo

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Como esta viagem. Você não conhece o destino. Também abraçou o desconhecido... Sofia Venho pela mão do meu marido... não é propriamente um estranho. Por falar em marido, tenho que voltar ao meu compartimento. Disse que ia ao bar buscar uma água e ainda não voltei. Deve estar a estranhar a demora. Gustavo Também vou ao bar ter com o meu amigo desconhecido. Porque não desafia o seu marido e aparecem por lá? Sofia E porque não? Parece-me uma boa ideia! Até já, então. Gustavo entra no bar. Duarte está sentado numa mesa de pé alto, a beber um whisky. Duarte Finalmente! Bem, meu caro amigo, parece outro! Pela sua aparência quase que consigo adivinhar o seu passado... sente-se. O que quer beber? Gustavo Um whisky. Há muito tempo que não bebo um. Não me diga que trago a minha história estampada no rosto... Duarte Não é bem isso. Mas sente-se que viveu outra vida, bem diferente desta última. Já lho tinha dito ainda há pouco, na estação. Gustavo É verdade. Este comboio... quase não faz barulho... é demasiado suave... onde foram inventar tal engenho? Ou serei eu, que já nem sequer me lembro? Duarte Tem toda a razão. É um comboio especial. Feito para as pessoas conviverem. Se quiser, é um comboio feito para o encontro. Ou desencontro. A partir da desta viagem a sua vida já não será a mesma. Considere-se numa terceira existência...

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Gustavo Interessante. E o destino? Duarte O destino é este. Gustavo Parece-me um caso sério. Existem apeadeiros? Quero dizer, estações onde possamos sair, palpar a terra, respirar ar e olhar a paisagem sem ser em movimento? Duarte O comboio pára em algumas estações. Mas apenas recebe passageiros. Viajam todos até à última estação. Sem interrupções. Vai conhecer pessoas interessantes, ver paisagens deslumbrantes da sua janela e o movimento... é um suave movimento que nos embala... Vai sentir-se em casa. Gustavo Um pouco aprisionado. Gosto da minha liberdade. Sair quando e onde quero... Duarte Entendo. Mas essa sensação, essa ansiedade, vai desvanecer-se rapidamente. Quando chegarmos ao fim da linha vai querer continuar... descontraia, entretanto. Gustavo Como disse há pouco a uma conhecida que encontrei, não tenho nada a perder... Duarte Já conhece algum passageiro daqui? Gustavo Conheci de passagem, ainda na estação. É uma senhora. Sofia. Convidei-a a vir beber um copo com o marido aqui. Duarte Óptimo! Vê? Já começa a conviver!

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Gustavo Aí vem ela! Sofia aparece de mão dada com o marido. Sofia Olá. Apresento-lhes Henrique, o meu marido. Gustavo (arrastando duas cadeiras) Muito prazer. Duarte, um amigo meu. Sentem-se. Sofia Já contei ao Henrique quem o Gustavo era... Henrique (meio desconfiado) Custou-me a acreditar. Também reparei em si na estação. Gustavo Não é fácil passar despercebido... Henrique Não daquela maneira. Agora parece normal. Seria mais um no meio da multidão. Sofia Estás a esquecer-te da voz, querido. Gustavo, você canta admiravelmente. Gustavo Obrigado. Estudei música quando era jovem. Ficou-me sempre o bichinho. Henrique Canta a plenos pulmões. Invulgar, num pedinte. Sofia Querido, já não é disso que se trata. Estamos todos no mesmo comboio. A história do pedinte já lá vai... a propósito, para onde vamos?

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Gustavo Estivemos justamente a falar disso. Já estou elucidado. Sofia Henrique, ainda não me disseste nada... Duarte Não se explica com facilidade... Henrique Sem dúvida. É uma longa viagem, querida. Temos o tempo todo por nossa conta... Sofia E? Henrique Não é como no mundo real. Onde existem dispersões. Aqui estamos só os dois. Concentrados um no outro. Recomeçamos tudo do princípio. Redescobrimo-nos... vai ser fantástico! Sofia Não estou a entender... e o destino? Henrique Somos nós os dois. Em princípio... Duarte Não assuste a sua esposa dessa maneira... Sofia, se me permite, não veja a viagem de uma forma tão trágica... vai divertir-se imenso, vai ver! Sofia Todo este silêncio... não ouço barulho de comboio... entendem? Nem parece que estou em movimento... Duarte Já olhou lá para fora?

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Sofia As árvores vão passando, a luz vai mudando, até consigo ver pessoas que passam rápido. É o comboio a passar por elas... Henrique Vês querida? É uma viagem normal, também. Normal e extraordinária. Relaxa. Vamos viver esta experiência! Sofia Se tu o dizes... Duarte Precisam de beber qualquer coisa. Henrique, faz-nos companhia? Henrique Sim. Um whisky, por favor. Sofia Um gin tónico para mim. Preciso de me animar! Duarte Brindemos! Gustavo A uma viagem memorável! Henrique À nossa!

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No consultório do Dr. Oliveira. Lúcia Moreira está em consulta. Gustavo aguarda pacientemente na sala de espera. Dr. Oliveira Acho-a francamente melhor desde a semana passada. Bem sei que está com a medicação, mas nesta fase é necessário, para ultrapassar toda esta situação... Lúcia Doutor, estou cansada, muito cansada. São 10 anos de violência, vividos em silêncio, compreende? Em silêncio. Só agora resolvi vir aqui. Porque realmente estou desesperada... Dr. Oliveira Compreendo perfeitamente. A sua filha. Ele ameaça ficar com ela, se você sair de casa. Lúcia Vai tentar tudo. Não o conhece, Doutor. O tribunal vai achar que eu sou a louca, quando no fundo o monstro é ele. Dr. Oliveira Cara Lúcia, não tenha medo... tem provas dessa violência... Lúcia Doutor, posso tirar fotografias aos negrões que tenho por causa das tareias, posso gravar as bestialidades que ele nos diz, a mim e à nossa filha. Tem toda a razão. Mas se levo todo este lixo a tribunal, ele vinga-se, já me ameaçou... e vai ganhar, eu sei que ele vai ganhar... receio pela minha própria vida... Dr. Oliveira Qual a solução? Continuar como está? Lúcia Não, de todo.

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Dr. Oliveira Vamos então por partes... Vai continuar em silêncio, como antes, não levante suspeitas, pelo contrário, tente agradar às solicitações dele, mas vai começar a preparar a sua saída. Tem amigos próximos? Família que conheça os antecedentes? Lúcia Não... tenho vivido uma vida de aparências. A família e os amigos gravitam à nossa volta, mas não desconfiam de nada... Dr. Oliveira E as nódoas negras? São bem visíveis... a cara lavada em lágrimas? Difícil passar despercebida... Lúcia Dou sempre uma desculpa a propósito da situação. Encubro ao máximo. Sou uma atriz perfeita, sabe? Ninguém dá conta! Dr. Oliveira Menos para o seu marido, que nesta fase era quem mais convinha enganar... Por um lado, até é bom que a família não esteja ao corrente, pois se assim fosse, seria mais fácil ele chegar a si. Pense em alguém que mereça a sua confiança, talvez uma pessoa que ele nem conheça muito bem... ponha-a a par da situação e peça abrigo, proteção durante uns tempos. Claro que leva a filha consigo. É evidente que tudo isto vai demorar o seu tempo. Lúcia Não consigo imaginar ninguém... Dr. Oliveira Neste momento. Chegámos ao fim. Vai para casa pensar no assunto e na próxima sessão quero um nome. Lúcia Combinado Doutor. Prometo que vou tentar. Dr. Oliveira

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Não vai tentar. Vai fazer! Lúcia sai, um pouco estonteada com a exigência do Doutor Oliveira, a ponto de tropeçar em Gustavo, que é chamado a entrar. Lúcia Peço desculpa. Gustavo Não tem de quê. Lúcia Nem o vi. Vinha a pensar, a pensar... estava fora daqui... desculpe mais uma vez. Gustavo Não tem importância. Vimos aqui para o Doutor nos pôr a pensar. É normal. Lúcia Obrigada. Boa consulta. Gustavo Até à próxima. Gustavo entra. Gustavo Boa tarde, Doutor. Esta senhora já me apareceu em sonhos! Dr. Oliveira Como assim? Gustavo Aquela do marido, a Sofia. Só muda o nome. É a mesma pessoa. Dr. Oliveira Tenha calma. A história da Sofia parece ser bem diferente desta, pelo que me contou.

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Gustavo Devo ter uma imaginação muito fértil, pois desconfio que há mais em comum entre elas do que parece à primeira vista. Dr. Oliveira Gustavo, ponha os pés na terra. Não passa de um sonho. Vale tudo, percebe? É onde nós damos asas aos nossos desejos mais secretos, conscientes e inconscientes... Gustavo Doutor, sonhei com esta mulher antes de a conhecer aqui, no seu consultório. Explique-me... Dr. Oliveira Provavelmente a Lúcia é uma versão aproximada da mulher do seu sonho. Pode corresponder a um ideal seu, mas também revela um desejo de encontrar novamente alguém. Sente um enorme complexo de culpa ao sentir atração por outra, pois acabou de perder a sua família, mulher e filhos... daí a figura do mendigo... um homem culto, que aparece despojado de tudo, vive num presente descomplexado, aberto a qualquer futuro... Gustavo Não sei como lidar com estes sonhos. Parecem-me bem reais. E acontecem todas as noites. Será que tenho que mudar de casa? Estará assombrada? Julguei que teria paz, depois de ter mudado as mobílias, ter eliminado todos os objetos delas... olho e as paredes estão brancas, mandei-as pintar de novo, apaguei todos os vestígios Doutor... mas os sonhos persistem, nunca com elas, curiosamente, mas como lhe contei, até você lá está... Dr. Oliveira Penso que a resolução do problema não passa por mudar de casa. Gustavo Então? Dr. Oliveira É bom que sonhe. E eu estou aqui para ouvi-lo. Continue.

