4ª Edição da FIDES

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V. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 2177-1383.



EDITORIAL

Uma nova edição é apresentada, e a FIDES atinge sua 4ª edição. A linha editorial com fortes cores de jusfilosofia e envolta em conexões com elementos das ciências sociais dá à Revista um vigor energizante, que nos estimula a propagar a necessidade dessa agradável e proveitosa interação. Passado mais um semestre, a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, nascida em 14 de fevereiro de 2010, encontrou novos desafios e alçou novos voos, despertando nos membros de seu Conselho Editorial um sentimento incessante de buscar ir além. A FIDES busca promover gradual mudança de cultura no ambiente acadêmico no que diz respeito à diversificação das fontes de referência na pesquisa. Artigos científicos jusfilosóficos não devem ser produzidos exclusivamente com base em livros. A riqueza de ideias presentes em artigos de revistas e jornais, em músicas e poesias, em documentos da história e da cultura, e até nas simples conversas de nosso cotidiano, tudo pode e deve ser objeto do olhar jusfilosófico. Nesse sentido, algumas novidades são apresentadas neste semestre. A primeira delas foi a adoção do fluxo contínuo das submissões. Pela primeira vez, a Revista esteve aberta à submissão de trabalhos pelos cinco meses seguintes à publicação de seu último número. É mais uma vantagem advinda da escolha do meio eletrônico como veículo de editoração. Nada mais gratificante, porém, que o apoio que passamos a receber de estudantes oriundos de outras IES do Brasil: nossos colaboradores! Atendendo à universalidade do conhecimento e buscando fomentar a amistosidade entre as mais diversas instituições e a divulgação de nossos trabalhos, selecionamos e iniciamos uma verdadeira parceria com quatro estudantes dos Estados da Bahia, da Paraíba (dois) e do Rio de Janeiro. A eles nosso muito obrigado. E nosso Conselho Científico continuou a crescer, mantendo-se o elevado nível de nossos avaliadores: nossas boas-vindas aos novos avaliadores! A edição ora apresentada compõe-se, como de praxe, de três seções básicas: artigos iniciais de autoria dos professores do Conselho Científico, textos de leitura rápida e agradável, uma seção de artigos científicos convidados e a seção de artigos científicos que foram objeto de avaliação em processo editorial.


Por fim, considerando que a formação de um profissional, em especial do Direito, deve ser multidisciplinar e aberta a novas leituras – uma verdadeira exigência nos dias atuais – trazemos uma seção especial, intitulada “Literatura e Direito”, na qual publicamos o conto “Esoterismo” do Prof. Edilson Pereira Nobre Júnior e a croniqueta “Música e Direito” do Prof. Ivan Lira de Carvalho. Sejam bem-vindos a essa nova edição! Uma boa leitura!

Natal/RN, 31 de outubro de 2011.

Conselho Editorial


SUMÁRIO

ARTIGOS INICIAIS A PEDRA, O PAPEL E A TESOURA Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave A CONDIÇÃO DEMOCRÁTICA Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes O NOVO MÉTODO DA ADMINISTRAÇÃO DO RISCO NO PROCESSO Fábio Wellington Ataíde Alves

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8-10

11-14

ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS TEORIAS INSTITUCIONALISTAS E O ESTUDO DO DIREITO NUMA ABORDAGEM DESENVOLVIMENTISTA CONSTITUCIONAL Patrícia Borba Vilar Guimarães A ESFERA PÚBLICA COMO ELEMENTO CENTRAL DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA Ronaldo Pinheiro de Queiroz

15-22

23-40

ARTIGOS CIENTÍFICOS LIBERDADE E ESPAÇO PÚBLICO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH ARENDT Alfran Marcos Borges Marques

41-59

AUTORIDADE E FUNDAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO: UMA ANÁLISE ARENDTIANA Ana Luiza de Morais Rodrigues

60-72

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/1998: A IMORALIDADE INFILTRADA NA REFORMA ADMINISTRATIVA Débora Daniele Rodrigues e Melo

73-92

INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO SOBRE MARCO TÚLIO CÍCERO E O PENSAMENTO JURÍDICO ROMANO Françoise Dominique Valéry

93-104

DE QUE LADO ESTÃO OS DIREITOS HUMANOS? Helena Cristina Aguiar de Paula

105-115

OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS DE PERELMAN: A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA RETÓRICA JURÍDICA Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira

116-127

A LEGITIMIDADE DO CARÁTER PREVENTIVO GERAL DA PENA: UMA DISCUSSÃO DE SUAS SOLUÇÕES Lucas Duarte de Medeiros Lucas José Bezerra Pinto

128-141


AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE ACERCA DA DISCRIMINAÇÃO POSITIVA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL Nathália Maria Ariston Trindade

142-162

A POLÍTICA DE PESCA SUSTENTÁVEL (LEI Nº 11.959/2009) E A ÉTICA: ENTRE EXCELÊNCIA, DEVER E UTILIDADE Raphael Ramos Monteiro de Souza

163-176

LITERATURA E DIREITO ESOTERISMO Edilson Pereira Nobre Júnior A MÚSICA QUE TOCA DIREITO Ivan Lira de Carvalho

177-179

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FIDΣS Recebido 30 out. 2011 Aceito 30 out. 2011

A PEDRA, O PAPEL E A TESOURA Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave Todos se lembram daquela brincadeira de infância, similar ao “par ou ímpar”, na qual ao invés de “1” ou “2”, duas crianças escolhem um entre três elementos (pedra, tesoura ou papel), e revelam sua escolha ao mesmo tempo para verificar quem ganhou. No confronto entre pedra e papel, o papel vence pois envolve a pedra; entre tesoura e papel, a tesoura ganha já que corta o papel; e finalmente, entre pedra e tesoura, vitória da pedra que quebra a tesoura. Percebe-se que nenhum dos três elementos é imbatível: a tesoura sucumbe à pedra, que por sua vez sucumbe ao papel, o qual sucumbe à tesoura, formando um círculo de “caça e caçador” em que não há um elemento “super-poderoso”. Pois bem. Com a tripartição das funções estatais é mais ou menos a mesma coisa: executivo, legislativo e judiciário têm suas funções principais e atuam, reciprocamente, como limitadores dos abusos efetivados pelos demais no exercício dessas funções. pedra e o judiciário a tesoura. Cada um tem sua função principal (embrulhar – fazer leis; quebrar – executar as leis; e cortar – julgar se as leis estão sendo corretamente aplicadas) e seu agente limitador natural (v.g.: o princípio da legalidade estrita da administração pública – o legislativo limita a atuação do executivo quando determina as ações possíveis do executivo; ao mesmo tempo, o executivo tem poder de veto com relação às leis elaboradas pelo legislativo; o judiciário, por sua vez, avalia se a atuação do executivo se deu de maneira correta). É um esquema simples e que vem sendo estruturado desde Aristóteles, passando por Locke e Maquiavel, para que não haja arbítrio no exercício do poder. O poder centralizado em

Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Para visualizar melhor, podemos supor que o legislativo seja o papel, o executivo a

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FIDΣS uma única pessoa (ou órgão) fica sujeito a uma única fonte de tomada de decisão, o que aumenta imensamente as chances de exercício arbitrário. Para demonstrar a veracidade da assertiva, basta pensarmos em situações cotidianas, como duas crianças e um bolo de chocolate. Se a mesma criança partir o bolo e escolher o pedaço que lhe caberá, as chances de divisão desigual são grandes (em especial se esta criança gostar muito de bolo de chocolate!). Agora se uma das crianças parte e a outra escolhe a parte que lhe cabe, certamente as chances de haver uma divisão mais justa aumentam. A ideia de repartição das funções do Estado é exatamente esta, ou seja, aumentar as chances de exercício regular destas funções, sem exageros, injustiças ou arbítrio (tudo o que um dos atores faz é fiscalizado pelo outro – e não por si mesmo). Cada uma das funções estatais tem poder de veto sobre a outra, viabilizando o equilíbrio e a regular execução das tarefas que lhes são afetas. O cenário que vemos hoje no Brasil, entretanto, não é bem este. Para voltar à brincadeira da pedra, do papel e da tesoura, o que temos é um esquema em que a pedra é porosa, o papel esfarela e a tesoura tem corte à laser... ou seja, um legislativo que não faz o seu papel, um executivo que deixa a desejar e um judiciário que se apodera de funções estranhas à sua e as realiza sem que haja um elemento natural de limitação. Imagine uma enorme tesoura rasgando um frágil guardanapo de papel... Ou sendo “ameaçada” por uma pedra pome, que se esfarela ao tocar o metal – parece evidente a ausência de equilíbrio nesta situação... O sistema atual de poder de veto entre as funções estatais é estático, ou seja, há uma pré-definição de quem fiscaliza quem, e quando um dos fiscais falha, não há um substituto

o ativismo judicial, já que o judiciário tem se imiscuido nos espaços não trabalhados pelas funções típicas. Fica a questão: será que ainda existe a possibilidade de se reencontrar o equilíbrio neste esquema de três personagens (executivo, legislativo e judiciário)? Ou a solução seria encontrar novos pontos de limitação, como Ministério Público e Conselho Nacional de Justiça? Talvez esteja na hora de pensarmos em pontos dinâmicos de equilíbrio, adaptáveis às diversas situações da sociedade complexa, e não estáticos como os atuais, que demandam sempre um lento e doloroso processo de alteração legislativa para se ajustarem ao corpo social e terem, de fato, alguma serventia.

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capaz de suprir sua lacuna, dando ensejo aos ativismos das demais funções. Atualmente temos

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FIDΣS Recebido 17 out. 2011 Aceito 27 out. 2011

A CONDIÇÃO DEMOCRÁTICA Antonio Basílio Novaes Thomaz de Menezes

Quando uma onda de rebeliões se levanta e varre regimes totalitários a exemplo da Tunísia, do Egito, do Yemen e mais recentemente da Líbia na chamada “Primavera árabe”, nós ocidentais somos impelidos a nos questionar sobre o significado da liberdade e do estado de direito num regime democrático, ainda que desconsideremos a seqüencia dos eventos que nesse mesmo período sacudiram a Europa em Londres, Madrid e Athenas ou os Estados Unidos, com a “ocupação de Wall Street”. A invenção da Democracia pela civilização ocidental caracteriza uma equação de princípios que põe em jogo as ordens do individual e do coletivo nas figuras do Direito e da Liberdade. O fato é que os princípios do Direito e da Liberdade constituem uma equação que tem caracterizado a Democracia como um modelo de sociedade perseguido ao longo dos últimos séculos pelo Ocidente. Um ideal que, apesar das diferenças histórico-culturais, expressa sempre uma equação desses termos, objeto de uma demonstração cabal: não há

a relação entre os princípios da Liberdade e do Direito, como termos da equacionados pela Democracia, também descreva uma experiência histórica em particular, ou seja, um conjunto de condições específicas que traduzem as variáveis atinentes a cada sociedade. A crença na Democracia compreende o pleno estado de direitos do indivíduo e da coletividade, aos quais é garantido o exercício da liberdade, legitimado como princípio fundamental de um regime de governo até aqui inultrapassável. Assim, longe de questionar a importância da Democracia para a nossa sociedade, gostaria de apresentar uma pequena hipótese que considero relevante, na medida em que ela abre a possibilidade de uma “refutação de princípio” do verdadeiro significado democrático. Qual seja? A idéia de que a 

Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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sociedade democrática sem a combinação de estado de direito e liberdade individual. Embora

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FIDΣS Democracia caracteriza uma antinomia, quando os princípios do Direito e da Liberdade são postos em relação no quadro das condições históricas da sociedade contemporânea. Isto é, a existência da Democracia nos dias de hoje pode ser negada ou afirmada, simultaneamente, e com a mesma força de argumento, nas condições de funcionamento da nossa própria sociedade, a depender do equilíbrio entre as esferas públicas e privadas no que concerne ao jogo dos interesses relativos ao Direito e a Liberdade e a conseqüente legitimidade das pretensões. Comecemos então por definir os termos da discussão, afastando qualquer ilusão histórica de uma transposição do passado em termos de significado. O conceito de Democracia tal como modernamente entendemos em quase nada se assemelha aquele que historicamente lhe deu origem na Grécia. O princípio de isonomia perante a lei, considerado hoje universal, era dado apenas a alguns poucos com o status de cidadão. E o exercício do direito, compreendia tão somente aqueles, iguais entre si, sendo exercido por eles e sobre eles como um instrumento de coesão. Não havia a noção de liberdade individual e a condição de indivíduo estava subsumida a da coletividade, sendo esta última diferenciada em torno do direito de cidadania que se reporta a força de coerção da norma na ordem da cultura. Com isto, a democracia grega era uma forma de governo de poucos para poucos, contrastando com o sentido universalizante que temos hoje. Embora nas suas condições históricas, esta forma de democracia apresentasse na sua existência um caráter bem mais homogêneo na sua base sócio-cultural, e, portanto, uma maior equidade jurídica do que na concepção moderna atual. A relação entre Democracia, Direito e Liberdade, tal como entendemos modernamente encontra-se bem próxima aquela exposta no século XVIII, no “Contrato

liberdade do indivíduo e a vontade geral instancia a qual o individuo submete os seus interesses ao coletivo como expressão da sua autonomia, demonstra que não há como se prescindir de uma melhor circunscrição do pressuposto da nossa hipótese senão aquela posta em termos da assimetria entre os princípios da Liberdade e do Direito nos pilares de sustentação da democracia moderna. Vejamos, de um lado, a liberdade do individuo se afirma frente aos limites coletivos impostos pelo Direito, em relação à figura regulatória do Estado que é legitimada pela sociedade. De outro, a garantia do Direito, considerada como base e forma de legitimação da sociedade, constitui-se na expressão da força reguladora do Estado, ou do direito coletivo sobre a liberdade individual, dentro da democracia moderna.

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Social” de Rousseau. O paradoxo entre a vontade individual e o interesse coletivo, ou a

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FIDΣS Sob esta ótica há uma clara tensão entre os princípios do Direito e da Liberdade, do aspecto particular e universal, do individual e do coletivo. Tensão esta que se reproduz nas esferas de legitimação do Estado, dos estratos sociais, políticos e econômicos, dos interesses de grupos e indivíduos no campo de configuração das relações democráticas. Direito e Liberdade demarcam dimensões distintas na sociedade contemporânea, desenhando um conflito permanente na ordem social, seja na obstacularização da prevalência dos interesses individuais ou de grupos no âmbito do Direito, seja na persecução daqueles na própria constituição ordem jurídica, a partir da condição primeira da Liberdade. Tudo vai depender das condições dadas, de tal modo que podemos retomar os acontecimentos já citados da “Primavera árabe” e da “ocupação de Wall Street” como exemplo da forma ambígua que a defesa da Democracia assume quando tratamos dos seus princípios gerais de fundamentação. Nesses termos, a “Primavera árabe” caberia o reclame do princípio da Liberdade na percepção da Democracia como condição primeira da persecução das liberdades individuais e dos interesses de grupos na própria constituição ordem jurídica. E na mesma medida, outro reclame do mesmo princípio, a prevalência absoluta dos interesses individuais e de grupos, é alvo de intensos protestos na “ocupação de Wall Street” em defesa da Democracia. Contrariamente, a obstacularização dessa prevalência dos interesses individuais ou de grupos no âmbito do Direito, legitima o regime político de países árabes, como Egito e Tunísia, em torno das leis de proteção da ordem e do Estado, numa linha de argumentação do princípio limitador dos interesses e de grupos semelhante aquela do movimento de “ocupação de Wall Street” que exige uma retomada da Democracia como controle político do Estado. De modo que, a antinomia da idéia Democracia como modelo orientador da sociedade

os casos junto com todo um conjunto de possíveis variáveis que se colocam a interpolação das perspectivas. Pensada a partir dos princípios conflitantes do Direito e da Liberdade, a Democracia é suscetível das suas formas de legitimação, isto é, da possibilidade do primeiro legitimar a negação da segunda, e simultaneamente, esta última negar os pressupostos de universalidade e equidade daquele. Assim, aquilo que inicialmente caracteriza uma antinomia na própria condição democrática, se constitui na possibilidade de existência da mesma como um espaço que revela o jogo de forças entre o individual e o coletivo, consubstanciado no quadro de uma tensão insuperável de princípios, do qual depende a própria legitimação da sociedade no exercício democrático efetivo.

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contemporânea constitui uma equação de termos os quais devem ser considerados em ambos

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FIDΣS Recebido 16 out. 2011 Aceito 27 out. 2011

O NOVO MÉTODO DA ADMINISTRAÇÃO DO RISCO NO PROCESSO Fábio Wellington Ataíde Alves

O advento da Lei 12.403/11 já rendeu um bom número de reflexões em torno da nova sistemática das medidas cautelares no processo penal. Contudo, diante de tantas mudanças, tem ficado de fora a análise do significado do novo método na administração do risco penal. Para esse efeito, amadurecendo as diversas formas de vida em sociedade, o capitalismo regulamentador salienta o aumento da política criminal de intervenção, muito bem representada pelas novas tecnologias de controle da referida lei. Como nota Crawford (2009, p. 817), a regulação leva a cabo um projeto de controle do futuro e superação das incertezas. A questão problemática disso tudo radica nos processos de decisões produzidas num contexto de medo, frente à crise dos outros métodos tradicionais de intervenção educativa (ATAÍDE, 2010, p. 223). Seja como for, a administração de risco não mais se limita ao âmbito da teoria da

certo que a prisão perdeu o poder de ressocializar, o fato é que ela nunca deixou de ser o método mais eficaz de administrar o risco também do processo penal. No iminente colapso das agências de controle, alertou-se o legislador para reexaminar e, com ou sem razão, expandir seu projeto de governo penal. Essas circunstâncias criaram assim um completo programa de administração do risco no País. O Estado de BemEstar penal amplia a burocracia diluindo o controle por meio de novos mecanismos. Seguindo a classificação proposta por Clear e Cadora (2009, p. 31), os programas penais de risco podem ser divididos em três grupos de estratégias. A primeira abrange os métodos de redução de risco, que interagem a lei penal com projetos biopolíticos voltados 

Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.

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pena, havendo indicações evidentes de que este fenômeno também ocorre no processo. Se é

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FIDΣS diretamente à mudança do sujeito. A base central desta técnica reside no fundamento de que o desvio pode ser útil à coletividade, na medida em que se acredita na capacidade de ressocializar o desviante, dando-lhe um novo comportamento adequado à sociedade. Sem dúvida, as dificuldades na descoberta das causas da criminalidade tornam dificeis um modelo corretivo como esse. A segunda estratégia abrange o gerenciamento de risco, em razão do qual não se procura mudar ninguém, porém apenas administrar os fatores de risco que o indivíduo precipita. Como exemplo temos o caso da Lei n. 11.900/09, que alterou o Código de Processo Penal para permitir que o juiz determine o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência para o fim de “prevenir risco à segurança pública” (art. 185, § 2º, inc. I). A respeito do gerenciamento, sugere-se pensar o crime a partir dos processos de interação, ou em outras palavras, a compreensão do gerenciamento depende da aceitação da transgressão como uma combinação entre a interação de um ator e uma situação (COHEN, 1968, p. 99). Analisa-se, portanto, o indivíduo e a situação como um episódio de risco único. Isto é, não se considera o indivíduo transgressor isolodamente, mas ele e as múltiplas condições externas que precipitam a infração e fazem do crime um agir normal (COHEN, 1968, p. 199). Entendidas nesses termos as amplas situações nas quais se insere o indivíduo, o gerenciamento de risco pode acontecer por meio de programas de auxílio profissional; monitoramento eletrônico; proibições de sair de determinados perímetros; toques de recolher; fornecimento controlado de drogas para dependentes químicos; acompanhamento psicológico para portadores de patologias etc. A passo lentos, o regime aberto, a suspensão condicional do

surtir efeitos concretos e tampouco reformaram as velhas práticas burocráticas, enquanto muito fizeram para aperfeiçoá-las. As medidas cautelares dos incs. I, II, III, IV, VIII e IX do art. 319, CPP, realçam o caráter no gerenciamento do risco no processo. É um fato claro que as duas primeiras estratégias mencionadas

dificilmente

eliminam o risco. Por isso, a Administração penal recorre a um terceiro método, o do controle de risco. Devo dizer que esta estratégia suprime o risco (ROSAL BLASCO, 2009, p. 32). Na melhor ou pior das hipóteses, age contundentemente por meio de ações sobre o corpo ou a liberdade do indivíduo, inocuizando o comportamento transgressor. São exemplos de controle a pena privativa ou o emprego de drogas que eliminam a libido de psicopatas sexuais. Da mesma maneira, já na linha do processo, figuram como formas de controle o recolhimento domiciliar noturno; a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza

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processo e o sursis foram exemplos mal acabados de gerenciamento que não conseguiram

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FIDΣS econômica ou financeira e a internação provisória do inimputável quando existir risco de reiteração do injusto (art. 319, incs. V, VI e VII, CPP). O mais incrível é saber que o Estado muito se preocupa em mostrar para a sociedade o seu empenho nas falsas técnicas assistencialistas, enquanto menos admite sujar as mãos com gestão ou controle. O sistema penal parece com uma máquina difícil, cujas partes mais traiçoeiras não são sequer mencionadas às crianças, ainda que constantemente manipuladas pelos adultos. Se fosse permitido uma análise evolutiva, poderíamos concluir que as agências punitivas enfatizaram inicialmente as estratégias de controle, após o que se abriram aos métodos de redução e em seguinda ao gerenciamento do risco. Estas duas primeiras técnicas nunca foram capazes de produzir os efeitos desejados porque negaram a autonomia do indivíduo e, o que é pior, sucumbiram – em menor ou maior grau – ao desejo de mudar o homem, ignorando os processos de interação, ou seja, desconhecendo o seu ambiente e as situações nas quais se insere. Até aqui foi possível perceber que o gerenciamento e o controle do risco tratam-se das estratégias com mais chances de desenvolvimento no sistema penal. E por isso precisam guardar correspondência entre si, de modo que não se imponha no processo penal uma medida de controle cautelar quando à pena do crime seja reservada apenas uma solução de mero gerenciamento. Contudo, ainda cumpre compreender que a aplicação das medidas depende diretamente da interação entre o sujeito e situações concretas, isto é, do estudo do sujeito e a sua relação com o ambiente e outros indivíduos. Por mais que se defenda o Direito Penal do fato, muitas saídas nos levam ao tipo de pessoa à qual devemos dar um tratamento.

trazidas pela Lei 12.403/2011 se preparam para não apenas ocupar mas criar um novo espaço teórico multidisciplinar para os penalistas. E assim o inimigo pode restaurar-se em novas facetas. Por mais que se afirmem os avanços, o futuro das novas ferramentas de gestão da ordem ainda não reserva coerência com todos os fundamentos teóricos aqui expostos. Por isso, são exigidas pesquisas que redescubram não somente a teoria do risco no processo, mas a sua relação com a teoria da pena e o ambiente de realidade onde serão executadas penas e medidas cautelares. De fato, o risco refunda o processo na medida em que o abre ao escopo da aferição da personalidade do agente não somente para cumprir o fim da pena, mas para atender ao controle do risco na sociedade. Sob vários aspectos, a virada punitivista somente aparenta resolver o problema do encarceramento massificado. Precisamos não esquecer que mesmo

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Neste momento, quando o controle não se resume à pena privativa, as novas medidas

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FIDΣS após a adoção de medidas despenalizadoras nos sistemas angloamericanos, houve crescimento das taxas de encarceramento, sugerindo que as alternativas à prisão podem não evitar a expansão do modelo punitivista (MATTHEWS, 2009, p. 180). Por outras palavras, fica a advertência de que o eventual fracasso nos métodos de gerenciamento de riscos da Lei 12.403/11 incidirá sobre as taxas de reincidência, o que recria um refluxo às soluções partidárias do controle (populismo penal). Nomeadamente, a prisão se renovará.

REFERÊNCIAS

ATAÍDE, Fábio. Colisão entre Poder Punitivo do Estado e Garantia Constitucional da Defesa. Curitiba: Juruá, 2010.

CLEAR, Todd; CADORA, Eric. Risk and Communitiy Practice. In: STENSON, Kevin; SULLIVAN, Robert R. (Coord.). Crime, Risk and Justice: the Politics of Crime Control in Liberal Democracies. Cullompton: Willan, 2001.

COHEN, Albert K. Transgressão e Controle. Trad. de Miriam L. Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira, 1968.

CRAWFORD, Adam. Governing Through Anti-Social Behaviour: Regulatory Challenges to Criminal Justice. British Journal of Criminology, Oxford, n. 49, p. 810–831, 2009.

MATTHEWS, Roger. The Myth of Punitiveness. Theoretical Criminology, London, Thousand Oaks e New Delhi. Vol. 9(2), p. 175–201, 15. jul. 2009. Disponível em: <www.sagepublications.com>. Acesso em: 05 ago. 2011.

ROSAL BLASCO, Bernardo del. ¿Hacia el Derecho Penal de la Postmodernidad?. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, Granada, n. 11-08, p. 1-64, 2009. Disponível em: <http://criminet.ugr.es/recpc>. Acesso em: 20 mar. 2011.

FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000

Disponível em: <bjc.oxfordjournals.org>. Acesso em: 30 set. 2010.

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FIDΣS Recebido 17 set. 2011 Aceito 27 out. 2011

TEORIAS

INSTITUCIONALISTAS

E

O

ESTUDO

DO

DIREITO

NUMA

ABORDAGEM DESENVOLVIMENTISTA CONSTITUCIONAL Patrícia Borba Vilar Guimarães

RESUMO Esse trabalho realiza uma breve abordagem teórica das contribuições de teorias institucionalistas para a caracterização conceitual do Direito e Desenvolvimento.

Sugere algumas concepções de eficácia

sociológica do direito, baseado na caracterização

da nossa

principiologia constitucional e sua influência na construção, interdisciplinar, de um Estado desenvolvimentista na atualidade brasileira. Palavras-chave:

Direito

e

desenvolvimento.

Teorias

1 INTRODUÇÃO

Esse trabalho parte da premissa segundo a qual existem propostas teóricas consistentes para a caracterização do Direito ao Desenvolvimento, ancoradas em pensadores econômicos e políticos (BARRAL in BARRAL, 2005, p. 40), para além dos esquemas tradicionais do direito. Sustenta o fato inquestionável de que alguns dos aspectos mais relevantes para a caracterização de um modelo de desenvolvimento no século atual são, dentre outros, a liberdade política e econômica e a existência de “instituições críveis e eficientes” (BARRAL in BARRAL, 2005, p. 56), que têm sua origem no direito. 

Professora adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutora em Recursos Naturais, pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

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institucionalistas. Principiologia constitucional.

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FIDΣS Entretanto, alguns dos problemas de efetividade do direito brasileiro, segundo uma visão sociológica-jurídica, e que seriam fatores impeditivos do desenvolvimento nacional, poderiam ser atribuídos ao senso comum dos juristas – que os remete a um distanciamento do contexto econômico e político, acentuado por uma crença exagerada no poder das normas e na valorização de uma retórica do direito. Somadas a estes fatores, estariam as falhas na estrutura regulatória – os custos de transação 1, e o comprometimento da falta de planejamento, transparência e liberdade na implementação de políticas públicas. Este esquema teórico encontra fundamentação em abordagens neo-institucionalistas de autores dedicados às análises desenvolvimentistas e à relação com o direito, na definição das regras do jogo e na mudança institucional2. As mesmas fornecem sólida base analítica para avaliar as repercussões da credibilidade e eficiência regulatória das instituições que atuam na salvaguarda dos direitos e, em especial na realidade brasileira, dos direitos constitucionalmente assegurados. Um traço que marca a interpretação da Constituição é que ela representa o estatuto jurídico do sistema político, fazendo-se indispensável o sopesamento dos valores políticos expressos em Princípios - sejam positivados constitucionalmente ou Princípios gerais do direito - que serão conformadores da interpretação das regras constitucionais. A doutrina do direito e desenvolvimento orienta e explica as práticas correntes daqueles que procuram modificar o sistema legal, em nome do desenvolvimento. Seu

Observa-se que o direito e o desenvolvimento situam-se na confluência entre a economia, o direito e as instituições, que, sustentam os autores, possuem existência autônoma, 1

Este autor se refere aos custos de transação como “aqueles nos quais incorrem os agentes econômicos para efetivarem determinados negócios”, incluindo-se os mecanismos regulatórios (BARRAL in BARRAL, 2005, p. 55). 2 Cf. CAROTHERS, Thomas (Ed.), 2006; DAM, Kenneth W., 2006; TRUBEK; SANTOS, 2006; SEN, 2000. 3 Tradução livre de “Law and development doctrine orients and explains the current practices of those who seek to change legal systems in the name of development” (TRUBEK; SANTOS, 2006. p.3).

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pensamento se traduz na representação esquemática3:

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FIDΣS mas influenciam-se mutuamente, na caracterização de espaços de interpretação e aplicação. Como estatuto jurídico do político, a aplicação e interpretação da Constituição, sustentamos, beneficiam-se dessa interação. A problemática do desenvolvimento e sua relação com a principiologia constitucional encontram farto material de análise no cenário nacional e serão analisadas e relacionadas a seguir.

2 O DESENVOLVIMENTO COMO PRINCÍPIO NA ORDEM CONSTITUCIONAL NACIONAL

Os princípios constitucionais são direcionados para a sistematização de questões fundamentais do Estado Nacional. No tocante à interpretação constitucional, a repercussão destes princípios se prestaria também para a fixação de valores fundamentais da Constituição, enquanto documento escrito, representativo da intenção a ser impressa na invocação dos mesmos. Esta invocação independe de interpretações subjetivistas ou objetivistas, como têm sido denominados os teóricos exegetas que buscam ora a vontade da lei constitucional, ora uma maior objetividade e adaptabilidade deste texto, com base em elementos textuais ou em técnicas diversas de interpretação. Faz-se necessário apontar a distinção básica entre princípios, ditos constitucionais, dos demais princípios úteis na interpretação do Direito como um todo, e dispersos nos mais variados tipos de documentos legais. Na Constituição brasileira citam-se expressamente princípios, como os: da

soberania popular, dignidade da pessoa humana, defesa da livre-iniciativa, este inserido no título próprio “Da Ordem Econômica”; e do pluralismo político. Entretanto, é importante salientar que todos os princípios referidos como econômicos “não possuem apenas a conotação econômica, como ocorre com a proteção do meio-ambiente, que é uma inspiração muito mais ampla, sendo o aspecto econômico apenas uma das abordagens possíveis” (TAVARES, 2006, p. 126). Independentemente da fixação destas diretrizes interpretativas, os princípios possuem uma dimensão de valor que os coloca acima das demais normas e que estabelece uma ordem de interpretação distinta quando estes elementos de mesmo peso se acham envolvidos numa mesma questão.

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manutenção e perpetuidade do Pacto Federativo, concepção de Estado democrático de Direito,

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FIDΣS Sob o prisma jurídico, em nosso país há uma pauta constitucional na qual, embora haja uma enunciação de direitos sociais básicos, estes reclamam efetivação para que seja configurado um ambiente de desenvolvimento, uma vez que o mesmo é descrito pelo texto como princípio constitucional, no qual se pode observar a abrangência destes conceitos 4. No mesmo sentido, a dignidade da pessoa humana tanto é adotada pela Constituição Federal como fundamento da República, quanto como fim da Ordem Econômica. Constitui a dignidade, expressa na Carta, o núcleo essencial dos direitos humanos, juntamente com o direito à vida, e que não se situa apenas no campo dos direitos fundamentais. Isso significa que as relações econômicas devem ser dinamizadas tendo em vista a promoção da existência digna de que todos devem usufruir. Este tema remete ao conceito de Constituição dirigente, que Gilberto Bercovici define como “a constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade”. Neste sentido a Constituição brasileira vem definir os “fins e programas de ação futura, no sentido de melhoria das condições sociais e econômicas da população” (BERCOVICI, 1999, p. 36).

3 UMA CONCEPÇÃO APLICADA DE DIREITO E DESENVOLVIMENTO

A idéia de desenvolvimento em nosso país, portanto, implica numa dinâmica social constante, posto que se trata de um processo que visa elevar os níveis social, econômico e cultural da sociedade. Desenvolvimento não se confunde com crescimento, um processo descrito de forma quantitativa, mas sim qualitativa, como têm se referido diversos

um processo complexo, de caráter econômico e político, que envolve inúmeras instituições públicas e privadas, além da base legal adequada, no favorecimento da gestão pública. As políticas públicas daí decorrentes devem não só tentar cumprir estas prioridades de valores. O direito ao desenvolvimento passaria a admitir uma correlação entre a proteção dos direitos fundamentais e, nitidamente, os direitos sociais 5. Neste contexto, garantir o desenvolvimento implica também na instituição de políticas públicas direcionadas para tal fim, justificadas e fundamentadas no art. 3º, II da Constituição, como princípio constitucional. 4

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” 5 Cf. SILVA, 2004.

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economistas contemporâneos. Desenvolvimento, conforme descrito constitucionalmente, é

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FIDΣS Há uma geração recente de juristas que compartilham da importância da adoção de visões multidisciplinares nos enfoques dos fenômenos jurídicos, como forma de conferir-lhes amplitude diante de seus atributos de eficácia social. Esta constatação vai de encontro aos anseios do legislador constituinte, que estatuiu no sentido de que um dos objetivos fundamentais da República Federativa Brasileira é o de garantir o Desenvolvimento nacional. Este preceito pode ser qualificado, de acordo com a teoria constitucional, como princípio impositivo e norma-objetivo. Historicamente, o direito ao desenvolvimento foi incluído na terceira geração de Direitos Humanos. Ao estabelecermos relações entre a necessidade de desenvolvimento, com seus desdobramentos econômicos e sociais,

e a necessidade de proteção dos direitos

fundamentais assegurados pelo texto constitucional, evidencia-se o pressuposto de situações em que a ocorrência de casos difíceis demandará, além das tradicionais técnicas interpretativas, a utilização de técnicas que valorizem a principiologia constitucional na tentativa de assegurar a efetividade do mesmo texto. Em nosso contexto, especialmente quando trata da Ordem Econômica Constitucional, assumem grande importância as normasobjetivo descritas na Constituição do país, ainda mais quando se trata de uma ordem econômica inserida no sistema capitalista, pois estas surgem quando o preceito jurídico passa a ser dinamizado como instrumento de governo e conseqüentemente de políticas públicas e não apenas com fins de ordenação 6. Outra peculiaridade da interpretação constitucional concerne ao fato de que, mesmo estas normas possuindo uma maior densidade em relação às regras infraconstitucionais, aquelas, entretanto permitem, por ocasião da sua concretização, uma atualização constante do

que o intérprete constitucional está condicionado por sua cultura jurídica, suas crenças políticas, filosóficas e religiosas, sua inserção sócio-econômica, enfim, todos os fatores que integram sua personalidade. Uma das principais referências ao direito e desenvolvimento surgiu com a “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento”7, com dez artigos que ressaltam aspectos orientadores dos processos de desenvolvimento globais – enfatizando a tolerância e

6

Cf. GRAU, 2005. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Adotada pela Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. 7

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Direito. Além deste fato, a norma jurídica será a expressão de uma ideologia, no momento em

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FIDΣS autonomia - e ao mesmo tempo reconhecendo que o desenvolvimento é um processo abrangente, de natureza econômica, social, cultural e política 8. A construção teórica de Amartya Sen também remete à consideração de elementos de caracterização do direito ao desenvolvimento, muito além dos aspectos econômicos, ao fazer referência à necessidade de atendimento de necessidades mais amplas dos indivíduos, do respeito à condição da mulher e sua participação relevante e diferenciada na sociedade, da participação popular, aspectos focados e essenciais na caracterização contemporânea do papel do Estado relacionada ao desenvolvimento. Existe farto material e produção teórica consistente acerca da relação entre o direito, as instituições por ele criadas e o desenvolvimento. A definição de marcos teóricos que sustentem a relação entre o direito e desenvolvimento, portanto, necessita ser trabalhada nos contextos acadêmicos e de aplicação de conteúdo jurídico, como um exercício de busca da efetividade do direito, mediante a aproximação do contexto fático do universo mais amplo e interdisciplinar que envolve análises econômicas, políticas e sociais, e levando-o ao cotidiano dos destinatários da norma constitucional.

REFERÊNCIAS

BARRAL, Welber. Direito e Desenvolvimento: um Modelo e Análise. In: ______. (Org.). Direito e Desenvolvimento: Análise da Ordem Jurídica Brasileira sob a Ótica do

BERCOVICI, Gilberto. A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considerações sobre o Caso Brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, n.142, p. 35-51 abr./jun., 1999.

CAROTHERS, Thomas (Ed.). Promoting the Rule of Law Abroad: in Search of Knowledge. Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, 2006. 8

Especificamente no artigo 6 do documento referido, é reforçada a idéia segundo a qual os Estados “devem tomar providências para eliminar os obstáculos ao desenvolvimento resultantes da falha na observância dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.” Além destes aspectos aponta o artigo 8 que os “Os Estados devem [...]assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos [...] Medidas efetivas devem ser tomadas para assegurar que as mulheres tenham um papel ativo no processo de desenvolvimento. [...] devem encorajar a participação popular em todas as esferas, como um fator importante no desenvolvimento e na plena realização de todos os direitos humanos”.

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Desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005.

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FIDΣS DAM, Kenneth W. The Law-Growth Nexus: the Rule of Law and Economic Development. Washington: Brookings Institution Press, 2006.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. Adotada pela Revolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986.

SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao Desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006.

TRUBEK, David M.; SANTOS, Alvaro. The New Law and Economic Development: a

INSTITUTIONAL THEORY AND THE STUDY OF LAW IN A DEVELOPMENTAL E CONSTITUTIONAL APPROACH

ABSTRACT This work performs a brief overview of the theoretical contributions of institutional theory to the characterization of law and conceptual development. Suggest some conceptions of sociological efficacy of law, based on the characterization of our constitutional principles, and its contribution to the interdisciplinary construction of the developmental state in Brazilian.

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Critical Appraisal. Oxford: Cambridge, 2006.

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FIDÎŁS Keywords:

Law

and

development.

Institutionalism

theories.

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Constitutional principles.

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FIDΣS Recebido 29 ago. 2011 Aceito 26 out. 2011

A ESFERA PÚBLICA COMO ELEMENTO CENTRAL DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA Ronaldo Pinheiro de Queiroz

RESUMO Diante da inviabilidade da democracia direta e da crise da democracia representativa, o presente estudo pretende analisar a democracia deliberativa como um novo modelo de justificação de poder e tomada de decisão política, dando destaque para a esfera pública como o principal canal de comunicação e articulação entre a sociedade civil e o poder público. Palavras-chave. Estado. Democracia deliberativa. Esfera pública.

Na ciência política, dá-se o nome de regime político o conjunto de instituições por meio das quais um Estado se organiza de maneira a exercer o poder sobre a sociedade. Sem dúvida nenhuma, a democracia é o principal regime adotado nos Estados contemporâneos e até o momento não surgiu nem um outro que apresente uma melhor metodologia para a disputa e o exercício de poder. Eleições livres e periódicas, garantia dos direitos fundamentais, liberdade de imprensa, de organização política e de manifestação do pensamento, entre outros fatores, dão a tônica para o funcionamento democrático do Estado. 

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Procurador da República. Membro do Instituto Potiguar de Direito Público.

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1 INTRODUÇÃO

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FIDΣS Muito embora o conceito de democracia remonte à Idade Antiga, onde foram desenvolvidos os primeiros mecanismos de participação popular na tomada de decisão sobre os rumos da sociedade, houve um vácuo de vários séculos sem democracia no mundo até que esse regime político se consolidasse no ocidente junto com a formação moderna de Estado. Acontece que o modelo de democracia representativa vem dando demonstração de cansaço e até de um certo fracasso, na medida em que o poder político não tem percebido claramente os reais problemas da sociedade e tem encontrado dificuldade de legislar e governar para uma sociedade tão complexa e plural, que se sente alijada do processo decisório e da definição do futuro coletivo. O presente trabalho se propõe a analisar o novo modelo de democracia deliberativa que se apresenta como uma alternativa mais viável para identificar os problemas sociais, encaminhá-los ao poder público e inserir a sociedade civil como uma das protagonistas do processo decisório estatal.

2 A CRISE DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E O SURGIMENTO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

A fonte de todo o poder está no povo. O domínio do povo pelo próprio povo é o ideal democrático e de legitimação 1 do poder nas sociedades ocidentais contemporâneas. É da soberania popular que o Estado retira a sua legitimidade para agir ou não agir, promovendo a cidadania com ações e protegendo direitos individuais com abstenções.

soberano é o povo e a Constituição. Em que pese essas premissas sejam admitidas pelos principais setores da ciência política e da teoria do Estado2, persiste o debate em torno dos problemas da organização do poder político e da legitimidade desse poder nas sociedades políticas. Isso porque a forma de exercício do poder e o processo de tomada de decisão política pode ser visualizado a partir de pelo menos três modelos de democracia.

1

Diversas fontes da legitimidade foram apresentadas ao longo da história, como a religião, para os Estados teocráticos, que perdeu força com a secularização das sociedades ocidentais; o recurso da força e da opressão, nos Estados Absolutistas; e a vontade do povo, nos Estados democráticos instaurados após as revoluções liberais (francesa e norte-americana). 2 MIRANDA, 2003; BASTOS, 1999; FERRAZ JÚNIOR, 1985; DALLARI, 1995; BRITTO, 2003.

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Soberano não é o poder político, nem o governo, nem a classe dominante, nem as oligarquias,

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FIDΣS A sua primeira manifestação surge com a democracia direta, que encontra suas origens na antiga Grécia e em Roma, onde o povo se reunia na praça pública (ágora) para resolver as questões da coletividade (cidade-estado), atuando sem necessidade de intermediários. A soberania se manifestava na sua forma mais pura, já que os atores sociais votavam diretamente as leis que os governavam. Esse modelo puro durou dois séculos (BASTOS, 1993, p. 113), mas foi se tornando praticamente inviável numa sociedade com um mínimo de extensão territorial, complexidade e pluralidade quanto aos projetos de vida de cada cidadão3. A interpretação republicana de democracia operada por Jürgen Habermas se aproxima desse modelo autêntico, o qual considera que a formação democrática da vontade realiza-se na forma de um autoentendimento ético-político, onde o conteúdo da deliberação deve ter o respaldo de um consenso entre os sujeitos privados, e ser exercido pelas vias culturais. Na visão republicana, a sociedade se constitui como um todo estruturado politicamente4. Aqui vigora a ideia de política orientada pela sociedade. Já o Estado democrático moderno nasceu das lutas contra o absolutismo 5 e com ele surgiu o método de democracia representativa. Foi na época da Revolução Francesa que se desenvolveu cabalmente a ideia de representação política (BASTOS, 1999, p. 115), em que a vontade do povo tem o seu auge na eleição dos seus representantes, cujo mandato político recebido pelo sufrágio os autorizaria a tomar decisões em nome da sociedade, tendo as leis a encarnação da vontade geral da nação. Nesse passo, a democracia poderia ser indireta6 ou semidireta7. Esse seria o modelo liberal de democracia, segundo Habermas (2003a, passim), em

imposições de interesses superiores. A aceitabilidade do direito e da dominação política transformam-se em condições de aceitação, e as condições de legitimidade, em condições para a estabilidade de uma fé da maioria. São os próprios indivíduos que produzem a validade

3

“É evidente que a própria experiência do século XIX mostrou a inviabilidade da democracia direta. Os Estados modernos entraram pelo caminho da representação, com todos os problemas que isso gerou. Ultimamente, agora nesse final de século XX, apenas como uma curiosidade, a ideia da democracia direta tem reaparecido, ainda como uma utopia, é verdade, graças ao desenvolvimento da informática” (FERRAZ JÚNIOR, 1985, 21). 4 “A sociedade é por si mesma sociedade política – societas civilis; pois, na prática de autodeterminação política dos sujeitos privados, a comunidade como que toma consciência de si mesma, produzindo efeitos sobre si mesma, através da vontade coletiva dos sujeitos privados” (HABERMAS, 2003a, p. 20). 5 Vide DALLARI, 1995, p. 124. 6 O povo não teria nenhuma participação direta no processo decisório, sendo da exclusiva alçada dos seus representantes. 7 O protagonismo do processo decisório continua com os representantes, sendo o povo convocado esporádica e pontualmente para deliberar um plebiscito, referendo, recall, podendo também iniciar projeto de lei.

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que o “poder político” seria uma forma de “poder social” que se expressa na força de

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FIDΣS normativa, por meio de um ato de livre assentimento. A compreensão voluntarista da validade desperta uma compreensão positivista do direito: vale como direito tudo aquilo e somente aquilo que um legislador político, eleito conforme as regras, estabelece como direito. Há um distanciamento entre os participantes (que decidem) e os observadores (que aceitam) no processo de formação do direito. Na interpretação liberal, a formação democrática da vontade tem como função única a legitimação do exercício do poder político, de modo que os resultados das eleições autorizam a assunção do poder pelo governo, o qual, por sua vez, tem que justificar o uso do poder perante o parlamento e a opinião pública. A ideia de política seria orientada pelo Estado e não pela sociedade. O certo é que o modelo de democracia representativa, delegatária8 de poderes a representantes do povo, também se encontra em generalizada crise e em alguns países em franco descrédito. Se no primeiro modelo o povo era o grande protagonista de uma peça grandiosa, no outro não passava de um mero espectador de obras incompletas ou de verdadeiras tragédias. Não há dúvida que o modelo tradicional de Estado, incluída a clássica concepção de separação de poderes, passa por fortes questionamentos. O Legislativo tem encontrado dificuldade de demonstrar ser capaz de exercer uma orientação completa e exauriente da vida política e social. Por não conseguir captar e responder aos reais problemas da sociedade, tem havido uma certa descrença com a política majoritária por parte da sociedade, diante das deficiências de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. A cada sucessão de escândalos de corrupção nos Poderes Executivo e Legislativo, menos a sociedade confia nos seus representantes. O que é um perigo para o ideal democrático.

mais aproximado dela é o da democracia participativa (também conhecida por deliberativa), onde traz novamente o cidadão para dentro do debate político nas diversas esferas públicas de

8

Lenio Streck (2009, p. 21), citando O´Donnel, diz que: “a transição de regimes autoritários para governos eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição, até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários – particularmente da América Latina – caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, denominada pelo autor de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano”.

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Diante da inviabilidade prática de se retornar para uma democracia direta, o modelo

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FIDΣS participação, interlocução e decisão. É esse o novo modelo de exercício de poder buscado por diversos Estados a partir do final do Século XX9. Isso porque essa forma especial de governo constitui-se como um modelo ou ideal de justificação do exercício do poder político pautado no debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação. Diferente da democracia representativa, caracterizada por conferir a legitimidade do processo decisório ao resultado eleitoral, onde a participação do cidadão se encerraria no voto, a democracia deliberativa propugna que a legitimidade das decisões políticas deriva de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da tolerância, da igualdade participativa, da autonomia e do bem comum, conferem um reordenamento na lógica de poder tradicional. A ideia de política seria orientada por uma interlocução conjunta entre sociedade civil e Estado. A democracia participativa retira o povo da letargia de ser espectador, despertando-o para um agir cidadão. É o que pensa Paulo Bonavides ao afirmar que:

Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses (2008, p. 51).

