IMAGINÁRIO, HISTÓRIA ORAL & TRANSCENDENTALISMO

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COLEÇÃO CULTURA

DE

PAZ

E

MEDIUNIDADE

IMAGINÁRIO, HISTÓRIA ORAL & TRANSCENDENTALISMO MITOCRÍTICA DOS ENSINAMENTOS DO ESPÍRITO PAI JOAQUIM DE ARUANDA ADILSON MARQUES


© do autor – 2011 Direitos reservados desta edição RiMa Editora

M357i

Marques, Adilson Imaginário, história oral e transcendentalismo – mitocrítica dos ensinamentos do espírito Pai Joaquim de Aruanda / Adilson Marques – São Carlos: RiMa Editora, 2011. 148 p.. ISBN – 978-85-7656-205-4

1. Fenomenologia mediúnica. 2. Imaginário. 3. Espiritualidade. 4. Animagogia. 5. Psicosofia. 6. Mitocrítica. 7. Espiritologia. I. Título. II. Autor.

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Dedico este trabalho a todos que acreditaram em sua realização, independentemente do plano existencial em que se encontram, e àqueles que tentaram impedi-lo, servindo de instrumento divino ao colocar os obstáculos que eu precisava transpor e tornar a confecção dessa obra muito mais estimulante, prazerosa e significante.



AGRADEÇO Ao médium Firmino José Leite, ao “espírito” Pai Joaquim de Aruanda e demais integrantes do projeto Homospiritualis. Sem vocês esta pequena “flor de lótus” não desabrocharia no lodo do preconceito e da intolerância que envolvem o estudo da mediunidade e do imaginário no Brasil.



COLEÇÃO CULTURA

DE

PAZ

E

MEDIUNIDADE

A coleção Cultura de Paz e Mediunidade foi idealizada para divulgar as sete pesquisas realizadas pelo projeto Homospiritualis, entre os anos de 2001 a 2010. Elas não foram feitas dentro das Universidades, porém, utilizaram heurísticas próprias das Ciências Humanas. A mediunidade foi inserida no projeto Homospiritualis por volta de 2001, após a visita de dois médiuns kardecistas ao Centro de Estudos e Vivências Cooperativas e para a Paz, um local onde diferentes atividades eram ofertadas à comunidade e grupos de estudos se reuniam. Com a inserção destes dois novos participantes, a fenomenologia mediúnica se tornou a ferramenta principal para as pesquisas que abordaram os seguintes temas: a Apometria, a Umbanda, as técnicas de desobsessão, as filosofias orientais etc. Em 2003, o projeto criou uma ONG para servir de laboratório para as pesquisas: a ONG Círculo de São Francisco, encerrada após a conclusão das mesmas. Apesar de utilizar a suposta comunicação com os espíritos como recurso metodológico, é importante esclarecer que o projeto Homospiritualis não tem nenhuma posição fechada sobre o fenômeno. Buscando conhecer as interpretações sobre esta manifestação psíquica, encontramos seis diferentes hipóteses: 1. a mediunidade é fraude, charlatanismo; 2. a mediunidade é uma patologia mental; 3. o médium manifesta durante o transe informações presentes em seu próprio inconsciente; 4. o médium manifesta informações presentes no inconsciente coletivo da humanidade; 5. o médium é um instrumento do demônio; 6. o médium transmite informações de seres incorpóreos, os espíritos dos mortos.


Apesar da existência das seis teorias acima e, possivelmente, de outras que não conhecemos, as pesquisas realizadas no projeto Homospiritualis não se preocuparam em teorizar sobre esse assunto, concentrando o seu esforço no conteúdo das mensagens transmitidas pelos médiuns que participaram do projeto. Assim, através da mediunidade coletamos informações e dados que foram interpretados utilizando vários recursos e métodos das pesquisas qualitativas em Ciências Humanas como a História oral, a Pesquisa-ação, a Etnografia, a Mitocrítica etc. Este campo de pesquisa, original e que abre uma nova perspectiva acadêmica, recebeu, de nossa parte, o nome Espiritologia ou Ciências do Espírito.


SUMÁRIO Introdução ................................................................................. 11

Parte I – A História Oral com os Espíritos: a Espiritologia ...... 19

A constituição de uma ciência pós-moderna ............................ 23 A espiritologia e sua cientificidade ........................................... 37 A história oral e a mitocrítica durandiana aplicada ao discurso do “espírito” pai Joaquim de Aruanda ................... 47

Parte II – Desvelando o Discurso Mítico-espiritualista de Pai Joaquim de Aruanda ....................................................... 55

As constelações de imagens noturnas no discurso de Pai Joaquim de Aruanda ....................................................... 63 Conclusão ................................................................................ 139 Bibliografia consultada ............................................................ 144


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INTRODUÇÃO “é ao nível do paradigma que mudam a visão da realidade, a realidade da visão, o rosto da ação e que, em suma, muda a realidade” Edgar Morin Este livro começou a ser delineado em 2005 quando me deparei com algo extraordinário do ponto de vista antropológico e sócio-cultural: um “preto-velho”, ou seja, um “espírito” que, em tese, vivenciou uma encarnação com escravo, e que costuma se manifestar e atender consulentes nos chamados “terreiros de umbanda”, fazendo palestras públicas pela internet. Tratava-se, sem dúvida, de algo inusitado, pois, quando se fala em “preto-velho” nos vem à imaginação um terreiro de umbanda e um médium sentado em um tronco de árvore, com as costas encurvadas, segurando em uma das mãos um cachimbo enquanto sua “entidade” dá conselhos a um dos milhares de consulentes que vão atrás de uma palavra de afeto e de consolo espiritual. Com sua voz calma e pausada, a “entidade” costuma falar das dificuldades e sofrimentos que vivenciou na Terra como escravo e do significativo aprendizado que obteve com aquela experiência. Dessa forma, a “entidade” procura sempre transmitir ânimo e boas vibrações ao consulente desesperado por não ter emprego, amor, dinheiro etc. Portanto, um “preto-velho” na internet era, de fato, uma “imagem fora do lugar”. E o que impressionava também era que esse “preto-velho” respondia questões dos internautas sobre assuntos os mais variados: as epístolas do apóstolo Paulo, as lições de Krishna para Arjuna, os Sutras budistas, a Oração de São Francisco, as parábolas do Cristo e até sobre O Evangelho de Tomé. Além disso, o “espírito” afirma ter vivido na época do rei Salomão e que o viu escrever o texto bíblico Eclesiastes. – 11 –


Naquele mesmo ano entrei em contato com Firmino José Leite, o médium que dava “passagem” ao “espírito” para saber da possibilidade de entrevistar “pai Joaquim de Aruanda”. Com sua resposta afirmativa, organizei entre os anos de 2005 e 2007, oito entrevistas com o “espírito” na cidade de São Carlos/SP. Todas foram gravadas em vídeo, totalizando 32 horas de gravação sendo, aproximadamente, 9 horas com ensinamentos do entrevistado sobre a Umbanda, religião medianímica na qual os “pretosvelhos” atuam. Em outros encontros, o “espírito” respondeu questões relacionadas aos ensinamentos de Buda e, nas restantes, sobre a caridade e o ecumenismo. Também acompanhei algumas das viagens do médium por cidades como Uberlândia, Goiânia, Campos do Jordão, Curitiba e outras, onde o “espírito” também fazia palestras ao “vivo”, através da mediunidade inconsciente de Firmino José Leite. Tais palestras costumam acontecer em centros espiritualistas que aceitam a manifestação de “pretos-velhos” e, até mesmo, nas casas das pessoas que o convidam. Como salientei, as entrevistas foram gravadas em vídeo e boa parte desse material já está disponível para consulta na Internet, no seguinte endereço: http://youtube.com.br/homospiritualis. Disponibilizei vídeos que mostram o momento da incorporação (transe mediúnico), que até dezembro de 2010 já havia sido assistido por mais de 150 mil pessoas, as respostas do “espírito” aos nossos questionamentos etc. É importante salientar que o médium, ao voltar do transe, afirma não ter nenhuma noção do tempo em que ficou “ausente” e não tem nenhuma idéia do que o “espírito” falou durante a entrevista. Segundo alguns estudiosos dos fenômenos mediúnicos, Firmino José Leite seria um exemplo típico de “médium inconsciente”. No âmbito dos estudos acadêmicos sobre a mediunidade, podemos destacar o trabalho de Elda Rizzo de OLIVEIRA. Em seu artigo denominado Comunicação mediática, modelo biomédico e curas mediúnicas ela afirma (2006: 113):

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Ciência erudita e Espiritismo engendram modos de se situar no mundo. Modos de construir as razões para a existência, portanto, modos de ser. Esses modos de ser atuam no campo cultural, compondo um gradiente de comportamentos híbridos. (...) Nessas duas extremidades do gradiente, temos a reativação do mito do progresso, com epistemologias invertidas.

Nas gravações, podemos notar que o “espírito” rompe com esse paradigma da modernidade, presente, de forma invertida, na ciência oficial e no espiritismo. Ao invés dos ideologemas da evolução e do progresso, comuns no discurso moderno acadêmico e no espiritismo, pai Joaquim fala, frequentemente, na “libertação do Ego”, na “perfeição da vida” e outras coisas que seriam interpretadas como formas alienadas de se fazer religião, pelas mentes “heróicas” e “progressistas”. Em sua opinião, o “espírito” não foi criado por Deus ignorante para evoluir linearmente ao longo das encarnações, como afirma os espiritistas. Para este “preto-velho”, o “espírito” foi criado puro e feliz e, para não sofrer, só precisa se libertar desse agregado que ele chama de Ego. Realizando essa mudança de consciência, o “espírito humanizado”, como ele chama o ser humano, seria capaz de passar por todas as vicissitudes com alegria, fé e felicidade. Assim, ao contrário do espiritismo que acredita que o “espírito evoluído” é aquele que acumula conhecimentos ao longo das existências, cultivando a ciência, a arte, a filosofia etc., para Pai Joaquim de Aruanda, todos os conhecimentos da Terra apenas prendem ainda mais o “espírito” ao Ego. Para ele, o “espírito iluminado” seria aquele que apenas ama e é feliz, não se posicionando a favor ou contra absolutamente nada daquilo que acontece nesse “mundo de realidades ilusórias”, segundo suas palavras. De certa forma, podemos encontrar em sua fala ensinamentos similares aos Vedas, ao Taoismo e a tantas outras filosofias orientais. Pai Joaquim de Aruanda rompe com o ideal racionalista do espiritismo, com seus mitos apolíneos e prometéicos, ao questionar, por exemplo, a noção de “fé racionalizada”, um dos pilares do espiritismo, possivelmente, o principal ideologema do discurso – 13 –


espiritista. Para ele, racionalizar a fé é ser como São Tomé, que precisava ver para crer. A verdadeira Fé, em sua opinião, é a entrega incondicional aos desígnios de Deus, é o sentimento de confiança e de compreensão de que nada acontece em nossa vida humanizada que não esteja de acordo com as escolhas que o “espírito” fez antes de mais uma “encarnação” e que ninguém recebe nem mais ou menos do que aquilo que “necessita e merece” a cada segundo de sua existência na Terra. Como foi salientado acima, apesar de invertidos, os ideologemas do espiritismo continuam sendo os mesmos do iluminismo e da sociedade moderna, em geral: o racionalismo, o humanismo, o progressivismo, o cientificismo etc. Em 2008 editei um pequeno vídeo chamado “o espírito da pós-modernidade”, no qual apresento um pequeno panorama da Psicosofia desse “preto-velho”, identificando esta e a sua singular fenomenologia mediúnica como sendo tipicamente pós-modernas. No vídeo procuro também tecer os primeiros passos de um estudo mitocrítico, identificando Dionísio como um mito diretor patente neste singular fenômeno sócio-cultural e educativo (animagógico). Em suas palestras e entrevistas podemos notar que o “espírito” transita com desenvoltura pelos ensinamentos de diferentes mestres espiritualistas, do Ocidente e do Oriente, e é possível notar em seu discurso ideologemas e mitemas representativos do que Gilbert DURAND (1997) classificou como “regime noturno de imagens”. Ao invés da luta e da separação, é o ecletismo e a união que aparecem como idéias centrais em seu discurso míticoespiritualista. Como diria o sociólogo Michel MAFFESOLLI, está na hora de buscar “no fundo das aparências” o sentido deste mundo pósmoderno em que vivemos. E, em um tempo paradoxal como o que estamos inseridos, necessitamos ir além dos dogmas, das perspectivas monoculturais e etnocêntricas para se tentar compreender manifestações sócio-culturais tão singulares como esta.

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Atualmente, quando se reivindica que as novas tecnologias sejam usadas para o desfrute de todos e não só de uma minoria e o respeito à diversidade é uma exigência de qualquer projeto democrático, parece elucidativo para simbolizar esse momento encontrar um “preto-velho”, ou seja, um “espírito” que costuma ser estigmatizado e proibido de se manifestar nas chamadas “mesas kardecistas” realizando palestras semanais pela internet, reunindo pessoas que vivem em várias partes da Terra (no Brasil, nos EUA, em Portugal e até no Japão) para possibilitar, gratuitamente, uma singular forma pós-moderna de animagogia, ou seja, de educação espiritualista para aqueles que acompanham e seguem os seus ensinamentos. A manifestação espiritual de Pai Joaquim de Aruanda, que é muito criticada por vários adeptos do espiritismo, nos ajudou a compreender um fato significativo: o fosso que existe entre os textos kardequianos, ou seja, escritos por Allan Kardec, e os textos de seus seguidores, os “kardecistas”. Em nenhum de seus livros Kardec afirma ter criado uma nova religião e sua preocupação concentra-se em estudar sistematicamente as diferentes formas de intercâmbio com os “espíritos”, o que denomina como “manifestações espíritas”. Nesse sentido, ao ler seus estudos espiritualistas notamos que muito mais do que criar uma nova doutrina religiosa, Kardec estabeleceu um método para entrevistar “espíritos”, definindo um método para conduzir as reuniões mediúnicas voltadas para estudos com os “espíritos”. Em suma, levantamos a hipótese que ele criou o que poderíamos chamar de História Oral com “espíritos”, a Espiritologia. FERREIRA (1994), MONENEGRO (1992), BOM MEIHY (1996) e tantos outros historiadores, antropólogos e comunicadores sociais vêm se debruçando sobre essa técnica de pesquisa qualitativa, mas, em nenhum momento, se questionaram que, se é verdade que os “espíritos” existem, obviamente que poderiam ser entrevistados, como fez Kardec no século XIX. OLIVEIRA (op. cit., p. 115) também apontou a diferença entre a concepção kardequiana de espiritismo e aquela adotada – 15 –


por seus seguidores no Brasil. Esta última perdeu o caráter científico e ganhou a forma de “uma terapêutica religiosa da aflição”. Nesse sentido, para se fazer pesquisas com os “espíritos” é que estou propondo a introdução do termo Espiritologia no meio acadêmico para, justamente, identificar essa prática de História Oral com os supostos espíritos. Em linhas gerais, uma vez que o próximo capítulo abordará o que estamos propondo como Espiritologia, este campo de pesquisa abarca não só a organização da mesma (a escolha e preparação dos médiuns participantes, o roteiro da entrevista e sua realização), mas, também, a análise posterior das informações transmitidas pelo entrevistado. Ou seja, relacionando os dados obtidos na entrevista com o tema da pesquisa (cujo entrevistador necessita ter algum conhecimento prévio). Em outras palavras, trata-se do mesmo procedimento adotado no uso da História Oral com seres humanos (encarnados). Devemos lembrar que Jacques LANTIER, em O espiritismo (edições 70: Lisboa, 1980, p. 86), afirmou: Não compreendo por que é que os cientistas haviam de estar intelectualmente fechados ao exame desse fenômeno social e à procura das causas que o provocaram. Descurar o estudo do espiritismo a pretexto de que se não é espírita, parece-me tão prejudicial às ciências humanas como recusar abrir um livro de história das religiões pela simples razão de que se não acredita em Deus.

É importante salientar que a doutrina espírita, ou seja, o espiritismo, nasceu da prática mediúnica organizada, metodicamente, por Allan Kardec, pseudônimo do pedagogo francês Hyppólite Leon Demozard RIVAIL, mas não foi o espiritismo o criador da mediunidade, um fenômeno social registrado ao longo da História, nas mais diferentes sociedades e civilizações. E a mediunidade, como compreendeu OLIVEIRA seria o axis mundi, o limiar, a imagem metafórica de abertura, o eixo, o ponto axial do contato entre os dois mundos, o dos “encarnados” e o dos “espíritos”. Podemos – 16 –


ir além e afirmar que hoje em dia os médiuns, e não importa se estes são espiritistas, umbandistas, esotéricos, canalizadores, xamânicos etc., todos são uma espécie de Hermes da pósmodernidade, os psicopompos que religam as duas dimensões da vida, a visível e a invisível. Podemos dizer que o mito ou o arquétipo da mediunidade é, sem dúvida, Hermes, o mensageiro dos demais deuses e, ao mesmo tempo, o deus mais amigo dos mortais. Apesar das fortes evidências que nos levam a acreditar na existência da realidade espiritual, nossa pesquisa não pretende, neste momento, discutir se Pai Joaquim de Aruanda é um espírito que faz palestras através de um médium ou se suas falas são elaboradas pelo subconsciente do próprio médium. Também não nos interessa discutir se o fenômeno da mediunidade é uma prova da existência da vida após a morte ou se não passa de alguma “patologia mental”, como ainda acreditam alguns psiquiatras ou as expressões de um pretenso “inconsciente coletivo”. É importante ressaltar que diferentes pesquisadores já aceitam a existência de uma dimensão espiritual e abordam a mediunidade com naturalidade. É o caso dos físicos LESHAN (1994) e GOSWAMI (2005) e do psicólogo GROF (1994). Porém, nesse momento, nossa preocupação é com a análise mitocrítica dos ensinamentos espiritualistas (Psicosofia) transmitidos por Pai Joaquim de Aruanda, “autor” de uma já significativa literatura animagógica, disponível gratuitamente na internet na forma de arquivos de som e de texto, que alimenta e é alimentada pelo imaginário humano, pois, como já afirmou Gilbert DURAND (1997), o imaginário surge da necessidade do sapiens em encontrar uma forma de superar a angústia originária, ou seja, a consciência da morte e do tempo que passa. E, não é à toa, a relação vida humanizada/imortalidade da alma costuma ser o tema central da Psicosofia transmitida por Pai Joaquim de Aruanda. Nesse sentido, o grupo de seguidores do pensamento de Pai Joaquim de Aruanda, que se identifica como “espiritualista ecumênico e universal”, age da mesma forma que os grupos kardecistas estudados por OLIVEIRA, ou seja, reproduzem atra– 17 –


vés da noosfera os processos sociais e as construções simbólicas, mobilizando forças de adesão e de oposição, e reiterando a imagem sagrada do mundo. A fenomenologia mediúnica iniciada pelo espírito Pai Joaquim de Aruanda, considerada “errada” por alguns adeptos do espiritismo, vem enriquecer o que DURAND (1975) chamou de ratio hermética e é mais um forte indicio sócio-cultural do esgotamento do paradigma cartesiano, considerado por muitos como única fonte de cognição. E como nos lembra OLIVEIRA (Op. Cit., 118): O antropólogo é um especialista em construir processos de mediação entre os símbolos para compreender a natureza simbólica dos homens; seus universos cosmológicos, as teias e tramas de relações sociais, suas culturas, as dimensões míticas da existência presentes na construção das regras de vida, dos valores da vida coletiva. O antropólogo é desafiado, então, a desvelar os mecanismos que atuam na formação dos estoques simbólicos da noosfera atuante na vida coletiva. Quer compreender como se tece a experiência coletiva, por meio da razão simbólica, no tempo antropológico. Na ordenação do mundo quer compreender as lógicas sob as quais a vida se repete, cria rupturas, mecanismos de diferenciação na pluralidade da existência. Em seus diferentes processos, a pluralidade da existência responde ao alijamento, à pobreza e à expropriação a que são postas as pessoas diante do desafio de sobrevivência simbólica. Suas vidas se cruzam, não param de se cruzar, no âmago das quais as pessoas constroem trocas sociais e sentidos para a existência.

Neste contexto, a o pensamento e a fenomenologia mediúnica de Pai Joaquim de Aruanda, além de questionar o etnocentrismo da ciência cartesiana, apresentam através de sua singular manifestação, um significativo componente sócio-antropológico para a compreensão da ratio hermética durandiana e aponta uma nova componente animagógica neste cenário pós-moderno de diversidade e busca por espiritualização. – 18 –


PARTE I

A HISTÓRIA ORAL COM OS ESPÍRITOS: A ESPIRITOLOGIA

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O que estou chamando de Espiritologia começou a se delinear por volta de 2001 quando descobri o fenômeno mediúnico. Na época eu participava do Centro de Estudos e Vivências Cooperativas e para a Paz, uma organização espiritualista criada pelo Projeto Homospiritualis para difundir os valores da Cultura de Paz. Nele, eu aplicava Reiki e outras técnicas terapêuticas complementares, quando fui procurado por dois médiuns kardecistas e com eles realizei duas pesquisas usando a mediunidade como heurística. Durante cerca de dois anos fiz entrevistas com os supostos espíritos. E é importante salientar que os dois médiuns inconscientes que davam “passagem” para os “espíritos” desconheciam os temas que eu levava para as entrevistas. Com a Espiritologia, uma nova disciplina científica que estamos propondo, acreditamos ser possível o estudo e a elaboração de teorias sobre qualquer assunto moral ou social que interesse a humanidade através de entrevistas com os “espíritos”. E, da mesma forma que acreditamos que os ensinamentos que compõem a Doutrina espírita (ou seja, a filosofia ensinada pelos “espíritos” para Kardec, no século XIX) são impossíveis de serem comprovados cientificamente, apesar de serem expostos de forma racional (por exemplo, o ensinamento da questão 258 presente em O Livro dos Espíritos afirma que o livre-arbítrio foi exercido antes da encarnação, durante a escolha do gênero de provas a ser vivenciado na Terra, e a questão 853 afirma que não morreremos antes da hora, não importando o perigo), acontecerá o mesmo com diversas informações obtidas pela Espiritologia, ou seja, utilizando as técnicas da História Oral com os “espíritos”. Os dados servirão para a criação de teorias, mas sabemos do risco dessas informações se transformarem em doutrinas. Mas esse seria um problema que não nos interessa discutir. Cientificamente, podemos comparar o que os “espíritos” dizem, mas é impossível, atualmente, comprovar tais ensinamentos para dizer quais são “verdadeiros” e quais são “mentirosos”. Porém, enquanto os adeptos do espiritismo seguem os ensinamentos transmitidos pelos “espíritos” para Kardec como sendo uma dou-

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trina ou uma espécie de verdade absoluta, entendemos os produtos da Espiritologia como informações e dados para pesquisas. Assim, do ponto de vista da ciência que estamos propondo, o que Kardec sistematizou é uma teoria sobre os supostos espíritos e sua ação no mundo material. Assim, o objetivo da Espiritologia é a de criar teorias baseadas nas respostas dos “espíritos” para diferentes assuntos. Por exemplo, em nosso primeiro estudo utilizando a mediunidade como heurística, obtivemos informações sobre como acontecem as curas durante um atendimento de Reiki e como os “espíritos” manipulam a bioenergia disponibilizada pelos atendentes, além de outras informações que não se constituem em uma nova doutrina, mas são dados coletados por um método singular e que permitem construir uma nova teoria sobre o Reiki, distinta daquela ensinada em vários cursos de formação de terapeutas, nos quais a teoria vigente afirma ser o desenho de um símbolo gráfico o responsável pelas curas, aparentemente miraculosas, que acontecem durante as sessões. Assim, o fato de a Espiritologia ser capaz de criar uma teoria sobre o Reiki ou sobre qualquer outro assunto, através da arte de entrevistar os “espíritos”, não significa que a Espiritologia seja uma religião ou uma doutrina. Mas ela acompanha, obviamente, o seguinte pensamento kardequiano : Ela (a ciência espírita) exige um estudo assíduo e, frequentemente, longo demais; não podendo provocar os fatos, é preciso esperar que eles se apresentem e, no geral, eles são conduzidos por circunstâncias das quais nem ao menos se sonha. Para o observador atento e paciente, os fatos se produzem em quantidade, porque ele descobre milhares de nuanças características que são, para ele, rasgos de luz. Assim o é nas ciências vulgares; enquanto que o homem superficial não vê numa flor senão uma forma elegante, o sábio nela descobre tesouros pelo pensamento. (...) Portanto, não nos enganemos, o estudo do Espiritismo é imenso, toca em todas as questões da

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metafísica e da ordem social, e é todo um mundo que se abre diante de nós (LE, p. 32. Grifo meu).

Podemos constatar que para Kardec não havia assunto interdito ou proibido de ser pesquisado pelo espiritismo, em sua dimensão científica. E esse é o axioma da Espiritologia. Não há qualquer fato moral ou social que não possa ser observado e estudado através da História Oral com os “espíritos”. Mas é importante possuir consciência histórica e compreender que a História e o mundo se transformam, assim como as imagens que as pessoas têm desse mesmo mundo. Por isso, ela deve ser feita, sobretudo, com consciência. Ela deve ser dinâmica, neg-entrópica, e seus métodos, suas heurísticas e seus objetos sempre renovados, quando necessários. Isso não quer dizer que a Espiritologia não acarrete em significativas e importantes consequências morais e éticas, pois toda ciência feita com consciência deve ter tais consequências. E como afirmou Kardec, no Livro dos Médiuns: Muitas pessoas pensam que o Livro dos Espíritos esgotou a série de perguntas de moral e de filosofia; é um erro; por isso, é talvez útil indicar a fonte de onde se pode tirar assuntos de estudo por assim dizer, ilimitados. (...) O valor da instrução que se recebe sobre um assunto qualquer, moral, histórico, filosófico ou cientifico, depende inteiramente do estado do Espírito que se interroga; cabe a nós julgar. (LM, p. 402)

A Espiritologia se enquadra no âmbito da renovação cientifica, no campo de uma investigação que poderíamos chamar de pósmoderna.

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A

CONSTITUIÇÃO DE UMA

CIÊNCIA PÓS-MODERNA

Os caminhos epistemológicos e paradigmáticos percorridos durante a constituição da Ciência Moderna foram descritos por diversos autores, entre eles, SANTOS (1989; 1996) e CAPRA 1995). Não cabe aqui refazer esse processo, mas, em linhas gerais, tecer algumas considerações a seu respeito com o objetivo de melhor situar a nossa opção teórico-metodológica, visando a constituição de uma ciência com consciência (MORIN, 1990) ou pós-moderna (SANTOS, 1996), que contribua, mesmo que singelamente, para o reencantamento e remitização do mundo (DURAND, 1997; PAULA CARVALHO, 1998). A Modernidade pode ser caracterizada pela pretensão de instituir o conhecimento científico como o único saber capaz de orientar o sapiens em todos os domínios da vida social e, como apontou DURAND (1998:68), durante séculos pretendeu-se que a Ciência fosse “a única dona de uma verdade iconoclasta e o fundamento supremo dos valores”. Em minha opinião, após os estudos de JUNG (1987), de KUNH (1994), MOLES (1998), entre outros, não é possível concordar com BACHELARD que, em La formation de l’esprit scientifique, procurou demonstrar que a Ciência só era possível repudiando as imagens. Como já afirmou DURAND (1998), o iconoclasmo endêmico do Ocidente pode ser encontrado remotamente no monoteísmo bíblico e na herança socrática, mas foi, sobretudo, com o advento da Modernidade - atingindo seu auge com o positivismo, no século XIX - que essa caminhada iconoclasta acentuou-se de forma considerável. Sem dúvida, um dos grandes percursores foi René DESCARTES (1596-1650). Seu método analítico tornou-se o primeiro método científico des-envolvimentista, pois, em primeiro lugar, pressupunha a separação ou a dissociação do Homem com o Mundo e, em seguida, a fragmentação de ambos em dife– 23 –


rentes partes que facilitariam os estudos científicos. Concomitantemente, tornou-se necessária a formação de especialistas para dominar todas as diferentes partes do homem e do mundo. Essas imagens que DURAND (1997) chamou de diairéticas e que são típicas das estruturas heróicas do imaginário, não deixam de estimular uma mentalidade e um comportamento egocêntrico, esquizomórfico e “monárquico” nos especialistas, pois estes devem apresentar uma postura diferente – e superior – em relação à maioria das pessoas que compreendem o mundo através de “pré-conceitos” teológicos ou do senso comum. Essa fragmentação do mundo foi acompanhada também pelo des-envolvimento de um discurso que, para ser realmente considerado científico, deveria possuir, entre outras coisas, como afirma SANTOS (1989): a) objetividade e ausência de imagens; b)e um caráter anônimo, ou seja, produto de um sujeito epistêmico. Com essas regras básicas, o conhecimento (ou o saber científico) ao ser construído deveria adquirir uma materialidade própria e o cientista, por sua vez, passaria a ser “objetivado”, ou seja, tornar-se-ia anônimo. Segundo PIAGET (apud SANTOS, 1989:15), é justamente no anonimato que se encontra uma das grandes vantagens da Ciência sobre outras formas de saber, uma vez que isso torna possível a descentração do sujeito individual na direção do sujeito epistêmico. Ora, o que isso significa? Em resumo, tornar o produto do saber científico socialmente compartilhado ou através da didática, por exemplo, ou dos manuais de divulgação científica, separado e alienado de seu criador. Em qualquer livro didático podemos conseguir exemplos de como se processa a descentração do sujeito defendida por PIAGET. Tomemos, por comodidade, um exemplo encontrado nos livros de História e Geografia para o ensino fundamental e médio. Um conteúdo sempre presente no ensino dessas duas disciplinas é a colonização da América.