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Henrique e Sofia regressam ao compartimento. Henrique Não me agrada a tua confiança com o Gustavo. Não passa de um miserável que se meteu contigo na estação... Sofia Agora não parece um desgraçado. Pelo contrário. Boas maneiras, bemfalante... uma pessoa agradável... Henrique É o homem perfeito. Bastou-lhe tomar um duche. Julgas as pessoas pela aparência? Sofia Não. Acho que é exatamente ao contrário. As roupas esfarrapadas e o ar sujo não condizem com ele. É um disfarce. Esconde uma história diferente. Henrique Não estou interessado nele e não gosto de te ver aos risinhos na sua presença. Ficas ridícula. Sofia Julgava que estávamos aqui por causa de nós. Dez anos, lembras-te? Henrique Apenas os dois. Foi essa a ideia. Não quero voltar a fazer brindes com esse homem. Afasta-te. Sofia Mas o convívio com outras pessoas não impede o nosso romance. Até lhe dá um certo picante. Vontade de fugir dos outros para estarmos sozinhos. Porque, segundo percebi, não vamos poder sair deste comboio tão cedo! Compartimento, corredores, bar e restaurante. É difícil esconder-me das pessoas! Henrique

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Para mim é condição absoluta, Sofia! Chega de conversa!

Sofia Querido, não te enerves. Também não aconteceu nada de especial... vá... dá-me um beijinho... Henrique Senta-te aqui no meu colo. Sofia Claro, amor. Não tenhas medo. Eu não fujo. Henrique (beijando-a) Não tinhas hipótese. E ainda por cima dentro deste comboio... Hmmm... Sofia Hmmm... É tão bom estarmos os dois... fecha à chave... a porta... Henrique Ninguém entra... vês? Não precisas do teu amigo para nada! Só para ficares baralhada! Sofia Ai Henrique... espera... não sei o que me deu... uma dor de cabeça insuportável... de repente... estou cheia de tonturas... Henrique Agora? Era só o que me faltava... Sofia Ninguém controla estas coisas... espera... deixa-me deitar um bocadinho... assim... continuo zonza... Henrique Mas nem se nota que estamos num comboio, não há barulho, não há trepidação...

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Sofia Agora parece que estou melhor... a minha cabeça ainda lateja de dor... que horas são? Henrique Está quase na hora de jantar. Vamos ao restaurante, assim que te sentires melhor... Sofia Boa ideia. Devo estar com fome. No bar, Gustavo e Duarte continuam a conversar e a beber animadamente. Gustavo Não me importava de ser o Henrique. A Sofia é muito atraente. Duarte Cuidado. Ele parece ser muito possessivo com ela. Gustavo Sim, agora que fala nisso, reparei na tensão entre os dois. Duarte Não se meta, eles que resolvam. Bom, não era da Sofia que eu queria falar... convidei-o, porque queria ouvir a sua história. Gustavo E porquê eu? Duarte Porque você não é um pedinte normal... Gustavo Posso concordar, mas pagar uma viagem desta natureza – que não deve ter sido nada barata – para ouvir uma história de um desconhecido... é sem dúvida uma extravagância...

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Duarte Este é o comboio da vida. E eu sou escritor. Gosto de ouvir histórias. Gustavo Começo a entender... Duarte Vai deixar de se fazer difícil... Gustavo A memória é traiçoeira... e seletiva... pensamos que nos lembramos de tudo... Duarte Vá lá... não estou a exigir que me conte tudo no primeiro dia. Mais um whisky? Gustavo Aceito. Era uma pessoa normal... emprego, casa, mulher, filhos. Um vida certinha. Duarte (pede dois whiskies) À nossa. E isso era mau ou bom? Gustavo À nossa. Era aquilo que conhecia. Presumo que sim, que era bom. Sentia-me feliz. Duarte O que fazia? Gustavo Professor na faculdade. Filosofia. Estética. Coordenava o meu Departamento. Duarte A música? A voz que se ouve na estação... a tara pelo Sinatra?

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Gustavo Por acaso adoro o Sinatra. Mas não só. Era um assíduo frequentador de concertos. Uma arte fabulosa, a música. Sem as artes, o que seria de nós? A expressão do que há mais sublime no ser humano... Duarte O discurso caótico, apocalíptico por vezes, agressivo para os outros? Gustavo Um disfarce. Vesti as roupas e tornei-me num ator... ajudou-me a esquecer o que ficou para trás... Duarte Imagino... Gustavo O comboio está a abrandar a velocidade, ou é impressão minha? Duarte Tem razão. Vai parar... Gustavo Primeira estação. Significa que vão entrar mais passageiros? Duarte Provavelmente. Gustavo Será que posso ir espreitar? Só pôr a cabecinha de fora... contar as carruagens... descer um bocadinho... sentir a terra húmida... fumar um cigarrinho... Duarte Duvido que o consiga fazer. Mas não há nada como tentar. Experimente. Gustavo

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Vou lá ver. Duarte observa Gustavo a sair do bar e a dirigir-se apressadamente à primeira porta de saída que encontra. Paga a conta e vai atrás dele, sem o outro se aperceber. O Comboio está parado. A porta abre-se, deixando entrar os passageiros eleitos. Gustavo tenta sair pela mesma porta, mas sempre que o faz, esta fecha. Quando se afasta, a porta abre novamente, deixando entrar mais passageiros. Tenta ainda forçar as portas de saída, sem resultado. Entre abre e fecha portas, Gustavo choca com uma senhora jovem, baixa e rechonchuda, vestida com cores alegres e colares vistosos. Atrás vem um senhor já de alguma idade, que a acompanha. Marlene (com sotaque brasileiro) Nossa! Que confusão! O que é que você está fazendo aqui, atrapalhando o caminho dos outros? Saia da frente, cara. Aqui quem entra nesse comboio já não sai. É a regra. Ou você aceita ou cai fora! Gustavo Está muito bem informada! Muito prazer. Gustavo Sequeira. Ajuda para carregar as malas? Marlene Prazer. Marlene Correia de Almeida. Você é um cara muito oferecido, mesmo. Te agradeço. Ali o Salvador já está sem coragem, não é meu bem? Salvador Sim, querida. Tu e as tuas ideias tontas... Marlene Salvador, querido, este é o comboio da juventude. Aqui você vai ganhar vida, amor, vai deixar de encarquilhar lá fora, onde te chupam sem dó nem piedade... anda lá...vai... Salvador Estou a ir, estou a ir... Gustavo Nem mesmo um cigarrinho uma pessoa pode fumar...

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Marlene Ó cara, aproveite agora para esquecer o vício ... vai lhe fazer um bem danado, viu? Sempre em frente... Salvador, querido, você já viu como o comboio é legal? Novinho em folha! Olha só, materiais de primeira qualidade! Gustavo É... estamos no comboio das virtudes... ainda é longe, o vosso compartimento? Marlene Devemos estar quase lá. Deixa ver... 109, 110, 111, 112, 113. É este. Que canseira! Agora é só pousar as malas, tomar um duche e direto para o restaurante, não é meu bem? Ai que eu estou com uma fome daquelas! Salvador (à porta da cabine) Sim, minha querida. Caro Gustavo, muito obrigado pela ajuda. Não quer juntar-se a nós, ao jantar? Teríamos muito gosto, não é verdade Marlene? Marlene (despindo-se na casa de banho) Claro! O cara foi uma gracinha! Gustavo É muita generosidade sua... mas não sei... Duarte (que os seguiu desde o início) Claro, Gustavo. Será um prazer. Gustavo Salvador, permita-me que lhe apresente Duarte Oliveira, um amigo. Salvador e Duarte (apertando as mãos) Muito prazer. Duarte

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Vou reservar mesa para quatro. 20.30? Salvador Lá estaremos. No restaurante do comboio. Duarte e Gustavo chegam primeiro, sentando-se na mesa reservada para quatro. Sofia e Henrique chegam pouco depois, escolhendo uma mesa no canto oposto à deles. Gradualmente, vão chegando mais pessoas, que vão ocupando as mesas do salão. Os empregados distribuem a carta e atendem os primeiros pedidos. Quando Marlene e Salvador surgem, já se ouvem as vozes misturadas com o tilintar dos talheres. Marlene (abanando-se com um leque) Desculpem o atraso! É que fiquei tão mole a seguir ao duche, que peguei uma sesta! Nem dei conta! Ali o Salvador caiu redondo também, não é meu amor? Salvador É verdade, meus amigos. Pedimos imensa desculpa. Fizemos uma longa caminhada para apanhar este comboio... Duarte Não há problema nenhum. Queiram sentar-se. Afinal, temos a noite por nossa conta! Gustavo Vivem longe? Quero dizer, da grande cidade? Marlene A gente vem do norte... é... lá bem para cima... o Salvador é dono de umas fábricas, negócio complicado, sempre trabalhando, todo o mundo em cima dele, coitadinho... aí eu disse “Salvador, você tem que tirar umas férias, meu amor, só você e eu, senão essa gente te vai arrumar...” Nossa, que calor aqui! Salvador Não se podem abrir as janelas, querida, está naquele panfleto que recebemos.