Aguarda essa gente, porém, um impulso de cidadania, uma idéia, um princípio, um valor ou uma iniciativa político-pedagógica superlativa e civilizadora, que a converta em povo, tirando-a do esquecimento, da exclusão, do anonimato, da submissão. A democracia participativa há de ser, pois, a solução desse problema

Habermas concebe e desenvolve esse novo modelo de democracia deliberativa por meio de sua teoria do discurso, tendo a virtude de aglutinar aspectos dos modelos republicano e liberal. Em que pese não haver um processo de tomada de decisão direta, haveria uma

9

“A democracia deliberativa surge, nas duas últimas décadas do séc. XX, como alternativa às teorias da democracia então predominantes, as quais a reduziram a um processo de agregação de interesses particulares, cujo objetivo seria a escolha de elites governantes. Em oposição a essas teorias ‘agregativas’ e ‘elitistas’, democracia deliberativa repousa na compreensão de que o processo democrático não pode se restringir à prerrogativa popular de eleger representantes. A experiência histórica demonstra que, assim concebida, pode ser amesquinhada e manipulada. A democracia deve envolver, além da escolha de representantes, também a possibilidade efetiva de se deliberar publicamente sobre as questões a serem decididas. A troca de argumentos e contra-argumentos racionaliza e legitima a gestão da res pública. Se determinada proposta política logra superar a crítica formulada pelos demais participantes da deliberação, pode ser considerada, pelo menos prima facie, legítima e racional” (SOUZA NETO citado por SARMENTO, 2009, p. 79).

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(2008, p. 348).

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FIDΣS responsabilidade compartilhada (pelos atores sociais e políticos) para o direcionamento dos rumos do Estado. Desse modo, pode-se dizer que: A teoria do discurso, que atribui ao processo democrático maiores conotações normativas do que o modelo liberal, as quais, no entanto, são mais fracas do que as do modelo republicano, assume elementos de ambas as partes, compodo-os de modo novo. Na linha do republicanismo, ela coloca no centro o processo político de formação da opinião e da vontade, sem porém entender a constituição do Estado como algo secundário; conforme foi mostrado, ela entende os princípios do Estado de direito como uma resposta coerente à pergunta acerca do modo de institucionalização das formas pretensiosas de comunicação de uma formação democrática da opinião e da vontade. Na teoria do discurso, o desabrochar da política deliberativa não depende de uma cidadania capaz de agir coletivamente e sim, da institucionalização dos correspondentes processos e pressupostos comunicacionais, como também do jogo entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas que se formaram de modo informal (BONAVIDES, 2008, p. 21).

Nesse compasso, a sociedade seria a primeira a perceber os problemas surgidos no seu cotidiano10 complexo e plural, ocasião em que passaria a identificá-los, debatê-los e tematizá-los nas inúmeras esferas públicas com o objetivo de encaminhá-los ao Poder Público. A decisão política seria pautada por uma racionalidade discursiva, pois, embora somente o sistema político possa “agir” e compor formalmente a decisão que obriga coletivamente, as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma rede ampla de sensores que captam os problemas da sociedade, produzindo uma opinião pública com poder

Não há dúvida de que a legitimação do poder pela representação eleitoral continua sendo de grande importância, mas passa a conviver e a exigir a complementação de novas formas de legitimação associadas ao paradigma da democracia deliberativa.

3 ESFERA PÚBLICA, SOCIEDADE CIVIL E ESTADO A construção da legitimação da democracia deliberativa passa pelo conceito de esfera

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Que Habermas chama de mundo da vida, justamente para diferenciar e não se deixar influenciar pelos subsistemas da política e da economia, cujos códigos comunicacionais atinem a poder e dinheiro, respectivamente.

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comunicacional com influência e forte direcionamento na tomada de decisão.

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FIDΣS pública, configurando-se como consequência direta da razão comunicativa, pressupondo que em sociedades complexas, como as pós-modernas, há a necessidade de se estabelecer um locus onde as discussões devam ser travadas livremente. A esfera pública seria o ponto de encontro entre a sociedade civil e o Poder Público, funcionando como um processo de articulação entre as duas pontas. É neste espaço que a sociedade delibera racionalmente sobre os mais diversos assuntos do seu cotidiano e de suas aspirações sociais, fazendo chegar o melhor argumento (na forma de opinião pública) às esferas de governo no processo de tomada de decisão. Na democracia deliberativa, portanto, os conceitos de esfera pública e sociedade civil são centrais, inserindo-se na cadeia do processo decisório do Estado. 3.1 Sociedade civil A sociedade civil é um setor relevante na construção da esfera pública democrática, na medida em que está ancorada no mundo da vida, apresentando maior proximidade com os problemas e demandas do cidadão comum. Não se confunde com o Estado ou com a economia, tampouco pode estar submetida às lógicas desses dois setores11. Diferencia-se dos partidos e outras instituições políticas, uma vez que não está organizada com vistas à conquista, exercício ou manutenção do poder, bem como dos agentes e instituições econômicas, já que não está diretamente associada à competição no mercado e à conquista do lucro. Os atores sociais, vivenciando os fatos, movimentam a sociedade civil, na medida em organizam e representam os interesses dos que são excluídos dos debates e deliberações políticas. Habermas (2003a, p. 99) conceitua que: A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensamnos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de 11

Habermas (2003a, p. 99) inicia o conceito de sociedade civil advertindo que o atual significado da expressão “sociedade civil” não coincide com o da “sociedade burguesa”, da tradição liberal, que se ancorava no sistema do trabalho, capital e economia de mercado. Atualmente, o núcleo da sociedade civil é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.

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que identificam e tematizam novas questões, problemas e aspirações sociais, bem como

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FIDΣS solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de esferas públicas.

Cohen e Arato (1992, p. 346) apresentam um catálogo com as seguintes características identificadoras da sociedade civil: Pluralismo: famílias, grupos informais e associações voluntárias, cuja pluralidade e autonomia permitem uma variedade de modos de vida; publicidade: instituições de cultura e comunicação; privacidade: um domínio de autodesenvolvimento individual e escolhas morais; e legalidade: estruturas de leis gerais e de direitos básicos necessários para demarcar a pluralidade, privacidade e publicidade, do Estado, pelo menos, e, tendencialmente, da economia. Juntas, essas estruturas asseguram a existência institucional de uma moderna e diferenciada sociedade civil”.12

Para que a sociedade civil cumpra efetivamente o seu papel, agindo de forma livre, imparcial e se fazendo ouvir e difundir nos outros setores do processo comunicativo e decisório, os direitos fundamentais (HABERMAS, 2003a, p. 101) desempenham a função primordial de garantir a liberdade de opinião e de reunião, o direito de fundar sociedades e associações, a liberdade de imprensa, rádio e televisão, bem como na linha de garantir a proteção da privacidade, na tutela dos direitos da personalidade, liberdades de crença e de consciência, sigilo da correspondência e do telefone, inviolabilidade da residência, proteção da família, caracterizam uma zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e da consciência autônoma.

circulação de ideias, a comunicação para a formação da vontade política racional fica inviabilizada ou, pelo menos, gravemente prejudicada, dificultando ou impossibilitando o exercício autêntico da soberania popular 13. Portanto, a ação comunicativa da sociedade civil ocorre com maior ênfase na esfera pública, a qual identifica os problemas ou os anseios da sociedade e os encaminha para as instâncias estatais de tomada de decisão. 12

Tradução livre de: “Plurality: families, informal groups, and voluntary associations whose plurality and autonomy allow for a variety of forms of life; publicity: institutions of culture and communication; privacy: a domain of individual self-development and moral choice; and legality: structures of general laws and basic rights needed to demarcate plurality, privacy and publicity from at least the state and, tendentially, the economy. Together these structures secure the institutional existence of a modern, differentiated civil society”. 13 MARMELSTEIN, George. “A praça é do povo? A liberdade de reunião e o direito de manifestação popular em espaços públicos na visão dos tribunais”. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/41288960/Direito-deReuniao>. Acesso em: 21 ago. 2011.

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Num ambiente em que não se garanta formação da autonomia da vontade e da livre

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FIDΣS 3.2 Esfera pública A esfera pública é um fenômeno social14 que, de um lado, capta os problemas e aspirações da sociedade surgidos no mundo da vida e, do outro, apresenta-se como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos e tomadas de posição, onde os fluxos comunicacionais são filtrados, tematizados e sintetizados, condensando-se em opiniões públicas que transmitem os problemas e as aspirações da sociedade civil aos centros decisórios da política. A esfera pública funciona, portanto, como uma caixa de ressonância onde as questões a serem elaboradas pelo sistema político ganham eco. A sua formação é espontânea. Nenhuma esfera pública pode ser produzida ao belprazer, pois surge a partir de si mesma e configura-se como uma estrutura autônoma. Diz Habermas (2003a, p. 97) que: “Para preencher sua função, que consiste em captar e tematizar os problemas da sociedade como um todo, a esfera pública política tem que se formar a partir dos contextos comunicacionais de pessoas virtualmente atingidas.” Nesse sentido, a esfera privada costuma ser o primeiro canal de comunicação para a formação da esfera pública 15, pois é a partir das redes de interação da família, do círculo de amigos, colegas de trabalho, contatos superficiais com vizinhos, etc., que os problemas do mundo da vida começam a ser percebidos e tematizados. Quando esses temas saem do circuito fechado e são ampliados e abstraídos, entram na prática cotidiana da “comunicação entre estranhos” (HABERMAS, 2003a, p. 98) e formam a esfera pública. A partir deste momento, as “condições de comunicação são modificadas” (HABERMAS, 2003a, p. 98) na canalização do fluxo de temas de uma esfera a outra. O espaço público pode ocorrer de forma presencial (reuniões, assembleias, cafés, congressos, universidades, igrejas) ou virtualmente, ligando um público leitor, ouvinte,

14

Sobre a natureza da esfera pública, diz Habermas (2003a, p. 92) que: “Esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar, do mesmo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis”. 15 Vide HABERMAS (2003b; 2003a); TAYLOR (2010). 16 Na sua acepção pura, a esfera pública é isenta de qualquer limitação quanto ao acesso, lugar e publicidade.

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perspectiva do acesso, espaço e publicidade, que passam a ser ilimitados16. Há, pois, a

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FIDΣS telespectador ou até internauta17. A depender do alcance do problema e da relevância do tema, multiplicam-se a formação de esferas públicas subculturais que se sobrepõem umas às outras, cujas fronteiras reais, sociais e temporais são fluidas. Considerando que na esfera pública os atores envolvidos não exercem poder político (no sentindo de tomada de decisões estatais), a sua grande força está no impacto de sua influência no direcionamento das decisões perante os poderes constituídos 18. Essa influência se apresenta na forma de opinião pública, que é o produto do consenso obtido na esfera pública a partir da extração do melhor argumento. Segundo Habermas (2003a, p. 93-94): [...] as estruturas comunicacionais da esfera pública aliviam o público da tarefa de tomar decisões; as decisões proteladas continuam reservadas a instituições que tomam resoluções. Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo com temas e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transformadas em opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de que 'gozam'. Uma opinião pública não é representativa no sentido estatístico. Ela não constitui um agregado de opiniões individuais pesquisadas uma a uma ou manifestadas privadamente; por isso, ela não pode ser confundida com resultados da pesquisa de opinião.

Charles Taylor, nessa perspectiva, informa que o governo está moralmente obrigado a ouvir a opinião pública e pautar a sua ação com base na mente comum da sociedade. Diz

A esfera pública é o lugar de uma discussão que potencialmente implica toda a gente (embora, no século XVIII, a exigência implicasse apenas a minoria educada ou “ilustrada”), em que a sociedade pode chegar a uma mente comum acerca de matérias importantes. Esta mente comum é uma visão reflexiva, emanando do debate crítico, e não apenas uma soma de algumas concepções presentes na população. Como consequência, tem um estatuto normativo: o governo deve ouvi-la. […] 17

Vide CARVALHO, Flávia Martins de. VIEIRA, José Ribas. “Internet ajuda na redefinição do espaço público”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-jun-25/agora-internet-ajuda-redefinicao-espacopublico. Acesso em: 20 ago. 2011. 18 Habermas (2003a) reconhece que “a influência pública só se transforma em poder político após passar através dos filtros dos procedimentos institucionalizados de formação de vontade e opinião democráticas, ser transformada em poder comunicativo e adentrar através dos debates parlamentares o processo legislativo legítimo”.

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que:

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FIDΣS A segunda razão desponta com a concepção de que o povo é soberano. O governo não é, então, apenas sábio em seguir a opinião; está também moralmente obrigado a fazê-lo. Os governos hão-de legislar e governar no meio de um público pensante. Ao tomar as suas decisões, o Parlamento ou a corte deve recolher e levar a cabo o que já emergiu do debate ilustrado entre as pessoas. Daqui procede o que Warner, seguindo Habermas, chama de 'princípio de supervisão', que insiste em que as actas dos corpos governantes sejam públicas, abertas ao escrutínio dos cidadãos dotados de discernimento. Tornando-se pública, a deliberação legislativa informa a opinião pública e permite-lhe ser sumamente racional, ao mesmo tempo que se expõe a si mesma à sua pressão e, deste modo, reconhece que a legislação deve, em última análise, sujeitar-se aos claros mandatos desta opinião. (TAYLOR, 2010, p. 9-10)

O processo de entendimento mútuo (consenso) depende do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo do discurso. Não pode ser imposto à outra parte e tampouco extorquido por meio de manipulações 19. A opinião pública assenta-se sempre em convicções comuns. A formação de convicções pode ser analisada segundo o modelo das tomadas de posição em face de uma oferta de ato de fala. O ato de fala de um só terá êxito se o outro aceitar a oferta nele contida, tomando posição afirmativamente, nem que seja de maneira implícita (HABERMAS, 1987, p. 165). Todo o processo de discussão e busca de consenso na esfera pública se dá pelo agir comunicativo dos diversos atores que nela participam tentando influir 20 o seu discurso na busca da convicção do auditório. A partir do momento em que o espaço público se estende para além do contexto das interações simples, “entra em cena uma diferenciação que distingue entre organizadores, oradores e ouvintes, entre arena e galeria, entre palco e espaço reservador que se apresentam na arena (trazem os argumentos e tentam convencer) e os espectadores que se encontram na galeria (auditório) que, ao concordarem com o melhor argumento (tomada de decisão), enfeixam a opinião pública. 19

É certo que a opinião pública pode ser manipulada pelos meios de comunicação de massa (infiltrada pela política e poder econômico), o que levou Habermas a apontar a decadência do modelo burguês de esfera pública, cuja despolitização e neutralidade serviu como método de legitimação do poder (In HABERMAS, 2003b). No entanto, Habermas reconhece que, embora a opinião pública possa ser manipulada, não pode ser comprada ou obtida à força, retomando o tema e propondo uma reformulações para livrar a esfera pública dessas armadilhas (Vide, v.g., HABERMAS, 1987; 2003a.). 20 Diz Habermas (2003a, p. 95-96) que: “Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa esfera. Nessa luta não se aplica somente a influência política já adquirida (de funcionários comprovados, de partidos estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais como Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o prestígio de grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de esferas públicas especiais (por exemplo, a autoridade de membros de igrejas, a notoriedade de literatos e artistas, a reputação de cientistas, o renome de astros do esporte, do showbusiness, etc.)”.

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ao público espectador” (HABERMAS, 2003a, p. 96). Assim, a esfera pública contém atores

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FIDΣS Para se alcançar um consenso racional (opinião pública), há de ser garantida as condições ideais de fala (CRUZ, 2008, p. 93), que pressupõe: a) igualdade de chance no emprego dos atos de fala comunicativos por todos os possíveis participantes do discurso, incluindo aqui o direito de proceder a interpretações, fazer asserções e pedir explicações de detalhamentos sobre a proposição, dissentir, bem como de empregar atos de fala regulativos; b) capacidade dos participantes de expressar ideias, intenções e intuições pessoais. Assim, deve ser garantido o acesso irrestrito e igualitário nas discussões travadas nestes espaços públicos. Todos têm direito de participar do processo discursivo (princípio da igualdade comunicativa). A esfera pública, num primeiro momento, seria um espaço irrestrito de comunicação e deliberação pública, cuja extensão e cujos limites internos e externos não podem ser

anteriormente estabelecidos,

limitados ou restringidos.

Isso ocorreria

principalmente nos processos informais de discussão nos espaços públicos, como uma passeata ou uma agregação espontânea de pessoas estimuladas por um ideal comum. Nessa perspectiva, a esfera pública seria sempre indeterminada quanto aos conteúdos da agenda política e aos indivíduos e grupos que nela podem figurar. É preciso reconhecer que, embora esse seja o modelo de esfera pública geral ou puro, nem sempre ele confere o resultado esperado no processo de influência dos poderes públicos, dado o seu caráter difuso e pouco organizado, podendo propiciar, inclusive, o aparecimento de barreiras que dificultam as condições ideais de fala 21. Diante disso, Habermas reconhece a existência de esferas públicas diferenciadas quanto ao grau e ao poder de discussão, organização e decisão. Ao lado da esfera pública geral, responsável pela tematização pública dos problemas e temas que afetam a sociedade, regulada. Sobre esse modelo autolimitado da esfera pública formal habermasiana, Jorge Adriano Lubenow (2007, p. 113-114) descreve que:

21

Diz Habermas (2003a, p. 32) que:“[...] E através das esferas públicas que se organizam no interior de associações movimentam-se os fluxos comunicacionais, em princípio ilimitados, formando os componentes informais da esfera pública geral. Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo 'selvagem' que não se deixa organizar completamente. Devido a sua estrutura anárquica, a esfera pública geral está muito mais exposta aos efeitos de repressão e de exclusão do poder social – distribuído desigualmente – da violência estrutural e da comunicação sistematicamente distorcida, do que as esferas públicas organizadas do complexo parlamentar, que são reguladas por processos. De outro lado, porém, ela tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento de limitações, no qual é possível captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de autoentendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidades. A formação democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se formam em estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder. De sua parte, a esfera pública precisa contar com uma base social na qual os direitos iguais dos cidadãos conseguiram eficácia social”.

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haveria o papel deliberativo do sistema político, enquanto esfera pública procedimentalmente

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FIDΣS [...] Habermas propõe a adoção da idéia procedimental de deliberação pública, pela qual os “contornos” da esfera pública se forjam durante os processos de identificação, filtragem e interpretação acerca de temas e contribuições que emergem das esferas públicas autônomas e são conduzidos para os foros formais e institucionalizados do sistema político e administrativo. É nesse caráter procedimental de justificação da legitimidade que se realiza a normatividade da esfera pública. É da inter-relação entre as esferas públicas informais e a esfera pública formal que deriva a expectativa normativa da esfera pública: de abrir os processos institucionalizados às instâncias informais de formação da opinião e da vontade política.

A acepção pura de esfera pública é de um espaço público fora do Estado, que produz solicitações em torno de problemas sociais e que discute e crítica decisões políticas. Sua formação seria informal, não institucional e espontânea. Esse é o modelo de esfera pública geral, pura ou subcultural. Nada obsta que o Estado também garanta um espaço público de deliberação, nos mesmos moldes da esfera pública, em que a sociedade civil debata junto com os agentes políticos os rumos da sociedade. Essa esfera pública formal só funciona legitimamente se forem mantidas as condições ideais de fala (ou seja, garantida a igualdade comunicativa e sem barreira de acesso aos diversos seguimentos interessados). 3.3 Esfera pública formal ou procedimentalmente regulada

razão de ser porque no mundo da vida o associativismo civil ou o quadro da organização da sociedade civil é complexo, plural e desigual. Compõe-se de um leque variado de interesses, estratégias, recursos que conformam um mosaico de diferentes cores e perspectivas. Mesmo em se tratando dos movimentos sociais que procuram melhorar as condições de vida, estudos indicam que os mesmos tendem a ser locais, corporativos e parciais (LUCHMANN, 2002, p. 16). O desnível educacional, organizacional, informacional ou financeiro tende a excluir certos seguimentos do debate público. Há um desequilíbrio entre, de um lado, associações fortes e corporações econômicas, formando grupos de pressão de grande influência, e do outro as minorias e excluídos sociais com pouca capacidade de articulação e convencimento. A esfera pública formal, portanto, deve garantir um espaço de interlocução pública

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A preocupação do Estado em garantir esse espaço público institucionalizado tem

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FIDΣS de caráter aberto, plural e inclusivo, na construção de um sistema democrático marcado pela aproximação entre instâncias formais do governo e espaços informais de discussão entre todos os seguimentos da sociedade civil. A questão da institucionalização da esfera pública também é objeto de análise e preocupação de James Bohman (2000, p. 49), para quem o: êxito de uma forma deliberativa de democracia depende da criação de condições sociais e de arranjos institucionais que propiciem o uso público da razão. A deliberação é pública na medida em que estes arranjos permitam o diálogo livre e aberto entre cidadãos capazes de formular juízos informados e racionais em torno às formas de resolver situações problemáticas.

Lígia Helena Hahn Luchmann (2002, p. 43) confirma a necessidade de se institucionalizar um espaço público adequado, assentando que: A democracia deliberativa constitui-se, portanto, como um processo de institucionalização de um conjunto de práticas e regras (formais e informais) que, pautadas no pluralismo, na igualdade política e na deliberação coletiva, sejam capazes de eliminar ou reduzir os obstáculos para a cooperação e o diálogo livre e igual, interferindo positivamente nas condições subjacentes de desigualdades sociais. É neste sentido que o princípio do pluralismo, em um modelo democráticodeliberativo, vai além do respeito à diversidade e ao conflito, na medida em que se assenta em um conjunto de regras inclusivas dos setores historicamente excluídos dos procedimentos deliberativos. Uma institucionalidade de gestão participativa de participação a diferentes atores sociais, como também, e fundamentalmente, potencializa a participação através de um conjunto de mecanismos - princípios e regras - institucionais.

Além da existência das diversas esferas públicas subculturais, cuja formação é espontânea, imprevisível e inevitável, o Estado deve institucionalizar o seu modelo para que se garanta: a) uma estabilidade e duração maior; b) inclusão; e c) condição ideal de fala. A questão do arranjo institucional assume um papel central na operacionalização dos princípios da democracia deliberativa, pois diz respeito ao conjunto de medidas (espaços de participação, atores participativos, normas, regimentos, critérios, etc.) que possibilitam a efetivação deste ideal democrático. Se o que se pretende é uma participação ativa, igual, qualificada, plural e inclusiva, há que se construir um conjunto de mecanismos organizativos

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caráter democrático seria então, aquela que não apenas oferece a oportunidade de

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FIDΣS para o alcance destes objetivos. Além disso, o formato institucional deve se preocupar tanto com a dimensão organizativa (regulando o melhor modelo de participação), quanto com a dimensão cultural, ou seja, criando estímulos na sociedade civil para participação e promovendo uma verdadeira cultura de comportamento político-social (LUCHMANN, 2002, p. 62), sendo certo que a “deliberação estimularia as pessoas não apenas a expressar suas opiniões políticas mas também a formar essas opiniões através do debate público” (VITULLO, 2000, p. 18).

4 CONCLUSÃO

Após o percurso descritivo de nossa análise, podemos delinear as seguintes conclusões. Embora seja assente na ciência política e na teoria do Estado no sentido de que fonte do poder estatal está no povo, persiste o debate em torno dos problemas da organização do poder político e da legitimidade desse poder nas sociedades políticas. O modelo de democracia representativa se encontra em generalizada crise e em alguns países em franco descrédito. Diante da inviabilidade prática de se retornar para uma democracia direta, o modelo mais aproximado dela é o da democracia participativa (também conhecida por deliberativa), onde traz novamente o cidadão para dentro do debate político nas diversas esferas públicas de participação, interlocução e decisão.

centrais, inserindo-se na cadeia do processo decisório do Estado. A esfera pública seria o ponto de encontro entre a sociedade civil e o Poder Público, funcionando como um processo de articulação entre as duas pontas. É neste espaço que a sociedade delibera racionalmente sobre os mais diversos assuntos do seu cotidiano e de suas aspirações sociais, fazendo chegar o melhor argumento (na forma de opinião pública) às esferas de governo no processo de tomada de decisão. A acepção pura de esfera pública é de um espaço público fora do Estado, que produz solicitações em torno de problemas sociais e que discute e crítica decisões políticas. Sua formação seria informal, não institucional e espontânea. Nada obsta que o Estado também garanta um espaço público de deliberação, nos mesmos moldes da esfera pública, em que a sociedade civil debata junto com os agentes

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Na democracia deliberativa os conceitos de esfera pública e sociedade civil são

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FIDΣS políticos os rumos da sociedade. Essa esfera pública formal só funciona legitimamente se forem mantidas as condições ideais de fala (ou seja, garantida a igualdade comunicativa e sem barreira de acesso aos diversos seguimentos interessados).

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FIDÎŁS THE PUBLIC SHPERE AS AN ESSENTIAL ELEMENT OF DELIBERATIVE DEMOCRACY ABSTRACT Faced with the impossibility of direct democracy and the crisis of representative democracy, this study aims to analyze the deliberative democracy as a new model of power justification and political decision-making, giving emphasis to the public sphere as the main channel of communication and coordination between civil society and government.

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Keywords: State. Deliberative democracy. Public sphere.

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FIDΣS Recebido 29 ago. 2011 Aceito 29 out. 2011

LIBERDADE E ESPAÇO PÚBLICO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH ARENDT Alfran Marcos Borges Marques RESUMO O presente artigo expõe os principais elementos reflexivos de Hannah Arendt concernente à relação entre liberdade e espaço público. Os impasses do mundo moderno levaram ao obscurecimento das noções políticas transmitidas pelos romanos e gregos. No lugar da construção do espaço público onde homens livres e iguais afirmam sua unicidade diante da pluralidade de agentes, a racionalidade técnico-científica elevou trabalho e fabricação ao patamar de atividades motrizes da vida societária. A solução arendtiana é repensar o Direito como instrumento de participação política horizontal em que o respeito à lei é fruto da consolidação do poder popular.

“Não creia que por amar a ação me foi preciso desaprender a pensar”. (Albert Camus)

1 INTRODUÇÃO

Determinar onde reside a liberdade sempre foi o grande problema filosófico e político diante do qual o debate em busca de respostas sólidas parece ter alcançado mais 

Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5518244886922141>.

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Palavras-chave: Liberdade. Espaço público. Hannah Arendt.

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FIDΣS indeterminações e menos entendimento. Apesar do intenso esforço acerca deste assunto, os fatos históricos e a crise do pensamento moderno levam a crer que algo no passado tomou um caminho errado e que a abordagem tradicionalmente tomada para interpretar a práxis gerou antinomias insolúveis. O mundo moderno, termo que define o ápice do desenvolvimento científico pautado no incremento das forças produtivas e no domínio absoluto do homem sobre a natureza, expõe uma interpretação da vita activa alicerçada na tradição metafísica ocidental. As verdades suprassensíveis defendidas desde o surgimento da filosofia dialética na antiguidade e a alienação das pessoas perante o mundo comum vivenciado nos dias de hoje são o primeiro e o último estágio do vigoroso esforço para subjugar a política em função de outras atividades ditas superiores: contemplação, fabricação, trabalho. O fim da tradição ocorre com o desafio aos valores e costumes que sustentaram as comunidades políticas por vários séculos até o aparecimento dos eventos que desafiaram as bases da convivência humana. Veio com o desmascaramento dos valores máximos da humanidade que se mostraram na era moderna parciais, ideológicos, representações disformes das relações sociais. A quebra da continuidade com a tradição universalista trouxe desconfiança em relação à capacidade do homem em decidir sobre assuntos comuns independente das regras valoradas na racionalização do Bem filosófico. Nesse contexto, o tema da liberdade também sofreu abalo significativo. A experiência totalitária almejou por meio do terror, medo e solidão, a dominação absoluta capaz de eliminar com eficiência máxima o relacionamento das pessoas na condição de seres aptos a interagir para construção do mundo compartilhado. Tal controle pretendia eliminar definitivamente a esfera pública ao exigir que todos se contentassem exclusivamente com a

para conferir legitimidade ao governo: a própria ideologia justificava todos os atos das instituições sem possibilidade de erros. Neste artigo são explorados os conceitos de liberdade e espaço público desenvolvidos por Hannah Arendt como esforço para compreensão da crise política e jurídica experimentada no mundo moderno. O primeiro passo para a elaboração do presente estudo é apontar a originalidade da organização institucional das civilizações clássicas. Em seguida, como as diferentes interpretações da filosofia política obscureceram as noções democráticas e republicanas. Na sequencia, exposição dos conceitos que permitiram a rebelião contra o modo de vida contemplativo. E por último, a contribuição arendtiana para a teoria jurídica.

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dimensão biológica das necessidades corporais. Diante disto, cidadãos não eram necessários

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FIDΣS 2 O NASCIMENTO DA POLÍTICA NA GRÉCIA DEMOCRÁTICA

Para os gregos antigos, os primeiros que atrelaram ação e discurso como finalidades em si mesmas da atividade política, o processo legislativo é concebido como instrumento, um “fazer” pré-político. Essas entidades legais possuem tangibilidade, mas não inspiram necessariamente a lealdade dos cidadãos, pois não é ainda o conteúdo efetivo da política, que só advém quando os homens são vistos e ouvidos pela plateia composta por seus semelhantes, e aparecem uns aos outros na teia intangível de relações humanas, instaurada e mantida pela ação e pelo discurso (ALVES NETO, 2009, p. 85). Contrariamente à república romana, que valorizava a fundação e a legislação da cidade como autênticos atos políticos, as leis não eram concebidas na pólis como resultado direto da ação, pois o fenômeno de agir e falar não pode resultar em um produto final sem destruir seu significado autêntico e extremamente frágil. Somente a fabricação pode ter como fim um resultado concreto. Por isso, o ato de legislar não torna o homem cidadão porque as normas prescrevem paradigmas de comportamento, consequentemente, limita o poder de decisão espontâneo dos indivíduos. Antes mesmo da iniciativa de agir e falar, logo numa dimensão pré-política, é necessário instaurar o espaço de aparecimento dos homens plurais (espaço público) e nele erguer a estrutura estável para as relações humanas (leis). Mas essa estrutura tangível que estabiliza as iniciativas de agir e falar não é um limite intransponível, pois não tem a capacidade de iniciar a ação ou inspirar o surgimento das relações humanas. A liberdade surge na pólis no momento em que cada homem, livre das privações que caracterizam a estrutura familiar, pode aparecer por meio da ação e do discurso, revelando um platônicos fundaram a vida política para “elevar a ação ao topo da hierarquia da vita activa e para que se visse no discurso o elemento fundamental de distinção entre a vida humana e a vida animal” (ARENDT, 2001, p. 217). A democracia grega faz da atividade política a mais grandiosa obra humana ou o mais elevado feito dos mortais no cosmo imortal. “A pólis era para os gregos, como a res publica era para os romanos, em primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade dos mortais” (ARENDT, 2001, p. 66). A pólis consolidou dois tipos de esferas da existência humana: a pública e a privada (ARENDT, 2001, p. 33). Os assuntos públicos são tratados pela reunião de cidadãos situados em círculo, a igual distância do centro, isto é, igualmente capazes de decidir os destinos da cidade. Portanto, ser livre significava libertar-se da privação presente na atividade laborativa e

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quem que compartilha a pluralidade de significados do mundo comum. Os gregos pré-

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FIDΣS estar entre iguais (isonomia), ao contrário da família que era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre é ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Não se trata de domínio, como também não invoca submissão. A isonomia não gera obediência a nenhum senhor despótico, mas ao conjunto de acordos, constituindo a lei (nomos) que eles mesmos escolheram e estabeleceram por meio da capacidade de discorrerem uns com os outros e agirem na realização de laços comuns. Assim, a vida política procura revelar que os homens não vivem nem morrem como animais, ou seja, submetidos ao gigantesco círculo da natureza, onde não existe começo nem fim e onde todas as coisas giram em imutável repetição. Na pólis, os homens se põem em luta, através de feitos e palavras, por algo que confira para a sua existência singular e para o mundo humano algum vestígio de imortalidade. A vida genuinamente política só existe quando os homens vivem tão continuamente próximos uns dos outros que as potencialidades da ação e do discurso estão sempre presentes. A fragilidade da ação se distingue da mera força porque esta última pode ser propriedade de um homem isolado, e aquela sempre depende que os homens estejam juntos para a permanência dos laços originados pelo discurso. Sem a pólis os homens não são capazes de lembrar-se do que foi grande, belo e, sobretudo, humano. Sem ela a novidade não resplandeceria no mundo, nada aconteceria entre eles de heroico, nenhuma significação duradoura haveria para inspirar a recordação de grandes feitos, palavras e obras que devem a sua existência exclusivamente ao artifício humano. Nas palavras de Arendt (2001, p. 195): “sem um âmbito público politicamente organizado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer”.

cultura grega. A maior grandeza humana residiria na mais fugaz atividade que os homens podem desempenhar: a ação e a fala. Ironicamente, os homens ingressam na extrema fragilidade e vulnerabilidade da esfera pública por desejarem a grandeza dos seus feitos e palavras ou o registro daquilo que têm em comum com os outros fossem mais permanentes que suas vidas (ARENDT, 2000, p. 75).

3 OBSCURECIMENTO DA POLÍTICA PELA TRADIÇÃO METAFÍSICA

Em contraposição aos preceitos da pólis democrática, defendidos pela escola sofista, o surgimento do pensamento filosófico grego representa a primeira tentativa de subjugar a

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A pólis é o grande e doloroso paradoxo que expõem a autêntica dimensão trágica da

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FIDΣS esfera política aos ditames da razão contemplativa. Não obstante a originalidade da organização da cidade-estado, que surpreende pela extrema importância da atividade pública, o filósofo deseja habitar em outro mundo guiado pelas ideias perfeitas e longe da confusão dos negócios da cidade. O referencial para esta atitude de negação da experiência compartilhada encontra-se na aceitação do mundo das ideias como portador dos elementos ordenadores da realidade. De fato, a partida para a contemplação é uma ida com passagem de volta, pois o filósofo tem a obrigação messiânica de retornar para a escuridão trazendo a luz unificadora da razão, capaz de silenciar o barulho caótico dos negócios humanos. O filósofo opta por outro modo de vida diferente do experimentado na pólis, escolhe opor-se radicalmente à política e a todo diálogo baseado na persuasão. O meio para alcançar este objetivo seria acabar com todas as instituições públicas que representam, em virtude da própria natureza contingencial, perigo ao modo de vida puramente contemplativo. Nesse contexto, a política é apenas meio para alcançar fins mais elevados, não fim em si mesmo, concepção que percorreria toda a história ocidental, apesar da ideia do rei filósofo nunca ter sido reproduzida na prática ou defendida por outros pensadores e movimento políticos (ARENDT, 2002, p. 169). A tradicional aversão à democracia, que será a pedra fundamental do pensamento político ocidental, tem início com o julgamento, condenação e morte de Sócrates e o consequente desencantamento de Platão com a vida na pólis. Na avaliação equivocada do auto de acusação, Sócrates estaria afastando os cidadãos da vida política, “tornando-os desajustados, ou seja, tão vinculados à preocupação com a verdade filosófica independente dos assuntos humanos que se tornavam alheios à ocupação para com o instável e

filosófica parece não estar fazendo absolutamente nada no mundo enquanto abrigo e assunto de homens plurais. No entanto, a preocupação de Sócrates era com a relevância da atividade do pensamento para o cuidado com esse mundo instaurado pela pólis, cada vez mais ameaçado pelo profundo acirramento da vida egoística que tornava a política competição dogmática de todos contra todos (ARENDT, 2002, p. 99). Pelo diálogo do pensamento, Sócrates não pretendia que os homens falassem definitivamente a verdade, mas chegassem a falar de verdade, revelar a doxa em sua verdade própria. Assim, o propósito socrático é aprimorar o cidadão para a vida na pólis, ou seja, torná-lo verdadeiro ao expor sua opinião. A discussão pode aprimorar os valores e os princípios pelos quais os cidadãos agem, julgam e se conduzem na vida política. “Sócrates parece ter acreditado que a função política do filósofo

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contingencial ‘bem humano’” (ARENDT, 2002, p. 95). Do ponto de vista político a atividade

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FIDΣS era a de ajudar a estabelecer esse tipo de mundo comum, constituído sobre a compreensão da amizade, em que nenhum governo é necessário” (ARENDT, 2002, p. 100). Fazendo da filosofia o exame incessante de si próprio e dos outros, Sócrates entrou em conflito com os mestres da retórica que dominavam a democracia ateniense. Esse conflito nos dá o testemunho decisivo sobre a periculosidade do ensinamento socrático para os que escondiam suas intenções através do discurso, tendo em vista que a maiêutica revela a precariedade dos argumentos vencedores assim como aponta para a infinitude do conhecimento. O embate entre política e filosofia, iniciado com a rápida decadência das virtudes democráticas na pólis e intensificado com o julgamento de Sócrates, terminou com a derrota da filosofia no tribunal ateniense e as conclusões de Platão a respeito da esfera dos “pequenos assuntos humanos” (ALVES NETO, 2009, p. 111). A reação platônica teve como impulso o profundo desprezo e radical indiferença com relação aos assuntos públicos. Considerou que todos que vivem para a filosofia deveriam nutrir a apolitia que os conduziria a proteger-se das suspeitas e hostilidades provenientes do lado público do mundo. Desde então, a única aspiração filosófica em relação aos negócios públicos era a de que a pólis deixasse os filósofos em paz, e a política fosse organizada de tal modo que encontrasse um princípio substituto para a ação e para a persuasão. Tal princípio não poderia ser assegurado senão pela autoridade coercitiva da verdade e pelo modo de vida daqueles que contemplam. Recusando radicalmente a doxa e propondo a episteme filosófica, Platão procura uma forma para o pensamento que seja o juiz de todos os discursos, pois nos faz calar toda paixão (ARENDT, 2000, p. 149). O discurso que cada pessoa poderia receber como universal e tomar por critério da sua argumentação e, portanto, da sua conduta na pólis. Por meio da

persuasiva. Esse juiz justifica, legitima, fundamenta o que somos e o que dizemos, enfim, nos dá razão, pois diz o que é tal como é (ARENDT, 2001, p. 233). Uma vez criado o abismo entre pensar e agir, o primeiro foi transformado naquele que, contemplando as ideias, sabe o que deve ser feito e, assim, dá ordens, enquanto o segundo se tornou aquele que executa e obedece ao que lhe foi ordenado. “Platão foi o primeiro a introduzir, em lugar do antigo desdobramento da ação em começo e realização, a divisão entre os que sabem e não agem e os que agem e não sabem, de sorte que saber o que fazer e fazê-lo tornam-se dois desempenhos totalmente diferentes” (ARENDT, 2001, p. 235). Os que pensam ou contemplam as ideias estão dispensados da ação, e os que agem estão desvinculados do pensamento, como os escravos executam as ordens do senhor sem precisar saber as razões, visto que o senhor que precise argumentar com seu escravo adentra o domínio

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dialética, os cidadãos possuem dentro de si o juiz que os liberta das paixões e de toda adesão

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FIDΣS igualitário da persuasão. Esse vínculo do saber com o governo, a confusão entre ação obediência e execução de ordens prevaleceu desde então sobre a tradição do pensamento político ocidental. Segundo Hannah Arendt (2000, p. 192), a posterior supremacia da preocupação contemplativa sobre a vida ativa ou sobre a esfera dos afazeres humanos se deu, em parte, através da queda do Império Romano (revelando que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal) e, de outra parte, da promoção do evangelho cristão (pregando a vida individual eterna) à posição de religião exclusiva da humanidade ocidental. Esses eventos tornaram desnecessária qualquer busca de imortalidade neste mundo. Assim, a glória através de grandes feitos, outrora fonte e centro da vita activa, foi rebaixada definitivamente como serva da vida contemplativa, ou seja, secundária e subalterna com relação ao repouso dos afazeres humanos. A partir do desencantamento platônico com o lado público do mundo, a esfera dos assuntos humanos será compreendida, quer como a dominação do homem pelo homem expressa na relação mando e obediência, quer como fardo ou mal necessário. A filosofia política se definirá como a busca de proteção contra as “calamidades da ação”, através da emancipação de alguma atividade supostamente mais elevada em relação à política, o que acaba degradando a dignidade própria da ação ou transformando-a em meio para outros fins: na antiguidade, a segurança do modo contemplativo; na era medieval, a salvação da alma; na modernidade, o progresso das forças produtivas da sociedade (ALVES NETO, 2009, p. 128). Em sequência, Epiteto herda e radicaliza mais ainda o repúdio a realidade mundana, divorciando definitivamente a política da noção de liberdade (ARENDT, 2000, p. 193). No seu entendimento, o homem pode ser escravo do mundo e ainda livre na confortável quietude

autorizado pelo próprio eu. Saber viver seria erguer uma fortaleza que protegesse o eu do mundo, porque fora da interioridade o homem é sempre vítima de coerção que limita o que ele quer. Esse pensamento é claramente antagônico com as noções romanas de liberdade que pregava a necessidade de dominar outros povos e ter lugar no mundo por meio da propriedade e do poder. A morada erguida por Epiteto nada mais é que resposta ao esfacelamento dos ideais romanos de glória e cidadania logo após a derrota das virtudes republicanas. A filosofia cristã incorporou definitivamente a liberdade como problema filosófico a ser debatido pelo diálogo silencioso do eu consigo mesmo. Livre-arbítrio e liberdade tornamse mesma coisa, ocorrendo exclusivamente fora do relacionamento com outros homens, vivenciada no absoluto isolamento. No embate interno travado em cada espírito, a liberdade só se consuma quando querer e poder coincidem. Esse diálogo silencioso foi primeiro descrito

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da liberdade interna, da qual dispomos como queremos e ninguém pode interferir senão

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FIDΣS por Sócrates, definido como o estar só, caracterizado pelo pensamento totalmente reflexivo e introspectivo. Contudo, na doutrina cristã, a questão da vontade será a preocupação central dos homens de deus, e para chegar à revelação divina a política tem como único papel manter as instituições religiosas. Nos ensinamento de Jesus Cristo, a bondade nunca deve ser revelada, tornando desnecessário o uso da palavra e a revelação de um quem. Ser visto ou ouvido gera o brilho exterior próprio da ação política que transforma a santidade em hipocrisia. O recolhimento era o objetivo das instituições religiosas na Idade Média, daí os assuntos comuns estarem subordinados inteiramente ao modo de vida contemplativo. Desta maneira, a política cristã se defrontou com duas tarefas: assegurar que o espaço não político onde se reúnem os fiéis esteja a salvo da influência externa; impedir que o local de reunião se convertesse em lugar de exibição e acabasse transformando a Igreja em mais outro poder secular. O catolicismo precisava da política para manter-se na terra e afirmar-se no mundo, isto é, como Igreja visível, em contraste com a Igreja invisível cuja existência, sendo somente uma questão de fé, era inteiramente intocada pela política (ARENDT, 2002, p. 199). Com essa crença no além, cujas alegrias se anunciam nos deleites da contemplação, o cristianismo manteve a antiga hierarquia fundada por Platão que submetia a vita activa ao império de leis naturais extramundanas. Já na teoria liberal moderna, liberdade é estar livre da política, dispensando o homem da participação na administração pública para cuidar de seus assuntos particulares (ARENDT, 2002, p. 141). O governo deve garantir o máximo de segurança para que os seus cidadãos preocupem-se exclusivamente com a esfera privada, deixando todas as decisões politicamente

desenvolvimento do processo vital para toda a sociedade. De acordo com o liberalismo, liberdade é desocupar ao máximo o espaço político para os indivíduos dedicarem-se a outras atividades aparentemente não políticas, desta forma, conquistar uma possível liberdade da política, em outras palavras, “quanto menos política mais liberdade” (ARENDT, 2000, p. 196). Essa concepção é oriunda dos séculos XVII e XVIII que identificaram a liberdade política com segurança, como mecanismo para a garantia do processo vital, dos interesses da sociedade e dos indivíduos. Qualquer que seja a relação entre cidadão e estado, os direitos civis devem assegurar a manutenção da vida e da propriedade, não possuindo o poder público outra finalidade. O objetivo do liberalismo, através do sistema constitucional, é limitar ao máximo a atuação do governo para que a liberdade seja alcançada exclusivamente na esfera privada.

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relevantes nas mãos do Estado mantenedor da segurança dos direitos civis e do

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FIDΣS Apesar de reconhecerem o caráter artificioso da política, criado por homens com a finalidade de instaurar o mundo capaz de preservar seus feitos e palavras, os contratualistas modernos perguntaram-se para que servia a política e colocaram os assuntos humanos novamente a serviço de algum princípio extra político, por exemplo, para Hobbes (2003, p. 188) a política deve ser instituída para assegurar a existência pacífica e prevenir a morte violenta. Concebe autonomia do político, porém, a ordem social deve ser o produto da decisão coletiva em nome de algo mais elevado que ela mesma. Por outro lado, Montesquieu questiona o conceito de liberdade dos cristãos e dos filósofos ao desvencilhar a liberdade política da liberdade filosófica. A primeira consiste em poder fazer o que se deve querer porque o agente não é chamado de livre quando lhe falta a capacidade para fazer, pouco importando se o constrangimento é provocado por circunstâncias exteriores ou interiores (ARENDT, 2000, p. 209).