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Assim, ano após ano, os alunos ouvem e decoram que na América após o descobrimento passou a existir dois tipos de colônia: a de exploração e a de povoamento. Os autores enumeram com cuidado as diferenças entre elas, os professores reproduzem tais informações com muita seriedade e convicção e os alunos aceitam e as decoram para as provas. Se perguntássemos para algum professor de História e/ou Geografia do ensino básico ou fundamental quem foi o teórico que criou ou que propôs a teorização desses dois conceitos, ou mesmo quando eles foram criados, será que ele seria capaz de nos responder? Provavelmente não, pois sua formação ainda é realizada a partir de um enfoque que valoriza a ciência sem autor e descontextualizada. Assim, acredito que a Ciência Moderna, além da linguagem desencantada que possui, trata-se, de fato, de uma ciência sem consciência. Apesar de utilizarmos aqui um exemplo cotidiano relacionado ao ensino básico, essa prática ocorre também com muita frequência no ensino superior, pois seria através dessa necessária “naturalização” do saber que se tornaria possível o des-envolvimento da Ciência Moderna em relação, portanto, às condições subjetivas e históricas presentes na criação de um determinado conhecimento. Essa carência interpretativa na transmissão do conhecimento científico é um problema que mereceria uma discussão mais aprofundada por partes de educadores e pedagogos interessados em re-criar a didática escolar, a partir de um enfoque hermenêutico. Portanto, o sujeito reintegrado é aquele aleatório, insuficiente, vacilante, modesto capaz de introduzir a historicidade do conhecimento. Essa questão foi esquecida por muito tempo talvez pelo fato da Ciência Moderna ter recusando frontalmente outras formas de saber. Como a Ciência Moderna foi sendo instituída a partir de um modelo de racionalidade que visava conhecer o mundo não mais para o contemplar, mas para o dominar e o transformar (SANTOS, 1996), portanto, a partir de uma racionalidade instrumental, fruto de um imaginário heróico (DURAND, 1997), esse processo – 25 –


não poderia ser diferente de uma forma prometéica e apolínea de pensar e agir sobre a natureza, a sociedade e o homem. Nesse sentido, podemos pensar que a Ciência Moderna esteve e está a serviço do des-envolvimento social, uma vez que a sua consolidação só foi possível através de uma profunda ruptura com a maneira de pensar e viver o mundo de forma orgânica - ou seja, na qual há interdependência entre fenômenos “espirituais” e “materiais”, além da relativa subordinação, ou melhor, do envolvimento do indivíduo com a sua comunidade e com o seu meio ambiente. Foi, portanto, com a Modernidade que o processo de ruptura entre a Natureza e a Cultura se intensificou, acentuando o processo de des-envolvimento humano, e, como já salientou DURAND (1998), quando as imagens são expulsas pela porta da frente, sempre tratam de entrar novamente pela janela. Assim, apesar do anseio por construir uma linguagem objetiva, foram sempre as imagens ou as metáforas que melhor exprimiram a essência do pensamento científico moderno e, entre as suas grandes metáforas, destaca-se a do mundo como uma grande máquina. Esta imagem que passou a orientar a nova mentalidade do homem europeu até recentemente, tornou-se tão forte que se encontra incorporada também ao senso comum contemporâneo. Essa concepção de mundo que propiciou o des-envolvimento da Ciência em relação ao senso comum, foi sendo legitimada pelas revoluções científicas alcançadas no campo, sobretudo da Física e da Astronomia, as principais Ciências no primeiro período da Modernidade (CAPRA, 1995). Essa metáfora foi bem traduzida por René DESCARTES, criador do primeiro método considerado científico, que consistia na descrição matemática da natureza através de um raciocínio, predominantemente analítico, ou seja, na decomposição dos objetos de estudos em partes componentes, dispondo-as em uma ordem lógica. Descrito em Discurso sobre o Método, esta proposta pressupõe que o conhecimento sobre a natureza, baseado na matemática, seria um conhecimento certo e evidente. Assim, DESCARTES imaginou que a natureza tinha uma funcionalidade semelhante a de uma máquina e a sua explicação – 26 –


poderia ser realizada em função do movimento de suas partes independentemente. Sobre o assunto, DESCARTES (1987) afirmou não reconhecer qualquer diferença entre as máquinas feitas por artífices e os vários corpos que a natureza era capaz de criar. Esse pensamento também era aplicado ao homem, pois este também não passava de uma mera máquina, pois comparava frequentemente um homem doente a um relógio mal fabricado; enquanto um homem saudável era como um relógio bem-feito. DESCARTES passou boa parte de sua vida distinguindo o que seria verdade (conhecimento científico) e erro, e não admitia como verdadeiro o que não poderia ser deduzido com a “clareza” de uma demonstração matemática. Assim, o método cartesiano é, sem dúvida, um paradigma do imaginário heróico moderno, responsável diretamente pela fragmentação do mundo e pelo surgimento de diferentes disciplinas científicas, tal como as conhecemos hoje - as heranças do imaginário diurno na ciência e na sociedade. Mas, quem passou para a posteridade como o “pai da ciência moderna” foi Galileu GALILEI (1564-1642). Este postulou que, para ser possível a descrição matemática da natureza, os estudos deveriam se restringir às propriedades essenciais dos corpos materiais, ou seja, para as suas formas, suas quantidades e seus movimentos. Foi, portanto, GALILEU quem mais contribuiu para tornar possível a medida e a quantificação da Natureza. Em seus argumentos, GALILEU (1987) afirmava que projeções mentais de ordem subjetiva - relacionadas à cor, ao som, ao sabor, ao cheiro etc. - deveriam ser descartadas pelos pesquisadores. Em suma, suas enunciações sobre as leis fundamentais do movimento e as descobertas que realizou no campo da Astronomia, foram resultado de uma nova maneira de estudar os fenômenos da Natureza. É importante ressaltar que GALILEU, ao defender a observação dos fenômenos tais como ocorrem, deixando de lado a pura especulação aristotélica-medieval ainda dominante, foi alvo de uma violenta crítica por parte da Igreja, que passou a ver em sua obra a destruição da perfeição do céu e a negação dos textos bíblicos. – 27 –


É importante esclarecer que DESCARTES e GALILEU lançaram as bases para a elaboração do método e do campo de atuação dos cientistas, mas, em seus respectivos trabalhos, o objetivo da ciência não apresentava ainda um caráter meramente utilitário. Para ambos o saber científico estava muito mais voltado para a sabedoria ou, em outras palavras, para a compreensão da ordem natural das coisas. Pode se encontrar na obra de Francis BACON (1561-1626) alguns elementos do caráter utilitário que a Ciência Moderna posteriormente assumiu, voltado para o domínio e controle da natureza. Em seus escritos (BACON, 1988) são constantes o uso de aforismos afirmando que o cientista deve extrair da natureza, sob tortura, os seus segredos. Ao mesmo tempo, como salientou SANTOS (1996), BACON também afirmava a necessidade de obedecer a natureza, o que nem sempre tem sido salientado nas interpretações de sua teoria. Finalmente, encontramos a formulação completa da concepção mecanicista de natureza e a consolidação do paradigma da Ciência Moderna na segunda metade do século XVII, com Isaac NEWTON (1642-1727), o criador do cálculo diferencial, um método capaz de descrever o movimento dos corpos sólidos, superando as técnicas matemáticas de GALILEU e DESCARTES. Com o Iluminismo acreditou-se que a imagem do mundo como uma perfeita máquina estava “comprovada”. Com base na mecânica newtoniana do universo, foi possível explicar outros fenômenos: o comportamento dos sólidos, líquidos e gases, como também os fenômenos como calor e som. O sucesso alcançado pela Física newtoniana fez com que esta fosse considerada a base de todas as Ciências, que passaram a se utilizar também de seus métodos. As Ciências Sociais eram conhecidas pelo nome de Física Social (SANTOS, 1996:19) e alguns exemplos típicos da subordinação das Ciências Sociais à Física podem ser encontrados na obra de LOCKE (1632-1704) que, ao defender os ideais do individualismo burguês, faz analogias com os movimentos dos átomos estudados pela Física e defende uma concepção atomística de sociedade. – 28 –


Como afirma CAPRA (1995), a abordagem científica proposta por DESCARTES, GALILEU e NEWTON foram com o tempo se transformando em “paradigma” e a obsessão dos cientistas modernos pela medição e quantificação (LYOTARD, 1993) passou a predominar no imaginário científico. Segundo BACHELARD (1988c:23), “o pensamento newtoniano era à primeira vista um tipo maravilhosamente límpido do pensamento fechado; dele não se podia sair a não ser por arrombamento.” Porém, a concepção newtoniana de universo começou a se desestruturar com as descobertas no âmbito da termodinâmica, no século XIX. Tais descobertas trouxeram novas questões, impossíveis de serem resolvidas sem que se abandonasse a noção de espaço e tempo absolutos e a própria idéia motriz da modernidade: a descrição objetiva da natureza. Com a segunda lei da termodinâmica (da dissipação da energia), por exemplo, o quadro determinístico (causa e efeito) da Física newtoniana passou a ser questionado. A solução para esse conflito só foi possível com o surgimento da chamada Teoria das Probabilidades (LYOTARD, 1993: 106; SANTOS, 1996: 26 e CAPRA, 1995: 76). A termodinâmica, nesse contexto, tornou-se um sério desafio para a Física mecanicista, o que não significa que essa última concepção viesse a ser abandonada, mas, sem dúvida, estabeleceu a mais aguda Crise de Crescimento no interior da Ciência Moderna, de DESCARTES a NEWTON. O paradigma mecanicista foi realmente abalado com o surgimento da Física Quântica, nas três primeiras décadas do século XX. Físicos como EINSTEIN, BOHR, HEISENBERG, entre outros, realizaram pesquisas que passaram a exigir uma nova concepção de espaço, tempo, matéria, objeto, entre outros conceitos clássicos da Física, até então considerados como certos e imutáveis. BACHELARD (1988c) elogia o procedimento pedagógico de HEISENBERG que, na obra “princípios físicos da teoria dos quanta”, escreveu dois capítulos antagonistas. Um criticando as noções físicas da teoria corpuscular à luz das noções físicas da teoria ondulatória e, o outro, criticando as noções físicas da teoria – 29 –


ondulatória à luz das noções físicas da teoria corpuscular. Este procedimento foi fundamental para que as duas intuições, do corpúsculo e da onda, fossem equilibradas, diminuindo a força do realismo ingênuo que pretendia formar coisas de caracteres permanentes em toda a parte. O princípio da incerteza de HEISENBERG trouxe consequências filosóficas importantes, entre elas, a limitação das atribuições realísticas. Assim, lentamente, questões como o acaso, a subjetividade e outros elementos “não científicos” tornaram-se importantes na explicação e resolução dos novos problemas colocados pela Física Quântica (SANTOS, 1996: 23). No exemplo acima da compreensão dos átomos, considerados como objetos “sólidos” pela física mecânica, enquanto que, nos estudos quânticos, ora se apresentavam como partículas, ora como ondas, a “identidade” deles passou a depender do modo como eram observados. O mesmo problema se colocou, também, para o estudo da luz. Em suma, a Física Quântica colocava em discussão, novamente, a questão do paradoxo (o oxímoron dos pré-socráticos) e, consequentemente, da relatividade de todo conhecimento científico, como já afirmava MONTAIGNE no século XVI e tanto outros pensadores modernos, não-modernos e pós-modernos. F. CAPRA (1995: 81) resume muito bem esse processo ao dizer que: ...ao transcender a divisão cartesiana, a física moderna não só invalidou o ideal clássico de uma descrição objetiva da natureza, mas também desafiou o mito da ciência ausente de valores. Os modelos que os cientistas observam na natureza estão intimamente relacionados com os modelos de sua mente - com seus conceitos, pensamentos e valores. Assim, os resultados científicos que eles obtêm e as aplicações tecnológicas que investigam serão condicionados por sua estrutura mental. Embora muitas de suas detalhadas pesquisas não dependam explicitamente do seu sistema de valores, o paradigma maior dentro do qual essas pesquisas são levadas a efeito nunca está isento de valores. – 30 –


Procurando soluções para compreender o aspecto paradoxal da matéria, Niels BOHR propôs o conceito de complementaridade, algo semelhante ao que o pensamento tradicional chinês chama até hoje de Yin/Yang. Assim, o símbolo taoísta em que um círculo é dividido por uma espécie de S, formando dois setores simétricos e com cores diferentes, com cada um contendo um círculo menor com a cor complementar, foi escolhido pelo físico dinamarquês para expor sua teoria quântica (DURAND: 1999), fato verificado também nas “relações de incerteza” de HEISENBERG. Como nos diz CAPRA (1985:33): ...na concepção chinesa, todas as manifestações do tao são geradas pela interação dinâmica desses dois pólos arquetípicos, os quais estão associados a numerosas imagens de opostos colhidas na natureza e na vida social. É importante, e muito difícil para nós, ocidentais, entender que esses opostos não pertencem a diferentes categorias, mas são pólos extremos de um único todo. Nada é apenas yin ou apenas yang. Todos os fenômenos naturais são manifestações de uma contínua oscilação entre os dois pólos; todas as transições ocorrem gradualmente e numa progressão ininterrupta. A ordem natural é de equilíbrio dinâmico entre o yin e o yang. (...) Em vista das imagens originais associadas aos dois pólos arquetípicos, diríamos que o yin pode ser interpretado como correspondente à atividade receptiva, consolidadora, cooperativa; o yang, à atividade agressiva, expansiva e competitiva. A ação yin tem consciência do meio ambiente, a ação yang está consciente do eu. (...) essas duas espécies de atividade estão intimamente relacionadas com dois tipos de conhecimento, ou dois tipos de consciência, os quais foram reconhecidos, ao longo dos tempos, como propriedades características da mente humana. São usualmente denominados de método intuitivo e método racional, e têm sido tradicionalmente associados à religião e ao misticismo e à ciência. (...) O racional e o intuitivo são modos complementares de funcionamento da mente humana. O pensamento racional é linear, concentrado, analítico. Pertence ao domí– 31 –


nio do intelecto, cuja função é discriminar, medir e classificar. Assim, o conhecimento racional tende a ser fragmentado. O conhecimento intuitivo, por outro lado, baseia-se numa experiência direta, não intelectual,da realidade, em decorrência de um estado ampliado de percepção consciente. Tende a ser sintetizador, holístico e não-linear.

Porém, voltando à ciência contemporânea (ou pós-moderna) que gradativamente vai se construindo, podemos dizer que ela introduziu na ciência o pensamento “dilemático” (LÉVISTRAUSS) ou anfibólico presente nos “objetos” imaginários de que a lógica clássica, de Aristóteles aos dias atuais, desconfia e combate heroicamente. Ou, como nos diz DURAND (1999: 83), “a alogia do mito ou do sonho sempre foi rejeitada no purgatório (quando não no inferno) do ‘prélógico’ e da ‘participação mística’...” Hoje, porém, já são vários os pensadores, em diversas áreas do conhecimento, que questionam o paradigma da Ciência Moderna. Thomas KUHN, Jean François LYOTARD, Boaventura de Souza SANTOS e Edgar MORIN, entre outros, em suas reflexões elencam de diferentes maneiras os problemas que a Ciência Moderna não é capaz de solucionar, trazendo, dessa forma, as sementes da epistemologia não-cartesiana no qual, como afirmou BACHELARD (1988c:70), os conceitos e os métodos passam a ser função do domínio da experiência. Assim, “um discurso sobre o método científico será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma constituição definitiva do espírito científico.” Assim, a epistemologia não-cartesiana não representa uma condenação pura e de super-ação das teses da física cartesiana, mas a neg-ação da doutrina das naturezas simples e absolutas. Sobre esse fato, porém, há um dado curioso que merece nossa atenção. Como afirmou MATALLO JUNIOR (2000: 42): ...historicamente, foi a teoria newtoniana a primeira formulação estruturada em termos de um determinismo causal estrito e com o instrumental adequado para realizar as tarefas de uma teoria científica tal como concebemos hoje. Essa teoria ofere– 32 –


ceu uma imagem do mundo como sendo totalmente previsível e passível de conhecimento desde que as condições iniciais de posição e velocidade dos corpos fossem conhecidas. A estruturação da mecânica se fez tendo por base as conhecidas três leis de Newton, que durante muito tempo todos pensaram ser insuperáveis. E isto devido ao fato de que elas apareceram como verdadeiras leis da natureza. Não se imaginava que elas pudessem, um dia, ser falsificadas ou mesmo abandonadas em favor de uma teoria melhor. Aliás, até hoje, se aprende nas escolas a mecânica clássica e não a relativística.

Apesar de a didática não acompanhar os novos rumos da Ciência, como se pode inferir na citação acima, podemos dizer que as “Teorias de Longo Alcance” como as de Marx, Freud, entre outros, inspiradas na mecânica newtoniana, sofreram um forte abalo. No século XX, principalmente, as Ciências Humanas assumiram um papel mais modesto e menos pretensioso: “a aquisição de conhecimentos empíricos e a busca de um tipo de teorização mais sólido, embora de menor abrangência” (MATALLO JR., 2000: 49) Porém, o mais importante talvez seja o surgimento de posicionamentos contrários àquele que pretendia uma identificação entre ciências naturais e sociais, como já foi aludido anteriormente e, de certa forma, a própria idéia de teoria sendo colocada em xeque. Ou como afirma MATALLO JR. (Op. Cit.: 59): ...podemos dizer que, em vez de teorias, temos conjuntos de postulados básicos que orientam a pesquisa como diria Merton, aliados aos procedimentos de seleção dos fatos e descrição reconstrutiva dos fenômenos. É preciso deixar claro que não há uma lógica ou um método para selecionar os fatos relevantes para a explicação e nem tampouco um método de reconstrução histórico-social. Isto tem um significado epistemológico extraordinário para as ciências sociais, na medida em que impossibilita a formação de paradigmas no sentido kuhniano. O que se forma são tradições de pensar problemas mais do que teorias. – 33 –


Edgar MORIN (1999:26), discutindo o aspecto multidimensional do conhecimento, expõe de forma sintética o que tentei apresentar até aqui, ou seja: ...partimos do reconhecimento do caráter multidimensional do fenômeno do conhecimento; do reconhecimento da obscuridade escondida no coração de uma noção destinada ao esclarecimento de todas as coisas; da ameaça vinda de conhecimento e que nos leva a buscar uma relação civilizada entre nós e o nosso conhecimento; de uma crise característica do conhecimento contemporâneo, sem dúvida inseparável da crise do nosso século. Partimos, no núcleo dessa crise, e mesmo aprofundando-a, da aquisição final da modernidade, referente ao problema original do pensamento: a descoberta de que não há nenhum fundamento seguro para o conhecimento e de que este comporta sombras, zonas cegas, buracos negros.

Estas sombras e buracos negros são importantes para que possamos re-introduzir questões fundamentais como a vida após a morte e a possibilidade ou não de manifestações dos “espíritos”, que a civilização moderna e o Iluminismo pensaram ter enterrado, matando-os juntamente com Deus. Porém, assim como os mitos (arquétipos profundos da psique), os “espíritos” não são destruídos pelo iconoclasmo oficial. E hoje eles voltam com toda força, inclusive por meio da internet, como acontece na singular manifestação mediúnica de Pai Joaquim de Aruanda. Felizmente, tal re-introdução já vem acontecendo, mesmo de forma modesta com o advento da chamada Psicologia Transpessoal, hoje conhecida como a “quarta força” no meio psicológico, ao lado da abordagem comportamentalista, da psicanálise e da humanista (da qual deriva). Gradativamente, os estudos transdisciplinares de RHINE, GROF, MASLOW, CAPRA, entre outros, são estudados com seriedade e se constituem em um novo ramo de pesquisa acadêmica. E são justamente as investigações sobre o inconsciente e o imagi– 34 –


nário as que mais podem se beneficiar com a Psicologia Transpessoal, possibilitando ao cenário acadêmico abarcar novos fenômenos antes execrados pelas correntes tradicionais. Nos EUA, estes pesquisadores, desde a década de 1960, vêm se debruçando sobre as filosofias orientais e suas práticas meditativas para compreender fenômenos incompreensíveis à mentalidade cartesiana ocidental: a reencarnação, a vida após a morte e os estados ampliados de consciência. No Brasil, a rica literatura mediúnica e a fenomenologia espirítica e umbandística, por exemplo, gradativamente se tornam recursos obrigatórios de pesquisa para quem deseja compreender o homem e a mulher holísticos. Somados as Terapias orientais como o Tai Chi, a Meditação (budista, veda, zen etc.) o Yoga, o Reiki, entre outras práticas estudadas ou praticadas por psicólogos transpessoais, o arcabouço teórico e doutrinário das religiões medianímicas brasileiras enriquecem este campo da pesquisa, ajudando a compreender a dimensão espiritual humana. O paradigma clássico (moderno) que estrutura as correntes materialistas das escolas psicológicas tradicionais não consegue explicar os fenômenos mediúnicos como a clarividência, as ectoplasmias, a psicografia, entre outros, reduzindo tudo a regressões mentais ou patologias. Somente um paradigma que possibilite abarcar o ser humano em sua estrutura física, psíquica e transcendental será capaz de trazer respostas convincentes para estes fenômenos humanos, conhecidos e vividos desde a pré-história. Por ausência de uma nomenclatura melhor, chamaremos esse paradigma de pós-moderno. O termo pós-moderno originou-se nos anos de 1960 na arquitetura. Alguns de seus profissionais, propondo uma arquitetura mais leve que enfatizasse os aspectos decorativos e integrasse as formas passadas, se autodenominaram pós-modernos. Em 1978, Charles JENCKS, crítico da arquitetura, publicou o livro L’architecture postmoderne e, no ano seguinte, Jean-François LYOTARD publicou seu livro mais famoso, O pós-moderno.

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Este livro alcançou uma repercussão considerável no meio acadêmico, gerando polêmicas calorosas. LYOTARD explica como as grandes teorias científicas, morais, ideológicas e artísticas do período moderno tendem a entrar em crise de legitimidade. Assim, a Ciência, no século XX, assumiu um papel mais modesto e menos pretensioso, relativizando o saber científico e abrindo-se para outras formas de aquisição de conhecimento (arte, religião, senso comum etc). Esta mudança poderá, futuramente, refletir-se também nas práticas didáticas, com o fortalecimento da interdisciplinaridade na escola e a consequente contextualização do meio sócio-cultural em que ela está inserida. É neste contexto que podemos compreender o surgimento e o aperfeiçoamento do que estamos chamando de Espiritologia, a arte de entrevistar os “espíritos”, mesmo sabendo que o valor heurístico dessa proposta não seja aceito no âmbito das ciências humanas e sociais.

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A

ESPIRITOLOGIA E SUA CIENTIFICIDADE

Do ponto de vista epistemológico, há uma dicotomia entre fato e valor, quer dizer, não há uma ponte de dedutibilidade entre ambos: de um fato não se segue um valor; tampouco de um valor se segue um fato. (...) Não obstante, na vida real, fato e valor não se dissociam. Hilton Japiassu. O mito da neutralidade científica.

Apesar de todas as evidências, não temos ainda como afirmar, categoricamente, a sobrevivência e a eternidade da alma, ou afirmar que o fenômeno mediúnico é, de fato, a comunicação entre o plano material e o espiritual, e não uma psicopatologia, como afirmam os cientistas materialistas modernos. Kardec afirma em O Livro dos Médiuns que o espiritismo é a demonstração patente da existência dos espíritos, uma vez que estuda as manifestações espíritas, sejam elas “físicas” ou “intelectuais”. Afirma ainda que os adversários do espiritismo (os materialistas) cobram dos espiritistas que provem a realidade das manifestações, o que seria provado pelos fatos e pelo raciocínio. Porém, será que os fatos são tão positivos assim, como acreditava Kardec? Se a própria ciência contemporânea destruiu a matéria, demonstrando que tudo aquilo que chamamos de “mundo exterior” não está fora, mas, ao contrário, dentro de nossas próprias mentes, podemos afirmar, categoricamente, que existem fatos positivos? Como afirma Hilton JAPIASSU, um dos significativos estudiosos da ciência contemporânea, é mais fácil conceituar a ciência do que defini-la. Mas uma coisa parece consenso: não existe uma definição objetiva e, muito menos, neutra do que é ciência. Os – 37 –


conhecimentos ditos objetivos e racionalizados estão sempre engendrados pela ambiência sócio-cultural e histórica. É por isso que a razão científica é mutável, histórica e variável. E mesmo as “revelações espirituais” não são imunes ao tempo e às injunções do contexto em que foram transmitidas através dos médiuns, profetas, pitonisas etc. Em suma, em matéria de ciência ou de “revelação espiritual”, não há objetividade absoluta. A linguagem, os temas, os modelos de um conhecimento técnico ou valorativo são sempre o reflexo da imagem do mundo no qual se originaram. Em outras palavras, ela é uma interpretação sempre passível de mudanças, pois é sempre marcada pela cultura em que se insere. Nesse sentido, é importante salientar que todas as informações obtidas através da Espiritologia não devem ser pensadas como revelações miraculosas feitas por “espíritos”. Esta ciência se realiza através do trabalho constante de vários experimentos mediúnicos, de onde poderão surgir inovações conceituais e teorias. Caberá, assim, ao espiritólogo e aos estudiosos em geral, fazer as escolhas, correr os riscos e adotar atitudes críticas diante das informações obtidas. Do ponto de vista epistemológico, o mais adequado, hoje em dia, é falar na existência de práticas científicas. E a Espiritologia possui critérios que a validam como uma prática científica. Ela também é capaz de formular técnicas para a coleta de dados, para não ficar apenas no domínio da pura especulação, como também constituir um corpo teórico de contextualização e construir seus objetos científicos. Em suma, o valor científico dos produtos intelectuais da Espiritologia é evidente. E, se na ordem do saber contemporâneo, a atividade científica deve ser diversa do senso comum, da percepção imediata, das atividades ideológicas e isentas de “achismos”, a Espiritologia, como campo de pesquisa, é tão científica como a Pedagogia e muitas das Ciências Humanas hoje existentes nas Universidades. Concordo com aqueles que não reconhecem o espiritismo como ciência, uma vez que a prática espiritista contemporânea se – 38 –


assemelha a de uma religião. Esse fato acabou com sua cientificidade original e tornou mais difícil o seu uso como um método válido de pesquisa, ao contrário do que aconteceu com o marxismo, uma ideologia ainda hoje aceita naturalmente como método de pesquisa na área das ciências humanas. Porém, se por definição, toda atividade cientifica encontra-se em estado de constante inacabamento, ou seja, a produção cientifica acabada é um absurdo epistemológico, não faz sentido invalidar pesquisas como a que propomos com o advento da Espiritologia. No âmbito cientifico, tudo é objeto de discussão. Nem todo conhecimento é perenemente válido. Todo critério absoluto de verdade é um absurdo do ponto de vista científico. E é por isso que a atividade cientifica baseia-se no campo fértil do pluralismo conceitual. Um parâmetro universal de objetividade é adequado, obviamente, para proselitismo religioso e não para se fazer ciência. Porém, não é o que a Espiritologia pretende. As reflexões epistemológicas contemporâneas, sobretudo, a partir da teoria da relatividade de Einstein, afirmam que a ciência é uma “construção”. Ou seja, sem a ajuda de um quadro teórico formado por princípios e conceitos escolhidos subjetivamente, não é possível fazer a observação. Em suma, a teoria define, anteriormente, o que pode ser observado. A ciência é processual e necessita da criação de categorias e conceitos explicativos, e que estes não são estanques, mas históricos, pois um significado pode se esgotar ou se esvaziar com o tempo. Como ciência, a Espiritologia produz teoria científica e não doutrina. Como dizia POPPER, as doutrinas, como os dogmas, vivem da referência ao pensamento sacralizado dos fundadores; partem da certeza de que a tese está definitivamente provada. Elas são inatacáveis pela experiência. Como já salientamos, não temos como provar cientificamente que escolhemos um gênero de provas antes de encarnar e que vamos desencarnar no momento determinado, como os “espíritos” ensinaram para Kardec, no século XIX, mas essas informações são fundamentais para quem diz seguir a Doutrina espírita. Quem não crer ou questionar esses – 39 –


ensinamentos não pode ser chamado de espiritista. O espiritista, enquanto um homo religiosus, precisa aceitar tais ensinamentos como dogmas, ou seja, como verdades absolutas. Ao contrário, uma teoria científica é biodegradável e progride, no plano empírico, por acrescentamento de “verdades” e, no teórico, por eliminação de “erros”. Ou como disse WHITEHEAD, “a ciência é mais mutável que a teologia”. A ciência é um campo aberto onde se combatem teorias e princípios de explicação. E o cientista sabe que é um ignorante que se reconhece como ignorante e, por isso mesmo, sabe que não é próprio da cientificidade refletir o real, mas traduzi-lo em teorias mutáveis e refutáveis. E isso vale, inclusive, para dados obtidos através de entrevistas com seres incorpóreos, ou seja, com “espíritos”, em reuniões mediúnicas elaboradas para fins de pesquisa e conhecimento. E a mediunidade é um fenômeno mental que intriga alguns psicólogos e psiquiatras questionadores da interpretação “heróica” da Psicanálise e do Behaviorismo, ou seja, que estudam a personalidade fundamentando-a no estado de vigília, considerada como a “consciência normal”. Em outras palavras, tais escolas consideravam a “consciência normal” como o nível saudável de percepção cognitiva e todos os desvios desse sintoma eram classificados como psicopatológicos. Felizmente, pesquisas sérias como as de Stanislav GROF questionaram tais conclusões e abriram a possibilidade de estudos mais avançados, indo além da história orgânico-biográfica de alguns pacientes. Entre suas hipóteses mais criativas está a que concebe a consciência humana como um espectro eletromagnético no qual cada “frequência” passa a expressar um modo de percepção. Dessa forma, a consciência não se resume a um conjunto de traços ou características rigidamente definidas, mas é possível abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com sua identidade egóica e que não derivam de suas experiências no mundo fenomênico. As teorias cartesianas definem a consciência “normal” como sendo aquela no qual o indivíduo se experimenta e se reconhece – 40 –


existindo dentro dos limites de seu corpo físico e a sua percepção do meio ambiente é restringida pela extensão de seus órgãos de percepção externa. Essa concepção, ainda dominante no meio acadêmico, “naturaliza” a idéia de que tanto a percepção interna quanto a percepção do meio ambiente estão confinadas dentro dos limites do espaço e do tempo. Porém, as experiências psicodélicas realizadas por GROF, as experiências com alucinógenos realizadas pelo antropólogo CASTANEDA ou mesmo os relatos místicos-esotéricos relacionados às práticas orientais como a Meditação, Yoga, Reiki etc. vêm demonstrar que os estados “alterados” de consciência não são, necessariamente, sintomas psicopatólógicos. Ao contrário, são manifestações que nos permitem estudar e compreender a dimensão transpessoal da consciência. Dentro de um novo paradigma, podemos dizer que se trata de estados ampliados de consciência. De forma esporádica e tímida, algumas abordagens cartesianas se referiram a esses fenômenos. FREUD, por exemplo, chamou de “Experiências Oceânicas” os casos em que o sujeito consegue afrouxar os limites do Ego, expandindo sua consciência de forma capaz de incluir e abranger outros indivíduos e elementos do mundo externo ou quando consegue experienciar sua própria identidade em um tempo ou espaço diferente. É importante reconhecer que tais experiências, antes negligenciadas ou tratadas como psicopatologias, tornaram-se o foco central da Psicologia Transpessoal, movimento que reúne desde psicólogos humanísticos até psiquiatras insatisfeitos com a abordagem mecanicista e biomédica dos estudos behavioristas e psicanalíticos. É importante reconhecer os esforços de Abraham MASLOW e Anthony SUTICH na gestação dessa abordagem “pós-moderna”, buscando integrar os trabalhos de C. G. JUNG, Carl ROGERS e outros que desafiaram, de modo convincente, os pressupostos mecanicistas e newtonianos, revelando a importância dos aspectos não racionais e não lineares da psique, defendendo o inefável, o criativo e o espiritual como meios válidos para se obter conhecimento. – 41 –


JUNG, por exemplo, ao defender que o inconsciente não podia mais ser pensado como um mero depósito psicobiológico de instintos reprimidos, mas que deveria ser aceito como um princípio ativo inteligente (em sua dimensão mais profunda, o Self ligaria o indivíduo à humanidade, à natureza e ao cosmos), passou a aceitar a necessidade de interação entre elementos conscientes e inconscientes ou a constante troca de informação e fluidez entre ambos para que a individuação se processasse, ou seja, o processo de maturação psíquica que transcende os estreitos limites do Ego e do inconsciente individual. Outra questão importante que a obra de JUNG nos fornece é a aceitação do irracional e do paradoxal como válidos em si mesmos. Ele também estava convicto da realidade da dimensão espiritual no esquema universal das coisas. Sua suposição básica era que o elemento espiritual é parte orgânica e integral da psique. Ele é a centelha divina que se localiza no Self. Assim, a verdadeira espiritualidade, ou a sua busca, é um aspecto pulsional do inconsciente coletivo, independente do condicionamento da infância e da vida do indivíduo, do ponto de vista cultural e educacional. Dessa forma, tanto a análise como o autoconhecimento, quando alcançam suficiente profundidade, permitem que os elementos espirituais se manifestem espontaneamente na consciência. São as manifestações numinosas, como diria KANT. JUNG, porém, não se atreveu a introduzir a reencarnação em suas pesquisas, fenômeno importante e aceito com naturalidade pela Psicologia Transpessoal. Mas podemos dizer que entre as principais contribuições de JUNG para a psicoterapia e, em breve, para a educação, é o reconhecimento das dimensões espirituais da psique e a abertura para os campos transpessoais da consciência, pois sua hipótese da existência de uma centelha numinosa no Self vem ao encontro das filosofias orientais e são corroboradas pela literatura medianímica produzida no Brasil. Esse paralelo entre as filosofias e práticas orientais e as revelações por vias medianímicas comprovam as hipóteses de JUNG que não aceitava a idéia de causalidade linear como o único princípio motor na natureza. De sua mente transgressora surgiu o ter– 42 –


mo sincronicidade, a palavra que encontrou para designar o princípio de ligação entre eventos de forma não causal. Dessa forma, JUNG procurou interpretar as coincidências significativas de eventos separados no tempo e/ou no espaço. É importante ressaltar que suas idéias passaram a interessar vários físicos pós-modernos, entre eles EINSTEIN. Acredita-se que em um encontro pessoal, EINSTEIN encorajou JUNG para dar prosseguimento em suas pesquisas. Wolfgang PAULI, um dos pioneiros da teoria quântica, também foi um cientista que compartilhou com entusiasmo as idéias de JUNG sobre sincronicidade. Hoje em dia, já são muitos os pesquisadores (MASLOW, WEIL, GROF, WILBER, entre outros) que formularam fortes hipóteses de que os “estados alterados de consciência” são não apenas naturais, mas que são necessários para o bem-estar e para a saúde do indivíduo que atingiu certo grau de expansão cognitiva. É claro que estes autores não defendem que tais estados sejam obtidos através de drogas, uma vez que estas podem causar dependência química e destruir nosso corpo físico, mas através das diferentes práticas meditativas ou religiosas e também de atividades psico-corporais como o T’ai Chi, o Yoga, o Reiki etc. MASLOW aos estudar pessoas que vivenciaram, espontaneamente, experiências místicas de “pico”, formulou a hipótese de que muitos sintomas emocionais graves vividos no mundo contemporâneo são frutos do não afloramento dos níveis transcendentes da personalidade. Assim, da mesma forma que aceitamos que existe uma pulsão para a experiência sexual, possivelmente há também uma pulsão para a expansão da consciência para se atingir outros níveis de percepção. Em seus estudos, a conclusão a que chega é que as pessoas que têm experiências espontâneas de “pico” beneficiam-se delas, mostrando uma clara motivação para a autorealização, um dos objetivos da psicoterapia humanística. Ao contrário de seus pares psicólogos, avaliou tais experiências como “supernormais” ao invés de “subnormais”. É preciso não se esquecer da importante contribuição de Carl ROGERS para o amadurecimento das abordagens transpessoais – 43 –


na psicologia. Duramente criticado por valorizar as dimensões transcendentes ou espirituais que emergiam no contexto terapêutico, especialmente nas Terapias de Grupo, ROGERS parece não ter se intimidado e deu prosseguimento ao seu transgressor e revolucionário trabalho. Em suas últimas obras, a formulação de uma temática transpessoal começou a se destacar após a observação de fenômenos que demonstravam a existência de estados sutis de consciência e concluiu que se tratava, de fato, de experiências transcendentais e espirituais. O próprio ROGERS (1983: 62) afirma que no passado não empregaria estas palavras (transcendência e espiritualidade), “mas a estrema sabedoria do grupo, a presença de uma comunicação profunda quase telepática, a sensação de que existe ‘algo mais’, parecem exigir tais termos”. Profeticamente, ouso afirmar que ROGERS cumpriu se papel. Com sua morte, ele próprio não pode aprofundar suas novas concepções, tarefa que coube a seus seguidores e admiradores. Em uma de suas últimas reflexões (1983: 53) afirmou: “tenho a certeza de que nossas experiências terapêuticas e grupais lidam com o transcendente, o indescritível, o espiritual. Sou levado a crer que eu, como muitos outros, tenho subestimado a importância da dimensão espiritual ou mística”. A partir do que expus, podemos concluir que a abordagem transpessoal possui uma base holonômica no qual o organismo humano passa a ser pensado como um todo integrado que envolve padrões físicos, mentais, sociais e espirituais. Ken WILBER demonstrou que estes padrões definem diferentes espectros ou níveis de consciência: o do ego, o do biossocial, o do existencial e o do transpessoal. No primeiro caso, a consciência está identificada com uma representação mental do organismo ou do corpo físico. É o domínio da auto-imagem construída ou egóica. Nesse nível, a pessoa se identifica com o seu “eu” (diferente e independente de tudo e de todos) e só cultiva relações interpessoais quando sente ou percebe que isso trará vantagens específicas para o ego. Nesse nível de consciência, praticamente não há preocupação com aspectos ecológicos ou sociais. – 44 –