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Marlene Que coisa mais boba! E o ar condicionado? Será que não dá para pedir ao cara para ligar? Sei lá... uma ventoinha... qualquer coisa, antes que me dê um “treque”... Duarte Vou já tratar disso... Gustavo Entretanto, se quiserem escolher... há dois pratos principais e depois alguma variedade de petiscos... pedi um vinho... espero que goste. Salvador Muito obrigado. Duarte Já está. O ar condicionado. Marlene É verdade! Está esfriando! Finalmente posso pensar em comida! Gustavo Então, esta é uma viagem de lua de mel... Marlene É um espaço para dois mais concentrado. Salvador Ela tem uma certa razão... os negócios... vivem-se 24h por dia... não sobra um pedacinho de cabeça... as preocupações... na minha idade... Marlene Ele já teve até um ameaço de ataque cardíaco... é... do estresse... Vale a pena? Passe aos filhos... eles que assumam a responsabilidade... Salvador

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Achas algum deles capaz? Marlene Querido, enquanto você agir assim, vai sempre ter criança de volta. São homens adultos! Casado, com filho... e sem responsabilidade... vamos mudar de assunto, porque me dá sempre um nó na garganta cada vez que me lembro... bacalhau com todos? Me parece bem português e um prato bem social! Escolho esse! Salvador Tens bom gosto. Duarte e Gustavo Boa sugestão. Duarte (para o empregado) Bacalhau com todos para todos. Empregado É para já senhor. Sofia e Henrique observam de longe. Henrique O teu pedinte é um homem fácil e rápido. Já fez amigos. Repara no ar da opulenta senhora... Sofia Tem ar de brasileira... são todas assim... aposto que caçou o velho... Henrique Será? Sofia Já reparaste no aspeto de um e de outro? Henrique

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Ela pode ser mais velha e estar toda recauchutada. Sabes bem que hoje em dia tudo é possível. Sofia Duvido. É nova. O velho é rico e ela aproveita-se. Não tem nada a perder... Henrique O Gustavo não tira os olhos dela... Sofia Pára. Estás a dar nas vistas. Se continuas, ela vai achar que tu estás caidinho... está a gostar do prato? Henrique O magret de pato com laranja? Manias tuas... sim, não está mau, mas ia mais no bacalhau com todos... foi o que eles fizeram... Sofia Agora sou eu que não estou a perceber. Primeiro, proibiste-me de falar com o Gustavo, agora não tiras o olhar daquela mesa... Henrique Não mudei de opinião sobre o Gustavo. Acho que é um traste. Mas pensei melhor no que me disseste e realmente temos que ser mais sociáveis... se vamos estar algum tempo por aqui, são estas as pessoas que vamos encontrar... acabaste? Sofia Sim. Falta-me a sobremesa. Tem calma. Henrique Gostava de lá ir cumprimentá-los. Também estão a acabar. Um café seria um bom pretexto. Sofia Agora deu-te para aí? Surpreendes-me... então e o romance, o espaço a dois? Ainda não veio a minha sobremesa. Aguenta-te... Henrique

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Se não te despachas, vais lá ter... Sofia Que querido... Henrique (levantando-se da mesa) Vais lá ter comigo. Até já. Marlene A comida está uma delícia! Me serve um pouco mais de vinho, Salvador. Duarte Desculpe. Aqui tem. Marlene Obrigada. Você é um gentleman. Está sempre tão atento... me conta... o que você faz, que está sempre com esse ar tão quietinho, tão caladinho... Duarte Gosto de conhecer pessoas. Encanta-me falar com elas, estar com elas. Sou um adepto da natureza humana, para o melhor e o pior... Marlene Ouviu Salvador? Que intelectual! Mas isso é um negócio bem interessante! Vai colecionando gente, sempre diferente, nunca tem aborrecimento... Salvador? Não adormeça à mesa, por favor! Gustavo Está cansado. É natural. Foi uma longa viagem. Marlene É verdade, mas ele tem que reagir... me conta Duarte, você deve ter uma profissão... Duarte Sim, esta. Conhecer pessoas. Depois escrevo histórias sobre elas...

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Marlene Vai escrever sobre mim? Duarte É uma hipótese... Marlene Ai, me sinto lisonjeada! Ouviu mesmo Salvador? A tua mulher vai entrar num romance... ai, já caiu para o lado... (abana-o) Salvador, acorda meu bem... Salvador Desculpem, mas estou terrivelmente cansado. Dão-me licença? São horas. Amorzinho, fica à vontade, faz companhia aos senhores. Duarte e Gustavo Com certeza. Uma boa noite. Fique tranquilo. A Marlene fica bem entregue. Marlene Coitadinho do Salvador... faço tudo para o animar... Salvador retira-se, ao mesmo tempo que Henrique aparece. Henrique Boa noite! Já tomaram café? Duarte Por acaso ainda não. Óptima ideia! A Sofia? Henrique Ela já vem. Está a acabar a sobremesa. Gustavo Esperamos por ela. Henrique Não se preocupe. Ela não se importa. Nem sei se vai tomar café... Gustavo

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Mesmo assim, esperamos por ela. Sofia apressa-se a vir, sem acabar a sobremesa. Sofia Desculpem. Sou um bocado lenta. Duarte Sofia, não tem que pedir desculpa. A comida é para ser saboreada. O seu marido é um pouco impaciente, só isso... café? Sofia Sim, se faz favor. Henrique Detestas café, Sofia! Provoca-te insónia... Sofia Hoje está a apetecer-me... Henrique Se não conseguires dormir... Duarte Bom, nesse caso, são cinco. Garçon, 5 cafés. Gustavo Gostava de vos apresentar a Marlene. O marido, Salvador, é um pouco mais velho, já se retirou, estava cansado. Marlene, apresento-lhe o Henrique e a Sofia. Marlene Prazer. É óptimo conhecer gente nova. Começo a entender você, Duarte. É um divertimento! A gente fala, a gente conhece, tem tanta coisa para ouvir e ver, que nunca vai acabar... essa viagem não vai chegar... Duarte (com ar enigmático) Tem toda a razão, Marlene. Vai continuar para além desta viagem.

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Marlene Então, e o simpático casal? Lua de mel? Henrique Viemos arejar. Fugir do exterior. Ficarmos os dois. Marlene Igualzinho a mim, com o Salvador. Você acha que está resultando? Henrique Ainda é cedo para dizer. Só agora começámos... Sofia Temos que nos adaptar... não se esqueçam que não podemos sair do comboio, nem sequer abrir as janelas... Gustavo Já experimentei essa sensação. No primeiro apeadeiro, quando entrou a Marlene e o Salvador. O Duarte disse-me que me ia habituar... não sei... Marlene Está viajando neste comboio pela primeira vez? Duarte Não... mas também não vou adiantar mais... destruiria a surpresa, as expectativas... a viagem também vive delas... Marlene Você é um cara experiente. Diz-me só se vamos sair inteirinhos daqui e aí eu fico mais relaxada... Duarte Marlene, o que lhe parece? Não estou aqui, diante de si? Marlene Eu sei lá se lhe aconteceu alguma coisa... Henrique

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Acho que vai ser uma viagem fantástica. É bom não sabermos o que nos espera. Marlene Dentro de uns certos limites... Gustavo Como se sente, Sofia? Preparada para a aventura? Sofia Porque não? Gustavo Atraída pelo mistério? Sofia Sem a menor dúvida... Henrique E a nossa amiga Marlene, que aparece tão elegantemente vestida para jantar... diga-me, não é destas bandas... Marlene Sou do Norte. Duarte, depois você conta a história para o cara... o Salvador é um homem de negócios... Henrique Também estou a fazer uns investimentos... qual é o negócio dele? Marlene Calçado. Está na família há muito tempo... e a sua? Henrique Transportadoras. Tem sido muito rentável... Marlene Ainda bem para si. Acho esta coisa do negócio uma dor de cabeça, não me pergunte nada, porque eu não quero saber... preciso de uma bebida...

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Henrique Faço-lhe companhia. Um gin tónico? Marlene Adorava. Duarte Continuo no whisky. Gustavo Eu também. Sofia, o que bebe? Sofia Uma água das pedras. Comi à pressa, tenho o estômago às voltas. Gustavo Se puder fazer alguma coisa... Sofia A sua companhia é suficiente... e talvez a sua voz... porque não nos canta algo? Gustavo Não sei se tenho coragem... Sofia Vá lá, você parece um camaleão, muda de roupa, toma banho e torna-se noutra pessoa??? Gustavo Estranhamente, sinto-me assim. Fly me to the moon and Let me play amoung the stars Let me see what spring is like On jupiter and mars

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In other words, hold my hand In other words, baby kiss me

Marlene Nossa. Esse cara canta bem demais! Mas que voz! Henrique É a voz de um ex-pedinte... bem não sabemos o que vai ser quando acabar a viagem... Marlene Que bobagem está ele falando? Duarte Eu depois conto-lhe. Marlene Aqui o Duarte é o meu contador de histórias favorito. Quando esta viagem terminar, eu te vou contratar... (risos) Mais uma Gustavo! Adorei! Gustavo Desculpe, Marlene, noutra altura. Para um público verdadeiramente apreciador... Sofia Fabuloso, Gustavo. Já sabe que sou sua fã. Marlene Somos duas. Pode dar um concerto quando quiser. Duarte Sem dúvida. Talvez estejamos um pouco cansados. O dia foi longo. Henrique Eu continuo no gin tónico. Alguém me acompanha? Sofia

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Não me apetece. Vou deitar-me. Gustavo Já não bebo mais. Amanhã é outro dia. Henrique Marlene? Marlene Que cara atrevido! Sofia, você se incomoda (que eu fique)? Sofia Esteja à vontade. Marlene Nesse caso, eu bebo mais um. Não fico por muito tempo, não. Mas vá... pode pedir, Henrique... Todos se retiram, excepto Marlene e Henrique, que ficam a conversar na mesa do restaurante.

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IIº Ato No consultório do Dr. Oliveira. Denise Camargo espera pela sua primeira consulta, de rosto choroso. Gustavo aguarda também, com alguma ansiedade que Lúcia Moreira saia da habitual sessão. Gustavo É a primeira vez? Denise (com sotaque brasileiro) Sim. Já não aguentava mais. Gustavo Às vezes parece que estamos num beco sem saída. Tudo o que os amigos nos dizem é inútil... Denise É verdade. Por isso aqui estou. Porque mais ninguém me consegue ajudar. Gustavo Faz muito bem. E o Dr. Oliveira é óptimo. Vai conseguir resolver os seus problemas, acredite-me. Silêncio na sala de espera. Gustavo estala os dedos, levanta-se e anda pela sala, senta-se, troca as pernas, para um lado, para o outro. Denise É a primeira vez? Gustavo Não... sou cliente habitual... Denise Parece muito nervoso... me diga uma coisa... o médico, é bom? Gustavo

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Já lhe disse que é ótimo... eu não sou exemplo para ninguém. Os meus problemas... são muito complicados... isto não vai acabar... Denise Nossa! Mas você não pode pensar assim, não! Tudo acaba... Gustavo Ainda bem que é tão positiva. Denise A gente tem que ter fé... se eu lhe contasse a minha vida você não acreditava... Gustavo Acredito. As vidas das pessoas são incríveis. Por falar nisso, você lembra-me alguém que eu conheci... Denise Está falando sério? Tem ideia de onde terá sido? Gustavo Tenho estado a tentar lembrar-me, mas não consigo... se calhar é sugestão... já no outro dia conheci uma senhora que também estava aqui pela primeira vez e fiquei com a mesma sensação... deve ser do sítio... deste consultório... Denise É... provavelmente estimula a imaginação... (risos) Lúcia Moreira acaba a sessão de terapia e prepara-se para sair. Antes de ser chamado para entrar, Gustavo cumprimenta-a da sala de espera. Lúcia Olá! Cada vez que o vejo, parece a primeira vez... o Doutor desenterra pensamentos e emoções como ninguém... estou a pôr ordem na minha cabeça... saio e é como se estivesse cega, não vejo nada nem ninguém... desculpe... Gustavo

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Não me diga que ainda não fixou o meu rosto? O meu nome?