4 REBELIÃO CONTRA A TRADIÇÃO DA FILOSOFIA POLÍTICA

Somente com as mudanças econômicas, políticas e científicas ocorridas na civilização ocidental no século XIX, a partir mais especificamente da Revolução Industrial, a humanidade começa a questionar os referenciais tradicionais diante da crescente importância da ciência ativa sobre a razão contemplativa. A realidade começa a ser moldada pelas mutáveis necessidades do homem moderno e do crescimento da importância das relações humanas na sociedade.

metafísicos que esvaziaram o significado de seus próprios conceitos. Para esta queda colaboraram a exaltação feita por Marx (ARENDT, 2000, p. 50) da ação em substituição a contemplação e o surgimento do niilismo através do esgotamento da dicotomia entre o mundo sensível e o suprassensível percebida por Nietzsche (ARENDT, 2000, p. 54). Tais opiniões têm a força de revolta contra a fuga dos assuntos humanos cotidianos presente na história da filosofia desde “A República” de Platão, passando pelo cristianismo e chegando às teorias políticas modernas. Essas rebeliões buscaram minar a dicotomia pensamento-experiência perguntando qual aptidão é naturalmente humana, no entanto, sem erigir novos sistemas filosóficos que aprisionassem o significado do mundo. Apesar do abalo feito por Marx e Nietzsche, eles não conseguiram estabelecer novas noções que viessem romper definitivamente com os referencias da tradição. Marx não faz

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O despertar da ilusão acontece quando se percebe a ineficácia dos modelos

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FIDΣS diferença entre as atividades da vita activa, a saber, o labor, o trabalho e a ação, o que para Arendt (2001, p. 98) é um absurdo, pois a produção para a manutenção da espécie é somente o próprio labor, ao contrário da ação que consiste na condição de pluralidade dos seres humanos. Marx acaba submetendo a ação aos mandamentos da necessidade porque na sociedade projetada por ele o espaço público tem fim com a abolição do trabalho e as pessoas passam a cuidar somente de suas vidas privadas, deixando de agir e falar (ARENDT, 2001, p. 100). Como é fácil observar, Marx continua com a visão do capitalismo em valorizar o trabalho como meio de realização da humanidade. Outra afirmação muito controversa de Marx é identificar a violência como sendo a parteira da história, negando a liberdade política ao considerar os homens incapazes de serem persuadidos pela palavra (ARENDT, 2000, p. 50). Já o erro de Nietzsche consiste em achar que a simples inversão do idealismo pudesse levar ao retorno das formas pré-platônicas de pensamento, o que resgataria o espírito da Grécia Arcaica. Após o desafio feito à tradição, depois de vários séculos de isolamento, finalmente a preocupação da teoria política pôde retornar por inteiro a sua finalidade original: garantir a plena liberdade dentro do mundo político. E essa liberdade aparece somente quando a ação é livre da direção do intelecto e dos ditames da vontade. Em outras palavras, isso quer dizer que a ação tem a capacidade de transcender os limites impostos pela razão ordenadora, porque liberdade é justamente negá-los. O diálogo consigo mesmo não revela a liberdade, apenas pode fazê-lo a experiência humana, que em nenhuma hipótese deve estar inteiramente submetida ao diálogo silencioso que reside no pensamento. Somente existe o mundo dos homens quando a verdade é fruto do compartilhamento de opiniões de todos os pontos de ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação” (ARENDT, 2000, p. 41). Em toda a história do pensamento ocidental a liberdade interior, esse espaço íntimo no qual os homens podem fugir da coerção externa, antagonizou com a liberdade política, que é experimentada em todo o seu vigor no mundo dos fenômenos e das coisas humanas. A fuga do mundo é o evento que na história esteve sempre presente quando a liberdade é repentinamente subtraída, provocando uma sensação de afastamento do mundo. Como consequência, a vida ativa, vivenciada entre os homens, é logo substituída pela vida contemplativa, onde a solidão é o único caminho para escapar da ausência de significado da vivência fenomênica. Para que a atividade política seja uma experiência plena de liberdade é preciso estabelecer claramente as condições para que exista o espaço de convivência entre os iguais e

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vista. “O pensamento emerge dos incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer

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FIDΣS para que os mesmos possam ser ouvidos por todos. Afirmar a pluralidade é a chave para que o mundo não caia novamente nas trevas de representações sistemáticas provenientes da razão. Apesar de todas as tentativas em atribuir ao pensamento o local de origem da liberdade, na antiguidade greco-romana era entendida como o estado do homem livre que o capacitava mover-se, a afastar-se de casa, sair para o mundo e encontrar-se com outras pessoas em palavras e ações. Antes, era preciso liberar-se das necessidades da vida, o que não implica necessariamente na conquista da liberdade. A liberdade exige a companhia de outros homens iguais e de um local para ao aparecimento do ato e do discurso, que na antiguidade grega era chamado pólis e em Roma presenciado pelas assembleias. Nestas organizações eminentemente políticas, as palavras revelavam pessoas, feitos grandiosos eram vistos e enaltecidos, eventos relembrados e transformados em histórias. Tudo dentro deste espaço era político, mesmo quando não era produto direto da ação. Esse local possuía a aura que transforma o poder, constituído pela união de homens diferentes, porém iguais, em surgimento e permanência da novidade. A pólis era a construção edificada tanto nos sentimentos dos homens como espacialmente. Deixá-la significava não só perder os laços com a terra natal e suas representações culturais, mas, sobretudo, o espaço concreto para o exercício da liberdade entre homens iguais e libertos do fardo da necessidade. Em oposição à esfera privada, marcada pela coação do processo vital, onde tudo estava organizado para manter o homem seguro, o espaço público era o local no qual quem adentrasse estava disposto a arriscar sua vida para fazer surgir o novo. A liberdade precisa do âmbito público politicamente assegurado para que ela possa aparecer, necessita do espaço concreto onde possa surgir. Deste modo, nem

organização societária sem qualquer preocupação em fundar instituições duradouras que garantam a estabilidade do mundo e a presença constante da novidade. Para ilustrar a identidade entre liberdade e espaço público, Arendt (2000, p. 200) utiliza uma analogia com as artes de realização – dançarinos, atores, músicos. Para a arte e a política, é necessário o aparecimento dos atores diante dos outros, requerendo uma dimensão pública para executar a obra. Essa dimensão estava presente nas sociedades grega e romana constituindo a própria essência da vida pública. Não é de se esperar que a política produza qualquer resultado tangível, ela não reifica o pensamento humano e não possui existência própria. As instituições políticas precisam de homens em constante compartilhamento e sua manutenção é mantida pela própria ação, sem

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sempre onde os homens convivem há um organismo político. Existem muitas formas de

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FIDΣS recorrer a objetivos fora do ato de agir e falar. A total dependência de atos posteriores para manter os negócios humanos caracteriza a identidade entre corpo político e ação. Porém, a experiência recente ainda não conhece a função original da política e tampouco como criar o espaço público pautado na pluralidade. Com o acontecimento mais exemplar da história do século XX ainda ecoando em nossas mentes, a ascensão do totalitarismo negou o respeito aos direitos básicos da dignidade dos homens com a ousada finalidade de dominar todas as esferas da existência humana. Em nossa época, o perigo dos preconceitos relacionados à política, tanto os originados da filosofia quanto os produzidos pela vivência, é de acabar definitivamente com qualquer debate sobre o significado da liberdade. A força com que os preconceitos produzem efeitos devastadores nos leva a desejar o total desaparecimento do mundo político para assim ingressarmos na paz perpétua do trabalho e consumo.

5 O DIREITO COMO INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO

O debate empreendido por Hannah Arendt sobre o significado da política tem claras consequências jurídicas, apontadas por Celso Lafer (1991, p. 223) como outra forma de enxergar o direito que priorize o respeito à participação ativa do cidadão na estrutura política. Os regimes totalitários revelaram as fragilidades e os paradoxos decorrentes do modo como os direitos humanos foram formulados em seu momento originário, a saber, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Este documento surge da crença de que o homem

conjunto. Para Agamben (2002, p. 14), a naturalização dos direitos políticos representa a moderna indeterminação biopolítica entre as figuras do homem natural e do cidadão, confusão que resulta, no mundo moderno, no predomínio da ideia de que ser ativo politicamente é ter garantida a mera existência biológica por meio dos direitos civis. A reflexão arendtiana desafia o entendimento por muitos séculos difundido de que a existência de leis e sistemas jurídicos garante per si o aparecimento da atividade política. Este modo de encarar a norma jurídica persiste até nosso tempo através de autores como Jürgen Habermas e John Rawls, os principais representantes do pensamento despolitizado que tenta subsumir o político ao aparelho jurídico (ALVES NETO, 2009, p. 187). No entanto, Hannah Arendt não é uma crítica intransigente do direito nem o considera mera instância formal do encobrimento e legitimação das desigualdades sociais, tampouco reduz à expressão de

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é um ser naturalmente extraordinário e realiza sua potencialidade através da ação em

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FIDΣS violência instauradora do poder soberano. Também não acredita no parâmetro liberal de decisão judicial que visa domesticar e normatizar a vida política através do uso de categorias jurídicas. Pelo posicionamento democrático radical arendtiano (LAFER, 1991, p. 217), a política é autônoma em relação ao direito. Na verdade, são duas atividades completamente diferentes sendo que o procedimento de uma não é aplicável na outra. Embora distintas, o ordenamento jurídico é um importante fator de estabilização e criação de instituições auxiliares da atividade política, sendo o registro dos acordos e decisões da comunidade. Todavia, os atos e palavras excedem os limites impostos pelo ordenamento jurídico, pois o objetivo da ação é criar a novidade que sempre é imprevisível desde sua origem. Ao defender a posição democrática radical, Arendt pretende rechaçar a ambição positivista de regrar e codificar a criatividade das interações humanas através do engessamento e esgotamento da atividade política no mundo moderno (LAFER, 1991, p. 226). É necessário compreender que Arendt repudia a democracia representativa, onde impera o encobrimento das intenções com a palavra, a administração do processo vital das massas e o perigo, cada vez mais presente, do governo altamente burocratizado, facilitado principalmente pelo direito positivista (AGUIAR, 2009, p. 93). Em contraposição a este modelo de organização administrativa utilitária, as revoluções e as resistências demonstraram a incrível força da ação livre e espontânea após a queda de instituições pautadas no controle autoritário do povo. Nos meados do século XX, a socialdemocracia aproveita o medo e a desconfiança crescente das massas com relação à política, decorrentes das grandes guerras mundiais e da

máquina administrativa capaz de resolver burocraticamente os conflitos políticos e conferir estabilidade máxima às relações humanas através do sistema jurídico, cuja finalidade é garantir eficiência e segurança contra a instabilidade do debate na esfera pública. É a tentativa de superar a frustração resultante da corrupção cada vez maior da democracia representativa apelando somente para o aspecto técnico do sistema legal. Porém, a tensão entre direito e política nunca poderá ser solucionada porque tem sede na oposição clássica entre poder constituído e poder constituinte. Trata-se de reconhecer que o princípio da estabilidade jurídica e o princípio da inovação da atividade política sempre serão forças opostas onde quer que exista liberdade. O poder constituído, por mais que seu sentido original seja regrar e delimitar o campo de inovação, jamais deterá o espaço da ação de maneira definitiva.

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ameaça da destruição global pelo uso de armas atômicas, para transformar o Estado numa

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FIDΣS Nenhuma civilização seria possível sem a força estabilizadora do direito. Nada de extraordinário surgiria no mundo sem a energia renovadora da ação política. Entre os fatores estabilizantes da sociedade (cultura, artes, monumentos), são principalmente as leis que perpetuam nossa vida no mundo e o modo como nos relacionamos com os outros através de costumes herdados dos antepassados. As regras de civilidade, indispensáveis na esfera pública, são substanciadas no sistema jurídico, regulando o modo de interação da pluralidade, além de garantir a permanência dos acordos dos homens através do tempo. Do mesmo modo que os gregos e os romanos antigos, Arendt (LAFER, 1991, p. 213) pensa o ordenamento legal da comunidade política como o fator estabilizador da fragilidade dos acordos e promessas humanas e da própria imprevisibilidade que caracteriza o âmbito das relações políticas tecidas pela pluralidade de agentes. As leis devem garantir o mínimo de estabilidade e canais de comunicação que permitam o surgimento da novidade no mundo. Apesar das instituições jurídicas constituírem fronteiras para a ação política, sua finalidade não é conter a potencialidade humana, mas criar o cenário onde os homens e mulheres livres possam brilhar na presença uns dos outros. As leis e o direito devem circunscrever cada novo começo trazido ao mundo, assegurando o espaço de liberdade ao mesmo tempo em que impõem limites à criatividade humana para amoldá-la à continuidade temporal que une as promessas do passado e a permanência da entidade política no futuro. Desta forma, os limites da norma garantem um mundo capaz de durar para além da fugaz duração da presente geração, impulsionando ao mesmo tempo a possibilidade da novidade. Tornando-se herdeira da linhagem republicana que nasce com os romanos, passa por Maquiavel e tem como grande defensor na era moderna Montesquieu, Arendt (2000, p. 199)

Portanto, as leis não são eternas e absolutas como os mandamentos divinos, nem possuem fundamentos transcendentais, mas constituem relações criadas por homens mortais para o trato de assuntos contingentes. Diferentes da tradição judaico-cristã, gregos e romanos antigos não buscaram uma fonte de autoridade que estivesse situada além dos negócios humanos. A nomos grega e a lex romana não derivam sua legitimidade de qualquer poder extraterreno, pois foram concebidas como sendo o resultado da artificialidade convencional das instituições políticas criadas pelo homem. A legitimidade do poder efetivado em atos e palavras não violentos é o meio pelo qual às leis e as instituições políticas do país consolidam o poder que reside da igualdade e liberdade. Daí surge a diferença entre violência e poder trazida, principalmente, da vivência republicana da antiga Roma. Enquanto que a violência sempre é questionável, a obediência

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pensa o pacto fundador da sociedade como princípio de inspiração para a ação humana.

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FIDΣS política é medida pelo reconhecimento das determinações legais e pelo consentimento popular que lhes confere legitimidade. Portanto, diante da autoridade, existe a possibilidade de aceitação ou desobediência pautada na livre convicção dos integrantes da comunidade política. Se o dissenso não existe, deixa de haver a criação da novidade por meio da interrupção de processos já iniciados. Uma vez que o pacto fundante da comunidade, em outras palavras a constituição, guarda o princípio de ação que congrega a todos na complexa teia de relações políticas e sociais, a sanção ao crime não constitui o núcleo do direito na democracia radical. O ordenamento jurídico consegue manter-se pela faculdade de prometer, tal como parte de uma negociação. Arendt (2004, p. 79) interessou-se, dentro do movimento contratualista europeu, pelo que ela chamou de versão horizontal do contrato no qual o vínculo de cada um dos contraentes se manifesta mediante a igualdade artificiosa do acordo, primeira cláusula do contrato social. Do lado oposto está o contrato de associação vertical, onde existe desde o início a divisão entre governantes e governados que limitam o poder dos superiores para garantir somente a inviolabilidade dos direitos civis, sem pretender nenhuma participação efetiva na esfera política. Essa forma de contrato tem sobrevivido através da instância de legitimação externa aos homens do qual se constituiria consensos capazes de dar legitimidade ao governo de uns sobre os outros e, ao mesmo tempo, de inviabilizar as associações, reuniões, assembleias dos cidadãos, etc. Essas verdadeiras fontes do poder efetivamente político. O consentimento geral aceito por cada pessoa ao vir ao mundo político através do reconhecimento tácito da autoridade das instituições vigentes é completamente diferente do

coloca lado a lado o respeito ao pacto fundante do organismo político e a produção legislativa derivada. Para Montesquieu isso não faz sentido porque a constituição trata dos princípios de valor que orientam determinado corpo político, enquanto que as leis derivadas são adequações desse espírito, mas às vezes pode destoar, no caso concreto, do princípio de ação fundamental e nesse caso precisa ser reformado o ato legislativo (ARENDT, 2000, p. 196). É perceptível a ligação íntima entre a postura moral reflexiva e a obediência dos cidadãos às leis. A crise da tradição filosófica e jurídica impôs a criação de uma terceira via para pensar a ética. A primeira, situada na tradição onto-teleológica, na qual o cerne diz respeito ao mundo das normas estáveis, absolutas e eternas, a partir das quais a vida e os valores são hierarquizados. A segunda, no contexto de uma ética provisória, cujo maior representante foi Descartes, recusando-se pensar a ética em situação de crise e ainda persegue

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consentimento dado às leis e políticas públicas específicas. A tradição constitucional moderna

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FIDΣS a norma estável, universal e absoluta (AGUIAR, 2009, p. 102) Nesse caso, a crise é encarada como passageira e está relacionada ao momento de mudança de paradigma dos valores, mas ainda busca a fundação do pensamento ético a partir de fundamentos inquestionáveis. A terceira e última perspectiva tem como pano de fundo a crise profunda da tradição racionalista ocidental e põe por terra a crença de que a convivência é unificada por princípios absolutos, objetivos e eternos. Nesse âmbito, é possível pensar a ética na perspectiva das pessoas e não da norma extramundana. Esta ética da autonomia pode ser a solução para os impasses vividos pela crise da autoridade e legitimidade das democracias vigentes. A possibilidade e a necessidade do pensamento ético pautado na liberdade vivenciada concretamente resgata o homem como sujeito capaz de falar e agir autonomamente. Somente repensando a ideia do sujeito sem os termos da transcendência metafísica ou teórica pode a humanidade vencer as tendências totalitárias através da superação da ideia de Bem oriunda do pensamento abstrato. Pensar positivamente a singularização presente na ética imersa na pluralidade de seres únicos que dividem o mundo multifacetado pelos olhos de vários espectadores e atores requer distanciamento da tradição, refutação da visão que reduz o particular ao mal, ao egoísmo e à imperfeição. O resgate do sentido político da ética exige a superação da ideia de razão conceitual, objetiva, como também, abolição da perspectiva hermenêutica que interpreta a reflexão moral como revelação de verdades eternas, universais e boas em si mesmas. O Bem sempre foi entendido nas éticas ocidentais (AGUIAR, 2009, p. 100) como significado objetivo e absoluto, independente das subjetividades. Assim, as escolhas recairiam naquilo que possuísse objetivamente as qualidades do Bem. É determinado como certeza de

corrupção e imprevisibilidade da ação humana. Nesse raciocínio não há espaço para o conflito, todas as tensões e ausências devem ter solução numa categoria superior capaz de impor a todos o valor universal. Enquanto as outras éticas privilegiam os princípios abstratos, a ética da singularização prioriza a possibilidade do homem agir autonomamente. Por esta perspectiva, o agir ético não é a primazia dos valores absolutos, mas a ação e instituição do pensamento diretamente ligado aos fenômenos do mundo que viabilize a autoconstituição dos homens como agentes. A saída apontada por Arendt para os homens ganharem novamente dignidade passa pela máxima valorização da cidadania e liberdade dos indivíduos para que compartilhem suas impressões sobre o que é justo para aquela comunidade (LAFER, 1991, p. 151). Com isso, o sentido da política ultrapassa a mera organização de necessidades, garantindo a possibilidade

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que o arbitrário, o individual e a violência serão contidos por constituírem a essência da

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FIDΣS de aparição dos homens como sujeitos reconhecidos no direito de agir e falar livremente. Deixa o Bem Comum de ser a razão dos esforços da união dos homens, conceito fundamentado numa ideia metafísica do sistema político e jurídico, para dar lugar ao cidadão enquanto autor direto da cidadania através da revelação da própria unicidade. Os preconceitos que acarretam a ideia de Bem Comum e a padronização reinante nas sociedades contemporâneas revelam os perigos da concepção do direito em homogeneizar diferentes pessoas numa única posição valorativa de justiça. Arendt relaciona o mal das atuais democracias ao sufocamento do singular, à impossibilidade do diálogo silencioso do eu consigo mesmo, ao processo cada vez mais acelerado de massificação e coletivização dos interesses. Trata-se do apagamento dos direitos do cidadão como singular para submeter todos aos direitos coletivos impostos pela cadeia infinita da produção, descartando as pretensões humanas que não tem relação com a sustentação da vida ou incremento do consumo.

6 CONCLUSÃO

Pode-se concluir que a reflexão de Hannah Arendt sobre o espaço público se realiza como forma de enfrentar as dificuldades relacionadas à participação política e legitimação dos institutos públicos a partir do fim da autoridade da tradição na modernidade, principalmente, diante da crise originada pelas experiências totalitárias. Os problemas postos no âmbito da legitimidade na esfera pública se mantêm atuais com as novas perspectivas da globalização, da crise da concepção moderna de participação política e pela tendência à legitimação através

nas decisões das corporações internacionais, centralizadas e respaldadas nos padrões midiáticos, aponta para o crescimento da violência e declínio da persuasão como mediadora dos conflitos sociais. A falência do ideal republicano conduz à instauração de um sistema societário em que os homens, privados de sua condição de seres capazes de agir e falar, são considerados substituíveis como animais ou peças de alguma máquina complexa. Assim, a reflexão sobre a política a partir dos argumentos arendtianos repensa as possibilidades de resistência no contexto da ilegitimidade que a sociedade contemporânea experimenta com o predomínio do econômico em detrimento do público. A transformação da política em mera instância encarregada da administração da sociedade é algo que preocupa Hannah Arendt em toda sua bibliografia. Trata-se de diagnosticar o perigo em deixar os assuntos comuns nas mãos de especialistas tornando os

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do poder propagandístico. A recusa da ação política nas atuais formas societárias, baseadas

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FIDΣS cidadãos incompetentes para opinar sobre o que diz respeito a todos, afastando-os dos embates públicos. A superação da apolitia, criada pelos processos globalizantes, implica num confronto direto com a tradição e cultura autoritária que obscureceram a legitimidade advinda da participação direta dos cidadãos nas decisões comunitárias. O exercício do direito, tal como foi pensado pelos romanos, conciliador a partir do pacto de igualdade, é a saída para a reconstrução da dignidade humana por meio da edificação de espaços para a liberdade. Por exigir o contato permanente com o outro, a pluralidade é indispensável para a ação na esfera pública. Toda decisão política deve levar em consideração a intersubjetividade na qual o cidadão é inserido, sem recorrer às provas ou demonstrações extramundanas para fortalecer seu ponto de vista. Sendo de origem metafísica ou científica, a verdade não confere respeito ao governo democrático porque está situada além do diálogo e consentimento. Somente a ação que estimule o contato entre os homens possui legitimidade para assegurar o espaço público onde predomine o respeito à dignidade humana, bem como, a instauração da imortalidade dos feitos e palavras.

REFERÊNCIAS

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HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

FREEDOM AND PUBLIC SPACE IN THE POLITICAL THOUGHT OF HANNAH ARENDT

ABSTRACT This paper presents the main reflective elements of Hannah Arendt concerning the relationship between freedom and public space. The dilemmas of the modern world led to the blurring of traditional political concepts transmitted by romans and greeks. In place of the construction of public space where free and equal men declare their unicity in face of the plurality of agents, the technical and scientific rationality raised production and work to the level of activities driving

participation which the law respect is a result of the consolidation of people’s power. Keywords: Freedom. Public space. Hannah Arendt.

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of social life. The solution is rethink the Law as instrument of political

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FIDΣS Recebido 30 ago. 2011 Aceito 28 out. 2011

AUTORIDADE E FUNDAÇÃO EM SANTO AGOSTINHO: UMA ANÁLISE ARENDTIANA Ana Luiza de Morais Rodrigues

RESUMO O presente artigo procura analisar de que modo Santo Agostinho concebe a incorporação da autoridade, conceito originário dos romanos no domínio público, pela Igreja Católica. Tal tema será aqui desenvolvido tendo por base o aparato reflexivo e conceitual arendtiano. Nosso principal objetivo é demonstrar de que forma a política perdeu, com a apropriação do conceito de autoridade pela Igreja Católica, o elemento capaz de lhe conferir estabilidade e durabilidade.

1 INTRODUÇÃO

Santo Agostinho e Hannah Arendt envolveram-se profundamente com as conturbações de seu tempo e dedicaram suas reflexões ao desmoronamento do modelo social e político que conheciam, de maneira que suas obras só poderão ser compreendidas se investigados os momentos históricos em que estavam inseridos. A despeito da evidente riqueza das obras dos dois filósofos e das amplas possibilidades de investigação sobre suas relações, trataremos, no presente artigo, especificamente sobre a incorporação da autoridade – antes vivenciada no domínio público – 

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Monitora de Introdução ao Estudo do Direito. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9437055702841539>.

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Palavras-chave: Autoridade. Igreja Cristã. Tradição. Política.

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FIDΣS pela Igreja Católica e de que maneira a retirada dessa herança romana fez com que a política perdesse muito do elemento capaz de lhe conferir estabilidade e durabilidade. Tal temática é especialmente relevante nos dias atuais, pois estamos assistindo a perda do interesse por tudo aquilo se refere à esfera política. A atividade política é, no geral, vista como abjeta e desmerecedora de atenção. Evidentemente, em nosso país, sobram razões para desacreditar dos políticos e confundir política com o que chamamos de “politicagem”. Contudo, é importante atentar para variadas obras filosóficas que, além perscrutarem as causas para tal abordagem da ação política, ainda tentam afirmar sua dignidade por meio do resgate de experiências verdadeiramente políticas e o esclarecimento de conceitos históricos distorcidos. Nesse sentido é a obra de Hannah Arendt, profundamente empenhada na missão de investigar de que modo chegamos ao atual estágio de rejeição por tudo o que é público. O trabalho que se segue não tem o intuito de fazer todo o resgate histórico-filosófico da perda da autoridade – entendida por nós enquanto estabilidade, durabilidade e, porque não, respeitabilidade – da política, mas persevera nesse intento tendo como objeto específico de estudo a obra de Santo Agostinho e a apropriação do conceito de autoridade, extraído da experiência romana, pela Igreja Católica. Além disso, as linhas que se seguem estarão permeadas de reflexões a respeito do modo com que a tradição do pensamento político ocidental subsumiu o “mundo” dos homens, únicos e plurais, ao “mundo das ideias”. Dessa forma, a ação e fala, essenciais ao homem público, tornaram-se atividades acessórias diante da supervalorização do pensamento

2 BREVES NOTAS SOBRE HANNAH ARENDT E SANTO AGOSTINHO A despeito do fato de que Agostinho jamais conheceu uma efetiva “ruptura” e “fim da tradição” – encontrando-se, pelo contrário, imerso em um contexto histórico no qual a tríade romana (Religião, Autoridade e Tradição) se mantinha intacta pelos dogmas cristãos que ele próprio ajudou a construir – sua figura surge no contexto de desagregação do Império Romano resultante de sucessivas investidas dos Povos Germânicos, tidos como bárbaros, e da própria falência do sistema governamental e jurídico romano. A missão do bispo de Hipona, que iniciou carreira eclesial como monge, era desenvolver uma produção doutrinária em defesa da fé cristã, ameaçada por sucessivas heresias e ingerências pagãs.

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metafísico, que teve seus principais expoentes de Platão a Marx.

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FIDΣS Com “A Cidade de Deus”, Santo Agostinho apresenta-nos a primeira interpretação cristã da história. Nessa obra, nos é introduzido o conflito permanente entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. A Cidade de Deus, realidade mística, “tem sua justiça, suas leis próprias. Está prometida para durar e ser vitoriosa eternamente” (VILLEY, 2005, p. 83). O verdadeiro conhecimento, oriundo da Cidade de Deus, só poderá ser alcançado através da introspecção e da experiência interna – atividade contemplativa que remete claramente a Platão. Pelos aspectos acima, é fácil perceber que a Filosofia de Santo Agostinho foi amplamente influenciada pelo platonismo, como veremos a seguir. A Cidade dos Homens, por sua vez, como se supõe, é imperfeita e perecível, maculada pelo pecado. A busca de Santo Agostinho era, pois, pela a transposição da Cidade de Deus, realizada sob o plano divino da Providência, sobre a Cidade Terrestre, a fim de que seu povo fosse salvo das heresias e do desvirtuamento dos valores cristãos. A luta do bispo de Hipona consistia, portanto, na “construção de uma Cidade de Deus, de uma sociedade que se funda no amor a Deus, mediado por Cristo, que veio a mundo para entregá-lo aos homens e esperar que estes sigam, pelo amor e pela fé, o projeto adiante” (LIMA, 2007, p. 151, grifos nossos). Hannah Arendt também sentiu na pele as transformações de seu tempo. Judia, Arendt presenciou a ascensão de regimes totalitários com profundo assombro. Nas palavras de Rodrigo Ribeiro (2009, p.17): “A inquietação que desencadeia o empenho do pensamento arendtiano é o desconforto radical em viver as condições espirituais e políticas do seu próprio tempo”. Por obra do totalitarismo, Arendt assistiu ao que podemos chamar de golpe definitivo na “desagregação do mundo comum” e nos pilares da tradição do pensamento ocidental. O ineditismo totalitário, somado às intensas e numerosas transformações políticas e da própria tradicionais – responsável por promover uma profunda alienação do mundo comum e humano e um obscurecimento da dignidade própria da política – não servia mais. A autora se propõe, então, a fazer um resgate minucioso de conceitos distorcidos e confusos em nosso tempo, tais como “autoridade”, “violência”, “poder”, “ação”, etc. Volto a repetir, com o objetivo de prevenir qualquer imprecisão doutrinária, que Santo Agostinho não presenciou o fim da tradição e a sua ruptura (que só foi deflagrada com o totalitarismo). No entanto, não podemos deixar de perceber que Santo Agostinho e Hannah Arendt situaram-se ambos em espaços históricos de transição, de modo que suas reflexões podem, sim, dialogar em variados aspectos. Refletindo sobre a problemática da autoridade, cujo conceito romano original foi desvirtuado, Arendt viu em Santo Agostinho o papel de ligação às tradições romanas, transportando o conceito de autoridade para a Igreja Católica e

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esfera mundana ocorridas no século XX, deixaram claro que o quadro de referências

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FIDΣS separando-o do poder, conceito diverso, que deveria ser exercido na esfera política. Nessa perspectiva, Arendt vê Santo Agostinho como “o primeiro pensador cristão que soube juntar ‘dois mundos diferentes’ – o greco-romano (filosófico) e o judaico-cristão (religioso)” (HORNICH, 2009, p. 25).

3 O LEGADO ROMANO: REFLEXÕES ACERCA DO PODER E AUTORIDADE EM HANNAH ARENDT

Para Hannah Arendt (2007, p.143), a palavra e o conceito de autoridade têm origem em Roma e a língua e história gregas não mostram qualquer experiência nesse sentido, mesmo com os esforços de Platão e Aristóteles em introduzirem algo similar à autoridade através de suas filosofias. A esse respeito, Hannah Arendt (2007, p. 144) afirma:

Devido a essa ausência de uma política válida em que se baseassem a reivindicação de um governo autoritário, tanto Platão como Aristóteles, embora de modo bem diferente, foram obrigados a fiar-se em exemplos das relações humanas extraídos da administração doméstica e da vida familiar grega, onde o chefe de família governava como um “déspota”.

O que tornava o déspota familiar inapto para exemplo de autoridade era exatamente seu poder para exercer coerção, já que, segundo a própria autora, “autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade” (ARENDT, 2007, p. 144), fato

podiam ser chamados de homem livres, já que eles não interagiam entre iguais - o primeiro circulava entre escravos e o último governava sobre súditos. Apesar de reconhecer a importância da filosofia política grega, Hannah Arendt acredita que, talvez, ela não tivesse alcançado tão expressiva relevância caso os romanos não tivessem decidido incorporá-la e reconhecê-la como autoridade suprema em todas as matérias do conhecimento e da especulação filosófica (ARENDT, 2007, p. 162). Desse modo, é inegável que a autoridade e a tradição gregas desempenharam na República Romana papel muito importante – dadas, é claro, suas devidas particularidades e autenticidades.

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incompatível com a própria natureza da coerção. Assim, nem o déspota nem o tirano, o

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FIDΣS Os romanos estavam fortemente vinculados a seu solo e a sua pátria. Para eles, participar da política significava, antes de qualquer coisa, participar da fundação da cidade de Roma – fato tido como o central, decisivo e irrepetível início de toda sua história. Em Roma, religião e atividade política podiam ser tidas como praticamente idênticas, já que a primeira, ao modelo da última, significava re-ligare, isto é, ligar-se às raízes do processo de fundação. É por essa razão que Arendt afirma que “também os deuses têm mais autoridade entre, que poder sobre, os homens” (ARENDT, 2007, p. 165). A palavra auctoritas deriva do verbo augere, que significa “aumentar”. Aquilo o que a autoridade aumenta, portanto, é a fundação. Os anciãos, o Senado e os patres eram os detentores da autoridade, pois estavam temporalmente mais próximos daqueles que haviam lançado a pedra angular da fundação, isto é, os antepassados, conhecidos como maiores. Por isso é interessante quando a perspectiva arendtiana de que para os romanos o crescimento se dava no sentido do passado, enquanto para nós, atualmente, o crescimento ocorre para o futuro. Explicitando esse raciocínio Hannah Arendt (2007, p. 164) assevera que “a autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade do que o poder e a força dos vivos”. Aliás, a característica mais premente dos que detêm autoridade é não possuir poder, já que o poder, para Arendt - em linhas gerais - nasce de um acordo de vontades construído a partir do encontro dos homens da esfera pública, enquanto a autoridade é aquilo que se respeita sem necessidade de um consenso. Desse modo, os feitos e os costumes dos antepassados serão sempre considerados modelos autoritários a serem seguidos, já que não dependem de uma legitimação política, uma vez que emanam, simplesmente, da autoridade.

religião. Assim, a autoridade estaria incólume enquanto a tradição se mantivesse intacta e agir sem autoridade e tradição significava agir a partir de padrões e modelos aceitos e consagrados pelo tempo. Apenas para esclarecer melhor, tradição – do latim traditio, tradere – revela-nos um sentido de entrega. Entrega, por sua vez, denota doação, transmissão. Tradição é justamente o fio que conecta e entrelaça as forças do passado e do futuro, permitindo seu encontro no presente. A continuidade da tríade romana - Religião, Tradição e Autoridade - passou por uma prova de resistência com o fim do Império Romano e foi vitoriosa quando a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Cristã, capaz, inclusive, de fazer da morte e ressurreição de

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A autoridade da fundação se ligava às gerações atuais através da tradição e da

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FIDΣS Cristo a pedra angular de uma nova fundação. A esse respeito, é essencial a transcrição das palavras de Hannah Arendt (2007 p. 168) quando diz que: A base da Igreja como uma comunidade de crentes e uma instituição pública não era mais agora a fé crista na ressureição (embora essa fé permanecesse como seu conteúdo), ou a obediência hebraica nos mandamentos de Deus, mas sim o testemunho da vida, do nascimento, morte e ressureição de Cristo como um acontecimento historicamente registrado.

Desse modo, é inegável que o espírito da fundação romana não deixou de existir, mas foi perpetuado pela Igreja Cristã de forma completamente nova. O acontecimento fundamental, aqui, não é mais o início de uma civilização fadada à perenidade, como acreditavam os romanos acerca de seu Império, mas o começo de uma fé capaz de iniciar uma tradição religiosa extremamente imbuída de autoridade.

4 SANTO AGOSTINHO E A RETOMADA DA AUTORIDADE

Na acepção antiga da palavra, religião significa re-ligare, isto é, ligação entre as relações atuais e o processo de fundação. O resgate da ideia de fundação romana através do estabelecimento da morte e ressureição de Cristo como pedra angular de uma comunidade de crentes foi, para Arendt, fator decisivo para o “milagre” da permanência do espírito romano. Não por acaso, ela é tentada a afirmar que a fé cristã tornou-se uma ‘religião’, não apenas no

A esse respeito, Hannah Arendt destaca a importância de Agostinho no sentido de, com a base de sua filosofia Sedes animi est in memoria (“a sede do espírito está na memória”), estabelecer uma articulação da Igreja Cristã com o legado romano. Explica Arendt (2008, p. 97): Sua pedra fundamental [da Igreja Cristã] veio a ser, e assim permaneceu desde então, não a mera fé cristã ou a obediência judaica à lei divina, mas o testemunho dado pelos autores, dos quais deriva a sua autoridade e que ao mesmo tempo transmite (tradere) como tradição de geração em geração [grifos nossos]

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acepção cristã da palavra, como também no sentido antigo (ARENDT, 2007, p.168).

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FIDΣS Santo Agostinho foi, portanto, talvez o mais importante desses autores, para os quais a verdadeira felicidade só poderá ser alcançada quando o homem remete-se ao Criador, ao momento da criação e, portanto, ao passado. Assim, para Agostinho, a felicidade é possível a partir do momento em que se rememora a fonte da existência, não apenas individual, mas de toda a humanidade, a qual tem sua origem em Adão, capaz de pôr todos os homens em uma situação de igualdade originária. Remeter-se a Adão, contudo, é ligar-se ao pecado e à cobiça pela árvore proibida, de maneira que a origem do homem, nesse caso, o levaria não à felicidade, mas ao sofrimento. Melhor seria, então, “rememorar a origem, principalmente a segunda origem, em Cristo, aceitando assim a graça divina” (CARNEIRO JÚNIOR, 2007, p. 39) como única maneira de se alcançar a felicidade. Ora, enquanto cidadão Romano, Agostinho já era imbuído da reverência pela fundação. Não por acaso, no prefácio de “A Cidade de Deus”, editado pela Editora das Américas, temos que Agostinho “admira a ordem e a paz que Roma trouxe ao mundo. Seu coração se despedaça quando ouve falar da queda da Cidade Eterna” (BARDY citado por AZZI, 1961, p. 18). Foi exatamente essa ordem e paz, oriundas da autoridade de Roma, que Agostinho buscou transportar para a Igreja Cristã através de sua obra. Ameaçada pelas heresias e invasões germânicas, o Doutor da Igreja viu que a comunidade cristã manter-se-ia intacta se fosse capaz estabelecer uma fundação inabalável sobre a qual toda a sua tradição deveria se desenvolver. Daí sua intrépida defesa da ortodoxia: era necessário preservar a fundação e estabelecer sua autoridade. A peculiaridade aqui é de que a pedra angular da fundação deverá

Roma. Dessa forma, o próprio alcance da Cidade de Deus, de quem a Providência Divina é fundadora, só poderá ser concretizado pela fé e introspecção individual, processo de contemplação a partir do qual se poderá obter o verdadeiro conhecimento que é a própria Cidade de Deus. Agostinho, portanto, manteve a tríade romana intacta e devidamente preservada por meio de seus esforços em herdá-la pelos dogmas cristãos. Nesse sentido, diz Hannah Arendt (2008, p. 96):

Com a repetição da fundação de Roma por meio da fundação da Igreja Católica, a grande trindade romana religião, tradição e autoridade pôde ser trazida até a era

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se situar dentro de cada cristão, diferentemente da fundação romana, que tem sua sede em

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FIDΣS cristã, onde resultou num milagre de longevidade só compatível ao milagre da história milenar da Roma antiga.

Por isso o Doutor da Igreja formulou ainda um conceito de autoridade a partir de uma fonte que transcenderia o poder político e aqueles que o detêm, pois possuía, por um lado, a crença religiosa em um começo divino (ainda que tenha refletido sobre a natalidade e a liberdade inerentes à capacidade humana iniciar algo novo e imprevisível) e, por outro, o fio condutor da tradição que assegura os padrões de conduta herdados como auto evidentes.

5 A RETIRADA DA AUTORIDADE DA ESFERA POLÍTICA

Possivelmente, o resultado mais marcante da herança romana para a Igreja Cristã tenha sido o início do processo de retirada da autoridade do domínio público. Enquanto em Roma, o senado requeria para si a autoridade, aqui, quem reclama a autoridade para si é a Igreja Cristã, deixando para a esfera pública o exercício do poder (ARENDT,1968, p.170). Isso explica, por exemplo, o fato de o domínio político ter perdido, pela primeira vez em sua história, o elemento capaz de lhe conferir permanência, continuidade e durabilidade. Tal perda será, na visão de Arendt, agravada ao longo das transformações históricas, tendo-se completado, no século XX, o processo de desvalorização da política. É exatamente na perda da dignidade da política que reside a grande questão do pensamento arendtiano.

influências da filosofia platônica sobre o pensamento agostiniano, já que em Santo Agostinho fica claro que ao conceito político romano de autoridade foi amalgamada a noção grega de transcendência, construída por Platão. Atentos à alegoria de caverna abordada em “A República”, percebemos que na filosofia política de Platão a aplicabilidade das ideias se dá justamente pelo fato de elas se relacionarem com as coisas concretas da mesma maneira com que as “formas” dos objetos se relacionam com o seu processo de fabricação. Temos, portanto, o pensamento como algo exterior ao próprio domínio social, capaz de subsumi-lo. Assim também é a Cidade de Deus de Santo Agostinho, inspirada na noção platônica de “mundo das ideias”. A Cidade de Deus é uma realidade mística da qual a Cidade Terrestre deve buscar incessante aproximação, já que a leis daquela são perenes, imutáveis e dotadas de Justiça. O conhecimento da Cidade Divina

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Para entender melhor esse processo, é preciso que nos reportemos às profundas

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FIDΣS só poderá ser obtido através do conhecimento pela iluminação de Deus, de inspiração platônica A esse respeito, Michel Villey (2005, p. 79) acrescenta: que “Isso concerne a nós: se só podemos conhecer o verdadeiro, o bem a justiça por meio de Deus e não pela experiência sensível, se a verdade, a justiça são Deus mesmo, então teremos sem dúvida que renunciar ao direito natural de Aristóteles e dos jurisconsultos romanos”. Ora, se as leis divinas são perenes e imutáveis, elas só podem ser dotadas de autoridade. Ao Estado, portanto, ficou relegado o poder: se as leis humanas não detêm a autoridade, elas são dotadas, pelo menos, de poder explicado por André Duarte (2000, p.240) como resultante da interação um grupo de homens plurais, situados na própria esfera do discurso e da ação, isto é, na esfera pública por excelência – e, por isso, devem ser obedecidas para garantir a segurança da vida comum temporal. Aparentemente, há uma incoerência no pensamento de Santo Agostinho quando ele aconselha a obediência às leis romanas, apesar de não refletirem a Justiça Divina. Contudo, tal impressão é desfeita quando encaramos essa obediência enquanto indiferença. Afinal, nas palavras de Michel Villey (2005 p. 106): “Que importa para o mártir, que se situa no plano da lei divina, que lhe tirem ou não lhe tirem a vida corporal? A legislação de César não tem importância; é por isso que pode ser mantida”. Além disso, Santo Agostinho vê nas leis terrenas possíveis instrumentos da Graça Divina para operar o rumo da história, desconhecido pelos homens, mas iluminado através do conhecimento divino. Obviamente, o ideal para Santo Agostinho seria que a lei terrestre espelhasse fielmente as leis da Cidade de Deus, revelando toda a sua justiça e solidariedade. Entretanto, vislumbrando as limitações das comunidades humanas, o bispo de Hipona não descarta a

dois centros distintos, porém profundamente imbricados. O que temos, portanto, é a autoridade divina convivendo com o poder político. Na visão agostiniana, a primeira deve se sobrepor à segunda, mas por não terem o mesmo terreno de aplicação, o direito cristão pode pacificamente coexistir com as leis. Apesar de reconhecer a importância das leis terrenas, como pensador cristão, Santo Agostinho compartilhava inteiramente da hostilidade e da desconfiança contra a esfera política enquanto tal, e de cujos encargos o seres humanos reclamavam, em sua concepção, isenção para serem livres. Nesse sentido, também é possível apontar Santo Agostinho como representante da tradição filosófica ocidental responsável por promover uma rígida dicotomia entre ação, realizada na esfera da política, e pensamento – divisão, que, aliás, terá efeitos muito negativos no domínio público. Assim, explica Hannah Arendt (2008, p. 103):

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coexistência entre a Cidade Divina e a Cidade dos Homens; pelo contrário, ele as vê como

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FIDΣS Desde que Agostinho se tornou neoplatônico e Tomás de Aquino neo-aristotélico, suas filosofias políticas só extraíram dos Evangelhos aqueles aspectos que correspondiam, como a civitas terrena e a civitas Dei, à dicotomia platônica entre a vida vivida na “caverna” dos assuntos humanos e a vida vivida na luz brilhante da verdade das “ideias”.

Partindo dessa noção, fica claro que as ideias tornam-se os padrões para o comportamento e juízo moral e político. A ação e fala, tão caros à esfera pública, foram postos como atividades acessórias e de menor relevância frente ao pensar que, segundo a perspectiva da tradição política ocidental, seria mais relevante. A política cedeu lugar à contemplação metafísica e nossos preconceitos com a esfera pública chegaram ao ponto de encararmos qualquer aproximação com a política como “risco premente de moléstia moral”. São, portanto, valiosas as lições de Claude Lefort (1991, p. 70) quando diz que: Para H. Arendt, a distinção entre sagrado e profano, ou então, entre o universo encantado da política e a vida prosaica, regida pelas coerções naturais, essa distinção que punha o sagrado ou o encantamento no visível, no surgimento do espaço público, mudou de sentido com a filosofia, pois, para esta, o invisível (invisível outrora vinculado às ocupações privadas) é que se acha investido da nobreza própria à intelectualidade, ao passo que a vileza atinge a atividade política.

Dessa forma, os assuntos políticos foram vistos pela tradição filosófica ocidental como matéria de menor importância e consequência natural da atividade contemplativa, essa sim,

entendido por Rodrigo Ribeiro (2009, p. 19) enquanto espaço artificial entre o homem e a natureza, bem como o meio ambiente de relacionamento e distinção instaurado entre os homens por meio de sua capacidade de interagir e agir entre si.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É bem verdade que Arendt viu em Agostinho um autor que, por ser não somente cristão, mas também romano, formulou um conceito de liberdade, em A Cidade de Deus, marcado pelas experiências especificamente romanas, relacionando-o, portanto, não tanto com a esfera de transcendência da autoridade ou com a interioridade da vontade no livre

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merecedora de dedicação. Com isso, corremos o risco de extinguir o próprio mundo,

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FIDΣS arbítrio (o que acabou tornando-se decisivo para a tradição filosófica), mas com a esfera política, com a natalidade e a capacidade de dar início a novos processos no mundo. Contudo, com sua filosofia política marcadamente platonista, Santo Agostinho buscou encontrar um vínculo entre os homens que fosse forte o suficiente para substituir o espaço intermediário da política ou o mundo comum. Em sentido contrário, toda a obra de Arendt tem em vista recuperar uma “outra tradição” do pensamento político ocidental, qual seja: a greco-romana, que dispõe de experiências e conceitos fundamentais que nos permitem repensar o real significado da confiança dos homens no mundo, sobretudo em seu lado público, instaurado e mantido pela pluralidade humana, ou seja, pelo envolvimento dos cidadãos em atos e palavras concertados. Arendt constatou que, desde o totalitarismo - marco “interruptivo” da tradição do pensamento político ocidental - vivemos o desafio de pensar a política sem o “amparo” das ferramentas tradicionais e metafísicas, de modo que se apresenta para nós uma chance única de resgatar, através de experiências esquecidas, como a greco-romana, o valor da política. Refugiar-se na contemplação e a hostilidade ao ambiente da política é partir para um estado de profundo isolamento e, portanto, alienação do mundo. A retirada da autoridade é um aspecto relevante para a política, pois desse elemento derivam a durabilidade, continuidade e permanência do espaço público, no qual os homens podem interagir e exercer o poder, já que ao limitar o poder, a autoridade tolhe o desenvolvimento da tirania. Não é errado, portanto, presumir que toda a civilização está – ou, pelo menos, deveria estar - assentada em uma base estável, capaz de lhe conferir o ambiente propício para a sucessão de transformações.

Arendt, como matéria de difícil abordagem. Ao mesmo tempo em que a autora se preocupa com a estabilidade que a autoridade oferece ao espaço público, meio no qual os homens agem, isto é, são ativos, ela destaca o papel do homem enquanto ser capaz de começar algo novo, fundar alguma coisa, isto é, agir. A esse respeito, inclusive, é preciso reforçar que a fundação é ação por excelência, uma vez que representa um acontecimento inédito, único e irreversível. Partindo dessa descrição, corremos o risco de considerar autoridade e fundação um sistema autopoiético em que sem fundação, a autoridade não tem o que aumentar e reforçar, enquanto sem autoridade, a fundação deixa de existir. Ora, se isso fosse verdade, em momentos de crise da tradição e da autoridade como o nosso, o mundo estaria fadado a permanecer em constante estado de ensombrecimento. Ao contrário, o que Hannah Arendt nos quer mostrar é que

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O tema da autoridade apresenta-se, para aqueles que estudam a obra de Hannah

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FIDΣS mesmo quando falham a tradição e autoridade, ainda há a possibilidade do milagre de um novo começo. A despeito das questões apontadas nesse artigo soarem como uma crítica à filosofia política desenvolvida por Santo Agostinho, a verdade que elas de forma alguma minoram a magnitude da obra desse pensador. As preocupações apresentadas por ele demonstram que sua visão filosófica da doutrina cristã não menospreza a presença e a inserção do homem no mundo, mas, ao contrário, preocupa-se com esse aspecto. Por essa razão, Arendt considera Agostinho o primeiro filósofo cristão, pois ele soube como ninguém formular as perplexidades filosóficas implicadas em sua fé e não abandonou as incertezas da filosofia para se refugiar na verdade da revelação.

REFERÊNCIAS

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jan/junho 2007. Disponível em:

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FIDΣS LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. O Conceito de Amor em Santo Agostinho: Breves Notas sobre a Obra de Hannah Arendt. Pensar, Fortaleza, ano 12, p. 145-151, jan/jul, 2007. [edição especial] Disponível em: <http://www.unifor.br/images/pdfs/pdfs_notitia/1626.pdf>. Acesso em: 25 out. 2011.

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VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

AUTHORITY AND FOUNDATION BY SAINT AUGUSTINE: AN AREDTIAN ANALYSIS

ABSTRACT This article seeks to analyse how Saint Augustine conceives the Authority incorporation, a Roman concept on public domain, by the Catholic Church. This subject will be developed here by using Hannah Arendt’s ideas. Our main objective is to demonstrate how Politics lost, because of the appropriation of the authority concept by the Catholic Church, the element capable of giving it stability and length. FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000

Keywords: Authority. Catholic Church. Tradition. Politics.

