Revista Cásper #28

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´ CASPER 28 Setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019

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ELAS VIERAM PARA FICAR Nascidas no universo da tecnologia, agora fazem parte da realidade de empresas de comunicação e prometem inovar o mercado

DONAS DA BOLA: Mulheres conquistam espaço na cobertura do jornalismo esportivo 50 ANOS DA INTERNET: A história da rede de computadores que mudou o mundo


O sempre Omercado mercadode detrabalho trabalhoestá está sempre mudando. trás? mudando.Vai Vaificar ficarpara para trás? Os cursos livres presenciais da Faculdade Cásper Livre, oferecem uma variedade Os cursos livres presenciais da Faculdade Cásper Livre, oferecem uma variedade de temas alinhados com as demandas atuais do mercado de trabalho, num de temas alinhados com as demandas atuais do mercado de trabalho, num ambiente ideal para conhecer profissionais da área. ambiente ideal para conhecer profissionais da área. Conheça nossa agenda de cursos vigentes. Conheça nossa agenda de cursos vigentes.

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´ CASPER ISSN 2446-4910

FUNDAÇÃO CÁSPER LÍBERO PRESIDENTE Paulo Camarda SUPERINTENDENTE GERAL Sérgio Felipe dos Santos FACULDADE CÁSPER LÍBERO DIRETOR Welington Andrade REVISTA CÁSPER NÚCLEO EDITORIAL DE REVISTAS COORDENADORA DE ENSINO DE JORNALISMO Tatiana Ferraz EDITOR-CHEFE Eduardo Nunomura EDITORAS Ana Navarro, Paula Leal Mascaro e Rafaela Bonilla CONSELHO EDITORIAL Adalton Diniz, Eduardo Nunomura, Fábio Caim, Marcelo Rodrigues, Marco Antonio Vale, Marli dos Santos, Patrícia Salvatori, Roberta Brandalise, Tatiana Ferraz e Welington Andrade REPORTAGEM Ana Navarro, Henrique Artuni, Larissa Basilio, Luana Jimenez, Paula Leal Mascaro, Pedro Garcia, Rafaela Bonilla e Thiago Bio COLABORADORES Gilberto Faria, Jefferson Mariano, Márcio Rodrigo e Rodrigo Ratier EDITORA DE ARTE E FOTOGRAFIA Luana Jimenez PROJETO GRÁFICO Giulia Gamba

A POTÊNCIA DO DIGITAL Como surgem as revoluções? Ingleses e franceses tiveram as suas no século XVIII. Em 1917, a Rússia vivenciou a primeira experiência socialista no mundo. Há 50 anos, iniciou-se a chamada revolução digital, o que nos torna personagens privilegiados da História. Com o envio da primeira mensagem, um acidental “LO” disparado às 22h30 de 29 de outubro de 1969, a internet deu seus primeiros passos. E nunca mais parou. A rede mundial de computadores virou tão presente em nossas vidas que até perdemos a perspectiva de sua importância. É uma ferramenta tecnológica, mas essencialmente comunicacional. A equipe da revista CÁSPER relembra, pela escrita habilidosa de Rafaela Bonilla, como a revolução digital começou, mas vai além na exploração dos impactos da cibercultura no campo da comunicação. Um deles é como a internet tem impulsionado a criação das startups, empresas que surgem pequenas, mas têm alto potencial de se tornarem, rapidamente, grandes negócios. A editora Paula Leal Mascaro se debruçou, com muito fôlego, sobre o tema para produzir a reportagem de capa desta edição, um especial de oito páginas. Henrique Artuni, com muito estômago, investigou o submundo da internet para mostrar como funcionam os fóruns online. Foi lá que jovens planejaram o massacre de estudantes de uma escola pública de Suzano, na Grande São Paulo. Ana Navarro, nova editora da CÁSPER, mostra como a (má) publicidade tenta pegar carona em sites de alta audiência como a Wikipédia, adulterando conteúdos que deveriam ser livres de qualquer teor propagandístico. Os repórteres Thiago Bio e Pedro Garcia mostram como o podcast, uma ferramenta da comunicação favorecida pelo alto poder distributivo da internet, se consolidou de vez. A revolução digital, como se vê, está presente nesses e em diversos outros temas que nos orgulhamos de apurar cuidadosamente para levar até vocês a cada edição. Boa leitura a todos.

DIAGRAMAÇÃO Amanda Franco, Henrique Artuni, Larissa Basilio e Luana Jimenez REVISÃO Rafaela Bonilla e Thiago Bio NÚCLEO EDITORIAL DE REVISTAS Avenida Paulista, 900 – 5º andar 01310-940 – São Paulo – SP (11) 3170-5874/5814 revistacasper@casperlibero.edu.br revistacasper.casperlibero.edu.br

EDUARDO NUNOMURA

Editor-chefe

CAPA Luana Jimenez CC

BY

Se não houver um © explicitado, você pode copiar, adaptar e distribuir os conteúdos desta revista, desde que atribua créditos

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SUMÁRIO MÚSICA NA GAZETA

Tesouros escondidos no acervo da rádio

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WIKIPUBLI

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Como não fazer propaganda na enciclopédia online

25 :: FEITO À MÃO ::

Como os drones vêm mudando a comunicação

:: BITS & BYTES ::

PODOSFERA 12 NA Por dentro do formato midiático que

Tecnologia atravessando as gerações: qual é a sua?

já deixou de ser só uma promessa

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CAPA

A ONDA DAS STARTUPS As histórias e os desafios dos negócios fora da caixa

A VEZ DELAS Os desafios das jornalistas esportivas

REDE PERVERSA

Discurso de ódio se dissemina em fóruns obscuros na rede

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DA INTERNET AO WI-FI

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OOfotógrafo quetrás clicou ativismo por perto osirmãs grandes dasde lentes das astros do rock Takeuchiss

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PASQUIM

O semanário que deixa saudades

:: ANTENADOS ::

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PORTFÓLIO PORTFÓLIO

Os 50 anos da arpanet

:: GIRO PELO MUNDO ::

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O MUNDO NÃO PARA DE MUDAR? Nós mudamos junto.

Acesse: gazetaam.com E ouça em qualquer lugar.

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POR ONDE ANDA “O profissional de RP é um estrategista”, diz Sandra, com quase 30 anos de mercado e uma pósgraduação na Cásper Líbero

Valeu o esforço :: RELAÇÕES PÚBLICAS :: Sandra Bonani conheceu a profissão de RP antes mesmo de ingressar na Cásper Líbero

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apeamento de público e gerenciamento de crise. Os termos, familiares para profissionais de RP, surgiram na vida de Sandra Bonani quando ela tinha 18 anos e nem fazia faculdade. “Não conhecia a profissão, no começo confundia com marketing”, relembra a casperiana. Sandra começou a trabalhar como assistente na BlueLife Assistência Médica, em 1991, e foi aí que se interessou pela área. No ano seguinte, ingressou no curso de Relações Públicas na Cásper Líbero. Por já atuar no mercado e realizar frequentes viagens a trabalho, precisou se virar para dar conta do recado. “Estudava nos finais de semana, pegava matéria com amigos, tive até que trancar o curso por um tempo”, conta sobre seus anos de esforço.

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Em 1999, três anos depois de formada, deixou a BlueLife e foi contratada pela Rodrigues e Freire Comunicação, na área de atendimento. Em 2001, foi para a Agência Trama como assistente de atendimento. Para sua surpresa, ela se deparou com uma equipe formada exclusivamente por jornalistas. De assistente, passou pelos cargos de coordenadora e gerente até se tornar diretora de atendimento da Trama. Após 12 anos, foi convidada para ser sócia da agência. Hoje, metade da equipe é formada por profissionais de relações públicas. “O grande desafio desde que comecei na área foi explicar o que o RP faz”, afirma. Há cinco anos é diretora de influência, cargo criado na Trama para cuidar da estratégia de relacionamento com influenciadores digitais.

RAFAELA BONILLA

RAFAELA BONILLA


A produção jornalística que vai fundo em temas de relevância social.

00:23:00:00

E o único órgão laboratorial universitário transmitido em TV aberta.

todo primeiro domingo do mês 23h30, na TV Gazeta. CÁSPER

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Fotomontagem com grandes celebridades da música nos corredores do Acervo

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MEMÓRIA

CHEGA DE

SAUDADE

Acervo da Rádio Gazeta, um dos maiores e mais completos do país, preserva preciosidades da indústria fonográfica POR HENRIQUE ARTUNI E LARISSA BASILIO

LARISSA BASILIO

deveriam pensar na preservação histórica dos vinis. “Hoje só recebo alguns links das músicas [pelo streaming], e nada mais.” Realidade bem diferente da quantidade de informações presentes nos encartes dos LPs. “Como vai ser no futuro, quando quisermos pesquisar esses materiais?”, questiona. Márcio de Paula é especialista em projetos de digitalização e autor de artigo na publicação I Encontro Internacional de Discotecas, que ocorreu em julho de 2016 no Centro Cultural São Paulo. Nome de referência na historiografia da música brasileira, o crítico Zuza Homem de Mello recorreu a gravações originais, como as dos Festivais da Record na década de 1960, guardadas no acervo para escrever o livro Na Era dos Festivais. “A Rádio Gazeta preservou de uma maneira exemplar um tesouro da música popular brasileira”, afirma Melo. “E o Márcio é um exemplo do que um discotecário deveria ser. Ele merecia uma estátua.” @

LARISSA BASILIO

O VINIL DE DEZ POLEGADAS é retirado do envelope e segurado cuidadosamente pelas laterais antes de ser colocado na pick-up. A agulha vem ao encontro de um dos sulcos e, ao aperto de um botão, o prato começa a girar. Antes de ouvir a música, surge o chiado característico. Direto de 1958, nasce a clássica batida e a inimitável voz da bossa nova: “Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser...”. O singelo compacto, que reúne Chega de Saudade de um lado e Bim Bom de outro, é nada menos que a primeira gravação de João Gilberto e seu inseparável violão, com Tom Jobim e orquestra. Esse disco é apenas uma das pérolas escondidas entre os 120 mil itens do acervo fonográfico da Rádio Gazeta, um dos maiores e mais completos do Brasil. O jornalista Márcio de Paula, de 59 anos, é o guardião desse tesouro cultural desde 1989. Ele conhece aquelas estantes, que perfumam o ambiente com cheiro de papel envelhecido, como a palma da mão. Basta pedir alguns destaques do acervo – que cresce desde 1943, quando a rádio foi fundada – e ele separará, de cabeça, dúzias de raridades nacionais e internacionais. Esse baú conta com doações da coleção particular do próprio jornalista e empresário Cásper Líbero e de gravadoras que enviavam o material para emplacá-lo nas emissoras de rádios. Entusiasta da mídia física, De Paula afirma que as gravadoras

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JOIAS RARAS :: DISCOTECA :: Guiados por Márcio de

Paula, selecionamos e resenhamos algumas pérolas do Acervo da Rádio Gazeta.