Lúcia Sim, claro Gustavo. Claro que o fixei... Gustavo Apresento-lhe a Denise Camargo. Calculei que gostasse de lhe dar as boas vindas, pois hoje é a primeira vez dela... Lúcia (cumprimentando Denise e sentando-se ao seu lado) Olá. O Dr. é fantástico. Vai adorar. Adivinha os nossos pensamentos, mesmo aqueles que não quer revelar... Denise Estou ansiosa por conhecer esse médico tão badalado! Lúcia Vai adorar! Denise Está resultando consigo? D. Eugénia Sr. Gustavo, pode entrar. Gustavo Lamento, minhas senhoras, mas chegou a minha vez. Denise Obrigada pelos conselhos. Lúcia Gostei de o ver. Até à próxima. Gustavo entra na sala do Dr. Oliveira. Ambos apertam mãos.

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Dr. Oliveira Viva. Tenho pensado muito em si. Gustavo A sério? Bons ou maus pensamentos? Dr. Oliveira Hesito entre duas hipóteses... considerá-lo um visionário, alguém com uma forte percepção extra-sensorial, um fenómeno que não se explica... ou apenas um homem de imaginação fértil, que tem muita sorte e acerta em cheio nos palpites que emite. Gustavo Os sonhos... Dr. Oliveira Esses sonhos... Gustavo Juro-lhe que apenas lhe relato o que me aparece lá... nesses sonhos... Dr. Oliveira Começa a ser demasiada coincidência... Gustavo Mas o quê? Dr. Oliveira Deixe lá... diga-me uma coisa... já os tinha antes do acidente? Gustavo Não. Claramente foi um marco. É como se o meu cérebro tivesse urgência em viver esta informação. Desconheço o propósito. Por isso aqui estou. Tudo isto me intriga. Acabei de conhecer uma nova paciente sua. E juro-lhe que é a cara da Marlene por uma pena... Dr. Oliveira

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A ética profissional não me permite revelar as conversas com os pacientes, mas há algo de singular nisto tudo. A Sra. Lúcia Moreira tem de facto imenso a ver com a Sofia do seu sonho...

Gustavo Eu não lhe disse? Dr. Oliveira São histórias diferentes, como deve calcular... Gustavo Imagino... Dr. Oliveira E tem a certeza de que nunca sonhou com elas? Pode já ter acontecido e a sua memória ter bloqueado essas imagens... Gustavo Elas quem? Dr. Oliveira A sua falecida esposa, Helena e filhas. Clara e Rosa, certo? Gustavo (emocionado) As minhas princesas... Dr. Oliveira É doloroso... sei que ia a conduzir... Gustavo Apagou-se tudo. É como se estivesse impedido de as recordar. Dr. Oliveira Entretanto, aparecem estes sonhos, de uma forma insistente... Gustavo

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Todos os dias. São eles que têm segurado a minha existência... já teria cometido uma loucura...

Dr. Oliveira Está encantado com a Sra. Lúcia Moreira... é uma forma de estar ligado à realidade... Gustavo Nos meus sonhos eu quero conquistá-la... realidade ou sonho? Dr. Oliveira Ainda não sei. Só me resta segui-lo no desenrolar dessa teia. Sonhou ontem? Gustavo Sim. Intensamente. Dr. Oliveira Conte-me.

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Marlene e Salvador tomam o pequeno-almoço. Salvador Chegaste tarde. Foi animado, o serão? Marlene Sim... o Gustavo cantou... que voz... Salvador E o Duarte? Marlene Interessante. Sempre calado... o trabalho dele é observar as pessoas... esse croissant está óptimo! Amor, me passa um pouco de leite... desse frio... que dor de cabeça... acho que bebi demais... Salvador Minha querida, parece-me que estás com ressaca... Marlene Depois chegou um casal... Salvador Eu vi. Sofia e Henrique. Foi quando saí... passa-me o café, se faz favor... Marlene Isso. Esse tal de Henrique... não parava de beber ... saíram todos e ainda fiquei, bebi mais um copo, o cara não parava de falar... Salvador Podias ter-te retirado, como fez a mulher... Marlene Amor, você já viu como amanheceu? Reparou na luz que vem de fora?

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Olha só pela janela... Que lindo!

Salvador É Primavera, definitivamente. Campo a perder de vista, tudo tão verde... cuidado com o Henrique... és nova e atraente... Marlene Meu querido, só tenho olhos para você! Salvador Eu sou velho... estou em desvantagem... Marlene Porque será que não se vê ninguém? Que esquisito! E as casas... não vejo casas, não vejo sinal de vida... Salvador O amor tece os seus caminhos... vês uma paisagem tranquila... lindíssima. Marlene É bom para namorar... Salvador Está-me a saber tão bem o café com leite... vou provar estes bolinhos... estou encantado com a paisagem... olho os campos, parece que estou no mesmo sítio, mas não, ainda agora fixei uma pequena flor e ela desapareceu... Marlene Não te sabia tão observador, amor. Tens razão, não dá para parar de comer... se for sempre assim, não vamos conseguir entrar pelas portas.... onde será que está todo o mundo? Salvador (contemplando a paisagem) A dormir. Foi a primeira noite. A excitação, a surpresa, as portas que não se abrem, os convidados, o jantar, a conversa...

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Marlene Duarte! Vem cá... se sente connosco!

Duarte Bom dia. Obrigado, Marlene. Descansaram? Marlene Salvador dormiu 12 horas... eu acordei meio ressacada... mas estamos adorando o pequeno-almoço e a paisagem é simplesmente fantástica... Duarte É verdade. E o mais curioso, é que vamos atravessar as quatro estações... Primavera, Verão, Outono, Inverno. Marlene Ah, bom! Um ano a viajar? 365 dias? Natal sem árvore e prenda? Passagem de ano sem vestido especial? Sem festa? Ah, impossível! A família do Salvador não sabe de nada... imagina um ano aqui dentro??? Salvador, me serve um café forte, por favor! Salvador Eu bem dizia que estávamos na Primavera... Duarte Marlene, não são 365 dias. É criada uma ilusão. Mas pense na sensação que provoca. É uma experiência maravilhosa... Marlene Existem mais apeadeiros, certo? O comboio vai parar mais vezes... Duarte Sim, mas você não vai conseguir sair. O Gustavo experimentou e não conseguiu... Marlene Não é isso... vão entrar mais convidados e mais convidados...

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Duarte Com limite... Marlene E aí podemos fazer uma festa! Vai poder ser Natal, Ano Novo, o aniversário do Salvador, coitadinho... Salvador Sem os meus filhos, sem os meus netos... Marlene Salvador, para que você precisa dessa família sempre atrás, hem? Estão sempre atrapalhando... Salvador Tens razão, querida, mas é muito tempo, não me avisaste... Marlene Ai querido, eu também não sabia não... Duarte, faz parte da surpresa? Duarte Claro. Gustavo e Sofia aparecem. Gustavo Bom dia! Que manhã luminosa! Acordei, espreitei pela janela e só vi verde... quilómetros de terra verde... Sofia E de vez em quando as árvores floridas, reparou Gustavo? Agora mesmo, quando vínhamos no corredor? É a Primavera! Duarte À Primavera! Ela representa a nossa promissora viagem! Sofia, onde está o Henrique?

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Sofia Ficou a dormir. Ressaca, creio eu.

Marlene Igualzinho a mim. A dor de cabeça não me larga... mas ele ainda bebeu mais, sim... eu bebia um, ele dois copos... Sofia O Henrique é assim quando se entusiasma... Marlene Oh Sofia, por amor de Deus, não aconteceu nada de mal... Sofia Querida Marlene, nunca insinuei tal coisa... Gustavo, pode passar-me o café? Está tudo com um aspeto delicioso! Gustavo É verdade... recuperemos o atraso! Marlene Duarte, me diz uma coisa... que há para fazer neste trem? Quero dizer... tanto tempo livre... se não, vamos morrer de tédio! Duarte O bar tem apenas jogo de xadrez e um baralho de cartas. É um comboio de encontro entre as pessoas. Ou não. Mas é pelo menos um comboio da verdade... tudo se irá revelar... não foi para isso que você veio Marlene? Foi você mesma que me disse, mal aqui chegou... gozar férias com o Salvador... pois aproveite... Marlene Você fala mesmo estranho, Duarte... esse negócio de encontro é legal, mas é preciso um pouco de entretenimento... Para a gente se evadir um pouquinho... Duarte Pois fuja com o Salvador. Fujam a dois. Vai ser fantástico!

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Marlene Salvador, Salvador??? Pára de olhar pela janela! Parece que estamos sempre igual. Vai amor, é um quadro bonito, mas não exagera... termina teu café... Salvador Não me apetece... Marlene Ai, Salvador, tanta migalha espalhada, meu bem, tem que tomar mais atenção! Duarte Os criados estão cá para limpar. Marlene Mesmo assim... Gustavo Falemos de coisas mais interessantes... a Sofia falava-me há pouco dos seus sonhos... Sofia (corada) Agora sou eu que estou na berlinda? Marlene Conta, Sofia! Gustavo Ela quer cantar... estudou quando era nova... Marlene Por isso você prestou tanta atenção no Gustavo...

