15ª Edição da FIDES

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Editores-Gerais Emille Toscano de Medeiros Coelho Raimundo Jovino de Oliveira Neto Diretoria de Editoração Caio Vinicius Fernandes Terto Elias Cândido da Nóbrega Neto Emilly Leite Venâncio Laura Beatriz Pessoa da Fé Lílian Nicodemos Furtado Noca Lorenna Medeiros Toscano de Brito Lucas Cruz Campos Maria Cláudia Ananias Freire Mateus Ricardo Rodrigues de Sousa Mirelly Moura de Lemos Vanessa Medeiros de Lira Professores Orientadores Anderson Souza da Silva Lanzillo Fabiana Dantas Soares Alves da Mota Zéu Palmeira Sobrinho

Edição da Capa: Thaylson Djony Dantas Rodrigues thaylsondjony0612a@hotmail.com Diagramação: Paulo André www.pauloandrepa.com.br

Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017. ISSN 2177-1383


EDITORIAL:

É com muito entusiasmo que, mais uma vez, é lançada uma edição da Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES). Cumprindo com uma periodicidade semestral há mais de 7 anos, a FIDES se revela como um importante e necessário meio de expansão de conhecimento. Destaca-se o brilhante trabalho desenvolvido pelos membros do conselho editorial da revista, que apresenta um empenho incontestável. Além dos professores e outros profissionais que estão sempre dispostos a colaborar para que o material publicado possua um elevado nível de conteúdo. A 15ª edição teve como base os pilares que sustentam a revista desde a sua primeira edição: simplicidade, informalidade e incentivo à pesquisa e produção científicas. Tudo isso para que se atinja uma democratização de acesso ao conhecimento, objetivo primordial a que a FIDES se propõe. Nesse cenário, expandiu-se o conselho científico da revista, incluindo professores de outras universidades, e foram implementadas mudanças internas com o escopo de melhor tornar a correção e avaliação dos artigos submetidos. É importante destacar que a revista FIDES é um periódico voltado a toda sociedade. E busca fugir de um saber estritamente dogmático, valorizando a multidisciplinaridade. Com isso, se pretende formar cidadãos questionadores, provocar reflexões inovadoras e auxiliar leitores que buscam mudar a própria realidade. Sendo assim, nas próximas páginas se encontram artigos com alto grau de reflexão, tanto artigos de graduandos, como artigo de professores convidados. Para o evento de lançamento, decidiu-se discutir acerca do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tema bastante interessante e pouco discutido na universidade. Porém, frise-se que o evento não é destinado apenas para universitários, mas para qualquer pessoa que se sinta interessada pelo tema. Aproveitem a 15ª edição. Uma boa leitura a todos! Natal/RN, 18 de Maio de 2017. Conselho Editorial


SUMÁRIO ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA EM CASOS DE DESASTRES AMBIENTAIS: ESTUDO DE CASO DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM MARIANA/MG Rafael Gomes Miranda da Silva Tereza Cristina Pereira Bezerra Patrícia Borba Vilar Guimarães

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A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DOS PUNITIVE DAMAGES E DO DEVER DE PREVENIR DANOS Pastora do Socorro Teixeira Leal Alexandre Pereira Bonna

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A REVISTA ÍNTIMA E SUA APLICAÇÃO NAS RELAÇÕES LABORATIVAS Marcyo Keveny de Lima Freitas Patrícia Borba Vilar Guimarães

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE UMA CULTURA DE RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA Luciano Meneguetti Pereira

74

INTENÇÃO E GESTO: POSSIBILIDADES LÓGICAS NO DIREITO Renata Celeste

82

LIBERDADE JORNALÍSTICA NA ERA PÓS-POLÍTICA: UMA QUESTÃO PARA A DOGMÁTICA? Veruska Sayonara de Góis

99

O EXERCÍCIO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: UMA BREVE ANÁLISE DO VOTO DO MIN. RIBEIRO DANTAS Thiago Oliveira Moreira

104

PSICOPATIA E CÁRCERE: UM ELEMENTO FULCRAL DA CRISE PRISIONAL BRASILEIRA Lauro Ericksen


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REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE CONTRADIÇÕES Raimundo Márcio Ribeiro Lima

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SEXO E PODER: A BIOPOLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT Patrícia Marques Freitas Ana Christina Darwich Borges Leal

ARTIGOS CIENTÍFICOS

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A DEMOCRACIA EM “MIGALHAS”: SARAMAGO E AS TENSÕES NA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Raphael Henrique Figueiredo de Oliveira

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A ETNOLOGIA JURÍDICA: O MÉTODO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL PARA O ESTUDO DOS FENÔMENOS JURÍDICOS DAS SOCIEDADES ANTIGAS Bruna Casimiro Siciliani

169

A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PARTICULARES: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Yago da Costa Nunes dos Santos

182

EUTANÁSIA: O LIAME ENTRE A DIGNIDADE, A AUTONOMIA E A MORTE Júlia Gabriela de Sena Nepomuceno

199

JUÍZES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?: A (DES)NECESSÁRIA EFICIÊNCIA DO MAGISTRADO E A INFORMATIZAÇÃO DA ATIVIDADE JUDICANTE NO BRASIL Carlos Humberto Rios Mendes Júnior

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LEVANDO O DIREITO À LIBERDADE A SÉRIO: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE RONALD DWORKIN Vinícius de Godeiro Marques


O DIREITO À (BUSCA DA) FELICIDADE COMO NORTEADOR DO DIREITO DAS FAMÍLIAS Arthur Ferreira de Oliveira

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O RECONHECIMENTO DO CUIDADO COMO VALOR JURÍDICO E SUA INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Lucas Leal Sampaio

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REELEIÇÃO E A INSTITUIÇÃO DO “POLÍTICO PROFISSIONAL”: UMA ANÁLISE SOB O VIÉS DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS Karoline Fernandes Pinto Lopes

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SER OU DEVER-SER, EIS A QUESTÃO: UM RESGATE DA FENOMENOLOGIA DA JURIDICIZAÇÃO PONTEANA Magdiel Pacheco Santos

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA EM CASOS DE DESASTRES AMBIENTAIS: ESTUDO DE CASO DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM MARIANA/MG Rafael Gomes Miranda da Silva1

RESUMO O singular instituto da desconsideração da pessoa jurídica presente no código civil brasileiro vem proporcionando uma avaliação mais minuciosa em relação a diversos casos envolvendo as pessoas jurídicas, preservando, na maioria das vezes, esta e responsabilizando a pessoa física por trás do delito cometido, onde estes casos de crimes ambientais segundo o artigo 225 da constituição federal, os seus representantes (diretores, administradores) das pessoas jurídicas, poderão ser responsabilizados por delitos contra o meio ambiente, sendo imputados penalmente e administrativamente pelo crime. Nessa perspectiva, se analisará o caso do rompimento da barragem no município de Mariana, MG, a luz da desconsideração bem como todas as normas de direito ambiental pertinentes ao acontecimento em questão, para que se possa indagar a quem compete a verdadeira responsabilidade e qual tipo que seria aplicada nesses casos, se seria uma responsabilidade civil, penal ou mesmo administrativa. Será utilizado como meio para não só embasar a problemática mais também dar mais credibilidade a pesquisa, alguns

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro da base de pesquisa Direito e Desenvolvimento. 2  Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro da base de pesquisa Direito e Desenvolvimento. 3  Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1997); Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Departamento de Direito Processual e Propedêutica (DEPRO). Líder da Base de pesquisa em Direito e Desenvolvimento (UFRN-CNPq).

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Tereza Cristina Pereira Bezerra2 Patrícia Borba Vilar Guimarães3

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especialistas que por meio de suas obras no campo, principalmente do direito ambiental, tornaram o assunto mais discutido. Palavras-chave: Samarco. Responsabilidade civil. Responsabilidade penal. Caso de Mariana.

1 INTRODUÇÃO

Segundo laudo publicado pelo IBAMA, o desastre é classificado como de intensidade de nível IV, “desastre de muito grande porte”, onde os danos e prejuízos são considerados muito graves, sendo necessário a mobilização das três esferas de organização do estado (municipal, estadual e federal), e em alguns casos ajuda internacional, para que se restabeleça a situação a sua normalidade. A evolução do desastre teve como principal característica sua subtaneidade, devido sua velocidade e violência dos eventos. A partir dessas informações se constata, de inicio, que os danos não foram pequenos, sendo comprovado pelo instituto que coletou e analisou em loco e em documentos sobre o desastre os seguintes resultados: mortes tanto de trabalhadores da empresa como de moradores das localidades; populações desalojadas; devastações das áreas próximas o que ocasionou à população a desagregação dos vínculos sociais de sua comunidade, a destruição de suas instituições publicas e privadas bem como a destruição das áreas agrícolas que influiu diretamente na economia, além de interrupção da pesca, abastecimento de agua e do turismo; interrupção da geração de energia, já que o desastre atingiu algumas hidrelétricas das imediações; e os impactos no meio ambiente, como a destruição de áreas de preservação permanente e nativa da mata atlântica, morte da biodiversidade aquática e terrestre, assoreamento do curso d’água, perda e fragmentação de habitats, restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos ecossistemas, sem contar nas alterações do padrão de qualidade da agua doce, salobra e salgada (IBAMA, pag. 4-5, 2015). Esses dados mostram a dimensão e a gravidade das consequências trazidas pelo desastre, tanto na comunidade do distrito de Bento Rodrigues, totalmente devastado pela onda de rejeitos, e outras localidades próximas, além dos impactos ao meio ambiente, que segundo estudo feito pelo instituto o rompimento ocasionou a destruição de 1.469 hectares ao longo de 77 km de curso de água, o que mais preocupa é que esses dados incluem áreas de preservação permanente.

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Em 5 de novembro do ano de 2015 ocorreu um dos mais graves desastres ambientais da história do país, causado pelo rompimento da barragem de fundão no município de Mariana/ MG, barragem esta pertencente ao complexo minerário de Germano da empresa Samarco, a qual continha 50 milhões de m3 de rejeitos de minério de ferro.

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2 RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL NO CASO DE MARIANA/MG 2.1 Teoria do risco A teoria do risco foi criada para dar base a objetividade da responsabilidade civil que diz que, havendo o dano, este deveria ser reparado, os criadores dessa teoria foram, Raymond Saleilles e Louis Josserand dois juristas franceses. A teoria do risco é o embasamento jurídico que os juristas elaboraram ao final do século XIX para justificar a responsabilidade objetiva. Risco nessa acepção jurídica significa perigo, potencialidade de dano, previsibilidade de perda ou de responsabilidade pelo dano, compreendidos os eventos incertos e futuros inesperados, mas, temidos ou receados que possa trazer perdas ou danos( Wolkoff, 2012).

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. [...] Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

2.2 Responsabilidade em via penal e suas correntes doutrinarias

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Segundo Nelson Rosenvald, a realização de uma atividade econômica, muitas vezes, causa dano. O dano causado deverá ser indenizado, independente de culpa ou ato ilícito. A indenização será devida pelo fato de o agente ter causado um dano injusto no exercício de atividade de risco. Substitui-se a ideia de liberdade por solidariedade. Traz a ideia de cidadania. Onde há dano, há indenização. Essa teoria diz que todo aquele que exerce uma atividade que pode causar algum dano, deve este arcar com este se algo venha acontecer com terceiro em virtude dessa atividade. Portanto, a teoria do risco, vem dizer que tudo vai ser imputado ao autor e este irá arcar com os prejuízos, independente de culpa. Pois, a atividade do autor do dano pode ocasionar por sua natureza risco para terceiros. Trazendo para o Caso do rompimento da barragem de fundão, localizada no Município de Mariana, em Minas Gerais, a Sociedade Anônima Samarco Mineração S.A, deverá arcar com os danos advindos do risco que a construção de uma barragem e o exercício da mineração podem trazer, havendo culpa ou não, a responsabilidade será imputada a Samarco. O código civil traz em seu conteúdo artigos que abordam a temática da teoria do risco, que são os artigos 186 e o 927 de dizem:

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Em se tratando de responsabilidade em via penal das pessoas jurídicas se vê divergências a esse respeito, cabendo à jurisprudência a função de criar e delinear posicionamentos a respeito da matéria. Necessário salientar de inicio que o assunto é abordado expressamente em nossa legislação, inclusive na nossa constituição em seu art. 225, §3° que diz “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”, fica evidentemente clara a obrigação imposta pela carta magna àqueles que causarem danos ao meio ambiente, em via penal, inclusive se aplicando as pessoas jurídicas. Outro dispositivo de extrema importância e que também versa sobre o assunto é a lei n.° 9605/98 que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, em seu art. 3° temos imposto que “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou beneficio da sua entidade”, mais uma vez temos um dispositivo que em seu corpo traz de forma explicita a possibilidade de que os infratores sejam, também, responsabilizados penalmente. Mesmo com esses exemplos ainda se discute a aplicação dessa forma de responsabilidade, já que a sanção penal é a mais grave do nosso ordenamento jurídico, a última ratio, e como seria aplicada efetivamente esse tipo de responsabilidade às pessoas jurídicas, já que elas são uma ficção jurídica criada pelo nosso ordenamento jurídico, com isso temos os posicionamentos dos tribunais a cerca do assunto. Nessa perspectiva, surge quatro correntes a cerca da possibilidade de aplicação da responsabilidade em via penal às pessoas jurídicas. A primeira corrente acredita que a constituição não previu esse tipo de responsabilidade, e interpretam o §3° do art. 225 como cabendo as pessoas físicas a responsabilidade penal e as pessoas jurídicas a responsabilidade administrativa, respectivamente, sendo essa corrente minoritária. Na segunda corrente baseada na teoria da ficção jurídica, afirma que as pessoas jurídicas não podem ser punidas penalmente já que não podem praticar condutas que são típicas de um ser humano, como as criminosas, nesse âmbito elas não podem ser responsabilizadas por condutas que necessitem da comprovação do dolo ou culpa e, consequentemente, não agem com culpabilidade, além de que, segundo os seguidores dessa corrente, não faria sentido aplicar uma sanção penal a uma pessoa jurídica já que aquela deixaria de atender a uma de suas principais finalidades que é a de reeducar o infrator, além de ir de encontro a teoria do crime adotada no Brasil, sendo, portanto, esta corrente a mais adotada pelos doutrinadores do pais. As duas últimas correntes, em contraposição as duas primeiras, admite a responsabilização da pessoa jurídica em casos de danos ambientais. A terceira corrente defende que se está previsto na constituição deve ser aplicada expressamente, inclusive a responsabilização somente da pessoa jurídica, não ficando esta condicionada a responsabilização também da pessoa física, podendo assim imputar a responsabilidade penal somente a pessoa jurídica, esse entendimento foi adotado pelo STF em acordão no ano de 2013, tendo como relatora a ministra Rosa Weber:

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a qual se preocupou com o fato da empresa em questão ser isenta da responsabilidade, já colocada pelo STJ em decisão anterior, já que as pessoas físicas responsáveis pelos danos no caso analisado conseguiram provas para não serem responsabilizadas. Nessa linha entra a questão da corrente adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a quarta e última corrente que também admite a responsabilização porém, contrariamente a anterior, conciliada com a responsabilização da pessoa física, já que a sanção penal só é aplicável as pessoas físicas e se admitindo que todas as decisões e atitudes tomadas em nome das empresas são comandadas por seus administradores e responsáveis, seria essa a corrente que atenderia de forma mais completa as intenções da matéria e, principalmente, a sua aplicação. Como bem explica o saudoso jurista da área de Direito Ambiental brasileiro, Edis Milaré, Nesse viés, a quarta corrente atenderia de forma mais satisfatória a todos os requisitos, cabendo em sua aplicação o instituto da desconsideração da pessoa jurídica para que se atingissem os administradores e os responsabilizasse pelos eventuais danos. No caso da barragem da Samarco no município de Mariana/MG, essa tese se encaixaria de forma não só a responsabilizar os verdadeiros culpados pelo desastre mais também a própria empresa, já que no caso em questão não houve tão somente os danos ambientais mais também varias pessoas perderam

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. (1ª Turma. RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013; Info 714).

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a vida no desastre, por esse motivo para que não haja qualquer impunidade seria mais viável a aplicação desta teoria. 2.3 O instituto da desconsideração da pessoa jurídica A desconsideração da pessoa jurídica visa à suspensão temporária da pessoa jurídica, para se responsabilizar os seus sócios gerentes e, administradores. Segundo Tartuce “permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios” e, ainda explica o mesmo autor que “o escudo, no caso da pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador”. (TARTUCE, 2012, p. 148) Porém, a desconsideração da pessoa jurídica, é muito utilizada no âmbito do Direito Civil, onde se retira o véu da personalidade jurídica, para se atingir os bens dos sócios, que cometeram fraudes. Segundo a ementa de julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, aborda sobre a desconsideração da pessoa jurídica e em qual condições ela deve ser utilizada:

Entretanto, em se tratando de Crimes ambientais essa desconsideração vem tratada na lei: Lei 9.605 de 12.2.98 (dispõe sobre as sanções derivadas de danos ao meio ambiente), onde estas trazem artigos especificando sobre as consequências de crimes ambientais cometidos por pessoas jurídicas. Segundo o artigo dois da lei 9.605 de 12/2/98 que diz: “Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.”. Bem como o artigo quatro da mesma lei, “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa

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Agravo de instrumento. Seguros. A desconsideração da personalidade jurídica, por se tratar de medida excepcional, uma vez que pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos ao patrimônio particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação patrimonial. A desconsideração da personalidade jurídica só será juridicamente admissível quando, através do conjunto probatório, for possível denotar-se a presença de elementos que levem à conclusão de terem os sócios agido com intenção dolosa, infringindo preceitos legais, ou se ficar comprovada a extinção irregular da empresa, a não integralização do capital, ou ainda nas hipóteses em que houver confusão entre a pessoa jurídica e a pessoa física dos sócios. No caso concreto, nada disso ocorreu. Recurso desprovido. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Sexta Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70036178911/ Relator: Desembargador Ney Wiedemann Neto/ Julgado em 26.08.2010) (destaquei)

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jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Lei 9.605 de 12.2.98”. Mostrando que, em se tratando de crimes contra o meio ambiente os responsáveis pela empresa podem ser penalizados pelos crimes cometidos em exercício de suas funções, quando se aplica o instituto da desconsideração da pessoa jurídica. Ainda sobre a desconsideração da pessoa jurídica em crimes ambientas, um julgado do Superior Tribunal de Justiça, aborda o tema:

3 A DESCONSIDERAÇÃO E A SANÇÃO PENAL Em se tratando sobre as penalidades que podem ser impostas aos administradores, gerentes, pressuposto ou mandatário, o artigo 54 da lei 9.605 de 12.2.98, fala que “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.§ 1º Se o crime é culposo: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.§ 2º Se o crime: I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana; II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que

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Recurso especial. Ação civil pública. Poluição ambiental. Empresas mineradoras. Carvão mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação. Responsabilidade do Estado por omissão. Responsabilidade solidária. Responsabilidade subsidiária. [...] 5. A desconsideração da pessoa jurídica consiste na possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral para chamar à responsabilidade seus sócios ou administradores, quando utilizam-na com objetivos fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída. Portanto, (i) na falta do elemento “abuso de direito”; (ii) não se constituindo a personalização social obstáculo ao cumprimento da obrigação de reparação ambiental; e (iii) nem comprovando-se que os sócios ou administradores têm maior poder de solvência que as sociedades, a aplicação da disregard doctrine não tem lugar e pode constituir, na última hipótese, obstáculo ao cumprimento da obrigação. 6. Segundo o que dispõe o art. 3º, IV, c/c o art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81, os sócios/administradores respondem pelo cumprimento da obrigação de reparação ambiental na qualidade de responsáveis em nome próprio. A responsabilidade será solidária com os entes administrados, na modalidade subsidiária. 7. A ação de reparação/recuperação ambiental é imprescritível. 8. Recursos de Companhia Siderúrgica Nacional, Carbonífera Criciúma S/A, Carbonífera Metropolitana S/A, Carbonífera Barro Branco S/A, Carbonífera Palermo Ltda., Ibramil - Ibracoque Mineração Ltda. não-conhecidos. Recurso da União provido em parte. Recursos de Coque Catarinense Ltda., Companhia Brasileira Carbonífera de Ararangua (massa falida), Companhia Carbonífera Catarinense, Companhia Carbonífera Urussanga providos em parte. Recurso do Ministério Público provido em parte. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 647.493/SC/ Relator: Ministro João Otávio de Noronha/ Julgado em 22.05.2007/ Publicado no DJ em 22.10.2007, p. 233).

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momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população; III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade; IV - dificultar ou impedir o uso público das praias; V - ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um a cinco anos.” Assim, o instituto da Desconsideração da pessoa jurídica, não somente funciona para se restituir bens a sócios ou a empresas, como se utiliza no Código Civil, mas também para se condenar os administradores das empresas por crimes cometidos contra o meio ambiente, onde tal conduta tomada por quem está por trás da pessoa jurídica. Adentrando mais a fundo na responsabilização em via penal, depois de já exposta a corrente que será adotada para embasar os argumentos que se seguirão e a extrema importância da aplicação do instituto da desconsideração da pessoa jurídica, constata-se que as penas que podem ser aplicadas a pessoa jurídica serão aquelas elencadas no art. 21 da lei n°. 9.605, que são: I- multa; II- restritivas de direitos; III- prestação de serviços à comunidade. O legislador teve a preocupação de delimitar as penas que se aplicam dentro das restritivas de direitos e prestação de serviços a comunidade, na primeira temos o previsto no art. 22, onde as pessoas jurídicas podem ser obrigadas a: suspender parcial ou totalmente suas atividades quando este não obedecer às disposições legais ou regulamentares relativas à proteção do meio ambiente; a interdição temporária do seu estabelecimento, obra ou atividade, quando este não possuir a devida autorização ou estiver em desacordo com a concedida, bem como se estiver violando disposições legais ou regulamentares; por último pode chegar a ser proibida de contratar com o poder publico, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, onde a proibição não poderá exceder o prazo de dez anos. Em relação às prestações de serviço a comunidade, o art. 23 dispõe que as empresas deverão: custear programas e projetos ambientais; executar obras de recuperação de áreas degradadas; realizar manutenção de espaços públicos; e por fim, poderá também realizar contribuições a entidades ambientais ou culturais publicas. A lei 9.605/98 foi um inegável avanço, segundo o grande escritor e estudioso da área de direito ambiental, Édis Milaré, pois sistematizou a tutela penal no momento em que inclui tipos culposos e faz a adoção de penas restritivas de direito, com isso se pode construir uma jurisprudência e doutrina mais “adultas”, beneficiando o meio ambiente, pois ainda se faz necessário construir de fato um direito ambiental penal que proteja efetivamente todo o grande patrimônio que possuímos. (MILARÉ; 2009, p. 1013-1014). Ao se desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, então a responsabilidade também cairá sobre os administradores que tiveram efetiva participação nos eventos do desastre. No caso de Mariana/MG após as investigações foi constatado que alguns administradores da empresa Samarco tinham ciência de que o desastre poderia vir a acontecer, porém, assumiram o risco e continuaram as atividades normalmente, podendo imputa-los nesse viés por dolo eventual e responsabiliza-los pelas tantas vidas perdidas no trágico acidente. O dolo eventual é

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caracterizado, segundo o penalista Cezar Roberto Bitencourt, quando [...] o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo. Como afirmava Hungria, assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer. Essa espécie de dolo tanto pode existir quando a intenção do agente dirige-se a um fim penalmente típico como quando dirige-se a um resultado extratípico. (BITENCOURT, 2011)

Logo, mesmo não querendo o resultado, os indivíduos em questão aceitaram que o mesmo eventualmente pudesse acontecer, aceitaram o risco, podendo ser imputados pelos danos de sua decisão anterior.

Diante de tudo que foi exposto se conclui que no caso analisado, o instituto da desconsideração da pessoa jurídica poderia ser aplicado de forma eficaz para que, não só a empresa fosse responsabilizada, mais também seus administradores, tanto em via cívil como penal. Seria uma forma de punir os reais culpados pelo desastre, haja vista que a pessoa jurídica em questão não pertencia somente aos indivíduos que estavam em sua diretoria, mas também a outras empresas, sendo injusto responsabiliza-las por decisões tomadas sem seu conhecimento, caso provem que não tinham ciência dos fatos. Salientado que a prevenção deve ser sempre a primeira medida a ser tomada, para que a questão sobre quem deve responder pelo dano não precise ser posta em discursão. Cobrar mais fiscalização ou pelo menos uma fiscalização efetiva é essencial, pois o que está em jogo são nossos recursos naturais e a segurança, não só dos trabalhadores das empresas, mas, também, das possíveis comunidades existentes no entorno. Outro ponto importante sobre a desconsideração da pessoa jurídica é que não basta somente uma indenização para as famílias que tiveram suas casas destruídas, ou tiveram um ente que foi vitimado por um desastre ambiental, pois a indenização não se faz suficiente para suprir os danos causados a vida, acidente esse provocado por negligência de uma empresa, instituição essa gerida por pessoas que se não condenadas, farão com que surja um sentimento de impunidade, onde os seus gestores poderiam se esconder “atrás” da pessoa jurídica de suas companhias, ficando esses impunes.

REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. Ed. 17. São Paulo: Saraiva, 2012.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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ABSTRACT The singular institute of the disregard of the juridical person present in the Brazilian civil code has been providing a more thorough evaluation in relation to several cases involving legal persons, preserving, in most cases, this and making the individual responsible for the crime committed, where these Cases of environmental crimes under article 225 of the federal constitution, their representatives (directors, administrators) of legal entities, may be held responsible for crimes against the environment, being criminally and administratively charged for the crime. From this perspective, the case of the dam rupture will be analyzed in the municipality of Mariana, MG, in light of the lack of consideration, as well as all the norms of environmental law pertinent to the event in question, so that one can ask who is responsible for the real responsibility and which type Which would be applied in such cases, whether it would be a civil, criminal or even administrative liability. It will be used as a means to not only support the problem but also to give more credibility to the research, some specialists who through their works in the field, mainly environmental law, have made the subject more discussed. Keywords: Samarco. Civil responsibility. Criminal responsibility. Case of Mariana.

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THE DISREGARD OF THE LEGAL ENTITY IN CASES OF ENVIRONMENTAL DISASTERS: A CASE STUDY OF THE DAM RUPTURE IN MARIANA / MG

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A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DOS PUNITIVE DAMAGES E DO DEVER DE PREVENIR DANOS Pastora do Socorro Teixeira Leal1 Alexandre Pereira Bonna2

1 INTRODUÇÃO Caminha-se em rotas tortuosas sempre que se discute a teoria dos punitive damages (indenização punitiva) no Brasil, visto que as principais pesquisas já produzidas sobre o tema 1  Pós Doutora em Direito pela Universidade de Carlos III (Madrid). Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora da Universidade Federal do Pará e da Universidade da Amazônia. Desembargadora do TRT da 8ª Região. Pesquisadora de Responsabilidade Civil Contemporânea. RG n. 4722104, CPF n. 157.923.662-68, Residente e domiciliada à Avenida Almirante Wandenkolk, n. 1040, Umarizal, CEP 66055-030, Belém/Pa. Tel 091 32139414 Email: pastoraleal@uol.com.br. 2  Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade da Amazônia e da Devry/Faci. Professor Orientador do Grupo de Responsabilidade Civil da Liga Acadêmica Jurídica do Pará na área de Responsabilidade Civil. Advogado. RG n. 5184555, CPF n. 002.190.842-70. Residente e domiciliado à Travessa Maria Leopoldina, n. 53, Nazaré, CEP 66060-180, Belém/Pa. Tel 091 988230350. Email: alexandrebonna@yahoo.com.br.

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RESUMO Explana um diagnóstico sobre práticas iníquias no bojo das relações privadas, refletindo sobre a possibilidade de existirem bens internos (no sentido macintyriano) a serem perseguidos pelos seus participantes. Apresenta os fundamentos do Direito Natural sob a ótica de John Finnis e sua pertinência no bojo das relações privadas. Analisa os fundamentos éticos dos punitive damages. Conclui que os punitive damages se caracterizam como um poderoso instrumento no plano ético-jurídico, especialmente no que concerne à consecução do bem comum. Palavras-chave: Direito natural. Responsabilidade civil. Relações privadas. Punitive damages.

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3  Classificação feita por Jim Gash (2005) em estudo denominado “Solving the multiple punishments problem: a call for a national punitive damages registry”.

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não investigaram a fundamentação ética do instituto, limitando-se a desbravar o cabimento ou não dos punitive damages no ordenamento jurídico brasileiro sob o prisma dogmático. Destacam-se o meu livro (2015) e o do Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e Nelson Rosenvald (2015), as teses de Ricardo Pedro e Serpa (2011), Geandrei Stefanelli Germano (2011), Marcela Alcazas Bassan (2009), André Gustavo de Andrade (2009), Carolina Vaz (2009), a obra de Maria Celina Bodin de Moraes (2009) e o artigo de Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler (2005). Os punitive damages se caracterizam como uma verba indenizatória que possui um objetivo bem específico: impor um valor indenizatório maior do que o suficiente para compensar ou reparar o prejuízo causado de modo a fomentar a dissuasão/prevenção/detenção de uma conduta com alto grau de censurabilidade. Não se pode olvidar que esse instituto é bem versátil e ao lado do maior objetivo (desestimular o ofensor) acaba desempenhando muitos outros, como função general deterrence (desestímulo de outros potenciais infratores na sociedade), retribution (castigo), education (educação), compensation (compensação) e law enforcement (cumprimento da lei) ou public justice (justiça pública)3, funções essas que não serão aprofundadas nessa oportunidade. Do mesmo modo, a partir da análise das diversas experiências com os punitive damages, também é possível identificar que os mesmos possuem diferentes técnicas de aplicação, apreciação, julgamento e destinação, como a participação do júri e do magistrado num procedimento denominado de bifurcado, a simples apreciação pelo magistrado, a possibilidade de separar a verba destinada a reparação/compensação daquela referente à punição, a junção das duas verbas em uma só, a destinação do valor indenizatório punitivo à vítima ou a destinação da verba a um fundo ou instituição que tenha atuação com a matéria discutida. Contudo, essas questões também não fazem parte da presente pesquisa. A problemática que será enfrentada pelo presente artigo é se os punitive damages, para além de possuírem fundamentação dogmática, se arrimam no campo ético, pois caso a resposta seja positiva, os punitive damages poderão ser considerados um poderoso instrumento para os sujeitos das práticas sociais cultivarem atos virtuosos e que contribuem para o bem comum, promovendo, ao fim e ao cabo, a felicidade dos membros de uma comunidade específica. A justificativa da presente investigação repousa na constatação de que nas relações privadas e nas práticas sociais em geral há agentes, que de forma reiterada perpetram ilegalidades em larga escala em face do trabalhador e do consumidor, mas em contrapartida tem como resposta do Poder Judiciário indenizações desconexas com a gravidade dos danos, com os lucros obtidos com o ilícito, com o grau de censurabilidade da conduta, etecetera, especialmente se se considerar que a maior parte dos danos perpetrados na sociedade de risco e de massa são reiterados e minuciosamente arquitetados sob a ótica do custo-benefício.

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As atividades laborais de boa parte dos habitantes do mundo moderno não podem ser compreendidas como uma prática nos termos que MacIntyre desenvolve. Pois, ao deslocar o trabalho produtivo de dentro dos laços comunitários, se perdeu a noção de trabalho como uma arte que contribuía para o sustento da comunidade e dos lares. (...) Por conseguinte, as relações meio-fins são necessariamente externas aos fins daqueles que trabalham, e como já ressaltamos, as práticas com bens internos foram excluídas,

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Outra alarmante preocupação que se convola em justificativa para o presente estudo no plano ético diz respeito à potencialidade de que os membros de relações privadas, sem uma contrapartida efetiva do Poder Judiciário, enfraqueçam as práticas sociais no plano ético e contribuam para o decréscimo do bem-estar e do bem comum social. Prática é qualquer atividade humana complexa, cooperativa, socialmente estabelecida, e que possua bens internos buscados pelos componentes, que representam os padrões de excelência (MACINTYRE, 1981, p. 187), como o jogo de xadrez, a família, a compra e venda de mercadorias e até mesmo a comunidade compreendida como um todo e tendo como bem interno o bem comum, o Estado de Direito. E o que pode se entender como bens internos a essas práticas, fundamental para a compreensão do conceito de virtude? São bens que representam os padrões de excelência de uma prática e, uma vez atingidos, beneficiam todos que fazem parte da prática, enquanto que os bens externos ás práticas quando são alcançados se limitam a ser de posse e benefício apenas de uma pessoa ou de um grupo (MACINTYRE, Op. Cit., p. 190). Essa primeira dimensão de uma vida virtuosa está relacionada aos conceitos de práticas e bens internos a essas práticas. Ou seja, é preciso compreender as práticas e os seus bens intrínsecos que uma vez alcançados causam impacto positivo a todos que fazer parte da prática, sendo as virtudes uma qualidade humana cuja posse e exercício prestigia os bens internos da prática (MACINTYRE, Op. Cit., p. 191). Importante salientar que MacIntyre não está negando às pessoas o direito de auferir lucro e enriquecer, apenas está alertando que do ponto de vista ético poder, fama e dinheiro são bens externos às práticas, mas devem e podem ser conquistados como consequência secundária pela busca dos bens internos, sob pena de criar um desacordo moral, porque uma prática deve partilhar uma ideia de bem a ser perseguida por todos os membros da prática. Nesse sentido, atos virtuosos são aqueles que aproximam a comunidade de bens internos de práticas, de unidades narrativas e da tradição, sendo inadequado nessa pesquisa abordar as outras duas dimensões de virtudes, cabendo apenas salientar que quanto maior o êxito das referidas fases, maior a possibilidade de o ser humano realizar suas potências, florescer e ser feliz. Destarte, a potencialidade de os membros das relações privadas se distanciarem do bem comum se solidifica ainda na medida em que se reconhece que não existem bens internos (no sentido macintyriano) entre os participantes das relações privadas de massa, tais como as relações de consumo (fornecedor e consumidores) e de trabalho (empregador e empregado), afirmação esta que tem sido feita por parte da doutrina:

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assim como as artes, as ciências e os jogos são tidos como trabalhos de uma minoria especializada (SANTOS, 2012, p. 101/102).

2 APROXIMAÇÃO DO PROBLEMA A PARTIR DO JUSNATURALISMO: BEM COMUM E JUSTIÇA Apesar de nas relações privadas aparentemente os participantes busquem os seus próprios interesses, não se pode negar que é possível estabelecer um conjunto de valores e bens que se forem alcançados beneficiam todos os participantes e formam um terreno fértil para a concretização das excelências humanas através do exercício das virtudes. Portanto, é possível buscar um bem comum inerente à prática e ao grupo, recuperando o interesse pelo aspecto co-

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Contudo, ousa-se discordar da ideia defendida pela autora, pois do contrário seria desistir de buscar a construção de relações privadas mais justas e que contribuam em maior grau com o bem comum. Assim, entende-se que as relações privadas possuem bens internos sim, como a boa-fé, a qualidade dos produtos e serviços, a prevenção de danos, o estreitamento da relação entre os participantes, etecetera, bens internos esses que uma vez alcançados, promovem um incremento no bem estar de todos os participantes. É exatamente nesse aspecto que os punitive damages podem se caracterizar como uma ferramente útil no plano ético na medida em que desencoraja práticas indesejadas e incentiva o cultivo de atos virtuosos e em harmonia com um ideal de prática ou de comunidade em um sentido mais amplo. A descaracterização das relações privadas como práticas e por consequência a inexistência de perseguiçao aos respectivos bens internos torna inviável a construção de uma comunidade virtuosa, o alcance do bem comum e o florescimento humano dos membros das referidas práticas. Isto porque segundo a tese de MacIntyre (Op. Cit.) existem três estágios para atingir uma vida virtuosa em comunidade, sendo o primeiro deles e condição para os demais, o êxito na consecução dos bens internos de práticas sociais. O problema se agrava quando se constata que as relações privadas, especialmente as de trabalho e de consumo, se caracterizam como uma das principais práticas do mundo contemporâneo porque o trabalho e o consumo se tornaram a atividade mais importante do homem moderno (ARENDT, 2011, p. 157), de modo que aceitar a inviabilidade do alcance de seus bens internos é praticamente obstaculizar um patamar mínimo de uma comunidade cooperativa em prol do bem comum, colocando em xeque o nível ético de uma dada sociedade. Na primeira parte da pesquisa serão abordadas reflexões sobre jusnaturalismo, bem comum e justiça, tendo por base o pensamento de John Finnis exposto em “Lei Natural e Direitos Naturais” (2007) e em “Aquinas” (2004). Na segunda etapa, serão feitas digressões sobre as consequências da penetração da ética no direito a partir dos fundamentos jusnaturalistas tendo como foco o questionamento se o instituto dos punitive damages estão em harmonia com a construção de uma sociedade ética que fortaleça o bem comum.

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munitário e social e é justamente nesse aspecto que o Direito, por intermédio, por exemplo, dos punitive damages, pode impor um padrão de conduta desejável. Deste modo, mesmo que seja uma realidade o alto nível de desinteresse pelo outro no bojo das práticas sociais, notadamente as de consumo e de trabalho, onde os participantes tendem a buscar seus próprios interesses ao invés do bem do grupo, não se deve perder de vista que conceder um alto peso à liberdades e escolhas individuais pode representar uma grave disordem no plano social, pois quanto mais fraco são os laços de dependência dentro de um grupo mais distante fica o ideal de cooperação em prol de um objetivo comum. Ora, mas o que tudo isso e o problema introduzido têm a ver com a justiça e com o bem comum de uma dada comunidade? A justiça é uma das exigências da razoabilidade prática, que é um dos bens humanos básicos e tem por objeto a realização do bem comum. Desse modo, a justiça está relacionada à colaboração em conjunto em relação a certos valores na esteira de uma reciprocidade, reconhecendo o que é devido a outrem como um direito de outrem e um dever seu e inviabilizando escolhas arbitrárias para os projetos de vida. Quanto mais justas forem as relações dos membros, mais fértil é o terreno para o alcance de bens internos, gerando uma onda de benefício para todos os participantes e assegurando maiores condições para a consecução dos projetos particulares de cada um. É por esse motivo que o objetivo do Direito, dentro de uma concepção jusnaturalista, é compreender quais são os bens humanos básicos (vida, conhecimento, jogo, experiência, estética, sociabilidade, razoabilidade prática, religião) que indicam as formas básicas de florescimento, sendo possível, a partir dos critérios da razoabilidade prática (um plano de vida coerente, sem preferência arbitrária por valores, sem preferência arbitrária por pessoas, desprendimento, compromisso, a relevância limitada das consequências, respeito por cada valor básico em cada ato, exigências do bem comum, seguir a consciência) “distinguir entre atos que são razoáveis levando-se tudo em consideração e atos que são desarrazoados” (FINNIS, 2007, p. 30/36). De todos os requisitos da razoabilidade prática, o mais pertinente com a presente pesquisa é o bem comum, ou melhor, aquilo que é exigido pelo mesmo. Em uma compreensão bem ampla, ele está relacionado com o pautar como razão para o agir o bem do outro (FINNIS, 2007, p. 143/144), que envolve, dentre outras coisas, garantir um “conjunto de condições que tendem a favorecer, facilitar e promover a realização, por parte de cada indivíduo, de seu desenvolvimento pessoal (...) para que cada um dos membros atinge seus próprios objetivos” (FINNIS, 2007, p. 148/157). Quando se volta para a envergadura social de alguns danos perpetrados no bojo das relações privadas de massa, se percebe que a fraqueza do Direito para detê-las ofusca a possibilidade de alcançar uma comunidade plenamente realizada e completa do ponto de vista ético, pois o bem comum relativo à prática das relações privadas não estará sendo alcançado, o que causa muitas vezes o rebaixamento da qualidade de vida dos participantes. Nesse desiderato, se é possível refletir o direito a partir de bens humanos básicos, é possível então julgar decisões, leis e práticas sociais à luz da obediência ou não a tais bens, pois

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do contrário serão consideradas deficitárias quanto ao caso central. Assim, o jusnaturalismo exige que os bens humanos básicos sejam superiores às instituições, leis, decisões e práticas, o que se caracteriza como uma exigência muito mais abrangente e forte de determinados padrões de conduta de envolvidas em práticas e instituições, sendo possível fazer severas críticas sobre o uso da autonomia privada e da propriedade privada no contexto das relações de trabalho e de consumo, visto que se esse sistema privado não estiver promovendo o bem comum não estará satisfazendo uma exigência de justiça e, portanto, mesmo que a Lei Positiva esteja inteiramente sendo cumprida, a referida prática será injusta. O raciocínio jusnaturalista não é antagônico a Lei Positiva, ao contrário, busca em grande intensidade reafirmar, fortalecer e solidificar o que aquela propunha (FINNIS, 2015, p. 1). Além disso, o que o jusnaturalismo propõe é compreender que a Lei Positiva é apenas uma das facetas fundamentais do direito e que não pode existir dissociada, independente e alheia a qualquer valoração de cunho ético relativa aos bens humanos que devem ser perseguidos. Ao contrário, o Direito pode e deve ser fundamentado também como uma boa razão para a ação no plano ético, visto que um conjunto de normas legisladas ou de precedentes judiciais não podem por si só serem considerados uma boa razão para a ação, como destaca Carlos Massini-Correas, comentando o pensamento de John Finnis:

Portanto, o jusnaturalismo não nega a validade do Direito no plano institucional e social-fático, apenas compreende que essa é apenas uma dimensão de validade para uma visão completa do Direito, que deve ser visto também sob o plano ético, porém ambas as dimensões integram o que se pode denominar de Direito (MASSINI-CORREAS, 2015, p. 31). Ratifica-se, o que é considerado natural no jusnaturalismo é o que esteve em harmonia com os requisitos da razoabilidade prática, que envolve, dentre outras exigencias, o respeito ao bem comum. Por esas e outras razões, o jusnaturalismo já foi mal interpretado por aqueles que pensam que o mesmo persegue a natureza como algo relacionado aquilo que é inerente à vida humana ou a impulsos naturais, negligenciando que o jusnaturalismo é um apelo à razão. Nesse sentido: Aquinas is particularly clear and explicit that in this context, “natural” is predicated of something (say, a law, or a virtue) only when and because that of which it is predicated is in line with reason, practical reason, or practical reason’s requirements.” (FINNIS, 2015, p. 3)

So, in the philosophy of human affairs, when one predicates ‘natural’ or ‘naturally’ of such a community and its arrangements, one does not mean ‘automatically’, or ‘by

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(…) ningún hecho o conjunto de hechos, por muy complejo que sea, puede proporcionar por sí mismo una razón para actuar (…) en la medida en que se enorgullece de ocuparse sólo de hechos, no puede ofrecer una comprensión adecuada, ni de las razones para la acción (los deberes), ni de la única fuente concebible de estos deberes, es decir, los verdaderos e intrínsecos valores (2015, p. 43/44)

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virtue of innate subrational inclination’ or of any other ‘natural impulse’. Nor does one mean ‘usually’ or ‘very frequently’ or standardly’. Rather, one means ‘rationally’, i.e. as judged by the standards for judging our actions reasonable or unreasonable, right or wrong: things are ‘naturally’ X for human persons when they are X ‘in accordance with right reason‘”. (FINNIS, 2008, p. 45)

A partir dessas noções basilares sobre o jusnaturalismo e a abordagem inicial sobre as práticas iníquas no bojo das relações privadas, torna-se possível vislumbrar que o Poder Judiciário, no manejo e na aplicação do Direito, possa e deva confrontar as leis, precedentes e práticas sociais à luz dos comandos éticos relativos aos bens humanos básicos. Deste modo, utilizando como ponto basilar a ideia de bem comum e justiça, o magistrado poderá reprimir aquelas condutas que estejam em desarmonia com ambas as esferas de validade do direito e, para tanto, poderá fazer uso do instituto dos punitive damages, que possui como objetivo principal desestimular condutas indesejadas.

A penetração da fundamentação ética calcada no direito natural na análise de qualquer categoria jurídica, inclusive a responsabilidade civil, provoca impacto no sentido de restringir a autonomia dos membros de uma comunidade na medida em que a qualidade do que é direito e dotado de coercitibilidade é incrementado por reflexões de cunho ético. Embora os participantes de práticas sociais sejam livres para realizarem seus projetos, essa liberdade deve ser brecada quando não passar no crivo da razoabilidade prática, que envolve, dentre outras, a consecução do bem comum. Em acréscimo, se a autonomia só tem valor se exercida em prol do bem comum, se adequando com opções moralmente aceitáveis (MASSINI-CORREAS, Op. Cit., p. 131) torna-se corolário lógico que práticas sociais danosas devem ser compreendidas como incompatíveis com o bem comum e que qualquer categoria jurídica que venha a corroborar com essa tarefa seja considerada bem fundamentada ao menos sob o ponto de vista ético, tendo em vista que abandona o apego à autonomia como um fim em si mesmo, sem compromisso com o bem comum: La adquisición de la autonomía por una persona (…) la habilita para realizar el tipo de elecciones con las cuales puede realizar. (...) La autonomía no puede proveer [en sí misma] una razón última para la acción. Y consecuentemente, es incapaz de proporcionar fundamento razonable a la exigibilidad de los derechos. (MASSINICORREAS, Op. Cit., p. 131)

Se a autonomia fosse um fim em si mesmo e não estivesse passível de sofrer reprimendas do Estado, estar-se-ia próximo de um estado de coisas anárquico no qual nenhuma insti-

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3 FUNDAMENTOS ÉTICOS DOS PUNITIVE DAMAGES

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tuição tem legitimidade para de forma eficaz restringir desvios no bojo de litígios e situações danosas sem resolução no campo extraproxessual (FINNIS, 2015, p. 3). Sendo assim, o direito natural acentua ser inarredável a presença de uma instituição dotada de autoridade para impor limites às escolhas/atos individuais:

Além disso, não se pode perder de vista que ao fim e ao cabo a limitação a determinadas práticas danosas possui como esteio o alcance do bem comum, podendo a responsabilidade civil, por intermédio dos punitive damages servir de mecanismo de efetivação da Justiça Distributiva, na medida em que a verba indenizatória de cunho punitivo atingirá o bem comum e contribuirá para uma justa distribuição de encargos na sociedade de massa e de risco. Portanto, a responsabilidade civil não é apenas um instrumento da justiça comutativa – tendo por objeto a reposição de perdas injustamente causadas – mas também de justiça distributiva, entendida como o conjunto de exigências de colaboração que intensificam o bem-estar e as oportunidades de florescimento do ser humano (FINNIS, 2007, p. 165). Trocando em miúdos, a justiça distributiva parte do pressuposto de que não são todos os seres humanos que possuem as condições essenciais para o florescimento e atualização de suas potencias (realização de projetos de vida), motivo pelo qual para que se persiga o ideal de que todos alcancem a sua felicidade a partir da efetivação dos bens humanos básicos (como a vida, a sociabilidade, o jogo, conhecimento, experiência estética, dentre outros) deve haver – em uma sociedade extremamente desigual - uma efetiva colaboração das pessoas, sendo o papel da justiça distributiva coordenar o a distribuição de recursos, oportunidades, lucros, ônus, vantagens, papeis, responsabilidades, e encargos” (FINNIS, 2007, p. 167/173). A responsabilidade civil é sim um problema também de justiça distributiva, pois deve ser motivo de reflexão por parte dos juízes, advogados, defensores, legisladores e procuradores se – à luz dos novos comandos constitucionais - ela não deve ser adequadamente dimensionada de modo a atribuir o ônus de arcar com indenizações punitivas e preventivas para o caso de violações constantes e graves de interesses juridicamente protegidos, possibilitando o fomento do bem comum e dos bens humanos básicos na medida em que inibe/atua conduta presente potencialmente causadora de dano. Infere-se a compatibilidade dos punitive damages com os fundamentos éticos jusnaturalistas na medida em que os mesmos visam a brecar condutas com alto grau de danosidade e censurabilidade, por danos físicos ou econômicos, alto grau de desinteresse pela vítima, reiteração e muitas vezes se caracterizam pela tentativa de se beneficiar da vulnerabilidade do outro. Por essas e outras, as práticas combatidas pelos punitive damages são contrárias ao direito por serem antagônicas às exigências do bem comum e negligenciarem o ideal de respeitar os aspec-

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The first issue that Aquinas takes up about human law in his set-piece discussion of law, Summa Theologiae, I-II, q. 95 a. 1, is whether human law [positive law] is beneficial —might we not do better with exhortations and warnings, or with judges appointed simply to “do justice”, or with wise leaders ruling as they see fit? (FINNIS, 2015, p. 2/3)

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tos básicos dos membros de uma dada comunidade. Deste modo, o Poder Judiciário deve se imbuído de razões de cunho ético para limitar o campo de atuação da autonomia, tendo sempre em vista uma concepção de bem comum que favoreça o florescimento humano, sendo necessário para isso, em casos mais graves, impor uma indenização maior do que a suficiente para compensar ou reparar o prejuízo, de modo a desestimular a conduta do ofensor que esteja desatinada com o bem comum da sociedade que o cerca. Deve-se, portanto, compreender o compromisso do Direito com a detenção e desestímulo de condutas indesejáveis, pressupondo que a investigação racional para determinar o que é o direito não abre mão da investigação do que o bem comum exige em um dado contexto, exigência esta que se torna parte do direito e da noção do que é justo no particular. Nesse viés, o problema da justiça exige preocupação com a maneira mais adequada de tratar o outro, de modo a preservar uma razoável relação entre as pessoas, o que exige certamente o dever de evitar a prática de atos danosos, assim como o dever de suportar a punições pelas infrações cometidas (FINNIS, 2008, p. 188). Assim, aquelas condutas mais graves no âmago das relações privadas devem ser eliminadas a partir do manejo do valor indenizatório com o fim de neutralizar a subsistência de relações e práticas injustas, como destaca John Finnis à luz do pensamento de Tomás de Aquino sobre o direito de danos:

Cabe salientar que não se está a defender o cabimento de indenizações milionárias que inviabilizem a iniciativa privada, visto que alguns dos requisitos para que os punitive damages guardem harmonia com a fundamentação ética é que o ato em análise seja muito grave, o valor das indenizações punitivas seja proporcional ao mal causado e ao objetivo de desestimular o ofensor, ideias estas que guardam relação com o objetivo de perquirir o bem comum presentes no pensamento de Tomás de Aquino exposto por John Finnis (2008, 211/212): “punishment, though merited, need not be imposed when its imposition would cause disproportionate harm to others; punishment is a matter of fairness and the measure of that fairness is the common good for the whole community.” Além do mais, não há que se falar que os punitive damages não podem contribuir para o bem comum sob o pretexto de que ele é aplicado apenas diante de um caso concreto e de um grupo e de uma prática específica, porém essa visão é equivocada em relação à teoria jusnaturalista, visto que quaisquer ações que contribuam para o bem comum são justas e constituem deveres de justiça, como explica Luis Fernando Barzotto (2003, p. 2): “o termo ‘geral’ aplicado a este tipo de justiça refere-se à sua abrangência: todos os atos, independentemente da sua natu-

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Aquinas sees ‘recompense’ or ‘compensation’ in Aquinas’ thought this ‘cure’ involves far more than the possible reform of the offender, and includes also the restraining and the sheer deterrence of the offender and of everyone else who needs deterring from wrongdoing and coercive inducement to decent conduct. and of everyone else who needs deterring from wrongdoing and coercive inducement to decent conduct (...) this (re)ordering {ordinativa} point of punishment can either be accounted remedial {medicinalis}, or contrasted with the remedial (deterrent, reformative) (2008, 211/212).

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reza, na medida em que são devidos à comunidade para que esta realize o seu bem, constituem deveres de justiça”. Destarte, por intermédio dos punitive damages, ao deter um padrão de conduta em desarmonia com o bem comum e incentivar ações que abracem as exigências éticas, o Poder Judiciário cria um terreno fértil para alcançar o bem comum indiretamente, pois, embora se trate de uma justiça particular, consequentemente beneficia a todos os componentes de uma comunidade, como se observa nessas lições de Luis Fernando Barzotto: Como o ser humano é, para Tomás, um animal social, o fato de a justiça particular visar diretamente o bem do particular não significa que ela seja alheia ao bem comum: a justiça particular “dá a cada um o que é seu em consideração ao bem comum.” De fato, o ato de pagar uma dívida, por exemplo, beneficia diretamente o credor, mas indiretamente beneficia a todos, na medida em que este ato reforça e reafirma o sistema de crédito necessário à vida econômica da comunidade. Como foi visto, isto não significa que a justiça particular possa ser pensada à margem do bem comum. Ao contrário, algo só é devido a um particular em vistas do bem comum, seja em uma distribuição, seja em uma troca. A justiça particular visa diretamente o bem do particular e, indiretamente, o bem comum (BARZOTTO, Op. Cit., p. 2/7).

Apresentadas as principais diretrizes do prisma jusnaturalista do direito, assim como as bases da teoria dos punitive damages, conclui-se que a vida em sociedade é uma vida de débitos, pois todos devem algo a alguém, sendo um desses débitos o de não lesar outrem alterum non laedere. Assim, viver em sociedade é viver com restrições em suas ações e assumir as consequências por condutas danosas (BARZOTTO, Op. Cit., p. 11). Os punitive damages possuem esteio ético na medida em que contribuem para a consecução do bem comum e contribuem para uma justa distribuição de encargos na sociedade de massa e de risco, forçando que os participantes de relações privadas, em especial gandes fornecedores, pautem suas decisões sobre qualidade e segurança de produtos, serviços e condições de trabalho em um nível ótimo. Do contrário, suportarão um valor indenizatório alto o suficiente para que o ofensor internalize os danos que causou, o fazendo tomar o devido cuidado em sua atividade, trazendo como lição que é vantajoso manter um nível ótimo de qualidade e atendimento e arcar com menos indenizações (carregadas pelos punitive damages) ao invés de conservar um nível baixo de qualidade e ser obrigado a pagar altas indenizações (VISSCHER, 2009, p. 220). Desse modo, os punitive damages podem romper com a iníqua equação pautada pelo resultado de uma relação custo/benefício do seu comportamento em detrimento dos direitos dos consumidores, trabalhadores e de todas as vítimas inseridas no contexto dos danos em massa, impedindo o ofensor de se beneficiar ou lucrar com o dano causado ou de encontrar na sanção

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4 CONCLUSÃO

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meramente compensatória um preço conveniente (ANDRADE, Op. Cit., p. 258). Nesse espectro, surge a importância de – a partir dos punitive damages – tornar um ato ou um padrão de conduta danoso desvantajoso, desencorajando, coibindo, detendo e impedindo a sua reiteração da seguinte forma: caso o autor do dano, ao reiterar os atos que vem praticando, verificar que o pagamento de indenizações arbitradas judicialmente na proporção dos danos causados ainda deixá-lo em uma posição economicamente favorável, com custos decorrentes de indenizações e processos judiciais menores do que os lucros obtidos pela ilicitude, a perpetração de danos subsistirá porque a lógica de gastos-despesas continuará o orientando para a manutenção da conduta reprovável. Contudo, uma vez que a indenização de cunho punitivo se acople à compensatória, se começa a vislumbrar uma revisão da vantagem em manter-se violador (VOLOKH, 1996, p. 10).

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THE ETHICAL FOUNDATION OF PUNITIVE DAMAGES AND THE DUTY TO PREVENT DAMAGES

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ABSTRACT It explores a diagnosis of practices in the bulge of social relations, reflecting on the possibility of internal goods (in the Macintyrian sense) to be pursued by its participants. It presents the foundations of Natural Law from the perspective of John Finnis and his pertinence in the bosom of private relations. Analysis of the ethical foundations of punitive damages. It concludes that punitive damages are characterized as a powerful instrument to achieve ethical demands, especially as regards the attainment of the common good and justice. Keywords: Natural law. Tort law. Private relations. Punitive damages

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A REVISTA ÍNTIMA E SUA APLICAÇÃO NAS RELAÇÕES LABORATIVAS Marcyo Keveny de Lima Freitas1

RESUMO O presente estudo visa compreender a aplicabilidade da revista íntima nas relações trabalhistas, na medida em que tal tema traz a tona o poder excessivo do empregador na tomada de atitudes desproporcionais por meio de condutas vexatórias que agridem, frontalmente, os direitos à intimidade e à privacidade do empregado. A revista íntima caracteriza-se como um procedimento que colide interesses opostos como o direito à intimidade e à privacidade do trabalhador e o poder diretivo do empregador. Assim, por ser um tema bastante contemporâneo, enseja que a doutrina e a jurisprudência muito debatam acerca da legalidade e quais os limites impostos ao empregador para que venha realizar o procedimento de revista em seus empregados. Havendo a colisão de direitos nas relações de trabalho entre o poder de fiscalização do empregador e os direitos fundamentais do empregado, as soluções apresentadas nos casos concretos devem sempre buscar harmonizar as normas constitucionais, procurando manter a unidade da Constituição. Palavras-chave: Revista íntima. Relações trabalhistas. Dignidade da pessoa humana. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI-RN. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Advogado. E-mail: marcyolima@ hotmail.com 2  Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre pelo Programa Interdisciplinar em Ciências da Sociedade, na área de Políticas Sociais, Conflito e Regulação Social, pela Universidade Estadual da Paraíba. Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande. É Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: patriciaborb@gmail.com 1

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Patrícia Borba Vilar Guimarães2

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1 INTRODUÇÃO

nas relações sociais e, de modo particular nas relações de trabalho, o Estado passou a intervir na esfera particular, assegurando assim, a todo e qualquer indivíduo, os direitos fundamentais que lhe são inerentes. Paralelo a isso, e no intuito de resguardar seu patrimônio, alguns empregadores defendem a prática da revista de seus empregados. Porém, ao fazê-la, não atentam às consequências jurídicas que podem advir de suas condutas, ou seja, se esta revista está ou não em consonância com o ordenamento jurídico vigente. Questiona-se, assim, se os meios de fiscalização e controle das atividades dos empregados, de que se vale o empregador no ambiente de trabalho, ofendem ou não a tutela constitucional da intimidade da pessoa humana. A justificativa da pesquisa decorre da relevância social do problema, uma vez que um número massivo de pessoas participa dessas relações, e também pelo fato de a questão não ter amparo legislativo, ficando a cargo da jurisprudência e da doutrina oferecer uma resposta satisfatória aos conflitos que daí podem surgir. Contudo, deverá ser estudado os Direitos Fundamentais que serão possivelmente os mais afetados, dos quais estão os direitos à intimidade, à vida privada e à honra. Não esquecendo o mais importante princípio que serve de base e ligação para todos os outros Direitos

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A busca pela compreensão dos diversos aspectos da relação empregado/empregador ou trabalho/capital será inevitavelmente complexa devido à instabilidade de que está imbuída, sobretudo quando a pesquisa incide sobre a dicotomia entre os Direitos Fundamentais do trabalhador e os procedimentos invasivos instituídos pelas empresas com vistas a resguardar os seus interesses. De um lado o empregado visa à manutenção do seu emprego, submetendo-se muitas vezes às exigências impostas pelo mercado de trabalho, até mesmo, ocasionalmente, em detrimento dos seus direitos. Por outro lado, o empregador, com o objetivo de condizer suas atividades da maneira mais segura possível, do ponto de vista do capital, ocasionalmente institui medidas passíveis de afrontar o direito dos trabalhadores. Nesse sentido, o presente trabalho busca justamente determinar até que ponto a revista íntima é legítima em face do ordenamento jurídico pátrio e os parâmetros de sua utilização em consonância com os direitos fundamentais. Com efeito, ambas partes retiram proveito da relação de trabalho, de modo que a sua manutenção coincide com os interesses não apenas daqueles que literalmente vendem sua força laboral, como daqueles que a utilizam na condução dos objetivos de suas empresas. Entretanto, deve-se observar que há aí uma relação de poder integrada não apenas pelos sujeitos expressos (empregado/empregador), mas também pelo Estado. De fato, desde o advento do Estado Social, a partir da edição das constituições do México e Weimar, para que a igualdade substancial pudesse ser preservada, de um modo geral,

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Fundamentais, que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Sendo também analisado por uma interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico, na Constituição de 1988. Sendo necessário ainda o estudo no contrato de trabalho, para compreendermos os poderes do empregador. Já que o poder empregatício é o gênero dos demais poderes que decorrem deste, como o poder diretivo, poder disciplinar, poder de controle. Para finalizar, o trabalho aborda os posicionamentos dos nossos tribunais a respeito da revista íntima e da revista pessoal, estabelecendo a distinção entre essas duas espécies. Além disso, oferece uma solução aceitável para a questão, instituindo uma regra geral de conduta a ser aplicada aos casos concretos, já que não existe posicionamento uníssono em nosso direito. O presente estudo busca conciliar os vários aspectos e interesses de empregados e empregadores ao instituir a validade da revista íntima e da revista pessoal, estabelecendo, porém, parâmetros que garantam a sua aplicação legítima. A pesquisa tratou ainda da distinção entre revista íntima e pessoal, tão frequentemente confundidas nos estudos doutrinários. O método utilizado no desenvolvimento do trabalho foi principalmente a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, sempre buscando uma síntese a partir do confronto dialético entre os diversos posicionamentos encontrados.

Os Direitos Fundamentais consistem em meios de proteção do indivíduo frente à atuação estatal. Seu surgimento remonta à formação do Estado Liberal com a queda do Antigo Regime. Percebeu-se que a concentração de prerrogativas nas mãos dos dirigentes deveria ser acompanhada de garantias, titularizadas pelos cidadãos, que assegurassem certa proteção ante a eventuais abusos e ingerências perpetradas pelos próprios governantes. Sua definição torna-se mais complexa quando analisada sob a perspectiva histórica e social. A sua problemática surge quando buscamos um fundamento absoluto para resguardá-los, de modo a garantir seu correto cumprimento ou até mesmo utilizá-los como meio de coação. De fato, por estarem alicerçados sobre concepções morais a importância atribuída a tais direitos varia de acordo com as circunstâncias geográficas e cronológicas em que estão inseridos. Na seara específica do direito do trabalho, a doutrina reconhece que os direitos fundamentais possuem, dentre outras funções, a de garantir o mínimo ético necessário a manutenção sadia da relação entre empregadores e empregados. Nesse sentido, Amauri Mascaro do Nascimento (2011, p.906) leciona que tais direitos possibilitam a “organização jurídico-moral da sociedade quanto à vida, saúde, integridade física, personalidade e outros bens jurídicos valiosos para a defesa da liberdade e integração dos trabalhadores na sociedade e perante o empregador”. Os Direitos Fundamentais foram reconhecidos progressivamente e classificados em três, quatro ou cinco gerações conforme a doutrina adotada. A primeira geração de direitos fundamentais expressa o que Norberto Bobbio (1992) denominou liberdade dos modernos, cor-

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2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS: A ATUAÇÃO DO ESTADO E A INCIDÊNCIA SOBRE AS RELAÇÕES PRIVADAS

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respondendo ao simples direito de ir e vir e a garantia de poder fazer tudo aquilo que não é expressamente proibido pelo Estado. O direito de liberdade regula o comportamento do Estado perante as pessoas, resguardando direitos básicos tais como: a vida, dignidade, integridade física, intimidade e inviolabilidade do domicílio, a legitimação e a aplicabilidade nas instituições privadas, tanto físicas quanto jurídicas, prevenindo a supressão da liberdade do empregado pelo empregador. A segunda geração exige prestações por parte do Estado para que as diferenças sociais possam ser diminuídas. Trata-se de garantir a igualdade substantiva, uma vez que a ampla liberdade, com seu ideal de igualdade objetiva perante o Judiciário não impedia o surgimento de injustiças relacionadas às diferenças fáticas existentes entre os jurisdicionados. Surgem, então, os direitos de segunda geração, oferecendo melhores condições de sobrevivência às pessoas, tais como: saúde, educação, assistência social, o trabalho, entre outros direitos sociais. Importante destacar que estes são direitos fundamentais de grande relevância para o presente trabalho, pois estão profundamente ligados com os valores da dignidade e igualdade. Portanto, o Estado terá a obrigação de agir positivamente no sentido de garantir a igualdade entre os indivíduos. Tais direitos marcam a transição entre os modelos liberal e social de Estado, surgi ai uma maior preocupação com o direito dos hipossuficientes, a ordem jurídica passa a considerar os aspectos singulares de cada pessoa. É possível afirmar que é no âmbito desta geração que torna a valer a concepção aristotélica de justiça, como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. A chamada terceira geração de direitos fundamentais, por sua vez, é a que abrange os direitos coletivos e difusos. Cabe salientar, que o ordenamento jurídico brasileiro define o que são direitos coletivos e difusos no interior do microssistema de processo coletivo, mais especificamente no art. 81 da Lei n.º 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). Assim, entende-se por direitos difusos os interesses transindividuais e indivisíveis, titularizados por pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato, enquanto os interesses coletivos são orientados para grupos, classes ou categorias determináveis. Na trilogia dos direitos fundamentais, a terceira geração corresponde aos direitos de fraternidade, tendo geralmente como objeto bens utilizados por qualquer um sem distinção, tais como o ar, a luz solar. Por tanto, esta geração se caracteriza por albergar direitos de uma sociedade indeterminada ou classe humana mesma. Já a quarta e quinta gerações correspondem a direitos de solidariedade e diferença, sendo que apenas uma parcela muito pequena da doutrina discorre sobre direito de tal natureza. Ademais, os direitos fundamentais apresentam características próprias, tais como: historicidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, concorrência, efetividade dentro outros. É direito de todas as pessoas, brasileiras ou estrangeiras, serem asseguradas no nosso território por serem detentoras dos Direitos Fundamentais e o Estado tem deverá resguardá-los. Assim, os Direitos Fundamentais são garantias constitucionais que representam verdadeiros

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limites aos órgãos do Poder Público. Tem o objetivo de combater qualquer forma de violação, no intuito de assegurar-lhes a efetivação. 2.1 A Constituição Federal e os Direitos dos Trabalhadores

inciso III. Essa disposição realçou a importância da proteção à pessoa humana na nova ordem democrática. A Constituição Federal tutela os direitos da personalidade na condição de direitos fundamentais, conferidos pela ordem jurídica com vistas a resguardar e preservar a pessoa humana contra agressões praticadas pelo Estado ou por outros indivíduos. Por existir a diferença econômico-social entre empregado e empregador, é fundamental a aplicação dos direitos fundamentais nesta relação, já que constitui um ambiente em que possíveis conflitos podem surgir com intensa facilidade. Os direitos da personalidade têm como finalidade resguardar as qualidades e os atributos possuídos pelos empregados e manifestos de maneiras diversas no interior da relação de

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Por contrato de trabalho, entende-se geralmente o acordo tácito ou expresso ao qual correspondente a relação de emprego. Tal avença é o ato jurídico que cria a relação sinalagmática de emprego, ou seja, desde o momento de sua celebração dá origem a direitos e obrigações para ambas as partes. Os sujeitos que integram a relação de emprego correspondem a empregador e empregado. A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, define, no seu art. 3º, empregado como “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Depreende-se daí os requisitos para que tal relação seja caracterizada: não eventualidade, onerosidade, subordinação e presença de pessoa natural ocupando o polo do empregado. Por sua vez, o empregador é toda empresa individual ou coletiva que exerce uma atividade econômica, que admite, assalaria e dirige uma prestação pessoal de serviço. O empregador é o responsável por administrar a empresa, controlando o serviço de sua equipe para obtenção do melhor desempenho econômico possível. Neste viés, quanto a proteção dos direitos fundamentais e sua relação com a seara trabalhista, é preciso considerar que os direitos fundamentais foram sistematizados na Constituição Brasileira de 1988, que traz um extenso rol dessas garantias no seu art. 5º, no qual estão previstos diversos direitos e deveres individuais e coletivos. Apesar dessa enumeração, a Constituição guarda ainda outros direitos de igual natureza em outros pontos do seu texto, sendo possível falar em direitos fundamentais inseridos mesmo na ordem infraconstitucional. O início da aplicação da expressão ‘direitos fundamentais’ ocorreu nas últimas décadas do século XX, passando a doutrina e os textos normativos a utilizá-la correntemente para indicar a proteção das pessoas perante o Estado. A Constituição Federal de 1988, consagrou de suma importância a proteção da dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, inserindo-a no seu art. 1º,

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Considerando que a democracia atribui poder também às classes menos abastadas e que, para essas pessoas, o trabalho é o único meio de garantir certo poder social, percebeu o legislador constitucional ser basilar a instituição de um sistema econômicosocial que valorize o trabalho humano. (DELGADO, 2006, p.658).

A Constituição Federal de 1988 teve uma preocupação especial quanto aos direitos sociais dos trabalhadores, pois foi estabelecida uma série de dispositivos que assegurassem aos cidadãos todos os direitos básicos necessários para que tenham condições de trabalho e emprego digno. Em suma, todas as formalidades para que se determinasse um Estado de bem-estar social para o brasileiro foram realizadas, e estão na Constituição Federal de 1988. O direito ao trabalho é garantido pela Constituição Federal brasileira em seu 6° artigo

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trabalho. Sua guarida tem ainda a finalidade precípua de garantir a observância e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito do Trabalho de um modo geral, e nas relações de trabalho em particular. Os direitos dos trabalhadores foram conquistados com muitas lutas, no século XX, por manifestações pelos operários. Estes direitos são conhecidos também como direitos sociais. Para assegurar sua efetividade e proteção da pessoa do trabalhador, como condições de trabalho e sua qualidade de vida, foi necessário respalda-los na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, sendo ratificado pelas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como pelas Convenções Internacionais das Nações Unidas a respeito dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos e Sociais (1966). Os direitos sociais têm como objetivo garantir aos indivíduos condições materiais tidas como imprescindíveis para o pleno gozo dos seus direitos, por tal motivo tendem a exigir do Estado uma intervenção na ordem social que assegure os critérios de justiça distributiva, assim diferentemente dos direitos a liberdade, se realizam por meio de atuação estatal com a finalidade de diminuir as desigualdades sociais, por isso tendem a possuir um custo excessivamente alto e a se realizar em longo prazo. O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 se refere de maneira bastante genérica aos direitos sociais por excelência, como o direito a saúde, ao trabalho, ao lazer entre outros. Partindo desse pressuposto os direitos sociais buscam a qualidade de vida dos indivíduos, no entanto apesar de estarem interligados faz-se necessário, ressaltar e distinguir as diferenças entre direitos sociais e direitos individuais. Portando os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais, são, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Já no artigo 7º da mesma Constituição, visou a melhoria da condição social dos trabalhadores. Neste caso, sobre a valorização do trabalho, alçado a patamar constitucional, dispõe Maurício Godinho Delgado:

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no rol dos direitos sociais, do artigo 7° ao 11° estão previstos os principais direitos para os trabalhadores que atuam sob a lei brasileira assim como a Consolidação das Leis de Trabalho, no entanto não existe um instrumento formal que garanta trabalho aos brasileiros, o que existem são leis que visam assistir e amparar o trabalhador visando uma humanização do trabalho e que ele não trabalhe de forma insalubre ou prejudicial, tendo subsídios suficientes para uma vida saudável e digna. É de suma importância a relação do princípio da dignidade humana com a proteção real ao hipossuficiente no Direito do Trabalho, para que haja uma adequada relação de emprego. A essência do Direito do Trabalho está inserida na busca da proteção e preservação da dignidade do ser humano, em todos os seus níveis. O artigo 170 da CF/88 estabelece referência à ordem econômica, a valorização do trabalho humano como forma de assegurar a todos uma existência digna, consoante os ditames da justiça social, e mantendo, ao longo do texto dos direitos fundamentais sociais, a proteção da figura do trabalhador. Os direitos do trabalhador representam fundamentos da civilização democrática, que a humanidade vem construindo nos últimos séculos. Constitui pressuposto essencial desta civilização que as pessoas desprovidas de capital, não tenham que trabalhar até a exaustão, não sejam obrigadas a trabalhar sob risco, em condições perigosas para sua saúde, por remuneração inferior ao mínimo indispensável para a satisfação de suas necessidades vitais básicas, como em outras situações degradantes, de modo à preservação de sua integridade física e, mais ainda, de seu arcabouço moral. Portanto, o trabalhador como pessoa humana, é dotado de valores intrínsecos, que, diretamente ligados a sua dignidade, não podem ser anulados ou substituídos.

A Constituição Federal de 1988, apresenta como característica a clareza no que se refere à importância da dignidade humana, em consequência de todo o contexto histórico já vivido no passado. A Carta Magna foi elaborada em um cenário de pós ditadura e de abertura política, em que estava presente um profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos. Nesse contexto, surgiu uma nova era das garantias individuais, resultado de lutas contra os mais diversos abusos no árduo caminho do reconhecimento das liberdades, partindo do fatídico ano de 1964 até se alcançar a promulgação desse texto. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, e tal constitui o princípio máximo do estado democrático de direito. Os valores abarcados por este princípio se resumem no respeito, na honra, nos direitos fundamentais efetivados, na seriedade, entre tantos outros responsáveis pela existência decente das pessoas. A finalidade da ciência do direito positivado é tutelar, ga-

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3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

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rantir e vedar qualquer ato que o afronte. Na mesma linha de pensamento, alguns doutrinadores entendem que:

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é considerado o mais importante de todos, é tido como fio condutor que ilumina o ordenamento jurídico brasileiro. Caso não existisse, o sistema, como um todo, poderia ser interpretado em desfavor do próprio ser humano. De forma cristalina, evidencia-se concretização da dignidade humana a partir do momento em que seus direitos básicos encontram-se materializados, fato este que explica a importância concedida ao tema na atual Carta Magna. A dignidade humana é de suma importância, pois possui valor único e individual, não podendo sofrer nenhum prejuízo por quaisquer interesses coletivos. O ser humano é considerado um indivíduo com direitos e prerrogativas, observado que se mostra voltada para satisfazer tanto suas necessidades biológicas quanto psicológicas e sociais. E ainda, na sociedade para que o homem se complete é necessário que esta tutela da dignidade esteja presente em todos os aspectos, tais como: ética, política, economia, arte, entre outros. Na medida, entretanto, em que o indivíduo age socialmente, poderá ele mesmo acabar violando a dignidade de outrem. Neste caso, o conceito de dignidade passa a incidir não apenas nas relações entre o indivíduo e o Estado, mas também naquelas entre particulares, propiciando a defesa da dignidade em todas as situações do cotidiano. Seguindo este pensamento, a ideia de dignidade da pessoa humana foi externada por Ingo Sarlet (2011) como uma qualidade inerente e distintiva possuída por cada ser humano, seriam assim aquilo que faz com que lhe seja devido respeito e deferência por parte do Estado e mesmo das demais pessoas, implicando numa ampla rede de direitos e deveres que asseguram proteção contra toda forma de degradação e lhe garante o acesso às condições mínimas de existência saudável. A dignidade da pessoa é irrenunciável e irreversível, indissociável do ser humano. O que significa que mesmo agindo de livre vontade, uma pessoa não pode acatar disposições que violem a integridade deste princípio. Mercê, por exemplo, a vedação à instituição de condições laborais tendentes a gerar situações indignas, tal qual ocorrido no famigerado caso do “arremesso de anões” na França. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira no país a tratar expressamente da dignidade da pessoa humana, conferindo-lhe o status de princípio fundamental, compondo-se como norma insuscetível de alteração pelo poder legislador derivado (cláusula pétrea). Não bastasse,

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[...] podemos afirmar que a dignidade humana é o fundamento primário de todo ordenamento jurídico-constitucional, cuja dignidade é admitida e resguardada através do reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, como o respeito à liberdade, não discriminação, proteção à saúde, direito à vida, acesso ao trabalho como condição social humana e digna etc. Portanto, violadas quaisquer dessas garantias fundamentais, estar-se-à violando a dignidade humana da pessoa. (ALKIMIN, 2008, p. 41).

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instituiu esse atributo intrínseco da essência humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, tendo, exatamente por isso, supremacia incontestável. O princípio encontra-se expresso no art. 1º, III, da Carta Magna. Além disso, a Constituição protege estipula ainda como bem maior do ser humano a vida. Nesse sentido, necessário se faz mencionar o entendimento do ilustre Marlon Marcelo Murari, que preconiza, in verbis:

A inclusão da dignidade da pessoa humana como cláusula pétrea na Constituição, pelo Constituinte Originário, comprova de forma notória a importância concedida ao homem na sociedade moderna, a qual traz consigo a unanimidade de opiniões quanto a importância dos direitos e garantias fundamentais, direitos sociais, educacionais dentre outros. De forma exemplificativa pode-se citar: o artigo 5º, que aborda a dignidade da pessoa humana com relação aos direitos e garantias individuais e coletivas; os artigos 6º e 7º, que tratam da dignidade da pessoa humana em relação aos direitos sociais; o artigo 8º, que sustenta tal dignidade com relação à liberdade associativa; o artigo 34,VII, “b”, onde se tem a dignidade da pessoa humana assegurada pela intervenção federal; o artigo 266, parágrafo 7º, que prevê a dignidade da pessoa humana no livre planejamento familiar; o artigo 277, que garante a dignidade da pessoa humana à criança e ao adolescente e finalmente o artigo 230, que garante tal dignidade ao idoso. Pela análise do texto constitucional, depreende-se que o Estado existe em função das pessoas e não estas em razão daquele. Sendo ainda o princípio da dignidade da pessoa humana fonte de legitimidade para o Estado Constitucional. Ora, não haveria sentido em conceber o pacto social como forma de justificar a existência de uma abstração como o Estado. Os indivíduos cuja coletividade forma o que podemos chamar de povo, cedem uma parcela de sua liberdade par dar vida a tal ente, e o fazem justamente para que assim, possam ter assegurada a defesa daquelas necessidades sem as quais a coexistência não seria possível. O papel do Estado é, assim, o de permitir a existência pacífica entre os indivíduos, servindo a esses. A Constituição Federal de 1988, ao impor a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de todo o ordenamento jurídico pátrio, consolidou a força normativa dos direitos à privacidade, honra, intimidade, imagem e a proteção deles à pessoa humana.

4 A REVISTA ÍNTIMA NO ORDENAMENTO JURÍDICO LABORAL BRASILEIRO A ocorrência do desvio ou da ocultação de bens do local de trabalho não é algo novo.

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[...] ora a dignidade pode ser considerada como um limite, evitando que os atos próprios ou de terceiros reduzam a pessoa à condição de objeto, gerando direitos defensivos contra condutas que possam ameaçá-la; ora como uma verdadeira prestação, no sentido de justificar, nos casos concretos, a tutela por meio de medidas e prestações, visando proteger a dignidade de todos. (MURARI, 2008, p. 36).

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Tal fato corriqueiro faz com que os empregadores se preocupem com a preservação do seu patrimônio, instituindo meios de evitar prejuízos de tal natureza. Com isto, tentando se precaver contra este tipo de situação, muitos se utilizam da revista de seus empregados na saída dos locais de trabalho. Em face disso, é preciso convir que nem sempre a forma na qual é conduzida a mencionada revista é adequada, sendo comum o desatendimento ou avaliação das consequências jurídicas que podem advir de eventuais abusos. Assim, cabe no âmbito doutrinário e jurisprudencial realizar a seguinte indagação: qual o limite da prática da revista íntima nos empregados, sem ferir a intimidade, consequentemente, a sua dignidade? O direito à intimidade, à honra e à dignidade são direitos da personalidade os quais em nenhuma hipótese se dissociam do indivíduo, mas, ao contrário, acompanham-no em todas as suas relações. Motivo pelo qual estes direitos da personalidade não podem ser anulados, inda mais sob pretexto do exercício do direito de propriedade e do poder diretivo de que é investido o empregador nas relações de trabalho. O que se dá devido à primazia que confere a Constituição àqueles direitos. Mas onde ficaria o poder de fiscalização e de controle do empregador? Como fica a situação do empregador que pretende proteger o seu patrimônio da eventual má fé de seus empregados? A legislação brasileira é bastante escassa e imprecisa em relação a esse ponto, deixando dúvidas sobre a licitude dos meios adotados na realização de revistas pessoais dos trabalhadores, com fundamento na defesa do patrimônio pelo empregador. Por tanto, é necessário o estudo da revista íntima e da revista pessoal com vistas a colmatar tais lacunas normativas através de um aporte doutrinário, dando suporte assim à futura formação de soluções jurisdicionais. 4.1 A Diferenciação entre Revista Íntima e Revista Pessoal

sinônimos. Este procedimento é adotado por alguns empregadores, baseado no poder diretivo que estes possuem, de examinar o empregado e/ou seus pertences a fim de proteger o patrimônio empresarial da eventual tentativa de furtos. Sandra Lia Simon (2000) leciona que, o procedimento de revista corresponde a uma forma de concretização do poder de controle do empregador, agindo no sentido de fiscalizar as atividades desempenhadas pelos empregados. A revista constitui-se em uma das hipóteses externalizadoras do poder de fiscalização do empregador, visando ao resguardo de sua propriedade, sendo, pois, uma medida de natureza preventiva que indiretamente também acaba por identificar funcionários desonestos, praticantes de atos desabonadores que resultam na resolução do contrato de trabalho, conforme autoriza o

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Em seu sentido literal, a expressão revista exprime o ato ou efeito de revistar, de examinar, de rever, inspecionar, examinar detalhadamente, verificar acuradamente, dentre outros

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art. 482 da CLT. Desta feita, o conceito de revista tem por fundamento o poder diretivo do empregador que se justifica no seu direito de propriedade, garantido e protegido principalmente pelo artigo 5º, caput e inciso XXII da Constituição Federal de 1988. Existem dois tipos de revista: pessoal e intima. A revista pessoal é aquela que não viola a intimidade e a dignidade dos trabalhadores, ou seja, é aquela feita superficialmente, sem qualquer tipo de toque corporal ou exposição do trabalhador. Portanto, a expressão revista pessoal possui uma acepção genérica (lato sensu), que corresponde a todo e qualquer exame feito pelo empregador no empregado, seja em seus pertences, tais como: sacolas, bolsas e mochilas, ou em seu corpo, a fim de proteger os bens empresariais (patrimônio empresarial) de eventual dilapidação; além de que, numa acepção restrita (strictu sensu), corresponde apenas àquelas revistas realizadas exclusivamente nos pertences no empregado. Já a revista íntima é o meio pelo qual o empregador, como forma de proteger seu patrimônio, revista o empregado de modo a lhe ferir o direito à intimidade. Como exemplos de revista íntima, podemos citar casos em que o empregador determina que seus funcionários abaixem as calças, tirem a blusa ou, até mesmo, em casos excepcionais fiquem nus. Este tipo de revista íntima consiste em procedimento mais invasivo e agressivo ao trabalhador, pois exige do empregado que exponha seu próprio corpo ao exame de terceiros, chegando, em alguns casos, até mesmo a envolver contatos físicos pelo revistador. Qualquer espécie de revista que atinja a intimidade do empregado (homem ou mulher) pode ser considerada revista íntima. 4.2 A Legislação Brasileira, a Posição Doutrinária o Entendimento dos Tribunais acerca da Revista Íntima

das intromissões ilegítimas, assegurando-lhes o direito à intimidade, privacidade e honra, além do respeito à sua dignidade, conforme, mais uma vez, dispõe o inciso III do seu artigo 1º e inciso X do seu artigo 5º, principalmente. Neste período, a maioria dos juristas brasileiros, defendia a revista dos empregados com base no poder diretivo do empregador (caput e inciso XXII do artigo 5º da CF e artigo 2º da CLT), como forma de medida preventiva de proteção ao patrimônio empresarial. Enquanto que uma minoria argumentava pela necessidade de ajuste prévio entre as partes nesse sentido ou até mesmo a previsão no regulamento interno da empresa como o jurista Carlos Alberto Barata Silva. Existia uma corrente amplamente minoritária que defendia a ilegalidade da revista ín-

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Como já mencionado no presente trabalho, a legislação brasileira sempre foi bastante escassa e imprecisa com relação à revista no empregado. Ressalta-se que até a década de 1990, não existia no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo legal que fizesse referência expressa à revista do empregado, apesar da Constituição Federal de 1988 já proteger as pessoas

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tima por entendê-la atentatória ao direito individual do empregado, não considerando legítimas nem mesmo as formas mais brandas de revista, onde a pessoa do empregado não era revista, mas tão somente os seus pertences. A primeira edição de uma lei regularizando a situação da revista íntima, se deu através de iniciativa de alguns municípios, que, com base no entendimento minoritário citado acima, a proibiram, levando ainda em conta abusos cometidos por parte dos empregadores. Tais leis foram: Lei n.º 7.451 de 27/02/1998 do Município de Belo Horizonte e a Lei n.º 4.603 de 02/03/1998 do Município de Vitória. No final da década de 1990, com a edição da Lei n.º 9.799 de 26 de maio de 1999, a legislação ordinária brasileira expressamente proibiu a revista íntima em empregas ou funcionárias, disciplinando a orientação geral contida no artigo 373-A na CLT, in verbis:

Contudo, a legislação brasileira acerca da revista é ainda precária, visto que tal diploma legal proíbe expressamente apenas a revista íntima realizada em empregados do sexo feminino, ferindo o princípio da isonomia, consagrado no caput e inciso I do artigo 5º da Constituição Federal. Além disso, tal normatização deixou ainda dúvidas quanto ao alcance da expressão íntima, se abarcaria todo e qualquer tipo de revista, ou apenas aquela realizada no corpo do trabalhador. Atualmente, é pacífico que o empregado homem também está incluído na proibição do referido artigo da Lei n.º 9.799, em decorrência da igualdade entre homens e mulheres asseguradas pela Constituição Federal (caput e inciso I do artigo 5º da Carta Maior). Assim, os empregados homens podem invocar o artigo 373-A, inciso IV da CLT, por analogia, contra a revista íntima. Sobre tal aspecto, Maurício Godinho Delgado, fundamenta o seu posicionamento (da aplicabilidade do artigo 373-A da CLT a qualquer pessoa física) nos Princípios Fundamentais da República Federativa do Brasil, assim se manifestando: A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito (art.1º, III, CF/88), que tem por alguns de seus objetivos fundamentais “construir uma sociedade justa e solidária”, além de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, I e IV da CF/88). (op. Cit., p. 602503). (DELGADO, 2009, p. 596).