O COMEÇO DE TUDO

LARISSA BASILIO

Em 14 de março de 1943, Cásper Líbero inaugurava a Rádio Gazeta. No discurso, gravado cinco meses antes da sua morte em um disco 10 polegadas de alumínio, de 78 rotações por minuto (RPM), o empresário fala sobre os valores do veículo. Apesar de provavelmente não ter sido gravado no evento de inauguração, os poucos dois minutos de fala e o chiado característico são um documento histórico. (Henrique Artuni)

ARRANJOS CALOROSOS

JUVENTUDE À FLOR DA PELE The Beatles Live in Hamburg é um álbum duplo com apresentações no período em que o quarteto de liverpool morou na Alemanha. Portanto, antes deles se tornarem o maior fenômeno pop dos anos 1960. Ringo já fazia parte da banda. O som, que passou por tentativas de restauro, é baixo e cheio de ruídos. Tudo é meio abafado e ouve-se a plateia agitada misturada aos instrumentos. O disco destaca-se pelo valor histórico e pela potência de quatro garotos em sua versão mais crua. O álbum reúne clássicos de Chuck Berry, como Roll Over Beethoven e I’m Talking About You, e Hallelujah I Love Her So, de Ray Charles. Da discografia do FabFour, I Saw Her Standing There participa da abertura do lado A. Um dos itens mais raros do acervo, o vinil pode levar os fãs à loucura. (Larissa Basilio)

O chiado de fundo indica a idade do primeiro disco solo de Artur Verocai. São quase 50 anos desde seu lançamento, uma raridade preservada. Em 2015, um exemplar do disco foi arrematado em um pregão online por uma quantia equivalente a quase 20 mil reais. Verocai é uma preciosidade incompreendida. Na época, o disco vendeu mal e permanece com seu original preservado no acervo da Gazeta. Produzido em 1972, o maestro e arranjador carioca passou um mês em estúdio para a gravação do álbum. O violão de Arthur Verocai ecoa por todas as dez faixas, ao lado de uma orquestra e um grupo de vocais – o músico só dá voz à primeira canção. Os elementos sonoros formam uma combinação refrescante e harmoniosa, como uma manhã preguiçosa e ensolarada de domingo. (LB)

O MAESTRO DO SAX Em Charlie Parker with Strings, disco pioneiro na mistura do jazz com a música clássica, Charlie Parker, o Bird, usa seu saxofone de batuta para reger a orquestra de cordas. Tido como essencial da curta discografia do músico, morto em 1955 aos 35 anos, essa obra traz interpretações que misturam a tradição (Parker era um grande admirador de Stravinsky) e o improviso. Compare Summertime na voz de Ella Fitzgerald ou Everything happens to

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me por Billie Holiday com o saxofone de Budd Johnson, e verá interpretações da mesma grandeza, em tons muito diferentes. As cordas conferem uma emoção coletiva, expansiva, que os conjuntos de bebop raramente conseguem atingir – e, por vezes, até são as condutoras da música, como na inesquecível Laura. Se quiser conhecer mais da vida de Parker, não deixe de ver Bird, de Clint Eastwood, uma adaptação de sua biografia. (HA)


V DE VITÓRIA Virilidade e vantagem. A iniciativa V Disc foi coordenada pelo Capitão Robert Vincent que enviava discos novos para os soldados cansados de ouvir as mesmas coisas nos fronts de batalha. O som do disco compila sucessos de nomes como Louis Armstrong, Coleman Hawkins e Art Tatum, muitas vezes gravados em shows. Os generais imaginavam que o jazz podia alegrar os momentos tensos da história durante a II Guerra Mundial. (LB)

O VIOLEIRO DE ANALFAVILLE No provocativo Arrebentação (1970), Sérgio Ricardo faz valer o espírito daquele músico que, enfurecido, quebrou o violão no festival da Record em 1967. Sua voz grave, que tanto marcou a trilha do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, volta com cantos ainda mais políticos que os do filme de Glauber Rocha. Os belos e dolorosos versos de Analfaville, crítica frontal às torturas da ditadura militar, e Jogo de Dados, abordagem irônica à censura, são duas pérolas “arrebentadoras”. (HA)

O CHAMADO DO SAMBA Canto por um Novo Dia: o nome do disco, lançado em 1973, não poderia ser mais preciso em seu significado para a carreira de Beth Carvalho. A cantora, que até então surfava na bossa nova de Copacabana, subiu o morro para se estabelecer no samba. Aqui, nasce o clássico Folhas

Secas, na companhia do violão de Nelson Cavaquinho – mestre que Beth reverencia ao lado de Guilherme de Brito, Martinho da Vila e outros colaboradores presentes nas fotos do bonito encarte. Esse álbum é a prova de que Beth nasceu, viveu e morreu para o samba. (HA)

PLATEIA EM TRANSE Arrebatador. Secos & Molhados ao Vivo no Maracanãzinho inaugura o hábito da gravação de shows ao vivo. Ney Matogrosso encanta e arrepia enquanto uma plateia grita, bate palma e emociona. Este álbum original tem como presença marcante o público que compete com a ban-

da – e, às vezes, até ganha dela. Em Rosa de Hiroshima, segunda faixa, a plateia ovaciona a interpretação de Ney sobre o poema de Vinicius de Moraes. Há vocal rasgado, riffs trabalhados e uma linha de baixo forte. Ao Vivo no Maracanãzinho teatralizou o rock de maneira magistral. (LB)

PARA A POSTERIDADE Assim como livros de papel e os filmes em película, se mal preservados, os vinis podem ser destruídos pelo tempo – rachando, empenando ou sofrendo com fungos em seus sulcos. Desde o fim dos anos 1980, com a chegada dos CDs, o som dos vinis tem sido resgatado e preservado em outras mídias. Se for digitalizada, toda a riqueza da discoteca da Gazeta poderia ser disponibilizada para consulta online e gratuita. Ricardo Carvalheira, da empresa IAID Digital, trabalha desde 1993 na preservação de acervos fonográficos. O primeiro trabalho

da IAID, à época chamada Companhia de Áudio, foi passar para CD todo o material da gravadora Continental, adquirida pela Warner. O trabalho demorou seis anos para ser feito, e o acesso a ele ainda é um processo manual. Em ilhas, os áudios são tratados e gravados na nuvem. “O acervo da Gazeta é único no Brasil, e ainda em um estado de conservação que nenhum outro tem”, afirma Carvalheira. Estima-se que as centenas de milhares de gravações da discoteca demorariam cerca de quatro anos para serem totalmente digitalizados.@ CÁSPER

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ÁUDIO

A HORA DO PODCAST Programas se popularizaram nos últimos anos e conquistam cada vez mais ouvintes POR PEDRO GARCIA E THIAGO BIO

SE O CONCEITO DE CONSUMO ON DEMAND soa como uma comodidade moderna, podemos dizer que o norte-americano Carl Malamud era um homem à frente de seu tempo. De acordo com o programa Podcast-se, ele foi o responsável por produzir em 1993 o primeiro “podcast”: era baseado em entrevistas offline, distribuídos em arquivos digitais, e não nas rádios. Malamud gravava em disquetes e quem quisesse ouvir precisava instalar um arquivo no computador. Mas aquele projeto precursor de 26 anos atrás em nada se compara ao que hoje chamamos de podcasts. Ao alcance de um toque, esses áudios conquistaram espaço nos atuais hábitos de consumo de mídia globais. São práticos, de rápido acesso e para todos os gostos. Se na rádio comercial o conteúdo é levado para todo tipo de ouvinte em uma programação diária, o podcast oferece a bem-vinda liberdade. Os assuntos são segmentados e é o consumidor quem está no controle. O ouvinte pode escutá-lo quando e onde quiser – lógica que serviu para o jornalista inglês Ben Hammersley batizar este formato em 2004 unindo o “pod” do player de áudio portátil da Apple, o iPod, ao “cast” do jargão radiofônico broadcast (“transmitir”, em português). Uma pesquisa lançada em 2018 pela Associação Brasileira de Podcasters (Abpod) mostra que 65,8% dos brasileiros ouvintes de podcasts acompanham de dois a dez programas regularmente, enquanto 28,2% ouvem ainda mais. “[O mercado] está em franco crescimento”, afirma Filomena Salemme, professora da Cásper Líbero e pesquisadora do tema desde 2014. O jornalista Felipe Dantas credita essa popularização ao Spotify, que desde o ano passado agrega o formato. “Foi um divisor de mares, porque é uma plataforma extremamente popular. Você está lá no meio das músicas que todo mundo quer ouvir”,

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diz. Dantas produz podcasts há quatro anos no Papel Pop, um dos maiores portais de cultura pop no Brasil, e é responsável por quatro programas: Um Milkshake Chamado Wanda, Filhos da Grávida de Taubaté, Estamos Bem e o mais recente Estilo Possível. Atento às mudanças de percepção e interesse do público, ele conta que até 2017 poucos de seus amigos conheciam o formato. “Este ano vejo amigos meus descobrindo Wanda e falando ‘nossa, você trabalha lá?’. É muito engraçado, todo mundo está ouvindo hoje em dia, até meus pais”. Outra vantagem dos podcasts é poder escutá-los ao mesmo tempo em que se realiza diversas tarefas. “A gente está numa época em que as pessoas querem consumir informação o tempo todo. E parece que nunca é o suficiente saber alguma coisa”, declara Dantas. Filomena completa apontando que essa é uma forma de ganhar tempo numa rotina cada vez mais atribulada onde se espera que todo mundo seja multitasking. Segundo a pesquisa da Abpod, os podcasts são ouvidos durante um trajeto (79%), ao realizar tarefas domésticas (68%), no trabalho (39,2%), ao navegar na internet (38,6%) e antes de dormir (34,6%) (Veja no infográfico mais dados sobre a mídia). UM DOS VEÍCULOS JORNALÍSTICOS que explora esse novo formato de mídia é a rádio CBN, que produziu seu primeiro podcast em 2017, o CBN Professional, voltado para empreendedores. No mesmo ano, foi lançado o Panorama CBN, um compilado diário de notícias, seguido pelo Vozes, de 2018, que traz grandes áudio-reportagens sobre temas de assuntos gerais. Todos os seus podcasts são hospedados no site da emissora, podendo ser acessados online e com opção de download para assinantes. Também são veiculados no aplicativo da rádio e, em


Toda sexta-feira, os youtubers Maíra Medeiros, Edu e Fih se reúnem no Filhos da Grávida para comentar polêmicas da internet e dar dicas aos ouvintes. Já o Wanda leva à bancada Marina Santa Helena, Phelipe Cruz e Samir Duarte para fofocar sobre o mundo do entretenimento e da cultura pop às quintas

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OS NÚMEROS DA PODOSFERA A PodPesquisa traça um panorama da mídia no Brasil PRODUTORES

OUVINTES

2,5%

2,6%

NORTE

NORTE

10,8%

13,7%

NORDESTE

NORDESTE

7%

6,9%

CENTROOESTE

CENTROOESTE

63,5%

56,8%

SUDESTE

SUDESTE

12,9%

16,9%

SUL

SUL

3,3%

3,1%

FORA DO BRASIL

FORA DO BRASIL

11,9%

85,6%

3,6%

10,6%

0,2%

homens mulheres até 19 anos 20-39 anos 40-59 anos 60+ anos

OUVINTES

84,1%

100%

100%

87,1%

100%

100%

GÊNERO E IDADE PRODUTORES

15,3%

80,7%

10,6%

8,2%

QUANDO COMEÇOU A PRODUZIR

27%

A OUVIR há 1 ano

10,4%

56,9%

de 1 a 5 anos

49,9%

16,2%

há mais de 5 anos

39,7%

maio deste ano, entraram no Spotify. A Folha de S. Paulo com o Café da Manhã, o Estado de S. Paulo com Estadão Notícias e a revista Piauí com o Foro de Teresina também têm seus próprios podcasts. Thiago Barbosa, gerente de jornalismo da rádio CBN e líder dos projetos de podcasts de São Paulo, conta que este é um projeto que ainda necessita de bastante investimento e por ser um conteúdo de nicho tem apresentado

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pouco retorno financeiro quando comparado com o tradicional conteúdo em rádio. O jornalismo viu no formato inovador uma forma de gerar engajamento com o público e alcançar uma nova audiência, mas não foi o único. A publicidade também entrou no universo dessa chamada “podosfera” e tem ajudado a impulsionar o mercado. O jornal The New York Times viu sua receita em publicidade online crescer 19% estimulada pela divisão de pod-

