Discurso lido na Biblioteca Nacional de Portugal

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A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida (Cesare Pavese) Boa tarde, Quando soube que me eram destinados dez longos minutos nesta tarde, pensei em usá-los para contar da alegria de apresentar um livro neste espaço tão mágico. Falar da enorme satisfação e da até certa vertigem que sinto ao pensar que entre o mais de um milhão de livros que há neste edifício, debaixo do mesmo teto e entre as mesmas paredes que protegem os originais de gigantes das letras como Sophia de Melo Breyner, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, José Saramago, aqui, junto a eles, numa destas prateleiras, ficará este meu singelo livro. Também imaginei que usaria parte do tempo para expressar a felicidade de ter aqui hoje a minha mãe, que veio de muito longe para estar comigo, e de ver tantos amigos nesta sala. Pessoas que dedicaram parta da tarde de uma sexta-feira para partilharem comigo dessa alegria. Também pensei em contar sobre a gravata que hoje uso e que um dia pertenceu ao José Saramago - presente que a Pilar me deu e que nunca usei por achar que nenhuma ocasião era adequada. E supus que, depois desses agradecimentos, gastaria o tempo que me restasse para contar sobre o trabalho que fiz, explicar sobre a pesquisa que realizei nos arquivos da Fundação José Saramago, relatas as conversas que tive para reconstruir esses dias pré e pós Nobel, confesar o gozo que senti ao vasculhar jornais e revistas da época. Enfim, falar de como foi fazer este livro. Mas quando comecei a escrever estas linhas - porque sabia que o nervosismo e a insegurança me impediriam de falar de improviso – percebi que havia algo mais urgente e importante que gostaria de dizer, algo que tem a ver com livros também, mas tem a ver sobretudo com as pessoas, e com o que está acontecendo atualmente no meu país.


Cresci numa cidade sem livrarias ou bibliotecas. Sem sequer um teatro. E o único cinema de lá fora transformado numa igreja evangélica. Os meus anos de infância e adolescência foram vividos sem livros, sem qualquer contato com o mundo das artes. Demorei muito tempo para perceber a falta que isso me fez nessa primeira etapa da vida - não se sente falta de uma coisa que não se sabe que existe. Os livros entraram na minha vida tardiamente. Mas quando percebi o poder que eles têm entendi que não voltaria a estar sozinho, e desde então nunca mais deixei de ter comigo um destes objetos que Umberto Eco definiu como perfeitos, impossíveis de serem aperfeiçoados, como a colher e a roda. No diário de 1998 que hoje aqui se apresenta, José Saramago escreveu: “Continuarei a dizer que a literatura não muda o mundo, mas cada vez mais vou tendo razões para acreditar que a vida de uma pessoa pode ser transformada por um simples livro”. Eu sei qual foi o livro que transformou a minha vida. Sei qual foi o primeiro livro que me fez sentir a terra tremer. Sou capaz de recordar o assombro que senti quando encontrei essa porta da entrada para esse outro universo. Num ensaio publicado em 2010, o escritor mexicano Jorge Volpi defende a tese de que a capacidade humana para ficcionar representa um avanço na escala evolutiva, um passo mais na adaptação do ser humano como espécie. “Porque a arte, e em especial a arte da ficção, ajuda-nos a adivinhar os comportamentos dos outros e a conhecermo-nos a nós mesmos, o que pressupõe uma grande vantagem frente a espécies menos conscientes de si mesmas.” Além da incrível capacidade de divertir e entreter, a literatura é uma ferramenta importante para a adaptação na Terra, defende Volpi. “(...) a ficção cumpre uma tarefa indispensável para a nossa sobrevivência: não só nos ajuda a prever as nossas reações nas situações hipotéticas, senão que nos obriga a representá-las em nossa mente – a repeti-las e reconstruí-las – e, a partir disso, obriga-nos a pressupor o que sentiríamos se a experiência fosse de verdade. Uma vez feito isso, não demoramos em reconhecernos nos outros, porque de alguma maneira nesse momento já somos os outros”. Prossegue o mexicano: “Um romance permite experimentar vidas e situações


alheias mas também transmite informação social relevante – a literatura é uma porção essencial da nossa memória compartilhada.” Em resumo, a literatura provoca/evoca o exercício de alteridade, a capacidade de colocar-se no lugar do outro. “Nós somos o outro do outro”, dizia José Saramago. Mas para chegar a essa afirmação que parece básica é preciso colocar-se no lugar do outro. E a ficção, como tão bem explicou Volpi, permite justamente esse movimento. Colocar-se no lugar do outro é, sem dúvida, uma boa maneira de evitar a intolerância, o preconceito, o ódio àquele que é ou que pensa diferente. Pessoas próximas de mim, algumas delas que continuam a viver naquela cidade onde cresci, pertencem a essa massa de dezenas de milhões de pessoas que no último dia 7 endossaram nas urnas o discurso de um candidato à presidência que prega abertamente a homofobia, a xenofobia, a discriminação em função de género, raça ou orientação sexual. Ou seja, alguém que menospreza uma enorme fatia da população brasileira. Falo de um sujeito que tem como livro de cabeceira um relato escrito por um declarado torturador, falo de um homem que defende que cada brasileiro deve ter uma arma de fogo. Alguém que, estou seguro, jamais entendeu a serventia dos livros. O meu conterrâneo Manoel de Barros, o poeta da delicadeza, das pequenezas, escreveu certa vez: “Creio que a principal (função da poesia) é a de promover o arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que os idiomas não morram por fórmulas, por lugares comuns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso, a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. A prática do desnecessário e da cambalhota, desenvolvendo em cada um de nós o senso do lúdico. Se a poesia


desaparecesse do mundo, os homens se transformariam em monstros, máquinas, robôs.” Permitam-me repetir esta última frase, deslocando os homens para o seu início: “Os homens se transformariam em monstros, máquinas e robôs se a poesia desaparecesse do mundo”. Volto a Manoel de Barros, que num poema diz: Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.

Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Não são armas o que falta no meu país. O que falta no meu país hoje é delicadeza, é humanidade, e isso, estou convencido, nos é dado através da arte, da literatura, da poesia. E é por isso que evoco aqui hoje os livros, objetos mágicos, e aposto neles como instrumento contra a barbárie. Neles e nas borboletas. Obrigado! Ricardo Viel


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