Em 2008, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento

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Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades nos acordos trabalhistas, é vedado: [...] VI- Proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias.

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de Magistrados (ENAMAT) e Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho (CONEMATRA), visou o debate das grandes questões do Direito do Trabalho e de outras matérias afetas à competência do Judiciário Trabalhista formulando o Enunciado n.º 15 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho que em sua segunda parte dispõe, in verbis: II- Revista íntima. Vedação a ambos os sexos. A norma do art. 373-A, inc. VI, da CLT, que veda revistas íntimas nas empregadas, também se aplica aos homens em face da igualdade entre os sexos inscritas no art. 5º, inc. I, da Constituição da República.

Decisão (RR) 323900-19.2009.5.16.0012 TST Pub. 18/10/2013. EMENTA: REVISTA ÍNTIMA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. DIREITO À INTIMIDADE. EXCESSO DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR. No caso, o Regional, remetendo à prova testemunhal, consignou que a situação dos autos se tratava de revista íntima diária, a qual se exigia do empregado que ficasse completamente despido em frente de outros colegas para verificação de furto de valores. Assim, a revista não se limitava à fiscalização do conteúdo de bolsas e mochilas, não era superficial ou meramente visual, ao contrário, era exigido do empregado que ficasse completamente despido de suas vestes. Há de se considerar, ainda, a frequência diária com que ocorria a citada revista íntima. Esta Corte tem entendido que o poder diretivo e fiscalizador do empregador permite a realização de revista em bolsas e pertences dos empregados, desde que procedida de forma impessoal, geral e sem contato físico ou exposição do funcionário à situação humilhante e vexatória. Na hipótese vertente, entretanto, tem-se nítida a extrapolação do poder diretivo da empregadora, ao exigir revistas íntimas com exposição total do corpo do trabalhador. Inquestionáveis a ocorrência de ato ilícito praticado pela reclamada e a lesão a um bem tutelado pela ordem jurídica. A reclamada subverteu ilicitamente o direito à intimidade do reclamante, que é inviolável por força de preceito da Constituição Federal (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal). Precedentes. Com efeito, o Regional, ao reformar a sentença para absolver a reclamada da condenação de pagar indenização por danos morais, ao fundamento de que a revista íntima realizada no reclamante estaria autorizada pelo poder de fiscalização do empregador, decidiu em desacordo com o art. 5º, inciso X, da Constituição da República. Desse modo, cabível o restabelecimento da sentença, no tocante à condenação da reclamada de pagar indenização por danos morais ao reclamante, no valor de R$ 50.000,00, em razão de desrespeito ao direito à intimidade.

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Existem muitas divergências acerca do assunto, porém, consta como entendimento majoritário tanto dos tribunais quanto dos doutrinadores, a ideia de que o artigo celetista proíbe qualquer tipo de revista íntima, permitindo a revista pessoal desde que indispensável e não substituível por outro procedimento de menor potencial ofensivo aos direitos individuais do empregado, não devendo ainda ser discriminatória e envolver circunstâncias atentatórias à dignidade da pessoa humana do trabalhador, sendo respeitada sua intimidade, privacidade, honra e imagem. Nesta linha de pensamento, o Tribunal Superior do Trabalho decidiu:

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Recurso de revista conhecido e provido. TST - RECURSO DE REVISTA: RR 3239001920095160012 323900-19.2009.5.16.0012.Publicação 18/10/2013).

Alguns doutrinadores de grande renome como Amauri Mascaro Nascimento e Eduardo Pragmácio Filho entendem que o procedimento da revista pessoal poderá ser realizado desde que, esteja adstrito à observância da dignidade da pessoa humana do empregado e seu direito à honra, intimidade e privacidade, conforme os artigos 1º, caput e inciso III, 5º, inciso X e 170. Ou seja, para tais doutrinadores, é possível, na maioria das hipóteses, aquilo que é aqui definido como revista pessoal, uma vez que tal modalidade não repercute sobre a esfera de intimidade do empregado. Nesse sentido, não caberia decidir abstratamente pelo cabimento da revista pessoal, sendo necessário avaliar os aspectos singulares de cada situação, para só então, diante do caso concreto, chegar à norma reguladora. Tal abordagem é feita aqui mediante o uso da técnica de ponderação exposta à frente. De qualquer modo, a possibilidade da revista pessoal é observada em vários Tribunais do país, a título exemplificativo, a decisão atual da Primeira Turma do Tribunal do Distrito Federal e Tocantins (10ª Região) que entendeu pela ilicitude da revista pessoal realizada no trabalhador (reclamante) em decorrência da inexistência de conduta imprudente ou abusiva, pois a fiscalização era realizada em local reservado, distante dos clientes, em todos os trabalhadores que mantinham contato com os produtos e sem consto físico, in verbis:

De fato, grande parte da doutrina entende que a revista pode ser feita de forma genérica, impessoal ou coletiva. Alguns empregadores sorteiam os empregados a serem revistados, outros, realizam a revista diariamente em todos os seus empregados. A ilustre Lilia Leonor Abreu aponta que a revista pessoal tem sido aceita em algumas circunstâncias, defendendo que, neste caso poderá ser realizado no local da empresa, normalmente na saída e excepcionalmente na entrada. Segundo Alice Monteiro Barros: Não basta a tutela genérica da propriedade; deverão existir circunstâncias concretas que justifiquem a revista. É mister que haja, na empresa, bens suscetíveis de subtração

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Acordão TRT 10ª Região, Processo nº: 00844-2008-102-10-00-2, Relator (a): Pedro Luis Vicentin Foltran, 1ª Turma, Data de Julgamento: 29/10/2008, Data de Publicação: 07/11/2008. EMENTA: REVISTA PESSOAL MODERADA E SEM ABUSOS. DANO MORAL. INEXISTÊNCIA.A revista pessoal, por si só, não garante o direito ao recebimento da indenização por ofensa à moral. Ainda mais se ficar demonstrado que ela era praticada sem discriminações, de forma moderada, sem abuso nos procedimentos e sem contato físico. Tais circunstâncias, quando evidenciadas, não autorizam o reconhecimento de situação humilhante ou vexatória capaz de gerar a condenação por danos morais, resguardada que estará a integridade física e moral do empregado e, como elemento justificador, o patrimônio do empregador.

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Desse modo, verifica-se da análise de tais entendimentos, que a revista pessoal pode ser feita desde que em situações que a justifiquem e de forma moderada, sempre que não houver outro meio idôneo a coibir a prática de desvios. O empregador pode exercer seu poder de fiscalização mediante a utilização dos mais variados métodos tecnológicos, tais como a colocação de etiquetas magnéticas em seus produtos, e, também, através do controle de entrada e saída de estoque, pelas filmagens por meio de circuito interno, ou pelo uso de detectores de metais. Saliente-se porém, a respeito das filmagens, que estas só poderão ser realizadas em áreas comuns, proibidas aquelas realizadas em banheiros e vestiários, ou em quaisquer outros locais em que se exija tenha o empregado preservada sua intimidade. Sérgio Pinto Martins, no mesmo sentido amplamente defendido, aponta que os empregados poderão ser revistados no final do expediente pelo empregador, pois a revista funciona como uma salvaguarda do patrimônio da empresa. Esta revista não pode ser feita de forma vexatória ou abusiva, devendo ser moderada e respeitosa. A revista jamais poderá violar a intimidade do empregado, devendo ser realizada em local apropriado. Diante dos julgados analisados, percebe-se que, desde que haja a conduta, o nexo de causalidade e o dano propriamente dito, é incontroversa a afronta aos princípios e garantias fundamentais do indivíduo, causando-lhe mais do que um abalo à psique, fazendo jus, assim, à indenização. Vale frisar de que o referido quantum nada tem a ver com crédito de natureza trabalhista. Trata-se, sim, de uma indenização por exposições inapropriadas, procedimento este que causa um constrangimento e uma sensação de vergonha, diante dos colegas de trabalho, e que ultrapassa uma mera irritação diária, autorizando, assim, o pagamento de verba indenizatória. Ademais, a recusa do empregado a se submeter a procedimento de revista será legítima quando tal procedimento envolver circunstâncias que afrontam sua dignidade pessoal e seus direitos individuais, em especial os direitos à privacidade, intimidade, honra e imagem. Portanto, conclui-se que é admitida a realização de revista nos empregados, respeitando-os seus direitos, sem violar à sua intimidade, honra e imagem. Donde se evidencia a necessidade de considerar as circunstâncias envolvidas em cada caso, o que pode ser feito mediante o uso de ponderação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do momento em que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, atraiu para si um verdadeiro ônus de garantir os Direitos Fundamentais que foram albergados pela Constituição Federal de 1988. Concretizando os fundamentos da cidadania, igualdade e,

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e ocultação, com valor material, ou que tenham relevância para o funcionamento da atividade empresarial e para a segurança das pessoas. (BARROS, 2005, p. 263).

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principalmente Dignidade da Pessoa Humana. Os Direitos Fundamentais devem ser aplicados nas relações particulares, não tendo razão para se pensar de forma contrária, aliás, essa deveria ser a regra adotada por todas as nossas funções orgânicas do poder, sendo exceção a sua não aplicação. O poder empregatício é limitado, pois deve ser contraposto a outros direitos. Direito estes que são inerentes à pessoa humana, sendo que existem, inclusive dentro da relação de emprego, devendo ser obrigatoriamente respeitados. Caso a observação voluntária não aconteça, há mecanismos que possibilitam àqueles que têm seus direitos violados reclamar e fazer com que cesse tal violação. A Lei n.º 9.799/99 acrescentou o artigo 373-A no texto da CLT, vedando qualquer tipo de revista íntima à mulher. Não obstante essa vedação ser específica, a princípio, para as mulheres, consoante doutrina e jurisprudência majoritárias, deve, por força do Princípio da Igualdade, do preâmbulo Constitucional, do Princípio do Valor Social do Trabalho e também pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, estendida aos homens. Não obstante inexistam no ordenamento jurídico brasileiro regras claras que disciplinem a revista pessoal de empregados, há regras e princípios gerais capazes de orientar sua aplicação em determinadas situações. Portanto, afirma-se que é permitida a revista como medida preventiva, condicionada a ajuste prévio ou previsão no regulamento da empresa, desde que respeitados determinados parâmetros e, sobretudo, com a utilização do bom senso, da razoabilidade e da impessoalidade, de forma que tal prática não configure conduta abusiva do empregador. Desta forma, pode-se afirmar que a revista pessoal será absolutamente legítima naquelas situações onde não houver mecanismos diversos que possam garantir a proteção à ao patrimônio dos empregadores. Assim, será cabível cogitar, pelos órgãos estatais vocacionados para julgar conflitos inerentes a tais situações, se não há, no caso concreto, a possibilidade de o empregador recorrer a dispositivos de segurança ou similares que substituam a revista pessoal. Outro ponto a que se chegou, diz respeito à necessária conciliação entre os interesses de empregadores e a defesa dos direitos decorrentes da personalidade dos empregados, bem como a tutelada da dignidade destes. Assim, não será permitida a instituição de revista íntima quando a revista pessoal for suficiente. Da mesma forma, não caberá expor os empregados a situações vexatórias ou danosas à sua integridade física ou psíquica. Se, de um lado, tem-se princípios constitucionais que legitimam a revista do empregado, em razão da defesa do patrimônio do empregador, como o direito de propriedade e da livre iniciativa, de outro, têm-se a intimidade do empregado e a não submissão a tratamento desumano ou degradante, como direitos fundamentais a que garante a Constituição absoluta proteção. Nesse sentido, as jurisprudências dos Tribunais do país, tem asseverado que, quando a revista levada a feito sem constrangimento e sem qualquer objetivo desmerecedor, sem discriminação, traduz atos contidos no poder de comando do empregador em defesa de seu patrimônio.

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Assim, em uma tentativa de compatibilizar a aplicação desses direitos fundamentais nas relações trabalhistas, é que se tem entendido que a revista, quando realizada de forma moderada e reservada, não causaria ofensa aos direitos do trabalhador e estaria dentro dos limites do exercício regular de direito por parte do empregador, o que afastaria a ilicitude do procedimento.

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atious behaviors that frontally affect the rights to intimacy and privacy of the employee. The intimate magazine is characterized as a procedure that conflicts with opposing interests such as the right to privacy and privacy of the worker and the directive power of the employer. Thus, because it is a very contemporary issue, it proves that doctrine and jurisprudence very much debate about legality and the limits imposed on the employer to come to conduct the review procedure on its employees. If there is a collision of rights in labor relations between the power of supervision of the employer and the fundamental rights of the employee, the solutions presented in concrete cases should always seek to harmonize constitutional norms, seeking to maintain the unity of the Constitution. KEYWORDS: Intimate Magazine. Labor relations. Human Dignity.

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ABSTRACT The present study aims to understand the applicability of the intimate magazine in labor relations, as this theme brings to light the excessive power of the employer in taking disproportionate attitudes through vex-

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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE UMA CULTURA DE RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA

RESUMO O presente texto tem como objetivo precípuo abordar o tema da liberdade religiosa e a necessidade da educação em direitos humanos no tocante ao respeito à diversidade religiosa na América Latina. Conforme o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, os Estados têm o dever de assegurar a ampla liberdade de crença e religião aos seus nacionais e aos estrangeiros que estejam em seu território. Contudo, embora muitos países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) sejam signatários da Convenção Americana, ainda se observam muitas violações aos direitos consagrados no referido dispositivo. Desse modo, o texto visa demonstrar que a educação em direitos humanos constitui uma ferramenta fundamental para a promoção de sociedades mais justas e sensíveis à presença do outro e de suas crenças e valores religiosos. Palavras chave: Liberdade Religiosa. Diversidade. Direitos Humanos. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Educação. América Latina.

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Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Educação no Ensino Técnico e Superior pelo Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar (UNP). Graduação em Direito pelo Centro Universitário Toledo. Professor Universitário em Cursos de Pós-Graduação e Graduação. Professor de Direito Constitucional, Direito Internacional e Direitos Humanos no Centro Universitário Toledo. Advogado.

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Luciano Meneguetti Pereira1

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“A educação para a libertação é um ato de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade”. (Paulo Freire)

Atualmente uma das questões mais tormentosas no tocante aos direitos humanos e sua efetivação diz respeito à liberdade religiosa. É rotineira a veiculação de notícias nos meios de comunicação de massa, relacionadas à violação de direitos humanos no que tange à liberdade de consciência e de crença. De modo não raro são noticiadas e presenciadas em muitas partes do mundo, inclusive na América Latina, diversas espécies de torturas, espancamentos e outras formas de violência física e psicológica, e até mesmo a aplicação de penas capitais em razão das pessoas professarem esta ou aquela religião. Em pleno século XXI, na era de direitos, apesar da liberdade de religião estar consagrada em diversos instrumentos internacionais (declarações, tratados etc.) e também na maioria dos textos constitucionais, ainda são recorrentes diversas formas de perseguição religiosa e mesmo o cometimento de atrocidades em nome da religião, práticas regadas pela intolerância religiosa existente em diversas partes do mundo, contexto no qual, em que infelizmente estão inseridos alguns países da América Latina, inclusive o Brasil. Embora seja possível afirmar que os países da América Latina não sejam assolados com graves violações da liberdade religiosa de maneira mais intensa, como aquelas que ocorrem, v.g., em alguns países do oriente médio, onde notícias sobre a tortura e a morte (por vezes cruel e violenta como são os casos de apedrejamento e crucificação) de religiosos não muçulmanos são frequentes, isto não quer dizer que a violação da liberdade de religião não tenha lugar nos países latino-americanos. Apesar de as Constituições dos países latino-americanos consagrarem a liberdade religiosa em seus textos como um direito fundamental, assim como o fez a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), adotada em 1969, que previu expressamente a liberdade religiosa como um direito humano em seu art. 12, sendo ratificada por diversos países pertencentes à Organização dos Estados Americanos (OEA), desde a sua entrada em vigor no plano internacional, em 1978, nota-se ainda que vários Estados Partes da Convenção não conseguem assegurar de modo satisfatório a proteção da liberdade religiosa em seus respectivos territórios, sendo evidenciadas frequentemente práticas de intolerância, o impedimento ou frustração de cultos, bem como o discurso de ódio contra religiões distintas. Atualmente percebe-se sem esforço que nem mesmo a positivação do direito à liberdade religiosa nas Constituições nacionais e na Convenção Americana tem sido suficiente para promover a efetivação das liberdades consagradas nesses diplomas normativos, o que torna

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1 INTRODUÇÃO

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imperioso um sério comprometimento dos Estados quanto ao assunto, bem como o investimento dos países na educação em direitos humanos, com vistas à plena efetivação da liberdade de religião. Uma educação que seja capaz de influenciar e transformar a cultura dos povos latino-americanos, no sentido de mudar concepções já arraigadas nas sociedades americanas, que ainda hoje estão carregadas de preconceitos e de intolerância para com o outro, para com aquele que é ou pensa diferente no tocante às questões religiosas. Assim, torna-se importante a reflexão sobre a temática proposta, o que será feito no presente trabalho por meio da análise da consagração da liberdade religiosa no plano internacional, notadamente no âmbito da OEA e também na esfera dos ordenamentos jurídicos domésticos dos Estados latino-americanos, sucedendo-se com a exposição de casos concretos de violação dessa liberdade, que demonstram a falta (e a necessidade) de trabalhar-se uma cultura de respeito e tolerância à diversidade religiosa, bem como a consequente imprescindibilidade da educação em direitos humanos para a implementação e plena efetivação do respeito à liberdade religiosa na América Latina.

No continente americano os direitos humanos são tutelados, em essência, por meio do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, arquitetado no âmbito da OEA, sendo composto por quatro instrumentos fundamentais: a Carta da Organização dos Estados Americanos (1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (1969); e o Protocolo Adicional à Convenção Americana, conhecido também como Protocolo de San Salvador (1988) (PEREIRA, 2013, p. 93). Antes de se falar sobre a liberdade religiosa, torna-se importante tecer algumas considerações acerca desse importante sistema de proteção, com destaque para a OEA e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Na busca do estreitamento de laços em diversas áreas e da consolidação da democracia na América Latina, bem como objetivando o desenvolvimento econômico, social e cultural dos Estados latino-americanos, foi criada a OEA, atualmente composta por 35 países. Trata-se de um organismo regional, considerado o mais importante das Américas, fundado em 1948 com a adoção da Carta da OEA, em Bogotá, na Colômbia, tratado constitutivo que passou a vigorar no plano internacional em dezembro de 1951. (OEA, 2017a, p. de internet). Dentre os quatro pilares da organização2, está a proteção dos direitos humanos, razão pela qual, em 22 de novembro de 1969, os seus Estados Membros elaboraram e concluíram a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH), conhecida também como Pacto de

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São pilares da Organização a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento.

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2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A PROTEÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA

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San José da Costa Rica, um documento internacionalmente vinculante para os Estados Partes em matéria de direitos humanos no continente americano. A Convenção passou a vigorar internacionalmente apenas em 1978, quando 11 países a ratificaram, nos termos do seu art. 74 (PEREIRA, 2013, p. 93-95). Composta por 82 artigos e buscando consolidar no continente americano, “dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais”, conforme enuncia seu próprio preâmbulo, a Convenção também assegurou, dentre os diversos direitos humanos por ela consagrados, a liberdade de consciência e de religião, conforme disposto em seu art. 12, que em parte repetiu a previsão já consagrada anteriormente pelo art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos3, de 1948:

Ainda que de forma mais tímida, o direito à liberdade religiosa e de culto já havia sido previsto no âmbito da OEA anteriormente à Convenção Americana, especificamente no art. 3º da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, que previu o direito de toda pessoa “professar livremente uma crença religiosa e de manifestá-la e praticá-la pública e particularmente”. Algumas considerações acerca das liberdades aludidas no dispositivo convencional supracitado tornam-se necessárias para que se possa melhor compreender a dimensão e a amplitude do direito humano à liberdade de consciência e de religião, consagrado pela Convenção. Inicialmente é preciso ressaltar que são duas as liberdades ali previstas: (i) a liberdade de consciência e a (ii) liberdade de religião, sendo que esta última, por sua vez, se subdivide em (a) liberdade positiva de religião, (b) liberdade negativa de religião, (c) liberdade de conversão, e (d) liberdade de apostasia (ROTHENBURG, 2014, p. 24). Conforme explicam Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 513), “embora a liberdade de consciência tenha forte vínculo com a

3  “Artigo 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

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Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião: 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

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liberdade religiosa, ambas não se confundem e apresentam dimensões autônomas”. Para Jayme Weingartner Neto (2013), a liberdade de consciência pode ser entendida como a “autonomia moral-prática do indivíduo, a faculdade de autodeterminar-se no que tange aos padrões éticos e existenciais, seja da própria conduta ou da alheia – na total liberdade de autopercepção –, seja em nível racional, mítico-simbólico e até de mistério”. Embora muitas vezes seja confundida com a liberdade religiosa, por se tratar da obtenção de certo ponto de vista que para si é tido como verdade, acaba consistindo em uma liberdade mais ampla. Isto porque a consciência abrange diversos campos do pensamento, onde, por meio de uma reflexão, cria-se uma conclusão, sendo que esse processo ocorre em relação à religião, política, filosofia e ideologia, dentre outros. Nesse sentido, Soriano (apud GALDINO, 2006, p.10) afirma que a “liberdade de consciência é mais ampla que a liberdade de crença. É de foro individual. Compreende tanto o direito de crer como o de não crer”. Já a liberdade religiosa, embora relacionada à consciência, como um direito complexo, “engloba em seu núcleo essencial a liberdade de ter, não ter ou deixar de ter religião e desdobra-se em várias concretizações” (WEINGARTNER NETO, 2013).4 Nota-se que a liberdade de religião se restringe à liberdade de os indivíduos posicionarem-se no acatamento (ou não) de uma religião. Conforme aponta Rothenburg (2014, p. 25),

Deste modo, tem-se que a liberdade positiva de religião está relacionada ao direito de se ter uma crença religiosa, de praticar e professar suas convicções em relação à uma determinada religião de maneira livre e, como regra, irrestrita. Por sua vez, a liberdade negativa de religião diz respeito ao direito de se abster de pertencer ou professar uma religião, não podendo o indivíduo ser obrigado a seguir uma fé não proveniente de uma livre escolha sua ou praticar atos nos quais não crê, consagrando-se aqui o direito de não ter qualquer crença ou adotar alguma religião. Ainda no âmbito da liberdade de religião, assegura-se a liberdade de conversão, segundo a qual o indivíduo é livre para mudar de crença sem que com isso sofra qualquer represália ou sanção, podendo passar a pertencer a qualquer outro grupo religioso que seja compatível com seu novo credo. Por fim, também na esfera da liberdade de religião, tem-se a liberdade de apostasia, que diz respeito à possibilidade de que o indivíduo, fiel de determinada religião, possa abando-

4  Para Weingartner Neto (2013) são vários os desdobramentos da liberdade religiosa proporcionados, v.g., pelos incisos VI e VII, do art. 5º, da Constituição brasileira de 1988: “liberdade de crença (2ª parte do inciso VI), as liberdades de expressão e de informação em matéria religiosa, a liberdade de culto (3ª parte do inciso VI) e uma sua especificação, o direito à assistência religiosa (inciso VII) e outros direitos fundamentais específicos, como o de reunião e associação e a privacidade, com as peculiaridades que a dimensão religiosa acarreta”.

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o direito de religião significa poder formar uma consciência religiosa, experimentá-la (conduzir-se de acordo com ela) e manifestá-la, tudo isso livremente, ou seja, pode também não fazê-lo, se preferir, e não ser obrigado a fazê-lo, sequer revelá-lo (direito ao segredo em matéria confessional).

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ná-la, sem a necessidade de qualquer justificativa ou autorização, não podendo por isso sofrer qualquer penalidade. Embora as normas definidoras de direitos humanos ocupem um patamar hierarquicamente superior a muitas outras normas (tanto de índole internacional, por serem inseridas na categoria de normas jus cogens5, como aquelas estabelecidas nos ordenamentos jurídicos internos dos países), não estão totalmente livres de restrições. Nesse sentido é possível verificar que o próprio inciso 3 do art. 12 da Convenção Americana impõe limites à liberdade de consciência e religião, visando a proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da moral pública, ou o respeito aos direitos e às demais liberdades de outras pessoas. Conforme explica Palomino (2014, p. 312), la CADH sí enumera cuáles son dichos límites, no aplicándolos al derecho de tener o adoptar una religión – perteneciente al ámbito interno de la persona – pero sí al derecho de manifestarla o exteriorizarla, y ellos son: la seguridad, el orden, la salud o la moral públicos, o los derechos y libertades fundamentales de los demás. La Convención añade que dichas limitaciones deberán respetar el principio de legalidad, esto es, el haber sido previstas en la “ley” y ser “necesarias” en una sociedad democrática. Una vez cuestionadas, el juzgador deberá analizar su legitimidad de acuerdo a la técnica de la ponderación y a un riguroso test.

Nesse contexto, Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 517) destacam que

Diante da possibilidade de restrição desse direito fundamental, um exercício de ponderação será necessário quando as liberdades em análise estiverem em confronto com outros direitos tidos igualmente como fundamentais. Desse contexto se extrai, v.g., que não se afigura possível que uma religião pratique rituais de sacrifício humano ou que adote alguma prática que venha a infringir as leis postas no ordenamento jurídico de um determinado Estado Membro da Convenção Americana; também não se poderia admitir que num suposto exercício de sua liberdade religiosa, uma pessoa praticasse atos de violência física e/ou psíquica contra si mesmo ou contra terceiros, colocando em risco a própria vida ou a de outrem. Não obstante a possibilidade de restrições, deve-se ressaltar que tais impedimentos só

5  As normas definidoras de direitos humanos estão inseridas na categoria que o Direito Internacional denominou como normas jus cogens ou normas imperativas de Direito Internacional geral, conforme estabelecido pelos arts. 53 e 64 da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969. Conforme Robert Kolb (2015, p. 2), “The key term for the classical understanding of jus cogens is therefore ‘derogability’. In other words, jus cogens is defined by a particular quality of the norm at stake, that is, the legal fact that it does not allow derogation”. O autor, lançando mão das noções estabelecidas pela Convenção de Viena, esclarece que o termo chave para a compreensão do instituto é inderrogabilidade, afirmando o jus congens como uma qualidade particular de uma determinada norma em questão, que a torna imperativa e inderrogável.

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Embora sua forte conexão com a dignidade da pessoa humana, a liberdade religiosa, mas também a liberdade de consciência, notadamente naquilo em que se projeta para o exterior da pessoa, mediante atos que afetam terceiros ou levem (ainda que em situação extrema) a um dever de proteção estatal da pessoa contra si própria, como no caso de uma greve de fome por razões de consciência, são, como os demais direitos fundamentais, limitados e, portanto, sujeitos a algum tipo de restrição.

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podem ocorrer por força de lei (princípio da legalidade) ou se realmente se fizer necessário para o bem comum da sociedade, devendo-se ressaltar, no entanto, que a lei não poderá ser elaborada simplesmente com a finalidade de embaraçar os cultos e demais manifestações religiosas, sem uma motivação maior e subjacente, isto é, não poderá haver restrições gratuitas, sem fundamento, por simples opção ou “vontade” do poder legislativo de um determinado Estado Parte da Convenção. Como se nota, o direito humano à liberdade de consciência e de religião está plenamente consagrado no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sendo certo que a sua violação poderá ser tutelada perante os mecanismos estabelecidos no âmbito desse sistema, especificamente junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à Corte Interamericana de Direitos Humanos6, o que poderá acarretar a responsabilização internacional do Estado violador.

Embora a Convenção Americana tenha sido concluída e adotada há mais de 45 anos, passando deste então a influenciar os ordenamentos jurídicos dos Estados signatários em muitos sentidos e aspectos, infelizmente ainda é possível notar, em vários Estados Membros da OEA, constantes violações ao que dispõe o art. 12 do referido tratado internacional de direitos humanos, bem como àquilo que dispõe, de modo muitas vezes semelhante ou idêntico, as Constituições dos diversos Estados americanos, perpetuando-se tanto a ofensa aos direitos humanos previstos na Convenção, como aos direitos fundamentais previstos nas referidas Constituições. É importante ressaltar que, independente da laicidade ou confessionalidade adotada por determinado Estado soberano, são necessários o respeito à diversidade religiosa e a tolerância para com todas as crenças e suas manifestações, tanto por parte do Estado como por toda a sociedade, cabendo ao Estado velar pelo cumprimento dessa obrigação internacional e pela efetivação desse direito humano. Infelizmente, não é esse o quadro que se verifica em diversos países da América Latina, pois desde os segmentos religiosos minoritários e suas respectivas crenças até a religião católica, que atualmente ainda é majoritária no âmbito de diversas sociedades, todos têm sido alvos de desrespeito, perseguições e intolerância religiosa. A intensificação da globalização, o pluralismo cultural e a proliferação de diversas religiões pelo mundo, impõe aos Estados e aos poderes públicos a adoção de posturas e medidas que visem salvaguardar os direitos protegidos, o que deve ocorrer inclusive, por meio da adoção de leis específicas e políticas públicas destinadas à plena proteção da liberdade religiosa, capazes de assegurar a efetividade do exercício dessa liberdade, bem como coibir toda forma de

6  Para uma visão mais ampla acerca destes dois órgãos de proteção dos direitos humanos do Sistema Interamericano vide Pereira (2013, p. 94-96).

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3 A VIOLAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA

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intolerância, discriminação e outras ofensas. Conforme aponta Palomino (2014, p. 291), cada vez con mayor intensidad se asiste a la pluralización del campo religioso allí donde antes existía una religión hegemónica y también a la creciente incursión de actores religiosos en actividades políticas y en funciones de Estado. Con ello, el debate sobre el derecho de libertad religiosa se replantea bajo nuevos matices en los que el Estado y sus ordenamientos jurídicos se enfrentan al desafío de adoptar nuevas regulaciones legales, instituciones y políticas públicas ante el fenómeno religioso en ebullición.

Em sociedades pluralistas e democráticas como as que se verificam hodiernamente, torna-se de absoluta importância a consideração do outro e daquilo que lhe diz respeito, seja material ou espiritualmente. As sociedades e os indivíduos precisam indispensavelmente não apenas aprender, mas sobretudo aplicar o aprendizado no tocante ao trato e posicionamento das diferenças diante da diversidade religiosa presenciada atualmente, o que não tem ocorrido em muitos países latino-americanos, conforme poderá se verificar sucintamente pelas considerações a seguir.

Até pouco tempo atrás, o Estado cubano era considerado ateu, quadro que se alterou após mudança de sua Constituição, em 1992, quando então passou a ser laico7. Ocorre que violações contra o livre exercício da religião ainda são frequentes, ferindo as liberdades laicas e, indubitavelmente, os direitos humanos previstos na Convenção da qual o país é parte. Em casos recentes se contatou diversas violações contra a igreja católica e evangélica, tais como a difamação das lideranças da igreja, assim como a disseminação de opiniões negativas e pejorativas sobre elas (PORTAS ABERTAS, 2017a, p. de internet), o sufocamento de algumas religiões em favor de outras (PORTAS ABERTAS, 2017b, p. de internet), a demolição de templos religiosos sem justificativas, assim como espancamentos e detenções de fiéis por agentes do governo (PORTAS ABERTAS, 2017c, p. de internet), além de outras formas de perseguição que tem ocorrido sob forma de assédio, discriminação e vigilância rigorosa por parte do governo (PORTAS ABERTAS, 2017d, p. de internet). Segundo relatório emitido pela Christian Solidarity Worldwide, em 2015, é crescente o número de violações à liberdade religiosa em Cuba (CSW, 2017a, p. internet). Conforme o documento, em 2011, houve 40 relatos de violações à liberdade religiosa; em 2012, o número subiu para 120; já em 2013, houve 180 casos relatados; e por fim, em 2014, 220 casos de violações em diferentes modos e intensidades foram constatados, sendo que, embora o governo afirme que a tolerância religiosa tenha aumentado, os religiosos alegam que pouca ou nenhuma melhora

7  Nesse sentido, vide art. 8º da Constituição da República de Cuba, que reconhece o direito dos cidadãos a professar e praticar qualquer crença religiosa (“Artículo 8º - El Estado reconoce, respeta y garantiza la libertad religiosa. En la República de Cuba, las instituciones religiosas están separadas del Estado. Las distintas creencias y religiones gozan de igual consideración”. No entanto, na prática, o governo cubano tem contribuído muito pouco para a salvaguarda da liberdade de religião e até mesmo imposto restrições a ela.

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3.1 Cuba

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houve (CSW, 2017b, p. de internet). Dentre os mencionados ataques promovidos ou tolerados pelo governo cubano à liberdade religiosa, invariavelmente tendo como pano de fundo perseguições de natureza política, também estão o impedimento de abrir templos religiosos, ameaças de fechamento dos já existentes, perseguições individuais a lideranças religiosas e familiares confessionais, prisões de religiosos, bloqueio de contas bancárias de igrejas e até agressões físicas por agentes de governo, como no caso das “Ladies in White”8 (GOSPEL PRIME, 2017a, p. de internet). 3.2 Venezuela Na Venezuela, a liberdade religiosa também figura como um direito fundamental na Constituição da República Bolivariana da Venezuela9, muito embora as violações a esse direito sejam frequentes e patentes no país. O Estado venezuelano também aparece em destaque nos índices de perseguição religiosa, perseguição esta que muitas vezes tem tido a mesma conotação daquela ocorrente em Cuba, isto é, o cometimento por motivações políticas. O aspecto diferenciador é a doutrina perseguida, pois ao contrário de Cuba, onde são perseguidos católicos e evangélicos, no Estado venezuelano são os católicos e judeus os segmentos religiosos mais afetados, uma vez que se tratam dos grupos religiosos que mais se opõem ao governo e, como retaliação, têm sua liberdade religiosa violada. Durante essa luta político-religiosa, ocorrida principalmente ao longo dos anos do governo de seu ex-líder, Hugo Chávez, a opressão se deu, v.g., por meio da invasão e desapropriação arbitrária de templos e terrenos pertencentes às igrejas, perseguições individuais, ofensas proferidas publicamente pelo chefe de governo e até mesmo com a elaboração de um projeto de mudança da Constituição para restringir a liberdade religiosa (ANAJURE, 2017a, p. de internet).10 Ainda, segundo os dados do estudo ADL Global 100, que realizou pesquisas em 100 países com a finalidade de verificar a existência de sentimentos antissemitas, a Venezuela ocupa 55º lugar, sendo que 30% da população externa pensamentos contra os judeus (ADL GLOBAL 100, 2017, p. de internet).

8  Em um dos casos, mulheres filiadas à “Ladies in White” (Damas de Branco), movimento de oposição fundado em Cuba no ano de 2003, foram violentadas fisicamente durante a realização de um culto, por agentes de segurança do governo. 9  O art. 59 dispõe que “El Estado garantizará la libertad de religión y de culto. Toda persona tiene derecho a profesar su fe religiosa y cultos y a manifestar sus creencias en privado o en público, mediante la enseñanza u otras prácticas, siempre que no se opongan a la moral, a las buenas costumbres y al orden público. Se garantiza, así mismo, la independencia y la autonomía de las iglesias y confesiones religiosas, sin más limitaciones que las derivadas de esta Constitución y la ley. El padre y la madre tienen derecho a que sus hijos o hijas reciban la educación religiosa que esté de acuerdo con sus convicciones”. 10  Um estudo feito pela ANAJURE destaca que “todos os relatórios sobre liberdade religiosa na Venezuela, durante os anos do Governo Hugo Chávez, apontam para um recrudescimento nas pressões e violações sobre o direito de igrejas, líderes religiosos e cidadãos professarem livre e plenamente sua fé. Violações e pressões essas cometidas tanto pelo próprio Governo venezuelano, quanto por grupos partidários ligados ao chavismo”.

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3.3 Colômbia

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as restrições à prática religiosa do manual estão de acordo com outros relatórios recebidos pela Christian Solidarity Worldwide (CSW). A FARC-EP, um ramo esquerdista do grupo guerrilheiro que se tornou armado em 1960 e está atualmente num processo de diálogo de paz com o governo, tem tido como alvo grupos e líderes religiosos desde o início. Acredita-se que o grupo seja responsável por assassinatos de centenas de líderes de igrejas nos últimos cinquenta anos. Isto inclui os assassinatos do Reverendo Manuel Camacho na região de Guaviare em 2009 e dos pastores Humberto Mendez e Joel Cruz Garcia em Huila em 2007; os três pastores notoriamente desafiaram as restrições da FARC-EP sobre pregação e evangelização. Cerca de 150 igrejas foram fechadas e a atividade religiosa proibida no sudeste da Colômbia em zonas sob o controle da FARC-EP.

Segundo consta nos estudos da ADL Global 100, a Colômbia ocupa a 30ª posição, figurando como o primeiro país da América no ranking, onde 41% da população expressa pensamentos de aversão aos judeus. Diante disso, torna-se evidente os motivos pelos quais o país é o único da América do Sul a ocupar posição de destaque (negativo) no ranking de maior perseguição religiosa. 11  O art. 19 da Constituição colombiana prevê que “Se garantiza la libertad de cultos. Toda persona tiene derecho a profesar libremente su religión y a difundirla en forma individual o colectiva. Todas las confesiones religiosas e iglesias son igualmente libres ante la ley”.

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Embora a liberdade religiosa esteja consagrada na Constituição Política da Colômbia11, no ano de 2015 o país ocupava a 25ª colocação no ranking mundial de perseguição religiosa, segundo dados da Organização Internacional não Governamental Portas Abertas. Ainda segundo dados oficiais da referida ONG, existem cerca de 5.000.000 de evangélicos no país, sendo que 20% deste número é composto de cristãos perseguidos, havendo ainda 500.000 perseguidos que se encontram em campos de refugiados e abrigos temporários (PORTAS ABERTAS, 2017e, p. de internet). Atualmente, no mesmo ranking, o país passou a ocupar a 50ª colocação. Entretanto esse índice não se deve a uma grande melhora em relação à coibição da perseguição religiosa, mas sim à piora de outros países nesse contexto, que acabaram por passar à frente da Colômbia ao tornarem a perseguição religiosa intensa ou extrema, enquanto na Colômbia ela é considerada apenas alta. O que agrava ainda mais a situação religiosa no país é a violência praticada por grupos rebeldes. Com índices expressivos de cristãos sequestrados e mortos, muitos acabam fugindo para os campos de refugiados e passam a viver em situações de extrema pobreza e muitas dificuldades. Ainda conforme a mesma pesquisa, de 1998 a 2014, mais de 400 igrejas foram fechadas e, aproximadamente, 150 líderes religiosos (pastores) foram assassinados. Ademais, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), em 2013, emitiu um manual denominado “Manual para Coexistência” que, dentre outras recomendações, restringiu a liberdade de culto, obrigando que as igrejas fossem utilizadas apenas nas cidades capitais. De acordo com estudo feito pela ANAJURE (2017b, p. de internet),

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Embora pertença a um grupo de países com perseguição religiosa considerada de nível baixo, a Argentina, que é um Estado confessionalmente católico12, esporadicamente ainda apresenta casos de intolerância e perseguição religiosa, mesmo estando a liberdade de credo e de culto prevista na Constituição do país.13 O caso Córdoba é um exemplo, em que um pastor e seus familiares foram ameaçados por, em tese, descumprirem uma lei distrital14 que proibia a manipulação psicológica e técnicas de persuasão. Isto porque a maioria de seus fiéis anteriormente à conversão eram usuários de drogas e prostitutas. Com isto, o pastor e sua família foram diversas vezes ameaçados e vítimas de discurso de ódio, tendo inclusive suas propriedades avariadas e saqueadas (PORTAS ABERTAS, 2017f, p. de internet). Outro caso de grande evidência na Argentina ocorreu durante uma manifestação de um grupo de feministas radicais, em 2013, quando o grupo atacou fiéis católicos em frente à igreja, cuspiram, agrediram, picharam e queimaram a imagem de um santo (VEJA, 2015, p. de internet). Mais recentemente, no dia 08 de março de 2017, outro triste fato voltou a demonstrar o grande desrespeito às religiões cristãs na Argentina. Um grupo de ativistas feministas, reunidas em protesto a favor do aborto, fizeram uma encenação em frente à Catedral da província de Tucumán, passando a mensagem de que Maria deveria ter abortado o seu filho Jesus, em claro e patente abuso da liberdade de pensamento e de expressão. A performance artística, que repercutiu negativamente ao redor do mundo, acabou por ofender à figura de Maria (considerada santa pela igreja católica) e de Jesus Cristo, que é reconhecido como salvador pelos cristãos e tido como figura suprema do cristianismo (GUIAME, 2017, p. de internet). Embora com pouco destaque midiático, outra situação relevante é a sofrida pelos muçulmanos que vivem no país. Em 2009, várias associações e organizações representantes do povo árabe e do islamismo, denunciaram a ação opressiva de autoridades da Argentina. Na denúncia, narram que, durante 15 anos, sua comunidade tem sido investigada e vem sofrendo abusos por serem acusados de possuir armamento bélico. Ocorre que, mesmo não tendo sido encontradas provas no decorrer desses anos, insistem em acusá-los e humilhá-los em interrogatórios, somente por pertencerem à comunidade islâmica, que muito sofre com o preconceito ao redor do mundo, muitas vezes por serem tachados de modo indevido e generalizado como

12  O art. 2º da Constituição da Nação Argentina prevê que “El Gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano”. 13  O art. 14 da Constituição argentina prevê que “Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio; a saber: de trabajar y ejercer toda industria lícita; de navegar y comerciar; de peticionar a las autoridades; de entrar, permanecer, transitar y salir del territorio argentino; de publicar sus ideas por la prensa sin censura previa; de usar y disponer de su propiedad; de asociarse con fines útiles; de profesar libremente su culto; de enseñar y aprender”. 14  Uma lei provincial (aplicável apenas ao Estado de Córdoba), a Lei Argentina 9.891, foi criada com a intenção de assegurar a liberdade religiosa, mas está causando efeito contrário. Relatos de líderes religiosos atuantes na região, apontam para o fato de que a referida lei, embora criada com o propósito de prender e prevenir precocemente qualquer situação de manipulação psicológica, bem como para prover assistência a vítimas de manipulação, tem sido aplicada abusivamente a organizações religiosas, colocando em risco a vida de religiosos na região.

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3.4 Argentina

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terroristas.15 (IBEIPR, 2017, p. de internet). Por fim, vale apontar que o país argentino ocupa a posição de n. 69 no ranking do estudo ADL Global 100, já mencionado anteriormente, constatando-se que, mesmo com um dos percentuais mais altos de judeus em países da América, 24% da população local possui opiniões antissemitas. 3.5 Brasil Um dos grandes problemas do Estado brasileiro em relação à liberdade de religião é a amplitude da diversidade religiosa no país e também a falta de preparo e cultura de respeito para lidar com aquele que é e/ou pensa de maneira diferente em relação às questões religiosas no país. Nesse sentido, LAZARI (2014, p. 1) esclarece que: o Brasil pode não ter problemas extremos em se tratando de liberdade religiosa, como perseguições e carnificinas que ocorrem de maneira contumaz em países asiáticos e africanos, ou o caso de nações cujos regimes ditatoriais vedam, ou, do contrário,

O país, conhecido por ser extremamente pluralista e acolhedor de múltiplas culturas e religiões, embora tente se mostrar tolerante, livre de preconceitos, vem sendo acometido por uma onda de discursos de ódio contra aquele que é diferente em termos religiosos. A aceitação do outro, que tem um discurso ou pensamento diverso à própria crença, tem se tornado dificultosa para muitos indivíduos componentes da sociedade brasileira, e os atos funestos contra as diversas religiões existentes no país, tentam buscar legitimação na liberdade de expressão e na própria democracia consagrada na Constituição do país (CRFB, art. 1º e art. 5º, IV, IX, X), o que constitui um grande equívoco e vai contra os próprios princípios e ideais constitucionais invocados. Mesmo com a abertura acima mencionada e mesmo sendo um Estado Laico (CRFB, art. 19)16, que garante o direito fundamental à liberdade religiosa (CRFB, art. 5º, VI, VII e VIII)17, são incontáveis os casos de desrespeito e de intolerância que têm sido externados por indivíduos, grupos religiosos e até mesmo pelo poder judiciário do país.

15  As denúncias foram feitas pela Asociación Árabe Argentina Islámica (AAAI), podendo ser verificada no sítio do Instituto Brasileiro de Estudos Islâmicos. 16  Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. 17  Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). “Art. 5º (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

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justamente fazem da religião o embasamento de seu aparato político-ideológico. Isso não significa dizer, todavia, que este país encravado no coração da América do Sul careça de discussões pertinentes ao livre exercício dos direitos de crença, culto, exteriorização do pensamento, e reunião, que, conjuntamente, formam a liberdade religiosa.

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18  A íntegra da decisão pode ser acessada por meio do sítio Migalhas (MIGALHAS, 2017a, p. de internet). 19  Em decisão que reconsiderou o posicionamento assumido anteriormente, o magistrado afirmou que o “forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea”. 20  Trata-se do estudo “Presença do Axé - Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”.

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Numa decisão proferida no ano de 2014, a Justiça Federal da cidade do Rio de Janeiro/ RJ entendeu os cultos afrodescendentes como não sendo manifestações de uma religião, alegando-se dentre outras razões, que as manifestações religiosas africanas não possuem traços suficientes para a configuração de uma religião própria (v.g., Bíblia, Alcorão etc.).18 Na mesma decisão, o judiciário acabou por permitir que vídeos de cultos evangélicos publicados no sítio YouTube, nos quais se verifica o desrespeito às religiões de matrizes africanas fossem mantidos online, fato que revela um desequilíbrio em relação ao tratamento conferido à religiões existentes no país. Em razão da forte repercussão negativa e consequente reação de parcela da sociedade brasileira, notadamente por meio das mídias sociais, o juiz prolator da decisão em comento a reconsiderou mais tarde (MIGALHAS, 2017b, p. de internet)19, reconhecendo os cultos de matriz africana como religião no país. Nota-se que as religiões de origem ou influência africana são uma das que mais sofrem perseguição religiosa no Brasil. No mês de junho de 2015, uma criança foi atingida com uma pedrada na cabeça após sair de um culto de Candomblé. Os agressores a chamaram de “diabo”, disseram que ela iria para o inferno e que Jesus estava voltando, tentando justificar a agressão com fundamentos diversos à própria religião (G1 GLOBO, 2017, p. de internet). Trata-se de mais um infeliz episódio de intolerância religiosa, dentre os muitos outros casos que têm sido verificados no país. O que se constata é que as pessoas precisam criar uma cultura de educação e respeito pelo outro e por suas crenças, o que, definitivamente, é algo muito diferente de concordar com os dogmas e com as crenças do outro. Respeitar não implica em concordar. As religiões de matrizes africanas foram objeto de estudo específico elaborado por pesquisadores de uma universidade brasileira (PUC-Rio). Conforme os dados obtidos, 430 das 840 casas religiosas pesquisadas no Rio de Janeiro já foram alvo de discriminação. Constatou-se ainda que as agressões contra praticantes de tais religiões são alarmantes, sendo que 57% dos casos ocorreram em local público, dentre os quais 67% das vítimas morreram nas ruas (O GLOBO, 2017a, p. de internet).20 Outro fato que demonstra a perseguição religiosa dos adeptos das religiões de matriz africana no Brasil é a expulsão de seus líderes das favelas existentes no país e até mesmo a proibição da utilização de roupas características dessas religiões, o que tem ocorrido depois que se começou a verificar no país a conversão de traficantes ao cristianismo (O GLOBO, 2017c, p. de internet). O catolicismo, mesmo sendo a religião com maior número de fiéis no país e de grande influência no governo, também vem sofrendo desrespeito. A intolerância é recorrente nas redes sociais, destacando-se nesse sentido o Facebook. Publicamente a intolerância também tem sido

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21  O ato de encenação da crucificação praticado pela manifestante LGBT, bem como a quebra de imagens ou sua introdução em orifícios do corpo humano causaram grande polêmica em todo o país e reações diversas em vários setores da sociedade, estimulando ainda mais o discurso de ódio e intolerância religiosa no país.

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um traço comum em algumas manifestações evangélicas e também em manifestações LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), em que um ponto em comum é a destruição de imagens católicas. Um triste e pioneiro episódio nesse sentido ocorreu em 12 de outubro de 1995, protagonizado por um “bispo evangélico”, que desferiu chutes em uma imagem de escultura sagrada e cultuada pela população católica num programa de televisão veiculado em cadeia nacional (IG ÚLTIMO SEGUNDO, 2017, p. de internet). Fato semelhante ocorreu recentemente, em 11 de janeiro de 2017, repercutindo na mídia nacional. Uma mulher seguidora de uma denominação evangélica existente no país, quebrou uma imagem de escultura de veneração dos religiosos católicos (VEJA, 2017, p. de internet). Ademais, tanto evangélicos como católicos, ambos segmentos cristãos, têm sido vítimas de intolerância religiosa em manifestações desrespeitosas, tais como a “#queimeumabíblia”, amplamente veiculada na internet (Facebook e Twitter); a crucificação encenada por uma transexual durante um evento do grupo LGBT, conhecido no país como “Parada Gay”, ocorrido na cidade de São Paulo em junho de 2015, em que também ocorreu a introdução de crucifixos e imagens em orifícios íntimos do corpo humano pelos participantes do evento.21 (GOSPEL PRIME, 2017b, p. de internet). Outro segmento que sofre com a intolerância religiosa no país é aquele constituído por ateus. Por diversas vezes os ateus têm sido hostilizados e excluídos do âmbito da proteção da liberdade religiosa simplesmente por exercerem a sua liberdade negativa, isto é, de não crer, de não professar uma determinada crença. Os ateus ainda são mal vistos e desrespeitados, pois, por não crerem em um Deus, são invariavelmente tachados como pessoas ruins e de má índole. Por manifestar este pensamento, um apresentador televisivo foi processado e sua emissora condenada a se retratar em rede nacional, por relacionar crimes bárbaros aos ateus, que “não têm Deus no coração”. (PREVIDELLI, 2017, p. de internet). Quando se trata do judaísmo, embora os índices sejam considerados baixos, ainda se evidencia, segundo os estudos ADL Global 100, que 16% dos brasileiros demonstram preconceitos em relação aos judeus, ocupando o Brasil a 81ª posição dentre os 100 países pesquisados. Há, ainda, notícias de que muçulmanos que vivem no Brasil sofrem diariamente com o preconceito, sendo chamados de “homens-bomba”, ou sendo zombados por suas vestimentas e costumes. Conforme relatos do Jornal O Globo, após os ataques terroristas no Jornal “Charlie Hebdo“, muçulmanos moradores do Rio de Janeiro ficaram trancados em casa por medo de retaliação, pelo simples fato de possuírem a mesma religião professada pelos terroristas que reivindicaram a autoria dos atendados. (O GLOBO, 2017b, p. de internet).

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4 O NECESSÁRIO DESENVOLVIMENTO DE UMA CULTURA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PARA ASSEGURAR A LIBERDADE RELIGIOSA Pela exposição casuística feita na seção anterior, que permitiu a verificação de sistemáticas e persistentes violações à liberdade religiosa em diversos países latino-americanos, vislumbra-se que nem mesmo a positivação desta liberdade nas Constituições nacionais e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos tem sido suficiente para a promoção do pleno exercício desse direito humano consagrado nestes diplomas normativos. Em razão disso, a principal proposta do presente trabalho é demonstrar a necessidade da implantação e do desenvolvimento de uma cultura de respeito à liberdade de religião na América Latina, que pode ser alcançada por meio de uma educação em direitos humanos voltada para o atingimento desse objetivo. Nesse sentido, cabe aos Estados dar cumprimento ao disposto no art. 1º da Convenção Americana, no sentido de

A Convenção Americana foi enfática ao estabelecer o compromisso dos Estados Partes quanto (i) ao respeito dos direitos e liberdades nela consagrados, bem como quanto (ii) ao dever de garantir o seu livre e pleno exercício. Portanto, cabe a cada um tomar as medidas domésticas necessárias à promoção do respeito à liberdade religiosa e à garantia de seu livre e exercício, assegurando assim a plena efetivação desse direito humano subjetivo para todos os indivíduos que estejam em seu território ou sob a sua jurisdição. Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 514) apontam que tanto a liberdade de consciência quanto a liberdade religiosa apresentam, além de uma dimensão objetiva22, uma dimensão subjetiva, de modo que “na condição de direitos subjetivos, elas (...) asseguram tanto a liberdade de confessar (ou não) uma fé ou ideologia, quanto geram direitos à proteção contra perturbações ou qualquer tipo de coação oriunda do Estado ou de particulares”. Quando se fala na garantia e efetivação dos direitos humanos, deve-se ter em mente que não apenas o Estado (que deve ser o principal agente assegurador desses direitos), mas também os próprios indivíduos nacionais, que são seus titulares, são responsáveis por efetivá-los. No entanto, restou evidente até aqui que mesmo em pleno século XXI, infelizmente ainda se percebe a falta de efetividade e de implementação das disposições da Convenção Americana e das Constituições nacionais no tocante ao pleno exercício da liberdade religiosa, livre de quais22  Explicam os autores que “como elementos fundamentais da ordem jurídico-estatal objetiva, tais liberdades fundamentam a neutralidade religiosa e ideológica do Estado, como pressuposto de um processo político livre e como base do Estado Democrático de Direito” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2016, p. 514).

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“respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.

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quer perturbações ou coação por parte do Estado e da sociedade. O que se demonstrou foi de todo o contrário, isto é, que a liberdade religiosa ainda vem sofrendo constantes violações, ora por parte dos próprios Estados (comissiva ou omissivamente), ora em razão da intolerância e do preconceito existentes e arraigados na sociedade. Diante disto, torna-se possível afirmar que, para além das previsões legislativas infraconstitucionais existentes no direito doméstico de cada país, que deverão estar em consonância com as disposições das Constituições nacionais e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, visando conferir ampla proteção e a plena efetivação à liberdade religiosa, a adoção de políticas públicas por parte dos Estados latino-americanos, que sejam capazes de proporcionar uma adequada e eficaz educação em direitos humanos para a garantia dessa liberdade fundamental se mostra essencial. No Brasil, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, 2007, p. 25) conceitua a educação em direitos humanos como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando as seguintes dimensões: a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente nos níveis cognitivo, social, ético e político; d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados; e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações”.

formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.

Diante do persistente quadro de violação à liberdade religiosa constatado em vários países da América Latina, atualmente é imperioso que um processo de mudança cultural seja levado a efeito pelos Estados por meio da formulação e implementação de políticas públicas voltadas a uma educação social em direitos humanos, capaz de criar, influenciar, compartilhar e consolidar o respeito à diferença, bem como a tolerância no tocante à pluralidade de convicções religiosas existente hoje nas sociedades latino-americanas. Não há dúvida de que toda ação educativa que tenha como foco os direitos humanos

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Para Maria Victoria Benevides (2000), a educação em direitos humanos consiste essencialmente na

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precisa ser capaz de conscientizar a sociedade acerca de uma determinada realidade, bem como de “identificar as causas dos problemas, procurar modificar atitudes e valores, e trabalhar para mudar as situações de conflito e de violações dos direitos humanos, trazendo como marca a solidariedade e o compromisso com a vida” (SDHPR, 2013, p. 34). E é no âmbito desse processo que “se constrói o conhecimento necessário para a transformação da realidade. Tal processo deve ser coletivo, integrado ao meio onde acontece, e em sintonia com as necessidades de quem dele participa” (SDHPR, 2013, p. 34). Nesse sentido, cumpre a cada Estado latino-americano, em cumprimento do compromisso internacional assumido quanto ao respeito e garantia do pleno exercício da liberdade religiosa, considerando as suas peculiaridades locais, identificar e coibir as causas que têm desencadeado as violações à essa liberdade, bem como estabelecer, por meio de políticas eficazes, mecanismos que sejam aptos à promoção de uma educação em direitos humanos, capaz de proporcionar uma mudança cultural tanto no âmbito dos órgãos estatais como na sociedade em geral, relativamente à necessidade de respeito e tolerância para com aquele que pensa diferente e que tem crenças diversas. É certo que uma política educacional em direitos humanos voltada para essa finalidade precisa ser muito bem estruturada e implementada a fim de que possa atingir satisfatoriamente os seus objetivos. Nesse ponto, assume importância as lições de Maria Victoria Benevides (2000) que, ao tratar da educação em direitos humanos, aponta que ela parte de três pontos essenciais:

Com base nestas lições, as políticas públicas educacionais voltadas à promoção de uma mudança cultural em prol do respeito à liberdade religiosa, ao serem formuladas e implementadas pelos Estados latino-americanos precisam ter ao menos as seguintes características (i) ter uma natureza permanente, continuada, (ii) abranger toda a contingência territorial do Estado em questão, ainda que seja necessária a observância de eventuais peculiaridades locais, (iii) estar efetivamente voltada para a promoção de uma mudança de comportamento em todos os níveis sociais e (iv) ser compreensiva, isto é, capaz de incutir nas mentes os valores corretos a serem cultivados, atingindo tanto a razão como a emoção dos indivíduos, gerando como consequência um compartilhar espontâneo por todo aquele que é tocado e transformado pelos conhecimentos obtidos. Conforme afirmou Paulo Freire (1980, p. 25), “a educação para a libertação é um ato

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primeiro, é uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação de valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante, que ou esta educação é compartilhada por aqueles que estão envolvidos no processo educacional – os educadores e os educandos – ou ela não será educação e muito menos educação em direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a educação para a mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada e de atingir tanto a razão quanto a emoção.

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de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade”. No dia a dia, é bastante comum a constatação de que muitos indivíduos componentes de diversas sociedades nacionais, não sabem em que consistem exatamente os direitos humanos, não sendo um exagero afirmar que a expressão tem até um cunho pejorativo no meio social. No âmbito do senso comum, alguns os definem como “direitos dos bandidos” ou “direitos dos manos”, outros dizem que “não servem para nada” ou que “só protegem os maus”. Esse senso comum disseminado em sociedades multiculturais e pluralistas como as existentes na América Latina abre espaço para o desrespeito, incompreensão, discriminação e intolerância para com o outro, que também é destinatário dos mesmos direitos. Conforme esclarecem Cecchetti, Oliveira, Hardt e Riske-Koch (2013, p. 32), “lamentavelmente, representações sociais equivocadas do outro ainda impulsionam o surgimento do preconceito e discriminação, grandes responsáveis pelos conflitos religiosos”. É imperiosa uma mudança de mentalidade nesse sentido, uma transformação do senso comum para a compreensão do que se tratam verdadeiramente os direitos humanos de cada indivíduo, inerentes a cada um, pelo simples fato de serem humanos e por terem uma dignidade que lhes é inerente. Como afirmam Cecchetti, Oliveira, Hardt e Riske-Koch (2013, p. 32), a “promoção da dignidade humana perpassa, entre outros pontos, pelo respeito e reconhecimento das diferentes formas de religiosidades, tradições e/ou movimentos religiosos, bem como daqueles que não seguem forma alguma de religião ou crença”. Diante desse quadro de ignorância social que hoje se verifica em relação aos direitos humanos, a promoção do conhecimento por meio de políticas públicas continuadas e de ampla abrangência constitui um dos primeiros objetivos a ser perseguido pelas políticas educacionais em matéria de direitos humanos e o primeiro passo para a transformação. Nesse sentido, a conversão da mentalidade presente atualmente no senso comum latino-americano e a criação de um senso crítico de auto avaliação no tocante às posturas frente aos direitos humanos, especialmente quanto ao respeito à liberdade religiosa, exigem o conhecer do real significado destes direitos, isto é, o esclarecimento de que eles constituem “um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade” (RAMOS, 2016, p. 29), sendo por isso mesmo de titularidade de todos os indivíduos, independentemente de “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (DUDH, art. 2º). Assim, uma política educacional em matéria de direitos humanos voltada ao combate da discriminação, do preconceito e da intolerância, deve ser capaz de tornar claro e compreensível a toda uma sociedade que os direitos humanos (inclusive aqueles que dizem respeito à religião) são direitos de todos, ou seja, do católico, do evangélico, do budista, do hinduísta, do mulçumano, do ateísta etc. A promoção desse conhecimento por meio de políticas públicas intensivas é, portanto, a primeira etapa rumo às conversões que hoje se fazem necessárias em relação à liberdade

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religiosa, isto é, (i) de uma postura de intolerância, para a tolerância, (ii) de condutas desrespeitosas, violadoras de direitos e ofensivas, ao respeito para com o outro, (iii) do repúdio, para a aceitação, mesmo que esta não importe na concordância etc. Além do conhecimento voltado para a compreensão do que realmente são os direitos humanos, um segundo e não menos importante passo é o alcance de uma transformação por meio do conhecimento obtido. Portanto, torna-se imperioso que as políticas educacionais desenvolvidas pelos países em matéria de direitos humanos estejam aptas a gerar uma mudança cultural nas sociedades latino-americanas relativamente à liberdade religiosa. Por outras palavras, o conhecimento deve gerar transformação, isto é, toda a informação educacional que foi obtida e apreendida a priori, precisa ser capaz de gerar uma transformação no modo de pensar e agir dos indivíduos perante as questões relativas à liberdade de religião, notadamente no tocante ao dever de respeito e tolerância para com o outro que professa uma crença diferente. Portanto, uma mudança cultural efetiva por meio da educação em direitos humanos exige políticas públicas que fomentem a formação dessa mudança de comportamento dos indivíduos. Nesse sentido, tornam-se importantes aquelas políticas que são capazes de impulsionar “movimentos de e para o diálogo entre diferentes religiões e grupos religiosos, visando à construção do respeito à diversidade cultural religiosa através do diálogo inter-religioso e intercultural” (CECCHETTI, OLIVEIRA, HARDT E RISKE-KOCH, 2013, p. 32). Não há dúvidas de que políticas que proporcionem às sociedades nacionais latino-americanas a apropriação de conhecimentos específicos no tocante às diversas culturas e/ou tradições religiosas, possibilitando um profícuo diálogo inter-religioso numa perspectiva cultural que objetive proporcionar a compreensão das múltiplas experiências religiosas da humanidade, pode contribuir significativamente para uma mudança de postura dos indivíduos quanto às crenças do outro e quanto à necessidade de respeito e tolerância para com as outras religiões. “O diálogo é processo mediador, articulador, fomentador e criador de possibilidades para o reconhecimento do Outro no processo educativo, através do qual é possível construir explicações e referenciais que escapam do uso ideológico, doutrinal e catequético” (FONAPER, 1997). Conforme explica Teixeira (2004, p. 19), o “diálogo não enfraquece a fé, como alguns temem, mas possibilita um aprofundamento e ampliação de seus horizontes”. Por fim, um terceiro passo necessário à consagração de uma mudança cultural latino-americana em matéria de liberdade religiosa consiste na formulação e implementação de políticas públicas contínuas e abrangentes que visem, além de proporcionar um conhecimento voltado para a transformação, também uma ampla compreensividade social. Uma política pública voltada à educação em direitos humanos em matéria religiosa precisa ser compreensiva, isto é, capaz de incutir nas mentes dos indivíduos envolvidos no processo educacional, os valores corretos a serem cultivados, os padrões fidedignos de serem seguidos (v.g., respeito à diversidade, tolerância, alteridade, igualdade, solidariedade etc.), atingindo assim tanto a razão como a emoção dos educandos (e também dos educadores) e gerando, como consequência, um compartilhar espontâneo por todo aquele que é tocado e transformado pelos conhecimentos obtidos.

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Em síntese, o estabelecimento de uma nova cultura de respeito à liberdade religiosa na América Latina requer, além da positivação dos direitos em nível constitucional e internacional, posturas estatais que visem o fomento desta mudança, o que pode se dar por meio da formulação e implementação de políticas públicas educacionais de caráter contínuo e abrangente, aptas a proporcionar um amplo conhecimento em direitos humanos, especialmente aqueles relativos à liberdade de consciência e de crença. Do mesmo modo, tais políticas precisam estar efetivamente voltadas à transformação social e serem compreensivas, de modo que o conhecimento proporcionado aos indivíduos possa ser plenamente absorvido e capaz de gerar mudanças de posturas que sejam positivas e por isso mesmo, dignas de serem compartilhadas. A criação e a manutenção de uma nova cultura de respeito e tolerância para com as crenças e a religião do outro se impõe na América Latina. A educação em direitos humanos, mesmo que a passos lentos, se for continuada, abrangente, voltada para a mudança e compreensiva, haverá de gerar a transformação de uma cultura de preconceito e intolerância em respeito e tolerância, de segregação e marginalização em inclusão.

Conforme se aferiu, o presente trabalho teve como objetivo demonstrar a necessidade da criação de uma cultura de respeito à liberdade religiosa entre os povos latino-americanos. Em termos conclusivos, verificou-se claramente que mesmo diante da positivação da liberdade de religião como um direito humano (nos tratados internacionais) e fundamental (nas Constituições dos Estados latino-americanos), ainda existem muitas violações à liberdade de consciência e de crença no continente americano, que infelizmente são frutos não apenas de ações estatais (comissivas e/ou omissivas), mas também das sociedades nacionais em geral. Aferiu-se que, no contexto de sociedades multiculturais como as que se verificam na América Latina, torna-se de absoluta importância o saber lidar com a pluralidade de crenças, com a diversidade e com a diferença. É preciso saber respeitar o espaço, as convicções e as crenças do outro, fato que tristemente ainda não tem ocorrido nas sociedades latino-americanas, conforme se constatou pela análise casuística feita ao longo do trabalho, reveladora de uma ampla gama de violações à liberdade analisada. Diante do quadro constatado, o trabalho teve como uma de suas finalidades precípuas demonstrar a necessidade da implantação e do desenvolvimento de uma nova cultura de respeito à liberdade de religião na América Latina, que pode ser alcançada por meio de uma educação em direitos humanos voltada para o atingimento desse objetivo. Nesse sentido, demonstrou-se a imprescindibilidade da formulação e implementação de políticas públicas por parte dos Estados latino-americanos, voltadas à promoção de um necessário e adequado conhecimento sobre os direitos humanos que seja capaz de provocar uma mudança no modo de agir e de pensar dos indivíduos no tocante às questões relativas à liberdade de religião, transformando assim posturas sociais de desrespeito e intolerância em respeito e tolerância para com aqueles

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que têm crenças diferentes. Restou evidenciado que políticas públicas contínuas e abrangentes, voltadas essencialmente à promoção de um conhecimento compreensivo e transformador em relação aos direitos humanos, notadamente quanto à liberdade religiosa, podem em muito contribuir para a criação e o desenvolvimento de uma nova cultura de respeito e tolerância para com todas as religiões e suas liturgias. Pelas diversas violações à liberdade religiosa que foram demonstradas ao longo do trabalho, presentes em muitos Estados latino-americanos, verificou-se que a educação em direitos humanos ainda está distante do contingente pessoal que integra os órgãos públicos estatais, bem como da maioria da população, que se mostra alienada e apenas limita-se a imitar e reproduzir aquilo que ouve, disseminando o saber do senso comum, sem, contudo, se preocupar com uma análise crítica racional acerca de conquistas tão caras à humanidade, como é o caso dos direitos humanos. Pelas práticas violadoras que foram descritas ao longo do texto, pôde-se perceber que um dos principais problemas está no respeito seletivo e segregado das liberdades, isto é, apenas se respeita e se tolera aqueles que reproduzem as mesmas ideologias e crenças, discriminando-se e desrespeitando-se aqueles que se manifestam contra ou apenas de maneira diferente. Restou obvio que ainda há um longo caminho a ser trilhado no tocante a conquistas práticas dos direitos já positivados em relação à liberdade religiosa. Contudo, demonstrou-se por outro lado, que a promoção de um adequado conhecimento em relação aos diretos humanos, que vise educar para a transformação dos indivíduos (e consequentemente das sociedades), pode gerar uma mudança de posturas radicais e intolerantes que têm sido o mote de diversos conflitos religiosos, em favor de posicionamentos mais consentâneos com a pluralidade religiosa das sociedades latino-americanas. Não se discute que ninguém pode ser obrigado a adotar alguma crença ou religião pelo emprego da força e nem mesmo a inadmissibilidade de qualquer discriminação em razão da adoção desta ou daquela convicção religiosa. Se é assim, torna-se necessária a implantação e o desenvolvimento de uma nova cultura de respeito às crenças religiosas de cada um. Mas isso será o resultado de um processo contínuo e abrangente de ensino, conscientização, amadurecimento e solidificação da pluralidade religiosa e da necessidade de respeito e tolerância à essa pluralidade. Não há dúvidas de que a convivência social em Estados multiculturais, como são os latino-americanos, tem como custo o respeito e a tolerância à diversidade religiosa. Em países com tamanha heterogenia religiosa, como o Brasil, a intolerância e a perseguição religiosa são ainda mais inadmissíveis. Por isso, o olhar para a educação em direitos humanos na América Latina precisa estar centrado no cultivo de uma nova mentalidade de respeito e tolerância religiosa, onde independente da religião que se adote, dos dogmas em que se acredite, da convicção religiosa que se tenha ou até mesmo se deixa de ter, haja o devido e necessário respeito ao próximo e às suas crenças, não por ele ser cristão, evangélico, católico, judeu, islamita ou mulçumano, mas simplesmente por se tratar de um ser humano.

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Diante de tanta cegueira de caráter religioso, que contribui para a manutenção de complexos processos de exclusões, discriminações, desigualdades e intolerâncias, a educação em direitos humanos certamente será um ambiente privilegiado para a formação de uma nova cultura de respeito à liberdade religiosa na América Latina.

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ABSTRACT The main purpose of this text is to address the issue of religious freedom and the need for human rights education regarding respect for religious diversity in Latin America. Pursuant to Article 18 of the Universal Declaration of Human Rights and Article 12 of the American Convention on Human Rights, States have a duty to ensure the broad freedom of belief and religion of their nationals and aliens within their territory. However, although many member countries of the Organization of American States (OAS) are signatories to the American Convention, there are still many violations of the rights enshrined in this Convention. Thus, the text aims to demonstrate that human rights education constitutes a fundamental tool for the promotion of societies more just and sensitive to the presence of the other and their religious beliefs and values. Keywords: Religious Freedom. Diversity. Human Rights. American Convention on Human Rights. Education. Latin America.

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EDUCATION ON HUMAN RIGHTS: THE NEED FOR A CULTURE OF RESPECT FOR RELIGIOUS FREEDOM IN LATIN AMERICA

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INTENÇÃO E GESTO: POSSIBILIDADES LÓGICAS NO DIREITO Renata Celeste1

RESUMO O texto analisa as práticas de direito e a (im)possibilidade de seu pertencimento no plano da formalização, a partir do referido ponto de partida busca-se inferir uma resposta acerca da presença de uma escritura lógica no raciocínio jurídico. A pretensão é indicar como os substratos de verdade no universo jurídico são amparados a partir da dialética entre ilusão e realidade, revelando uma estrutura de simulacro. Palavras-chave: formalização; lógica; raciocínio jurídico; simulacro.

1 INTRODUÇÃO

escritura lógica no raciocínio jurídico. Ainda discutirá como o discurso de racionalidade jurídica dá forma a uma realidade autêntica e própria, realizando um cruzamento coma ideia de simulacro deleuziano e a formação de verdades explícitas. Busca-se a partir das ideias elencadas traçar os espaços da lógica informante do simulacro, neste caso, um modelo jurídico, e da lógica operante nos usos do direito. A pretensão reside em indicar como realidade e ilusão dialogam para a sustentação do necessário, garantindo

1  Mestre e Doutoranda em Teoria do Direito pela UFPE; Coordenadora Ajunta e Professora do Curso de Direito da Faculdade Damas da Instrução Cristã; Coordenadora do Grupo de Pesquisa “O cogito e o impensado: estudos de direito, biopolítica e subjetividades” da Faculdade Damas da Instrução Cristã; Servidora do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

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Este trabalho pretende analisar as práticas de direito enquanto passíveis de uma colocação no plano da formalização, tentando inferir uma resposta acerca da presença de uma

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um sistema de linguagem para a (ir)racionalidade das formas jurídicas.

As consequências de base racional iluminista se apresentaram para o direito como uma necessidade de afirmação formalista. O período moderno inscreve um pensamento cientificista que força o direito a uma representação formal válida de uma inspiração semântica mínima. Para tanto esse desejo formalista se apresentou na confecção de códigos que agregaram um sistema de linguagem próprio e possibilitaram a necessária segurança em regras previamente organizadas. A intenção racionalista consistiu na simplificação do processo, a prática deveria ser reduzida a conhecer o fato, encontrar a regra e aplicá-la, modelo próximo a um dispositivo maquinal. Esse cientificismo foi a chave para os processos codificadores e a pressão positivista no Direito. A imposição da semântica normativa deveria, aos moldes da época, ser capaz de guiar o ser para o dever –ser com precisão e lógica. De certo modo podemos ousar dizer que essa força codificadora deu formas a um sujeito abstrato unitário2 identificado como Direito, leia-se abstrato porque são formas vocabulares que partem de uma intenção do criador e unitário uma vez que deve partir do corpo formalizado a resposta para os fatos. A esse sujeito está entregue a função de movimentar e frear um projeto de sociedade. De forma inteiramente necessária para o cenário teórico e prático o silogismo aparece como técnica e fé. A norma se transforma em premissa maior, a lógica silogística passa a figurar como forte argumento racional no discurso jurídico fazendo uso das fórmulas abstratas (todo A é B; D é A; logo D é B), para esse modelo formal norma e ação possuem uma conexão transparente, facilmente reconhecível e portanto ligada a uma decisão lógica. A utilização desse raciocínio deve pressupor alguns indicativos, um deles o de que é possível uma resposta única na realidade jurídica. Dentro de um plano teórico esse pensamento pode ser sustentado de forma plausível, entretanto problemas surgem quando da interferência do plano empírico da aplicação do direito. A realidade jurídica mostra-se multifacetada demonstrando um grande conjunto de respostas possíveis para cada caso (A àB; AàC ... A àY), podemos dizer que a ligação norma e ação quando rompem os limites do universo teórico e adentram o meio empírico encontram uma terceira via, a da contingência informada por valores políticos, sociais e emotivos. Assim, o uso do silogismo realiza muito mais uma política jurídica a um método de Direito. Expressões matemáticas e lógicas são unívocas3, diferentemente dos termos encontrados no Direito, estes são repletos de possibilidades de significado. No raciocínio lógico formal podemos identificar relações do tipo (se A é F; é falso dizer que A é não-F), o Direito nos ofe2  Adaptação do termo utilizado por Antonio Negri e Michael Hardt na obra intitulada O trabalho de Dioniso 3  Extraído de artigo ainda não publicado do Prof. Torquato de Castro Jr. “Formalização do raciocínio jurídico : o desafio da redução semântica “

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2 INTENÇÕES LÓGICAS

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rece essa dupla identidade ausente de mecanismo lógico (se A é F; A pode ser não-F), isso a depender da modificação dos significados da semântica operada por quem aplica a regra. Contudo, a evidência da negação das premissas maiores para a representação adequada do Direito não encerra por si a negação da possibilidade de formalização no Direito, uma vez que não se trata de um único sistema de lógica a surgir como plausível ao invólucro jurídico. Nesse rastro segue-se o problema de determinar a possibilidade de uma linguagem calculada no Direito ou em seu procedimento e até que ponto pode ser reconhecida a estabilidade dos sistemas jurídicos.

O que são regras? O que significa dizer que uma regra existe? Os tribunais aplicam na realidade regras ou fingem meramente fazê-lo? (HART, 1994, p.13). A própria definição de regra já impõe o problema da redução semântica, a rigor se a precisão do termo fosse imprescindível estaríamos lidando com uma ontologia e bem possivelmente isso poderia levar a incomunicabilidade explícita. Mas o que são regras? São somente conceitos organizados e expressos? Também envolvem conceitos implícitos, morais, por exemplo, nesse caso informado por valores culturais e subjetivos? Para que são feitos? Para a obediência ou para fazer valer a partir da desobediência? As especulações sobre o por quê e o para que das regras nos levaria uma infinitude de imprecisões e outra infinidade de possibilidades, contudo não é a finalidade do texto. A opção pelo questionamento é tentativa de demonstrar o terreno pouco confortável no qual o Direito se põe. No Direito as regras possuem múltiplas funções, uma delas a de dizer o que é pelo que deve-ser, estabelecendo regras de conduta as quais tentam amalgamar, via mens legislatoris, não só razões formais, mas também valores morais. A invenção das regras é, por assim dizer, um processo impuro em termos de rigorismo, pois vai atender a uma diversa ordem de valores e finalidades políticas, econômicas, sociais e de marketing pessoal. O desejo de uma semântica no Direito inicia-se, assim, de modo aleatório e pouco convincente. O instrumento do Direito deriva de uma gênese viciada pelos interesses que participam do jogo de linguagem. Além dessa imprecisão de finalidade da lei, é necessário lembrar que o tempo marca a figura do legislador e a escritura da lei, demonstrando um outro empecilho ao raciocínio formal se A hoje é B, em quarenta anos pode vir a ser F ou perder sentido na sua existência. A marca do tempo é incontornável e está ligada a função que o Direito cumpre, distintamente, de acordo com as exigências do tempo. A redução semântica aparentemente almejada para alcançar o reino da segurança jurídica, na verdade é indesejável. Para a própria funcionalidade do Direito ela deve manter um mínimo de abertura, seu fechamento ensejaria o colapso do sistema, tornaria visível a inconsistência dos postulados jurídicos e as contradições de suas intenções lógicas. Por outro lado a imposição de uma semântica única deixaria mais suscetível de evidência o fazer arbitrário do

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3 A SEMÂNTICA E O ENTORNO DAS REGRAS

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4  Ideia defendida por Katharina Sobota em: “Don’t Mention the Norm!”. International journal for Semiotics of Law, IV/10, 1991, p. 45-60. Tradução de João Maurício Adeodato, publicada no Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife, nº 7. Recife: Ed. UFPE, 1996, p. 251-273.