0,5%


OS PODCASTS MAIS OUVIDOS

NERDCAST

2º NÃO OUVO 3º MAMILOS 4º ANTICAST 5º GUGACAST OS ASSUNTOS MAIS POPULARES

3º 2º

EMPREGO

47,5% expediente integral 17% autônomo/ freelancer 11,5% empresário/ empreendedor 6,4% procurando trabalho 0,9% não procurando trabalho 16,7% outros casts, com destaque para o The Daily, programa baseado nas principais notícias do dia. Segundo dados divulgados em maio deste ano pela WARC Data, empresa de pesquisa de marketing, o mercado de anúncios em podcast deve alcançar 1,6 bilhão de dólares em todo o mundo até 2022. Se confirmada essa previsão, os podcasts responderão por 4,5% do mercado de anúncios de áudio, ante 1,9% de 2018. Não é à toa que o mercado publicitário está de olho

no segmento. A pesquisa revela ainda que 78% dos ouvintes de podcast nos Estados Unidos não se importam com patrocínios em meio aos conteúdos, porque entendem que é o que garante a existência dos programas. Outra pesquisa do ano passado, promovida pela Edison Research com a Triton Digital, mostrou que 54% dos ouvintes americanos tinham maior probabilidade de considerar uma marca depois de ouvi-la anunciar em um podcast. AINDA QUE GRANDES MARCAS NACIONAIS como Petrobras, Caixa Econômica Federal, Senac e Natura tenham aderido ao formato, o meio apresenta alguns desafios a serem superados e um deles são as métricas. Por ser um formato que permite consumo offline, ou seja, sem necessariamente estar conectado à internet, não é possível acompanhar precisamente o comportamento do ouvinte. Baixar um conteúdo não garante que ele será ouvido e, ainda que seja, não se pode saber se a pessoa ouviu o podcast até o final ou se parou nos primeiros minutos de reprodução – o uso correto desses dados gerou fortunas para os donos de Netflix, Amazon e outras plataformas digitais. Outro obstáculo é a falta de profissionalização de podcasters independentes, que em contrapartida aos grandes veículos jornalísticos, estão imersos num cenário ainda amador. A PodPesquisa aponta que três a cada quatro produtores gravam seus programas em casa, enquanto apenas um opta por improvisar um ambiente de estúdio (ainda que também dentro de casa). Produtores independentes acionam plataformas de crowdfunding e de doação online como formas de sustentar equipamentos, estúdios, convidados ou um espaço na internet. Vendas de produtos com a marca do podcast, realização de eventos e palestras são outras alternativas que encontraram. Vendo a publicidade como saída, o Nerdcast – podcast mais ouvido do Brasil e produzido pelo portal Jovem Nerd – firmou parcerias com a escola de inglês Wise Up, a corretora Nova Futura e o site de empreendedorismo MeuSucesso.com. Os podcasts do Papel Pop também adotaram esse modelo: o Wanda recebeu apoio da Samsung e do Banco do Brasil, Filhos da Grávida teve parceria com a produtora de cosméticos L’Occitane e o Estamos Bem conseguiu ajuda de um aplicativo de terapia online com apenas alguns meses de existência. A Abpod registrou a existência de mais de 3.100 podcasts no Brasil. É um número expressivo. “O som é um dos sentidos que mais mexe com o corpo humano, porque aguça a imaginação”, explica Filomena Salemme. Explorar esse sentido foi o diferencial que consagrou a rádio durante sua “era de ouro” entre as décadas de 1920 e 1950. A imersão, a identificação e o conteúdo de qualidade parecem ser a fórmula perfeita para garantir posição de destaque para uma mídia de nicho que está conquistando fãs em todo o mundo e caindo cada vez mais no gosto dos anunciantes. @

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ESPORTE

E L AS E M

CA M P O

O aumento de mulheres no jornalismo de esportivo ainda enfrenta o preconceito é delas quem não entende que o jogo também AELA BONILLA

POR PAULA LEAL MASCARO E RAF

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ganhando não se mexe” A MÁXIMA “em time que está . Os homens, que ancaducou no jornalismo esportivo solitários, agora assistem tes reinavam quase como lobos ressadas em entrar em à chegada massiva de jovens inte fissionais cresce a cada campo. O interesse das futuras pro ão. Nas telas, repórteres ano nas faculdades de comunicaç ndes clubes e devem ser mulheres viram setoristas de gra s que ninguém se engapoucos os que acham estranho. Ma predominantemente feita ne: a cobertura esportiva ainda é se veem comentaristas, pelo olhar masculino. Quase não s do sexo feminino. Nos repórteres ou narradores esportivo de 15% dos profissionais programas da TV fechada, menos na reportagem, segundo são mulheres e quase todas estão orte em 2019. levantamento feito pelo UOL Esp

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DIVULGAÇÃO / ADIDAS

Roberta Cardoso, Renata Mendonça e Angélica Souza, do Dibradoras, em cobertura de evento esportivo da Adidas

“O ESPORTE está na minha vida desde que nasci”, conta a jornalista da rádio BandNews Alinne Fanelli, que na faculdade sempre direcionava seus trabalhos para a área esportiva. Alimentava o sonho de ser repórter para cobrir os jogos do gramado. Nascida em uma família que respira futebol - o avô e um tio eram goleiros e o pai até já fez teste para o Corinthians -, a repórter afirma que isso a ajudou a encarar o mercado com mais naturalidade. Nem por isso Alinne escapa das dificuldades de ser mulher no país do futebol: “Já aconteceu de estar em um programa de TV, emitir uma opinião e um outro cara falar a mesma coisa que eu, mas de outro jeito, e as pessoas considerarem a opinião dele em vez da minha”. A falta de respeito já chegou a ser mais explícita, como no caso da repórter Kelly Costa, da RBS TV. Durante uma coletiva pós-jogo ouviu de Guto Ferreira, então treinador do Internacional, a frase: “Desculpe, não vou fazer essa pergunta porque você

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é mulher e, de repente, não jogou (futebol)”. O episódio, ocorrido em 2017, repercutiu e gerou um pedido de desculpas do técnico, primeiro pessoalmente e depois em rede nacional, no programa Globo Esporte. Em 2018 a repórter Renata de Medeiros foi agredida por um torcedor em Porto Alegre. Também no ano passado, Bruna Dealtry, do Esporte Interativo, foi beijada por um torcedor enquanto fazia uma entrada ao vivo. Episódio idêntico aconteceu com Julia Guimarães, do SporTV, em sua primeira cobertura de Copa do Mundo, na Rússia. A repórter reagiu diante das câmeras ao ser surpreendida por um torcedor tentando beijá-la. “Eu não te autorizo a fazer isso”, repreendeu Julia com microfone em punho. Essa geração de jornalistas esportivas já vai a campo preparada para ouvir insultos da torcida como “volta para a cozinha”, “vai lavar louça”, “gostosa” e “vadia”. Alinne cobre jogos para a rádio e adota um truque para se concentrar durante a

transmissão. “Subo o retorno do meu fone no último volume”, afirma. Isso não quer dizer que os homens que realizam cobertura esportiva sejam poupados de ouvir impropérios em um ambiente tão beligerante quanto o de torcidas de futebol. Mas o tom da crítica costuma ser outro quando o alvo é uma mulher. Escancara-se a triste realidade de uma sociedade que reproduz discursos machistas enxergando a mulher como objeto ou destratando qualquer uma que fuja ao comportamento esperado de ocupar a função social de “rainha do lar”. Expressões machistas não vêm apenas das arquibancadas como muitas vezes partem dos próprios colegas de trabalho. De acordo com a pesquisa “Mulheres no Jornalismo Brasileiro”, realizada em 2017 pela organização Gênero e Número e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, com o apoio do Google News Lab, 73% das mulheres entrevistadas afirmaram já ter escutado comentários ou piadas de


natureza sexual sobre uma ou mais mulheres no seu ambiente de trabalho e 87% admitiram ter passado por pelo menos uma situação de discriminação de gênero no trabalho. Comentários do tipo “como o chefe te colocou aí?”; “certeza que está dando para alguém” ou “tá de chico? [menstruada]” revelam o ambiente tóxico de redações em que a mulher precisa a todo momento provar que sabe o que diz, que entende de futebol, que foi promovida por competência e que questões hormonais não devem ser motivo de piada nem justificativa para destratos. O sexismo se manifesta também na forma de estereótipos relacionados a ideias de fragilidade e incapacidade em lidar com determinados temas. Repórter há 18 anos, Lara Mota é dona de currículo invejável, mas nem assim foi indicada para compor a equipe de cobertura do acidente de avião da Chapecoense, em 2016. Um

colega de trabalho justificou: “Por você ser mulher, é melhor ficar aqui. Você pode se emocionar muito, não vai conseguir fazer a cobertura”. Lara conta que ligou para seu chefe e bateu o pé para participar da cobertura. “Nunca é um processo tranquilo, leve e fácil”, lamenta. Segundo a pesquisa “Mulheres no Jornalismo Brasileiro”, 65% das entrevistadas alegaram ter mais homens em cargos de poder no seu ambiente de trabalho. Roberta Cardoso, uma das jornalistas responsáveis por criar em 2015 o Dibradoras, portal de conteúdo esportivo focado em modalidades femininas, acredita que as mulheres precisam ocupar cargos de chefia dentro das redações, nos clubes de futebol e de outras modalidades, para terem voz e combaterem a desigualdade da área. Quem insiste na profissão precisa ainda enfrentar a cobrança com padrões estéticos e com o peso da idade. Se na cobertura de editorias REPRODUÇÃO

Regiani Ritter entrevista os então jogadores do Palmeiras Antônio Carlos e Velloso, dentro do vestiário, nos anos 1990

ENTRE AS JORNALISTAS ESPORTIVAS,

70%

admitiram já ter recebido cantadas que as deixaram desconfortáveis durante o exercício da profissão

como política idade é sinônimo de credibilidade e competência, no esporte a faixa etária pode ser uma barreira. Lara Mota cobriu três Copas do Mundo, Olimpíadas e Pan-Americanos, mas aos 39 anos sente dificuldade em se recolocar como repórter na TV. “Você passa anos construindo sua credibilidade e, só porque está com mais idade, você perde. É a ideia de que para o esporte tem que ser aquela menininha bonitinha e novinha”, desabafa. A cobrança com a balança também é uma constante. Recentemente, Lara teve um problema de saúde, ganhou peso e percebe que isso dificulta a recolocação no mercado. A jornalista hoje trabalha em uma emissora de rádio em Curitiba e tem um canal no YouTube chamado Fome de Bola. Alinne, hoje com 29 anos, confessa que já se pegou pensando em “como vai ser? Não serei repórter de campo com 50 anos”. Mas ela prefere continuar apostando

“É a ideia de que para o esporte tem que ser aquela menininha bonitinha e novinha” LARA MOTA

75%

afirmaram já ter ouvido um comentário ou elogio sobre suas roupas, corpo ou sua aparência que as deixaram desconfortáveis

Fonte: Pesquisa “Mulheres no Jornalismo Brasileiro” (2017)

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A apresentadora Marcela Rafael carregada pelos colegas de trabalho da ESPN, enquanto Lara Mota trabalha na

na carreira e cita como referência a apresentadora Renata Fan, a primeira mulher a comandar um programa futebolístico na TV e que aos 40 anos continua à frente do programa Jogo Aberto na rede Bandeirantes. Outra dificuldade é a necessidade que a área esportiva demanda, como uma disponibilidade quase irrestrita para acompanhar a intensa agenda de campeonatos pelo País. A jornalista, apresentadora, mãe e mulher Marcela Rafael teve coragem para arcar com as consequências da decisão de ser mãe ao mesmo tempo em que construía uma carreira no jornalismo esportivo. “Não vi meu filho dar os primeiros passos”, confidencia. A pernambucana de 36 anos hoje é a âncora de maior destaque na ESPN e conta que perder a primeira infância do filho fez com que ela decidisse abrir mão da reportagem e tentasse uma vaga de apresentadora na emissora, onde está desde 2011. Hoje Marcela tem horários mais fi-

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xos e pode se dedicar aos dois filhos com mais tranquilidade, o que nem todas as mulheres podem. SE ESTÁ DIFÍCIL HOJE, imagine desbravar esse meio 40 anos atrás. Nos anos 1980, o clube do bolinha do futebol no Brasil era ainda mais fechado. Regiani Ritter foi uma das pioneiras. “Não fui a primeira, fui a que ficou”, diz a jornalista, explicando que outras profissionais chegaram no mercado até mesmo antes dela, mas não aguentaram o ambiente machista da profissão. Regiani estreou no jornalismo esportivo na então Rádio Gazeta AM à frente do programa de variedades que levava seu nome em 1980. Pouco tempo depois aceitou o convite para uma vaga temporária de repórter para cobrir o dia a dia dos clubes de futebol e não parou mais. Numa época em que ainda era permitido, ficou conhecida por entrar em vestiários masculinos para fazer entrevistas com os jogadores. Mas

a trajetória teve altos e baixos. Na cobertura de um jogo de futebol em 1985, animada para o segundo dia de trabalho em campo, foi surpreendida quando viu que seu nome não estava na escala. Sem entender o que tinha acontecido, ouviu do supervisor que seria melhor chamar um homem no seu lugar, pois a voz feminina tiraria a credibilidade. O episódio que poderia ter encerrado uma carreira não abalou os ânimos nem a vontade de fazer história no jornalismo esportivo - Regiani foi a primeira brasileira a realizar uma cobertura de Copa do Mundo na Itália em 1990. No último Mundial, no ano passado, 14% das credenciais de cobertura do evento foram para mulheres - 4% a mais que na Copa de 2014. No ano passado, os canais Fox Sports e Esporte Interativo levaram ao ar vozes femininas na narração esportiva, ramo em que a presença de mulheres é ainda mais incomum. Outras iniciativas como espnW (portal da ESPN com