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FIDΣS Recebido 30 ago. 2011 Aceito 27 out. 2011

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 19/1998: A IMORALIDADE INFILTRADA NA REFORMA ADMINISTRATIVA Débora Daniele Rodrigues e Melo

RESUMO O presente artigo tem por escopo analisar a Emenda Constitucional nº 19/1998, conhecida como a emenda da Reforma Administrativa. Essa medida, apesar dos benefícios gerados para a máquina burocrática estatal, trouxe, em seu art. 8º, enunciado normativo corrompido pela imoralidade. O estudo crítico desse tema foi realizado tendo como instrumentos o princípio constitucional da moralidade, a teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu, a doutrina do Abuso de Direito e o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria. Como conclusão, infere-se que a referida emenda é passível de sofrer controle de constitucionalidade, por conter vício material em

Palavras-chave:

EC

19/1998.

Reforma

Administrativa.

Imoralidade. Congresso Nacional.

1 INTRODUÇÃO

A EC nº 19/1998, conhecida como a emenda da Reforma Administrativa, surgiu no auge de uma crise do aparato estatal brasileiro, que sofria com a ineficiência, a lentidão e o desprestígio perante a sociedade. Essa medida trouxe inovações benéficas para a 

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9192178420674958>.

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sua essência.

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FIDΣS administração pública, tendo como um dos principais objetivos reduzir despesas e aumentar a produtividade burocrática. Dentre os artigos da EC nº 19/1998 houve, porém, a infiltração feita pelo Congresso Nacional de um texto normativo de teor profundamente imoral, visto que permitiu que o processo de ajustamento de remuneração do Senado e Câmara dos Deputados se tornasse mais permissivo que outrora. A simples supressão do trecho “em cada legislatura para a subsequente” deu margem para que agentes públicos decidissem discricionariamente sobre os proventos que receberiam, chegando a igualar sua remuneração ao teto dos ministros do STF, em dezembro de 2010. Esse fato destoa do princípio constitucional da moralidade na Administração Pública, contrariando também os motivos iniciais propostos pela Reforma Administrativa. É a partir desse ensejo que se situa a análise crítica feita pelo presente artigo. Por meio de uma investigação da Constituição Federal sob a ótica do princípio da moralidade, e utilizando como ferramentas auxiliares a teoria de Montesquieu acerca da Tripartição dos Poderes, a doutrina sobre o Abuso de Direito e o entendimento do STF sobre a matéria, busca-se comprovar que o art. 8º da EC nº 19/1998 foi uma afronta ao ordenamento jurídico brasileiro e um desrespeito à população, sendo passível, inclusive, de Ação Direita de Constitucionalidade por vício material.

2 O CONTEXTO HISTÓRICO E A EC Nº 19/1998

originou-se em um período conturbado para o Estado brasileiro. A estagnação econômica da indústria interna, provocada pelo neoliberalismo, já perdurava por volta de 15 anos. A crise se alastrava não só pela seara financeira, mas também pela fiscal e incidia na ineficiência da máquina do Estado em satisfazer as demandas da sociedade. Os serviços de saúde, educação, segurança e transporte estavam profundamente defasados, ineficientes em atender os cidadãos, além de que a lógica neoliberal imposta ao Estado brasileiro gerou uma série de privatizações e de falências de pequenas empresas, acentuando os níveis de desemprego. O então presidente, Fernando Henrique Cardoso, em

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A Emenda Constitucional nº 19/1998, conhecida como a Reforma Administrativa,

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FIDΣS mensagem ao Congresso Nacional1, declara que “a capacidade de ação administrativa do Estado se deteriorou, enquanto prevalecia um enfoque equivocado que levou ao desmonte do aparelho estatal e ao desprestígio de sua burocracia”. O “enfoque equivocado” a que se refere o ex-presidente se configura na demasiada atenção que o Estado brasileiro dispendeu ao setor econômico desde a crise mundial do petróleo até a década de 1990, quando, enfim, por mérito do Plano Real, a inflação, a instabilidade monetária e a recessão foram contidas, atenuando a crise econômica em relação à “década perdida” de 1980. No entanto, ao passo que o governo brasileiro empreendia melhoras para o setor privado da economia, não investia na gestão da organização burocrática, permitindo que a seara pública se deteriorasse, assim como os serviços básicos a serem disponibilizados à população. Nesse diapasão, a assaz necessária Reforma Administrativa surgiu sob o modelo de emenda, cujo relator foi o então Deputado Moreira Franco (PMDB). Dentre as várias transformações efetuadas, ela modificou métodos de gestão e controle da máquina burocrática, alterou a política remuneratória de servidores públicos, findou o regime jurídico único e instituiu o quinto princípio constitucional da administração pública, a eficiência. Foi, enfim, um marco para a melhora do aparato burocrático, que havia sido tão pouco desenvolvido até a referida época. Segundo Carlos Alberto Menezes Direito (1998, p. 136), ex-ministro do STF e, na época, ministro do STJ, a reforma alcançou os princípios básicos da Administração Pública, intencionando retirar do texto constitucional possíveis entraves para a maior agilidade e

Destarte, a referida emenda aflorou como uma esperançosa e possivelmente útil ferramenta para se amenizarem os problemas da burocracia brasileira, sendo benquista por grandes juristas como o supracitado ex-ministro, ao afirmar que a reforma significou o maior avanço dos últimos tempos para regular a atividade do Estado, baseando-se na qualidade do serviço à população e na real participação do usuário (DIREITO, 1998, p. 12). Percebe-se, assim, que a repercussão geral da medida mencionada foi positiva, tanto do ponto de vista dos especialistas, quanto da aceitação da nacional, que enxergou nesse projeto a evolução da máquina pública aliada à melhora de serviços para o povo. Há, contudo,

1

Mensagem nº 866/95, p. 25. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/expresidentes/fernando-henrique-cardoso/mensagens-presidenciais-1/1995/view >. Acesso em: 10 jul. 2011.

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eficácia da máquina estatal.

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FIDΣS certo artigo da EC nº 19/1998 que parece ter passado despercebido pelo crivo de quem a avaliou. Esse enunciado normativo contraria, em essência, toda a motivação dada à reforma, de se diminuírem os gastos da máquina pública, melhorar a eficiência e credibilidade dos serviços do Estado, visto que se opõe a um preceito constitucional básico da Administração Pública, talvez o mais ansiado e questionado pela população por sua ausência: a moralidade.

3 DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA Dentre os princípios que regem a Administração Pública – Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência -, o da moralidade administrativa é, talvez, o mais relevante no que se refere à credibilidade atribuída ao serviço público pela população. É por meio de um gerenciamento teleologicamente honesto da máquina pública que se pode erigir um Estado de Direito realmente democrático, haja vista que, somente se os agentes públicos agirem conforme a moralidade administrativa e o interesse coletivo, o aparato estatal poderá suprir as demandas sociais de educação, segurança, saúde, lazer – seu fim precípuo.

3.1 Breve histórico da evolução da juridicidade dos princípios

administrativa, cabe analisar a teoria dos princípios de maneira perfunctória, a fim de possibilitar melhor compreensão acerca da concepção principial do Direito, que prevalece hodiernamente na doutrina constitucional. Princípios são as verdades primeiras, as premissas de todo um sistema normativo (PICAZO, 1983, p. 1268 citado por BONAVIDES, 2011, p. 255-256) e que atualmente são identificados por sua normatividade. Contudo, o exame teórico de sua eficácia normativa demonstrou que, durante a fase jusnaturalista – mais antiga e tradicional –, os princípios eram tidos como meros preceitos programáticos, advindos de esferas metafísicas e com normatividade insignificante. São, no dizer de Flórez-Valdés, axiomas jurídicos, princípios de justiça constitutivos de um Direito ideal (BONAVIDES, 2011, p. 259-261).

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Antes de se adentrar, de fato, no princípio constitucional da moralidade

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FIDΣS À fase jusnaturalista sucedeu a juspositivista, marcada pela inserção dos princípios nos Códigos, quando eles passaram a exercer funções supletivas, subsidiárias: não se sobrepunham à lei posta e, derivavam dela por meio de abstrações e generalizações. Os princípios emanavam das próprias leis e não tinham normatividade de per si. O advento da teoria filosófica do pós-positivismo, todavia, sustentando o fenômeno do neoconstitucionalismo, alterou de vez essa concepção acerca dos princípios. Passou a se aceitar a sua hegemonia axiológica no ordenamento jurídico e seu caráter normativo e vinculante sobre as demais normas (BONAVIDES, 2011, p. 264-265). Os defensores da Nova Hermenêutica constitucional – Dwowkin, Esser, Alexy e Crisafulli – concluíram, por fim, que princípios são normas caracterizadas, sobretudo, por seu aspecto de generalidade e que as normas são divididas nas espécies de princípios e regras. Destarte, Bonavides afirma que já é possível se falar numa concepção principial do Direito, tendo em vista a importância extrema que os princípios adquiriram no ordenamento jurídico (2011, p. 288-293), alcançando o grau hierárquico mais elevado na escala constitucional, vinculando toda a ordem jurídica, servindo de parâmetro de interpretação de todo o sistema constitucional, fundamentando as demais normas quando da conformidade com os princípios e exercendo, assim, grau máximo de normatividade. O direito administrativo não ficou imune ao novo constitucionalismo de princípios, sendo a mais destacada atuação deles no que se refere ao controle da Administração Pública, sobretudo em termos de controle de discricionariedade por parte dos agentes públicos (BAPTISTA, 2003, p. 87-91). Por discricionariedade administrativa é possível entender, numa conceituação

como sendo o dever de o Administrador Público, ante o grau de imprecisão existente na norma, seja essa imprecisão derivada de conceitos axiológicos ou multissignificativos, optar pela solução que mais se compatibilize com o interesse público, ditado pela Constituição, pelas normas de inferior hierarquia e pelos valores dominantes ao tempo da consecução do ato (MARCHESAN, 2009). [grifos nossos].

Assim, a subjugação da Administração Pública ao regime principiológico constitucional implica a vinculação dos atos dos agentes públicos não só às regras estipuladas no direito positivo, mas também aos valores, explícitos ou implícitos, que se agregam ao

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adequada ao poder vinculante dos princípios em todos os âmbitos do direito,

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FIDΣS sistema e que devem determinar a intenção e a finalidade precípua de qualquer indivíduo que atue em nome do poder estatal. Nesse sentido, o princípio constitucional da moralidade administrativa surge como um dos basilares para a determinação da conduta dos agentes públicos. Ele, em conjunto aos outros princípios, tanto tácitos quanto expressos na Constituição Federal, rege todos os atos dos que atuam em nome do poder, tendo em vista a sua considerável importância para a construção e manutenção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

3.2 O surgimento e desenvolvimento do conceito sobre a moralidade administrativa

A pioneira noção de moralidade administrativa surgiu em meados do século XX, a partir da consolidação, no Direito Privado, da teoria do abuso de direito, que originou, mais tarde, o desenvolvimento do instituto de desvio de poder pela jurisprudência do Conselho do Estado Francês (LIMA, 2006, p. 4). Maurice Hauriou, como membro do referido conselho, utilizou pioneiramente essa expressão com o escopo de fundamentar o controle dos atos discricionários, isto é, eivados de desvio de poder (CAMMAROSANO, 2006, p. 19). Eles eram, de certa forma, permitidos à época do positivismo, pois se admitia a existência de um espaço decisório discricionário na administração, quando não incidissem regras específicas para o caso em exame (BAPTISTA, 2003, p. 92). Hoje, porém, devido ao reconhecimento de que o Direito é um sistema não só de regras, mas também de princípios da mesma forma vinculantes, entende-se que o espaço quando da existência dos chamados “casos difíceis”. Destarte, a discricionariedade hoje permitida ao agente público é noção apartada da concepção anterior, mais semelhante à arbitrariedade, uma vez que se resume à possibilidade do agente em escolher determinadas opções de conduta permitidas pela lei, quando sua ação não está por completo vinculada a ela. Essa escolha, porém, sempre estará ligada aos princípios. Assim, a concepção moderna de discricionariedade “tem inserida em seu bojo a ideia de prerrogativa, uma vez que a lei, ao atribuir determinada competência, deixa alguns aspectos do ato para serem apreciados pela Administração diante do caso completo” (PIETRO, 2000, p.90). A discricionariedade implica na liberdade do agente em exercer sua função conforme os limites da lei e dos princípios, mas jamais como ser autônomo.

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anteriormente ocupado pela discricionariedade agora serve para a ponderação de princípios,

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FIDΣS Parafraseando o pensamento de Kelsen ao afirmar que a norma é como a moldura de um quadro, e o jurista tem liberdade de agir dentro dos limites dessa moldura, da mesma forma, para a Administração Pública, a lei e os princípios compõem a moldura a ser respeitada pelo agente público. Por essa lógica de raciocínio, mesmo em casos omissos pela lei, a discricionariedade outorgada aos agentes públicos encontra-se vinculada ao poder dos princípios constitucionais, – sobretudo ao da moralidade administrativa – que servem como diretrizes de comportamento para esses indivíduos, servindo como verdadeiros faróis, legitimando seus atos, os fins e intenções desses, quando forem condizentes com a valoração principiológica do ordenamento. Nesse sentido, a moralidade administrativa foi definida por Hauriou como o espírito geral da lei administrativa, que impõe aos administradores o dever de agir pelo bem do serviço público (1926, p. 455). Hodiernamente, ela passou a constituir o fundamento de validade de toda a Administração Pública. Ela não representa a moral comum, individual ou social, sequer as ideias de justiça absoluta universal: é a moral jurídica, é o apanhado de regras de condutas emanadas da essência das instituições. Assim, o agente administrativo encontra-se obrigado a não desprezar o elemento ético de sua conduta, tendo que decidir entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o honesto e o desonesto. A moral administrativa é imposta à conduta interna do agente público, conforme as exigências do órgão a que serve e a finalidade do seu agir, e o bemcomum (MEIRELLES, 1988, p.79). É possível afirmar que o princípio da moralidade administrativa é composto por valores morais judiciarizados (CAMMAROSANO, 2006, p. 113), axiomas erigidos pelo

públicos, a fim de que esses estejam em conformidade com a realização do interesse coletivo. O princípio constitucional da moralidade administrativa corresponde, de fato “ao conjunto de regras de conduta da Administração que, em determinado ordenamento jurídico são consideradas os standarts comportamentais que a sociedade deseja e espera.” (FIGUEIREDO, 2000, p. 53). Destarte, por esse princípio figurar no nível mais alto da hierarquia constitucional, é mister que a sua vinculação e efetividade seja posta em prática também fora da seara abstrata da lei. É imprescindível que as normas referentes à moralidade administrativa tenham eficácia plena e aplicabilidade imediata e direta sobre a Administração Pública e seus agentes, sendo necessário exigir deles a observância fiel e integral a esse princípio, em todos os atos que exerçam como atores do poder estatal.

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Direito ao nível de norma constitucional, para que sirvam de guia aos atos dos agentes

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FIDΣS É a partir dessa premissa – de que os agentes públicos devem seguir a toda custa o princípio constitucional da moralidade administrativa - que se desenvolve o debate acerca da imoralidade infiltrada na EC nº 19/1998, a emenda da Reforma Administrativa.

3.3. Das alterações feitas pela EC N° 19/1998 questionáveis pela ótica da moralidade Além de dispor sobre a remuneração dos servidores públicos, removendo “excessos”, no intuito de diminuir as despesas do Estado – conforme mensagem de Fernando Henrique Cardoso –, a EC nº 19/1998 também alterou o artigo 49 da Constituição Federal, que previa a organização de agentes de mandatos eletivos, quais sejam, Deputados Federais e Senadores. O referido artigo dispunha que “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] VII – fixar idêntica remuneração para os Deputados Federais e os Senadores, em cada legislatura, para a subsequente, observado o que dispõem os arts. 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.” [grifos nossos]. Tal disposição, contudo, recebeu nova redação pela EC nº 19/1998, passando a dispor que: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: [...] VII - fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”. Conforme visto alhures, a EC nº 19/1998, no que se refere ao art. 49, VII, fez apenas uma supressão do texto constitucional, retirando de sua redação o trecho que determinava ser da competência exclusiva do Congresso Nacional a fixação idêntica da remuneração para seus agentes “em cada legislatura, para a subsequente”.

moralidade. Afinal, qual foi o embasamento teórico utilizado pelos Senadores e Deputados Federais para retirar do texto constitucional esse excerto que auxilia o combate à corrupção e ao gasto indevido de verbas públicas? Determinar a fixação e remuneração de uma legislatura para a outra é, no mínimo, a medida mais razoável a se adotar para que ações em benefício próprio não se tornem discricionárias em uma instituição, como o Congresso, que tem a prerrogativa de determinar o provimento de seus membros. Nesse sentido:

Além de atender à legalidade, o ato do administrador público deve conformar-se com a moralidade e a finalidade administrativas para dar plena legitimidade à sua atuação. Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade

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Ora, essa exclusão, aparentemente inofensiva, fere profundamente o princípio da

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FIDΣS administrativas, no sentido de que, tanto atende às exigências da lei, como se conforma com os preceitos da instituição pública. Cumprir simplesmente a lei na frieza de seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. A administração, por isso, deve ser orientada pelos princípios do direito e da moral, para que ao legal se ajunte o honesto e o conveniente aos interesses sociais (MEIRELLES, 1988, p. 79).

O brocardo romano já determinava que non omne quod licet honestum est – nem tudo o que é legal é honesto. Nesse contexto, o princípio da moralidade é uma extensão do da legalidade, completando-o. O agente público, além de obedecer à reserva legal, deve pautar sua conduta na moral inerente à instituição, agindo conforme o que for melhor e mais útil ao interesse público. Assim, a Administração Pública e seus agentes tem de seguir preceitos éticos que estão contidos na norma, não se referindo apenas à moral comum, sob pena de invalidação dos atos administrativos, conforme traz a Constituição Federal em seu art. 5°, LXXIII, prevendo ação popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público e à moralidade administrativa (MELLO, 2009, p. 119-120). Aduz-se, ainda, nesse contexto, que é necessário diferenciar não só o legal do ilegal, mas o justo do injusto e o honesto do desonesto (PIETRO, 2000, p. 70). Quando se trata da Administração Pública, essa ponderação se torna imprescindível, haja vista que lida com indivíduos incumbidos de gerenciar o poder do Estado, por vezes sem um efetivo controle por sobre eles, como é o caso do Congresso Nacional. Essa casa, representativa do Poder Legislativo em âmbito federal, não é inspecionada

fiscalização administrativa, financeira e correicional do Poder Judiciário. Destarte, se o princípio em questão for desprezado pelos integrantes do Senado e da Câmara dos Deputados, incorre-se de imediato na imoralidade administrativa, combinada à ideia de desvio de poder. Este ocorre quando são utilizados “meios lícitos para atingir finalidades metajurídicas irregulares. A imoralidade estaria na intenção do agente.” (PIETRO,

2000, p. 70). Como apontado pela referida citação, o debate acerca da imoralidade de certo ato administrativo não deve se centrar no ato em si, uma vez que ele pode ser juridicamente lícito. Todavia, é a intenção do agente público em realizar determinada conduta e as consequências dela que, analisadas sob um ponto de vista axiológico e considerados os interesses da coletividade, determinarão a imoralidade do feito.

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por um órgão específico, como o Conselho Nacional de Justiça, cujas funções são a

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FIDΣS Nesse diapasão, conclui-se que a modificação do art. 49, VII, da Constituição Federal não teve outro intuito senão facilitar o procedimento para que Deputados Federais e Senadores pudessem alterar discricionariamente os seus proventos, sendo isso ação profundamente imoral, uma vez que não atende a nenhum interesse coletivo, mas apenas ao desejo individual de se beneficiar dos cofres públicos. As notícias da mídia não nos deixam enganar quanto a essa intenção dos integrantes do Congresso Nacional. Em 15 de dezembro de 2010: O Senado aprovou no final da tarde desta quarta-feira, em votação simbólica, o decreto legislativo que equipara os salários de presidente da República, vicepresidente, ministros de Estado, Senadores e Deputados aos vencimentos recebidos atualmente pelos ministros do Supremo Tribunal Federal: R$ 26.723,13.2

No tocante ao princípio da supremacia do interesse público, Di Pietro (2000, p. 62) conjectura que ele deve se fazer presente tanto no momento de elaboração da lei, quanto na ocasião de sua aplicação, vinculando a autoridade administrativa aos anseios e necessidades sociais. É notório que o mencionado princípio não foi observado na seara legislativa - na conjuntura de elaboração do questionável art. 8º da EC nº 19/1998, que retirou o excerto “em cada legislatura para a subsequente”-, sequer na administrativa, pois, desde a referida supressão no texto constitucional, foram frequentes e sucessivos os decretos legislativos com o escopo de aumentar a remuneração dos integrantes do Congresso Nacional, até ser atingido

Sobre a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, é imprescindível salientar que: Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva [...] conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o

2

BRAGA, Isabel. “Senado aprova aumento salarial de parlamentares e integrantes do Executivo”. O Globo, São Paulo, 15 dez. 2010. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/12/15/senado-aprova-aumentosalarial-de-parlamentares-integrantes-do-executivo-923298400.asp. >. Acesso em: 10 jul. 2011.

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o teto salarial dos ministros de STF em dezembro de 2010.

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FIDΣS vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal (PIETRO, 2000, p. 64).

Diante dessa conjuntura de aproveitamento de modificação intencional do texto da Constituição Federal para o usufruto pecuniário por parte dos integrantes do Congresso, qual foi o mérito então da EC nº 19/1998 ao modificar o art. 37, XI – reproduzido abaixo –, o qual dispõe que a remuneração e subsídio de nenhum agente público poderá ultrapassar o teto dos ministros do STF? In verbis: a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. [grifos nossos]

De nada serviu tão minuciosa designação acerca dos subsídios de empregados públicos, já que Deputados Federais e senadores não podem ultrapassar o teto dos ministros do STF, mas podem igualar seus proventos ao mesmo piso, conforme mostrou a notícia de jornal exposta. Assim, Carlos Alberto Menezes Direito (1998, p. 138-139) enganou-se ao afirmar que a EC nº 19/1998 eliminaria o risco de a remuneração dos agentes públicos atingir níveis “astronômicos”. Isso porque é inadmissível pensar que um subsídio de R$ 26.723,13 para os

apenas porque não transpõe, mas se nivela à remuneração dos ministros do STF. Em nenhum ponto dessa emenda – ao permitir que Senadores e Deputados Federais definam sua remuneração para a candidatura que estão exercendo – se encontra o tão necessário princípio da moralidade, visto que os efeitos de tal mudança no texto constitucional se materializam no aumento arbitrário da remuneração desses agentes públicos. Em nada serve ao interesse coletivo, à melhora dos serviços à população e à eficiência da administração estatal – objetivos primordiais enumerados no contexto histórico do lançamento da EC nº 19/1998 – que um membro do Congresso receba tão generosa importância, enquanto o salário mínimo do Brasil é apenas R$ 545,00.

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integrantes do Congresso Nacional é moralmente aceitável, uma vez que é permitido em lei,

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FIDΣS 4 A QUESTIONABILIDADE MORAL À LUZ DA TRIPARTIÇÃO DE PODERES DE MONTESQUIEU

Analisar a EC nº 19/1998 sob a perspectiva de Montesquieu é outra maneira de vislumbrar a imoralidade contida em seu artigo 8º3. Conforme a tão celebrada Tripartição dos Poderes - teoria que fundamentou os anseios da Revolução Francesa na empreitada burguesa de findar o Estado Moderno -, a única maneira de garantir que um Estado esteja isento de medidas arbitrárias por parte de seus governantes é que o poder seja dividido e controlado pelo próprio poder. Montesquieu (1973, p. 156) afirma: “a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. [...]. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”. Foi a partir dessa proposição que se organizaram o Legislativo, o Executivo e o Judiciário da maioria dos países que adotam o Estado Democrático de Direito, no intuito de que a separação dessas esferas impedisse o uso indiscriminado da prerrogativa de governar, como propugnou Montesquieu no século XIX. Destarte, os três mencionados poderes têm funções diversas, mas são independentes e harmoniosos entre si. Fazendo o elo entre a teoria já citada e o caso em análise, a “violação” da Tripartição dos Poderes na Constituição Federal já se inicia na prerrogativa que tem o Legislativo, em âmbito federal, de determinar a remuneração de seus agentes sem que seja necessária a aprovação de tal medida pelos outros poderes.

Federal, Deputados e Senadores tem competência privativa para criar iniciativa de lei para a fixação da respectiva remuneração – que, graças a EC nº 19/1998, agora pode ser impetrada para vigorar na mesma candidatura em que foi iniciada, beneficiando com o aumento de recursos salariais os indivíduos que a propuseram. Por isso, para que haja um efetivo aumento, basta um decreto legislativo visando iniciativa de lei que busque tal acréscimo na remuneração dos integrantes do Congresso Nacional.

3

Art. 8º Os incisos VII e VIII do art. 49 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: "Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: VII - fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”;

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Esse processo se dá porque, de acordo com os arts. 51, IV e 52, XIII da Constituição

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FIDΣS Essa prerrogativa, conforme a lógica do pensamento de Montesquieu, por si só já se configura ato imoral, visto que permite a sobreposição de um poder perante o outro, ao conceder ao Legislativo a autonomia de definir a remuneração de seus agentes sem que sequer seja necessária a sanção do Executivo ou o consentimento do Judiciário. Os outros dois poderes, por sua vez, necessitam que o Legislativo aprove medida para o aumento de sua remuneração. Nesse contexto, a imoralidade presente na alteração feita ao texto constitucional pelo art. 8º da EC nº 19/1998 se torna ainda mais notória: se já pode ser considerado contra a teoria da Tripartição e, portanto, abusivo, o fato de o Legislativo poder determinar os proventos de seus agentes autonomamente, essa situação só se agrava após a mudança feita pela referida emenda, pois permite que a decisão sobre a remuneração seja efetuada numa mesma candidatura.

5 A REMUNERAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO FEDERAL EM CONFRONTO COM A DO PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL

A percepção do quão imoral foi a mudança proposta pelo Congresso Nacional ao desconfigurar o art. 49, VII, da Constituição Federal aumenta ao se averiguar a previsão constitucional contida no art. 29, VI, – com redação dada pela EC nº 25/2000 –, referente, por sua vez, à remuneração de vereadores, a saber: “o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que seguintes limites máximos”. Ora, qual o embasamento teórico usado por Deputados Federais e Senadores - visto que eles têm a prerrogativa de propor, votar e promulgar emendas constitucionais – para, na EC nº 19/1998, retirar do texto constitucional o excerto “em cada legislatura para a subsequente” e a colocar quando referente aos vereadores na EC nº 25/2000? Por que a legislação concernente à remuneração do Poder Legislativo Federal é diversa da do Poder Legislativo Municipal? Não deve haver isonomia entre os agentes de um mesmo poder? Por qual motivo vereadores podem definir seus subsídios apenas de uma legislatura para a seguinte se os membros do Congresso o podem fazer numa mesma legislatura?

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dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os

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FIDΣS Não se afirma, nessa discussão, que a segunda proposição é a correta. Já se foi discutido que ela é indubitavelmente imoral sob a análise dos princípios da Administração Pública e da tripartição dos Poderes de Montesquieu. É, todavia, ainda mais questionável que o Legislativo Federal tenha essa prerrogativa enquanto que o Municipal não a tem. As inferências advindas desse confronto de artigos só reafirmam a imoralidade infiltrada na Reforma Administrativa. De fato, a justificativa mais coerente para explicar essa contradição do Legislativo nas esferas federal e municipal é que o caráter imoral do art. 8º da EC nº 19/1998 foi incluso propositadamente pelos membros do Senado e Câmara dos Deputados. O Congresso Nacional do ano de 1998 - composto, por exemplo, pelos Senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Pedro Simon (PMDB-RS), Fernando Bezerra (PSDB-RN) e José Sarney (PMDB-AP), todos reeleitos, e pelos Deputados Federais Gilberto Kassab (PFL-SP) e Carlos Alberto de Sousa (PSDB-RN) – alterou a Constituição Federal em seu art. 49, VII, no ensejo da Reforma Administrativa, com a única meta de facilitar o processo de aumento salarial de seus integrantes. Nesse ponto, o intuito da Reforma Administrativa, medida tão importante para a organização da máquina burocrática estatal em momento de crise como o da década de 1990, foi deturpado. Malgrado o ex-ministro do STF, Menezes Direito (1998, p. 133), afirmar que o sistema legal serve para impedir manobras lesivas ao Estado, vedar possíveis fraudes cometidas contra o erário e expugnar da máquina estatal comportamentos nocivos de seus administradores, a alteração feita no art. 49, VII, da Constituição Federal pela EC nº 19/1998

brasileiro. Não há outra explicação para tanto senão que Deputados Federais e Senadores, ao incluir na Reforma Administrativa artigo de essência tão imoral, visaram, de fato, facilitar a promoção autônoma e escusa dos próprios rendimentos. Isso ocorreu sem nenhum respeito ao povo e ao Estado brasileiro, que tinham esperanças de que a EC nº 19/1998 aperfeiçoaria a máquina burocrática, mantendo um rígido controle sobre as despesas públicas, e não que ela propiciaria, aos representantes da população o aumento arbitrário e desregulado de seus proventos. A comparação da regulamentação sobre subsídios do Legislativo Federal e Municipal nos mostra como essa ação foi intencional e programada. Se assim não o fosse, a EC nº 25/2000 teria incluído o tão celebrado e importante excerto – “em cada legislatura para

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permitiu que essas mazelas continuassem e até se acentuassem no ordenamento jurídico

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FIDΣS a subsequente” – não apenas no tocante à remuneração de vereadores, mas também em relação aos membros do Congresso Nacional, de acordo com o princípio isonômico que deve vigorar no âmbito interno de um mesmo Poder. Essa inclusão ao texto constitucional, contudo, não ocorreu. As notícias dadas pela mídia nos mostram que a motivação para tanto é que Deputados Federais e Senadores não se saciariam em aumentar a própria remuneração até alcançarem o teto dos ministros do STF, fato que ocorreu em dezembro de 2010. Os efeitos desse acontecimento são notórios para todos: imensas despesas com a folha de pagamentos dos agentes públicos de mandatos eletivos, enquanto a população padece na educação, saúde, segurança e infraestrutura por “falta de verbas” e pela incansável alegação de reserva do possível do Estado.

6 A ABERTURA PARA O ABUSO DE DIREITO

Os membros do Poder Legislativo, considerado em sua essência organizacional, têm o direito de definir sua remuneração por meio de iniciativa de lei. Após o exposto, contudo, é possível analisar se essa prerrogativa, conforme o modo pelo qual é exercida nos dias atuais e, sobretudo, após a EC nº 19/1998, incide sobre o que a doutrina já convencionou chamar de abuso de direito. O abuso de direito configura uma forma de prática do ato ilícito. Ela pressupõe a existência de um direito subjetivo exercido de maneira anormal, ou seja: provocando danos a

No pretérito, especialmente como consequência do Código Napoleônico, intrinsecamente individualista, predominava a noção de caráter absoluto dos direitos, ou seja, a concepção de abuso não existia. Reinava o brocardo qui suo iure utitur nemi nem laedi – quem usa de seu direito a ninguém prejudica. O direito moderno, entretanto, atribuiu uma função social aos direitos subjetivos, constituindo, desse modo, um limite a seu exercício, para que a segurança social seja garantida. Nader (2007, p. 340) ensina que a necessidade de se proteger os interesses coletivos torna inaceitável que um titular de direito prejudique o bem-estar social. Assim, “o abuso de direito, ontem como hoje, nada mais é que um instrumento de correção, destinado a evitar desvios morais, praticáveis na aplicação à outrance de um direito [...]” (MOREIRA NETO, 1992, p. 32).

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outrem (NADER, 2007, p. 338).

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FIDΣS Dessa feita, é possível inferir que a alteração provocada pela EC nº 19/1998 ao texto constitucional permite uma amplitude maior para que Deputados Federais e Senadores abusem do direito de legislar, causando danos aos cidadãos brasileiros no tocante ao gasto indevido de verbas públicas. Essa situação ocorre porque, uma vez alterada a Constituição Federal, para que haja o aumento na remuneração dos agentes do Congresso Nacional, basta que eles iniciem projeto de lei para sua fixação (art. 51, IV e 52, XIII, Constituição Federal). Tal projeto será debatido e votado pelos próprios integrantes do Senado e da Câmara dos Deputados e executado por meio de um decreto legislativo, medida que não precisa da aprovação de outro órgão, senão do próprio Congresso. Isto é, Deputados Federais e Senadores tem autonomia irrestrita para decidir qual remuneração receberão, desde que não ultrapasse o teto do STF (art. 37, XI). Engana-se, portanto, o ex-ministro Menezes Direito (1998, p. 137) ao afirmar que a EC nº 19/1998 criou severa restrição quanto à alteração de subsídios e remuneração de agentes públicos, impedindo o “velho hábito” de ampliar os proventos sem lei que o determinasse, visto que, apesar de haver norma para regulamentar tal processo, ela é profundamente permissiva. Configura-se abuso de direito, portanto, porque a prerrogativa individual de um grupo de parlamentares não pode atingir o direito de toda uma população de que as verbas estatais sejam destinadas à satisfação das necessidades populares e não à vontade individual de aumentar o patrimônio às custas de uma função pública de mandato eletivo.

Quanto à fixação de subsídios por agentes públicos numa mesma legislatura, o STF decidiu, em março de 1998, que se configura “ato lesivo não só ao patrimônio material do Poder Público, como à moralidade administrativa, patrimônio moral da sociedade” 4. Desse modo, cabível seria ação direta de inconstitucionalidade face ao art. 8 da EC nº 19/1998, promulgada em junho do referido ano, uma vez que, por tudo já exposto, viola explicitamente o princípio da moralidade, estando também em contradição com o teor da Reforma Administrativa e com os objetivos honestos e comprometidos com a sociedade propostos por essa medida. 4

Ilação extraída do voto do Ministro Maurício Corrêa proferido no julgamento do RE 172.212-6/SP. STF. 2ª T.. Rel. Ministro Maurício Corrêa. j. 28/11/97. DJ 27/03/1998.

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7 O POSICIONAMENTO DO STF SOBRE O TEMA

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FIDΣS O STF, contudo, não parece ter unificado o entendimento sobre a matéria, visto que, em maio de 2007, o pedido de ação direta de inconstitucionalidade, nº 3599 5, impetrado pelo então Presidente da República, Luís Inácio da Silva, foi indeferido. O Congresso por meio de norma específica das respectivas Casas Legislativas concedia majoração de remuneração a seus servidores no valor de 15% (quinze por cento). O Egrégio Tribunal compreendeu que houve vício de iniciativa na ADI 3599, uma vez que o processo de aumento de remuneração não violou nenhum artigo constitucional nem o princípio de separação dos poderes, conforme voto 6 do ministro relator Gilmar Mendes. De fato, a iniciativa para a majoração dos proventos dos membros do Congresso Nacional não tem nenhum vício do ponto de vista formal, mas o tem no quesito material, por afrontar o princípio da moralidade, como já foi explicitado. No caso em questão, é importante perceber que o Egrégio Tribunal, apesar de ter entendido, já em 1998, que a fixação de subsídios numa mesma legislatura se configura ato lesivo ao Poder Público e à moralidade, nada fez em relação ao art. 8º da EC nº 19/1998 e às consequências desastrosas e vergonhosas que ela provocou: aumentos indiscriminados, reiterados e desrespeitosos da remuneração dos membros do Congresso Nacional, em desacordo com as necessidades e a realidade da população.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante os argumentos já expostos, conclui-se que, apesar de a Reforma Administrativa

fiscal e tributária que se alastrava em função do neoliberalismo, essa medida foi deturpada em seu art. 8º. O Senado e a Câmara Legislativa suprimiram um excerto do texto constitucional com o escopo de facilitar o procedimento de majoração de sua remuneração por meios lícitos, contudo, antiéticos. Muitos anos se passaram e esse vício material presente na EC nº 19/1998 não teve a devida atenção por parte dos juristas, passou despercebido pelo crivo de quem avaliou e congratulou a Reforma Administrativa.

5

STF. ADI 3599. Rel. Ministro Gilmar Mendes j. 21/05/2007. DJ. 28/09/2007. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=486694>. Acesso em: 26 jul. 2011. 6 Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%20677>. Acesso em: 25 jul. 2011.

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ter sido proposta no intuito de melhorar o aparato estatal brasileiro frente à crise econômica,

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FIDΣS O estudo empreendido neste artigo sob a ótica do princípio constitucional da moralidade, da teoria da Tripartição dos Poderes e do Abuso de Direito comprova que, de fato, a alteração impetrada à Constituição Federal constituiu ato desonesto. Cabe, portanto, processo de Controle de Constitucionalidade por meio de Ação Direita de Constitucionalidade genérica, uma vez que a essência dessa alteração, seu caráter material, vai de encontro à moralidade. É inaceitável que tamanha afronta a um princípio constitucional permaneça no ordenamento jurídico brasileiro, favorecendo atos inescrupulosos por parte dos agentes públicos de mandatos eletivos, que passam a receber quantia vultosa enquanto a maioria da população brasileira sobrevive com o valor irrisório de R$ 545,00. É de extrema necessidade, portanto, que o STF revise tão relevante matéria para que ações imorais dos Deputados Federais e Senadores não sejam legalizadas no ordenamento jurídico brasileiro. Espera-se que esse tema tão importante volte a ser discutido nas academias, haja vista que apenas por meio do debate esse assunto ganhará visibilidade perante o Egrégio Tribunal e, assim, as medidas cabíveis contra a imoralidade, que corrói as bases do Estado Democrático de Direito Brasileiro, poderão ser tomadas.

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THE CONSTITUTIONAL AMENDMENT Nº 19/1998: THE IMMORALITY AT THE ADMINISTRATIVE REFORM

ABSTRACT This article aims to analyze the Constitutional Amendment nº 19/1998, known as the amendment of the Administrative Reform.

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Efetivação. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 190, p. 1- 44, out./dez.

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FIDΣS This measure, although the benefits brought to the estate’s bureaucratic machine, also introduced, in its 8th article, a normative enunciation corrupted by immorality. The critical studying of this theme was accomplished by instruments like the constitutional principal of morality, the Montesquieu’s separation of powers, the doctrine about abuse of rights and the understanding of the brazilian Supreme Court about the subject. As conclusion, infers that the cited amendment may suffer Constitutional Control, because of its material vice in its essence. Keywords: Constitutional Amendment nº 19/1998. Administrative

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Reform. Immorality. Brazilian National Congress.

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FIDΣS Recebido 01 ago. 2011 Aceito 29 out. 2011

INFLUÊNCIA DO ESTOICISMO SOBRE MARCO TÚLIO CÍCERO E O PENSAMENTO JURÍDICO ROMANO Françoise Dominique Valéry

RESUMO O pensamento jurídico romano deve muito a Cícero e a sua apologia da Lex como expressão da ratio naturalis, sempre igual por toda parte, determinando o que deve ser feito e o que deve ser evitado. Tendo como metodologia de base a pesquisa bibliográfica, o presente estudo apresenta inicialmente as diferenças entre filosofia grega e romana, situa rapidamente a ética estóica e aborda aspectos da vida e obra de Cícero, principalmente a determinação da lei natural sobre a conduta moral e ética do homem e o seu questionamento entre o justo por natureza e o justo por lei ou convenção. Palavras-chave: Estoicismo. Direito natural. Jusfilosofia. Cícero.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa sobre a influência do Estoicismo sobre Marco Túlio Cícero e o pensamento jurídico romano. Ao estudar as características da filosofia do Direito em Roma, nota-se que um dos principais destaques diz respeito à contribuição de Marco Túlio 

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduada em História, pela Université Aix Marseille II (UAM) (França), e em Línguas Estrangeiras aplicadas, pela UAM. Mestre em História Contemporânea, pela UAM, em Urbanismo, pelo Institut d´Aménagement Regional (IAR) (França), e em Antropologia, pela UFRN. Doutora em Planejamento Urbano e Regional, pelo IAR. Pós-doutora, pela Ecole d´Architecture Marseille Luminy (EAML) (França). Professora do Departamento de Arquitetura da UFRN. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4209389784311678>.

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Direito romano.

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FIDΣS Cícero para a criação de uma tradição filosófica romana de cunho sincrético, já que ele teve acesso às varias doutrinas que circulavam pelo império romano naquela época. Sofistas, discípulos de Platão e Aristóteles, e principalmente os estóicos influenciaram o pensamento do grande orador, especialmente atento à determinação da lei natural sobre a conduta moral e ética do homem. Pois, naquela época, se repete em Roma o grande questionamento acerca da distinção posta na Grécia entre Direito Natural e Direito Positivo. Filósofos e juristas romanos indagam acerca do que seria mais apropriado: o justo por natureza ou o justo por lei? Neste debate, Cícero vai se posicionar, fazendo a apologia da Lex como expressão da ratio naturalis, sempre igual por toda parte, que determina o que deve ser feito e o que deve ser evitado, portanto tecendo um elo entre consciência natural, a ética e a prática da justiça. É por este motivo que se faz importante o estudo do pensamento de Cícero, já que, com suas reflexões e produção intelectual, ele desempenhou o papel de articulador entre as várias correntes filosóficas e de sistematizador de uma forma de pensamento que marcou profundamente o seu tempo. O trabalho foi realizado tendo como metodologia a pesquisa bibliográfica, a coleta de informações presentes em livros da Biblioteca Central Zila Mamede e em sites eletrônicos, a leitura das obras e sistematização dos dados para servir de embasamento a reflexão pessoal. No presente estudo, apresentam-se em primeiro lugar as diferenças entre a filosofia grega e a romana, como correntes de pensamentos diversos do mundo antigo mas que se interpenetram por força dos movimentos dos homens e da circulação das idéias, o que explica o contexto no qual Cícero cresceu e atuou. Logo a seguir, situam-se rapidamente o estoicismo,

elementos da vida e obra de Cícero. Finalmente o trabalho focaliza a influência do estoicismo sobre o pensamento de Cícero, e o legado deixado por Cícero ao direito e a filosofia romana.

2 DIFERENÇAS

ENTRE A FILOSOFIA GREGA E ROMANA E SUAS

CONTRIBUIÇÕES PARA O DIREITO.

É por demais conhecida a nítida diferença entre a filosofia grega, voltada para a reflexão abstrata, na busca da essência do pensamento e da justiça, com seu leque de escolas e contribuições, e a filosofia romana, que “não se deixa arrastar para a especulação”, caracterizando-se “pela ausência de grandes abstrações e pela elaboração sistemática de

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a origem da escola estóica e certos aspectos da ética estóica. Então, abordam-se alguns

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FIDΣS doutrinas diferentes aplicadas a ordem dos fatos”, como afirma José Cretella Junior (1999, p. 104). Ao contrário dos pensadores gregos mais voltados para a introspecção filosófica e espiritual, é habitual retratar os romanos como pensadores que se destacam pela busca dos aspectos mais práticos e utilitários das coisas, colocando o Direito a serviço de seus desígnios de dominação do mundo e imposição da Lex romana aos povos vencidos e incorporados ao domínio romano. Por esse motivo, costuma-se afirmar que a filosofia romana não se preocupou tanto em criar categorias abstratas de pensamento filosófico ao estilo platônico ou aristotélico, voltando-se para a realidade, incorporando dos povos conquistados (dentro eles, a Grécia) tudo que podia lhe ser útil e criando assim um sistema filosófico sui generis, feito de amalgamas e reformulações cuja utilidade prática era evidente. Por força das conquistas, as influências mais ecléticas possíveis adentraram Roma, sendo retrabalhadas pelos pensadores romanos ao longo de cada período histórico. Dentre elas, as idéias vindas do Oriente, do Norte da Europa, do Mediterrâneo, da Grécia próxima, floresceram e incorporaram-se aos mais variados gêneros artísticos, literários e jurídicos. Nesse sentido, destaca Cretella (1999, p. 106) que “a influência dos pensadores gregos é constante, apontando-se, aqui e ali, nas definições, nos exemplos, nas colocações, traços do pensamento aristotélico, platônico, socrático, estóico e epicureu”. No meio desse caldo de idéias filosóficas e jurídicas, as doutrinas helênicas assumiram certa importância em Roma, destacando-se principalmente a corrente estóica que chegou a influenciar vários pensadores e homens políticos tais como o imperador romano

estudo.

3 A ESCOLA ESTOICA, SUA ORIGEM: ALGUNS ASPECTOS DA ÉTICA ESTÓICA O estoicismo é uma doutrina que teve os seus antecedentes na Escola Cínica 1. Fundada por Zenão de Cítio (335-263 a.C), a escola deve o seu nome ao local (o Pórtico com 1

A Escola cínica teve como representantes Antístenes (445-370 a.C) e Diógenes (413-323 a.C). Para eles, os homens deviam limitar as suas necessidades e depender menos das coisas. Cada cidadão deveria agir livremente e desatar os laços que o prendiam ao Estado e se transformar em cidadão do mundo (cosmopolitismo). A atenção dos homens deveria voltar-se para as leis da virtude e não para os costumes e leis impostas pelo Estado. Pregaram o retorno ao primitivo estado de natureza (NADER, 2000, p. 112).

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Marco Aurélio (121-180 d.C.), Sêneca (4 a.C-65 d.C.) e Cícero (106-43 a.C), objeto de nosso

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FIDΣS pinturas ou Stoa poikile) onde seus seguidores costumavam se reunir na Ágora de Atenas. A sua doutrina, sistematizada por Crisipo no século III a.C., se expandiu por toda a Grécia e mais tarde no mundo romano. Segundo relata Paulo Nader (2000), sob a influência de Heráclito, os estóicos adotaram uma filosofia panteísta, sustentando que o universo seria conduzido por um princípio geral, logos, a razão. Assim sendo, o mundo da matéria estaria impregnado de racionalidade, e o homem seria essencialmente racional. Assim como os cínicos, os estóicos pensavam que o homem deveria viver de acordo com a natureza, em busca de aperfeiçoamento espiritual e racional, superando as suas paixões e os condicionamentos sociais externos. “Estando o universo animado pela razão, está seria a fonte suprema a orientar os homens e suas leis” (NADER, 2000, p. 113). Há certa unanimidade entre os estudiosos para afirmar que a ética estóica postulava a independência do homem em relação a tudo o que o cerca, mas, ao mesmo tempo, no sentido de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais. Trouxe como novidade a preocupação filosófica e ética com o conceito de dever. É justamente este apego dos estóicos para temas tais como razão, dever, felicidade, sabedoria e autonomia que encontrou ressonância com o universo intelectual romano, numa Roma então agitada por muitos conflitos políticos (passagem da República ao Império) e morais (degradação dos costumes antigos, crise dos valores romanos, invasão das influencias orientais), em busca de novo caminho. Como mostra o trecho a seguir: De tudo aquilo sobre que versam as discussões dos filósofos, nada tem mais valor

baseia na opinião, senão na natureza. Isto é evidente se se considera a sociedade e a união dos homens entre si. Pois nada é tão igual, tão semelhante a outra coisa, como cada um de nós aos demais. Por isso se a depravação dos costumes, a vanidade das opiniões e a estupidez dos ânimos não retorcesse as almas dos débeis e as fizesse gerar em qualquer direção, nada seria tão semelhante a si mesmo como cada um dos homens a todos os demais" (Cícero, “As Leis”, Livro I, 10, 28-29)2.