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Direito. Assim o arbitrário se impõe, mas em uma forma difusa, organizadamente desorganizada e com menor visibilidade através da escolha daquele que aplica a norma. Das incertezas o Direito vai construindo suas certezas em um eterno paradoxo, sua lógica é de manutenção e não de formas. Desse modo não podemos falar em uma realidade jurídica, mas sim em diversas realidades jurídicas (A; B; C; D). A realidade jurídica do legislador (A) nem sempre representa a realidade jurídica do aplicador, a linguagem natural em que se expressa o Direito é multívoca e faz surgir distintas possibilidades interpretativas (de fato, o que o legislador quis dizer com A?). A questão é não somente acerca da possibilidade de se alcançar uma interpretação única carregada de certeza, mas também versa sobre a existência dessa certeza ainda no âmbito da realidade do legislador. Uma norma A criada para regular uma situação B, muitas vezes não regula a situação B’, a norma se depara então não só com a maleabilidade de seu significado, mas também com a plasticidade dos fatos jurídicos. O mundo próprio do Direito apresenta entornos específicos de difícil abertura para falar-se na lógica como informante de um modelo de escritura jurídica. Embora possua a pretensão das formas certas, trabalha o tempo inteiro com a multiplicidade de possibilidades dos conteúdos incertos. A tradução dessa pluralidade se opera pelas vias interpretativas as quais têm seu maior relevo nos lugares de decisão. Mesmo que a idéia da lógica deôntica como inscrita no Direito ser bem aceita, sua observação nas zonas de aplicação do Direito demonstram sua limitação enquanto moldura para a concepção e as práticas jurídicas. Estabelecer proibido, permitido, obrigado no campo teórico do Direito se mostra viável, mas o contexto multifacetado da expressão do Direito na realidade revela a insuficiência do modelo deôntico. A incoerência do ordenamento somada ao aparato subjetivo do aplicador finda por invalidar uma subsunção lógica norma/ação, dado A nem sempre será B. Os impasses da linguagem normatizada resolvem-se com uso de outra linguagem, a linguagem interpretativa ancorada pela possibilidade dos múltiplos significados,“com respeito a essa variedade não é correto perguntar qual o significado correto, já que não existe um significado verdadeiro de uma palavra” (TUGENDHART, Wolf, 2005, p.9). O instante de aplicação do Direito e seu aparato hermenêutico permitem que o racional e o emotivo dialoguem para a decisão, processo facilitado pela não explicitação da norma4. A lógica diferentemente do Direito não trabalha com a interpretação, enquanto a interpretação pode dar numerosos resultados para a lógica isso não é desejável, nem possível. Como contornar esse problema e assinalar a lógica do Direito? O momento da interpretação é arbitrário, a imposição lógica também o é, contudo quando a lógica constrói dado A é B, ela elimina as possibilidades de que A seja C diferente de B, no Direito esse fechamento não existe, mesmo que uma decisão arbitrariamente diga que A

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-à B, outra decisão de maior força pode decidir por A à F. A linguagem lógica significando lógica formal parece inadequada ao Direito ou situar-se fora de seu entorno, possivelmente poderíamos optar pela negação de qualquer modelo lógico aplicado ao Direito, porém isso não seria exatamente seguro. Prefere-se aceitar o espaço da lógica no Direito e ressaltar sua função duvidosa (ou seria necessária?) de fornecer um formato de legitimação para as decisões jurídicas. Entende-se aqui a lógica antes como uma forma de apresentação da decisão, forjando silogismos, a um modelo aplicável ou reconhecido no Direito. O processo decisório muito antes de ser técnico é arbitrário e definido por impressões produzidas pela subjetividade, valorações sociais, morais, religiosas e outras, no entanto essa predisposição valorativa é negada pela ficção da neutralidade axiológica do juiz, assim estão fora do jogo de linguagem explícita. O momento do não-dito, da violação axiológica vem a ser preenchido pela ilusão do silogismo falsamente representado nos dispositivos finais da sentença. A força do não-dito resiste duplamente, uma vez deixando no espaço do implícito toda a carga indesejável utilizada pelo aplicador na interpretação fato/norma e depois obscurecendo o processo lógico, o qual exterioriza somente o necessário à legitimidade da decisão. Mesmo assim não é prudente negar a possibilidade mínima de uma formalização válida para um procedimento jurídico, no entanto essa observação se faz mais provável enquanto expediente ficcional e não puramente lógico.

O termo simulacro tem sido muitas vezes associado ao artificial, a um conjunto de ficções cujo valor é equiparável ao de uma verdade, ainda que os meios expressivos pelos quais é recebido sejam o que indica antes de tudo o seu valor. Através do simulacro é realizada a integração do falso para reformular uma teoria, a tensão lógico e ilógico no direito produz um simulacro que assimila uma falsa identidade lógica e cria um ambiente ficcional e estável onde operam as normas e os juristas. A necessidade de uma lógica aparente que torne o Direito aceitável frente aos outros sistemas supera a sua ilogicidade material com a criação de um simulacro onde suas incertezas formam certezas e suas regras possuem valor de verdade. O simulacro aparece assim como uma racionalidade do ceticismo e possui mecanismos próprios, sendo um deles a capacidade de inserir o próprio observador na observação. Para o jurista isso se apresenta como a crença quase lúdica em um sistema funcional, ele não está no fora, ele está dentro do sistema, logo o simulacro não é o falso, é o verdadeiro. Por esse mecanismo o jurista alimenta a crença no Direito enquanto sistema lógico e prestes a garantir o fetiche da segurança jurídica. Deleuze identifica o simulacro com um certo uso da linguagem que dá origem a formas consistentes e identificáveis como tais, aqui o simulacro revela uma potência natural para a

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4 LÓGICA DO SIMULACRO E A VERDADE DA CAVERNA

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo sendo difícil traçar representações lógicas válidas no Direito, não se pode con-

5  Termo utilizado por Deleuze para identificar as muitas possibilidades de criação.

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criação, em outras palavras a potência para a simulação5. O Direito se mostra pela força de sua palavra, não a palavra certa, a palavra que é, mas a palavra que vem a ser, são interposições de simulações que tão fortemente amparadas por um uso de uma linguagem própria se transformam na realidade. O simulacro jurídico está longe da ingenuidade, sua organização bem fundada possibilita sua invisibilidade, o ordenamento e a prática constituem uma ficção que funciona. Os solecismos no ambiente jurídico ganham outra representação simbólica, ao invés de representarem erros sintáticos e incorreções de linguagem, seus usos conseguem dar a entender o contrário daquilo que expressam e travestem-se da roupagem de verdade. Na lógica do simulacro não há compromisso com as verdades do mundo, nele as verdades são mais especificadas, seu ambiente cria suas próprias regras e produz uma esfera de subjetivação. Por esse raciocínio o Direito existe e persiste enquanto sistema estruturado compactado, como sujeito abstrato autônomo de interferência máxima no corpo social. É difícil reconhecer o Direito como simulacro, vez que a própria noção de simulacro ainda possui uma derivação negativa ainda proveniente da sua representação feita por Platão, o simulacro era a cópia ruim da mimesis, de fato aceitar uma teoria de verdade limitada mostrou-se inconcebível durante muito tempo. No entanto, parece que as verdades só se tornam possíveis e compreensíveis quando pensadas enquanto ficção, os tempos pós-modernos criam as realidades ficcionais ou o inverso. A tênue diferença entre o aborto e a antecipação terapêutica do parto representa uma simulação do diferente no ambiente jurídico, mas essa simulação torna possível o uso razoável do Direito. Uma vez que os artifícios utilizados pelo Direito são tão persuasivos, o reconhecimento do jurista frente a cada situação não é de questionamento, mas de crença na existência do sistema jurídico. Tal qual na alegoria da caverna platônica, os juristas estão presos a um sistema de crenças que cessa a capacidade crítica e o pensamento livre sobre o Direito, suas normas e sua função na realidade empírica. A doxa jurídica não somente ignora a descrição das normas e do Direito posto, como fabrica imagens para emprestar sentido ao jogo de simulação convincente. A caverna do Direito reproduz uma estrutura tão fortemente sedimentada que o jurista já não sabe com qual imagem-tipo se confronta, o real não é reconhecível, é criado. Os mecanismos de simulação do Direito facilitam sua existência autônoma, separada das explicações de outros sistemas. Com o simulacro, o Direito gira sobre seu próprio eixo, distanciando-se das demais ciências e tornando seu universo teórico e prático incompreensível para quem está no fora.

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cluir pela impossibilidade de qualquer formalização no espaço de aplicação e feitura das normas. Em termos de manipulação do pensamento para confirmação de legitimidade jurídica, a lógica tem uso fundamental prescindindo de validez. Apesar de possuir um grau de lugar-comum, vale reafirmar que o Direito é um ambiente de realidade ficcional, contudo é assim que ele funciona e talvez em outro formato se tornasse incomunicável. A diferença que marca sua artificialidade das demais está no fato da invisibilidade da ficção, o pensamento circular do jurista crê que o sistema é uma tradução semântica do Direito. Embora os princípios pragmáticos não estejam presentes na configuração inicial do jogo, eles surgem quando são necessários para a manutenção dos resultados previstos, eles não regem o Direito, mas são regidos pela ocasião jurídica. Não se fala em uma realidade jurídica, nem em uma única possibilidade lógica para o Direito. As realidades se apresentam em camadas, várias camadas de realidade que vão abrindo-se umas sobre outras e para cada realidade um jogo próprio e menor que converte para o jogo maior. E dessa forma aleatória o Direito tem tornado possível sua grande tarefa de possibilitar uma ordem social duradoura. Se a representação na lógica formal não é evidente, nem por isso se pode concluir pela exclusão de toda a lógica no sistema jurídico. O simulacro jurídico se mantém e de certo modo produz cópias do mundo e informa identidades para esse mesmo mundo. O simulacro de Direito não possui estrutura ontológica, sua estrutura é epistemológica e política. O questionamento sobre quais presenças lógicas ocupam essa epistemologia restam em aberto, mas algumas de suas funções estão evidenciadas.

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semântica. Artigo para publicação.

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reasoning. The pretension is to indicate how the substrates of truth in the legal universe are upported from the dialectic between illusion and reality, revealing a simulacrum structure. Keywords: Development; logic; Legal reasoning; simulacrum.

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LIBERDADE JORNALÍSTICA NA ERA PÓS-POLÍTICA: UMA QUESTÃO PARA A DOGMÁTICA? Veruska Sayonara de Góis1

1 INTRODUÇÃO O atentado ocorrido na França em janeiro de 2015, já lembrado como o “Massacre do Charlie Hebdo”, reacendeu os debates sobre as liberdades públicas, especialmente a liberdade de expressão e a liberdade jornalística. O ato terrorista contra o jornal humorístico francês Charlie

1  Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2005) e mestre em Direito Constitucional na UFRN (2009). Professora adjunta na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2004-atual) e advogada

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RESUMO O estudo localiza-se no campo da teoria constitucional, tratando do direito à liberdade de informação por parte dos jornalistas. Tal direito é expresso na Constituição Federal, desdobrando-se em ‘direito de se informar, direito de ser informado e direito de informar’. Questiona-se a liberdade interna do jornalista em seu exercício profissional, a partir da teoria dos direitos fundamentais implícitos e das liberdades políticas, em um tempo de aparente corrosão da democracia e da política. Através de pesquisa bibliográfica, conclui-se pela nota de fundamentalidade no direito à liberdade interna do jornalista, que, integrada à liberdade externa, conforma o direito de informar; o que não garante sua efetividade. PALAVRAS-CHAVE: Liberdade jornalística. Direitos fundamentais. Constituição. Dogmática.

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2 DIREITO CONSTITUCIONAL À INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA E LIBERDADES POLÍTICAS O desenvolvimento da teoria constitucionalista parece revelar costumeiramente novos direitos. O direito à liberdade de expressão é um exemplo ilustrativo dessa aparente infinitude, por conter uma diversidade de direitos e princípios relacionados, desdobrando-se, pelo menos, em direitos de liberdade artística, religiosa e intelectual.

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Hebdo deixou doze pessoas mortas, cinco feridas e uma plateia perplexa. Além das manifestações de solidariedade aos jornalistas, questionou-se o limite da liberdade de expressão, incluindo o humor politicamente incorreto utilizado no jornal Charlie Hebdo, bem o discurso de ódio. O caso é emblemático, e retrata as dificuldades de uma aparente, porém precária, liberdade jornalística. Gestado na tradição libertária, o jornalismo privilegia a prática das empresas e dos agentes institucionais, por meio de categorias como patrimônio, individualismo e autodeterminação. Essa prática pode ser vista no clássico jornalismo impresso e de caráter literário, ligado às tendências políticas; bem como no chamado Jornalismo 3.0, praticado em mídias móveis e na Internet, apoiado em patrocinadores e interesses econômicos, e refletindo as características da atividade empresarial, como cosmopolitismo, individualismo, informalismo e fragmentariedade. Podemos falar em uma captura dos jornalistas, enquanto agentes especialmente qualificados para informar, e em conflitos de interesses e direitos. Sob uma perspectiva jurídica, as liberdades de imprensa estão entre as mais clássicas - os direitos fundamentais de primeira dimensão, de caráter civil e político. A dogmática dos direitos fundamentais constitui uma página importante da Teoria da Constituição, sendo verve inesgotável para o constitucionalismo a pessoa humana no centro das discussões político-jurídicas. Como ilustração, pode-se falar do direito à informação, legado do iluminismo e das revoluções. Sendo direito fundamental expresso no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, desdobra-se no direito de informar, direito de ser informado e direito de informar. O próprio direito à informação conquanto direito com características que o autonomizam, pode ser compreendido como subespécie do direito à comunicação, que tem titularidade difusa e cunho político. Na pesquisa que ora se empreende, o recorte se dá sobre a liberdade jornalística no que toca ao direito de informar por parte do jornalista. O direito em pauta consiste, para esta categoria profissional, também um dever, sendo que a liberdade profissional e as garantias estão postas na Constituição Federal. A problemática proposta situa-se, dessa maneira, na fundamentalidade do direito à liberdade interna do jornalista, como direito fundamental implícito. Para responder à assertiva, a metodologia utilizada foi, preponderantemente, a bibliográfica.

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Essa liberdade importa a necessidade de expressão, sendo que a prática desse direito pode ter lugar no espaço privado das relações familiares e íntimas, mas também pode ocorrer no espaço público, a saber, o exercício da opinião, da crítica e do debate, ou no espaço da visibilidade. O espaço - ou esfera pública - configura a instituição midiática. Tais ‘media’ ou meios de comunicação, apesar de livres, são submetidos a uma regulação e inspiram atenção. A comunicação social, como um processo de comunhão dialógica com a sociedade, é reclamada em sua função ‘social’, em uma perspectiva institucional, de cunho pluralista e, portanto, conflitante com a orientação liberal.

A mídia é perpassada por marcos legais que, embora esparsos, constituem um sistema próprio, de forma que já se reclama um estatuto específico para o campo do Direito da Comunicação (CARVALHO, 2003, p. 83, nota de rodapé 124). Os documentos que dispõem sobre a comunicação social no país são, basicamente, a Constituição Federal, Lei de Direito de Resposta, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Segurança Nacional, outras leis esparsas que tratam das profissões de comunicador, bem como disposições da legislação comum, como o Código Civil. A Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), que tratava das liberdades de manifestação de pensamento e de informação, foi tida por inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e não possui validade no ordenamento jurídico brasileiro. Explica-se: o Supremo, quando provocado a analisar a Lei de Imprensa por Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), em decisão liminar suspendeu referida lei. Na cognição sumária, o relator, ministro Carlos Britto afirmou “que, em nosso País, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja” (Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em ADPF 130-7, p. 4). Sem lamentar o fim da Lei de Imprensa, lamenta-se a superficialidade do julgamento, que tinha os elementos para uma discussão histórica acerca de diversas liberdades, da necessidade de transparência do Estado e do novo papel da sociedade, mesmo em uma época “pós-política” (ZIZEK, 2001, p. 128). A compreensão do “pós-político” implica o viés contrário à convivência tida por polí-

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A ética e a deontologia do jornalismo colocam o acento tónico nas questões relativas à qualidade da informação, vista numa perspectiva de objetividade, de verdade e de rigor da informação (Laetilia, 1995) doa a quem doer (Traquina, 2002: 75). Este paradigma resulta, em grande medida, das transformações realizadas com a industrialização e profissionalização do jornalismo durante o século XIX (Chalaby, 2003), em que a objetividade, embora matizada no início do século (Schudson, [1978] 2010: 13 e ss), surgiu como um elemento central de uma nova comunicação pública. Mas tem também na sua génese o princípio utilitarista da imprensa como tribunal da opinião pública (Bentham [1822-1823] 2001), de um serviço destinado a vigiar os poderes públicos das ameaças constantes da corrupção do poder (Camponez, 2010: 70-72). (CAMPONEZ, 2014, p. 2)

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tica, à dissolução do Estado Democrático por mecanismos de segurança nacional (como o Ato Patriota, Estados Unidos da América do Norte) e a intolerância radical presente em atos fundamentalistas de natureza político-religiosa (como foi o caso do Charlie Hebdo). Uma noção similar de anti-política, em uma face nova, aparece nos manifestos sociais no Brasil, como um repúdio aos arranjos políticos tradicionais e ao partidarismo, bem como na eleição de grandes empresários para cargos eletivos (Donald Trump, para presidente nos Estados Unidos; João Dória para governador em São Paulo, Brasil, 2016). Esse viés se relaciona com a teoria do livre mercado e uma crescente cultura de consumo:

A corrosão da categoria “política” delineia-se ainda através das superlativas individualidades, na superficialidade da informação em um cenário dominado por fake news (notícias falsas) e pela violência contra o jornalismo, tradicionalmente encarado com viés civilizatório. Peter Sloterdijk associa a sociedade de massa à constituição de novas bases, distantes da perspectiva humanista. A invenção de um espaço contextual diferente da esfera literária para a atividade jornalística (os meios de comunicação) é vazada em um meio tempo de guerras, “em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet” (SLOTERDIJK, 2000, p. 14). Curiosamente, uma rede construída com finalidades militares foi responsável pela transformação no jornalismo. A Internet e a própria informatização cunham modelos econômicos, sociais e políticos, e, apesar de não mudar a essência relacional, parecem forjar de fato um mundo novo, cuja arena pública se traduz nos media. Admite-se que a Constituição já desenha um quadro com regras e princípios claros, tendentes a realizar o princípio democrático através da comunicação social (dispositivos do artigo 5º c/c artigos 220-224). Registra-se que o direito à comunicação é classificado por diversos doutrinadores como um direito de quarta (ou quinta) geração, de titularidade difusa e aplicabilidade imediata, devido à sua “fundamentalidade”, conceito tratado mais adiante. A concretização democrática dependeria desses direitos, fornecendo um elo importante para a ampliação do círculo de compreensão do direito à comunicação social (BONAVIDES, 2001, p. 13; 2006, p. 571). No âmbito de tal “comunicação”, poderíamos encontrar o direito constitucional à informação, expresso nos âmbitos do jornalismo, do entretenimento e da publicidade, com configurações diversas. O direito à informação desdobra-se em direitos de informar, informar-se e

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Por sua própria natureza, a sociedade de consumo contemporânea cada vez mais obriga as estruturas políticas a se adaptarem a ela. Na verdade, a teoria do livre mercado alega que não há necessidade de política, pois a soberania do consumidor deve prevalecer sobre todo o resto (...). Isso coloca em crise a própria função da cidadania (...) Essa evolução do mercado destrói a própria base dos procedimentos políticos (HOBSBAWN, 2009, p. 105-106).

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ser informado (FARIAS, 2004, p. 85). Funda-se no direito fundamental à informação, com objeto na informação jornalística, para indagar, aqui, sobre o direito de informar e as liberdades políticas. Como premissa, ressalta-se o caráter público dos meios de comunicação social, por estarem situados na esfera pública, voltados à divulgação, e acessíveis a um incontável número de pessoas, dada a sua base tecnológica de reprodutibilidade. A Constituição Federal de 1988 valorizou, em várias passagens, a informação como bem público, em contextos gerais e específicos (cf. Constituição Federal, artigo 5º, XIV, LX, LXIII, LXXII, artigo 93, IX, artigo 220, artigo 221). A categoria informação, embora de uso corrente, tem um sentido multifacetado e fugidio. Sua supervalorização está relacionada à ideia do conhecimento. Diferencia-se, entretanto, a informação da comunicação e do próprio conhecimento. A informação envolve inserção de elementos novos em um conjunto dado, sendo transmitida em um movimento comunicativo. Tampouco se confunde com conhecimento, assemelhando-se mais ao conteúdo que é transmitido, posteriormente acomodando-se na aprendizagem. Chamamos informação o acontecimento que emerge sobre o fundo estável de um horizonte de expectativas ou de configurações mais ou menos previsíveis. E os códigos (‘os interpretantes’ de Peirce) que estruturam nossa percepção, nossa língua, nossos jogos ou nossa cultura, em geral, constituem outros tantos filtros para fechar esse horizonte e tornar os fenômenos decidíveis, ou as jogadas apreensíveis (BOUGNOUX, 1999, p. 138-139).

Artigo 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, pretexto ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto neste Constituição. § 1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

Percebe-se que o âmbito do direito de informação jornalística foi amplamente estendido, devendo-se sopesar com parcimônia os seus limites, que, por certo, existirão. Amplitude não se confunde com absolutismo, tendo-se em vista existir uma reserva legal qualificada (MENDES, 1994, p. 298) ao final do primeiro parágrafo, onde se aponta a existência de outros direitos como linhas demarcatórias concretas ao direito de informação jornalística. O direito de se informar corresponde, então, no âmbito público, ao acesso às fontes de

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O direito à informação jornalística, em seus variados aspectos, pertence, em princípio, a todos. Possui, entretanto, gradações diferentes em relação à titularidade qualitativa. Depreende-se do texto constitucional uma posição de vantagem destinada aos jornalistas. Tão expansiva vantagem deve ser vista no contexto da função profissional jornalística e os interesses sociais daí resultantes.

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informação, opinião e debate, o que inclui a discussão sobre direitos autorais, fluxos informativos transnacionais e a inclusão digital, bem como acesso a dados públicos e/ou estatais (Cf. Lei Nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso à Informação). Os veículos de comunicação têm uma posição destacada, por serem os agentes principais no tratamento e difusão da informação. Isso porque, embora, em tese, as informações de interesse público estejam disponíveis nas fontes previsíveis, nem sempre o acesso é facilitado aos indivíduos enquanto particulares. Interpõe-se a mídia como mandatária do cidadão na busca desses informes e dados. O direito de se informar encontra baliza de sopesamento em outros direitos fundamentais. O direito de ser informado coloca-se na base desse mandato, reportando-se à garantia de uma informação veraz, diligente e plural. Os conceitos amplos ligam-se ao princípio democrático, insistindo na substância política do direito à comunicação, que tem como desdobramento o direito à informação. Os jornalistas são alguns dos mandatários da obrigação reflexa ao direito difuso de ser informado. Têm, pois, os periodistas, verdadeiro dever de informar. Segundo o relatório MacBride (Informe da Comissão Internacional para os Estudos dos Problemas da Comunicação da UNESCO):

E, por fim, existe o direito de informar, transmitir dados, informes, de diversas naturezas (científica, artística, jornalística, técnica). No caso específico dos jornalistas, a dimensão do direito de informar responde à necessidade de satisfazer a uma obrigação ou dever de informar. Pode-se arguir a excessiva funcionalização do direito de informar do jornalista e da responsabilidade das empresas de comunicação social, o que poderia transformar a faculdade em um dever-direito complexo e altamente restritivo (PEREIRA, 2002, p. 38). Malgrado o julgamento crítico quanto à função, existem restrições e responsabilidades necessárias para evitar um abuso de direito que resvale a extensão do mandato outorgado socialmente àqueles agentes, ainda mais quando se usufrui um largo espectro libertário. Os agentes responsáveis pela informação são os jornalistas, que têm liberdade profissional garantida constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 5º, XIII) e regulamentação profissional infraconstitucional (Consolidação das Leis do Trabalho, artigo 302-315). Segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943):

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“Los periodistas reclaman el derecho a buscar información sin obstáculos y a transmitirla con seguridad y rapidez; los directores y comentaristas reclaman el derecho a expresar sus opiniones libremente. El derecho a estar informado y a escuchar diversas opiniones pertenece en principio a cada ciudadano pero en la práctica depende de la libertad de los periodistas. Por supuesto, es cierto que todos debieran disfrutar el derecho a buscar y difundir información y a expresar opiniones, pero en virtud de que son vulnerables a las restricciones impuestas por las autoridades, los periodistas se encuentran a menudo, les guste o no, en la primera línea de defensa de la libertad” (MacBRIDE, 1993, p. 193).

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“Artigo 302. § 1º. Entende-se como jornalista o trabalhador intelectual cuja função se estende desde a busca de informações até a redação de notícias e artigos e a organização, orientação e direção desse trabalho.”

Aceita-se que a legislação pode atuar no fortalecimento da classe e da sua função, mas a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, constante do Decreto-Lei 972/1969 (dispunha sobre o exercício da profissão de jornalista) não mais persiste (conforme relatado, o citado Decreto foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal). Assim, hoje os cidadãos ou jornalistas empíricos podem exercer o ofício, resguardados as situações em que um concurso público ou empresa venha a requerer a qualificação. São paradigmáticas, no caso da liberdade de expressão, em sede do STF, as decisões de abolir a obrigatoriedade do diploma de jornalismo (Recurso Extraordinário RE 511961), a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (ADPF 130-7) e o caso Ellwanger (HC 82424). Segundo Lafer, no tocante ao pedido de Habeas Corpus (HC 82424) de Sigfried Ellwanger: Para a discussão jurídica dessa problemática, o Supremo Tribunal Federal deu inestimável contribuição ao decidir o caso Ellwanger. Como se lê no acórdão recémpublicado, o STF confirmou, em setembro de 2003, por 8 votos a 3, a condenação, pelo crime da prática de racismo, de Siegfried Ellwanger. Este vinha, no correr dos anos, dedicando-se de maneira sistemática e deliberada a publicar livros notoriamente anti-semitas, como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, e a denegar o fato histórico do Holocausto, como autor do livro “Holocausto - judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século”. O caso Ellwanger é um marco na jurisprudência dos direitos humanos, cuja prevalência na Constituição de 1988 é uma das notas identificadoras do Estado democrático de Direito (LAFER, 2004, s/p).

O entendimento foi de que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969, baixado durante o regime militar, não foi recepcionado pela Constituição Federal (CF) de 1988 e que as exigências nele contidas ferem a liberdade de imprensa e contrariam o direito à livre manifestação do pensamento inscrita no artigo 13 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 511961, em que se discutiu a constitucionalidade da exigência do diploma de jornalismo e a obrigatoriedade de registro profissional para exercer a profissão de jornalista. A maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, acompanhou o voto do presidente da Corte e relator do RE, ministro Gilmar Mendes, que votou pela inconstitucionalidade do dispositivo do DL 972 (STF, 2009, s/p).

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No caso do diploma, em controle difuso de constitucionalidade, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade da exigência do diploma de jornalismo e registro profissional no Ministério do Trabalho como condição para o exercício da profissão de jornalista,

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A decisão tem tendo como precedente a Opinião Consultiva OC-5/85 (13/11/1985, sobre a filiação obrigatória de jornalistas) da Corte Interamericana de Direitos Humanos (constituída no âmbito da Organização dos Estados Americanos). A mudança de estatuto do jornalismo e do próprio jornalista ocorre em meio às diversas dicotomias e a mais uma metamorfose do capitalismo. Longe do fim da história, o atual fluxo de instabilidade desafia qualquer profecia. A questão sobre a identidade dos jornalistas aparece como problemática quando, por exemplo, nos Estados Unidos, além das prisões de jornalistas por proteção de fontes, descobriu-se que o governo americano investigava ilegalmente diversos veículos de comunicação e jornalistas. O fato motivou a edição do ato normativo de Livre Fluxo de Informação pelo Senado americano, definindo quem é jornalista. Um ato legal que define artificialmente um filtro para a profissão, cujo objetivo é a vigilância desses profissionais, o que nos leva a outra questão. Tal circunstância salienta o problema da segurança dos jornalistas e das condições materiais de seu trabalho. Um relatório do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas enfatizou a necessidade de os Estados reforçarem mecanismos de proteção dos jornalistas no exercício da profissão. Nos termos do Relatório 33/L.6, de 26 de setembro de 2016:

Porém, com o advento do jornalista cidadão e do jornalismo mobile, qualquer pessoa filmando uma situação com seu smartphone pode se intitular jornalista. Em casos de conflito armado, em que o jornalista e o civil são equiparados, tendo a mesma proteção, isso não é problemático. Mas quando se trata de intervenção estatal, por exemplo, torna-se mais complexo não ter filtro de identidade profissional. O Relatório salienta fortemente a necessidade de adoção de medidas para proteção dos jornalistas e do exercício da profissão: “Teniendo presente que la impunidad por atentados y actos de violencia contra periodistas constituye uno de los principales obstáculos para la seguridad de los periodistas y que la rendición de cuentas por los crímenes cometidos contra ellos es un elemento clave en la prevención de atentados en el futuro, 1. Condena inequívocamente todos los atentados y actos de violencia contra periodistas

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“Consciente de que el derecho a la libertad de opinión y expresión es un derecho humano garantizado para todos, en virtud de los artículos 19 de la Declaración Universal de Derechos Humanos y del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y de que constituye uno de los pilares fundamentales de una sociedad democrática y una de las condiciones básicas para su progreso y desarrollo, Reconociendo que la labor de los periodistas los expone frecuentemente a peligros específicos de intimidación, acoso y violencia, cuya existencia suele disuadirlos de proseguirla o alienta la autocensura y, en consecuencia, priva a la sociedad de información importante, Profundamente preocupado por los abusos y las violaciones de los derechos humanos cometidos en relación con la seguridad de los periodistas y trabajadores de los medios de comunicación, que incluyen muertes, tortura, desaparición forzada, arresto y detención arbitrarios, expulsión, intimidación, acoso, amenazas y actos de violencia de outra índole” (ONU, CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 3).

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Mas o posicionamento do Conselho de Direitos Humanos da ONU tem a qualidade de se colocar a favor das liberdades e de cobrar dos Estados atuação mais específica, não obstante as dificuldades de se especificar o profissional jornalista, em algumas circunstâncias práticas.

3 LIBERDADE INTERNA DO JORNALISTA COMO DIREITO FUNDAMENTAL Falar em liberdade como direito fundamental soa à obviedade, uma vez que isso é enunciado formalmente na Constituição Federal, em seu artigo 5º, caput. Ademais, diversos incisos minuciam a liberdade, começando pela expressão: “é livre...”, significando-se o espaço da autonomia, faculdade ou permissividade outorgada pelo ordenamento. A autonomia é o espaço

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y trabajadores de los medios de comunicación, como la tortura, los asesinatos, las desapariciones forzadas, el arresto y la detención arbitrarios, la intimidación, las amenazas y el acoso, incluidos los atentados contra sus oficinas y medios de información o el cierre forzados de estos tanto en situaciones de conflicto como en otras situaciones; 2. Condena también inequívocamente los atentados específicos contra las periodistas en el ejercicio de su labor, que incluyen la discriminación y violencia por razones de sexo y género, la intimidación y el acoso en Internet o en otros medios; 3. Condena enérgicamente la impunidad reinante por atentados y actos de violencia contra periodistas y observa con gran preocupación que la inmensa mayoría de esos delitos quedan impunes, lo que a su vez contribuye a que se repitan; 4. Insta a los Estados a que hagan cuanto esté a su alcance por prevenir la violencia, las amenazas y los atentados contra periodistas y trabajadores de los medios de comunicación, por lograr que se rindan cuentas, mediante la realización de investigaciones imparciales, prontas, minuciosas, independientes y eficaces de todas las denuncias de actos de violencia, amenazas o atentados contra periodistas y trabajadores de los medios de comunicación que competan a su jurisdicción, por llevar a los autores de esos crímenes ante la justicia, incluidos quienes ordenen cometerlos o conspiren para ello, sean cómplices em ellos o los encubran y por cerciorarse de que las víctimas y sus familias tengan acceso a vías de reparación apropiadas; 5. Exhorta a los Estados a que creen y mantengan, en la ley y la práctica, um entorno seguro y propicio en que los periodistas ejerzan su labor de manera independiente y sin injerencia indebida por medios, tales como: a) la adopción de medidas legislativas; b) la prestación de apoyo a la judicatura para que considere la posibilidad de realizar atividades de capacitación y toma de conciencia y la prestación de apoyo para la capacitación y toma de conciencia entre los agentes del orden y el personal militar, así como entre los periodistas y la sociedad civil, acerca de las obligaciones y los compromisos que imponen el derecho internacional de los derechos humanos y el derecho internacional humanitario em relación con la seguridad de los periodistas; c) la vigilancia y denuncia periódicas de los ataques contra periodistas; d) la condena pública, inequívoca y sistemática de la violencia, y e) la asignación de los recursos necesarios para investigar esos actos y someter a juicio a sus autores índole” (ONU, CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 4).

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da decisão, das escolhas, do legítimo poder de agir desembaraçadamente. De maneira que, no próprio direito à informação, vela-se por uma proteção das liberdades, mormente a liberdade de situar-se no mundo como sujeito, posição que requer o máximo de esclarecimento e pluralismo. A informação é um fim para o agir no mundo fático, possibilitando o esforço de aprendizagem e conhecimento, procedimentalmente falando. O sistema democrático reflete a importância das posições individuais e coletivas decisórias, pois, seja na democracia representativa, seja na democracia participativa, as vontades são sublevadas à base da supremacia política, através do voto.

A informação coloca-se como categoria requisitada para a concretude da cidadania, sendo sua extensão ampla e intrincada. O próprio Estado enuncia e garante a liberdade de comunicação social como pressuposto democrático, o que se coloca como questão política embasadora das pretensões às liberdades dos jornalistas. A liberdade interna do jornalista inicia, por certo, com sua independente adesão à profissão. A liberdade profissional é direito fundamental, formalmente posto (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XIII) entre os direitos sociais e econômicos, abarcando, inclusive a proteção da relação de emprego. Verifica-se que a ação jornalística, efetuada nos meios de comunicação, estruturados empresarialmente ou como organizações mais flexíveis. Essas organizações têm um tratamento próprio, sendo qualificadas legalmente para determinados fins. A liberdade de comunicação é também a liberdade de imprensa levada a efeito nas empresas. A inovação tecnológica permite a atuação de jornalistas, que fazem às vezes de repórter, fotógrafo, editor, em empresas virtuais, ou em formatos tecnológicos peculiares, no fenômeno da convergência das mídias interativas, como é o caso dos blogs e do jornalismo em redes sociais como Facebook, Twitter e Instagran. No estudo em desenvolvimento, o recorte incide sobre a atuação nas empresas, visto o enquadramento normativo. Assim, três formas de liberdades são tidas por insertas na demarcação de liberdade de comunicação: 1) liberdade de comércio e de indústria, 2) liberdade de associação, 3) liberdade profissional (LEÃO, 1961, p. 35). Na organização produtiva, própria do espaço econômico, compete à empresa um papel de direção dos trabalhadores. Aqui, outro ponto, no tocante à vinculação de particulares à eficácia dos direitos fundamentais. O que dizer da vinculação dos sujeitos privados a tal eficácia? As relações no âmbito das empresas - especialmente se envolvem contrato e trabalho, podem ser denominadas privadas.

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O direito à informação, que compreende de modo amplo o direito a ser informado e a ter acesso às informações necessárias ou desejadas para a formação do conhecimento, constitui por certo, juntamente com o direito à vida, a mais fundamental das prerrogativas humanas, na medida em que o saber determina o entendimento e as opções da consciência, o que distingue os seres inteligentes de todas as demais espécies que exercitam o dom da vida. Trata-se, também, do pré-requisito mais essencial ao regime democrático (CASTRO, 2003, p. 437).

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Os profissionais jornalistas consideram a atividade jornalística como uma profissão liberal. Em sua grande maioria, são empregados assalariados. Trabalham para alguma organização, exercem funções, seu trabalho se insere num processo de fabricação, e estão submetidos a uma hierarquia de autoridade. (...) Esta tensão [de equilibrar os valores jornalísticos com a sobrevivência comercial] manifesta a dificuldade de conciliar o interesse público, ideia baseada na função da informação dentro das sociedades democráticas, e os interesses do público, noção relacionada à comercialização das notícias (CORNU, 1998, p. 84).

Neste cenário, o jornalismo passa por uma descaracterização, ao adaptar sua roupagem à da publicidade, tornando os limites fluídos e indiscerníveis, com acentuada presença do infotenimento ou fait divers, englobando o jornalismo de celebridades, por exemplo. O profissional

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Tal eficácia é tema de preocupação doutrinária e dogmática. Nas constituições europeias, em especial a portuguesa (“Constituição portuguesa, artigo 18.º (Força jurídica). 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”), a relação entre os entes privados aos direitos fundamentais vem explicitada. No Brasil, não existe norma expressa na constituição tratando da vinculação entre órgãos privados aos direitos fundamentais, o que não implica não poderem ser estes aplicados nas relações entre eles. Pensamos que os entes privados se encontram vinculados aos direitos fundamentais, como quaisquer entes públicos. Ao exemplificar esses direitos, lembramos o direito à indenização por dano moral e material decorrente de abuso de direito de livre manifestação (art. 5º, XII e V, da CF). Mas, para efeito de caracterizar o ‘ius narrandi’, ou direito de noticiar, usaremos o critério funcional legal, mormente nos serviços que, pelo avanço da técnica foram ‘alocados’ na reserva de atuação jornalística. Explica-se a seleção da liberdade interna do jornalista nestas atribuições (investigação, redação e divulgação), por centrarem a atuação no formato noticioso, de cunho informativo, mesmo que possa incluir opinião ou crítica. A notícia (matéria ou crônica, PEREIRA, 2002, p. 90), é o modelo informativo jornalístico, do qual podem derivar outros formatos, mas com as balizas mínimas exigidas àquela. Importado do ‘american way’ de fazer jornalismo, a notícia segue um método procedimental (PENA, 2005, p. 42-43). Esse processo é constrangido por diversas pressões e interesses, tanto de cunho editorial (envolvendo as decisões sobre critérios de noticiabilidade), quanto de natureza comercial, envolvendo os patrocínios, adesões políticas, subvenções estatais e guerra de influência. “Três coerções principais ameaçam a informação: o dinheiro, a urgência, as pessoas” (BOUGNOUX, 1999, p. 146). Espera-se o valor verdade presente na informação; mas a rotina de elaboração da notícia, dentro das arenas empresariais da comunicação social, ameaça constantemente esse direito.

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jornalista é cerceado, visto que seu trabalho obedece a condições de fabricação que retiram, em muitas das ocasiões, seu poder sobre o produto do próprio trabalho. A liberdade interna é proporção ou medida interna da liberdade de informar, esta ínsita no direito à informação. Não se pode perder de vista a multidimensionalidade do direito fundamental enumerado para efeito de análise do objeto, e, ao mesmo tempo, a especificidade objetiva da incensurabilidade de cunho constitucional. Liberdade interna compreensível como direito fundamental implícito, anexado ao direito de informar do jornalista. A liberdade novamente aparece aqui como aquele espaço clássico de um direito que se opõe a outros, exigindo uma abstenção de interferência indevida. Sobrepondo a noção ao caso concreto, tem-se um âmbito de autonomia do jornalista sobre o próprio trabalho, não estando condicionado a atividades que vão de encontro à sua consciência e aos parâmetros deontológicos da profissão. No mesmo plano, impõe-se aos detentores das empresas e aos responsáveis pela administração editorial um abster-se de ingerências no trabalho jornalístico. Essa negativação de comportamento não retira o poder de mando sobre as rotinas, mas sobre padrões de manipulação, distorção e omissão de informação coativamente sobre a notícia, construção jornalística. Pode-se dizer, sucintamente, serem inerentes ao direito à proteção contra perseguição, despedida arbitrária, intervenção na notícia de forma a modificar seu fundamento de verdade e seu significado, o que implica no respeito ao produto ‘notícia jornalística’ e à cláusula de consciência do jornalista. A cláusula de consciência, inserta no Código de Ética do Jornalista, refere-se à impossibilidade de o profissional atuar contra suas convicções morais e profissionais, no exercício do jornalismo. A moralidade aqui tratada deve ser entendida como a moralidade ética de cunho profissional, ou seja, própria do ‘ethos’ jornalístico. Porém, voltemos aos fatos. “Je suis Charlie” é o slogan pós-moderno correspondente às palavras de ordem da Revolução Francesa: “liberte, égalité, fraternité”. O ataque matou 12 pessoas e motivou a edição extraordinária de número 88 do Boletim Eletrônico da Federação Nacional dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ), que condenou e lamentou o ocorrido. Na verdade, inúmeras autoridades estatais e representantes de organizações defensoras dos direitos humanos emitiram declarações, já que o ato provocou uma comoção generalizada e representou outros mártires menos ilustres, como o repórter Sean Hoare. Suspeita-se que sua morte tenha ligação com sua profissão, embora a hipótese tenha sido descartada pela polícia. Sem falar dos jornalistas mortos pelo Estado Islâmico. Mas o que tem sido chamado de “11 de setembro da imprensa” apenas demonstra de maneira brutal a violência contra o jornalismo e os jornalistas, em suas várias formas de expressão. E diferentemente de outras profissões de risco, como policiais, agentes de saúde, pilotos, políticos, a estes profissionais da liberdade não é outorgada prerrogativa alguma, exceto a da fantasia glamorosa do destemor e audácia. Interessante perceber que a faceta à paisana de alguns heróis das histórias em quadri-

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nhos (HQ’s) seja a de jornalista: Super-Homem é o repórter Clark Kent; o Homem Aranha é o fotógrafo Peter Parker. Um arquétipo do homem normal que incorpora o “Complexo de Clark Kent” e todas as desvantagens do herói...

4 A PROTEÇÃO DOS JORNALISTAS EM UMA SOCIEDADE DE RISCOS

“1. No hay personas ni sociedades libres sin libertad de expresión y de prensa. El ejercicio de ésta no es una concesión de las autoridades; es un derecho inalienable del pueblo. 2. Toda persona tiene el derecho a buscar y recibir información, expresar opiniones y divulgarlas libremente. Nadie puede restringir o negar estos derechos Las autoridades deben estar legalmente obligadas a poner a disposición de los ciudadanos, en forma oportuna y equitativa, la información generada por el sector público. No podrá obligarse a ningún periodista a revelar sus fuentes de información. 3. El asesinato, el terrorismo, el secuestro, las presiones, la intimidación, la prisión injusta de los periodistas, la destrucción material de los medios de comunicación, la violencia de cualquier tipo y la impunidad de los agresores, coartan severamente la libertad de expresión y de prensa. Estos actos deben ser investigados con prontitud y sancionados con severidad. 4. La censura previa, las restricciones a la circulación de los medios o a la divulgación de sus mensajes, la imposición arbitraria de información, la creación de obstáculos al libre flujo informativo y las limitaciones al libre ejercicio y movilización de los periodistas, se oponen directamente a la libertad de prensa. 5. Los médios de comunicación y los periodistas no deben ser objeto de discriminaciones o favores en razón de lo que escriban o digan.” (DECLARACIÓN DE CHAPULTEPEC, adoptada por la Conferencia Hemisférica sobre la Libertad de Expresión Celebrada en Méxicom D.F. el 11 de marzo de 1994).

Intrigante é observar que inexistem garantias ao agente profissional do jornalismo – o jornalista. Apenas debate-se do ponto de vista estrutural externo, não se pensando a responsabilidade do próprio jornalista, posto na condição de “demagogo”, espécie de classe de “párias”,

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Como temos defendido, a profissão de jornalismo implica algumas premissas, como a ligação do jornalista com a democracia. Claro que o jornalismo depende de liberdade e de outras condições, reportando-se a um público virtual – a sociedade civil. Estabelece-se, então, a comparação do jornalista com o homem público, político, mandatário da confiança popular e, até certo ponto, representante dessa opinião pública. Outra premissa está no constitucionalismo mundial dos direitos humanos. É dizer: além das constituições nacionais, também pactos e declarações internacionais preveem a liberdade de expressão, de comunicação e de opinião. No tecido dessas liberdades, estaria a liberdade de informação jornalística (Opinião Consultiva OC-5/85, Corte Interamericana de Direitos Humanos). Sem prejuízo da Constituição e das declarações no sistema da ONU e da OEA, ainda temos os acordos como a Declaración de Chapultepec:

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sem classificação social precisa (Weber). Mesmo essa responsabilidade terá que ser compreendida estruturalmente, sim, mas a partir das possibilidades reais. Então, quais as possibilidades reais de um compromisso ético dos jornalistas, sem a participação do Estado? As experiências com os Meios para Assegurar a Responsabilidade Social dos Media mostram a impotência da autorregulação da mídia sem a participação do Estado (CAMPONEZ, 2014). Os mecanismos deontológicos frustram-se, perante a lógica mercadológica, expondo a tensão entre a filosofia do serviço público e a teoria liberal clássica da imprensa (ESTEVES, 2003, passim). Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a situação da liberdade de imprensa no continente americano segue enfrentando ameaças que vão desde a violência contra jornalistas até o uso de mecanismos legais, a aprovação de leis que restringem a prática da profissão e os ataques cibernéticos. Tal conclusão foi elaborada pelos 450 diretores de meios de comunicação e jornalistas que se encontraram na 72º Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), realizada na Cidade do México do dia 13 ao 17 de outubro de 2016.

Assim, diante das responsabilidades políticas do jornalista, enquanto titulares de um direito/ dever de informar, quais são as suas garantias? Onde se alicerça sua liberdade interna de seguir os preceitos éticos da profissão? Qual o elemento de identificação profissional, e quais as suas prerrogativas? Em que consiste o direito de proteção da fonte? Qual a proteção do jornalista contra o assédio moral? Enfim, se a atividade de mediação jornalística persiste, em nossos dias, e se atende a um direito humano/fundamental de informação factual, diária, de orientação social; se o jornalista é um agente político, que executa uma função pública importante, que direitos lhe são assegurados para cumprir o encargo, mandato, responsabilidade? Sem trocadilhos infames com as terríveis perdas humanas, “a vida do jornalista, entretanto, está entregue, sob todos os pontos de vista, ao puro azar e em condições que o põem à prova de maneira quem não encontra paralelo em nenhuma outra profissão” (WEBER, p. 83). De fato, nous sommes Charlie...

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O México ocupa o oitavo lugar no Índice de Impunidade do CPJ de 2015, que lista os países onde os responsáveis por crimes contra jornalistas ficam impunes. (...) Mas o México não é o único país da região com números altos de violência contra jornalistas e de impunidade. Colômbia, por exemplo, registra desde o ano 2000 mais de 100 casos sem solução de jornalistas assassinados. Enquanto isso, o Brasil é um dos países com maior número de agressões contra jornalistas na cobertura de manifestações públicas. Os assassinatos, no entanto, são “a ponta do iceberg”, de acordo com a SIP. A organização afirma que as mortes ocorrem quando os jornalistas já foram vítimas de intimidações, agressões e assédios. Na Bolívia, Colômbia, Equador, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Panamá e Venezuela, jornalistas e editores têm sido vítimas de ameaças e intimidações por parte de traficantes de drogas, grupos criminosos, autoridades locais, nacionais e militares. (HIGUERA, 2016, s/p).

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Assim, em um momento em que a democracia aparece tensionada ao máximo, sendo as regras do jogo duramente provadas; o jornalismo, seu irmão gemelar, também é açodado sob todos os pontos de vista de uma “sociedade de riscos”, colocando-se como uma questão basilar para se repensar o Estado e as liberdades políticas.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18e. São Paulo: Malheiros, 2006. _________________. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001. BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da comunicação. Bauru, SP: Edusc, 1999. CAMPONEZ, Carlos. Entre verdade e respeito – por uma ética do cuidado no jornalismo. In: Comunicação e Sociedade, vol. 25, 2014, pp. 110 – 123. Portugal, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho. CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Liberdade informação e o direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. CORNU, Daniel. Ética da informação. Bauru, SP: Edusc, 1998. ESTEVES, João Pissarra. A ética da comunicação e os media modernos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. HIGUERA, Silvia. Violência contra jornalistas, processos e ataques cibernéticos são as

https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/00-17588-violencia-contra-jornalistas-processos-eataques-ciberneticos-sao-principais-ameacas-l. Acesso em: 20/11/2016. LAFER, Celso. O STF e o racismo: o caso Ellwanger. In: Folha de São Paulo. Seção Tendências/Debates. São Paulo, terça-feira, 30 de março de 2004. Disponível na Internet: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3003200409.htm Acesso em: 27/09/2016. MacBRIDE, Sean (Org.). Un solo mundo, voces múltiples. Informe de la Comisión Internacional para el Estudio de los Problemas de la Comunicación. Mexico: Fondo de Cultura

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principais ameaças à liberdade de imprensa, diz SIP. Disponível em:

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Económica, 1993. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS, Relatório 33/L.6, de 26 de setembro de 2016. Disponível em: http://ap.ohchr.org/ documents/S/HRC/d_res_dec/A_HRC_33_L6.pdf, acesso em: 06/10/2016. PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005. PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Liberdade e responsabilidade dos meios de comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar em ADPF 130-7. Disponível: www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=130&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M

Acesso em: 08/07/2009.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário RE 511961. Íntegra da Decisão. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento. asp?numero=511961&classe=RE&codigoClasse=0&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo julga Lei de Imprensa incompatível com a Constituição Federal. Notícia. (Notícia). Disponível em: www.stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402, acesso em: 05/05/2009. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo decide que é inconstitucional a exigência de diploma para o exercício do jornalismo (Notícia). Disponível em: http://www.stf.jus.br/ portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=109717, acesso em: 27/09/2016.

ZIZEK, Slavoj. Did somebody say totalitarianism? Five interpretations in the (mis)use of a notion. Londres e Nova York: Verso, 2001. JOURNALISTIC FREEDOM IN THE POST-POLITICAL TIME: A MATTER FOR DOGMATICS? ABSTRACT The study is located in the discipline of constitutional theory, treating of the journalists’ right freedom of information. This right is expressed in the Federal Constitution, it deploying in the ‘right to be informed, right

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WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999.

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to be informed and right to inform’. The journalist’s internal freedom in his professional practice is questioned, based on the theory of implicit fundamental rights and political freedoms, at a age of apparent corrosion of democracy and politics. Through a bibliographical research, it concludes by the note of fundamentality in the right to internal freedom of the journalist, which, incorporate to the external freedom, conforms the right to inform; what does not ensures its effectiveness. KEY-WORDS: Journalistic freedom. Fundamental rights. Constitution. Dogmatic.

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O EXERCÍCIO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: UMA BREVE ANÁLISE DO VOTO DO MIN. RIBEIRO DANTAS

Em 15 de dezembro de 2016, a 5ª Turma do STJ, ao julgar por decisão unânime o Recurso Especial (REsp.) nº 1.640.084-SP, adotou o entendimento do Min. Ribeiro Dantas (Relator), no sentido de que o crime de desacato é inconvencional. O julgado em comento pode ser considerado de extrema relevância no que tange à concretização do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) no âmbito da Jurisdição brasileira. Apesar do entendimento não ser inédito, é inegável o avanço do STJ, através de sua 5ª Turma, em exercitar de modo explícito o controle de convencionalidade. Diante do potencial impacto que a presente decisão pode causar, necessário se faz que algumas considerações sobre a mesma, ainda que breves, possam ser feitas e colocadas em debate acadêmico. No que pertine aos fatos, conforme consta do relatório do acórdão, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou um indivíduo pela prática, dentre outros, do delito de desacato, previsto no art. 331 do Código Penal. O recorrente alegou que a previsão normativa do crime de desacato no ordenamento jurídi-

1  Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Direito pela UFRN e pela Universidade do País Basco (UPV/ES). Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (FDUC/PT) e pela Universidade do País Basco (UPV/ES). Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Pesquisador na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional.

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2  Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. 3  Em que pese outras questões terem sido debatidas, esse escrito limita-se a abordar o tema do controle de convencionalidade 4

Artigo 29. Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma Natureza.

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co brasileiro viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)2. Dessa forma, o fato seria atípico e o crime não existiu. Para tanto, fundamentou sua pretensão no posicionamento da Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Subprocuradoria-Geral da República, de forma bastante elogiável, emitiu parecer favorável com relação ao argumento da incompatibilidade do delito de desacato para com o art. 13 da CADH, fundamentando sua posição com base no entendimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na prevalência da CADH em caso de “colisão” com o direito interno e no reconhecimento do status supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. Com efeito, para o Ministério Público Federal, resta inviabilizada a condenação por desacato em virtude da sua incompatibilidade com o art. 13 da CADH. Adentrando especificamente no voto do Min. Ribeiro Dantas3, observa-se que foram trazidos os argumentos do TJSP para negar provimento à apelação. Em síntese, alegou a Corte paulista que a abolição de qualquer tipo penal somente poderia ocorrer por meio de lei; que o delito de desacato não é incompatível com a CADH; e, por fim, que a previsão do desacato insere-se na hipótese de responsabilidade ulterior, nos termos do item 2 do art. 13 da CADH. Felizmente, o voto tratou de afastar os argumentos trazidos pelo TJSP. Lembrou o Min. Ribeiro Dantas que os artigos iniciais da CADH preceituam acerca da obrigação de respeitar os direitos e sobre o dever de adotar as disposições de direito interno, destacando que incumbe ao Estado adotar medidas legislativas ou de outra natureza para solucionar eventuais antinomias normativas, bem como para tornar efetivos os direitos e liberdades consagrados no Sistema Interamericano. Além disso, foram invocadas as normas de interpretação previstas no art. 294 da mencionada convenção internacional. Logo após trazer à baila os dispositivos da CADH, o que já elogiável por si só, o Relator passou a lembrar de que o STJ e o Supremo Tribunal Federal já reconheceram o caráter supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, que a hipótese de conflito entre norma interna e a CADH acarreta na invalidação do direito estatal e não em sua revogação. Assim,

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5  O Min. Ribeiro Dantas cita a seguinte obra: MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v. 4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 6  Sobre o tema, vide: MOREIRA, Thiago Oliveira. O Necessário Diálogo Interjurisdicional entre a Jurisdição Brasileira e a Interamericana. In. MENEZES, Wagner (Org.). Tribunais Internacionais e a Relação entre o Direito Internacional e o Direito Interno. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 478 – 495. 7  Adotamos entendimento em sentido contrário, conforme disposto em: MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela Jurisdição Brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. 8  Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em 17/02/2017.

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vê-se que o magistrado, partindo das ideias expostas pela própria doutrina brasileira5, admite a sindicância de compatibilidade vertical entre a norma estatal e o DIDH. Para além da referência à doutrina internacionalista, buscando fundamentar o dever dos juízes nacionais de exercerem o controle difuso de convencionalidade, o Min. Ribeiro Dantas colaciona o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), manifestado no Caso “Almonacid Arellano”. Trata-se do que a doutrina costuma chamar de Diálogo Interjurisdicional6. Muito embora o diálogo dos tribunais brasileiros com a Corte IDH não seja uma praxe (infelizmente), louva-se a iniciativa do voto ao buscar adimplir com as determinações da jurisdição interamericana. Preocupado com uma eventual alegação de incompetência da 5ª Turma do STJ para declarar a invalidade da norma contida no art. 331 do CP, o Min. Ribeiro Dantas afirmou que há nítida diferença entre os controles de constitucionalidade e convencionalidade, assim como relembra que os tratados internacionais de direitos humanos possuem hierarquia supralegal, em regra, no Brasil7. Dessa forma, com base no art. 105, III, ‘a’ da CF, cabe ao STJ julgar, em recurso especial, as causas decididas em última instância pelos Tribunais dos Estados, quando a decisão recorrida contrariar tratado. De forma, ao meu sentir, equivocada, o Min. Ribeiro Dantas reconhece que apenas os tratados internacionais de direitos humanos incorporados pelo rito específico do § 3º do art. 5º da CF, conforme já decidido pelo (STF), são de hierarquia constitucional e, portanto, servem de parâmetro para controle de constitucionalidade, vez são equivalentes às Emendas Constitucionais. Assim, não há que se falar em usurpação de competência do STF e da necessidade de observância da cláusula da reserva de plenário. De toda forma, resta reconhecida a competência da 5ª Turma para o exercício do controle de convencionalidade, seja por determinação da Corte IDH ou por interpretação da Constituição Federal. Ao passar à análise dos dispositivos em confronto, art. 13 da CADH e art. 331 do CP, o Relator destaca o posicionamento da CIDH, que atesta a prevalência do art. 13 da CADH, notadamente através do Relatório sobre a Compatibilidade de Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1995), bem como o Caso “Palamara Iribarne”, em que a Corte IDH condenou o Chile, afirmando que a imputação do crime de desacato violou o direito à liberdade de expressão. Além disso, robusteceu os seus argumentos ao referenciar a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão8. Talvez um dos poucos pontos polêmicos da decisão em análise seja o fato do voto afirmar que “as recomendações da CIDH assumem força normativa interna”. O Min. Ribeiro

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9  Disponível em: http://emporiododireito.com.br/juiz-de-santa-catarina-reconhece-a-incompatibilidade-do-crime-de-desacato-com-a-convencao-americana-de-direitos-humanos-e-absolve-acusado/. Acesso em 17/02/2017. 10  Disponível em: https://esaj.tjsc.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2J0000CUE0000&processo.foro=91&uuidCaptcha=sajcaptcha_927b3836ff2d4fd9a53d9511fdd6a7d6. Acesso em 17/02/2017. 11  Disponível em: https://esaj.tjsc.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=0N000MCYC0000&processo.foro=23&uuidCa ptcha=sajcaptcha_ececaffff59c47c393394198feaa3884. Acesso em: 17.02.2017 12  Para compreender o conceito de Jurisdição Cooperativa, vide: MOREIRA, Thiago Oliveira. Implicações do Modelo Häberleano de Estado Cooperativo na Jurisdição. In. FRIEDRICH, Tatyana Scheila; RAMINA, Larissa. Coleção Direito Internacional Multifacetado: convergências e divergências entre ordens jurídicas. v. 5. Curitiba: Juruá, 2015, p. 275 – 298. 13  Atualmente, vinculada ao Departamento de Direito Privado da UFRN.

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Dantas fundamenta a assertiva com base no Caso “Loayza Tamayo”, no princípio da boa-fé, assegurado pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, e na doutrina de André de Carvalho Ramos. Nesse ponto, há forte corrente em sentido contrário, cujos principais argumentos são a ausência de fundamento na CADH e a inexistência de previsão na Constituição. Muito embora o Min. Ribeiro Dantas ainda destaque outros argumentos para fundamentar a invalidade do delito de desacato, convém fazer elogios ao “Diálogo das Cortes”. Muito embora não seja um precedente obrigatório para os tribunais brasileiros, o Relator cita a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Lewis v. City of New Orleans (1974), em que foi declarada a inconstitucionalidade do delito de desacato. Já próximo das conclusões finais do voto, o Min. Ribeiro Dantas observa que o afastamento da tipificação criminal do desacato não obstaculiza a eventual responsabilidade civil ou mesmo o enquadramento em outros tipos penais, na hipótese de abuso de expressão ofensiva ao funcionário público. Em suma, a decisão em comento é um exemplo claro de exercício do controle de convencionalidade por parte do STJ e de reconhecimento do dever de aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pelo Judiciário brasileiro. A decisão da 5ª Turma do STJ já ressoa em outros órgãos jurisdicionais brasileiros. O juiz Fernando de Castro Faria (TJSC) absolveu sumariamente um acusado pelo delito de desacato9. Para tanto, fundamentou sua decisão10 nos mesmos argumentos já ventilados (atipicidade do fato, superioridade normativa da CADH, inconvencionalidade), bem como fez referência expressa a recente decisão do STJ, proferida no REsp. em comento, e a um precedente do próprio TJSC. Não se pode deixar de mencionar que, aos idos de 2015, portanto, antes de fixado o entendimento da 5ª Turma do STJ, o juiz Alexandre de Morais da Rosa prolatou sentença absolvendo um indivíduo acusado de ter praticado o delito de desacato11. O principal fundamento foi justamente a incompatibilidade entre o crime de desacato e a tutela a liberdade de expressão conferida pelo art. 13 da CADH. Espera-se que esses bons exemplos de concretização do DIDH sejam seguidos por outros juízes e tribunais brasileiros, pois somente dessa, será possível falar em uma Jurisdição aberta ao Direito Internacional, ou seja, numa Jurisdição Cooperativa12. Na qualidade de professor da disciplina Direito Internacional dos Direitos Humanos13, só me resta aplaudir o voto do Min. Ribeiro Dantas e torcer para que outros magistrados brasi-

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leiros apliquem o disposto em tratados internacionais de direitos humanos, exercitem o controle de convencionalidade e estabeleçam um diálogo interjurisdicional, seja com outros tribunais domésticos e/ou com os órgãos de monitoramento e controle do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Por fim, são julgados como esse que me fazem ter esperança em uma futura interamericanização da magistratura brasileira, afinal, todo juiz nacional é um juiz interamericano.

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PSICOPATIA E CÁRCERE: UM ELEMENTO FULCRAL DA CRISE PRISIONAL BRASILEIRA Lauro Ericksen1

1 INTRODUÇÃO A atual crise no sistema de segurança pública e também no sistema carcerário brasileiro é aberrante e colossal. Trata-se de um sistema conjunturalmente deficiente e falido, o qual acaba por ocasionar danos indeléveis à sociedade. Dentro dessa problemática estrutura, o presente artigo visa abordar um elemento específico dentro dessa crise, a mistura entre presos

1  Doutor, mestre e bacharel em Filosofia (UFRN), especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM-RJ), bacharel em Direito (UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região. Possui livros e artigos publicados na área do Direito e da Filosofia. lauroericksen@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8447713849678899

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RESUMO O artigo tematiza a psicopatia como um dos elementos definidores da atual crise do sistema de segurança público e do sistema carcerário brasileiro. Objetiva apresentar que a mistura de presos comuns e presos doentes mentais é uma das causas dessa crise. Em sua metodologia tem como referencial teórico a teoria do inconsciente coletivo da psicologia analítica de Carl Jung. Resulta que a luta antimanicomial e o pretenso tratamento humanitário de presos psicopatas apenas agravou e disseminou a psicopatia de forma institucionalizada nos estabelecimentos de detenção. Conclui que os ativismos antipsiquiátrico e antimanicomial contribuem para o fracasso do sistema penal e agravam a crise da segurança pública no Brasil. Palavras-chave: Sistema carcerário; Psicopatia; Crise Institucional.

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comuns e presos doentes mentais dentro dos presídios brasileiros e qual a extensão dos danos causados por essa irresponsável conjunção entre dois tipos de apenados bastante distintos. Há de se compreender, desde o início, que há uma multiplicidade patente de elementos e de causas que originam o problema da situação carcerária no Brasil, todavia, o artigo em apresentação não tem o escopo, tampouco a robustez, de apresentar uma solução definitiva e total sobre o tema. Por causa dessa impossibilidade material, ele se foca no quesito apresentado, não se imiscuindo em questões logísticas ou econômicas que levaram ao atual contexto de crise institucional. Assim, há de se debater a questão proposta sob um viés teórico bem definido, qual seja, o da disseminação da psicopatia criminosa a partir dos arquétipos do inconsciente coletivo (no original: kollektivesUnbewusstes) da teoria da psicologia analítica de Carl G. Jung. A partir desse referencial teórico, é possível se compreender como a reprodução inconsciente desses arquétipos criminosos se espraia indefinidamente dentro e fora dos estabelecimentos prisionais, sem controle algum, e até mesmo com o incentivo teórico do que se denominou chamar de luta antimanicomial, que em breves linhas, é o ativismo político-ideológico-social que clama pelo fechamento de instituições especializadas no tratamento de doentes mentais, sob o pretenso argumento do tratamento humanitário e que não há nenhuma diferença substancial na estrutura psiquiátrica desses apenados e do restante da população. Dessa maneira, o artigo busca desenvolver o argumento de que a mistura entre os presos é algo triplamente danoso, para eles próprios, para os demais apenados do sistema judiciário e para a população como um todo que sofre direta ou indiretamente os efeitos da naturalização generalizada da psicopatia. A institucionalização da loucura e da insanidade levou, ainda que parcialmente (não é a única causa, ressalte-se), à crise do sistema carcerário brasileiro, e de forma mais abrangente, do problema da segurança pública. Outrossim, intentar-se-á desenvolver o argumento exposto, sugerindo que parte da legislação que trata sobre o assunto é disforme, lacônica e contraditória.

O presente trabalho parte da premissa que criminosos que são considerados doentes mentais não podem repartir o mesmo local de cumprimento de pena que outros condenados que não possuam essa condição mental. Esse argumento encontra lastro no entendimento que a luta “antimanicomial”, disseminada perenemente no ordenamento jurídico por meio da lei n. 10.216 de 6 de abril de 2001 (usualmente conhecida como reforma psiquiátrica brasileira), acabou por legalizar a mistura de presos comuns com presos desafiados mentalmente, o que seria uma das causas da atual falência do sistema carcerário brasileiro. Não se pode olvidar em reconhecer que no transcorrer histórico alguns excessos foram cometidos com alguns grupos de pessoas injustamente segregadas do convívio social por meio

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2 PSICOPATIAS E CRIMES: O CÁRCERE, O INCONSCIENTE COLETIVO E A NORMALIDADE

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2  Psicopatia é um termo deveras abrangente tanto na literatura médico-psiquiátrica, quanto na literatura psicológica. Literária e filosoficamente já foi tratada como melancolia, loucura ou insanidade. A despeito dessa polissemia inerente ao termo, o presente artigo quer dar destaque a um único sentido de psicopatia, a sua noção criminosa ou associativa à práticas delitivas. Assim, no decorrer do texto quando se fizer referência à psicopatia, psicose ou insanidade, quer se abranger um conjunto de condutas delitivas associadas à condução doentia desse tipo de apenado, não se juntando nessa miríade comportamental condições psiquiátricas também caracterizadas como desafios mentais que não demandam, necessária e compulsoriamente, a restrição da liberdade individual da pessoa humana. Essa breve explanação se faz necessária para prevenir que a pecha “higienista” ou “fascista” seja aposta indelevelmente ao texto antes mesmo de uma análise mais aprofundada do que está sendo aqui debatido e proposto.

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de locais específicos para a sua estadia a margem da sociedade, como os leprosos das narrativas bíblicas, até mais recentemente homossexuais e/ou ciganos (nos regimes Nacional-Socialista da Alemanha, e Socialista da União Soviética, que no final das contas implementavam políticas, nesse quesito, bastante similares). A questão posta como fundamental nessa exposição não é a classificação de certos comportamentos ou condições hoje considerados normais (ou usuais) como dignos de enquadramentos de doenças mentais, e sim a consideração de que apenados que são também doentes mentais diagnosticados não podem se misturar ao restante da população carcerária nacional, como se fosse possível lhes prover o mesmo tratamento, de forma indistinta. Ao se agrupar no mesmo local ou estabelecimento de cumprimento de penas restritivas de liberdade presos comuns (sãos mentalmente) e presos considerados doentes mentais o que há é uma verdadeira disseminação incontrolada de uma condição mental específica que passa a ser disposta como “normal” ou “aceitável” dentro da mesma instituição que busca dar uma reeducação penal ao indivíduo. Mesmo que se parta do pressuposto de que as instituições penais não devem ser apenas punitivas, mas em grande medida também reeducadoras e que consigam reintegrar o apenado à sociedade, há de se ter em mente que há pessoas com a sua estrutura psiquiátrica tão fortemente abalada que não são passíveis de reintegração. Elas não são passíveis de reeducação ou reintegração não por uma falha do Estado em prover tal recuperação, mas por uma questão pessoal e individual que a impede do convívio social (ainda que parcial ou assistido). Não admitir esse limite de possibilidade da atuação psiquiátrica do Estado perante os apenados (com problemas mentais ou não) e diante da sociedade expor todos a um risco sem o menor parâmetro de cálculo e que os atinge reciprocamente de um modo avassalador. Tratar todos igualmente com o devido respeito, como preceitua o texto constitucional, não equivale a trazer a insanidade ao nível da sanidade dentro dos alojamentos de cumprimento de penas restritivas de liberdade, a privação da liberdade no caso dos doentes mentais tem uma tripla função: prevenir que eles próprios ponham sua vida em risco; prevenir que eles atentem contra a vida dos demais apenados que não possuem distúrbios mentais, e; prevenir que os doentes mentais atentem contra a integridade dos membros da sociedade em geral (não apenados). Partindo-se sempre do entendimento que os apenados comuns e os demais membros da sociedade não se atentam reciprocamente caso o cumprimento da pena seja efetuado em locais adequadamente destinados a esse fim (reeducação e reintegração social). Não se parte da noção primordial que os doentes mentais são totalmente irrecuperáveis e jamais poderão vislumbrar um retorno ao convívio social, apenas deve-se entender que, a princípio, seu grau de psicopatia2 exige uma internação compulsória carcerária diferenciada,

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para que a sua conduta delitiva psicótica (ou psicopata em sentido mais amplo) não se espraie dentro da própria unidade prisional. O primeiro bem a ser protegido dentro do contexto apresentado não é a condição individual do próprio apenado doente mental (afinal de contas a sua liberdade ser restrita é um dos consectários lógicos do cumprimento da pena a qual ele foi condenado), e, sim a segurança coletiva de modo geral. Ao se tangenciar a questão da psicopatia e da coletividade é necessário se deixar assentado que o referencial teórico utilizado para tal assertiva é calcado na teoria do inconsciente coletivo de Carl Jung (2000, p. 53). Para tanto, faz-se necessário trazer breves conceitos a respeito dessa noção psicológica que lastreia o argumento da separação entre esses dois tipos de apenados (comuns e doentes mentais). Jung parte do pressuposto que o inconsciente individual é diferente do coletivo. O inconsciente individual é composto de “complexos”, que são basicamente conteúdos mentais outrora conscientes, mas que adquiriram a condição de “inconscientes” a partir do avanço temporal, por meio de repressões ou esquecimento (involuntário). Diferentemente, o inconsciente coletivo é formado por arquétipos, os quais jamais foram conscientes, ainda que parcialmente, na formação da psique do indivíduo. Os arquétipos possuem uma intrincada concepção a partir de “motivos” ou “temas” psicológicos, que remontam, em termos de religião comparada, a “categorias da imaginação”, ou seja, são elementos caracterizados como “pensamentos elementares” ou “primordiais” que povoam culturalmente o ideário de alguma população ou parte dessa população. Assim, mais importante que compreender detidamente quais são as origens ou os modos de formação desses “pensamentos” que compõem essa modalidade do inconsciente coletivo, é mais importante entender como esses caracteres mentais podem ser apreendidos “hereditariamente”, como diria Jung, como uma potencialidade reprimida de uma classe ou grupo social (ROCHA FILHO, 2007, p. 44). Em outras palavras, dentro do contexto a ser explanado nesse breve artigo, psicopatia generalizada em uma instituição de cumprimento penais judiciais finda por se alastrar indefinidamente, “contagiando” coletivamente o inconsciente de todos os apenados que lá se encontram. Certamente, existe uma miríade de tratamentos paliativos ou específicos que podem ser utilizados nos casos dos apenados doentes mentais, no entanto, o escopo primordial no tratamento dispensado deve se ater à contenção da psicopatia no menor raio de ação possível, e, que ela não venha a ser tratada como uma condição institucional corriqueira ou contumaz, como há de se depreender que ela é encarada no atual sistema carcerário brasileiro, que costuma misturar os dois tipos de presos de forma indistinta como se estivesse dando um tratamento “humanitário” ou “igualitário” aos doentes mentais, desprezando a condição sã dos demais apenados e não se incomodando com os potenciais danos futuros que esses apenados podem causar do lado de fora, seja quando forem “reintegrados” à sociedade (ainda que não possuam a mínima condição para tal, por meio de progressão de regimes – do fechado ao aberto) ou até mesmo pela reprodução comportamental inconsciente nos dias de visita ou demais contatos com o público externo.

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3  A situação no Estado do Rio Grande do Norte exibe atualmente sinais críticos da crise da segurança pública e do sistema carcerário, no entanto, o problema não foi gerado unicamente no presídio de Alcaçuz, o qual foi utilizado como exemplo, em virtude do massacre e pelo vilipêndio horrendo ocorrido no ano de 2017. O problema no Estado se alastra desde os idos 80, quando a principal cadeia pública do Estado, a Doutor João Chaves, era jocosamente apelidada de “Caldeirão do Diabo”, em virtude dos macabros ocorridos em seu interior. Atualmente desativada, nos anos 90, com a trupe de “Paulo Queixada”, “Naldinho do Mereto” e “Demir“, a cadeia experienciou o auge da psicopatia institucionalizada, com decapitações, esquartejamentos de presos, e “degustações” de sangue humano servidos em copos americanos, entre os próprios detentos, todos eles diagnosticados com psicopatologias graves. Assim, percebe-se que desde esse tempo, a mistura entre presos comuns e presos doentes mentais já era problemática e horrenda, algo que apenas veio a se repetir em Alcaçuz, com mais episódios de esquartejamento, decapitações e até mesmo “churrasco de carne humana”. Canibalismo, rituais satânicos com sangue humano e decapitações foram comportamentos reproduzidos no ideário coletivo e inconsciente como normais a partir da institucionalização da psicopatia nos mencionados estabelecimentos prisionais. 4  Vide:http://novojornal.jor.br/cotidiano/por-que-lider-do-pcc-ganhou-prisao-domiciliar-em-natal

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Travestido sob a falaciosa argumentação de conceder tratamento “humanitário” aos apenados doentes mentais, o que a luta antimanicomial intenciona fazer é tratar desiguais igualmente, para se utilizar de uma breve parêmia aristotélica, e não tratar desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades, respeitando, assim, suas características mais pessoais, dentre as quais é salutar a incapacidade do convívio social sem a prática delitiva costumeira em virtude de sua condição psicótica. Agindo assim, sob o viés “do politicamente correto”, a rejeição da “insanidade” do apenado em prol de sua igualdade perante os demais finda por disseminar a psicopatia de um modo silencioso e subversivo, por meio dos arquétipos jungianos outrora mencionados, rememorados como estruturas básicas e universais da psique, os padrões formais de seus modos de relação (HILLMAN, 1992, p. 22). Mais perigoso do que um apenado doente mental junto de outro de mesma condição psiquiátrica é quando ambos se encontram em um ambiente a princípio dissociado dessa condição doentia e que passa a ter tal condição debilitadora disseminada institucionalmente. Há de se ter em conta que o complexo sistema carcerário não encontra-se esfacelado unicamente por causa da mistura entre apenados comuns e doentes mentais, essa não é a única e exclusiva causa de sua falência, seja ela econômica ou moral. No entanto, essa condição de psicopatia institucionalizada em prol do tratamento “humanitário” é uma das causas substanciais de sua derrocada. A repetição desse modelo carcerário após a década de 1980, e que perdura até os dias atuais, é uma causa da formação de verdadeiros centros criminosos dentro dos presídios brasileiros, podendo ser citados nesse leque desonroso o presídio de Pedrinhas, no Maranhão, e mais recentemente, o de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte3, com dezenas de detentos mortos pelos próprios detentos, como resultado da apontada psicopatia degenerada e tratada como uma mera circunstância casual dos apenados lá recolhidos. O último caso referido é tão aberrante e denota como a mistura entre os dois tipos de presos é danosa ao próprio sistema carcerário que um dos apenados (líder de uma facção criminosa4, ressalte-se), após os massacres ocorridos durante as rebeliões, foi transferido do regime fechado (onde se encontrava e onde “pode ter participado” de atos delitivos cruéis) para o cumprimento de prisão domiciliar por 6 meses, por ser portador de “psicose epilética” (diagnóstico no Código Internacional de Doenças no F06.8 como “Outros transtornos mentais especificados devidos a uma lesão e disfunção cerebral e a uma doença física” ou “Psicose epiléptica SOE”). Ou seja, a luta antimanicomial em seu delírio irrestrito conseguiu retirar do cárcere

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5  Foucault, particularmente, prefere supor que a internação compulsória é um instrumento de poder (fragmentário e horizontalizado) a se entender que os criminosos merecem pagar por seus delitos. Sua suposição é que a experiência existencial de cada um ratifica a vida extremada como aprouver a cada um, a experiência de ser no mundo varia profundamente, não podendo ser classificado como louco quem tem experiências diversas do usual, ainda que isso inclua matar, esquartejar ou beber sangue humano...

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comum (local inadequado para o cumprimento da pena, no caso dado), um preso que deveria estar acomodado em um local específico para tratar do seu problema mental (doentes mentais eram mandados para “manicômios”, mas esse tipo de instituição está em desuso), sendo preferível manda-lo para cumprimento de prisão domiciliar, expondo-o ao público externo, para a sociedade de modo geral, alguém com um comprovado histórico delitivo e de doenças mentais (a princípio, incuráveis). Esse tipo de defesa “humanitária” prefere expor os doentes mentais ao convívio social (e à reiterada prática delitiva de alto grau de periculosidade e de crueldade) a colocá-los em instituições que restrinjam de modo seguro e adequado suas ações e seu comportamento delitivo. A luta antimanicomial pode ser considerada como sendo também antipsiquiátrica (FOUCAULT, 1994, p. 45), nesse contexto, os conceitos de sanidade e loucura são construções sociais que não refletem padrões quantificáveis de comportamento humano e que antes são apenas indicativos do poder dos “saudáveis” sobre o “demente”5. Não há loucos ou sãos, todos são normalmente iguais, segundo tais premissas. Todavia, tais ativistas não atentam (ou não se importam) que o dano ocasionado por esse tipo de tratamento “humanitário” é muito maior e mais aberrante que qualquer recuperação pessoal que porventura possa servir de paradigma para suas colocações. A desventura desse tipo de apenado, como já exemplificado acima, denota que a disposição de todos os tipos de presos no mesmo tipo de acomodação institucional para o cumprimento das respectivas penas é algo fadado ao insucesso e ao fracasso. Não apenas o fracasso do próprio sistema prisional ou carcerário brasileiro, pois as disputas, as brigas e todo o tipo de violência praticado pelos internos contra eles mesmos ou contra os agentes penitenciários responsáveis pela sua segurança não fica restrito apenas aos muros de seu próprio cárcere, é algo que atinge outros presos (a princípio, outrora, sãos) e atinge, principalmente, o público externo, a sociedade como um todo, lançada no mar de psicopatia gestada nos cárceres e depois vomitada com toda a força e pujança no seio social, totalmente desprevenido e despreparado para tratar com doentes mentais ávidos pela reiteração delitiva a saciar sua crueldade (in)sana. A luta antimanicomial prima pela rejeição de estabelecimentos especializados no tratamento dos doentes mentais, porque o “manicômio” é a tradução mais completa da exclusão, do controle e da violência (física e simbólica) (VASCONCELOS ET AL, 2002, p. 33). Certamente, esses pensadores devem olvidar levar em consideração os potenciais danos que a ausência de internação de doentes mentais causa aos outros detentos e a sociedade como um todo. Já que tanta violência contra os doentes mentais perpetrada, depois de cessada, não retorna de nenhuma forma em benefício à sociedade, tampouco ao próprio sistema carcerário brasileiro, deve-se pensar a real dimensão que a luta antimanicomial visa atingir. Ou seja, seus objetivos parecem não beneficiar de modo algum nenhuma das três pontas do sistema carcerário, nem

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6  Ressalte-se que os exemplos fornecidos de modo bastante breve no presente artigo não apenas mostram casos simples de infringência da lei, até mesmo em seus artigos mais graves, como no caso do que trata sobre o homicídio (art. 121 do Código Penal). Muito pelo contrário, os casos indicados sempre envolvem o que há de mais grotesco e macabro no comportamento psicopático dos apenados: mutilações, esquartejamentos e rituais envolvendo sangue humano. Esse elemento aberrante que justifica o caráter psicopata dos envolvidos atesta por sua insanidade, e clama por um tratamento diferenciado, o qual, os ativistas antimanicomiais e antipsiquiátricos teimam em asseverar que inexiste. Ou que mesmo que exista, faz parte intrinsecamente da experiência e da natureza humana. 7  In verbis: Art. 6º: “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; eIII - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”. Teoricamente, o inciso III garantiria a separação entre presos comuns e presos doentes mentais. Todavia, como diversas determinações normativas, essa não passa de um comando programático desprezado na prática.

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os próprios detentos desafiados mentalmente, nem os demais detentos, nem a sociedade como um todo, o “único benefício” atingido aos detentos doentes mentais talvez seja, ironicamente, a própria impunidade ou o alastramento coletivo de sua insanidade para outros cárceres e para o seio social como um todo. Alguns autores dessa linha tentam trazer uma “naturalização” da psicopatia como apenas uma realidade diversa daquela experimentada individualmente caso a caso, atendo-se a um argumento relativista de que a doença mental é explicada pelo ponto de vista psiquiátrico de forma reducionista, seja pelo viés das alterações biológicas cerebrais ou pela dissonância psicossocial apresentada pelos indivíduos enquadrados dessa maneira. Sugerem, portanto, que a “loucura” é apenas uma “experiência humana de estar no mundo de uma forma diversa daquela que o homem, ideológica ou idealisticamente, considera como normal” (AMARANTE, 2003, p. 47). Traçando-se um perfil legal que doentes mentais praticam crimes em desacordo com a disposição ético-normativa do que é “normal”, a assertiva anteriormente colocada certamente coloca a experiência de “estar no mundo” dos doentes mentais como anormal, pois não é aceitável que alguém pratique a conduta delitiva do artigo 121 do código penal6, exemplificativamente, por uma “simples diversidade de experiência de estar no mundo”, tal como se “matar alguém” pudesse ser aceitável como uma experiência dissonante do padrão ideológico ou idealístico (ainda que ambos os termos possuam uma origem hegeliana e não possam ser efetivamente diferenciados...). Aceitar a “normalidade” da psicopatia é um dos elementos centrais da luta antimanicomial, e, por isso, ela é um dos elementos genéticos da crise carcerária brasileira. Os defensores mais comedidos dessa vertente vão argumentar que o artigo 6º, inciso III da supramencionada Lei da Reforma Psiquiátrica7 já garante o tratamento adequado nos casos de internação compulsória determinada pelo Poder Judiciário. No entanto, a própria lei é flagrantemente contraditória e vaga por si mesma. A princípio, ela não garante que a internação compulsória será feita em um estabelecimento carcerário diferente daqueles destinados aos presos comuns. Ela apenas garante que a pessoa a ser internada deve “ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental” (inciso IX do artigo 2º da referida Lei), ou seja, nem sequer se garante a separação total e absoluta entre duas naturezas distintas de apenados. Pior que essa conexão lacônica entre os artigos da mesma lei, há uma flagrante contradição entre os direitos dos doentes mentais com o próprio caráter restritivo de liberdade da pena aplicada quando se garante como direito, por exemplo: “ter livre acesso aos meios de

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comunicação disponíveis” (inciso VI, artigo 2º, da mencionada Lei). Assim, como se cogitar a restrição da liberdade do apenado doente mental com livre acesso a meios de comunicação? Ou a lei realmente não cuidou em traçar quais os parâmetros de baliza do que poderia ser garantido ao doente mental que também é criminoso, ou a luta antimanicomial realmente preza pela disseminação da psicopatia coletiva e inconsciente por toda a sociedade de modo indiscriminado. De qualquer uma das formas, tanto a lei quanto os defensores dessa bandeira agem de modo temerário e pouco cauteloso no cuidado e na proteção da segurança individual dos apenados e da sociedade como um todo. Sob a falsa aparência da normalidade, a psicopatia é transmitida para a sociedade sob arquétipos invisíveis, com premissas calcadas em tratamentos “humanizados” e com intentos “aparentemente” nobres, os quais apenas mascaram a verdade oculta das mentes criminosas psicopatas e transferem uma carga de dano altíssima a todos os membros da sociedade, de modo direto ou indireto. O ideário, ou categoria de imaginação retratando a psicopatia como normalidade é difundida coletivamente como sendo um instinto de moralidade e de retidão no tratamento dos doentes mentais, quando, na verdade, as ações práticas propostas demonstram apenas que a mistura indiscriminada leva ao rateio ad æternum da psicopatia em novos níveis, em novas classes e novos grupos outrora ainda não contagiados pela insanidade delitiva. Direitos dos doentes mentais devem ser garantidos durante a sua internação compulsória na própria medida em que não descaracterizem a sua restrição de liberdade, e não para que tais medidas venham a servir como estandarte da impunidade, como já referido em breves exemplos no texto em andamento. Certamente a separação obrigatória dos dois tipos de preso (comuns e doentes mentais) e uma profunda análise dos pontos da luta antimanicomial que não são condizentes com a realidade não são a salvação do sistema carcerário brasileiro, no entanto, já representam um pequeno avanço em sua melhora. Esses indicativos não servem como elementos simplórios de reestruturação do sistema, mas podem ser considerados bons nortes indicativos para que se repense o lugar de cada estrutura psiquiátrica dentro dos cárceres brasileiros.