DIVULGAÇÃO

DIVULGAÇÃO

cobertura da Copa do Mundo na África do Sul, em 2010 e a repórter Alinne Fanelli participa de uma entrada do jogo ao vivo

“O esporte está na minha vida desde que nasci” ALINNE FANELLI

o objetivo de falar diretamente com o público feminino), Dona do Campinho (blog sobre futebol feminino) e Planeta Futebol Feminino (portal que desde 2013 cobre temas de futebol feminino nacional e internacional) são exemplos de esforços para trazer o protagonismo da mulher no esporte. A internet abriu caminho para que mais mulheres ocupassem um espaço antes restrito aos homens. O que se percebe hoje é uma mudança de postura: veículos e profissionais do meio defendendo o espaço da mulher e virando o jogo. O movimento #DeixaElaTrabalhar, de 2018, reuniu mais de 50 jornalistas por uma causa em comum: elas gravaram um vídeo que viralizou nas redes sociais contra o assédio e os abusos sofridos no exercício da profissão. Não é a primeira vez que campanhas assim são feitas. Em 2016, quando uma repórter do portal iG foi assediada pelo cantor Biel e demitida pela empresa 14 dias depois do epi-

sódio, após ter exposto publicamente o caso, várias mulheres se uniram na criação do coletivo Jornalistas contra o Assédio. Isso atesta que a cultura do machismo nem de longe se restringe ao universo do esporte. Mas e o público? Afinal, há diferença na forma como homens e mulheres consomem conteúdo esportivo? Alexandre Biancamano, diretor de novos negócios da ESPN, em entrevista ao blog do UOL Máquina do Esporte, afirma que sim. Para o executivo, dados e números esportivos têm a preferência masculina, enquanto histórias do esporte atraem mais mulheres. Já Lara Mota não enxerga diferença como homens e mulheres consomem conteúdo, mas ela se dá na forma como produzem. “Como jornalista mulher, você precisa provar o seu valor frequentemente, o que não acontece com os colegas do sexo masculino. Isso te deixa mais preparada ainda, porque falhar não é uma opção”, desabafa. @

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PUBLICIDADE

O VALE TUDO PELA ATENÇÃO A equivocada campanha da North Face na Wikipédia acende um sinal de alerta no mercado publicitário: há um limite ético para alavancar a audiência digital? POR ANA NAVARRO

À PRIMEIRA VISTA, parecia uma ideia genial pegar carona na audiência da Wikipédia, o site com cerca de 4,7 bilhões de visitas mensais, 86% desse tráfego originário de pesquisas na internet. Lançada em junho e assinada pela agência de publicidade Leo Burnett Tailor Made no Brasil, uma ação de marketing digital propunha que a marca North Face, de produtos de esportes radicais e de aventura, se tornasse a primeira a aparecer em buscas do Google sem investir nenhum centavo. O truque? Alterar conteúdos da enciclopédia online, substituindo imagens de pontos de turismo ecológico por fotos produzidas em que os produtos e a logomarca da multinacional norte-americana aparecessem. Não demorou para que a North Face recebesse um tuíte de repúdio partindo da conta oficial da Wikipédia, que afirmou não ter sido envolvida no planejamento da campanha que ia contra suas regras de uso e ainda conclamava usuários a tomarem atitudes. “Quando a North Face explora a sua confiança na Wikipédia para te vender mais roupas, você deveria ficar bravo”, diz a publicação da enciclopédia. “Acaba sendo frustrante, pois uma empresa que poderia ter contribuído com fotos de qualidade se apropriou da plataforma de forma indevida para fins comerciais, e isso é completamente o oposto do propósito

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da Wikimedia”, diz a casperiana Érica Azzellini, jornalista e integrante do Wiki Movimento Brasil. Ela faz parte do grupo de editores voluntários que buscam a melhoria na qualidade e quantidade de conteúdos na Wikipédia, com foco em projetos de educação e inovação tecnológica. Em resposta, o perfil da North Face no Twitter se desculpou pelo envolvimento em atividades inconsistentes com os propósitos da plataforma colaborativa e decretou o fim da campanha, enquanto a agência responsável declarou à imprensa compreender a questão e ainda aceitar um convite feito pela Wikipedia para aprender mais sobre seu trabalho. “Estamos ansiosos para podermos interagir melhor com eles no futuro, com todo o respeito por sua rede de editores voluntários”, diz o a nota. O episódio certamente figurará como um daqueles cases de como não fazer marketing, mas não é a primeira vez que a enciclopédia online é hackeada. Em 2014, a campanha “Quebrando a Wikipédia”, do escritório paulista da Havas para a Pirelli, substituiu imagens do universo automobilístico por outras com destaque para a logomarca da empresa de pneus. A ação criada como uma forma “inovadora” de promover a marca num site que não aceita anúncios tradicionais foi detectada pelos editores voluntários e os conteúdos originais foram recuperados.


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À esquerda, outra imagem da campanha assinada pela Leo Burnett para a North Face. À direita, um dos conteúdos da empresa brasileira Aplicadora Europa, que adotou estratégia semelhante e incluiu publicidade na enciclopédia online

Em 2017, a campanha “Whopper Conectado” trazia um filme de 15 segundos no qual um atendente do Burger King diz “OK Google, o que é um Whopper?”. Veiculado em rede nacional nos Estados Unidos, o pronunciamento ativou o comando de voz de dispositivos como Google Home e celulares Android, forçando-os a buscar e transmitir o verbete do Whopper na Wikipedia. Esse conteúdo havia sido editado dias antes da campanha ir ao ar para um texto publicitário de descrição do sanduíche. Diante da repercussão negativa, o próprio Google tomou a iniciativa de bloquear o comando automático que levava ao verbete do Whopper. Na ocasião, haters entraram em ação e, enquanto a campanha do Burger King estava no ar, alteraram o verbete incluindo impropérios aos quais a marca não gostaria de estar ligada - uma das edições dizia que a receita do lanche continha cianeto, veneno utilizado para controle de pragas. Eric de Carvalho, professor da Cásper Líbero, reconhece os riscos. “É um buzz efêmero que se converte numa reputação negativa e não deixa um valor de marca residual. Uma vez que ela faz algo assim, fica visada pelo mercado, e para a agência fica ainda pior”, explica. Qualquer um pode alterar e publicar na Wikipédia, mas isso não significa que qualquer conteúdo inapropriado fique no ar por muito tempo. Em junho, a empresa brasileira Aplicadora Europa, de pisos e revestimentos de madeira, usou da mesma estratégia da North Face e publicou na enciclopédia online fotos “meigas” dos serviços que presta e produtos que utiliza. Sem que o caso se tornasse um escândalo, como ocorreu com a North Face, os editores voluntários trataram de banir a propaganda indevida. “Hoje as agências pensam muito em hackear o sistema, e isso é super interessante. Não acho que seja por má fé,

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mas uma boa intenção de conseguir de uma forma rápida e a curto prazo entrar num assunto relevante para a marca”, pondera João Belfort, gerente de marketing digital na Diageo. O executivo afirma que no caso da North Face, ainda que a campanha tenha surgido de um insight válido e em linha com o território da marca, pecou na execução: “Teve um esforço grande de produção e claramente existe uma oportunidade. A forma de chegar acabou numa solução que talvez tivesse mais contras do que prós. Campanhas no Instagram costumavam receber cíiticas do público até iniciarem o uso da #publi em posts com fomento comercial. Isso mostra que com transparência dá para criar conteúdos orgânicos de forma segura. “O consumidor não quer ser enganado. Se ele se sente usado de alguma forma, ele vai ficar revoltado”, orienta Carvalho. Para Belfort, o mercado se tornou mais complexo, mas também mais divertido, o que demanda novas formas de fazer publicidade. “Esse tipo de experiência nos faz aprender muito mais sobre o mercado do que os livros de antigamente.” A Wikipédia, ao contrário do que possa parecer, não demoniza as empresas e até realiza parcerias com elas para melhorar a qualidade de seu conteúdo. Um bom exemplo foi a maratona de edição em parceria com o Itaú e o Museu do Futebol que aconteceu também em junho de 2019, por iniciativa da jornalista e casperiana Olga Bagatini, que escreve para o blog Deixa Ela Jogar. A Editatona #WikiFutFeminino adicionou 22 verbetes e atualizou 95 artigos sobre futebol feminino utilizando fontes verificadas, linguagem enciclopédica e informação de qualidade conforme preveem as diretrizes da plataforma. “Instituições podem fazer parte dos projetos como usuários desde que respeitem as regras de uso”, orienta. @


FEITO À MÃO LUANA JIMENEZ

O céu é o limite

ACHADOS E PERDIDOS Drones mais avançados são capazes de voltar ao ponto de origem quando perdem o sinal com o operador.

:: GADGET :: Os drones estão revolucionando e elevando a comunicação para narrativas onde antes os aparatos tecnológicos não atingiam SENSORES São eles que evitam que o aparelho se jogue contra um prédio, ajudam a desviar de obstáculos físicos e realizam até um mapeamento topográfico.

O modelo ao lado é o Phantom 4 Pro, da chinesa DJI, um dos mais populares entre os profissionais da área

VOO A maioria dos drones consiste de quatro motores, um em cada extremidade, acompanhados de hélices.

CONTROLE Monitora o voo do drone e a imagem da câmera. Os drones podem funcionar em duas frequências: 2.4GHz (com alcance maior e os sinais que ultrapassam obstáculos como árvores e prédios) e 5.8GHz (transmitem mais informações em maior velocidade).

CORPO São fabricados em fibra de carbono e com o mínimo de plástico ou metal, para não causarem interferência elétrica.

CÂMERA Grava vídeos em 4K e tira fotos com até 20 megapixels. BATERIA Dura cerca de 30 minutos de voo contínuo.

USOS NA COMUNICAÇÃO A primeira cobertura jornalística realizada por um drone no Brasil foi a das manifestações de junho de 2013, por João Wainer para a TV Folha. Com o aparelho, é possível alcancar ângulos que helicópteros não podem chegar e gerar imagens que não podem ser feitas por mão humana. Um exemplo é a reportagem aérea do New York Times, feita em 2016, mostrando os efeitos da guerra civil da Síria, na cidade de Alepo. As regulamentações dessa ferramenta ainda não contemplam todas as questões, principalmente as relativas à invasão de privacidade. No Brasil, quem faz essa fiscalização é a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). A contribuição mais relevante para a área de Relações Publicas é a facilidade na cobertura de eventos, com imagens mais atrativas. Há também a possibilidade da gravação de vídeos institucionais, existindo produtoras especializadas, como Va-

galume Filmes, Hawk Films e Drone Images. No audiovisual, fora o uso para captação de imagens, outro destaque é o curta experimental mémoires, de 2017, pelo diretor Tim Sessler, que teve todas as cenas com iluminação feita por drones, por meio de LEDs e flashes acoplados às máquinas. Para evitar o vazamento de spoilers, como ocorreu na penúltima temporada de Game of Thrones, a equipe de produção recorreu a dispositivos específicos para matar os drones, que irradiavam campos de força. Também eram usadas armas do tamanho de bazucas que interferem na conexão entre o drone e o piloto. Na publicidade, um case curioso foi o da camisaria Colombo, em 2014, que lançou a campanha Black Friday nas Alturas, em que drones foram colocadas no lugar das cabeças de manequins, e eles foram suspenso de forma a atingir as janelas de arranha-céus da Vila Olímpia.

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BITS & BYTES

A tecnologia a serviço da comunicação

HENRIQUE ARTUNI

@ Na idade das mídias :: HÁBITOS :: Como as gerações consomem e se relacionam com os diferentes meios de comunicação GERAÇÃO X

ENTRE 1965-84

Última testemunha da Guerra Fria, a geração X também cresceu com a TV e os jornais, mas adaptou-se mais facilmente à internet que os boomers. Equilibrados entre esses dois mundos, ainda preferem a moda antiga, mesmo no mundo digital, usando mais computadores e notebooks que celulares. Representaram 27% dos usuários do Facebook

62% leem veículos impressos

GERAÇÃO Y OU MILLENNIALS ENTRE 1985-2000

BABY BOOMERS

Representantes da última safra do século XX, acompanharam fissurados a revolução digital. Cresceram com as cores eletrizantes da MTV e dos videogames, o que foi só um passo para se adaptarem à internet e se tornarem a primeira geração multitarefas. Buscam estar sempre conectados, seja para mostrar a sua vida ou ver a de seus amigos.