O segundo nível, o biossocial, envolve outra frequência nos padrões de consciência e a preocupação com a preservação ou construção de um ambiente social aumenta. A pessoa começa a se sentir como parte de seu meio ambiente social e natural, aumentando o seu grau de responsabilidade pelo mesmo. O terceiro nível, o existencial, engloba o organismo total. Nesse estágio, a pessoa apresenta um senso de identidade corpo/mente auto-organizador. É quando surgem os ideais humanistas e os pensamentos mais complexos e elaborados, sobretudo em relação à Filosofia de Vida. Nesse estágio, Emoção e Razão seguem juntas para que haja o crescimento e expansão das potencialidades humanas, desde que haja meios propícios para que esse processo ocorra. O que não significa também que na ausência desses meios a pessoa não irá se auto-realizar ou se solidarizar com seus semelhantes. Normalmente, um alto grau de envolvimento ético e moral está associado a este estágio. O último nível, o transpessoal, é o da expansão da consciência para além das fronteiras do ego, correspondendo a um senso de identidade muito mais amplo e envolvente. Esse nível costuma envolver percepções do meio ambiente onde tudo está relacionado, mas não de forma linear ou causal. É o nível que permite uma abertura segura ao inconsciente coletivo e aos fenômenos que lhe estão associados, entre eles, a telepatia, a precognição, os diferentes tipos de mediunidade e até lembranças de “vidas passadas”. Nesse nível de consciência, dificilmente a pessoa aceita as teorias que apontam para uma separação rígida entre o Ego e todo o resto do universo, a não ser como uma forma de atuação no meio em que vive com outras pessoas. Esse nível de consciência transcende o raciocínio mecanicista cartesiano e se aproxima das experiências místicas. Como já salientamos, as abordagens cartesianas consideram a consciência “normal” (ego) com base apenas nos fenômenos típicos do estado de vigília. Nesse estado, usamos a razão instrumental para lidar com quase todas as situações da vida cotidiana. É claro que a consciência “normal” possui um precioso instru– 45 –


mento: a memória. Porém, está provado que existem outros conjuntos de dados ou de informações, muito mais rico e profundo, que não são obtidos ou recuperados pela vontade consciente da pessoa, como acontece nas entrevistas com os “espíritos”, sobretudo quando os médiuns são inconscientes. Assim, se antes da abordagem transpessoal as experiências místicas ou os estados ampliados de consciência eram classificados como neurose, regressão a estágios intra-uterinos etc., atualmente já há inúmeras pesquisas que afirmam que a pessoa que experimenta estados ampliados de consciência (seja através de contatos com seres incorpóreos, abertura para vidas passadas ou de outros fenômenos transpessoais), não encontra as melhores palavras para explicar o fato para aquele que nunca viveu tais experiências, porém, o importante é que para absorver a nova informação e a energia que contém tais experiências, toda a personalidade necessita se reestruturar, superando velhos hábitos, velhos paradigmas, bloqueios psicológicos e religiosos etc. E é justamente isso que acontece quando nos encontramos diante das imagens e informações presentes nas entrevistas com os “espíritos”. E sempre que ouço alguma de suas respostas às questões formuladas durante a pesquisa lembro-me de MAFFESOLLI, falando da riqueza existencial e relacional que existe na socialidade contemporânea. A fala típica dos “pretosvelhos”, cheia de erros gramaticais, são carregadas de sabedoria e consolo, o que por si só justificaria o compromisso ético em estudar e valorizar este olhar abandonado pelos “paradigmas da ordem” - seja no campo da pesquisa, do ensino e da vida como um todo –, compreendendo pelo prisma da mitocrítica um sistema interpretativo aberto ao conflito de interpretações, à complexidade, ao probabilismo e à incerteza. Em suma, aberto à contestação e à dúvida.

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A

HISTÓRIA ORAL E A MITOCRÍTICA

DURANDIANA APLICADA AO DISCURSO DO

“ESPÍRITO” PAI JOAQUIM ARUANDA

DE

Acreditamos que nossa pesquisa se aproxima epistemologicamente da perspectiva que vem se configurando com o nome de paradigma hermenêutico no âmbito das Ciências Humanas e Sociais contemporâneas. Entre outras, o paradigma hermenêutico sustenta algumas “escolas”, entre elas, a Antropologia do Imaginário e a Sociologia Compreensiva. Nesse sentido, podemos dizer que a mitocrítica, enquanto heurística, é uma ferramenta que possibilita interpretar qualquer tipo de discurso, possibilitando uma via de entrada em diferentes fenômenos sócio-culturais pelo viés relacional (conhecer para viver), transcendendo o nível técnico-científico (viver para conhecer). Ir além do que se convencionou chamar de paradigma clássico – cartesiano e reducionista - torna-se necessário uma vez que, conforme no lembra MORIN (1977), “servimo-nos de nossa estrutura de pensamento para pensar. Precisamos também dela nos valer para repensar nossa estrutura de pensamento.” Sem esse repensar, não seremos capazes de estudar o tema até aqui proposto. Assim, como “estudo de caso”, optamos em aplicar a mitocrítica durandiana no estudo dos ensinamentos espiritualistas (Psicosofia) transmitidos por meio da fenomenologia mediúnica pelo “espírito” Pai Joaquim de Aruanda, compreendendo os mitos diretores, mitemas, ideologemas etc. que compõem sua animagogia. O material para análise foi coletado utilizando os recursos da História Oral, entre os anos de 2005 e 2007, e se encontra registrado em vídeo, e em duas de suas palestras disponíveis para consulta na internet: a “Oração de São Francisco” e “Conhece-te a ti mesmo: a função espelho”. – 47 –


Como dissemos, a pesquisa aponta para a direção do que vem sendo chamado de paradigma hermenêutico, que reformula os três elementos “domesticados” pelos paradigmas clássicos das Ciências Humanas: a subjetividade, o indivíduo e a história. Além disso, no que se refere à relação pesquisador/pesquisado, elege as relações dialógicas entre ambos, resultando em um trabalho em que o autor não é mais o todo soberano intérprete de dados. Como um trabalho polifônico, abre-se às vozes dos Outros, uma atividade fundamental para compreender:

O universo simbólico presente no discurso do “espírito” Pai Joaquim de Aruanda; Os mitemas e os regimes de imagens presentes em sua fala (que formam cenários de ressonância ou repercussão de sua Psicosofia);

Enfim, para se compreender o alcance da Mitocrítica e o uso da História Oral como recurso para a coleta de dados, independentemente de estarmos diante de um narrador encarnado ou desencarnado, é importante lembrarmos algumas reflexões sobre o valor da narrativa, segundo BENJAMIM. Em “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, ele valorizou a narração como um processo de aprendizagem para o que narra e para quem escuta. Porém, ele acreditava que esta era uma arte em vias de extinção nos mundos tecnológicos. Provavelmente, ele nunca imaginou que os “espíritos”, sobretudo, os “pretos-velhos”, usariam a tecnologia para narrar seus “causos”. É importante salientar que os “pretos-velhos”, em tese, ao contrário dos “espíritos” filósofos ou literatos não escrevem, ou seja, não “psicografam”. Os “pretos-velhos” apenas utilizam a narrativa oral, através de seus respectivos médiuns, para se comunicar com os “vivos”. BENJAMIN identificou dois grupos de narradores: os que viajam e os que conhecem profundamente as histórias e as tradições de seu país. Estamos, agora, diante de um terceiro grupo: o dos “espíritos” que narram suas experiências na Terra, em outros – 48 –


orbes e no plano invisível. Tanto o ser incorpóreo que se manifesta através de médiuns, como os representantes dos dois grupos anteriores, “é um homem que sabe dar conselhos” (1985: 200). Porém, ao contrário de BENJAMIN que acreditava que a morte seria um momento público na vida do indivíduo e a experiência última para a qual converge a arte de viver, ao se entrevistar “espíritos” descobrimos a consciência da infinitude. Nas narrativas dos “espíritos” a morte não passa de uma mudança de dimensões, como acontece ao se acordar de um sonho. A história de vida de um “morto” é povoada de informações desconcertantes que transcendem nossa imaginação cartesiana. Porém, ela também é passível de uma mitocrítica, ou seja, de um estudo que possibilite a descoberta do mito pessoal, impregnado culturalmente por um mito primordial. A compreensão do mito enquanto técnica de leitura é paradigmática para qualquer discurso, mesmo naquele proferido por um “espírito”, pois, apesar de não ter um corpo físico, seu raciocínio ou pensamento é humano, logo, se aceitarmos que o imaginário é um sistema dinâmico e organizador de imagens, mediatizando a relação do homem com o mundo, com o outro e consigo mesmo, é possível encontrar raízes míticas e imaginárias até no discurso de um suposto ser incorpóreo que se manifesta através de um médium. Gilbert DURAND, o criador da Mitocrítica, pensou essa heurística para o estudo de textos literários. Por sua vez, o discurso espiritualista, apesar das informações desconcertantes que sempre nos traz, possui um cunho racional-doutrinário-ideológico no qual as instâncias mitêmicas não são patentes, dando um pouco mais de trabalho para encontrá-los. Porém, escolhi tentar fazer essa aventura escolhendo a obra de um “espírito” cujos ensinamentos destoam do ideário espiritista. E este destoamento talvez se explique pelo fato de que há homologia entre os paradigmas dominantes na sociedade e as matrizes imaginárias. Ou seja, o discurso doutrinário do espiritismo, de forma geral, como já salientamos, está vinculado ao ideário do Iluminismo e, no campo mítico, ao regime diurno de imagens e aos mitos de Prometeu e Apolo. – 49 –


O discurso anárquico, a imagem transgressora e a ironia de Pai Joaquim de Aruanda está mais de acordo com as representações do imaginário sócio-cultural contemporâneo. Não é à toa que seus críticos o chamam de “zombeteiro”, “mistificador”, “espírito inferior” etc. Sua imagem transgressora não se coaduna com o “bom comportamento” e com a seriedade acéptica que se espera de um “espírito superior”. E este fato demonstra como os paradigmas e o imaginário fazem parte de uma mesma bacia semântica, ou seja, formam um conjunto homogêneo de representações que religa as teorias cientificas, a estética, os gêneros literários, as mentalidades e as visões de mundo e, porque não, as revelações espiritualistas. O discurso doutrinário do espiritismo faz parte da bacia semântica da modernidade e não consegue dela se afastar. Daí os seus esquemas verbais predominantes serem os mesmos do Iluminismo: ação, mudança, transformação... Pai Joaquim de Aruanda, ao contrário, contextualiza em suas palestras e entrevistas outro mundo imaginário coerente, dotado de temáticas redundantes, mas com situações actanciais diferentes daquela predominante no espiritismo. No discurso de Pai Joaquim predomina o “unir” e não o “separar” presente no ideologema da “pureza doutrinária” kardecista. O ecletismo de Pai Joaquim, fundindo em uma única doutrina espiritualista ensinamentos de Buda, Krishna, Jesus, Paulo de Tarso, Tomé etc. está intimamente relacionado com o pós-modernismo. E, da mesma forma que a psicosofia de Emmanuel, André Luiz e outros espíritos “espíritas” exercem significativa influência no cenário espiritualista brasileiro, mobilizando mentes e corações, o mesmo começa a acontecer com o discurso espiritualista de Pai Joaquim de Aruanda, difundido gratuitamente através da internet, graças ao trabalho abnegado de seus seguidores, durante toda a primeira década do século XXI. E, no caso da mitocrítica, Gilbert DURAND afirma que a linguagem literária coincide com estruturas ou esquemas míticos. O mito aparece nas pequenas unidades de significação, os mitemas. – 50 –


Estes dariam o sentido arquetípico e revelariam o imaginário de um indivíduo, de um grupo ou de uma época. Repetindo constantemente, o mito impregna todo um discurso. A mitocrítica aprofunda os métodos da psicocrítica criada por MAURON que, resumidamente, consiste em: 1º) estudar a sobreposição do texto de um mesmo autor permitindo o aparecimento das redes de associações ou das imagens obsessivas; 2º) procurar na obra do mesmo autor as mudanças e as repetições das redes, dos agrupamentos ou das estruturas, reveladas no primeiro item, que designam as figuras e as situações dramáticas, combinando a análise dos temas com a dos sonhos e suas metamorfoses, recaindo na imagem de um mito pessoal; 3º) compreender que o mito pessoal é a interpretação da personalidade inconsciente e de sua evolução; 4º) controlar os resultados do estudo da obra comparando-os com a vida do escritor. Assim, enquanto a psicocrítica propõe uma leitura interpretativa com base psicanalítica, a mitocrítica durandiana, sem desprezá-la, pretende descobrir o mito primordial que integra as obsessões e o próprio mito pessoal do autor. PAULA CARVALHO (1998: 94), por exemplo, afirma que: “a mitocrítica põe em evidência, num autor, numa obra de época e de um meio dados, os mitos reitores e suas transformações significativas, permitindo mostrar como tal traço de caráter pessoal do autor contribui para a transformação da mitologia em vigor ou, ao contrário, acentua tal ou qual mito reitor estabelecido. Ela busca explorar o texto ou o documento estudado indo além da situação biográfica do autor, tentando abordar as preocupações sócio-históricas ou histórico-culturais”.

O mito é primeiro referencial a ser buscado numa análise mitocrítica. E enquanto um método crítico, busca uma síntese das críticas literárias – antigas e novas – para obter no desvendamento do texto o seu centro, o seu núcleo, o “ser pregnante do texto” que encanta o leitor e que pertence ao domínio do mito. – 51 –


E essa busca parte do mitema, sempre repetido frequentemente na narrativa, constituindo-se em seu ponto forte. Nesse sentido, o mitema é a menor unidade significativa que permite a análise sincrônica do texto. E sua utilização pode ser patente ou latente. No primeiro caso, trata-se da repetição explícita de seu(s) conteúdo(s) homólogo(s); e. no segundo, na repetição de seu esquema intencional implícito. E isso também vale para textos ou discursos espiritualistas, pois, segundo DURAND, há interação entre o imaginário e a razão. Além disso, o imaginário antecede e está presente com seus arquétipos, símbolos e mitos nos sistemas racionais filosóficos, religiosos, lógicos, científicos etc. Assim, a abordagem mitocrítica se faz partindo dos seguintes passos: 1. encontrar unidades, mitemas, na narrativa diacrônica da obra, no próprio tempo da obra (mesmo que este tempo seja duplo – o tempo da leitura e o tempo figurado); 2. observar a redundância e a determinação do mitema, apresentando-se como “pacotes de imagens” ou “constelações” com traços comuns que reenviam para os mesmos significados (os indicadores do mito); 3. após a separação dos mitemas, deve-se retornar ao texto e numa leitura diacrônica anotar as sequências que interessam para a mitocrítica. Em relação ao estudo mitocrítico que desejamos realizar, gostaria de fazer algumas considerações. O imaginário constitutivo em sua relação com o absoluto (religiosus) foi objeto de estudo de importantes pesquisadores, entre eles, Georges DUMÉZIL, Mircea ELIADE e Henry CORBIN. Em seu Tratado da história das religiões, ELIADE demonstrou que todas as religiões apresentam uma rede de imagens simbólicas coligidas em mitos e ritos capazes de revelar uma trans-história na qual o tempo profano é substituído pelo illud tempus. Henry CORBIN propôs o termo imaginal (imaginatio vera) para compreender a faculdade humana de atingir um universo espiritual, uma realidade divina. Em minha opinião, o transe mediúnico está associado diretamente com essa faculdade, permi– 52 –


tindo, assim, uma ampliação de consciência por parte do médium para que acesse o mundo numinoso e, consequentemente, seja capaz de elaborar narrativas visionárias, que chamaremos também de Psicosofia. Entrevistar “espíritos”, como é o caso de nossa pesquisa, exige um tipo especial de imaginação que DURAND (1999) chamou de “imaginação criadora”. É ela que permitirá ao ser contemplativo, por exemplo, acessar o mundus imaginalis destas narrativas mediúnicas. A Psicosofia de Pai Joaquim de Aruanda apresenta para o leitor uma anima-lógica que transcende a lógica clássica ou a dialética materialista, obviamente. Porém, se a alogia do mito ou do sonho costuma ser classificada como algo “pré-lógico”, as narrativas mediúnicas nos colocam diante do que vou chamar provisoriamente de “translogia”, cuja compreensão exige uma abertura e uma flexibilidade mental raras no mundo contemporâneo. Sem ela não é possível compreender as narrativas visionárias presente em seus ensinamentos espiritualistas, capazes de nos remeter a uma santicidade inefável. Como foi salientado, este estudo não tem a pretensão de validar ou não os chamados fenômenos mediúnicos. Aqui não importa se o conteúdo que iremos estudar foi criado por um “espírito” (desencarnado, ser incorpóreo) ou se, como afirmam médicos e psiquiatras modernos, trata-se da manifestação do próprio inconsciente (ou subconsciente) do médium. Assim, se o que Pai Joaquim de Aruanda descreve ou discute é “real”, só teremos como saber após a nossa própria morte. No momento, suas imagens valem pelas flores que cultivam, enriquecendo sobremaneira a imaginação de quem acessa as entrevistas, abrindo uma nova porta de reflexão animagógica e, quem sabe, mitopoiética. E como a sócio-antropologia do cotidiano define este como sendo o fruto da dialética entre a rotina e o acontecimento, como é possível estudá-lo deixando de lado acontecimentos tão singulares como a pré-cognição, os casos de poltergeist, a clarividência, a – 53 –


psicografia, a “comunicação com os mortos” etc.? O fenômeno mediúnico é algo universal, registrado ao longo da história, nas mais diferentes culturas e nas mais diversas religiões. Inclusive a Bíblia apresenta um singular encontro entre o rei Saul e o “espírito” de Samuel através de uma pitonisa. Como já foi salientado, em nossa pesquisa não vamos nos adentrar na explicação da mediunidade. Porém, temos que convir que não é mais possível ignorar a presença deste fenômeno no estudo da vida cotidiana (aliás, em muitos casos, ela deixa de ser acontecimento para ser parte da rotina de muitos cidadãos, independentemente de seus valores culturais ou religiosos, de seu poder aquisitivo ou grau de instrução). Como já apontou o físico LESHAN (1994) e tantos outros estudiosos, a mediunidade e outros fenômenos sócio-culturais PSI nos levam a considerar, pelo menos no campo das hipóteses, a existência de realidades paralelas ou de poderes mentais e psíquicos que não podem ser ignorados pela ciência. E, apesar de serem raros os pesquisadores da mediunidade e os recursos para estas pesquisas serem escassos, não podemos ignorar que estudá-la, e também os seus frutos, é estudar a natureza básica do ser humano. E como apontou OLIVEIRA (2007), no seu representativo estudo sobre as curas praticadas por benzedeiras, as funções mediadoras para a compreensão deste fenômeno podem ser os mesmos para se estudar a comunicação medianímica de Pai Joaquim de Aruanda ou outra qualquer, ou seja, o caráter prático (sua Animagogia); o caráter normativo (sua Psicosofia); o caráter simbólico (presente na postura corporal do médium, na linguagem etc.); o caráter cultural (o campo cognitivo da manifestação “preto-velho” etc.); o caráter político (a apropriação-expropriação atuando entre os saberes constituídos pelo espiritismo, pela umbanda e pelo “espiritualismo ecumênico e universal”); e, por fim, as conexões energéticas ou quânticas e, também, as filosóficas que permitem repensar a materialidade do mundo e o poder da mente e do imaginário como criadores de realidades, recuperando a dimensão cosmológica e ontológica tão necessárias no processo de individuação ou de transcendência do ser humano. – 54 –


PARTE II

DESVELANDO O DISCURSO MÍTICO-ESPIRITUALISTA DE PAI JOAQUIM DE ARUANDA

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Para que o leitor possa se familiarizar com o discurso e a imagem do “espírito”, peço que assista, primeiramente, aos dezoito vídeos abaixo. Eles apresentam um pouco do universo simbólico e da bacia semântica adotada pelo “espírito” em sua manifestação mediúnica: 1. Momento da incorporação do “espírito”: http://www.youtube.com/watch?v=3xA6d_iERDk Este registro, feito em 2005, mostra o momento em que há a incorporação do “espírito” Pai Joaquim de Aruanda. É importante salientar que o médium é inconsciente e não se lembra de nada do que falou ou o que aconteceu durante o transe. Ele só toma consciência do que aconteceu quando vê as filmagens ou ouve as gravações dos áudios. 2. “espírito” responde questionamento sobre os cinco agregados (ensinamento de Buda): http://www.youtube.com/watch?v=KbU73uCKDaU Na entrevista em que fizemos perguntas sobre a doutrina de Buda para o “espírito” em questão, um dos assuntos foi sobre os “cinco agregados”. É importante ressaltar que o “espírito” afirmou, frequentemente, que ele estava “lendo um papel que colocavam na frente dele”, ou seja, quando ele não sabia a resposta, outros “espíritos” a traziam até ele. Numa ocasião, ele foi questionado para falar novamente sobre um determinado assunto e ele disse que não dava mais, “porque o papel já havia sido retirado”. 3 – “espírito” respondendo questão sobre os trabalhadores incorpóreos que atuam na Umbanda e sobre as religiões: http://www.youtube.com/watch?v=86M7OJVimBw Nas entrevistas sobre a Umbanda, o “espírito” Pai Joaquim de Aruanda respondeu várias perguntas, entre elas, sobre o papel dos seres incorpóreos que atuam nessa religião medianímica. Selecionei vários trechos e editei um pequeno vídeo chamado “Cem anos de umbanda”, do qual o trecho acima faz parte.

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4 – Pai Joaquim de Aruanda fala sobre a função de cada religião (as principais): http://www.youtube.com/watch?v=aXoFRzS_ydQ Neste vídeo, o “espírito” mostra o valor de cada religião, afirmando que cada uma possui uma vibração e que todas são certas, pois servem para uma função definida espiritualmente. 5 – “espírito” fala sobre as posturas que os espíritos adotam no trabalho de umbanda: http://www.youtube.com/watch?v=d6uEE1901Js Para Pai Joaquim de Aruanda, os “espíritos” utilizam posturas simbólicas no trabalho mediúnico. As posturas principais seriam as seguintes: “preto-velho”, “índio”, “criança” e “exu”. Para ele, as posturas não devem ser confundidas com as energias, que são os “orixás”. 6 – “espírito” responde pergunta sobre os orixás: http://www.youtube.com/watch?v=EvOjPICBxA0 Para Pai Joaquim de Aruanda, os “orixás” são vibrações ou faixas energéticas. Os espíritos (pretos-velhos, índios, crianças etc.) que atuam na Umbanda usariam essas energias em seus trabalhos. 7 – vídeo que apresentei no XV congresso internacional de estudos sobre o imaginário, em Recife/PE: http://www.youtube.com/watch?v=YnK2K1f4L4s Este vídeo é um resumo de como se processa a fenomenologia mediúnica de Pai Joaquim de Aruanda/Firmino José Leite, ressaltando os arquétipos dionisíacos presentes nela. 8 – “espírito” expõe seu humor dionisíaco ao comentar o mantra mais importante para se ligar a Deus: http://www.youtube.com/watch?v=FYp1Gy3ahOg Neste vídeo, o espírito utilizando sua sarcástica ironia, afirma que a forma de se ligar a Deus é dizer “dane-se” para o mundo material. – 57 –


9 – “espírito” fala sobre a “função espelho”, um texto de Santo Agostinho que aparece no livro o evangelho segundo o espiritismo, de Allan Kardec: http://www.youtube.com/watch?v=yAhLmCGGFhA No vídeo acima, Pai Joaquim de Aruanda fala sobre a importância de usar o comportamento do outro, a fala etc. para a nossa transformação interior, sem julgamento ou crítica.

10 – “espírito” responde pergunta sobre os exus: http://www.youtube.com/watch?v=B9CkcL8A4w0 Neste vídeo, o “espírito” apresenta uma polêmica concepção de Exus, um dos “espíritos” mais temidos. Para Joaquim, essa postura é adotada por “espíritos” puros.

11 – “espírito” responde o que é ser espiritualista? http://www.youtube.com/watch?v=CuH9uXgrjHY Neste vídeo, Pai Joaquim afirma que o espiritualista é aquele que vive para Deus, acima de todas as religiões. O espiritualista vivencia a felicidade hoje, e não no futuro ou em uma vida após a morte.

12 – “espírito” relaciona cada religião com uma especialidade médica: http://www.youtube.com/watch?v=DKSgZnu2qTM Neste vídeo, Pai Joaquim de Aruanda não critica nenhuma religião, demonstrando que cada uma possui uma função como especialidade médica.

13 - “espírito” fala sobre sua morte e o papel que desempenha como “preto-velho”, nos trabalhos mediúnicos: http://www.youtube.com/watch?v=z-zG6p45qmg Pai Joaquim de Aruanda afirma que foi escravo e umbandista em sua última passagem pela Terra. Afirma ainda, que, após – 58 –


desencarnar, foi convidado para trabalhar como “preto-velho” e conta como foi sua experiência. Por fim, critica os humanos por “materializar o mundo espiritual” ao invés de “espiritualizar o mundo material”.

14 – “espírito” comenta que a Umbanda não tem padronização: http://www.youtube.com/watch?v=6cbyVE1WW9Q Pai Joaquim diz que todos os trabalhos de Umbanda são corretos, pois não há uma padronização como acontece com o catolicismo, por exemplo.

15 – Pai Joaquim comenta o que é evolução espiritual ou iluminação, segundo o Buda: http://www.youtube.com/watch?v=Il9pjjAT_lw Neste vídeo, Pai Joaquim de Aruanda explica como Buda conceitua o caminho para se atingir a “iluminação”.

16 – “espírito” questiona o conceito de fé raciocinada, dogma do espiritismo: http://www.youtube.com/watch?v=PS9-yozQFpE Neste vídeo, Pai Joaquim de Aruanda diz que Fé é entrega incondicional a Deus. Os ensinamentos podem ser raciocinados, jamais a Fé.

17 – “espírito” comenta a relação entre caridade e evolução espiritual: http://www.youtube.com/watch?v=a1idFwmHYZ0 O espírito afirma que somente o ser caridoso atinge o reino do céu, porém, ser caridoso é ser benevolente, indulgente e perdoar e a caridade não está relacionada com atos materiais. Afirma ainda que foi como escravo que mais evoluiu espiritualmente, pois conseguiu amar o algoz.

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18 – “espírito” fala sobre a perfeição da vida: http://www.youtube.com/watch?v=oLO6QC43ymw Um dos pontos mais polêmicos de seus ensinamentos é a afirmação de que “ninguém interfere na encarnação de outro espírito humanizado”. Ou seja, o que pode acontecer é alguém ser o escolhido para ser o “instrumento carmático” de alguma vicissitude negativa que o outro mereça passar. Em outras palavras, “tudo está perfeito!”. E quem é Pai Joaquim de Aruanda? Para se estudar um autor é necessário saber quem ele é. Por se tratar de um ser incorpóreo que se manifesta através de uma postura simbólica de “preto-velho”, temos que nos basear em suas próprias palavras. Raramente, ele fala de suas vidas passadas. O que foi possível apurar é que ele “foi”, em sua ultima existência na Terra, um escravo no Brasil. Porém, segundo afirmou em outra entrevista, já foi mãe “umas duzentas vezes” na Terra e, em outra ocasião, questionado sobre o livro Eclesiastes, afirmou que estava encarnado no período em que o livro foi escrito e que viu Salomão o escrevendo. Esses são os únicos dados sobre sua bio-história. A seguir, o “espírito” nos responde sobre o personagem Pai Joaquim de Aruanda, que ele diz representar, mas não fala nada sobre ele, o “espírito”: Resposta – É um personagem que um espírito utiliza para realizar seu trabalho espiritual na seara do Cristo. Não existe um espírito chamado Pai Joaquim, mas vários espíritos podem trabalhar com essa personagem que tem uma forma específica de atuação ou missão na Umbanda. Essas denominações são como as “franquias” da Terra. Na minha última encarnação na Terra eu vivenciei o papel de escravo, mas nem todos os espíritos que se manifestam como pretos-velhos, na Umbanda, necessariamente foram escravos na Terra. Para criar o personagem preto-velho existe algo como um programa de computador ligando o espírito comunicante ao médium. Eu, o espírito, não sou torto e nem falo errado. Mas é esse programa que faz com que o médium fique todo encurvadinho e comece a falar errado. – 60 –


2 – Mas para que o espírito precisa fazer isso? Resposta - O espírito não precisa disso, mas o encarnado. Todo o teatrinho é para o encarnado e não para o espírito. Se o médium não mudasse a voz, a postura etc., muitos não acreditariam que estavam diante de um espírito. Muitos ainda precisam desse teatrinho para se convencer da realidade espiritual.