De modo derradeiro, há de se repisar que o argumento central defendido no breve artigo se foca na questão da separação peremptória entre os presos comuns e os apenados doentes mentais, algo que flagrantemente atenta contra o viés de normalidade da insanidade defendido pelos preceitos da luta antimanicomial. O convívio comum entre pessoas sãs e doentes mentais dentro das condições de restrição de liberdade impostas pelo Poder Judiciário gerou situações extremas, que conduziram a massacres e os mais diversos atentados à segurança pública, dentro e fora dos estabelecimentos de detenção. Assim, separar categoricamente a população carcerária de acordo com critérios psiquiátricos não é uma medida atentatória a um tratamento humanizado dos doentes mentais, antes de mais, ela consiste, na verdade, em tentar dar segurança a

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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todos os envolvidos no sistema carcerário, incluindo-se aí os demais apenados, a sociedade em geral e todos os servidores públicos envolvidos na segurança a ser provida pelo Estado. Em síntese, a luta antimanicomial ao invés de tentar prover cuidados mais “humanizados” àqueles que ela pretensamente busca proteger acaba por disseminar institucionalmente a psicopatia generalizada. De forma a transmitir arquétipos dignos do inconsciente coletivo de Jung, os defensores dessa vertente acabam pugnando que a loucura e a insanidade (componentes básicos da psicopatia criminosa) são apenas mais um dos elementos corriqueiros e comuns da sociedade, que devem ser absorvidos por ela tal e qual por eles compreendidos, sob pena de se propor um tratamento higienista das pessoas desafiadas mentalmente. Há de se deixar derradeiramente assente que o proposto nesse artigo de maneira alguma tem um viés eugênico, higienista ou quiçá anti-humanista, pelo contrário, a primazia da segurança pública, dentro e fora dos estabelecimentos prisionais é uma preocupação que atenta a todos os envolvidos nesse processo, principalmente aos pensadores que se debruçam sobre tais temas e que não pode ser reféns de um pensamento praticamente dominante e unitário dentro das ciências humanas (que é a luta antimanicomial). Tecer críticas a essa abordagem é algo necessário e urgente dentro do atual contexto paradigmático de crise do sistema carcerário brasileiro, e com o intuito de prover esse tipo de abordagem dissonante daquilo que é cotidianamente repetido na academia que o presente artigo se presta a expor tal análise.

REFERÊNCIAS AMARANTE, Paulo. Clínica e a reforma psiquiátrica. In:AMARANTE, Paulo (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003. BRASIL. Lei nº 10.216, de 6de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.

______. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 27 de jan. 2017, às 17:00h. FOUCAULT, Michel. Ditsetécrits. Paris: Gallimard, 1994. v.4. HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. Tradução de Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg. São Paulo: Cultrix, 1992. JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luíza Appy, e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Acesso em: 27 de jan. 2017, às 17:00h.

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ROCHA FILHO, João B. Física e psicologia. 4. ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2007. REDAÇÃO. Por que líder do PCC ganhou prisão domiciliar em Natal?. NOVO Jornal. Natal, 25 jan. 2017. Disponível em: <http://novojornal.jor.br/cotidiano/por-que-lider-do-pcc-ganhouprisao-domiciliar-em-natal>. Acesso em: 26 de jan. de 2017, às 17:00h. VASCONCELOS, Eduardo Mourão et al. Saúde mental e serviço social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo, SP: Cortez, 2000. PSICOPATHOLOGY AND PRISON: A PIVOTAL ELEMENT OF BRAZILIAN CRISIS

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ABSTRACT The paperdebates the psychopathology as a pivotal element of nowadays Brazilian prison system crisis. It intends to show how the mix of ordinary and psycho inmates is one of the causes of this demented crisis. As a methodology, it gathers as a theoretical reference the “Collective unconscious” theory of Carl Jung. It results that antiasylum and antipsychiatry struggle, and its pretentious “humanitarian treatment”, just made the situation worse and spread the madness into correctional facilities in an institutionalized way. It concludes that this kind of activism contributes to the failure of state punishment system and increases the internal security system crisis. Key-Words: Prison System; Psychopathology; Institutional Crisis.

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REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE CONTRADIÇÕES1 Raimundo Márcio Ribeiro Lima2

“[…] o povo quer a proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o Estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando. No plano psicológico, a dualidade oscila entre a decepção e o engodo”3.

1  Adota-se a ortografia do Novo Acordo Ortográfico de 1990, inclusive nas transcrições de textos com escritas antigas ou arcaicas, exceto título de obra ou artigo. 2  Doutorando em Direito Constitucional pela UFC. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Procurador Federal/AGU. Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP). 3  FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 832.

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RESUMO O artigo discute sobre a origem da República e do federalismo brasileiro, destacando um curso histórico de contradições entre a teoria das instituições políticas, seus modelos e propósitos, com a realidade das instituições estampadas com o advento da República de 1889. Além disso, discute-se a interferência do patrimonialismo na promoção da ação política, como realidade histórica desde a Monarquia, acentuando sua capacidade mimética em face das mudanças nas instituições ou nos modelos de gestão pública, o que instrumentaliza, com largo êxito, as práticas corruptivas na estrutura orgânico-funcional do Estado. Palavras-chave: Republicanismo. Federalismo. Patrimonialismo. Corrupção.

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1 INTRODUÇÃO

O artigo discutirá, dentre outros pormenores, sobre republicanismo, federalismo e patrimonialismo numa relação discursiva com os atuais desafios da sociedade brasileira, pontuando, principalmente, os arranjos políticos que possibilitaram a atual estrutura do Estado brasileiro: suas contradições, seus retrocessos ou avanços. Neste artigo, a reflexão, preponderantemente bibliográfica, não nega, contudo, a força das informações colhidas pelas pesquisas quantitativas eventualmente consideradas, só que o sobrevoo das inquietações ancora-se basicamente nas perquirições de ordem qualitativa, colhendo nas fontes históricas que testemunharam a controvertida dinâmica da formação das instituições políticas brasileiras.

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A dificuldade da formação do Estado nacional possui diversas razões: algumas são bem elementares; outras, complexas, mas todas capazes de exercer influência sobre os tortuosos rumos de uma nova nação, com velhos dilemas, nos albores do século XIX. A tormenta de desafios vai da busca de uma identidade nacional até uma efetiva formação de um corpo de instituições político-administrativas de caráter verdadeiramente nacional, que seja capaz de navegar pelas incertezas de um Estado soberano na comunidade internacional. Em verdade, a expressão nacional sempre comporta muitas digressões no universo da Ciência Política, não apenas por conta dos inevitáveis percalços na definição dos parâmetros da nacionalidade, desejosamente objetivos, mas, sobretudo, pela recorrente ciranda de interesses que sempre acenam para fora da ideia corrente dos interesses decididamente nacionais. Portanto, discute-se o formalmente nacional, porque a dinâmica dos prospectos materiais, que sempre comportam importantes discussões doutrinárias, adentrando até mesmo nos denuncismos de crimes de lesa-pátria, acaba por representar um círculo discursivo amplo demais aos objetivos deste breve artigo. A questão monárquica, por sua vez, revela, no caso brasileiro, um misto de estupefação e operacionalidade quanto à cadência dos princípios republicanos. A dessepulta escravidão no seio do Estado, mais que uma chaga aberta na sociedade brasileira, servira de mote para os mais perniciosos objetivos políticos, especialmente os relacionados aos descuidados fins da ciranda econômica nacional. A novel República, no poço dos desejos políticos, gozou ou sofreu com todas as pedras passíveis de serem lançadas pela infame ou infantil discórdia como regime anterior. A novela dos ciclos políticos, para longe de uma reflexão mais séria sobre os problemas nacionais, mas superando os conflitos regionais de cariz libertador, mantiveram as pretéritas estruturas político-sociais com novas roupagens, que dissimularam os velhos propósitos, mais condizentes com os luminares princípios republicanos, mas, de todo modo, restando sempre visível os ranços do patrimonialismo que ainda reina triunfante no largo campo das instituições públicas brasileiras. O mosaico de contradição não reflete, nem de longe, a sinuosa estrutura que mantém o federalismo brasileiro, porém denuncia que os imperativos, nada lineares, da formação das instituições políticas haveria de consagrar nodosos caminhos no desenvolvimento do Brasil.

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2 A MONARQUIA COMO ARRANJO POLÍTICO E A REPÚBLICA COMO ALHEAMENTO POLÍTICO A Monarquia vive imponente no século XXI, portanto, não enveredou no ostracismo cantado em verso e prosa, de afogadilho, pela erudição apoteótica e pueril de muitos republicanos, como se as mazelas brasileiras decorressem do regime monárquico e, com isso, apenas a República acenaria para um novo e reluzente cenário das instituições políticas no Brasil. Olvidando, assim, a multissecular advertência de Jean-Jacques Rousseau, a saber: “Para ser legítimo, o governo não deve se (sic) confundir com o soberano, mas ser seu ministro: então a própria Monarquia é República” 4. É dizer, o Estado monárquico pode ser regido por leis, independentemente de sua forma de organização, porquanto apenas o interesse público governa, denotando que a coisa pública é, de fato, uma realidade, enfim que todo governo legítimo é republicano 5. Aliás, isso resulta ainda mais evidente quando se considera que a monarquia é plenamente compatível com a democracia ou o absolutismo, o mesmo diga quanto à centralização ou ao federalismo; sem falar, ainda, nas experiências parlamentaristas ou de mero governo pessoal, independendo, inclusive, se o sufrágio é universal ou censitário, dentre outras tantas opções de cunho político6.

4  ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e introdução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90. 5  ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e introdução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90. 6  LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo, nº 85, p. 277-311, 2012, p. 283. 7  Afinal de contas, “[p]retender que um soberano absoluto não seja invejoso e despótico, quando diariamente tem motivos constantes para o ser, é querer milagres da natureza humana. […] A monarquia absoluta é na realidade uma aristocracia encoberta, e por isso tem todos os males do despotismo e da aristocracia” [SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Ideias sobre a organização política do Brasil, quer como reino unido a Portugal, quer como estado independente. In: SILVA, Elisiane da; NEVES, Gervásio Rodrigo; e MARTINS, Liana Bach (org.). José Bonifácio: a defesa da soberania nacional e popular. 2 ed. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2013, p. 123-127, p. 124]. 8  LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo, nº 85, p. 277-311, 2012, p. 293 e 305.

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Desse modo, cumpre gizar que a Monarquia não acarreta necessariamente qualquer fluxo imobilizador da razão político-constitutiva do Estado, encerrando, assim, uma forma de governo que, a despeito de lembrar os vínculos históricos dos reinos tiranos, pouco ou nada conservava, mesmo no fim do século XIX, de suas matrizes absolutistas7. Daí que, como que um necessário resgate histórico, há quem defenda que Joaquim Nabuco, sob a égide de um idealismo prático, na qual aduzia a defesa da Monarquia, alicerçando-se no seu inegável aristocratismo, não promovia uma oposição à democracia, mas, sim, à oligarquia e tirania, porquanto acreditava que nenhum país no continente reunia as condições necessárias à efetiva implantação de uma democracia8. Vê-se que a noção de uma Monarquia republicana não é nada contraditória, contudo, a contradição surge com o fato de a República assumir despudoradamente as vestes oligárquicas ou, na melhor hipótese, não combatê-la no seio do Estado, permitindo um nicho político-republicano alheio aos verdadeiros imperativos da sociedade, que não se confundiam com os das

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9  Aliás, ainda no segundo reinado, os dilemas da compreensão político-social do sistema político eram tributados, pelo menos na perspectiva saquarema, ao atraso intelectual e à pobreza na sociedade brasileira, no que impossibilitava o surgimento de opinião pública consistente, conforme os prognósticos do governo parlamentar inglês, fato que, dentre outros fatores, pretensamente exigia um regime de tutela política, aliás, exercido pela Coroa, no que conflitava claramente com o modelo da teoria liberal (LYNCH, Christian Edward Cyril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, vol. 16, número suplementar, p. 113-125, ago. 2008, p. 114). 10  LYNCH, Christian Edward Cyril. Por Que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-Social Brasileira e o Fantasma da Condição Periférica (1880-1970). Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 56, nº 04, p. 727-767, 2013, p. 758. 11  O problema não é o tamanho do Estado, mas, sim, o que se faz com ele e, para ser sincero, no caso brasileiro, os defensores do Estado mínimo possuem justificáveis motivos para arvorar sua tese, principalmente os relacionados à ineficiência estrutural da máquina pública até mesmo. 12  O próprio curso histórico da escravidão, que dissolvia os padrões de socialidade e concebia as ilusões das benesses materiais possíveis desde os primórdios da era colonial, faziam com que as elites, longe dos prognósticos decididamente republicanos, enfileirassem cômodas razões para consagrar uma dinâmica excludente na formação das instituições políticas, por certo, não era possível esperar outra postura no advento da República [JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 22]. 13  Ora, isso remonta ao processo histórico colonial, porquanto “[n]ão parece haver dúvidas quanto ao fato de, no contexto de uma discussão sobre reivindicações políticas, os escravos e libertos não serem considerados parte do ‘Povo’”. (ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 375).

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forças oligárquicas, inclusive em dois aspectos: (a) na fundação da própria República, porque os interesses em jogo não extrapolavam o círculo desejosamente fechado dos golpistas da República; e (b) na compreensão e prática do republicanismo no meio social9, pois a dinâmica do exemplo providencialmente exigida nas práticas sociais, infelizmente, restara embargada pela inexitosa capacidade de a população absorver o novel sistema político, que, em tese, revelar-se-ia mais bem preparado para alcançar a democracia e promover o desenvolvimento do Brasil. Obviamente, toda proposta não pode defender os prognósticos de seu malogro, pelo contrário, sempre desenha com fortes tintas o itinerário de suas inolvidáveis conquistas. Há nisso tudo, sem sombra de dúvida, um traço de autoritarismo na nossa cultura política, aliás, que mais se alinha a uma comédia ideológica, pois, a ferro e fogo, a desfiguração dos modelos adotados, no que a Constituição de 1891 é um bom exemplo, revelou-se inevitável em função da indisfarçável assimetria de parâmetros político-sociais entre a sociedade norte-americana ou europeia com a brasileira, ganhando matizes próprios, e mesmo contraditórios, como é o caso da ideologia liberal burguesa europeia numa sociedade escravista e latifundiária10. Portanto, sem medo de errar, a mudança de rótulo, Monarquia ou República, não alterava a essência do conteúdo do sistema político, particularmente no caso brasileiro, no qual os invólucros são, muitas vezes, eram alterados, e mesmo ainda são, justamente para manter determinadas estruturas político-econômicas, geralmente amalgamadas com uma grande ideia legitimadora, ontem, República; hoje, Estado mínimo11 e por aí vai. É dizer, as mudanças não trazem uma proposta de grandes rupturas, porquanto as vicissitudes apenas consagram os arranjos decorrentes de disputas no ciclo inquebrantável das elites. Aliás, o alijamento político dos segmentos populares, alheios à lei e ordem no período monárquico12, pareceu um cenário sem fim, pois o povo13 não participou da fundação da República; aliás, isso não se trata de contradição, mas sim de imperiosa constatação. Contradição, evidentemente, era considerar a viabilidade da manifestação popular, numa perspectiva soberana, quando a comunidade política ainda se prendia à perspectiva exclusivista do direito

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ao voto14, aliás, algo verificado durante todo o período monárquico, decantada no sufrágio censitário, que foi abolido com o advento da Constituição de 1891. Aliás, quando o remanso da desigualdade da economia escravista15 e da indiferença política ainda não era capaz de mirar um novo horizonte, popularmente organizado, de reivindicações de direitos civis e políticos, não é possível cogitar que a inclusão dos grupos marginalizados fosse promovida pela elite político-econômica, que arregimentava forças e mudanças para preservação do poder, com o advento da República. A contradição revela-se, no entanto, com a manutenção de parâmetros legais excludentes dos segmentos populares no processo político, mesmo depois da instauração da República, no que denuncia uma das condenáveis faces do liberalismo oligárquico16. Nesse ponto, não se pode negar que a exigência constitucional do voto alfabetizado, no que excluía a participação política dos brancos pobres e dos descendentes de africanos, sem falar que as mulheres ainda não podiam votar, notabilizava-se como um instrumento de exclusão política, ou não emancipação política, para tentar manter os privilégios corporativos no seio da República, pois a cidadania17, ainda que firmada numa prerrogativa universal dos brasileiros natos, não garantia, por si só, a efetiva inclusão política dos brasileiros, denunciando, assim, um verdadeiro drible na iletrada mestiçagem18. A Monarquia, como arranjo político, foi uma tentativa, relativamente exitosa, de consagrar a identidade monárquica no Brasil, sem, contudo, permitir que o atendimento dos interesses reinantes, decorrentes de segmentos nada revolucionários19, alavancasse uma reviravolta na injusta estrutura, para dizer o mínimo, político-econômica do Império. Ora, a ideia de ruptura chega a ser tão risível que o filho do imperador tornou-se a figura política central no novo

15  A sensibilidade pela causa abolicionista, mesmo no final do século XIX, apesar das leis que antecederam à tardia e inconsequente abolição, não possuía, nem de longe, uma defesa uníssona da política nacional, inclusive a dinâmica da escravatura, secundada no pretenso direito de propriedade, foi um grande fator de cizânias nos primórdios da República, que, apesar de não escravista, consentia com vetustas ideologias de dominação racial, olvidando, assim, uma advertência antiga, à época, nestes termos: “Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da Providência, que fez os homens livres, e não escravos […]” (SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura. Paris: Typographia de Firmin Didot, 1825, p. 21). Como explicar as raízes liberais escravocratas brasileiras? Na ocasião, a teoria liberal, por certo, não passava de mero engodo, um invólucro moderno para as mais anacrônicas pretensões da ciranda política. 16  Não se tratava propriamente de uma verdadeira vertente do pensamento liberal, porquanto as premissas discursivas da teoria liberal não se afiguram compaginável com a dinâmica reacionária das matrizes oligárquicas das instituições políticas brasileiras. Portanto, tratava-se mais de um rótulo adequado para pretensões políticas, por vezes inconfessáveis, dedicadas tão somente na manutenção de uma estrutura política não democrática. 17  Aliás, a perspectiva excludente da cidadania ocidental, possivelmente mundial, sempre marcou o instituto, portanto, ainda persiste, inclusive sem qualquer pudor, para tanto, basta lembrar os condenáveis critérios político-econômicos na concessão de nacionalidade a uma pessoa estrangeira em determinados países, o que não passa, de forma bem rústica, duma mera exigência de identidade econômica (investimento no mercado local) e não propriamente social ou cultural. Ora, a cidadania também é uma moeda do mercado no sistema capitalista. 18  CAMARGO, Alexandre de Paiva. Mensuração racial e campo estatístico nos censos brasileiros (1872-1940): uma abordagem convergente. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol. 04, nº 03, p. 361-385, set./dez. 2009, p. 368. 19  Em verdade, no Império, os movimentos efetivamente revolucionários, que objetivavam uma ruptura com o status quo, foram duramente demovidos ainda no período regencial, até porque, por ostentarem uma ambiência quase que estritamente regional e, portanto, sectárias, tal fato impossibilitava-os de ganhar maior fôlego para resistir às forças imperiais.

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14  Aliás, já numa fase republicana, a questão do alheamento político foi suficientemente discutida em CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 42 e segs. Todavia, os ventos do republicanismo, e não apenas dele, fez exsurgir uma incipiente frente de movimentos pretensamente organizados, como bem pontua o autor nesta passagem: “Se na proclamação da República a participação popular foi realmente arranjada de última hora e de efeito apenas cosmético, logo após as agitações se tornaram cada vez mais frequentes e variadas, incluindo greves operárias, passeatas, quebra-quebras” (CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 70).

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Império, dito independente. Aqui, tem-se a precisa máxima: dos males, o menor20. A República, por sua vez, como alheamento político, não quer dizer que as forças propulsoras do seu advento vivessem a orgia de uma nova ordem política mundial, como que apenas inebriadas pelas ideologias estrangeiras e, com isso, agissem destemidamente na vã esperança de uma solução nacional baseada na perspectiva abstrata de uma ideia política. Não mesmo. O alheamento político, aqui, possui outro sentido. O povo restou alheio à República, ou melhor, não teve qualquer participação política para o seu advento. Incialmente, a República não casou com o perfil democrático dos grandes levantes populares. Assim, ela representou uma via, aliás, nada discursiva, porquanto foi empreendida subitamente por meio de um golpe militar, para estancar a sangria política do modelo imperial, que já se encontrava na unção dos enfermos, aliás, em face de diversas problemáticas, porém, todas igualmente convergentes para necessárias mudanças nas instituições políticas, que vão da questão religiosa até a mal resolvida disputa sobre a abolição dos escravos, que não agradou aos fazendeiros21 e, muito menos, aos próprios abolicionistas, aliás, os ideais republicanos, até então defendidos pelo Partido Republicano, não fechavam questão com as ideais abolicionistas, ainda que muitos republicanos fossem defensores da abolição22. Portanto, a República, mais que um hábil arranjo político que caracterizou a Monarquia brasileira, inclusive, resultante das parcas possibilidades monárquicas portuguesas no início do século XIX, resultou de uma posição ainda mais excludente, porquanto o povo já caminhava na rua, e o Brasil já possuía uma identidade, não apenas territorial23, mas, sobretudo, social, a despeito de todas as suas mazelas; todavia, mesmo assim, a forma de governo adotada, para o bem ou para o mal, não rendeu qualquer importância à população iletrada ou simplesmente sem forças econômicas ou políticas; enfim, a República triunfou sem qualquer participação política popular. Fala-se, até hoje, na estrondosa meta de republicanizar a República, é dizer, tal expressão deixa subjacente uma ideia de que a República brasileira já foi, de fato, uma República e que

21  Mais especificamente sobre a temática da ausência de indenização pela perda de um direito de propriedade. 22  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo. Brasil, de 1870-1891. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 27, nº 45, p. 141-157, jan./jun. 2011, p. 144. 23  Não desconhecendo as mais diversas teses sobre as razões da unidade territorial brasileira, defende-se que a inexistência de uma estrutura orgânico-funcional própria no tecido social, considerando-se que Portugal sempre foi um país pequeno, sem maiores expressões de ordem populacional, tenha contribuído na formação da unidade nacional, justa e paradoxalmente em função da inércia organizativa e da extrema desintegração social, porquanto sem a existência de grupos coesos e organizados nas diversas provinciais, e menos ainda entre elas, como ocorrer uma desintegração territorial, mesmo porque as forças de retaliação portuguesas, certamente uma das mínimas formas de organização consistentes do Império, ainda que de atuação emergencial, não tardavam em demover eventuais levantes regionais ou locais. Nesse ponto, resulta pertinente esta demorada transcrição: “Diante da complexa realidade social do escravismo, base de suas condições de existência, para as elites brasileiras a hipótese de que a comunidade humana que lhes coube integrar pudesse ser dotada de coesão interna com base em critérios universais (fundamento da ideia nacional), pareceu-lhes absurda. Para elas, o corpo social, no seu todo, não formava nação, nem deveria formá-lo. Ao Estado (que não tem, convém lembra-lo, existência autônoma por sobre as classes), caberia garantir que a temida hipótese não vingasse” (JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 28). Tem-se, então, a inegável questão do inimigo interno: aquilo que não reconheço importância, exceto o fato de permitir que determinada parcela da sociedade goze das benesses da exploração social.

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20  Aqui, é preciso fazer o contraponto no sentido de que o vislumbre do interesse defendido, notadamente de ordem econômica, pode ter ido além do próprio fundamento da nacionalidade, de forma que português poderia ser considerado aquele que defendia o impulso colonial e brasileiro, pouco importando sua nacionalidade, aquele ancorava o desejo da independência política (ROWLAND, Robert. Patriotismo, povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 372).

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24  Atualmente, um exemplo típico do patrimonialismo mimético (adaptação das práticas corruptivas) que se observa nas culminâncias dos Poderes da República, com particular destaque ao Poder Judiciário, é o uso das garantias institucionais, notadamente a autonomia financeira e poder de iniciativa de leis, para fins exclusivamente privados, acentuando um regime remuneratório legalmente condenável, e moralmente inaceitável, a partir das famigeradas vantagens eventuais (permanentes) de natureza indenizatória (totalmente remuneratória), indene, assim, de imposto de renda e contribuição previdenciária.

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basta, tão somente, revitalizá-la em face dos seus vigorosos e providenciais valores na sociedade. Todavia, seria mesmo esse o melhor entendimento sobre a temática? No Brasil, o curso histórico das ideias republicanas não pode ser a razão fundante desse horizonte compreensivo, isso porque a fundação da República foi um ato cênico de manifesto interesse político-econômico na instauração de uma nova ordem, mas, claro, sem qualquer repercussão no meio social, isto é, sem preparativos, mobilização social ou efetivas conquistas, porém, como necessário trato das potencialidades políticas, não faltou uma retórica dos novos valores e/ou direitos: só que uma República sem valores republicanos no seio da sociedade que a constitui, por certo, revela uma dupla forma de alheamento político: (a) a que se corporifica nas instituições recém-criadas, porquanto não são capazes de empreender os objetivos do republicanismo; e (b) a que se prende na sociedade, haja vista uma larga cadeia de costumes e valores dissonantes, totalmente empedernidos, no cotidiano dos cidadãos. Numa palavra: sem valores do republicanismo, só há espaço para interesses privados, onde, desde cedo, fez campear galhardamente o patrimonialismo na estrutura orgânico-funcional do Estado. Ademais, a própria manutenção ou expansão do patrimonialismo, naturalmente, com outras roupagens e meios, bem demonstra que o ideário republicano jamais imperou na estrutura político-administrativa do Estado. Não que a semeadura dos valores republicanos afigure-se destituída de um lastro jurídico, não mesmo, pois o escarcéu normativo do Direito Público é pródigo em declinar uma extensa lista de valores republicanos, sobriamente calcados na impessoalidade da gestão pública, o dilema centra-se, assim, em outra ordem de considerações: os ideais republicanos não brotam de árvores e nem se alimentam do mesmo modo que pombos em praça pública. Eles exigem a dinâmica dos esforços comunitários e carecem de uma compreensão normativa que vá além dos meandros interpretativos, isto é, saindo do abstrato ao concreto, portanto, que saia em campo e não adormeça na insuficiência das declarações meramente normativas; enfim, a realidade desses valores até convivem com a ciranda jurídica, mas, sem dúvida, não pode limitar-se a ela, porquanto possui autonomia discursiva na ambiência social, revelando-se mais propriamente um sentimento de compartilhamento social em função dos seus benefícios concretos do que uma diretriz estritamente política. Além disso, a República, na praça, não segue a mesma indicação dos pombos e nem espera que as benesses venham a cair do céu. Ela, no cotidiano, sofre os reversos dos falsos sinais das instituições estatais e, claro, dos cidadãos, que, não raras vezes, rendem-se às miraculosas benesses do patrimonialismo mimético24, que, numa compreensão sistêmica dos imperativos da gestão pública, emperra os avanços da ação política.

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3 A FEDERAÇÃO COMO ILUSÃO POLÍTICA?

25  Nesse ponto, é importante destacar que, mesmo na Assembleia Constituinte de 1923, os federalistas não desconheciam a diferença de trajetória entre o Brasil e os Estados Unidos (COSER, Ivo. O Debate entre Centralizadores e Federalistas no Século XIX: a trama dos conceitos. Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS. São Paulo, vol. 26, nº 76, p. 191-206, jun. 2011, p. 193 e nota de rodapé nº 08); no entanto, a clara distinção entre o federalismo pleno (confederação de províncias) e o federalismo mitigado (federação de províncias), muito embora tenha sido discutida desde cedo, por conta da questão da unidade nacional, apenas se revelou fora de dúvida, portanto, de pleno conhecimento pela elite política imperial, a partir de 1934, afastando, de vez, a ideia confederativa no conceito de federação (COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 967). Em sentido diverso, acentuando que, até a Constituinte de 1890-1891, o conceito de federalismo não era de todo claro, exigindo-se, à época, os devidos esclarecimentos, notadamente pelo Senador pernambucano José Higino Duarte Pereira, que era catedrático de Direito Administrativo na Faculdade de Direito do Recife [CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João Alfredo de J. Temas de história do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-1945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, p. 127-162, p. 135]. Deve-se reconhecer que a compreensão sobre o federalismo parecia ser algo bem controvertido na constituinte de 1823, porquanto a discussão ainda girava em torno da palavra federação e, com isso, tinha-se um forte aceno com o significado de confederação, aliás, isso resultava ainda mais evidente quando se considerava que as Províncias do Pará, Rio Negro e Maranhão, que, à época, ainda padeciam de uma resistência portuguesa, deveriam unir-se definitivamente à federação brasileira, muito embora fossem, mesmo que por pouco tempo, independentes do Império brasileiro. (RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 113-117). 26  Em particular o processo de eleição dos Juízes de Paz. Todavia, não se pode afirmar que isso representasse necessariamente um instrumento eficaz de participação popular, pois o espaço público era diminuto e excludente demais para isso. De todo modo, tinha-se a possibilidade de uma mudança de roteiro, saindo das tradicionais camadas decisórias da Administração central da Província para os também tradicionais detentores do jogo político nos distritos, que, apesar de ainda consagrar formas de exclusão política, poderiam ser bem menos sofríveis que as decorrentes dos Legisladores provinciais. 27  COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 958. 28  COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 973.

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No Brasil, desde o Império, porque os seus imprecisos termos foram discutidos bem antes da República25, o federalismo foi cercado de notórias contradições, que não se limitam apenas aos aspectos conceituais no curso da história, vai mais além. Aliás, como bom exemplo disso, as disposições do Código do Processo Criminal de 1832, nas quais capitaneavam diversas regras que aproximavam a participação da comunidade local na Administração da Justiça26, perdiam fôlego nas comunidades locais após o Ato Adicional de 1934, que, abraçando o pensamento federalista de primazia política do Legislativo das Províncias, acabava por permitir levantes normativos que simplesmente controlava os eventuais excessos descentralizadores do Código do Processo, promovendo, assim, o esvaziamento dos cargos eletivos, no que bem afeiçoa a ideia descentralizadora, em detrimento dos cargos nomeados por autoridades provinciais, portanto, não mais nos limites dos distritos ou comunidades locais27. Por isso, mais importante que identificar as ideias que rompiam das forças políticas, que não eram veladas, mas ardorosamente propagandas como tábuas civilizatórias, era perceber os interesses escusos defendidos ou alcançados por meio delas, mormente quando a matriz conservadora ou reacionária ostentava as vestes da liberdade política e/ou do progresso econômico. Dito de outro modo, no século XIX, a compreensão do debate sobre a dinâmica centralizadora ou federalista dependia da compreensão do interesse provincial e, sobretudo, da forma como essas correntes avaliavam esse interesse e arregimentavam as forças político-discursivas nos grupos sociais das Províncias, conforme a tônica dos negócios particulares ou necessidades provinciais 28. Até mesmo no século XX, tendo em vista a redação do artigo 1º da Constituição

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29  A redação, de fato, é passível de questionamentos, eis o dispositivo: “A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil” (Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91. htm>. Acesso em 10 jun. 2016). 30  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220. O autor, mais adiante, na mesma página, grafa os contrapontos entre a Constituição e vida real, nestes termos: “Coleção de preceitos sem assento na vida real, a Constituição não recebeu o influxo de um pensamento político dominante, que desse às instituições o fluido inspirador e a ideia motora de um objetivo superior e prático, nem métodos e critérios de orientação que enfeixassem seu conjunto num corpo homogêneo e animado”. 31  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220. 32  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220-221. 33  CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João Alfredo de J. Temas de história do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (18891945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, 127-162, p. 143.

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de 189129, levantou-se o entendimento de que o nome República dos Estados Unidos do Brasil, com clara inspiração na Constituição norte-americana, “[…] fortalecia a opinião, dominante na política, de que os Estados são dotados de uma autonomia que assume de fato as proporções da soberania” 30, de maneira que a “[…] ardente ambição de autoridade local […]” 31 acabou por infirmar as condições práticas de uma efetiva soberania das funções da União, no que exigia uma reforma no texto constitucional, assinalando o verdadeiro lugar dos Estados, a saber, de meras províncias autônomas32. Nesse ponto, é pertinente assinalar que o poder de legislar dos Estados, o mesmo se diga quanto às Províncias, representa um atributo de sua reconhecida autonomia no regime político, não decorre, evidentemente, do modelo federal, tanto que no Império, portanto, na vigência de um Estado unitário, as Assembleias Provinciais, inclusive criadas no período regencial, possuíam funções legislativas, no que diferiam da atuação legislativa da Assembleia Geral, que representa a nação33. Noutro giro, considerando curso histórico da questão, indaga-se: O federalismo deve decorrer do aperfeiçoamento (a) de uma conquista histórica ou (b) de projeto político-normativo, ainda que sem substrato popular? A questão comporta resposta suficientemente esclarecedora nos dois sentidos, das mais rudimentares até as mais complexas, especialmente quando se considera que o traço histórico transformador das instituições políticas não representa um percurso comum a todas as nações, que sempre admitem - umas mais, outras menos - um flerte com as instituições políticas estrangeiras, porém o que importa mesmo é considerar o modelo que melhor possa promover as possibilidades políticas de um povo, o que é algo bem diverso do modelo que melhor atenda aos interesses do povo, isso porque os principais atores responsáveis pelas vicissitudes no sistema político tendem a consagrar os interesses dominantes, isto é, dificilmente rompem com a estrutura de poder e, claro, o desenho político-institucional do Estado é, sem sombra de dúvida, um bom caminho para contemplar esse propósito. Por outro lado, as grandes rupturas decorrentes de processos revolucionários não garantem resultados exitosos, aliás, a história bem explica isso. O fato é que a denúncia das opções políticas - e o certo e o errado, numa relação discursiva séria, costumam ter seu prosélitos -, vai revelar uma reflexão contínua sobre as instituições (im)postas e isso é sempre algo bastante positivo para a evolução

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34  Aliás, ainda não alcançou o ápice-estabilizador do edifício constitucional, pois, recorrentemente, encontra-se cercado de duras críticas e constantes alterações pontuais, que, justamente pela inexpressividade delas, transmitem o reforço de que algo deve ser mudado e, portanto, ele é ainda incapaz de atender aos apelos dos entes políticos. Até mesmo engenhosas formas de compensação financeira, numa ambiência de acirradas disputas fiscais, como é o exemplo das Transferências Voluntárias da União (TVU), percebe-se que os arranjos do federalismo centralizador ganham ares de verdadeira barganha política, na qual a dimensão político-partidária rompe o espaço da dimensão social-redistributiva na percepção dos recursos destinados à redução dos graves desequilíbrios regionais (SOARES, Márcia Miranda; NEIVA, Pedro Robson Pereira. Federalism and Public Resources in Brazil: Federal Discretionary Transfers to States. Brazilian Political Science Review. São Paulo, vol. 5, nº 02, p. 94-116, 2011, p. 106-107), isso porque a dinâmica da discricionariedade na promoção das TVU faz imperar as decisões que reafirmam a superposição da União em detrimento dos demais entes políticos, tudo por conta de apoios transitórios, ou mesmo emergenciais, com fundados propósitos políticos, sem uma dinâmica da atuação decisória decantada em sólidos critérios de gestão pública planejada e, por isso, mais bem preparada para superar os desafios impostos pelo artigo 3º, inciso III, da CF/88. Desse modo, encerra-se mais uma contradição: os modelos de superação de desafios, como que uma peça do destino, transforma-se um novo desafio, que, se não for maior, reforça a tese da inviabilidade não só do modelo de características balsâmicas, mas malogrado, como também de toda a estrutura federal, tal como desponta hodiernamente. 35  Subtraindo-se da análise, evidentemente, os nefastos anos da ditadura militar, porquanto as instituições eram meandradas pelas turbulentas formas de expressão política dos generais das forças armadas, também conhecidas como intervenções, isso apenas para apresentar uma linguagem mais amena quanto à autonomia dos entes políticos. 36  Na linguagem fácil das críticas açodadas: se há discordância, é porque não houve necessária reflexão, na imperiosa pretensão de que a reflexão propriamente dita apenas decorre da análise do crítico e não do criticado.

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político-institucional de um país. Dito de outro modo, tornar as escolhas melhores é o maior mérito de um povo. No Brasil, o federalismo não teve um curso histórico feliz34, pois surgiu de um processo político ultimado num súbito golpe militar; todavia, a evolução constitucional tem demonstrado que o federalismo ganhou novos matizes, mas, gradativamente, assumindo uma postura mais centralizadora35, como que acenando com a perspectiva unitária do período imperial. E, aqui, é preciso desmitificar o entendimento de que o curso histórico de um instituto, isto é, a decantação político-social de um instituto, seja sempre a melhor saída, ainda que, na maioria das vezes, ele represente o melhor caminho a continuar seguindo. A velha questão entre o ideal e o real sempre projeta a importância do ôntico sobre deôntico, porquanto o cômodo das experiências vivas tende sempre a negar alternativas, quase sempre tachadas de meras projeções abstratas, quiçá, impossíveis, justamente por serem, por assim dizer, ideais ou idealizadoras demais para levar a sério. A questão é que todo modelo adotado, mesmo com clara ruptura dos parâmetros até então vigentes, tende também a seguir um curso histórico único, daí a importância de discutir os modelos idealmente considerados e, com isso, refletir sobre o espaço ocupado/operado pelo curso histórico modelar ainda reinante. Se não é possível transplantar modelos, com todas as suas virtudes; por outro lado, não é possível afastá-los, pelo menos numa perspectiva comparativa, quando o modelo corrente, carente de soluções, também projeta ilusões ou esperanças advindas de outras paragens, ainda que elas sejam assentadas com substrato social diverso e, consequentemente, valores também diversos. Daí que o flerte com o federalismo dos Estados Unidos da América, ainda no início do Império, longe de uma ilusão política, acenou para uma nova e pretendida realidade, que, em dado sentido, podia expressar uma ilusão, mas, também, a esperança de novo curso histórico, desejosamente mais profícuo no fortalecimento das instituições políticas brasileiras. Ilusão mesmo é acreditar que isso ocorreria sem qualquer decurso histórico, como que num passe de mágica e tudo a partir de um golpe militar. Importação acrítica36? Não se trata disso. A via escolhida, como todas elas, depende dos interesses que desejaram firmar. Ocorre que a imagem

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37  SILVA, Ricardo. Republicanismo neo-romano e democracia contestatória. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, vol. 19, nº 09, p. 35-51, jun. 2011, p. 36. Notadamente, como um regime não puro, é compreensível que a República comporte, ao longo tempo, o relevo de teorias políticas hoje consideradas condenáveis, mas, claro, sem perder o norte de um governo (poder político) regido pelas leis. O fato é que: “[d]a Antiguidade aos dias atuais, o conceito de república não parou de evoluir segundo o contexto em que era pensado. A partir do século XVII, ela é definida como um regime misto, mas também em oposição à monarquia absoluta. Com os federalistas americanos, a república se distingue da democracia pela introdução do sistema de representação” (DORTIER, Jean-François. Dicionário de Ciências Humanas. Tradução Aline Saddi Chaves, Felipe Cabanas da Silva, Ilan Lapyda, Leonardo Teixeira da Rocha, Maria Aparecida Cabanas e Maria José Perillo Isaac. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 558). 38  CABRAL, Gustavo César Machado. Federalismo, autoridade e desenvolvimento no Estado Novo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 48, nº 189, p. 133-146, jan./mar. 2011, p. 137. 39  De todo modo, após a redemocratização do país, o discurso da intervenção militar, pelo menos na sua ordinária concepção, desvaneceu-se; porém, não se pode olvidar, os mecanismos da atuação militar, como que adaptados ao novo processo do jogo político, rendem-se ao lastro legitimante do parlamento, mas, claro, sem perder a tônica dos seus ideais.

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que reflete no espelho jamais será a mesma, porque simplesmente não se trata da mesma nação. Ilusão política? Não mesmo. Como ardil político, aí sim, tal como se destaca adiante, revela-se mais consentâneo com os conchavos da época, aliás, de todas as épocas, nas quais são partejadas as grandes transformações politico-administrativas brasileiras. O desânimo com a monarquia, cujas razões não são difíceis de destacar, inclusive já ventiladas no tópico anterior, fez desabar os desejos de uma nação republicana, só que isso não explica muito, pois o ardil decorreu justamente do pano de fundo que sustentou a via adotada para firmar a República e, claro, o modelo federal. Nesse ponto, vale afirmar que a anedota de uma nova ordem, com valores republicanos, não passava de um expediente politicamente viável para preservar os interesses de segmentos importantes da sociedade, notadamente, os grandes proprietários de terra, pois, numa conjuntura diversa, ainda não se viam capazes de romper, sem maiores adaptações, a cômoda desigualdade do sistema escravocrata. Nesse contexto, como que alentado pelas peripécias históricas da política brasileira, o levante militar, que entronou a República, ganharia gosto pelo poder não apenas na República Velha, cujo reflexo, até os nossos dias, é possível identificar em função dos permanentes rumores da vigília militar sobre a sociedade civil, o que bem denuncia os ranços da relação ambígua, no passado, entre republicanismo e democracia37. Um bom exemplo do constante vai e vem da ciranda militar encontra-se na implantação do Estado Novo, pois, longe de uma nova expressão federalista, rompendo com os prognósticos constitucionais da autonomia dos Estados membros, aliás, devidamente decantada nas constituições republicanas anteriores, perseguia um novo norte na disciplina política do federalismo brasileiro, baseada na maior presença do Estado na sociedade, firmando, sem maiores pudores, uma postura intervencionista, inclusive por meio da destacada e conhecida fórmula dos valores, como que arvorando um sentimento patriótico e nacionalista, que incorporasse a ideia de união nacional e, com isso, minando os núcleos de oposição, notadamente os regionais38. O mesmo de diga quanto aos anos de chumbo da ditadura militar. A recorrente atuação militarista nas intermitências da República, variando entre golpes e abusos institucionais, bem demonstra a ausência dos fundamentos republicanos no seio da sociedade. Como se o regime de tutela da República dependesse de uma mão forte das Forças Armadas39. Afinal, toda liberdade cobra o seu preço, no caso da República, e consequentemente do modelo federal, parece ser a constante vigília, não apenas civil, sobre os rumos políticos do país.

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4 A INCRÍVEL CAPACIDADE MIMÉTICA DO PATRIMONIALISMO BRASILEIRO A corrupção e o patrimonialismo não revelam uma relação entre meio e fim. A dinâmica vai além da mera noção de instrumentalidade ou finalidade, isto é, eles são dois velhos companheiros da experiência histórica brasileira, não há como negar isso: uma dedicada ao trato fisiológico; o outro, ao deleite institucional, resultando, assim, a seiva no tronco frondoso da árvore estatal. Nisso reside o casamento perfeito: a cômoda cumplicidade num consórcio rentável e, por isso, tentador e ardorosamente defendido pelos agentes representativos dos interesses inconfessáveis dos verdadeiros donos do poder40, de forma que toda mudança representa um novo substrato de adaptações no seio do Estado, mas, claro, ainda são mantidas as mesmas linhagens do concurso furtivo das benesses estatais. Observa-se, então, a imagem clara de uma figura nebulosa, volátil, lábil e mutável dentro da estrutura orgânico-funcional do Estado; contudo, já não cotejando a dinâmica patrimonial do mundo português de outrora, cujos pretensos ecos ainda soariam, persistentemente, no mundo brasileiro atual41, como se o Brasil herdasse de Portugal sua estrutura social e, com ele, o patrimonialismo, tese, aliás, bastante controvertida, para não dizer totalmente equivocada42. As considerações acima denunciam uma visão tradicional sobre o patrimonialismo na literatura brasileira, inclusive largamente reconhecida pela doutrina nacional. Evidentemente, tal visão da dominação patrimonial já se encontra distante das premissas teóricas de Max Weber43,

41  FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p 35. Na parte final do livro (p. 823/824), contudo, o autor esclarece, com precisão, a matriz mimética do patrimonialismo nestes termos: “Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. Vê-se, assim, que Faoro não desconhecia ou desprestigiava a dinâmica patrimonial como expressão de interesses do mercado, também corrupto, mas, sim, que mirava no Estado a forma habitual de consagração desses interesses. Seria mesmo uma tolice defender que o gênio de Raymundo Faoro não concebesse uma promíscua relação engendrada entre o Estado e o mercado, ambos, claro, entregues às práticas corruptivas. Daí, um bom exemplo de tolice da inteligência brasileira: caso Jessé Souza, que, numa crítica extremada, desconsidera a amplitude compreensiva das ideias de Faoro, nestes termos: “O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cultural brasileira. […] é apenas o ‘Estado’ que passa a ser percebido como o fundamento material e simbólico do patrimonialismo brasileiro” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 33-34), a despeito de, noutros momentos, promover certeiras críticas contra o autor gaúcho e outros grandes doutrinadores brasileiros. Ora, qual a razão de Raymundo Faoro não conceber a corrupção no mercado? Aliás, o próprio Jessé Souza admite isso quando aduz sobre o livro de Raymundo Faoro: “[…] sua tarefa é demonstrar o carácter patrimonialista do Estado e, por extensão, de toda a sociedade brasileira” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 53), então, o mercado estaria excluído em que momento? Não faria parte da sociedade brasileira? O problema é que a tese da demonização do Estado e da virtuosidade do mercado, decantada em verso e prosa por Jessé Sousa, nessa equivocada dualidade (p. 91), exige a premissa de que Faoro haveria de isentar o mercado da corrupção, mas isso, a toda evidência, não encontra amparo na obra de Raymundo Faoro. 42  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 41, 59 e 64. 43  WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Elsabe Barbosa. 4 ed. Brasília: Editora UnB, 2009, p. 255. Mais adiante (p. 263), na perspectiva política do patrimonialismo, destaca o autor: “O complexo patrimonial político não conhece nem conceito de ‘competência’ nem o de ‘autoridade administrativa’ no sentido atual das palavras [...]. A separação de assuntos oficiais e privados, patrimônio oficial e privado e a correspondente autoridade senhorial dos funcionários encontra-se apenas razoavelmente realizada no tipo arbitrário [...]”. Noutra parte (p. 306), na perspectiva econômica, na qual revela uma capacidade mimética do patrimonialismo, o autor pontua: “O patrimonialismo é compatível com a economia de subsistência e com a economia de troca, com a constituição agrária pequeno-burguesa e a de senhorios territoriais, com a ausência e a existência da economia capitalista”. Desse modo, a dinâmica doutrinária de Weber não se afigura tão distante dos atuais prognósticos do patrimonialismo.

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40  Que, evidentemente, não se limita aos agentes do Estado, mas que, através deles, atendem aos reclames escusos da sociedade, notadamente dos grandes agentes econômicos do mercado.

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ganhando, assim, uma nova tonalidade, conforme o quadro das experiências históricas44, e, nessa qualidade, desprendendo-se das originárias matrizes discursivas weberianas apresentadas no início do século XX. Portanto, o patrimonialismo na concepção atual, a toda evidência, em nada se assemelha com os pressupostos teóricos de outrora; porém, ainda assim, com notórias vicissitudes, não há nada de condenável em ostentar tal terminologia, no que denuncia uma verdadeira história do conceito, e não o uso acrítico e vazio de uma expressão, mormente quando se tem consciência da distinção dos significados em função do percurso histórico do conceito, porquanto a decantação histórica de um termo, num determinado lugar, é digna de consideração e, sobretudo, autonomia compreensiva, sem que isso represente qualquer atecnia ou mesmo desrespeito aos imperativos iniciais de qualquer perspectiva teórica. É dizer: “A história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas” 45. Portanto, as mesmas palavras, ventiladas em momentos diferentes, relacionadas a experiências distintas, não podem comportar a mesma dimensão semântica46, de forma que, não raras vezes, as mesmas palavras podem denotar realidades conceituais bem diversas, isso porque “[o] significado de um conceito não pode ser alcançado independentemente do seu uso na sociedade e, por isso, deve-se considerar o contexto em que é utilizado e o universo temporal no qual se insere” 47. Superados esses dilemas, que não meramente conceituais, e que tanta importância foi tributada por Jessé Souza, inclusive com ácida crítica aos escritos de Raymundo Faoro48, vale mencionar que as propriedades miméticas do patrimonialismo brasileiro49 remontam de um longo curso histórico, atravessando todos os períodos da organização política do Estado, aliás, de forma totalmente indene, para não dizer que, sem qualquer exagero, vem ostentando posições cada vez mais fortes e expansivas nas culminâncias políticas da República. Não importa, se Monarquia ou República, se Estado Unitário ou Federado, o patrimo-

44  KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 138.

46  KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61, 2007, p. 50. 47  KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61, 2007, p. 51. 48  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 63. É lamentável afirmar que Jessé de Souza não empreende qualquer dinâmica ao texto criticado e, nem mesmo esclarece, porque isso seria possível, que nem todo o uso da palavra patrimonialismo, antes e hoje, se une inexoravelmente a uma realidade histórica já distante, portanto no início do século passado, ainda que Raymundo Faoro assim tenha feito, porque é simplesmente anular qualquer crítica sociológica por meio de mera gincana conceitual, o que não é algo aceitável. 49  Aliás, a ciranda histórica do patrimonialismo denuncia isso, passando por todos os sistemas econômicos, despontando uma autonomia operacional dentro de qualquer estrutura de poder, alavancando e firmando interesses, por vezes paralelos ou simplesmente convergentes, na tessitura dos projetos políticos do Estado. A dimensão mimética do patrimonialismo é facilmente reconhecida nesta demorada transcrição: “Enquanto o sistema feudal separa-se do feudalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 823-824).

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45  KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 140.

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50  Com bem demonstra esta passagem doutrinária: “O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o estamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo – o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 102). Ora, essas características independem dos arranjos organizacionais e/ou administrativos da estrutura funcional do Estado, muito embora, a depender do modelo adotado, elas se manifestam de forma ainda mais clara nas entranhas político-administrativas do Poder Público. 51  Tais reflexões faz empreender a noção de que: “A ‘crise do Estado’, por mais paradoxal que seja, exige uma reflexão mais aprofundada sobre o Estado. Reflexão esta que saiba lidar com a questão da unidade política tanto quanto com a democracia, a inclusão do povo e do conflito na compreensão do fenômeno estatal, temas que o modelo liberal do direito público não apenas não soube incorporar no seu discurso, como busca ignorar solenemente até hoje” (BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, nº 49, p. 81-99, jul./dez. 2006, p. 98-99). 52  DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 45. 53  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 56. 54  Aqui, é preciso um ligeiro esclarecimento: não se confunde o patrimonialismo com outras formas de relação promíscua na ação política, não é isso, o que se defende é que ele sempre alcança meios de imprimir uma dinâmica corruptiva através de novos instrumentais, daí o formidável recurso de sua capacidade mimética. 55  DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 192. O autor equivoca-se, contudo, quando apregoa a existência de “universo puritano dos norte-americanos” (p. 210 e 227), como se a realidade e seus dilemas, especialmente os de ordem moral, notadamente a figura do pretensamente institucionalizado jeitinho, não fossem, por assim dizer, universais (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 88).

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nialismo sempre encontra ressonância no estamento político, na contumaz orquestra do poder político e, daí, adentrando nos demais segmentos direcionais do Estado. Não há novidade nisso50. O que soa inusitado é defender a tese de que o patrimonialismo é um defunto dessepulto do período imperial, quando, em verdade, ele apresenta ainda maior vivacidade na atualidade, portanto, mais vivo que nunca e mais letal que outrora. A questão é ele atua com novas possibilidades práticas na ciranda institucional do Estado para firmar, além dos limites inerentes do ordinário processo político-administrativo, os interesses privados. Uma coisa é atentar para importância do lobby, regulamentado ou não, que existe em qualquer país; outra, aliás, bastante diversa, é enxergar nas relações político-administrativas uma contínua teia de instrumentos que extrapola o processo político decisório, constituindo, ela mesma, todo um fluxo de benesses estatais que perpetuam uma forma totalmente desigual de concepção das políticas públicas, enfim, da ação política do Estado51. Não se trata propriamente de um estamento tecnoburocrático52 idealizado por Raymundo Faoro, até porque não há um estilo de vida comum numa ambiência de prestígio compartilhado53, mas a compreensão de que novas formas de implicação prática da ação corruptiva evoluem e, com isso, intensificam-se na ação política, inclusive na mesma medida em que as relações político-institucionais também evoluem no ordinário curso das vicissitudes das estruturas do Estado. Os cotejos do patrimonialismo54 são bem diversos, inclusive assumindo posições, não raras vezes, incompreendidas no universo das relações sociais, como que imperceptíveis num primeiro momento, porém, com um pouco de percuciência, percebe-se como a dinâmica da corrupção no meio social assume instrumentais que vão dos extremamente simplórios aos mais complexos, portanto, que vão das hierarquias da convivência comunitária, pretensamente invisíveis e baseadas na intimidade social55, aos parâmetros decisórios centrais das grandes ques-

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56  Nesse ponto, o presidencialismo de coalização, como verdadeiro fator de instabilidade na dinâmica relação político-institucional brasileira, exerce um papel relevante na construção dos instrumentais da corrupção no seio da República, isso porque tais instrumentais, devidamente operados na relevante questão da contratação pública, nas concessões etc., são permeados por um conjunto de fatores políticos que permitem o trânsito dos agentes incumbidos na drenagem dos recursos públicos em benefício do mercado. Na tensão inevitável do jogo político e da tentativa de manutenção no poder, sem sombra de dúvida, o mote da governabilidade representa a chave dos arranjos político-econômicos, nos quais são perfilhados, contínua e intransigentemente, os verdadeiros interesses do patrimonialismo. “Além disso, a capacidade de formar maiorias estáveis e a necessidade de recorrer a coalizões não são exclusivamente determinadas pela regra de representação, nem pelo número de partidos, mas também pelo perfil social dos interesses, pelo grau de heterogeneidade e pluralidade na sociedade e por fatores culturais, regionais e linguísticos, entre outros, que não são passíveis de anulação pela via do regime de representação” (ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, nº 01, p. 05-34, 1988, p. 13-14). Por outro lado, mesmo que se considere a importância de que os Poderes sejam fortes, conforme a tônica da independência e harmonia nas culminâncias do poder, bem como uma consagrada cultura de accountability institucional (PEREIRA, Carlos; MELO, Marcus André. The surprising success of multiparty presidentialism. Journal of Democracy. Baltimore, vol. 23, nº 03, p. 156-170, July 2012, p. 162), é pouco provável que os dilemas da coalizão não repercutam na manutenção dos instrumentais da corrupção na estrutura político-administrativa do Estado. O sistema político, a toda evidência, deve ser repensado. 57

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 203.

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DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 216.

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tões político-econômicas do Estado56. Obviamente, as distinções hierárquicas são geralmente autorizadas pela dinâmica da especialização funcional57, mostrando que a linha divisória entre o que pode e não pode ser feito na convivência diária, numa perspectiva pretensamente legitimadora, encontra apoio no cabedal objetivo da dignidade profissional e, mais adiante, em outras fontes de recursos, que não se limitam propriamente aos de ordem pecuniária. É dizer, na clássica síntese damattiana, “[c]onfie sempre em pessoas e em relações (como nos contos de fadas), nunca em regras gerais ou em leis universais. Sendo assim, tememos (e com justa razão) esbarrar a todo momento com o filho do rei, se não com o próprio rei” 58. Todavia, uma ressalva é necessária, senão os vislumbres da capacitação funcional seriam condenáveis em per si. Ora, o uso do capital cultural, como fator de destaque no meio social, não há nada de condenável, contanto que esse pretendido destaque expresse apenas a importância da atuação funcional no meio social, o dilema exsurge quando tal destaque funcional, que existe independentemente da análise subjetiva do seu titular, conceba um meio para superar os ordinários parâmetros de direitos e deveres na ordem social. Exigir o mesmo tratamento entre pedreiro e engenheiro, no conjunto de suas relações funcionais, afigura-se, além de um dever legal, algo plenamente compaginável com as exigências da convivência comunitária, agora, exigir que a sociedade atribua a mesma importância entre eles, ainda que isso seja desejável, no universo da atuação funcional individualmente considerada, sem sombra de dúvida, é cair na quimera igualitarista absoluta entre os homens, que são verdadeiramente diferentes entre si e sem que isso constitua o verdadeiro sopro de subjugação da humanidade, menos ainda o que perfaz ou direciona o sistema ritual brasileiro entre

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a casa e a rua: o nosso mundo e o outro mundo no espaço de atuação entre pessoa e indivíduo59.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

59

DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 61. Deve-se considerar, por ser uma questão patente, no que circunstancia uma importante ressalva, que a relação entre pessoa e indivíduo, tal como destaca pelo autor, nada particulariza a realidade brasileira, porquanto essa dualidade pode ser aplicada, com maior ou menor extensão, a qualquer país. Nesse ponto, transcreve-se uma ligeira crítica, nestes termos: “Atualmente, essa tese da ‘singularidade cultural’ brasileira, pensada de modo absoluto como um povo com características únicas e incomparáveis – para o bem e para o mal – é como uma ‘segunda pele’ para todos os brasileiros, intelectuais ou não. Essa singularidade é constituída pela junção e combinação das noções descritas acima de personalismo e patrimonialismo” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 29). Acontece que, isso precisa ficar claro, a compreensão do patrimonialismo, pelo menos no atual contexto e do conceito que dele se extrai, não congrega qualquer relação com primitivo, ainda que mantenha uma simbiose direta com a corrupção e as relações de pessoalidade e, nesse sentido, pode tranquilamente existir em qualquer meio social, o que pode variar, evidentemente, é a extensão e o instrumental utilizado para esse fim. A dimensão reflexiva do patrimonialismo não se limita, faz muito tempo, às ideias de Raymundo Faoro. Portanto, não é possível preservar as noções pretéritas sobre o conceito para fazer as críticas com realidade hoje, fato que, infelizmente, parece ocupar boa parte do livro desse autor (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 25).

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Considerando as ligeiras ponderações apresentadas acima, especialmente por questionar o tratamento linear dispensado à formação das instituições políticas brasileiras, concluímos que: (a) a República, decorrente de um golpe militar, representou uma via cômoda de consagrar os interesses das elites político-econômicas, uma vez que o definhar da Monarquia, para além das consagrações abstratas do republicanismo, poderia abrir caminho para movimentos políticos mais consistentes, isto é, mais radicais na transformação da sociedade brasileira, ainda fortemente abalada pela tardia abolição dos escravos; (b) o conceito de federalismo, foi objeto de demoradas discussões ainda na Assembleia constituinte de 1823, inclusive com forte apelo ao modelo norte-americano, que se firmou com o advento da República; todavia, a precisa identificação do seu significado, no que afastava do conceito de confederação, foi obra dos movimentos descentralizadores, já na segunda metade do século XIX, da elite política imperial; (c) a federação consubstanciava uma forma de promover os interesses das elites políticas regionais em face do Estado unitário, que marcava a centralização do poder político no período monárquico, porém, mais importante que a discussão teórica desse modelo, era compreender os interesses que ele carreava na estrutura político-administrativa das províncias, pois, não raras vezes, o levante da descentralização mais serviu para podar a gestão local que propriamente para robustecer a autonomia política dos Estados; e (d) o patrimonialismo possui um curso histórico próprio na literatura nacional, de forma que, hoje, ligá-lo às premissas teóricas weberianas representa um vexado equívoco e, claro, desconsidera a história desse conceito no Brasil, que não se baseia numa mera relação estamental, promovendo diversas adaptações das práticas corruptivas em função das vicissitudes nas instituições político-administrativas, o que comprova sua inacreditável capacidade mimética.

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ABSTRACT The article discusses the origin of the Republic and the Brazilian federalism, highlighting a historical course of contradictions between the theory of political institutions, their models and purposes, with the reality of institutions stamped with the advent of the Republic of 1889. In addition, subject for debate the interference of patrimonialism in promoting political action, as historical reality since the monarchy, accentuating its mimetic capacity in the face of changes in institutions or models of public management, which exploits, with wide success, the corrupting practices in organic-functional structure of state. Keywords: Republicanism. Federalism. Patrimonialism. Corruption.

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SEXO E PODER: A BIOPOLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT Patrícia Marques Freitas1 Ana Christina Darwich Borges Leal2

RESUMO O presente trabalho visa estudar a biopolítica sobre a ótica da sexualidade. Por isso foi feito um recorte específico na obra de Foucault, notadamente, sobre A história da sexualidade, v 1, A vontade de saber, na qual o autor expõe o dispositivo do sexo como um dos mecanismos de controle da população, igualmente como a medicina também se apresentou como uma tecnologia de poder. Assim, a psiquiatrização do sexo e os programas de eugenia passam a ser as duas grandes inovações da tecnologia do sexo da segunda metade do século XIX, o que contribui para a nova era do biopoder. Palavras-chave: Sexo. Poder. Biopoder. Biopolítica. Direitos humanos.

Centrando a análise da biopolítica e do biopoder sobre o sexo, em História da sexualidade, mais precisamente em A vontade de saber, Foucault questiona a visão comum a respeito da repressão sexual, ele propõe outra linha investigativa na qual o sexo aparece como dispositi-

1  Doutoranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pelo Centro Universitário do Pará, Professora, Pesquisadora e Advogada, associada ao Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e pesquisadora do grupo de “Filosofia Michel Foucault” da PUC/SP e do grupo “Sujeito, normalização e acesso à justiça” do CESUPA, atuando principalmente nas seguintes áreas: Filosofia do Direito, Biodireito/Bioética e Direitos Humanos. 2  Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahía (UFBA); Mestre e Doutora em Ciências Humanas e Sociais pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ; Professora do Programa de Pós Graduação em Direito do Centro Universitário do Pará - CESUPA.

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1 INTRODUÇÃO

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vo de controle e em que não há exclusão pela repressão, mas pela patologização. Aparecem as perversões sexuais estudadas pela medicina e cada uma com sua característica específica, a família burguesa e as preocupações com a mulher histérica, a criança onanista, a perpetuação da prole forte e saudável, elementos que formavam o racismo biologizante e que marcaram as campanhas de saúde da época. A medicina interviu na intimidade dos casais e passou a definir como se comportar, como viver a sexualidade, tudo para garantir o controle da vida e da vida para a produção, que mantivesse a roda capitalista sempre girando.

2 A VONTADE DE SABER

É verdade que já há muito tempo se afirmava que um país devia ser povoado se quisesse ser rico e poderoso. Mas é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante, uma sociedade afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamentos e à organização familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo. Passa-se das lamentações rituais sobre a libertinagem estéril dos ricos, dos celibatários e dos libertinos para um discurso em que a conduta sexual da população é tomada, ao mesmo tempo, como objeto de análise e alvo de intervenção.

Nas sociedades modernas o sexo não ficou obscurecido como antes, o que ocorre é que ele é valorizado como o segredo, e do qual se fala sempre. O objetivo era reduzir ou excluir as

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No percorrer do caminho que Foucault trilhou para tratar da biopolítica tem-se em seguida a História da sexualidade, V 1, A vontade de saber. Nessa obra Foucault enfatiza a importância do controle do sexo por meio, inclusive da medicina, como ponto chave para os mecanismos e técnicas de controle da sociedade e, principalmente, dos corpos dos indivíduos. No texto sobre o nascimento da medicina social, havia uma necessidade de controle dos indivíduos com o emprego de técnicas que visavam à saúde de determinada comunidade, técnicas essas que obedeciam a esquemas de padronização. A análise, nesse momento, se refere ao sexo. É preciso saber de antemão que no século XVIII, o surgimento do fenômeno da “população”, como problema econômico e político, foi uma novidade para as técnicas de poder. Desse modo, os governos teriam que lidar com a população e tudo que estivesse relacionado com ela, que eram a natalidade, morbidade, expectativa de vida, fecundidade, saúde, alimentação e moradia. Portanto, no núcleo do problema econômico e político que a população representa encontra-se o sexo. Ora, é preciso saber e analisar a taxa de natalidade, a idade em que as pessoas casam, os nascimentos fora e dentro do casamento, a idade em que se inicia a vida sexual, a frequência com que as pessoas mantêm relações sexuais, as técnicas de fecundidade e de esterilização, o efeito do celibato, a incidência das práticas contraceptivas. Para Foucault (2015, p.29):

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práticas que não tivessem por finalidade a reprodução. Com isso, os discursos em torno do sexo diziam não às atividades infecundas, banindo os prazeres paralelos, assim, multiplicaram-se as condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença mental. Dessa maneira, definiram-se normas do desenvolvimento sexual e se caracterizaram todos os possíveis desvios, organizando-se controles pedagógicos e tratamentos médicos para qualquer anormalidade, portanto, a hipótese foucaultiana era a de que toda essa ordenação e adequação em torno do sexo visava proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora. Tanto na ordem civil como na ordem religiosa o que se levava em conta era um ilegalismo global. Sem dúvida, o “contra a natureza” era marcado por uma abominação particular. Mas era percebido apenas como uma forma extrema do “contra lei”; também infringia decretos tão sagrados como os do casamento e estabelecidos para reger a ordem das coisas e dos seres. As proibições relativas ao sexo eram, fundamentalmente, de natureza jurídica. A “natureza”, em que às vezes se apoiavam, era ainda uma espécie de direito. Durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção. (FOUCAULT, 2015, p.42).

Há os exibicionistas de Laségue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres dispaurênicas. Esses belos nomes de heresias fazem pensar em uma natureza o suficiente relapsa para escapar à lei, mas autoconsciente o bastante para ainda continuar a produzir espécies, mesmo lá onde não existe mais ordem. A mecânica do poder que ardorosamente persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente: encrava-o nos corpos, introduz-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão desses milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua disseminação, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo. (FOUCAULT, 2015, pp.48 e 49).

Aqui se retorna aos dois grandes modelos de organização médica que marcaram a his-

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A concepção de que algo era natural serviu para a base do que seria aceito e o que não seria no que dizia respeito ao sexo, de modo que tudo que desviasse do considerado natural era adoecido. Assim, a questão não era repressiva, mas de definição do que era saudável e do que era patológico. Nesse sentido, a medicina adentrou com grande aparato nos prazeres do casal, criando patologias orgânicas, funcionais ou mentais, provenientes das práticas sexuais ditas incompletas, classificou com minúcias todas as formas de prazeres anexos e relacionou-os ao desenvolvimento e às perturbações do instinto. Com isso:

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tória do ocidente, que foram o modelo que resultou do problema da lepra e o modelo utilizado para controlar a peste. Nesse caso, mais especificamente, se verifica o modelo da peste, pois não há a expulsão do indivíduo doente, sua exclusão se dá de outra forma, por meio da classificação de sua condição. Ele é definido como sendo o homossexual, o transexual, o hermafrodita, o exibicionista, o voyeur, o que lhe confere um lugar determinado de exclusão dentro da própria sociedade, dessa forma que o controle ocorre. De acordo com Foucault, é preciso abandonar a ideia de que as sociedades industriais modernas criaram um momento de maior repressão sexual. Houve na verdade uma profusão de sexualidades heréticas, bem como o surgimento de um dispositivo bem diferente da lei, que assegurava a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas. Assim, nunca houve tantos centros de poder, tanta atenção manifesta e prolixa, nem tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a insistência dos poderes para se disseminarem mais além. No século XIX surge uma ciência sexual (scientia sexualis), conhecida por sexualidade, em que se dava uma roupagem científica ao saber relacionado ao sexo. Assim havia duas frentes de estudo sobre o sexo, uma biológica, fundada na reprodução e em uma normatividade científica geral, e, a outra ligada à medicina. Com base nisso, Foucault revela que o sexo não foi somente objeto de sensação e prazer, de lei ou de interdição, mas também de verdade e falsidade, tendo se constituído em objeto de verdade. A história da sexualidade deve ser vista sob a ótica da história dos discursos, o que se procurava com a ciência sexual era a produção de sua verdade. A sexualidade foi dominada por processos patológicos, que solicitavam intervenções terapêuticas ou de normalização. Foucault define alguns dos mecanismos da discursividade científica utilizados pela sexualidade, são eles, a técnica de escuta, postulado de causalidade, princípio de latência, regra da interpretação e imperativo de medicalização.

Foucault entende que o estudo a respeito das relações históricas entre o poder e o discurso sobre o sexo deve desconsiderar uma representação jurídica e negativa do poder, por isso, a proposta é que não se pense o poder em termos de lei, de interdição, de liberdade e de soberania. Assim, para o filósofo, nas sociedades modernas o poder não regeu a sexualidade ao modo da lei e da soberania. Nesse sentido, a medida que se assume esta proposta, ou seja, conceber uma interpretação do poder sem princípios implícitos no sistema do direito e na forma da lei, se passa a considerar assim, outra teoria do poder, outra concepção do poder, em que o sexo não tem lei e o poder não tem rei. Dessa forma, para Foucault (2015, pp.100 e 101), o poder: Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de

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3 DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE

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Assim, Foucault inverte a fórmula e diz que a política é a guerra prolongada por outros meios. Portanto, o poder deve ser entendido a partir das seguintes características: 1) ele não é algo que se adquira, ele se exerce em meio a relações desiguais e móveis; 2) as relações de poder são imanentes a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimento, relações sexuais), são os efeitos dos desequilíbrios e desigualdade que se produzem nestas relações; 3) além disso, o poder vem de baixo, “isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social,” (FOUCAULT, 2015, p.102); 4) as relações de poder são ainda, e ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas; assim, para Foucault, o poder não resulta da escolha ou da decisão de um único indivíduo, nem de uma equipe que preside sua racionalidade, nem de uma casta que o governe, nem de grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem daqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes; 5) finalmente, outra característica é que onde há poder há resistência. Contudo, tratando do tema dos dispositivos ligados à sexualidade, Foucault estabelece que a partir do século XVIII, surgem quatro grandes conjuntos estratégicos que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder sobre o sexo, que são a histerização do corpo da mulher; a pedagogização do sexo da criança; a socialização das condutas de procriação e a psiquitrização do prazer perverso. Ao longo do século XIX, aumenta a preocupação em torno do sexo e dessas quatro figuras de saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal

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correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações, forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de vista que permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais periféricos e, também, enseja empregar seus mecanismos como chave de inteligibilidade do campo social não deve ser procurada na existência primeira de um ponto central, num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes; é o suporte móvel das correlações de forças que, devido a sua desigualdade, induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis. Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de autorreprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apoia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.

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malthusiano e o adulto perverso. Com isso, a respeito das perversões, Foucault (2015, pp.128 e 129) revela que: A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX. Inovações que se articulavam facilmente, pois a teoria de “desgenerescência” permitia-lhes referirem-se mutuamente num processo sem fim; ela explicava de que maneira uma hereditariedade carregada de doenças diversas – orgânicas, funcionais, pouco importa – produzia, no final das contas, um perverso sexual (faça-se uma busca na genealogia de um exibicionista ou de um homossexual e se encontrará um ancestral hemiplégico, um genitor tísico ou um tio com demência senil): mas explicava, também, de que modo uma perversão sexual induzia um esgotamento da descendência – raquitismo dos filhos, esterilidade das gerações futuras.

Foi na família burguesa, ou aristocrática, que se problematizou inicialmente a sexualidade das crianças ou dos adolescentes; e nela foi medicalizada a sexualidade feminina; ela foi alertada, primeiramente, para a patologia possível do sexo, a urgência em vigiá-lo e a necessidade de inventar uma tecnologia racional de correção. Foi ela o primeiro lugar de psiquiatrização do sexo. Foi quem entrou, antes de todas, em eretismo sexual, dando-se a medos, inventando receitas, pedindo o socorro das técnicas científicas, suscitando, a fim de repeti-los para si mesma, discursos inumeráveis. A burguesia começou considerando que o seu próprio sexo era coisa importante, frágil tesouro, segredo de conhecimento indispensável. A personagem investida primeiramente pelo dispositivo de sexualidade, uma das primeiras a ser sexualizada, foi, não devemos esquecer, a mulher ociosa, nos limites do mundo – onde sempre deveria figurar como valor – e da família, onde lhe atribuíam novo rol de obrigações conjugais e parentais: assim apareceu a mulher nervosa, sofrendo de vapores; foi aí que a histerização da mulher encontrou seu ponto de fixação. Quanto ao adolescente, desperdiçando em prazeres secretos a sua futura substância, e à criança onanista que tanto preocupou médicos e educadores, desde o fim do século XVIII até o fim do século XIX, não era o filho do povo, o futuro operário, a quem se deveria ensinar as disciplinas do corpo; era o colegial, a criança cercada de serviçais, de preceptores e de governantas, e que corria o risco de comprometer menos uma força física do que capacidades intelectuais, que tinha o dever moral e a obrigação de conservar, para sua família e sua classe, uma descendência sadia. (FOUCAULT, 2015, pp.131 e 132).

O que se percebe, por meio dos estudos de Foucault, é que muitos dos temas ligados

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Foucault é persistente ao dizer que não se tratava de uma teoria, a ideia de perversão-hereditariedade-degenerescência constituiu a matriz das novas tecnologias do sexo. Essa concepção foi amplamente implantada. Toda uma prática social se pautou sobre o racismo de Estado, foi assim que se usou a psiquiatria, a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias de controle social, a vigilância das crianças perigosas ou em perigo, todas baseadas no sistema perversão-hereditariedade-desgenerescência, dando a essa tecnologia do sexo um poder sem precedentes.

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aos hábitos de casta da nobreza aparecem de novo na burguesia do século XIX, mas sob o viés de preceitos biológicos, médicos ou eugênicos. As preocupações em juntar os casais em laços matrimoniais, não estavam somente nas promessas de herança, imperativos econômicos e regras de homogeneidade social, mas também nas ameaças da hereditariedade, ou seja, os genes que seriam herdados de cada parceiro. Outro objetivo que reforçava essas preocupações era o projeto de expansão infinita da força, do vigor, da saúde e da vida, propiciando o crescimento e estabelecimento da hegemonia burguesa. Como prova: Testemunhos disso são as obras publicadas em número tão grande, no fim do século XVIII, sobre a higiene do corpo, a arte da longevidade, os métodos para ter filhos de boa saúde e para mantê-los vivos durante o maior tempo possível, os processos para melhorar a descendência humana; eles atestam, portanto, a correlação entre essa preocupação com o corpo e o sexo e um certo racismo. Mas este é bem diferente do manifestado pela nobreza, ordenado em função de fins essencialmente conservadores. Trata-se de um racismo dinâmico, de um racismo da expansão, embora só encontrado ainda em estado embrionário e tendo tido que esperar até a segunda metade do século XIX para dar os frutos que acabamos provando. (FOUCAULT, 2015, p.137).

Consubstanciando o projeto eugênico, a defesa do vigor físico e da vida se restringia aos considerados os “melhores” da sociedade, que representavam uma elite branca. É nesse momento da obra (A vontade de saber), que Foucault adentra de maneira mais clara no tema da biopolítica.

De forma concreta, o poder sobre a vida se desenvolveu a partir do século XVII, caracterizado por duas formas principais: uma que se focou no corpo como máquina, ou seja, no adestramento do corpo, na ampliação de suas habilidades, na extorsão de suas forças, no crescimento de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos, sendo tudo isso assegurado por procedimentos de poder assinalados pelo que Foucault chama de disciplinas anátomo-políticas do corpo humano. A segunda forma principal de poder sobre a vida, que surge na metade do século XVIII, se concentrou na figura do corpo-espécie, em que havia a preocupação com os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, e com todas as condições que podem fazer esses níveis variar, assim, são assumidos uma série de intervenções e controles entendidos como reguladores formando uma biopolítica da população. Desse modo, são dois polos de atuação que constituem o biopoder, de um lado as disciplinas do corpo e de outro as regulações da população, é a instalação durante a época clássica, da organização do poder sobre a vida. Período em que há o desenvolvimento de disciplinas diversas: escolas, colégios, casernas, portanto, em que surgem numerosas técnicas para se obter

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4 A ERA DO BIOPODER

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a sujeição dos corpos e o controle das populações, que inaugura, então, a era de um biopoder. Para a tese foucaultiana, esse biopoder foi primordial para o desenvolvimento do capitalismo, que só se estabeleceu com a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e ainda, pela adequação dos fenômenos que surgem na nova ideia de população aos processos econômicos. Nesse propósito, foram necessárias as instituições de poder, que garantiam a manutenção das relações de poder; bem como, as técnicas de poder que se faziam presentes em todos os níveis do corpo social, que foram utilizadas por vários tipos de instituições: a família, o exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades. Com isso, Foucault (2015, p.154) designa a biopolítica como: O que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhe escapa continuamente. Fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do que nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e, em todo caso do que antes do nascimento da microbiologia. Mas o que se poderia chamar de “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas.

Sobre a sociedade normatizadora, Foucault (2015, p.156) assim se pronuncia:

Portando, o sistema normalizador foi utilizado como mais uma instituição que visa ajustar a vida e as condições que derivam da vida em sociedade, como técnica de poder que disciplina e regula, a fim de os pilares do capitalismo possam se justificar e se desenvolver. Assim, as leis aparecem como normalizadoras da vida, por isso, são criadas leis que abarcam todas as relações que existem na humanidade, isso na sociedade moderna e ocidental. Nesse sentido, Foucault faz uma crítica aos direitos humanos, dizendo que contra esse poder acima descrito, a luta que se faz se apoia exatamente sobre aquilo no que ele investe, ou seja, na vida e no homem enquanto ser vivo. As reivindicações se dão em torno da vida, entendida como os direitos fundamentais. Assim, a vida como objeto político passa a ser reivindicada e provoca uma luta contra o sistema que tenta controlá-la. Para Foucault, ainda que se façam afirmações de direito: direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, no fundo, o objeto das lutas políticas seria a vida.

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Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador.

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Finalmente, sobre o racismo que se forma nesse regime biopolítico, um racismo biologizante, toda a política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquização social, da propriedade e todas as intervenções ao corpo, na saúde, receberam, portanto, uma preocupação em se proteger a pureza do sangue e priorizar a raça pura. Para Foucault, o nazismo, essa ordenação eugênica da sociedade, que comportava a extensão e a intensificação dos micropoderes, a pretexto de estatização ilimitada, era acompanhada da exaltação do sangue superior, resultando no genocídio dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total, produzindo assim, um dos maiores massacres da história da humanidade.

Ao contrário do que se pensa, o sexo, nas sociedades modernas, não foi sinônimo de repressão, pois nunca se falou tanto sobre o sexo, a diferença é que ele passou a ser estudado sobre o viés científico. A ciência sexual, ou sexualidade separou o que era natural do patológico, foram criadas nomenclaturas distintas para definir as perversões sexuais, tudo se fez para que o objetivo do sexo fosse a procriação, esse era seu fim, o que estivesse fora disso era considerado desperdício ou doentio. Nesse sentido, fica clara a tecnologia de controle por meio do sexo, momento em que Foucault trata do poder, não como algo que se possa adquirir, mas como uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada, o poder vem de baixo, não obedece a uma hierarquia de cima para baixo, ele é horizontal, o poder está na relação e é imanente a todo tipo de relação, e, finalmente, onde há poder há resistência. Nas relações sexuais também há poder, mas também há poder nos dispositivos de sexualidade. A medicina das perversões e os programas de eugenia criaram tecnologias de poder ligadas ao sexo, que tinham por finalidade manter a pureza da raça. Desse modo, surgiu a ideia da perversão-hereditariedade-desgenerescência, segundo a qual o próprio instituto do casamento era pensado como forma de unir casais que pudessem perpetuar genes fortes e saudáveis para a sua prole. Portanto, a era do biopoder foi primordial para o desenvolvimento do capitalismo, as tecnologias disciplinadoras e regulamentadoras, próprias do biopoder, serviram para propiciar esse ajuste entre o comportamento da população, sua conduta sexual, inclusive, às necessidades da produção e aos imperativos do mercado, bem como às circunstâncias de poder que existissem à época.

REFERÊNCIAS CASTELO BRANCO, Guilherme. Michel Foucault: filosofia e biopolítica. Belo Horizonte:

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Autêntica Editora, 2015; FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012; FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970; trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 23 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013. ________________. A verdade e as formas jurídicas; trad. Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013. ________________. Ditos e escritos: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento; organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; trad. Elisa Monteiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. ________________. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976); trad. Maria Emantina Galvão. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010; ________________. História da sexualidade 1: A vontade de saber; trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. _______________. Microfísica do poder; trad. Roberto Machado. 25 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008; _______________. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (19781979); trad. Eduardo Brandão; rev. trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

PORTOCARRERO, Vera. Classificação em saúde mental e biopolítica. Revista de Filosofia Aurora, v.28, n.45, 2016. Disponível em: http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/rf Acesso em: 22 fev. 2017. SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética; trad. Ana Carolina Mesquita. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. SEX AND POWER: THE BIOPOLITICS IN MICHEL FOUCAULT’S WORK ABSTRACT This work aims at studying the biopolitics under the sexuality perspec-

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_______________. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975); trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010;

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tive. In order to do so a snapshot of Foucault’s work was taken, more specifically, from History of sexuality, v 1, The desire to know, in which the author shows sex as one of the mechanisms of population control, just like Medicine was used as a technology of power. Thus, the psychiatrization of sex and eugenics programs became the two major innovations of technology of sex in the second half of the 19th century, contributing to the new era of Biopower. Keywords: Sex. Power. Biopower. Biopolitics. Human rights.

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Recebido 17/02/2017 Aceito 02/05/2017

A DEMOCRACIA EM “MIGALHAS”: SARAMAGO E AS TENSÕES NA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA Raphael Henrique Figueiredo de Oliveira1

RESUMO A democracia moderna, erguida sob os pilares da representação política, na qual o povo, soberano, é titular do poder, mas elege representantes que façam do Estado - da máquina pública, funcional, vê-se em embate interminável com a realidade de um jogo político tramado a partir das regras de interesses de classes oligárquicas dominantes, às quais interessa a democracia miserável que José Saramago tinge em sua obra Ensaio sobre a lucidez. No desarranjo do Estado Democrático brasileiro, o binômio desnudado ideal x realidade subverte a ordem democrática e deslegitima sua lógica solidária. Quem perde? O povo. Palavras-chave: Direito e literatura. Democracia moderna. Democracia representativa.