Frutos do boom de natalidade após o fim da 2ª Guerra Mundial (daí o nome), os membros dessa geração cresceram com o rádio, as mídias impressas e a TV. Para eles, faz sentido pagar por notícias e nem sempre saem por aí postando suas opiniões – deixam para xingar o noticiário e a novela entre os amigos e familiares no Facebook, WhatsApp ou nas mesas de bar.

ENTRE 1945-64

Compartilham posts Assistem 24 horas de TV por semana 19% mais que

93% acessam 51% usam plugins o YouTube diariamente

para bloquear propaganda online

outras gerações

GERAÇÃO Z

ENTRE 2001-2009

Nativos digitais, crescem com a internet na palma da mão, sabendo que é um espaço para buscar informações sobre qualquer coisa, reclamar da vida e “xingar muito no Twitter”. Querem ver apenas o que gostam e quando querem, preferindo assim serviços on demand. Não resta dúvida de que não gostam de textos longos, mas, em questão de volume, leem mais que as gerações anteriores – nem que sejam mensagens e manchetes. Assistem a uma média

de 68 vídeos por dia entre YouTube, Snapchat, Instagram e Facebook

Metade usa a internet por até

10 horas

ALPHA

A PARTIR DE 2010

Por saber abrir apps antes mesmo de falar, essa geração tem sido encarada como a das “crianças geniais”. Se ainda é cedo para detalhar os benefícios desse contato precoce com a tecnologia, já dá para ver problemas quando elas são irresponsavelmente transformadas pelos pais naquilo que a garotada admira: influencers mirins.

diárias

Fontes: Digital Trends / GlobalWebIndex / eMarketer / Awesomeness

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DEEP WEB

A REDE ANTISSOCIAL Submundo da internet rasga os limites do humor e as fronteiras com a realidade, onde até assassinatos são planejados POR HENRIQUE ARTUNI

A marca do 8chan, também conhecido como Infinite Chan. A plataforma tem sido palco para usuários anônimos destilarem discursos virulentos

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ORDEM DA DESORDEM A PÁGINA INICIAL parece a de um site simples e inofensivo, criado em idos de 1990 e que flutuou perdido até o século XXI. Sobre um fundo azul arroxeado, nenhuma imagem, senão o logotipo: um oito verde deitado, simbolizando o infinito. O usuário incauto mal sabe que está sendo recepcionado como Dante às portas do Inferno: “Bem-vindo ao 8chan, as profundezas mais obscuras da internet. Incorpore a infâmia”. Na home do fórum acumulam-se manchetes de toda natureza, de videogames e desenhos animados até política e pornografia. Uma comemora o assassinato de uma parlamentar alemã, outra é dedicada a reverenciar os feitos do “verdadeiro presidente” Donald Trump. Escolha a que incita a sua curiosidade, clique e arrependa-se. A sequência de postagens – chamadas de threads – no subfórum / pol/ dá a notícia de que o lançamento do stand-up do comediante Isaac Butterfield foi cancelado pela Netflix após denúncias de piadas antissemitas. É nesse subfórum que reinam conteúdos politicamente incorretos. “Se não consegue aguentar o calor, saia do forno”, respondeu ele a uma senhora judia que lhe enviou um email por se sentir incomodada pelo mau gosto das suas chacotas. “Dá para ver que o cara é um dos nossos”, comenta um usuário. Cada mensagem é assinada pelo mesmo nome: “Anônimo” e a maioria vem com uma imagem ou vídeo curto anexado – que nem sempre conversa com o texto. Nesse caso, as mais “coerentes” eram as que saudavam Adolf Hitler ou que usavam o Sapo Pepe – personagem de um quadrinho online que virou meme – para fazer ofensas antissemitas. Tudo é liberado, sem necessidade de criação de uma conta ou vinculação a um e-mail. O 8chan é apenas um dos vários fóruns online que ganham alguns minutos de notoriedade nos telejornais quando acontecem massacres como o na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo em março de 2019. A investigação sobre

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Uma seleção das “regras da internet” >regra 1: Você não fala sobre /b/. >regra 2: Você NÃO fala sobre /b/. >>Nessa referência ao Clube da Luta, os channers consideram o subfórum /b/, de temática aleatória, como um segredo

>regra 30: Não há garotas na internet. >regra 31: Peitos ou GTFO. >>Na comunidade dos channers, a misoginia é institucionalizada. E se você é uma mulher, prove mostrando seus seios ou caia fora

>regra 34: Se uma coisa existe, há uma versão pornográfica dela. >regra 35: Se nenhuma versão pornô foi encontrada, ela ainda será feita. >>Por mais estranha que possa parecer, essa regra tem seu que de verdade. O site Rule 34 compila desenhos pornográficos dos mais esquisitos, desde montagens com celebridades reais, personagens fictícios e objetos inanimados

a atividade online dos ex-alunos que executaram oito pessoas apontou que o berço do plano foi em um site do mesmo sufixo, o brasileiro Dogolachan. O endereço na deep web, que não pode ser encontrado em navegadores comuns como o Internet Explorer ou o Google Chrome, foi onde jovens compartilhavam suas frustrações pessoais e planejaram o crime, como se fosse um jogo eletrônico. O Dogolachan foi fundado em 2013 por Marcelo Valle Mello, hoje preso por racismo, incitação a crimes de ódio, pedofilia e terrorismo. Ele segue a estrutura imageboard que caracteriza os chans: um fórum de discussão que se baseia na postagem de imagens e textos de forma anônima. O nome desses sites é tanto uma abreviação de channel (canal, em inglês), como uma referência ao honorífico japonês chan – os usuários identificam-se em grande parte como otakus, como são chamados os fãs da cultura pop japonesa.

Não à toa esse tipo de site nasceu no Japão, em 2000, com o 2chan. O modelo passou a se popularizar pelo mundo no ano seguinte, quando o norte-americano Christopher Poole, então com 15 anos, criou o 4chan. O objetivo era ter um site para debater sobre animes e videogame. Ao longo dos anos, o site cresceu e hoje chega a receber 22 milhões de visitas mensais. Subfóruns de outros assuntos foram sendo criados e os channers, como são chamados os usuários, passaram a adotar um universo de expressões e regras particulares que tornaram o ambiente ainda mais estranho para os não-iniciados. Mas nem tudo são trevas. O hábito de compartilhar memes e fotos de gatinhos nasceu lá e hoje é muito comum em todas as redes sociais. Esse mundo particular tem se tornado propício para membros da extrema direita (alt-right, em inglês). “Há o objetivo de causar choque e revolta em quem assiste aos chans ‘de fora’, daí


HALL DA INFÂMIA Uma interminável coleção de memes ilustram os discursos de ódio com humor ácido

Entre os favoritos dos channers, estão memes com as suásticas, Hitler, Trump, variações do Sapo Pepe e de personagens de desenhos japoneses

as mensagens polêmicas e violentas”, afirma Thiago Oliva, coordenador de pesquisas sobre liberdade de expressão no InternetLab. Ele acredita que os usuários dos chans estão em busca de uma experiência próxima à das origens da internet, nos anos 1990, quando não existiam regulamentações. “Seja para fugir um pouco da exposição das redes sociais, seja para articular resistência em contextos opressivos, seja para ter contato ou divulgar conteúdos polêmicos”, afirma. O 8CHAN CHEGOU AO FIM, mas não sem antes deixar mais de 20 mortes em El Paso, Texas. Antes de mais um novo massacre nos EUA, em agosto, o assassino postou um manifesto racista no fórum. Com isso, o serviço Cloudflare, que bloqueava tráfego malicioso no portal, decidiu cancelar sua proteção. Até o fechamento dessa edição, o 8chan não tinha voltado ao ar, mas a administração declarou que outro serviço, o BitMitigate, seria

o substituto. A empresa deu proteção para o site neonazista Daily Stormer em 2017, quando o Cloudflare o abandonou. Não deve demorar para que todo o material retorne a ser facilmente acessado na rede. O grande desafio parece ser o de como conter a proliferação desses conteúdos. Não estavam na deep web os oito minutos do massacre nas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia. Exibidos ao vivo pelo Facebook, a rede social demorou 29 minutos para detectar a gravação e retirá-la do ar. Nesse período, 1,3 milhão de publicações foram bloqueadas do Facebook, enquanto outras 300 mil eram compartilhadas na internet. Dias após o evento, o censor chefe da Nova Zelândia, uma espécie de vigilante público, decretou que o documento fosse “banido” da internet, além de vídeos e imagens do atentado. Provedores também bloquearam o acesso ao 4chan e ao 8chan. Em 2015, o Reddit – site com estrutura de subfóruns mas sem anoni-

mato – atualizou suas políticas de uso e passou a fazer uma moderação mais rigorosa. Foram banidas páginas como o r/coontown – de ódio contra negros – e r/fatpeoplehate – contra gordos. Mas os ataques não sumiram de vez. Um levantamento do Instituto de Tecnologia da Georgia constatou que esse tipo de discriminação diminuiu em mais 80% entre os usuários que frequentavam essas comunidades. Reclamando de “censura”, a maioria decidiu migrar para redes como os chans e os sites Gab e Voat. Como alternativa, cresce a preferência por canais de mensagens privadas, newsletters e outros meios desindexados. Em artigo publicado em maio de 2019, Yancey Strickler, um dos fundadores do Kickstarter, compartilhou sua teoria da “floresta negra” da internet. Para ele os seres humanos não conhecem a vida extraterrestre porque ela estaria escondida, em silêncio. Frente à barbárie, a autopreservação não parece má ideia. @

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INTERNET

A rede mundial de computadores completa 50 anos e sofreu tantas transformações desde então que preocupa os pioneiros POR RAFAELA BONILLA

NO AUGE DA ERA HIPPIE, um grupo de estudantes e professores vibrava em um dos laboratórios da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Estavam prestes a realizar um feito que mudaria o mundo para sempre. Empoleirados em frente a um maquinário gigantesco, o aluno Charley Kline e seus supervisores Steve Crocker e Vint Cerf tinham a missão de os enviar uma mensagem daquele computador a um outro a 566 quilômetros dali, no Instituto de Pesquisa de Stanford. Instruído a escrever a palavra “login”, Kline começou a digitar… Primeiro o “L”. Em seguida o “O”. Rapidamente, o “G”. Mas ao se voltar para a tela, o aluno nota que o sistema caiu. E assim a primeira mensagem enviada digitalmente foi “LO”, às 22h30 da noite de 29 de outubro de 1969. O professor Leonard Kleinrock, que estudava comunicação por meio das redes digitais desde 1964, foi encarregado de coordenar a atividade na UCLA que abriria caminho para estruturar o que conhecemos hoje como internet. Inicialmente financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a Arpanet (da sigla em inglês para Rede da Agência para Projetos de Pesquisa Avançada) surgiu em 1966 com o objetivo de criar uma rede de comunicação que garantisse a entrega de uma mensagem ao seu destino mesmo em caso de invasão nos circuitos. Cinquenta anos depois de a palavra “LO” partir de um computador que mais parecia uma geladeira, os dispositivos eletrônicos se reduziram para caber na palma da mão e saíram do domínio das universidades e dos