3 – E os orixás? Eles são espíritos? Resposta - Na Umbanda, os orixás representam as energias universais. São sete vibrações energéticas que recebem diferentes denominações, como Yemanjá, Oxalá, entre outras. Mas não existe um espírito chamado Yemanjá. Esse é o nome da energia. O trabalhador espiritual da Umbanda, e não importa se ele está usando a postura de preto-velho, índio, criança ou exu, utilizará a energia que o consulente necessita naquele momento. Se ele precisa da energia Yemanjá, é essa energia que eu vou usar, pois ela possui a vibração necessária para o problema dele, mas eu não invoco um espírito que tenha esse nome. Enquanto concebermos um espírito como Yemanjá, estaremos criando idolatria. Por isso, Oxalá é uma energia e não Deus ou Jesus. Mas existe uma falange de espíritos que trabalha com essa faixa de energia. Ela é a energia mais pura dentro da Umbanda. Apesar de muitos espiritistas e até mesmo umbandistas considerarem a manifestação de Pai Joaquim de Aruanda uma forma “errada” de comunicação mediúnica, por usar a internet e abordar assuntos não usuais como os ensinamentos de outras doutrinas, como as de Buda, Krhisna e outros, é preciso salientar que para o estudioso dos fenômenos humanos, o importante é considerar todas formas possíveis de se relacionar com o mundo espiritual, compreendendo o dinamismo de suas próprias configurações psico-espaciais e funcionais. Elas são diferentes, obviamente, mas não existe como definir cientificamente qual é a certa e quais são as erradas. Segundo o próprio “espírito”, ele já atuou na Umbanda, atendendo consulentes, mas, desde 1998, recebeu uma outra “mis– 61 –


são”, a de trazer para a Terra uma nova doutrina: O “espiritualismo ecumênico universal”. Ele afirma que neste novo trabalho usa exclusivamente o médium Firmino José Leite. Como não escreve, o “espírito” faz palestras em vários centros espiritualistas e também pela internet. As gravações de seus áudios e transcrições de suas falas, gradativamente, são espalhadas em sites de relacionamento, de discussão, em blogs etc. tanto pelo médium como por seguidores dos ensinamentos de Pai Joaquim de Aruanda. Este já tem seguidores no Japão, na Europa e nos EUA, além de diferentes grupos organizados em várias cidades brasileiras, graças ao poder de comunicação instantânea possibilitado pela rede mundial de computadores. Nesta pesquisa, utilizaremos três textos: um baseado na transcrição das entrevistas sobre a Umbanda, realizadas na cidade de São Carlos/SP, entre os anos de 2005 e 2007, a transcrição de uma palestra realizada na cidade de São Paulo, no ano de 2004, sobre a oração de São Francisco, e uma palestra que considero das mais elucidativas para compreender o universo mítico-espiritualista de Pai Joaquim de Aruanda: “conhece-te a ti mesmo: a função espelho”. Acredito que estes documentos revelam aspectos significativos para o estudo mitocrítico dos ensinamentos desse “preto-velho”. Os interessados em outros documentos, como o estudo de O livro dos espíritos, do Baghavad Gita e tantos outros realizados pelo “espírito” em questão podem acessar o site www.meeu. com.br, organizado pelo médium para divulgar tal Psicosofia.

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AS

CONSTELAÇÕES DE IMAGENS

NOTURNAS NO DISCURSO DE

PAI JOAQUIM

DE

ARUANDA

O texto a seguir apresenta a opinião do “espírito” sobre a Umbanda. Na transcrição, adaptei a fala do “espírito”, substituindo o linguajar típico dos “pretos-velhos” por um português mais formal. O leitor interessado pode contrapor o texto abaixo com os vídeos apresentados anteriormente. O texto em itálico corresponde a transcrição da narrativa do “espírito”. Vamos tentar realizar o estudo mitocrítico, demonstrando as imagens que o relacionam ao regime noturno, conforme definiu DURAND, pois como já foi salientado, nas profundezas das doutrinas religiosas, dos sistemas filosóficos, das narrativas históricas e, porque não, das Psicosofias transmitidas pelos “espíritos”, encontraremos mitos que os promovem e os acomodam em um dos dois regimes de imagens (o diurno e o noturno) e em uma das três estruturas do imaginário (a estrutura heróica, a estrutura mística e a estrutura dramática). Apenas para exemplificar e facilitar a compreensão do leitor que desconhece a classificação proposta por DURAND, a estrutura heróica (regime diurno) presentifica os schèmes da ascensão e da separação, instituindo, entre outras, a lógica da exclusão, da contradição e da identidade. Por sua vez, a estrutura mística (regime noturno), está relacionada aos schèmes da descida e da intimidade, da união e da mistura. E, por fim, a estrutura dramática (regime noturno também), capaz de “re-ligar” de forma cíclica as duas estruturas anteriores, promovendo o princípio da similitude e da analogia. Em outras palavras, não é mais possível pensar o imaginário como oposição ao “real”, nem como sinônimo de “quimérico”. O imaginário é um sistema dinâmico, organizador de todas as imagens produzidas pelo sapiens que, como nos apercebemos, manifestam-se de três formas distintas, ora estimulando a luta e a discriminação, ora procurando a harmonia e ora re-ligando esses dois pólos. – 63 –


Vamos agora à narrativa de nosso entrevistado sobre a Umbanda. A Umbanda, no Brasil, começou com os escravos. Aqui, ela perdeu a pureza africana e se sincretizou com o catolicismo. A Umbanda que vocês conhecem é uma religião brasileira. Mas vocês conhecem a parte material da Umbanda, a mistura de uma doutrina com um determinado rito. Eu vou falar da parte espiritual da Umbanda, aquela que vocês não enxergam. Temos aqui, logo no início da fala do “preto-velho”, elementos que demonstram o imaginário místico da religião onde o “espírito” atua, a umbanda. Ao contrário, por exemplo, do espiritismo que se pauta pelo ideologema da “pureza doutrinária”, aqui é a “mistura” e o “sincretismo” que ganham força. A inclusão de forças aparentemente opostas sempre esteve presente na Umbanda. Mas o espírito esclarece que vai falar sobre a dimensão invisível, sobre aquela que não temos acesso através dos cinco sentidos. Na parte ritual da Umbanda não se aceita a manifestação de desencarnados. Só “personagens” podem incorporar: os pretos-velhos, os índios, as crianças etc. Se o seu pai desencarnado quer se manifestar em um trabalho de Umbanda, ele não pode. Mas como um “Pai Joaquim” ele pode. Os espíritos tomam posturas materiais para participar do “teatro” Umbanda. Mas, como falei, a mistura de uma doutrina com um rito é apenas a parte material de qualquer religião. Essa é a parte que todos vocês conhecem e é a que menos vale. Não se ofendam com o que vou dizer, mas o que vocês conhecem das religiões é apenas a “palhaçada”. Vocês já foram ao circo? Qual é a função do palhaço? É divertir a platéia enquanto atrás do palco estão se preparando os outros números. Todo e qualquer rito, não importa a religião, até o espiritismo tem rito, é a “palhaçada”, uma encenação para distrair vocês enquanto os espíritos daquela falange trabalham ativamente. Essa é uma fala polêmica do espírito. Muitos umbandistas se sentiram ofendidos com o termo “palhaçada” usado por ele. O contexto em que usa a expressão não me parece negativo. Aliás, no plano simbólico ele é elucidativo, uma vez que alguns dicioná– 64 –


rios de símbolos colocam o palhaço em contraposição ao rei e aos símbolos heróicos. O palhaço representaria a alegria e a espontaneidade. Porém, ele se referia ao trabalho dentro de um circo, onde os palhaços distraem o público enquanto o espetáculo principal está sendo montado nos bastidores. Em resumo, aquilo que vemos é menos importante que aquilo que acontece no plano espiritual, na dimensão invisível da vida humanizada, segundo ele. Enquanto uma dramatização, a Umbanda traz a esfera da arte e do estético para o mundo da religião, uma vez que os “espíritos” estão representando papéis. Ele não pode se manifestar com o nome e a forma que ele tinha na Terra, antes de morrer, mas pode representar um papel: ou o de preto-velho, ou o de índio ou o de criança. De certa forma, temos, respectivamente a representação do idoso, do adulto e da criança na simbologia adotada pelos três grupos de “espíritos” acima. E este papel adotado pelo “espírito” que está incorporado no médium serviria para distrair o consulente que, do plano invisível, recebe o atendimento que necessita, com as energias adequadas para o problema que enfrenta em sua vida humanizada. Nesta fala, já se pode notar uma diferença entre o trabalho mediúnico kardecista e o da umbanda, segundo o espírito. Enquanto no primeiro o espírito se manifesta para os videntes, por exemplo, com a aparência que ele tinha em sua ultima encarnação para ser reconhecido ou até mesmo escreve textos com a letra e a assinatura usada na Terra, o que favorece o reconhecimento e traz consolo para os parentes, na Umbanda as entidades necessitam das posturas simbólicas (os famosos pretos-velhos, índios, crianças, exus etc.) para levar consolo, uma palavra afetual e boas energias para o consulente. Assim, o padre, o médium, o espírito incorporado, o pastor etc. fazem encenações para distrair vocês enquanto os espíritos estão trabalhando. Por exemplo, não é a missa, o padre ou o papa que representa o catolicismo. O padre faz o papel do “palhaço” enquanto os verdadeiros astros, a plêiade de espíritos que atua na vibração energética do – 65 –


catolicismo, trabalha. O papel do padre é o de “divertir” o público. E isso acontece em todas as religiões, inclusive na Umbanda. Por isso, quando falamos em religião, e não importa qual, não podemos nos prender ao lado material da religião, ao teatrinho que vocês assistem. Aparentemente, parece um discurso contra as religiões e seus rituais. Mas é possível perceber na fala do “espírito” novamente o valor da união. Enquanto os religiosos se digladiam para provar que a sua religião é a certa, Pai Joaquim diz que todas atuam da mesma forma e se complementam. Na Terra elas fazem a “palhaçada” necessária para distrair o público, enquanto os “espíritos” daquela determinada corrente espiritual trabalham no plano invisível. Enfim, se do “lado de cá” parece que cada uma faz uma coisa diferente, do “lado de lá” existe uma união de forças, pois todas as religiões trabalham para Deus. No livro “fragmentos da historia oculta de São Carlos”, escrito por mim a partir de depoimentos de médiuns são-carlenses, em 2007, uma das entrevistadas que se diz médium vidente, afirma ver em igrejas evangélicas, “espíritos” dando “passes” nos fiéis enquanto os pastores conduzem a pregação ou os rituais. Ou seja, sua fala vem ao encontro do que ensina Pai Joaquim de Aruanda. Em outras palavras, os “espíritos” estariam em todos os lugares, mesmo naqueles que negam a sua existência e a sua influência no mundo material. Isso precisa ficar bem claro para que possamos compreender o papel das religiões no mundo de provas e expiações. Não podemos ficar conversando apenas sobre o que acontece no picadeiro, mas sobre o que acontece atrás. É lá que está se realizando o verdadeiro “culto”. Eu falei que o espiritismo também tem ritos e os espiritistas se assustaram. Então, vamos dar um exemplo. Quando você recebe um passe, você se sente bem? E por quê? Será que foi por causa do movimento das mãos do passista? Foi por causa das suas gesticulações? Foi por causa daquilo que os espiritistas chamam de P1, P2 ou P3? Claro que não. Você se sente bem por causa da energia que foi doada por Deus através dos espíritos. A forma do passe, que os espiritistas tanto discutem, não influencia em nada. E tem aqueles que ficam – 66 –


discutindo que o passe de um é melhor que o do outro. Vejam como vocês se preocupam com a encenação. Vocês perdem tempo criando padrões humanos. Segundo o espírito, as religiões só existem nos “mundos de provas e expiações”, ou seja, segundo o espiritismo, os planetas evoluem em cinco estágios: “mundos primitivos”, “de provas e expiações”, “de regeneração”, “angelical” e “de felicidade”. A Terra estaria, supostamente, no segundo estágio. Em outra palestra do “espírito”, ele afirma que o mito de Adão e Eva simboliza a passagem da Terra do estágio de “mundo primitivo” para “mundo de provas e expiações”. É o momento em que os “espíritos” encarnados passam a julgar o “certo” e o “errado” e passam a viver sob a “lei do carma”, colhendo os frutos plantados. A libertação deste mundo aconteceria assim que o “espírito” parasse de julgar e passasse a vivenciar sua vida humanizada apenas com amor. Esse processo aconteceria na encarnação em que o espírito se liberta do Ego ainda encarnado. Ou seja, é como se a encarnação fosse um jogo para os “espíritos” e vence a prova quem alcança esse objetivo, amando as vicissitudes positivas e negativas da existência. Desligar-se do Ego no mundo espiritual não teria validade, pois isso seria condição necessária para uma nova encarnação. E seria nos “mundos de provas e expiações” que as religiões existiriam. E não para nos conectar a Deus, mas como um campo de prova. Para Pai Joaquim, as religiões reforçam o egoísmo e nos afastam de Deus, pois passamos a amar e a idolatrar a religião e esquecemos de amar a Deus acima de todas as coisas, inclusive, das religiões. Essa visão é semelhante à manifestada por Lao Tsé, no clássico chinês Tao e Ching quando ele discorre sobre o “não-saber”. Em suma, enquanto nos preocupamos com a religião ou achamos que a nossa é a certa e as demais erradas, esquecemos de amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo, pois este optou por outra religião. Voltado à idéia-força de seu discurso, o Ego, Pai Joaquim de Aruanda afirma que o egoísmo é a energia que nutre os “mundos – 67 –


de provas e expiações”. Nos mundos “regenerados”, a energia que os nutre seria o amor. Nesse sentido, não compreender o caráter complementar das religiões seria fruto do egoísmo. Mas as religiões não estariam erradas, pois esse seria o papel delas no atual estágio do planeta, como afirma abaixo. Mas vejam, não estou aqui dizendo que isso está errado, pois tudo isso é parte das provas de vocês. E como falei, isso vale para todas as religiões. Nenhuma religião é aquilo que o ser humano criou ou padronizou. Todas as religiões fazem trabalhos espirituais e não materiais. É óbvio que não posso falar isso para aquelas pessoas que ainda vão ao centro espiritista apenas para receber o passe; para aqueles que ainda escolhem o passista ou a entidade para conversar. Eu não posso destruir o teatrinho delas. Mas para vocês eu posso. Por isso, se nós vamos falar sobre Umbanda, podemos até abordar os assuntos materiais, mas vocês precisam compreender mesmo é o que acontece no invisível. É lá que a verdadeira Umbanda está acontecendo. O que vocês enxergam é apenas uma encenação que possui um determinado motivo. É importante salientar que no discurso do “espírito” Pai Joaquim de Aruanda, o mundo material é criado por Deus, e não pelos seres humanos. E essa criação é feita a partir das escolhas que cada um fez antes de encarnar. Assim, podemos dizer que Deus trabalha para realizar o livre-arbítrio de cada “espírito”. O mundo material seria, portanto, um mundo ilusório onde o que conta seria a intenção e não os fatos. Nesse sentido, acontece aquilo que precisa acontecer, a cada segundo, seja positiva ou negativamente, dentro do olhar estreito do ser humano que não se lembra das escolhas que fez antes de encarnar. Isso ajuda a compreender por que em seu discurso não há vítimas ou vilões, desejo de mudança social, medo da morte ou qualquer outro elemento que estimule a luta heróica para transformar o mundo e fugir do tempo que passa e da morte. Então, agora, vamos falar dos bastidores da Umbanda. E como eu distingo o agrupamento espiritual da Umbanda, do agrupamento Espiritista ou do agrupamento Católico, por exemplo? É através de – 68 –


uma determinada faixa de energia, com tamanho, amplitude e velocidade específica. Ou seja, a Umbanda é formada por um grupo de espíritos que atua com uma determinada faixa de energia. E o mesmo vale para as demais religiões. Existe o grupo de espíritos católicos atuando com uma faixa de energia; o grupo de espíritos espiritistas trabalhando com outra faixa; o de espíritos budistas com outras, e assim por diante. Existem espíritos que conseguem trabalhar em mais de uma faixa de energia, mas isso é muito raro. Para se fazer isso é necessário ter um grau de compreensão maior, mais universalista. Hoje, a maioria dos espíritos (e não importa se ele é umbandista, católico, espiritista etc.) ainda acredita que a sua faixa de onda é a melhor. Alguns já têm a consciência que trabalham para Deus em uma determinada faixa de energia, mas não compreendem que para Deus não tem o melhor ou o pior. Para Deus, a relação entre as religiões é horizontal e não vertical. Nesta passagem está ainda mais evidente o imaginário antifrásico, no sentido de unir e não de separar. O que diferencia uma religião da outra seria apenas a faixa de energia em que atua, de forma semelhante ao que acontece com as cores de um arcoíris. No exemplo adotado pelo “espírito”, cada cor representaria uma religião. O que distingue uma da outra é o tamanho, a frequência e a velocidade da onda, mas todas seriam importantes para a manutenção do Todo. Nessa passagem também fica evidente que mesmo entre os desencarnados, haveria aqueles que ainda acreditam que a sua religião é a melhor, não compreendendo que para Deus isso não existiria. A idéia de separação, de superioridade seria ilusória e estaria apenas na mente do “espírito”. A relação entre as religiões seria horizontal e não vertical, elegendo-se a “verdadeira” e as “falsas”. Vocês precisam compreender que os espíritos que trabalham aqui na Terra são iguais a vocês. Eles ainda têm ego. Só não tem mais, provisoriamente, o corpo físico. Alguns já reconhecem que trabalham para Deus, mas acreditam que o trabalho que realizam é mais importante que o do outro, que atua com outra faixa de energia. É por isso que existem livros psicografados onde o espírito afirma que o espiritismo é mais importante – 69 –


ou “superior” a umbanda. Isso é fruto do ego do espírito que escreveu o livro e é mais uma prova, para você que lê e para ele que escreve. Muitos espíritos ainda possuem ciúme, vaidade, orgulho etc. O “espírito” não é, necessariamente, um anjo ou um “demônio”, mas apenas a “alma de um morto”, ou seja, um desencarnado. Mesmo não estando ligado a um corpo físico, Pai Joaquim de Aruanda afirma que o “espírito” pode estar ainda ligado ao ego que criou para sua ultima encarnação. Dessa forma, ele pode sentir ciúme e outros sentimentos não-amorosos. Por isso, afirma que, em um livro psicografado, quando algum “espírito” afirma que uma religião é melhor que outra, seria a constatação de que o mesmo ainda se encontra iludido pelo ego. Mas não é o “espírito” que pensa assim que precisa mudar, ser educado ou doutrinado. Nós é que precisaríamos aceitá-lo como ele é e não julgar nem condenar ninguém. Podemos notar que Prometeu e toda sua heroicidade para mudar o outro e o mundo não está presente no discurso de Pai Joaquim de Aruanda que, frequentemente, repete as palavras de Madre Tereza de Calcutá: “sempre a relação é entre cada um de nós e Deus”. Saibam que existem sete graus de ego. Os espíritos que estão do quarto para cima não vêm mais para a Terra. Vocês se relacionam com espíritos iguais a vocês. Por isso sempre falo para não idolatrarem o Joaquim, não se impressionarem comigo. Eu sou igualzinho a vocês. Para Pai Joaquim de Aruanda, apenas Deus não teria ego. Ego, como já salientamos, é um dos termos que mais se repetem em seu discurso. É ele que mobiliza os espiritualistas que seguem a sua Psicosofia. Enquanto idéia-força, o ego agrega e justifica sua doutrina espiritualista. E o que seria o ego, para Pai Joaquim de Aruanda? Seria um agregado ao “espírito” que o impede de amar e de ser feliz incondicionalmente. Para cada encarnação seria necessário criar um novo Ego. E o “espírito” vai manifestando cada vez mais a sua Luz interior conforme se livra desse peso, desse agregado. Em um aforismo budista encontramos uma idéia semelhante. A luz do sol iluminaria todas as casas de um povoado com a mesma intensidade, mas aquela que tem uma cortina muito densa na janela, impede a que a luz entre. O contrário aconteceria – 70 –


nas casas com outras cortinas. O ego seria como uma cortina que impede o “espírito” de brilhar. Nesse sentido, libertar-se do ego é diferente de “evoluir espiritualmente”, do ponto de vista mítico-imaginário. No primeiro caso estamos diante das imagens da penetração, do escavar, do voltar-se para dentro. No segundo caso, é necessário subir, elevarse, voltar-se para fora. O discurso espiritista é heróico, pois parte da idéia que o “espírito” foi criado simples e ignorante e precisa “evoluir”. Na visão de Pai Joaquim de Aruanda, muito similar a do pensamento oriental, é necessário retirar a sujeira que envolve o “espírito”. No caso, a sujeira é o ego, um agregado que não pertence ao “espírito”. Em suma, o “espírito” já teria sido criado puro e perfeito. Sua Luz não brilharia intensamente por causa da sujeira nele impregnada. Podemos fazer uma analogia com o trabalho de um escultor que para “libertar” a estátua que está dentro de uma rocha de mármore precisa tirar o excesso de massa que a envolve. É preciso voltar-se para dentro e não para fora. E um dado importante e que relativa os trabalhos mediúnicos é a sua afirmação de que aqueles que estão no quarto Ego ou nos superiores não viriam mais para a Terra. Ou seja, em qualquer trabalho mediúnico, na visão deste “espírito”, estaríamos sempre diante de “espíritos” como nós. Essa visão é criticada por vários espiritistas que acreditam que na Umbanda se manifestam apenas “espíritos inferiores”, ao contrário do espiritismo, onde estariam se manifestando os “espíritos superiores”. Para ele, não importaria o trabalho espiritual realizado, sempre seriam “espíritos” como nós, no mesmo “estágio evolutivo”, que estariam se manifestando ou atuando nos bastidores da vida, já que os mais graduados não viriam para cá, coordenando os trabalhos de outra forma. Para facilitar a compreensão do que são essas faixas de energia vamos tomar como exemplo as cores que vocês conhecem. Vamos fazer de conta que o verde seria a faixa da Umbanda. Dentro da faixa da luz verde há diferentes matizes, diferentes possibilidades de combinações. Assim, uns espíritos podem trabalhar com o verde água, outros com o verde abacate etc., mas nunca deixa de ser verde. Não houve mudança de faixa, pois todos trabalham com a mesma cor, mudando apenas – 71 –


o tom. Porém, se ultrapassar para o lado, e não para cima, porque não existe religião melhor que outra, muda-se de faixa, portanto, muda a função do trabalho. Como falei, tem espíritos que estão preparados para trabalhar com outras faixas de energia, com as energias de outras religiões, mas isso é ainda raro na Terra. E do ponto de vista de Deus? Do prisma de Deus não há separação alguma. A separação é apenas para nós, os espíritos desencarnados e encarnados. Para Deus é uma coisa só. Essa passagem do texto reforça os schèmes de união, de inclusão (tipicamente místicos) e a recusa pela verticalidade (estrutura heróica), repousando na unidade sincrônica que a horizontalidade possibilita. Vamos, agora, entender um pouco a função de cada religião: Católica – os espíritos que atuam nessa falange atuam na aplicação dos sacramentos (batismo, casamento, extrema-unção, crisma, etc.). Cada sacramento tem um significado no plano espiritual e te liga a uma determinada faixa energética. Evangélica – a falange que atua nessa faixa de energia é a responsável pela divulgação do ensinamento do Cristo, pela doutrinação cristã. Se o pastor decide fazer desobsessão em sua igreja, é um problema dele, pois está entrando em outra faixa. A falange espiritual que atende nessa religião tem apenas a função de levar os ensinamentos do Cristo para a Terra. Hinduísmo – ela tem na Terra diversos segmentos e rituais, mas, espiritualmente falando, é a falange responsável pelo trabalho da reforma íntima, ou seja, de libertação do ego. Toda a energia dessa falange é direcionada para esse objetivo. Budismo – é a falange responsável em colocar o ser humanizado em contato com as energias mais puras do universo, no caso, do orbe planetário que vocês vivem e não de todo o Universo. São os espíritos dessa falange que vão nos trazer o conforto das energias mais puras. Islamismo – espiritualmente falando, essa falange é responsável pelo ensinamento da necessária submissão completa a Deus, o Maktub (tudo está escrito). – 72 –


Espiritismo – está doutrina que vocês chamam também de kardecismo é a responsável em mostrar a vida ativa depois da morte e a ligação da vida espiritual com o mundo material. Umbanda – a falange umbandista tem como missão proteger o espírito encarnado. Essa é a função dos espíritos umbandistas. São os guerreiros que acompanham as encarnações dos espíritos mais de perto. Ou seja, enquanto as demais religiões não têm função de ação, mas de esclarecimento, a umbanda age. Assim, não esperem da Umbanda nenhum esclarecimento doutrinário, pois ela não tem essa função. Para entender o papel da Umbanda, pense que cada espírito encarnado é um rei. As outras religiões são os conselheiros desse rei, mas quem dá a segurança para ele continuar sendo um rei é a sua tropa. Os espíritos da falange umbandista são os que formam esse exército. E esses trabalhadores protegem o rei e também os seus reinos. Por isso são os trabalhadores espirituais da Umbanda que protegem os centros espiritistas, as igrejas evangélicas, as igrejas católicas etc. Esses espíritos são os guardiões do rei e dos seus reinos. É preciso ressaltar, para evitar interpretações equivocadas, que o “espírito” está se referindo à energia e ao papel espiritual de cada religião. Em nenhum momento ele se preocupa com os rituais ou com as doutrinas, criações dos egos humanizados. Isso precisa ficar claro na mente do leitor para não confundir o papel espiritual da religião com sua manifestação exterior ou visível, o que Pai Joaquim de Aruanda chamou de “teatro”. Podemos notar que há uma “unidade corporal” entre as religiões, segundo sua fala. Elas se complementam em sua Psicosofia. Uma não luta com a outra. Não há em seu discurso sinal de hostilidade, critica ou indiferença por uma ou outra religião. O que também chama a atenção é para o papel da Umbanda. Segundo ele, seriam os trabalhadores espirituais desta religião que tomariam conta dos templos das demais, mesmo daquelas que, na Terra, chamam os “espíritos” da Umbanda de “demônios”. Mas é importante deixar claro que esses trabalhadores protegem o reino espiritual, ou seja, a sua espiritualidade e não sua vida mate– 73 –


rial. Por exemplo, se no seu “livro da vida” está escrito que você deve ser assaltado, eles não vão impedir que isso aconteça. Mas se você, espiritualmente falando, começa a sofrer, eles vêm correndo, não para mudar o ato, mas para te ajudar a superar o sofrimento, enviando as energias adequadas para isso. Obviamente, você tem o livre arbítrio de aceitar essa energia ou não. E alguém precisa orar para ele vir ao seu auxilio? Não. Qualquer filho de Deus que aceitou, por exemplo, o nervosismo que o ego disse que deveria sentir ao ser assaltado, faz soar uma espécie de alarme e um guardião vem correndo para lhe trazer a energia que possa te equilibrar. Mas, se você não aceitar essa energia, ele não pode fazer mais nada. Ele cumpriu o papel dele. Nesta passagem Pai Joaquim de Aruanda mais uma vez reforça que o mundo material é um grande teatro, uma representação. Os “espíritos” atuam no lado invisível da vida para que o “livro da vida” de cada um seja representado plenamente. Assim, o papel deles não seria o de evitar um assalto, um acidente, curar uma doença ou qualquer outra coisa material. Eles trabalham para o “espírito”. Ou seja, trazendo energias de amor, felicidade, coragem etc. para cada um viver o seu “carma”. Por isso dissemos que esses trabalhadores espirituais não podem mudar uma linha sequer do seu “livro da vida”. Eles não podem fazer o que seu ego quer, mas quando o Amor (a lei suprema) está em perigo, toca o alarme e um soldado que está sempre de prontidão para ajudar, vem ao seu auxílio. Este espírito não é o seu “anjo da guarda”, o seu guia espiritual. Vamos falar depois do “anjo da guarda” quando falarmos de como a ilusão da ação é criada, quando falarmos das 12 falanges que criam essa ilusão. Até aqui, o que fizemos foi um discernimento. Ou seja, falamos das funções espirituais de cada religião. Não julgamos ou condenamos nenhuma religião. Em nenhum momento falamos que a Umbanda é melhor ou pior que uma outra religião. E esse discernimento é importante para que você possa se relacionar melhor com as religiões, entendendo que elas são especialidades médicas, são medicinas espirituais.

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Se você está com dor de cabeça, você procura um especialista em dedo? É assim também com as religiões. Cada religião é como um especialista. Se o seu problema é lutar contra o ego, não vai adiantar, por exemplo, ir ao templo evangélico. Lembre-se que você sempre estará sendo tratado pelo médico maior que é Deus. Ele, muitas vezes, te receitará dois ou mais “remédios”. E cada remédio pode estar em um lugar diferente. Por isso, se você vai a uma casa religiosa e lá dizem que você não pode ir a uma outra, isso faz parte das provas daquele que falou isso. Você vai aonde tiver que ir e na hora que tiver que ir. É o ego do pastor, do médium, do espírito que dá comunicação ou do padre que diz que uma religião não serve e que você não deve buscar ajuda nela. Deus vai te levar onde você precisar ir. A orientação para não ir a outro lugar acontece por vários motivos, por exemplo, o apego e a idolatria a nossa religião, acreditando que ela é melhor que a outra, esquecendo que Deus está em todos os lugares. Se alguém te orienta a não ir a algum lugar e você vai assim mesmo é porque ele não estava em condições de avaliar os desígnios de Deus. Ele não sabe que Deus já encerrou aquele tratamento naquele lugar e vai continuar em outro. Você vai onde precisa ir. Não existe a religião certa e a errada, pois, como falamos, cada uma é uma especialidade dentro da medicina da alma. Esta passagem deixa evidente o caráter simbólico e não diabólico do discurso espiritualista de Pai Joaquim de Aruanda. Lembrando que sim-bólico está relacionado a tudo aquilo que une. Por sua vez, dia-bólico, a tudo aquilo que separa. As religiões estariam interligadas para satisfazer os desígnios de Deus. Os espíritos que atuam nas sete religiões que estudamos fazem parte de apenas duas das doze falanges espirituais que criam o que chamamos de “ilusão da ação”. No Apocalipse de João, na Bíblia, encontramos referencia aos 144 mil espíritos escolhidos por Cristo. Esse número refere-se às doze falanges espirituais, cada uma com 12 mil trabalhadores, responsáveis em criar o filme que vocês chamam de vida. Tudo o que acontece com o espírito encarnado, no Orbe terrestre, é gerenciado por estas – 75 –


falanges. Assim, além das duas responsáveis pelas religiões (uma pelas religiões cristãs e outra pelas não-cristãs), existem mais dez, responsáveis por cuidar: 1 - dos minerais; 2 - do ar, ou seja, do elemento gasoso; 3 - da água, ou do meio aquático; 4 - dos vegetais; 5 - dos animais; 6 - do corpo humano; 7 - do próprio espírito, ou seja, são os chamados “anjos da guarda” (é um trabalhador dessa falange que vai estar sempre ao seu lado, com o seu “Livro da Vida” nas mãos. Mas ele está ao seu lado para cuidar do seu lado espiritual e não da sua vida material, pois o seu “anjo da guarda” te acompanha para que suas provas aconteçam da melhor forma possível, respeitando o gênero de provas que você solicitou antes de encarnar). Falta falar de três falanges. Duas são formadas por espíritos que irão realizar os momentos especiais da história humana. São eles que prepararam a vinda do Cristo; o momento da divisão do catolicismo para o surgimento na Terra do movimento protestante; o advento da doutrina espírita etc. Atualmente, esse agrupamento trabalha para a regeneração da Terra. Esses espíritos não são melhores ou piores que os outros, apenas cuidam desses momentos especiais da vida humanizada. E a ultima falange é a responsável pelo funcionamento ou não das coisas humanas. São esses espíritos que fazem, por exemplo, a TV parar de funcionar, quebram o carro na hora que ele precisa quebrar, fazem o avião cair se é hora dele cair etc. Ou seja, o mundo espiritual é uma “empresa” bem organizada. Do lado de cá, tudo funciona de forma perfeita e harmônica para gerar as provações dos espíritos humanizados. É assim que o mundo de provas e expiações existe. E essa ilusão é tão bem feita que vocês acreditam que um novo corpo surge dentro da barriga da mãe quando um espermatozóide encontra um óvulo e, por acaso, inicia uma gravidez. – 76 –


Sei que não é fácil compreender tudo isso, mas está na hora de arrancar toda a ilusão de vocês. Chegou a hora de arrancar as máscaras. A ilusão da ação sempre aconteceu, acontece e acontecerá. É o Maktub (tudo está escrito). Vocês sabem disso, mas essa informação não vem ao consciente de vocês justamente para viverem suas provas. E toda prova serve para você demonstrar que aprendeu a ser caridoso, aprendeu a amar universalmente. Aproveitar ou não a prova é fruto do seu livre arbítrio. Essa passagem talvez seja a mais polêmica para muitos espiritualistas acostumados com a crença de que temos livre-arbítrio nos atos. Segundo Pai Joaquim, nosso livre-arbítrio após a encarnação está na atitude, entendida aqui como ação sentimental ou interior. O livre-arbítrio não se encontraria na criação dos fatos materiais. O mundo material, além de ilusório, seria criado por Deus, através das 12 falanges de “espíritos” descritas acima. Para muitos espiritistas, essa fala do “espírito” demonstraria que se trata de um “espírito inferior” ou “zombeteiro”, pois se trataria de um “ensinamento não-racional”. Na minha opinião, se trata de um ensinamento racional, sobretudo se pensarmos que a matéria não possui substancialidade, como afirma hoje em dia a Física Quântica, reproduzindo a Psicosofia de mestres orientais como Buda, Krishna e Lao Tsé. Ela pode não se coadunar com a Física newtoniana com a qual estamos acostumados a pensar o funcionamento da natureza. Além disso, sua narração demonstraria racionalmente porque cada um só “recebe o que necessita e merece” ou que não é possível que alguém interfira na encarnação do outro. Aquele que nos fere ou ofende foi apenas o escolhido para ser o instrumento de uma determinada “ação carmática” que precisaríamos vivenciar. Vamos falar agora de outro assunto polêmico: as sete linhas da Umbanda, ou seja, os orixás. O que chamamos de as sete linhas da Umbanda são sete padrões de vibrações diferentes. A Umbanda trabalha com uma faixa de energia que é sub-dividida em sete. Os espíritos da Umbanda trabalham, portanto, com sete tipos de energias. – 77 –


O que chamamos de orixás são os nomes das energias. Não existe, portanto, um espírito chamado Xangô, mas um grupo de espíritos trabalhando com uma determinada faixa energética que chamamos de Xangô. Da mesma forma, Yemanjá não é um espírito. Se concebermos um espírito como Yemanjá estamos criando idolatria. Em alguns centros existe uma figuração. Isso não está certo ou errado. Mas você não pode achar que Yemanjá seja um espírito. A energia se chama Yemanjá. E a imagem dela em um centro serve como reservatório de energia. Os espíritos da Umbanda são os Pretos-velhos, os Exus, as Crianças, os Índios etc., mas eles não podem ser confundidos com os orixás, com as energias. Falaremos depois das entidades e de suas posturas. Vamos ver agora cada uma das energias: Oxalá – É uma energia e não Deus ou Jesus. Oxalá é uma faixa de energia e existe uma falange de espíritos que trabalha com essa determinada faixa de energia. Esta é a energia mais pura dentro da Umbanda. É a energia para a ligação com Deus através da Fé. Vamos entender como um trabalhador da Umbanda trabalha com essa energia. Quando a sua Fé está abalada, um dos espíritos dessa falange sai correndo para o seu atendimento. E ele age para reforçar a sua Fé, a sua ligação com Deus. Podemos dizer que um espírito especializado nessa energia pertence à falange de Oxalá. São aqueles que vem correndo quando toca este tipo de “alarme”. Yemanjá – É uma energia de “desfluidificação”, ou seja, para purificar o seu sofrimento. Vamos exemplificar melhor. Quando você fica nervoso, vem um falangeiro de Yemanjá para transformar o seu nervosismo em uma aparente calma. É uma limpeza “fina” que esse trabalhador faz. Ele não é um Exu, apesar da maioria dos Exus trabalhar com a energia que chamamos de Yemanjá. Oxossi – É uma energia para trazer Coragem. Por isso se diz: “Quando falta coragem, chama Oxossi!”. Mas não é chamar um espírito chamado Oxossi. Ou seja, está pedindo para o trabalhador espiritual trazer a energia que te dará coragem para viver o seu carma.