(Bertolt Brecht)

1 INTRODUÇÃO Há, de certo, um imenso fervor teórico no trato com a Democracia. O debate deste sistema político envolve paixões, ideais, perspectivas econômicas e sociais, que raramente se

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Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).

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“Ou é possível que governar seja tão difícil apenas porque a fraude e a exploração exigem algum aprendizado? ”

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convergem e que, por isso mesmo, interessam à manutenção da ordem democrática. O dissenso na democracia é pedra basilar ao seu pleno desenvolvimento, e não nos parece louvável que se entoe o grito democrático se o espaço do cidadão não seja, inteiramente, um espaço de diálogo – contemplado, também, o sentido vertical desta ideia, que reflita, assim, o diálogo entre Estado, governo e povo. A democracia é tema ainda pautado na pós-modernidade; mas, como ideia e teoria, entretanto, é um discurso antigo, provindo de séculos de enfrentamentos teóricos. No trilho da história da humanidade, a democracia tem sido tema pulsante nas ideias de grandes pensadores. Sobre ela se debruçaram os sábios da filosofia grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, também Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jaques Rousseau - os últimos, pertencentes ao contratualismo - Kant, Marx e Engels, Nietzsche. Fato é que a democracia é vasto campo para o pensamento, o que decorre, sobretudo, das peculiaridades que esse sistema de governo carrega em seu íntimo, bem como de seu contraste quando pensada e praticada. As provocações democráticas são das mais variadas naturezas. Podemos referenciar ao seu de estado permanente mutabilidade, pois a prática democrática é tarefa continuada que não se esgota, implicando, por assim ser, num exercício interminável; também, seus esteios que vão à frente, tais como a soberania popular, a igualdade e a liberdade, são aspectos mais viscerais de um ideal que almeja reduzir as discrepâncias das sociedades pós-modernas. Discutir democracia é, portanto, discutir o espaço que habitamos, também os ideais que perseguimos, e, sobretudo, é a permissão para que possamos pautar o Estado brasileiro, desvelando suas facetas, por vezes miseráveis, e, noutras, louváveis. É, assim, na esteira dessas ideias, que este artigo propõe um exercício reflexivo da democracia brasileira, teorizando, em especial, suas tensões ante um sistema político representativo, que, malgrado a nominação, não representa senão os interesses de uma minoria economicamente dominante. Para essa tarefa, propomos que os estudos de Direito e Literatura pincelem um quadro geral que os estudos jurídicos, por si só, não são hábeis a fazer. Assim, como pano de fundo à temática deste artigo, a obra de José Saramago, Ensaio sobre a lucidez, será a obra paradigma eleita para ilustrar as ideias das linhas que seguirão. Faremos, também, uma releitura histórica da democracia, desde a clássica até a moderna, trançando as nuances do desenvolvimento democrático em nosso país, realçando os jogos de interesses que a permeiam e culminam num quadro representativo falido e viciado. Finalmente, ao cabo deste artigo, apontaremos para algumas aspirações ao ideal democrático brasileiro. Da democracia vivenciada, experimentada, despontará alguns ideais para a desconstrução de sua miséria atual. Miséria, que no sentido deste artigo, reflete a noção de um Estado Democrático teorizado, mas pouco praticado. E que, na essência, é constantemente ferido por interesses particulares.

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Ainda nesta introdução, abarquemos os estudos de Direito e Literatura, indicando, pois, sua validade para o desenvolvimento das ideias que seguirão. Em continuidade, uma curta resenha da obra paradigma eleita, e, na sequência, o desenvolvimento dos apontamentos gerais sobre a matéria. 1.1 Dos estudos de Direito e Literatura

nudar as hipocrisias do tempo presente, é ela, portanto, aquilo a que devemos, na qualidade de uma arte com nascedouro humano, perseguir. A democracia, como permanente exercício, e, por conseguinte, como como eterno vir-a-ser, pressupõe um povo participativo, solidário, crítico, e que, sobretudo, almeje ao diálogo, no seio de uma noção dialética do saber. O cidadão contemporâneo deve advir da junção destas qualidades, e o Estado, ainda que algo não palpável, deve, em seus representantes eleitos, incutir a ideia de uma democracia social. É, na esteira dessas reflexões, que se descobre na arte literária a condição indispensável ao bom desenvolvimento democrático.

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Pautados nas interdisciplinaridades da ciência jurídica com a literatura, os estudos de Direito e Literatura aproximam essas duas frentes a partir da linguagem, que, num ou noutro caso, é sua matéria prima. Contemplar a literatura como arte, e, propriamente, como um saber humano construído, e assim referenciar também à ciência jurídica como construção humana pautada na linguagem, permitirá que o texto literário se aproxime das questões jurídicas, desde as dogmáticas até as jusfilosóficas, para desnudar questões que apenas a norma não pode iluminar. A linguagem, que nos textos é transmutada em escrita, é comum aos dois saberes que aqui pautamos (ciência jurídica e arte literária). De suas interseções eclodirá uma imensidão de temas discutíveis, os quais ganharão corpo no imaginário do homem justamente a partir das fantasias de uma literatura fantástica, que desenhe aquilo que a teoria apenas sistematiza. É para a superação de ideias jurídicas vazias, dogmáticas e positivas, que pretendemos trazer à baila os estudos de Direito e Literatura. Sua abertura textual, praticada pela união do imaginário com as palavras, é hábil a fazer brotar em seus praticantes a criticidade, que em razão de pensamentos prontos, frases feitas e remoídas, tem sido sucateada na contemporaneidade. O texto literário, crítico e criador por essência, é então aquilo que nos move no mundo e que, através da linguagem, humaniza. A noção de humanidade, que desejamos ver gravada nas linhas democráticas, a fim de praticarmos uma democracia moderna que seja sensível e humana, encontra seu nascedouro no texto crítico, capaz de metamorfosear o leitor em cidadão, tirando-o, por conseguinte, da condição de mero espectador democrático, que a tudo vê como imutável ou contingente. Se a literatura é capaz de desvelar mundos, pautar controvérsias pouco discutidas, des-

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1.2 Da obra paradigma elegida: apontamentos necessários

tanto, de elegerem seus representantes, dando funcionalidade à máquina estatal. Passadas algumas horas, a eleição ocorrerá após a chegada dos votantes quase ao fim do dia eleitoral. Apurados os votos, constata-se setenta por cento de votos em branco - reparemos no branco como tom das obras de Saramago, antes a cegueira branca e, nesta, o voto em branco. Diante disso, os partidos decidem refazer a votação, pressupondo que os fatos não se simpatizam com os ideais democráticos, e que dessa maneira, de forma alguma, o resultado se repetiria numa nova eleição. A eles, seguramente o povo se conscientizaria do erro democrático que praticavam ao impossibilitar a eleição de um representante, e assim acabariam por destinar seus votos a algum dos partidos. O resultado da segunda eleição? Oitenta e três por cento de votos em branco! O governo, ainda vigente, decide declarar, na capital, estado de exceção, impedindo a saída dos cidadãos e o ingresso nela de quaisquer outros, a fim de ordenar aquilo que a eles soava como um “mal-entendido” democrático; mas, superável nos próximos meses, bastando, unicamente, que fossem descobertos aqueles que tramaram esse “atentado à democracia”. A trama se desenvolve, e o governo, no intento de causar certo impacto no imaginário dos cidadãos, pretendendo, assim, despertar neles a atenção para o equívoco cometido, abando-

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Ensaio sobre a lucidez, escrito por José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, foi publicado em 2004, e é uma obra que dialoga com outra do gênio português, a mais aclamada delas, Ensaio sobre a cegueira. O diálogo entre as obras decorre da presença dos mesmos personagens numa e noutra, e também pela similitude dos cenários, afinal a nova trama se passa - embora não mencionado no corpo do texto - na capital que outrora foi palco da cegueira branca fruto da imaginação criativa de Saramago. A obra Ensaio sobre a lucidez discorre sobre o período eleitoral numa capital, na qual, num domingo chuvoso, e já abertas às sessões eleitorais ao povo, os elegíveis ficam perplexos pela ausência dos eleitores às urnas, que apenas a elas comparecerão ao fim do dia, horas antes do término previsto para o pleito. A ausência dos votantes, fato que intriga os representantes dos três partidos concorrentes, respectivamente os partidos da direita, da esquerda e de centro, assim nominados na obra, provavelmente teria como causa, nas ideias dos elegíveis, a forte chuva que tomava de assalto a capital naquele domingo, e que, consequentemente, dificultava a chegada aos colégios eleitorais. Enfim, fato é que enquanto os eleitores não vão às urnas, os diálogos entre os representantes de cada partido são construídos no intuito de legitimar as eleições e, não obstante, desprestigiar quaisquer reflexões que apontem para um descontentamento geral com o sistema democrático. Estavam eles convencidos de que os cidadãos nunca abdicariam de exercerem o seu dever cívico, aquilo que mantem viva a democracia naquela capital. Não desistiriam, por-

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2 DA DEMOCRACIA CLÁSSICA À MODERNA: O BERÇO DEMOCRÁTICO E AS DEMOCRACIAS DE MASSA A contemporaneidade trouxe desafios à prática da democracia, em especial se confrontadas suas frentes que se repelem, quais sejam a democracia como ideal, como pensamento teórico, e a democracia como prática. A democracia moderna, indireta e em essência representativa, é fruto do avanço das sociedades, sobretudo do avanço no quórum de pessoas hábeis ao exercício da cidadania, e, portanto, cidadãos.

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na a capital. Parecia-lhes lógico que um povo sem governo não prosperaria, e que, tão logo, os cidadãos aclamariam pelo retorno de seus representantes. Isto não ocorre! A capital se organiza; seus cidadãos saem às ruas para fazerem os serviços públicos essenciais; os trabalhadores retomam suas rotinas, e nenhuma falta lhes faz o governo. A classe política dominante idealiza novas formas de instaurar o caos na capital, com o propósito de incutir no povo o anseio pelo retorno do governo. Assim, promovem atentados na capital, e elegem como perseguidos políticos - pois, em tese, teriam eles tramado todos estes infortúnios, os personagens principais de Ensaio sobre a cegueira, e, em especial, a “esposa do médico”, que nos tempos de cegueira branca não cegou. Com o passar dos dias, também a mídia exercerá papel de suma importância nas tentativas deliberadas pelo governo de restabelecer a ordem democrática - ou que imaginam democrática naquele espaço. As mensagens elaboradas pelo governo, e televisionadas em rede pública, também emitidas em rádio, evocam o papel da democracia, a função dos representantes, e incitam o ódio contra aqueles que através do voto em branco promovem a desestrutura do aparato estatal; clamando, não obstante, às consciências dos cidadãos para que percebam o mal que causará a ruptura do sistema democrático. Par e passo, o governo designa agentes especiais, dando-lhes, na sequência, a missão de descobrirem quem são os idealistas por detrás deste movimento de votos em branco, sem, contudo, deixar que transpareçam suas identidades, afinal se infiltrariam na “capital desgovernada”. Encerra-se a obra sem que saibamos o desenrolar dos dias futuros naquela capital; isto é: se o governo é reestabelecido, e, com ele, retornada a máquina pública. A despeito disso, fato é que o governo assassinará a mulher do médico, também o agente especial designado para perseguir, pois o tem como indigno, afinal publica num jornal a trama perpetrada pelos representantes políticos, inocentando a “mulher do médico” de quaisquer culpas. Contados, finalmente, no montante de cidadãos mortos pela ganância de poder do Estado, e vitimados num atentado à bomba no metrô da capital, à mando do governo, vinte e sete pessoas. Feitos estes apontamentos gerais sobre a obra paradigma eleita, passemos ao enfretamento de alguns temas que com ele se relacionam no plano democrático.

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Ocorre que, a democracia como símbolo do poder do povo, e dele advindo, viu-se com o desenrolar dos séculos atarefada em tornar o Estado Democrático, na qual se instala, um estado funcional, sem que isso implicasse num pequeno contingente de cidadãos a praticá-la. Isto é, a tarefa da democracia era saltar do plano teórico para o plano prático, no qual os interesses divergentes entre os cidadãos é obstáculo funcional ao exercício democrático. Seguramente, não estamos tratando aqui do dissenso, que, como apontado na introdução, é fundamental ao pleno desenvolvimento democrático. Mas, queremos apontar para o fato de que um contingente numeroso de cidadãos de um Estado, tal como o brasileiro - que é democrático, ao menos formalmente - tem o desafio de ser funcional e englobar, nas instâncias decisórias comuns, os interesses da coletividade. Esse desafio é atual quando comparado àquilo que a história considera como o berço da democracia num contexto amplo. A Grécia, mas não toda ela - vejamos que Atenas era democrática, e Esparta monárquica - funda a prática democrática direta. Contudo, observemos que a democracia direta praticada em Atenas, apenas era possível e funcional porque nem todos eram alçados à qualidade de cidadão, de modo que a exclusão de parcelas consideráveis do povo era legitimada no sistema adotado e lhe dava contornos. Vejamos: “em meio aos elogios dos modernos à democracia ateniense, uma crítica reponta: ela negava participação na ágora às mulheres, aos menores de idade, aos escravos e estrangeiros” (RIBEIRO, 2008, p. 18). Também, a existência de outros mecanismos decisórios, tais como os sorteios para o exercício de funções públicas e as assembleias populares nas ágoras, permitiam que o sistema democrático ateniense se movimentasse. Em suma, nas democracias diretas, inviáveis diante das extensões dos Estados contemporâneos, o poder era exercido pelo povo, que o materializava em decisões conjuntas, tanto nas demandas legislativas, executivas ou de juízo condenatório. Por sua vez, as democracias modernas, ditas de massa - porque envolvam um imenso contingente de cidadãos hábeis a exercê-la, recorreram ao sistema representativo como fôlego para um estado funcional, seguindo, não obstante, nas mãos do povo o poder. É dizer: o poder, uno e indivisível, permanecerá nas mãos do povo, que é seu titular, o qual, de tempos em tempos, através de um processo eleitoral equânime, justo e harmonioso, entrega o exercício das funções estatais a um ou outro representante, que deve, em tese, representar os seus interesses nas instituições democráticas. Isto é: “Quando votamos, é como se nomeássemos procuradores, que decidirão por nós: estaremos vinculados pelos atos que eles praticarem” (RIBEIRO, 2008, p. 32). Todavia, a noção de representação nas democracias modernas não deve ser uma implicante lógica do desgarro dos cidadãos no exercício democrático. Queremos com isso dizer, que a ideia da representatividade, no sentido de que haja outro (o representante) escolhendo pelo representando, não deve ser causa do distanciamento do segundo no plano decisório. Neste sentido, ganha prestígio o ideal de uma democracia representativa que se permi-

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ta ser social e participativa. O povo, nas democracias modernas, continua a imperar como titular do poder do Estado, a quem a máquina estatal que desejamos funcional deve se curvar. Assim: “A democracia não teme, antes requer, a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na ação governamental” (SILVA, 2012, p. 136). Pois bem, o desenvolvimento das ideias democráticas nos trouxeram à democracia moderna, de cunho representativo. Nela escolhemos um sistema político capaz de torná-la funcional – esta é a lógica do Estado brasileiro, e, assim, a cada período de quatro anos escolhemos novos representantes. De igual modo, vimos também que o poder, nessas democracias, segue nas mãos do povo, e que, portanto, ele é seu titular e para ele a máquina estatal deve operar. Todavia, impera questionarmos se, de fato, esta é a realidade do Estado Democrático brasileiro, ou se os apontamentos das linhas que seguiram apenas se encaixam à teoria de uma democracia como valor ou ideal. A provocação que nos move, é se tal como em Ensaio sobre a lucidez, nossa democracia seja, tão somente, um cabresto que adeque a marcha democrática ao interesse de poucos.

Apontamos que a democracia moderna, indireta, tem como fundamento a representação, no Brasil levada à efeito por um sistema político no qual os eleitos representam, como se procuradores fossem, os interesses do povo – ao menos em teoria. No entanto, neste desafio permanente da democracia como tarefa, isto é, como eterno vir-a-ser, no instante em que nos propomos a uma releitura histórica de nosso país, através de clássicos da sociologia e outros clássicos literários em geral, o que nos surge é um Estado em que a representatividade não é conceito amplo, mas restrito e egoísta. Na esteira dessas ideias, os interesses representados não são, certamente, ao menos numa esfera decisória econômica, os anseios dos eleitores em massa. Quem dita, e ao longo da história brasileira ditou, os rumos de nosso sistema - que neste instante é democrático, mas nem sempre o foi – é uma classe economicamente dominante. Observemos que, em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda faz uma releitura de nosso país e das relações de poder que nele imperaram, apontando para jogos de interesses desde sempre enraizados numa cultura que louva mais às conquistas heroicas, divinas e sem sacrifícios, do que aquelas batalhadas e sacrificantes. O exercício do poder em nosso país, com efeito, nasce corrompido porque reduzido à interesses de uma ou outra classe que economicamente manda e “desmanda” no jogo do mercado. Assim, os jogos de interesse que rodeiam esta classe, permitem-nos vislumbrar um país patrimonialista, no qual o patrimônio público, que interessa ao povo, é confundido com o pri-

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3 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: DA COLÔNIA À “REPÚBLICA NOVA”, OS ENFRETAMENTOS ÀS CLASSES OLIGUÁRICAS DOMINANTES

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vado, que interessa a uma classe. Sérgio Buarque de Holanda aponta, portanto, para o homem cordial como produto deste meio corrompido e viciado pela lógica de um sistema de acumulação de riquezas que não advêm de uma exploração econômica regrada, mas de uma exploração do capital fundada nas paixões, amizades e interesses próprios. Em especial, dos interesses de famílias que se mantêm no poder. Seguramente, este ideário de classes dominantes não se coaduna com os fins de um sistema democrático; afinal, num estado patrimonialista, o povo nele não se inclui, mas tão somente parcelas deste povo, às quais interessa a manutenção de uma ordem às avessas, como a apregoada pela lógica do capital patrimonial. Em suma (HOLANDA, 2014, p. 169): O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.

A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi.

A democracia representativa tem, se muito, permitido a alternância no poder de partidos políticos que representem os interesses dessas classes - estamentos dominantes. Seja qual for a ideologia que preguem no período eleitoral ou antes dele nas militâncias partidárias ou assembleias de partido, após vencido o pleito e alcançados os votos, é esquecida a causa que os levaram à condição de representantes, para que tornem, assim, a praticar a miséria democrática que conhecemos, na qual a única ideologia que impera é a do capital, do enriquecimento sem limites e da improbidade administrativa. A representação política é, na continuidade do exposto, um sistema de tensão, porque

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O patrimonialismo é, pois, uma faceta obscura da confusão do patrimônio público com o privado, de interesses egoístas com desejos sociais. É, igualmente, uma ferida aberta num corpo democrático que se queira solidário, em atenção à soberania popular, à igualdade e a liberdade. O avanço do Estado brasileiro, todavia, não implicou na extinção do patrimonialismo. Analisados os contextos históricos que atravessamos até que alcançássemos, pós ditadura, a dita “República Nova” (a partir de 1985), vemos que as transições no Brasil permitiram o surgimento de um estamento dominante, formando por uma classe política viciada e amparada por interesses escusos, que subvertem a ordem lógica da democracia como ideia pública, para manter, assim, o poder e controle sob a forma do interesse privado (FAORO, 2001, p. 866):

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os interesses particulares (egoístas) chocam-se com os anseios populares (solidários), sem que, ao longo da história, tenhamos visto surgir uma balança justa que pondere estas frentes. Passemos à ponte entre a obra literária Ensaio sobre a lucidez e as tensões políticas de um sistema representativo.

Vimos que a democracia, se estudada em seu berço (Grécia antiga), desponta como um sistema direto - não representativo, no qual cabia ao cidadão, nos instantes decisórios coletivos, exercer o poder que lhe era titulado. Vencida essa fase histórica, vivenciamos hoje, na quase totalidade das democracias do mundo, as democracias indiretas (representativas). Neste sistema político, o povo, ainda titular do poder, elege seus representantes que deverão honrar a tarefa a eles confiada. Se na democracia direta apontamos que uma das suas mazelas era o fato de considerar cidadão, tão somente, uma pequena parcela do povo, dado que o exercício democrático era tarefa de poucos. Discurso que, inclusive, é endossado por Aristóteles que taxava: “a virtude política, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àqueles que não tem necessidade de trabalhar para viver” (DALLARI, 1995, p. 124). Por outro lado, no seio da democracia moderna, deve viger a lógica da participação de todos, sobretudo pela preponderância da soberania do interesse popular nas decisões. Portanto, o pleno desenvolvimento da noção de cidadania vincula-se com a ideia da democracia representativa. Afinal, os cidadãos são aqueles com direitos políticos e que, por conseguinte, são atores no rumo do Estado, mudando o quadro político representativo a cada período eleitoral. Em suma, a democracia representativa torna-se funcional se moldada a um sistema representativo político. Há, seguramente, certos riscos que se devem admitir, e que nos parecem revelados na contemporaneidade. Exemplos: fica-se à mercê de uma classe política profissional, cuja representação no sistema democrático garante a prosperidade econômica de certos políticos; e, após as eleições, o representante não mais se vincula ao representado, de forma que isso lhe faz concluir que com aquele já não tenha mais quaisquer deveres, o que impossibilita uma gestão transparente. No horizonte dessas perspectivas, seguramente o ponto fulcral na corrosão da democracia representativa é o distanciamento dos representados e dos representantes no plano prático. Ocorre, que a escolha de representantes para o exercício das funções estatais, tal como nas democracias representativas, implica, também, na entrega de uma parcela de poder, que, se não gerido pelo norte da ética, resultará no desvio dos interesses sociais para culminar na prevalência da lógica egoísta do capital. Democracia e poder são, portanto, duas vertentes que se não equilibradas desgraçam o futuro de uma nação.

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4 A DEMOCRACIA TRANSVESTIDA: DAS TENSÕES NA POLÍTICA REPRESENTATIVA À LUCIDEZ DEMOCRÁTICA

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A manutenção de um sistema democrático representativo digno necessita de direitos que balizem e controlem o poder exercido pelos representantes, a fim de que eles não subvertam o Estado para garantir sua permanência no governo ou mesmo o interesse das classes dominantes que anteriormente expusemos. Entretanto, é preciso considerar que o poder, como capacidade e fato, é algo que convive com o exercício democrático. Não há como imaginar um sistema político sem a existência de dados interesses, sejam eles egoístas ou solidários – eis o pano de fundo de Ensaio sobre a lucidez. Na essência, o mandato político é um mandato de poder, visto que quem dele se vale possui dada capacidade decisória, isto é, terá ele uma capacidade de mando, de influenciar o rumo de uma nação. O Estado, em si, tem uma face de poder que o expressa e lhe dá contornos. As reflexões passadas nos permitirão fazer a ponte entre as linhas anteriores deste artigo e a obra paradigma eleita. Com efeito, Ensaio sobre a lucidez nos remonta a um cenário democrático miserável, reduzido à participação do cidadão unicamente no período eleitoral, no qual deverá o eleitor escolher dentre alguns anteriormente já escolhidos e moldados por seus partidos. Esta representação às avessas, viciada e praticada, fica ilustrada com primazia num pleito eleitoral em que as figuras elegíveis representem ideologias prontas, tidas por acabadas no sentido teórico, que não se abrem ao diálogo e que estão contidas ora num partido de direita, ora de esquerda ou de centro. Verdadeiramente, a lógica que permanece idêntica em quaisquer desses “lados democráticos” na obra de Saramago, e visível numa análise do cenário político atual, é a de que mais interessa aos representantes, àqueles a quem cabe um mandato político, manter a estrutura de poder intocável para que assim possam eles, também, se manterem no poder, valendo da estrutura democrática como propulsora de desejos egoístas. Na obra do autor português, o partido de direita, liberal e conservador, preza pela estagnação dos quadros políticos e pelo avanço do mercado sobre o povo; por sua vez, o partido de esquerda, representante de uma parcela ínfima dos votantes, é uma voz muda, de oposição não refletida e que, caso viesse a ter eleitos, passariam então eles a integrar o mesmo governo corrupto que criticam, encaixando-se à idêntica ideologia dos demais. A síntese destes dois polos, antagônicos nas ideias, mas idênticos no exercício do poder, é o partido do centro, sempre a expressar ideais que sejam, desde logo, a união daqueles “lados democráticos” (direita x esquerda), num conceito morno de democracia. A estabilidade democrática pela qual se simpatizam, é melhor tingida numa tela de estagnação representativa. Assim, manter os quadros políticos como estão, garantindo a prevalência da velha ordem dominante dos estamentos que referenciamos, é, de certo, o interesse daqueles que deveriam representar vontades maiores e solidárias. No entrelace dessas reflexões com a obra literária em voga, há uma passagem de clareza elucidativa ímpar, que criará no imaginário do leitor aquilo que temos expressado como uma

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prática ilegítima democrática. No referido instante literário de Ensaio sobre a lucidez, o governo, pela voz de seu “primeiro ministro”, após a segunda frustrada eleição na capital - em razão da predominância de votos em branco, falará ao povo num discurso de insatisfação contra aqueles que querem deturpar a ordem. Nesta fala estará evocado o vocábulo golpe como palavra-chave de um discurso que limita a democracia à condição de sistema de renovação de mandatos políticos, sem considerar que tenha ela uma esfera participativa social, e que, neste sentido, os votos em branco também compõem a ordem democrática e representam um estado novo de coisas que, malgrado a ruptura com a ordem já instituída, quer dar novo rumo àquela capital. Eis o trecho literário (SARAMAGO, 2004, p. 35):

Em suma, a possibilidade dos votos em branco, embora legalmente prevista naquela capital, nunca antes havia sido imaginada como a escolha da maioria no instante eleitoral - eis a novidade no cenário representativo político daquele espaço. O governo, a quem interessa a ordem já construída e há tempos mantida, não conseguirá interpretar aqueles novos fatos. E logo, num caminho menos doloroso à razão, concluirá que se trata de um levante popular, engendrado por gente idealista e desordeira. E que, por assim ser, deverá o governo contra a trama se opor, a fim de reerguer a ordem democrática a quaisquer custos, inclusive com atentados contra o povo e com o massivo uso da mídia. As provocações na obra paradigma convergem no sentido que segue, tal como se a voz do povo, expressada nas urnas, nada dissesse e nenhum valor simbólico tivesse! A miséria deste cenário político tingido, deve ser observada não apenas a partir da perspectiva indicada nos parágrafos anteriores. Imprescindível, também, considerar um fato paradoxal que, se trazido ao plano da realidade, é visível e atestável ao cidadão. Consiste ele na confirmação de que a voz do povo apenas é ouvida se entoar um juízo hábil a manter a ordem democrática já instituída. Se, portanto, os votos permitirem, ao fim e ao

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O Governo, reconhecendo que a votação de hoje veio confirmar, agravando-a, a tendência verificada no passado domingo e estando unanimemente de acordo sobre a necessidade de uma séria investigação das causas primeiras e últimas de tão desconcertantes resultados, considera, após ter consultado com sua excelência o chefe do estado, que a sua legitimidade para continuar em funções não foi posta em causa, não só porque a eleição agora concluída foi apenas local, mas igualmente porque reivindica e assume como sua imperiosa e urgente obrigação apurar até as últimas consequências os anómalos acontecimentos de que fomos, durante a última semana, além de atónitas testemunhas, temerários actores, e se, com o mais profundo pesar, pronuncio esta palavra, é porque aqueles votos em branco, que vieram desferir um golpe contra a normalidade democrática em que decorria a nossa vida pessoal e colectiva, não caíram das nuvens nem subiram das entranhas da terra, estiveram no bolso de oitenta e três em cada cem eleitores desta cidade, os quais, por sua própria, mas não patriótica mão, os depuseram nas urnas.

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cabo, a manutenção da representação política na forma como sempre esteve e deve seguir - para o bem dos interesses escusos por detrás da classe de representantes eleitos. O que se deve perseguir, no intuito de alcançar uma democracia indireta (representativa), mas, fundamentalmente, social e participativa, é a prevalência do dissenso sobre as respostas prontas; do movimento político constante, no sentido de alteração dos mandatos políticos, e, consequentemente, renovação do pensamento político; e, sobretudo, o controle do poder exercido pelos representantes, que devem também ajustar suas condutas aos interesses do povo e não de uma classe dominante. Se essas ideias são utópicas, e vozes se levantam contra elas apontando para suas inviabilidades, devemos, a partir da criticidade, notar que o tom da política deve ser dado pelo povo; afinal, também a política é construção humana. A democracia praticada dentro das regras postas, admite o dissenso que lhe dá contornos, que indica um futuro democrático participativo e lhe dá vida. Não admitirá, seguramente, os jogos de interesses como seu motor (BOBBIO, 1986, p. 60): O dissenso, desde que mantido dentro de certos limites (estabelecidos pelas denominadas regras do jogo), não é destruidor da sociedade, mas solicitador, e uma sociedade em que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer.

As reflexões teóricas deste artigo, se importadas para o plano da realidade política, isto é, para as experiências mundanas dos cidadãos, permitem a convergência de todos os apontamentos feitos num só sentido, qual seja: o da democracia em movimento, compreendida e praticada como tarefa interminável! O exercício democrático exige o movimento constante das instituições representativas, dos mandatários políticos, e, em especial do povo, os quais não podem se cansar em fazê-la por maior que seja o desafio – a democracia, por si, é um desafio. Outrora era esse sistema direto, exercitado pelos cidadãos em grandes assembleias, e, com o avançar da história, ante a incapacidade de gerir espaços politizados de imensidão, atualmente é indireto (representativo), para fazer do Estado um estado funcional – eis a razão de ser das democracias modernas. Lamentavelmente, nossas reflexões denunciam infortúnios na representação política, a qual nos é revelada como uma distorção dos ideais democráticos de soberania popular, igualdade e liberdade. Numa apreensão geral, há uma prevalência, no sistema representativo vivenciado por nós, de interesses egoístas de uma classe política viciada, que se amolda a um estamento burocrático oligárquico, a promover a confusão das esferas públicas e privadas. Também, a representação política, num sistema de democracia indireta, tem afastado

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

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o povo - sobretudo, em nosso país - titular do poder, do pleno exercício e da participação no conjunto decisório coletivo, reduzindo o protagonismo geral aos instantes do pleito eleitoral. Das eleições, que no íntimo são sempre “mais do mesmo”, despontarão candidatos que embora discursem num ou noutro sentido social, no instante em que no governo estiverem já não se recordaram de seus representados; e, assim, deixar-se-ão corromper pelos ideais da lógica do capital e da manutenção no poder. Representarão, unicamente, interesses pessoais ou próximos, mas, dificilmente, exercerão seus mandatos representativos focados em fazer da máquina pública um instrumental de mudança social. Nas linhas passadas, indicamos, ainda, que a ascensão de representantes políticos à condição de mandatários, implicará na outorga a eles de uma parcela de poder, entendida como a capacidade decisória de influenciar os rumos do Estado. Diante disso, derivado esse mandato político de um poder maior porque soberano, concluímos que não há democracia quando os interesses coletivos não são as pautas da agenda política. Se o jogo político é permeado por interesses destoantes, que divergem daqueles que são os anseios do povo, então o Estado que daí surgirá - em especial o sistema político democrático que nele se projetar - será, tristemente, apenas a carcaça de ideais corroídos pelo patrimonialismo que nos sufoca e limita. O cenário democrático ideal, há, por conseguinte, de ser distante das linhas literárias de José Saramago em Ensaio sobre a lucidez. À modernidade democrática, não bastará partidos políticos de ideologias acabadas e discursos feitos, tal como representados na obra paradigma pelos partidos de direita, esquerda ou centro. Também, não serão mais os cidadãos espectadores de um jogo cujas regras não são debatidas e firmadas em conjunto. O cidadão democrático do futuro – e almejamos isto ao Brasil – será, na promoção da democracia, um sujeito crítico por excelência, que dialogará com os demais setores e que influenciará, de forma solidária, os rumos de nossa nação. Enfim, a literatura neste artigo nos serviu como pano de fundo temático ao desenvolvimento das ideias, mas, como arte eivada de potência de mudança, que seja ela também a ponte revelada para a travessia da democracia em “migalhas” à lucidez democrática.

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FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. RIBEIRO, Renato Janine. A Democracia. 3. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. TRINDADE, André Karam et al. Direito e Literatura: Reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. LA DEMOCRACIA EN “MIGA”: SARAMAGO Y LAS TENSIONES EN LA REPRESENTACIÓN POLÍTICA RESUMEN La democracia moderna, alzada sobre los pilares de la representación política, en que el pueblo, soberano, tiene el poder, pero elegirían a los representantes en el intento ver el Estado - la máquina pública - funcio-

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nal, se ve en confrontación sin fin con la realidad de un juego político que es urdido para los intereses dominantes de la clase oligárquica, a quien interesa la miserable democracia que José Saramago pincela en el Ensayo sobre la lucidez. En el desglose del Estado democrático de Brasil, lo paradojo ideal x realidad subvierte la orden democrática y deslegitima su lógica solidaria. ¿Quién pierde? El pueblo. Palabras clave: Derecho y literatura. Democracia moderna. Democracia representativa.

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Recebido 10/02/2017 Aceito 02/05/2017

A ETNOLOGIA JURÍDICA: O MÉTODO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL PARA O ESTUDO DOS FENÔMENOS JURÍDICOS DAS SOCIEDADES ANTIGAS Bruna Casimiro Siciliani1

RESUMO A pesquisa ora apresentada teve a finalidade de buscar o método de pesquisa em história do direito mais adequado para se promover a investigação dos fenômenos jurídicos das sociedades antigas, uma vez que a manifestação cultural desses povos reflete em sua experiência da vida social e jurídica. A partir do método etnológico, aprofundou-se a análise com o objetivo de focar na investigação jurídica, desenvolvendo-se o método da etnologia jurídica, que aproximou as três áreas do conhecimento, quais sejam a antropologia, a história, e o direito. Palavras-chave: Metodologia Jurídica. Etnologia Jurídica. Antropologia Cultural. História das Mentalidades. História do Direito.

A pesquisa ora apresentada desenvolveu-se no âmbito do mestrado acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a finalidade de buscar o método de pesquisa em história do direito mais adequado para se promover a investigação dos fenômenos jurídicos das sociedades arcaicas, tais como a Grécia e Roma antigas. A falta de uma metodologia jurídica apta a responder a todos os questionamentos do historiador do direito, levando em consideração a manifestação cultural que reflete na experiência da vida social e jurídica daquelas comunidades, motivou o resgate de uma metodologia até então restrita ao campo da antropologia cultural,

1  Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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1 INTRODUÇÃO

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mas que vinha sendo utilizada pelos historiadores de mentalidades: a etnologia. No entanto, observou-se ser necessário o aprofundamento do método etnológico com o objetivo de focar na investigação jurídica. Para tanto, desenvolveu-se um novo ramo da etnologia: a etnologia jurídica. A etnologia jurídica como método de pesquisa e ferramenta para se estudar os fenômenos jurídicos das sociedades arcaicas foi utilizada na elaboração da dissertação de mestrado defendida no ano de 2014 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aproximando as três áreas do conhecimento, quais sejam, a antropologia, a história, e o direito. Este artigo visa apresentar um dos resultados obtidos com pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de mestrado, qual seja, o método da etnologia jurídica. Para tanto, será exposto, inicialmente, a problemática metodológica encontrada no início da investigação em história do direito e a etnologia. Na sequência, demonstra-se a relevância do método etnológico para a área da história, especificamente, a história das mentalidades. Por fim, apresenta-se os fundamentos utilizados para a consolidação deste método voltado à historiografia jurídica das sociedades antigas.

O investigador que se propõe a estudar os fenômenos jurídicos, seja de qual povo for, deve pautar-se de modo que sua investigação lhe indique o quadro mais preciso de como se materializaram as experiências jurídicas de determinada sociedade. Para tanto, uma vez que o conhecimento encontra-se em constante evolução, a concepção e o método dos estudos histórico-jurídicos desenvolvem-se e moldam-se progressivamente, de maneira a captar de modo profuso o objeto de seu estudo. Ora, o surgimento e a evolução dos métodos de pesquisa é um fenômeno comum a todas as ciências vivas que tratam de evitar a sua estagnação. A dúvida de qual o método mais adequado surge principalmente para o investigador que se propõe a estudar os fenômenos jurídicos dos povos arcaicos, tais como Grécia e Roma antigas. É sabido que, antigamente, não havia, ou havia pouquíssima lei escrita. A ordem e a norma eram pautadas pela tradição oral. Não há fontes primárias para se estudar a história e o direito antigos, ou seja, legislações e decisões judiciais grafadas. A maioria dos registros é de natureza cultural: os textos religiosos e canônicos, os mitos, as epopéias, as lendas, as fábulas e as demais referências literárias. Como estudar o direito desses povos sem fontes primárias exclusivamente jurídicas? Em artigo publicado na compilação L’histoire et sés méthodes (A história e seus métodos), Robert Marichal (1961) sustenta que a história não se fragmenta, não há e não pode haver uma história da língua, uma história da literatura, uma história do direito, nem mesmo batizando-a de história dos fatos sociais. Todas são igualmente valiosas e, se ignoram uma a outra, se não se explicam uma pela outra, é porque não há mais do que uma história, a dos homens que vivem em sociedade. As histórias parciais são só expedientes para paliar a limitada capacidade de compreensão humana.

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2 A PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA E A ETNOLOGIA

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No entanto, as áreas do conhecimento das quais advêm as fontes disponíveis não se ocupam exclusivamente dos fenômenos jurídicos, e, quando os mencionam, não aprofundam suas análises exatamente por não serem estudiosos da história do direito. Os métodos até então utilizados, como o método analítico-documental, ou o método puramente historiográfico, por exemplo, não eram suficientes para responder todas as perguntas, e não ofereciam meios, técnicas de investigação adequadas para se chegar às conclusões. Era necessária, pois, a utilização de um método de pesquisa histórica que abarcasse também a pesquisa da história do direito. A antropologia foi a área do conhecimento que ofereceu a resposta mais adequada para a investigação dos fenômenos jurídicos dessas sociedades antigas. Especificamente dentro da grande área da antropologia, a etnologia trouxe as respostas para estas indagações. Os estudiosos da etnologia provêm das áreas da antropologia e da sociologia, e esta área encontra no francês Marcel Mauss um de seus maiores representantes. A utilização do método antropológico para o estudo do direito enquanto manifestação cultural que aqui se apresenta edifica-se, sobretudo, pela obra de Marcel Mauss. Nesse prisma de análise, a etnologia, conforme conceitua Claude Lévi-Strauss (1959, p. 4-5), é ciência do âmbito da chamada antropologia cultural e social, que pesquisa sobre as manifestações culturais do homem na sociedade a qual ele está inserido, e tem por objeto o estudo específico dos fatos e dos documentos levantados pela etnografia, ou seja, fatos e documentos relacionados à expressão lingüística, inclusive literária, e cultural dos povos sob análise, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas investigadas. Uma vez que o campo de investigação desta pesquisa foca-se nos estudos dos fenômenos jurídicos, o método ora desenvolvido direciona-se ao afluente da etnologia jurídica. Assim, cunha-se a definição de etnologia jurídica como o estudo do direito com base na manifestação cultural dos povos, ou seja, seus mitos, seus ritos, sua religião, sua literatura, com o objetivo de observar os aspectos normativos das sociedades, com base nas apreciações analíticas e comparativas das culturas enquanto elementos integrantes da organização social.

Cada área do direito possui suas metodologias de pesquisa mais propícias. Como o objeto da pesquisa principal reside na pesquisa em história do direito, procurou-se verificar, de início, a aplicação do método etnológico na investigação histórica, para posterior aplicação à historiografia jurídica. Não obstante, foi na obra de Jacques Le Goff e sua história das mentalidades a aplicação mais evidente constatada. Para Jacques Le Goff (1979), de todas as ciências impropriamente chamadas humanas (e questiona-se ele por que não chamá-las simplesmente de sociais?), a etnologia é aquela com que a história iniciou o diálogo mais desenvolvido e mais fecundo. E, nas palavras do próprio historiador, a etnologia “é apenas uma primeira escala no caminho de uma reflexão e de uma prática” (LE GOFF, 1979, p. 10-11). Observa-se que ele desejou aprofundar-se e precisar

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3 A ETNOLOGIA E A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

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as relações que a história e a etnologia mantiveram no passado e renovam até os dias de hoje. Ao tratar sobre o uso dos métodos antropológicos e da etnologia aplicada à história, e especificamente à história da Europa medieval, Jacques Le Goff (1979) propõe uma série de perguntas que ele mesmo responde para conduzir seu argumento. Questiona o historiador que, se é verdade ser ele um dos estudiosos e investigadores a preferir o termo antropologia ao termo etnologia, uma vez ser este mais amplo e suscetível de ser aplicado aos homens de todas as culturas; e se, por consequência, prefere ele falar em termos de antropologia histórica ao invés de etnologia histórica, é porque certos historiadores se deixaram seduzir pela etnologia, pelo fato de ela tratar, antes de tudo, a noção de diferença sem deixar de se orientar por uma concepção unificada das sociedades humanas e até de abordar um conceito de homem ignorado pela história. Conclui o historiador, portanto, que o folclore, embora demasiado afastado da história, oferece ao historiador das sociedades europeias, desejoso de recorrer à antropologia, um tesouro de documentação, de métodos e de trabalhos que ele faria bem em interrogar, antes de voltar-se para a etnologia extraeuropeia. E salienta ele que, muito embora o folclore seja demasiado desprezado e considerado uma parca etnologia, ele é fonte essencial para a antropologia histórica das sociedades históricas. Evidente, pois, que por meio do estudo dos ritos, das práticas cerimoniais, o etnólogo remonta às crenças, aos sistemas de valores. Desse modo, também conclui Jacques Le Goff (1974), os historiadores da Idade Média, através das consagrações, curas milagrosas, insígnias de poder, entradas reais descobriram uma mística monárquica, uma mentalidade política e renovaram, assim, a história política da Idade Média. Corolário lógico, a história das mentalidades não pode ser feita sem estar intimamente ligada à história dos sistemas culturais, sistemas de crenças, de valores, de equipamento intelectual, dentro dos quais se elaboram, vivem e evoluem. Assim, as lições que a etnologia fornece à história são eficazes (LE GOFF, 1974). Ao lado do etnólogo, o historiador das mentalidades também deve fazer as vezes de sociólogo. Seu objetivo, de imediato, é o coletivo. A mentalidade de um indivíduo histórico, fosse ainda a de um grande homem, é justamente o que tem de comum com os outros homens de seu tempo. O historiador das mentalidades se encontra de forma peculiar com o psicólogo social. As noções de comportamento ou de atitude são essenciais para o outro. Dessa forma, para Jacques Le Goff (1974), a psicologia social inclina-se para a etnologia, e mais além, para a história. A mentalidade abrange um passado mais distante da história, e tem como objetivo satisfazer a curiosidade dos historiadores determinados a ir mais longe. E primeiro ao encontro de outras ciências humanas (LE GOFF, 1974). Mas a história das mentalidades não se define apenas pelo contato com outras ciências humanas e da emergência de um domínio reprimido da história tradicional. É também o ponto de encontro de exigências opostas que a dinâmica própria da investigação histórica atual força ao diálogo. Situa-se no ponto de conjunção do individual e do coletivo, o tempo futuro e o cotidiano, o inconsciente e o intencional, o estrutural e o conjuntural (LE GOFF, 1974). De fato, como explica Le Goff (1974, p. 83), o idioma francês não deriva naturalmente

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mentalité (mentalidade) de mental. Empresta-o, contudo, do inglês que desde o século XVII tinha tomado mentality (mentalidade) de mental. O epíteto latino mentalis (mental), ignorado pelo latim clássico, pertence ao vocabulário da escolástica medieval e os cinco séculos que separa a aparição de mental, em meados do século XIV, da expressão mentalidade, em meados do século XIX, indicam que o substantivo responde a outras necessidades, tem a ver com outra situação do que a do adjetivo. Logo, a mentalidade é a filha da filosofia inglesa do século XVII. E continua o historiador ao explanar que o termo designa a coloração coletiva do psiquismo, a forma particular de pensar e sentir de “um povo, um certo grupo de pessoas, etc.”. Mas a expressão se limita ao idioma inglês como linguagem técnica da filosofia, enquanto que na língua francesa, seu uso logo passa ao vocabulário corrente. A noção que desembocará no conceito e na palavra mentalidade tem todo o ar de aparecer no século XVIII, no domínio científico e, mais especificamente, no campo de uma nova concepção de história. Esta coloração da linguagem ordinária foi alimentada a partir de correntes científicas da época. Uma delas é a etnologia. Demonstrado o interesse da história, especificamente, da história das mentalidades no método etnológico para a sua investigação histórica, seguiu-se o desenvolvimento do método para o aprofundamento da etnologia aplicado ao estudo da história do direito.

Após constatar a aplicação da etnologia na investigação histórica e conceituada a etnologia jurídica, partiu-se para a sua fundamentação tanto com base em Marceu Mauss, como em Louis Gernet, Henry Lévy-Bruhl e Paul Huvelin. Estes três romanistas franceses foram contemporâneos a Marcel Mauss, tendo compartilhado com este último suas ideias sobre a relação entre o pensamento cultural e religioso da sociedade romana com a estruturação de seu direito. Ao abordar a questão jurídica, Marcel Mauss (1967) leciona que é através das instituições e estruturas que as sociedades dão uma determinada ordenação aos fenômenos sociais, conforme a valoração que fazem dos mesmos, segundo sua mentalidade ou interesse. A esta ordenação o antropólogo denomina de direito. A organização social é geralmente compreendida como organização política, no entanto, esta apenas constitui uma parte da ciência jurídica, e não a mais profunda. O direito compreende todo um conjunto de costumes e normas, e, dessa forma, constrói a “armadura” da sociedade (MAUSS, 1967), definindo-a em última análise. Uma vez que este não existe senão através da sociedade, constata-se que todos os fenômenos jurídicos são, de certo modo, fenômenos sociais. Nas sociedades arcaicas, as instituições e estruturas aparecem configuradas pela combinação de uma série de simbolismos e elementos muito diversos, que dão a cada uma delas uma formação peculiar. É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em seus costumes e em suas instituições; ao contrário, as condutas individuais normais jamais são

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4 OS FUNDAMENTOS DA ETNOLOGIA JURÍDICA

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simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói (MAUSS, 2003). São essas representações fundamentais, esses elementos permanentes que constituem o que é reproduzido na vida social por meio das instituições. Em vista disso, estes sistemas simbólicos são compostos de manifestações culturais de cada povo, quais sejam, seus mitos, sua religião, e se refletem na sua organização social, nas suas instituições e no direito. Não há, pois, como estudar os fenômenos jurídicos desses povos sem estudar a sua manifestação cultural. Uma das manifestações culturais mais marcantes na organização social é a religiosidade de seu povo. E o direito é geralmente investido de uma qualidade religiosa. O sistema da obrigação jurídica possui palavras e gestos que obrigam e vinculam, há formas solenes. Com frequência, os atos jurídicos têm um caráter ritual, são dotados de aspectos sacramentais. Isso porque eles se misturaram a ritos, sem que sejam ritos por si mesmos. Na medida em que têm uma eficácia particular, em que fazem mais do que estabelecer relações contratuais entre indivíduos, eles não são jurídicos, mas mágicos ou religiosos (MAUSS, 2003). É o caso do formalismo de que o processo e as obrigações estão impregnados. Constitui, simultaneamente, a invocação que associa o deus ao negócio e a mnemônica que ajudará as testemunhas a recordar (CARBONNIER, 1989). Como leciona Fustel de Coulanges (1900), nas sociedades antigas, tanto entre os gregos, entre os romanos, como entre os hindus, a lei era, a princípio, parte da religião. Os antigos códigos das cidades eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de preces, ao mesmo tempo que de disposições legislativas. As normas atinentes aos direitos de propriedade e de sucessão, por exemplo, estavam dispersas no meio de regras relativas aos sacrifícios, à sepultura e ao culto dos mortos. Em Atenas, a obra de Sólon era ao mesmo tempo código, constituição e ritual. A ordem dos sacrifícios e o preço das vítimas eram por ele regulamentados, assim como os ritos das núpcias e o culto dos mortos. Como a lei fazia parte da religião, participava também do caráter misterioso de toda a religião das cidades. As fórmulas da lei eram mantidas em segredo, assim como as do culto. Elas não eram reveladas ao estrangeiro, nem mesmo aos plebeus. Não porque os patrícios desejassem garantir grande força com a posse exclusiva das leis; mas é que a lei, por sua origem e natureza, revestiu-se por muito tempo em mistério, no qual só podiam ser iniciados os que já o fossem no culto nacional e no culto doméstico (FUSTEL DE COULANGES, 1900). Essas disposições do antigo direito eram de uma lógica perfeita: o direito nascera da religião e não podia ser concebido fora dela. Para que houvesse relação de direito entre dois homens, era necessário que antes houvesse entre eles uma relação religiosa, isto é, que ambos rendessem culto ao mesmo lar, e oferecessem os mesmos sacrifícios. Quando não existia essa comunhão religiosa entre dois homens, parece que não podia existir nenhuma relação de direito. Ora, nem o escravo, nem o estrangeiro participavam da religião da cidade. O direito não era nada mais que uma das faces da religião. Sem comunidade de religião, não podia haver comu-

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nidade de lei (FUSTEL DE COULANGES, 1900). Outro exemplo mais recente pode ser tomado da palavra responsabilidade, que, no vocabulário jurídico francês, data apenas da Revolução. Anteriormente, a expressão existia apenas na teologia. As várias partes constituintes do direito podem ser mais ou menos sagradas: Roma conhecia o direito dos pontífices, e o ensino do direito dos Maori ocorria em segredo. Enquanto o direito é um fenômeno essencialmente público, ele permanece, no entanto, de outro lado, muito íntimo. Os verdadeiros especialistas jurídicos possuem os segredos do direito (MAUSS, 1967). No entanto, os fenômenos jurídicos e morais não podem ser distinguidos do religioso baseados apenas em seu caráter obrigacional, na medida em que o último possui o mesmo caráter. A iniciação é, em última análise, um evento jurídico e religioso. A própria sanção é construída como matéria de direito, ou de dever. A vingança é uma obrigação moral: uma pessoa tem a obrigação moral de infligir a punição. A noção de direito e dever está precisamente nas práticas nativas, as quais contêm a noção de moral boa e má, uma noção que permite reconhecer o fenômeno do direito: “Direito é o que é dito ser virtuoso” diz o Manu, o antigo código jurídico sânscrito (MAUSS, 1967, p. 103). Essa noção de bem e mal aplica-se às relações entre o indivíduo e seus companheiros. Sem essa arte da vida moral, não haveria vida comunal, seja viver em grupos ou sub-grupos. Mas como é possível distinguir a lei da moralidade nas sociedades que nos dizem respeito? Todo o sistema de ideias morais e jurídicas corresponde ao sistema dessas expectativas coletivas. O direito é o meio de organizar o sistema de expectativas coletivas e assegurar o respeito aos indivíduos, pelo seu valor, para a sua coletividade, bem como para a sua hierarquia. Os fenômenos jurídicos são fenômenos morais que foram organizados. Esse é ainda o caso do direito moderno: responsabilidade civil e responsabilidade criminal são estritamente determinadas. O brocardo jurídico “a ignorância da lei não é desculpa” (MAUSS, 1967, p. 103) corresponde a este sistema de expectações coletivas. Basicamente, quando ignora-se a lei, é geralmente aceito que está-se errado; há uma consciência e um conhecimento latentes de todos os costumes e de toda a moral, e isso acontece em qualquer sistema jurídico, haja vista que nem tudo pode ser determinado de forma expressa. Eis porque a enorme superioridade do direito consuetudinário perante o direito escrito: os casos servem como precedentes, e a noção de precedente é de uso fundamental no direito. Ademais, Marcel Mauss (1967) reconhece a presença de moralidade e religião como a presença de obrigação moral e, em segundo lugar, como a presença da noção de infração e de sanção. Há uma obrigação moral quando há sanção moral, difusa; há obrigação jurídica quando a obrigação é colocada em termos precisos, e, da mesma forma, a infração e sua penalidade. Sempre há moralidade no direito, e há sempre uma noção de obrigação moral no direito. A obrigação é apenas mais definida e mais jurídica no caso do direito. O direito é bom por definição. Além disso, a conformidade com o direito é boa e necessária para a vida social. Tudo o que está de acordo com o direito é bom, e tudo o que milita

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contra tal conformidade é ruim. Assim, os fenômenos morais e jurídicos podem ser reconhecidos pela presença da noção do bem e do mal, definido anteriormente e sempre sancionado. Não há nada de errado, a não ser que seja sua consciência ou a de outras pessoas que dizem que é errado. Aqui, mais uma vez, Marcel Mauss (1967) lembra que deve-se submeter à avaliação da sociedade sob análise e esquecer os julgamentos ocidentais. O que os nativos dizem que é moral, é moral; o que dizem que é bom, é bom; e o que dizem que é direito, é direito. O observador será confrontado com sistemas jurídicos totalmente diferentes do que está acostumado o seu aparelho conceitual. Uma dificuldade inicial que deriva da natureza consuetudinária da lei, podendo ser superada por familiarizar-se com o direito antigo. No entanto, certos sistemas jurídicos foram escritos em tempos muito antigos. Outrossim, o direito consuetudinário não confronta necessariamente com o direito escrito. Em todos os sistemas legais, sempre existe um sistema consuetudinário. Ele pode não ser a lei escrita, mas não deixa de ter a sua própria formulação em um conjunto de provérbios, ditos legais e fórmulas etiquetadas. Muitas vezes, pode ser encontrado na moral de uma fábula ou mito. Todo o corpo do Mahabharata e Ramayana, grandes épicos da Índia, constitui um livro de direito, sendo possível citá-los em um tribunal (MAUSS, 1967). Neste ponto, o direito e a religião fazem seu ponto de encontro na manifestação cultural: Mahabharata e Ramayana são narrativas épicas, com base mitológica. A história das instituições por algum tempo nos familiarizou com a ideia de que os direitos mais antigos, que diferem bastante dos nossos próprios, foram fortemente marcados pela religião. Louis Gernet, em seu artigo intitulado Droit et Pre-droit (Direito e Pré-direito) (GERNET, 1981), afirma que esta ideia recebeu definição especializada, oriundo de romanistas. Ao citar Pierre Noailles, ele menciona sua afirmação de que, em Roma, o “direito consagrado” precedeu a aparição do “direito civil”, distinguindo-se este último do primeiro ao mesmo tempo em que emanou dele (GERNET, 1981, p. 143). Cita também Henri Lévy-Bruhl (1947) e sua fórmula de que “no período arcaico, é o ritual que cria o direito”, observando o fato de que o ritual é imposto pela sociedade, e que as formas jurídicas, sejam elas religiosas ou não, são produtos iguais do devido processo (no sentido mais amplo da palavra) e que essas formas têm o mesmo princípio e a mesma função. Não obstante, é parte da originalidade de Roma que um modo propriamente jurídico de pensamento foi elaborado cedo. No entanto, ao se falar em direito romano antigo, raramente somos levados a um estágio anterior ao da fundação da cidade, e verifica-se que as próprias noções do historiador do direito, que seria tentado a trabalhar com elas, estão mantidas com a possibilidade de uma espécie de anacronismo. Assim, para exemplificar a questão, Louis Gernet (1981, p. 144) menciona as expressões reus (réu) e damnatus (condenado), termos técnicos legais que também foram aplicados em duas fases da situação religiosa na qual o devoto é sucessivamente prometido e depois constrangido a cumprir o seu voto. É possível que essa terminologia tenha perpetuado uma noção muito antiga de obrigação que não seja a jurídica. Mas também é possível que, em uma sociedade já

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penetrada e invadida pelo direito, a formula para a relação com os deuses seja marcada por categorias tardias de justiça. Quais seriam as delimitações do problema, portanto? Responde Louis Gernet (1981) que se fosse simplesmente coletar evidências das práticas e crenças primitivas nas quais fosse possível observar o funcionamento do direito em suas formas primitivas, os estudiosos já teriam renovado a área da etnologia jurídica. A questão que propõem os romanistas vai mais além: seria possível observar uma situação na qual a relação que designam jurídica poderia ter sido concebida através de um modo de pensamento diferente daquele inerente ao direito como tal? Além disso, que relação é que esta situação jurídica parece ter com o próprio Estado de Direito nos casos em que observa-se uma sucessão? Verifica-se que interesse essa problemática pode nos trazer. A função jurídica, como função independente, é facilmente reconhecida em um grande número de sociedades nas quais ela naturalmente apresenta variações, mas também uma inegável unidade. Louis Gernet (1981) explica que a função jurídica não é apenas uma função social, mas também num sentido psicológico, isto é, visão de mundo, hábitos de pensamento, e crenças - ou seja, o imaginário simbólico - que são reunidas em torno da noção específica do direito. Algumas dessas questões foram examinadas de forma metodológica pelo romanista Paul Huvelin e Marcel Mauss conjuntamente (GERNET, 1981, p. 145). Ambos estudaram as conexões entre as práticas e as noções de magia e religião com as formas mais antigas de direito individual (HUVELIN, 1907). Certas práticas e crenças que são positivamente religiosas podem estar fortemente ligadas com ordenações jurídicas que certamente não possuem nada de primitivas, mas o que é interessante por ora não é a religião em si, mas o tipo de mentalidade envolvida. Encontrar as raízes ou bases da mentalidade do fenômeno jurídico também é um dos objetivos da pesquisa em história do direito, razão pela qual a etnologia jurídica responde adequadamente aos anseios do investigador da historiografia jurídica das sociedades antigas.

O direito advém do mesmo cenário religioso, simbólico, e cultural, a partir dos quais as sociedades se manifestam por meio de suas instituições, sua organização social, e sua organização jurídica e política. Nas sociedades primitivas e históricas, as instituições e estruturas aparecem configuradas pela combinação de uma série de simbolismos e elementos muito diversos, que dão a cada uma delas uma formação peculiar. É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em seus costumes e em suas instituições, que só são construídas por meio do coletivo. Estes sistemas simbólicos são compostos de manifestações culturais de cada povo, quais sejam, seus mitos, sua religião, e se refletem na sua organização social. Como foi demonstrado, sobretudo pelos romanistas, a experiência jurídica das sociedades antigas está permeada por sua manifestação cultural, isto é, pelos seus mitos, seus ritos, sua religião, e sua literatura. Assim, o imaginário e a mentalidade simbólica destas sociedades

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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não podem ser ignorados durante a investigação em história do direito. A etnologia jurídica, isto é, o método de estudo do direito com base na manifestação cultural desses povos, com o objetivo de observar os aspectos normativos das sociedades com base nas apreciações analíticas e comparativas das culturas enquanto elementos integrantes da organização social, respondeu de forma adequada aos questionamentos da investigação da historiografia jurídica das sociedades antigas. Sem deixar de lado os aspectos atinentes à historiografia, a etnologia aprofunda o conhecimento jurídico ao trazer a contribuição da antropologia cultural para o direito.

REFERÊNCIAS CARBONNIER, Jean. Sociologia jurídica. Coimbra: Livraria Almedina, 1989. FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. La cité antique. Paris: Librairie Hachette, 1900. GERNET, Louis. Law and prelaw in Ancient Greece. In: GERNET, Louis (Org.). The antropology of Ancient Greece. Londres: The Johns Hopkins University Press, 1981. HUVELIN, Paul. Magie et droit individuel. L’Année Sociologique, vol. X. Paris: Félix Alcan Éditeur,

1907, p. 1-47.

LE GOFF, Jacques. Les mentalités: une histoire ambigue. Faire de l’histoire, vol. III. Nouveaux objets, Paris: Gallimard, 1974. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editora Estampa, 1979. LÉVY-BRUHL, Henry. Nouvelles études sur le très ancien droit romain. Paris: Recueil Sirey, 1947.

MARICHAL, Robert. La critique des textes. In: SAMARAN, Charles (Org.) L’histoire et sés méthodes. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1961, p. 1247-1366. MAUSS, Marcel. Manuel d’ethnographie. Paris: Éditions sociales, 1967. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosacnaify, 2003.

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LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie estructurale. França: Plon, 1959.

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THE LEGAL ETHONOLOGY: THE METHOD OF CULTURAL ANTHROPOLOGY FOR THE LEGAL PHENOMENA OF ANCIENT SOCIETIES’ STUDY ABSTRACT

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This article has the aim of searching the most appropriate method of research in the history of law to promote the investigation of legal phenomena of ancient societies, since the cultural manifestation of these peoples reflected in their experience of social and legal lives. Starting from the ethnological method, the analysis was concentrated in focusing on legal research, developing the method of legal ethnology, which approached the three areas of knowledge: anthropology, history, and law. Keywords: Legal Methodology. Legal Ethnology. Cultural Anthropology. History of Mentalities. History of Law.

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Recebido 17/02/2017 Aceito 02/05/2017

A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PARTICULARES: A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Yago da Costa Nunes dos Santos1

1 INTRODUÇÃO É bem verdade que a expansão e a efetividade dos direitos fundamentais em determinado Estado servem como parâmetro através do qual se é possível obter um indicativo da dimensão da democracia ali estabelecida2. Sendo assim, os direitos e garantias fundamentais

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 2  Para Dirley da Cunha Junior (2015, p. 443), “os direitos humanos fundamentais servem de parâmetro de aferição do grau de democracia numa sociedade”.

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RESUMO Neste artigo investiga-se, diante da incidência dos direitos fundamentais no Direito Privado, se é possível desenvolver um Controle de Constitucionalidade diferenciado do modelo que concebemos, a fim de aplicá-lo também nos negócios jurídicos com cláusulas de adesão. Para tanto, fora traçado um breve estudo de direito comparado acerca da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito privado, bem como considerações sobre os modelos de controle norte-americano, austríaco e brasileiro. Por fim, debateu-se a possibilidade do controle de constitucionalidade em contratos de adesão e concluiu-se que, para tanto, é preciso pensar um novo modelo, cujas premissas nesse trabalho foram propostas. Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito privado. Controle de constitucionalidade. Contratos de adesão.

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assumem papel de relevada importância na legitimação dos governos contemporâneos, cada vez mais marcados pelo regime democrático, constituídos não pelos arbitrários poderes de fato, mas erguidos sobre as firmes pilastras de um “poder de direito”3. No caso do Brasil, o paulatino avanço na afirmação histórica dos direitos fundamentais resvalou na Constituição Federal de 1988, com enorme rol de garantias individuais, sociais, políticas e de nacionalidade elencadas. A despeito disso, saliente-se a necessidade da efetivação desses direitos na vida prática, visto que eles são usurpados diariamente, seja pelo poder público, seja nas relações privadas (SARLET, 2010, p. 10). Ao debruçar os olhos sobre os fatos históricos, constata-se que os direitos fundamentais sempre foram vistos como oponíveis perante o Estado (eficácia vertical). Entretanto, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, é notável o progressivo aumento dos ataques perpetrados por entes privados frente a tais garantias. Neste contexto, não obstante as regras contratuais figurarem por muito tempo como verdadeiras “leis entre as partes”, a afirmação da supremacia constitucional e a consequente constitucionalização do direito privado têm, aos poucos, mitigado essa visão obsoleta4. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal entende haver, no Brasil, em consonância com o próprio §1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, incidência direta dos direitos fundamentais no ordenamento privado. Disso deriva, portanto, o raciocínio de que ao Estado não cabe apenas respeitar as regras e os princípios constitucionais, mas também lhe compete obrigar observância à Constituição naqueles negócios jurídicos firmados no âmbito civil (eficácia horizontal dos direitos e garantias fundamentais)5. Diante disso, o presente artigo se dispõe a questionar se os contratos - sobretudo os contratos de adesão– poderiam ser passíveis de controle de constitucionalidade e, em caso afirmativo, quais as mudanças necessárias no nosso sistema normativo a fim de viabilizá-lo. Isso porque, num Estado Democrático de Direito, cuja lei suprema vinculante é a Constituição Federal de 1988, a possibilidade de firmação de negócios jurídicos atentatórios à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais parece desenhar-se como explícita incoerência.

É bem verdade que os direitos fundamentais surgiram com o escopo de conceber ao

3  Conforme Paulo Bonavides (2000, p. 144), “Se o poder repousa unicamente na força, e a Sociedade, onde ele se exerce, exterioriza em primeiro lugar o aspecto coercitivo com a nota da dominação material e o emprego frequente de meios violentos para impor a obediência, esse poder, não importa sua aparente solidez ou estabilidade, será sempre um poder de fato. Se, todavia, buscao poder sua base de apoio menos na força do que na competência, menos na coerção do que no consentimento dos governados, converter-se-á então num poder de direito”. 4  Ao dissertarem sobre os negócios jurídicos, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016, p. 588) pontuam que deve haver uma “necessária limitação da liberdade de determinação do conteúdo negocial (no mais das vezes estabelecidas unilateralmente pelas grandes empresas e grupos econômicos), com maior intervenção estatal, através de normas de ordem pública, para assegurar a primazia da cidadania”. 5  Parte da doutrina tem criticado essa denominação, visto que nem sempre a relação entre os particulares acontece de maneira horizontal, porquanto, sobretudo nos contratos travados entre pessoa física e pessoa jurídica, estas tendem a ser muito mais poderosas em relação a aquelas. Sobre isso, trata Sarlet (2010, p. 13).

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2 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO PRIVADO

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6  Sobre isso, disserta Bruno Fontenele Cabral em excelente artigo publicado na revista Jus Navegandi (2011) quando pontua que a primeira das exceções é a “public puntion exception”, que pode ser vislumbrada quando o requerente alegar que o seu direito fundamental foi ferido numa relação entre particulares, mas a outra parte envolvida estava no exercício de uma função pública. Outra exceção digna de nota é o caso de “entanglement exception”, situação desenhada na hipótese em que o Estado delega a um particular determinada função essencialmente estatal.Aqui, faz-se mister ainda fazer uma pontuação sobre a 13ª Emenda da constituição dos Estados Unidos da América, através da qual proibiu-se a escravidão naquele país. Esse direito fundamental, conforme pontua Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes (2011, p. 63), possui eficácia “erga omnes”, porquanto vincula não somente o Estado, mas também os particulares. 7  A expressão pode ser traduzida para o português, de maneira aproximada, como a “doutrina da ação do Estado”. 8  A respeito do tema, importante é a observação feita por Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes (2011, p. 66): “A teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi desenvolvida originariamente na doutrina alemã por Günter Dürig, em obra publicada em 195612, e tornou-se a concepção dominante no direito germânico, sendo hoje adotada pela maioria dos juristas daquele país e pela sua Corte Constitucional”.

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indivíduo certa tutela perante os arbítrios estatais. Nada obstante, com o transcorrer do tempo, passou-se a discutir acerca da possibilidade da incidência dessa proteção também no âmbito das relações privadas. Por conta disso, ensejou-se a aparição de algumas teorias que, doravante, provocaram e provocam, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acalorados debates e discordâncias constantes. Os norte-americanos não admitem a possibilidade da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, salvo em raras exceções6. Eles adotam a teoria do state action doctrine7, segundo a qual somente o Estado está vinculado às normas constitucionais que visam proteger os bens essenciais aos indivíduos e à coletividade. Aqui não há de se falar em eficácia horizontal (drittwirkung), mas tão somente na obrigatoriedade estatal no dever de alinhamento com os direitos fundamentais. Está presente, na verdade, a eficácia vertical dos direitos e garantias, cuja revelação se dá no momento em que o Estado, a despeito do seu poderio – e sobretudo por conta dele – encontra-se limitado pelos ditames constitucionais. Dentre os argumentos utilizados pelos países que adotam a state action doctrine, destacam-se aqueles atinentes à necessidade de proteção da autonomia privada. Ademais, sobretudo nos Estados Unidos, evidencia-se a justificativa do federalismo, segundo a qual compete aos estados legislarem sobre o direito privado e não à União (SARMENTO; GOMES, 2011, p. 63). Há, todavia, países que defendem a eficácia indireta dos direitos fundamentais no direito privado. Assim se posiciona a maioria da doutrina Alemã, bem como a jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha, que tem perfilhado esse posicionamento8. Com a eficácia indireta, reconhece-se a tutela mediata das normas de direitos fundamentais nas relações entre particulares. Desta forma, tais direitos e garantias só seriam aplicáveis quando, nos negócios jurídicos, constassem “clausulas gerais”, as quais, para gerar efeitos concretos, precisariam ser interpretadas conforme a Constituição. Destarte, no tocante ao direito privado, as garantias fundamentais, conforme essa teoria, consistem em vetores interpretativos que auxiliam na hermenêutica contratual. Quem adota essa teoria entende que a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas acabaria por resvalar na limitação do legislador, bem como no cerceamento da autonomia da vontade. Todavia, é de relevante importância considerar que os limites do legislador já estão delineados pelas Constituições (sobretudo nos modernos Estados, dotados de texto constitucional rígido e supremo). Além disso, nenhum direito é absoluto, não

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sendo diferente com a autonomia da vontade, também sujeita às ponderações necessárias a fim de efetivar outros direitos na máxima medida possível9. Assim sendo, parece o constituinte brasileiro ter perfilhado pelo melhor caminho, porquanto consagrou a incidência direta e imediata dos direitos fundamentais no direito privado. Isso se explicita na análise do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, mormente em seu §1°, quando este positiva que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Este preceito deve ser interpretado em sentido amplo (latu senso) de forma a vincular não somente o Estado, mas também os negócios jurídicos realizados na esfera cível. A majoritária doutrina brasileira, bem como o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado tal posicionamento constantemente, dando cores nítidas a um fenômeno relativamente recente, mas de sumária importância, que é a constitucionalização do direito privado10. Por esse prisma, o reconhecimento da vinculação dos particulares às normas de caráter fundamental revela a supremacia normativa da nossa Constituição Federal de 1988. Neste ínterim, ela prevê, inclusive, a impossibilidade de deliberação sobre propostas de Emendas à constituição tendentes a abolir os direitos e as garantias fundamentais (artigo 60, §4ª, IV). Mas, a despeito disso, o constituinte não fez clara referência às limitações contratuais, as quais, atualmente, não se sujeitam ao controle de constitucionalidade. Na prática, contudo, acontecem inúmeros abusos, sobretudo nos contratos de adesão, cujo conteúdo, não raro, está repleto de cláusulas abusivas em nítida afronta ao texto constitucional, mormente aos princípios e às garantias de direito fundamental. Por isso, cabe ao Estado não apenas respeitar os direitos previstos pela constituição, mas obrigar que os particulares os cumpram. Sobre isso, disserta Ingo Wolfgang Sarlet:

3 A SUPREMACIA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE A própria unidade do sistema jurídico pressupõe a existência de uma norma funda-

9  Para Robert Alexy, o que distingue as regras dos princípios é que havendo um conflito entre regras, este deve ser resolvido no plano da validade, mas quando existir uma colisão envolvendo princípios, deve ser resolvida por meio da ponderação, devendo ser cada um dos princípios colidentes, enquanto mandamento de otimização, ser aplicados na máxima medida possível. (SILVA, 2002, p. 26) 10  Sobre isso, disserta Sarlet (2010, p. 1) quando pontua que “um dos principais fenômenos operados no âmbito justamente dessa evolução constitucional referida é o da constitucionalização, por conta, em especial, da afirmação da supremacia da Constituição e da valorização da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são subjacentes, de toda a ordem jurídica”.

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Com efeito, é possível argumentar que justamente pelo fato de os direitos fundamentais estarem sujeitos a violações oriundas direitos uns dos outros (no mínimo é possível partir de um dever - juridicamente vinculativo - de respeito e não-violação por parte dos sujeitos privados) é que o Estado, por estar vedado ao particular cuidar ele próprio da tutela dos seus direitos (salvo em casos excepcionais), possui um dever de proteção. (SARLET, 2010, p. 19)

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mental da qual emane a validade de todos os princípios e regras produzidos em determinado Estado11. A Constituição Federal de 1988 consiste, portanto, num conjunto de normas supremas. Consoante Dirley da Cunha (2016, p. 24), “as normas constitucionais das Constituições rígidas, independentemente de seu conteúdo, têm estrutura e natureza de normas jurídicas, ou seja, são normas providas de juridicidade, que encerram um imperativo”. Destarte, o texto constitucional é a lei inaugural, a lei das leis, na qual deve estar embasado todo o ordenamento jurídico, sob pena de resvalar em vícios de inconstitucionalidade, que resultam na invalidade da lei ou do ato do poder público. Sobre isso, importante síntese faz Fernando Jovanovichs Driwin: Assim, pressupondo a supremacia da Constituição Federal e um escalonamento normativo, o legislador encontra no texto constitucional o fundamento de validade dos atos normativos, devendo obedecer aos trâmites previstos para a elaboração das leis, o que confirma que a rigidez constitucional provoca a ideia de fiscalização e controle. (DRIWIN, 2015, p. 9).

quaisquer regras ou princípios infraconstitucionais. O controle de constitucionalidade surgiu em 1803, nos Estados Unidos da América, quando –no caso líder (leading case) Marbury vs. Madison– o Chefe de Justiça John Marshall afirmou a supremacia da Constituição e declarou a competência do judiciário para apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público (SILVA, 2009, p. 197). Com o supracitado caso envolvendo William Marbury e James Madison, consagrou-se o sistema de revisão judicial ( judicial review). Doravante, nos Estados Unidos da América, todos os juízes ou tribunais estavam legitimados a apreciar a conformidade das leis e dos atos do poder público (controle difuso) ante um caso concreto (controle incidental ou por via de defesa). Assim, tratava-se de controle subjetivo porquanto sua realização se dá mediante um litígio envolvendo interesses intersubjetivos desenhados num conflito presente numa demanda judicial13. É importante, entretanto, trazer à baila a inovação implementada por Hans Kelsen quando fora convocado para redigir a constituição austríaca no início do século XX. Foi através da obra de Kelsen que a Europa recepcionou o sistema de controle de constitucionalidade originalmente criado nos Estados Unidos, conquanto tal modelo tenha sido absorvido com estrutura bastante distinta: 11  Nesse sentido, disserta Norberto Bobbio em Teoria do ordenamento jurídico (1995, p 71). 12  Como bem salientam Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, “[...] a validade destas normas infraconstitucionais está condicionada aos limites formais e materiais que lhes são impostos pela Constituição – que confinam a forma pela qual devem ser elaboradas e a sua substância/conteúdo. Uma norma inferior que exceda esses limites é ilegítima, porquanto inquinada pelo vício da inconstitucionalidade. ” (DIDIER JR., 2002, p. 320) 13  Ressalte-se, entretanto, que embora todo órgão judicial esteja legitimado à realização do controle de constitucionalidade, a Suprema Corte assume relevante papel hegemônico no sistema da judicial review of legislation. Isso porque os norte-americanos adotam o princípio do stare decisis, ou seja, as decisões da Corte Suprema têm caráter vinculante. Nesse sentido é a ressalva também feita pelo professor Dirley da Cunha Jr. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 230).

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O fato é que a supremacia normativa da constituição implica necessidade da existência de, pelo menos, um órgão competente para aferir a validade formal e material das leis e dos atos do poder público em relação ao texto constitucional12, rígido e hierarquicamente superior a

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Nesse prisma, a construção teórica de Hans Kelsen instituiu um novo paradigma de controle de constitucionalidade, doravante realizado de forma abstrata, concentrada, cujas decisões geram efeitos erga omnes, isto é, contra todos. No Brasil, contudo, a opção do constituinte foi fazer uma espécie de combinação entre os modelos de controle difuso e aquele inaugurado por Hans Kelsen, concentrado. Sendo assim, a nossa Constituição Federal de 1988 positivou a possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade, que deve ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a guarda da mesma14. Nesse caso, o controle abstrato (pela via principal) pode ser suscitado independentemente de haver demanda concreta, bastando quaisquer dos legitimados arguirem a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo do poder público perante a nossa Corte Suprema. Além disso, o controle pode ainda ser realizado por qualquer juiz ou tribunal, independentemente da instância. Todavia, nesse caso, a apreciação da constitucionalidade só pode ser feita perante demanda concreta, de maneira incidental, cuja decisão vincula apenas as partes (efeitos inter partes). É bem verdade que o próprio Supremo Tribunal Federal pode acabar julgando recursos extraordinários oriundos de litígios reais e intersubjetivos. Contudo, diferentemente dos Estados Unidos, onde as decisões da Suprema Corte são vinculantes (stare decisis), com eficácia em face de todos, as sentenças proferidas pelo STF geram efeitos apenas no litígio concreto julgado, não vinculando, portanto, outros juízes ou tribunais. Com efeito, no que diz respeito às violações de direitos fundamentais na esfera civil, com o ordenamento vigente é impossível anular determinado contrato sob o fundamento deste transgredir com os ditames constitucionais. Ora, se a Constituição é a Lei Maior dotada de superioridade hierárquica, parece-nos um desmedido contrassenso admitir que negócios jurídicos inconstitucionais permaneçam intocáveis por não se sujeitarem ao controle de constitucionalidade. O ministro Luís Roberto Barroso (2012, p. 33) pontua que “a supremacia da Constituição se irradia sobre todas as pessoas, públicas ou privadas, submetidas à ordem jurídica nela fundada”. Logo, outra não pode ser a consequência lógica de tal pressuposto: se a Constituição Federal de 1988 é documento dotado de supremacia capaz de vincular todas as normas produzidas pela sociedade, não podem os contratos de adesão na esfera cível manterem-se válidos quando ferem aquilo que prescreve o seu texto. Tal problemática ganha ainda maior relevo na sociedade contemporânea, marcada pelos constantes ataques aos direitos fundamentais que, não raro, partem dos entes privados.

14  Nesse sentido, reza o caput do artigo 102 da Constituição Federal: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...]”.

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De feito, Kelsen concebeu um sistema de jurisdição constitucional “concentrada”, no qual o controle de constitucionalidade estava confiado, exclusivamente, a um órgão jurisdicional especial, conhecido por Tribunal Constitucional. (CUNHA JR, 2015, p. 232)

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Aliás, a ideologia capitalista, formadora e conformadora do mundo líquido moderno15, parece fomentar as mais diversas agressões à dignidade humana porquanto torna realidade a coisificação dos indivíduos e, por conseguinte, a sua massificação. Essa realidade pode ser depreendida, sobejamente, a partir da crescente utilização dos contratos com cláusulas de adesão nos negócios jurídicos celebrados16.

4 O (NECESSÁRIO) CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS COM CLÁUSULAS DE ADESÃO Se a Constituição Federal de 1988 é rígida e, portanto, suprema, serve ela como fundamento que confere validade jurídica às normas infraconstitucionais. Destarte, encontrando-se qualquer lei ou ato normativo em dissonância formal ou material com a vontade do constituinte, verifica-se o vício da inconstitucionalidade17. Todavia, neste contexto, com a afirmação da incidência dos direitos fundamentais de maneira imediata também nas relações travadas entre particulares, não há que se obstar o controle da constitucionalidade dos negócios jurídicos18.

15  Aqui, faz-se referência ao termo utilizado por Zygmunt Bauman (2011, p. 7), quando ele pontua: “o mundo que chamo de ‘líquido’ porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraíram ontem, que amanhã se distanciará das coisas e acontecimentos que nos instigam hoje) ”. 16  Sobre isso, disserta Eduardo Scaravaglioni em artigo publicado no site JusNavegandi em julho de 2000. 17  Luis Roberto Barroso (2012, p. 38) afirma que o raciocínio é irrefutável. Diz ele: “se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa da vigência da Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria. 18  Both the problem of constituition and the problem of conflict are the result of a fundamental difference between state-citizen and citizen-citizen relations. The state-citizen relation is a relation between a constitutional right holder and a non-right-holder. By contrast, the relation between citizens is one rights-holders (ALEXY, 2009, p. 355).

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Após a Constituição Federal de 1988, a primeira vez que o STF se deparou com a discussão acerca da incidência dos direitos fundamentais na esfera privada foi em 1995, quando apreciou o Recurso Extraordinário nº 160.222, cujo relator era o ministro Sepúlveda Pertence. Aqui, discutiu-se a conduta da empresa De Millus S.A., fabricante de roupas íntimas que obrigava as suas funcionárias à revista íntima, a fim de prevenir o furto de mercadorias. O gerente da empresa foi condenado em primeira instância por constrangimento ilegal, mas, no Supremo Tribunal Federal, a questão sequer chegou a ser julgada, pois acabou prescrevendo antes da decisão da Corte. Um outro caso, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, chegou ao Supremo através do Recurso Extraordinário nº 158.215-4/RS. Aqui tratava-se de discutir ato de determinada cooperativa que, negando o direito de defesa, acabou excluindo do seu quadro determinado funcionário. Assim, o STF pontuou a necessidade do devido processo legal ser assegurado na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos. Destarte, deve ser garantido o direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório. Mais recentemente, a 2ª turma da nossa Corte Maior julgou o Recurso Extraordinário

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nº 201.819-8. Tal caso envolvia a União Brasileira de Compositores, que também excluiu um associado, negando-lhe o direito à ampla defesa e ao contraditório. Neste diapasão, a despeito da relatora, Ellen Gracie, afirmar que o princípio do devido processo legal não incidiria na hipótese, mas tão somente deveria ser observado o estatuto social da UBC, seu voto foi vencido. O fato é que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de vincular os entes privados aos direitos fundamentais. Todavia, como é possível notar diante dos casos acima mencionados, toda essa análise da compatibilidade material dos atos praticados pelos particulares tem sido feita de maneira incidental, através dos Recursos Extraordinários, e suas decisões apenas incidiram sobre esses casos concretos. Com efeito, em nosso sistema de controle de constitucionalidade, impossível é arguir, pela via principal, a inconstitucionalidade de determinado ato emanado de relação privada. Tal dissonância com a Constituição pode até ser apreciada, desde que de maneira incidental, envolvendo interesses subjetivos desenhados num litígio concreto, de tal maneira que a decisão do STF só gerará efeitos no caso apreciado. Essa situação, em verdade, acaba por obstar um controle mais efetivo, sobretudo no âmbito dos negócios jurídicos que envolvem contratos de adesão, não raro eivados de vícios de inconstitucionalidade. Assim sendo, especialmente na sociedade brasileira hodierna, marcada pelas enormes diferenças sociais, faz-se mister a observância constante dos preceitos constitucionais, a fim de aplicá-los de forma sistemática na prática, de maneira a evitar os possíveis abusos tanto dos setores públicos quanto dos entes privados. Sarmento e Gomes (2011, p. 84), ao debruçarem seus olhos sob esta problemática, defendem que:

Destarte, parece correto defender a possibilidade também do controle de constitucionalidade dos negócios jurídicos pela via principal, pelo menos no que diz respeito àqueles contratos cujas cláusulas estão postas, cabendo apenas a parte contrária aderir. Para tanto, talvez se fizesse necessário a criação de um órgão próprio, homólogo ao Supremo Tribunal Federal, a fim de apreciar tais inconstitucionalidades. Uma excelente solução seria a criação de um Tribunal Constitucional brasileiro, idôneo para julgar apenas as ações suscitadoras de inconstitucionalidades, que nesse caso devem envolver não apenas as leis e os atos do poder público, mas também os atos negociais firmados na esfera privada decorrentes de contratos de adesão. Imagine-se, para exemplificar, que determinada Faculdade de Direito privada, no seu contrato (com cláusulas de adesão, indiscutíveis) veda a utilização de turbante pelo seu alunado nas dependências da instituição. Dessa forma, o direito à liberdade de consciência e crença está explicitamente violado. Assim, o que o estudante deve fazer? Submeter-se à imposição contratual, mesmo sendo inconstitucional, ou arguir a dissonância do contrato com

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Essas tristes características da sociedade brasileira justificam um reforço na tutela dos direitos humanos no campo privado, em que reinam a opressão e a violência. Tal quadro impõe ao jurista a adoção de posições comprometidas com a mudança do status quo. Por isso, a eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada é direta e imediata no ordenamento jurídico brasileiro.