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centros militares. Se em 1995 apenas 1% da população mundial tinha internet, hoje metade dela está conectada. São quatro bilhões de pessoas ao redor do mundo, segundo o relatório Global Digital Report de 2018, promovido pela agência de comunicação inglesa We Are Social. O documentário Eis o delírio do mundo conectado (2016), do alemão Werner Herzog, choca ao afirmar que, se transferíssemos para CDs o fluxo de dados que circula durante um dia na internet, a pilha formada seria capaz de uma viagem de ida e volta da Terra à Marte. “Tem muita gente que acha que estar na internet é ter uma página no Facebook, e há mais coisa que isso”, diz Demi Getschko, conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor-presidente do Núcleo de Informação do Ponto (BRNIC.br). Getschko coordenava o programa da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) que, em 1991, estabeleceu a primeira conexão de internet no Brasil e foi responsável por conseguir a delegação do domínio br, que identifica o código do país. “A rede foi projetada de um jeito aberto e libertário. Os protocolos estão interessados em mandar a mensagem, como um sistema de correios, independente do conteúdo”, explica. “Hoje temos redes que permitem que mais objetos estejam conectados, que sintam o mundo. O humano é mais falho [que um algoritmo]”, conta André Lemos, pesquisador da cibercultura e professor da UFBA, em entrevista para a CÁSPER. Lemos se refere à chamada internet das coisas, que nada mais é do que a interconexão de objetos cotidianos com à rede digital. Ela já é uma realidade em smart speakers como a Amazon Echo ou o Google Home, dis-


positivos que controlam outros por comando de voz. Em Barcelona, a irrigação de plantas é feita por meio de sensores inteligentes que acionam a água conforme o nível de secura do ar. Graças à internet, sistemas como esses podem operar sem interferência humana direta. No Brasil também já temos alguns projetos em funcionamento, como o Centro de Operações Rio no Rio de Janeiro, considerado o maior centro de transportes controlado por internet do mundo. Alguns cientistas da “velha guarda” que acompanham as mudanças e inovações do setor não parecem estar muito contentes com o que a internet se transformou. Tim Berners-Lee, criador do sistema World Wide Web (o “www”), declarou em 2017 ao jornal inglês The Guardian estar desapontado. Segundo ele, os monopólios de plataformas do chamado Big Five, composto pelas gigantes de tecnologia Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft, vêm monetizando por meio do uso de dados de usuários – e nem sempre de forma consentida. “A internet surgiu por visionários que defendiam a liberdade e a criatividade, esse era o mote dela. Hoje ela está sob ameaça”, alerta Lemos. A circulação de informações está concentrada nessas poucas plataformas, baseadas em algoritmos que a maioria dos mortais não sabe como funcionam exatamente. A estrutura da internet gera bolhas, câmaras de eco, junk e fake news e até facilita a manipulação de sentimentos. Para Sérgio Amadeu, ativista defensor da inclusão digital e do software livre, “os algoritmos visam restringir nossa visão para criar um enorme mercado de marketing”. O Marco Civil da Internet no Brasil (Lei n° 12.965/2014) tenta regulamentar a utilização da internet e manter seus princípios originais de neutralidade, privacidade do usuário e responsabilização adequada da cadeia de valor. É considerado um grande passo na discussão de uma legislação que proteja tanto os usuários quanto a rede em si. Os cientistas Kline, Crocker, Cerf e Kleinrock, escondidos em laboratórios na Califórnia tarde da noite, provavelmente não imaginavam que entrariam para a história como os grandes pioneiros da rede – e muito menos a proporção social, política e econômica que a tentativa de digitalizar algo simples como o correio tomaria décadas mais tarde. Getschko, o primeiro brasileiro a entrar para o Hall da Fama da Internet, arrisca uma previsão para os tempos atuais: “O futuro da internet é ‘sumir’. Da mesma maneira que a gente não percebe mais a luz [elétrica]”. Neste cenário, os ideais da contracultura hippie que deram origem à Arpanet hoje parecem distantes. Os princípios de uma internet democrática e aberta estão se apagando. “Estamos colocando em xeque tudo o que foi previsto pelos visionários que criaram a internet 50 anos atrás”, diz Lemos, que considera que vivemos na era da “capitalização de vigilância”. O próprio criador do Facebook, Mark Zuckerberg, já havia nos avisado, ainda em 2010, que “a era da privacidade chegou ao fim”. @

De cima para baixo, registro da 1a mensagem enviada na Arpanet; Leonard Kleinrock ao lado do histórico computador e Demi Getschko, pioneiro da internet no Brasil

CÁSPER

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A internet está em tudo e em todos. Às vezes esquecemos quantas pessoas estiveram envolvidas em sua criação. O infográfico, inspirado na rede de pacotes, traz alguns dos principais fatos e personagens históricos

1973

1939 Alan Turing começa a trabalhar para decifrar os códigos alemães na 2ª Guerra Mundial e conceitualiza a ideia de algoritmo, abrindo caminho para se desenvolver a computação

1975

Os protocolos TCP/IP para a internet são criados por Vint Cerf e Bob Kahn

Microsoft é fundada por Bill Gates com o objetivo de desenvolver e vender interpretadores de linguagem computacional

Começa a funcionar a Arpanet, rede militar que conecta universidades e centros de pesquisa dos EUA

1969 O e-mail é inventado por Ray Tomlinson utilizando a Arpanet

1981 A IBM lança o primeiro computador pessoal da marca ao valor de US$ 1.565

1971 Abaixo, o primeiro esboço de como funcionaria a internet, em 1969

1983 Microsoft anuncia o Windows, sistema operacional utilizado até hoje

Anos 1930

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1970

1980


1991

2001 Linguagem World Wide Web (WWW) é criada por Tim Berners-Lee

2010 Os dispositivos conectados ultrapassam o número de pessoas do mundo. Segundo o Cisco Internet Business Solutions Group, é nesse momento que entramos na era da internet das coisas

Wikipédia é lançada por Jimmy Wales e Larry Sanger

2004

A internet chega no Brasil com o programa da Fapesp, liderado por Demi Getschko

Instagram é fundado por Mike Krieger

Facebook é fundado por Mark Zuckerberg e seus colegas de Harvard

1994

2014 Amazon é fundada por Jeff Bezos para vender livros online

Lançamento do Orkut no Brasil. Foi o primeiro fenômeno de massa digital no País

O Marco Civil da Internet foi sancionado para regulamentar a utilização da internet no Brasil

1997 A WiFi, ou tecnologia de rede sem fio, foi lançada nos EUA

Amazon lança a Amazon Echo, dispositivo de comando de voz capaz de se conectar com outros aparelhos, além de fornecer informações em tempo real

2007 Steve Jobs lança a primeira geração de iPhone e vende um milhão de aparelhos em uma semana

1998 Google é fundado por Larry Page e Sergey Brin

1990

Segundo a empresa Gartner, mais de 25 milhões de aparelhos estarão conectados à internet. Carros, casas, lâmpadas, motores, agricultura e até cidades serão controladas

2008 A tecnologia WiFi chega ao Brasil

2000

2010

2020+

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LUANA JIMENEZ

S TA R T U P

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E

MPR

EENDER É PRECISO Enxergar oportunidades, focar no que é importante, ter uma visão pragmática. Parece uma receita para qualquer negócio da era digital mas são as chamadas startups que têm conseguido criar as soluções mais criativas para os desafios da atualidade. E elas já povoam o universo da comunicação. Saiba o que vem por aí. POR PAULA LEAL MASCARO

CÁSPER

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ROBERTO CABRERA trabalhava na agência WMcCann como head de inovação quando percebeu que o mercado publicitário enfrentava um problema sério. Para medir resultados de campanhas digitais, era preciso acompanhar uma grande quantidade de relatórios mensais. A informação existia, mas ela estava dispersa. O resultado é que, na prática, as empresas não sabiam ao certo se os investimentos em ações publicitárias eram efetivos. Cabrera teve então a ideia de criar uma plataforma para integrar os dados de forma intuitiva e em tempo real. Juntou-se a Renato Rabelo e montou há dois anos a startup Keep.i. Quando o negócio ainda era um rascunho no computador, a dupla recebeu 520 mil reais como aporte de um investidor-anjo e assim pode contratar profissionais de tecnologia para desenvolver a sonhada ferramenta. O economista Murillo Alcantara passou por um processo similar quando decidiu apostar no mercado audiovisual para montar a Easy Movie, em 2016. Ele estava atento a uma necessidade frequente de clientes e produtores audiovisuais. “O mercado vinha produzindo vídeos da mesma maneira há muito tempo. Faltava tecnologia para automatizar processos”, lembra. Em sua plataforma, o cliente pode orçar a criação de um vídeo com diferentes produtores parceiros e seguir para contratação e elaboração dos conteúdos de forma otimizada. Como não entendia de programação, Alcantara contratou Ruan Kovalczyk, um desenvolvedor que acabou se tornando sócio. Em uma viagem com amigos da pós-graduação, após algumas conversas, conquistou um aporte de 50 mil reais e ainda ganhou um novo sócio. “Esse investimento foi fundamental para viabilizar a primeira versão da plataforma.” Os dois cases acima parecem fichinhas se comparado às fantásticas histórias de criação de outras startups mundiais. E mesmo esses exemplos representam apenas uma das múltiplas possibilidades para se

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fundar novas empresas nos dias de hoje. Afinal, não é todo dia que dá para começar um negócio com aportes de alguns milhares de reais. Empreender, muitas vezes, é começar – e terminar – no zero ou até abaixo dele. Porém, o que as jovens Keep.i e Easy Movie têm a ensinar é que empreender, inovar e pivotar são palavras que se integraram ao vocabulário dos futuros profissionais da comunicação. E talvez a realidade para muitos que não querem usar crachá nem fazer carreira na empresa dos outros, mas preferem construir sua própria história enquanto usufruem de pufes coloridos, escorregadores, mesas de pingue-pongue e redes para descanso na rotina de trabalho.

“Ao contrário do que se imagina, tem dinheiro sobrando no mercado, o que faltam são bons negócios para investir” LUIZ CANDREVA É nesse universo de ideias criativas, fora da caixa e com potencial para fazer dinheiro que surgem as startups – companhias em estágio inicial com um modelo de negócios escalável e repetível buscando se consolidar em um mercado repleto de incertezas. São microempreendimentos enxutos, dinâmicos, tecnológicos, com custos de manutenção mais baixos e foco no cliente. Mas, para além de qualquer definição, tudo começa com a vontade do empreendedor de resolver um problema, ou melhor, sanar uma “dor”, como se diz no meio. É com esse tipo de percepção que se

dá a partida em uma empresa, mas daí em diante é muito suor e trabalho: buscar investidores e colaboradores, acelerar o modelo de negócio e torcer para converter clientes. A Netflix surgiu de uma “dor” peculiar e teve de passar por várias etapas antes de chegar aos 139 milhões de assinantes e 153 bilhões de dólares em valor de mercado. Mas esqueça a lorota que inventaram de que o cientista da computação Reed Hastings criou a empresa porque precisou pagar 40 dólares de multa por ter atrasado a entrega do filme Apollo 13 na locadora. Essa é a versão edulcorada para lustrar o surgimento de uma companhia disruptiva, mas que não teve nada de romântico em seus primeiros dias. Hastings se juntou ao marqueteiro Marc Randolph para oferecer um sistema de locação online de títulos, entregues pelo correio. Isso em 1997. Dois anos depois, a empresa introduziu um serviço de assinatura ilimitado de DVDs por um preço baixo, aperfeiçoado-o no ano seguinte com um sistema de recomendações personalizadas. Apenas em 2007 foi lançado o streaming de filmes e séries, copiando descaradamente a Amazon, que lançou o conceito um ano antes para o mercado. EMPRESAS INOVADORAS como a Netflix são chamadas de “unicórnios” quando o valor de mercado delas ultrapassa um bilhão de dólares. No mundo das startups, elas existem, mas são raras. Apenas oito brasileiras ostentam o título: Nubank, Movile, iFood, Stone, 99, Arco Educação, Gympass e Loggi – nenhuma, portanto, do ramo da comunicação. Então desconfie quando alguém vier com o papo de criar a Netflix do jornalismo ou o Airbnb da propaganda – estes, sim, devem ser tão fabulosos quanto os unicórnios. “É a nova banda de rock dos anos 1980, todo mundo quer ter uma”, brinca Gabriel Ferreira, professor de inovação da ESPM e fundador da Pineapple Hub, empresa de relações públicas e assessoria de


PEDRO FORTINO

imprensa para startups. Para ele, embora numerosas, são poucas as companhias que realmente reúnem as características de um negócio vencedor. Criar uma startup do zero é um desafio bem distante do mundo glamourizado dos unicórnios. Os novos negócios morrem com a mesma velocidade que nascem e demandam muito mais que uma ideia brilhante e uma rotina de trabalho despojada para perseverar. A mortalidade de startups permanece maior entre todos os ramos econômicos: 74% fecham após cinco anos e 18% antes mesmo de completar dois anos, segundo pesquisa da aceleradora de startups Farm. Um estudo realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (extinto pelo presidente Jair Bolsonaro para a criação do superministério da Economia), no ano passado, revela que cerca de 30% das startups analisadas fecharam as portas no último período. Como principais motivos estão a dificuldade de acesso a capital (40%), obstáculos para entrar no mercado (16%) e divergências entre os sócios (12%). Alguns negócios sequer chegam a ensaiar os primeiros passos, pois perderam o momento certo. A startup 1927, uma plataforma digital criada em 2017, tinha uma proposta de valor arrojada ao permitir o acesso de pequenas empresas aos serviços de relações públicas de forma automatizada (com um software operado pelo próprio cliente). Não vingou e encerrou as atividades com menos de dois anos de vida. Frequentemente associadas a empresas de internet, as startups já existiam havia várias décadas nos Estados Unidos. Mas, curiosamente, o termo só veio a ser empregado no Criado em janeiro de 2019, o Hub SP oferece espaços de coworking e programas de aceleração para startups gratuitos

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AS FERRAMENTAS PARA EMPREENDER Inovar não é fácil, mas o caminho das pedras já vem sendo trilhado por muita gente disposta a compartilhar conhecimento. Há metodologias e abordagens que estimulam e facilitam o processo de começar uma startup ou desenvolver novos produtos e serviços de empresas já existentes. Conheça algumas delas:

SCAMPER bit.ly/2YmSypz O Scamper é uma ferramenta útil para a hora do brainstorm sobre produtos, serviços e processos. O nome do método é a junção das iniciais dos termos Substituir, Combinar, Adaptar, Modificar, Propor novos usos, Eliminar e Rearrumar. Reúna a equipe, defina um objetivo e comece a fazer perguntas que estimulem a criatividade sobre cada um dos termos.