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Oxum – É uma energia sentimental. Para você não sofrer com os filhos, com as amizades, para cuidar da ligação sentimental com os seres humanos utiliza-se essa energia. Yansã – Vocês dizem que é a senhora dos raios. E por quê? Porque essa energia é usada para ajudar durante as “tempestades” da vida. Quando você estiver em um sofrimento grande, para enfrentar a “tempestade” necessitará dessa energia. Xangô – É a energia da Lei do carma. Quando você se revolta com o que está acontecendo, quando não aceita o que está escrito no seu “Livro da Vida”, precisa dessa energia. Ogum – É a energia do amor, ou seja, o cumprimento da lei de Deus. Entenderam o que são os orixás? Não existe um espírito chamado Yemanjá. O que existe é uma determinada energia que vocês reconhecem como Yemanjá e um grupo de espíritos que sabe manipular essa determinada energia. Daí podermos falar que são espíritos da falange de Yemanjá, pois são espíritos que trabalham com essa energia. Essa informação é de difícil compreensão para quem não consegue entender que a matéria não passa, em sua essência, de energia. A imagem de barro, a flor, as cores etc. são formas de manifestar a energia escalar (na visão cientifica) ou cósmica (na visão espiritualista). E a espiritualidade vai acondicionar mais energia nela, como se fosse um recipiente. De acordo com a vibração da energia, usa-se uma ou outra imagem para identificá-la. Podemos notar que sua fala é totalmente “pós-moderna”. Ela explicaria o arcaico, as práticas consideradas “atrasadas” ou “irracionais” através de um discurso coerente, fundamentado na física contemporânea e na neurociência. Por exemplo, se tudo não passa de energia e só vemos aquilo que nosso cérebro consegue decodificar, pode ser que somos realmente “espíritos” (encarnados e desencarnados) inseridos em um campo de energia, das mais variadas ondas e frequências, os “orixás”. Entendendo o que são os orixás, podemos falar das apresentações dos espíritos para vocês. Os espíritos da Umbanda trabalham com uma dessas sete energias. Como Preto-Velho, por exemplo, eu posso traba– 79 –


lhar com as sete energias. Eu, como Preto-velho, não estou ligado a nenhuma delas, assim como o Exu não está ligado a nenhuma delas, e nem as Crianças. Os orixás são faixas energéticas, com determinada amplitude e velocidade. Já o Preto-Velho é uma das posturas simbólicas que o espírito toma para o trabalho mediúnico da Umbanda acontecer. Assim, o Preto-Velho é um trabalhador da Umbanda e não de um determinado Orixá. Por exemplo, eu posso estar conversando com um consulente e com ele preciso usar a energia Yemanjá. Com outro consulente eu “chamo Oxossi”, ou seja, não chamo um espírito chamado Oxossi, mas uso essa determinada energia que se chama Oxossi. Isso é importante deixar claro. Uma coisa é a faixa energética e outra a postura do espírito. Assim, ao mesmo tempo em que estou fazendo a “palhaçada” (ou seja, interpretando um Preto-Velho que conversa com um consulente), estou trabalhando energeticamente com ele, utilizando uma determinada faixa de energia. Assim, não importa a postura (Preto-Velho, Índio, Exu, Criança etc.), o espírito pode usar a energia de qualquer faixa. É preciso deixar claro que a postura faz parte do “teatro”. A postura é do corpo e não do espírito. Preto-velho é simplesmente uma postura que o espírito toma. Nesta passagem em que o “espírito” procura separar as posturas simbólicas das energias (os orixás), não a vejo necessariamente com traços heróicos. Aqui temos traços do imaginário dramático ou disseminatório, segundo a nomenclatura criada por DURAND. Podemos notar imagens que remetem à conciliação de intenções aparentemente contraditórias. Por exemplo, os videntes enxergam aqui um Preto-Velho, mas eu não me sinto um Preto-Velho. A imagem não está no espírito, mas se forma no ego do vidente. Tudo o que você vê é o que o seu ego decodifica, pois a imagem não está no espírito. A forma é criada no seu ego e não externamente. Eu me aproximo do médium e trabalho usando determinada postura. Sendo um espírito da falange umbandista, eu posso vir como Índio, – 80 –


como Preto-Velho ou como Exu. São as formas que seu ego vai decodificar, pois o espírito continua sendo o mesmo. E da mesma forma que a postura pode mudar, posso também mudar a energia que vou utilizar com o consulente. Mas é importante saber que o ego não quer te enganar. Ele quer criar uma prova para você. Ele cria uma imagem ilusória com um objetivo especifico: dar a você uma oportunidade de amar incondicionalmente, sem acreditar no que você está vendo. Sabendo disso, vocês não vão mais falar que todos os espíritos que se manifestam como Índios são de Oxossi. Isso é ilusão. Tem Índio que trabalha com a energia Yemanjá ou outra qualquer. Já é hora de vocês reconhecerem não só a forma, mas a energia utilizada. E deixem de falar “esse é um Caboclo da linha de Ogum”, pois isso não existe. Vou dar mais um exemplo. Dentro da postura Pai Joaquim de Aruanda tem espíritos que vão se adequar a uma linha energética ou a outra. Assim, ele pode ser chamado, preferencialmente, no tratamento daqueles consulentes que precisam daquela determinada energia. Ou seja, ele pode se adequar melhor a uma ou outra energia, mas ele está capacitado para trabalhar com todas as sete que formam a faixa da Umbanda. Isso é a Umbanda. Um agrupamento de espíritos que trabalham com determinadas faixas de energia e com determinadas posturas. É isso o que acontece no astral, não importando a forma ou padrões que os seres humanizados criam na Terra. Os espíritos da Umbanda são espíritos socorristas que trabalham com uma determinada faixa energética, definida por Deus. É comum encontrar espiritualistas que acreditam que o “espírito” que se manifesta como “preto-velho” é um ser “inferior”. Há várias histórias que narram o seguinte fato. O “espírito” chega a um centro espírita com a forma “preto-velho” e é rechaçado. Ele volta, em seguida, com uma forma de médico e passa a ser idolatrado como um ser “superior”. Em ambos os casos era o mesmo “espírito”, mudando apenas a aparência e a forma de se expressar. Ao explicar como o “teatro” da Umbanda funciona, esclarecendo a diferença entre os “espíritos” e os orixás, Pai Joaquim de – 81 –


Aruanda desarma os “poderes maléficos” associados a essa arte medianímica. Ele nos mostra e consegue harmonizar os aspectos ambíguos presentes nesta prática ainda marcada pelo medo e preconceito. Daí afirmarmos que nesta parte de seu discurso predomina o imaginário noturno, de tipo dramático. Quem sabe seria o mito de Hermes, latente, e complementar a Dionísio, manifestando-se? No novo tempo, na Terra regenerada, as religiões terrestres vão acabar. No astral, porém, elas continuarão trabalhando com a mesma faixa. Assim, o que vocês conhecem hoje como Umbanda (parte material) vai deixar de existir. A mesma coisa acontecerá com as demais religiões. Essa parte profética de seu discurso nos remete a símbolos dramáticos como a roda, a árvore, o fogo e a lua, por exemplo. Temos aqui a dinâmica dos ciclos, do progresso etc. Dissemos que a Umbanda é uma religião espiritual, mas como todas as religiões, possui reflexos no mundo material. 1 – a música Usa-se música, cantada ou com atabaque, porque a música lhe deixa conhecer o ritmo da energia que está sendo trabalhada naquele momento. Por isso, uma música mais calma lhe sugere que você está se conectando com uma energia de determinada amplitude e velocidade; já uma música rápida, com outro tipo de energia. A música não é o som. A música não é a energia, mas ela pode lhe ajudar a compreender que energia está vibrando naquele exato momento. Por exemplo, a música mais suave pode estar ligada a uma energia mais sentimental, enquanto uma música com atabaques, a uma energia mais voltada para despertar a coragem. Ela apenas marca um ritmo e ajuda você a se orientar. A música apenas dá o ritmo, mas você, se quiser, entra nele ou não. Podemos dizer que a musica é uma interpretação que o ego te fornece da energia que está vibrando agora no centro. E outra coisa importante, a música também não chama a entidade. A música apenas mostra a faixa de onda para os espíritos. Ela mos– 82 –


tra o padrão vibracional que está existindo naquele momento. Por isso a música não chama espírito, apenas mostra o que está acontecendo. É claro que pode existir espírito que acredita que ao tocar uma determinada música está na hora dele entrar em cena. Ele pode até acreditar nisso, mas não é o que está acontecendo. Você é que não pode acreditar que ele está sendo chamado por causa da música. Se ele se sente chamado, é criação do ego dele. Não podemos trabalhar a ilusão do outro como realidade para nós. Por exemplo, ninguém precisa cantar um ponto para chamar Joaquim de Aruanda, mas cantam para mostrar uma energia. Eu sabendo que aquela é minha hora de entrar, entro. É só isso o que acontece. 2 – roupa branca. Alguém sabe por que se usa roupa branca no trabalho de Umbanda? Só para separar o médium do consulente. A cor da roupa não vai influenciar no trabalho. Eu sei que não é isso o que se diz nos centros de umbanda, mas também não estou dizendo que usar roupa branca está certo ou errado. O que estou dizendo não é para ser padronizado. Eu não estou ditando regra, mas desmistificando a Umbanda. Quando se padroniza qualquer coisa, cria-se um novo padrão de certo e errado. Em suma, o problema não esta em usar roupa branca ou não, mas em achar que isso é o certo e aquilo o errado. Aceitem que o material não interfere no trabalho espiritual. 3 – As imagens Como já salientamos, são apenas depósitos de energia. O que vocês enxergam como imagens são reservatórios onde se guarda energia de uma determinada vibração. O mesmo acontece com a cachaça, com o cigarro ou com o charuto. Seu ego decodifica uma determinada vibração como cachaça ou cigarro. Mas é importante dizer que o encarnado não sabe manipular a energia do cigarro, por exemplo. Por isso, o encarnado fuma, não o espírito. Este manipula uma determinada energia que o seu ego está vendo na forma de cigarro. – 83 –


4 – As guias Elas servem também para colocar o espírito em sintonia com uma determinada energia. Agora eu pergunto, esses materiais são imprescindíveis no trabalho de Umbanda? Não. Mas se tiver pré-programado que vai usar, será usado. Se não tiver, não vai. Como já foi dito, não existe o certo e o errado. Cada trabalho umbandista será feito da forma que tiver que ser feito, com ou sem ritual. Mas a essência será sempre a mesma. Isso é o que importa. Continuando na desconstrução do teatro Umbanda, Pai Joaquim de Aruanda continua defendendo que “tudo está perfeito no plano material” e que não é certo e nem errado ter rituais ou elementos materiais. E cada centro de umbanda fará o trabalho que para ele foi reservado. Ele afirma, em outro momento, que a Umbanda não tem padronização, o que não significa que não haja em sua essência harmonia e integração entre os diferentes rituais e cultos. Nessa fala podemos identificar a estrutura dramática de harmonização dos contrários, segundo DURAND. Vamos agora falar sobre as posturas simbólicas. Preto-velho, Índio, Criança e Exu, entre outras, são apenas posturas ou, em outras palavras, dramatizações para estimular no ego humanizado algumas essências espirituais. Para representar o papel Preto-Velho ou outro, existe algo similar a um programa de computador que irá gerar a forma, a linguagem e o jeito de se manifestar do espírito. Ou seja, enquanto os presentes enxergam o médium encurvado, falando errado, tomando café etc., o espírito comunicante está ao lado falando normalmente, transmitindo as informações que necessita passar sem se sentir Preto-Velho. É esse “programa” que cria a ilusão Preto-Velho. O mundo humanizado em que vocês vivem é uma grande dramatização. É um teatro no qual o que importa é a essência e não a aparência. E cada postura, ou seja, cada Preto-Velho, cada Índio, cada Criança etc. tem uma essência espiritual para trabalhar com o consulente. Por exemplo, índio Tupinambá é um “programa” para fortalecer no consulente a coragem para enfrentar os desafios financeiros. – 84 –


E o mesmo espírito pode se manifestar como índio Tupinambá e, em seguida, com uma postura diferente. Ele pode vir como Preto-Velho e, no mesmo trabalho, manifestar-se, posteriormente, como Índio ou como Exu. Ou seja, o espírito pode ser sempre o mesmo, mas o consulente, o ser humanizado, acreditará que está diante de outra “entidade”, pois está vendo uma postura diferente. E por que isso é necessário? Para que o problema do consulente seja abordado de outra forma, com outro tipo de energia. Em suma, podemos dizer que a essência de cada uma das principais posturas adotadas na Umbanda é a seguinte: Preto-velho: objetiva transmitir sabedoria de vida (experiência) e humildade. A forma encurvada e a fala mansa trazem uma sensação de se estar diante de alguém que já viveu muito e que saberia como consolar ou orientar alguém perdido, que não encontra saída para seus problemas na vida humanizada. Índio: objetiva transmitir coragem, a confiança necessária para “guerrear”. Daí a necessidade de, quando o médium incorpora um espírito com tal postura, ficar de pé, bater no peito e gritar. Com algumas exceções, a expressão do Índio é sempre séria. O espírito quando se utiliza dessa postura transmite a valentia para lutar com a vida, ou seja, para passar com coragem pelas vicissitudes geradas pelo gênero de provas escolhido pelo próprio consulente antes de encarnar. Por isso, o Índio não transmite sabedoria, mas a coragem que o consulente necessita naquele momento de sua existência. Criança: objetiva transmitir a felicidade incondicional. Disse Jesus: “vinde a mim as criancinhas”, “ninguém entrará no reino dos céus se não for como criança”. Ou seja, só se entra no reino dos céus ou se livra das encarnações no mundo de provas e expiações quem aprende a ser feliz incondicionalmente. Quem passa pelas vicissitudes da vida humanizada feliz, ou seja, não vive as angústias e as dores do seu personagem, está pronto para habitar os mundos regenerados. É por isso que mesmo o espírito que se manifesta como uma Criança emburrada no trabalho mediúnico estimula alegria no consulente. Exu: e o temido Exu? O que significa essa postura? O Exu representa o próprio ser humanizado (egoísta, interesseiro, orgulhoso etc.) A pos– 85 –


tura Exu é a sombra do próprio consulente. E por que essa postura causa medo? Porque é como se estivéssemos diante do espelho, vendo o que somos, na essência. Nós gostamos de falar do argueiro no olho do outro, mas nunca observamos a trave que carregamos no olho. O Exu, com sua linguagem direta e forma de se manifestar, nos mostra quem realmente somos. E quem disse que o kardecismo não tem essa representação, essa encenação? (respondendo a uma pergunta de um participante) Não se vê médico, filósofo, padre etc. nas mesas kardecistas? O espírito não é médico, mas toma uma postura de médico se ele vai fazer uma cirurgia espiritual. Assim como tomará a forma de um padre se ele vai transmitir uma mensagem de cunho moral, e assim por diante. Em resumo, acontece o mesmo no trabalho kardecista. A essência espiritual é a mesma em qualquer trabalho espiritual. E isso vale para qualquer religião, mesmo para aquelas que não acreditam na mediunidade. Por isso, o vidente católico verá um espírito com asas dentro da igreja e achará que é um anjo; e o evangélico, o “espírito santo”. Ou seja, tudo isso é criado porque o ser humanizado está preso ao ego, ao mundo das formas, aos dogmas de sua doutrina. É curioso notar que cada uma das formas simbólicas dominantes na Umbanda (preto-velho, criança e índio) pode ser associada a uma das estruturas do imaginário definidas por Gilbert DURAND. Por exemplo, a postura criança reflete o imaginário místico. Trabalha com energias que fortalecem a esperança, a felicidade e o amor. Já o índio, com sua postura ereta (é o único “espírito” entre os três que fica em pé e anda pelo terreiro), representa a estrutura heróica. Sua fala mais agressiva serve para trazer coragem para o consulente. Por fim, o preto-velho representa a estrutura dramática, é o símbolo da sabedoria, daquele que harmoniza e inclui os dois arquétipos anteriores. É o preto-velho que dá os conselhos para o consulente se integrar melhor com sua vida humanizada, compreendendo o seu “carma” e aceitando os desígnios de Deus. Daí Pai Joaquim de Aruanda afirmar que, dependendo do problema do consulente, uma ou outra postura se faz necessária. – 86 –


Compreendendo que Preto-Velho é uma postura, podemos dizer que nem todos os espíritos que usam essa forma nos trabalhos mediúnicos viveram, necessariamente, como escravos na Terra. Mas é verdade também que existem espíritos ainda presos ao ego que, no mundo espiritual, andam se arrastando pelo chão como se fossem velhos, ou que acreditam que ainda são índios e vivem em aldeias plasmadas no astral. Na verdade, as colônias espíritas existem para os espíritos ainda presos ao ego, que ainda necessitam de formas materiais: hospitais, educandários, áreas de lazer etc. É por isso que a maioria dos espiritistas vai para as colônias quando desencarna, pois são espíritos que ainda necessitam dessa realidade, das formas criadas pelo ego, das sensações, das percepções etc. A reforma íntima significa a luta para se libertar do ego, para enxergar a essência por trás das aparências e não é isso que se ensina aos espiritistas. O espiritista aprende, por exemplo, a condenar o aborto ou o assassinato, mas não vê a ação de Deus criando provas para os espíritos humanizados através do aborto ou do assassinato. Quem fica sempre vendo a aparência, a ilusão criada pelo ego, nunca se desligará dele. Assim, irá reencarnar, mas demorará a ressuscitar. Novamente, e encerrando este texto, Pai Joaquim de Aruanda enfatiza que a mudança real é a de consciência, é o libertar-se do egoísmo para viver a vida humanizada apenas com o sentimento amoroso. Aqui ele apresenta uma diferente definição de reforma intima, outro ideologema espiritista. Para Pai Joaquim ela seria uma mudança interior e não de atos ou ações materiais. Caridade, para ele, não é ação material, mas espiritual. É perdoar, ser benevolente e indulgente. Em suma, podemos notar em seu discurso espiritualista a imagem de uma “dominação determinista e tranquilizadora das caprichosas fatalidades do devir”, que, segundo DURAND, está associada ao imaginário dramático. Passaremos, agora, ao estudo da dimensão mítico-imaginária do texto a “Oração de São Francisco”. Não faremos uma analise tão detalhada como a realizada no estudo sobre a Umbanda. Acredito que o próprio leitor conseguirá identificar os esquemas verbais, as sequências repetitivas e os motivos redundantes que nos – 87 –


ajudam a identificar o regime noturno de imagens em sua Psicosofia. Todos os mestres nos ensinaram que a oração é necessária, mas o que será orar, o que será uma oração? Em “O Livro dos Espíritos” encontramos a resposta a esta pergunta: a oração é um ato sentimental, é uma ligação sentimental com Deus. Podemos, então, compreender que orar não é recitar palavras, mas emitir (sentir) sentimentos. Quem ora prestando atenção apenas nas palavras não está com “atenção plena” aos seus sentimentos e por isto podemos afirmar que não sabe orar. A oração tem que vir de dentro de cada um. Ela é um sentimento que emana em direção a Deus. Ao Pai, não a outros espíritos. Sempre que nos elevamos em oração, dirigimo-nos a Deus, mesmo que nossos pensamentos estejam direcionados a outros espíritos. Isto ocorre porque só Ele sabe o que fazer com o que cada um sente durante a oração (dar a justa recompensa da oração - carma). Por isto, as orações direcionadas a outros espíritos são “repassadas” a Deus. Desta forma, a primeira compreensão de hoje deve ser: a oração é ato sentimental. Mas para que orar? Em “O Livro dos Espíritos” também encontramos esta resposta: “A prece é um ato de adoração. Orar a Deus é pensar Nele; é aproximar-se Dele; é pôr-se em comunicação com Ele”. Mas, o que é para o espírito “sentir”? É viver a vida, ou seja, a animação, a intelectualização de um espírito é sentir sentimentos: sentir o amor com o sentido universal (a Deus e ao próximo) ou individualista (a si mesmo). A oração, portanto, é vida para o espírito, pois orando está vivendo a sua “existência espiritual”: aproximando-se e pondo-se em comunicação com Deus. Se tudo isto é verdade, por que, então, as orações contêm palavras? Por que até Cristo ensinou um “Pai Nosso” através de palavras? Para que o ser humanizado saiba o que “sentir”, que forma de “viver” espiritual aproxima o espírito mais de Deus. – 88 –


Desta forma, todo ser humano deve mais do que se preocupar com palavras ao orar, mas sua atenção plena deve estar voltada em colocar na prática aquilo que a oração “fala”. Isso é orar. Orar não é rezar em um momento pré-determinado (quando acorda ou quando dorme), não é dizer palavras bonitas em momentos específicos, mas é vivenciar no dia a dia os sentimentos que oração traz. Para isto é preciso que cada um transforme a oração no “caminho da vida”, na sua “forma de viver”. Será sob este aspecto que estudaremos a “Oração de São Francisco”, ou seja, transformando as palavras do “santo” em sentimentos que deverão ser aplicados na vivência diária. Não faremos este estudo para analisar os versos com relação à sua gramática ou as rimas, não buscaremos apreciar a beleza das palavras, mas a cada novo verso compreenderemos a essência dele: o sentimento que Francisco de Assis diz que é necessário para viver. Com isto descobriremos que sentimento cada um deve ter para viver. Depois disto feito, compreenderemos ainda como é viver tendo este sentimento, ou seja, a prática do dia a dia de quem “vive em oração”. Feita esta primeira análise e compreendido como procederemos neste estudo, podemos, então, começar a estudar a “Oração de São Francisco”.

“Senhor, fazei-me um instrumento da vossa paz” Neste primeiro verso descobrimos um ponto fundamental para a vida: viver para ser instrumento de Deus. É isto que Francisco de Assis nos leva a compreender desde o início. Quando pede para ser instrumento da paz de Deus (“vossa”) ele demonstra que não quer agir por individualismo, a partir de nenhuma vontade própria (ser instrumento da paz dele). Todo seu sentimento está voltado em servir ao Pai e por isto a única coisa que ele sente é o desejo de ser “instrumento” da paz de Deus. A partir deste aspecto, para que possamos colocar a “Oração de São Francisco” como um guia para a vida, devemos compreender que, na – 89 –


visão do santo, há a necessidade de que cada um retire da sua existência tudo aquilo que “acha”, “sabe”, “conhece” (individualismos) da vida. O sentimento que deve pautar a vida de cada ser humanizado é o desejo de ser simplesmente instrumento consciente de Deus. Falo em instrumento consciente, pois inconscientemente todos já somos. Francisco de Assis, neste primeiro verso, portanto, não pede a Deus que seja feita a sua vontade, mas que o Pai o utilize para participar das “ações do mundo” servindo de instrumento consciente da Sua obra. Neste pedido se reconhece a ação do sentimento básico para esta vida: Fé. Pedir a Deus para ser conscientemente instrumento do Pai e entender o mundo como ação de Deus (emanação divina) é o exercício da Fé: confiança total e entrega absoluta a Deus. Exemplifiquemos. Francisco apesar de gostar dos bichos não acusava quem os maltratasse. Socorria os “feridos”, ajudava-os, mas nunca criticava quem agia como instrumento de Deus promovendo ações que “ferissem” os animais. Se ele assim fizesse estaria vivendo a sua vontade de que os bichos não fossem machucados. Vivendo com estes sentimentos teria que criticar e atacar aqueles que agissem provocando danos aos animais. Esta forma de proceder demonstraria a não compreensão da “ação de Deus” (Causa Primária de todas as coisas): tudo emana de Deus. Ele não podia condenar os agentes do carma dos bichos, pois desde o início da sua oração declara: “Senhor, fazei de mim um instrumento de SUA paz”. Se atacasse quem foi o agente carmático do ferimento nos animal, Francisco estaria exercitando a não entrega, ou seja, a não concordância com a emanação divina. Francisco quer levar a paz de Deus ao mundo (consciência da ação carmática emanada por Deus como fonte de elevação espiritual), não a guerra (a luta pelo prazer, pela realização dos desejos individuais frutos de paixões humanas). Por isto abre mão de retaliações, mesmo que por pensamento. – 90 –


Caso alguém houvesse machucado um animal, Francisco se preocupava em socorrê-lo. No entanto, para isto não precisava abrir guerra (crítica, acusação) contra quem o machucou. Agia em socorro e defesa dos animais, mas não reconhecia na ação um “mal” nem outro causador a não ser o próprio Pai. Isso é fazer a paz de Deus: amparar, auxiliar, ajudar quem está vivendo a sua ação carmática, mas sem críticas a ninguém como instrumento causador de “maldade”, ou seja, compreendendo que ação provêm de Deus e não do homem e, por isto, é justa e necessária. Esta também deve ser a forma como cada espírito ligado a um ser humano deve viver a sua encarnação. Se ele passa em uma esquina e lá se encontra “alguém” passando fome, deve ajudá-lo. Pode servi-lo dando um prato de comida, levando-o para casa, dando banho, auxiliando-o a conseguir um emprego, ou seja, fazendo tudo que estiver ao seu alcance, mas jamais destruindo a paz de Deus (o que está acontecendo), criticando a sociedade, o presidente da república ou qualquer outra pessoa de ser o “culpado da situação daquele ser humano”. Isto é servir de instrumento a Deus para levar a paz. Levar a felicidade a quem “sofre” (passa por uma ação carmática que o desgosta) sem que para isto seja necessário guerrear contra os outros que levam, aparentemente, “vantagem” sobre a situação daquele que está “sofrendo”. Nesta primeira frase da oração, portanto, entendemos que o sentimento básico para se ter todas as outras coisas é a Fé e que, a partir do momento que haja esta entrega com confiança a Deus, o ser humano simplesmente age para ajudar ao próximo sem colocar nenhum dos seus individualismos em ação. Sem colocar nenhum acento a mais no que Deus escreveu, sem colocar uma letra para dizer o que acha individualmente da situação. Agindo dessa forma o espírito ligado ao ser humano estará levando a paz de Deus àqueles que precisam da paz, ou seja, todos: tanto os que estão na situação chamada de “sofredora” quanto àqueles que a humanidade acusa como “causador da situação”. – 91 –


Todos precisam da paz de Deus, ou seja, da compreensão da emanação divina. “Guerreando” contra aqueles que estão fazendo a ilusória “maldade” os espíritos não estarão levando esta paz a eles. “Criticar” alguém por não fazer nada para ajudar os necessitados e imaginar que por isto outros passam fome, não se leva a paz de Deus. Quem “guerreia” acusando outro ser humano como agente da situação, direta ou indiretamente, busca implantar “a sua paz”, ou seja, estabelecer as suas condições individuais para o mundo. Agindo desta forma, o espírito estará levando para as pessoas a palavra que ele queria e não as de Deus. Para se levar à paz de Deus aos homens é preciso que ela seja levada para todos os envolvidos no episódio. É preciso auxiliar a todos: aquele que está passando pela situação de “necessidade” e aqueles que, direta ou indiretamente, são os “causadores” da situação. Agindo assim o ser humanizado auxilia a Deus, pois ama a todos de uma forma equânime, de maneira igual. Agora, “socorrendo” um e “acusando” outros, age preso no individualismo, no que “quer”, no que “acha correto” a partir da sua compreensão limitada sobre os acontecimentos da vida. Portanto, na sua vida, pare de achar “culpados”. Para de colocar “culpas” em outras pessoas. Para “culpar” alguém há a necessidade de se “criticar” e quem age dessa forma não será um instrumento da paz de Deus, mas do que ele “quer” (paixões e desejos individualistas). Auxiliar um criticando outro não é um ato de caridade, mas uma guerra de domínio para que se consiga impor a paz individualista (contentamento de paixões). Eis aí o grande problema da humanidade: o ser humanizado que se baseia naquilo que quer para vivenciar o mundo. Viver o que “acha”, saber apenas o que “sabe”: nesta forma de vivenciar as situações do mundo se denota o individualismo. Para se aproximar de Deus, conectar-se com Ele, não se pode “estar” individualista. Só na hora que você abandona todo o seu “saber” e “querer” é que pode alcançar o universalismo, ou seja, Deus. – 92 –


Enquanto você “souber” não compreenderá Deus agindo. Esta fala de Pai Joaquim deve agredir todos aqueles acostumados com os mitemas prometéicos. Nela não encontramos a transgressão ao divino, a revolta contra o espírito, a confiança apenas na ação humana civilizatória e revolucionária. Ao contrário do sonho Iluminista, pai Joaquim manifesta uma fé cega aos desígnios de Deus. O único combate é interior. É para libertar-se das verdades que o ego cria e que nos impede de ver a ação intermitente de Deus.

“Onde houver ódio que eu leve o amor” O que é ódio? É o individualismo insatisfeito. Quando o ser humanizado não consegue o que “quer”, quando não gosta do que é “feito”, cria, primeiramente, a mágoa e a frustração. Elas se transformarão em raiva que levará ao ódio. Se o ódio nasce da contrariedade, o amor, aquilo que Francisco pede para ser instrumento, então, é a “satisfação com as coisas da vida” ou a felicidade sob quaisquer circunstâncias. Além disto, não podemos nos esquecer que Francisco pede para que se transforme em instrumento consciente da vontade de Deus (“vossa”). A partir destes aspectos analisemos, portanto, o ensinamento. São Francisco, portanto, pede a Deus que, onde houver seres humanizados que tenham seus individualismos feridos (ódio) que ele leve o amor. Mas não um amor qualquer, mas aquele que reflita a vontade de Deus (amor universal). Este é o desejo expresso neste verso, esta é “forma de viver” que Francisco quer para ele: que na sua vivência dos acontecimentos seja instrumento para levar a quem tem o individualismo ferido o amor a Deus que leva o ser humano a viver em estado de graça (felicidade incondicional). Aí eu pergunto: se alguém quer uma coisa e não consegue, como se levar a esta pessoa a felicidade? Como levar a quem está passando por uma situação de “sofrimento” a felicidade?