Com efeito, estava se difundindo em Roma uma filosofia oriental bastante diferente de sua principal concorrente, a proposta epicurista. Sabe-se que foi graças a um discípulo de Posidônio de Apaméia (135-51 a.C), fundador de uma escola estóica em Rodes, e a Panaécio 2

Original contido na obra de Cícero “As Leis” citado por Evaldo Pauli (1997) no texto “O legado filosófico helênico-romano”. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/HelRom/2642y370.html>. Acesso em: 18 abr. 2011.

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que a plena inteligência de que nascemos para a justiça e de que o direito não se

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FIDΣS de Rodes (185-112 a.C) que o estoicismo conseguir penetrar e se expandir para dentro das fronteiras romanas (BITTAR; ALMEIDA, 2007, p. 157). Enquanto várias correntes filosóficas estavam conquistando grande número de discípulos, foi o estoicismo que obteve maior penetração nos meios intelectuais, sobretudo com a divulgação das obras de Cícero, Sêneca, Marco Aurélio e Epíteto. Segundo Nader (2000), essa notável influência da Escola de Zenão de Cítio explica-se, em parte, pelo caráter austero dos romanos, que se identificaram muito rapidamente com a linha ética daquela filosofia. Os Estóicos chegaram carregando um discurso bastante novo na agitada Roma da época : o do ideal de homem sábio, a saber daquele que vence todas as suas paixões e se livra das influências externas, e que, obedecendo a suas convicções, atinge um estado de autentica liberdade. “Sábio é o homem que, retraindo-se desse mundo, contra o qual nada pode, busca refúgio em si mesmo. Destarte, torna-se senhor de si, vive sem perturbação, na ataraxia” (ULMAN citado por BITTAR; ALMEIDA, 2007. p. 158). Costuma-se definir a ética estóica como uma ética da ataraxia, e o filósofo estóico como profundo respeitador do universo, de suas leis cósmicas e de si mesmo. Bittar e Almeida (2007. p. 158) também afirmam que isto acontece porque, em primeiro lugar, o sábio deve buscar se conhecer e conhecer suas limitações, de modo a ser capaz de alcançar a ataraxia, a saber “um completo estado de harmonia corporal, moral e espiritual, por saber distinguir o bem do mal”, não se deixando abalar excessivamente nem pelo bom, nem pelo ruim, que possa acontecer com ele, já que, uma vez senhor de sua harmonia interior, deve guardar um “estado imperturbável diante das ocorrências externas”. Tal atitude era o resultado de profunda introspecção, seguida de tomada de posição

conhecimento, estava a crença numa lei natural que domina tudo e todos e que se reflete na consciência individual de cada um. Para o filósofo estóico, o ser humano participa de uma lei universalmente válida, que lhe impõe viver segundo essa mesma natureza para poder ser feliz e se realizar pessoalmente, pois, segundo Bittar e Almeida (2007, p. 156) “a natureza humana só se pode realizar uma vez observadas as regras do cosmo e a ordem divina das coisas”. Os estóicos professavam portanto uma doutrina de caráter monista, onde os seres têm apenas uma natureza e todas as pessoas são parte de uma mesma razão universal, o logos. Ensinavam que o homem deve desligar-se das afeições, do mundo exterior e viver conforme a natureza concebida pela razão. Portanto, esta postura filosófica levou os discípulos a enxergar a existência humana com grande dose de fatalismo, tendo em vista que nada acontece por

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acerca do papel do homem sábio, filósofo num mundo em plena mudança. Na raiz deste

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FIDΣS acaso e que o destino de todos está traçado. Assim sendo, tanto as coisas felizes como as desgraças são coisas naturais e devem ser aceitas com naturalidade. Ao trazer essa reflexão sobre o sentido da vida e da ação humana, a ética estóica teve repercussões diversas sobre os romanos. De um lado, pode-se afirmar que o estoicismo é antes de tudo uma doutrina moral extremamente interessante, baseada na busca da perfeita harmonia (a ataraxia) a partir do conhecimento que o homem tem das coisas naturais, sendo a realização de toda ação fonte de mera satisfação intelectual e de felicidade interna. Deste modo, o homem estóico é um ser dotado de razão: conhece, possui e acumula conhecimento de varias fontes. Sua conduta se pauta pela ética: sabe o que deve fazer e não fazer, de acordo com o seu conhecimento da natureza das coisas. Por outro lado, esse mesmo pensamento favoreceu a emergência de uma ética despreocupada com as conseqüências de seus atos e com a sua aplicação ao mundo político ou jurídico, introduzindo assim no pensamento romano uma forma de descrédito na ação humana. Os doutrinadores estóicos não se interessavam pelas coisas da cidade, nem pela sua organização política. O homem sábio desinteressava-se pelas questões políticas, olhando apenas para si, no intuito de encontrar a razão universal que reina sobre o mundo, adotando uma moral indiferente aos prazeres e aos deveres propiciados pela vida social e política da época. Constata-se assim que o estoicismo, enquanto atitude mental de aceitação do destino, gerou no ser humano uma busca pela realização racional e espiritual, interna e individual, utilizando-se de técnicas voltadas para a introspecção. Separados espiritual e intelectualmente do convívio com outros homens, os adeptos da nova filosofia procuravam o isolamento,

sobre o pensamento jurídico romano e para o fortalecimento de uma ética jurídica, com sua compreensão de direito como um conjunto de normas éticas, universalmente válido, atemporal, graças à interpretação que Cícero deu dos ensinamentos estóicos.

4 MARCO TÚLIO CÍCERO

De todos os pensadores romanos que deixaram sua contribuição ao estudo da filosofia do Direito, quem se destaca é sem dúvida Marco Túlio Cícero (106-43 a.C), homem

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ostentando certo desprezo pelas questões políticas. Apesar disto, contribuíram para a reflexão

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FIDΣS de imensa versatilidade e talento e de incontestável importância para o estudo do Direito 3. Como veio de família abastada, sua educação foi ampla, colocando-o em contato com várias culturas. Como magistrado (pretor) e político (senador), participou ativamente da vida pública. Como filósofo, pertence à escola estóica, cujos ensinamentos se refletiram na ampla obra que deixou. Por esses motivos, destaca-se a influência do estoicismo sobre o pensamento de Cícero, e o legado deixado por ele ao direito e a filosofia romana. Entre as obras políticas de Cícero, salientam-se a “De República”, de inspiração platônica, que disserta sobre o problema da maior forma de governo e concluí que o melhor governo é o da república romana, e a “De Legibus”, que se articula com a obra anterior, quando Cícero discute a problema das relações entre direito positivo e justiça ideal. Entre as obras filosóficas, citam-se obras onde Cícero discute a doutrina estóica, como por exemplo, a “Acadêmica”, que retrata a evolução da filosofia grega desde Sócrates até Arcesilau (fundador da Academia), resumindo as doutrinas gregas e incentivando a prática da dialética sob forma de diálogo sobre o problema do conhecimento. Ao modo dos gregos, Cícero responde às perguntas dos discípulos reunidos em torno dele, na sua casa de campo em Túsculo, preocupados com a questão da espiritualidade da alma, de sua imortalidade, e da virtude. Deste modo, pode se afirmar que: Não se filiando de maneira total a nenhuma Escola, embora tenha sido discípulo do estóico Posidônio, revela-se Marco Túlio Cícero um eclético, com objetivos práticos, notando-se em seus escritos o aspecto formal do platonismo, sem o desprezo de elementos evidentes do aristotelismo e do estoicismo (CRETELLA,

Não há dúvida quanto à importância de Marco Túlio Cícero para o desenvolvimento da filosofia do direito, ao transmitir e discutir as doutrinas estóicas e a questão do direito natural. É de Cícero a definição do direito natural, na “De Republica”: “Existe uma lei verdadeira conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável e eterna” 4. Para 3

De acordo, com Renato Ambrosio, em artigo intitulado “Cícero e a história”, esse pensador, escritor e orador eloqüente, foi também sistematizador, epistógrafo e retórico. Sabe-se que escreveu perto de duas dezenas de tratados e ensaios filosóficos, dos quais somente doze (na maior parte fragmentados) chegaram até nossos dias . Por inclinação pessoal e acadêmica em estudos sobre história social da velhice, já conhecia bem o “De Senectude” (onde Cícero faz o elogio da velhice) e “De Amicitia” (onde Cícero mostra a importância da amizade). Textos que se tornaram famosos pelo alcance universal das palavras do escritor romano. AMBROSIO, Renato. “Cícero e a história”. Revista de História, São Paulo, n. 147, dez. 2002. Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0034-83092002000200001&script=sci_arttext>. Acesso em: 19 ago. 2011. 4 Tradução livre de“Est quaedam ver Lex, naturae congruens, diffusa in omnes, constantes, sempiterna. Original encontrado na obra de Cícero “De republica” citado por Cretella, 1999, p. 113.

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1999. p. 108).

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FIDΣS Cícero, as leis naturais de inspiração divina, observadas em quase todas as nações, permanecem sempre firmes e imutáveis, enquanto as leis dos homens costumam mudar de cidade para cidade, sob influência dos governantes ou por causa de leis posteriores, como mostra o texto a seguir: Existe uma verdadeira lei, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna; sua voz ensina e preserva o bem; suas proibições afastam o mal. Ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem anulada, nem alterada em parte. Nem o povo, nem o senado podem dispensar-nos de seu cumprimento; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete, não é uma a lei em Roma, e outra em Atenas, uma agora, e outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obriga entre todos os povos e em todos os tempos; um só será sempre o seu imperador e mestre, Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-lo sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se de seu caráter humano e sem deixar de atrair sobre si as penas máximas, ainda que tenha conseguido evitar os demais suplícios (Cícero, “De Republica”, Livro III, 17)5.

Havendo, portanto, de um lado, uma razão abstrata e suprema acima dos homens, uma lei não escrita, extraída da natureza e que se impõe a todos; por outro lado, a repercussão deste idéia no direito romano, que não era praticado somente por filósofos ou sacerdotes, mas onde a prática da aplicação da Lex romana se dava através dos jurisconsultes, cujas decisões serviam de embasamento para dizer o direito no caso concreto. Deste modo, as idéias estóicas imediatas e necessárias da racionalidade humana” (REALE, 2010, 629). Para Cícero, ainda em “De republica” (Livro III), o Direito Natural seria “a reta razão em concordância com a natureza” e por esse motivo seria eterno, imutável e universal. Opondo-se a idéia de encontrar o justo nos costumes e leis vigentes, proclamou que a noção do justo vinha da natureza e que esse valor antecedia as leis positivas. Assim, embora não fosse idêntico em todos os lugares, o sentimento de justiça seria comum a todos os homens e a lei seria algo derivado da natureza (NADER, 2000, p. 115). Explorando mais o pensamento de Cícero, verifica-se que, ao exemplo dos estóicos, não considera o ser humano como isolado do mundo ou superior a este. O homem é apenas 5

Original contido na obra de Cícero “As Leis” citado por Evaldo Pauli (1997) no texto “O legado filosófico helênico-romano”. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Hel-Rom/2642y370.html >. Acesso em: 18 abr. 2011.

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vão ser utilizadas para expressar “certos princípios gerais de conduta, como exigências

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FIDΣS uma parte do universo, do cosmos; por isso precisa manter contato com a Natureza, já que sem essa integração, não há felicidade porque o mundo fica sem sentido. Como esclarece José Manuel de Sacadura Rocha (2007, p. 37), esse modo de pensar reflete-se na prática da justiça: a moral que se vai encontrar é aquela que nos dá consciência de tudo que nós cerca, de igualdade na medida em que somos seres naturais e temos todos os mesmos direitos. Os homens que têm o poder e podem usá-lo não se dão conta de como se afastaram da integração com o universo. É nesta integração que os homens saberão como praticar o bem e a justiça e terão a dimensão exata de sua fragilidade e o sentido de usar a lei para assegurar a igualdade e o bem estar de todos os cidadãos, de acordo com as leis da natureza.

Decorrentes dessa relação entre homem e natureza e do reconhecimento dos seres humanos como portadores de direitos, estão os fundamentos da jusfilosofia enquanto diretiva de que os homens têm direitos a serem alcançados e respeitados independentemente da variedade dos sistemas jurídicos. Assim, constrói-se o caminho do jusnaturalismo e sua aplicação ao direito romano, utilizando-se a naturalis ratio na busca de solução jurídica mais apropriada à realidade concreta. De um lado, tem-se o direito natural, universal em duplo sentido: universal por ser comum a todos os homens e povos, e universal porque determina o que sempre é bom e justo. Do outro lado, o direito positivo romano (ius civile) que se refere ao útil, e por isso é peculiar de cada povo e diferente em cada um deles, já que o útil varia no tempo e no espaço. Assim sendo, o direito proveniente da naturalis ratio recebeu a denominação de ius naturale

direito próprio e especifico dos homens). Essa forma de ver o direito não vai deixar de influenciar o pensamento jurídico posterior6. Não somente pensadores romanos como Ulpiano ou Seneca, mas outros que enveredaram na reflexão acerca de uma ética moral e política norteada pela essencialidade e universalidade dos direitos ligados à condição humana. Estava traçado o caminho que, “depois de uma evolução multissecular”, transformou essas idéias em “direito natural, direito internacional e direito privado de cada Estado” (HERVADA, 2008, p. 342).

6

Segundo Miguel Reale (2010, p. 629-630), parte do pensamento estóico influenciou a formulação de uma doutrina ciceroniana que contemplou a distinção entre jus naturale e jus gentium , enunciada por Cícero como teoria tripartite (jus civile, jus gentium ac jus naturale) que depois iria ser defendida especialmente por Ulpiano.

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(enquanto direito comum a todos os homens) em complementação ao ius gentium (enquanto

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FIDΣS 5 CONCLUSÃO

É possível concluir que o estoicismo, enquanto corrente filosófica que estabeleceu suas bases na Grecia e se expandiu durante mais de cinco séculos (300 a.C. - 200 d. C.) no mundo romano, não alcançou as alturas da filosofia de Platão e de Aristóteles, mas, em parte graças às obras de Cícero, contribuiu à formação de parte da ideologia própria ao mundo romano. Como propiciou a assimilação de elementos ecléticos, o estoicismo adquiriu uma nova função, como sistema ético sobre o qual a República romana pretendia assentar-se. Contribuiu para o surgimento de uma experiência própria na aplicação do Direito em Roma, o que se refletiu na da distinção entre lícito moral e lícito jurídico, bem como entre aequitas e utilitas. O Direito teria assim como finalidade traçar os limites da ação dos indivíduos, não lhes impondo o dever de fazer algo, mas o respeito a certos princípios tais como o ideal de alcançar a felicidade com fiel subordinação à natureza, aos ditames da razão. A doutrina ética, como forma de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade, representou o principal apelo do estoicismo nesse período. O homem devia viver de acordo com a razão e ser indiferente a desejos e paixões, já que a verdadeira felicidade não está no sucesso material, mas na busca da virtude, da justiça, da honestidade. Alegrias e infortúnios devem ser igualmente aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Além disso, o homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua atuação estiver voltada para o bem de seu povo. Esse aspecto aproximou a concepção política romana da grega, tendo em vista a importância que representou o valor da vida na Urbs como o foi na Polis. Durante o período imperial romano, enquanto durou a pax romana, observando o

Aurélio utilizaram-se dos ensinamentos dos estóicos para criar os alicerces teóricos que deveriam dignificar o poder imperial. Deste modo, pode-se afirmar que a doutrina estóica serviu de base ontológica ao Direito Romano e que sua filosofia serviu também de grande preparação para o Cristianismo, tendo em vista a adoção de alguns preceitos de sua doutrina moral pela igreja cristã. O legado estóico foi bastante amplo, não somente durante o período de declínio do Império Romano e a Idade Média, mas também na Reforma e no Renascimento, quando o humanismo e o naturalismo estóicos ressurgiram e se fizeram presentes em vários autores (Montaigne, Pascal), na moral cartesiana, no monismo de Spinoza e no vitalismo de Leibniz. Por tanto, não é por acaso que o estudo do direito romano e a questão de moral e ética são ainda debatidos nos cursos de filosofia do Direito, tendo em vista a força dos

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fastio e a dissolução dos princípios morais da sociedade romana, Sêneca, Epicteto e Marco

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FIDΣS argumentos expressos em favor da existência ontológica de um núcleo de realidade jurídica inerente à pessoa humana e à sociedade, igual em todos os homens, e o tamanho da polêmica que se criou em relação à afirmação da superioridade do Direito Natural sobre o Direito Positivo.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Eduardo Carlos. ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2007.

CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

PAULI, Evaldo. O Legado Filosófico Helênico-Romano. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Hel-Rom/2642y370.html>. Acesso em: 18

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

ROCHA, José Manuel de Sacadura. Fundamentos de filosofia do Direito: da antiguidade a nossos dias. São Paulo: Atlas, 2007.

ULMAN, Reinholdo Aloysio. O estoicismo ético de Marco Aurélio. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 14, fasc. 169, p. 40-50, jan./mar. 1993.

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abr. 2011.

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FIDΣS THE STOICISM´S INFLUENCE OVER MARCO TÚLIO CÍCERO AND THE ROMAN LEGAL THOUGHT

ABSTRACT The Roman legal thought owns a lot to Cícero and his ratio naturalis expression as an apology to Lex, always the same everywhere, ascertaining what needs to be done and what needs to be avoided. The study, methodologically based on bibliographical research, shows initially the differences between Roman and Greek philosophy, quickly situates the Stoic ethic and addresses Cícero’s work and life aspects, emphasizing mostly the determination of the natural law over human being’s moral and ethic conduct and its questioning between the “fair by nature” and the “fair by law or convention”. Keywords: Stoicism. Natural Law. Jusphilosophy. Cícero. Roman

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Law.

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FIDΣS Recebido 19 fev. 2011 Aceito 26 out. 2011

DE QUE LADO ESTÃO OS DIREITOS HUMANOS? Helena Cristina Aguiar de Paula

RESUMO O equivocado entendimento sobre o que são os direitos humanos, disseminado entre população e policiais, é responsável pela hostilidade com a qual se trata do tema. Entretanto, tais direitos não podem ser confundidos com os órgãos que os promovem. Em razão disso, este trabalho propõe a educação voltada ao esclarecimento do conceito de direitos humanos como forma de propagar sua aceitação, especialmente por policiais. Para tanto, pesquisas em artigos e livros, principalmente de autores profissionais de segurança pública, foram utilizadas. O conhecimento provocará a diminuição da cultura de violação dos direitos da pessoa humana.

“Temos de nos tornar na mudança que queremos ver”. (Mahatma Gandhi)

1 INTRODUÇÃO

Parcela da população costuma se referir aos direitos humanos como uma instituição protetora dos direitos de marginais e da impunidade, contra a atuação de policiais que buscam eliminar tais elementos da sociedade. Talvez influenciada por alguns órgãos mais críticos a 

Graduada em Direito, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Oficiala de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/9108485094969039>.

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Palavras-chaves: Direitos humanos. Polícia. Educação.

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FIDΣS abusos policiais, retratados pela mídia, que parecem se preocupar mais com a dignidade da pessoa do bandido que de qualquer vítima, familiares desta e policiais que se arriscam cotidianamente no combate a criminosos. O que se veicula nos canais de comunicação, na maioria das vezes, são as organizações de direitos humanos atuando em defesa de sujeitos em contrariedade com a lei, arraigando a ideia de que apenas pra proteger bandido servem esses órgãos. Ademais, percebe-se a ausência desses agentes dos direitos humanos em quartéis e centros de polícia, buscando assistir profissionais de segurança pública que ficaram incapacitados em combate, famílias órfãs desamparadas pelo Estado, ou em situações geradas por despreparo técnico e falta de acompanhamento psicológico desses policiais em permanente condição de estresse. Neste momento, o policial se afasta ainda mais da ideia de necessidade de preservação dos direitos humanos. Diante dessa demonstração de desigualdade, a polícia passa a rechaçar instituições de direitos das quais – esquece – a própria entidade policial faz parte. Os direitos humanos, então, se juntam ao rol de inimigos da polícia, de forma incoerente e preconceituosa, tendo em vista que são para preservar os direitos de toda a pessoa humana, em que felizmente ou infelizmente se incluem os criminosos, que existe a polícia em um Estado democrático de direito. O desconhecimento (ou erro conceitual) sobre a temática dos direitos humanos, sob o enfoque político-ideológico, e a discordância dos procedimentos práticos e legais utilizados por seus órgãos são fatores que desencadeiam uma reação de contrariedade por parte da polícia.

procura explicar melhor o sentido do termo direitos humanos. No Brasil, o enfrentamento do tema direitos humanos e segurança pública ainda é escasso. Por isso, foi crucial para esta pesquisa a obra do professor e ex-secretário Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça, Ricardo Balestreri, que em seu livro “Direitos humanos: coisa de polícia”

buscou

harmonizar

a

atuação

policial

com

o

respeito

aos

direitos

humanos. Ainda,foram pesquisadas obras científicas sobre o tema. Ao final, o título deve ser lido: “Afinal, de que lado está a polícia?”.

2 ENTENDENDO O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS

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Esse trabalho, voltado especificamente para profissionais de segurança pública,

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FIDΣS Nas primeiras aulas de Direito Constitucional já se falavam em direitos e garantias fundamentais, algo nunca antes visto até o advento da Constituição Federal de 1988. O marco no constitucionalismo brasileiro se deveu a uma tendência de proteção a pessoa humana, no âmbito internacional pós-Segunda Guerra Mundial. Esses direitos, mencionados em maioria no artigo 5º da Constituição, são voltados aos brasileiros e estrangeiros residentes no País. Alguns autores preferem denominar certos direitos inerentes à proteção do indivíduo de liberdades públicas, direitos fundamentais da pessoa humana, garantias individuais. Outros utilizam a expressão “direitos humanos”, que apesar de sinônimo dos demais, produz um efeito mais forte e polêmico. Dalmo Dallari (1998, p. 07) explica que “a expressão ‘direitos humanos’ é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana”. Esses direitos ganharam destaque quando a necessidade de valorização do indivíduo alcançou dimensões mundiais. Adquiriram especial atenção ao longo dos séculos, inaugurada no Ocidente pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, marco da universalidade dos direitos fundamentais à liberdade e dignidade humana. Após, aprova-se, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reunindo os principais valores das três dimensões de direitos: direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos. Apesar de estas declarações não serem imbuídas de força normativo-jurídicas, abrangem todos os cidadãos, em todas as classes. Surgiram quando o humanismo político alcançou seu ponto mais alto. A Declaração das Nações Unidas de 1948, após findas as duas Grandes Guerras Mundiais e o período de extermínio nazista, conquistou, no tocante a exposição dos direitos e garantias, o que nenhuma Constituição ousaria lograr em um consenso universal.

internacional para compelir os Estados a incorporarem tratados que versam sobre direitos humanos. Na Constituição Federal de 1988 já se menciona tais direitos, decorrentes de tratados dos quais o Brasil seja parte, atribuindo-lhes o status de norma constitucional. É o que se depreende da leitura do art. 5º, §2º da Constituição Federal1. Nesse sentido, afirma Flávia Piovesan (2010, p. 55): Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a carta lhes confere o

1

Art. 5º [...] § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

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As atrocidades cometidas no período entre guerras vieram à tona, provocando clamor

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FIDΣS valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previstos pelo Texto Constitucional.

As normas decorrentes do direito internacional, cujos tratados o Brasil seja signatário, compõem o chamado “bloco de constitucionalidade”, de onde os legisladores e aplicadores do direito trazem a referência e o limite de atuação. Esse bloco transcende o que deixou escrito o constituinte brasileiro, inclui valores jurídicos que regem toda a comunidade internacional. Seguindo a evolução do constitucionalismo, chega-se a Constituição Federal de 1988, cujo epíteto de “Carta cidadã” já demonstra a preocupação que os parlamentares tiveram em positivar garantias óbvias, mas necessárias ao sepultamento do regime militar. Constata-se na leitura do art. 5º da Constituição Federal a disposição de alguns incisos, os quais ensinam que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido” (inciso XLV); “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (XLIX); “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (LVII); “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (LXIII); “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (LXV); dentre muitos outros. Nota-se que esses dispositivos possuem como destinatários imediatos pessoas que primeiro mito, o de que bandido não é cidadão 2. Péssima notícia aos simpatizantes do direito penal do inimigo de Günther Jakobs3. A ideia de que criminosos (inimigos) não merecem do

2

Com a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, ocorrerá a suspensão dos direitos políticos, pelo que dispõe o art. 15, III da CF. 3 Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico (radical), que sustenta que o Direito penal tem a função primordial de proteger a norma (e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No seu mais recente livro (Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente sua postura descritiva do denominado Direito penal do inimigo (postura essa divulgada primeiramente em 1985, na Revista de Ciência Penal - ZStW, n. 97, 1985, p. 753 e ss.), passando a empunhar (desde 1999, mas inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora (p. 47) dessa linha de pensamento. (GOMES, Luiz Flávio. Direito penal do inimigo. 10 de jan. de 2005. Disponível em < http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7B488C5029-7244-4D5C-BA7C-43441FDB80D0%7D_7.pdf>. Acesso em 28 de set. de 2011).

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cometeram crimes, ou que estão sendo acusados de cometer. Portanto, pode-se vencer o

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FIDΣS Estado as mesmas garantias humanas fundamentais, pois estariam fora do sistema, à luz do sistema constitucional brasileiro, seria manifestamente inconstitucional. Pelo menos a Constituição trata criminosos, sim, como indivíduos e ainda mais como sujeitos de direitos fundamentais. “A superação desses obstáculos envolve profissionais de segurança pública eficientes e atuantes, que tenham por referência primordial a ênfase na ação técnica, sem, contudo, abdicar ‘da eficiência e força na prevenção e repressão do crime’” (BRASIL, 2006, p. 51). A educação voltada aos policias vem dissolver a compreensão equivocada sobre o tema e, consequentemente, promover a mudança na cultura de violação dos direitos humanos. O que deveria ser disseminado na instituição policial, cujo escopo é garantir a ordem social, é que são estes os protagonistas na defesa dos direitos humanos, sob pena de se reduzirem a aglomerados de funcionários da violência, ou de corporativistas simpáticos à banalização do mal, sendo também seus produtores. Observa Santana da Silva4 (2004, p. da internet): A matéria Direitos Humanos até pouco tempo não fazia parte da grade curricular das escolas de formação policial no Brasil. O estudo dos Direitos Humanos nas polícias brasileiras surgiu da necessidade das instituições de segurança pública se adaptarem aos novos tempos democráticos, os quais exigiam mudanças profundas na máquina estatal. As constantes denúncias de violações sistemáticas dos Direitos Humanos daqueles que estavam sob a custódia da polícia e as pressões sociais para a extinção de alguns órgãos de segurança pública que desrespeitavam os direitos inalienáveis à vida e a integridade física, permitiram que, pelo menos, a discussão sobre o tema

Os profissionais de segurança pública, pois, cujo lema é servir e proteger, tem o dever de promover e respeitar os direitos de toda a pessoa humana. Para isso, devem compreender o sentido dos direitos humanos como os elementares de uma vida livre e digna de um indivíduo, grupo ou nação, protegidos nacional e internacionalmente. A falta de conhecimento sobre o tema leva alguns a associar certas entidades mais austeras quanto à proteção dos direitos humanos com o significado do que são essencialmente direitos humanos explícitos na legislação. Dizer que se é a favor dos direitos humanos

4

SILVA, Suamy Santana da. “Direitos humanos e só para proteger bandido?”. Março 2004. Disponível em <http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=2441> Acesso em: 16 ago. 2011.

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penetrasse através dos muros dos quartéis e dos prédios das delegacias.

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FIDΣS provoca reação imediata daqueles que visualizam e discordam da forma severa de atuação daqueles órgãos. Contudo, manifestar-se a favor de tais direitos não implica obrigatoriamente em corroborar os métodos e procedimentos de algumas entidades. Há uma manifesta diferença entre aqueles órgãos de proteção dos direitos humanos – compostos por militantes menos ou mais tolerantes à intervenção policial – e o conceito de direitos humanos enquanto declaração jurídica de proteção a pessoa humana. A população prefere se referir a “direitos humanos” tudo o que se intitula de direitos humanos, banalizando o tema e provocando a visível rejeição. Fernandes Neto5 (2009, p. de internet) aduz que: Diante da complexidade atual da segurança pública e da necessidade de promoção e defesa dos Direitos Humanos, a Matriz Curricular Nacional (MCN) surge como norte para a formação policial, ao criar a possibilidade de uniformização das ações formativas dos profissionais de segurança pública, fruto da nova cultura e gestão política da política de segurança pública, que considera a necessidade da transversalidade e da especificidade dos direitos humanos no processo de formação dos profissionais de segurança pública.

Séculos de luta garantiram, ainda que de forma tímida, direitos dos negros, das mulheres, dos idosos, dos deficientes físicos, dos índios, enfim, de grupos vulneráveis. Não há razão para hostilizar os direitos humanos, muito menos por aqueles que também são reconhecidos pelo Programa Nacional dos Direitos Humanos como um grupo vulnerável – os

3

SEGURANÇA

PÚBLICA

E

DIREITOS

HUMANOS,

O

QUE

DE

CONTRADITÓRIO NISSO?

A sociedade brasileira vive a era da pós-modernidade, dos avanços da tecnologia da informação e da economia. Entretanto, acompanharam-na uma nova geração de crimes

5

FERNANDES NETO, Benevides. “Adequação do ensino dos direitos humanos no curso de formação de soldados e o contexto atual da Segurança Pública”. 05 jan. 2009. Disponível em <http://www.lfg.com.br/artigo/20081217150712559.html>. Acesso em: 25 out. 2010.

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policiais.

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FIDΣS ligados ao consumismo capitalista que, aliada à falta de modernização das instituições policiais, permitiu o aumento da criminalidade, produzindo o cenário que vivemos hoje. Complicador é o entendimento que se tem sobre a presença e eficiência do Estado no campo da Segurança Pública, tal como se mostra no debate jornalístico da opinião pública. A população assiste ao despreparo do Estado e se vê obrigada a se proteger com as próprias armas e recursos. Para José Luiz Ratton (2000, p. 58) não se procura a Polícia, especialmente na periferia da sociedade, porque ela é ineficiente, ineficaz e arbitrária. Não se procura o Ministério Público e o Judiciário, especialmente na periferia da sociedade, porque são tão elitistas, que num contexto de escassez de informação e educação, não se sabe que estas instituições são as mediadoras legais e públicas dos desacordos privados dos indivíduos.

Diante de tal situação, quais medidas viriam como solução para o problema da segurança pública no Brasil? Pode-se sugerir o fortalecimento das instituições, capacitando os policiais a atuarem na prevenção e repressão aos crimes, remunerando-os dignamente; a criação de uma polícia desmilitarizada, tendo em vista não nos encontrarmos em situação de guerra e, portanto, não lidarmos com inimigos, mas com cidadãos; um sistema prisional que funcione, ou seja, puna e ressocialize o preso. A maior parte dos caminhos que levam a uma Justiça criminal, observa-se, envolve a intensificação do respeito aos direitos humanos. Segundo Ratton (2000, p. 58) “políticas de segurança pública democráticas e eficazes civis na periferia social”. A recuperação do Estado democrático de direito como principal agente de Segurança Pública é o primeiro passo para combater a violação dos direitos humanos. O cidadão comum passa a confiar nas instituições que reprimem e punem o criminoso, abandonando métodos de vingança privada. O segundo passo diz respeito à própria formação dos policiais, que também não acreditam na sua capacidade de colher provas licitamente, capazes de produzir um inquérito idôneo a condenação do criminoso. A própria polícia não acredita que o agressor será devidamente punido e termina usurpando o poder de jurisdição do Estado, reunindo em suas

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em um País como o Brasil significam primordialmente aumentar a densidade dos direitos

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FIDΣS mãos a competência de instruir, sentenciar, condenar e executar a pena, de forma arbitrária, ilegal e antiética. A época da ditadura militar é relembrada por alguns policiais como período em que a polícia era respeitada. A população temia a polícia pelas escancaradas cenas de arbitrariedade, o que talvez a fizesse “investigar” melhor, pelo menos oferecia resultados rápidos. Ilustra o professor Carvalho (2005, p. 160) que “o perigo comunista era a desculpa mais usada para justificar a repressão. Qualquer suspeita de envolvimento com o que fosse considerado atividade subversiva podia custar o emprego, os direitos políticos, quando não a liberdade do suspeito”. De longe parecia com a polícia de um estado democrático de direito. Por fim, para Ricardo Balestreri (2003, p. 21), Ao policial, portanto, não cabe ser cruel com os cruéis, vingativo contra os antisociais, hediondo com os hediondos. Apenas estaria com isso, liberando, licenciando a sociedade para fazer o mesmo, a partir de seu patamar de visibilidade moral. Não se ensina a respeitar desrespeitando, não se pode educar para preservar a vida matando, não importa quem seja. O policial jamais pode esquecer que também o observa o inconsciente coletivo.

Parece algo demasiadamente teórico as palavras de Balestreri, distante da realidade da prática policial. Talvez porque predomina na comunidade em geral a ideia de que o papel de promover os direitos humanos não cabe a polícia, e sim a essas ONGs ou entes do Estado preocupados com marginais e que tanto crucificam policias heróis justiceiros da sociedade. Levando em conta que os policiais são recrutados em meio a essa comunidade cheia de

cabeça desses policiais. Será que a maior problemática não está inserida na própria política de segurança pública? O que se vê é o controle sob a atividade policial – cuja fiscalização se mostra mais forte em casos de repercussão, menos atuante na periferia –, contudo, não se percebe o reconhecimento de seu trabalho, desmotivando os policiais e provocando-lhes uma equivocada inversão dos valores. Talvez tenha chegado a hora de se ver a segurança pública sob uma nova ótica, não como apenas a segurança do Estado ou defesa do patrimônio. Como defende Lúcia Lemos Dias (2010, p. 219), “assinala-se a necessidade de uma nova abordagem de segurança pública, caracterizada pela ampliação conceitual, de modo que sinalize a efetivação dos direitos

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conceitos arraigados, não poderia se manifestar diferentemente o preconceito contido na

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FIDΣS humanos de forma integrada para e com os cidadãos indistintamente”. Essa forma de compreender a segurança pública, associada à defesa social, vem datada da Constituição de 1988. Portanto, é preciso fazer valer finalmente o direito à segurança atrelado aos direitos humanos para todos neste país.

4 CONCLUSÃO

Para extirpar de vez o preconceito que perdura na mente da população de que direitos humanos e segurança pública não caminham juntos, precisa-se de uma educação presente e eficaz relacionada ao tema. Com relação especificamente aos profissionais de segurança pública, o ensino para transformação deve iniciar nas academias de polícia e cursos de formação. O abandono de práticas que instigam o ódio ao “inimigo” – atentar que o inimigo a que se referem é a própria sociedade – ainda presentes em alguns centros de formação de policiais é imprescindível e urgente. Aliás, crucial é eliminar das academias o insulto aos direitos humanos, promovidos por instrutores despreparados, desinformados e truculentos. Esse tipo de policial não pode mais ser tolerado. Para os profissionais da segurança, existe uma linha tênue entre agir com legalidade e atuar conforme seu senso de justiça que, algumas vezes, contraria a lei. O policial é, sobretudo, humano e é inviável exigir que todos os seus valores, que incluem amizade, compaixão, ira, sede de justiça, fiquem num plano alheio durante o horário de serviço.

em defesa da paz de todos, sob pena se tornarem pior do que aquilo que pretendem combater. A forma que devem agir diante de um suspeito, interrogado, indiciado, é de uma pessoa garantida e assegurada pela lei, que passará por um processo judicial garantidor e, ao final, decidir-se sobre a condenação. Antecipar esse processo é agir ilegalmente. Mas o grande culpado de tudo isso é o Estado. A falta de estrutura para resolver as demandas judiciais e para se confeccionar um inquérito hábil, com provas suficientes à condenação, causa à população a sensação de impunidade e aos policiais a necessidade de fazerem justiça com suas mãos, tendo em vista que de outra forma a justiça não proverá. O que resta fazer é apelar para a prevalência do conhecimento. O entender, o interpretar e o respeitar irão extrair do plano teórico os direitos humanos. Pois o grau de humanidade nas pessoas ditará o nível de evolução de um país.

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Contudo, tais profissionais devem-se considerar promotores dos direitos humanos,

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FIDΣS

REFERÊNCIAS

BALESTRERI, Ricardo Brisolla. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. 3. ed. Passo Fundo: Berthier, 2003.

BRASIL. Ministério da Justiça. A Matriz Curricular em Movimento: Diretrizes Pedagógicas e Malha Curricular. Brasília, 2006.

CARVALHO, José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil: o Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998.

DIAS, Lúcia Lemos. Segurança Pública numa Visão Ampliada. In: SANTORO, Emílio et al. (Org). Direitos Humanos em uma Época de Insegurança. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

Desafios. In: RIQUE, Célia (Org). A Polícia Protetora dos Direitos Humanos. Recife: GAJOP, 2000.

IN WHICH SIDE ARE HUMAN RIGHTS?

ABSTRACT The mistaken understanding of what human rights are, widespread among the population and the police, is responsible for the hostility that comes with the issue. However, these rights cannot be confused with agencies that promote them. As a result, this paper proposes

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RATTON, José Luiz. Crimes, Políticas de Segurança Pública e Cidadania: Dilemas e

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FIDΣS education aimed at clarifying the concept of human rights as a way of disseminating their acceptance, especially by police. Articles and books, mostly written by professionals in public safety, were used for that. The knowledge will lead to a decrease of human’s rights violation.

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Keywords: Human rights. Police. Education.

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FIDΣS Recebido 20 jun. 2011 Aceito 26 out. 2011

OS ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS DE PERELMAN: A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA RETÓRICA JURÍDICA Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira

RESUMO O trabalho faz uma exposição acerca dos conceitos quase-lógicos da argumentação jurídica desenvolvida por Perelman em conjunto com Olbrechts-Tyteca. Vale-se de suas conceituações práticas sobre a variabilidade da aplicação de regras de justiça aos casos jurídicos, desenvolvendo isso na sua expressão decisória, dando completude ao novel sistema-lógico do direito. Trabalham-se os argumentos quaselógicos e as suas mais diversas formas de compreensão de possibilidades de razoabilidade, adequação e de proporção com os demais elementos jurídicos. Funda-se um paradigma jurídico interpretativo nessas novas colocações argumentativas e se aponta os

tradicional, propondo uma nova retórica jurídica. Palavras-chave:

Argumentos

Quase-Lógicos.

Lógica

Jurídica.

Retórica. “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. “Sobre aquilo de que o homem não pode falar, então, deve-se calar”. (Ludwig Wittgenstein) 

Graduado em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tecnólogo em Controle Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Graduando do curso de Filosofia da UFRN. Mestrando em Filosofia pela UFRN. Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG). Lattes: <http://lattes.cnpq.br/8447713849678899>.

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caminhos meramente dogmáticos da costumeira lógica jurídica

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FIDΣS

1 INTRODUÇÃO

Lógica e direito são temas científicos que raramente são tratados em conjunto pela comunidade jurídica. O fundamento para essa dissensão usualmente se dá por certo comodismo, seja dos filósofos seja dos juristas, em não se debruçarem sobre essa confluência temática que junta esse ramo filosófico específico e a interpretação do direito, sustentáculo para o desenvolvimento desses estudos. Com essa premissa básica, o presente trabalho tem o escopo de apresentar os delineamentos básicos das novas conceituações lógicas (quase-lógicas) de Chaïm Perelman, nas quais ele propõe uma aproximação entre a realidade jurídica e a lógica a partir de argumentações dinâmicas e concretas, fundamentadas em possibilidades de alteração conclusiva de decisões judiciais e outros elementos decisórios do direito. A sua estrutura fundamental de pacificação social. Nessa toada é que serão expostos os argumentos quase-lógicos de Perelman, enfocando, primordialmente, a questão das compatibilizações lógicas providas por tais argumentos, e depois verificando as possibilidades de suas formulações em proposições jurídicas com base em regras de justiça para que a sua nova retórica seja algo plausível dentro da sistemática jurídica tal como ele a propôs. Essa abordagem quase-lógica de Perelman é que servirá de fundamento metodológico para que a temática das decisões jurídicas possam ser analisadas de acordo com a sua concretude prática, sobrelevando-se, assim, às parêmias

totalmente diversa. O presente artigo se subdivide, além da presente introdução, em mais duas seções seguidas de uma seção dedicada apenas às considerações tomadas em síntese do pensamento exposto. Na seção subsequente serão apresentadas as modalidades das atitudes lógicas que podem ser colocadas em disposição do agente decisório: atitude lógica, atitude prática e atitude diplomática. Elas servem de sustentáculo para que se compreenda como se dão as incompatibilidades lógicas na argumentação no sistema decisório e como elas podem ser trazidas à baila para que se facilite o seu sistema de incorporação ou de eliminação (busca-se, em última instância, evitar a incompatibilidade no momento de se exarar a decisão) na decisão a ser tomada (a qual consiste na concepção de um novo sistema retórico a ser utilizado como instrumento de compatibilização nas decisões a serem proferidas). A terceira seção trata de

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clássicas da lógica jurídica tradicional, que se calca em uma metodologia interpretativa

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FIDΣS como a aplicação da nova retórica é efetiva para os meandros jurídicos, como ela se processa e como ela influencia os parâmetros decisórios. A última seção, dedicada ao fechamento do trabalho, tem por escopo fornecer, como já dito, uma breve síntese do pensamento exposto, estatuindo de maneira mais sólida as bases para a aplicação da nova retórica jurídica pensada por Perelman.

2

OS

ARGUMENTOS

QUASE-LÓGICOS:

AS

ATITUDES

LÓGICAS

DE

POSSIBILIDADE JURÍDICA

Inicialmente, há de se destacar que Perelman (2004, p. 170) ressalta que há uma diferença abissal entre as proposições lógicas puramente matemáticas e as demais proposições (quase) lógicas utilizadas em outras searas do conhecimento humano. Essas demais áreas do conhecimento são aquelas que se enquadram em uma certa forma de comunicação linguística em que a argumentação é o ponto chave de sua interpretação. Não basta, portanto, que haja uma mera subsunção entre as colocações lógicas e a sua representação concreta ou realística, por causa da argumentação que é empregada nessa estruturação não é possível se compreender a argumentação como um simples consectário lógico de abstrações matemáticas. Deste modo, partindo-se do pressuposto que o direito é uma ciência essencialmente argumentativa (afinal, o direito não é matemática pura, algo facilmente denotado por qualquer pessoa), a simples adequação lógica de premissas e proposições válidas não é suficiente para explicá-lo completamente. Assim, cai por terra, a antiga premissa cartesiana de que a validade

predicado a ser conferido a uma inferência, algo já combatido em termos metafísicos muito antes por filósofos como Martin Heidegger (2008, p. 284), mas ainda pouco explorado nos meandros da lógica, principalmente no que se refere à lógica jurídica propriamente dita. O direito trabalha com juízos que são eminentemente axiológicos, isto é, exprimem valorações de ordem moral e cultural em sua formação. Não se afigura possível que as determinações jurídicas e seus juízos se enquadrem de modo estanque a esquemas prédeterminados. Isto é, o raciocínio jurídico empreende esforços para tratar com o razoável visando à adequação da norma às questões peculiares de cada caso. Perelman, portanto, centra forças em atacar o positivismo jurídico e a sua maneira estanque e mecanicista de empregar a lógica nas ciências jurídicas. Ele se empenhou em desenvolver uma lógica específica do direito que não se utilize apenas do raciocínio dedutivo, mas que se valesse também de outras

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matemática de uma proposição consiste na sua mera subsunção de adequação entre o juízo e o

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FIDΣS formas de raciocínio como, por exemplo, o raciocínio indutivo. Ele se esforça em aniquilar o pensamento engessado que, segundo a concepção tradicional, por lógica deve se entender sempre a lógica formal (KLUG, 1961, p. 17). Até porque, pensar a lógica como não sendo algo formal, segundo essa acepção, seria esbarrar em uma contradictio in adjecto segundo o referido autor. Ou seja, ele debate a premissa irregular de que só há lógica na formalidade e dentro de certos contornos formais, os quais, se não forem rigorosamente seguidos e pormenorizados findam por dar azo à inconsistência generalizada dos sistemas jurídicos porventura existentes em uma dada sociedade. Todavia, ao se adentrar no estudo da nova lógica proposta por Perelman há de se atentar, como bem colocam Bittar e Almeida (2008, p. 414), que o referido pensador não se está inclinando a compreender que seja factível definir a priori, ou seja, definir algo antes de qualquer experiência, o que seja a justiça feita pelo juiz. Isto porque a atividade de construção da jurisprudência operada pelo magistrado é exercida mediante a provocação das partes e, também, depende da existência de um caso concreto a ser analisado. Logo, não se está pensando em conceituar, ou até mesmo se atingir, uma “verdade jurídica” por meio da qual o juiz expressaria a vontade da lei, ou algo semelhante, mas tenciona-se alcançar no juízo do magistrado como iter (entremeio) racional para que se logre obter um resultado socialmente institucionalizado. Não obstante, é de grande valia salientar que Chaïm Perelman (2004, p. 140) não trabalha com o conceito de verdade (como se ela fosse apenas uma representação da adequação de enunciados válidos, repise-se, tal como já referido anteriormente), substituindo esse termo por equivalentes mais apropriados como: razoável, aceitável, admissível e

autor em tela, uma vez que eles denotam uma maior flexibilidade argumentativa em sua aplicação prática. Com efeito, o pensador almeja apresentar que o juiz não é simplesmente um porta voz da lei, ou seja, o juiz não é a “boca da lei” 1, aplicador neutro e despido de ideologias das normas jurídicas como se quis no pensamento derivado da Revolução Francesa. Nesse horizonte, Perelman critica duramente toda a tradição filosófico-jurídica que calcou seus esquemas lógicos do pensamento nas lições de René Descartes (1996, p. 37) e Gottfried Wilhelm Von Leibniz (1956, p. 14), os quais negligenciaram a lógica aristotélica e

1

Bouche de la loi, do original em francês – frase tornada célebre por Montesquieu.

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equitativo. Esses termos se afiguram mais escorreitos para expressar o raciocínio jurídico do

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FIDΣS criaram aquilo que se convencionou denominar de lógica formal2. Nesse sentido, é válido pontuar, assim como fazem Philippe Breton e Gilles Gauthier (2001, p. 50), que Perelman se inscreve "numa ruptura com a lógica demonstrativa e a evidência cartesiana, alargando o espaço de uma lógica argumentativa não formal". O pensador polonês 3 compreende que para que haja o devido tratamento dos problemas jurídicos contemporâneos urge-se empreender o retorno à lógica aristotélica. Para o embasamento teórico de suas elucubrações sistemáticas da lógica e do direito, Perelman busca na lógica não-formal de Aristóteles a reinvenção das dimensões do sistema jurídico em seu funcionamento dinâmico e prático. Assim, ele se vale de elementos retóricos para sustentar os elementos não-conclusivos do sistema lógico apresentado na antiguidade pelo estagirita. Sob a ótica perelmaniana (PERELMAN, 2004, p. 143), a lógica jurídica consiste em uma lógica argumentativa e por meio do discurso se constroem os institutos mais caros às ciências jurídicas, tais como a ideia de justiça, equidade, razoabilidade, proporcionalidade e aceitação social das decisões judiciárias. Tais elementos, por serem bastante variáveis e pouco enquadráveis nos esquemas rígidos da lógica formal tradicional, merecem um tratamento diferenciado. Assim, a lógica jurídica não obedece a esquemas rígidos de formação, elocução, dedução. Consubstancia-se em uma lógica de cunho eminentemente material. Exibe também um forte aspecto prático, com o sólido propósito de reverberar efeitos essencialmente argumentativos e não meramente demonstrativos de validade. Desta feita, há de se compreender que a nova lógica jurídica deve ser construída sobre as bases de uma nova retórica, que possui como escopo fundamental a reformulação do pensamento jurídico contemporâneo. Para atingir tais objetivos é que Perelman, juntamente com Lucie Olbrechts-

institutos jurídicos.