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Sofia Sim. Nunca me atrevi. Casei com o Henrique, tivemos uma filha e dediqueime à casa, à menina. Nem no duche canto. É uma vergonha. Depois de tantos anos de estudo, a fazer recitais em todo o lado... Marlene Canto lírico? Sofia Se lhe quiser chamar assim... Marlene Mas o Henrique nunca a entusiasmou? Estranho... Sofia Ele é assim... sempre preocupado com os negócios... Marlene Oh Sofia, mas você tem que cantar para a gente... Sofia O Gustavo já me pediu. Vamos preparar um dueto? Gustavo Com todo o gosto, Sofia. Será uma surpresa para os nossos convidados. Henrique chega, com ar estremunhado. Henrique Ninguém me disse nada. A manhã acabou. Sofia, não me acordaste... Sofia Querido, ressonavas ainda... senti entrares... era tarde... Henrique Mesmo assim. Recuperava hoje. Não podemos abandonar os nossos convidados!

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Duarte Ora essa, caro Henrique. Este, entre muitas outras coisas, é também o comboio da liberdade. Estamos todos por nossa conta. Henrique Vai-me desculpar, mas não estou acordado o suficiente para ouvir frases tão filosóficas... Sofia, serve-me o café e um croissant, com pouca manteiga, por favor... Marlene Ó Henrique, você está como eu... bebemos demais... se anime! Henrique Foi bem divertido! Aqui a Marlene é uma companheirona! Salvador Quando está bem disposta é sim... Marlene Salvador, querido, você largou a janela? Salvador Quero saber como correu o serão... Henrique Muito bem. A sua mulher é a pessoa mais simpática que já conheci. Faz um amigo em qualquer esquina... Salvador Amigos, amigos, negócios à parte... Henrique Caro Salvador, devia acompanhar mais a sua mulher... ela é cheia de vida...

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Sofia Querido, já reparaste na paisagem? Henrique Este café está cheio de borras. Empregado! Não, Sofia... quero lá saber... vejo tudo verde... sei lá se é a sério! E se for um cenário? Não podemos sair daqui... Duarte Cenário? Que disparate! Acabei. Estava tudo delicioso. Passem uma boa manhã. Gustavo Faço-lhe companhia. Sofia, quer vir? Vamos até ao bar. Podíamos falar do nosso projeto... Henrique De quê? Sofia O Gustavo convidou-me para cantar com ele... para vocês, claro... precisamos de combinar... Henrique Ah, estás outras vez com essas fantasias? Vai lá, vai lá, o Gustavo pareceme ser um homem paciente... eu fico mais um pouco. Marlene Eu lhe faço companhia. Salvador Eu também. Marlene Se você não olhar tanto para a janela vou adorar. Salvador

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Que mal há em contemplar?

Marlene Quem contempla, pouco fala e eu preciso que falem comigo. Nossa, não há aqui nada para fazer! Henrique Querida Marlene, não exagere... depende da nossa imaginação... mas, contem-me... estão a gostar da viagem? Salvador Adoro a paisagem. O comboio é muito tranquilo, não faz barulho, mas a Marlene parece muito agitada. É como se a calma a irritasse. Ou se calhar é a minha presença, sei lá, não ligue, isto é conversa de velho... e os velhos só dizem disparates... Marlene (baixinho, para Henrique) Ai que velho chato! (continuando em voz alta) Ai Salvador, isso não é verdade, não! Então fui que organizei a viagem, meu bem! Era para estarmos os dois juntinhos, querido, agora você só está olhando a janela, nem olha para mim... Salvador, você está fugindo pela janela, essa é que é a verdade! Henrique Desculpem-me, mas não queria provocar nenhuma discussão... Marlene Não tem problema, não, isto são coisas que vêm bem de trás... Henrique Sim, mas eu posso retirar-me... Marlene Por favor, agora não vai embora, senão fico também olhando pela janela. E silêncio não combina comigo... Salvador

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Querida, quem se retira sou eu. Desculpem, a idade não perdoa. Preciso de ir até ao compartimento e deitar-me um pouco. Aproveitar para ler. Estejam à vontade. Henrique Não é fácil. Marlene Acredite, é bem difícil. Henrique Você está linda, hoje. E esse ar zangado fica-lhe muito bem. Tenha calma, vai tudo correr bem. Marlene Ainda bem que há uma alma simpática que diz que eu existo...

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Sofia e Gustavo falam animadamente no bar. Gustavo Já sei! Sofia Que entusiasmo! O que é que sabe? Gustavo “Just in time” Sofia Outra vez Sinatra. Gustavo Não foi só ele. Outros também cantaram este tema. (trauteando) Just in time you’ve found me just in time Before you came my time was running low Sofia I was lost the losing dice were tossed My bridges all were crossed nowhere to go Gustavo Now you hear now I know just where I’m going No more doubt of fear I’ve found my way Sofia e Gustavo For love came just in time you’ve found me just in time And changed my lonely nights that lucky day! Gustavo Está perfeito! Nem parece que esteve tanto tempo sem praticar!

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Sofia Não exagere. Temos que ensaiar.

Gustavo No meu compartimento. O seu marido não aprecia esta arte. Sofia Combinado. Olá Duarte. Junte-se a nós. Estamos a preparar uma surpresa. Duarte Vão cantar juntos. Sofia Como adivinhou? Duarte Tenho bom ouvido. Sofia Bom, podemos pensar num trio! Seria fantástico. Duarte Nem pense nisso Sofia. Sou apenas bom ouvinte e ansioso por vos ouvir. Sofia Perfeito. Tenho que ir ... nunca mais estive com o Henrique... irei ter consigo ao fim da tarde, Gustavo. Até logo! Gustavo Excelente. Lá estarei. Duarte É uma mulher encantadora... Gustavo 62


É não é? Duarte Amordaçada naquele casamento... Gustavo É verdade. Um insensível... não tem nada a ver com ela... Duarte Diga-me, caro Gustavo, é parecida com a sua, presumo, anterior esposa? Gustavo Muito. Duarte Que aconteceu? Gustavo Um acidente de carro. Eu ia a conduzir... ela e as minhas filhas... não resistiram aos ferimentos... Duarte Morte instantânea. E você? Gustavo Em coma. Meses no hospital. Saí e continuei sem conseguir lembrar-me de nada antes do acidente. A memória apagou todos os vestígios do passado. Duarte É um homem sem passado... Gustavo Se quiser ver assim... Duarte Começou de novo... mas como pedinte? E o professor de filosofia? Gustavo

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Já lhe disse, não me lembro de nada. Disseram-me realmente que era professor de filosofia. Cheguei à faculdade e não reconheci o edifício, as pessoas, os alunos... não consegui ensinar... não sabia! Arrumei as malas e vim para a rua. Cheguei a casa e não me senti bem. Desconhecia o espaço, os objetos, as paredes.... nada fazia sentido... Duarte Estou a ver.... pediu ajuda? Gustavo Psiquiatra? Duarte Por exemplo... Gustavo Não me apetecia. Desenterrar o passado, remexer na dor, vasculhar na desgraça... Sabe o que fiz? Fechei tudo à chave e saí, com a roupa que trazia. Depois atirei as chaves para um contentor que estava no caminho. Duarte Foi então que chegou à estação. Gustavo Exato. Quando o conheci, vivia debaixo daquele tecto há pelo menos dois meses... Duarte Curiosamente lembra-se do Sinatra, dos concertos a que ia... a música... parece ser muito importante... Gustavo A música tem um poder enorme... Duarte A Sofia é uma forte de hipótese de recomeço. Construir um futuro. Gustavo

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Não me importava.

No consultório do Dr. Oliveira. Lúcia e Denise conversam na sala de espera. Denise O Dr. Oliveira mudou a ordem das consultas... O Sr. Gustavo está demorando... Lúcia Não é costume... o Dr. é muito pontual... Denise E nós as duas cheias de galhos para resolver... Lúcia Sim, é verdade.... estou cheia de pressa, tenho que ir buscar a minha filha... Denise Não tem ninguém de família? Que vá buscar a menina? Lúcia Quero ser eu a ir buscá-la. Denise Que ar sério! Eu sei como é com as crianças... só tenho enteados e já são bem grandes, com filhos... mas é a maior confusão... organizar horários, leva um, pega outro... as birras... Lúcia Adoro a minha filha, não tenho esses problemas... Denise Ah, mas eu adoro criança também... só que o Ernesto era muito mais velho do que eu... e morreu coitadinho, o mês passado... a família é grande, está um pandemónio, porque ele fez testamento. Me deixou a maior parte dos

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bens... agora me perseguem com ameaça de morte... dizendo que a casa é deles, mas não é não, só por cima do meu cadáver... Lúcia Tem que ter cuidado... as ameaças podem ser sérias... Denise Por isso eu vim aqui no Dr. Oliveira. Estou pegando um esgotamento com essa confusão... Lúcia Posso-lhe pedir um favor? Denise Fale... Lúcia A casa é grande? Denise É um palácio... Lúcia Preciso de me esconder com a minha filha... será que podia ficar lá, durante uns tempos? Desculpe o descaramento, mas estou mesmo aflita... eu não vou incomodar, prometo... Denise Mas é claro! Para mim vai ser óptimo. Estou sozinha. De resto, é só a criadagem... Lúcia O Gustavo está a sair e a seguir sou eu. Ah, preciso da morada... é mesmo uma urgência... será possível amanhã? Denise Sim, não se preocupe. Aqui tem. Morada e telefone. Lúcia

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Muito obrigada, Denise. Salvou-me a vida. Tenho que entrar. Olá Gustavo! Hoje demorou muito! Gustavo Desculpe Lúcia. A conversa hoje estendeu-se... está tudo bem consigo? Lúcia Sim, obrigada. Estou cheia de pressa. Adeus. Gustavo O que se passa hoje com ela? Denise Está com um problema grave... mas eu não sei de nada... Gustavo Sim, parece-me muito alterada.