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os mandamentos constitucionais? Não se pode obliterar, ainda, o fato desses abusos incidirem sobretudo perante os mais vulneráveis, como o trabalhador necessitado que precisa submeter-se às condições do empregador ou ainda aquele cidadão de conhecimento jurídico limitado, induzido a firmar negócios jurídicos abusivos sem, sequer, notar o vício da inconstitucionalidade19. É com base nessas pilastras argumentativas que parece plausível afirmar a necessidade da criação de um Tribunal Constitucional no Brasil, cujas funções abarquem a apreciação da inconstitucionalidade dos atos do poder público e das leis, mas também dos negócios jurídicos firmados pelos particulares. Poder-se-ia, entretanto, argumentar a impossibilidade de se adotar tal medida no sistema vigente. Isso porque o nosso judiciário encontra-se atolado de processos, de maneira a inviabilizar a racionalidade desse novo paradigma na prática. Todavia, este argumento não se sustenta, pois com a criação de um Tribunal Constitucional competente para apreciar quaisquer inconstitucionalidades, restando ao STF a prerrogativa de ser o tribunal supremo do país, o problema restaria resolvido. Nesse sentido, o sistema brasileiro se aproximaria ainda mais daquele desenhado na Europa, de acordo com o qual, nas palavras de Louis Favoreu:

Relevante também é a observação feita pelo professor Jorge Miranda (2003, p. 10), ao pontuar que os atos perpetrados pelas entidades privadas, dos quais resultem violação de direitos, garantias e liberdades não se configuram como inconstitucionais. Depreende-se, então, que para o eminente constitucionalista, o Direito Privado apresenta mecanismos legítimos à contenção de tais violações nas relações particulares20, devendo estes serem acionados quando se fizer necessário. Com todas as licenças (e vênias) ousamos discordar de tal posicionamento. Isto porque, se existem meios para o controle dos atos privados na própria esfera civil, é bem verdade que aqueles não parecem adequados e idôneos à realização de efetiva contenção quando estes vêm a transgredir com o previsto na Constituição Federal de 1988. Isto porque, conforme a vivência prática mostra, não é incomum notar o frequente dissenso entre a conduta das grandes empresas e as balizas funcionais que emanam do sistema de garantias e direitos

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Neste ínterim, é preciso ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor implicou importante avanço no tocante à proteção do consumidor ao positivar a possibilidade de anular contratos com cláusulas abusivas. Entretanto, tal lei não é suficiente para sanar a problemática aqui debatida porquanto nela não estão estabelecidos os abusos decorrentes de inconstitucionalidade. Com efeito, a proteção despendida pelo CDC não se estende a todos os negócios jurídicos travados pelo cidadão no dia-a-dia. Ao contrário, não abarca, por exemplo, os contratos trabalhistas.

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Esta é a conclusão de Luis Roberto Barroso (2012, p. 33) quando afirma que “as condutas privadas violadoras da Constituição são igualmente sancionadas, mas por via de instrumentos diversos”

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[...]o contencioso constitucional, que distinguimos do contencioso ordinário, é da competência exclusiva de um Tribunal especialmente constituído para este fim, que pode estabelecer preceitos, sem que possamos falar propriamente de litígios, por meio da provocação desse Tribunal pelas autoridades políticas ou jurisdicionais e até mesmo por particulares, com decisões que têm efeito absoluto de coisa julgada. (FAVOREU, 2004, pp. 17-18).

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consolidados. Por isto, os contratos de adesão, quando em disparidade com a normatividade constitucional, devem ser fulminados, porquanto inválidos, por vício de inconstitucionalidade. É natural que esta tese, por pioneira que é, seja alvo de críticas. Todavia, o Direito deve constituir-se enquanto sistema aberto, de tal modo a adequar-se com as vicissitudes postas pelas transformações da realidade. Assim, segundo Dworkin (2007, p. 291), o sistema jurídico em sua integridade “pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito seja estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se apresentem”.

Se a Constituição Federal de 1988 é rígida e suprema perante o ordenamento jurídico, seus mandamentos devem imperar no Direito21. Por conseguinte, a fim de emprestar-lhe a potencialidade normativa vinculante tanto na esfera pública quanto no âmbito privado, faz-se mister desenvolver um sistema de controle de constitucionalidade diferente do que hoje concebemos. Nestes meandros, parece-nos adequado sustentar a possibilidade da criação de um Tribunal Constitucional brasileiro, incumbido de apreciar – pela via principal e de forma diretaos possíveis vícios de inconstitucionalidade presentes não apenas nas leis e nos atos do poder público, mas também nos negócios jurídicos travados entre os particulares, quando decorrentes de contratos com cláusulas de adesão. Neste caso, a decisão da Corte Constitucional geraria efeitos contra todos (erga omnes), de maneira a anular demais contratos similares. Aqui não se defende, ressalte-se, o controle de constitucionalidade dos atos jurídicos travados após discussão entre as partes, que estabelecem as cláusulas através do consentimento mútuo, em respeito também às condições de existência e de validade negociais. Nesse caso, deve prevalecer a autonomia privada, salvo quando o ato negocial ferir um direito fundamental indisponível ou possua vícios de natureza civil. Tal mudança sistemática é imprescindível à adequação do Direito aos deslindes da sociedade. Isso porque, conforme asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, (2016, p. 588) “afirma-se uma necessária limitação da liberdade de determinação do conteúdo negocial para assegurar a primazia da cidadania”. Do contrário, de nada adiantaria falar em constitucionalização do direito privado, porquanto tal expressão tornar-se-ia inócua. Em suma, obstar o contencioso constitucional dirigido aos atos firmados entre particulares é colocar os contratos acima da Constituição Federal, já que mesmo em claro desatento aos direitos fundamentais, eles podem permanecer válidos e com plena eficácia. Em síntese, aqui se defende a criação de um Tribunal Constitucional com o escopo de apreciar quaisquer inconstitucionalidades (tanto nas leis e nos atos públicos quanto aquelas

21  The concept of the supremacy of the constitution confers the highest authority in alegal system on the constitution. Stating this principle does not mean just giving arank order of legal norms. The point is not solely a conflict of norms of differing dignity. The principle of the supremacy of the constitution also concerns the institutional structure of the organs of State. (LIMBACH, 2001, p. 1)

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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presentes nos contratos com cláusulas de adesão). Por outro lado, ao Supremo Tribunal Federal estaria resguardado o dever de julgar os Recursos Extraordinários, permanecendo como tribunal supremo no Brasil. Com isso, ressalte-se, além de proporcionarmos um novo modelo de controle de constitucionalidade, se conferiria maior celeridade, eficiência e fluidez às demandas do STF, porquanto à Corte Suprema somente estaria outorgado o poder julgador, mas lhe seria subtraída a competência de exercer o controle abstrato, provocado por via principal. Para isso, como já fora dito alhures, existiria um órgão especial: o Tribunal Constitucional, que exerceria, exclusivamente, a apreciação abstrata da constitucionalidade.

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made as well as considerations about the form of American, Austrian and Brazilian constitutional review. Finally, it is discussed the possibility of judicial review in contracts of adhesion and it was concluded that is necessary to think about a new model, whose premises were proposed in this paper. Keywords: Fundamental rights. Private law. Judicial Review. Adhesion Contracts.

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Recebido 23/02/2017 Aceito 02/05/2017

EUTANÁSIA: O LIAME ENTRE A DIGNIDADE, A AUTONOMIA E A MORTE Júlia Gabriela de Sena Nepomuceno1

RESUMO O direito à vida, previsto no art. 5º da Constituição Federal, é um direito fundamental do ser humano e goza de ampla proteção jurídica. Entretanto, não raro, surgem situações existenciais degradantes que colocam em xeque a faculdade ou a obrigatoriedade do viver. Amparado nessa discussão, o presente artigo objetiva analisar a problemática da eutanásia no contexto do direito brasileiro, à luz do princípio constitucional da dignidade humana e do princípio civil da autonomia privada. Parte-se do pressuposto de que a manutenção de uma vida degradante não é expressão de dignidade e que a indisponibilidade da vida não deve ser absoluta. Palavras-chave: Eutanásia. Dignidade. Direito de morrer. Autonomia privada.

(Rámon Sampedro)

1 INTRODUÇÃO Graças ao caráter cidadão da Constituição Federal e ao fenômeno hodierno de perpetuação dos princípios constitucionais nos vários estratos do ordenamento jurídico, o direito bra-

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Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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“Se não se reconhece ao indivíduo o direito a uma morte racional, voluntariamente decidida, a humanidade não pode chegar a aceitar culturalmente a sua própria mortalidade”.

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sileiro, em sua completude, passou a ser norteado pelos fundamentos e pilares constitucionais. Dentre eles, destacam-se a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade, e a noção do ser humano como fim, fonte e fundamento de todas as normas jurídicas, por quem e para quem o direito é criado e executado. Em função disso, as questões que envolvem o homem e sua integridade física, moral e psíquica são palcos de grandes discussões e debates no âmbito jurídico contemporâneo. A prática da eutanásia, por exemplo, tem suscitado, há décadas, controvérsias e polêmicas. Apesar da tipificação do crime de homicídio no art. 121 do Código Penal brasileiro, muito se discute acerca da retirada da vida de uma pessoa nas condições excepcionais e peculiares da eutanásia, quais sejam: nas condições de um paciente que aguarda a morte certa e iminente, ou de uma pessoa acometida por doença incurável ou quadro clínico irreversível. Situado numa área cinzenta de incertezas e divergências teóricas, o debate moral, ético e jurídico em torno do problema ganha especial contorno nos dias atuais, por conflitar direitos fundamentais – a saber, o direito à vida e à liberdade –, por ameaçar a tutela cível do direito ao corpo e, especialmente, por erigir a pertinente pergunta acerca dos alcances e das limitações dos direitos da pessoa humana no que concerne a sua própria vida e a sua autonomia privada. Objetiva-se, portanto, dentro da seara civil constitucional, do campo da bioética e do biodireito, discutir a possibilidade do direito à morte digna, bem como, desconstruir o entendimento de vida como dever e obrigatoriedade.

O termo “eutanásia” foi originalmente proposto pelo filósofo Francis Bacon, no século XVII, em sua obra “Historia vitae et mortis” e provém da palavra grega euthanatos, em que eu designa “bom” e thanatos, “morte”. A eutanásia pode ser definida como sendo a morte antecipada, acarretada por sentimento de piedade e compaixão à pessoa que sofre – portadora de doença incurável, grave ou degradante, ou que está em estado terminal. É a busca pelo alívio instantâneo e indolor de um sofrimento lancinante e irremediável, vivenciado constantemente por alguns pacientes. Trata-se, portanto, de uma morte com motivações e preocupações humanísticas. Antes, a eutanásia denotava tão somente a antecipação da morte de pacientes terminais. Hodiernamente, contudo, como explica Claus Roxin (2008; p. 189), ela tem sido compreendida como o auxílio prestado a uma pessoa seriamente enferma, por pedido de vontade expresso ou presumido, objetivando oportunizar uma boa morte, condizente com a sua própria concepção de dignidade humana. No decorrer da história, a eutanásia esteve presente em diversas épocas e culturas. Em Esparta, por exemplo, era comum arremessar idosos e recém nascidos deformados do topo do Monte Taigeto com o fito de evitar uma vida de sofrimentos e limitações. Em Atenas, o Senado estabelecia que fosse ministrado veneno aos anciãos enfermos incuráveis. Comunidades pré-ce-

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2 COMPREENSÃO CONCEITUAL, HISTÓRICA E CULTURAL DA EUTANÁSIA

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CICCO, Januário. Euthanásia. Rio de Janeiro: Editora Irmãos Pongetti, 1937.

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ltas e celtas, por sua vez, conservavam consigo a tradição de que os filhos eliminassem os pais quando estes estivessem demasiado velhos ou doentes. Já na Índia, os gravemente enfermos eram atirados no rio Ganges com barro em suas bocas e narinas. Na América do Sul, povos nômades e rurais costumavam matar seus inválidos, em função de sua condição de fragilidade. Em Roma, os próprios doentes, fatigados com a dor, a desesperança e o sofrimento advindos de sua condição, procuravam os médicos para que lhes dessem descanso e tranquilidade através da morte. Até mesmo enquanto imperava a soberania da Igreja Católica, durante a Idade Média, dava-se aos guerreiros feridos em batalhas um punhal para que tirassem a própria vida e eliminassem a dor e o sofrimento. Longe de ser um debate exclusivo da atualidade, as ponderações acerca da eutanásia remetem a um processo de reflexão antigo, que tem se construído no decorrer da história e sido objeto de estudo de vários pensadores ilustres. Na Grécia antiga, por exemplo, Platão, Sócrates e Epicuro argumentavam que a agonia, a dor, e a angústia advindas de uma enfermidade atroz justificavam a morte e o suicídio. No Egito antigo, por sua vez, Cleópatra, ao considerar o tema, ordenou que um grupo de sábios analisassem procedimentos de morte mais benevolentes e menos brutais. Thomas More, Thomas Hobbes e o próprio Francis Bacon, ao propor o termo, afirmavam que a eutanásia era o tratamento correto para as doenças incuráveis e defendiam o procedimento desde que praticado pelos médicos. Mais recentemente, no século XX, o jurista espanhol Jiménez de Asúa e o jusfilósofo Giorgio Del Vecchio, discorreram sobre o direito de morrer, discutindo sobre o homicídio piedoso e sobre a distinção entre eutanásia e eugenia, respectivamente. No Brasil, a primeira obra a abordar a eutanásia data da década de 30 e é atribuída ao médico Januário Cicco.2 A diversidade de maneiras pelas quais se observou a eutanásia no decorrer da história da humanidade, a multiplicidade de culturas e povos que abrangeu, bem como os novos tratamentos surgidos com a medicina contemporânea, ensejaram grande confusão conceitual acerca do tema – Motivo pelo qual se faz imprescindível três distinções principais. A eutanásia não deve ser confundida com procedimentos como a distanásia, a ortotanásia e o suicídio assistido. O primeiro deles, também chamado de obstinação terapêutica ou tratamento fútil, corresponde ao prolongamento excessivo e artificial do processo de morte de um enfermo terminal, resultando na extensão temporal de seu sofrimento. A ortotanásia, por sua vez, significa, etimologicamente, “morte correta” (em que o prefixo grego orto quer dizer “certo”, “correto”, e thanatos, morte). Trata-se, assim, da morte que segue seu processo natural, sem qualquer interrupção ou prolongação. Nesse caso, o médico está encarregado apenas de ministrar medicamentos que aliviem o sofrimento físico do paciente, até que a morte natural lhe ocorra. O suicídio assistido, por fim, ocorre quando o doente assume a posição de agente ativo, e, com o auxílio de terceiro – médico ou não – mata a si próprio. Para melhor compreender as questões em torno da eutanásia, faz-se mister, ainda, uma

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URUGUAI, Lei nº 9.914, de 1934, Código Penal. Art. 37 (Del homicídiopiadoso).

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Resolução nº 1216, de 20/04/2015, expedida pelo Ministério da Saúde da Colômbia autoriza a eutanásia. A resolução foi uma determinação da Corte Constitucional colombiana, que, através da sentença T-970 de 2014, ordenou ao Ministério da Saúde garantir o direito à morte digna nas clínicas do país.

5

Lei de 12 de abril de 2001, relativa ao Término da Vida sob Solicitação e Suicídio Assistido e alteração do Código Penal e da Lei de Entrega do Corpo. A lei altera os arts. 293 e 294 do Código Penal holandês.

6

“Lei relativa à Eutanásia”, de 28 de maio de 2002, autorizou a eutanásia na Bélgica.

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breve exposição acerca de sua classificação. A eutanásia pode ser ativa ou passiva. Na eutanásia ativa, tem-se a efetuação de atos comissivos, praticados por terceiros, que objetivam interromper a vida do enfermo, a fim de livrá-lo de um sofrimento intolerável e desumano. Nesse caso, são utilizadas terapias e métodos clínicos que acarretam a morte, como medicamentos controlados, overdoses ou injeções letais. A eutanásia passiva ou negativa, por sua vez, traduz-se na omissão de tratamento ou qualquer outro meio que mantenha a vida do enfermo, quando ela está completamente comprometida. Nesse caso, o tratamento é negado ou suspendido e os aparelhos sustentadores da vida vegetativa são desligados, acelerando o processo da morte. Diversos países, no decorrer do tempo, passaram a legalizar e a regulamentar a prática da eutanásia em seus ordenamentos jurídicos, dados os confrontos que se insurgiam com a ausência de disposições legais sobre a questão. O Uruguai, por exemplo, inseriu a eutanásia em seu Código Penal3 no ano de 1934, quando estabeleceu o homicídio piedoso, segundo o qual é facultado ao juiz a isenção do castigo àquele que, portador de antecedentes honráveis, praticou o homicídio por motivo benigno, tendo sido impulsionado por sucessivos pedidos da vítima. O homicídio piedoso enseja isenção de pena, também, na Colômbia4, onde foi aprovado preliminarmente em 1997, pela Corte Constitucional do país e, posteriormente, em 2015, pelo Ministério da Saúde, com a ressalva de que, para a lei colombiana, é necessário o consentimento prévio do paciente terminal. (MOLINARI, 2014, p. de internet). A Holanda, por sua vez, adotou legislação específica5 acerca da eutanásia em 2002, quando aprovou abertamente a prática da eutanásia ativa, desde que ela ocorra a pedido do enfermo incurável e que a irreversibilidade de seu estado seja confirmado por dois médicos. Assim como na Holanda, a eutanásia foi expressamente legalizada, também, na Bélgica6. Já países europeus como a Suíça, Suécia, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega, Hungria, República Tcheca, Espanha e Portugal, apesar de não autorizarem a eutanásia, permitem que seja fornecida ajuda de terceiro para que o paciente terminal, por si mesmo, ponha fim a própria vida – legalizando, portanto, a prática do suicídio assistido. Na Suíça, especificamente, é permitido, inclusive, o funcionamento de organizações como a Dignitas e a Exit, que oferecem serviços para a morte assistida mediante o pagamento de uma taxa. Na maioria dos casos, permite-se ao enfermo recusar o tratamento médico ou solicitar ajuda clínica para morrer, sendo exigido, muitas vezes, apenas o pedido expresso do paciente, que pode ser oral ou escrito, à depender do local. Nos Estados Unidos da América, o assunto também tem sido objeto de discussões jurídicas. Estados como Oregon, Washington, Vermont, Montana e a Califórnia, autorizaram, na

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última década, a possibilidade de recusa de tratamento médico, o suicídio assistido e a eutanásia passiva7. Observa-se, desde já, a existência de um debate à nível global acerca do tema, razão que torna evidente a necessidade de uma discussão a respeito das implicações jurídico-sociais da eutanásia, também, em terras brasileiras.

Conforme os ensinamentos de Farias e Rosenvald (2015, p. 33-44), o ordenamento jurídico brasileiro tem como valor fundamental, instituído pela Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana, cujo principal corolário é a elevação do homem ao cerne de todo o sistema jurídico e seu consequente reconhecimento como razão e finalidade das normas de direito. A dignidade da pessoa humana engloba a afirmação da integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo; garante a autonomia e o livre desenvolvimento da personalidade e, ademais, serve como mola propulsora da inviolabilidade do direito à vida. Este último, por sua vez, previsto no art. 5º da Constituição Federal, é o mais fundamental dos direitos constitucionais, uma vez que, nas palavras do ministro Luiz Edson Fachin “é condição essencial de possibilidade dos outros direitos”. A partir dessa conjuntura, prosperou no ordenamento jurídico brasileiro a noção de supremacia da vida humana. (FACHIN, 2007, p. 46 e ss.) Aliado a esse cenário, vivencia-se um fenômeno de constitucionalização do direito privado, que tem gerado como importante resultado a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas e, segundo Farias e Rosenvald, tem implicado no dever, também cível, de assegurar a proteção da vida humana de forma integral e prioritária. Nesse sentido, a dignidade e o direito à vida, por sua condição hierárquica suprema, passam a se infiltrar em todos os ramos do direito brasileiro. Essa acepção é expressa, por exemplo, através dos direitos da personalidade, que, mesmo integrando o direito civil, vertente essencialmente privada do direito, revestem-se do espectro dos valores constitucionais, à medida que consistem em “direitos atinentes a tutela da pessoa humana, considerados essenciais a sua dignidade e integridade”.8 Os direitos personalíssimos tutelam, por exemplo, a vida, o corpo, a liberdade, a honra e a imagem do homem. Dada sua pertinência à pessoa, tais direitos são intransmissíveis, inalienáveis, absolutos, imprescritíveis, extrapatrimoniais, vitalícios e relativamente disponíveis.9

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A prática foi permitida no estado do Oregon em 1997, através do “DeathwithDignityAct”. Em Washington, a autorização ocorreu mediante referendo popular, em 2008. Vermont e a Califórnia, por sua vez, utilizaram-se do processo legislativo, promulgando o Act 39 (Vermont PatientChoiceandControlattheEndof Life Act), em 2013, e a lei SB-128, de 2015, respectivamente. Já em Montana, a autorização da eutanásia se deu judicialmente, através do caso Baxter vs. Montana, de 2009.

8  TEPEDINO apud FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 140. 9

FARIAS; ROSENVALD; 2015, p. 142-146.

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3 EUTANÁSIA E DIREITO BRASILEIRO: UM CONFRONTO PAUTADO NA SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA E NO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

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A Doutrina Social da Igreja consiste num conjunto de ensinamentos católicos agrupados em encíclicas e pronunciamentos papais, que carregam consigo a noção de dignidade da pessoa humana como fundamento. O mais famoso desses documentos é a Encíclica RerumNovarum, de Leão XIII, de 1891.

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Essa configuração constitucional do direito privado, entretanto, não foi sempre de tal maneira. No início do século XX, por exemplo, as disposições cíveis limitavam-se a regular as relações patrimoniais, através dos direitos reais e das obrigações. O princípio norteador do direito privado era a autonomia da vontade, de modo que todas as demais situações do ser humano estavam a ela subordinadas. Com o avançar do tempo, contudo, essa estrutura passou paulatinamente por uma série de mudanças que visavam a correção dos desequilíbrios provocados nas relações sociais pela noção absoluta da autonomia da vontade. A transformação paradigmática no direito privado decorreu do surgimento dos regimes totalitários – como o stalinismo, o fascismo e o nazismo – que em nome da supremacia do Partido e do Estado, ensejaram completo descaso para com o ser humano, resultando numa gama de atrocidades, como campos de extermínio e bombas nucleares. A situação de terror advinda dos governos totalitários provocou uma necessidade mundial de proteção do ser humano, que se concretizou com a implementação do princípio da dignidade da pessoa humana e com sua expansão rumo a todas as esferas do direito. Dotada de um pluralismo conceitual, a dignidade da pessoa humana é uma concepção pertencente tanto à religião, quanto à filosofia e ao direito. Na primeira esfera, ela se revela na crença cristã de que o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus. Seus pressupostos, difundidos por meio da Doutrina Social da Igreja10, possibilitaram que a dignidade humana se tornasse o alicerce de várias instituições sociais. No âmbito da filosofia, por sua vez, a noção de dignidade esteve muitas vezes atrelada à ideia de honra, títulos e destaque. Foi apenas a partir de Kant que ela surgiu como essência da humanidade. Para o filósofo, o ser humano deve ser um fim em si mesmo, jamais meio. Enquanto fins, ou as coisas possuem preços e podem ser trocadas por outras equivalentes, ou possuem dignidade e ultrapassam qualquer limitação patrimonial. O homem, para Kant, enquanto ser moral era, também, ser digno. Na seara do direito, a dignidade da pessoa humana esbarra num leque amplo de definições doutrinárias, mas que se orientam pelo mesmo princípio: o da dignidade como o reconhecimento do homem enquanto pessoa e, por conseguinte, enquanto sujeito de direitos e para além disso, de seu reconhecimento como baliza e fundamento da ordem jurídica imperante. O Estado e o direito não podem encontrar sua razão de ser em si mesmos. Ela, em sendo o fundamento de tudo, deve estar no próprio homem e em sua dignidade. Diante do exposto, com a ideia de dignidade da pessoa humana influenciando todo o ordenamento jurídico, o direito privado sentiu a necessidade de adequação de seus institutos ao novo paradigma. Ocorreu, então, a transformação de uma disciplina exclusiva das relações patrimoniais para uma disciplina atrelada à proteção global da pessoa humana. A esses direitos e valores que exaltam a intangibilidade da vida e a primazia da digni-

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11  O juramento de Hipócrates é um juramento solene, realizado pelos médicos, através do qual eles se comprometem a exercer a medicina legal e honestamente. Disponível em: <http://www.cremesp.org.br/? siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em 20/02/2017. 12  Resolução nº 1.931/2009, do Conselho Federal de Medicina.

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dade do homem, contrapõe-se, a princípio, a prática da eutanásia. Esta, a um primeiro olhar, parece remeter àquele estado de liberdades absolutas, em que imperava a soberania da autonomia da vontade, e que hoje foi suplantado por uma liberdade comedida afim de exaltar a dignidade humana. Sem embargo, as entrelinhas que permeiam esses dois extremos são mais densas do que se imagina. Juridicamente, a questão parece estar acertada. A proibição da eutanásia verifica-se consolidada, ainda que não expressamente, no art. 121 do Código Penal. Para o direito brasileiro, a prática de permitir a morte de tal maneira, mesmo que consentida ou até implorada, constitui conduta típica, ilícita e culpável, caracterizando-se como crime de homicídio. De acordo com seu § 1º, o valor social ou moral que orientam a ação e o sentimento de piedade inerente à conduta da eutanásia podem ensejar a redução da pena de um sexto a um terço (homicídio privilegiado). Não se pode, entretanto, por hipótese qualquer, reconhecer a licitude do ato – Afinal, ainda que por razões pertinentes e humanitárias, trata-se da autorização da morte em face de um ordenamento jurídico protetor da vida. Ademais, as próprias regras orientadoras da conduta profissional médica, por dever de obediência aos princípios supracitados, acentuam a proteção da vida e do homem. Pelo juramento de Hipócrates11, o médico declara que “A ninguém darei, para agradar, remédio mortal, nem conselho que o induza a perdição”. O Código de Ética Médica12, por sua vez, ao dispor sobre a relação dos médicos com seus pacientes e familiares (Capítulo V), é preciso ao estabelecer, em seu artigo 41, que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Exposta a força vinculante que o princípio da dignidade humana e o direito à vida exercem no ordenamento jurídico brasileiro como um todo, tem-se justificada a magnitude do problema que envolve a eutanásia. No último século, a medicina evoluiu exponencialmente no que se refere ao retardamento da morte. O funcionamento das unidades de terapia intensiva e o grande volume de pesquisas que vem se desenvolvendo acerca da cura de doenças permitem a manutenção artificial da vida por longos períodos. Esse prolongamento da longevidade humana é, indubitavelmente, uma forma de materialização do princípio da dignidade, uma vez que permite ao paciente maiores chances de tratamento e de sobrevivência. Contudo, há entre os beneficiados, um grupo específico de pacientes que – tomados por doenças incuráveis, reduzidos a um degradante estado vegetativo ou, ainda, acometidos por dores permanentes e insuportáveis – preferem a morte à manutenção clínica de suas vidas. Origina-se, por conseguinte, um conflito pautado na contraposição entre os valores constitucionais previamente expostos e a disponibilidade da vida. O princípio da dignidade da pessoa humana é, portanto, colocado em xeque, pois ao mesmo tempo em que impossibilita a destruição da vida e que confere ao indivíduo o direito de viver, o obriga a suportar uma situação existencial

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deplorável, marcada pelo sofrimento e pela dor, que é, em verdade, no mínimo, indigna.

4 SISTEMATIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

4.1 A eutanásia em pacientes conscientes, mas incapazes Fala-se em consciência e incapacidade, por sua vez, nas situações em que uma pessoa, com funcionamento pleno de suas faculdades mentais e apta, biologicamente, a continuar viva, prefere a morte, devido a uma condição pessoal debilitante, que ela encara como degradante, humilhante e detestável. Nesses casos, embora a pessoa tenha a vontade consciente de tirar a própria vida, não possui a capacidade física necessária para fazê-lo. Impossível não relacionar à situação o caso verídico do espanhol Ramón Sampedro. 13

DWORKIN apud SÁ, M. F. F; Oliveira, P. M. G, 2005, p. 114-117.

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Face ao exposto, basta refletir a respeito da condição degradante do paciente para que o explicitado no ordenamento jurídico seja contestado e para que sejam formuladas duas questões fundamentais: até que ponto o Estado pode interferir na liberdade, na autonomia da vontade e no poder de autodeterminação do indivíduo; e, principalmente, até que ponto cabe ao paciente o poder de escolha sobre a própria vida. A resposta para essas indagações depende substancialmente dos estados de consciência e de capacidade dos pacientes no momento da tomada de decisão. Dessa maneira, a exemplo da divisão feita pelo jusfilósofo americano Ronald Dworkin13, é possível sistematizar a problemática da eutanásia, a princípio, em três grandes grupos de reflexão: o grupo que engloba pacientes conscientes e capazes; aquele com pacientes conscientes, mas incapazes; e um terceiro, com pacientes inconscientes e incapazes. Fala-se em consciência e capacidade, por exemplo, nos casos em que uma pessoa, até então saudável, descobre-se portadora de uma doença grave, crônica e incurável, que incorrerá em drásticas consequências futuras e cujo resultado certo e inevitável é a morte. Não querendo submeter-se ao tratamento e enfrentar suas adversidades, por saber o fim que lhe espera, a pessoa opta pela interrupção de sua vida. Essa situação ocorreu, por exemplo, no famoso caso estadunidense, datado de 1990, em que uma senhora, Janet Adkins, diagnosticada com Mal de Alzheimer em estado inicial, preferiu recusar o tratamento e buscar um médico (Dr. Kervokian, também conhecido como Dr. Morte) que evitasse seu sofrimento futuro. Nesse caso, contudo, em razão de o paciente ter consciência de seu estado degradante e ter a capacidade de tirar a própria vida, ou de recorrer diretamente ao auxílio de terceiros para tal, acaba-se incorrendo no puro suicídio – que, por si só, é um irrelevante penal – ou no suicídio assistido, que, conforme já foi exposto, consiste numa prática, em regra, distinta da eutanásia. À vista disso, apenas os dois últimos grupos de reflexão se mostram relevantes para a discussão em pauta, razão pela qual necessitam ser melhor explorados.

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Tetraplégico por 28 anos, Sampedro lutou para obter autorização da justiça espanhola para morrer, a qual foi, entretanto, reiteradamente negada. Em requerimento por ele formulado e endereçado às cortes judiciais da Espanha14, Ramón comenta que a ilicitude da eutanásia implica numa condenação à vida, quando, na verdade, “viver é um direito, mas não uma obrigação”. Como aponta Pessini (2002, p. 86-88), o paciente, nessas circunstâncias, vive cercado pela dor física; pela dor psíquica, decorrente da perda de sonhos e esperanças; pela dor social, fruto do isolamento e da supressão de seu papel sociofamiliar; e pela dor espiritual, expressada através da desesperança, da impotência e da falta de significado da vida, deixando-a vazia. Em somatória, tem-se um sofrimento global do ser humano. A morte, nessas condições, destitui-se de toda sua carga axiológica negativa e assume a conotação de alívio e paz. Nesses casos, julga-se imprescindível levar em conta a autonomia do paciente no que diz respeito às suas escolhas conscientes, pois afinal, se possuísse a capacidade física para concretizá-las, o faria por si mesmo. É indispensável salientar que a defesa da autonomia, aqui propalada, não impede que se entenda como necessária a criação de determinados limites legais para ordenar o procedimento da eutanásia, de modo que ele estivesse sempre pautado nos bons costumes e na razoabilidade. A definição de determinadas formalidades e limitações permitiria que a eutanásia fosse realizada de forma comedida e sensata, evitando incorrer em condutas dolosas ou interpretações extensivas prejudiciais ao paciente. Num exercício de direito comparado, basta recorrer às disposições internacionais previamente mencionadas acerca da questão, para se dar conta de que é possível o império da autonomia da vontade de forma prudente e ordenada. Critérios como exigir que a irreversibilidade do estado clínico seja atestada por mais de um médico; ou que a expressão de vontade do paciente se dê por via oficial, reconhecida pela justiça; e, até mesmo, formalidades como exigir uma avaliação psicológica, ou um tempo mínimo entre o início da condição hospitalar e a prática da eutanásia, são, em seu conjunto, critérios passíveis de serem adotados para a boa execução da eutanásia no grupo de pacientes em questão.

O terceiro caso em que se observa a possibilidade de ocorrência da eutanásia, por fim, é nas situações de pacientes inconscientes e, portanto, incapazes. Aqui, tem-se uma conjuntura em que inexiste qualquer possibilidade de reestabelecer a saúde do paciente, confinando-lhe a um estado vegetativo permanente, em que subsistem tão somente algumas poucas funções fisiológicas. Nesses casos, embora o paciente possa, às vezes, apresentar ciclos de alternância entre a vigília e o sono e possam, até mesmo, em alguns quadros excepcionais, respirar sem a ajuda de aparelhos, ele já não demonstra qualquer capacidade de percepção do meio, nem de resposta consciente aos estímulos externos. Nessas circunstâncias, os tratamentos sequer beiram a cura; eles detêm-se, quando 14  Processo de nº 19.6.1993, da 1ª instância nº 5 de Barcelona.

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4.2 A eutanásia em pacientes inconscientes e incapazes

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Resolução CFM nº 1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.

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possível, no estacionamento da doença e no alívio efêmero da dor. Diante da insuficiência das faculdades mentais, da total incapacidade de compreensão do mundo e de execução de ações próprias, o paciente reduz-se ao estado degradante e indigno de uma maquinaria biológica, mantida por aparelhos artificiais, que nada é e nada pensa por si só. Conforme analisa Horta (1999, p. 2) “Na sociedade tecnológica moderna, morrer é algo que acontece no hospital. E o moribundo, frequentemente, já está inconsciente e se encontra numa UTI”. Desse modo, situações que se enquadram no terceiro estado de pacientes são demasiado frequentes. Tem-se, por exemplo, o emblemático caso estadunidense de Terry Schiavo que, em decorrência de uma parada cardíaca e de disfunções cerebrais, esteve em estado vegetativo por 15 anos até que seu marido conseguisse autorização judicial para desligar os aparelhos que a mantinham viva. No caso particular em que os pacientes se encontram incapazes de exercer sua autonomia, é necessário a existência de providências eficazes que protejam seus direitos e interesses. No ordenamento brasileiro, essa garantia da autodeterminação é proporcionada pelo testamento vital, que para além de disciplinar o destino dos bens do testador, pode disciplinar, também, o tratamento médico que deseja receber – em decorrência do disposto no § 2º do art. 1.857 do Código Civil, segundo o qual são válidas as disposições testamentárias não patrimoniais, ainda que só a elas se atenha o testador. As diretivas antecipadas de vontade15, especialmente sob a forma de testamento vital, consistem no documento livremente revogável através do qual o cidadão maior de idade e capaz, sem qualquer comprometimento de suas faculdades psíquicas, expressa antecipadamente sua vontade consciente, livre e esclarecida acerca dos cuidados de saúde que pretende ou não receber, em caso de tornar-se, por razão qualquer, incapaz de manifestar sua vontade pessoal e autonomamente. O cidadão pode optar, por exemplo, por não ser submetido à manutenção artificial de suas funções vitais ou a tratamento fútil e inútil, cujo único resultado seria o retardo do processo natural de morte. Bem como, deve ser a ele permitido dispor quais procedimentos devem ser levados à cabo numa situação de estado vegetativo permanente, tudo em conformidade com aquilo que melhor se coaduna com suas concepções de vida boa. As diretivas antecipadas de vontade permitem, ainda, a nomeação de um procurador de cuidados de saúde, que poderá, na incapacidade do autor, interpretar as vontades dispostas, orientando-se sempre no sentido de exigir que a vontade do outorgante seja cumprida e defendendo seus valores, mesmo que estes contraponham os seus próprios. Na ausência do outorgante, poderá recair sobre o procurador o poder de decisão quanto a aceitação ou não de determinado tratamento médico que o primeiro venha a precisar. É importante salientar que deve sempre prevalecer a vontade do outorgante em detrimento da do procurador, atuando este tão somente, nos pontos e questões em que aquele se manter omisso. Desse modo, diante das situações de inconsciência, os médicos, no dever de respeitar a

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autodeterminação do indivíduo, estariam aptos a praticar a eutanásia, se assim fosse da vontade do paciente, tal qual previamente estabelecida, proporcionando-lhe uma “boa morte” e poupando-lhe dos sofrimentos de um estado terminal vegetativo. Ocorre, entretanto, que a resolução responsável por regulamentar as diretivas antecipadas de vontade afirma que as preferências e desejos em desacordo com o Código de Ética Médica devem ser desconsiderados pelos médicos – Motivo que, por óbvio, impossibilita a efetivação da eutanásia por simples querer do indivíduo. Entende-se, diante disso, a indispensabilidade de uma aceitação global – e não apenas fragmentária – da autonomia privada e da liberdade do indivíduo no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão de um sujeito, capaz e consciente, acerca da própria morte e do próprio sofrimento não cabe ser ditada pelo Estado ou por terceiros – Ao revés, ela deve ser respeitada, pois é um direito do paciente salvaguardar sua dignidade como pessoa, até mesmo no momento de sua morte. De fato, deve-se preservar os ditames da proporcionalidade e da razoabilidade nos atos de manifestação da vontade privada – motivo pelo qual julga-se como indispensável a aplicação dos critérios anteriormente elencados para autorização da eutanásia. De igual modo, entende-se que, inexistindo as diretivas antecipadas de vontade, bem como, na ausência de uma declaração que autorize a eutanásia, feita lúcida, clara e reiteradamente, ainda que de maneira informal, pelo paciente a um familiar próximo, o procedimento deve permanecer interdito– uma vez que, ausentes essas circunstâncias, torna-se impossível determinar, com certeza, a real vontade do enfermo. Não obstante isso, sempre que a escolha couber ao próprio paciente, e este estiver em condições de fazê-lo, não há razões plausíveis para tirar-lhe a autonomia de decisão acerca da própria morte.

Diante das considerações tecidas anteriormente, é substancial perceber que, independente do estado de consciência ou de capacidade em que se encontre o paciente, a imposição de tratamentos inúteis e a manutenção forçada da vida sem qualquer qualidade resultam numa existência desumana e cruel; bem como, na obrigação ao sofrimento, o que por si só, se opõe ao princípio constitucional da dignidade humana (SZTAJN; 2002, p. 55). Nesse sentido, reitera Martins (2003, p. 115): A dignidade deve acompanhar o homem desde seu nascimento até a sua morte, posto que ela é da própria essência da pessoa humana. Assim, parece-nos que a dignidade é um valor imanente à própria condição humana, que identifica o homem como ser único e especial, e que, portanto, permite-lhe exigir ser respeitado como alguém que tem sentido em si mesmo.

De igual modo, Farias e Rosenvald declaram que “ao direito de viver com dignidade,

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5 O DIREITO DE MORRER DIGNAMENTE

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Quando o direito à vida se impõe como dever, quando se penaliza exercer o direito a liberar-se da dor absurda que degrada a existência de uma vida absolutamente deteriorada, o direito se converte em absurdo e a vontade das pessoas que o fundamentam, normativizam e impõem é uma verdadeira tirania.

Não sendo a vida um dever e estando a eutanásia intimamente entrelaçada à garantia

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Hans Jonas foi um filósofo alemão, autor da obra O princípio responsabilidade (1979), no qual discutia os dilemas éticos surgidos na sociedade em decorrência do avanço da tecnologia.

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haverá de corresponder como espelho invertido o direito de morrer dignamente”. (2015, p. 310). Como traz Sampedro, em sua carta de requerimento, o absurdo da eutanásia não está no pedido de disposição da vida como forma de correção da dor irracional, mas sim, está na atitude médica e judiciária que propõe diversas formas de morrer, exceto a maneira voluntária e legalmente autorizada. A omissão da justiça em proporcionar um procedimento médico que oportunizasse uma morte rápida e indolor e, portanto, digna, obriga o paciente a submeter-se a processos julgados ilícitos ou a métodos inapropriados e mais tortuosos – como a recusa do tratamento ou da alimentação – para que se possa obter a morte. Importante esclarecimento é trazido à baila pela professora de antropologia e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), Débora Diniz (2004, p. 124-125). Ela postula que existem dois princípios éticos que devem ser analisados para ponderar questões acerca da eutanásia: o princípio da autonomia e o princípio da dignidade. No primeiro caso, cabe perceber que a eutanásia deve ser concebida como o exercício de um direito individual e, portanto, deve ocupar a esfera dos aspectos da vida humana sobre os quais o poder de regulamentação do Estado não atinge, por ser tão específico, próprio e pessoal do indivíduo, que diz respeito somente à sua consciência e vontade. No concernente ao segundo caso, ao ponderar os limites legais que a dignidade da pessoa humana teoricamente impõe a eutanásia, Diniz avalia que é fundamental questionar-se em que medida pode-se considerar digna a vida de uma pessoa incapaz de executar por si só suas funções vitais, de uma pessoa inconsciente ou descrente, cujo desejo mais profundo – dado seu estado degradante – é a morte. Não há sentido falar em vida digna quando ausente qualquer condição, ou sequer perspectiva futura, de bem-estar físico, mental e social. Nesse sentido, se por um lado a dignidade se impõe como obstáculo ao direito de morrer, por outro, ela se mostra como seu principal argumento. Negar a eutanásia consiste na negação da defesa da dignidade da pessoa humana e de sua liberdade de consciência. Desse modo, ao invés de ser visto como uma afronta aos direitos fundamentais que o ordenamento jurídico confere ao indivíduo, o direito de morrer deve ser compreendido como forma de respeito do Estado para com o cidadão. Afinal, como salienta o filósofo Hans Jonas16, existe sim um direito à vida, mas não uma obrigação de viver. Rámon Sampedro, ao requerer às cortes espanholas e ao Supremo Tribunal Europeu de Direitos Humanos seu direito de morrer, sustentou:

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17  DWORKIN apud SÁ, M. F. F; Oliveira, P. M. G, 2005, p. 117-119.

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da dignidade da pessoa humana no momento da sua morte, insta frisar que o direito à morte não viola a integridade e a saúde do paciente, uma vez que o estado por ele vivenciado é, por si só, um desdobramento infindo de infortúnios e sofrimentos. Destarte, ao falar em ameaça ao direito à vida e à dignidade, deve-se lembrar, primordialmente, que o indivíduo já não goza da vida plenamente e que mantê-lo em estado tal, quando infeliz e desesperançoso, contra a sua vontade, já não é, também, indício supremo de dignidade. Ao contrário, sua dignidade talvez esteja, na verdade, na possibilidade de escolha do paciente, como expressão de sua autonomia de vontade e de sua consciência, sempre que este o puder fazer. Ao posicionar-se sobre a questão, Dworkin17 explica que a confusão em torno da disponibilidade da vida decorre do fato de que, para alguns, a vida humana não possui apenas um valor intrínseco, mas também, um valor sagrado, que lhe confere um caráter de intocabilidade. Essa visão, arraigada pela crença religiosa, é comumente empregada como argumento contrário à eutanásia e alicerça-se, muitas vezes, na noção de vida como propriedade e domínio de Deus, sendo Ele o único capaz de dá-la ou tirá-la. Cabe atentar, entretanto, para o fato de que o Estado brasileiro é um estado laico, não devendo sujeitar suas leis e princípios jurídicos às concepções religiosas. Dworkin esclarece, ainda, que a vida humana, além de carregar consigo o princípio religioso da santidade, carrega também, o princípio da sacralidade, que pode ser entendido tanto pelo viés cristão quanto pelo viés secular. Quando percebida pelo prisma desta última acepção, a vida assume o valor moral da existência humana, cujo cerne, numa visão essencialmente antropocêntrica, está na dignidade do homem. Mas, ora, tendo o ser humano perdido seu respeito e seu sentido como pessoa e estando, portanto, submetido a uma condição degradante, esta não é um vida digna e, por conseguinte, não há significado em ser vivida. Depreende-se, pois, que o direito à vida garantido pela Constituição Federal deverá prevalecer como indisponível e inviolável sempre que se tratar de uma existência digna e proba. Ao contrário, sendo ela, de acordo com os valores e a consciência de cada indivíduo, indigna e degradante, seu caráter indisponível deveria ser desconsiderado, pois nessas condições, ela já não se mostra como garantidora da dignidade, mas sim, como seu obstáculo. Não estaria a verdadeira concretização da dignidade atrelada à realização da liberdade individual, ao invés da coerção, da obrigatoriedade e da imposição da vida como dever? Nessa perspectiva, para análise da eutanásia, faz-se mister considerar os interesses fundamentais das pessoas e sua autonomia, devendo respeitar-se as decisões alheias, ainda que delas se discorde, pois apenas a própria pessoa conhece seu verdadeiro interesse e vontade. A autonomia da pessoa em decidir o que julga ser melhor para si – optando por submeter-se ou não a determinado tratamento médico, por exemplo – é corolário necessário do princípio da dignidade da pessoa humana. Cabe analisar, ainda, se a autonomia da vontade, fundamento jurídico-filosófico da li-

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Eutanásia Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

18  Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, UNESCO, 2005. Aprovada pela 33a. sessão da Conferência Geral da UNESCO em Paris, em 19 de Outubro de 2005. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0017/001798/179844e.pdf>. Acesso em: 20/02/2017. 19

Projeto Lei do Senado nº 236, de 2012.

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berdade pessoal para disciplinar os próprios interesses patrimoniais, é capaz de alcançar a esfera existencial, conferindo ao paciente o poder jurídico de autodeterminar-se e decidir conforme lhe convém acerca da própria morte. A resposta para essa questão remete a uma bifurcação de correntes teóricas: a paternalista e a liberal (Dworkin; 2003, p. 270). Para a primeira delas, o indivíduo é incapaz de decidir sobre a própria morte, pois diferente do médico, não sabe o que é melhor para si. Essa corrente, que imperou nos países latino-americanos, confere uma atitude paternalista à própria conduta médica, que implica na obrigatoriedade da vida a despeito da vontade do paciente. O ponto de vista liberal, por sua vez, preza pela autodeterminação da vontade como respeito ao princípio da dignidade. No que se refere ao fim da vida, seria dada ao paciente a possibilidade de escolher aquilo que julga ser melhor para si, podendo submeter-se ou não a determinado tratamento médico e podendo optar ou não pela interrupção da própria vida. A autonomia resta prevista, também, no art. 5º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO18, segundo o qual a autonomia da pessoa no concernente à capacidade de tomar decisões deve ser respeitada, desde que sejam assumidas suas responsabilidades consectárias e desde que seja respeitada a autonomia de terceiros. Na legislação brasileira, por sua vez, disciplina-se a autonomia do paciente no art. 15 do Código Civil, que estabelece que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. De fato, o objetivo primeiro da lei era assegurar que ninguém seria coagido a tratamento compulsório que aumentassem as possibilidades de risco de vida. Contudo, adequando-se a norma à realidade, entende-se como perfeitamente plausível a interpretação extensiva do artigo no sentindo de que o paciente referido pode ser um paciente terminal e, ademais, no sentido de que este, como qualquer outro, desde que não prejudique terceiros, possa recusar o tratamento médico que não lhe convier ou que não expressar sua vontade. Longe de configurarem-se como meras abstrações, as ideias acima defendidas encontraram suporte no novo projeto do Código Penal19, ainda em tramitação, que apesar de tipificar a eutanásia em seu art. 122, prevê nos parágrafos 1º e 2º a possibilidade de isenção de pena e de exclusão de ilicitude, respectivamente, desde que observadas as particularidades do caso concreto:

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Pena – prisão, de dois a quatro anos. § 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima. Exclusão de ilicitude § 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

A introdução de um dispositivo no direito brasileiro que excluísse a antijuridicidade da prática da eutanásia, seria o primeiro passo para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que funcionaria como auxílio para todos aqueles que se encontram confinados permanentemente a uma situação degradante, deplorável e tormentosa. Aliado a ele, o poder de autodeterminação do indivíduo, hoje revestido de um caráter existencial, torna-se apto a estender o véu de alcance da dignidade ao momento da morte.

A discussão acerca do direito de morrer é complexa, pois confronta uma série de direitos fundamentais e traz para o cerne do problema a finitude da natureza humana, que embora seja a maior certeza do homem, é, por igual, sua maior negação. A contraposição entre a necessidade constitucional de proteção da vida e a autonomia privada do indivíduo acarreta, no debate da eutanásia, a necessidade de ponderação entre dois aspectos existenciais do ser humano que são, via de regra, irrenunciáveis. A resposta para o conflito encontra-se na ponderação entre a vida e a autonomia, devendo preponderar aquela que, no caso concreto, mais se aproxime da dignidade humana. Ora, conclui-se, pois, que optar pela vida nas condições de um paciente cuja existência é orientada pelo sofrimento físico e psíquico de uma doença incurável não constitui expressão de dignidade. Um direito que nega a liberdade de escolha e a dignidade das pessoas no que diz respeito à decisão da própria morte não passa de um direito pincelado por nuances de autoritarismo. A democracia pressupõe a convivência de consciências plurais e, principalmente, o respeito às decisões individuais, mesmo que delas se discorde, desde que elas não prejudiquem ou violem o direito alheio. Buscou-se, portanto, ao longo desse artigo, demonstrar que as concepções de dignidade humana são múltiplas, e que a eutanásia significa, sobretudo, o direito de escolha: a possibilidade de decisão a respeito da própria morte. Afinal, não cabe ao Estado, à Igreja ou a outro terceiro qualquer decidir em lugar do indivíduo sobre aquilo que lhe é mais íntimo e essencial: sua dignidade.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS DINIZ, Débora & COSTA, Sérgio. Morrer com Dignidade: um Direito Fundamental. In: CAMARANO, Ana Amélia. Os Novos Idosos Brasileiros: Muito Além dos 60. Cap. 04. Rio de Janeiro: IPEA, 2004. DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003. FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no código civil brasileiro: fundamentos, limites, transmissibilidade. Revista jurídica, São Paulo, v. 55, n. 362, p. 43-60, dez. 2007. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: Parte Geral e LINDB. 13 ed.São Paulo: Atlas, 2015. HORTA, Márcio Palis. Problemas éticos da morte e do morrer. Bioética, Brasília, v.7, n.1. 1999. Quadrimestral. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_ bioetica/article/view/290/429>. Acesso em: 20 fev. 17. MARTINS, F.J.B. Dignidade da pessoa humana. Curitiba: Juruá, 2003. MOLINARI, Mario. Eutanásia: Análise dos países que permitem. Jusbrasil. Disponível em: <http://mariomolinari.jusbrasil.com.br/artigos/116714018/eutanasia-analise-dos-paises-quepermitem> Acesso em 8 dez. 15. PESSINI, Léo. Humanização da dor e sofrimento humanos no contexto hospitalar. Bioética, São Paulo, v. 10, n. 2, 2002. Quadrimestral.

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ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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EUTHANASIA: THE BOND BETWEEN DIGNITY, AUTONOMY AND DEATH

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ABSTRACT The right to life, provided on article 5 of the Federal Constitution, is a fundamental right of the human being, and possesses a broad legal protection. However, there are some degrading existential situations, which put in check the faculty or the obligatoriness to live. Based on that, the present article aims to analyze the euthanasia issue in the context of the Brazilian Law, in the light of the constitutional principle of Human Dignity and the civil principle of private autonomy. It will be assumed that a degrading life is not an expression of dignity and that life’s protection should not be absolute. Keywords: Euthanasia. Dignity. Right to die. Private autonomy.

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Recebido 23/01/2017 Aceito 02/05/2017

JUÍZES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?: A (DES)NECESSÁRIA EFICIÊNCIA DO MAGISTRADO E A INFORMATIZAÇÃO DA ATIVIDADE JUDICANTE NO BRASIL Carlos Humberto Rios Mendes Júnior1

RESUMO A utilização de novas tecnologias pelo Poder Judiciário, que surge como uma forma de aumentar a eficácia da atividade judicante, é de implantação recente e evolução constante. Baseado nessa assertiva, o intuito deste trabalho é traçar um histórico do processo de informatização da atividade judicante no país, sobrepondo-o ao questionamento da real motivação por eficiência na atuação do magistrado. Desta forma, permitir-se-á a compreensão e a separação os ganhos realmente possíveis com a utilização de novas tecnologias, do que é apenas um pensamento desejoso a travestir problemas institucionais de muito maior gravidade. Palavras-chave: Eficiência. Magistrado. Informatização. Brasil.

(Philip K. Dick)

1 INTRODUÇÃO A introdução de inovações tecnológicas em campos usualmente avessos a mudanças sistêmicas é um evento complexo, apto a produzir choques que reverberam nos diversos estratos de organização pré-estabelecida em dito campo. Setores que inerentemente giram em torno da

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Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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“The true measure of a man is […] how quickly can he respond to the needs of others and how much of himself he can give.”

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2 OFERTA E DEMANDA: A (IN)EFICIÊNCIA DOS JUÍZES Juiz, do latim judex, que deriva por sua vez de jus, designa a Justiça; “juiz de direito”,

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tecnologia, como o científico (em sentido estrito), o médico e o industrial, rapidamente se adequam e se moldam à inovação, com mínimo de “choque estrutural”. Isto, pois é de sua natureza não apenas agregar novas tecnologias, mas recebê-las de braços abertos, visto que aumentam a produtividade, diminuem o tempo de produção e, no geral, permitem mais comodidade e segurança para aqueles que laboram delas fazendo uso. Nas áreas humanas, pela sua própria característica de se desenvolver em sua maior parte, no mundo da razão, das palavras e da filosofia, a introdução de novas tecnologias é evento raro, de ocorrência mínima. Pode-se assim e com certa finalidade admitir que, antes da invenção dos computadores, a última grande inovação tecnológica a causar impacto maciço nas ciências humanas foi a prensa de Gutenberg. Isto dito, fato é que o direito, no que pese ser fonte constante de adaptação, sofrendo perene maleabilização apta a adequá-lo à realidade social (e, portanto, garantindo sua eficácia), é tradicionalmente um campo que, por formal e formalista, é caracterizado pelo apego ao estado atual das coisas (status quo), à burocracia, ao império do papel, das pastas, dos processos físicos. Os tempos, contudo, mudam. Nas décadas que se seguiram à Constituição de 1988, a demanda crescente de processos judiciais por um lado demonstrou a facilitação do acesso à justiça pela população, que cada vez mais ingressa no judiciário, talvez último dos Poderes a gozar de verdadeira confiança institucional. Todavia, tal demanda criou uma sobrecarga no sistema judiciário, que se vê abarrotado muito além de sua capacidade operacional, com números absurdos de litígios judicializados e com uma proporção processo/juiz que paira perigosamente no limiar de um “ponto sem retorno” do funcionamento das atividades judicantes, onde o número de processos novos irá sobrepor o número de processos julgados em muito, efetivamente impossibilitando quaisquer ações para a redução da quantidade de processos existentes. É diante deste necessário, de crescimento intenso de judicialização de litígios, que os olhos da sociedade se voltam para o funcionamento do Poder Judiciário, pressionando a atividade do juiz por uma produtividade muitas vezes desarrazoada no clamor por celeridade processual. A utilização de novas tecnologias pelo Poder Judiciário surge, então, como uma forma de aumentar a eficácia da atividade judicante e, consequentemente, sua produtividade. O intuito deste trabalho, assim, é traçar um histórico do processo de informatização da atividade judicante no país, sobrepondo-o ao questionamento da real situação quanto à eficiência da atuação do juiz, e as contribuições de tal processo para tanto.

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portanto, unifica as duas ideias que são basilares para um Estado Democrático de Direito, a de Direito e de Justiça. É assim, embebida nesta ideia de concretização e forma de atuação de fundamentos tão primordiais, que temos a figura do juiz como personificação do Poder Judiciário, exercendo uma tarefa essencial, que é a de julgar (MIRANDA, 1993, p.323). Julgar, por sua vez, seria resolver os conflitos subjetivos de interesse, aplicar a lei ou o direito objetivo, tutelar processualmente os direitos violados, individuais e sociais. Não se trata apenas de emitir um julgamento, enunciar um juízo lógico; é a aplicação processual e coativa do direito objetivo (MIRANDA, 1993, p.323). Trata-se, assim, de atividade essencial. É nesta essencialidade que reside o maior problema com o qual a Magistratura do Estado Democrático de Direito se depara, contudo: a sua demanda. Isto pois com uma mudança estrutural na repartição dos Poderes que o Estado Democrático de Direito trouxe, houve também uma mudança no papel e na importância do Poder Judiciário como foco decisório do Estado, o que implica por sua vez em uma intensa e crescente demanda da população por seu uso. Expliquemos. No Estado Liberal, o foco do poder era o Legislativo; no Estado Social, tal foco foi transferido para o Executivo (visto o caráter fortemente intervencionista do Estado); já no Estado Democrático de Direito, contudo, inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário em determinadas circunstâncias. Isso pois tendo o Constituinte optado por um Estado intervencionista (que visa uma sociedade mais justa, com a erradicação da pobreza, diminuição das desigualdades etc.), era de se esperar que os programas especificados na Constituição com este fim fossem seguidos pelos Poderes Executivo e Legislativo de maneira natural (STRECK, 2014, p. 65). Todavia, as normas-programa da Constituição não estão sendo cumpridas e, na falta de políticas públicas de que demanda o Estado Democrático de Direito conforme o conhecemos, relega-se ao Poder Judiciário o papel instrumental de resgate de direitos não realizados. Assim, tem-se o Judiciário como uma “solução mágica” para os problemas dos fracassos e insuficiências do Estado de bem-estar social. Fala-se até em verdadeiro paternalismo juridicista, que faz com que cidadãos venham se socorrer no Judiciário em vez de reivindicarem seus direitos no campo da política (STRECK, 2014, p. 65). A discussão se tal modelo de Estado é praticável ou não, ou ainda se inversamente a mudança de tal modelo acarretaria em redução no acesso à justiça ou, pelo contrário, na ampliação de sua efetividade, não nos cabe neste momento, no que pese sua importância. O que nos cabe é apontar que em 2014 tramitaram aproximadamente 99,7 milhões de processos na Justiça brasileira (70,8 milhões de casos pendentes, 28,9 milhões de casos novos), com o crescimento de casos novos no acervo processual a um percentual de 17,2% no período 2009-2014 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015, p. 34). Esses números são absolutamente preocupantes. Extrapolando os dados daquele ano (mais recentes disponíveis), para o atual, isto sig-

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nifica que, ao final de 2016, para cada 2 (dois) brasileiros, 1 (um) possui processo aguardando julgamento na Justiça. Ou seja, metade da população brasileira estará judicializada. Para trazer ao leitor uma perspectiva do pulo quantitativo sofrido no número de processos ajuizados, quando da promulgação da Constituição Federal, em 1988, existia na justiça brasileira 350 mil processos em curso (LENZA, 2000, p. 105). Um aumento, portanto, de 28.385% (vinte e oito mil trezentos e oitenta e cinco por cento). O Conselho Nacional de Justiça chegou, inclusive, a afirmar em seu relatório Justiça em Números 2015, que se o Poder Judiciário fosse paralisado conforme se encontra agora, sem o ingresso de novas demandas, seriam necessários quase dois anos e meio de trabalho para zerar o estoque (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015, p. 34). Tal quantidade maciça de processos, em número tão alto que chega a ser pensado em níveis abstratos [mas lembremos que cada processo significa um litígio, uma necessidade específica de ponderação, um jogo de valores fundamentais para a vida de quem espera uma proteção jurisdicional, como bem disse Gomes (2010, p. 370)], implica na necessidade de um corpo forte de juízes. Infelizmente, contudo, a força de trabalho da magistratura brasileira é extremamente reduzida: o país contava com meros 16.927 juízes em 2014 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015, p. 34). Essa força de trabalho reduzida implica, por sua vez, no alarmante fato de que cada juiz é responsável individualmente, em média, por seis mil processos judiciais. A pressão crescente de mais processos para menos juízes, então, faz com que costume-se aplaudir como juiz mais operante aquele que produz muito em quantidade, raramente se questionando a qualidade de suas decisões, ou seja, seu teor de análise, ponderação, justiça e equidade (GOMES, 2010, p. 370). A construção de sentença, contudo, não é algo mecânico, dependendo de profunda pesquisa, busca na doutrina, jurisprudência, ordenamento jurídico; tudo apenas se encerrando em período próprio de convencimento, pois que a assunção de elevada responsabilidade do julgador, quando tem que tratar dos direitos e garantias individuais, demanda reflexão que pode durar mais tempo do que os ditames da produtividade reclamam (MADALENA, 2008a, p. 90), ressalve-se. A chamada morosidade judicial, ademais, não é um problema restrito ao Brasil: nos Estados Unidos, a tramitação em 1º grau de um processo de matéria civil dura de três a cinco anos, enquanto na Inglaterra a média é de 2,78 anos (PELEJA JÚNIOR, 2009, p. 259). No nosso país não existe ainda uma aferição do tempo médio dos processos em geral [o CNJ (2015, p. 15) afirma que a partir da versão 2016 do seu relatório Justiça em números tal informação já estará disponível)], embora não seja uma inferição muito absurda a de que será superior à daqueles países, levando-se em conta principalmente a demanda processual elevada que caracteriza o Brasil. Apenas a título de comparação parcial, no entanto, temos a duração média de um processo de execução fiscal na Justiça Federal brasileira, conforme aferido por estudo do IPEA: oito anos, dois meses e nove dias (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011, p. 6).

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A efetividade da jurisdição, contudo, pressupõe o equilíbrio entre a celeridade, encartado no direito fundamental à duração razoável do processo, e a segurança jurídica, mas também deve levar em conta o princípio da máxima coincidência, ou seja, o resultado mais próximo possível do direito material (FREIRE, 2009, p. 389). Assim, na medida em que se abarrotam as varas e juizados, multiplicam-se os litígios e se sobrecarrega o percentual de processos por magistrado, diminui-se a quantidade de horas disponíveis para cada processo, prolonga-se sua duração média e, consequentemente, aumenta-se o tempo entre o ingresso da petição inicial e a respectiva sentença concessiva ou não do bem da vida almejado. Ou seja, prejudica-se não apenas a celeridade processual, mas com menos horas dedicadas a cada processo, escanteia-se também o princípio da máxima coincidência. Uma justiça mais demandada, mas, ao mesmo tempo, mais demorada e menos efetiva, em uma situação de sobrecarga pela qual a eficiência do julgador é a última responsável, mas a primeira responsabilizada.

No apagar das luzes do século XX, autores apontavam para a necessidade da adoção de práticas e métodos de trabalho que levassem em conta inovações tecnológicas na atuação do Poder Judiciário (DALLARI, 1996, p. 6), bem como que a consequência direta do não acompanhamento pela Justiça de um ritmo desenvolvimentista, que imitasse o praticado nas indústrias em termos de eficiência, eficácia e produtividade, seria ou a relegação da justiça comum à morosidade, com o consequente aumento dos meios alternativos de solução de conflitos, ou a inclusão da inexistência de um órgão jurisdicional ágil no chamado “custo Brasil”, com empresas evitando suas vindas para o país pela demora na resolução de possíveis pendências judiciais (LENZA, 2000, p. 106). Há 20 anos, o professor Dalmo de Abreu Dallari (1996, p. 156) já tratava da questão específica da informatização do Judiciário quando da sugestão de melhorias nas rotinas e no ambiente do trabalho de dito Poder. Afirmava que tal informatização seria um aspecto de ordem prática de modernização de utilidade evidente, isso mesmo ante “às distorções que acompanham todos os modismos”. Sua maior preocupação, contudo, foi a de que a informatização do Judiciário não ocorresse sem a prévia racionalização, e que se desenvolvesse em conjunto com uma nova mentalidade no tocante às concepções relevantes para a justiça e o conteúdo das decisões dos juízes (DALLARI, 1996, p. 156). Não sabemos se dita evolução no tocante à mentalidade dos julgadores de fato veio a acompanhar a modernização do judiciário, mas esta ocorreu a passos largos nas últimas décadas, partindo de iniciativas discretas, que previam a realização de atos processuais por fax, até os sistemas atuais como o do Processo Judicial eletrônico, que se desenvolve, salvo as audiências, inteiramente no meio virtual.

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3 A NECESSIDADE DA INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

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4 A EVOLUÇÃO DA INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO A informatização do judiciário seguiu uma evolução gradativa, que apresentou essencialmente três fases bem delineadas: a primeira, veio com o uso de dispositivos informáticos

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Todavia, importante lembrar que o processo, ainda que virtual, não dispensa a manifestação real, pois a ação instrumental da máquina não substitui o pensar. Há quem defenda que, para a grande maioria dos processos que aguarda julgamento, a virtualização pouco contribui (OLIVEIRA, 2008, p. 97). No entanto, em pesquisa realizada junto a 570 juízes, distribuídos em cinco estados (Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Goiás e Pernambuco), a informatização dos serviços judiciários está no topo do grau de importância quando questionados os juízes sobre como agilizar o Judiciário, com 93,2% de índice de concordância entre os entrevistados, quando somadas as respostas que a classificam como “extremamente importante” e “muito importante” (SADEK, 2010, p. 22). Fato é que a falta de informatização rouba tempo do juiz e dos serventuários da justiça. Sentenças praticamente idênticas umas às outras, mudando apenas o nome e as qualificações das partes envolvidas e o tipo de questão em litígio, requeriam a repetição manual de toda a operação antes do início do processo de informatização (SADEK, 2010, p. 22). Isto posto, para além do mero uso de computadores no labor diário da vara ou juizado, a implantação de um sistema virtual de tramitação de processos traz vantagens inúmeras que também economizam tempo e tornam a prestação judicial mais célere e menos burocrática. O sistema virtual automatizado elimina as etapas manuais desenvolvidas no processo, cabendo-se citar a organização do fólio processual, com a criação de uma capa para os autos processuais, perfuração dos documentos e numeração de folhas; a saída dos autos da secretaria mediante vista às partes processuais; o registro de saída e retorno dos autos processuais após a concessão de vistas às partes processuais, eliminando a possibilidade de extravio dos autos; a juntada, pelos servidores, das petições protocoladas pelas partes; a dispensa da publicação dos atos judiciais no diário oficial e certificação da publicação; e a emissão de certidões e pagamentos das custas processuais respectivas (LIRA, 2013, p. 107). Ademais, a informatização contribui no solucionar de parcela da burocracia processual quando levando-se em conta similitudes entre processos, permitindo-se a identificação de demandas de massa e processos repetitivos com idênticos fatos e argumentos jurídicos em um clique, possibilitando seu julgamento em bloco de maneira efetiva (OLIVEIRA, 2008, p. 97). Aponta-se ainda que, ademais, a assimilação do processo eletrônico que se encontra atualmente em curso no Poder Judiciário brasileiro tem como virtude também a capacidade de fornecer importante subsídio ao serviço de estatística e de controle de produtividade, pois pode detectar a quantidade de horas que os operadores permanecem com os autos virtuais (MADALENA, 2008b, p. 108).

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Define competência, regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida e dá outras providências. Permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais.

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para a elaboração dos atos processuais, como os processadores de texto e as planilhas (LIRA, 2013, p. 118), substituindo as velhas máquinas de escrever que povoavam as salas de julgamento pelo país e que tornavam o uso do tempo atrelado à destreza do serventuário-datilógrafo, aos quais o juiz ditava intermináveis sentenças (SADEK, 2010, p. 22). A segunda fase tratou da criação de um sistema de acompanhamento do andamento processual eletronicamente, e pelo desenvolvimento de uma rotina para a publicação dos atos e decisões pelo diário oficial eletrônico de maneira prática. Por fim, a terceira fase englobou (e engloba) a efetiva virtualização do processo judicial, onde todas as atividades necessárias para o desenvolvimento da função jurisdicional são manufaturadas, arquivadas e processadas digitalmente (LIRA, 2013, p. 118). A primeira das legislações que tratou da questão da informatização do judiciário, o fez de maneira indireta e muito discreta. A Lei Federal 9.492/972, que regulamentou o protesto de títulos, trouxe no parágrafo único do seu artigo 8º que “poderão ser recepcionadas as indicações e protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados”. Por sua vez, a Lei Federal 9.800/993 foi a peça legislativa que efetivamente deu início à informatização judicial propriamente dita. Tal Lei autorizava a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-simile (fax) ou similar, para a prática de atos processuais que dependessem de petição escrita. A “Lei do Fax”, assim, permitiu que se praticasse atos processuais via tal aparelho, possibilitando que não perdesse a parte seu prazo pela incapacidade de comparecer fisicamente à secretaria da vara. Contudo, tal comparecimento não foi dispensado ou substituído, apenas dilatado: o parágrafo único do seu artigo 2º determinava que os originais da petição deveriam ser entregues necessariamente em até cinco dias após a data do término do prazo ou, quando não sujeito o ato a prazo, em até cinco dias após a data da recepção do material transmitido. A função maior da referência a dita lei, visto que fazia apenas com que os prazos processuais fossem ampliados, já que não obrigava os Tribunais a oferecer qualquer meio material para a recepção de documentos, é a de fixar o marco em que o legislador sentiu a necessidade de começar a inserir no Poder Judiciário as ferramentas ofertadas pela tecnologia da informação e da comunicação (MACHADO, 2010, p. 219). Critica-se a omissão da lei quanto à segurança da transmissão de documentos por meio eletrônico, pois lhe faltava a exigência do uso de certificação digital (MACHADO, 2010, p. 218). Acreditamos tal omissão, contudo, compreensível, tendo em vista o fato de que o sistema de transmissão de fax não incorporava tal mecanismo de segurança, o qual sequer havia sido

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Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. INSTITUTO NACIONAL DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO. Sobre Certificação Digital. Disponível em: <http://www.iti.gov.br/acesso-a-informacao/96-perguntas-frequentes/1743-sobre-certificacao-digital>. Acesso em: 29 maio 2016. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.

Institui, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns, e dá outras providências.

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inventado à época. Neste sentido, um pequeno parêntesis: foi apenas com a edição da Medida Provisória 2.200/014 que se criou o sistema nacional de certificação digital ICP-Brasil, Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras, um conjunto de normas, padrões técnicos e regulamentos elaborados para tornar possível o estabelecimento do sistema criptográfico de certificação digital no país. A certificação digital funciona através da emissão de um par de chaves criptográficas, uma pública e uma privada que, quando combinadas, servem para atestar a identidade de um indivíduo, empresa ou órgão digitalmente. Enquanto a chave privada fica com o indivíduo, a chave pública, pelo sistema de Infraestrutura de Chaves Públicas, fica com um órgão emissor. Quando se assina um documento digitalmente com a chave privada, o órgão emissor faz a comparação com a chave pública equivalente, que é apenas do seu conhecimento, e dessa forma se comprova ou não a autenticidade do assinante. 5 A Certificação Digital é hoje ferramenta imprescindível sem a qual não poderia haver um sistema de processamento judicial eletrônico. Mas nos adiantamos. Voltemos à ordem cronológica das leis de informatização da justiça. Em 2001, com a criação dos Juizados Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal através da Lei Federal 10.259/016, houve preocupação específica com o ajuizamento eletrônico: em seu artigo 8º, §2º, facultou aos Tribunais a organização do serviço de intimação das partes e de recepção de petições por meio eletrônico; no seu artigo 14, §3º, dispôs que a reunião de juízes domiciliados em cidades diversas deverá ser feita pela via eletrônica; no seu artigo 24, autoriza ao Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e as Escolas de Magistratura dos Tribunais Regionais Federais a criarem programas de informática necessários para subsidiar a instrução das causas submetidas aos Juizados (MACHADO, 2010, p. 218). Com a Emenda Constitucional nº45/2004, que introduziu no título “Dos Direitos Fundamentais” a garantia à razoável duração do processo e aos meios que efetivem a celeridade de sua tramitação, havendo, portanto, a consagração constitucional do princípio da celeridade processual (DIAS SOARES, 2011, p. de internet), surgiram produções legislativas diversas com pequenos avanços aptos a virtualizar diferentes aspectos de atos processuais e procedimentais das varas e juizados (MACHADO, 2010, p. 219). São eles: a) a Lei Federal 10.520/027 que, regulamentando o Decreto 5.450 de 31 de maio de 2005, instituiu o pregão no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios,

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Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos à incompetência relativa, meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos; e revoga o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.

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Altera dispositivos da Lei nº5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e outros assuntos.

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Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências.

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permitindo que essa modalidade de licitação na forma eletrônica, mediante lances realizados na rede mundial de comunicação, fosse utilizada para aquisição de bens e serviços comuns (DIAS SOARES, 2011, p. de internet); b) a Lei Federal 11.280/068, que além de alterar diversos artigos do Código de Processo Civil de 1973, introduziu no artigo 154, parágrafo único, a autorização para que os tribunais, no âmbito da respectiva jurisdição, disciplinassem a prática e comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, desde que atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras ICP-Brasil; e c) a Lei Federal 11.382/069, mais uma vez alterando dispositivos do CPC, mas agora relativos ao processo de execução, permitindo a utilização do sistema eletrônico para requisição de informações sobre a existência de ativos financeiros em nome do executado e determinar sua indisponibilidade. A maior e melhor contribuição para a informatização da atividade judicante até o presente momento, todavia, veio com a Lei Federal 11.419/0610, que disciplinou a matéria de forma abrangente, incorporando a comunicação eletrônica dos atos processuais, o processo eletrônico e os pormenores da juntada de documentos, digitalização e autenticação de segurança. Dita lei vislumbrou uma atuação judicial totalmente digital, da petição inicial à sentença, inclusive com citações, intimações, notificações e remessas realizadas também de maneira eletrônica, e com a consideração dos documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos virtuais como originais para todos os efeitos, sem a necessidade de submissão de cópia física, se assim implantado e determinado pelo respectivo Tribunal. Permitiu a Lei Federal 11.419/06 também, de maneira programática, que os órgãos do Poder Judiciário desenvolvessem sistemas eletrônicos próprios de processamento de ações judiciais por meio de autos total ou parcialmente digitais, e determinou a regulamentação dos seus pormenores pelos próprios Tribunais, bem como pelo CNJ o qual, por sua vez, editou diversas resoluções que padronizaram e orientaram a utilização da tecnologia da informação e da comunicação, inclusive a utilização do domínio “jus.br” na rede mundial de computadores (MACHADO, 2010, p. 220). Quanto aos softwares que permitiram a implantação do processamento eletrônico, o mais difundido entre os órgãos do Poder Judiciário foi inicialmente implementado e executado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5). O projeto PJe (Processo Judicial eletrônico), foi retomado pelo CNJ em 2009, que o havia iniciado junto aos cinco tribunais regionais federais anteriormente, mas cujo TRF5 prosseguiu sozinho na implementação após a paralisação da parceria.

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BARRETO, Ana Amelia Menna. Novo código de processo civil traz regras para processo eletrônico. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/ana-amelia-processo-judicial-eletronico-cpc>. Acesso em: 28 maio 2016.

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O CNJ percebeu durante a retomada que o projeto do TRF5 era o que mais atendia à necessidade de uso de software aberto e às restrições mais críticas que diziam respeito à necessidade de o conhecimento ficar dentro do Judiciário e ao fato de se observar as demandas dos tribunais (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010, p. 8). Em seu início, o projeto foi coordenado pela Comissão de Tecnologia da Informação e Infraestrutura do Conselho Nacional de Justiça, onde foi iniciada uma discussão democrática a abarcar a implantação e o desenvolvimento do PJe com a participação de juízes auxiliares, membros do Ministério Público, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Advocacia Geral da União, da Defensoria Pública da União e de procuradores de Estado e de município. O primeiro órgão judiciário a receber o sistema foi a Subseção Judiciária de Natal/ RN, em abril de 2010 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010, p. 8). Com o PJe, percebe-se uma ampliação tanto da publicidade interna (partes e procuradores), com a desnecessidade da concessão de vistas fora da secretaria (pois o processo encontra-se integralmente disponível online), o acesso ilimitado, ininterrupto e independente da distância (bem como a visualização para além do horário forense); como também da publicidade externa, que é restringida apenas no que resvale no princípio fundamental à intimidade das partes processuais (LIRA, 2013, p.156): sendo o processo ostensivo, qualquer pessoa pode visualizar as decisões e sentenças emitidas pelo julgador, após a devida cientificação das partes. Por fim, neste breve avanço cronológico no processo de informatização da atividade judicante, trazemos o leitor às disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015 (NCPC), Lei Federal 13.105/15, que entrou em vigor no início de 2016. O NCPC, no que pese não ter trazido a unificação dos procedimentos relativos à tramitação judicial por meio eletrônico, regrou pontos interessantes quanto à prática processual virtual11 Vejamos algumas: a) a indicação de endereço eletrônico pelo advogado na procuração (art. 287), e pelo autor e réu na petição inicial (art. 319, II, §2º); b) a citação e intimação por meio eletrônico do perito ou assistente técnico (art. 477, §4º), do devedor para cumprir a sentença (art. 513, §2º, III), e do Ministério Público para se manifestar em agravo de instrumento (art. 1.109, III); c) a exigência de cadastro nos Tribunais por empresas, para efeito de recebimento de citações e intimações (art. 246, V, §1º); d) a permissão de alienação por leilão judicial eletrônico em o requerimento do exequente (art. 879, II, §3º); e) o agravo de instrumento eletrônico, com a dispensa da juntada das cópias da petição

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inicial, da contestação, da petição que ensejou a decisão agravada, da própria decisão agravada, da certidão da respectiva intimação ou outro documento oficial que comprove a tempestividade e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado (art. 1.017, §5º). O NCPC, ainda que não remova a necessidade de regulamentação da prática processual virtual e da comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico (o que há de ser feito pelo CNJ e pelos Tribunais respectivos), cria parâmetros base sobre os quais os novos atos regulamentadores deverão ser construídos12, logo sua importância.

Como visto, a evolução na informatização da atividade judicante, no que pese ser um processo extremamente novel na história do Poder Judiciário brasileiro, avança a passos largos rumo a uma tramitação inteiramente virtual. Suas contribuições para o funcionamento dos diversos órgãos do Poder Judiciário são maciças, permitindo maior celeridade de tramitação em diversos níveis, seja na redução de tempo de montagem, busca e vistas de processos físicos, seja na facilitação de acesso, juntada de atos e envio de documentos pelas partes, serventuários da justiça e magistrados. Ademais, permite a identificação, separação e solução de litígios similares, resolvidos em bloco quando possível, o que seria absolutamente impraticável no “velho mundo” dos processos físicos, espalhados em locais diversos e limitados pela catalogação a olho nu. Por fim, a informatização contribui na celeridade da atividade judicante de maneira indireta, quando permite um melhor acompanhamento dos processos e das soluções a eles dadas, bem como o tempo dedicado a cada litígio, pelos órgãos de controle, que podem então criar as devidas metas e programas de cumprimento de demanda. Todavia, posta toda essa contribuição que a informatização e a virtualização processual produzem, chegamos à conclusão de que o problema maior da morosidade do Poder Judiciário é indevidamente relegado à questão da eficiência dos juízes, a qual errônea e indevidamente deveria ser parcialmente solucionada com os avanços tecnológicos e a implementação de verdadeiras “linhas de produção” de sentenças A culpa da morosidade da justiça brasileira, em uma rasa análise, reside na total desproporção entre a demanda por soluções judiciais e a quantidade de magistrados. Os pouco mais de dezesseis mil juízes atualmente existentes se aventuram em pilhas de processos, os quais recentemente chegaram ao absurdo número de 100 milhões, metade da população brasileira. Não se pode, assim, taxar o magistrado de ineficiente, sugerir a implementação de métodos informáticos, e se esperar que a situação periclitante pela qual passa o Poder Judiciário brasileiro se resolva. Tal expectativa ou é leiga ou má intencionada.

12  BARRETO, Ana Amelia Menna. Novo código de processo civil traz regras para processo eletrônico. 2016. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2015-mai-22/ana-amelia-processo-judicial-eletronico-cpc>. Acesso em: 28 maio 2016.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Pior ainda é perceber que a informatização do judiciário se tornou ela também não apenas um instrumento, mas mais uma forma de exercício da pressão institucionalizada por metas que parece assolar o julgador brasileiro na última década e que, conforme já apontado, confunde e privilegia a produtividade quantitativa, e não qualitativa. A “androidização” do juiz deriva de uma premissa errada de ineficiência, alimentada pelo respaldo cada vez maior da sociedade na atividade judicante. O que se diz querer, afinal, é a automação do judiciário; o que se quer é a automação do próprio juiz, enquanto o problema sistêmico e fundamental, que é a demanda exponencial, segue sem previsão de controle ou solução.