2

Ao se falar do termo lógica, no contexto perelmaniano, é importante apontar as palavras de Ray D. Dearin (1970, p. 65), o qual indica haver certa polissemia no termo em destaque, haja vista que nenhum outro termo deve ser escrutinado com tanto cuidado nos meandros dos escritos de Perelman, por causa da sua considerável flutuação de significado. Segundo Dearin (1970, p.80), há dois sentidos principais para o termo em tela: o primeiro deles faz referência à conceituação tradicional da lógica como um estudo geral das provas de validade. O segundo sentido extraído dos escritos perelmanianos traz o entendimento de que a lógica influencia tanto os racionalistas quanto empiristas, e, inspirada pelas ciências matemáticas, tem sido largamente reduzida, hodiernamente, à lógica-formal. Nesse último sentido é que Perelman contrasta a lógica com a retórica. Não obstante, além desses dois sentidos, Dearin (1970, p. 81) ainda fala de outros dois sentidos também compreensíveis da leitura dos textos de Perelman. O primeiro desses sentidos se traduz na identificação da retórica, ela mesma, com a lógica, algo próximo de uma “lógica do preferível” ou ainda uma “lógica dos julgamentos de valor”. O outro sentido suplementar indicado por Dearin diz respeito à noção de lógica jurídica, associada à razão prática, em oposição à lógica formal, associada à razão teorética. 3 Chaïm Perelman era polonês de nascimento, todavia construiu toda a sua carreira acadêmica na Bélgica, onde se naturalizou.

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Tyteca, empreende a árdua tarefa de definir argumentos quase-lógicos para modelar os

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FIDΣS Esses conjuntos de natureza argumentativa se comparam aos raciocínios formais lógico-matemático, embora possuam natureza eminentemente não-formal (pois essa é a sua marca característica de remonte histórico aristotélico). Todavia, a sua especialidade se atém ao fato de, por se aproximarem do raciocínio rigoroso e demonstrativo formal, adquirir uma força persuasiva distinta. Dentro de um sistema lógico-formal não são admitidos enunciados que não sejam unívocos e possam ocasionar contradições ou ambiguidades. Todavia, em um sistema de linguagem natural, como é o campo das ciências jurídicas, o mais comum que ocorra são anfibologias, polissemias e vacuidade semântica. Tais hipóteses são estabelecidas dentro de circunstâncias discursivas que exigem esmero do interlocutor em interpretá-las, daí toda a sua importância para a hermenêutica jurídica contemporânea, a qual não consegue se sustentar sem que esse tipo de distorção linguística seja explicitada e efetivamente trabalhada. Não obstante, há de se salientar que isso não é nenhuma novidade dentro dos círculos hermenêuticos da linguística, afinal, Louis Hjelmslev (1975, p. 53), inventor da Glossemática4, já falava da necessidade de se ter o signo como a expressão de um conteúdo exterior ao próprio signo. Nesse sentido, ele já opera a distinção entre significado e sentido ao asseverar que este é o que se quer dizer, ao passo que aquele é o que efetivamente se diz, algo fundamental na presente análise hermenêutica proposta, sendo algo utilizado recorrentemente por Perelman para justificar seus esquemas argumentativos. Nessa toada, é de grande valia apontar que há situações em que tanto será possível indicar quanto também será viável desfazer incompatibilidades lógicas dentro do sistema. Partindo desse ponto, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 267) indicam três categorias básicas de estratégia argumentativa: procedimentos para evitar incompatibilidades, técnicas

Os procedimentos que têm como escopo evitar incompatibilidades se focam em três espécies de atitudes básicas: atitude lógica, atitude prática e atitude diplomática (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 269-270). Cada uma delas possui o posicionamento adequado para que a incompatibilidade seja contornada dentro de seu próprio espectro de ocorrência. A atitude lógica possui como característica primordial ser uma antecipação de elementos fáticos que possam gerar incongruência sistemática. Assim, esse tipo de atitude visa eliminar o imprevisto e dominar o horizonte futuro de ocorrências. É, portanto, uma 4

Glossemática é o termo usado por Hjelmslev para designar o estudo e a classificação dos glossemas, as menores unidades linguísticas que podem servir de suporte a uma significação: os cenemas e os pleremas, que são os componentes mínimos da Cenemática e da Pleremática, as duas grandes áreas da Glossemática e que se referem, respectivamente, às formas de expressão e formas de conteúdo.

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para apresentar teses como compatíveis e técnicas para apresentar teses como incompatíveis.

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FIDΣS atitude teórica com vistas a, antes mesmo da formulação de teses ou regras, avaliar de maneira prévia as mais variadas situações de aplicabilidade, antevendo a própria gênese de incompatibilidades sistêmicas. Um bom exemplo dessa atitude lógica na interpretação jurídica é dado por Horts Bartholomeyzik (1971, p. 3), ao indicar que na leitura da norma jurídica, nunca se deve ler o segundo parágrafo sem antes ter lido o primeiro, nem deixar de ler o segundo depois de ter lido o primeiro, bem como também nunca se deve ler um só artigo, leiase também o artigo vizinho. Esses conectivos adverbiais de tempo utilizados pelo autor alemão denotam a necessidade lógica de se proceder segundo essa atitude argumentativa. Sem esse espeque, não se afigura possível ter uma compreensão lógica da norma jurídica, haja vista que sem esse procedimento mínimo a compreensão do seu conteúdo restará plenamente comprometida. De outra banda, a atitude prática se foca num posicionamento temporal diverso da atitude anteriormente analisada. Esse tipo de atitude busca resolver as incompatibilidades à medida que elas vão sucessivamente ocorrendo. Como ressalta José Gomes Filho (2008, p. 89), a resolução de um impasse lógico pela via da atitude prática revela “bom senso do homem de ação”. Assim, tal forma de atitude consiste em repensar as noções e as regras em função da progressão real de situações e das consequentes ações indispensáveis para que a incompatibilidade seja espargida. Em síntese, a atitude prática não busca trazer soluções a priori, de maneira previamente definidas, para resolver a questão das incompatibilidades. A última das atitudes, denominada de diplomática, possui como ponto de fulcro evitar o próprio surgimento da incompatibilidade, e, caso isso seja inevitável, postergar ao máximo a resolução do conflito gerado pela própria incompatibilidade entre duas regras ou

solução seja tomada, recomenda-se que a mesma seja evitada uma vez que não passa essencialmente de um paliativo, que, a médio e longo prazo, somente faz com que os problemas das incompatibilidades sejam agravados ou aumentados. Já no que se refere às técnicas para a apresentação de teses como sendo compatíveis, existem duas que são precipuamente as mais eficazes nesse mister. Em comum, ambas tentam prover o restabelecimento do status de compatibilidade entre duas teses, ao menos aparentemente, conflitantes. Dado o fato que o conflito é meramente aparente, a conjectura de se empenhar em juntar essas duas teses não é algo logicamente inválido, todavia, a dificuldade em assim proceder se mantém na necessidade de se manter a razoabilidade argumentativa dessa empreitada. A primeira dessas possibilidades de restabelecimento se atém a colocar as duas teses como dentro de um quadro sucessivo de aplicabilidade por

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teses. Ainda que tal atitude possibilite o melhor conhecimento de causa para que uma possível

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FIDΣS processos. Dito de maneira mais clara, tal técnica de congregação de teses consiste em dizer que as duas teses não são aplicáveis de maneira concomitante, assim, deve haver uma precedência temporal em sua aplicação para que elas se harmonizem. Argumenta-se, portanto, que as duas teses não são integradas em um todo homogêneo, de maneira que a cisão do objeto da interpretação é indispensável para que as duas teses sejam compatibilizadas (PERELMAN, 2004, p. 199). Sem que isso seja feito, ou seja, sem essa cisão objetiva do núcleo hermenêutico, não há como se promover a compatibilização entre as teses componentes do argumento em tela. A outra técnica de compatibilização de teses se foca na restrição de aplicação de uma das teses, precisando, desta forma, os termos por meio dos quais as regras foram formuladas. Em última instância, tal técnica de harmonização não passa de uma espécie de interpretação restritiva, a partir da qual uma das teses tem seu espectro de aplicação estreitado para que se compatibilize com a outra tese também aplicável ao mesmo locus teórico. Como já enunciado, existem também as técnicas para a indicação e apresentação de teses como incompatíveis dentro da interpretação jurídica. Isso ocorre quando se afigura inevitável ter que escolher entre uma das duas teses conflitantes para que o próprio discurso se mantenha. A primeira das técnicas a serem abordadas se sustém na assertiva de que duas teses se tornam conflitantes ao serem aplicadas concomitantemente ao mesmo objeto, desde que nenhuma das técnicas de dissipação de incompatibilidade anteriormente apresentadas sejam suficientes para sanar tal imbróglio. Os autores em comento apresentam outras cinco possibilidades em que enunciados incompatíveis podem surgir, tanto pelas condições em que uma tese ou regra é infirmada ou através da consequência de sua aplicação (LYCURGO;

possibilidades é que se podem abstrair as consequências lógicas da argumentação proposta. A primeira das circunstâncias supramencionadas ocorre caso todos os enunciados de um indivíduo sejam tratados como um sistema único. Pode ocorrer, portanto, que duas assertivas do mesmo indivíduo, mesmo que exaradas em lapsos temporais diversos, venham a conflitar, apresentando-se, assim, no contexto interpretativo geral, como incompatíveis. Semelhantemente, ao se tratar de enunciados de grupos que são entendidos apenas como um sistema único de enunciados, pode ocorrer que, por ventura da suposta unidade, emissões enunciativas individuais de membros do grupo venham a conflitar com a designação pretensamente unitária do grupo, ocorrendo, desta feita, uma incompatibilidade entre um enunciado individual e a tese defendida pelo sistema único do grupo.

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ERICKSEN, 2011, p. 119). Assim, somente através do escrutínio mais pormenorizado dessas

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FIDΣS A terceira circunstância denotativa de incompatibilidades se dá no caso de um indivíduo integrar dois grupos distintos que guardem disposições normativas díspares entre si. Pode ocorrer, desta feita, que em função das regras distintas de cada grupo, em uma dada situação, cada uma das regras prescreva um comportamento antagônico, instalando-se desta maneira a incompatibilidade entre ambos os grupos. A incompatibilidade também pode ser evidenciada em casos em que, havendo duas normas, uma delas se dirige a uma situação jurídica que a outra norma (tida por conflitante) simplesmente exclui peremptoriamente. Assim, a simples imprevisão normativa pode ser foco da incompatibilidade de regras distintas. O último dos casos de incompatibilidades é também o mais complexo. Isso porque a sua incompatibilidade não deriva do choque entre duas regras ou teses opostas, e sim de uma incompatibilidade ocasionada por um fato derivado da própria assertiva da norma prevalente. Clarifique-se: a regra pode se incompatibilizar com as consequências do mesmo fato de ela ter sido afirmada. Esse caso recebe a nomenclatura de “hipótese de autofagia”, isso porque o próprio evento derivado da norma finda por incompatibilizá-la de maneira intrínseca. Ou seja, a incompatibilidade desses elementos não está adstrita a nenhum fator externo, seja em sua conjunção discursiva ou em sua manipulação pelos agentes encarregados de formular o próprio sistema, a sua incompatibilidade é algo que já se encontra ínsita em sua própria exposição discursiva, daí ela ser autofágica 5. São elencados três casos para a ocorrência da autofagia: retorsão, auto-inclusão e sofismas anárquicos. No caso da retorsão o ato decorrente do efeito da aplicação normativa finda por negar reflexivamente o próprio discurso, ou seja, o ato implica o que a própria fala nega. A

lógica propriamente dita, ela não se imbui desse caráter enunciativo, de modo que pode ser considerada meramente uma tautologia reversa da primeira assertiva, ela não constrói nenhum novo conceito, apenas apresenta uma oposição vazia da primeira inferência lógica. Por sua vez, na auto-inclusão, ocorre a hipótese que a mesma regra aplica-se a ela mesma. Assim, há uma dupla incidência normativa que conduz à incompatibilidade normativa. Possivelmente essa espécie de incompatibilidade ocorre com certa frequência no direito penal, quando se vislumbra a inserção de bis in idem na aplicação de sanções, algo 5

A autofagia é uma referência à literatura médico-científica na qual um corpo finda por se devorar, ele consome a si mesmo, extraindo de si próprio a energia necessária para se manter, algo que geralmente ocorre em certos distúrbios sexuais, ou até mesmo em casos extremos de anorexia nervosa. Como essa prática autofágica é insustentável, pois o organismo acaba por se consumir totalmente e se aniquila, a breve analogia para com os essa classe de argumentos é bastante apropriada, afinal de contas, a sua insustentabilidade estrutural é patente.

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retorsão não vem a compreender, ou, minimamente, esclarecer nenhuma nova conceituação

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FIDΣS totalmente incongruente com a escorreita aplicação normativa de tais imposições de ultima ratio. Isso porque as determinações de direito penal podem conduzir à segregação social, algo que não pode ser tido como um resultado errôneo aceitável dentro dos limites de erro de um sistema lógico-jurídico. Ainda que esse resultado não possa ser totalmente calcinado dentro das possibilidades argumentativas decisórias de uma sentença penal, por exemplo, os parâmetros de suas reproduções devem ser observados e estudados para que esse tipo de resultado falacioso não se repita com certa constância. Os sofismas anárquicos consistem em uma regra aplicativa que se opõe às suas próprias consequências que dela derivam. Assim, há uma contradição 6 inerente à própria regra que dispõe algo que lhe é negado sequencialmente. A anarquia de tal sistemática conduz à insustentabilidade do próprio sofisma proposto. Desta forma, por mais que o sofisma em si já seja algo não propriamente útil dentro da interpretação da lógica formal comum, eles assumem um papel de análise regressiva dentro dos argumentos quase-lógicos a partir da compreensão de que sua verificação conduz a uma insustentabilidade sistemática das premissas que dele são derivadas. Dentro da análise argumentativa proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca um dos conceitos a ser cotejado diz respeito à identidade total de objetos e as suas definições. Para que se entenda a relação de identidade entre objetos no contexto quase-lógico dessa argumentação se apresenta como imprescindível a compreensão de que essa relação não seja considerada nem como arbitrária nem como evidente. Ou seja, essa relação deve ser entendida quando ela dá espaço para a ocorrência (ou não) de uma justificação argumentativa. Essa relação não pode se basear em evidência de correlações de noções entre os objetos, e sim ter

elementos é ressaltada em situações interpretativas em que existem definições variadas de um mesmo termo e a escolha entre elas se afigura premente e indispensável. Surgem, desta feita, duas formas de justificação de um definição, ou por via de sua etimologia (e o sentido interpretativo dela derivado), ou segundo a substituição da própria definição pelas condições de aplicabilidade por uma definição que se baseie na consequência 6

Importante destacar que o próprio Perelman (1977, p. 246) traça uma distinção bastante interessante entre a contradição e a incompatibilidade, haja vista que, enquanto a contradição formal se liga à noção de absurdo, a incompatibilidade se liga à compreensão de algo ridículo no fluxo interpretativo. Desta feita, uma afirmação é tida por ridícula quando conflita, sem justificação plausível, com uma opinião anteriormente admitida. Não obstante, é importante atentar que tanto o absurdo quanto o ridículo podem ser obtidos por via indireta. O absurdo é obtido indiretamente através de uma redução, a chamada redução ao absurdo (reductio ad absurdum, ou argumento do terceiro homem). Já o ridículo é obtido indiretamente por meio da ironia. A ironia socrática, segundo Perelman (1977, p. 248), é um exemplo de ridicularização do adversário, que, ao ver suas incompatibilidades evidenciadas, é obrigado a rever suas opiniões.

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fulcro na sua justificação ou valorização através da argumentação. A argumentatividade dos

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FIDΣS de sua aplicabilidade, e vice-versa. Ou seja, promove-se a alternância argumentativa entre os efeitos da aplicação da definição pela sua própria condição de inserção discursiva, sendo que tais possibilidades de alteração são intercambiáveis dentro do processo interpretativo.

3 A LÓGICA E A REGRA DE JUSTIÇA EM APLICAÇÕES DECISÓRIAS: A NOVA RETÓRICA E SUA EFETIVIDADE JURÍDICA.

Em um sistema lógico-formal a igualdade entre duas expressões só pode ser infirmada a partir da analiticidade, ou caráter analítico, do seu julgamento. Todavia, em termos de argumentos quase-lógicos de linguagem natural, não há esse rigorismo determinístico na análise de tal equivalência. Isso porque a análise das expressões no sistema quase-lógico está sempre sujeita ao manejo do sentido que é conferido às próprias expressões. Outra diferenciação patente entre a progressão lógico-formal e o cotejo quase-lógico de Perelman se evidencia na análise das tautologias. Ainda que a nova análise lógica promovida no início do século XX por Ludwig Wittgenstein (1994, p. 44) demonstre que as tautologias não representam nenhuma situação possível, logo não são figuras de realidade. Isto ocorre porque na primeira fase da filosofia de Wittgenstein, a da teoria pictórica do significado, ele tentava dar uma descrição de ordenação lógica do mundo, tanto que admitia o silêncio lógico sobre coisas que não podem ser ditas (proposição número sete do Tractatus Logico-Philosophicus7). Diferentemente, Perelman atribui aos argumentos quase-lógicos a possibilidade de uma reinterpretação dessas figuras de mesmo sentido tanto na afirmação

aparentes, haja vista que não há identidade formal propriamente dita nelas, de modo que elas podem ser dissipadas ou incorporadas ao processo interpretativo na medida em que vão surgindo. Essa forma de apreensão das tautologias serve para conferir sentido específico aos movimentos interpretativos baseados em argumentação, fugindo, assim, do rigorismo formal clássico. Outro ponto de grande destaque na apresentação argumentativa em comento se refere à questão da regra de justiça a ser aplicada nos processos interpretativos. A regra de justiça 7

A sétima proposição da obra em comento enuncia que: Wovon Man nicht spreche kann, darüber, muß Man schweigen (“sobre aquilo de que o homem não pode falar, então, deve-se calar”, isto é, daquilo que não se pode se falar algo, então, deve-se silenciar), enunciado derivado da primeira fase do pensamento de Wittgenstein e de extrema importância para que se possa compreender a reinterpretação dada ao significado pelos argumentos de Perelman.

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quanto no resultado. Em tal argumentação, propõe-se que as tautologias são meramente

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FIDΣS definida na argumentação quase-lógica sustenta que seres ou situações de uma mesma categoria (ou que possam ser congregados sob a mesma égide categórica) devem possuir um tratamento idêntico, partindo-se sempre do pressuposto que existe uma etapa prévia de classificação e outra de categorização das situações a serem integradas. De maneira similar ao argumento da regra de justiça, traz-se à exposição a questão da reciprocidade. Tal elemento argumentativo visa aplicar o mesmo tratamento a duas situações que se assemelhem entre si (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1996, p. 297). A reciprocidade atua até mesmo em situações meramente hipotéticas e, para atingir seu escopo, se baseia numa ideia de simetria entre as situações analisadas. A técnica da aplicação da reciprocidade ocasiona três efeitos bem distintos no processo interpretativo. Primeiramente, ela facilita a identificação entre eventos ou situações, de modo a promover entre eles a assimilação recíproca, isto é, os conduz a uma convergência interpretativa. Ademais, a aplicação da reciprocidade é suposta na qualificação das situações, quando estas estão baseadas na relação entre o antecedente e o consequente na mesma relação. Há de se dizer também que a reciprocidade provém o reconhecimento de identidade entre situações que se correlacionam a partir de transposições de perspectivas. Assim, a partir de uma nova conjectura de um ponto de vista já existem a reciprocidade pode aproximar situações a serem designadas pelo processo argumentativo. O ponto seguinte a ser analisado na exposição argumentativa quase-lógica se refere aos elementos de transitividade. Contrariamente ao que ocorre na conformação da lógicaformal, a transitividade sob essa nova perspectiva pode se basear em relações de igualdade, superioridade, inclusão, ascendência, implicação dentre outras, podendo ter como espeque a sua combinação quase-lógica com elementos simétricos. Nesse horizonte, as relações

direta não se apresenta como factível. Dentre as possibilidades de cadeias transitivas a que exerce um papel de maior destaque e maior atrativo para a argumentação quase-lógica é a silogística (de consequência lógica). Acerca desses elementos de transitividade é de grande valia destacar o comentário de Robert Alexy (2005, p. 173), para o qual: Os argumentos quase lógicos extraem sua força de convicções de sua semelhança com inferências logicamente válidas. Um grupo de argumentos quase lógicos é formado pelos argumentos que fazem referência à transitividade. ‘Os amigos de nossos amigos são também nossos amigos’ é um exemplo de tal argumento. Um exemplo de argumento que se apoia na estrutura do real são os argumentos que se baseiam em laços de casualidade. Finalmente, Perelman divide os argumentos que

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transitivas são utilizadas quando é necessário ordenar eventos ou situações cuja confrontação

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FIDΣS fundamentam a estrutura da realidade em: aqueles que se referem a um caso particular (como por exemplo, com fins de generalização) e aqueles em que se trata de uma analogia.

A partir da explanação do eminente jurista alemão, há de se compreender que a transitividade conduz tanto a experiências práticas despidas de consequências eticamente aceitáveis para um padrão jurídico decisório quanto para uma saída ao formalismo da lógica tradicional. Ela é inaceitável como padrão decisório quando suplanta, através de silogismos, a possibilidade de uma decisão justa, segundo o próprio exemplo fornecido por Alexy. De outra banda, quando a transitividade é aplicada segundo os ditames da analogia para uma resolução da realidade ela é quase-logicamente aplicável para que se chegue a uma decisão mais concreta e palpável. Outro argumento de grande relevância para o estudo em comento se trata das inclusões de argumentos quase-lógicos. As inclusões argumentativas se dividem de maneira dicotômica em inclusão das partes no todo e em divisão do todo em suas partes, sem que isso afete a sistematização inerente à completude necessária ao próprio argumento em análise. A argumentação quase-lógica aprecia as relações existentes entre as partes e o todo sob a parêmia de que “o que vale para o todo vale para a parte“. Destarte, tal relação entre todo e partes é analisada quantitativamente, tanto o todo em si considerado é mais importante que a parte, quanto a parte possui relevância em função de sua proporcionalidade para com o todo. Assim, a consistência global de uma interpretação sistemática se apresenta muito mais sólida e consistente que a análise igualitária ou equivalente de cada parte em relação ao todo. Nesse

efeito é imprescindível que haja homogeneidade entre a parte a ser inserida e o todo. Em termos quase-lógicos, basta negar a referida homogeneidade para que a relação de inclusão seja totalmente prejudicada ou até mesmo desfeita, caso a inexistência de homogeneidade seja apenas suscitada em momento posterior ao próprio processo de abstração inclusivo. Já o argumento da divisão de todo em suas partes baseia-se na concepção de que o todo deve ser reconstruído a partir da soma de suas partes constitutivas. Assim sendo, supõese o conhecimento das relações que as partes mantêm com o todo, sem essa concepção prévia da constituição argumentativa não se é possível retroceder a um status quo ante da estruturação lógica do sistema. Esse raciocínio de reconstituição pode ser utilizado de três diferentes maneiras. A primeira delas serve para servir de prova para a existência de um conjunto, pois a mera reconstrução unitária dele confere-lhe existência. Ou seja, simplesmente

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sentido, para que haja a inclusão de um evento ou que a situação particionada seja levada a

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FIDΣS refazer os passos de uma divisão argumentativa anterior leva ao conhecimento prévio do que se tinha antes de assim proceder, de modo que nessa maneira há apenas uma inversão constitutiva do argumento construído logicamente. A segunda maneira de se aplicar esse argumento é utilizada para provar ou não a existência de uma das partes do todo. Essa é a chamada argumentação por exclusão, uma vez que se aparta da conjuntura global um evento ou situação para que sua incongruência para com o todo se sobressaia. É uma espécie de corte epistemológico redutiva de partes excedentes do sistema interpretativo. A última aplicação da divisão do todo em suas partes serve de argumento resolutivo de um dilema, caso em que, para se concluir entre qualquer das hipóteses, chega-se a um resultado de importância equivalente. Como o conceito de um dilema enuncia que essa é uma hipótese em que se tem, pelo menos, duas alternativas lógicas igualmente válidas, o propósito desse argumento consiste em apenas se saber que qualquer uma das alternativas a serem tomadas terá o mesmo valor axiológico ínsito em si mesma. Dizendo a mesma coisa de maneira mais clara, as opções são igualmente válidas do ponto de vista lógico, a sua escolha marca apenas uma cisão decisória dentro do vasto universo de possibilidades, excluindo qualquer outra hipótese porventura ainda não ventilada, bem como também esparge do universo amostral a hipótese anteriormente válida. Isto ocorre usualmente por três razões: ou porque ambas as hipóteses resolutivas conduzem ao mesmo resultado (geralmente levam à própria incongruência do sistema interpretativo), ou porque são dois resultados de mesmo valor, ou ainda porque conduzem, em cada caso, a uma incompatibilidade com a regra que interliga os próprios resultados (nessa hipótese, deve se valer de uma das técnicas de explicitação ou de saneamento de incompatibilidades anteriormente apresentadas). Nesse passo, é importante

enfático que a experiência constitui um dos aspectos fundamentais da preocupação com os processos decisórios de indivíduos em ambientes de incerteza, ainda que o próprio agente que decide tente ao máximo dar uma completude ao sistema que ele tem que tentar integrar com o seu pronunciamento decisório. Outra espécie argumentativa a ser analisada na lógica jurídica de Perelman e Olbrechts-Tyteca diz respeito à comparação de objetos dentro da avaliação interpretativa. Esse argumento deve ser desenvolvido quando os objetos são confrontados e aferidos reflexivamente entre si, sempre tendo o cotejo dos mesmos em função da ideia de medida, a qual apresenta três critérios fundamentais de análise. O primeiro desses critérios se refere à comparação por oposição qualitativa dos objetos (forte versus fraco, ou abrangente versus restrito). Nesse caso, a comparação é

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destacar que Perelman segue, conforme indica Bruce J. Caldwell (2004, p. 55), o preceito

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FIDΣS operada em função da qualidade intrínseca do objeto que não se altera durante o empreendimento interpretativo. O outro critério comparativo a ser utilizado traça como norte interpretativo a ordenação entre os objetos. De modo que um argumento “x” é mais abrangente que um argumento “y”, por exemplo. Esse englobamento argumentativo é importante para que se defina o espectro de abrangência de uma decisão judicial, a fim de que a sua extensão seja determinada em função da própria validade de seus argumentos concretos, e não simplesmente dada em função da abstração e da generalização atinente às normas jurídicas que lhe fundamentam. O último critério de comparação elencado é na verdade uma subespécie do critério anterior, e denomina-se critério de ordenação quantitativa. Assim sendo, além da sequência de aparecimento dos objetos a serem analisados, deve ser tido em conta o número de vezes que o objeto aparece, para que a sua proporcionalidade, em relação ao todo sistemático da interpretação, também seja levada em consideração. Há de se deixar assente, como bem pontua Heloísa Feltes (2003, p. 271), que, para que se atinja um maior grau de eficiência, os termos de argumentação devem ser selecionados de maneira a que se adaptem aos “argumentatários”. Outrossim, as características dos termos em referência promovem a particularização de uma série definida de argumentos, devendo tal série ser analisada de forma a apresentar-se favorável às conclusões da argumentação. Desta maneira, consegue-se congregar a comparação com os elementos integrativos da interpretação e evitar que ocorram conflitos e incompatibilidades de argumentos. Outra forma interpretativa afeita aos processos de comparação é denominada de “argumentação pelo sacrifício”. Nesta espécie de análise deve haver uma aceitação por parte do intérprete em suportar um “sacrifício” para que se obtenha um determinado resultado. Ou

alcançar o escopo final da argumentação exposta. Esse tipo de argumentação permanece na base de sistemas de troca de ordenação meio-fim. Assim sendo, o meio utilizado para o intérprete é o sacrifício de um dos objetos possíveis no quadro discursivo, ou seja, é um esforço, um sofrimento com o qual o intérprete está assente em arcar (FELTES, 2003, p. 277). Ou, caso ele não esteja assente em arcar com ele, pelo menos tenha a antevisão da possibilidade de sua ocorrência e não feche as demais possibilidades para que o argumento possa ser trazido à baila em vista da possibilidade de ter que sacrificar o meio lógico da interpretação. De outra banda, o fim colimado é o próprio resultado do sacrifício ocorrido, embora não seja o escopo inicialmente idealizado, é aquele que mais se adequa ao caso concreto. O aspecto quase-lógico de tal argumentação consiste em avaliar ou valorizar alguma coisa

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seja, sem que se refrate ou se suporte algum elemento não desejado de início, não há como se

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FIDΣS mediante os meios utilizados para produzi-la, isto é, considerar como espólio interpretativo o sacrifício necessário para arregimentar uma interpretação sistematicamente escorreita. Um bom exemplo da utilização desses argumentos de sacrifício ocorre quando há colisão de princípios jurídicos, como nenhum princípio pode aniquilar outro princípio, há de se promover o prestígio de um deles em face do caso concreto. Tal sistemática envolve, ineroxavelmente, elementos de ponderação e proporcionalidade argumentativa, a qual pode ser estruturalmente sustentada através de sacrifícios argumentativos em prol de uma homogeneidade na interpretação. A última espécie de argumentos quase-lógicos derivada da comparação a ser perquirida se atém às questões de probabilidade dos argumentos. Tal espécie em comento possui o escopo de conferir um aspecto empírico à interpretação. Desta feita, deve ser delineado um quadro avaliativo que verse tanto sobre a importância dos acontecimentos quanto sobre a possibilidade de sua aparição dentro do contexto interpretativo futuro. O recurso probabilístico, portanto, fica sujeito a diferentes interações factuais entre os elementos comparados. Ainda assim, pode ocorrer como Perelman (2004, p. 190) relembra que por razões de bom senso, equidade e interesse geral, uma solução se apresente como única admissível, ela é que se tende a impor nos meandros do direito também, ainda que se obrigue o intérprete (como anteriormente explicitado) a recorrer a uma argumentação especiosa para mostrar sua conformidade com as normas legais em vigor. Por fim, em conclusão à nova proposta argumentativa de uma nova (quase) lógica jurídica, há de se compreender que a interpretação ocorre em uma dupla situação temporal. Num primeiro momento argumentativo há o deslocamento para o lugar do interpretador

que sua interlocução se dá. Em uma segunda colocação interpretativa, o intérprete deve se deslocar para uma aplicação dos argumentos quase-lógicos ao referido discurso, visando interpretá-lo a partir de tal perspectiva. Nessa esteira, bem destaca Gianluigi Palombella (2005, p. 291) que os novos raciocínios trazidos por Perelman e Olbrechts-Tyteca tentam congregar novos elementos lógicos ao direito e não são, portanto, aplicações rigorosas de uma teoria lógica, mas procedimentos discursivos que se mostram diferentes dos tipos lógicos ou são resultado da combinação de um esquema lógico com alguma assunção (não lógica, mas jurídica, em algum sentido da expressão), por isso que são considerados, efetivamente, um meio retórico de apresentação do direito. Destarte, a simples adequação das premissas básicas a uma conclusão lógico-formal leva a resultados práticos desastrosos e pouco eficientes. Um exemplo bastante prático disso

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(procura-se atingir o seu topos), no sentido de compreender seu discurso e abstrair o local em

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FIDΣS se dá no caso das provas ilícitas carreadas em um processo penal, a decisão será sempre baseada nos argumentos quase lógicos tal como explicitados, haja ou não o acolhimento da prova ilícita. Se ela não for acolhida, a verdade real não será alcançada por falta de uma parte constitutiva sua, caso ela o seja, ainda assim a decisão não será totalmente apartada de um argumento quase lógico em função da manifestação espúria da ordem jurídica em aceitar a prova eivada de ilicitude, mesmo que essa seja a melhor opção para o caso concreto que está a ser decidido. Nesse horizonte, é correto asseverar, mais uma vez, que o pressuposto analítico de Perelman conduz ao entendimento de que não se deve chegar a uma verdade jurídica préestabelecida, por meio da qual o juiz expressaria a vontade da lei, ou algo semelhante a isso (LYCURGO; ERICKSEN, 2011, p. 116-117). Outrossim, pode-se citar o exemplo prático de que na análise de uma prova ilícita pode levantar a questão da proporcionalidade como regra de verificação a ser compreendida como sendo um elemento quase-lógico nos moldes perelmenianos. Não obstante, por não expressar uma simples constatação de verdade, afinal, em última instância, ela é eivada de ilicitude, e não há verdade na ilicitude, essa análise de verificação de uma prova serve como exemplo singular de um argumento quase lógico a ser trabalhado no âmbito processual do direito, algo bastante significativo para essa seara em particular. Isso se evidencia ainda mais ao se falar que a aplicação dessa prova permeada pela proporcionalidade dá uma maior singularidade aos casos analisados, sem que isso finde por desembocar num argumento non sequitur de fundamentação decisória e sem que uma injustiça seja perpetrada no plano prático dos efeitos de uma sentença penal, por exemplo. A retórica utilizada por Perelman e Olbrechts-Tyteca é apenas um estudo técnico dos

ALMEIDA, 2008, p. 454). Assim, o conteúdo dos expedientes interpretativos devem se encaminhar para a verossimilhança e não para a simples e pura sofística, das preocupações aristotélicas. Pois, caso assim se persista na análise filosófica, e eminentemente lógica do direito, apenas conseguir-se-á traçar parâmetros dogmáticos pouco efetivos em sua dinâmica de aplicação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, esses são os argumentos quase-lógicos propostos por Perelman e Olbrechts-Tyteca, os quais, diferentemente dos sistemas formais, dependem de um ato

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processos e dos instrumentos de produção de conhecimento e persuasão jurídica (BITTAR;

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FIDΣS interpretativo fomentado nas aberturas e lacunas existentes nas linguagens naturais, elemento este afeito principalmente à estruturação das ciências jurídicas como se pôde denotar. Essa forma de interpretação do direito, e, principalmente, das decisões judiciais é fundamental na atual conjuntura hermenêutica contemporânea, já que dá uma nova perspectiva analítica aos hermeneutas e demais filósofos do direito a terem acesso a uma maneira diferente e inovadora de se pensar a lógica aplicada ao direito. Ademais, isso tudo é feito sem que se recorra (ao menos necessariamente) aos estratagemas mais que complexos da lógica paraconsistente, por exemplo, a qual, ainda que seja plenamente aplicável aos panoramas jurídicos que envolvam dilemas práticos, como, por exemplo, o prestígio ou desprestígio de um princípio jurídico a ser aplicado quando há uma pluralidade de princípios a serem invocados igualmente a um caso particular ou peculiar do direito. A perspectiva de Perelman e Olbrechts-Tyteca coloca os meandros jurídicos como ambientes variáveis dentro de um conhecimento jurídico não estático, daí que se impõe a sua conceituação de uma nova retórica a ser utilizada na sistemática lógico-jurídica, sendo imperioso denotar que isso deriva da necessidade de se assimilar as incompatibilidades lógicas surgidas no processo de tomada de decisão. Algo que favorece sobremaneira, qualquer pretensão interpretativa mais concreta e dinâmica que o simples dogmatismo da velha lógica jurídica, de fundamentos kantianos e positivistas, tão difundida nas épocas passadas. Assim, a análise de seu trabalho é fundamental para que cada vez mais se consiga implementar variantes lógicas (quase-lógicas) que dimensionem o direito de acordo com a sociedade viva

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PERELMAN’S QUASI-LOGIC ARGUMENTS: THE CONSTRUCTION OF A NEW JURIDICAL RHETORIC

ABSTRACT The essay intends to make an exposition about the quasi-logic

their dynamic and practical concepts of rules of justice in juridical cases shall be valid; something to be further analyzed in the decision expression of regular cases. The quasi-logic arguments shall be developed and combined with its several forms of comprehension of possibilities surrounded by reasonableness, fitting cases and proportion congregating it all with other juridical elements. It explains the fundament of new arguments for juridical situations, not something related to the old juridical logic, purposing the bases to a new juridical rhetoric. Keywords: Quasi-Logic Arguments. Judicial Logic. Rhetoric.

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arguments developed by Perelman and Olbrechts-Tyteca. Insofar,

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FIDΣS Recebido 22 ago. 2011 Aceito 27 out. 2011

A LEGITIMIDADE DO CARÁTER PREVENTIVO GERAL DA PENA: UMA DISCUSSÃO DE SUAS SOLUÇÕES Lucas Duarte de Medeiros Lucas José Bezerra Pinto

RESUMO A prevenção geral intimidatória proposta por Feuerbach reflete-se no Direito Penal moderno, constituindo talvez o mais pernicioso fim da pena, uma vez que atenta contra a dignidade da pessoa humana. Essa teoria deu luz a indagações que questionam a legitimidade e a própria existência do Direito Penal e, por conseguinte, fizeram florescer o ideal abolicionista, bem como o minimalista. Neste contexto, em cotejo ao caráter intimidatório da prevenção geral, tem-se uma abordagem dos diferentes posicionamentos frente a esta, dando, por fim, uma solução minimalista para a celeuma apresentada a fim de

Palavras-chave: Prevenção Geral. Dignidade da Pessoa Humana. Direito Penal. Abolicionismo. Minimalismo. “Quando se tem perguntado pelo fundamento e o fim da pena, apresenta-se não já um problema interno do direito penal, mas um problema de filosofia jurídica, uma razão última que está acima da construção interna de qualquer direito dado”. (Sebastian Soler) 

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Monitor de Direito Empresarial III e membro do Projeto de Pesquisa Jurisdição, Democracia e Direitos Fundamentais. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/0891510217203759>.  Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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preservar as garantias limitadoras do poder coercitivo estatal.

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FIDΣS

1 INTRODUÇÃO

Embora a pena seja um dos institutos mais antigos do direito, muito se tem discutido hodiernamente sobre as idéias que a cercam. Isso porque é uma tendência contemporânea a reflexão crítica sobre sua legitimidade, se ela encontra respaldo nos valores sociais hoje presentes. Bem verdade que a pena sempre nos acompanhou e, por isso, chegam até a ser estranhas para alguns as indagações sobre ela. No entanto, são essas reflexões que permitem a evolução de uma sociedade. Nesses moldes, este trabalho tem como proposta aguçar a visão sobre a finalidade preventiva geral das penas, despertando um debate filosófico sobre sua legitimidade. Malgrado se pense que a problemática de suas finalidades seja puramente uma questão de direito, estas transcendem tal esfera, uma vez que surgem diversas indagações que são próprias do campo filosófico. Enganam-se, pois, aqueles que pensam que a reflexão da pena deve ser resolvida apenas por juristas, desconsideram estes que a pena não é fenômeno apenas do direito, mas fenômeno social. Locupletam-se, assim, nesse sentido a filosofia e o direito. Procederemos, então, um debate sobre as funções das penas, a se especificar, doravante, na questão de prevenção geral inerente a esta, tecendo apontamentos sobre uma possível ilegitimidade desse fim em especial, apresentando algumas soluções e justificações que são dadas a embasar a problemática. Com olhos críticos, buscar-se-á selecionar a resposta mais adequada, falando então da intervenção mínima como fator de atenuação dos males do

2 FINALIDADE DAS PENAS

O crime como sombra do homem sempre o acompanhou, a pena, então, como resposta ao crime, sempre o buscou evitar. Dessa assertiva, extrai-se a finalidade precípua da pena: o combate ao crime. A contradição entre crime e pena e sua evolução não constitui apenas a história das searas criminalista e penal, mas a própria construção do direito. No decorrer da progressão dessas idéias a pena ganhou novos fins que, a princípio, nada mais são do que decorrência daquela finalidade maior e inicial que é o combate ao delito.

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sistema penal.

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FIDΣS Primordialmente, são três as correntes doutrinárias que tratam desses novos fins, tendo seu auge no decorrer do século XVIII. As teorias absolutas consideram a pena intrinsecamente justa, uma vez que situam seu fundamento e seu fim na natureza absoluta dela, defendendo o caráter retributivo da pena, ou seja, o mal feito pelo indivíduo que viola a norma há de ser reparado com outro mal, a pena (MIR PUIG, 1994, p. 35). Este é o posicionamento de Kant (2003, p. 175), para quem a pena é um imperativo categórico, deste modo ela seria uma conseqüência natural do delito, a pena deve ser aplicada contra o delinqüente pela simples desobediência do imperativo, seria uma violação de ordem moral. Por sua vez, Hegel fundamenta a função retributiva na consideração de que se deve proteger os postulados do direito que, quando descumpridos, fazem gerar, por compensação, a pena. Para ele:

A violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida, uma existência positiva exterior, mas contem a negação. A manifestação desta negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesmo mediante a supressão da violação do direito. (HEGEL, 1997, p. 87)

As teorias relativas, diferentemente, atribuem à pena um sentido utilitário (MIR PUIG, 1994, p. 35). Dá-se ênfase nestas ao caráter preventivo das penas. Surgem em contraposição às teorias absolutas, que têm raízes na vingança privada, criticando a

vingativo, nenhuma utilidade social. Cesare Beccaria trouxe a tona os males relativos ao retribucionismo, impulsionando o desenvolvimento teórico do caráter preventivo da pena. Nessa lógica, “é preferível prevenir os delitos a ter de puni-los” (2003, p. 101). Após essas críticas mais vozes surgiram. Na Inglaterra, Bentham, (2002, p. 22-23) também difundia a teoria da prevenção como sendo esta tão ou mais fundamental do que a própria vingança, assinalava que: “quando acontece um ato nocivo, um delito, dois pensamentos se devem oferecer ao espírito do Legislador ou do Magistrado: o modo de prevenir o crime para que não torne a acontecer, e o meio de reparar quanto for possível o mal, que tem causado”. Em outra corrente, apresentam-se as teorias mistas ou ecléticas que, basicamente, mesclam as duas correntes anteriores (MORAES, 2006, p. 128). Conjugam-se, assim, como

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desumanidade da retribuição por si só, alegando que esta não tinha, além de sanar o ódio

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FIDΣS caráter das penas tanto a sua retributividade como a sua prevenção, não havendo, segundo esta, uma sobreposição de uma a outra. Por fim, contemporaneamente, com o Direito Penal se tornando cada vez mais humanista e ainda com a subordinação deste às garantias constitucionais, fala-se no caráter ressocializador da pena (MIRABETE, 2008, p. 245). Tendo como premissa básica fazer o condenado ser reinserido na sociedade, o que busca excluir, de certa forma, a retribuição pura. Não obstante haver uma propensão a restringir os efeitos do caráter retributivo das penas, em detrimento de uma valorização do caráter preventivo. Verificam-se diversos problemas ligados a este último, a ser tratado em tópico posterior.

2.1 Do caráter preventivo geral e especial

Brevemente, explanar-se-á sobre a distinção entre a prevenção geral e a prevenção especial, dado que, embora ambos componham o caráter preventivo da pena, aqui se dará destaque àquele primeiro, cerne das discussões da legitimidade da função preventiva. De maneira simplificada podemos trazer as lições de Mirabete (2008, p. 245), para quem o fim da pena é: “a prevenção geral, quando intimida todos os componentes da sociedade, e de prevenção particular, ao impedir que o delinqüente pratique novos crimes, intimidando-o e corrigindo-o”. A prevenção geral, quando intimida todos os componentes da sociedade, e de prevenção particular, ao impedir que o delinqüente pratique novos crimes, intimidando-o e corrigindo-o. O que se percebe, então, nesta distinção é a diferença de destinatários. Enquanto na

prevenção geral, todos os membros de uma comunidade sob os efeitos de um Direito Penal são submetidos a coerção, com vistas a não consecução de crimes.

2.2 A problemática da função preventiva geral

É fato que o caráter preventivo geral é hoje uma das finalidades da pena. Contudo, é absolutamente discutível a questão de sua legitimidade. Não se está negando que para o Estado esse caráter tenha uma função essencial que transpassa a ótica do combate ao crime consumado, servindo de verdadeiro controle social, mas se está indagando qual é a idoneidade dessa coerção.

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prevenção especial, a intimidação se liga ao indivíduo que já cometeu um delito. Na

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FIDΣS Ao se falar dos principais fins das penas, percebe-se que elas, em geral, se destinam aos delinquentes. A retributiva só tem vez quando algum bem é lesado, da mesma forma a preventiva especial e a ressocializadora. Porém, como exceção, o caráter preventivo geral se destina não apenas aos que infringiram os imperativos estatais, mas também aqueles que praticam atos harmônicos àquela ordem. O sistema penal que visa dar proteção aos cidadãos se vê paradoxalmente atentando contra estes. O caráter preventivo geral que busca a segurança dos cidadãos acaba por intimidá-los. Não é difícil prever que o regime de controle social, necessário a ordem e a organização estatal, passa-se a um regime de terror social, limitando excessivamente as liberdades humanas. Compartilha desse entendimento Santiago Mir Puig (1994, p. 38): Un Estado democrático ha de apoyar su derecho penal em el consenso de sus ciudadanos, por lo que La prevencion general no puede perseguirse a través de la mera intimadacion que supone la amenaza de La pena para lo posibles delicuentes, sino que há de tener lugar satisfaciendo la conciencia jurídica general mediante la afirmacion de las valoraciones de la sociedade.

Para Feuerbach (citado por MORAES, 2006, p. 127), formulador da teoria da intimidação e constrangimento psicológico, desdobramentos da teoria da prevenção geral, a pena deve infundir o terror além de internalizar a ameaça do seu mal. Esta concepção do valor da pena é inconcebível num Estado Democrático de Direito, posto que neste é basilar o princípio da dignidade da pessoa humana como limitador das ações

sendo cabível uma extrapolação do uso daquelas para que este tenha um controle arbitrário e nocivo. Nesse entendimento o eminente Juiz Federal Edílson Nobre (2000, p. 187), baseandose nas lições de Ernesto Benda, assevera que “a consagração [...] da dignidade humana como parâmetro valorativo evoca, inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto de ação estatal”. A problematicidade da prevenção geral, no entanto, é mais ampla do que se imagina, encontrando, além do atentado à dignidade da pessoa, outras disfunções. Estas se apresentam em dois âmbitos, um interno e outro externo, atinente à sua eficácia. As incoerências internas são inerentes a uma finalidade da pena preventiva intimidatória, deixando uma lacuna concernente ao momento de execução da pena. O que se

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estatais. Destarte, o Estado, com o uso das penas, tem de respeitar a esfera individual, não

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FIDΣS percebe com isso é que um possível autor punível concreto, uma vez que cometesse o crime não reconheceria nenhum sentido na execução de sua pena, uma vez que a finalidade desta seria meramente prevenir o delito (neste caso já cometido). A pena imputada a ele serviria apenas como meio para outro fim, o de prevenir outros indivíduos. Assim considerada a pena atentaria contra a dignidade do próprio condenado, pois este seria tratado como mero objeto. Portanto, a execução da pena, segundo esta teoria, seria apenas um mal necessário para a intimidação dos demais não contribuindo em nada para a efetiva realização dela (MORAES, 2006, p. 128). A fragilidade do caráter preventivo ainda é deflagrada quando posto empiricamente, demonstrando um déficit de eficácia (MIR PUIG, 1994, p. 47). Isto decorre dos pressupostos de sua eficácia, que são basicamente dois: primeiro, a necessidade por parte dos destinatários de conhecimento dos fatores que desenvolvem o Direito Penal preventivo, ou seja, o cunho ameaçador das penas. De nada adianta a intimidação se os cidadãos agem conforme o direito sem o conhecimento da ameaça, pois o resultado pretendido foi obtido por meio diverso; do mesmo modo, se faz mister a motivação de seu comportamento idôneo pelos fatores da ameaça, ou seja, o mero conhecimento da ameaça seria estéril se os destinatários agiram conforme a lei motivados por outro motivo que não seja a ameaça em si. Corroborando o exposto, a assertiva precisa de Winfried Hassamer (1993, p. 36-37): A intimidação como forma de prevenção atenta contra a dignidade humana, na medida em que ela converte uma pessoa em instrumento de intimidação de outras e, além do mais, os efeitos dela esperados são altamente duvidosos, porque sua verificação real escora-se necessariamente em categorias empíricas bastante

Com base nisto, pode-se considerar a prevenção geral como intimidação uma moeda de duas faces, ambos desinteressantes. Ou os destinatários aceitam a teoria, atendendo seus pressupostos de eficácia, tendo assim sua dignidade ferida, ou eles não considerariam tais pressupostos, o que tornaria a intimidação inócua. Desta maneira se percebe a fragilidade da prevenção geral, pois sua inaceitabilidade transpassa a coação psicológica strictu sensu, e encontra barreiras em sua própria teoria bem como quando concebida em uma realidade social.