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Lúcia começa a sessão de terapia. Lúcia Acabei de cumprir o que me pediu na última sessão! Dr. Oliveira Relembre-me... Lúcia Sair de casa! Pedir abrigo a alguém praticamente desconhecido! Acabou de acontecer, agora, na sala de espera! Dr. Oliveira Lúcia, tenha calma. Sente-se bem? Lúcia Doutor, começo a sentir-me aliviada... vou para lá amanhã... para a casa da Denise! Dr. Oliveira Da Denise? Lúcia Sim, parece que mora num palácio... por mim até um casebre servia nesta altura! Dr. Oliveira Então conheceram-se lá fora... Lúcia Sim, Doutor... mas pense comigo... é a situação ideal, o Carlos nunca nos háde encontrar... qual é o próximo passo? Dr. Oliveira

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De facto... talvez não devesse ser tão precipitada. Já amanhã?

Lúcia É menos uma sova que levo. Ele está cada vez pior. E além disso, Doutor, não sei mentir. Iria desconfiar assim que olhasse para a minha cara. Sei que é uma declaração de guerra, mas não há outra solução. Diga-me, qual é o próximo passo? Dr. Oliveira O próximo passo é deixar que ele descubra, tenha os seus ataques de raiva, expluda contra as paredes. Vai demorar uns dias. Depois telefona-lhe e explica-lhe o que ele nunca quis ouvir. Vai ouvir ameaças terríveis. Tem que se aguentar e nunca, mas nunca marcar um encontro. O telefone é óptimo para conversar. Ele irá acalmar quando perceber que não existe alternativa. E então pode começar um processo mais civilizado de divórcio... Lúcia Será que corro o risco de perder a custódia da menina? Sempre vou abandonar o lar... Dr. Oliveira É uma questão de vida ou de morte, Sofia... ele é muito desequilibrado, violento... você e a sua filha correm riscos sérios... tudo isso irá ser analisado mais tarde, em tribunal... Lúcia Tem razão. Por falar nela, tenho que ir buscá-la... Dr. Oliveira Espere... uma última pergunta... não conhece por acaso ninguém chamado Henrique? Lúcia Não... Porquê? Dr. Oliveira

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Nenhuma razão em especial. Tenho tropeçado nalgumas coincidências, bom, enfim, que a ciência não consegue explicar... até à próxima sessão, Lúcia. Tenha cuidado. Lúcia Obrigada, Doutor. Adeus. Dr. Oliveira D. Eugénia, o sr. Gustavo ainda está aí? D. Eugénia Sim, Doutor, está na sala com a D. Denise. Dr. Oliveira Mande-o entrar. Preciso de falar com ele. D. Eugénia Sr. Gustavo, o Doutor precisa de falar consigo. Gustavo Outra vez? Este consultório hoje está muito agitado. Olá Doutor... a nossa amiga está muito perturbada... Dr. Oliveira É verdade. Mas ele não se chama Henrique. E o caso é muito mais dramático... hoje necessito que me conte um pouco mais dos sonhos. São peças que ando a encaixar... Gustavo Compreendo... sonho demais... sinceramente não sei o que farei à minha vida quando estes sonhos acabarem. Dr. Oliveira Nessa altura, veremos. Conte-me, por favor.

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Marlene e Henrique continuam a conversar na sala das refeições. Sofia chega. Sofia Olá. O pequeno-almoço é eterno, para estas bandas. Fui ter contigo ao compartimento, mas não estavas... Henrique Nada é eterno. Já almoçamos... estranhei que não tivesses aparecido... Sofia Podias ter tido a delicadeza de me procurar. Henrique Querida Sofia, não quis interromper o vosso ensaio. Não é para fazer uma surpresa? Sofia Apenas conversámos sobre o que iríamos fazer. A seguir é que vamos ensaiar. Henrique Vês? Estás muito ocupada! Marlene Mas que bom, Sofia! Ai, estou ansiosa pela surpresa. Ao Gustavo, eu já o ouvi, sim, agora você, eu não faço a menor ideia! Está um calor aqui... mas a ventoinha está ligada... Henrique Já olhou pela janela? Marlene Que estranho... o verde desapareceu de repente... agora vejo uma cor meio amarelada, fixe melhor, Henrique...

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. Henrique Os campos estão a secar... Sofia Ainda não perceberam? Entrámos no Verão! Acho melhor a Marlene chamar o “cara” para aumentar o ar condicionado... Marlene Que coisa mais esquisita! Você reparou, Henrique? Foi de repente! Sofia Divirtam-se. Tenho que ir ensaiar. Vemo-nos ao jantar. Marlene Devia espreitar o Salvador. Não sei se o pobrezinho vai aguentar o calor. Henrique Disparate, Marlene! Isto não passa de uma ilusão! A Primavera durou dias, o Verão provavelmente vai pelo mesmo... e o resto das estações deverão passar também com rapidez. O Salvador está bem, sossegado no quarto. Deixemo-lo... Marlene Sim, você tem razão. Sou uma exagerada. Henrique Está tão longe de mim...chegue-se mais um pouco... isso. Marlene Você tem um ar forte. Vigoroso. Gosto disso num homem. Henrique Obrigado. Reparei em si assim que chegou. A forma como anda, como se movimenta, a sua sensualidade... tem-me perturbado, confesso. A Marlene não me é nada indiferente... Marlene

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Já tinha reparado. Você me está dando volta à cabeça... que beijo gostoso... e a Sofia?

Henrique O Salvador dorme, a Sofia canta. Que mais podemos ambicionar? Marlene Não fale, não fale... me beije... Sofia bate à porta do compartimento de Gustavo. Sofia Sou eu. Gustavo Que almoço rápido! Sofia Não cheguei a almoçar... Gustavo E o Henrique? Sofia Não se perde. Gustavo Percebo. Porque não vamos até ao bar e comemos uma sandes? Eu fiz isso antes de vir, mas acompanho-a novamente. Sofia Perdi a fome...vamos cantar... estou a precisar disso... Gustavo Você merece o mundo aos seus pés... Sofia

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Pois tenho um marido que não o reconhece...

Gustavo Venha cá... Sofia O que está a querer dizer? Gustavo Não me apetece falar... Sofia Gustavo??? O Duarte? E se ele aparece por aí? Que vergonha! Mas eu... eu... só queria cantar... Gustavo... o que é que está a acontecer??? Gustavo O que devia ter acontecido há muito tempo... Sofia... Sofia Gustavo... tenho receio... acho que é melhor ensaiarmos... o que é que os outros irão dizer? Gustavo Minha querida, tem que acabar com esses medos. Ninguém manda em si. O que é que os outros têm a ver com a sua vida? Sofia Tem razão. Sou uma cobarde. Gustavo Também não exagere. O seu marido não a respeita... mas o problema está nele, não em si. Se calhar está na altura de tomar uma decisão... Sofia Não sei se ele vai acatar... que estranho...

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Gustavo O quê?

Sofia Esta viagem, este comboio... seria para as pessoas se reencontrarem, mas não é isso que observo... Gustavo O Duarte falou de ambas as possibilidades, lembra-se? Encontro ou desencontro. Sofia Desencontro total. Gustavo A seguir ao desencontro pode surgir o encontro. Uma nova oportunidade. Sofia Tem toda a razão. Vou arranjar coragem para falar com ele... se bem que tem estado muito agressivo ultimamente... não era assim... Gustavo As pessoas mudam. Sofia Receio pela miúda. Vai querer ficar com a filha. Espera-me uma guerra. Gustavo Dê-me um beijo. Nessa altura estarei ao seu lado. Sofia For love came just in time you’ve found me just in time And changed my lonely nights that lucky day Just in time Gustavo

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Just in time!

Salvador aparece na sala das refeições. Salvador Só agora acordei. Tenho a sensação de que dormi um século... Marlene (compondo a blusa e afastando-se de Henrique) Amor querido, dormiu o tempo de uma estação... já estava ficando preocupada... olha só pela janela... Salvador Reparei da janela do compartimento. Tudo amarelo. Estamos no Verão. A paisagem é muito interessante. Campos a perder de vista, uma árvore de vez em quando, como na Primavera... é como um filme que passa uma e outra vez... só a cor muda... Marlene Que observador! Henrique Nunca tinha pensado nessa hipótese... sabendo o tempo que a “Primavera” durou, é só multiplicá-lo por quatro e temos a duração da nossa misteriosa viagem... Salvador Com sua licença... tenho que me sentar nesse lugar aí, ao pé da janela... quem será que faz isto? Marlene Isto o quê? Salvador Quem fez o filme? Como é que consegue parecer tão real? Será que estamos num simulador? Marlene

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Não Salvador, agora a sua imaginação está indo longe demais...

Henrique Impossível. O comboio é silencioso, mas ouve-se e sente-se alguma trepidação... quanto à paisagem... parece-me bem real, apesar de ser sempre a mesma... bonita e tranquila... o tempo não é o das estações, mas também estamos num comboio mágico... Marlene É isso mesmo Salvador. Este é um comboio mágico. Salvador Afasta-te Marlene, deixa-me ver... Marlene (em voz baixa para Henrique) Eu acho que o velho está delirando... vamos até ao bar, ele nem vai notar... vai passar o resto do tempo olhando por essa janela... Salvador... vou até ao bar... você vem? Salvador Ainda agora cheguei aqui... curioso... aquela árvore cresceu, desde a Primavera... consigo olhá-la durante muito tempo. O comboio anda a uma velocidade lenta... Marlene Estive aqui o dia inteiro. Já tenho as pernas dormentes... Henrique É verdade. Temos que as desentorpecer. Salvador Que intrigante... conto mais árvores agora do que na Primavera... e os campos não são tão planos... como é que eles fazem isto? Marlene

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Henrique, vamos andando de mansinho... ele nem vai dar pela nossa falta...