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Ensinando-o a compreender a vida a partir da Realidade espiritual, a compreender o universo, ou seja, a compreender o que chamamos de “lei do carma”. O individualismo é o “querer para si”, mas se um espírito ligado a um ser humano não precisa nem merece de um determinado acontecimento, Deus não lhe dará o fruto do seu desejo simplesmente porque ele “quer”, para “satisfazê-lo”. O Pai só dará a cada um aquilo que ele merecer. Portanto, para se receber algo do Pai é preciso que se faça por onde merecer: não basta apenas “querer”. O que gera o merecimento para o espírito é, no momento onde é contrariado, amar a situação, ou seja, ser feliz incondicionalmente. O amor gera um tipo de carma; o individualismo gera outro. Desta forma, quando Francisco de Assis diz “Senhor, onde houver ódio que eu leve o amor”, ele está falando: “Senhor, onde houver individualismos feridos, que eu leve a compreensão da Vossa ação, que eu leve a estas pessoas a Sua palavra, a Sua presença dentro da máxima do Cristo: Deus dá a cada um segundo as suas obras”. Isto é levar o amor a quem tem ódio. “Você está com raiva do quê? O que não gostou? Veja bem, foi Deus quem que colocou isso que você não gostou na sua vida. Foi o Pai que fez isso acontecer como uma nova oportunidade de elevação. Ame a Deus, sinta-se amado pelo Pai que você gerará um carma diferente. Se ficar preso ao individualismo, ao desejo, ao seu “querer”, Deus terá que lhe colocar novas provas,ou seja, vai ter que ir contra o seu individualismo mais vezes”. Isto é levar o amor para quem tem ódio. Isso é levar a felicidade incondicional para aquele que está sofrendo por ter a sua individualidade ferida. Não é “passar a mão na cabeça” e dizer “coitadinho de você”, “que pena”, nem brigar, acusando-o por qualquer motivo. Auxiliar o próximo levando amor para quem tem ódio é, baseando-se na palavra de Deus, na palavra do Cristo e dos mestres, dizer a ele: “você sofrerá enquanto tiver individualismos”. Este é o sentido da oração de Francisco de Assis. Agora que já conhecemos o que Francisco fala, vamos compreender este ensinamento na vida diária de cada um, na vivência das situações. – 94 –


Quando você se defrontar com alguém que está com ódio (teve seus desejos contrariados) deve ajudá-lo levando-o a compreender a ação carmática que está vivendo. Pode dar o prato de comida para quem tem fome, o emprego, o banho, enfim, ajudar de todas as formas materiais, mas é preciso fazê-lo compreender que não pode se revoltar contra a situação que está vivendo. Para isso é preciso levar a “palavra de Deus”, pois afinal, Cristo ensinou: nem só de pão vive o homem. Levar a “palavra de Deus” é ensiná-lo que não é “vítima” de ninguém, nem de nada. Ele é um espírito vivenciando o seu carma e precisa amar a situação carmática que está vivendo hoje. Sem amar esta situação jamais gerará um carma diferente, pois aquela situação foi criada por causa de um individualismo que o levou a se contrariar em um momento anterior da sua existência. Esta forma de proceder é ser um São Francisco, é agir como ele. Não é só passar a “mão na cabeça” de quem está “sofrendo” dizendo “coitadinho de você” ou simplesmente dar o prato de comida e virar as costas. É preciso, para se auxiliar o próximo, dar a vara e ensiná-lo a pescar e não apenas ficar alimentando-o com o peixe, que é um alimento fugaz e não nutre a alma. É amar e ensinar aos demais a amar incondicionalmente. Amar a vida do jeito que ela está e ensiná-los esta forma de viver, ao invés de colocá-los no pântano do ódio, ensinando-os a acusar qualquer pessoa de ser o “causador” daquela situação. Isto é fomentar o ódio ao invés de levar o amor. Amar é não só dar a caridade física, mas ensinar o próximo a amar, ou seja, ensinar ao próximo que aquilo pelo qual criou uma “revolta” é o amor de Deus em ação, pois é uma nova oportunidade para que ele possa evoluir. E com o ilusório “opressor” que faz os outros “sofrerem”, como agir? Amá-lo e não criticá-lo. Ele já está cheio de sentimentos diferentes do amor que são os frutos dos seus individualismos. Se você penetrar nesse padrão vibracional apenas fomentará o próprio individualismo dele. – 95 –


Amá-lo e ensiná-lo a não ter prazer na ação carmática da qual participou, ou seja, não se sentir feliz por ter conseguido “vantagens” desta forma. Isto é importante porque este foi um momento de aparente “vitória material”, mas se ele tirar proveito da ação de Deus (ter satisfação, prazer) estará gerando um carma onde o seu individualismo que agora foi satisfeito será, pela impermanência das coisas, pelas vicissitudes da vida, destruído. Isto é ser um São Francisco: ensinar os dois a amar dentro dos seus papéis da vida e não querer alterar esses papéis. Havendo um que tenha necessidade de passar pela fome, há necessidade de que alguém seja o instrumento da fome: estes são os “papéis” que cada um desempenha ao longo da vida. Compreendendo esta Verdade universal, aquele que neste momento for instrumento da fome sem prazer, mesmo que tenha aparentemente “prejudicado” alguém, atingirá o amor universal. Por isso o Krishna ensina que o sábio está livre do mérito ou demérito nas ações. Ao contrário do imaginário heróico que, frequentemente, cria raciocínios em torno de antíteses onde temos o Bem e Mal (que deve ser combatido), no discurso de Pai Joaquim de Aruanda esta visão dicotômica não aparece. Aquilo que habitualmente chamamos de mal não deve ser superado. Aliás, ele é necessário. Em seu discurso não há luta, não há armas, não há separação, não há vítimas e nem algozes.

“Onde houver ofensa que eu leve o perdão” “Ofensa” é sentimento que denota um individualismo ferido. Um espírito só se sente ofendido quando o que “acha”, “quer” ou “gosta”, não acontece. Novamente a mesma situação humana do verso anterior: individualismo ferido. Desta vez, porém, para contrapor a este procedimento do espírito humanizado Francisco pede a Deus que ele seja instrumento do “perdão”. Portanto, precisamos compreender o perdão para encontrar a forma de vida sugerida na oração. – 96 –


Para os seres humanizados perdoar é uma coisa muito fácil, mas até hoje não conheço ninguém que tenha perdoado de verdade, a não ser aqueles que alcançaram a evolução espiritual. Isto porque para os seres humanizados perdoar é deixar de dar o castigo a quem merecia recebê-lo. Alguém “pisa no seu pé”, por exemplo, você sente dor, sofre, acha “errado” ter recebido o pisão, mas o perdoa, ou seja, não “pisa no pé” dele de volta. Pelo exemplo acima podemos, então, afirmar que se alguém fez alguma coisa “errada”, você o perdoa dentro da visão humana, ou seja, não o castiga, mas continua afirmando que houve um erro, algo que não deveria acontecer ocorreu. Neste caso não houve perdão de verdade. Apesar de você aparentemente não haver castigado o “agente” da situação, ainda continua acontecendo um castigo, mesmo que não físico: a crítica, a acusação. Você não o perdoou de verdade porque vivenciou uma crítica, um apontar de erro, que também é um castigo. Perdão é mais do que não penalizar fisicamente. Perdão é o que o Cristo ensinou na cruz: “Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem”. Se analisássemos a intenção de cada um durante os acontecimentos, eu diria que ninguém faz nada “errado”, pois todo mundo age partir de uma convicção individual de que o que está fazendo é “correto”. Mesmo os que ferem a lei fazem consciente de que a estão ferindo, fazem porque acham que sabem o que estão fazendo. Ou seja, possuem “motivos” para agir desta forma que lhe dão a convicção que estão “certos”. Um bandido, por exemplo, sabe que é “errado” roubar, mas ainda assim cai no delito porque não tem como se sustentar, porque precisa alimentar sua família, etc. Ou seja, ele encontra motivos que para ele são reais para agir. Se eles fazem movidos por uma convicção individual não deveriam merecer a crítica, pois, para eles, estão “certos” ao agir dessa forma. Eles não agiram “errados”, pelo menos a partir do seu ponto de vista. Quando Cristo na máxima afirma “eles não sabem o que fazem” está dizendo exatamente isto: “Pai, eles estão agindo imaginando que es– 97 –


tão ‘certos’, mas nós, eu e Você, sabemos que eles são apenas instrumentos da Vossa vontade”. Portanto, perdoar não é só simplesmente deixar de castigar, mas nem ver “erro”, ou melhor, perdoar é dar ao próximo o direito dele estar “certo” a partir do seu ponto de vista. Não encontrar nada “errado” no que as pessoas fazem, ou melhor, não julgar as pessoas pelo seu ponto de vista é perdoar. Para isto é preciso que o seu pensamento seja este: “ele praticou a ação achando que estava ‘certo’ e agiu em nome de Deus. Por isto, eu me eximo em dizer se ele está ‘certo’ ou errado’”. Quem age faz o que tem que ser feito: não há nada a ser criticado. Quando a humanidade compreender isso, não precisará ficar ofendida e aí as críticas aos outros acabarão e o verdadeiro perdão surgirá. O perdão real surge da utilização da “igualdade”, sentimento que forma o amor universal. Esta igualdade é que leva à liberdade de cada um. A igualdade que estamos nos referindo não se refere à formação de cópias (todos serem iguais a você), mas no direito de cada um ser diferente do outro. Quando utilizada, a igualdade leva o espírito a conceder ao próximo a liberdade dele fazer e ser o que quiser, sem que por isto seja alvo de críticas ou acusações. Viver com este sentimento, ou seja, ver os acontecimentos dentro desta realidade é amar e perdoar, pois perdão é amor. Cristo ensinou que precisamos amar ao próximo, ou seja, nem ver “erro” no que ele está fazendo. É para cumprir esse mandamento que São Francisco de Assis está pedindo a Deus que leve àqueles que se sentiram ofendidos a compreensão de que ninguém faz nada “errado”. Pede para que seja instrumento para ensinar que todos agem por uma motivação pessoal (individualismo), mas que só chegaram a agir frente à determinada pessoa porque esta precisava e merecia (carma) alguém que provocasse aquela situação. Se este ser humano não houvesse gerado a necessidade da ação carmática ninguém poderia ter agido de tal forma. Assim, se existisse – 98 –


um “culpado” naquele momento, era o próprio espírito humanizado que, em momentos anteriores, criou para si este merecimento e não o próximo que foi mero instrumento para dar àquele o que era seu merecimento. A lei do carma é inexorável. Se não fosse aquela pessoa seria outra, mas o carma não deixaria de acontecer e para isso seria preciso um instrumento para criar a situação carmática. Ensinar isto a quem se sente “ferido” é levar o perdão. Para isto é preciso dizer ao próximo que estiver ofendido: “Pare de acusar os outros. Aprenda: ele é instrumento de Deus. Foi Deus quem realizou a situação na sua vida. Apenas utilizou-se daquele espírito como instrumento”. A ação do próximo como instrumento do carma do ser humanizado foi transmitido claramente através de “O Livro dos Espíritos” na pergunta 1horas : “Visa ainda outro fim a encarnação: o de pôr o Espírito em condições de suportar a parte que lhe toca na obra da criação. Para executá-la é que, em cada mundo, toma o Espírito um instrumento, de harmonia com a matéria essencial desse mundo, a fim de aí cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. É assim que, concorrendo para a obra geral, ele próprio se adianta”. Isto é levar o perdão onde houver ofensa. É chegar para aquele que está passando fome e dizer: “ninguém está agindo contra você. Não há motivos para acusar alguém da sua situação nem porque ficar ofendido. Quem está criando a situação que você está vivenciando é Deus. Não se ofenda, não se magoe, não se deixe levar pelo individualismo”. Estamos falando de atitude moral, sentimental. Com relação à atitude materiais, você pode até dar um prato de comida, mas de nada adianta você alimentar quem necessita sem ensinar isto a ele, sem levar a palavra de Deus. Relembremos mais uma vez o Cristo: nem só de pão vive o homem. Quando você dá apenas o peixe, sustenta a barriga, mas não sustenta o espírito. Com raiva essa pessoa vai ter “dor de barriga”; ofendi– 99 –


do, terá problemas estomacais como resultado do sentimento que está nutrindo. Aí você afirma que a doença do “faminto” é verme, que ele é doente por que é mendigo, mas não é nada disso. Simplesmente a ofensa que ele está carregando dentro de si é que está lhe fazendo “passar mal”. Levar a paz de Deus a quem está ofendido é dar ao outro a compreensão de que as pessoas são instrumentos da vontade divina e que por isso tem que ser perdoados. Mesmo quem recebe uma lança enfiada na barriga, mesmo quem pede água e recebe fel, precisa perdoar, precisa aprender a perdoar, ou seja, descobrir que o acontecimento ocorreu porque ele precisava (reação carmática) e merecia (nova oportunidade para amar a Deus acima de todas as coisas) aquilo que está acontecendo. O refugio em Deus parece ser a idéia-força aqui presente. Ou seja, aquele que quer satisfazer o ego alterna momentos de prazer e desprazer, portanto, sofre quando vivencia experiências negativas em sua existência; mas, aquele que ama a Deus acima de todas as coisas, vive sempre em paz: sem prazer ou dor. Deus é o aconchego que Pai Joaquim apresenta aos seus seguidores.

“onde houver discórdia que eu leve a união” A discórdia existe quando duas ou mais pessoas estão “brigando”, ou seja, onde há espíritos defendendo o seu individualismo para sobrepor a sua vontade a do outro. Para estes, que eu leve a união: é o pedido de São Francisco. A união, congraçamento, só acontecerá com o fim das vontades individuais. Jamais haverá união enquanto um espírito tiver vontade individual, pois não existem dois espíritos que querem a mesma coisa com a mesma intensidade. Para que se possa levar união, portanto, existe a necessidade de ensinar cada um a amar o que tem ao invés de querer possuir as coisas, ou seja, impor o seu individualismo ao do próximo. Este é o trabalho que Francisco de Assis pede a Deus que lhe faça instrumento: levar a cada um a compreensão de que ele já tem tudo o que precisa para ser feliz. – 100 –


Mas, mais do que isto, explicar a cada um que ele não consegue ser feliz não porque seja azarado ou porque ninguém gosta dele, mas porque está preso ao seu individualismo, ao seu ego, que só lhe deixa ser feliz quando suas verdades são contentadas. Mesmo assim, quando a verdade atual do ego for contentada, não se pode dizer que o ser humanizado será realmente feliz, pois enquanto existir o ego estará sempre cobrando “coisas novas” (criando desejos) para poder haver o prazer da conquista. A humanidade tem uma frase que diz assim: “amo tudo que tenho, mas não tenho tudo que amo”. Isto é mentira, pois se você ama alguma coisa que não tem é sinal de que não gosta do que tem: o que tem não lhe satisfaz e ainda precisa de mais coisas. É a desunião que está estampada nesta frase, pois quando você vai buscar o que acha que ama e que não tem acabará tirando do próximo as verdades dele, as suas coisas materiais, os seus acontecimentos esperados, a realização de seus desejos. Levar a união é ensinar a cada um que ele tem o que precisa e merece: os instrumentos necessários para as suas ações carmáticas. Levar a cada um que ele é um filho amado de Deus e que o Pai não deixaria de dar ao seu filho tudo aquilo que ele precisasse para ser feliz, espiritualmente falando. Isto é ser um São Francisco; isto é levar a união. Esta é a missão de São Francisco. Ele percorreu o mundo dizendo: seja feliz com o que você tem, não queira mais coisas. Só agindo como ele poderemos promover a união entre os povos, entre as pessoas. No entanto, é preciso mais do que levá-las a se conformar com o que tem, mas a amar o que não tem. Amar não só o que possui, o que tem materialmente sobre seu controle, mas amar as faltas, aquilo que não tem. “Graças a Deus, louvado seja o Pai porque eu não tenho um prato de comida”. Para viver desta maneira é preciso compreender que a fome que Deus dá é o que é preciso e que por isso não se deve “querer” comida.

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Não estamos falando em não comer. O ensinamento é de que cada um não deve viver na dependência da comida para ser feliz: tendo ou não, seja feliz. Enquanto um espírito depender da comida para ser feliz, enquanto a ausência desta for algo que atrapalhe a felicidade, não estará unido com quem come e aí ocorrerá à desunião, a briga para ter a comida que o outro possui. A união que Francisco de Assis prega não é uma união qualquer: é uma união espiritual. É uma união entre irmãos, uma união universal onde todos os espíritos se fundem num só, que você chama de Deus. Isto só será conseguido quando todos compreenderem que Deus dá a cada um segundo a sua obra. Claro, existe um Deus ser, mas Ele também é o todo universal: é todas as coisas que existem e a “falta” delas, pois tudo é emanação do Senhor Supremo. Com o fim da individualidade e a fusão no universalismo, poderemos compreender que também somos “deus”, estamos em “Deus”. É isso que Francisco de Assis pede ao Pai: que ele leve a cada um a compreensão de que já tem tudo que precisa para ser feliz, na abundância ou na carência. Pede também para servir de instrumento para ensinar ao próximo que ele não é feliz por desejar ter diferente do que tem. Estamos exemplificando os ensinamentos de cada verso sempre de pessoa para pessoa, mas vamos falar de povos? Como acabar com a guerra entre os judeus e os árabes? Mostrando ao árabe que Alá afirmou que lhe proveria com tudo o que precisava. Alá deu o povo judeu ao lado dos árabes e se proveu desta forma é isto o que precisam. Por este motivo devem parar de fazer guerra contra este povo e deixá-lo em paz na terra dele. Ao judeu mostrar que na Bíblia está escrito que Jeová daria ao povo escolhido tudo o que precisasse. Ele deu o árabe como vizinho, portanto respeite-o. Não construa mais em território que não é seu, deixe o árabe no canto dele. Só isso. Mostrar a cada um que Deus, não importando o nome nem o livro onde esteja o ensinamento, dá sempre – 102 –


a cada filho o que ele precisa para viver. Agora, enquanto cada um achar que aquela terra é dele, que lhe pertence, não vai haver união nunca. Você deve ser instrumento da paz de Deus. O instrumento pode até dar o prato de comida, mas não deixa de ensinar ao próximo a ser feliz com o que ele tem. Não cria revolta nem desunião, mágoa ou críticas. Dá o prato de comida e auxilia o próximo em nome de Deus e não no seu próprio. Para que ele possa ajudar em nome de Deus deve dar além do pão. Ensiná-lo que, ao invés de lastimar a sua falta de comida, deve amar a Deus para gerar um carma diferente e aí poder receber comida. No entanto, enquanto você der o “puxão de orelha” com a sua consciência de “certo” ou “errado”, ensinando o que você sabe que é “certo”, estará agindo em nome de Deus, mas tirando vantagem (prazer) do que o Pai está fazendo. Auxiliar ao próximo sempre será a orientação da necessidade de mudanças, mas se mudar em que sentido? Para Deus, nunca para você, para o que acha “certo”. Ensiná-lo a amar a Deus acima de todas as coisas é universalismo, mas ensiná-lo a atravessar a rua na outra esquina e não nesta porque a acha “perigosa”, isto é individualismo. Aqui parece estarmos novamente diante do arquétipo da roda, um dos mais significativos schémes das imagens cíclicas. É a dramaticidade da vida humana sendo encaminhada para o repouso seguro no colo de Deus.

“onde houver dúvidas que eu leve a fé” Que dúvida pode haver na vida de um ser humano? Qual a dúvida que você pode ter? Só uma: saber o que está acontecendo na sua vida. Esta é a dúvida de todo espírito: para que nasci? Por que estou vivo? O que está acontecendo, realmente, no sentido espiritual, neste momento? Francisco de Assis pede a Deus: onde houver dúvidas que eu leve a Fé. Só a Fé, confiança e entrega total a Deus pode esclarecer a Rea– 103 –


lidade do mundo, a Verdade. Sem Fé jamais haverá compreensão da Verdade, do que está acontecendo realmente. Tudo que acontece no Universo é Deus agindo, é emanação de Deus. Isto nos foi ensinado por Krishna. Só isso é Verdade, é Realidade. Quer saber quem é você? Uma emanação de Deus. Quer saber para que está vivo? Para fazer provas e durante as suas provas ajudar o próximo, ou seja, servir como emanação de Deus. Quer saber o que está acontecendo agora? É Deus emanando amor por você e lhe fazendo vivenciar situações que são seus carmas, mas que também servem de instrumentos para o carma dos outros. Só isso. Mas, para se ver Deus em ação é preciso ter Fé: confiança e entrega. Sem ela você verá o outro agindo e aí gerará a ofensa, o ferimento. Sempre que você fugir da Realidade e ver outro ser agindo e não Deus se sentirá ferido porque se acha sempre “certo”. Os seres humanizados, individualistas por natureza, consideram-se superiores a todos e se acham sempre “certos”. O que não deixa o ser humanizado conhecer a Realidade não é o não saber, mas é a certeza que cada um tem de que pode compreender as coisas do mundo. Como esta compreensão é fruto de um conhecimento limitado do ser humano da Realidade é, por si mesma, uma falsidade. Por isto, tudo o que você acha certo deveria ser tratado como dúvida. Além do mais, tão logo se convença que está “certo” vem o mundo (as situações) e transforma todas as suas verdades. “Como? Como isso foi acontecer? Eu tinha certeza disso, estudei todas as probabilidades dentro das minhas verdades e não aconteceu como esperava. Por quê?”. Porque Deus não fez. Mas para enxergar isso, tem que haver a Fé. Em outras palavras, Deus é o leite e o mel que alimentam e nutrem o ser humano que tem Fé e, assim, vive sem as angústias existenciais causadas pela consciência da morte e do tempo que passa.

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“onde houver erro que eu leve a verdade” O que é uma coisa “errada”? É aquilo que vai contra a “verdade”, o que é “certo”. Mas, se “errado” é tudo aquilo que vai contra a “verdade” quem pode dizer o que é “verdadeiro”, ou seja, quem tem a Verdade do Universo? Quem pode saber o que é Verdadeiro, Verdade Absoluta? Só Deus. Somente a Inteligência Suprema do Universo tem a capacidade de analisar e compreender perfeitamente tudo que acontece e assim gerar uma Verdade sem retoques, Absoluta. O ser humano, como personagem criado pelo espírito para sua evolução, possui “inteligência”, que é o próprio espírito que o anima. Esta “inteligência”, no entanto, não é suprema, mas limitada de acordo com o seu grau de evolução. Ou seja, possui verdades que não são reais, mas que condizem o grau de evolução de cada um. É por isso que o ser humano não conhece a Verdade Absoluta, mas apenas a verdade relativa, ou seja, uma verdade baseada na sua limitada capacidade de compreender o universo. Se a “inteligência” do ser humano (espírito) não conhece a Verdade, como pode imaginar ter o poder de dizer o que é Real? Como pode afirmar que o que está imaginando das situações é Verdade? Somente quem conhece a Verdade pode saber a Realidade, ou seja, Deus. Você dá um prato de comida, porque quer dar um prato de comida e imagina (cria a realidade) que com isto está servindo ao próximo, mas esta compreensão é fictícia, ilusória. Quando alguém age motivado por um desejo (vontade) está, antes de qualquer coisa, agindo em seu favor e não do próximo. Portanto, a Verdade daquele momento é que você está se servindo do próximo, ou seja, está utilizando o outro para satisfazer a sua vontade. Mesmo que com seu ato auxilie alguém, a motivação primária (intenção) foi fazer o que você queria e não auxiliar o próximo, pois esta última intenção ficou subordinada à primeira. Deus conhece a Realidade dos fatos, pois como Cristo nos ensinou, Ele conhece a verdadeira intenção de cada um ao agir. Desta forma Deus sabe o que está acontecendo de verdade: você se servindo do próximo para ter prazer. – 105 –


Além disso, já estudamos anteriormente que todos os atos da vida carnal são ações carmáticas, ou seja, são situações criadas por Deus que possuem a característica de ser a justa reação a uma ação anterior. Elas também servem de prova para o espírito na sua caminhada da evolução espiritual. Todos os envolvidos em acontecimentos estão vivenciando uma ação carmática criada por Deus e não gerando atos espontaneamente. Portanto, a intenção criou uma fantasia, mas o próprio ato é também uma ilusão. Você não está dando comida a ninguém. É Deus que está, através da ação carmática sua e do outro, dando a comida. Essa é a Verdade Absoluta dos acontecimentos do mundo, essa é a Realidade. Apenas Deus e Sua ação, Deus e Seu amor são Verdadeiros. Ninguém faz nada, só Deus age: isto é Real; isto é Verdadeiro. É isto que precisamos levar às pessoas e trazer para nossa vida para que todos eliminem as ilusões que vivem e possam viver a Realidade. Voltando ao texto da oração que estamos analisando após termos compreendido o que é a Realidade e a Verdade, o que seria, então, o “erro” ao qual Francisco se refere? Os seres humanos imaginarem que estão fazendo, agindo, quando na verdade estão sendo instrumentos de Deus. O ensinamento da Realidade (Deus Causa Primária de todas as coisas gerando ações carmáticas) vale para todos os detalhes da vida, mesmo aqueles onde os seres humanizados imaginam que Deus não interfira. Portanto, ninguém jamais pratica ação alguma, por menor, mais sem importância que possa parecer a ação. Imagine se uma grande quantidade de seres humanos decidisse comprar a quantidade de pães que quiserem. Sabe o que ia acontecer? Ia ter que devastar a floresta amazônica para poder plantar trigo. “Se quiser eu como vinte pães, e Deus nada tem a ver com isso”. Aí está o “erro”: achar que cada um age por livre e espontânea vontade sem compreender que o universo é interdependente, ou seja, que tudo que você faz reflete sobre outros e sobre as coisas.

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Destruir a floresta amazônica seria, em tese, um acontecimento que afetaria não só a vida de todos os habitantes do planeta, mas se refletiria em todo Universo. Será que alguém pode fazer a outro tão distante o que ele não precise nem mereça, ou seja, sem que Deus não tenha considerado que ele possuía este carma e precisava passar por tal situação? Se o ser humano agisse dentro da inconsequência gerada pela sua limitada capacidade de compreender os reflexos dos seus atos, teria o poder de ferir o próximo. E Deus? Neste caos seria um mero espectador do mundo, vendo os seus filhos serem feridos constantemente sem poder fazer nada? O Senhor Onipotente do Universo não poderia reagir para salvar a humanidade e o próprio Universo porque seres humanos querem comer vinte pães cada um? Claro que sim e por isso age, ou seja, por isso faz cada um comer a quantidade de pães suficientes para que não interfira no equilíbrio universal. Esta é a Verdade que Francisco de Assis propaga: Deus, e somente Ele, age. A nós espíritos, humanizados ou não, compete sair do “erro”, ou seja, da ilusão da ação individual de cada um: achar que “eu ajo”, que o “outro age”, achar que as “coisas agem”, achar que o outro pode fazer o que quiser. É desta ilusão de que todos agem por livre e espontânea vontade que surge o medo. A ilusão da ação individualizada e livre destrói a Fé. Não existem dois seres humanos que gostem e queiram as mesmas coisas com a mesma intensidade. Se cada um pudesse agir livremente, certamente estaria sempre movido pelo desejo de que a sua verdade sobrepujasse a do próximo, pois o objetivo primário do ser humano é satisfazer-se, ou seja, que suas verdades sejam realidade. Com isto, certamente, um acabaria ferindo o outro na busca de impor-se. Se você não acredita que Deus e só Ele age, mas que o outro pratica ações por livre e espontânea vontade irá imaginar que ele tem o poder de se sobrepor a você e, com certeza, se sentirá ferido se isto ocorrer. Então eu pergunto: e o seu Pai que é o Senhor Onipotente, Onipresente e Onisciente não pode fazer nada para lhe defender? – 107 –


Será que Ele, que tudo pode terá que assistir passivamente a toda injustiça que você passa? Claro que não. Ele age sempre dando a cada um o que merece. Portanto, se o outro lhe sobrepujar em determinados momentos, não sofra, pois foi Deus quem assim decidiu e só fez isto porque era o que você merecia no momento. Louve e ame a Deus por isto. Levar a Verdade e a Paz de Deus é dizer a cada um: Deus está agindo lhe dando o que você merece (fruto da sua ação anterior) e precisa (prova para sua elevação) e não o próximo. Pare de sofrer e ame a Deus e sinta-se amado por Ele. Mas, a recíproca é verdadeira. Se você conseguir se impor (estar “certo”) num relacionamento, saiba que isto não é Real, mas uma ilusão temporária que Deus concedeu a você porque o outro precisava e merecia ser sobrepujado naquele momento. Portanto, não tenha o prazer nem a soberba de se sentir o “melhor”, o “certo”. Ter prazer quando Deus age: isso é uma atitude de profunda incompreensão do Universo. Eu afirmo: o homem, o ser humanizado tira proveito do que Deus faz. Quando o Pai faz acontecer a ação carmática coincidente com a ilusão (verdade relativa) do ser humanizado, ele tira proveito da situação: tem prazer achando que ele conseguiu realizar o que queria. Aquele que obtêm lucros individuais com o trabalho alheio pode ser chamado de “explorador”. O ser humano, ou melhor, o espírito que vive a ilusão de “ser” e “estar” é um explorador de Deus. O Pai age e ele tem o prazer (lucro individual). Onde ficou a humildade ensinada pelos mestres? Onde ficou a subserviência a Deus? “Deu certo, foi eu que fiz; não deu certo foi outro que fez”: isso é “erro”, é irreal. Viver deste jeito é viver no “erro”, na ilusão. Para que vivamos a oração do São Francisco é preciso compreender e viver dentro da Realidade: só Deus age. Aí estaremos vivendo a Verdade. Um comentário: Tantos assuntos estão sendo estudados hoje, não? Quantos temas diferentes da vida humana estão sendo abordados, não? Esta oração, como guia de vida, é fenomenal. Tanto ela como o “Pai Nosso” são guias que se seguidos no seu contexto levariam o ser – 108 –


humanizado a alcançar a evolução espiritual rapidamente. O problema é que os seres humanizados ficam adorando, idolatrando Francisco de Assis, ao invés de entenderem o que ele fala, ou então, ficam apenas recitando as suas palavras, mas na hora de agir não as colocam em prática. Aqui temos elementos que nos remetem ao simbolismo da árvore. Dos schémas do cíclico, somos levados para os schémas do progresso. É hora de agir, de colocar em prática os ensinamentos. Esta verticalidade é muito mais dramática do que heróica.

“onde houver desespero que eu leve a esperança” O que é um “desespero”? Quando o ser humano fica “desesperado”? Quando acontece uma situação que ofende o seu individualismo e ele não consegue alterá-la. Quando isto ocorre o ser humano entra no processo de sofrimento e depois, junto com a depressão, vem o desespero. Francisco de Assis propõe servir como instrumento de Deus àqueles que vivem desta maneira para levar a “esperança”. Precisamos entender que “esperança” ele se propõe a levar, pois dependendo da forma como cada um encare os acontecimentos da vida, esta ação pode ter diferentes significados. Qual foi a missão do Cristo? O que ele nos ensinou mais profundamente? Que existe uma forma de viver que é resultante da elevação espiritual (o amor a Deus e a todos) onde as coisas da vida não mais causam aflições. Cristo fez isto como instrumento de Deus para ensinar aos seres humanizados que existe uma Realidade muito diferente daquela em que eles vivem e que é cheia de “graça” (felicidade incondicional). Mas, não agiu apenas para mostrá-la, mas também no sentido de dizer que ela pode ser alcançada. Quando o ser encarnado viver a sua existência da mesma forma que Jesus Cristo vivenciou a sua alcançará o que foi chamado de “ressurreição”, ou seja, a vida espiritual consciente, dentro da Realidade. Por isto o mestre nos ensina:

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“eu sou o caminho, a verdade e a luz. Ninguém chega a Deus a não ser através de mim”. É esta a esperança que Francisco de Assis quer levar como instrumento de Deus para aqueles que vivem desesperados: que a felicidade incondicional pode ser alcançada. Para realizar esta missão precisa ensinar a Realidade (atos gerados por Deus como ação carmática e prova) aos seres humanizados. Toda situação que o ser humano vivencia é um instrumento da sua felicidade, pois foi criada por Deus para que o espírito tenha a oportunidade de se elevar. Ela é fruto do Amor Sublime de um Pai pelo seu filho. Vivendo com esta Realidade o ser humanizado pode ser feliz, mesmo que não “goste” do que está acontecendo. Basta para isso não se desesperar, mas amar, mesmo que o momento atual lhe seja “adverso” materialmente falando. Ame o que está acontecendo que você será feliz sem mudar a forma das coisas. Ame quem aparentemente gerou a situação e a própria situação, ou seja, tudo que está envolvido. Não foi assim que Cristo viveu? Ele amou a Deus sobre todas as coisas, mesmo quando o acontecimento não o satisfazia: “Pai afasta de mim este cálice, mas se não for possível que seja feita a vossa vontade”. Há possibilidade de ser feliz realmente durante a vida carnal. Esta é a esperança que Francisco de Assis ensina. Não uma felicidade para depois da morte, como antigamente a Igreja Católica ensinava (que você tinha que ser “sofredor” nessa vida para alcançar o “reino do céu” depois que morresse). Não é esta esperança que Francisco de Assis traz, mas a esperança para a própria vida, a felicidade para ser vivida ainda encarnado. São Francisco levava ao próximo a esperança de que ele podia mudar a sua vida. Não os acontecimentos em si, mas o sentimento com o qual os vivenciava. Ele ensinava que os seres humanos podiam deixar de viver em desespero, mas que para isto precisariam ter F é e agir com amor universal. – 110 –


Na hora que você aceitar a esperança que Francisco ensinou e transformar o seu problema num ato de Deus, numa emanação do amor do Pai e se entregar à vivência deste problema com Fé, poderá ser feliz, independente do que estará acontecendo. Você não precisa sofrer quando o acontecimento está em desacordo com os seus desejos, ou seja, está acontecendo o que não gosta. Isto é apenas para aqueles que não têm a esperança na “ressurreição”. Já me perguntaram: nós nascemos para sofrer? Não. Nascemos para a felicidade, mas escolhemos sofrer quando Deus nos dá sempre motivos para ser feliz. Só não realizamos aquilo para que nascemos porque não confiamos e nos entregamos a Ele. Para tornar realidade a esperança que Francisco de Assis nos traz basta confiar em Deus, ter Fé. Afinal de contas, se Deus é por nós, quem poderá ser contra? Para que isto se transforme em Realidade na sua vida é preciso abrir mão do individualismo, do desejo, da paixão e da verdade que você possui. Só isso. Na hora que abrir mão destas coisas, não terá mais motivos para sofrer. Estará com Deus, estará em Deus. É esta esperança que Francisco de Assis transformou em instrumento da paz de Deus: que não há necessidade de morrer para ser feliz; basta amá-Lo acima de todas as coisas durante a encarnação. Por que você seria feliz somente depois que morresse? Aí se transformaria em um espírito, estaria com Deus? Mas, você já é um espírito e se já está com Deus, basta aprender a viver esta vida dentro desta Realidade, ou seja, com os valores espirituais, que são frutos apenas do amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. O monismo (holismo?) e a atitude neg-entrópica são necessárias para compreender a ordem existente na Terra, por mais estranha que essa afirmação possa ser para o nosso ego, mas é a trilha que deve ser percorrida para se viver feliz e ajudar o próximo a ser feliz.