S A C

P M

R E

MAPAS MENTAIS mindmeister.com goconqr.com bubbl.us A partir de uma questão central, planeje e organize os pensamentos, conceitos e resolução de problemas em um grande mapa visual. Veja como eles se relacionam entre si. Essa ferramenta estimula a imaginação, o fluxo natural de ideias e a visualização do conjunto de informações que levam à gestão estratégica de um negócio.

DESIGN THINKING info.endeavor.org.br/ ferramenta-design-thinking Na tradução literal, é “pensar como um designer pensaria”. O processo consiste em mapear e mesclar a experiência cultural, a visão de mundo e os processos inseridos na vida de cada um para obter uma visão mais completa na solução de problemas. Trabalha com as etapas de imersão, ideação, prototipação e desenvolvimento.

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CRIAR EMPATIA

DEFINIR

IDEALIZAR

PROTOTIPAR

TESTAR


CANVAS sebraecanvas.com O Business Model Canvas, mais conhecido como Canvas, é uma ferramenta que permite desenvolver e esboçar modelos de negócios a partir de um mapa visual pré-formatado contendo nove componentes.

ATIVIDADES CHAVE PARCERIAS CHAVE

RELACIONAMENTO SEGMENTOS DE CLIENTES

OFERTA DE VALOR RECURSOS CHAVE

CANAIS

ESTRUTURA DE CUSTOS

FONTES DE RECEITA

AGILE Agile vem do inglês e quer dizer “ágil”. A terminologia nasceu com o lançamento do Agile Manifesto, em 2001, elaborado por programadores norte-americanos. De acordo com Gabriel Ferreira, professor de inovação da ESPM e criador da Pineapple Hub, a metodologia cria soluções de negócios por meio de equipes que trabalham em ciclos curtos de desenvolvimento e aprendizado, baseados sempre na visão e feedback do cliente. As três metodologias mais adotadas são:

PARA FAZER

FAZENDO

FEITO

LISTA DE TAREFAS

IDEIAS APRENDER

CONSTRUIR CICLOS CURTOS

CICLOS DE TAREFAS CÓDIGOS

DADOS

24 HORAS 15 DIAS

MENSURAR

REUNIÃO DIÁRIA TAREFA CONCLUÍDA

KANBAN

LEAN STARTUP

SCRUM

O Kanban é um método japonês que nasceu nas linhas de produção da fábrica de automóveis Toyota para facilitar processos e evitar desperdício. Ele ajuda a controlar o progresso das tarefas de forma visual. Um quadro branco dividido em três partes (Para fazer/ Fazendo/ Feito) organiza as tarefas. Cada tarefa só é iniciada após o término da anterior.

Eric Ries, em seu livro Startup Enxuta (Editora Crown Publishing), define a metodologia como um método focado em manter processos e gastos mínimos. A ideia é identificar e eliminar desperdícios nos processos e priorizar a eficiência e a redução de custos. A partir da tríade construir, medir e aprender, os processos devem ser voltados a acelerar este ciclo.

Com entregas mais rápidas e ciclos de trabalho menores (de 5 a 15 dias, dependendo da tarefa a ser concluída), o método funciona a partir da melhoria contínua, encontrando e resolvendo os erros assim que eles surgem. Este formato minimiza riscos, reduz o retrabalho e torna a gestão do projeto mais produtiva.

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país a partir de meados dos anos 1990 e início dos 2000, durante o que se convencionou chamar mundialmente de “bolha da internet”. É nessa época que surgem no Brasil empresas como UOL, iG, Cadê? (sim, um precursor do Google) e Buscapé. Ao nascerem, esses negócios não têm certeza de que conseguirão se tornar sustentáveis. Mas o que os diferenciam é que as startups conseguem fazer do modelo de negócios a sua fonte de receita. A Uber, por exemplo, é lucrativa porque se baseia na economia compartilhada, que por sua vez se fundamenta na comercialização de mercadorias excedentes – no caso, o carro parado na garagem que pode servir para transportar pessoas. É, ao mesmo tempo, repetível (o aplicativo funciona para um motorista e um passageiro, assim como para milhões deles) e escalável (a receita cresce vertiginosamente, mas os custos lentamente). Agora, como um veículo jornalístico pode ganhar dinheiro? Empacotando e vendendo notícias. Embora repetível, não é nada escalável. SE PENSAR FORA DA CAIXA é requisito básico para criar uma startup, planejamento, foco e gestão são fundamentais para colocá-la de pé e

fazê-la crescer. No ranking elaborado este ano pelo Banco Mundial para medir a facilidade de fazer negócios, o País aparece na 109º posição entre 190 nações. O cofundador da aceleradora Liga Ventures, Guilherme Massa, enxerga melhora no ecossistema brasileiro de empreendedorismo nos últimos cinco anos. “Mas o Brasil ainda é para profissionais”, alerta. Apesar dos avanços, a falta de incentivos fiscais, o excesso de burocracia, deficiências na infraestrutura e a falta de educação empreendedora são apontados como entraves para abrir e manter um negócio. Mesmo assim, um relatório realizado no ano passado pelo Projeto Global Entrepreneurship Monitor (GEM) revela que 33% da população brasileira sonha em ter um negócio próprio, significando um aumento de aproximadamente 15 pontos percentuais em relação ao que foi registrado em 2017. “O Brasil tem muitos problemas. E onde tem problema é bom ter startups para resolver”, sugere Luiz Candreva, head de inovação da aceleradora hub/sp, iniciativa do governo de São Paulo. Recém-chegado de uma viagem ao Vale do Silício, berço das inovadoras empresas tecnológicas, o executivo acredita que o espí-

A equipe da startup Keep.i. trabalha há seis meses no espaço de coworking Distrito em São Paulo e acaba de receber novo aporte da Atlas Quantum, maior empresa de criptomoedas do País

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rito necessário para se criar startups está se espalhando também pelas corporações. “Hoje é difícil ter empresas grandes despreparadas para esse momento. Elas estão mudando o modelo mental”, explica. Para ele, toda startup que deu certo até hoje foi porque alguma empresa grande bobeou em algum momento. É conhecido o tremendo fiasco da Blockbuster de ter recusado a compra da Netflix por apenas 50 milhões de dólares. Por mais que as tradicionais estejam acordando, o ambiente dessas corporações ainda é resistente a mudanças. “São empresas com milhares de funcionários e a turma do ‘sempre foi assim’ ainda tem poder de impedir que isso vá para frente”, explica o professor Gabriel Ferreira. A jornalista Alecsandra Zapparoli conhece, como poucos, o peso do gigantismo corporativo. Por quase 20 anos, dedicou-se à Editora Abril, onde encerrou sua trajetória como diretora editorial e publisher em 2018. Logo após a sua saída, recusou algumas propostas de trabalho e optou por empreender, surpreendendo a muitos no mercado. Sem ajuda de investidores, pelo menos por enquanto, fundou a startup Galápagos. Para construir a proposta de valor da empresa, ela conta que se baseou nas suas experiências e fez uma lista de erros cometidos durante sua trajetória profissional e também pela imprensa tradicional. O resultado foi uma produtora de conteúdo jornalístico digital especializado em determinados temas e que oferece também cursos livres de jornalismo. Em early stage, a Galápagos ainda precisa validar sua ideia no mercado e está em fase de recrutamento para formação de equipe de trabalho. Para quem acha que vida de dona de empresa é moleza, Zapparoli nega. “Trabalho até mais do que quando era funcionária, e olha que era conhecida por trabalhar muito na Abril”, ri. Apostando em negócios que nem sempre têm garantia de retorno, é comum entre os empreendedores o mantra “fail fast” (falhe rápido), que


implica que a experimentação contínua permite falhar cedo e assim dar logo início ao processo de aprendizado. Metodologias ajudam a estabelecer processos ágeis e ciclos curtos para maximizar acertos e corrigir rotas rapidamente (leia mais na página 38). No ecossistema de startups, quanto antes se identifica um erro, mais rápido se consegue mudar a estratégia ou até mesmo abandonar o negócio, minimizando perdas. Uma das saídas para não naufragar de vez é pivotar (do inglês, to pivot - mudar, girar) o negócio, ou seja, mudar de estratégia ao perceber que a empresa está no caminho errado. Desapego, coragem e velocidade são fundamentais na hora da pivotagem, como bem recomendou Mark Zuckerberg: “mova-se rapidamente e cause impacto. Se você não está causando impacto, significa que você não está se movendo rápido o suficiente”. Esse padrão de reação fria e calculista faz parte do DNA das empresas inovadoras. O YouTube, por exemplo, nasceu em 2005 com a ideia de atuar como um serviço de vídeo para namoro online. Com problemas para crescer, os fundadores decidiram focar somente no compartilhamento de vídeos. No ano seguinte, o Google comprou a então startup por 1,7 bilhão de dólares. Por trás de muitas startups que já deram ou estão dando certo, há um grupo de investidores dispostos a arriscar parte do seu patrimônio em negócios com altas chances de dar errado. Só no ano passado, as startups brasileiras receberam 859 milhões de dólares em aportes, o equivalente a 45,4% dos investimentos em novas empresas na América Latina, segundo a Associação Latino-Americana de Private Equity e Venture Capital (Lavca). No Brasil, onde o crédito é escasso e caro, esses investidores viraram a principal fonte de recursos. “Ao contrário do que se imagina, tem dinheiro sobrando no mercado, o que faltam são bons negócios para investir”, avisa Candreva. Eis uma boa notícia à espera de uma boa ideia. @

PERDIDOS NA TRADUÇÃO No universo das startups, os empreendedores recorrem com frequência a termos em inglês. Abaixo, um dicionário para compreender o “idioma”: BOOTSTRAPPING É quando o empreendedor financia o seu projeto, sem contar com capital externo. Só com os primeiros clientes entram recursos de fora. BREAK-EVEN Se os custos da empresa são iguais às suas receitas, então chega-se ao “ponto de equilíbrio”. BURN RATE Sinônimo de fluxo de caixa negativo, é uma conta que revela a velocidade que uma empresa “queima” seus recursos financeiros. MENTORING

ROI Sigla da tradução de “Retorno sobre Investimento”, corresponde a um percentual da quantidade de dinheiro ganho em relação à quantidade de dinheiro investido. ROUND Denominação para as etapas de investimento, como “Round A”, “Round B” e assim por diante. SEED CAPITAL Recursos captados quando o negócio está na fase inicial, para que ele possa dar seus primeiros passos no mercado.

Profissionais experientes, os mentores orientam e ajudam startups com conhecimento técnico, experiência de mercado e redes de relacionamento.

SPIN-OFF É a criação de uma nova empresa de produtos ou serviços inovadores, surgidos a partir de uma “empresa-mãe”.