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LIRA, Luzia Andressa Feliciano de. Análise do processo judicial eletrônico (PJe) sob os parâmetros da discursividade processual e do acesso democrático à justiça. 2013. 241 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. MACHADO, Herminegilda Leite. Processo Judicial Eletrônico. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, João Pessoa, v. 17, n. 1, p.216-236, jan. 2010. MADALENA, Pedro. Magistratura: produtividade controlada em processo virtual. In: FREIRAS, Vladimir Passos de; KÄSSMAYER, Karin (Org.). Revista Ibrajus 1: Poder Judiciário e Administração da Justiça. Curtiba: Juruá, 2008. p. 89-95. MADALENA, Pedro. Processo Judicial Virtual: Automação Máxima. In: FREIRAS, Vladimir Passos de; KÄSSMAYER, Karin (Org.). Revista Ibrajus 1: Poder Judiciário e Administração da Justiça. Curitiba: Juruá, 2008. p. 101-109. MIRANDA, Vicente. O Poder Judiciário e os poderes do juiz em geral. São Paulo: Saraiva, 1993. OLIVEIRA, Alexandre Vidigal de. Processo virtual e morosidade real. In: FREIRAS, Vladimir Passos de; KÄSSMAYER, Karin. Revista Ibrajus 1: Poder Judiciário e Administração da Justiça. Curitiba: Juruá, 2008. p. 97-100. PELEJA JÚNIOR, Antônio Veloso. Conselho Nacional de Justiça e a magistratura brasileira. Curitiba: Juruá, 2009. SADEK, Maria Tereza. A Crise do judiciário vista pelos juízes: resultados de uma pesquisa quantitativa. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Uma introdução ao estudo da justiça. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. p. 17-31.

DO JUDGES DREAM OF ELECTRIC SHEEPS? : THE (UN)NECESSARY EFFICIENCY OF THE MAGISTRATE AND THE INFORMATIZATION OF THE JUDICIAL ACTIVITY IN BRAZIL ABSTRACT The use of new technologies by the Judicial Power, which appears as a way to increase the efficiency of the judicial activity, is a recent implantation and constant evolution. Based on this assertive, the purpose of

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STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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this work is to draw the history of the informatization process of judicial activity in the country, overlapping it to the questioning of the real motivation for efficiency in the judge’s activity. Therefore, it will allow the understanding and the separation of the real possible gains from the use of new technologies, from those which are just wishful thinking hiding institutional problems of much more seriousness. Keywords: Efficiency. Magistrate. Informatization. Brazil.

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Recebido 17/02/2017 Aceito 02/05/2017

LEVANDO O DIREITO À LIBERDADE A SÉRIO: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE RONALD DWORKIN Vinícius de Godeiro Marques1

1 INTRODUÇÃO A instauração, no Brasil, de um Estado constitucional democrático após anos de restrições às liberdades humanas fez refletir, na constituição, a ânsia por concretizar um amplo rol de liberdades. E, assim, a constituição fez constar em seu conteúdo um extenso número de garantias específicas a diferentes liberdades, entendidas como prerrogativas fundamentais a que todo homem tem direito. Mas a noção de liberdades ainda suscita divergência acerca da identificação de seu conteúdo, se destinando o presente trabalho a tratar de pelo menos uma hipótese

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Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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RESUMO O arranjo conferido ao direito à liberdade é um dos temas centrais em todo Estado democrático. Notadamente, a forma como as liberdades são distribuídas na sociedade impactam diretamente o campo de ação de cada cidadão, condicionando o exercício de todos os seus direitos. O presente artigo tem como objetivo apresentar a abordagem proposta por Ronald Dworkin, na obra “Levando os direitos a sério”, sobre como o direito deve encarar a liberdade e, mais particularmente, uma cláusula geral de liberdade a partir de uma compreensão forte do conteúdo dos direitos fundamentais. Palavras-chave: Direito geral à liberdade. Ronald Dworkin. Igual consideração e respeito.

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2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO À LIBERDADE A liberdade ocupa papel central na estrutura da sociedade e é tida como uma das principais condições para o desenvolvimento do homem e dos seus planos de vida. Em seu nome rogam-se inúmeros significados; contudo, ao Direito apenas é pertinente a sua conotação jurídica, aquela empregada quando invocamos o direito à liberdade para proteger uma posição que esteja sendo ameaçada pela interferência de outros. Isso porque existe um notável destaque quando se reconhece a sua juridicidade: quem, de fato, possuir direito à liberdade, terá a seu favor um compromisso de não obstrução às escolhas que desejar eleger. Desta forma, a sua caracterização não compreende uma possível vastidão de sentidos,

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de como, e quando, é possível afirmar que a liberdade de um grupo ou indivíduo foi violada. Com esse intento, na seção de número 2, será abordada a defesa acerca da existência de um direito geral à liberdade. Para os autores que defendem tal corrente, na constituição haveria uma cláusula geral capaz de fornecer juridicidade às mais diversas pretensões possíveis e guarnece-las da intromissão indevida do Estado em assuntos nos quais não detém legitimidade para impor certo comportamento. A liberdade se justificaria pela necessidade dela mesma, sendo essa a origem de sua força jurídica. No mesmo recorte, também se atentará para a existência de autores que renegam uma concepção de liberdade assim concebida, defendendo um conceito mais estrito e voltado ao entendimento de que o Estado possui autoridade para cercear parcela dos comportamentos possíveis em nome de outros interesses também relevantes. Em seguida, na seção de número 3, será apresentada a forma com a qual o autor estadunidense Ronald Dworkin encara uma cláusula geral de liberdade a partir, principalmente, dos estudos desenvolvidos ao longo de seu primeiro livro publicado: Levando os direitos a sério. Introduzindo a temática, será abordado de que forma é possível dizer que existe um direito frente ao Estado ou terceiros, bem como de que maneira tal construção se distingue da noção popularmente atribuída ao mesmo conceito, incapaz de informar ao cidadão qual direito efetivamente possui. A partir dessa perspectiva, a abordagem do direito à liberdade se dividirá em quatro subseções. Na primeira, partindo da distinção entre duas noções deste direito – como licença e como independência – será defendida a impossibilidade de se conceber a liberdade como a emancipação de qualquer amarra aos comportamentos que venham a ser desejados, notabilizada através de uma cláusula geral. Na segunda, será defendida a existência de liberdades específicas, informadas por um conteúdo que lhes é implícito, mas independe dela por si mesma. Em seguida, serão introduzidas as concepções de igualdade que perfazem o direito à igual consideração e respeito para defender a capacidade de tal direito regular a intervenção do Estado nos caminhos que um homem pode decidir trilhar. Por fim, encerrando o desenvolvimento do texto, será abordada a ideia de que o direito à igual consideração rege o conteúdo mínimo do direito à liberdade, sendo esse o seu pressuposto básico.

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mas tão somente aqueles escolhidos pelo ordenamento jurídico para delineá-la. Assim, dentro da área de abrangência deste direito, se compreende o rol de liberdades específicas e aquilo que se convencionou chamar de direito geral de liberdade. Sob a perspectiva dessa última concepção, o direito à liberdade é encarado não apenas como uma mercadoria a ser colocada à disposição em diferentes fatias, mas sim enquanto uma qualidade passível de ser atribuída a pessoas, ações e sociedades (ALEXY, 2011, p. 219). Os homens são livres para agir, bem como para escolher não tomar qualquer atitude, e essa é um característica que lhe é inerente enquanto titular de liberdades. Portanto, o objeto desta será sempre uma alternativa de ação, a possibilidade de fazer ou não fazer algo sem assinalar qual conduta deve ser adotada, impondo-se aí uma abstenção ao Estado. Nesse sentido, quando se diz que alguém é livre para fazer algo, se presume a ausência de bloqueios à sua vontade. Contudo, isso não esgota o conteúdo desse direito, na verdade, a inexistência de embaraços é apenas uma forma através da qual o homem pode ser livre e, infelizmente, não garante por si só essa esfera de autonomia. Quem não tem recursos para promover o seu sustento está tão limitado quanto aquele que tem grande parcela de seus ganhos confiscados pelo Estado. Nos dois casos, as possibilidades de escolha estarão suprimidas, seja pela total ausência de recursos, seja pela atuação ilegítima do Estado. A liberdade figura, pois, como condição para a proteção da dignidade humana, lhe oferecendo suporte e compondo o seu conceito ao lado de outros princípios (ALEXY, 2011, p. 358-359). Em Alexy (2011, p.341-392), a liberdade é encarada através de uma perspectiva negativa na qual se sobressai uma alternativa de ação conferida ao homem enquanto possibilidade de fazer ou deixar de fazer algo sem que ele esteja obrigado a escolher qualquer opção. Será livre, pois, aquele que dispor de escolhas para trilhar o seu caminho e puder elegê-las voluntariamente. Consoante o referido autor (2011, p. 343):

Seguindo essa linha, para Sarlet (2012, p. 430-431), em interpretação conjunta com o § 2° do art. 5° da constituição2, um direito geral de liberdade está em sintonia com a ideia de liberdades implícitas e pode funcionar como um mecanismo de integração, no nosso sistema, de outras liberdades previstas em tratados internacionais, somente sendo possível deixar de aplica-la quando estiver em conflito com alguma cláusula especial já consagrada no texto da constituição.

2  “Art. 5° [...] § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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a liberdade geral de ação é uma liberdade de se fazer ou deixar de fazer o que se quer. [...] De um lado, a cada um é prima facie – ou seja, caso nenhuma restrição ocorra – permitido fazer ou deixar de fazer o que quiser (norma permissiva). De outro, cada um tem prima facie – ou seja, caso nenhuma restrição ocorra – o direito, em face do Estado a que este não embarace sua ação ou sua abstenção, ou seja, a que o Estado nelas não intervenha (norma de direitos).

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3

O art. 5º, inciso II, da Constituição Federal brasileira assim dispõe: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

4

A distinção entre as teorias de Robert Alexy e Ronald Dworkin não se restringem ao tratamento dado à ideia de liberdade geral, da maneira como será abordada ao longo do texto. Pelo contrário, estando o primeiro intimamente vinculado ao modelo de Estado social, a diferença observada para com autores filiados ao liberalismo não é dificilmente percebida. Não à toa alerta Oliveira (2008) para a clara disparidade entre a forma com a qual os conceitos de norma, regra e princípio são encarados por cada um. Não há, pois, uma linearidade entre as suas obras.

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Assim “a positivação de um direito geral de liberdade tem a vantagem de introduzir no ordenamento jurídico uma cláusula geral que permite dela derivar, por meio de interpretação extensiva, outras liberdades não expressamente consagradas no texto constitucional” (SARLET, 2012, p. 431). Segundo o constitucionalista, a liberdade encarada enquanto cláusula aberta persegue um fim: o de ampliar as possibilidades de escolha ao máximo, garantindo ao indivíduo uma parcela de livre escolha. Entretanto, como assevera José Afonso da Silva (2005, p. 232), há um problema no conceito de liberdade assim desenhado. Esta concepção, em oposição a qualquer espécie de autoridade, ignora que cada cidadão guarda o direito de se opor ao autoritarismo, a leis iníquas, mas não à autoridade legítima. O direito à liberdade não consiste em se fazer o que quer, mas em poder fazer tudo aquilo que a lei permite. Esse também é o ponto de vista sustentado por Daniel Sarmento, para quem uma leitura da Constituição “basta para verificar que a liberdade que ela pretende assegurar não é a mera liberdade formal ou negativa, circunscrita à ausência de constrangimentos externos ao comportamento dos agentes” (2010, p. 175). O reconhecimento dos direitos sociais e a crescente preocupação em concretiza-los através de uma atuação positiva do Estado denotam a sua preocupação com a efetivação da liberdade e transformam este direito em condição para a consecução de suas promessas. Esses dois autores defendem uma concepção de liberdade muito mais restrita do que aquela difundida por Alexy. Enquanto o jurista alemão compreende estar clara na concepção de direito à liberdade uma abertura para a realização de toda ação (fazer ou não-fazer), José Afonso da Silva e Daniel Sarmento como citado, negam esse direito geral para dizer que não haverá liberdade quando a lei exigir tal ou qual comportamento. Na verdade, quando Alexy reconhece que – ao mesmo tempo em que diz haver um direito contra o Estado de não embaraçar as possibilidades de ação – só é permitido fazer aquilo sobre o qual não paire nenhuma restrição, está ele a descrever algo muito próximo ao princípio da reserva legal3. Essa distinção entre liberdade geral e diferentes liberdades específicas é ainda mais acentuada em autores liberais, como John Rawls e Dworkin4. Em Rawls (2008, p. 07), a liberdade consiste num padrão de convivência determinado pela estrutura das instituições de uma comunidade. Contudo, para o filósofo, nem todas as suas formas estão enumeradas na lista de liberdades fundamentais e, por isso, não estão guarnecidas pela proteção de seus princípios. Com efeito, o seu primeiro princípio de justiça – de que cada pessoa deve ter direito ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais compatível com um esquema de liberdades

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iguais para outros – roga apenas “que certos tipos de leis, aquelas que definem as liberdades fundamentais, se apliquem igualmente a todos e permitam a mais abrangente liberdade compatível com uma liberdade semelhante para todos” (RAWLS, 2008, p. 77). Conforme Teixeira (2007, p. 50-51), Rawls deixa de lado a distinção existente entre liberdades negativas e positivas para se concentrar nas restrições impostas ao homem e nas formas pelas quais ele pode ser ou não ser livre. A cláusula geral e irrestrita de autonomia para se fazer o que quer não entra na concepção de sua teoria da justiça. Nela, a liberdade é vista como a aplicação regular e indiscriminada das liberdades básicas, distribuídas equitativamente dentre a coletividade. Porém, ainda assim ao legislativo não é dado o poder de limitar a esfera de igual liberdade arbitrariamente, ou com base em vantagens sociais e/ou econômicas. O primeiro princípio de justiça, tal como apresentado, representa uma defesa forte às exigências de eficiência e ganhos econômicos em detrimento de liberdades básicas de um grupo. Disso resulta que a única razão para se restringir liberdades fundamentais é resguarda-las de interferências capazes de gerar uma ofensa ainda maior à esfera de autonomia humana (RAWLS, 2008, p. 264). Somente a liberdade pode cercear a si própria e nisso consiste a primazia da liberdade defendida por Rawls (2008, p. 301-311). Portanto, ganhos utilitários, de qualquer natureza, não concorrem com as exigências de igual liberdade e nem servem para justificar a inserção de uma cláusula geral em um sistema jurídico. Como será visto no decurso do texto, Dworkin sofreu grande influência de Rawls e elaborou sua própria concepção de “igual liberdade” ao longo das páginas da obra Levando os direitos a sério (2008), a qual será agora abordada.

Havendo um confronto entre um direito resguardado constitucionalmente e algum comportamento que lhe é contrário, a constituição exigirá e garantirá o seu ajuste em favor do fortalecimento dos seus princípios. Desde as lições de Konrad Hesse (1991, p. 9-34), entende-se que a constituição de um país nasce para ser cumprida, para preservar e realçar a vontade encartada em seu conjunto normativo. Além de descrever um contexto histórico e político, a razão de ser da constituição consiste na sua vigência e no dever de conferir às suas normas a maior eficácia possível. Portanto, enquanto a democracia pressupõe a ideia de soberania popular, de vontade do povo e de governo da maioria; o constitucionalismo traduz a ideia de poder limitado e respeito aos direitos fundamentais e individuais, abrigados, como regra geral, em uma constituição escrita (BARROSO, 2013, p. 87-88). Há, em meio a essa dualidade, uma tensão que, muitas vezes, obscurece a separação entre aquilo que se deseja fazer, mas os limites impostos pela convivência em sociedade não autorizam; o que é permitido fazer, ainda que o ordenamento não

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3 A IGUALDADE COMO GUIA PARA A DETERMINAÇÃO DA PARCELA DE LIBERDADE QUE NOS É EXIGÍVEL

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forneça um suporte a essa prática; e o que não apenas é permitido, mas também é resguardado que se faça. Não raras vezes os indivíduos são levados a entrar em desacordo sobre o que é o direito e quais são suas exigências. Havendo dúvida razoável, utilizam-se os critérios que são fornecidos para saná-la. Nesses termos, alguns conceitos ou ideias são compartilhados quando se concorda com uma definição que estabelece os critérios para a aplicação precisa do termo ou frase a eles associados (DWORKIN, 2010, p. 15). Nesse sentido, pode-se afirmar que o estado do Acre compõe a república federativa do Brasil porque se localiza dentro de seu território nacional ou que um copo é um copo porque apresenta a sua forma cilíndrica característica. Comparado o objeto de análise com o conceito, pode-se visualizar se aquele se encaixa nesse e oferecer uma resposta segura se determinado território faz parte do nosso país ou se um objeto cilíndrico é um copo, e não uma garrafa ou uma taça. Em outras situações, é possível ter certeza do que constitui o objeto em análise porque outros conceitos podem ser formulados com base naquilo que a sua estrutura física ou biológica diz. Mesmo havendo alguma dúvida ao se diferenciar aço de ferro, uma análise química da estrutura de cada material facilmente nos demonstraria as suas propriedades específicas, assim como uma análise de DNA pode discriminar aquilo que há de singular entre um maltês e um labrador. Entretanto, certos conceitos encontram-se envoltos em uma imprecisão inafastável por testes como os anteriores. Dentre eles, os de liberdade e de muitos outros institutos jurídicos funcionam como “conceitos interpretativos que nos estimulam a refletir sobre aquilo que é exigido por alguma prática que elaboramos, bem como a contestar tal construto” (DWORKIN, 2010, p. 17). Logo, o seu significado só pode ser definido dentro das particularidades que a ele se apresentem. E mais, existindo um profundo desentendimento acerca de seu conteúdo, a compreensão de um conceito interpretativo passará a exigir a melhor interpretação das regras e convenções da sociedade, bem como do ordenamento jurídico. Com efeito, o direito não se refere a questões que deveriam ser concretizadas, mas àquelas que devem ser satisfeitas exatamente por existir um direito a determinada tutela. Às vezes é possível dizer que alguém deve tomar determinada atitude por ser uma conduta correta e moralmente requerida; outras vezes, que é possível se comportar de certa forma porque as normas a que se está obrigado o permitem e, em outras circunstancias, que existe uma obrigação de fazer algo não apenas porque agir de forma diversa aparenta ser errado, mas porque é juridicamente exigido que se comporte de determinada maneira. Dentro desse contexto, é provável que um ganhador da loteria seja censurado por não destinar parcela de seu ganho a alguma causa humanista, enquanto gasta a fortuna de forma desregrada; é concebido que ele tem a faculdade de ajudar o próximo; mas dificilmente admite-se que alguma organização sem fins lucrativos tenha o direito de lhe exigir auxílio financeiro ou que exista o dever jurídico que imponha tal encargo. Apesar de ser moralmente aceito que

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ajudar o próximo é uma virtude desejável, um sujeito excessivamente rico é livre para não prestar auxílio financeiro a instituições de caridade enquanto gasta seu dinheiro como melhor entender. Ao final, é perfeitamente possível que alguém tenha o direito de fazer algo considerado errado, como também é possível que não tenha o direito a fazer a coisa certa (DWORKIN, 2002, p. 290). Nesse sentido, quando fala-se em “direito”, pressupõe-se a existência de algo cogente, capaz de impor certo comportamento; de alguma norma que exija ou proíba determinada conduta. Contudo, esse uso não exclui outros significados comumente atribuídos ao mesmo termo direito. Assim, dentro do imaginário daquilo que comumente entende-se por direito, é possível afirmar que cada um dispõe de um direito à liberdade porque é desejável que o homem possua a maior parcela desta possível, porque não tê-la é errado ou porque essa é uma condição estritamente necessária ao bom desempenho das atividades cotidianas. Com base nesse argumento, um direito geral à liberdade toma uma feição nitidamente privada e passa a ser informado pelos desejos individuais do justo e do correto. Tal direito existirá, pois, enquanto for alvo das aspirações de cada homem. No entanto, parafraseando o exemplo formulado por Dworkin (2002, p. 413), um direito desse tipo não se diferencia e não diz muito mais do que a afirmação de que existe um direito geral a um aparelho de ar-condicionado em dias quentes, simplesmente por desejarem um ambiente climatizado nesses dias de calor ou que podem exigir felicidade porque esse é um objetivo a que todos desejam alcançar. Na verdade, essa concepção de liberdade descreve um direito em sentido fraco (DWORKIN, 2002, p. 413) e não possui força suficiente para fazer nascer uma obrigação exigível. Entretanto, em outra percepção, se diz que existe um direito em sentido muito mais forte. Nesse espírito, quando se constata que alguém tem o direito de fazer algo, concorda-se que seria errado interferir na sua ação ou, pelo menos, que se fazem necessárias razões especiais para justificar qualquer ingerência (DWORKIN, 2002, p. 289). Reconhecida a sua existência, um direito como esse passa a ser encarado como uma prerrogativa própria ao homem e, existindo de fato o direito a alguma prestação, resta errado que o governo ou qualquer indivíduo prive esse direito, mesmo sendo do interesse geral proceder dessa forma. Nos dizeres de Dworkin (2002, p. 294-295), “se ele tiver um direito moral à liberdade de expressão, terá então o direito moral de infringir qualquer lei que o governo, em virtude daquele seu direito, não tenha autoridade para adotar” de forma que admitir o contrário equivaleria a negar a própria existência desse direito. Esse tipo de direito tem a potência necessária para proteger cada cidadão singularmente considerado dos efeitos das preferências e aversões da sociedade, ou de alguma parte importante dela. Deter um direito individual como esse implica conceber que qualquer um possa lançar mão dele para proteger uma posição jurídica ameaçada e, faz-se necessário esclarecer, a consequência natural de guardar um direito individual é poder valer-se dele contra a vontade

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da maioria. Sob essa perspectiva, através do direito à liberdade “não só deve ser permissível que os indivíduos façam ou não façam determinada coisa, mas também o governo e as outras pessoas devem ter a obrigação jurídica de não obstruir” (RAWLS, 2008, p. 248-249). Trata-se, pois, de uma obrigação, colocada contra o Estado e terceiros, de não obstar as realizações pessoais, refletindo-se na posição jurídica do ofendido em se valer da justiça para efetivar o seu direito, mesmo quando se elabore uma lei contra a parcela de liberdade em questão. Conforme Dworkin (2002, 413-415), só é possível alegar a existência de um direito do primeiro tipo, em sentido fraco, depois de diluir muito a ideia do que é um direito e uma concepção como essa já não tem valor em um debate político ou em uma argumentação jurídica. Com efeito, o condão de um direito baseado apenas no que interessa ao homem possuir não é capaz de rivalizar com aquilo que lhe é inerente enquanto pessoa dotada de igual consideração e respeito. Portanto, se verdadeiramente existe um direito à liberdade, ele deve se encaixar nessa última distinção. 3.1 Distinção entre liberdade como licença e liberdade como independência

homem pode decidir trilhar conforme seus desejos de vida. Trata-se de um conceito de liberdade como licença, que se vê indiferente à esfera de ação individual e busca maximizar o conjunto de comportamentos permitidos no seio de uma comunidade através da ausência de constrangimentos. Nesse sentido, o homem deve gozar da mais absoluta licença para concretizar seus desejos pessoais e o Estado deve se deter à regulação das estruturas sociais e dos comportamentos mais básicos (DWORKIN, 2002, p. 404-405). Aparentemente, esse é um tipo de liberdade que potencializa a emancipação de cada indivíduo e, por isso, bastante desejável. Entretanto, em última instância, um direito em sentido forte a uma liberdade como licença prejudicaria qualquer limitação imposta pelo convívio em sociedade, e essa é uma consequência grave para um sistema que busca regular o comportamen-

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Para John Stuart Mill (2000, p. 33-34), o Homem se diferencia dos animais pela aptidão ao progresso e por constantemente evoluir com a correção de seus erros e a formulação de novas verdades. Conforme o autor, a originalidade constitui o caminho para o desenvolvimento racional e, para alcançar esse objetivo, faz-se necessário um espaço mínimo dentro da sociedade para que o erro seja corrigido e a verdade fomentada através da discussão livre de novas ideias. Esse espaço diz respeito à parcela da conduta humana que não causa prejuízos a terceiros e deve permanecer intocável enquanto parte fundamental da liberdade que todo homem deve dispor. Tendo em vista não raro o povo desejar oprimir parte de sua totalidade (MILL, 2000, p. 9-10), se faz necessário limitar o poder do governo e das opiniões dominantes sobre os indivíduos. Entretanto, apesar de defender a liberdade, nos dizeres de Dworkin (2002, p. 404406), o autor se refere a um tipo bastante específico de liberdade. A acepção tradicional entende que a liberdade implica a ausência de frustração e de obstáculos às escolhas e atividades possíveis, a inexistência de obstrução nos caminhos que um

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to de um corpo social. Para Dworkin (2010, p. 159-160):

Seguindo um caminho diverso à defesa da não existência de amarras em um direito como licença, Dworkin (2002, p. 405) esclarece que há ainda uma esfera de liberdade como independência que assegura ao indivíduo a não ingerência das opiniões de outros sobre as suas e é inerente ao status de uma pessoa independente e igual, capaz de se autodeterminar sem se submeter às vontades de outros. Busca-se, aqui, garantir que cada indivíduo, disponha de um espaço igual para desenvolver suas concepções de bem e seus padrões de vida boa sem a interferência das convicções de outros. Trata-se do poder de cada um governar a sua própria vida e seus próprios interesses, de decidir aquilo que é bom para si e se guiar conforme essa escolha dentro dos limites impostos pelos direitos de terceiros (SARMENTO, 2010, p. 154). É, pois, o reconhecimento “de que cabe a cada pessoa, e não ao Estado ou qualquer outra instituição pública ou privada, o poder de decidir os rumos de sua própria vida, desde que isto não implique lesão a direitos alheios” (SARMENTO, 2010, p. 154). Para Mill, leis que restringem a liberdade de todos ou condicionam o exercício dessa com o objetivo de evitar possíveis calamidades não ofendem ninguém; entretanto, leis que restringem a liberdade de grupos específicos e os tornam subservientes aos ideais de outros, ofendem profundamente. Na verdade, para ele, “o único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade é evitar danos aos demais” (MILL, 2000, p. 17). Em leitura de sua obra, Dworkin (2002, p. 407-408) assevera que o autor se referia à liberdade como independência quando se opunha à tirania da maioria exatamente por buscar o respeito à individualidade do homem frente às opiniões dessa e não a liberdade ilimitada de satisfazer os desejos inquisitivos de uma parcela da população. Em um sistema jurídico cujo propósito seja exercer o seu papel regulador, um direito em sentido forte à liberdade como licença, ou a alguma espécie de cláusula geral, não pode existir. Isso porque não é concebível que, ao mesmo tempo em que busque restringir a esfera de liberdade ao prescrever condutas proibidas ou devidas, conceda também a possibilidade de

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se é assim que entendemos a liberdade, torna-se evidente de imediato que a liberdade do lobo é a morte do cordeiro. Se for assim que entendemos a liberdade e estivermos comprometidos com a liberdade assim compreendida, torna-se bastante plausível que esse compromisso entrará muitas vezes em conflito com outros compromissos, inclusive com aqueles de caráter minimamente igualitário. [...]. Podemos dizer: a liberdade não é a liberdade de fazer aquilo que se quer; é liberdade de fazer o que se quer na medida em que se respeitem os direitos morais, devidamente compreendidos, das outras pessoas. É a liberdade de usar recursos legítimos ou negociar sua propriedade legítima de maneira que lhe aprouver. Assim entendida, porém, sua liberdade não inclui a liberdade de se apropriar dos recursos alheios nem de prejudicar alguém com métodos eu você não tem o direito de usar.

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pratica-las, ou não, com base em um direito geral de ação. Mesmo que se deseje com grande intensidade e se conceba que essa é uma condição fundamental para cada um viver sua vida, não existe liberdade quando o direito exige o contrário. Na verdade, se a ninguém é dado deixar de fazer algo que o direito impõe porque possui(ria) liberdade para não fazê-lo, a utilidade de uma cláusula geral de liberdade se torna questionável, principalmente quando não possui força para proteger a esfera de autonomia do homem. Mesmo assim, a existência de um direito à liberdade como independência não é um mito, mas está condicionada a um pressuposto muito mais fundamental que o próprio apelo à liberdade. 3.2 Liberdades específicas e o seu conteúdo implícito

quantidade de liberdade compatível com esses distintos interesses que só podem ser protegidos mediante restrições aos atos de outros. Como bem observa Daniel Sarmento (2010, p. 155), a autonomia privada não é absoluta. Pelo contrário, deve ser conformada com uma idêntica quota de liberdade a ser conferida aos demais e com outros valores igualmente relevantes à democracia, tais como a autonomia pública, a solidariedade e a segurança. Em verdade, “se a autonomia privada fosse absoluta, toda lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional” (SARMENTO, 2010, p. 155). Com efeito, é necessário distinguir o desejo de resguardar liberdades particulares baseadas na ausência de restrições a atos considerados relevantes – como a participação política e

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Nesse ponto, a posição original cunhada por John Rawls (2008, p.13-21) ao formular sua teoria da justiça oferece um bom subsídio para a discussão acerca do conteúdo encartado no rol de liberdades individuais. Segundo o autor, esse é um momento inicial de igualdade no qual será celebrado o contrato social que irá reger a vida dos participantes. Ali poderão estabelecer um interesse em resguardar o maior grau de liberdade possível. Contudo, sabem que esse não será um direito exigível, que uma liberdade como licença não é um direito forte porque, se o fosse, não admitiria sequer que uma norma penal básica pudesse restringir a liberdade de ação individual. Nesse instante inicial no qual tudo está sendo definido e aquilo a que cada um terá direito ainda não foi escolhido, todos os interesses importam. No entanto, as partes presentes na posição original logo entenderão que a liberdade como licença não distingue entre as formas de conduta, que toda lei prescritiva de comportamento diminui parcela considerável daquela e que somente poderão guarnecer outros interesses igualmente importantes se deixarem de lado a ideia de liberdade geral. Mesmo existindo uma grande preocupação em se resguardar a maior parcela de liberdade possível, sabem que não podem tornar uma cláusula geral juridicamente exigível. Portanto, outro direito deverá assumir o papel de guia central para a justiça social e as estruturas básicas da sociedade (DWORKIN, 2002, p. 277). E mais, esse direito terá a tarefa de justificar a

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3.3 O direito à igual consideração e respeito como orientador das liberdades básicas Vale esclarecer, aqui, que a existência de um contrato nos moldes expostos pela posição original foi uma circunstância criada por John Rawls (2008, p.127-208) para tornar nítida a medida de equidade que seus dois princípios de justiça pressupõem. Portanto, “trata-se de um artifício de representação que pode ser adotado em qualquer momento, devendo o acordo elaborado pelas partes ser considerado como hipotético e não identificado historicamente” (TEI-

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o direito ao voto direto e secreto – da recusa a uma liberdade como licença (DWORKIN, 2002, p. 277). O constitucionalismo atual tem como marca distintiva a garantia de direitos em sentido forte a certas liberdades individuais. Nessa perspectiva, é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Porém, diferentemente da noção de liberdade como ausência de restrições, essas liberdades se apoiam no ideal de independência que cada homem carrega e na noção do que é imprescindível ao convívio em sociedade para retirar a sua força jurídica. Há, aí, algo a mais, revelado pela incorporação de valores considerados importantes no texto fundamental. Este é um ponto relevante. Seguindo o exemplo utilizado por Dworkin (2002, p. 414), também está constitucionalmente consagrada em nosso ordenamento a liberdade de locomoção, mas, ao mesmo tempo, dificilmente se diria que as normas de trânsito não devem ser observadas, que existe um direito (em sentido forte) de dirigir rotineiramente em contramão e que um apelo à ideia de liberdade geral seria suficiente para desobrigar alguém dessas limitações. No entanto, restrições a posições mais fundamentais não são percebidas da mesma forma: se aceita que existe um direito à liberdade de expressão, de manifestação do pensamento, de consciência, religião e convicção e que a restrição a esses comportamentos é muito mais gravosa que aquela imposta por uma regra de trânsito. Embora a construção de ciclovias possa reflexamente restringir a liberdade de locomoção dos motoristas de veículos automotores ao destinar uma faixa exclusiva para as bicicletas, uma possível restrição da capacidade de debate público de ideias e opiniões, ainda que também reduza parcela da liberdade, parece ser uma questão diferente, assim como parece sê-lo uma restrição ao direito de locomoção de grupo específico da população em situações nas quais não exista uma justificativa plausível para tanto. Notadamente, esse sentimento indica que o impacto sobre as liberdades básicas vai além da própria ideia de liberdade. Bem por isso, “o que temos um direito não é, em absoluto, a liberdade, mas sim os valores, interesses ou posições que essa restrição particular frustra” (DWORKIN, 2002, p. 417). Não é possível exigir um direito à liberdade por si própria, mas sim em razão das posições mais fundamentais sobrepostas nela (DWORKIN, 2002, p. 415-419): são essas posições que, quando afetadas, permitem distinguir a força de um direito comparado a outro e observar que a supressão de uma parcela da liberdade é percebida de forma diferente conforme esses diferentes direitos específicos sejam afetados. Incontestavelmente, vários direitos em sentido forte carregam consigo o anseio pela liberdade, mas pelo menos um deve desempenhar o papel central na teoria a respeito de qual é o conteúdo das prerrogativas mais básicas.

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XEIRA, 2007, p. 46). É exatamente a medida de justiça e sensatez resultante da posição original que é útil para testar a adequação dos mais diversos argumentos à estrutura de uma sociedade bem ordenada, desprovida de aversões e preconceitos contra certos grupos e preferências com relação a outros. Através da estrutura de uma posição original, é possível lançar mão sobre o que seria do interesse antecedente fazer e daí retirar uma solução para o conflito em questão. A situação de igualdade à qual se está submetido e a aceitação proporcionada pela fixação prévia das regras que irão reger a escolha conferem a isenção necessária para a decisão tomada pelo grupo. Portanto, mesmo durante a elaboração de seu contrato social, as partes não são livres para agir arbitrariamente; ao contrário, enquanto condição para a própria posição original lhes é garantido o direito de ser tratado como igual, independentemente de seus gostos pessoais (RAWLS, 2008, p. 22-23). Todos têm direito a igual participação na formulação do contrato e o debate deve ocorrer sem que uns julguem sua posição merecedora de maior consideração que a dos demais. Assim, da mesma forma que na posição original, a existência de um direito à igualdade em uma sociedade bem ordenada decorre da potencialidade em desenvolver uma personalidade moral. Trata-se de uma prerrogativa básica devida a todo homem enquanto seja capaz de elaborar uma concepção do próprio bem, um plano racional de vida, e de possuir e agir segundo um senso de justiça. Para Rawls (2008, p. 622-630), esse é um traço característico do homem que o diferencia dos animais e obriga que seja tratado com base nos seus princípios de justiça. Conforme o autor, à justiça igual basta a capacidade de desenvolver uma personalidade moral, sem que ela mesmo seja necessária. Daí resulta que “não existe raça nem grupo reconhecido de seres humanos aos quais falta essa capacidade, ou sua realização em um grau mínimo, e a não-realização de tal capacidade é consequência de circunstâncias sociais injustas ou empobrecidas, ou de contingências fortuitas” (RAWLS, 2008, p. 625). Dessa forma, todo homem possui um direito a igual consideração e respeito. Existem, contudo, dois significados ao alcance desse conceito (DWORKIN, 2002, p 249-352). O primeiro deles é o direito a igual tratamento, a igual distribuição de bens, oportunidades, recursos ou encargos. É nesse sentido que, em uma democracia, todos têm resguardado em seu voto a mesma força de decisão que os demais, sem que seja permitido a um grupo deter maior peso na escolha a respeito de quais indivíduos irão representar a população. O segundo é o direito a ser tratado como igual, trata-se da exigência de igual consideração e respeito nas decisões políticas que serão tomadas para definir como tais bens e oportunidades serão distribuídos, de considerar os cidadãos igualmente merecedores de estima. Ainda que o direto a igual tratamento seja imparcial às necessidades individuais, não age com igual respeito, ou seja, trata como igual, quem destina a mesma quantia de verbas públicas a duas cidades quando uma delas é vítima de uma catástrofe natural e necessita de uma parcela maior de recursos para garantir a sobrevivência de seus cidadãos. Também não trata alguém como igual quem julga as suas reivindicações desimportantes simplesmente pelo que elas

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representam diante das próprias convicções. O direito a ser tratado como igual é fundamental, o direito a igual tratamento é seu derivado, em certas circunstâncias um implicará no outro, mas não em todas (DWORKIN, 2002, p. 421). Sob esse raciocínio:

O procedimento comum ao sistema democrático, enquanto mecanismo de representação política, emprega a regra da maioria para estabelecer os direitos e deveres dos cidadãos. No entanto, mesmo não sendo possível apelar a uma noção de liberdade geral para contestar a validade de determinado ato normativo, os trabalhos legislativos encontram como barreira intransponível o respeito aos direitos fundamentais e, nesse aspecto, o direito à igualdade exerce um papel central. Nenhuma restrição deve se basear na ideia de que existem formas de vida intrinsecamente mais valiosas que outras. Assim, não age com igual consideração e respeito quem discrimina um negro por acreditar que esse não pode/deve ocupar um cargo de notoriedade dentro da sociedade, também não se comporta assim quem, pelo mesmo serviço prestado, paga menos a uma mulher do que pagaria a um homem; mas não há dificuldade nenhuma em afirmar isso, pelo contrário, essas são conclusões mais ou menos bem incorporadas à moral geral como um todo. A complexidade aumenta quando se tratam de questões controversas. Com efeito, as reivindicações que uma sociedade pode abrigar devem conservar o mesmo peso e capacidade de influência no debate público, sem pressupor que quem detém determinado tipo de crença possui uma concepção de vida de alguma forma mais pura que quem professa outra fé. Ao final, “a humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o eu lhe parece bom do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante” (MILL, 2000, p. 22). 3.4 Igual consideração e liberdade como independência Agora é possível prosseguir com argumento acerca da liberdade, no qual se alcançou um ponto crucial. Foi dito que, embora uma regra de trânsito diminua parcela da liberdade enquanto licença, a censura a convicções pessoais e a outros direitos básicos atinge a população de maneira diferente e que não existe um direito geral à liberdade, mas a certas liberdades

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O governo deve tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes de formar concepções inteligentes sobre o modo de como suas vidas devem ser vividas, e de agir de acordo com elas. O governo deve não somente tratar pessoas com consideração e respeito, mas com igual consideração e respeito. Não deve distribuir bens ou oportunidades de maneira desigual, com base no pressuposto de que alguns cidadãos têm direito a mais, por serem merecedores de maior consideração. O governo não deve restringir a liberdade, partindo do pressuposto de que a concepção de um cidadão sobre a forma de vida mais adequada para um grupo é mais nobre ou superior do que a de outro cidadão. Considerados em conjunto, esses postulados expressam [...] uma concepção de igualdade e não uma concepção de liberdade como licença (DWORKIN, 2002, p. 419-420).

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Dessa forma, a ofensa à prerrogativa de ser tratado como igual implica uma mácula às liberdades e, como assevera Dworkin (2002, p. 305), “se os direitos têm sentido, a violação de um direito relativamente importante deve ser uma questão muito séria. Significa tratar um homem como menos que um homem ou como se fosse menos digno de consideração que outros homens”. Decerto, os direitos individuais a diferentes liberdades podem ser reconhecidos quando for possível demonstrar, ao menos, que o direito fundamental a ser tratado como igual os exigem. Nesse sentido, Mill (2000, p.27-84) acreditava na existência de um direito à liberdade de expressão porque negá-lo equivaleria a aceitar a tirania da maioria sobre a minoria, a admitir a existência de uma parcela da população mais digna que outra. Dizer que certas opiniões devem ser merecedoras de menor consideração diante das demais ou que o modo de vida de uns é menos nobre frente à de determinado grupo demonstra ser o direito à igual consideração e respeito que é violado, e não um suposto direito à liberdade. Dworkin (2002, p. 421) propõe que os direitos individuais a diferentes liberdades devam ser reconhecidos somente quando se puder mostrar que o direito fundamental a ser tratado como igual exige tais direitos. Se isso for correto, o direito a diferentes liberdades não entra em conflito com nenhum suposto direito à igualdade concorrente; ao contrário, decorre de uma concepção de igualdade que se admite como mais fundamental.

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guarnecidas por valores que a elas são conexos. Contudo, nada foi dito acerca da liberdade como independência. Kant (2008, p. 09-18) oferece uma boa perspectiva para elucidar esse ponto. Para o autor, o “esclarecimento” equivaleria à saída do homem do seu estado de minoridade, entendido como a incapacidade de “se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro”. Segundo o filósofo alemão, a fim de alcançar esse objetivo bastaria a liberdade para a reflexão e o uso público da razão em um ambiente livre de limitações à expressão dessas opiniões individuais sob pena de, não havendo espaço para o livre pensar, o homem ter seu agir limitado pelas reflexões de outrem. Ao homem seria natural refletir e a falta de liberdade necessária a essa faculdade caracterizaria uma lei contra a natureza humana exatamente por retirar dele uma prerrogativa que lhe é inerente. Quando se fala em direito à liberdade de expressão, pressupõe-se o direito fundamental a ser tratado como igual; é desse direito em sentido forte que se retira a sua força jurídica. O direito à liberdade como independência segue o mesmo caminho: existe porque a medida da liberdade exigida para o livre discernimento sem a interferência de outros é resultado do que foi chamado de direito a ser tratado como igual (DWORKIN, 2002, p. 421). Quando se submete a liberdade de trafegar nas ruas às normas de trânsito não se ofende nada mais que a própria noção de liberdade como licença; de forma diversa, quando uma liberdade como independência é cerceada atinge-se diretamente o direito a ser tratado como igual, e esse é o pressuposto fundamental das liberdades básicas que um indivíduo dispõe.

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Reconhecidamente, todos têm direito a ser tratados como pessoas e o Estado tem o dever de não discriminar os planos de vida de seus cidadãos, elegendo uns em detrimento de outros. Com efeito, quando se proíbe que alguns defendam os seus ideais políticos, o Estado ofende diretamente a parcela de igual liberdade que cada um deveria dispor enquanto membro de sua sociedade e merecedor de igual consideração e respeito. E nisto consiste seu ideal igualitário: “o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa, e deve demonstrar igual consideração pela vida de todos” (DWORKIN, 2005, p. 169) Até esse momento, chegou-se à conclusão de que a liberdade não é valiosa por si mesma, mas por servir de instrumento para resguardar outros valores. Entretanto, isso não quer dizer que ela também não ocupe um papel fundamental. Na verdade, a compreensão da igualdade na forma aqui apresentada faz da liberdade também uma questão de igualdade, ao invés de um ideal independente e em conflito (DWORKIN, 2005, p. 158). Se não é possível exigir qualquer direito à liberdade que entre em conflito com as exigências de igual respeito e consideração, resta evidente que aí não há um direito à liberdade, ao menos não no sentido forte aqui trabalhado. Portanto, respeitar a liberdade implica respeitar a igualdade. Disso decorre que a liberdade não está subordinada à igualdade, mas sim intrinsecamente ligada a ela, compondo um único ideal humanista (DWORKIN, 2005, p. 177-178).

A discussão acerca das liberdades é extremamente fecunda e, por isso mesmo, o presente artigo teve como norte apresentar apenas uma concepção de direito à liberdade, capaz de informar qual o seu conteúdo mínimo, sem pretender esgotar as diferentes faces que um direito assim concebido possui. Para tanto, buscou-se esclarecer que, quando o termo direito é invocado, é necessário levar a sério as exigências feitas em nome desse ideal, não figurando apenas como um jargão performático sem normatividade. Ao contrário, dizer que existe um direito fundamental a algo reflete o reconhecimento de uma posição jurídica inegociável, inalienável e, assim, inafastável. Nesses moldes, deter um direito à liberdade implica não poder ter essa parcela de autonomia restringida. Entretanto, embora seja defensável a existência de uma cláusula geral e irrestrita de liberdade por ser desejável possuí-la, uma concepção como essa não se amolda ao desenho institucional de uma sociedade regida pelo direito. Dito isso, não é concebível que alguém tenha o direito (prerrogativa) de fazer ou deixar de fazer algo quando o próprio direito (ordenamento jurídico) imponha o contrário. Alegar a existência de um direito geral à liberdade, nesses moldes, equivaleria a reconhecer a incapacidade do sistema jurídico em impor uma obrigação. Com efeito, a liberdade como licença não constitui um direito em sentido forte, embora seja possível que grande parcela da população a deseje. Dessa forma, o direito à liberdade de expressão (e tantas outras prerrogativas consagradas pelo ordenamento jurídico) existe em

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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virtude do que a sua proteção representa no cenário político. É uma liberdade individual porque garante a parcela de independência e autodeterminação de cada homem e, nesse sentido, busca tutelar o seu direito à igual consideração e respeito. Não sendo possível exigir um direito à liberdade com base em um preceito geral, defende-se um direito às liberdades básicas não porque é possível exigir força jurídica delas por si só, mas porque uma lesão a esses direitos atinge cada um de uma forma que vai além do seu impacto sobre a liberdade mesma, alcançando outros valores resguardados constitucionalmente. Nesse aspecto, o direito a ser tratado como igual representa o compromisso mínimo com a liberdade a que o direito deve se submeter. Portanto, nenhuma restrição à liberdade deve ter como base a existência de formas de vida mais ou menos valiosas, transformando-a, pois, em uma questão de igualdade. De tudo isso, conclui-se que não existe um direito geral à liberdade, mas liberdades básicas que se conferem pelo valor somado a ela e que existe, pelo menos, o direito à liberdade que o direito a ser tratado como igual exigir.

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ABSTRACT The arrangement assigned to the right to freedom is one of the central themes in any democratic State. Notably, the way freedoms are distributed in a society affect directly the action field of every citizen, influencing the exercise of all their rights. This article aims to present the approach proposed by Ronald Dworkin in the book “Taking Rights Seriously”, particularly, a general clause of freedom from a strong comprehension of the fundamental rights content. Keywords: General right to liberty. Ronald Dworkin. Equal concern and respect.

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Recebido 17/02/2017 Aceito 02/05/2017

O DIREITO À (BUSCA DA) FELICIDADE COMO NORTEADOR DO DIREITO DAS FAMÍLIAS Arthur Ferreira de Oliveira1

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. (Liev Tolstoi)

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Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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RESUMO O presente artigo trata da análise acerca do Direito à felicidade como direito fundamental e sua respectiva aplicação no ramo do Direito das Famílias, atuando como norteador desse. Apesar da dificuldade de conceituação do que se entende por felicidade, desde os clássicos aos contemporâneos se intentou compreender a influência desse sentimento na sociedade, reconhecido em várias normativas históricas. O Direito à busca da felicidade tem uma especial aplicação no Direito das Famílias, de sorte que, com base nele, a jurisprudência do STF tem fixado precedentes que vêm a superar as concepções conservadoras sobre os arranjos familiares. O desenvolvimento deste trabalho resulta de pesquisas bibliográficas e documentais, ordenadas sob o método dialético, confrontando-se ideias antitéticas para, ao final, se chegar em uma síntese e em uma conclusão satisfatória. Palavras-chave: Felicidade. Direito à (busca da) felicidade. Famílias.

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1 INTRODUÇÃO Desde os pensadores clássicos, principalmente entre os gregos antigos, a felicidade - e o direito de buscá-la -, já era estudada e apontada por muitos autores como a finalidade precípua da sociedade e o próprio fim em si da vida. Dada a relevância histórica e política do tema em questão, passou-se a se discutir a possibilidade da existência de um direito à busca pela felicidade, apontado, por alguns, como um direito fundamental, e, portanto, passível de reclamação de seu estrito cumprimento ao Estado. Com efeito, várias normativas históricas introduziram o direito à felicidade em seus textos, alçando-o como verdadeiro dever estatal e direito do cidadão. Apesar de que no ordenamento jurídico brasileiro não há nenhuma menção específica à expressão em comento. Contudo, doutrina e jurisprudência vêm aplicando o direito à felicidade como uma espécie de decorrência lógica e material dos preceitos que informam o ordenamento pátrio, como a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade, igualdade e o objetivo estatal de promoção ao bem de todos. Nesse passo, o direito à (busca da) felicidade irradiaria sobremaneira nos diversos ramos do arcabouço normativo, destacando-se, ainda mais, no Direito das famílias, uma vez que tal sentimento é ínsito deste núcleo social, atuando como princípio implícito dessas relações, e sendo, portanto, um de seus elementos norteadores. Não diferente, é possível perceber alguns julgados da corte constitucional brasileira citando o direito à felicidade para dirimir questões relacionadas ao direito de família, tal como o paradigmático julgado da união homoafetiva. Destarte, o objetivo deste trabalho é elucidar a possibilidade e existência de um Direito à felicidade e a sua implicação no direito das famílias, atuando como uma das bases hermenêuticas desse sub-ramo do direito. Para esse mister, foram utilizadas as fontes bibliográficas, legislativa e jurisprudencial, assentando-se no método dialético.

Conforme alude Maria Berenice Dias (2016, p. 201), se há uma peculiaridade inerente a todos os humanos, esta consiste no sonho com a tão buscada felicidade. Sempre foi assim e sempre será. Na maioria das vezes, a vida é planejada em favor disso, atuando a busca pela felicidade como uma espécie de vetor dos nossos atos. Desta maneira, um assunto tão caro e ínsito à humanidade não poderia ficar alheio ao campo de pesquisa dos mais diversos ramos do saber. E não ficou. A literatura nos mostra que estudos sobre a felicidade, sob as mais variadas perspectivas, consta desde os clássicos, perpassando pelos modernos e não cessando entre os contemporâneos. Sob essa ótica, entre os clássicos, Epicuro (retirado de DIAS, 2016, p. 201) aduzia que “não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça e não existe prudência, beleza e justiça

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2 DO DIREITO À FELICIDADE

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EUA. Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Disponível online em: <http://www.arqnet.pt/portal/teoria/ declaracao_vport.html>. Acesso em: 27/01/2017.

3

FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível online em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/ dec1793.htm>. Acesso em: 27/01/2017.

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sem felicidade”. Aristóteles ( retirado de PINHEIRO, 2016, p. 01), a seu turno, dizia “que a felicidade é a finalidade da natureza humana, como dádiva dos deuses, a felicidade é perfeita”, e que “é na busca da felicidade que se justifica a boa ação humana, sendo os outros bens meios para atingir o bem maior felicidade”. Nesse passo, entre os modernos, vemos em Hobbes (1651 retirado de RUBIN, 2016, p. 42) uma ideia de felicidade ao “sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens chamam felicidade; refiro-me à felicidade nesta vida”. Já Kelsen, na pós-modernidade, fazia um paralelo entre felicidade e justiça, trazendo uma noção de felicidade coletiva, aduzindo que “o anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social”. (KELSEN, 2001, apud retirado de RUBIN, 2016, p. 43). Com efeito, ao longo da história, diversas normativas jurídicas citaram o direito à felicidade como uma finalidade da sociedade e como um direito do cidadão. É o que se denota da Declaração da independência dos EUA, que traz as palavras de Thomas Jefferson: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade.”2 Outrossim, também retira-se da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, que: “O fim da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo destes direitos naturais e imprescritíveis.”3 Cumpre ressaltar ainda a carta com os Princípios Constitucionais para uma África do Sul Democrática, subscrita por Nelson Mandela, em 1991, por meio da qual se prezava pelo acesso a direitos que subsidiassem as pessoas a ter reais e efetivas oportunidades de buscar a felicidade. Nesse mesmo sentido, David Cameron, então 1º ministro da Grã-Bretanha, afirmou que os políticos deveriam se preocupar sobre como fazer as pessoas mais felizes. Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França, discursando juntamente a dois Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz e Amartya Sen, anunciou a inclusão da felicidade nos indicadores de progresso econômico do país. (LEAL, 2015, p. 230) Apesar de que a relevância histórica e política dada ao tema, dificultosa é a conceituação do que se entende, objetivamente, por direito à felicidade. Nesse intento, Saul Tourinho Leal (2015, p. 237) vê o direito à felicidade como uma derivação do princípio de justiça apresentado por Jeremy Benthan, e, portanto, teria fortes bases no utilitarismo, corrente teórica que teve o filósofo político como precursor.

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Na visão de Benthan, citado por Leal, qualquer decisão, seja ela pública ou privada, deveria ser avaliada segundo seu impacto na felicidade de todos aqueles a que diz respeito, devendo haver uma igualdade de tratamento. É o princípio da felicidade maior: a ação certa é a que produz a maior felicidade geral. (LEAL, 2015, p. 237) Leal, por sua vez, apresenta o seu conceito de Direito à (busca da) felicidade, como sendo “o direito de não sofrer interferências ilegítimas por parte do Estado, ou do particular, na execução de projetos racionais de realização de preferências, Eventuais interferências impõem fundamentação, pois limitam a liberdade”. (LEAL, 2015, p. 237) Mostra-se claro, no conceito do autor referido, uma natureza obrigacional negativa do Estado face aos particulares, no sentido de não serem criados óbices, embaraços ao projeto de vida que o cidadão julgue ser o mais adequado à consecução da sua felicidade. Além disso, percebe-se a intrínseca ligação entre felicidade e liberdade, uma vez que o indivíduo somente poderá ter oportunidade de ser feliz se tiver sua liberdade plena. Nessa esteira, outro autor que também realizou essa inferência foi o filósofo inglês John Stuart Mill, sucessor declarado dos ideais utilitaristas de Benthan. Mill acreditava no que se passou a chamar de “princípio do dano”, uma vez que o indivíduo somente teria sua liberdade tolhida quando seus atos danosos extrapolassem a sua esfera individual e adentrassem na esfera de outrem. Assim, de acordo com o princípio do dano, “o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou coletivamente, para interferir na liberdade de ação de outro, é a autoproteção, cuja função é prevenir dano a outros”. (LEAL, 2015, p. 249-250) Assim, Stuart Mill (retirado de LEAL, 2015, p. 232-233) afirma que “uma pessoa não pode corretamente ser forçada a fazer ou a deixar de fazer algo porque será melhor para ela que o faça, porque a faça feliz, ou porque, na opinião de outros, fazê-lo seria sensato, ou até correto”. Logo, “as pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe parece bem a si, do que forçando cada um a viver como parece bem aos outros”. Nesse diapasão, Layard (retirado de LEAL, p. 233), suscita a existência de um chamado “princípio da felicidade maior”, sendo ele é “fundamentalmente igualitário (a felicidade de todos deve ter o mesmo valor) e fundamentalmente humano (o que importa é o que as pessoas sentem)”. Diz o referido autor que “todo direito humano tem de ser justificado como um modo de evitar sofrimento (ou promover a felicidade)”. Sob essa ótica, a Constituição e as normas infraconstitucionais seriais essenciais para o alcance da felicidade. Além da perspectiva individualista da felicidade, há ainda uma visão publicista, que pode ser encontrada em Hannah Arendt (retirado de LEAL, p. 234), vez que a autora assevera não haver democracia verdadeira sem o exercício desembaraçado do direito à felicidade pública. Nessa ótica, a felicidade pública consistiria “na satisfação sentida pelo ser humano ao se perceber como parte de uma comunidade política, notadamente, quando ele participa das decisões de impacto coletivo”. Assim, “a partir do momento em que esse senso cívico é desenvolvido, estabelece-se uma forte conexão entre a causa pública e o ser humano”. (LEAL, 2015, p. 234)

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Sem embargo, apenas a prestação, positiva ou negativa, do direito à busca da felicidade, que tem claras bases jurídicas na liberdade aliada à dignidade, não seria suficiente à sua otimização, posto que deve ser concedido ao homem, antes de tudo, aquele bloco de direitos básicos entendidos como mínimo existencial – condições de saúde, educação, alimentação, higiene, qualidade de vida -, pois, só assim ele será verdadeiramente livre. (LEAL, 2015, p. 239) Nesse sentido, “Os direitos socioeconômicos, chamados também de “direitos ao pão”, celebram o compromisso com o bem-estar das pessoas, a parte objetiva do direito à felicidade”. (LEAL, 2015, p. 240) Doutro turno, é possível se denotar que em determinados momentos o direito à felicidade é apontado nas normativas numa pela perspectiva coletiva, não raras vezes sob a forma de expressões correlatas, tais como “felicidade, bem-estar, bem-estar subjetivo, e satisfação com a vida, entre outros”. É o que percebe da leitura de alguns artigos da Constituição. (LEAL, 2015, p. 240-241) São exemplos do acima exposto, na Constituição: o preâmbulo, que firma um compromisso com o “bem-estar”; O §1º do artigo 231, o artigo 182 e o inciso IV do artigo 186, que tratam, respectivamente, das políticas de propriedades indígenas, urbanas e rurais, balizadas de acordo com o bem-estar de todos; o artigo 193, que trata da ordem social brasileira, tendo como base o primado do trabalho e como objetivo o “bem-estar” e a justiça social; o artigo 219, que regula o mercado de interna de forma a fomentar o “bem-estar” da população; e o art. 230, que impõe o dever solidário entre família, a sociedade e o Estado de amparar as pessoas idosas, assegurando o seu “bem-estar” (LEAL, 2015, p. 241-244). Com efeito, fora imbuído desses ideais que o Senador Cristóvão Buarque, no ano de 2010, apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 19 (BRASIL, 2016), a chamada “PEC da felicidade”, com o fito de incluir o vocábulo “felicidade” no texto do artigo 6º, da Constituição Federal de 1988, artigo que prevê o rol (não exaustivo) de direito sociais. Sustentava o senador que os direitos deixaram de transmitir os sentimentos que deveriam representar, sendo necessário criar um novo paradigma na elaboração e na execução de políticas públicas. Afirmava Buarque (BRASIL, 2016, p. 01) que o direito de ser feliz está atrelado aos direitos sociais e não ao subjetivismo de cada qual. Porém, a PEC não recebeu aprovação, sendo arquivada em 2014. O insucesso da proposta do senador Buarque talvez resida no problema da concretização fática de um direito fundamental à felicidade, dada a imprecisão terminológica. Isso porque a aplicação de tal direito seria um grande desafio aos profissionais do direito. Apesar de que a Constituição expõe em seu texto diversos conceitos abertos e cláusulas gerais, de modo que cabe ao legislador infraconstitucional e ao judiciário dar conformação ao texto. Sem embargo, Maria Berenice Dias (2016, p. 202) enxerga que, tendo em vista que o artigo 6º apresenta um rol exemplificativo, pode-se dizer que o direito à felicidade, mesmo sem a aprovação da PEC, existe e precisa ser assegurado a todos, de sorte que “não só pelo Estado, mas por cada um, que além de buscar a própria felicidade, precisa tomar consciência que se trata

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3 A APLICAÇÃO DO DIREITO À FELICIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA É sabido, sem necessidade de apontar estudos mais aprofundados, que o melhor funcionamento da família guarda forte ligação com a felicidade das pessoas e com uma maior satisfação com a vida. Porém, o legislador brasileiro, mesmo no estado avançado da sociedade, ainda se prende a dogmas secularizados que criam óbices à consecução desse fim. Nesse passo, Maria Berenice Dias (2015 p. 84), mesmo antes da entrada em vigência da Emenda Constitucional 66/2010, que extinguiu o instituto da separação judicial do nosso orde-

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de direito fundamental do cidadão, de todos eles” (DIAS, 2016, p. 203). Hodiernamente o Direito à felicidade segue como um campo de estudos ainda embrionário, mas já é possível se notar estudos em diversos países. Nos EUA, destaca-se um campo autônomo de investigação denominado “law and happiness”, direito e felicidade, que, com fundamento também em outras ciências, visam a formulação de políticas que buscam aumentar a felicidade geral das pessoas (PINHEIRO, 2016, p. 07). Doutro turno, no Butão, em contrapartida ao índice do Produto Interno Bruto (PIB), surgiu um novo indicador para medir o desenvolvimento social: a Felicidade Interna Bruta (FIB), tratando-se louvável inovação (DIAS, 2016, p. 203). Nesse pórtico, o conceito de Felicidade Interna Bruta “baseia-se no princípio de que o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento espiritual e o material são simultâneos, se complementando e reforçando mutuamente”. O cálculo da “riqueza” deve considerar outros aspectos além do desenvolvimento econômico, como a conservação do meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas (DIAS, 2016, p. 203). Nada mais adequado. Afinal, outra coisa diversa não devem ter imaginado as pessoas do povo ao tacitamente “assinar” o contrato social a que aludem os filósofos contratualistas: o Estado garantirá a todos o direito à busca da felicidade. No entanto, salutar a lição de Ives Gandra (retirado de PINHEIRO, 2016, p. 08), no sentido de que é preciso fazer a distinção entre fins e meios. O bem comum é a finalidade e os direitos sociais, os meios para promovê-lo. Nesse diapasão, não se poderia colocar a felicidade como direito a ser garantido pelo Estado. Nessa ótica, o dever do Estado consistiria em assegurar os meios para que cada um possa chegar à felicidade. Com efeito, ninguém pode impor ao outro uma “fórmula da felicidade”, vez que cada um tem pra si o seu próprio conceito de felicidade. Ou como diria Almir Sater: “Cada um de nós compõe a sua história. Cada ser em si carrega o dom de ser capaz; de ser feliz” (SATER; 1991, p. 01). Sob essa perspectiva aduziu Luiz Edson Fachin (2014, p. 142), observando que a supracitada “busca da felicidade não pode ser barrada por preconceitos. Aqui não se subscreve, nem de longe, o desvario individualista do consumo de tudo e a própria reificação do ser. Dignidade e responsabilidade se conjugam com a liberdade”. Apesar de que “Em qualquer situação, contudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria”.

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namento pátrio, assim como suas elementares (culpa, prazos...), já apresentava forte divergência ao chamado “fetichismo” do legislador pelo casamento como instituição imutável e imprescindível, que vinha desde o Código Civil de 1916. Aduz a autora que, mesmo rompido o vínculo afetivo que une as pessoas ao matrimônio, o legislador optava por impor a permanência das pessoas dentro do casamento. Primeiro, o casamento era indissolúvel. Mesmo depois da edição da Lei do Divórcio, havia uma injustificável resistência em aceitar a sua dissolução. Ora, a família nada mais é do que a conjugação de indivíduos ligados entre si por laços afetivos e ancorados em fatos de ordem biológica ou de ordem afetiva, tendo uma de suas finalidades à busca de alegria e felicidade. Apesar da aprovação da Emenda Constitucional 66/10, setores conservadores ainda seguem aquela linha de pensamento, alçando o casamento num patamar superior à família em si, na tentativa dissimulada de desonerar o Estado dos seus deveres para com os integrantes do núcleo familiar, tolhendo destas pessoas a liberdade para buscar a sua felicidade, finalidade e razão da vida, como disseram os autores citados alhures. É por meio dessa liberdade que se alcança o autêntico momento de propiciar à família a felicidade pessoal de seus membros, que gera a efetivação da personalidade individual, e, por isso, cabe ao Estado libertar qualquer barreira que impeça ou impossibilite a almejada felicidade. Sem embargo, considerando-se que o Direito além de uma ferramenta para a solução dos conflitos humanos é, em essência, um instrumento de pacificação social, infere-se sua orientação teleológica para a construção de um mundo no qual as pessoas possam buscar, livremente, a felicidade, quaisquer que sejam as dimensões materiais e imateriais. Dessa maneira, o vínculo do afeto tornou-se condição de princípio jurídico oriundo da dignidade da pessoa humana, visto que é por meio do afeto que as famílias se aproximam e garantem o direito à felicidade e a uma vida digna, sendo pautadas pelo afeto e não por meras formalidades como a do casamento civil. Assim, o afeto pode ser considerado um laço que une não só integrantes de uma família, mas que une qualquer pessoa, com a finalidade de garantir a felicidade de todos que pertence àquele meio, seja amigos, familiares ou conviventes. Nessa ótica, assentando-se no direito à felicidade e na liberdade de orientação sexual como princípio constitucional, impõe-se, a título de exemplo, a naturalidade e a proteção estatal dos homossexuais expressarem seu modo de ser e exteriorizar a sua sexualidade, seja por meio de união estável homoafetiva ou casamento homoafetivo, pois o que deve prevalecer é a felicidade, com o reconhecimento de seus direitos constitucionalmente assegurados. Ainda nessa seara, Fachin (2014, p. 56) cita, no contexto da discussão do direito ao nome de transexuais, o direito a mudança do sexo no registro civil, como garantia da concretização do direito à felicidade e qualidade de vida do indivíduo. Destarte, o direito à felicidade, à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana constituem uma proteção ao ser humano, contra quaisquer preconceitos da sociedade,

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não podendo o Estado deixar de conceder às famílias homoafetivas, às famílias simultâneas, monoparentais, unipessoais, de poliamor, qual seja a sua forma, o direito de constituir família e terem total proteção estatal, não devendo o Estado interferir numa situação de clara natureza privada e íntima, ao impor aos novos arranjos familiares uma forma de família secularizada que pode não satisfazer o seu direito de ser feliz. (PESSANHA, 2016 p. 08). Corroborando com o exposto, vê-se decisões importantes de supremas cortes respeitadas que têm reconhecido a felicidade como um direito e, por meio dela, assegurado outros direitos. Todavia como bem observa Maria Berenice Dias, em que pese à não inclusão do direito à felicidade no rol dos direitos sociais, não seria exagero algum asseverar que o direito à busca da felicidade estaria materialmente assegurado no texto constitucional, como corolário da dignidade da pessoa humana, fundamento da república, além do dever estatal de promover o bem de todos, sem exceção. (BRASIL, 1988)” (LEAL, 2015, p. 231). Assim sendo, apesar do silêncio do legislador no tocante à felicidade como direito, tal omissão não inibe a justiça de invocar o direito à felicidade para colmatar as lacunas da lei. Isso posto, O STF (BRASIL, 2006 e 2011), citando o direito à felicidade, recentemente decidiu:

[...] cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os Direito fundamental à felicidade da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do direito e na esfera das

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BRASIL. Acordão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 30/11/2016.

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E M E N T A: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. (grifos acrescidos)4.

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Assim, a Suprema Corte, na sua missão de “guardiã da constituição”, já deixou clara a sua posição. Corretamente, diga-se de passagem. Sobre esse ponto, faz-se o questionamento se seria papel do Judiciário assegurar felicidade para as pessoas. A resposta mais adequada tem fulcro na ideia de que, no regime jurídico brasileiro pós-88 todo juiz pode, e deve, apreciar a conformação da Constituição aos casos concretos, podendo afastar os atos normativos que não se coadunam com o que pretendeu o constituinte. Assim, tendo em vista que o direito à felicidade, em que pese a sua não positivação, pode ser cristalinamente encontrado na hermenêutica do princípio da dignidade humana e no princípio da liberdade, o judiciário pode, sim, assegurar tal direito. Por exemplo, no precedente vinculante da união homoafetiva, acima citado, coube ao STF fixar a interpretação ao artigo 1.723 do Código Civil, que reconhece, como entidade familiar, a união estável entre homem e mulher, decidir que a referida união também abrangeria casais do mesmo sexo, apesar de o dispositivo constitucional falar em “homem e a mulher”, conforme a dicção do texto do seu artigo 226, §3 (LEAL, 2015, p. 249). No voto de Ayres Britto (retirado de LEAL, 2015, p. 250), a decisão do STF estaria denotando “o reino da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. Significa que a decisão amplia a situação de bem-estar dos homoafetivos, sem mitigar, em nada, a situação vivenciada pelos heteroafetivos”. Conforme se vê, o voto do ministro fora bastante embasado na teoria do dano de Mill. A seu turno, e no mesmo sentido, o Ministro Celso Mello afirmou que a decisão não causaria tensões nas relações humanas, nem tampouco dividiria pessoas, grupos ou instituições. Inclusive, ela seria útil em longo prazo, uma vez que estimularia a união da sociedade em torno de um objetivo comum, fato este que aumentaria a sensação de fraternidade e ampliaria, por conseguinte, a felicidade coletiva. Em seu voto, Celso Mello abriu um tópico denominado: “O direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, como expressão de uma ideia força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana”. O ministro reconheceu que o direito à busca da felicidade representa derivação da dignidade humana, atuando como um dos mais proeminentes postulados constitucionais implícitos (LEAL, 2015, p. 250). Cumpre citar ainda o caso “Obergefell v. Hodges”, apreciado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, tratando do casamento entre pessoas do mesmo sexo, no qual se definiu majoritariamente que o casamento é “um dos mais vitais e essenciais direitos pessoais para que um homem livre busque a sua felicidade”, em contrapartida de pensamentos minoritários de que o casamento serve unicamente à procriação. (LEAL, 2015, p. 251).

5  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Re Agr/mg nº 477554, Segunda Turma. Relator: Min. CELSO DE MELLO. Diário de Justiça da União. Brasília, 25 ago. 2011

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relações sociais.” (ADI 3300/DF, de 03/02/2006, Rel. Min. Celso de Mello). (grifos acrescidos)5

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É nesse sentido que Maria Berenice Dias (2015, p. 52), citando Giselda Hironaka, aduz que a posição que o indivíduo ocupa na família ou a forma do arranjo familiar são questões que ficam em segundo plano, posto que “o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade”. A autora ainda afirma que “há a necessidade de o Estado atuar ele modo a ajudar as pessoas a realizarem seus projetos racionais ele realização de preferências ou desejos legítimos. Não basta a ausência de interferências estatais”. Ou seja, evidencia-se de forma patente que “O Estado precisa criar instrumentos (políticas públicas) que contribuam para as aspirações de felicidade das pessoas, municiado por elementos informacionais a respeito elo que é importante para a comunidade e para o indivíduo” (DIAS, 2015, p. 52).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O objetivo deste trabalho foi elucidar a existência e validade do direito à felicidade no ordenamento jurídico pátrio, e a sua especial aplicação no ramo do Direito das Famílias, por vezes entrelaçado com o princípio da afetividade. Destarte, restou sobejamente demonstrado, seja na doutrina, nos clássicos, no direito comparado, nos precedentes da Suprema Corte, que não resta nenhum óbice ao reconhecimento do direito à felicidade como decorrência lógica e material do ordenamento pátrio e da vigência do Estado Democrático e Constitucional de Direito. Nesse rumo, inegavelmente quem constitui uma família nada mais almeja do que ser feliz, de sorte que o Estado deve prover os meios para que essas pessoas atinjam tal mister, reconhecendo e concedendo agasalho jurídico àquelas. Por fim, como ficou evidenciado, o presente trouxe algumas noções do que alguns doutrinadores entendem por felicidade, de forma que não se pretendeu apresentar um conceito definitivo, fechado, dessa que seria o fim último da humanidade. Tal ideia diz respeito ao íntimo de cada um. Sobre esse ponto, Cazuza dizia que a felicidade não estaria na chegada, ou seja, no alcance do objetivo, mas sim no caminho até lá. Talvez esteja nos dois. Quem sabe?

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DIAS, Maria Berenice. Direito fundamental à felicidade. Disponível em: <http://faa.edu.br/ revistas/docs/RID/2011/RID_2011_13.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2016. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. Revista Brasileira de Direito Civil. Volume 1 – Jul / Set 2014. Disponível em: <https://www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/pdf/03---rbdcivil-volume-1--o-corpo-do-registro-no-registro-do-corpo;-mudanuca-de-nome-e-sexo-sem-cirurgia-deredesignaucueo.pdf>. Acesso em 11/12/2016. LEAL, Saul Tourinho. O direito à felicidade no Brasil e na África do Sul. Revista Publicum, Vol. 1, No 1, 2015, p. 229-256 UERJ. Disponível em: <http://www.e-publicacoes. uerj.br/index.php/publicum/article/view/20025>. Acesso em: 11 dez. 2016. PESSANHA, Jackelline Fraga. Princípios Constitucionais: A efetivação de direitos fundamentais da Família Homoafetiva. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/ artigos/?cod=0501b4e3f17a759d>. Acesso em: 25 nov. 2016. PINHEIRO, Raphael Fernando. A positivação da felicidade como direito fundamental: o Projeto de Emenda Constitucional n. 19/10. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/ portal/conteudo/positivação-da-felicidade-como-direito-fundamental-o-projeto-de-emendaconstitucional-n-191>. Acesso em: 29 nov. 2016. RUBIN, Beatriz. O direito à busca da felicidade. Disponível em: <http://www.esdc.com.br/ RBDC/RBDC-16/RBDC-16-035-Artigo_Beatriz_Rubin_(O_Direito_a_Busca_da_Felicidade). pdf>. Acesso em: 26 nov. 2016.

ABSTRACT This article aims to analyze the right to happiness as a fundamental right and its application in the Family Rights field, working as its guidance. Despite the difficulty in conceptualizing happiness, from the classical to the contemporary ones, people have been trying to understand the influence of this feeling in society, renowned by several historical rules. The right to search for happiness has a special application in Family Rights, so that, based on it, STF’s jurisprudence has been fixing precendents that have overcome the conservative conceptions regarding family organization. Keywords: Happiness. Right to (search for) happiness. Families.

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THE RIGHT TO (SEARCH FOR) HAPPINESS AS A FAMILY RIGHTS’ GUIDANCE

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Recebido 20/02/2017 Aceito 02/05/2017

O RECONHECIMENTO DO CUIDADO COMO VALOR JURÍDICO E SUA INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Lucas Leal Sampaio1

1 INTRODUÇÃO A família é, desde os primórdios da humanidade, o alicerce da sociedade, isto é, o primeiro grupo social com quem o indivíduo tem contato e que o ensina as regras de convivência e os limites dos direitos e deveres em face ao corpo social. Nesse contexto, o novo indivíduo começa a aprender até onde pode ir o direito individual de cada um, bem como as regras e costumes que norteiam as ações de todos, regras estas que vão muito além da esfera jurídica,

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Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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RESUMO O presente estudo tem como intuito o reconhecimento da valoração jurídica do dever de cuidar e suas implicações na seara forense. Para tanto, aborda o conceito do dever de cuidar e suas implicações no meio familiar. Posteriormente, busca entender os novos paradigmas do Direito de Família com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, bem como demais legislações infralegais pertinentes ao assunto. Ademais, será feita uma análise de julgados do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema em comento, com enfoque no Recurso Especial nº. 1.159.242/SP, concluindo pela obrigação jurídica do dever de cuidar. Palavras-chave: Cuidado. Valor jurídico. Direito de Família. Recurso Especial nº. 1.159.242/SP.

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adentrando no campo moral. Com base em tais ensinamentos, esse ser inicia seu contato com outros grupos, aprendendo na vivência do cotidiano a aplicar o que aprendeu. As lições aprendidas no seio familiar moldarão ainda a sua personalidade, sua forma de agir, suas crenças, seus sonhos, a forma de tratamento para com os demais membros da sociedade, mostrando a importância do papel do pai e da mãe, líderes do núcleo familiar, na construção do caráter de cada um. A função deles é de natureza fundamental, auxiliando no desenvolvimento biológico, psíquico e emocional de seus descendentes através do zelo, do cuidado, do afeto e de garantir que o novo indivíduo possua um ambiente favorável para o seu crescimento, promovendo sua subsistência, educação, saúde, moradia e proteção até que este seja capaz de promover sua individualidade e sobreviver sozinho. Muito embora a ideia de cuidado tenha uma relação estreita com a questão de filiação, é imperioso destacar que tal tema abrange ainda as questões referentes aos idosos, que após uma longa vida promovendo o desenvolvimento de seus descendentes, chegam a um estágio da vida em que necessitam do amparo daqueles que auxiliaram, uma vez que não possuem mais as mesmas faculdades físicas e mentais. Este tema mostra-se abrangente por esta razão, visto que mesmo com a diminuição da necessidade do dever de cuidado em alguns momentos da vida, o ser humano raramente não se encontra em um estágio onde está cuidando ou recebendo cuidados de outra pessoa. Não obstante, a relevância deste assunto logo atraiu os olhares do direito, recebendo a tutela do Direito de Família. Este trabalho analisará os contornos atuais do dever de cuidar em face da nova perspectiva civil-constitucional com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, onde ocorreu a inserção de novos valores jurídicos no âmbito familiar, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana. E, assim como as relações sociais, o conceito de família se encontra em constante transformação, com o fim do ideal do núcleo formado por pai, mãe e filhos e a criação de novas entidades familiares.

Inicialmente, mostra-se necessário contextualizar o que seria a família hodiernamente. Durante séculos a visão de família seguia sempre os mesmos moldes: pai, mãe e filhos. No entanto, esse ideal patriarcal, com a paternidade diretamente ligada ao sustento da família e da maternidade ligada ao dever de cuidar da casa, do marido e dos filhos foi deixado para trás. Desta forma, não se pode mais colocar como algo inovador ou tabu a existência de casais homoafetivos, famílias em que a mãe é a fonte de subsistência, famílias decorrentes de união estável ou mesmo famílias monoparentais. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho se destacam ao demonstrar a evolução do conceito de família, afirmando que esta é “um núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes” (2011, p. 45). Esta nova perspectiva foi decorrente de uma construção social que levou mais de um século para ser aceita, e

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2 DA CLARIFICAÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA

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assim como na sociedade, coube ao direito acompanhar tal evolução. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016, p. 57) também seguem a mesma filosofia, afirmando que “a entidade familiar está vocacionada, efetivamente, a promover, em concreto, a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade”. Tal evolução foi ainda abordada nas lições de Flávio Tartuce (2016, p. 1203-1205), destacando que as “novas categorias legais valorizam o afeto, a interação social existente entre as pessoas no âmbito familiar”, ampliando o conceito de família, seguindo o entendimento que o rol constitucional familiar é exemplificativo (numerus apertus) e não taxativo (numerus clausus), firmando uma verdadeira cláusula geral de inclusão. A tutela do direito dessas novas entidades se deu, primordialmente, com o advento da Constituição Federal de 1988, representando os novos paradigmas jurídico-sociais. Nesse contexto, foram alterados todos os parâmetros referentes aos conceitos de poder e convivência familiar, sendo a Constituição Federal de 1988 um marco histórico no tocante a abordagem da família. Da mesma forma, seguindo as diretrizes constitucionais, o Código Civil de 2002, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso trouxeram inovações e a característica do dever de cuidado àqueles que, sob a ótica forense, se encontram em uma situação de desvantagem, exigindo tratamento jurídico diferenciado, seja pelo momento de desenvolvimento do seu potencial, no caso dos primeiros, ou da desvalorização enquanto ser humano, no caso dos segundos.

Finalizada uma abordagem inicial, será dado enfoque na questão central o presente trabalho: o dever de cuidar, enraizado na natureza humana e sendo desta forma uma das suas formas de expressão (WALDOW, 2006, p. 27; BOFF, 2012). O ordenamento jurídico brasileiro aborda a questão do cuidado em diversos dispositivos legais, desde a Constituição Federal de 1988 até a legislação infralegal. Deste modo, o dever de cuidar encontra-se implícito em diversas normas de proteção que serão posteriormente abordadas, ainda que direta ou indiretamente. Na Constituição Federal de 1988, o dever de cuidar tem como fundamento inicialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, positivada em seu primeiro artigo2, sendo este um dos pilares da República. De acordo com o Ministro Luís Roberto Barroso3 (2010, p. 22), uma das características deste princípio é o seu valor intrínseco a todos os seres humanos, não

2  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana. 3

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: 15. ago. 2016.

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3 DO CONTEÚDO JURÍDICO DO DEVER DE CUIDADO

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dependendo de concessão, não podendo ser retirado, transferido ou perdido. Por tal motivo, não tem como requisito nem a razão, estando presente em bebês recém-nascidos, jovens e até mesmo incapazes. Neste viés, percebe-se a importância deste princípio no desenvolvimento dos seres humanos e, por consequência, sua influência nas relações familiares. Ana Carolina Brochado (2005, p. 74-75) demonstra em suas lições que a dignidade alterou a posição das crianças e adolescentes no ordenamento jurídico pátrio, salvaguardando seus direitos e preservando seus interesses:

Baseado na dignidade, destaca-se na Constituição Federal de 1988 o artigo 2264, em seu sétimo parágrafo, o qual eleva a paternidade responsável a princípio constitucional, determinando a responsabilidade paterna e materna em fornecer aos seus descendentes o dever jurídico de sustento, guarda e educação, independente de vínculo matrimonial e respeitando o princípio do melhor interesse da criança que, mesmo não expresso constitucionalmente, encontra amparo no Estatuto da Criança e do Adolescente, abordado a seguir. No seu artigo 2275, a Constituição Federal de 1988 trouxe expressamente o dever familiar de assegurar o bem do jovem, em caráter prioritário, garantindo a este saúde, alimentação, cultura, respeito, liberdade e outros direitos essenciais, além da proteção da criança ou adolescente de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão. Desta forma, percebe-se a intenção do legislador em garantir ao jovem todas as condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento, além da sua proteção dos males que assolam a nossa sociedade. Maria Berenice Dias leciona (2015, p. 50): A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como pessoas em

4  Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 5  Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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A dignidade da pessoa humana foi sedimentada em novos pilares, os quais se acredita serem mais próprios ao novo papel da criança e do adolescente. Para melhor embasar a interpretação crítica e construtiva do poder parental, é necessário encontrar o novo “lugar” ocupado pela criança e adolescente na ordem civil-constitucional, bem como analisar como a dignidade foi para eles vertida [...] uma das maiores demonstrações do fenômeno da personalização foi o tratamento prioritário dado à criança e ao adolescente, como pessoas em desenvolvimento, e alvo da proteção integral da família, da sociedade e do Estado, cujo melhor interesse deve ser preservado a qualquer custo. Este também constitui uma verdadeira mudança epistemológica no Direito de Família [...]. Os menores além de serem dotados de dignidade, como qualquer pessoa, são também sujeitos de Direito.

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Outrossim, também merece destaque o dispositivo constitucional que trata do dever da prestação de alimentos. Apesar de terem base familiar, os alimentos são de interesse de toda a sociedade, justificando, deste modo, a existência de normas de ordem pública para a sua regulamentação. Nesse sentido, os alimentos compreendem as necessidades vitais daqueles que, em razão da sua condição de incapacidade, não conseguem prover o seu próprio sustento, impondo aos seus parentes o dever de proporcionar-lhe condições mínimas de sobrevivência, com um caráter de reciprocidade, conforme disposto no artigo 2296. Continuando a abordar a questão da reciprocidade mencionada no artigo anterior, o artigo 2307 faz menção ao dever de cuidar dos idosos, amparando aqueles que, devido à idade avançada, encontram-se em uma condição especial. No mesmo sentido a Lei nº. 10.741/2003, popularmente conhecida como Estatuto do Idoso, apresenta alguns dispositivos que abordam a necessidade de proteção especial quando existir desigualdade nas relações sociais com os demais indivíduos, em função do fator etário e das consequências provenientes desta condição. Portanto, o cuidado não se restringe apenas dos ascendentes aos descendentes, mas é obrigação de todos os membros da relação familiar. Além do Estatuto do Idoso, a Lei nº. 8.069/90, também conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, traz inúmeros dispositivos relacionados, direta ou indiretamente, ao dever de cuidar dos pais em relação aos filhos. Além destes dispositivos, é imperioso destacar o já mencionado princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, em consonância com o disposto na Constituição Federal de 1988, afirmando que todas as ações relativas a esses sujeitos devem levar em consideração aquilo que mais interesse a eles, uma vez que, nesse contexto, o maior desafio dos pais é converter seus descendentes em sujeitos de direito, que visem o melhor para a sociedade em sua vida adulta. Não menos importante, o Código Civil de 2002 também traz alguns dispositivos relativos ao dever de cuidado, seguindo os paradigmas constitucionais. Merece destaque a parte referente ao exercício do poder familiar, competindo aos pais o dever de criar e educar a sua prole8. Não obstante, caso estes deveres não sejam cumpridos, o Código Civil de 2002 traz em

6  Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 7  Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. 8  Art. 1.634: Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação.