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“onde houver tristeza que eu leve a alegria” Agora Francisco de Assis quer combater a tristeza, o sofrimento, dos seres humanos, ou seja, mais uma vez estamos falando de um sentimento resultante do individualismo ferido (não gostar do que está acontecendo). Para isto pede para levar a felicidade ao próximo, que ele seja instrumento da felicidade do próximo. Ele não se propõe a levar o prazer (levar a razão), mas sim a grande alegria desta vida que é Deus, que é estar em Deus, que é estar com Deus. Levar a glória de viver com Deus e em Deus: esta é a felicidade que Francisco de Assis se propõe levar a todos. Ele não pede para servir de instrumento para fazer o que os outros querem, mas sim para mostrar a todos como é belo o “Reino de Deus”. Ele se propõe mostrar a todos como são perfeitas as coisas de Deus. Fala da vida simples, ou seja, da vida sem verdades que a complique, que leva à felicidade. É esta felicidade que Francisco de Assis quer levar a todos e esta é, também e, portanto, a alegria que você deve buscar em São Francisco. Por isto, ao amigo espiritual não se devem fazer orações pedindo a que faça acontecer o que queremos, mas buscar, através dele, a felicidade de estar “vivo” com Deus. “Vivo” não no sentido material, mas no espiritual: estar vivo para o universo, conectado a Deus. Estar “vivo” é viver conectado ao todo universal (universalismo), vivenciar o universo inteiro, aproximar-se do Pai, ao invés de estar preso em um mundo pequeno cheio de “eu”: “eu quero”, “eu sou”, “eu estou”. A felicidade que Francisco de Assis prega surge depois que o ser humanizado derruba a porta do mundo individualista em que vive. Como chegar ao universo se você está preso dentro de uma casa onde só vale o que você acha, sabe e quer? É por estar preso neste mundo individualista que você sofre. É preciso abandonar tudo que é individual para poder penetrar no coletivo (universalismo) que, em resumo, é o próprio Deus. É por isso que Cristo disse ao moço rico que já cumpria todas as leis (caridade, oração, comunhão): abandone tudo que é seu e me siga. – 112 –


Abandone tudo que é seu. Não as suas coisas materiais, mas as posses, ou seja, as verdades que tem sobre as coisas deste mundo. Doe todas as suas verdades aos pobres, aqueles que querem ter verdades. O próximo quer ter razão? Louvado seja Deus! deixe-o levar a razão e ofereça a outra face. Ele quer achar que está certo? Louvado seja Deus! deixe-o ficar com a certeza das coisas. Para que entrar em guerra e discutir com alguém? Para se provar que está certo? Isso resultará em sofrimento para você na certa. Era por isso que quando alguém acusava ou mandava fazer algo, Francisco de Assis não discutia nem reagia. Agindo desta forma servia ao próximo. Este é o caminho para Deus, uma vida que pode lhe trazer felicidade. Esta é a única forma que você tem de buscar aquilo para o qual vive: ser feliz. De nada adianta juntar dinheiro para comprar coisas achando que assim será feliz. De nada adianta proteger seu filho achando que nada vai acontecer a ele e assim você poderá ser feliz. De nada adianta querer ter saúde para ser feliz, pois mesmo que tenha tudo isso, os momentos de contrariedade acontecerão e neles você sofrerá. Só quando não tiver verdades para ser contrariada você poderá ser eternamente feliz. Esta é a felicidade que Francisco de Assis traz a todos e que é resultante da verdadeira liberdade: ser livre, completamente livre para ser feliz. Livre-se de seu “pior inimigo”: você mesmo. Enquanto você não compreender que sofre porque é escravo de você mesmo, é escravo do seu ego, das suas verdades, do que você quer e não lutar para libertar-se de tudo isso, não será feliz. Aqui novamente temos a luta, mas ela aparece não no sentido heróico de libertação da matéria ou do corpo. O espírito deve se libertar das posses, das verdades que cria ilusoriamente. Aqui não há a necessidade de ruptura ou de separação com o mundo para se espiritualizar. Basta apenas fazer o que se faz, mas entregando os frutos da ação para Deus. Nada é proibido, nada é pecaminoso. E a felicidade não é algo para ser vivido no futuro, mas, hoje, no presente, mesmo nas vicissitudes negativas.

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“onde houver trevas que eu leve a luz” A Luz é Deus, é o amor de Deus: isso todos os mestres ensinaram. Mas, e a treva, o que será? É o individualismo que obscurece a sua vida, o seu mundo. “Onde houver individualismo que eu leve o Senhor, meu Pai. Onde houver o individualismo que eu leve a Sua Verdade, onde houver o ‘eu quero’ que eu leve o Seu amor”. Esta é a luz que o Francisco de Assis quer levar aos demais seres humanizados. Ele não quer levar aos outros uma luz artificial, mas a própria Luminosidade. Ele não pretende levar aos seres humanizados um mestre ou uma religião, mas levar Deus. O que mais atrapalha a sua espiritualidade é a sua religiosidade. Enquanto você estiver preso a uma religião estará preso a um só mestre e uma só verdade e não encontrará Deus que é a Causa Primária de todas as coisas, a Verdade Absoluta do Universo. A soma do Todo. Levar a luz não é ensinar a idolatrar Cristo nem ensinar o cristianismo, Kardec ou o espiritismo. Não é transmitir os ensinamentos do hinduismo nem louvar a Krishna ou os do budismo e Buda. Levar a Luz é falar de Deus, ensinar a amá-Lo acima de todas as coisas, inclusive dos mestres e das religiões. É apresentar aos seres humanizados o Senhor Onipotente, Onisciente e Onipresente do Universo. É levá-los a compreender a ação da Inteligência Suprema, do Amor Sublime e da Justiça Perfeita. Ensinálos a vivenciar a Causa Primária de todas as coisas. É tudo isto que Francisco de Assis ensinou com palavras adequadas ao povo daquela época e ações que o levava a vivenciar os acontecimentos da sua existência em congraçamento com a Realidade. Ele viveu para Deus sem contestar o mundo, sem acusar ninguém. Ele viveu para Deus simplesmente. Nós estamos falando de Francisco de Assis, mas procurem nas vidas dos mestres (Jesus Cristo, Krishna, Buda, Paulo, Pedro) se eles não viveram dessa foram. Foram caçados, xingados, presos, crucificados e jamais perderam a sua paz interior. – 114 –


Esta é a Verdade; é a Luz do universo; é a compreensão que liberta; o amor que leva ao gozo do bem celeste: a felicidade incondicional.

“Oh mestre, faze com que eu procure mais consolar do que ser consolado” Até aqui, Francisco de Assis na sua oração estava pedindo para ser instrumento de Deus, ou seja, agir para o próximo auxiliando o Pai na Sua obra. A partir deste ponto, ele passa a falar do receber dos outros. Antes analisamos o que dar, agora vamos falar do que esperar receber pela doação amorosa. O que é ser consolado? Quando alguém se sente consolado? Quando alguém lhe compreende, dá carinho, dá atenção, ouve. A partir desta pequena análise podemos compreender o que Francisco de Assis pede a Deus: “Senhor, que no trabalho de instrumento da vossa paz eu dê carinho e ajude aos outros, mas faça isso sem esperar receber o que estou dando”. O caminho da elevação espiritual não passa pelo prazer individualista, ou seja, pela necessidade de se receber alguma coisa em troca pelo serviço ao próximo. Aquele que busca a elevação espiritual está sempre disposto a dar, a servir e não a ser servido. Está sempre atento em auxiliar o próximo e nunca preocupado em esperar que os outros lhe auxilie. Francisco de Assis saiu pelo mundo “lambendo a ferida” dos outros e jamais buscando alguém que “lambesse” as suas. Procurando aqueles que estavam agonia, nas trevas e na discórdia para levá-los a Deus e nunca esperou receber em troca por isso “luz”, união ou amor a si. O que poderíamos dizer dos seres humanizados? Que, no mínimo, são hipócritas. Mesmo os que seguem os preceitos de uma religião afirmam que o seu objetivo de vida é auxiliar o próximo, mas se aquele que foi auxiliado não lhe retribui, critica e acusa. Se o próximo não disser pelo menos um “muito obrigado” é condenado como um mal agradecido. Será que o objetivo deste ser humano era mesmo servir o próximo, ou sempre foi conquistar a fama, o reconhecimento? Na verdade, a pres– 115 –


tação de serviço do ser humanizado sempre é baseada na busca individual, na esperança de ganhar alguma coisa em troca. O ser humanizado busca constantemente consolar para ser consolado, pois assim exige o seu individualismo. Aquele que busca consolar para receber alguma coisa em troca, mesmo que apenas o reconhecimento do que fez por parte do próximo ou da sociedade em geral, é individualista. Francisco de Assis nunca buscou consolo para si. Foi caluniado e criticado pelo seu modo de vestir, pelo seu despojamento, mas mesmo assim sempre estava pronto para auxiliar quem lhe caluniava e criticava. Aquele que transforma a oração de São Francisco em uma forma de viver (servir de instrumento a Deus) deve sempre estar perto de alguém para auxiliá-lo, mas nunca esperar compreensão, um agradecimento, um olhar carinhoso, uma retribuição. Auxilia pelo amor a Deus, por se sentir instrumento do Pai e não para que receba “compensações” do próximo ou de quem quer que seja, inclusive do próprio Deus.

“Que eu procure mais compreender do que ser compreendido” Sabia que a pessoa que “briga” e acusa os outros seres humanos não está brigando com o outro? Ela está brigando consigo mesmo, pois tinha uma verdade, uma paixão e um desejo que não aconteceu e a discordância entre o que possuía e o acontecimento a deixou revoltada, frustrada. É por causa destes sentimentos que ela briga consigo mesmo e com Deus e não porque o acontecimento ocorreu de determinada forma. Se a pessoa não tivesse estas verdades ou padrões do que deveria acontecer, o que está acontecendo não lhe causaria revolta. Sabe a pessoa que você acusa de estar ofendendo os outros? Ela não está ofendendo ninguém, mas se defendendo dos outros, de Deus e do mundo, que agiram contra ela, contra as suas verdades. Esta é a “compreensão” que Francisco de Assis comenta neste trecho da sua oração: saber que cada um age em legítima defesa do seu “eu interior material”, do seu ego, das suas verdades, dos seus desejos. – 116 –


Francisco pede a Deus para levar esta compreensão aos seres humanos, pois sabe que de posse dela eles poderiam não reagir contra o próximo. No entanto, pede também que Deus o auxilie a não esperar que as pessoas entendam seu ensinamento e reajam a ele com amor. É por isto que, apesar de só falar em amor, só levar Deus e Sua palavra à humanidade, as pessoas o caluniavam e criticavam, mas ele as amava da mesma forma. É a ajuda divina para não esperar ser compreendido que Francisco pede a Deus que lhe dê e esta também deve ser a que você deve pedir ao Pai para poder se tornar um “bem-aventurado”, ou seja, viver na felicidade universal. “Deus me dê forças, me dê intuição para que possa compreender a situação dentro da Realidade, dentro da Verdade, ao invés de ficar aprisionado neste mundinho do ego acusando todos, dizendo que estão me ferindo, quando na verdade todos estão se defendendo de mim, de Você e do mundo”. Esta forma de proceder estampa mais um ensinamento de Cristo: dar a outra face. Se o outro precisa brigar com você, pois ainda está preso às suas verdades, deixe-o brigar. Permaneça ouvindo tudo sem sentirse ofendido. Deixe-o brigar com você e não reaja: isto é auxiliar o próximo servindo de instrumento a Deus. Não adianta imaginar que discutindo para mostrar e provar para os outros que eles estão “errados” e você “certo” está prestando um serviço ao próximo: isto é ilusão criada pelo seu ego. Deixe o outro brigar, gritar, chorar, espernear e você não perca a sua paz. Afinal, ele não está brigando com você mesmo, não é? Amá-lo é a única coisa que pode auxiliá-lo, pois desta forma o ajudará a vencer suas verdades. Este é o “oferecer o outro lado” que o Cristo ensinou. Dar a outra face não é apanhar nas duas, mas não reagir dentro dos padrões que o mundo lhe impõe para reagir. Os seres humanizados têm como padrão para a suas vidas a necessidade de reagir para impor-se aos outros, pois crêem estar com a ver– 117 –


dade, sabem o que é verdadeiro e precisam vencer sempre. O ser espiritualizado, mais perto de Deus, sabe que apenas o Pai conhece a Verdade e apenas Ele é Real. É a vida dentro deste padrão que Francisco de Assis não quer para ele e quem reza a oração de São Francisco, transforma-a em um guia de vida, deve buscar viver nesta compreensão. Quando sentir raiva por estar sendo contrariado, respirar fundo e dizer: “Senhor me ajude a ver neste acontecimento uma ação amorosa Sua”. Buscar a elevação espiritual é sempre pedir para que o Pai o auxilie a compreender que o próximo não está brigando, mas é você que está querendo ser compreendido, pois se imagina o único “certo” do universo. Quem vive assim alcança a felicidade.

“amar do que ser amado” Pedir a Deus para amar mais do que ser amado é um resumo de tudo que falamos até agora: “que eu faça os outros felizes, mas que a minha felicidade seja apenas por servir ao próximo como instrumento de Deus e não condicionada a ser servido”. Ou seja, “que eu faça os outros felizes, mas não dependa deles para ser feliz”. O ser humanizado não pode viver na dependência dos outros, dos objetos ou dos acontecimentos A felicidade universal sempre está no universo à disposição de todos, pois Deus a espalha constantemente. Ela está à disposição de quem quiser ser feliz, mas o ser humanizado não consegue se conectar a ela porque ainda coloca obstáculos para isso: o contentamento da sua verdade, do seu desejo, da sua paixão. “Senhor, fazei que eu ame mais do que seja amado. Senhor, fazei com que eu leve a felicidade verdadeira a todos, mas que eu não espere a retribuição, a compreensão, nada, para ser feliz”. Isto é o que você pede quando reza a oração do São Francisco. Em resposta, Deus lhe dá a oportunidade de amar incondicionalmente colocando-o frente ao ódio, a discórdia, o “erro”, a dúvida, a ofensa, o desespero, a tristeza, as trevas. Deus faz isto porque você pediu como oportunidade de serviço a Ele. Neste momento, no entanto, ao invés de agir como pedido na oração, – 118 –


afirma que não pode amar o próximo porque ele não está fazendo o que você quer, não está lhe dando o carinho e a retribuição que gostaria de receber, não está lhe dando as coisas materiais que você gostaria de ter. Apesar de rezar a Deus pedindo para amar sem ser amado, o ser humanizado vive a vida querendo ser amado para então amar. Para isso busca sempre escravizar os outros às suas verdades e paixões, ou seja, às suas condições para ser feliz. Eu gosto sempre de lembrar o ensinamento de Cristo: abraçar os amigos é fácil, eu quero ver é cumprimentar os inimigos. Nesta máxima está a razão da vida encarnada, ou seja, para o que você nasceu. Sua encarnação tem um objetivo: aprender a conviver com que não lhe ama, amando-o do jeito que está, do jeito que é. Para isso é preciso não fazer cobranças, não fazer exigências, não colocar imposições para amar. “O dia que você não mais agir desta forma eu lhe amo”. Vivendo com este parâmetro você perdeu uma grande oportunidade de amar e isto aconteceu porque quis ser amado. Amar o próximo do jeito que é, do jeito que está, fazendo o que está fazendo. Foi para isso que você nasceu.

“pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado” Neste trecho da oração de São Francisco podemos ver a lei do carma. Nele também encontramos a máxima de Cristo: fazer aos outro o que você quer que ele faça para você. No entanto, Francisco de Assis não fala em perdoar quem você quer perdoar, dar para quem você dar, ou seja, àquele que você julgue merecedor de receber, mas perdoar e amar a todos incondicionalmente. Vivenciar este ensinamento é a maior sabedoria que um ser humanizado pode alcançar, pois nele reside o motivo da existência carnal, o objetivo da encarnação. Todos os espíritos que se encontram no Mundo de Provas e Expiações estão aqui para provar a Deus que são capazes de agir em benefício do próximo sem outra motivação do que o amor. Para provar que são

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capazes de agir sem receber nada em troca; são capazes de dar independente de razões para tanto e sem esperar receber nada em troca; são capazes de amar, sem que para isso tenham sido amados. É para isso que você nasceu. Quando ama desta maneira abre uma estrada luminosa para você mesmo porque entrará na consciência amorosa e “verá” Deus agindo. Quando você dá incondicionalmente, abre a compreensão e sente que está recebendo de Deus. Sem a compreensão deste ensinamento e sem a Fé (ingrediente fundamental para esta vivência), não há vida, mas sim “morte”. A “morte” que você chama de “vida”: a casa fechada que utilizamos anteriormente como figura para simbolizar o seu individualismo. Abrir-se para o mundo é exatamente isto: dar sem motivos e sem esperar receber nada em troca e amar incondicionalmente para ser amado. Isto é derrubar as paredes da sua casa. É preciso agir desta maneira, pois as paredes do seu mundo individualista (suas verdades) bloqueiam a sua capacidade de amar e dar incondicionalmente. Somente aquele que se liberta de suas verdades e faz para os outros incondicionalmente encontra a verdadeira “vida”.

“é morrendo que se nasce para a vida eterna” Cristo nos ensinou: em verdade, em verdade, vos digo, quem não nascer de novo não verá o “reino do céu”. Em verdade aqueles que buscam a elevação espiritual sabem disto e querem renascer, mas se esquecem de que é preciso antes “morrer” para que aconteça um renascimento. Só “morrendo” o ser humanizado pode viver no sentido espiritual (vendo o “Reino do Céu”). Mas, não se trata de morrer fisicamente, mas da morte do “eu”, do “ego”, derrubar as paredes da casa individualista que o ser humanizado habita. Enquanto houver uma verdade, um desejo, uma paixão, o ser humanizado estará “vivo” apenas no sentido material, mas estará “morto”, no sentido espiritual. Quando ele se libertar destas coisas morrerá como é hoje e só aí renascerá para glória de Deus, alcançará a ressurreição, ou seja, voltará a viver na consciência espiritual. – 120 –


Quando o espírito promover esta reforma (íntima) continuará vivendo nesta carne, mas, como Buda ensinou, como um ser iluminado, alguém que compreende o mundo dentro da Verdade, da Realidade. Este ser estará vivendo na “Luz de Deus” e não nas trevas do individualismo. Aquele que reza a oração de São Francisco como uma forma de religação com Deus, tem que viver para morrer. Para isto pode se aproveitar dos ensinamentos de Cristo, pois como ele mesmo ensinou “eu vim trazer a espada”. Para se promover a reforma íntima é necessário que se utilize a espada (ensinamentos) que Cristo trouxe para se “matar”. É preciso utilizar a compreensão dos acontecimentos do mundo que surge quando se entende o ensinamento do mestre para acabar com as verdades individuais e não utilizá-los para atacar os outros. Infelizmente os seres humanizados que não estão dispostos a “se matarem” e, por isto, utilizam os ensinamentos para ferir os outros com críticas e acusações. Por isto o mestre ensinou: é preciso tirar a trave que está no olho de cada um ao invés de apontar o cisco nos olhos dos outros. Aquele que garante “eu sei”, nada sabe, e está no caminho da discórdia, do ferimento a si e ao próximo. Só aquele que “morre”, que não existe mais como uma individualidade individualista pode nascer para a eternidade. Nascer para o universo, para o universalismo, para Deus e para o próximo. Amém. Com as graças de Deus. As ultimas frases da oração de São Francisco abordam a mortificação do ego. Na interpretação de Pai Joaquim de Aruanda, todas elas trazem os mesmos símbolos e imagens que podemos associar ao imaginário místico. A paz se assemelha à morte do ego. A morte é o local da calma e da felicidade. Essa mortificação do ego nos remete a uma espiritualidade pura, que poderíamos identificar como sendo heróica. Porém, é nessa polaridade que podemos identificar o imaginário dramático, também noturno. – 121 –


Enfim, a espiritualidade ou a luta presentes em seus ensinamentos em nada se assemelham aos símbolos do regime diurno de imagens. O que ficará ainda mais evidente no terceiro e ultimo texto que apresentaremos: “conhece-te a ti mesmo: a função espelho”. Esse texto é a transcrição de uma palestra na qual o “espírito” Pai Joaquim de Aruanda comenta um ensinamento chamado “função espelho”, atribuído ao “espírito” de Santo Agostinho. O texto que será comentado pelo “espírito” aparece em O livro dos espíritos, na questão 919, e é o seguinte: “Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra; ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticara durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que houvera feito, rogando a Deus e ao seu anjo de guarda que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria. Dirigi, pois a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar de novo no mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado? Examinai o que pudestes ter obrado contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado. O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do progresso individual. Mas direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas econômico e previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como – 122 –


a qualificareis, se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na podereis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de sua justiça. Procurai também saber o que dela pensam os vossos semelhantes e não desprezeis a opinião dos vossos inimigos, porquanto esses nenhum interesse têm em mascarar a verdade e Deus muitas vezes os coloca ao vosso lado como um espelho. A fim de que sejais advertidos com mais franqueza do que o faria um amigo. Perscrute, conseguintemente, a sua consciência aquele que se sinta possuído do desejo sério de melhorar-se, a fim de extirpar de si os maus pendores, como do seu jardim arranca as ervas daninhas; dê balanço no seu dia moral para, a exemplo do comerciante, avaliar suas perdas e seus lucros e eu vos asseguro que a conta destes será mais avultada que a daquelas. Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em paz e aguardar sem receio o despertar na outra vida. Formulai, pois, de vós para convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. Justo é que se gastem alguns minutos para conquistar uma felicidade eterna. Não trabalhais todos os dias com o fito de juntar haveres que vos garantam repouso na velhice? Não constitui esse repouso o objeto de todos os vossos desejos, o fim que vos faz suportar fadigas e privações temporárias? Pois bem! Que é esse descanso de alguns dias, turbado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o homem de bem? Não valerá este outro a pena de alguns esforços? Sei haver muitos que dizem ser positivo o presente e incerto o futuro. Ora, esta é exatamente a idéia que estamos encarregados de eliminar do vosso íntimo, visto desejarmos fazer que compreendais esse futuro, de modo a não restar nenhuma dúvida em vossa alma. Por isso foi que primeiro chamamos a vossa atenção por meio de fenômenos capazes de ferir-vos os sentidos e que agora vos damos instruções, que cada um de vós se acha encarregado de espalhar. Com este objetivo é que ditamos O Livro dos Espíritos’. (Santo Agostinho). Esta passagem atribuída ao “espírito” Santo Agostinho por Kardec será comentada pelo “espírito” Pai Joaquim de Aruanda. O texto disponível na internet é maior. Eu o reduzi retirando algu– 123 –


mas das perguntas formuladas pelos participantes. No final do texto, farei algumas considerações sobre sua dimensão mítico-imaginária. Para elevar-se, o espírito encarnado deve conhecer a si mesmo. Tal ensinamento nos leva a entender que o primeiro grande detalhe para aquele que pretende aproximar-se de Deus é conhecer a si mesmo, se auto reconhecer. Mas, vem Santo Agostinho é afirma que esse auto reconhecimento é quase impossível. Isto porque o ‘amor próprio’, que chamamos de individualismo ou egoísmo, lhe faz julgar-se de um modo diferente do que julga os outros. O amor próprio lhe faz ter compreensões diferenciadas entre a sua participação nos acontecimentos da vida e a dos outros. Sendo assim, posso afirmar que o auto reconhecimento (você saber quem é você mesmo) que o Espírito da Verdade diz que é fundamental para a elevação espiritual, é um trabalho que deve ser realizado indose além daquilo que você acredita sobre si mesmo. Para que ele possa ser realizado é preciso, então, que o ser humanizado vá além daquilo que acha, sabe, conhece ou imagina como ‘certo’ e ‘errado’ em si mesmo. Foi com esta finalidade que Santo Agostinho abordou no texto acima o conhecimento que pode servir como ‘formula mágica’ para cada um se auto conhecer: a função espelho. Ou seja, a informação de que Deus coloca na sua frente espíritos afins (iguais, com o mesmo padrão de ação) para que você compreenda que possui ‘dois pesos e duas medidas’ para avaliar a mesma coisa. Apesar deste ensinamento, que é raiz para quem quer aproximar-se de Deus e que já foi trazido há muito tempo, o ser humanizado não avalia sua participação nos acontecimentos do mundo com esta Realidade. Por isso continua julgando a participação os demais espíritos encarnados nos acontecimentos. Conhecer-te a ti mesmo é fundamental, mas para isso é preciso conhecer profundamente a ‘função espelho’ que Santo Agostinho comenta. Isso porque quem não compreende este assunto não entende a lei do carma: a justa reação à sua ação. A lei do carma que ‘move o mundo’ (faz os acontecimentos acontecerem)

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é posta em prática através da ‘função espelho’ que foi citada neste trecho de O Livro dos Espíritos. Vou falar do assunto na prática (usando como exemplo os acontecimentos do mundo) para ficar mais fácil a compreensão do assunto. Se um espírito humanizado tem à sua frente durante um acontecimento alguém que quer ‘levar vantagem’ sobre ele, é Deus mostrando-lhe que ele quer levar vantagem sobre os outros. Tendo à sua frente alguém que é ríspido, é Deus mostrando-lhe que ele é ríspido com os outros. Esta é a ‘função espelho’; este é o carma; esta é a lei do carma em ação. Então, esta é a ‘função espelho’: Deus colocando à sua frente espíritos, encarnados ou não, que praticaram determinados atos, de tal forma que eles sejam a Real imagem do que você é na Realidade, mesmo que não se entenda como tal. Saiba de uma coisa, se para você o mundo é ‘uma droga’, tenha certeza, de que este mundo é o seu espelho. Ele sempre estará e será um reflexo do que você é no interior. Tudo que você constata no mundo exterior (nas pessoas, objetos e acontecimentos) é o mesmo que existe no seu interior (no seu ego). Mas, em você, existem as desculpas, ou seja, os motivos para justificar seu comportamento e dizer que ele está ‘certo’, para que, desta forma, possa continuar julgando o outro dizendo que ele está ‘errado’ por ter agido como você agiu. Mas, tudo isso não é Real. O que você acha de si mesmo ou dos outros são meras criações do ego que o Pai faz acontecer desta forma para que você tenha a oportunidade de provar a si mesmo que aprendeu o Universalismo durante os estudos na erraticidade. Como já vimos anteriormente, o Espírito da Verdade afirma que ninguém tem nada a provar a Deus durante a encarnação, mas a si mesmo. Sendo assim, é justo que os acontecimentos da vida espelhem uma tentação, ou seja, induzam o ser humanizado a nutrir determinados sentimentos. Só assim ele pode provar a si mesmo que aprendeu que tal tipo de comportamento sentimental fere o Universalismo. Portanto, a ‘função espelho’ nada mais é do que a criação virtual de uma condição sem a qual de nada adiantaria para o espírito encarnar– 125 –


se. Ou seja, é Deus lhe amando para lhe proporcionar a oportunidade de provar a si mesmo que aprendeu determinados aspectos necessários para que possa alcançar a evolução espiritual. Entender isso leva ao ‘conhece-te a ti mesmo’, ou seja, leva o ser humanizado a compreender o que precisa trabalhar em si para prosseguir no caminho de aproximação do Pai. Eu já disse em palestras anteriores. Se alguém chega à sua frente e diz que você é feio, é Deus lhe mostrando que quer ser bonito. Quando o ser humanizado compreende isso pode se reconhecer realmente: ‘sou um espírito encarnado que dá mais importância a ilusão da sensação de sentir-se belo do que ao amor entre irmão’. Aí pode lutar para libertar-se desta paixão e deste desejo gerado pelo ego. Se alguém chega na sua frente e lhe toma alguma coisa que é sua (rouba), é Deus lhe mostrando que você é apegado às posses materiais que existem no ego. E quando você compactua com a sensação de raiva e perda lançadas à sua consciência pelo ego junto com o ato de xingar e acusar aquele que roubou, está mostrando para você mesmo que não aprendeu na erraticidade o universalismo, pois continua achando muito mais importante a posse do objeto do que o bem estar espiritual, do que a convivência entre irmãos. É isso que Santo Agostinho está mostrando e, com isso, está fazendo o ser humanizado entender a lei do carma. Fazendo o espírito encarnado compreender que aqueles que praticam a ação que ele, por imaginar que é a personalidade transitória que hoje guia o seu consciente, chama de ‘errados’ não estão praticando nada, o ser humanizado vivencia a ação carmática dentro do amor universal e, com isso alcança a elevação espiritual. Entendo que, na Realidade, foi Deus quem colocou aqueles espíritos ali para agirem a partir de uma ‘função espelho’ e, com isso, auxiliarem na evolução deste ser dando uma oportunidade dele se libertar do seu individualismo que o leva a acreditar que apenas ele está ‘certo’, o espírito pode, então, provar a si mesmo o que aprendeu antes da encarnação no chamado ‘mundo espiritual’. Isto porque, compreendendo e vivenciando esta Realidade, o ser humanizado se liberta das paixões gerenciadas pelo ego. Com isso pode, então, provar a si mes– 126 –


mo que aprendeu na erraticidade a amar universalmente a todos. Como eu disse, a resposta de Santo Agostinho era longa, mas a síntese é a menor que existe: tudo que existe no Universo, sejam as pessoas, objetos ou acontecimentos, são instrumentos utilizados por Deus para que o ser humanizado possa ter a oportunidade de provar a si mesmo o quanto aprendeu na erraticidade. E, quando você a compreende, o seu ‘mundo’ muda. Ao invés de ter na sua frente um ofensor, alguém que está lhe ofendendo, terá um irmão que, comandado por Deus, gerado pela Causa Primária de todas as coisas, estará criando um espelho para que você se auto reconheça e ‘trabalhe’ para libertar-se das paixões e desejos criados pelo ego que fazem com que você acredite na ‘culpa’ do outro. Aí está. Este é o conhece-te a ti mesmo que o Espírito da Verdade afirmou que é o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal: ninguém pode se auto conhecer a não ser que esteja na frente do seu espelho. Por isso é preciso compreender que todos e tudo que estão à sua frente transformam-se em um espelho, um reflexo do seu interior, para que você possa praticar o amar universalmente que aprendeu na erraticidade. Vivendo a partir destas Verdades o espírito encarnado pode, então, deixar de achar-se certo e conferir ao próximo o direito de também querer e ser alguma coisa além daquilo que ele quer que o outro queira e seja. Aplicando este termo ao ensinamento fica mais fácil compreender, por exemplo, que aquele que lhe ofende não faz isso, pois a ofensa que foi sentida não veio externamente, as foi um reflexo de você mesmo, das suas paixões. Foram suas paixões que geraram a sensação de ofensa e não o que aconteceu externamente. Se hoje você está sofrendo, passando por situações que não gosta, não acuse o mundo. Comece a olhar para dentro de si mesmo e verifique que você gerou a motivação para que aquele acontecimento fosse daquela forma. A partir desta compreensão, pode ser entendido, então, o que temos falado nestes sete anos de estudos: ninguém é culpado. Todos, os outros e você mesmo, quando se relacionam com as ‘coisas’ do mundo, – 127 –


exercem uma função no Universo como espelho daquele com quem está se interagindo. Por agora falamos dos outros agindo à sua frente, mas já vamos falar de quando você assume a função de espelho dos outros. A ofensa, quando você aceita o impulso do ego que diz que foi ofendido, ocorre porque o acontecimento (o que foi feito e/ou falado) foi contrário àquilo que você acredita ou deseja. Desta forma, o problema não é ser, mas possuir, ter. Digo isso porque quem não tem verdades não fica ofendido. Sendo assim, afirmo que você não precisa deixar de ser, mas precisa deixar de ter. Esta é uma diferença fundamental que precisa ser compreendida por aqueles que pleiteiam aproveitar esta encarnação para provarem a si mesmo que aprenderam quando na erraticidade. Por isso, ao longo desse trabalho todo, sempre disse que se reformar não é mudar o que o ego lhe diz, ou seja, as verdades, mas não acreditar nelas. A verdade vem, surge à mente, mas o buscador não acredita nela. Com isso você deixa de ter, mas continua sendo, porque deixar de ser ninguém pode. Quem não tem verdades não é ofendido. Só é ofendido quem acredita em alguma coisa. Se você não acreditar que é bonito não se ofenderá quando alguém disser que é feio. Se não acreditar que trabalha bem, não ficará ofendido quando alguém disser que trabalha mal. Você não precisa perdoar porque não foi ofendido. Mas, o comentário do próximo não ofende por quê? Porque tudo que os outros dizem não contraria mais nada, pois você não possui mais nada para ser contrariado. A partir desta análise existe uma ‘função espelho’, ou seja, um auto conhecimento que pode lhe levar a libertar-se de uma verdade ilusória criada pelo ego. Isso faz parte do segundo aspecto da função espelho que iremos falar: quando você serve como espelho dos outros. Eu já afirmei que só Deus não tem ego, ou seja, só Ele não tem verdades temporárias que levam o ser a viver uma personalidade diferente da sua. Deixa-me relembrar algo que digo praticamente todo dia. O espírito na carne só tem uma coisa para fazer: viver. Ele não tem que aprender nem esquecer, mas apenas viver a vida.