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imprecisas.

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FIDΣS 3 CONTRATUALISMO Nos dizeres de Roberto Lyra (1955, p. 30) “todas as teorias sobre o fundamento e o fim do direito de punir podem ser concentradas em três idéias: justiça, ou expiação; defesa social, ou intimidação; contrato social”. Assim se pode perceber que o renomado autor diz (1955, p. 30) que quando se fala em direito de punição e seus fins, ou seja, ao se falar em pena, três pensamentos embasadores podem ser concebidos: a justiça, sobre o que não cabe falar nesse trabalho, dado que compõe uma teoria distinta do nosso propósito; a intimidação, já desenvolvida e criticada alhures, no tópico sobre a prevenção geral como intimidação; e o contrato social, que discorreremos a partir daqui. O contratualismo não é doutrina homogênea, abrangendo diversas teorias que têm em comum o ponto de partida que é o contrato social. Vários pensadores já cuidaram do tema em diversos períodos da nossa história, desde Hobbes e Locke até Rousseau e Rawls. Contudo, aqui, não nos cabe ver essas teorias individualizadas, mas sim o que elas têm em comum, como já dito, a idéia do contrato. Esse pensamento determina, em linhas gerais, um contrato, no qual os indivíduos abdicam de parte de sua liberdade, com o objetivo de uma sociedade mais segura. Passa-se assim de um estado de natureza para a sociedade civil de fato. É com base nessa concepção que se defende a legitimidade da função preventiva geral da pena. Basicamente, argumenta-se que o contrato social, como medida de segurança, atribuiu ao Estado o monopólio da força a ser usado contra os que delinquirem. Essa força se

preventivos intimidatórios passa a ser idôneo, como o uso da força o é. Tem-se que os argumentos dessa teoria demonstram alguns pontos bastante fracos, por serem em demasia abstratas suas justificações. Embora se deva ser respeitoso com as teorias contratualistas, há de se admitir que elas são ficções criadas no intuito de certas justificações. Não se pode atribuir tudo ao contratualismo, sob pena de se permitirem assim verdadeiras arbitrariedades, pois poderiam ser justificadas, nessa abstração, até Estados autoritários que suprimem qualquer liberdade individual em busca da segurança coletiva. Mesmo assim, se considerássemos as teorias contratualistas como legitimadoras do nosso sistema de penas, indubitavelmente não poderíamos dizer que elas legitimam qualquer Direito Penal, posto que o que se visa com este é a segurança, e um sistema de penas

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traduz em legalidade quando se fala em Direito Penal e assim o uso das penas para fins

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FIDΣS arbitrário e intimador, como se dá quando o caráter preventivo geral se faz forte, acaba acarretando a insegurança das relações, o medo, o regime de terror. Lembremos que, acima do aparato penal, existem garantias para limitá-lo, e a dignidade da pessoa humana visa exatamente restringir a função preventiva da pena intimidatória. Um sistema que a utiliza de maneira excessiva não se justifica nos moldes do contrato social e do Estado Democrático de Direito.

4 UMA SOLUÇÃO INCONCEBÍVEL: O ABOLICIONISMO

Diante de um contexto de deslegitimação dos sistemas penais, pensadores como Baratta, Zaffaroni e Ferrajoli, mediante diferentes propostas, perceberam a necessidade da elaboração de teorias a fim de extirpar tal mácula do direito e, consequentemente, da sociedade. Interessante posição foi a tomada por acadêmicos da Europa, tais como Louk Hulsman e Rolf De Folter, em meados do século XX, assumindo uma opinião de que o problema da legitimação do Direito Penal era ele mesmo. Desta forma esses críticos tinham como objetivo maior a extinção do próprio Direito Penal. O ideal abolicionista foi recepcionado pelos demais doutrinadores com demasiada desconfiança por considerá-lo revés, rebatendo-o com inúmeras críticas, em geral classificando tal teoria como uma espécie de anarquismo penal (ZAFFARONI, 1998, p. 100). Não obstante, mesmo os críticos mais ferrenhos têm de considerar a originalidade do abolicionismo, movimento que não soluciona, mas, incontestavelmente, abre as portas para

É importante ressaltar que a adoção do abolicionismo não implica numa ausência de controle social:

El abolicionismo no pretende renunciar a la solución de los conflictos que sea necesario resolver, sino que casi todos sus autores parecen proponer una reconstrucción de vínculos solidarios de simpatía, horizontales o comunitarios, que permitan esas soluciones sin apelar al modelo punitivo formalizado abstractamente (ZAFFARONI, 1998, p. 109).

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uma futura solução.

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FIDΣS Na visão de Zaffaroni, o abolicionismo parece uma teoria muito sedutora, no entanto não se pode fechar os olhos para as suas explícitas fraquezas que prenunciam sua inaplicabilidade. Para Ferrajoli (citado por ZAFFARONI, 1998, p. 108) o abolicionismo como alternativa engendra num perigo maior ainda que o próprio Direito Penal deslegitimado. Sustentando a sua crítica ele supõe dois acontecimentos possíveis numa sociedade sem Direito Penal, uma possível reação vingativa descontrolada, seja estatal ou individual; e um disciplinarismo social excessivo mediante a intervenção do autocontrole, incorrendo numa política moral coletiva em mãos do estado. O abolicionismo é, também, totalmente inexeqüível numa realidade social de países como o Brasil, onde os caracteres da pena que mais se perpetuaram ao longo do tempo foram o retributivo e o preventivo, além da ineficiência sistêmica quanto à contenção da criminalidade. A imposição da teoria discutida nesses países pode ensejar numa sequência inconsequente de crimes, prejudicando, mormente os não delinquentes que, por sua vez, além de serem lesado, se encontrarão desprovidos de meios para se proteger de futuras lesões. Ademais, apesar de seus vícios (por exemplo, a prevenção geral) o Direito Penal dá ao Estado segurança, protegendo o indivíduo de possíveis lesões. Estas lesões, por sua vez, dificilmente cessarão, pois sempre haverá indivíduos predispostos a delinquir (o que se depreende de uma simples análise da história da humanidade, na qual o delito sempre esteve presente). Consoante isso fica evidente o candor demonstrado pelos teóricos abolicionista ao quererem abolir o Direito Penal. Obviamente que o Estado, muitas vezes, se comporta como opressor, o que é absolutamente repudiável, porém há de haver uma maneira de proteger os

5 UMA POSSIBILIDADE: A INTERVENÇÃO MÍNIMA

A função intimidatória do caráter preventivo é inerente às próprias penas, sendo assim é impossível separá-las absolutamente. De tal forma que querer excluir o caráter preventivo geral das penas, só seria possível com o abolicionismo daquelas, o que já se demonstrou não se estar de acordo, dadas as dificuldades dessa teoria. No sentido contrário, percebe-se um sistema de penas exacerbado e intimidador que se diz justificado pelas teorias contratualistas, mas refutada a hipótese, demonstra-se o paradoxo desse sistema que visa à segurança, mas traz a insegurança pelo medo.

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indivíduos de ambas, lesões e opressões.

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FIDΣS Por um lado, tem-se a exclusão do Direito Penal, afastando os males, contudo trazendo diversos problemas a solucionar. No outro pólo, temos o excesso deste, violando de modo desproporcional a esfera individual de todos. Utilizando do aparato penal constantemente, o Estado, por vezes, cria um regime de terror, na qual a obediência se dá pelo medo e não pelo dever ou moral. Entendidos os dois lados, parece, à primeira vista, não existir saída razoável para o problema, já que todas as soluções parciais trazem severas consequências. Todavia, a impossibilidade de soluções é aparente. Pois, em resposta às teorias extremadas e, por que não dizer, radicais, pode-se adotar um meio termo que balanceia os efeitos positivos e negativos, tornando suportável a cominação das penas ao atenuar seus efeitos. Chama-se essa corrente de minimalismo ou de intervenção mínima (ZAFFARONI, 1998, p. 93-94). A teoria da intervenção mínima se baseia na idéia de que o Direito Penal é instrumento não apenas subsidiário dos outros direitos, mas extraordinário (ANDRADE, 2006, p. 475-476). Isso porque se entende que ele não é de todo legitimado, só havendo, então, uso de mecanismos ilegítimos quando as situações se mostram necessárias. Nessa visão, não é qualquer bem jurídico ou valor que deve ser defendido pelo Direito Penal, mas apenas aqueles indiscutíveis e essenciais sem os quais seria impossível a manutenção da própria sociedade. Assim, o que se propõe é o enxugamento do sistema penal, de maneira que ele passe a abarcar apenas o primordial. Poder-se-ia indagar: qual o avanço que tal política poderia trazer à questão do caráter preventivo intimidatório das penas? E a resposta primária não poderia ser menos matemática,

além e está no próprio conceito de intimidação. Para isso, daremos um exemplo. Considere-se alguém que é absolutamente convicto da ilegalidade do porte de drogas. Imagine agora que o governo de uma dada localidade promulgue uma lei obrigando a abertura de bagagens nos aeroportos, com vistas à verificação desse porte ilícito. Provavelmente, você não se sentirá intimidado por essa norma se perceber que ela é condizente com a sua própria vontade de impedir o porte de drogas. Daí se tira que a intimidação só existe quando o valor protegido é incongruente com os valores que a coletividade, no geral, quer proteger. O grande problema é que essa opinião social não é harmônica, sendo a questão da intimidação um balanceio que se deve fazer entre o maior número possível de aceitações com o menor número de rejeições. Não se está falando aqui que, dessa forma, se extinguirá o caráter intimidador da pena, pois ele é intrínseco a ela, e sim que haverá uma atenuação dos seus efeitos ao se diminuir a área

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com menos normas, há menos intimidação. Porém, a questão não é apenas isso, vai muito

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FIDΣS de abrangência do sistema penal, dado que mais indivíduos aceitaram naturalmente determinadas normas. O minimalismo assim se apresenta como um modelo absolutamente eficaz ao diminuir a ação estatal e não tirar o instrumento da ordem, que é o Direito Penal. Além disso, no plano empírico é o que se mostra mais adequado (ZAFFARONI, 1998, p. 100). Primeiro, porque é razoável e aceitável uma intervenção mínima, não intimidadora em demasia. Segundo, pois prevalece a segurança do sistema de penas para o caso de existirem atos que infrinjam diretamente os anseios sociais, mantendo-se assim as expectativas da população com relação ao sistema. No entanto, mesmo o minimalismo comporta diferentes reflexões sobre sua identidade, tanto é que é comum, nesse ponto, distinguirem-se dois modelos que dizem respeito exatamente ao que se quer chegar com o minimalismo. Ambas partem do pressuposto de que o Direito Penal se vê deslegitimado. A primeira, contudo, não o vê apenas como deslegítimo, mas como ilegítimo, ou seja, o sistema de penas não é idôneo e jamais será, é como se fosse da natureza desse direito sua não legitimação (ANDRADE, 2006, p. 476). Nesses moldes, é inadmissível, tendo de haver uma transição gradual para o abolicionismo, nesse meio o minimalismo. Assim a intervenção mínima é meio e não fim. Do outro lado, estão aqueles que vêem o Direito Penal temporariamente deslegitimado. Isso não quer dizer que ele não possa se relegitimar, sendo esse o fim visado nessa teoria. A intervenção mínima entra aqui como o que pode fazer o sistema penal ser idôneo, sendo, dessa forma, o fim e não o meio. Um dos mais célebres defensores dessa teoria é Ferrajoli (ANDRADE, 2006, p. 478). É de se perceber que é possível rebater a teoria do minimalismo como meio e do

críticas à teoria que pretende extinguir o Direito Penal. Como já dito, o abolicionismo veio para dar soluções aos paradoxos existentes internamente ao Direito Penal, mas não propôs nenhuma resposta razoável que vise substituí-lo por um melhor sistema quando da proteção dos bens jurídicos fundamentais. Bem verdade que as causas penais, nessa teoria, seriam abrangidas por outros direitos, sobretudo na seara administrativa, conforme propõe Winfried Hassemer (1993, p. 97). Nada obstante, o sistema é duvidoso e questionável, devendo se levar em conta que tal modelo foi idealizado segundo a realidade alemã. A teoria do minimalismo como fim, por sua vez, não apresenta estruturalmente nada a se questionar, mas tem-se nesta um problema de elaboração teórica. Isso porque ela visa a relegitimação do Direito Penal quando esse não pode ser feito, pois a função preventiva geral inerente à pena bem como outras funções desta, tornam-no ilegítimo desde sua criação.

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abolicionismo como fim pelos mesmos motivos esposados anteriormente quando se fez

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FIDΣS Considerar essa teoria como possível, seria esquecer o fato de que a toda pena acompanha, em si, sua ilegitimidade. Não obstante a discordância de ambas as teorias, pode-se utilizar de idéias por elas empregadas na elaboração de uma nova teoria minimalista. Assim, faz-se certa a visão de que o sistema penal é ilegítimo em si mesmo, base da teoria de Zaffaroni e Baratta (ANDRADE, 2006, p. 476), como também a idéia de que a intervenção mínima deve ser o próprio fim visado, teoria de Ferrajoli (ANDRADE, 2006, p. 478). Destarte, pretende-se com essa nova concepção minimalista atenuar os efeitos de um aparato penal deslegítimo, e não relegitimálo, muito menos aboli-lo. Ao minimalismo, assim, procede a lógica a qual nos referimos, de que quanto mais aceitável o sistema, melhor, e não mais legítimo, posto que sempre haverá, dentro mesmo da lógica preventiva, aqueles que não aceitam certas normas do sistema, havendo assim intimidação para que elas sejam feitas valer sobre esses. Portanto, a nova concepção minimalista aqui proposta vê na diminuição da regulação penal o sentido do abrandamento dos seus maléficos efeitos. A sociedade continuará protegida por este, mas haverá muito mais certeza de que não serão os indivíduos coagidos sem razão, dado que nesta teoria minimalista os bens a serem protegidos são genericamente aceitos. Esse é o Direito Penal do Estado Democrático de Direito, aquele que assegura e não atormenta.

6 CONCLUSÃO

Em linhas finais, podem-se arrolar três conclusões do presente artigo. A primeira

decorrência da intimidação intrínseca a esta. O problema, portanto, encontra-se na própria pena, e não sendo externo ao Direito Penal. Desta maneira é posta em dúvida sua legitimidade, passando a ser questionado. Em segundo lugar, num Estado Democrático de Direito não se pode conceber uma sociedade intimidada pela proteção exacerbada nem, tampouco, carente de proteção. Algumas teorias tentaram encontrar soluções para este celeuma, no entanto, todas elas são passíveis de críticas as quais nos fazem refutá-las, seja pela sua fragilidade teórica, seja pela sua inviabilidade prática. Por fim, com vistas à problemática, adotou-se uma proposta distinta das demais, a qual se individualiza pela escolha da intervenção mínima como fim ao Direito Penal sem, todavia, buscar sua relegitimação, mas sua aceitação, restringindo seu caráter intimidador.

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delas consiste na confirmação da ilegitimidade do caráter preventivo geral das penas em

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FIDΣS Que o Direito Penal, então, sirva como instrumento, e não como um meio instrumentalizador das pessoas.

REFERÊNCIAS

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ZAFFARONI, Eugênio Raul. En busca de las Penas Perdidas: Deslegitimacion y Dogmatica Juridica-Penal. Buenos Aires: EDIAR, 1998.

LEGITIMACY OF THE PREVENTIVE CHARACTER OF THE PENALTY: A DISCUSSION OF THEIR SOLUTIONS

ABSTRACT The intimidating general prevention proposed by Feuerbach reflects in the modern criminal law. It’s perhaps the most pernicious purpose of the penalties, since attacks the human dignity. Just as the law itself, this theory justified by the social contract idea. This theory gave birth to questions that concern the legitimacy and existence of the criminal

minimalist. In this context, in opposition to the intimidating nature of general prevention, it’s proposed a different placement of this front, by giving a minimalist solution to the problem presented to preserve the limited guarantees of the coercive power of the state. Keywords: General Prevention. Human dignity. Criminal Law. Abolitionism. Minimalism.

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law and therefore flourish the abolitionist ideal, and also the

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FIDΣS Recebido 25 ago. 2011 Aceito 22 out. 2011

AÇÕES

AFIRMATIVAS

NO

BRASIL:

UMA

ANÁLISE

ACERCA

DA

DISCRIMINAÇÃO POSITIVA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL Nathália Maria Ariston Trindade

RESUMO O artigo versa sobre a emblemática questão das ações afirmativas no Brasil. Serão abordadas as principais críticas dirigidas a estas medidas afirmativas, bem como serão explicitadas minuciosamente as razões que fundamentam a sua instituição. Será traçado, ainda, um paralelo entre a necessidade de promover “ações de discriminação positiva” e o papel reservado ao Estado Democrático de Direito, o qual tem o dever de fomentar a cidadania e promover uma efetiva justiça social, respeitando a dignidade dos sujeitos de direito concebidos em suas especificidades e diversidades.

humana. Justiça social.

1 INTRODUÇÃO

A história está repleta de eventos lastimáveis, que infelizmente marcaram épocas vivenciadas por inúmeras formas de discriminação cometidas pelo homem em desfavor do seu semelhante. Como exemplo disso, temos a escravidão, a xenofobia, o nazismo, dentre outras práticas repudiáveis pelo direito pátrio e por toda a comunidade internacional.

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Palavras-chave: Ações afirmativas. Igualdade. Dignidade da pessoa

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FIDΣS Neste contexto, as ações afirmativas, também conhecidas como “discriminação positiva”, têm sido constantemente alvo de grandes discussões, em razão da polêmica que reveste essa temática, tendo em vista que por vezes suas finalidades são distorcidas por aqueles que questionam sua efetividade, seja na implementação do princípio da igualdade (substancial), seja na consecução da justiça social. Com efeito, no intuito de extinguir as inúmeras formas de discriminação que assolavam a humanidade, a concepção da isonomia formal foi enaltecida, tendo se buscado a positivação da igualdade perante a lei. Por outro lado, um comando genérico, abstrato e geral tornou-se insuficiente para tutelar alguns direitos que os indivíduos possuíam em virtude das suas especificidades. Nasce, então, a necessidade de concretização da igualdade substancial, complementada pelo direito à diferença. Destarte, o presente artigo tecerá profundos comentários acerca da utilização das ações afirmativas no contexto brasileiro, sua função social, suas principais conseqüências, sua correlação com o Estado Democrático de Direito e com a efetividade dos valores humanos essenciais positivados no ordenamento jurídico pátrio e internacional. Far-se-á, ainda, uma breve comparação desse instituto com as ações afirmativas no contexto estadunidense, bem como serão destacados os diplomas internacionais ligados ao combate à discriminação, fundamentando, por fim, sua importância para uma efetiva realização da justiça social. Outrossim, como dito, a sua exposição se justifica, precipuamente, em virtude das inúmeras divergências que hoje brotam quando se discute o fomento da chamada discriminação positiva, seja por parte daqueles que apóiam a sua utilização, seja por parte

afirmativas. Ao final, serão expostos os desafios, bem como serão rechaçados os principais argumentos utilizados para rebater a implementação dessas políticas na realidade brasileira.

2 AÇÕES AFIRMATIVAS ABORDAGEM

DA

NO DIREITO COMPARADO: UMA

DISCRIMINAÇÃO

POSITIVA

NA

SUCINTA

REALIDADE

ESTADUNIDENSE

Cumpre, inicialmente, esclarecer o motivo pelo qual serão tecidos comentários acerca das ações afirmativas desenvolvidas nos Estados Unidos da América. A importância desse

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daqueles que repudiam de toda e qualquer forma a inclusão social por intermédio das medidas

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FIDΣS tópico se atém ao fato de ter sido este o país em que as referidas medidas surgiram, bem como tomaram projeção mundial, servindo de espelho para o seu desenvolvimento, inclusive, no Brasil. Ademais, os movimentos sociais brasileiros sofreram grande influência dos movimentos de luta norte-americanos, sobretudo, o movimento negro. Feitas estas considerações, convém destacar o momento em que surgiu o embrião do que são hoje as chamadas ações afirmativas. Surgiram nos EUA, de início, para beneficiar minorias raciais em situação de desvantagem, seja social, seja estatal. Posteriormente, tais ações foram sendo utilizadas no combate à discriminação em geral, pautando-se sobre quaisquer critérios persistentes no sentido de macular a igualdade material entre os sujeitos de uma comunidade, como por exemplo, a discriminação sexual e étnica. Por sua vez, dois principais momentos assentaram as políticas afirmativas: a fase da proibição das discriminações e a fase da instituição de medidas especiais de combate à discriminação. Na primeira supramencionada fase, as políticas das ações afirmativas tinham como finalidade o incentivo à efetividade do princípio da igualdade como proibição de discriminação. Neste momento se desenvolvia o movimento norte-americano de direitos civis, que tinham como objetivo extinguir a triste realidade da discriminação nas relações trabalhistas, em função da raça do empregado. Eram discriminados, além dos negros, os asiáticos e os indígenas-americanos originários do Alaska e das ilhas do Pacífico, os quais eram impossibilitados de ascender profissionalmente, ou até pior, não tinham acesso a diversos postos de trabalho. Diante desta realidade, foram elaborados os seguintes diplomas: a Lei de Direitos

respectivamente, pelos Presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson. A Civil Rights Act de 1964, além de disciplinar as práticas consideradas ilícitas por parte do empregador na relação de trabalho, instituiu também a competência judicial para sancionar

práticas

discriminatórias

intencionais,

por

intermédio

de

provimentos

mandamentais. Foi, pois, o “embrião” das ações afirmativas no contexto norte americano, e, o espelho daquilo que hoje entendemos como ações afirmativas no contexto pátrio. Evoluindo para a segunda fase – da instituição de medidas especiais de combate à discriminação, o discurso mudou o foco, avançando de uma mera preocupação com um combate à discriminação meramente formal, para efetivamente estabelecer uma estratégia mais rigorosa na superação da desigualdade fática. A pobreza e a exclusão em que se inseriam

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Civis de 1964, a Ordem Executiva nº 1961 e a Ordem Executiva nº 11.246, editadas,

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FIDΣS os negros floresceram a preocupação com a efetiva integração destes no âmbito social e econômico, tendo como baliza uma política efetiva de combate à discriminação. Foram pensadas inúmeras políticas, entre elas, a utilização da raça como critério de desempate ou preferência no preenchimento de vagas no mercado de trabalho, o que mais tarde, de forma mais elaborada, se desenvolveria como sistema de cotas raciais. Com efeito, o termo “ação afirmativa” surgiu à época da presidência de John Kennedy (1961-1963), mas ganhou realmente efetividade na gestão do Presidente Richard Nixon (1969-1974). Registre-se que foi desta época a instituição da Equal Employment Opportunity Commision – EEOC –, cuja competência nos limites da lei se delineava na aplicação de sanções a empregadores que atuassem com políticas discriminatórias. No âmbito da Administração, foram instituídas políticas sociais para que as contratações com o Poder Público fossem realizadas com fins de atingir um percentual aceitável de minorias raciais. Na Educação, o Civil Rights Act de 1964 determinou às universidades que promovessem programas de ações afirmativas, mormente, as entidades privadas, beneficiárias de fundos públicos. Assim, após essa breve abordagem histórica acerca do surgimento das ações afirmativas nos Estados Unidos da América, os próximos tópicos tratarão de demonstrar, de maneira clara, o desenvolvimento de tais políticas públicas e suas atuais problemáticas no contexto pátrio.

Em razão de a presente discussão ter como foco principal a justiça social, faz-se necessária uma breve análise do que é justiça. Este termo, porém, encontra-se revestido de uma enorme carga axiológica, permitindo o seu desdobramento em inúmeros conceitos e concepções. Assim, não há como definir de maneira exata o significado da expressão “justiça”. Neste sentido, Bittar (2009, p. 508-509), ao escrever sobre o entendimento do filósofo Chaim Perelman a respeito do que é justiça, aduziu: Chaim Perelman, em seu ensaio sobre a justiça, não admite que esta seja um valor absoluto, mas relativo e impassível de ser definido pelo conhecimento; o valor é

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3 DIREITO, JUSTIÇA E CIDADANIA: UM BREVE DEBATE JUSFILOSÓFICO

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FIDΣS relativo e depende da crença de cada qual. Ora, desta forma, Perelman aponta como saída para o problema, a elevação da questão para o nível da razoabilidade prudencial do diálogo e da argumentação. Portanto, é a discussão racional, sobre valores mais ou menos aceitos, que constitui o objeto de conhecimento sobre a justiça. Estudar justiça, segundo Perelman, é estudar valores, e valores relativos, que se discutem historicamente, socialmente e culturalmente.

Com efeito, tomando como base os ensinamentos de Perelman, extrai-se que a justiça pode ser considerada como a ratio essendi do Direito, ou seja, a finalidade deste. Porém, só pode ser assim imaginada quando se respeita primordialmente o princípio da igualdade. Este, no entanto, pode ser entendido por diversos focos também. Por sua vez, o ideal aqui abordado, em virtude da implementação das ações afirmativas, será a igualdade na sua forma substancial, discutida mais profundamente nos próximos tópicos. Ademais, imperioso destacar que a justiça intrinsecamente relacionada à consecução da cidadania guarda afinidades com as ações afirmativas, na medida em que se tem percebido uma verdadeira mudança de paradigmas, tendo o sujeito de direito deixado de ser visto como ser abstrato e geral para ser considerado em suas diversidades e peculiaridades. Os direitos humanos, inclusive, têm sido observados na sua universalidade e indivisibilidade, o que aliado à ideia de especificidade dos sujeitos de direito, ensejou a edição das Convenções de Combate à Discriminação Racial, da Mulher e a Convenção sobre os Direitos das Crianças. Desta feita, numa realidade que preza pela justiça social, urge a necessidade de realce desta com a redefinição do papel do Estado, conforme será demonstrado em seção própria. O

às minorias, aos grupos vulneráveis, uma vez que a cidadania só é plenamente alcançada com a realização da observância da indivisibilidade e universalidade de direitos humanos, e, consecução do processo de especificação do sujeito de direito.

4 AÇÕES AFIRMATIVAS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

As ações afirmativas têm recebido inúmeras denominações, as quais, muitas vezes findam por concentrar uma carga pejorativa envolta da nomenclatura designada. Muitos as denominam de ideias de cotas, tratamentos preferenciais, discriminação inversa, discriminação invertida, discriminação benigna, entre outras. No entanto, este artigo utilizará

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Estado compromete-se a instituir políticas públicas que destinam um tratamento diferenciado

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FIDΣS predominantemente as nomenclaturas ações afirmativas e discriminação positiva, em virtude de serem mais adequadas ao propósito que as ações em apreço possuem na promoção da igualdade material, bem como no combate a qualquer tipo de discriminação. Imperioso, neste momento, traçar qual relação pode ser extraída entre as diretrizes do Estado Democrático de Direito, a concepção de democracia e as ações afirmativas. Torna-se, portanto, essencial ressaltar aqui alguns fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito, entre eles, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incs. II e III, da CF), além de alguns objetivos da República Federativa do Brasil, tais como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incs. I e IV, da CF). Sobre o Estado Democrático de Direito, preleciona José Afonso da Silva (2007, p. 120):

É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor da justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir.

Vislumbra-se, portanto, nitidamente que o Estado Democrático de Direito busca essencialmente a efetivação da justiça social e da cidadania, por intermédio da concretização dos inúmeros direitos positivados na Constituição, fundamentados, mormente, na dignidade

Ademais, a Constituição Federal de 1988 acompanhou a redefinição do papel do Estado e elevou os direitos fundamentais a clausulas pétreas, garantindo a proteção, inclusive, de direitos coletivos. Buscou assegurar de forma eficaz os direitos nela encartados, não se resumindo a expor simples prescrições legais, como fez o Estado de Direito, cujo princípio basilar era a legalidade. Fez mais, diante dos conceitos gerais, abstratos e prescritos em lei, determinou que o Estado Democrático de Direito deve atuar positivamente com a finalidade máxima de fazer valer os direitos dos cidadãos que estão sob sua jurisdição. O Estado deve ser intervencionista para promover o bem-estar social. Com efeito, no contexto das atuações estatais, surgem as ações afirmativas, por meio das quais o Estado promove mudanças políticas, econômicas e sociais, sendo tais realizações o seu próprio fundamento. Deve o Estado agir sopesando os diversos interesses divergentes e

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da pessoa humana.

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FIDΣS convergentes de uma mesma sociedade para fins de pacificação social, sobretudo, e para o fomento de uma sociedade verdadeiramente igualitária. Para tanto, deve tomar como norte os princípios constitucionais, sobretudo, o princípio da justiça social, da igualdade, da legalidade e da segurança jurídica, em razão dos valores que carregam. Deve observar a supremacia da Lei Maior diante todo o ordenamento jurídico como um dever incondicional na garantia dos direitos prometidos, como forma de respeito ao que se almeja chamar “democracia participativa”. Nesse diapasão, ensina José Afonso da Silva (2007, p. 126) que “democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história”. No mesmo sentido, elencou Robert Dahl (2009, p. 58), algumas consequências desejáveis da democracia, entre elas: o repúdio à tirania, a garantia dos direitos essenciais, a liberdade geral, a autodeterminação, a autonomia moral, o desenvolvimento humano, a proteção dos direitos pessoais essenciais, a igualdade política, a paz e a prosperidade. Desta feita, com base nas constatações alhures, depreende-se que a democracia promove, portanto, o realce da convivência social, respaldada principalmente no valor isonomia (substancial), alvo das ações afirmativas, se alocando como meio e fim do Estado Democrático de Direito, o qual tem como dever a promoção do bem estar dos seus cidadãos, o respeito pelas diferenças, a pacificação e concretização da justiça social.

5 AÇÕES AFIRMATIVAS: RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E

O sistema de direitos fundamentais baseado, mormente, na dignidade da pessoa humana, leva ao entendimento de que o ser humano se posiciona como fundamento e fim da sociedade e do Estado. Assim, muito embora a dignidade preexista ao Direito, fato é que sua proteção apenas adveio após a sua positivação. Contudo, há muito já tem sido observada a sua importância, desde a edição da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 17891, cujo art. 16 preconizou que toda sociedade que não reconhece e não garante a dignidade da pessoa não possui uma Constituição.

1 Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível <http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm>. Acesso em: 25 ago. 2011

em:

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INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

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FIDΣS Por sua vez, Matos (2008, p. 176) ao dispor sobre o princípio em comento, asseverou que “uma das funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana reside justamente no fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional”. No entanto, vale salientar que a dignidade da pessoa humana, em que pese atuar nas funções informativa, interpretativa, normativa e integradora, bem assim como norte na ponderação da aplicação de regras e princípios de todo o ordenamento jurídico, não pode ser utilizada de maneira desproporcional, servindo de fundamento direto para a garantia de todos os direitos, sob pena de banalização do princípio em apreço, como hoje corriqueiramente nos temos deparado. Com isso, atente-se, a dignidade da pessoa humana deve pautar suas funções sempre no reconhecimento de direitos fundamentais para a promoção desta própria dignidade. Há, pois, uma correlação entre esse princípio e a concretização da igualdade material, seja porque fomenta a liberdade sexual, seja porque garante maior proteção às minorias (negros, mulheres), ou porque assegura a eficácia dos direitos sociais por meio das políticas públicas. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, Hesse (1992, p. 109-111 citado por PIOVESAN, 2009, p. 366) prelecionou:

O artigo de entrada da Lei Fundamental normaliza o principio superior, incondicional e, na maneira de sua realização, indisponível, da ordem constitucional: a inviolabilidade da dignidade do homem e a obrigação de todo o poder estatal de respeitá-la e protegê-la. Muito distante de uma fórmula abstrata ou mera declamação, à qual falta significado jurídico, cabe a esse princípio o peso completo

após um período de inumanidade e sob o signo da ameaça atual e latente à dignidade do homem, está no respeito e na proteção da humanidade.

Noutro giro, importa correlacionar também a observância do princípio da igualdade e as ações afirmativas. Isso porque, o princípio da isonomia é corolário da democracia, na medida em que não permite distinções, vedações e perseguições. Visou a Constituição Federal suprimir as desigualdades com base em critérios discriminatórios, quando insculpiu em seu texto legal, inúmeros direitos que buscam promover uma equiparação entre as pessoas. Buscou-se, pois, uma igualdade jurídica, em respeito às desigualdades inerentes a cada ser humano, ao seu contexto social, histórico, econômico, político e cultural.

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de uma fundação normativa dessa coletividade histórico-concreta, cuja legitimidade,

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FIDΣS Convém enaltecer, contudo, que a sociedade passou por mudanças no que concerne à concepção do conceito de igualdade (formal e material). A isonomia formal passou a ser definida como aquela vislumbrada numa simples leitura da Constituição quando prescreveu que todos são iguais perante a lei. Porém, não era suficiente para garantir os direitos mais essenciais ao homem, em que pese ter sido um grande avanço das Declarações de Direito ter consagrado em seus textos legais a pretensão à isonomia formal, glorificada na legalidade como limitação ao poder soberano. Com efeito, na atualidade, não há mais espaço para uma isonomia meramente formal. Deve o espaço ser ocupado por uma preocupação com a realização da isonomia verdadeira substancial, que destina tratamentos desiguais aos cidadãos, na medida de suas desigualdades, particularidades e especificidades. Com essa nova necessidade de fornecer sustentabilidade à igualdade material, surgiram e se destacaram as ações afirmativas, as quais ampararam as diferenças. Percebeu-se que alguns grupos deviam ser diferentemente reconhecidos, em razão da sua vulnerabilidade, o que autorizaria um tratamento específico, sem com isso ferir o princípio da igualdade. Por sua vez, para fins de consubstanciação da igualdade material, são necessárias duas ações: uma no sentido de combate à discriminação e outro no sentido de promover a igualdade, não podendo ser trabalhadas de forma dissociada. Neste diapasão, no contexto internacional foram celebradas inúmeras Convenções, entre elas, a Convenção de Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ambas ratificadas pelo Brasil. Com elas, procurou-se erradicar qualquer forma de discriminação

direitos. Entretanto, o simples combate à discriminação e as ações voltadas à sua eliminação não garantiram de todo a realização de uma isonomia material. Aliadas às formas de combate à discriminação, precisaram ser propostas também formas de estimulação da inserção dos grupos vulneráveis no contexto político, social e econômico, medidas verdadeiramente interessadas em promover uma equiparação entre os indivíduos de uma sociedade. Para tanto, se mostraram como boas alternativas as ações em apreço de caráter temporário. Tais medidas, por outro lado, não devem ser observadas apenas pelo prisma retrospectivo, como uma compensação a um passado discriminatório, mas também pelo prisma prospectivo, que efetivamente vise promover uma transformação de inclusão social.

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consubstanciada em atitudes que distinguem, excluem, restringem, anulam ou prejudicam

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FIDΣS Como dito, devem também ser temporárias, cessando logo após alcançados os seus objetivos, sob pena de perpetuar uma discriminação sem finalidade justa. Sobre o tema, obtempera Flávia Piovesan (2009, p. 189): As ações afirmativas, enquanto políticas compensatórias adotadas para aliviar e remedias as condições resultantes de um passado discriminatório, cumpre uma finalidade pública decisiva ao projeto democrático, que é a de assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve se moldar pelo respeito à diferença e à diversidade. Por meio delas transita-se da igualdade formal para a igualdade material e substantiva.

Tecidas as correlações entre o princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana, e as ações afirmativas, a seção seguinte tratará dos diplomas que regem as medidas de discriminação positiva, demonstrando como estas têm sido disciplinadas no contexto brasileiro, afastando qualquer entendimento direcionado a macular a sua constitucionalidade.

6 A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA: PREVISÃO NOS DIPLOMAS LEGAIS INTERNACIONAIS E PÁTRIO

Exaustivamente abordada a questão da importância da implementação das ações afirmativas, convém delinear um breve paralelo acerca de como elas estão inseridas no

destacadas algumas convenções internacionais celebradas no afã de dar suporte a essas políticas afirmativas. Tais Convenções foram gradativamente elaboradas, visto que durante o Estado Liberal buscava-se a preservação de outros direitos, à época de maior importância para o homem, entre eles, a liberdade, a segurança e a propriedade, principalmente em virtude do temor dos abusos que o Estado poderia cometer, findando pela relegação de outros direitos tão importantes quanto os supracitados, como o direito à igualdade. No entanto, com a mudança de valores, a igualdade ganhou destaque entre os direitos fundamentais. Uma igualdade para não permitir mais que grupos, de qualquer raça, sexo, cor, etnia, etc., sofressem atrocidades já conhecidas pela História da Humanidade, que se

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contexto mundial, bem como estão amparadas no ordenamento jurídico pátrio. Serão aqui

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FIDΣS basearam na diferença entre os indivíduos para fundamentar um extermínio, a extinção de uma raça, entre outras inúmeras formas de maltrato e discriminação. Por outro lado, o medo de um tratamento diferenciado que pudesse eventualmente fundamentar novos conflitos, perseguições e privilégios, perdeu espaço, em função da necessidade de conferir aos grupos vulneráveis um tratamento especial, atendidas todas as particularidades e especificidades que o acompanham. A esse respeito, foram ratificadas pelo Brasil, como dito anteriormente, a Convenção da ONU sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, bem como a Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a primeira em 1968 e a segunda em 1984. Seus preceitos se tornaram verdadeiras obrigações no combate aos desrespeitos dirigidos àqueles que de alguma forma são diferenciados por algum critério social, econômico, racial, sexual, étnico, entre outros. Ambas possuem nos seus respectivos arts. 1º2 textos similares, os quais definem a discriminação baseada na raça e no sexo como quaisquer distinções, exclusões ou restrições cujo objetivo seja prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições iguais, dos diversos direitos humanos e liberdades fundamentais. Outrossim, as Convenções acima destacadas previram a possibilidade de adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos com vistas a promover uma ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais, bem como a promoção da igualdade de fato entre os gêneros masculino e feminino. Doutro bordo, impende ressaltar o aparato normativo exclusivamente nacional que deu respaldo as ações afirmativas. Diversamente de como ocorreu nos Estados Unidos da

(obrigam) a utilização das políticas de discriminação positiva.

2 Art. 1º. Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm>. Acesso em: 25 ago. 2011. Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra as mulheres" significa toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/mulher/lex121.htm>. Acesso em: 25 ago. 2011.

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América, o nosso direito pátrio, em sua própria Lei Maior instituiu dispositivos que aludem

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FIDΣS A exemplo, cite-se o art. 3º, incs. III e IV, da Constituição Federal, mencionado alhures, que inseriu entre os objetivos da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda, o art. 5º, inc. LXI, da Lei Maior também fundamenta a constitucionalidade das ações afirmativas, uma vez que dispõe sobre a punição para com aquele que cometem atos discriminatórios atentatórios dos direitos e liberdade fundamentais. Mais especificamente, o inciso XLII do artigo em comento abordou a questão da discriminação racial, ao estabelecer que constitui crime a prática do racismo, sendo inafiançável e imprescritível, sujeitando o infrator à pena de reclusão. Acompanhando os citados preceitos constitucionais, foram editadas as Leis nº 7.716/1989, 9.459/97 e 7.716/1989, as quais tratam dos crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Noutro giro, o art. 37, inc. VIII, garantiu às pessoas portadoras de deficiência física uma reserva percentual de cargos e empregos públicos, bem como foram protegidas, por intermédio do art. 215, §1º, as manifestações culturais indígenas e afro brasileiras. Foi garantida, inclusive, uma proteção especial ao mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, consoante redação do art. 7º, inc. XX, da CF. Com efeito, gradativamente o Estado brasileiro vem interagindo com essa proposta de inclusão social dos grupos vulneráveis, desequiparados, sobretudo, pelo passado discriminatório. Citem-se, ainda, outros exemplos, tais como a “Lei de Cotas”, disciplinada pela Lei nº 9.100/09 e o Programa Nacional de Ações Afirmativas, regulamentado pelo Decreto nº 4.228 de 13 de maio de 20023.

jurisprudência, possuindo incontáveis julgados a favor da sua implementação, rechaçando qualquer tese levantada acerca da sua eventual inconstitucionalidade. Um exemplo recente e 3

O Programa Nacional de Ações Afirmativas possui as seguintes diretrizes básicas: Art. 2º O Programa Nacional de Ações Afirmativas contemplará, entre outras medidas administrativas e de gestão estratégica, as seguintes ações, respeitada a legislação em vigor: I - observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS; II - inclusão, nos termos de transferências negociadas de recursos celebradas pela Administração Pública Federal, de cláusulas de adesão ao Programa; III - observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do Programa; e IV - inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, de dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência.

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Do mesmo modo, as ações afirmativas vêm encontrando embasamento, inclusive, na

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FIDΣS bastante importante para o reconhecimento da constitucionalidade das políticas afirmativas foi o julgamento ocorrido em 19 de março de 2009, envolvendo a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol4.

7 AÇÕES AFIRMATIVAS: CRÍTICAS E CONSIDERAÇÕES

Conforme dito no intróito, alguns dilemas vêm envolvendo à temática das ações afirmativas. Não se aterá esse presente tópico a rebater o argumento amplamente difundido de que as ações afirmativas ferem o princípio da igualdade, em virtude de exaustivamente essa questão já ter sido superada em outras seções. No entanto, outros desafios merecem ser aqui debatidos. Piovesan (2009, p. 204) elenca alguns focos de tensão, dos quais se destacam: a “racialização” da sociedade brasileira e afronta à autonomia universitária, em razão da imposição do sistema de cotas, que serão debatidos em tópico próprio. Elenca, ainda, o eventual antagonismo entre políticas universalistas versus políticas focadas, argumento que pode brevemente ser rechaçado, bastando afirmar que a adoção de EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE. [...] 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (STF. Tribunal Pleno. Pet 3388, Rel. Min. Carlos Britto, j. 19/03/2009, DJe-181. Divulg. 24-09-2009. Public. 25-09-2009. Republicação DJe-120. Divulg. 30-06-2010.

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FIDΣS medidas focadas, como as ações afirmativas, em nada impede o desenvolvimento das políticas universalistas. Podem, inclusive, ser adotadas concomitantemente. Ademais, muito pouco no plano fático tem se alcançado a partir do desenvolvimento de medidas genéricas. Outrossim, não há que se falar também em eventual violação do preceito de proibição constitucional de qualquer discriminação com base na raça ou cor de um indivíduo, estampada no art. 3º, inc. IV, da CF. Ora, este argumento esbarra na sua própria falta de lógica, bastando fazer uma atenta leitura do aludido dispositivo, o qual prevê a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Imperioso destacar que, visando o combate à discriminação seja por qualquer critério que se baseie, pareceria um dissenso acolher a argumentação completamente sem fundamento de que as ações afirmativas violam o art. 3º, inc. IV da CF, a menos que não se queira entender a finalidade das políticas afirmativas, ou não as entenda como medidas que visem justamente o combate a tão repudiada discriminação. Assim, uma alternativa que surgiu justamente para superar perseguições, abusos e exclusões, não pode ser explicitada num plano contrário aos objetivos da República Federativa do Brasil. Ademais, não há nenhum desrespeito à dignidade da pessoa humana, argumento amplamente já rechaçado em tópicos anteriores. A respeito dessa eventual afronta, entende Rios (2008, p. 200) que não ser discriminado é parte inegável daquilo que é devido a cada ser humano em uma sociedade. Assim, não há jamais que se falar que a dignidade de alguém é ferida por ser reduzido à condição de meio ou polarizado como vítima de um passado injusto. Na verdade, percebam, que negar que os negros, por exemplo, foram e até hoje

realidade fática ainda presente nos dias atuais. Neste aspecto, conclui Rios (2008, p.200):

Desprezar esta realidade é não reconhecer este dado importantíssimo da realidade concreta, onde tais pessoas vivenciam sua história. Este reconhecimento da concretude humana é tão necessário para o respeito à dignidade quanto evitar sentimentos paternalistas que conduzem à inferiorizarão do outro.

Impende destacar que não se pode conceber também seja um atentado à justiça social. Ora, promover o bem de todos sem preconceito é uma forma de fomentar a justiça social, aliás, é um dever de todos, em respeito à própria dignidade da pessoa humana e dos fins da

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continuam sendo vítimas de uma infindável discriminação racial e social, seria ignorar uma

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FIDΣS democracia. Então, como aceitar que as ações afirmativas como uma das alternativas capazes de implementar os objetivos prometidos em nosso direito pátrio, estaria a violar a justiça social? Como dito, justiça não é um termo fácil de exprimir seu significado, podendo ser vislumbrado em diversas concepções. Contudo, existem ações que inegavelmente contribuem para a realização da justiça, e entre elas, sem dúvida, se encaixam as medidas afirmativas. Será que toda uma comunidade não ganha quando se busca promover o bem de todos, quando se tem como alvo superar a discriminação? A resposta só pode ser positiva.

7.1 As ações afirmativas no contexto das Universidades Brasileiras: cotas para negros

Por fim, faz-se imprescindível, em razão de ser o ponto mais questionado quando se trata de ações afirmativas, cuidar especificamente das cotas raciais para o ingresso nas universidades brasileiras. Isso porque, além de todos os dilemas acima rebatidos, tais políticas específicas possuem desafios particulares, os quais merecem ser aqui explicitados. Cumpre, pois, trazer à baila as principais problemáticas envolta dessa questão para melhor elucidação do tema. De início, um interessante esclarecimento elaborado por Nilma Lino Gomes (2006, p. 13-14) Alguns (ou muitos) poderão dizer, com efetiva razão, que nós demoramos muito a chegar a essa posição. De fato, elevar o debate sobre promoção da comunidade afro descendente, nesses termos – transcorridos 116 anos de liberação do trabalho escravo -, é quase uma eternidade, toda sorte, esse momento reflete, também, a

formação educacional e política, pode se colocar na posição de questionar o que lhe reserva o futuro em termos de sua seguridade social, econômica e, também política.