No bar. Duarte Hoje temos concerto. Marlene Sempre é hoje? Ai, meu Deus, nem arrumei o cabelo direito... me perdi na conversa o dia inteiro... Duarte É sinal que esteve bem acompanhada... Marlene Aqui o Henrique é demais... me diz uma coisa, Duarte, o traje é de gala? Tenho que usar os meus vestidos chiques! Duarte A Marlene está sempre bonita. Vai ficar ainda mais bonita... Marlene Henrique, se calhar é melhor voltar para o pé da Sofia, mesmo... dá um apoio a ela e veste um fato mais elegante... eu própria vou tomar conta do Salvador, senão ele não vai desgrudar daquela janela... nossa, nem a barba fez! Henrique Sim, a Sofia deve estar a precisar de mim. Encontramo-nos ao jantar. Marlene Até logo. Duarte Parece gostar de si... Marlene

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Está complicado. O Salvador finge que não entende e agora parece meio tonto... é só uma atração... uma atração bem forte, por sinal... Duarte Até logo, Marlene. Marlene e Salvador são os primeiros a chegar à sala das refeições. A seguir entram Duarte e Gustavo. Marlene Boa noite a todos! Mas que bem acompanhada eu estou! Duarte A Marlene está lindíssima! Marlene Obrigada, Duarte! E você, elegantíssimo nesse fato, nem parece um intelectual... Duarte Escritor. Marlene O romancista! Não esquece de me colocar na sua história... Duarte Fique descansada. O Salvador está com um ar abatido... Marlene Ele não tem dormido. Nem deu para fazer a barba, está muito cansado... Gustavo Estamos entre amigos... a Sofia já cá devia estar. Combinámos um pouco antes da hora habitual. Marlene Para ensaiar... Gustavo Para ela sossegar... estava nervosa.

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Marlene Imagina! Nervosa? Eu não entendo nada de música! Pode cantar desafinado, que nem vou notar! Duarte Reservei mesa para seis. Vamos sentar? Marlene Acho que é melhor. Salvador, vem meu bem. Passa primeiro, para ficar olhando pela janela. Duarte Ele quase não fala. O que se passa? Marlene Nada. Está simplesmente fixado na paisagem, nas estações... Duarte Curioso. Marlene Desligou de mim. Namorar ficou fora de hipótese... Duarte Se calhar não era esse o propósito... Marlene Agora que você fala nisso, começo a refletir sobre o assunto. Afinal, fui eu que organizei essa viagem. Estava sempre cada um para o seu lado. Duarte Acha que a viagem modificou as suas intenções? Marlene Não sei... a relação não estava bem, mas aqui foi piorando... de repente a situação ficou muito clara. Duarte

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Ele nem ouve a conversa. É como se tivesse emigrado para outro mundo.

Marlene Não consigo explicar. Mas estou saturada... sou uma mulher jovem, cheia de energia... quero outro clima na minha vida. Gustavo Estou preocupado com a Sofia. Já devia ter chegado. O que se terá passado? Henrique entra na sala. Henrique Boa noite, caros amigos! Esta vai ser sem dúvida uma grande noite! Acabámos de entrar no Verão, segundo percebi. Comemoremos! Duarte A sua mulher ainda não apareceu... Henrique A Sofia? Demora séculos a arranjar-se... deixei-a no duche. Depois são os cremes, a maquilhagem, escolher o vestido... caro Duarte... não conhece as mulheres? Duarte Julgo que sim. Henrique Desculpem o atraso. Podemos pensar em escolher a ementa. Gustavo Seria simpático esperar pela Sofia... Duarte Vamos chamá-la? Se quiser, eu vou. Gustavo

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Eu vou. Henrique Não é necessário. Insisto, ela está atrasada. Um brinde? Todos (excepto Salvador, que permanece alheado) Brindemos a esta magnífica aventura!

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IIIº Ato No consultório do Dr. Oliveira. D. Eugénia Dr. Oliveira, passa-se algo fora do normal... a Sra. Lúcia Moreira está a faltar à sessão marcada. D. Oliveira Já a contatou? D. Eugénia Não consigo. O telemóvel está desligado. Não é habitual. A senhora parecia tão aflita.... nunca faltou. D. Oliveira Telefone à Sra. Denise Camargo. Desconfio que deve saber onde ela está. D. Eugénia Mas a Sra. Denise está na sala de espera, Doutor. À conversa com o Sr. Gustavo. Ambos têm sessões marcadas para hoje. D. Oliveira Mande-a entrar. D. Eugénia Sra. Denise Camargo. D. Oliveira Olá Denise. A Lúcia está a faltar à sessão. Não me quero intrometer, mas sei que ela lhe pediu abrigo. Sabe onde está? Denise Essa história está muito estranha... a Lúcia veio realmente para a minha casa, junto com a filha, que é um amor, coitadinha, vinha assustada como um

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coelhinho, não sei o que se passou, mas o tal de marido não deve ser coisa boa, pois elas têm pânico dele!

D. Oliveira Viu ou ouviu algo que lhe levantasse alguma suspeita? Denise Eu ouvi uma conversa ao telefone, sim. O tom era muito desagradável... ela tremia dos pés à cabeça... um dia até desmaiou depois de desligar. Penso que de medo. Esse homem deve ser um terror... D. Oliveira E depois? Continuam em sua casa? Onde estão? Denise Para mim é um mistério. Eu lhes dei todo o conforto possível, percebi que era uma situação muito delicada, perigosa mesmo... mas um dia elas partiram sem avisar... não tive mais notícia... até hoje... D. Oliveira Ela nunca lhe contou o problema? Será que ele a descobriu? Denise Nem precisava, Doutor. A gente lia nos olhos dela... e se visse a filha... provavelmente o marido descobriu onde ela estava... mas é um inferno para a pobrezinha, sempre em fuga... é caso de polícia... D. Oliveira Não podia estar mais de acordo. Mas é preciso descobrir o paradeiro dela. Só então a poderemos ajudar. Denise O Gustavo deve conseguir deslindar o mistério... com todos esses sonhos premonitórios... que confusão... parece que também sou uma personagem importante, uma tal de Marlene... é incrível a semelhança.... como é possível? D. Oliveira

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D. Eugénia, mande entrar o Sr. Gustavo. Denise, se não se importa, espere lá fora. D. Eugénia Sr. Gustavo, queira entrar, por favor. Gustavo Dr. Oliveira, Dr. Oliveira... D. Oliveira O que se passa? Tenha calma... sente-se... respire fundo... Gustavo Os sonhos... os sonhos... D. Oliveira Conte... Gustavo A Sofia... não aparece para o concerto que combinámos... estou à espera, todos estamos à espera... fez-se um brinde estúpido... sem a presença dela... o Henrique não permitiu... sonhei mais ainda... tenho receio... D. Oliveira Por favor, continue.

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No comboio, na sala das refeições. Gustavo Meus amigos, passa-se algo de grave... bati à porta do compartimento da Sofia. Ninguém atende. Tentei abrir a porta, mas está trancada por fora... chamei-a... nada... gritei... nada. Calei-me para ouvir... só o barulho da água a correr... Henrique... temos que ir lá, deve ter a chave para abrir por fora. Henrique Estranho... não tranquei a porta! Nem seque trouxe a chave. Porque o iria fazer? Deixei-a no duche... impossível! Gustavo Nesse caso temos que falar com um dos funcionários para obter uma chave suplente... senão, arrombamos a porta! Marlene Que horror! Pobrezinha da Sofia! Que lhe terá acontecido? Salvador Que interessante... acabámos de entrar no Outono! As folhas das árvores caem, cobrem o chão, as terras... o ar arrefeceu aqui dentro. O céu cobre-se de nuvens... que mudança súbita! Isto só pode ser obra de um simulador! Duarte É melhor ir vermos o que se passa... Gustavo sai para pedir uma chave suplente e entra novamente. Gustavo Não existem mais chaves. Aquela era a única! Duarte Teremos que arrombar a porta. Henrique

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Não resta outra solução Marlene Eu quero ajudar. Vamos lá! Salvador Anoitece depressa neste comboio. Tudo se passa muito rápido... as estações... já quase não consigo distinguir as árvores. Está escuro. É como se os dias fossem horas e as horas se transformassem em minutos... e nós não envelhecemos, curiosamente... tenho fome. Não são horas de jantar? Onde estão todos? Marlene! À porta do compartimento de Sofia. Gustavo, Henrique e Duarte arrombam a porta. Ouve-se a água a correr no duche. Sofia está caída, inerte, na banheira. Henrique Saiam, ela está nua, é a minha esposa, haja decência. Gustavo (dando-lhe um empurrão para o tirar do caminho) Precisamos de socorrê-la! Imediatamente! Deixe-se de falsos pudores! Duarte (aproximando-se de Sofia e tomando-lhe o pulso) Está morta! Gustavo Como? Afogada? Não posso crer! Como é que alguém se pode afogar numa banheira? Duarte Estrangulada! Marlene Ai meu Deus, Nossa Senhora! Henrique Você não é médico. Qualquer um poderia ter entrado. Eu não tranquei a porta, juro!

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Duarte Quem fez isto, tinha a chave. Não existe mais nenhuma, Henrique... só a sua!

Henrique Não sei se os funcionários dizem a verdade, podia existir uma cópia, estar nas mãos da Sofia, ela ter emprestado ao Gustavo, por exemplo... para combinarem os seus preciosos ensaios! Gustavo (espetando um soco em Henrique) Mentiroso! Seu monstro! Não merecia a Sofia... uma alma tão delicada! Um anjo sublime! Duarte Meus amigos, temos que manter a calma. Não se esqueçam, não podemos sair até ao final da viagem. O corpo da Sofia vai ter que permanecer aqui. O melhor é deixá-la como está, não tocarmos em nada, até a polícia intervir. Gustavo Está louco, Duarte! Vamos deixar a Sofia apodrecer aqui? Não há maneira de interromper esta obsoleta viagem? Este comboio não consegue parar? Duarte Infelizmente não, caro amigo. Uma vez iniciada a viagem, os passageiros só descem na última estação. São as regras do jogo. Marlene Perdi o apetite. Acho que não vou conseguir olhar mais pela janela. Não quero saber de paisagem, de luz do dia, de conversa, de nada. Só espero que esta maldita viagem acabe rapidamente. Duarte Temos que esperar pelo Inverno, o Outono acabou de chegar. Gustavo Estou farto das suas falinhas mansas, Duarte. A viagem está a passar dos limites. Temos um homicídio em mãos, um suspeito à sua frente e você dizme que temos que fingir como se nada se tivesse passado? Endoideceram todos?