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Veja bem, se há alguma coisa a ser ‘entendida’ nesta vida, é a ‘função espelho’ que Santo Agostinho e outros ensinaram e sobre a qual estamos conversando aqui. Isso é fundamental para sua existência eterna como espírito e não a cultura material. Através do entendimento deste elemento universal, você pode aprender que todas as pessoas com as quais você se relaciona, direta e indiretamente, agem de tal forma que, a participação delas naquele acontecimento, lhe leve a reconhecer a ‘linha de raciocínio’ que o seu ego atual utiliza. Eu falei todas e não algumas específicas. Isso porque a função espelho é Real, ou seja, aplica-se a cada micro fração de sua existência. Caso alguém aqui não me conheça não sabe que eu gosto de exemplos bem fortes e pode ficar surpreso com o que vou dizer agora, mas isto é Real. Sabe aquela pessoa que ‘tira meleca do nariz’ no meio da rua? É um espelho para você ver a ação moralista do seu ego que lhe faz julgá-lo de porco. Não existe distinção entre qualquer situação percebida, que teve a sua realidade construída pelo ego: em todas elas o criador de ilusões gera uma compreensão e para tanto utiliza uma verdade individualista que senão ‘calada’ (cessada a crença nela) forçosamente levará o espírito a vibrar dentro do egoísmo. É disso que eu estou falando. Sabe o acontecimento que teve lugar do outro lado do mundo hoje e que você leu no jornal ou ouviu no rádio e na televisão? É espelho para você, é fonte para que você aprenda a conhecer-se. Por isso é que é fundamental para a elevação espiritual o perfeito conhecimento da ‘função espelho’ em seu mais amplo sentido. E, até agora, só estamos falando do outro se relacionando com você como seu ‘espelho’. Já iremos falar de você como reflexo dele. Aí verá como é ainda mais importante se compreender isso. Eu diria até, que sem viver com essa realidade é impossível se alcançar a bemaventurança, a felicidade que os santos sentem. Na Realidade o espírito não tem nada a aprender nesta vida. Todos os acontecimentos não devem gerar uma cultura, um aprendizado, mas servem como instrumentos para que o espírito comprove a si mesmo aquilo que aprendeu na erraticidade como já estudamos em

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‘O Livro dos Espíritos’. No entanto, posso dizer que ‘não aprender’ é não aproveitar a encarnação para elevação, não colocar em prática os ensinamentos que ‘estudou’ antes da encarnação. A partir disso, posso ainda dizer, apenas fazendo um jogo de palavras, que aprender é conseguir por em prática o que já sabia. Só se pode dizer que um espírito ‘aprendeu’ alguma coisa quando ele vive a vida material como espírito que é, ou seja, vibrando apenas o amor universal e entendendo o universalismo: o estar fundido ao Todo. Quanto ao resto que ele pode ‘aprender’ (ter conhecimento) durante a encarnação, seja de ciência material ou espiritual, é ‘cultura inútil’ que vai acabar porque tudo que se ‘aprende’ na Terra é compreendido de uma forma material. Vou dar um exemplo. Você estuda energia, fluído cósmico universal. Participa de trabalhos espirituais com a intenção de conhecer e aprender mais sobre a propagação deste elemento universal. Este aprendizado, porém, é criado a partir de idéias, de formas, de valores que só existem no planeta Terra. Lembra-se de uma das perguntas que estudamos anteriormente aqui em ‘O Livro dos Espíritos’? Ali o Espírito da Verdade responde a seguinte pergunta: “Esse fluído será o que designamos pelo nome de eletricidade”? Sua resposta: “O que chamais fluído elétrico, fluído magnético, são modificações do fluído universal, que não é, propriamente falando, senão matéria mais perfeita, mais sutil e que se pode considerar independente”. Ou seja, o fluído cósmico universal não é o fluído elétrico ou magnético conhecido na Terra. Apesar disso, os seres humanizados continuam trabalhando energeticamente com o elemento espiritual simulando as mesmas propriedades que os elementos terrestres possuem e achando que estão ‘certos’ em suas crenças. Por isso afirmo: o espírito não consegue aprender nenhuma Realidade Universal enquanto preso ao ego. O máximo que ele pode alcançar é uma interpretação material de algo espiritual. Mas, este conhecimento não será útil de forma alguma quando livre das ilusórias percepções geradas pelo ego. – 130 –


Além disso, tudo aquilo que ele precisa saber com relação a este detalhe, já está presente em sua consciência espiritual. Ou seja, ele já conhece a Realidade. Por isso a ilusão hora criada de nada serve, ou melhor, serve assim: como distração para não realizar o verdadeiro objetivo da encarnação que é provar a si mesmo que aprendeu na erraticidade a amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Você já aprendeu tudo o que tinha de aprender de ciência espiritual. Não na figura e formas conhecidas no mundo terrestre, mas na Realidade de todos os elementos espirituais. Assim sendo, você transforma a sua existência numa busca desenfreada de aprendizado, cultura, mas, quando sai da carne (desliga-se do ego) tudo que foi agregado a ele se perde. Então, todo aprendizado, mesmo sobre as coisas espirituais, é perdido com o desencarne. Agora todo ‘aprendizado’ no sentido de saber amar incondicionalmente, portar-se como espírito, é eternizado. Terminada a primeira parte da ‘função espelho’, vamos passar à segunda: quando você e sua participação servem como oportunidade para a reflexão do próximo. Ou seja, quando você pratica algum ato frente a alguém. Começo dizendo: saiba que você não pratica nada frente a ninguém. Tudo que você faz frente a alguém apenas espelha um ‘reflexo’ do íntimo (verdades do ego) desta pessoa. O seu ato é um ‘reflexo’ do interior dos outros seres humanizados, ou seja, espelha aquilo que está no íntimo dele para que ele também possa entender as verdades do seu ego e combatê-las. Com este conhecimento acabamos com algo muito comum no planeta Terra e que é chamado de ‘culpabilidade’. Veja bem: se você não pode culpar o próximo porque o que ele pratica é apenas o reflexo de suas verdades, também não pode se culpar pelos atos que pratica, pois você é a ‘imagem refletida’ dele. Este é um aspecto importante para quem quer aproveitar a vida carnal como instrumento de elevação espiritual: o outro não é culpado, mas você também não. Isto porque não existem culpas. O que existe realmente é cada um praticando ações que sirvam como reflexo às verdades do outro e, por isso, agindo em prol e benefício do próximo. – 131 –


E, ainda tem gente que diz que a vida carnal é injusta ou feia. Olha que mundo maravilhoso. Veja que Deus Perfeito, que coloca alguém que aparentemente lhe ofende como reflexo seu, mas que também lhe faz reagir com nervosismo, briga, grito ou de qualquer outra forma contra quem lhe ofendeu, para que sua atitude sirva a ele, dando-lhe a oportunidade de conhecer-se (conhecer as verdades do ego). Não sei se está dando para compreender o que eu quero dizer. O que estou afirmando é que, na Realidade, em cada relacionamento entre dois seres humanizados, o que cada um pratica serve como espelho para o outro, ou seja, tudo está interligado, é interdependente, como ensinou Buda. O outro pratica o que você precisa e você reage sempre da forma que ele precisa. Por isso volto a afirmar: não há culpas. Observe que no texto que estamos analisando, ao referir-se ao conhece a ti mesmo, Santo Agostinho não fala em reconhecer em si culpas, não ensina que precisamos avaliar possíveis ‘erros’ cometidos para outrem. Na verdade o que ele diz é que precisamos aprender a reconhecer se não faltamos a algum dever e se ninguém tem motivo para de nós se queixar. Faltar ao dever seria não servir de espelho para o próximo levando-o, assim, a não se auto conhecer e, por isso, ter a condição de queixar-se, quando do retorno à pátria espiritual, de não ter recebido a ajuda necessária para a sua reforma íntima. É a isto que devemos estar atentos e não àquilo que praticamos aos outros, ou seja, se o ato que fazemos está dentro de um padrão aprovado pela humanidade como ‘bom’. Mas, como já aprendemos, Deus é a Causa Primária de todas as coisas, o Senhor Supremo dos carmas. Se assim é, Ele é quem comanda a nossa participação dentro dos atos humanos. Por isso posso afirmar que alguém jamais deixará de receber a presença de um ‘espelho’ que lhe facilitará o auto conhecimento necessário para a reforma íntima. Portanto, posso afirmar, que ninguém deixará jamais de fazer a sua parte. Partindo desta compreensão, pergunto, então, porque Santo Agostinho, que conhecia perfeitamente esta Verdade do Universo, nos aconselha a nos analisarmos sempre para ver se não faltamos com nosso dever? Porque, além daquilo que é realizado no ato físico, a partici– 132 –


pação de um ser humanizado em qualquer momento de sua existência deve ser vivenciada com o amor universal. Servir ao próximo não pode se refletir apenas nos atos, pois estes ultrapassam a intencionalidade de um ser ao vivenciá-los já que são pré-escritos pelo Pai para servir de instrumento a quem os recebe, mas precisa ser comungado com o amor desapegado. Quando o ser humanizado cria uma situação como espelho do próximo, se ele vivencia tal atividade com uma motivação individualista (eu quero, eu gosto, eu acho), ele deixou de cumprir o seu ‘dever’, ou seja, deixou de amar universalmente, desapegadamente ao seu ego. Viver desse jeito (com a compreensão de que sua ação é um espelho para o próximo, mas também não fundamentar-se em suas paixões individuais para julgar o que fez) é o cumprimento real do ‘dever’ de cada ser humanizado. Mas, infelizmente poucos conseguem viver assim. A grande maioria, além ser instrumento da criação do ato, naquele momento ama condicionalmente, ou seja, participa da ação movida por suas paixões individualistas e quando assim faz, surgem, então, a depressão da dor ou a exultação do prazer. Já falamos do elemento ‘dor’ (culpa) do binômio resultante de quem participa como ‘espelho’ de seu irmão durante os acontecimentos da vida carnal. Falemos agora do seu oposto: a exultação do prazer. Se você pratica alguma ação, mesmo aquela que pelo padrão humanizado (pela lógica que prioriza a felicidade terrestre à individual) é transformada em ‘errada’, mesmo que aparentemente o outro ‘sofra, você não deve sentir-se ‘culpado’ pelo que praticou, mas também, de forma nenhuma, deve achar que está ‘certo’ em praticar. Não estamos falando em ‘certo’ ou ‘errado’, mas em necessário, em imperioso que acontecesse. Por isso a reação com prazer (“fiz mesmo, ele precisava, ele merecia, eu tinha que brigar mesmo, ele que se vire”) é um descumprimento do ‘dever’ do ser humanizado como instrumento de auxílio na Obra do Pai (o auto conhecimento do que reformar-se). Isto porque nesta reação está demonstrada a ausência da real compaixão (consciência do sofrimento dos outros sem exultar-se ou sofrer por isso) que está presente quando o amor (sentimento como qual o

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ser humanizado reage a um acontecimento) não é universal, desapegado de individualismo, egoísta. Como o espírito é instrumento de Deus, o prazer (encontrar satisfação no que faz) que ele sente torna-se um descumprimento do ‘dever’ dele como instrumento do Senhor. Para que este ser humanizado cumprisse à risca seu ‘dever’ seria necessário que ele tivesse a equanimidade (igualdade de ânimos) em tudo o que vivencia. Sendo assim, aquele que cumpre realmente o seu ‘dever’ deveria imaginar da seguinte forma a sua participação nos acontecimentos: “tinha que acontecer desse jeito e eu tinha que ser o instrumento de Deus para tanto. Louvado seja o Pai”. Então, aí está a função espelho no seu sentido mais amplo. Todos os acontecimentos que ocorrem no Universo e dos quais toma ciência, são imagens que refletem o seu interior e eles acontecem dessa forma para que você aprenda a se auto conhecer em profundidade. Mas, tudo que você faz frente ao próximo, também é um ‘serviço’ à comunidade espiritual, pois está representando um ‘papel’ criado por Deus de tal forma que ele reflita o interior do próximo. E, como é Deus que cria a fala, a ação e a interpretação daquele papel, você não tem motivos para acusar-se ou vivenciar o acontecimento num estado de soberba (prazer), se auto elogiando por ter sido espelho do próximo. Este é, em suma, o ensinamento que pode lhe ajudar a viver esta vida sem motivações individuais. Este é, na prática, o ensinamento que pode lhe levar a viver esta vida (carnal) com equanimidade, apatia pelos acontecimentos da vida. Por quê? Porque tudo que acontece (o que você faz e o que os outros fazem) não é a vida em si, mas sim Deus criando personagens e situações para que os espelhos se reflitam. Portanto, a ‘vida santa’ é a vivência dos acontecimentos sem alteração de emoções (hoje com raiva; amanhã feliz) e não aquela que atende a padrões humanos de ‘bom’ e ‘mal’. Se quisermos nos aprofundar mais no assunto, podemos estudar, também, o Bhagavad Gita. Este ‘cântico’, que possui o mais alto ensinamento de Krishna, trata-se da argumentação deste mestre a – 134 –


um discípulo (Arjuna) incitando-o a participar de uma guerra onde seria instrumento para o desencarne de outros seres humanizados que, além de tudo, eram seus parentes consanguíneos. E para isso o Bendito Senhor diz:: “Estiveste lamentando-te por aqueles que não o merecem. Todavia pareces falar como um sábio. Só que os verdadeiros sábios não se lamentam nem pelos vivos nem pelos mortos”. “Sabe, Arjuna, que nunca houve um tempo em que EU (SER) deixasse de existir, nem tu, nem esses reis e jamais deixaremos de existir no futuro”. “Assim como o ser encarnado tem a sua infância, juventude e velhice, assim também tal ser ressurge como outro corpo. Os Sábios nunca se confundem a respeito disso”. “Ó tu, o melhor dos homens, somente aquele que não se aflige por tais modificações e é equânime tanto no prazer como na dor realiza a Imortalidade”. “O irreal jamais existe; o Real nunca é inexistente. Os Sábios percebem claramente esta Verdade”! “Compreende que aquele que interpenetra tudo isto é imortal. Ninguém nem nada pode destruir esse Princípio Imutável” “Aquele que pensa que este SER mata e aquele que pensa que este SER é morto, os dois são ignorantes (porque pensam, raciocinam). O SER não mata nem morre”. “Esse SER não nasce nem morre e tampouco reencarna, o SER não tem origem; é eterno, imutável, o primeiro de tudo e todos e não morre quando matam o corpo”. “Ó filho de Pritha, como pode morrer ou causar morte de outro aquele que sabe vivenciadamente que esse SER é indestrutível, eterno, sem nascimento e imutável?” “Assim como alguém costuma deixar suas roupas gastas e bota outras novas, assim o SER corporificado e humanizado abandona seu velho corpo e faz-se outros novos”. “As armas não o cortam, o fogo não o queima, a água não o molha e o vento não o seca”. “A este SER não se lhe pode cortar, nem queimar, nem molhar, nem secar; é eterno, onipresente, estável, imóvel e primordial”. (Bhagavad – 135 –


Gita – Capítulo II – Sankhya Yoga ou o caminho do discernimento – versículos 11 a 13 e de 15 a 24). Tal ensinamento, levado ao extremo, lhe fará ver que não há morte, mas desencarne. Mas também lhe mostrará que cada um vai desencarnar na hora que tem apropriada para tanto e que tudo que acontecer durante o ato que espelhará tal situação servirá como uma oportunidade de auto análise a todos os espíritos envolvidos nele. Ensina, ainda que, por isso, todos os envolvidos no ato devem vivenciálos sem emoções diferenciadas do ‘amor universal’ para poder cumprir seu dever com Deus e com a comunidadeespiritual. Aliás, saiba que ninguém se emociona (sofre ou se exulta) pelo morto, mas por si mesmo. Aquele que sofre por si (“ele foi embora e agora como eu vou ficar”) frente ao ato de uma ‘morte’ e aquele que se exulta neste momento (“não prestava, não valia nada, mereceu morrer”) agem motivados por paixões individuais: o que achavam dos outros, o quanto queriam que o outro estivesse ‘vivo’ ou ‘morto’. Por isso é que afirmo que, tanto uma como outra reação, foi motivada por um individualismo, por um egoísmo. Veja, todo mundo acredita em espírito, mas continua achando que a morte é horrível e, por isso repele o assassinato como elemento ‘não errado’ do Universo. Isso é algo que continuo achando engraçado: apesar de sempre falar para espíritas ou espiritualistas, ou seja, espíritos humanizados que acreditam na existência eterna, é só dizer que não há culpados que alguém me pergunta sobre o assassinato. São espíritas, espiritualistas, acreditam no espírito... mas ainda dão um valor imenso à vida carnal e, por isso, não aceitam que a ‘morte’ seja provocada por Deus através de instrumentos. Mas, se a vida é um dom de Deus só quem pode retirá-lo é o próprio Senhor. Isso é lógico, até mesmo para a razão humana... Sendo assim, ninguém pode quebrar o dom de Deus. Então, seja porque forma alguém morra, não houve morte, mas foi o dom de Deus quem se encerrou. Por isso tenho sempre que lhe dizer foi o Pai que retirou o dom dele e nunca que um assassinato criado pela livre vontade de um ser humanizado que aconteceu.

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O fim acontece na hora que ele chega e pelo modo ou método que Deus conhecia e comandou. Isso quer dizer que se você desligar a máquina de alguém que está em coma não abreviou o fim: Deus comandou-o porquê chegou a hora e aquele tinha sido o gênero escolhido para o desencarne. Agora, a sua intenção de abreviar o fim e a sua imaginação de ter conseguido realizar tal ato, é outra coisa. Se você também achar que ele viveria mais tempo se a máquina estivesse ligada, é outra coisa. Tudo isso é apenas imaginação, ou seja, construções racionais do ego que nada tem a ver com a Realidade. Como Krishna lhe diria: uma fantasia fantasmagórica. Portanto, o que estou dizendo não é para silenciar, calar, ou seja, não mais raciocinar ou ter pensamentos, pois isso acontecerá até o momento do desencarne ou até além disso: na vida errante vivida com a mesma personalidade de hoje. O que estou afirmando que precisa ser feito é viver-se ‘acima’ do que o ego diz que é real. Você é espelho do outro e jamais ‘errará’. A função espelho é comandada por Deus, e pode ter certeza que a Inteligência Suprema jamais ‘errará’. Agora, enquanto a função espelho age de uma forma Perfeita, porque é fruto da Causa Primária de todas as coisas, o seu ego lhe diz que você ou o outro estão errados. Portanto, o valor ‘errado’ não está no que você faz, mas foi uma criação do seu ego. Como já salientamos, os mitos podem estar latentes em um discurso. Os mitemas, a menor unidade significante do discurso, o ponto forte e repetitivo em uma narrativa, é que mudam, revestindo-se com novas roupagens. Nos três textos acima, um sobre a Umbanda, um sobre a Oração de São Francisco e outro sobre a “função espelho”, podemos notar algumas flutuações mitêmicas que DURAND (1980) chamaria de derivações e usura que podem distorcer um mito. Porém, mesmo sendo um texto racionalmente expresso, o discurso espiritualista acima também funda-se no imaginário e nele podemos encontrar motivos redundantes que, no caso por nós estudado, remetem, frequentemente, ao regime noturno de imagens, com o predomínio da estrutura mística (inclusiva) sobre a dramática (disseminatória). – 137 –


O imaginário da luta, do combate, da purificação etc. cedem lugar para o imaginário do repouso, do aconchego, da acomodação etc., mesmo que, em alguns momentos apareçam simbolismos que nos remetam à roda, ao fogo, à arvore e outros que podem ser associados aos schémes cíclicos e progressistas, típicos da estrutura dramática do imaginário. Encontramos, sobretudo no último texto, a negação ou a inversão do valor afetivo normalmente associado à morte. A angústia e o medo da morte não encontram lugar na fala do “espírito”. E como todo discurso, o adotado por Pai Joaquim de Aruanda também possui a função de transmitir informações e legitimar certa verdade. Ele também é persuasivo, retórico e orientador de uma prática. Daí afirmarmos que de sua Psicosofia brota uma animagogia (uma educação espiritualista) que cresce a cada dia, espalhando-se do Brasil para outros países. Porém, não é esse aspecto sócio-politico que nos interessa, apesar de sabermos que se fossemos por esse viés seria mais fácil transformar nossa pesquisa em algo aceitável no meio acadêmico. Voltando a dimensão mítica de nosso autor, notamos elementos que poderíamos classificar como típicos de um universo existencial diacrônico, onde Pai Joaquim de Aruanda vive dois episódios: o combate contra o “monstro” representado pelo ego e o retorno a uma vida de paz e felicidade, representada pelo espírito liberto das verdades criadas pelo ego.

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CONCLUSÃO Tomando a vida material como ilusória, pai Joaquim de Aruanda ensina aos seus “discípulos” espalhados pelo mundo e organizados em grupos espiritualistas, a importância do agir desinteressado e amoroso em todas as situações. Ou seja, para ele é possível vivenciar toda e qualquer vicissitude com benevolência e indulgência, e sempre com equanimidade (mesma igualdade de ânimo) e alegria. Este ensinamento encontra paralelo com aqueles transmitidos pelos principais mestres budistas, taoistas e hinduístas ao longo da história humana. A visão sobre o mundo material de pai Joaquim de Aruanda é similar à conclusão de Heisenberg (1990, p. 69), um dos mais importantes estudiosos da física contemporânea. Este afirma que o programa materialista desmoronou com a constatação de que a matéria é energia. Em outras palavras, que: A matéria é composta de átomos com um diâmetro medindo aproximadamente um décimo milionésimo de milímetro. (...) (e o átomo) é formado de núcleos pequeníssimos carregados com eletricidade positiva, e é cercado de uma nuvem de elétrons negativos, com um número tal que o todo é eletricamente neutro. A massa do elétron é de cerca de 1.800 vezes menor que o mais leve dos núcleos, ou seja, o núcleo do hidrogênio. (...) Os núcleos dos outros átomos são aglomerados compactos de prótons e nêutrons. (...) todas as propriedades físicas e químicas da matéria estão condicionadas por fenômenos localizados nas nuvens de elétrons; todos os processos radioativos, tanto naturais quanto artificiais, são fenômenos localizados nos núcleos dos átomos.

Existindo ou não a matéria, o fenômeno mediúnico e a Psicosofia de pai Joaquim de Aruanda está disponível para quem quiser. Se as informações que o médium em transe transmite pro– 139 –


vêm de um espírito ou não, é algo que cada um deve julgar. Mas é evidente que, neste caso, o médium se identifica com outra pessoa distinta daquela que forma sua própria identidade, um fato psico-sócio-antropológico que por si mesmo já mereceria um estudo sistemático, com os seus reflexos arquetípicos e simbólicos sobre o corpo e a voz do médium. Como salientei, a mitocrítica foi criada para analisar textos literários, porém, mesmo os discursos espiritualistas que fundamentam as mais diferentes Psicosofias possuem matrizes imaginárias que subjazem à prática animagógica dos que as seguem. E os ensinamentos transmitidos por “espíritos”, seja por meio da psicografia ou através de palestras, como é o caso de Pai Joaquim de Aruanda, cresce de forma significativa. Temos grupos que se orientam pelos ensinamentos de André Luiz e Emmanuel, “espíritos” psicografados por Chico Xavier; grupos que seguem a psicosofia de Ramatís, psicografada por Hercílio Maes e outros médiuns, assim como seguidores de Joanna de Angelis, Hammed e tantos outros “espíritos”. Porém, apesar de todas as psicosofias acima serem obtidas por meio da mediunidade, é importante salientar que todas possuem sua dinâmica sócio-psiquicaorganizacional ancorada em uma matriz imaginária, que pode ser heróica, mística ou dramática. No caso da psicosofia de Pai Joaquim de Aruanda, as imagens levantadas em seu discurso parecem mergulhadas na bacia semântica da pós-modernidade, e Dioniso parece ser o mito dominante, apesar de Hermes aparecer de forma latente, em alguns momentos mais heróicos. A imagem de Pai Joaquim de Aruanda, quando se manifesta mediunicamente através do médium Firmino José Leite não deixa de ser carismática. Seus seguidores se identificam fortemente com ele e com o seu discurso mobilizador e doutrinário. Sua psicosofia é religiosa e mítica ao mesmo tempo. Pai Joaquim de Aruanda é chamado, sobretudo por evangélicos que assistem aos vídeos na internet de ser diabólico. Porém, uma coisa é certa: Pai Joaquim de Aruanda não é um ser diabóli– 140 –


co. E por que não? Porque a expressão diabólica vem do grego diabállein que significa o que desagrega, o que desune, o que separa e opõe. Nada disso acontece em seus ensinamentos, pois eles se recriam constantemente através de um processo paradoxal que podemos chamar de “ecletismo criativo” que integra as filosofias orientais, o espiritismo e os ensinamentos de Jesus, Paulo de Tarso e outros expoentes do cristianismo. Assim, ao contrário de diabólica, pelo seu caráter universalista e facilidade que tem de integrar diversas forças espirituais, re-unindo diferentes psicosofias em um único feixe de Luz, a obra medianímica de Pai Joaquim de Aruanda é extremamente simbólica. Lembremos que “simbólico” em grego significa reunir, convergir as diferenças etc. Nesse sentido, ele é um ser simbólico e nada diabólico. E o caráter representativo e simbólico está inclusive na forma que participa do intercâmbio mediúnico. Como ele afirma, na Umbanda, por exemplo, um “espírito” jamais poderá se manifestar usando a forma ou o nome que teve em sua encarnação na Terra, mas irá se manifestar usando as formas simbólicas de pretos-velhos, índios, crianças e exus. Dissemos que Dioniso é o mito de Pai Joaquim de Aruanda. Pois bem, Dioniso também não é o deus do teatro, da arte de representar? Como ele diz, em um momento ele pode se manifestar como preto-velho e, em outro, como índio, como criança e como exu, dependendo sempre da necessidade do consulente que o procurou. Ele se apresenta como um preto-velho calmo e sereno na hora de dar conselhos para um consulente angustiado pelas provações que vivencia na Terra. Mas pode se manifestar através da postura altiva de um índio e se comunicar com mais rigor e força, dando um sonoro grito quando incorpora, com o objetivo de simbolizar a força e a coragem para enfrentar as provações. É essa postura que usa quando o consulente precisa de energia ou de um empurrão para sair do fundo do poço ou superar o medo, por exemplo.

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Ou, então, manifestar-se na forma simbólica de uma criança para representar a pureza, a felicidade e a alegria de viver liberta das verdades criadas pelo ego. Não foi à toa que Jesus disse que só entrariam no reino de Deus aqueles que fossem como as crianças, ou seja, que, apesar das dificuldades da vida humanizada, conseguem permanecer felizes e agir com pureza de intenção, ou seja, com amor e não com egoísmo, raiva, ódio ou desespero. Os ensinamentos transmitidos pelos “espíritos”, que formam a base da literatura mediúnica um dia merecerão o respeito que possui, até hoje, a chamada literatura dos viajantes. Quase quinhentos anos separam estes dois estilos literários. Porém, ambas marcam importantes transições na história da humanidade: a literatura dos viajantes é fruto do renascimento, fenômeno histórico que separa a idade média, um período dominado pelo fanatismo e pela intolerância, da idade moderna, que marcou a história da humanidade com uma profunda renovação moral, intelectual e cientifica. Encontramos a mesma analogia no caso da literatura mediúnica, fenômeno que se intensificou no final do século XIX, alcançando seu ápice em meados do século XX, tendo na figura do médium brasileiro Francisco Candido Xavier, vulgo Chico Xavier, um dos seus mais significativos expoentes. Como se fosse uma espécie de Hermes da pós-modernidade, Chico Xavier cedeu suas mãos e mente para que diferentes seres incorpóreos escrevessem significativos livros de poesia, de filosofia, e até livros científicos e religiosos sobre a relação profunda que há entre o mundo invisível dos “espíritos” e o chamado mundo material que vivenciamos através dos sentidos. Esse psicopompo, ou seja, condutor das almas, fez com que muitos leitores descobrissem por meio de seus livros aquilo que a própria ciência materialista já admite: que o mundo material não passa de um infinito campo de vibrações e reações energéticas. Enfim, cada literatura teve um papel bem definido. A literatura dos viajantes foi importante para que o humanismo florescesse na terra. Por sua vez, a literatura mediúnica vem ajudar no – 142 –


florescimento do espiritualismo. Curiosamente, a primeira levou o ser humano a deixar de ser um mero observador da natureza para se tornar um inquiridor, estabelecendo um diálogo, nem sempre pacifico, com a natureza e com as coisas que a envolvem. E a segunda, fez com que esse mesmo ser humano deixasse de ser um mero inquiridor da matéria para desconstrui-la, dialogando com o mundo sub-atômico ou energético das coisas materiais, valorizando todo o potencial mental do espírito encarnado e desencarnado. A literatura dos viajantes é fruto da mundialização do planeta ocorrida no século XVI e a literatura mediúnica é contemporânea da globalização. A primeira se beneficiou com a tipografia de Gutemberg e a segunda se popularizou graças a revolução informática. E um dia a humanidade vai compreender que da mesma forma que a obra de Leonardo da Vince foi de fundamental importância para que hoje fossemos capazes de dominar a anatomia do corpo, a fenomenal obra mediúnica produzida por Chico Xavier e de outros médiuns será de fundamental importância para o estudo da anatomia da alma. Assim, se alguns séculos atrás o mundo se encantava e se assombrava com as descrições do novo mundo feitas por escritores com Jean de Lery, André Thevet, Hans Staden e outros viajantes que para as Américas se conduziram, não tardará o dia em que as descrições dos diferentes planos espirituais realizadas por “espíritos” como André Luiz, Ramatis, Pai Joaquim de Aruanda e tantos outros vão ser exaustivamente estudadas nas academias da Terra. Espero que esta pesquisa seja a primeira de muitas que possam utilizar as heurísticas do imaginário para estudar as práticas espiritualistas, pois estas também são simbólicas e manifestam os mitos de um determinado momento histórico.

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