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desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. Daí a consagração constitucional do princípio que assegura a crianças, adolescentes e jovens, com prioridade absoluta, direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Também são colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF 227).

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9  Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. 10  Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: (...) II - deixar o filho em abandono.

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seus artigos 16379 e 163810 a possibilidade de suspensão e extinção do poder familiar em virtude do abuso de autoridade, falta de cumprimento dos deveres inerentes à sua posição e abandono do menor. Importa ressaltar, ainda, a presença de tratados internacionais que versam sobre a temática. A Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1959 traz como princípio o direito ao amor e compreensão para o desenvolvimento harmonioso da personalidade do jovem. Já em 1989, A Convenção sobre o Direito da Criança, ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº. 28 de 14 de setembro de 1990 e promulgada através do Decreto nº. 99.710 de 21 de novembro de 1990, reconhece que para o pleno desenvolvimento da criança, esta deve crescer em um ambiente de felicidade, amor e compreensão. Desta forma, o cuidado, visto no direito clássico apenas de forma objetiva, compreendendo a cautela e atenção, isto é, como fundamento de responsabilização jurídica no caso de não observância do dano causado em outrem pelo agir de um indivíduo, seja ele de forma dolosa ou culposa, transforma-se e assume papel de tamanha relevância no contexto das relações entre pessoas, no sentido de afeto, solidariedade e proteção. A família aparece, então, como instrumento ou lugar privilegiado para o exercício do dever de cuidar. Portanto, com essa mudança na visão deste instituto, o dever de cuidar começou a ganhar dimensões jurídicas muito superiores às que lhe eram dadas outrora, com a existência de condições concretas para a sua realização e com o intuito do estreitamento dos laços familiares, auxiliando aqueles que necessitam não apenas em relação aos obstáculos da seara jurídica, mas em relação àqueles presentes na vida real como um todo. Em outras palavras, o cuidado deve ser visto em um sentido de maior amplitude, separando-se do ideal de reparação de danos para assumir uma postura de fornecer as condições necessárias para o desenvolvimento físico e emocional adequado dos dependentes, além do auxílio na parte final da vida daqueles que já o forneceram e, por não possuírem mais o vigor que anteriormente os caracterizava, precisam de apoio. Nesse contexto, o cuidado engloba ainda o sentimento do convívio familiar, do afeto, cumplicidade, da confiança, ou seja, de solidariedade de uns para com os outros, sendo, por consequência, uma responsabilidade humana como pessoa e cidadão. Pode ser considerado, inclusive, um interesse de caráter público, fundado na cidadania e solidariedade. A responsabilidade assume, então, uma qualidade secundária, ficando relegado aos casos onde se observa uma assimetria na relação familiar, onde se configura abuso ou alienação, ensejando a perda do poder familiar. Nas palavras de Tânia da Silva Pereira (2008, p. 309):

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O cuidado como ‘expressão humanizadora, preconizado por Vera Regina Waldow, também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família de origem(...). A autora afirma: ‘o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana’.

Nem mesmo a dissolução do vínculo matrimonial é causa que exclui o dever de cuidar dos pais em relação aos filhos. Muito embora ocorra uma mudança significativa na relação interfamiliar, os deveres parentais não são finalizados com o fim do casamento, cabendo a ambos o dever de guarda, sustento e educação, bem como os demais deveres peculiares durante a vigência da relação matrimonial, conforme estabelecido no artigo 1632 do Código Civil11. De acordo com Tartuce (2016, p. 1409), este dispositivo traz um direito à convivência familiar e, da mesma forma, um direito aos pais de terem a companhia dos filhos. Afirma ainda que reside neste artigo o fundamento jurídico necessário para a responsabilização civil por abandono afetivo. Deverá ser observado, nesse caso, o princípio do melhor interesse da criança, de forma que a situação entre seus pais não interfira em seu desenvolvimento.

Dentre as inúmeras decisões dos Tribunais Superiores acerca do Direito de Família e da relação entre pais e filhos, duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foram fundamentais e pioneiras ao utilizarem o cuidado como seu fundamento, elevando-o ao patamar de valor jurídico. A primeira delas, no Recurso Especial nº. 1.106.637/SP, faz menção ao reconhecimento do interesse do padrasto na destituição do poder familiar do genitor e, posteriormente, a postulação da pretensão de adotar sua enteada, pautado nos critérios socioafetivos e no dever de cuidar, tendo ambos os pedidos julgados procedentes. O fundamento do pedido consistiu no estabelecimento de uma forte relação afetiva entre o padrasto e a enteada, além da formação de uma verdadeira entidade familiar entre a adotanda, seu padrasto, sua mãe e a outra filha do casal. Tal entidade familiar promoveu todos os cuidados necessários e inerentes ao dever dos pais, não existindo qualquer favorecimento em relação aos filhos, seja qual for sua procedência, através do cuidado e da reciprocidade entre seus membros. Em relação ao cuidado, a Ministra preleciona: Sob essa perspectiva, o cuidado, na lição de Leonardo Boff, representa uma atitude

11

Art. 1632: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

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4 DECISÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DO DEVER DE CUIDAR

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de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana.12

Percebe-se na passagem do acórdão do julgamento a posição de destaque ocupada pelo dever de cuidar no âmbito das relações familiares, influindo inclusive nos critérios relativos à condição efetiva de paternidade, com uma preterição do critério biológico em relação ao socioafetivo em virtude da ausência desse requisito. Contudo, o caso de maior destaque em relação ao dever de cuidar foi o Recurso Especial nº. 1.159.242/SP. Esta decisão faz menção a um caso em que houve abandono afetivo e material de um pai em relação à filha durante sua infância e juventude, tendo o seu genitor se omitido da prática de ações inerentes à paternidade. A filha então entrou com uma ação pleiteando danos morais, recebendo a quantia de 200 (duzentos) mil reais de indenização. Entretanto, o que torna o caso interessante não é o valor recebido pela descendente, mas algumas passagens do voto da Ministra Andrighi, nas quais o cuidado assume caráter fundamental nas obrigações entre pais e filhos e seu efetivo reconhecimento como valor jurídico, conforme se pode verificar a seguir: Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.13

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas:

12  SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº. 1.106.637/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 01/06/2010. DJe 01/07/2010. 13

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº. 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 24/04/2012. DJe 10/05/2010.

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Desta forma, afirma a eminente Ministra que o cuidado assume status de obrigação legal, e que muito embora não se possa obrigar ninguém a amar outra pessoa, o cuidado é dever fundamental dos pais para com os filhos. Ela continua:

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presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.

Por fim, Nancy Andrighi finaliza seu voto de forma brilhante, afirmando que “Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever”. Percebe-se, portanto, a condição assumida pelo dever de cuidar nas relações familiares e a necessidade da sua valoração jurídica. Muito embora nem todas essas relações sejam permeadas por vínculos de afeto, é indispensável para o devido desenvolvimento da criança a presença de condições mínimas de educação, saúde, lazer, cultura e demais aspectos que devem ser promovidos pelos pais.

A constante mudança da realidade social interfere em todos os campos da vida em conjunto, influenciando o pensamento, o modo de agir e a aceitação de novas formas de expressão. Nesse contexto, é possível perceber a adequação do conceito de família à nova realidade, com o fim da era patriarcal e difícil conceituação do que pode ser considerado família hodiernamente. No entanto, é possível afirmar que o seio familiar é onde se encontram alguns elementos, tais como proteção, solidariedade, cumplicidade e um elemento que atualmente vem se tornando imprescindível: o dever de cuidar. Nesse diapasão, percebe-se a necessidade da adequação da realidade jurídica à realidade social, não podendo o direito fechar os olhos e se manter conservador, deixando de tutelar direitos legítimos em virtude de preconceitos ultrapassados. O reconhecimento do cuidado como valor jurídico demonstra um avanço no âmbito das relações familiares, garantindo àqueles que possuem uma situação de desvantagem, seja por estarem no primeiro estágio da vida ou por sua condição etária avançada, a possibilidade de se desenvolver de forma adequada, com saúde, educação, cultura e lazer ou aproveitar os dias restantes, após promover o cuidado dos seus descendentes durante muitos anos. Desta forma, o direito vem cada vez mais aceitando esse novo contexto em que a sociedade se encontra. Principalmente após a vigência da Constituição Federal de 1988 percebe-se a adequação da legislação pátria, reconhecendo o cuidado como valor jurídico e dando a este instituto uma qualidade de interesse público, uma vez que se fundamenta no princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Código Civil de 2002 confirmaram os novos paradigmas constitucionais, garantindo o cuidado a todos os membros da sociedade. Por fim, o Superior Tribunal de Justiça parece partilhar do mesmo entendimento, com duas decisões pioneiras elevando o cuidado à qualidade de valor jurídico. Percebe-se que muito embora não seja possível obrigar uma pessoa a amar outra, sendo tal sentimento fora do alcance da tutela jurídica, o cuidado, de caráter objetivo, pode ser considerado uma obrigação legal com fundamento constitucional, e, pois, um dever imposto a todos.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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ABSTRACT This objective of this study is the legal recognition of the valuation of duty of care and its implications for forensic scope. Therefore, discusses the concept of duty of care and its implications in the family. Later, seeks to understand the new paradigms of the Family Law with the advent of the 1988 Federal Constitution, the 2002 Civil Code and other relevant infralegal legislation on this subject. Moreover, there will be a trial analysis of the Superior Court of Justice on the subject under discussion, focusing on the Special Appeal nº. 1.159.242/SP, concluding that the duty of care is a legal obligation. Keywords: Care. Legal value. Family law. Special Appeal nº. 1.159.242/ SP.

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THE RECOGNITION OF CARE AS A LEGAL VALUE AND ITS INSERTION IN THE BRAZILIAN LAW

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Recebido 15/02/2017 Aceito 02/05/2017

REELEIÇÃO E A INSTITUIÇÃO DO “POLÍTICO PROFISSIONAL”: UMA ANÁLISE SOB O VIÉS DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS Karoline Fernandes Pinto Lopes1

RESUMO O presente trabalho analisará, à luz dos princípios republicanos, a problemática da reeleição. Esse instituto, do modo como é utilizado na prática, confronta o ideal de república democrática e fomenta o clientelismo político. Defender uma limitação na reeleição ou até mesmo o seu fim já foi objeto de diversas Propostas de Emendas Constitucionais. Assim, corrobora a presente pesquisa, pois a temporariedade dos mandatos eletivos é elemento essencial para democracia. Desenvolver-se-á essa análise a partir do uso da metodologia teórico descritiva, com consulta à doutrina e a instrumentos legais, no intuito de discutir os entraves em torno do instituto da reeleição. Palavras-chave: República. Democracia. Reeleição.

(Albert Einstein)

1 INTRODUÇÃO Os direitos políticos integram um conjunto de garantias que permitem a participação popular no processo decisório do país, seja direta ou indiretamente. Eles se dividem em duas

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Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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“O meu ideal político é a democracia, para que todo o homem seja respeitado como indivíduo e nenhum venerado.”

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modalidades de exercício. Uma delas corresponde ao que se denomina de capacidade eleitoral ativa, consubstanciada no direito de votar propriamente dito, e a outra diz respeito à capacidade eleitoral passiva, que se refere ao direito de ser votado. No ordenamento jurídico pátrio, há condições que devem ser preenchidas para que ambas as capacidades possam ser praticadas. No que concerne à elegibilidade, estando em conformidade com os requisitos exigidos, o candidato que concorre a algum cargo e vence o pleito exercerá o mandato eletivo no tempo determinado em lei, ficando a ele facultado concorrer à reeleição por um único período consecutivo, no caso dos cargos do Executivo, ou indefinidamente, quando a disputa é para o Legislativo. Embora a reeleição seja uma opção ofertada ao governante ou parlamentar já detentor de mandato eletivo, percebe-se que nos dias de hoje o instituto é usado praticamente como regra, servindo de instrumento para a manutenção das mesmas figuras no cenário político. Diante disso, é possível questionar se a reeleição mostra-se um mecanismo salutar para o desenvolvimento de um sistema político democrático. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar os maiores problemas advindos do instituto da reeleição. Para alcançar esse propósito partir-se-á de uma breve análise da democracia, inserida na forma republicana de governo, e identificar à relação desse instituto com alguns princípios republicanos, a saber, os princípios da alternância, da limitação temporal e das condições igualitárias de disputa eleitoral. Trabalha-se com a hipótese de que relação supracitada é desarmônica, sendo a reeleição insustentável no cenário democrático.

República está comumente associada a forma de governo que surgiu em contraposição à monarquia. A vitaliciedade, a hereditariedade e a irresponsabilidade tão marcantes nessa última deram espaços aos princípios da eletividade, temporariedade e responsabilidade. Conforme assevera o filósofo alemão Immanuel Kant (2011, p.24) a Lei Maior do Estado deve ser republicana. Esta deve ser instituída primeiramente segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade; como também, segundo os princípios da dependência de todos a uma única Lei comum e, por fim, todos devem ser iguais como cidadãos. Isso se apresenta como resultado da ideia do contrato originário, “[...] sobre a qual tem de estar fundada toda legislação jurídica de um povo – é a constituição republicana”. Para o supra filósofo alemão, a república difere do despotismo na forma de governar. Além disso, ressalta a necessidade de separação dos poderes executivo e legislativo. A Constituição Civil pregada por Kant (2011) seria necessária para uma convivência harmônica entre os cidadãos. Esses seriam tratados igualmente e exerceriam sua liberdade externa com certa autonomia e observância a legislação comum. Contribuindo para o estudo do republicanismo, José Alfredo de Oliveira Baracho

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2 A DEMOCRACIA COMO EXPRESSÃO DA FORMA REPUBLICANA DE GOVERNO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

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(1986, p. 6) assevera ser a República a forma de governo na qual as funções executivas e legislativas são expressões da vontade do povo, e, por isso, deve ser constituída por eleição através de mandatos transitórios para, assim, obter uma forma de governo pura. Como no ideal de república, a igualdade e a liberdade participam da essência da democracia. Conforme Gomes (2015, p.39) a liberdade denota amadurecimento de um povo, que passa a ser artífice de seu destino. É o próprio povo soberano que se governa. Do outro lado, a igualdade significa que a todos é dado participar do governo. Assim, se observa o quanto a democracia se assemelha aos máximos republicanos. A democracia consiste em um ideal amplo e vago (GOMES, 2015, p.38), além de princípio estampado na Constituição, apresenta-se como fundamento basilar das sociedades contemporâneas. É bem verdade que o conceito de democracia é algo difícil de ser desenvolvido, estando em permanente construção, tanto que como resultado dessa imprecisão muitos regimes ditatoriais se passavam por democráticos. Conforme assinala Ferreira (citado por Gomes, 2015, p.40), a democracia consiste no “governo constitucional das maiorias, que, sobre a base da liberdade e igualdade, concede às minorias o direito de representação, fiscalização e crítica parlamentar”. Pode-se depreender, dessa maneira, que a democracia pode ser entendida como uma espécie de expressão da forma republicana de governo. Todavia, cabe salientar que ela não se limita a definir uma forma de governo, na qual é assegurada a participação do povo, mas deve ser entendida em sua completude política, econômica e social. A Constituição prevê, já em seu preâmbulo, que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. A Constituição, buscou-se estampar os princípios inerentes à dignidade da pessoa humana, sendo esse o valor nuclear do Estado Democrático. Como forma de extrair de uma vez por todas as reminiscências dos governos ditatoriais, que marcaram boa parte do cenário político nacional antecedente, o constituinte originário, ao se referir, no enunciado do art. 1º, à “República Federativa do Brasil”, deixa claro, desde logo, que a forma de governo adotada é a republicana. Insta salientar que esse modelo fora ratificado pelos cidadãos brasileiros por meio de um plebiscito, em sete de setembro de 1993. A partir de então, constitui-se no Brasil uma República com configuração federal e democrática. Inserida nesse contexto, a eletividade ocupa posição basilar no sistema republicano democrático. Através do processo eleitoral, os representantes são escolhidos– pelos cidadãos – e passam a ocupar os cargos eletivos “transitoriamente”, nisso consiste o que se concebe como sistema representativo. Assim, os mandatos eletivos são legitimados pelas eleições, que tem como base o sufrágio geral, igual e direto. Nesse sistema, os votos dos cidadãos não mais se diferenciam, mas possuem o mesmo peso, caracterizando-se também por sua imediatidade, pessoalidade e periodicidade. Salienta-se que o sistema representativo pressupõe também a existência de instrumentos que possibilitem a predominância da vontade da maioria, sem esquecer o respeito às necessidades das minorias. Nesse viés, é destacado o pluripartidarismo, a liberdade de opinião, de

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2  Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. 3  Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:§ 2º Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos. (...) § 4º São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. (...) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

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reunião e de associação no processo eleitoral brasileiro. No intuito de preencher possíveis falhas no sistema de representação foram criados instrumentos que possibilitam a participação do cidadão no governo. Tais institutos buscam diminuir a distância entre os cidadãos e os representantes eleitos, quais sejam: o plebiscito, o referendo, a iniciativa legislativa que são previstos em nossa Constituição2. Por fim, salienta-se que o poder legiferante originário preocupou-se em estabelecer limites e mecanismos de defesa dos institutos republicanos. Como exemplos, elencam-se as condições e restrições ao exercício da cidadania: ao participar de um processo eleitoral, o cidadão está submetido à satisfação de condições de elegibilidade (nacionalidade brasileira; pleno exercício dos direitos políticos; alistamento eleitoral; domicílio eleitoral na circunscrição; filiação partidária, e idade mínima a depender do cargo disputado – Art.14, §3º da Constituição), assim como não pode incorrer em causas de inelegibilidade, as quais são previstas tanto na Constituição3 como em Lei Complementar 64/90 “Lei das Inelegibilidades”. A partir de uma interpretação sistemática com outros mandamentos constitucionais, pode-se dizer que a Constituição também vinculou a atuação dos ocupantes de cargo eletivo à observância dos princípios da legalidade, da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art.37 da Constituição). Dessa maneira, no exercício de suas atribuições devem ser observados tais cânones. As condutas de nossos representantes devem ser pautadas na imparcialidade e transparência, com fulcro no interesse público. Isso se mostra deveras importante na atividade representativa, tanto que condutas em dissonância com tais preceitos podem resultar em atos de improbidade administrativa, que, consequentemente, resultam na suspensão dos direitos políticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, conforme disposição expressa do art. 15, V, e do art. 37, § 4, da Constituição. Todavia, não é o intuito da presente pesquisa esvaziar o campo das condições de eletividade do candidato, nem tampouco analisar minuciosamente as condutas as quais este deve se pautar. O estudo em questão busca traçar um paralelo entre os princípios que basearam e nortearam a fundação da república brasileira com o rumo das infindáveis recandidaturas ao Poder Legislativo, tendo em vista a possibilidade de reeleição reiterada ao mandato parlamentar, assim como da reeleição ao Executivo, ainda que uma única e sucessiva vez. Para isso, torna-se necessário definir quais são esses princípios.

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3 PRINCÍPIOS REPUBLICANOS: PRINCÍPIOS DA ALTERNÂNCIA, DA LIMITAÇÃO TEMPORAL, E DAS CONDIÇÕES IGUALITÁRIAS DE DISPUTA ELEITORAL

lacunas. Contudo, essa é uma situação relativamente recente, notadamente após a promulgação da Constituição, quando os direitos fundamentais adquiriram força normativa e hierarquia superior às regras jurídicas. Nesse âmbito, encontram-se os princípios do Direito Eleitoral, normas mínimas de respeito à democracia, e como tais, devem seguir a lógica apresentada por Alexy (2008), buscando-se aplicá-los da melhor maneira possível. Nos regimes republicanos podem-se destacar um conjunto de princípios que os alicerçam e que coincidem com os princípios do direito eleitoral. Para Gomes (2015, p.37), entre os princípios fundamentais que permeiam o campo do sistema eleitoreiro, podemos citar: democracia, democracia partidária, Estado Democrático de Direito, poder soberano, republicano, federativo, sufrágio universal, legitimidade, moralidade, probidade, igualdade ou isonomia. Conforme leciona Canotilho (1992, p.349) o princípio republicano, ao lado dos princípios federativos e democráticos, configura, no dizer da doutrina, o “núcleo essencial da Constituição”. A partir dele podemos extrair os princípios da alternância, da limitação temporal e das condições igualitárias de disputa eleitoral. Conforme aponta Borja (1997, p. 1) a República é caracterizada como o regime em que há periodicidade dos mandatos e a não reeleição dos cargos do Poder Executivo, assegurando-

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Antes de adentrar na discussão acerca da temática principal, importa explicar que norma, regra e princípio não se confundem. José Jairo Gomes (2015, p. 37) elucida que a palavra princípio não é uníssona, mas sim dotada de inúmeros sentidos. Normalmente, refere-se à causa primeira, à razão, à essência ou ao motivo substancial de um fenômeno; significa, ainda, os ideais iniciais, as regras inspiradoras que presidem e alicerçam um dado conhecimento. Alexy (2008, p. 85), por sua vez, ensina que norma é a junção de regras e princípios. Tal união decorre do fato de expressarem “dever ser”, formulando permissões e proibições. Assim, ao tratar-se da distinção de regras e princípios, tem-se, na verdade, a distinção entre duas espécies de normas. Segundo o mesmo autor, as regras devem ser aplicadas na exata medida do que prescrevem, não havendo outra saída além de sua realização ou não realização. Por outro lado, princípios são mandados de otimização, ou seja, devem ser aplicados na maior medida do possível. Ademais, caracterizam-se por possuir graus diversos e cuja satisfação depende das possibilidades fáticas e jurídicas, as quais são determinadas pelos princípios e regras colidentes. Logo, o que se percebe é uma diferenciação qualitativa entre essas normas e não meramente de grau (ALEXY, 2008, p. 90-91). O ordenamento jurídico pátrio está repleto de garantias fundamentais, constitucionalmente delineadas na forma de princípios, que produzem efeitos sobre os diversos ramos do Direito, desempenhando função hegemônica em nosso sistema, e não somente integrativa de

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-se, dessa forma, a efetiva alternância do poder. Sendo assim, a renovação dos mandatos é um princípio importante na manutenção dos ideais republicanos. O Princípio da temporariedade, como do próprio nome pode se extrair, marca a importância de se limitar um lapso temporal para os mandatos. Não se pode conceber que em um sistema republicano existam mandatos que se perpetuem eternamente. Nisso reside uma das maiores críticas a reeleição indefinida para o legislativo. Por fim, cabe salientar a importância do Princípio da igualdade nas disputas eleitorais. Ao candidato já no exercício de mandato, a disputa nas urnas torna-se visivelmente mais fácil. As eleições sucessivas acabam por desequilibrar a disputa entre os candidatos, pois ao candidato eleito, o uso da máquina pública, em favor de sua reeleição, é medida facilmente verificada no cotidiano do certame eleitoral. Depreende-se, portanto, que a república tem por fundamento a eletividade, a temporalidade e alternância de pessoas no comando do Estado. Assim, tanto o chefe do Poder Executivo quanto os membros do Legislativo devem cumprir mandatos temporários. Não se pode conceber o uso de instrumentos republicanos para se perpetuar, de maneira nada disfarçada, um governo de oligarquias. Gomes (2015, p. 45) ressalta que o diferencial da república em relação à monarquia assenta-se – justamente – na periodicidade das eleições e na temporalidade do exercício do mandato, que devem ser observadas. Atualmente, no cenário político brasileiro, nos deparamos com a formação de uma nova carreira: o político profissional. A perpetuação dos políticos no congresso, em verdadeiros mandatos vitalícios, acaba por ferir tais princípios republicanos. O acesso aos cargos representativos deve ser amplo e dado de forma igualitária, justa e temporária a todos os cidadãos que anseiem em ser representantes do povo.

Entende-se por reeleição a possibilidade de se estender um novo mandato para aquele que já ocupa o cargo, ou seja, trata-se de um mandato consecutivo e renovado. Cabe salientar que a volta de um político, depois de decorrido um intervalo temporal, ao mesmo cargo de outrora não se caracteriza por reeleição. Em nosso país, em consonância com os preceitos originais das Constituições de 1891, 1934 e 1988, a reeleição do Chefe do Executivo era proibida para o pleito imediatamente seguinte, todavia no final do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso a regra foi alterada, com a aprovação da Emenda Constitucional n°16/974. A partir de então foi permitido aos ocupantes do Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal estender seu mandato por mais um período. Através dessa “inovação” foi estabelecida nova redação ao § 5º do art. 14, ao caput 4  BRASIL. Emenda à Constituição n. 16, de 1997. Dá nova redação ao § 5º do art. 14, ao caput do art. 28, ao inciso II do art. 29, ao caput do art. 77 e ao art. 82 da Constituição Federal, 04 jun. 1997. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/ Emc/emc16.htm >. Acesso em: 21 maio 2016.

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4 A INSUSTENTABILIDADE DA REELEIÇÃO NA PRÁTICA

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Art. 14 [...] § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente. Art. 28. A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado, para mandato de quatro anos, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro do ano subsequente, observado, quanto ao mais, o disposto no art. 77. Art. 29 [...] II - eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores; Art. 77. A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República realizar-se-á, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente. Art. 82. O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição. 6  Como exemplo, podemos destacar a família Alves no Rio Grande do Norte, que na figura do Henrique Alves, se manteve no poder a mais de 40 anos.

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do art. 28, ao inc. II do art. 29, ao caput do art. 77 e ao art. 82 da Constituição.5 Já em relação à reeleição parlamentar, não existe em nossa Constituição previsão que limite, regularize e nem tampouco legitime. Surgem então questionamentos: por que o instituto da reeleição é tratado diferentemente em relação ao legislativo? Se a reeleição para os parlamentares não é prevista na constituição por que continua sendo “constitucional”? Vale salientar que nem todas as repúblicas ocidentais permitem o instituto da reeleição. Nos EUA, por exemplo, conforme assinala Rocha (1999, p. 200), foi aprovado, a partir de 1990, em vinte e dois estados, o limite de mandato. Daí em diante ficou estabelecida a limitação de mandatos eletivos estaduais, com a legitimidade dada por 23 milhões de americanos que votaram - de forma expressiva - a favor dessa regularização eleitoral. Para muitos, ao ter o mandato estendido por mais um período através da reeleição, o “bom político” terá mais tempo para colocar em ação as metas traçadas em seu plano de governo. Além disso, a reeleição pode ser tida como um atestado de qualidade e aprovação em relação ao último exercício do mandatário, pois não pode se negar que a sucessão de mandatos possui seu viés democrático, haja vista a legitimidade dada ao cidadão para optar, nas urnas, pela continuação do mandato. Todavia, na prática - talvez por falta de amadurecimento e conscientização política do eleitorado – esse instituto acaba por proporcionar um resultado desvirtuado e privilegia certos candidatos. O instituto da reeleição – como já apontado no tópico anterior – fere os princípios de alternância no poder, da limitação temporal e, principalmente, da equidade nas condições de competição política, permitindo a perpetuação das elites políticas no poder6. Esse continuísmo político além de não oxigenar os quadros públicos acaba por personalizar o governo. Na maioria dos casos, a reeleição acaba por ter sua finalidade desvirtuada, sendo usada como via para os políticos se perpetuarem na vida pública. Muitos deles abandonam sua profissão de origem para passar a “viver de política”. Por exemplo: um médico que passa doze anos ocupando cargo eletivo encontraria obstáculos para retornar ao exercício profissional de outrora, pois quanto maior o tempo do afastamento, maiores dificuldades há para se reestabelecer no mercado, o que acaba por incentivar a vontade de permanência como parlamentar. Pertencer a partidos políticos grandes e organizados, já ter sido eleito (especialmente na própria Câmara dos Deputados) e possuir alta capacidade de arrecadação de recursos financeiros apresentam-se como condições determinantes para a vitória do candidato nas urnas

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7  Projeto de Lei criado através da iniciativa popular. Buscou combater a corrupção eleitoral e foi aprovado graças à forte mobilização dos brasileiros. Tornou-se marco fundamental para a democracia e para a luta contra a corrupção e a impunidade no país. Fora sancionada em 2010 e publicada em junho do mesmo ano. A lei contou com 1,3 milhão de assinaturas de cidadãos de todos os estados brasileiros e do Distrito Federal. Apresenta-se como uma ferramenta legal que visa garantir que os mandatos eletivos, executivos ou legislativos, sejam exercidos por representantes qualificados para a função, resguardando-se a probidade administrativa e prevenindo-se eventuais desvios de conduta dos mandatários eleitos. Assim, a Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) veio em boa hora, com o objetivo de garantir a probidade dos agentes políticos e a moralidade dos cargos públicos eletivos, ao elaborar uma série de proibições e normas de condutas que devem ser observadas pelo candidato a um cargo eletivo. 8  Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o §9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. 9

BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 32, de 2014. Estabelece o fim da reeleição para Presidente da República, Governadores de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos. Brasília, 29 out. 2014. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/ getPDF.asp?t=155695&tp=1>. Acesso em: 21 maio 2016.

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(CERVI e outros, 2014). O candidato que ocupa cargo político goza de privilégios que seriam inerentes ao uso da máquina pública. Tendo em vista que esse candidato está exposto na mídia, teria mais facilidade para arrecadar financiamentos e ainda pode utilizar de recursos governamentais para angariar maior contingente eleitoral. Consequentemente, terá maior vantagem na competição pelo pleito em questão. Como já salientado, alternância no poder é um princípio basilar do sistema republicano ora instituído. Além de a oxigenação dos cargos se apresentar como medida imprescindível, é através dela que existe a possibilidade de surgir novas lideranças políticas, pois no momento que determinados políticos se perpetuam nos cargos isso acaba por dificultar a descoberta de novas lideranças. Dessa maneira, faz-se necessário a existência de, no mínimo, um intervalo entre os mandatos. Pode parecer quase utopia uma mudança nesse quadro, contudo já se tem visto algumas alterações significativas na sistemática eleitoral que fomenta passos para uma mudança na estrutura da Eleição. Um exemplo disso é a Lei da Ficha Limpa7 (LC 135/10)8. Quando ainda era projeto de lei causou muita incredulidade sobre sua aprovação. No entanto, não só foi aprovado, como se destaca como um grande passo para a consolidação das nossas estruturas republicanas. A regularização da eleição tanto pode acontecer por força conjunta dos próprios políticos, como através de plebiscito. Os cidadãos poderiam decidir sobre essa questão em urnas e sua decisão vincularia o poder legislativo. Por não possuirmos em nosso sistema a figura do recall (revogação de mandatos), que consiste na destituição do político pela população, a propositura de um plebiscito para solucionar esse dilema atuaria como uma ferramenta análoga. Para alguns políticos, a maior preocupação não é fazer um bom governo, mas sim buscar condições de se reeleger. Implantar um limite para reeleição ou até mesmo retirá-la do sistema poderá resultar em um maior comprometimento do político com o plano de governo apresentado. Defender uma limitação na reeleição ou, até mesmo, o seu fim já foi objeto de diversas propostas de Emendas Constitucionais, que objetivavam dar uma nova redação ao §5° do art.14 da Constituição. Uma das manifestações nesse sentido partiu da senadora Lídice da Mata (do PSB-BA), que apresentou Proposta de Emenda Constitucional n°32/20149, visando ao fim da reeleição para os cargos do Executivo. Sua justificativa fundamenta-se na “imoral” aprovação da EC n° 16/1997, que permitiu a reeleição dos chefes do poder executivo. Desde então, todos

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10  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 35, de 2014. Altera os artigos 14, 17, 27, 28, 29, 44, 46, 57 e 82 da Constituição, estabelece a coincidência das eleições e a proibição da reeleição para cargos do Poder Executivo, dispõe sobre acesso ao fundo partidário, estabelece regras de transição e submete a referendo as alterações relativas a sistema eleitoral. Disponível em: <http://www.senado.gov. br/atividade/materia/getPDF.asp?t=155689&tp=1>. Acesso em: 21 de maio de 2016. 11  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 459, de 2005. Dá nova redação ao § 5º do art. 14 da Constituição Federal, dispondo que os Senadores, Deputados Federais, Estaduais, Distritais e Vereadores poderão ser reeleitos para um único período subsequente. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=300441>. Acesso em: 21 maio 2016. 12  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 50, de 2014. Acrescenta os incisos I e II ao § 5º, do art. 14 da Constituição, para regular a reeleição dos detentores de mandatos eletivos do Legislativo. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/ materias/-/materia/119393>. Acesso em: 21 maio 2016.

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os Presidentes da República que se candidataram e venceram nas urnas tiveram o direito de se reeleger e foram eleitos! A autora da referida PEC afirma também que a reeleição provoca desequilíbrios na disputa eleitoral, não só em razão da indevida utilização da máquina estatal pelo candidato à reeleição, como também pelo prejuízo causado à governabilidade, em razão da dedicação do titular do mandato à sua campanha eleitoral. Além disso, a senadora ainda salienta que a reeleição contribui para que ocorra a perpetuação de dinastias no poder e diminui a rotatividade dos titulares – característica basilar da democracia. No mesmo sentido, o Senador Walter Pinheiro (do PT-BA) apresentou para aprovação a PEC n° 35/201410. Em sua justificativa, o parlamentar evidenciou que a reeleição permanece como uma forma de subverter o princípio da alternância no poder, que é uma das características essenciais dos regimes democráticos e facilita o uso indevido da máquina pública em proveito próprio, por consequência influência desigualmente a disputa eleitoral. O deputado Simplício Mário (PT-PI), foi mais além, propôs através da PEC n° 459/200511 que os candidatos a senadores, deputados federais, estaduais, distritais e vereadores só poderiam ser reeleitos para um único período subsequente. Buscou, portanto, estabelecer limites para a reeleição dos detentores de mandato representativo no âmbito do poder legislativo. Para justificar sua proposta, afirmou que a legislação eleitoral brasileira ao permitir a sucessão de mandatos ininterruptos de um único cidadão, favorece o surgimento e a disseminação, por todo o país, de verdadeiros “feudos” eleitorais, inclusive nas grandes e médias cidades. Além disso, assevera que permitir que a reeleição continue corrobora para a perpetuação no poder de políticos favorecidos pelo poder econômico e pelas oligarquias partidárias, inibe a renovação da representação parlamentar e favorece o personalismo político. Nesse mesmo viés, a PEC n° 50/201412 - de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/ Amazonas) – propôs a regulação da reeleição dos detentores de mandatos eletivos do legislativo. Em sua fundamentação, a parlamentar asseverou ser um dos mais graves problemas da democracia brasileira o afastamento existente entre a sociedade e os seus representantes e atribui como um dos fatores condicionantes desse resultado a profissionalização do “político”. Com a aprovação, segundo a autora, evitar-se-ia a profissionalização da política e permitiria uma renovação dos quadros dirigentes de nosso país.

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Por fim, a PEC 113-A/201513, de autoria da Câmara dos Deputados, conhecida com a emenda da “Reforma Política” propõe mudanças no sistema eletivo brasileiro. Entre seus pontos está à proibição da reeleição para os cargos do executivo. Atualmente, o projeto está em discussão no Senado. Por falta de quórum a discussão da matéria foi suspensa em novembro de 2016. Dessa maneira, instituir uma limitação/fim da reeleição de mandatos eletivos e estabelecer igualdade na disputa dos pleitos contribui para a moral política e renova os ideais de república. Conforme acentuado por Bobbio (2002, p.59) o fenômeno do político profissional já foi identificado por diversos cientistas políticos, merecendo reprovação quase unânime. Assim, urge a necessidade de se colocar em pauta essa discussão.

A Constituição, paralelamente ao princípio republicano e da forma federativa de Estado, princípios fundamentais da organização do Estado, incorporou o Estado Democrático de Direito, conjugando o ideal democrático ao Estado de Direito, de forma a expressar não só garantias legais e jurídicas, mas também conquistas democráticas, dentre as quais se encontra o exercício ampliativo dos direitos políticos. Nesse cenário, a escolha de representantes para o país implica necessidade de condições que garantam a isonomia e mitiguem mecanismos que contribuem para a perpetuação dos mesmos políticos nos cargos eletivos, como o instituto da reeleição. Muito embora possa parecer que a possibilidade de a pessoa já detentora de mandato eletivo concorrer novamente ao mesmo cargo ou inclusive a cargo distinto, seja fomentadora de um processo de eleição sem limitação de escolhas o que ocorre, na verdade, é o reverso, uma vez que privilegia quem já está no exercício do “poder”. A democracia indireta tem por traço marcante a temporalidade no exercício das funções políticas, sendo que a reeleição desmedida fere frontalmente os princípios da alternância, da limitação temporal e das condições igualitárias de disputa eleitoral, outrora já destacados. Um dos maiores defeitos da reeleição reside no fato de o cargo acabar sendo tratado como um patrimônio pessoal do governante ou parlamentar, que, não raro, pessoaliza a gestão, descaracterizando por completo o caráter de “coisa pública” e “governo do povo”. Uma possível solução para minimizar os impactos negativos da reeleição pode ser talvez a regulação do instituto, na tentativa de estabelecer um maior comprometimento do político com o plano de governo apresentado e coibir a mera perpetuação no cargo.

13  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição nº 113a, de 2015. Reforma as instituições político-eleitorais, alterando os arts. 14, 17, 57 e 61 da Constituição Federal, e cria regra temporárias para vigorar no período de transição para o novo modelo, acrescentando o art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/ materia/124425/pdf. Acesso em:20 janeiro 2016.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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THE RE-ELECTION AND THE INSTITUTION OF THE “PROFESSIONAL POLITICIAN “: AN ANALYSIS UNDER THE BIAS OF REPUBLICAN PRINCIPLES ABSTRACT This analysis proposes to examine, according to republican principles, the issue of re-election. This fact not only goes against the ideal of a democratic republic, but also consolidates the political clientelism. Defending a limitation of re-election or even your order has been a subject of several Proposals for Constitutional Amendments. In this sense, this

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42-16.PDF?sequence=4>. Acesso em: 17 de fev. 2017.

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research is justified because the temporariness of elective mandates is inherent to democracy. Making use of a descriptive theoretical methodology, this analysis is developed in order to rekindle the fire of discussions surrounding the re-election institute. Keywords: Republic. Democracy. Re-election.

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Recebido 27/12/2017 Aceito 02/05/2017

SER OU DEVER-SER, EIS A QUESTÃO: UM RESGATE DA FENOMENOLOGIA DA JURIDICIZAÇÃO PONTEANA Magdiel Pacheco Santos1

1 INTRODUÇÃO Diante da dinamicidade contemporânea, qualquer jurista pode incorrer numa precipitação pragmática sem se permitir a devida reflexão sobre o Direito. Nesse cenário veloz, quando não ocorre a devida cautela, uma postura de vigilância epistemológica, tanto na formação do jurista quando no exercício cotidiano, é possível que reflexões cruciais sejam postas em segundo

1  Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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RESUMO O presente artigo, desenvolvido metodologicamente na perspectiva de revisão de literatura, analisou a teoria do fato jurídico na perspectiva do pensamento ponteano. Inicialmente, a reflexão partiu da compreensão da topologia dos mundos fático e jurídico, buscando, dentro da realidade cultural, alcançar o delimitado cenário do Direito e da norma jurídica. Por sua vez, contextualizada a reflexão nessa conjuntura, a análise assumiu uma perspectiva lógico-formal para compreender a norma jurídica e, por conseguinte, o fato jurídico. Por fim, a análise trouxe à tona críticas doutrinárias e ponderações quanto à incidência do fato jurídico e sua aplicação. Palavras-chave: Incidência. Norma jurídica. Juridicização. Ser. Dever-ser.

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plano, desenhando um cenário de genuína crise sobre o pensar jurídico. Nessa conjuntura de resgate, é que está contextualizada a presente reflexão sobre a fenomenologia da juridicização. O presente trabalho busca trazer à tona tal aspecto essencial para a formação de qualquer jurista, mas que tem sido omitido ou abordado de maneira superficial. Tamanha é a imprudência do cenário da formação jurídica hodierna que não é incomum causar surpresa a menção a tal objeto de estudo. Assim, questionar sobre qualquer noção elementar de fato jurídico ou de juridicização chega a soar como matéria alienígena à formação acadêmica básica. Logo, não é possível admitir que, na formação acadêmica, se busque falar em efeitos, obrigações, ações e pretensões, sem que se tenha detido momento mínimo sobre o entrelaçamento entre o mundo fático e o mundo jurídico. Entretanto, não são poucas as vozes que atestam que o ser e o dever-ser já não têm espaço na formação fordista das universidades que confundem o Direito, como ciência, com a repetição acrítica2 e padronizada do contexto concurseiro. Então, buscando a reflexão sobre aspecto elementar do pensar jurídico, o presente trabalho, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, faz o recorte na perspectiva lógico-formal ponteana e do professor Marcos Bernardes de Mello. Porém, antes, fez-se necessário a contextualização do debate no ambiente cultural e, posteriormente, no universo jurídico. Por conseguinte, estabelecida a conjuntura da reflexão, então, foi tratada a estrutura normativa na perspectiva não sancionista, buscando compreender os mecanismos que possibilitam a incidência da norma jurídica. Por fim, assentadas as noções básicas sobre norma jurídica e a incidência, foram trazidas à tona críticas e ponderações sobre a teoria do fato jurídico feitas por juristas atentos ao giro linguístico, como Paulo de Barros Carvalho, Adrualdo de Lima Catão, Andreas Joachim Krell e Torquato da Silva Castro Júnior.

Desde os questionamentos mais naturais, através do desenvolvimento de narrativas mitológicas, a mente humana sempre questionou as minúcias da aparente obviedade que é o existir. Inclusive, para Kelsen (1992), o ponto de partida dessa busca pelo saber seria a própria carência de confiança do ser humano em seus próprios sentidos, gerando certa inquietação com este mundo autocriado e auto-ordenado de conhecimento. Categorizando a compreensão da existência, conforme a terminologia adotada por Miguel Reale (2004), haveria, então, duas espécies de realidade3: realidade natural e, outra, reali-

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Sobre essa acriticidade na formação do jurista, Torquato Castro Junior (2010, p. 651) afirma sem rodeios que “todo mundo é capaz de relatar: ‘seu rei mandou dizer que ...’. Ser isso uma ciência é que é outra questão”.

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“Realidade é o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana e independentemente dela, possuindo as qualidades de alteridade e resistência em relação ao sujeito cognoscente. As dualidades mundo interior/mundo exterior e o mundo/espírito são frequentemente empregadas pelas ciências e pela filosofia quando se trata de definir o que é o real” (ARAÚJO, 2011, p. 15).

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2 DO UNIVERSO FÁTICO E DO UNIVERSO JURÍDICO: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO NECESSÁRIA

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4  Sobre a causalidade no mundo fático, para Ihering, “…nada ocorre no mundo de per se (causa sui); tudo o que acontece, i. e., toda modificação no mundo sensível, é consequência de outra precedente, sem a qual ela mesma não teria surgido. Este fato postulado por nosso pensamento e confirmado pela experiências designamos, como se sabe, por lei de causalidade” (IHERING, 1979, p. 01).

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dade humana, cultural ou histórica. Naquele primeiro âmbito, o táctil, o sensível, o observável norteia as apreensões sinestésicas do ser humano. Assim, como destaca Clarice von Oertzen (2011), tal universalidade possui característica em termos de tempo e espaço, nos moldes de objetos físicos concebidos pelo determinismo causal. Nesse aspecto, a faceta da realidade se mostra em seu estado bruto, natural, não estando sob qualquer lapidação do intelecto humano. Os seres e as coisas inanimadas se revelariam, então, sem interferência antrópica intencional, submetidos a leis naturais regidas sob a égide da causalidade4. O dinamismo da vida estaria pautado na relação de causa e efeito, tal como entre o calor e a dilatação; a morte da presa e o alimento do predador. Conforme as palavras clássicas de Giorgio Del Vecchio (1979, p. 559), “cada fenómeno, em vez de ser encarado na sua concreta singularidade, é visto nas suas relações com o fenómeno antecedente que, ao produzir-se, necessariamente o determina”. Entretanto, paralelamente a esse universo natural, haveria espaços com manifestações interventivas da inteligência e da vontade humana. Na realidade cultural ou histórica, não apenas existiriam mais coisas e homens; mas, sim, coexistiriam homens (REALE, 2004). E, justamente por existir essa convivência, passaria a ser possível exsurgir um cenário para a atuação criadora do homem, isto é, para a manifestação da cultura. Fala-se, então, de uma dimensão social do homem, onde ocorre a transcendência da subjetividade do eu e se torna possível “a polaridade do eu-tu” (COSTA, 2009, p. 27). Destarte, nessa realidade cultural, não se fala apenas na ocorrência de fenômenos naturais, em descrições da facticidade; nessa seara da existência, o agir humano se manifesta de forma inventiva, realizando inclusive juízos de valores sobre a realidade apreendida, isto é, em apreensões, análises axiológicas ou teleológicas da realidade. Aqui, nesse aspecto, “o princípio da causalidade não permite distinguir, pois, realidade e valor das coisas” (VECCHIO, 1979, p. 561). Então, fala-se não em juízo de causalidade, mas juízo de imputação. Justamente esse segundo tipo de apreciação é que norteia, dentro da dinâmica da “outridade do ser-social” (COSTA, 2009, p.27), as instituições de controle social, como a Moral, a Religião e – em posição mais destacada para a presente análise – o Direito. Então, gravitando a reflexão agora no mundo cultural, é de se observar que se passa a trabalhar com a categoria de juízo, isto é, de determinação de um predicado em relação a um determinado objeto ou ente, não havendo apenas as conexões de causa e efeito – inerentes à supramencionada realidade natural. Tal aspecto de estabelecimento de um juízo e, por conseguinte, de um paradigma axiológico caracterizam as leis culturais. Conforme Miguel Reale (2004, p.29, grifo nosso), uma lei cultural se constituiria numa “tomada de posição perante a realidade, implicando o reconhecimento da obrigatoriedade de um comportamento, temos propriamente o que se denomina regra ou norma”.

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Nesse mesmo aspecto, Norberto Bobbio (1995, p. 135) é cirúrgico ao distinguir o juízo de valor e o juízo de realidade – este último denominado por ele como juízo de fato: (…) o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas.

Nota-se que, então, somente é possível falar em juízo de valor – e, por conseguinte, em dever-ser e norma – no mundo cultural. Porém, a presente reflexão, como se tem sinalizado, está atrelada ao Direito – havendo, assim, a necessidade de recortar a realidade cultural nessa esfera. Como contextualiza Adriano Soares (2009, p. 158), “o Direito é objeto cultural, formado pela intersecção dos dois mundos: ser e dever-ser, realidade e pura idealidade”. Nessa mesma perspectiva, Eros Grau (2008, p. 20) assevera que “produto cultural, o direito é, sempre, fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal”. Logo, é imprescindível ter em mente que o universo cultural não se limita ao mundo jurídico, havendo todo um horizonte de ideias muito além do ser e do dever-ser (COSTA, 2009, p. 157):

Entretanto, não obstante a delimitação da reflexão no mundo jurídico já representar fixação relevante diante da vastidão do universo cultural, é imprescindível que o cenário reflexivo seja mais bem delineado a fim de que não se incorra em qualquer confusão na análise da juridicidade. Para tanto, faz-se necessária a recordação de que o fenômeno jurídico se desenvolve em três dimensões: dimensão política, dimensão normativa e dimensão sociológica (MELLO, 2014). Seguindo o apuro científico do professor Marcos Bernardes de Mello, cuja obra Teoria do Fato Jurídico assume uma importância paradigmática nesse trabalho, é necessário contextualizar a presente reflexão na dimensão normativa, convergindo principalmente no âmbito da Teoria Geral do Direito. Nesse instante, é válido ratificar que a distinção realizada entre universo natural e o universo jurídico está bem distante de qualquer especulação desnecessária. Na verdade, tal ponto de partida busca estabelecer, desde os primeiros passos da presente reflexão, o espaço comunicativo entre o ser e o dever-ser sob o qual se manifesta a fenomenologia da juridicização. Nesse mesmo sentido, as seguintes palavras de Pontes de Miranda (2012a, p. 59) estabelecem,

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Embora haja uma contraposição lógica entre ser e dever-ser, ontologicamente não absorvem toda a complexidade do campo de objetos possíveis. Enquanto os objetos reais se enquadram no domínio do ser, e os normativos (ética pura, p. ex.) no do deverser, os objetos ideais (os números, as relações matemáticas etc.) e os culturais (jurídicos, econômicos, históricos, éticos etc.) não se acomodam naquela redução lógica.

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com a propriedade típica, a importância de discernir o mundo jurídico do universo maior em que está inserido: Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai ocorrer. O mundo mesmo, em que vemos acontecerem os fatos, é a soma de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros vão se dar. Por isso mesmo, só se vê o fato como novum no mundo. Temos, porém, no trato do direito, de discernir o mundo jurídico e o que, no mundo, não é mundo jurídico. Por falta de atenção aos dois mundos, muitos êrros se cometem e, o que é mais grave, se priva a inteligência humana de entender, intuir e dominar o direito.

3 FENOMENOLOGIA DA JURIDICIZAÇÃO: NUANCES ENTRE O SER E O DEVER-SER Na celebrada obra Tratado de Direito Privado, em seu Tomo I, Pontes de Miranda usa, como denominação para a introdução, a chamada ‘Mundo Jurídico e Existência dos fatos jurídicos’. Tal título poderia bem sintetizar o presente momento desta reflexão, pois já houve a contextualização do universo jurídico; e, agora, a análise transita especificamente para a delimitação conceitual dos fatos jurídicos, isto é, sua existência e seus elementos. Posteriormente, quando já estiverem assentadas as compreensões básicas sobre o fato jurídico, serão trazidas à tona as divergências e os debates acadêmicos que entremeiam a incidência e a aplicação jurídica.

Inicialmente, como já se tem destacado desde as primeiras ideias nesse trabalho, o universo jurídico tem a sua amplitude em conformidade com as dimensões do espaço relevante para o ser humano. Como bem afirma Tercio Sampaio Ferraz Junior (2012, p. 01), “…o direito é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana”. Logo, o estudo da gênese do fenômeno jurídico, isto é, da leitura do dever-ser sobre o ser5, tem o lócus de abrangência os próprios limites existenciais do Direito. Como afirma brilhantemente Norberto Bobbio (2001), chegamos a acreditar que estamos livres, mas, na verdade, estamos envoltos numa rede espessa de regras de conduta que abrangem nossa existência desde o nascimento até a morte. De todo modo, “a maior parte destas regras já se tornaram tão habituais que não apercebemos mais da sua presença” (BOBBIO, 2001, p. 24). Desta feita, como se tem tratado, os fatos da vida são encapados pela juridicidade,

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“Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito – por exemplo, uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. –, poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito” (KELSEN, 2006, p. 02).

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3.1 Norma e Fato Jurídico

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apresentando-se como releitura normativa e jurídica da existência sensível e cultural. Entretanto, estabelecida a abrangência existencial do fenômeno jurídico, resta ainda em aberto a perquirição que tem norteado a presente reflexão: o que vincularia o ser ao dever-ser? Isto é, como se daria esse processo de juridicização da vida? No contexto epistemológico da Teoria Geral do Direito, a resposta para tais questionamentos perpassa, necessariamente, pela compreensão da norma jurídica e a dinâmica da sua incidência. Dentre os aspectos que distinguem o Direito dos demais processos de adaptação social, a força de incidência se mostra como característica duradoura, por corporificar a coercitividade no impacto do ordenamento jurídico na busca pela estabilidade social (ARAÚJO, 2011). Como se tem indicado, o mundo do Direito é formado por fatos jurídicos. Entretanto, a compreensão dessa estrutura jurídica está intimamente relacionada ao discernimento da própria estrutura e do exercício da norma jurídica; pois, como será visto detalhadamente, os fatos jurídicos resultam da incidência da norma jurídica. Seguindo a aspiração desta reflexão acadêmica, elenca-se a definição do professor Marcos Bernardes de Mello (2014, p. 52) como conceito paradigmático de norma jurídica a fim de serem destrinchados alguns aspectos cruciais de sua estrutura normativa:

Como se pode observar no ensino paradigmático do mestre alagoano, a completude de uma norma jurídica está atrelada, necessariamente, a descrição do suporte fático e a prescrição dos efeitos jurídicos a serem atribuídos a esse fato jurídico6. Doutro modo, como bem alerta o autor em comento (MELLO, 2014), determinada proposição sem o suporte fático e sem o preceito poder-se-ia até se mostrar como uma proposição linguística completa, mas não teria sentido algum na perspectiva lógico-jurídica. Então, na perspectiva lógico-formal, a norma jurídica, como proposição hipotética, poderia ser expressa, pela linguagem da lógica tradicional – através do processo denominado formalização (VILANOVA, 2010): ‘se SF então deve ser P’ – onde o antecedente (ou hipótese) seria representado pelo suporte fático (SF) e o consequente (ou tese) pelo preceito (P), estando tais elementos conectados por um modal deôntico. Assim, seguindo tal perspectiva, tem-se como elementos da estrutura da norma jurídica: o suporte fático e o preceito. Conforme ensino de Pontes de Miranda (2012a, p.77), o suporte fático – ou, no original alemão, Tatbestand – da regra jurídica seria “aquêle fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sôbre o qual a regra jurídica índice”; sendo, na estrutura lógica da proposição normativa (p-nor-

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É de se destacar, entretanto, que tal posição, adotada explicitamente pelo magistério do professor Marcos Bernardes de Mello, está atrelada a perspectiva não sancionista da norma jurídica. Assim, para tal posição, adotada também por Pontes de Miranda, a norma jurídica se apresentaria como proposição completa, limitando-se sua incompletude apenas a ausência de suporte fático ou ao preceito e não à previsão (ou carência) de sanção.

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[…] a norma jurídica constitui uma proposição através da qual se estabelece que, ocorrendo determinado fato ou conjunto de fatos (= suporte fáctico) a ele devem se atribuídas certas consequências no plano do relacionamento intersubjetivo (= efeitos jurídicos).

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7  Sobre a função classificadora, Lourival Vilanova (2010, p. 60, grifo nosso) faz a seguinte análise perspicaz: “O que a norma ou o Direito positivo podem fazer, livremente, é selecionar as hipóteses e selecionar as teses ou consequências. É questão fora da lógica, extralógica, optar pelo antecedente A’ ou A’’ ou A’’’, bem como escolher para consequência C’ ou C’’ ou C’’’. Tudo depende de atos de valoração, sociologicamente situados e axiologicamente orientados. Mas, desde que foi posta normativamente a relação-de-implicação, daí em diante entra-se na órbita das relações lógico-formais, no universo do ser do Direito: o logos como parte da ontologia do Direito”.

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mativa), o antecedente. Assim, nesse aspecto, a norma jurídica delimita o cenário fático sob o qual incidirá. Dessa maneira, como se pode perceber, não há limites prévios que delimitem os fatos juridicizáveis, isto é, fatos do mundo que podem ser atraídos para o universo jurídico ou, ainda, “suscetíveis de entrada no mundo jurídico” (MIRANDA, 2012a, p. 82). Assim, tem-se a manifestação da função classificadora da regra jurídica7, que “distribui os fatos do mundo em fatos relevantes e fatos irrelevantes para o direito, em fatos jurídicos e fatos ajurídicos” (MIRANDA, 2012a, p. 77) – o que é denominado no Tratado de Direito Privado como “esquematização do mundo físico” (2012a, p. 79). Logo, compreende-se, de forma patente, que o suporte fático ( fattispecie ou supuesto de hecho) é conceito pertencente ao universo fático, ao mundo das coisas; podendo falar em sua inserção no universo jurídico, como será visto, somente a partir da juridicização (aspecto que se excetua, como será aprofundado, quando se tratar de outro fato jurídico como suporte fático). Como esclarece o ensino ponteano, “o suporte fáctico ainda está no mundo fáctico; a regra jurídica colore-o, fazendo-o entrar no mundo jurídico” (MIRANDA, 2012a, p. 78). Entretanto, como bem alerta Marcos Bernardes de Mello, a terminologia suporte fático não tem conotação uníssona. Na verdade, conforme o momento no processo da juridicização, o suporte fático pode conotar: ou a descrição do fato relevante, como parte do enunciado lógico, condicionante para a incidência da norma jurídica; ou a designação propriamente dita do fato quando já concretizado no mundo físico. Àquela primeira distinção, classifica-se como suporte fático hipotético ou abstrato – já que sua existência está limitada à previsão hipotética esculpida na norma. Por sua vez, suporte fático concreto designa os fatos previstos como hipótese que se tornaram realidade no mundo fático (MELLO, 2014). Sobre o suporte fático ainda, é pertinente destacar que, diferentemente do que se pode inferir à primeira vista, a abrangência dessa regulação jurídica não se limita aos fatos da vida, mas pode abarcar também fatos jurídicos e efeitos jurídicos. Assim, ainda que, pela didática, se tem utilizado o universo fático como o campo de incidência da juridicização, não há óbice algum que o fato do mundo, quando já também jurídico, não se constitua elemento de suporte fático (MIRANDA, 2012a). Como assevera peremptoriamente Marcos Bernardes (2014, p. 87), “há hipóteses em que são os próprios fatos jurídicos que constituem o suporte fáctico de outros fatos jurídicos”. E.g., a personalidade jurídica das pessoas jurídicas de direito privado (art. 45, do Código Civil) é elemento dos suportes fáticos dos negócios jurídicos que tal pessoa jurídica realiza. Ademais, aprofundando-se na análise cirúrgica do suporte fático, o ensino de Marcos Bernardes de Mello destrincha essa parte estrutural da norma jurídica em elementos subjetivos e objetivos; elementos nucleares; elementos complementares e integrativos. Em primeiro lugar, o elemento subjetivo concretizaria a necessária “referibilidade a

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O fato jurídico provém do mundo fáctico, porém nem tudo que o compunha entra, sempre, no mundo jurídico. À entrada no mundo do direito, selecionam-se os fatos que entram. É o mesmo dizer-se que à soma dos elementos do que, no mundo fáctico,

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Lourival Vilanova esclarece que se a norma prescreve o que é factualmente impossível, que careça de sentido, ou prescreve o que é factualmente necessário, tal norma teria sentido sintático, mas não sentido semântico. Em outras palavras, “[…]enunciados [destituídos de sentido semântico] são exemplos bem construídos, com as partes da oração e as partes sintáticas da estrutura lógica em congruência com os modelos. Mas se evitam o sem-sentido formal representam contra-senso factual” (VILANOVA, 2010, p. 38, grifo nosso) .

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sujeitos de direito” (MELLO, 2014, p. 90), isto é, a que sujeito de direito a eficácia jurídica afetaria. Como esclarece Pontes de Miranda (2012a, p. 83), “os fatos juridicizáveis, estão, sempre, ligados a alguma pessoa, ou porque digam respeito a ela (…), ou porque atinjam a sua esfera jurídica, ou se refiram a seu modo de atuar”. O elemento objetivo, por sua vez, são os bens da vida que podem integrar os suportes fáticos. A possibilidade8 de tal integração jurídica deve ser tanto de natureza jurídica – isto é, não deve existir norma jurídica que pré-exclua o liame jurídico – quanto pela própria natureza atribuível ou apropriável por algum sujeito de direito – em outras palavras, não há que se falar no Sol ou espaço cósmico como elemento objetivo de um suporte fático. Em seu turno, os elementos nucleares, elementos complementares e elementos integrativos do suporte fático também merecem ser compreendidos individualmente. De forma contrastante, os elementos complementares não estão atrelados à existência do fato jurídico – como o são os elementos nucleares e completantes do núcleo –, mas, sim, buscam complementar o fato jurídico. Tais elementos somente estão presentes nos negócios jurídicos, pois, na realidade, se apresentam como pressupostos de validade ou eficácia dos negócios jurídicos. Desta feita, não há que se falar no preenchimento, e.g., da capacidade de agir ou da perfeição da manifestação da vontade quanto ao fato jurídico no sentido restrito, ato-fato jurídico ou de fato ilícito sentido amplo. Noutro ponto, os elementos integrativos estão atrelados especificamente apenas ao plano da eficácia dos fatos jurídicos, isto é, “atuam no sentido de que se irradie certo efeito que se adiciona à eficácia normal do negócio jurídico” (MELLO, 2014, p. 97). Exemplo clássico de elemento integrativo é o registro, nos negócios jurídicos referentes aos direitos reais sobre imóveis, no Registro de Imóveis (art. 1.227, do Código Civil). Em síntese, pode-se afirmar que os elementos nucleares (e os completantes), os elementos complementares e os elementos integrativos são facilmente identificados pelas consequências de suas ausências. Enquanto as ausências dos elementos nucleares impedem a formação do fato jurídico, as carências dos elementos complementares e os integrativos afetam a eficiência do fato jurídico. Em outras palavras, a falta do elemento nuclear afeta a existência do fato jurídico, enquanto a lacuna de elemento complementar ou integrativo acarreta a ineficácia ou a invalidade do fato jurídico. Pontes de Miranda (2012b, p. 253), enlaçando as reflexões feitas até o presente momento, assim desenhou a entrada no mundo jurídico dissecando o suporte fático da regra jurídica:

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Avançando, como já fora destacado, na perspectiva não sancionista adotada, além do suporte fático, o preceito (ou disposição) é um dos elementos estruturais da norma jurídica. O preceito, ou disposição, “constitui a parte da norma jurídica em que são prescritos os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos”, ou ainda, em outras palavras, “toda e qualquer consequência jurídica que se atribua a um fato jurídico constitui eficácia jurídica, objeto, portanto de um preceito” (MELLO, 2014, p. 111). Nessa parte da estrutura normativa, há a previsão quanto a eficácia jurídica, isto é, a eficácia do fato jurídico. Seguindo a ordem da presente reflexão, somente é possível falar em eficácia do fato jurídico quando já ocorreu a eficácia normativa ou legal, ou seja, quando a norma já incidiu sobre o suporte fático concreto. Assim, não é possível falar em eficácia jurídica sem que haja eficácia normativa (GONÇALVES, 2001). Porém, é plausível que haja a eficácia normativa, isto é, que exista o fato jurídico sem que haja eficácia jurídica, sem gerar efeitos. Isto ocorre, como será tratado, porque a norma se estrutura por um modal de natureza deôntica, de uma relação não necessária; uma relação que possibilita a ocorrência da hipótese de incidência, mas não a ocorrência do fato do preceito. Logo, para Pontes de Miranda, “é a eficácia legal de que decorre o fato jurídico, enquanto a eficácia jurídica assinala as consequências do fato jurídico já existente” (KRELL, 2010, p. 84). Passada a compreensão sobre o suporte fático e o preceito, ainda sobre a estrutura formal do p-normativo, é necessário, ligeiramente9, falar sobre o modal deôntico. Lourival Vilanova (2010, p. 58), referência obrigatória em qualquer abordagem lógico-formal do Direito, esclarece que o deôntico “não reside na hipótese como tal, mas no vínculo entre a hipótese e a tese. Deve-ser o vínculo implicacional. Em outro giro: deve-ser a implicação entre a hipótese e a tese”. Logo, resgatando a dicotomia inicial entre universo fático e universo jurídico, a proposição normativa ou deôntica possui o conectivo – ou functor – dever-ser que estrutura a relação formal da implicação – corporificando, assim, juízo de imputação. Doutro lado, no universo fático, a proposição – da espécie apofântica, isto é, de conteúdo descritivo – se apresenta na estrutura sintática ‘S é P’, onde um modal alético, o conectivo apofântico ‘é’ implica o juízo de causalidade na proposição (VILANOVA, 2010). Por fim, é necessário esclarecer que, diferentemente do que pode ser compreendido à primeira vista, o fato jurídico não se resume a uma específica norma – sobretudo quando o

9

Diante da dimensão e do objetivo da presente reflexão, a análise do modal deôntico não pode assumir uma perspectiva exaustiva, adentrando nos meandros de sua função epistemológica, sua metalinguagem, as categorias modais, os modos alético e deôntico, etc. Para apreciação madura e aprofundada sobre a matéria, cf. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2010.

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teríamos como fato, ou como complexo de fatos, nem sempre corresponde suporte fáctico de regra jurídica: no dizer o que é que cabe no suporte fáctico da regra jurídica, ou, melhor, no que recebe a sua impressão, a sua incidência, a regra jurídica discrimina o que há de entrar e, pois, por omissão, o que não pode entrar.

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legislador opta pela técnica da linguagem elíptica –, mas os fatos jurídicos devem ser compreendidos de forma integrada. Logo, a análise dos elementos do fato jurídico, já tratados, isto é, a busca pelo suporte fático e pelo preceito não deve se limitar a leitura isolada e restrita de uma norma jurídica individual. Como bem alerta Adriano Soares da Costa (2009, p. 177), a complexidade do Direito está relacionada justamente com a postura multidimensional e global que o jurista deve ter diante do universo jurídico, onde o Direito deve ser compreendido “como um todo constituído por diversas partes relacionadas, as quais não se confundem com usa soma, nem sozinhas contêm todas as propriedades do todo objetal”. 3.2 Fenomenologia da juridicização: distinguindo incidência e aplicação

Composto o seu suporte fáctico suficiente, a norma jurídica incide, decorrendo, daí a sua juridicização. A incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico considerado relevante para ingressar no mundo jurídico. Somente depois de gerado o fato jurídico, por força da incidência é que se poderá tratar de situações jurídica e de todas as demais categorias de eficácia jurídica.

Por sua vez, utilizando-se de uma metáfora com o processo de sublimação na estamparia, Pontes de Miranda (2012a, p. 65) esclarece o fenômeno da incidência jurídica, isto é, a

10  “O mundo jurídico, está claro, se vale dos fatos da vida e, mais que isso, é constituído por eles próprios; resulta da atuação (incidência) da norma jurídica sobre os fatos, juridicizando-os, e não representa, por isso, uma decorrência natural dos fatos” (MELLO, 2014, p. 42).

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Ultrapassada a análise estrutural da norma jurídica, destrinchando aspectos referentes ao suporte fático e ao preceito, chega-se, então, ao momento no qual se justifica a teoria do fato jurídico: a incidência da norma jurídica. Desde os primeiros passos da presente reflexão, tem-se afirmado a centralidade do fato jurídico no universo jurídico. Mas o que justificaria esse caráter primordial do fato jurídico? Para teoria ponteana, e para o ensino de Marcos Bernardes de Mello10, a incidência da norma jurídica seria o fator justificador dessa primordialidade do fato jurídico, pois a incidência jurídica se apresenta como etapa inafastável de qualquer existir jurídico. Ou seja, “a incidência da regra jurídica é que torna jurídicos os bens da vida” (MIRANDA, 2012a, p. 20). A incidência da regra jurídica ocorre com a suficiência do suporte fático concreto. Isto é, realizando-se no universo sensível os elementos fáticos delineados hipoteticamente, a norma jurídica incide e, por conseguinte, juridiciza esse recorte fático da existência. Na verdade, como destaca Edvaldo Sapia (2001), a ideia de suficiência (e, de forma antônima, de deficiência) do suporte fático traz à tona a concreção (ou não) dos elementos estruturais do suporte fático já tratados – quais sejam: elementos nucleares e completantes do núcleo. Na obra Teoria do Fato Jurídico, assim está definida, com maestria, a incidência da norma jurídica (MELLO, 2014, p. 116):

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fenomenologia da juridicização: Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que regras jurídicas – isto é, normas abstratas – incidam sôbre êles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendoos ‘jurídicos’. Algo como a prancha da máquina de impressão, incidindo sôbre fatos que se passam no mundo […].

Transferida para a área diferenciada dos conceitos legais abertos e plurissignificativos do moderno Estado intervencionista, dotados de um teor altamente político e de uma baixa densidade mandamental, a própria metáfora da ‘incidência no plano dos pensamentos’ perde sentido, visto que resta duvidoso ser possível falar de uma ‘incidência infalível’ anterior à aplicação concreta dessas normas pelos órgãos estatais competentes.

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Como se verá, enquanto no capítulo ‘Uma visão pragmática da noção de fato no direito: o caráter interpretativo do fato jurídico’, presente na obra coletiva Revisitando a teoria do fato jurídico, de 2010, Adrualdo de Lima Catão se revela como um dos críticos mais contumazes à teoria ponteana, em obra posterior, já em 2013, esse mesmo autores passa a harmonizar a fenomenologia da juridicização com a problemática da linguagem, reafirmando a acuidade do pensamento de Pontes de Miranda.

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Outra proposta de leitura do pensamento ponteano que merece alusão é a perspectiva da semiótica jurídica. Nessa conjuntura, a obra ‘Incidência Jurídica: teoria e crítica’, da professora Clarice von Oertzen de Araújo, se mostra como leitura basilar onde elementos conceituais da teoria peirceana e sua tríade semiótica trazem uma apreciação singular da incidência jurídica e do pensamento de Pontes de Miranda.

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Na verdade, não obstante ser inolvidável a contribuição da fenomenologia da juridicização para a história da doutrina jurídica no Brasil, atualmente, doutrinadores de formação acadêmica lapidar – como Paulo de Barros Carvalho, Adrualdo de Lima Catão11, Andreas Joachim Krell e Torquato da Silva Castro Júnior – levantam críticas e ponderações12 aos ensinos de Pontes de Miranda e, por conseguinte, do professor Marcos Bernardes de Mello. É possível afirmar, apesar das singularidades, que essas vozes críticas à ideia ponteana da incidência convergem num paradigma filosófico para a construção de suas apreciações: a linguagem. Nessa perspectiva, para que o destinatário da norma alcance a mensagem normativa, isto é, alcance as “expressões irredutíveis de manifestação do deôntico” (CARVALHO, 2015, p. 44), faz-se imprescindível adentrar na seara do jogo da linguagem. Como contrapõe Adrualdo de Lima Catão (2010), na teoria ponteana, persistiria uma compreensão pré-linguística da fenomenologia da juridicização, não havendo, assim, qualquer espaço para a construção interpretativa tanto do fato puro quanto para o fato já qualificado como jurídico. Assim, ainda para Catão (2010, p. 19 e 20), o pensamento tradicional afirmaria a apreensão dos fatos (tanto puro quanto jurídico) como mera “ocorrência lógica decorrente do conhecimento humano do fato puro correspondente ao suporte fático abstrato” – e o autor ainda questiona – “o conceito de subordinação jurídica existe fora de um contexto linguístico próprio (jogo de linguagem)?”. Na mesma perspectiva, mas centralizando a análise com campo do Direito Constitucional e Administrativo contemporâneo, Andreas Joachim Krell (2010, p. 79) contextualiza a teoria do fato jurídico ponteana como uma teoria eminentemente pré-hermenêutica e assevera, de forma categórica, o seguinte julgamento:

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Por sua vez, como mais um pensador atento ao giro linguístico (linguistic turn) e às lições de Wittgenstein, Torquato da Silva Castro Júnior assevera que a teoria do fato jurídico seria marcadamente uma construção de base metafórica muito forte, onde o mundo jurídico ponteano seria o espaço imaginário ideal para o desenvolvimento da incidência da norma jurídica. Entretanto, no ponto de vista pragmático, tal realidade teórica, para Torquato Junior (2010, p. 646 e 648, grifo nosso), não seria aceitável, já que: Para Pontes de Miranda, ‘o direito’ já existiria enquanto tal, antes mesmo do momento da sua ‘aplicação. […] As regras e o sistema jurídico existiriam nesse modelo como existem os sistemas lógicos, numa esfera de realidade ideal própria, mas não menos verdadeira e real que o mundo dos fatos. […] em Pontes de Miranda, o “revestimento” de juridicidade que a regra de direito empresta ao fato pela incidência decorre instantaneamente, e como se independesse da intervenção humana, da coexistência num determinado tempo. Assim ele encobre toda a problemática da interpretação dos fatos e das regras.

É pela incidência, no mundo do pensamento, que se dá a objetivação conceptual, simbólica do processo de juridicização; é pela aplicação da norma jurídica que incidiu que se dá a objetivação social na concretude da vida. […] A incidência da lei independe da sua aplicação.

Logo, para Adriano Soares da Costa, as críticas fundamentadas na linguagem, sobretudo o realismo linguístico de Paulo de Barros Carvalho, acabariam por restringir o universo

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Logo, agrupando as críticas, é possível vislumbrar que, para tais críticos, “as normas não incidem por força própria” e “a percussão da norma pressupõe relato em linguagem própria: é a linguagem do direito constituindo a realidade jurídica” (CARVALHO, 2015, p. 35 e 36). Portanto, diferentemente da estrutura de pensar de Pontes de Miranda, não seria possível falar na topologia de mundos (CASTRO JUNIOR, 2010) – fático e jurídico –, pois não haveria questões puramente de fato. Dessa maneira, persistiria um problema grave ao transformar a compreensão formalidade ponteana da incidência lógica da norma jurídica deixando de lado o aspecto interpretativo do fato jurídico, já que a descrição normativa dos fatos são valorações invariavelmente inseridas no jogo da linguagem (CATÃO, 2010). Diante das críticas, como defensor da teoria ponteana, Adriano Soares da Costa se desdobrou especificamente em relação às ideias de Paulo de Barros Carvalho, mas se pode utilizar como réplica às apreciações que gravitam em torno do giro linguístico. Para Adriano Costa (2009, p. 53 e 54), o equívoco de tais críticas ocorre com a confusão entre o conceito de incidência e de aplicação da norma jurídica, que seriam aspectos inequívocos em Pontes de Miranda:

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jurídico à manifestação de uma linguagem competente por um ato de autoridade13. Porém, para tal réplica, a confusão entre incidência e aplicação excluiria da realidade jurídica as hipóteses em que os homens se submetem espontaneamente aos ditames estatais (COSTA, 2009, p. 55, grifo nosso): Grosso modo, apenas seria Direito o que as autoridades dizem que é, no ato de aplicação da norma. Essa amputação do fenômeno jurídico […] é um reducionismo injustificado, que retira do Direito sua função de processo de adaptação social. […] Se a pessoa pára o carro quando o sinal está vermelho, atende à norma jurídica que determina ser essa a conduta devida; se o ultrapassa, sua conduta é ilícita. Há uma significação social, meta-individual, no comportamento dessa pessoa: pouco importa saibamos que tenha ocorrido, ou que tenha sido na calda da noite. A significação é objetiva, e adjetiva esse fato como jurídico pela causalidade da incidência normativa.

Em seu turno, a obra de Marcos Bernardes de Mello que trata plano da existência do fato jurídico reserva tópico específico para tratar das divergências doutrinárias em torno da teoria de Pontes de Miranda. Porém, as contrarrazões do professor alagoano se limitam a rebater especificamente as críticas de Andreas Krell e de Paulo de Barros Carvalho, não entrando, com profundidade, no mérito da crítica quanto ao giro linguístico. Na verdade, Marcos Bernardes de Mello (2014, p. 132, grifo nosso), basicamente, se atém a delinear a distinção entre aplicação e incidência:

Ademais, em outro ponto, Marcos Bernardes destaca duas contradições no discurso carvalheano (2014, p. 134):

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Nesse trecho, Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 35, grifo nosso) centraliza a participação da autoridade na aplicação/incidência da norma jurídica: “[…] é importante dizer que não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo subsunção e promovendo a aplicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica, requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e abstratas ou individuais e concretas e, com isso, imprimindo positividade ao sistema, que dizer, impulsionando-o das normas superiores às regras de inferior hierarquia, até atingir o nível máximo de motivação das consciências e, dessa forma, tentando mexer na direção axiológica do comportamento intersubjetivo […]”.

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Se a norma jurídica NJ’, abstratamente, define os fatos ABC como suporte fáctico do fato jurídico FJ¹, ao qual imputa o efeito jurídico E¹, e no mundo aquele suporte fáctico (ABC) se concretiza, a norma NJ¹ incide sobre ele, criando o fato jurídico respectivo (FJ¹), o qual poderá gerar a eficácia E¹. Esse processo ocorre na dimensão dogmática (normativa) do direito, portanto, em plano lógico, de valência, não da realidade fáctica social. Porque independe de ato humano, pois se dá à simples concreção do suporte fáctico suficiente, a incidência é infalível e sua veracidade não necessita ser comprovada, fisicamente, em face da impossibilidade de ser percebida por nossos sentidos. A aplicação da norma jurídica, diferentemente, é ato humano que se realiza no ambiente social, com a finalidade precípua de efetivar aquela eficácia jurídica prevista, abstratamente, na forma incidente, de modo que, necessariamente, é sempre posterius em relação à incidência.

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Na concepção de Paulo de Barros Carvalho, a ideia de que a norma somente existe quando criada no ato de aplicação pelo intérprete inverte, totalmente, os termos do processo segundo o qual se desenvolve o fenômeno jurídico, pois: (i) termina pelo começo, se comparado com o modelo ponteano, uma vez que a incidência ocorreria ao final do processo; (ii) a norma jurídica somente passa a existir após já concretizada a situação fática que ela regula, deixando sem explicação convincente como uma norma posterior pode ser referida a um fato anterior e como se pode exigir do indivíduo segundo normas que não tem como conhecer, porque ainda não foram criadas.

Contudo, na obra Teoria do fato jurídico: uma abordagem lógica da decisão judicial, o mesmo doutrinador Adrualdo de Lima Catão que fora listado como um dos críticos à teoria ponteana, traz ponderações interessantes que buscam harmonizar a perspectiva jurídico-formal da fenomenologia da juridicização e a problemática de linguagem14. Segundo Adrualdo Catão (2013), solução do problema estaria na compreensão de que incidência não estaria limitada a constatação do sujeito cognoscente da ocorrência do suporte fático concreto. Mas, sim, na teoria ponteana, a incidência capta a ocorrência dos fatos no mundo como uma pressuposição lógica. Logo, “a incidência, portanto, não pode ser negada. É fenômeno lógico, que se passa no pensamento, mas não é simplesmente subjetiva. Sendo fenômeno lógico, não pode ser afastada” (CATÃO, 2013, p. 60). Assim, Adrualdo de Lima Catão, em profunda análise do sociologismo ponteano, sustenta a compreensão da fenomenologia da juridicização no devido lugar epistemológico de formalização do Direito – compreensão esta que se coadunaria com o pensamento de Pontes de Miranda do Direito como processo social de adaptação (CATÃO, 2013, p. 35):

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após as reflexões sobre a teoria do fato jurídico, resta necessário gizar a envergadura dessa teoria – e, logicamente, do pensamento de Pontes de Miranda – e a necessidade de maior

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Na obra Teoria do fato jurídico, Adrualdo Catão (2013, p. 78 e 81) chega, no tópico em que problematiza o relativismo kelseniano, a se contrapor ao pensamento de Paulo de Barros Carvalho, fazendo crítica acentuada: “Segundo essa visão [a visão kelseniana também defendida por Paulo de Barros Carvalho], fatos não existem em si mesmos. O que existem são descrições linguísticas sobre eventos contingentes e tais descrições são as únicas coisas que estão ao alcance do homem. […] Esse discurso, que leva a afirmações completamente destoadas do senso comum, decorre da radicalização da especificidade da linguagem jurídica, que seria a única competente para enunciar fatos jurídicos, e do não reconhecimento de que, mesmo diante da complexidade pragmática da decisão judicial, não podemos abrir mão da noção de verdade, que aparece na forma da noção de incidência normativa”.

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[…] é possível afastar a identificação da Teoria do Fato Jurídico com uma teoria interpretativa simplista do Direito, ou mesmo retorno a teses do positivismo legalista, como a ideia de a subsunção servir como método de aplicação do Direito. Na verdade, a separação entre incidência e aplicação do Direito. Na verdade, a separação entre incidência e aplicação do Direito vai colocar a Teoria do Fato Jurídico em seu devido lugar: o de servir como formalização do Direito, e não como uma teoria da interpretação.

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perscrutação desse objeto de estudo. Como se notou, certas críticas e ponderações ainda não foram exaustivamente respondidas pelos defensores da teoria ponteana do fato jurídico. As provocações fundamentadas no giro linguístico, bem como do caráter metafórico do pensar ponteano, merecem um debruçamento mais exaustivo, não devendo persistir silêncio em relação às novas perquirições. Na verdade, a problemática da linguagem e dos pensamentos wittgensteinianos se mostra como um oceano de densidade filosófica que, pela dimensão da presente reflexão, sequer teve os pontos elementares sinalizados. Nesse aspecto, a fim de que se tenha uma análise mais pragmática da fenomenologia da juridicização, é imprescindível uma averiguação mais aprofundada nos parâmetros filosóficos que estão presentes na filosofia contemporânea. Ademais, é de se ressaltar ainda que também existem perspectivas de análise do fato jurídico que, diante do foco jurídico-formal desta reflexão, sequer puderam ser problematizadas – como, por exemplo, a teoria do fato jurídico da perspectiva da semiótica. Logo, tem-se que, associada à própria densidade do pensamento ponteano, a possibilidade de estudos noutras perspectivas, como o da semiótica peirceana, ratifica a compreensão final da necessidade de maior debruçamento sobre a fenomenologia da juridicização, inclusive buscando gerar mais espaço na cultura jurídica e, por conseguinte, na formação dos novos juristas. Ao fim e ao cabo, acaba-se por compreender o presente trabalho como um momento de contato preliminar à teoria do fato jurídico – obtendo êxito no objetivo de resgate –, sendo possível vislumbrar um objeto de estudo interessantíssimo para reflexões e pesquisas mais aprofundadas e robustas. Na verdade, restou patente um convite a um debruçamento no pensar ponteano, buscando transcender a conjuntura de autor do Tratado de Direito Privado, alçando as provocações epistemológicas e metajurídicas desse pensador pernambucano. Logo, a fenomenologia da juridicização é uma seara da teoria geral do Direito que merece, pela sua importância no imaginário jurídico brasileiro, continuamente ser revisitada: seja para compreender o átomo do universo jurídico, que é o fato jurídico, seja para contrapô-la com a maturidade científica necessária.

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ABSTRACT This article, methodologically developed from the perspective of literature review, has examined the theory of the legal fact from the point of view conceived by Pontes de Miranda. Initially, the reflection started with the understanding of the topology of the factual and legal worlds, seeking, within the cultural reality, to reach the delimited scenario of the Law and the legal standard. Thus, having defined the context of the deliberation, the analysis assumed a logical-formal perspective to understand the legal standard, and, therefore, the legal fact. Finally, the analysis brought forth doctrinal criticisms and considerations about the incidence of the legal fact and its application. Keywords: Incidence. Legal standard. Juridication. Being. Ought to-being.

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Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade w w w. r e v i s t a f i d e s . c o m


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