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Duarte Resolva o assunto, Gustavo. Vai chegar à minha conclusão. Já tentou sair uma vez para fumar um cigarro. Lembra-se? Gustavo É um assassinato! Marlene Coitadinha, coitadinha! Duarte Não tem provas. Gustavo Sim, a Sofia deitou as mãos ao pescoço e apertou-o até ficar sem vida. Auto sufocou-se. Genial! Duarte Quer então prender o Henrique? Atá-lo a uma cama, presumo? Gustavo Pelo menos não voltaria a matar... qualquer um de nós pode vir a ser o próximo... Henrique Vontade não me falta... de lhe calar essa boca imprevidente... seria um descanso para todos! Gustavo (cansado) Muito bem. Aguardemos o Inverno. O Henrique tem que sair daqui. Temos que fechar o compartimento até este inferno terminar. Eu fico com a chave. Duarte Como quiser. Marlene E agora? Como vai ser? Ninguém vai ter ânimo para viver!

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Gustavo Aguente-se Marlene, pior foi para a Sofia! E era este o presente de aniversário de casamento! Marlene Um presente envenenado! Henrique Nunca pensei que acabasse assim! Juro, juro! Gustavo Cale-se! Estou farto das suas juras! Espero que se faça justiça... Duarte Regressemos à sala das refeições. Temos que continuar até ao final da viagem da melhor forma. Marlene Já disse... perdi o apetite... Duarte Venha comigo. Vamos tomar um chá. O tempo está a arrefecer. Na sala das refeições Marlene Salvador, Salvador, a Sofia está morta! Salvador O tempo precipita-se... o tempo das estações... não tarda, está o Outono a dar lugar ao Inverno... a chuva não cessa, os dias são mais curtos, já vi inclusive neve... é quase Natal... Marlene Não adianta... ele já não parece deste mundo... partiu para lugar incerto... Gustavo Continua vivo...

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Marlene Morto-vivo. Foi o que esta viagem lhe provocou... fugiu da vida... Duarte Se calhar era esse o seu destino... Marlene Porque é que o comboio começou a abanar dessa maneira??? Henrique Começou a acelerar... Gustavo Parece descontrolado... Duarte Duvido... ainda falta algum tempo para terminarmos a viagem... deve ser impressão vossa... Marlene Está cada vez pior!!! Gustavo Vai desenfreado! Henrique Parece desgovernado! Duarte Acalmem-se! Marlene Ai!!!! Não há piloto!!! Vamos chocar!!!! Duarte Segurem-se!

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Dá-se uma explosão enorme. As carruagens tombam, partidas, desfeitas. O silêncio paira sobre o fumo.

No consultório do Dr. Oliveira. Gustavo Acabou. Tudo acabou. Foi a semana passada. Depois da explosão nunca mais sonhei. Dr. Oliveira Tem a certeza? Nem um fragmento? Às vezes esquecemos o que sonhamos... Gustavo Nem uma imagem... estou perdido... eram a minha vida! Dr. Oliveira Calma. Temos que aprender a viver com a realidade. Gustavo A Lúcia? A Denise? Os destinos? Sempre se confirmam? Como no sonho? Dr. Oliveira Muito semelhante. A Lúcia desapareceu, sem deixar aviso... corre perigo... a Denise está lá fora, julgo eu. Gustavo A Lúcia desapareceu... não tarda vamos ter más notícias. Não sei o que fazer à minha vida... tenho uma casa em branco, uma vida em branco... Dr. Oliveira Tem que recomeçar... Gustavo Estou cansado... Dr. Oliveira

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Vemo-nos para a semana. Gustavo Adeus, Doutor. Gustavo sai do consultório. Na sala de espera não está ninguém. Denise não esperou pela sua vez. Também a recepção está vazia. D. Eugénia ausentou-se. Gustavo estranha o silêncio súbito. Parte, atordoado, em direção incerta. Na Estação Central. Mendigo (cantarolando “My way” de Sinatra) And now, the end is near And so I face the final curtain My friend, I'll say it clear I'll state my case, of which I'm certain (As pessoas viram-se, olhando para o mendigo) I've lived a life that's full I've traveled each and ev'ry highway But more, much more than this I did it my way (Alguns riem-se, outros escutam-no atentamente) (As pessoas viram-se novamente para o guichet, esperando a sua vez para comprar bilhete) Pois... ele comigo não joga xadrez nem fala da Bíblia... é isso mesmo que vocês estão a ouvir... se for o filho ou um amigo a convidá-lo para jogar xadrez ele joga... mas comigo não... claro que é um jogo de inteligência... estratégia... mas pelos visto eu não estou vestido para isso... como é que eu vou conseguir pensar??? Nem lhe vai dar gozo... derrotar-me tão facilmente... é preciso um adversário à altura... passa-se o mesmo com a Bíblia... não discute comigo. Recusa-se. E ensina aos outros. Mais uma vez, não devo estar vestido para isso... não faz mal. Eu cá me arranjo. I did it my way... MY WAY!!!! (Passa um casal. Colocam-se numa fila para a bilheteira. O mendigo interpela a senhora) Desculpe. A senhora é portuguesa? Do you speak portuguese? Senhora (meio curiosa, meio desconfiada)

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Sim, sou portuguesa.

Mendigo Ah. Ainda bem que responde. As portuguesas são mal-educadas. Sempre que as cumprimento viram-me a cara. Uma vez estava em Marselha e saí com uma rapariga loura, bonita, sabe? Pedi-lhe um beijinho e disse-lhe: “Vous êtes três belle!” Sabe o que me respondeu? Senhora Não... Mendigo “Vai-te embora, senão chamo imediatamente a polícia!” Sou um homem de Deus. Nunca lhe iria fazer mal. Uma portuguesa emigrante. Malcriadas, é o que elas são. Senhora Nem todas. Só algumas. Mendigo A senhora não é. De facto, até é bem simpática. A minha mulher era parecida consigo. Marido Querida, temos que ir. A fila está a andar rapidamente. Mendigo Aliás, era parecida consigo em duas coisas... Uma era o tom de pele... branca, branca como nunca vi... e depois detestava apanhar sol... não é como eu, que sou filho dele... nem sei qual a minha cor de pele original... mas sim, noutros tempos era mais branco de que hoje, mas ela... ela era inacreditável... às vezes comparávamos os nossos tons de pele. Eu era preto ao pé dela. Senhora Eu também não sou assim tão branca... só um bocadinho... e gosto de me bronzear, estar ao sol... é tão bom...

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Marido Querida... vamos... está quase a chegar a nossa vez.

Mendigo O cabelo dela era parecido com o seu. O mesmo corte. Senhora A sério? Mendigo Verdade. Só que eu disse-lhe para fazer madeixas. Ficou ainda mais bonita. Senhora E onde está essa bela esposa? Mendigo Oh, minha senhora, não lhe consigo explicar a minha vida num minuto. Senhora Presumo que desapareceu...morreu... talvez o senhor não estivesse aqui se ela ainda estivesse consigo... Mendigo Vá... vá... tem que partir... olhe o seu marido... está aflito. Gostei de a conhecer. É muitíssimo educada e é uma senhora linda. “Bonne voyage!” Senhora Obrigada. Adeus Sr... Mendigo Gustavo. Apenas Gustavo. Adeus Sra... Senhora Sofia. Adeus. Gustavo

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Há mulheres que valem a pena! A beleza está diante dos nossos olhos, a cada instante... às vezes andamos distraídos... (falando para um qualquer passageiro) Hello Mr... did you see that woman? Unfortunately, she’s married... marié... Ne comprenez-vous? Intouchable... C’est la femmme de l’autre... (cantarolando) I've got you under my skin I've got you deep in the heart of me So deep in my heart that you're really a part of me I've got you under my skin. (O mendigo chama a atenção de um passageiro, que está no fim da fila) Passageiro Parece gostar muito de Sinatra. Só pode ser um conhecedor. E que afinado que canta. Parabéns pelo bom gosto. Gustavo Obrigado senhor. Apenas gosto de viver. Agradeço a Deus cada dia que passa e tento gozá-lo da melhor forma... Passageiro Não nasceu aqui certamente... quero dizer... à mercê do sol e do acaso. Não adotou as paredes altas da estação como abrigo. Pelo menos desde sempre... Gustavo O senhor é observador. Repara nos outros. Cada vez há menos pessoas assim. Normalmente andam de cara pregada no chão. Cheios de pressa e embrenhados nos seus pensamentos. Passageiro Tem razão. Vivemos numa época de grande individualismo. Um contra-senso, quando ao mesmo tempo se querem alargar fronteiras entre países e gentes... Gustavo Há anos que vagueio sozinho... talvez me dessem alguma mãozinha se me portasse como um pedinte normal... tenho a marca imunda das roupas esfarrapadas... mas depois abro a boca... e todos se afastam... não tenho lugar nesta sociedade... também não quero saber....

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Passageiro Teve uma educação esmerada... o seu discurso... o seu pensamento... fala línguas na perfeição... viajou muito... como veio parar aqui? Gustavo Como já disse à bela senhora lá atrás, é uma longa história. Não se conta no tempo que o senhor vai demorar na fila para comprar o seu bilhete. Desculpe. Passageiro Tem ar de quem gosta de viajar... vaguear por vaguear, porque não apanha o comboio comigo? Vá lá, pago-lhe o bilhete e vai ter tempo para me contar a história da sua vida... Gustavo É muita generosidade sua, senhor. Mas viajei muito, recentemente... agora apenas quero ter a certeza de que existo. E a minha história... não lhe iria interessar... é igual a muitas outras. Boa viagem! Passageiro Tem a certeza? Olhe que é uma proposta única... Gustavo Nunca tive tanta certeza. Esta é a minha casa. Mais uma vez, obrigado.

FIM

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