Convém ressaltar o início desta calorosa discussão, a qual, em que pese ter iniciado na década de 90, com a difusão dos pré vestibulares populares, cujo protagonista foi o Movimento Pré Vestibular para Negros e Carentes – PVNC –, criado em 1993, na cidade de São José de Meriti, ganhou força a partir de 2003, no emblemático vestibular para ingresso na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ –, conhecida pela sua excelência e elitização [colocar a referência]. O que pautou esse polêmico vestibular foi a aprovação das cotas pela Lei Estadual nº 3.708/2001, a qual assegurou 40% das vagas para negros e pardos. Entretanto, a referida Lei,

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emergência de um grupo que, a despeito de todos os constrangimentos à sua

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FIDΣS embora tenha garantido uma ampla possibilidade de acesso dos negros e pardos à Universidade Estadual, teve a seção que disciplinava a responsabilização do governo do Estado no fornecimento de recursos para a permanência dos alunos cotistas na referida Universidade vetada. A discussão ficou ainda mais intensa, no momento da divulgação do resultado do primeiro vestibular com cotas da UERJ, quando foram publicadas as notas dos alunos ingressantes por meio desse benefício. No entanto, não deveria ter sido feito nenhum alarde diante das constatações explicitadas à época. Se os alunos cotistas tivessem obtido resultados tão bons ou superiores àqueles que ingressaram sem a necessidade do sistema de cotas, não haveria razão para estas existirem. Assim, utilizar esse argumento é relegar o fundamento das cotas, qual seja, dar oportunidade a quem dificilmente teria condições de ingressar sem qualquer “auxílio” em uma universidade pública. Aliás, esclareça-se que um terço dos cotistas ingressariam sem a referida reserva. Aliás, muitos daqueles que impetraram mandado de segurança se sentindo injustiçados pelo sistema de cotas, sequer obtiveram êxito ao final do vestibular, sequer alcançaram a nota mínima para ingresso na UERJ. Nesse contexto, foi, então, editada nova Lei, garantindo 45% de vagas para alunos cotistas, distribuídas da seguinte forma: 20% para negros, 20% para egressos da rede pública de ensino e 5% para pessoas portadoras de deficiência e integrantes de minorias étnicas. Quem quisesse ingressar na Universidade pelo sistema de cotas, deveria apenas escolher um tipo desta para concorrer. Foi introduzido um corte de renda, por meio do qual se instituiu já para o vestibular de

o vestibular de 2005, a renda não poderia ser superior a R$ 520,00 (quinhentos e vinte reais). Gomes (2006, p. 30), observou de forma exemplar a nova relação instituída:

Esse cruzamento atenta e realça a existência de verticalidades interna ao grupo dos negros, através do corte de renda, excluindo os negros das classes médias e alta do acesso ao benefício das vagas reservadas – ainda que, em relação aos brancos de classe média e alta, estes não mantenham relações horizontais na totalidade de sua experiência social, visto que também sofrem o racismo e a discriminação em diversos espaços e momentos de sua formação e trajetória social.

Todavia, os murmurinhos continuavam, era alegado que as cotas feriam o princípio da isonomia, instauraria conflitos raciais no âmbito acadêmico universitário e prejudicariam o

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2004 a renda per capita da família do beneficiário em até R$ 300,00 (trezentos reais). Já para

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FIDΣS rendimento da universidade. Surgia, ainda, a tese persistente, mas pouco pertinente de que o Brasil, por ter sido um país com forte miscigenação, todos poderiam se afirmar afrodescendentes. Impende fazer uma simples constatação: os critérios de classe social e raça sempre foram utilizados como apoio a racialização da sociedade e exclusão dos grupos desfavorecidos. Então, essa hostilidade racial não pode ser suscitada como argumento contrário às ações afirmativas. Se desde o passado se percebe essa racialização, contudo dita instaurada a partir das costas, que seja assim feita para beneficio de quem por séculos sofreu e continua a sofrer discriminação. Destarte, em que pese não se negar a existência de uma forte miscigenação, a autodeclaração como sistema de identificação é normativamente positivada no direito pátrio, não ocorrendo apenas para identificação a respeito de raça, mas também identificação para minorias étnicas, bem como reconhecimento indígena. Ademais, se diz que as cotas ferem o dispositivo constitucional expresso no art. 208, inc. V, o qual dispõe sobre o dever do Estado com a educação, por meio da garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. Alegam os opositores às cotas, que estas desconsideram o mérito individual exigido pelo dispositivo constitucional. Por sua vez, este dilema pode ser rebatido da seguinte forma: não há qualquer dispositivo constitucional que imponha a pontuação como único requisito apto a aferir mérito individual nos casos de vestibulares e concursos. Frise-se, que não existem dados que apontem correspondência direta entre o desempenho no vestibular e o respectivo rendimento

Por outro lado, não se pode relegar a garantia de uma concorrência equânime, que dificilmente poderia ser alcançada sem o auxílio das cotas, infelizmente, fruto do racismo e da discriminação de toda uma História. A respeito, (DWORKIN citado por RIOS, 2005, p. 569).

Os responsáveis pelas admissões não devem oferecer vagas como premiações por realizações ou trabalhos passados, nem como medalhas por talentos ou virtudes inerentes: seu dever é escolher um corpo discente que, no todo, venha a dar a maior contribuição possível às metas legítimas que a instituição definiu.

Há, inclusive, os mais radicais que questionam a entrada dos negros por cotas, sob a alegação de que mudará radicalmente o perfil dos alunos que ocupam as universidades do

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dentro da sala de aula.

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FIDΣS país. Ora, essa realidade não começou com o ingresso dos negros por intermédio das cotas, mas sim, desde o momento em que foram instituídas as cotas para alunos egressos da rede pública de ensino. Contudo, o debate só veio à tona quando alunos cotistas iniciaram a graduação de cursos com alto prestígio social, a exemplo de direito e medicina, porque até o momento em que ingressavam nos cursos de “baixo prestígio”, poucas críticas eram suscitadas. Igualmente, não se deve entender que as cotas violam a autonomia universitária, entendida como uma independência na definição de critérios de ingresso nas suas dependências, cuja previsão legal encontra-se no art. 207 da CF. Por sua vez, convém dizer que não existe nenhuma quebra da autonomia das universidades. A possibilidade de uso das ações afirmativas, inclusive, adquiriu força a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº. 9.394/96 –, quando prescreveu a seguinte observância: o número de vagas das universidades deve ser atingido em conformidade com a capacidade institucional, bem assim as exigências do meio social. Ademais, a Lei 10.558/2002 determinou a implementação de estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente os afros descendentes e indígenas, o que mais uma vez corrobora a tese de que devem as universidades atuar no sentido de promover a inserção de indivíduos desfavorecidos no seu âmbito. Com isso, e diante todos os argumentos supra, parece superada a questão suscitada de que as cotas raciais são inconstitucionais, não possuem qualquer respaldo legal, bem como fere a dignidade da pessoa humana, o princípio da isonomia, violam a autonomia

para um novo contexto social, econômico e político delineado pela Constituição Federal, que exige do Estado, em seu papel redefinido, verdadeira intervenção em prol do bem estar da comunidade.

8 CONCLUSÃO

Diante tudo o que foi abordado neste artigo, conclui-se que a sociedade precisa de uma mudança de paradigmas. Não se pode deixar que uma situação aparentemente conflituosa entre o dever de observância da igualdade jurídica e a promoção da igualdade fática seja fundamento para

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universitária, entre outros tantos argumentos preconceituosos que insistem em fechar os olhos

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FIDΣS suprimir as medidas afirmativas. Como já explanado no decorrer deste artigo, esse conflito é facilmente superado, utilizando-se da própria ideia de igualdade material. A partir dessa concepção, cuja preocupação precípua é o estímulo da concretização da igualdade na realidade fática, não se pode continuar a enaltecer a simples igualdade que preza de forma abstrata o tratamento igual de todos perante a lei. Um tratamento igualitário meramente formal fere a isonomia, pois não age com cautela, não faz ponderações, não observa as especificidades dos sujeitos de direito, fecha os olhos para uma realidade fática injusta que ainda assola a sociedade. Faz-se imperioso superar qualquer entrave a efetividade das ações afirmativas, a começar pelo preconceito na sua implementação. Com efeito, em que pese não serem as ações afirmativas obrigatórias aos Poderes Públicos, exceto nos casos previamente previstos em lei, a exemplo do percentual destinado aos deficientes físicos para ocupação de cargos públicos, é obrigação, sim, do Estado, em razão da redefinição do seu papel, preocupado com o bem estar social, programar medidas que visem à justiça social, por meio da promoção da igualdade material e a inserção dos grupos mais vulneráveis num contexto fático digno. Para tanto, as medidas de discriminação positiva são boas alternativas nessa luta, embora não sejam as únicas. Excelentes, principalmente porque encontram respaldo constitucional, no momento em que são utilizadas de acordo com os objetivos da República Federativa do Brasil, seus fundamentos, ou simplesmente, porque atuam na finalidade última do Estado, qual seja, a consecução da justiça social. Não resta, pois, qualquer dúvida que a isonomia fática não deve ficar a mercê do pobre

que seja demonstrada a real necessidade de sua utilização, sendo condicionadas dessa maneira aos seus próprios fundamentos de existência.

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discurso vangloriado da isonomia abstrata perante à lei. Basta apenas para sua concretização

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SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

AFFIRMATIVE ACTION IN BRAZIL: AN ANALYSIS ABOUT “POSITIVE

ABSTRACT The article narrates about the emblematic matter of affirmative action in Brazil. It will broach the main critiques drawn towards those affirmative measures, as well as the evidencing of detailed analysis of the reasons that serve as substantiation for its institution. The study will also approach a parallel between the necessity to promote the “actions of positive discrimination” and the role played by the Democratic State of Law, which has an obligation to instigate citizenship and promote effectiveness to social justice, respecting the subject’s dignity in all its diverse specificities.

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DISCRIMINATION” AS AN INSTRUMENT FOR ACHIEVING SOCIAL JUSTICE

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FIDÎŁS Keywords: Affirmative action. Equality. Human dignity. Social

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justice.

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FIDΣS Recebido 25 ago. 2011 Aceito 29 out. 2011

A POLÍTICA DE PESCA SUSTENTÁVEL (LEI Nº 11.959/2009) E A ÉTICA: ENTRE EXCELÊNCIA, DEVER E UTILIDADE Raphael Ramos Monteiro de Souza

RESUMO O trabalho objetiva investigar os fundamentos éticos subjacentes à adoção da política de desenvolvimento da pesca sustentável (Lei nº 11.959/2009). Para além da dogmática jurídica, decerto essencial, busca-se perquirir quais tipos de pensamentos filosóficos embasam a conformação da atividade pesqueira  economicamente relevante e, não raro, de subsistência  em prol da conservação da diversidade biológica. Elegem-se, para tanto, os referenciais aristotélico, kantiano e utilitarista, sintetizados, respectivamente, nas categorias da excelência, do dever e da utilidade. Conclui-se que, na linha da Constituição de 1988 e tratados ambientais, ao harmonizar direitos em

Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável da pesca. Ética. Aristotelismo. Kantismo. Utilitarismo

1 INTRODUÇÃO

O setor pesqueiro movimenta cerca de 5 bilhões de reais por ano no país, empregando 3 milhões pessoas, direta ou indiretamente, com produção total de mais de um

Graduado em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Advogado da União.

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concorrência, a legislação aproxima aspectos das três vertentes.

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FIDΣS milhão de toneladas. A expansão do segmento, bem como a continuidade das espécies estão, no entanto, ameaçadas pela atividade predatória. Dados recentes relativos ao Rio Grande do Norte, por exemplo, apontam uma queda da ordem de 60% na exportação de lagostas  345 toneladas para 125 toneladas  no último triênio, em virtude da pesca irregular e do comércio ilegal do crustáceo 1. Em matéria de combate à atuação proibida, apenas uma operação deflagrada pelos órgãos de fiscalização apreendeu mais de 190 toneladas de pescado ilegal naquele estado2, por violação ao período de defeso. Isto é, pelo desrespeito à paralisação temporária da pesca para a preservação das espécies, em épocas e locais fixados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis  IBAMA. Ao lado do viés repressivo, ações de orientação envolvendo proprietários de bares e restaurantes, capacitação da mão de obra, incentivo à pesquisa de novas técnicas e o pagamento de seguro desemprego a pescadores artesanais, previstas pela Lei Federal nº 10.779, de 25 de novembro de 2003, marcam a face preventiva da atuação estatal nesta seara. Sabe-se que a preocupação com a preservação dos recursos naturais foi intensificada na produção legislativa das últimas décadas, em virtude tanto dos compromissos assumidos no plano internacional como pela concretização de mandamentos previstos na Constituição de 1988. Esta, a par de destinar um capítulo específico ao meio ambiente, insere sua defesa, entre outros, também no rol dos princípios gerais da ordem econômica (art. 170, IV)  uma das bases normativas para o denominado desenvolvimento sustentável. Em suma, para o aproveitamento racional dos recursos atuais, sem comprometimento da qualidade de vida e das necessidades das gerações futuras.

dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca. O diploma ilustra a diretiva de equalização entre interesses concorrentes, ao registrar em suas normas gerais que tais atividades são “fonte de alimentação, emprego, renda e lazer”, devendo-se garantir “uso sustentável dos recursos pesqueiros, bem como a otimização dos benefícios econômicos decorrentes”, desde que “em harmonia com a preservação e a conservação do meio ambiente e da biodiversidade”.

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PORTAL BRASIL. “Palestra orienta comerciantes do RN sobre novas regras no defeso da lagosta”. 30 nov.2010. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2010/11/30/palestra-orienta-comerciantesdo-rn-sobre-novas-regras-no-defeso-da-lagosta>. Acesso em: 10 jun. 2011. 2 TRIBUNA DO NORTE. “Ibama inicia fiscalização da pesca da lagosta”. 12. dez. 2009. Disponível em < http://tribunadonorte.com.br/noticia/ibama-inicia-fiscalizacao-da-pesca-da-lagosta/134536>. Acesso em: 3 jun. 2011.

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Nessa perspectiva, foi editada a Lei Federal nº 11.959, de 29 de junho de 2009, que

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FIDΣS O objetivo deste trabalho é examinar quais os fundamentos éticos subjacentes à adoção da referida política. Para além do amplo suporte da teoria jurídica  decerto essencial , busca-se perquirir que tipos de pensamentos filosóficos embasam a conformação da atividade pesqueira, economicamente relevante e não raro de subsistência, em prol da conservação da diversidade biológica. Elegem-se, para tanto, os referenciais aristotélicos, kantianos e utilitaristas, sintetizados, respectivamente, nas categorias da excelência, do dever e da utilidade. Cada qual será objeto de incursão específica na solução do problema, sem prejuízo de, ao longo do texto, tangenciar-se outras correntes éticas como a do ecocentrismo e da solidariedade, conquanto não constituam o foco do trabalho. A tensão socioambiental inerente à questão denota a relevância e a atualidade do debate, ora sob abordagem deôntica e teleológica, intensificadas ante a proximidade da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), a ser sediada pelo Brasil em 2012.

2 BREVE DIMENSÃO JURÍDICA DA QUESTÃO A busca pela conciliação entre a preservação das espécies pescadas e “e a obtenção de melhores resultados econômicos e sociais”  conforme previsto no art. 3º da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009  revela como substrato jurídico inescapável a tutela de direitos fundamentais. Nela conjugam-se os direitos sociais ao trabalho, à alimentação e ao lazer com

Este último atua como limitador da atividade pesqueira, em decorrência do dever de proteção imposto ao Poder Público e também à coletividade, a teor do art. 225 da Constituição de 19883 e da Convenção Sobre Diversidade Biológica  assinada, em 1992, no Rio de Janeiro4. O documento internacional registra, a propósito, que cada Estado Parte deve 3

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público [...]. Inaugura-se, assim, entre as forças sociais “uma comunidade de responsabilidade de cidadãos e entes públicos perante os problemas ecológicos” (CANOTILHO, 2008, p. 178). 4 Promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. Outros textos servem igualmente de referência, a exemplo do Acordo para a Conservação da Fauna Aquática nos Cursos dos Rios Limítrofes entre o Brasil e o do Paraguai (Decreto nº 1.806, de 6 de fevereiro de 1996 e 4.256, de 3 de junho de 2002), da Convenção Internacional para a Regulamentação da Pesca da Baleia (Decreto Legislativo nº 77, de 5 de dezembro de 1973), da Lei que proíbe a pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras (Lei nº 7.643, de 18 de dezembro de 1987) e da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Decreto nº 76.623, de 17 de novembro de 1975).

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o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, todos de estatura constitucional.

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FIDΣS “desenvolver estratégias, planos ou programas para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica”. No caso da Política de Pesca, trata-se de atendimento a direito metaindividual via prestações estatais positivas, de caráter normativo (ALEXY, 2008, p. 201-203). É dizer, uma vez reconhecida a titularidade da biodiversidade como bem comum do uso das presentes e futuras gerações, cumpre a criação de mecanismos legais e administrativos para o resguardo de mencionada esfera de interesses. Sob outro ângulo, a intervenção legislativa representa instrumento de política pública ambiental e econômica, ao organizar a estrutura executiva para a realização de fins socialmente relevantes, nos moldes da conceituação de Bucci (2006, p. 11-14). Os objetivos serão viabilizados, pois, por intermédio das ações coordenadas de natureza reguladora e fiscalizadora dos órgãos competentes5. O panorama articulado pela Lei nº 11.959/2009 integra, conforme destaca Canotilho (2011, p. 11-15), quadra de um verdadeiro Estado de Direito Ambiental, o qual tem a sustentabilidade como princípio chave. De modo que se intenta a produção e a adaptação de instrumentos jurídico-econômicos para a solução de problemas ecológicos. Não por outra razão, afirma-se a existência do direito fundamental à sustentabilidade, de terceira geração e caráter vinculante, que irradia efeitos para todas as províncias do sistema jurídico. Com efeito, A sustentabilidade, nessa linha de raciocínio, não pode continuar a ser tratada como princípio literário, remoto ou de concretização protelável, invocado só por razões de

biológicas. Razões éticas e constitucionais (FREITAS, 2011, p. 39-40, grifos nossos)

No plano jurídico, portanto, a intervenção estatal6 na restrição da liberdade de iniciativa e profissional dos pescadores ocorre para garantir, com espeque constitucional na solidariedade e na justiça entre gerações, o direito ao desenvolvimento ecologicamente sustentável  com a qual se exerce o dever de proteção correspondente. 5

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca estabelece, para tanto, uma série de tarefas às autoridades administrativas competentes: licenciamento de profissionais (art. 2º e 5º); definição de áreas, épocas e espécies vedadas (art. 6, §1º); registro de embarcações (art. 10); incentivo à pesquisa e à capacitação de mão de obra (art. 29); além da fiscalização e das sanções (arts. 31 a 33). 6 Utilizando-se a conhecida sistemática referida por Grau (2008, p. 148-149), cuida-se de uma intervenção sobre o domínio econômico, por intermédio da qual há regulação do Estado na modalidade de direção, ou seja, pela imposição de comportamentos a serem necessariamente adotados pelos agentes que atuam na atividade.

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marketing ou de pânico. As suas razões, devidamente calibradas, são filosóficas e

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3 FUNDAMENTO ARISTOTÉLICO: EXCELÊNCIA O pensamento expresso por Aristóteles no clássico “Ética a Nicômacos” (2001) oferece importantes subsídios na busca de fundamentos que ensejam a política da pesca sustentável. A partir do recurso a conceitos como o da excelência (areté) e da justiça distributiva, bem como à visão teleológica da realidade, tônica do filósofo helênico, é possível investigar boa parte dos objetivos contidos no art. 1º da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Não se encontrará aqui, por conseguinte, qualquer remissão a valores intrínsecos da natureza ou dos animais, mesmo porque a concepção aristotélica do mundo natural é a de que aqueles que possuem menor capacidade de raciocínio existem para o bem dos que detêm mais; em última escala, os homens (SINGER, 1998, p. 282-283). Algo que não exclui o cuidado com o esgotamento dos recursos naturais, desde que estes guardem conexão com o interesses humanos. Feita tal observação, é de se recordar, de plano, que a excelência consiste em um modo de vida cujo agir evita tanto o excesso como a deficiência, refletido em de comportamentos de proporções adequadas. Nessa linha, a figura do bom pescador, como de qualquer mestre que desempenhe o seu ofício, deve almejar e optar pela mediana (ARISTÓTELES, 2001, 1098b e 1104a). Assim, o indivíduo que retira das águas espécies durante seu período reprodutivo ou continuidade da existência animal, mas também a da sua própria atividade  e de outros interessados  extrapola a equidistância entre os extremos de não se praticar a pesca e de realizá-la de forma ilimitada. Situação nociva que a norma procura evitar mediante o aproveitamento regrado dos respectivos bens naturais. O modelo de insaciabilidade da extração representa, de acordo com (2011, p. 69-70), ponto de excesso patológico do qual o homem deve se afastar, em direção a um paradigma homeostático de sustentabilidade. Vale dizer, em outras palavras, busca-se a doutrina do meio termo do Estagirita. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, há precedente em matéria ambiental que reconhece a necessidade deste justo equilíbrio entre ecologia e economia:

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utiliza técnicas danosas como explosivos e substâncias tóxicas, de modo a ameaçar não só a

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FIDΣS [...] QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE

DE

PRESERVAÇÃO

DA

INTEGRIDADE

DO

MEIO

AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações [...]7.

Aplica-se aqui, ainda, o discernimento (phronesis) aristotélico, disposição segundo a qual a racionalidade humana delibera acerca do que é correto, a partir de cálculo equitativo com vistas a algum objetivo bom (ARISTÓTELES, 2001, 1140a). Nesta sabedoria finalística, a propósito, é possível identificar um ponto de contato entre a teoria aristotélica e a utilitarista (BRITO, 2003, p. 19-22), apreciada no Capítulo 5. Não obstante a última estar inicialmente ligada à sensibilidade do binômio hedonista prazer e dor, ambas reconhecem, ao seu modo, a virtude como um meio para o fim último da felicidade (eudaimonia). Já realização em si da ação corretamente eleita  na hipótese, a abstenção da pesca

talento consistente na faculdade de “praticar as ações que conduzem ao objetivo visado e de atingi-lo” (ARISTÓTELES, 2001, 1144a). De outro lado, sob o enfoque da justiça distributiva, extrai-se a idéia de que os quinhões e os benefícios econômicos dos recursos pesqueiros devem ser proporcionalmente partilhados entre as diferentes famílias e gerações de interessados. Nesta ordem de justa repartição de coisas reside, para o filósofo grego, espécie da própria excelência moral, na medida em que se leva em consideração o bem do próximo. Tal viés está fortemente presente, inclusive, no conceito de igualdade e solidariedade intergeracional que inspirou não apenas a Política Nacional de Pesca como também o art. 225 7

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3.540. Pleno. Rel. Min. Celso de Mello, j. 01.09.2005. DJ de 3.02.2006, p. 14.

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em determinados momentos do ano com fito de evitar o exaurimento da fonte  pressupõe o

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FIDΣS da Constituição de 1988, seguindo os moldes da clássica definição do Relatório Brundtland. Este documento, produzido pela Comissão Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente das Nações Unidas em 1987, configura-se um marco do tema, ao consagrar o desenvolvimento sustentável como a forma da atividade humana que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das futuras gerações de suprir suas próprias necessidades (WCED, 1987, p. 8). A atualidade do pensamento de Aristóteles impressiona, em geral, diante da aplicabilidade prática de seus múltiplos aspectos relacionados ao atuar conforme à excelência. Particularmente em matéria de equilibro entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, pode-se asseverar, pois, que seus conceitos teleológicos, de virtude e de justiça estão implícitos na formulação e na execução da política pesqueira, nos termos das disposições da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009.

4 FUNDAMENTO KANTIANO: DEVER

Uma outra abordagem que se encontra presente na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Pesca guarda relação direta com a concepção deontológica expressa na ética de Immanuel Kant, especialmente na “Fundamentação da [e na] Metafísica dos Costumes”. A teoria kantiana é marcada pelo caráter apriorístico das obrigações, ao desconsiderar tanto os elementos de ordem empírica como os da natureza humana, para

prescindem dos escopos visados, sendo vinculantes por si mesmas, decorrentes de imperativos categóricos de forma incondicional (KANT, 1964, p. 18-19). Diversa situação daquela referente aos imperativos hipotéticos, nos quais a ação é apenas instrumental para a realização de fim influenciado por contingências diversas. Daí surge, para tal pensador, a ética do dever, que impõe a necessária observância de determinada conduta “pelo respeito à lei”, que decorre “não do fim, mas da máxima que a determina” (KANT, 1964, p. 9; 2008, p. 64-65). Máxima esta que vem a ser o princípio interno e subjetivo da razão, cuja aplicação deve atender ainda ao princípio universal, segundo o qual o indivíduo pode querer que sua vontade seja adotada por todos os seres racionais, sem contradição consigo mesma.

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fundá-las tão somente na razão pura. De maneira que as ações objetivamente necessárias

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FIDΣS A validade moral da ação requer, ademais, que esta se desenvolva por dever, em uma inclinação moral e imediata da vontade livre, e não em virtude de mera conformidade com o dever, decorrente de interesses outros. Na ótica do direito ambiental, pela mencionada visão é possível reconhecer o valor intrínseco da natureza, independentemente dos efeitos antropocêntricos da “preservação e a conservação do meio ambiente e da biodiversidade” almejadas pela Lei nº 11.959, de 29 de junho de 20098. A Constituição de 1988 alberga a noção no dever de cuidado previsto no inciso VII do §1º do art. 2259. No mesmo sentido, aliás, o preâmbulo da Convenção Sobre Diversidade Biológica registra logo em sua primeira assertiva que os Estados-Partes estão “conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica”, entre outros  de forma holística, é de se observar, à medida que contempla distintos interesses 10. Razão pela qual, nesta linha, a proteção das espécies aquíferas possui valor autônomo, cuja finalidade residiria em si mesma. Pensamento que encontra eco em contemporâneas teorias éticas de caráter biocêntrico e ecocêntrico como, por exemplo, a ética ambiental de Peter Singer (1998, p. 289-295) e a da solidariedade de Leonardo Boff (2009, p. 22-23; 88-92). Convém registrar que a orientação pela importância própria somente se verifica nos atos normativos das últimas décadas, visto que a compreensão dominante da natureza em gênero é inteiramente instrumental. A título de ilustração, a Convenção Internacional para a Conservação do Atum e afins do Atlântico 11, do final dos anos 60, não deixa dúvidas acerca

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O que fica evidente em outras passagens do texto legal, tais como, “Art. 5º O exercício da atividade pesqueira somente poderá ser realizado [...] asseguradas: I – a proteção dos ecossistemas e a manutenção do equilíbrio ecológico, observados os princípios de preservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais; [...]Art. 6º O exercício da atividade pesqueira poderá ser proibido transitória, periódica ou permanentemente, nos termos das normas específicas, para proteção: I – de espécies, áreas ou ecossistemas ameaçados; II – do processo reprodutivo das espécies e de outros processos vitais [...] § 1o Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, o exercício da atividade pesqueira é proibido: I – em épocas e nos locais definidos pelo órgão competente; II – em relação às espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos não permitidos pelo órgão competente”. 9 “[...] incumbe ao Poder Público [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. 10 “[...] Conscientes do valor intrínseco da diversidade biológica e dos valores ecológico, genético, social, econômico, científico, educacional, cultural, recreativo e estético da diversidade biológica e de seus componentes. Conscientes, também, da importância da diversidade biológica para a evolução e para a manutenção dos sistemas necessários à vida da biosfera [...]”. Na mesma ordem de ideias das múltiplas dimensões contidas no Relatório Brundtland (WCED, 1987, p. 13) e da “complexidade poliédrica” apontada por Freitas (2011, p. 55). 11 Promulgada pelo Decreto nº 65.026/1969.

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de seus objetivos: “colaborar na manutenção desses cardumes em níveis que permitam uma

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FIDΣS captura máxima e continua para fins alimentícios e outros”. Sem nenhuma alusão à proteção da categoria dos peixes pelo seu valor em si. De todo modo, mesmo diante do teor das normas protetivas mais recentes, que reconhecem o dever em tela, parece difícil dissociar-se por inteiro da vinculação com os interesses da sobrevivência humana. Sempre presentes, não obstante parcialmente mitigadas, as necessidades dos “seres da razão” ainda fazem prevalecer o imperativo hipotéticoinstrumental sobre o categórico-incondicional no tema da preservação do meio ambiente, em gênero, e da Política de Pesca Sustentável em espécie.

5 FUNDAMENTO UTILITARISTA

O uso sustentável dos recursos pesqueiros e a otimização dos benefícios econômicos decorrentes, objetivos da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009, identificam-se igualmente com alicerces da doutrina consagrada por Jeremy Bentham e Stuart Mill, entre outros, a partir do princípio da utilidade e da visão teleológica. Ao contrário do que sucede na estrutura kantiana, para os utilitaristas o valor das ações não existe por si só, de modo absoluto ou incondicional, mas apenas à luz da quantidade e qualidade das consequências que delas derivam. Nesse contexto, a maximização do prazer e a eliminação de dor é apontada como diretriz da conduta humana. Vale observar que, especialmente em Mill (2005, p. 56 e 63), a referência não deve ser apenas o padrão individualista do próprio agente, mas sim a maior

aliar a busca do bem de cada um com uma sociedade na qual se potencialize o bem geral (POSNER, 1998, p. 51-52). Duas sensíveis questões se apresentam na avaliação de condutas pelo método utilitarista. A primeira diz respeito aos critérios que devem ser considerados no cálculo das conseqüências mais favoráveis e a segunda à delimitação dos interessados, isto é, se os animais e demais seres viventes também estão contemplados ao lado dos humanos. No que concerne ao ponto inicial, Bentham (1979, p. 16-17) oferece clássicos parâmetros para aferir o valor da soma de prazer ou de dor, a saber: a) intensidade; b) duração; c) certeza; d) proximidade; e) fecundidade; f) pureza; e g) extensão. Mediante o recurso a tais balizas, pode-se inferir que o cálculo legislativo da Política Nacional de Pesca

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porção de felicidade total dos afetados. Traço que une a moralidade pessoal à justiça social, ao

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FIDΣS Sustentável pondera sobre a repartição dos bônus e ônus da atividade de captura de espécies no tempo e no espaço. Isto porque, ao vedar o uso de técnicas predatórias, como explosivos e substâncias tóxicas, fixar espaços protegidos, fiscalizar embarcações, limitar quantidade e tamanho de pesca, almeja-se diluir a extensão dos efeitos colaterais da prática excessiva, ampliando a “obtenção de melhores resultados econômicos e sociais”. Em outras palavras, o prazer/felicidade/utilidade do maior número possível de pessoas. Sob outro prisma, interessante notar que tal teoria pode também ser compreendida como uma moral da compaixão e por tal motivo, observa Tugendhat, ampliaria o círculo de obrigações para também englobar os animais em geral (2010, p. 187-190 e 320). O compartilhamento da noção de sofrimento em relação aos demais seres, aliás, é extraída do próprio Mill, que estende o princípio da maior felicidade “não apenas à humanidade, mas, na medida em que a natureza das coisas o permitir, a todas as criaturas sencientes” (2005, p. 67). Destaque-se que, em relação aos peixes, pesquisas científicas  efetuadas pelas Universidades de Edimburgo e de Belfast  apontam para evidências conclusivas no sentido de que tais espécies possuem a capacidade de sofrimento12. Sem embargo da controvérsia crítica no que tange ao rol e ao eventual exagero na forma de consideração dos seres nãohumanos (SINGER, 1998, p. 298-299; POSNER, 1998, p. 52-53), a Constituição de 1988 é expressa ao proscrever práticas que “provoquem a extinção de espécies ou submetam animais a crueldade”, determinação que inspira as mencionadas regras legais protetivas. Decerto, nesta seara, não pode haver mal maior do que colaborar para a dizimação de uma espécie inteira.

se a visão exclusivamente antropocêntrica do tema, guarda relação com a perda da diversidade biológica. Problema contemporâneo de diferentes repercussões para a vida do homem no planeta, como visto, a questão possui relevância ainda do ponto de vista do inestimável valor do patrimônio genético para as indústrias farmacêuticas e de biotecnologia, entre outras (ANTUNES, 2007, p. 325 e 379). Foi exatamente este, inclusive, um dos argumentos que, em 1978, levou a Suprema Corte estadunidense, após examinar os prejuízos e benefícios de um projeto, a decidir pela interrupção da construção de represa no Estado de Tennessee. Entendeu-se que o 12

BBC BRASIL. “Cientistas dizem que os peixes sentem dor”. 30 abr. 2003. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/030430_peixesmv.shtml>. Acesso em: 05 jun. 2011; PORTAL TERRA. “Estudo britânico afirma que crustáceos sentem dor”. 8 nov. 2007. Disponível em <http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI2058327-EI8145,00.html>. Acesso em:11 jun. 2011.

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Um último elemento do princípio da utilidade da preservação pesqueira, retomando-

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FIDΣS empreendimento ameaçava a continuidade de um pequeno peixe, denominado Snail Darter (percina tanasi), em afronta às normas de proteção então vigentes (Endangered Species Act). Da leitura do pronunciamento do Tribunal extrai-se passagem que àquela época já advertia: “o valor deste patrimônio genético é, literalmente, incalculável” 13. Denotam-se, em consequência, fortes traços do princípio utilitário também nesta noção da Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009 que “(p)reserva” valor de determinados bens, mercê da otimização temporal na distribuição e apropriação dos benefícios dos recursos pesqueiros entre o máximo de interessados.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese o avanço dos debates ambientais, simbolizado pelos diversos compromissos assumidos ao longo das últimas décadas, há consenso de que o enfrentamento do tema do crescimento sustentável prosseguirá como um dos grandes desafios do futuro em termos planetários, sendo inclusive o enfoque da cúpula mundial de 2012 sobre o assunto. Nesse panorama, a Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009 realiza, em relação ao setor pesqueiro brasileiro, o papel de convergência entre direitos relativos à expansão econômico-social e à proteção ecológica – ambos pilares da sustentabilidade. Ao fazê-lo, seguindo diretrizes da Constituição de 1988 e dos tratados internacionais sobre biodiversidade, cumpre-se o dever estatal de tutela e, por conseguinte, aproximam-se concepções das três teorias éticas examinadas.

excelência (areté). Evitando-se tanto o excesso como a deficiência, mediante comportamentos de proporções adequadas, a política estimula a boa prática da pesca, vedadas técnicas e períodos que provoquem o esgotamento dos recursos. O mesmo vale para a justiça distributiva introduzida pelo pensador grego, cuja aplicação é ínsita à repartição solidária de benefícios entre gerações, uma das premissas das normas ambientais. No viés da proteção ambiental em si, avulta o pensamento não egoístico do imperativo categórico kantiano, decorrente do sentimento moral de dever que conduz a escolhas racionais, autônomas e incondicionadas. Desse modo, sua ética deontológica dá azo 13

ESTADOS UNIDOS. Caso Tennessee Valley Authority v. Hill. 437 U.S 153, 178 (1978), tradução livre. Disponível em <http://laws.findlaw.com/us/437/153.html>. Acesso em 11 jul. 2011. Pelos mesmos fundamentos, a Constituição Brasileira de 1988 dispõe que incumbe ao Poder Público “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País” (art. 225, §1º, inciso II).

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Primeiro, a partir da influência de noções aristotélicas como o agir conforme à

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FIDΣS ao reconhecimento legal do valor intrínseco de espécies marinhas e fluviais, sem considerações de outra ordem  sejam sociais, econômicas, científicas, educacionais, recreativas e estéticas. Todas estas retornam, porém, quando se verifica a presença do fundamento utilitarista que, ao visar a maior felicidade geral, autoriza o cálculo regulatório para restringir as consequências danosas da pesca indiscriminada. Objetivo evidenciado pela previsão legal de otimização dos benefícios decorrentes da atividade. Portanto, conclui-se que Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Pesca mescla fundamentos antropocêntricos e biocêntricos  com predomínio dos primeiros  dos quais se extrai amálgama composta pela trinca da excelência proporcional, do dever incondicional e da utilidade maximizada.

REFERÊNCIAS

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SUSTAINABLE FISHING POLICY (BRAZILIAN FEDERAL LAW N. 11.959/2009) AND ETHICS: AMONG EXCELLENCE, DUTY AND UTILITY

ABSTRACT This paper aims to investigate the ethical foundations that inform Brazilian sustainable fishing policy (Law n. 11.959/2009). Beyond legal dogmatic, it intends to examine which philosophical thoughts underlie the restriction on fishery activities  economically relevant and, not rarely, a way of subsistence  in favor of the conservation of biological diversity. The essay focus on Aristotelian, Kantian and Utilitarian references, summarized, respectively, by the excellence, duty and utility categories. Finally, it is possible to say that the act, in line with the Constitution and international environmental treaties, harmonizes different types of rights, contemplating aspects of the mentioned theories. Sustainable

development

Aristotelianism. Kantianism. Utilitarianism.

of

fishing.

Ethics. FIDES, Natal, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. ISSN 0000-0000

Keywords:

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FIDΣS Recebido 28 out. 2011 Aceito 28 out. 2011

ESOTERISMO Edilson Pereira Nobre Júnior

Vida de grande parte da população brasileira é muito difícil. Recordo-me, como se fosse hoje, dito do saudoso Professor Jales Costa, em suas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, ao afirmar não saber o que seria a vida duma pobre brasileira que, cotidianamente, cruzava a pé o território da turisticamente aprazível cidade de Natal, carregando uma enorme trouxa de roupa em cima de sua cabeça, caso depois da morte não existisse céu. Essas dificuldades, porém, alguns poucos superaram, fazendo inverter, pelo regime de mérito, o pêndulo da sorte. Um deles foi Juvêncio Rosário da Silva. Nascido duma família paupérrima do interior potiguar, enfim conseguira concluir, com muitas ajudas da sorte, dos amigos e dos professores, o curso de ciências jurídicas na saudosa Faculdade de Direito da Ribeira. Foram cinco anos de muito esforço, agravados pelo trabalho no comércio de tecidos, e pela ausência de lazer aos finais de semana, mas que valeram a pena. “Juvinha de Tia Célia”, pôs mãos à obra para realizar seu grande sonho, acalentado durante a infeliz infância e mantido firme na universidade, qual seja o de ser juiz. Aprovado em concurso público, e após breve passagem em pouco movimentadas comarcas interioranas, Juvêncio, agora o Dr. Juvêncio Rosário e Silva, pois o aditivo “da Silva” não era digno de integrante da magistratura, tivera, enfim, a grande oportunidade de pôr em prática sua aspiração de combater a criminalidade: fora promovido a uma das varas criminais da Comarca da Capital, incumbida do julgamento dos mais hediondos crimes. No desmedido esforço de julgar, fazendo justiça, os inúmeros e quase infinitos processos de cujo desenlace estava incumbido, o Dr. Juvêncio se notabilizara por um notável

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desembargador federal da 5ª Região.

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De posse do canudo de papel, Juvêncio da Silva, que um dia foi chamado de

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FIDΣS e incomum rigor, proferindo sempre sentenças de condenação, com penas elevadíssimas. Para o ilustre magistrado, direito de responder a processo em liberdade praticamente inexistia. O lema de atuação era curto e grosso: “lugar de bandido é na cadeia!”. Numa certa manhã de forte sol, tal como sucedeu com Saulo de Tarso quando trafegava na estrada para Damasco, a vida profissional do Dr. Juvêncio se inverteu completamente. Ao caminhar por uma movimentada rua da capital aquele se deparou perante uma casa com uma placa a anunciar com visibilidade: “AQUI AULAS DE YOGA”. Curioso, logo após adentrar ao portão, Juvêncio tocou a campainha. Passados alguns minutos, a porta foi aberta e, num átimo, apareceu uma mulher loura, alta, semblante jovem e galvanizador de beleza, a qual, com voz que aparentava forte sotaque carioca, pronunciou: “Sou a Márcia. Cheguei há pouco na cidade. Ministro aulas de Yoga. O preço é camarada”. De tudo isso – quase esquecia – o mais fascinante eram os seus olhos azuis-celeste, cujo cintilar, sem nenhum exagero, fazia presumir que o sol deles tomava por empréstimo toda sua luminosidade. Diante da maviosa oferta, de dificílimo resistir, Juvêncio não poupou tempo – nem dinheiro – para realizar a matrícula, realizando antecipação de pagamento pelo restante do ano. Passado um mês do início das aulas, notável a influência na atividade funcional do nosso personagem. O severo rigor na aplicação da lei foi substituído pelo humanismo nos julgamentos. Inúmeros os benefícios aos acusados, tais como a revogação de todas as prisões preventivas e a condenação a penas restritivas de direito a autores de crimes hediondos, que Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, autor do livro “Dos delitos e das penas” (1764), se

Tão radicais foram as mudanças de entendimento que, no fórum, o clima foi de surpresa geral. Servidores, membros do Ministério Público, advogados (e até mesmo os réus), manifestavam-se ávidos de curiosidade em conhecer o porquê do surgimento agora do “Doutor Juvêncio, um cara legal”. Respeitando a liturgia do cargo, o Dr. Juvêncio nada comentava sobre sua terapia espiritual. Transcorridos quatro meses, não mais agüentou persistir no sigilo. Num final de tarde de sexta-feira, ao tomar sua sagrada cerveja gelada no Bar do Motoqueiro, confidenciou a João Belarmino, amigo e escrivão, que sua vida tivera um formidável up grade, ao depois que passou a partilhar dos mistérios da yoga. Na conversa, que foi extensa, o juiz desceu a minúcias. A professora, beldade singular, e de extrema simpatia, ministrava seus conhecimentos orientais numa garagem,

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ressuscitasse, desmaiaria de susto.

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FIDΣS contígua à sua residência, em ambiente de pequena claridade. O clímax, porém, consistia na parte final das aulas, materializada numa relaxante massagem. Um detalhe: a operação terapêutica se desenrolava no interior de um veículo Caravan, modelo 1983, mais precisamente em seu banco traseiro, o qual, por exigência duma otimização profilática, era devidamente rebaixado. Muito embora a narrativa não tenha se distanciado do nível sutil, João Belarmino – que, nos segredos que lhe eram confiados, somente costumava propagá-los para duas pessoas (Deus e o mundo) –, vislumbrando nos fatos uma pitada de malícia, eficazmente cuidou de espalhá-los para todos aqueles que transitavam pelo cartório de que era titular, quaisquer que fossem a natureza de suas ocupações. Infelicidade igual só na França, sob o cetro de Luís XV, onde o seu primeiroministro, o Duque de Choiseul, que justamente a Voltaire relatara como os quadris de sua amante, a Condessa de Brionne, eram-lhes úteis para fazê-lo esquecer os graves problemas que atormentavam a França. Tornada pública a terapia que transformara o Dr. Juvêncio, juntamente com os especiais encantos da distinta terapeuta, o calendário forense da movimentada comarca sofreu uma grande inovação. Recaiu esta no dia 02 de junho, denominado dia da misericórdia, data na qual o digno juiz revisava todos os processos da sua vara, a fim de verificar se algum acusado ou condenado ainda permanecia injustamente preso, soltando-o imediatamente, caso verificado ilegalidade, o que sempre ocorria. Por medida de extrema justiça, os idealizadores de tal marco, consistentes nos perseguidos pela jurisdição penal, atribuíram o título de padroeira à professora Márcia Pereira

alçando-se, assim, ao apanágio da canonização sem a necessidade de haver padecido como beata. Assim tudo continuou na boa paz na sala da justiça. Tristeza somente para os advogados, porquanto cliente bom não existe igual ao réu preso.

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dos Santos, que se tornou conhecida como a santa protetora dos merecedores de indulgência,

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FIDΣS Recebido 29 out. 2011 Aceito 29 out. 2011

A MÚSICA QUE TOCA DIREITO Ivan Lira de Carvalho

Deve-se ao Prof. Roberto Lyra, da Universidade de Brasília, a sedimentação de um movimento denominado “O Direito achado na rua”, que ao invés do academicismo valoriza a legitimidade do grito dos movimentos sociais e os exemplos de equidade, é dizer, do senso comum acerca do que é justo, em contraposição ao que é injusto (embora possa esta última situação estar em conformidade com a lei). Nos discursos, nos atos, na música, na poesia, na pintura ou no grafite existe Direito, por mais despretensiosas que sejam essas manifestações culturais. E vou pinçar um exemplo, dentre tantos. Elino Julião, potiguar de Timbaúba dos Batistas, gravou uma música da sua autoria (reeditada há pouco tempo em duo com Lenine), denominada jocosamente “O rabo do jumento”, cuja letra assim diz: “Você que disse que é bravo Nascimento/ Você cortou o rabo do jumento/ Eu não quero pagamento Nascimento/ Eu quero é outro rabo no jumento/ Ele entrou no seu roçado junto com o gado/ E comeu um pezinho de coentro/ Nascimento eu não

Não sei se o animal, é ele ou o jumento/ Nascimento eu não quero pagamento/ Eu quero é outro rabo no jumento.”. Mesmo sendo hilária a história reportada, há muito Direito nos versos do xote. “Você que disse que é bravo Nascimento” anuncia uma fanfarrice que dependendo da intensidade e do ânimo do gabola pode configurar o crime de ameaça (Código Penal, art. 147, com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa). Esse mesmo talzinho que “cortou o rabo do jumento” cometeu o crime hoje previsto no art. 32 da Lei dos Crimes Ambientais (maus tratos a animal domesticado, com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa). Quando o proprietário do bicho afirma “Eu não quero pagamento Nascimento/ Eu quero é

Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz Federal.

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quero pagamento/ Eu quero é outro rabo no jumento/ [...] Veja pessoal, que mau elemento/

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FIDΣS outro rabo no jumento” está no pleno exercício do que o Direito Civil chama restitutio in integrum, ou seja, que o prejudicado só aceita a restauração da coisa ao estado de origem, não adiantando uma indenização substitutiva. “Ele entrou no seu roçado, junto com o gado” fala do direito de vizinhança, que deve ser respeitado, em conformidade com os artigos 1.277 e seguintes do Código Civil, desafiando uma indenização pelo prejuízo (arts. 927 e seguintes do mesmo Código), mas sem render efeitos na esfera penal, já que para ser caracterizado o crime de dano (Código Penal, art. 163), necessário seria que o dono do burrico tivesse encaminhado o bichinho para destruir a lavoura do vizinho, circunstância que poderia redirecionar o enquadramento criminal para o tipo do art. 164 do Código Penal – “Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.”). A propósito do prejuízo suportado pelo dono do terreno limítrofe, que foi “visitado” pelo gado, é necessária a aferição da relevância. Se a destruição foi apenas de “um pezinho coentro” não há delito a ser punido em razão da bagatela, ou seja, da pequena importância da coisa arrancada. É o princípio da insignificância, conhecido desde os romanos. Outrossim, ao dizer “Veja pessoal, que mau elemento/ Não sei se o animal, é ele ou o jumento”, o choroso proprietário do asno, em tese, ataca a honra do seu desafeto. Crime de injúria, Código Penal, art. 140 (detenção de um a seis meses, ou multa). Mas em casos como tais, o juiz pode deixar de aplicar a pena, pois o ofendido (é dizer, o cortador da cauda) “de forma reprovável, provocou diretamente a injúria” (§ 1º). Dessa opereta rural é possível a extração de pelo menos duas lições: a) instintivamente o compositor reclama do minifúndio, com pequenas glebas aboletadas quase

nas Leis ou nas estantes dos acadêmicos empedernidos, podendo ser encontrado até mesmo numa tosca fábula musical como a aqui referida.

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que uma por cima da outra, gerando conflitos de vizinhança; b) que o Direito não só existe

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