OUTSOURCING

STAKEHOLDERS São sócios, acionistas, funcionários, clientes ou segmentos da sociedade, todos os impactados pelo negócio e que devem estar no radar dos empreendedores.

Para economizar custos e ganhar flexibilidade, algumas tarefas são terceirizadas para pessoas mais especializadas. PITCH É uma apresentação breve para convencer investidores de que vale a pena financiar a empresa novata.

EARLY STAGE São empresas em estágio inicial em busca de consolidação no mercado. Em geral, possuem até três anos de existência.

*Fontes: Aceleradora Ace e Endeavor

TESTE VOCACIONAL Use o QR Code ao lado e descubra se você tem perfil empreendedor. Se precisar, acesse o site webqr.com para fazer a leitura do QR Code no seu celular.

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POR CONTA PRÓPRIA PAULA LEAL MASCARO

O app de eventos

AR

Como um estudante transformou uma necessidade da faculdade em um negócio “E você, vai levantar da cadeira para comprar ingresso?”. Em 2013, a maioria das pessoas fazia isso. Mas o aluno de administração Luis Felipe Palomares, então com 21 anos, acreditou que a venda de eventos online seria a ordem natural dos consumidores. O Sem Hora nasceu como aplicativo para celular, já levou mais de um milhão de pessoas a eventos em todo País e chegou a ter 48 funcionários com escritórios em São Paulo e no Rio de Janeiro. Cinco anos depois, a startup se tornou parceira oficial da Eventbrite, multinacional de venda de ingressos online.

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O que o motivou a criar a plataforma Sem Hora?

Aos 15 anos virei promoter de balada e comecei a pensar em como resolver, por meio da tecnologia, um problema que tinha na logística para entrega de ingresso físico. Passei a testar uma forma de fazer reservas de eventos com pagamento online. Fiz um teste numa festa da faculdade. De 600 pessoas, 70 compraram pelo meu negócio pagando uma taxa, mas com a facilidade de não precisarem sair de casa. Percebi então que havia uma demanda. Foi a primeira empresa de ingressos no Brasil que vendeu tíquetes online pelo aplicativo do celular.

E qual é este modelo de negócio?

O negócio se baseia na cobrança de uma taxa de serviço não abusiva na compra de ingressos. No meu entender, essa taxa não pode passar de 10%.

O projeto recebeu algum tipo de financiamento inicial?

Não tive investidor no começo. Em quatro meses, começaram as primeiras transações e com o dinheiro do próprio negócio a gente ia investindo na empresa. No início do projeto, quando precisamos de fluxo de caixa aportei um valor próximo de 20 mil reais.

Quais os desafios para uma empresa como o Sem Hora?

Serviço no Brasil é muito mal pago. Quando você explica para o dono do evento que para garantir a qualidade do serviço é preciso ter controle de acesso com rede local e gerador dedicado, ele fala que não tem orçamento. Toda essa lógica de equilíbrio entre investimento e segurança é muito delicada.

O que diria para os jovens que pensam em empreender no Brasil?

É um desafio surreal, especialmente pelo sistema tributário e pela falta de incentivos. Mas no fim isso torna os brasileiros potencialmente os melhores empreendedores do mundo. Quem tiver vontade deve ir atrás de algo que acredita muito e tenha humildade para reconhecer que não sabe tudo. Ouça seu cliente, dê o seu melhor e não terceirize responsabilidades.

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GIRO PELO MUNDO

Conteúdos campeões :: TUDO ONLINE :: As notícias que mais engajaram a audiência em 2018, a monetização de anúncios e o acervo livre de imagens

255.299.031.172 MINUTOS Esse foi o tempo gasto pelos internautas em 2018 na leitura de conteúdos, conforme pesquisa da Chartbeat. O levantamento avaliou 60 milhões de histórias disponíveis nos sites monitorados pela empresa e categorizou-as por tópicos. A editoria de maior engajamento foi a de Notícias & Política, seguida por conteúdos de Interesse humano em segundo lugar e reportagens de Arte & Cultura em terceiro. A notícia que mais engajou o público foi uma matéria da CNN sobre a controversa morte do apresentador e cozi-

TEMPO POR EDITORIA

nheiro Anthony Bourdain, que mescla texto, vídeos e conteúdos embedados de redes sociais. O Brasil marca presença no 11º lugar do ranqueamento geral de notícias mais lidas com uma reportagem especial do G1 que acompanhava a apuração das eleições para presidente e governador no ano passado. Ao final da contagem, foi acrescida uma nota informando a vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais com 57,8 milhões de votos. A matéria ocupa a 6ª posição na categoria de Notícias & Política. (Ana Navarro)

(em milhões de minutos)

552,5

Notícias & Política

245,2

Interesse humano

135,8

Esporte

110,8

Opinião

100,9

Saúde & Bem-estar

56,6

Estilo de vida

53,3

Clima

39,1

Negócios

21,5

Ciência & Tecnologia Fonte: Chartbeat

NA COLA DA NOTÍCIA

Um estudo realizado em junho deste ano pela News Media Alliance mostra que o Google faturou 4,7 bilhões de dólares em 2018 vendendo anúncios vinculados a notícias. O modelo baseado no Google Adwords divulga a produção de conteúdo de terceiros sem custo, enquanto veículos jornalísticos buscam atrair audiência e publicidade a duras penas. David Chavern, presidente da News Media, se posicionou ao New York Times: “Os jornalistas que criaram o conteúdo merecem um pedaço desses ganhos. Eles [Google] lucram com esse programa, e é preciso uma melhor remuneração para os criadores de conteúdo.” A falta de regulamentação e a zona cinzenta em que transitam empresas de tecnologia pode render ainda muita discórdia. (Paula Leal Mascaro)

É DE GRAÇA Sabe quando você precisa de uma imagem gratuita para ilustrar um texto e esbarra na questão de direitos autorais? Quem nunca? A Creative Commons (CC), organização sem fins lucrativos, tenta botar ordem nessa bagunça. Primeiro criou um padrão de direitos autorais definido pelo autor que permite que as imagens sejam utilizadas por qualquer pessoa. A novidade é que a CC lançou neste ano um conjunto de licenças públicas para tornar seus conteúdos mais acessíveis. Por enquanto, o motor de busca só inclui imagens, mas existem planos para integrar outros trabalhos licenciados com CC, como manuais escolares e áudios. O serviço está disponível em search.creativecommons.org (PLM) CÁSPER

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HISTÓRIA

Millôr revela a verdade:

Millôr Fernandes previu que o jornal, se fosse independente, duraria só três meses. Durou 22 anos e ao combater a ditadura virou um fenômeno da imprensa brasileira

Os três meses mais longos do j o r nal i s mo br as i l e i r o 44

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POR EDUARDO NUNOMURA QUANDO A DITADURA civil-militar recrudesceu no Brasil, o bom senso recomendava recuar. Mas os jornalistas que criaram O Pasquim não tinham bom senso e retroceder estava fora de cogitação. A patota, como o grupo de amigos de Ipanema ficou afamado, queria agitar a imprensa brasileira. E eles conseguiram. Há 50 anos, em 26 de junho de 1969, saiu a primeira edição d’O Pasquim. Fundado por Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Carlos Prosperi, Claudius e Jaguar, o jornal rompeu paradigmas do jornalismo convencional e abusou da irreverência e do humor para combater o governo militar. Caiu rapidamente no gosto da população, que viu na publicação uma encarnação da contracultura tão necessária para sobreviver. Chegou a uma surpreendente tiragem de 250 mil exemplares seis meses após ser lançada. “Seus alvos principais eram a ditadura militar, contra a qual se opunha de maneira visceral, a classe média moralista e a grande imprensa”, escreveu o jornalista Bernardo Kucinski, autor de Jornalistas e Revolucionários e professor da Universidade de São Paulo. O jornal surgiu apenas seis meses após os militares decretarem o Ato Institucional 5, que, no fatídico 13 de dezembro de 1968, suspendeu os direitos políticos no País. Em uma canetada, o governo de Artur da Costa e Silva fechou o Congresso, deu poderes para o presidente decretar estado de sítio, instaurou a tortura e, para silenciar as vozes dissonantes, censurou os meios de comunicação. O jornalismo como instância de vigilância do poder se encolheu, inclusive com a prática da autocensura. Durante os anos de chumbo, O Pasquim precisou adotar regras e anti-regras. Feito por e para cartunistas, não publicava caricaturas, alvo fácil dos censores. Abusava da oralidade nos textos, aproximando-se do público. Publicava gírias e palavrões, substituindo alguns destes últimos com (*), perfeitamente compreensíveis. “Se desse na telha de seus editores imprimir uma edição toda em latim ou grego, a vendagem seria a mesma e não faltaria quem achasse a ideia ‘duca’ (ou seja, do cacete)”, anotou o jornalista Sérgio Augusto, um dos editores da publicação, na antologia do jornal. O Pasquim virou uma verdadeira

fábrica de produzir cartunistas: lançou quase 200 e foi escola para grandes nomes como Laerte e Angeli, crias do semanário e ainda hoje em atividade. É surpreendente - e intrigante - pensar que reuniões de pauta realizadas em botecos do Rio de Janeiro pudessem resultar em um produto jornalístico como O Pasquim. O jornal não contava com reportagens nem tinha sucursais, mas sempre trazia o frescor da atualidade. Antes e depois dele surgiram outros veículos da imprensa alternativa “nanica”, segundo alguns -, como Pif-Paf, Ex, Versus, Cartum JS, O Centavo e Carapuça. Porém foi a mítica publicação carioca que se tornou um fenômeno editorial. As entrevistas não passavam pelo processo do copy-desk, a edição final que padroniza o conteúdo editorial. Na edição 22, a transcrição de mais de duas horas de conversa com a atriz Leila Diniz “funcionou como uma bofetada na hipocrisia e duplicidade de valores das elites”, definiu Kucinski. Houve outras entrevistas memoráveis, como a do cineasta Glauber Rocha com o escritor Gabriel García Márquez, do artista Di Cavalcanti, do humorista Oscarito. Após a capa dedicada a Dom Helder Câmara, o jornal passou a sofrer censura. Em 1º de novembro de 1970, os jornalistas presentes na redação foram presos. Jornaleiros se recusaram a vender O Pasquim nas bancas, a tiragem despencou e a publicidade caiu a zero. O time de colaboradores incluía nomes como Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Martha Alencar, Luiz Carlos Maciel, Odete Lara, Ferreira Gullar, Fernando Sabino, Antonio Callado, Otto Maria Carpeaux, Ivan Lessa, Paulo Francis. Mas o destaque eram os humoristas: nomes como Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes, Henfil e Fortuna. “Se esta revista for mesmo independente, não dura três meses. Se durar três meses, não é independente”, vaticinou Millôr no número 1. Errou redondamente. Sobreviveu aos trancos e barrancos por 22 anos, cravando 1.072 edições até novembro de 1991, quando fechou de vez as portas. Em comemoração ao 50º aniversário de sua criação, a Biblioteca Nacional decidiu digitalizar as edições d´O Pasquim. O trabalho começou no ano passado e a previsão é de estar disponível para os leitores a partir de outubro. @

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C U LT U R A P O P

A competição de drag queens que se expandiu pelo globo e se tornou uma máquina de propagandas POR PEDRO GARCIA E THIAGO BIO

ndo UM BAR LOTADO DE CLIENTES com olhos vidrados no telão. Cada um tem uma personagem para chamar de sua e sabe na ponta da língua a trajetória da sua “eleita”. Juntos, formam uma torcida que vibra a cada conquista e lamenta os deslizes. Como em um campeonato, só restará um vencedor no final. O que pode parecer uma partida de futebol ou um concurso de miss é, na verdade, o episódio final da temporada de RuPaul’s Drag Race, a competição mais popular dentro da comunidade LGBT+. O programa é um reality show de competição entre drag queens em que as participantes têm que mostrar talentos como costurar, desfilar, cantar, dançar, atuar e imitar celebridades. A vencedora é eleita a nova “America’s Drag Superstar”. Leva para casa um prêmio de cem mil dólares, além de suplementos de cosméticos, viagens e até contratos de participação em campanhas publicitárias. E, claro, ganha fama mundial. RuPaul Andre Charles, uma das drags mais famosas do mundo, batiza e apresenta o show, que encerrou a 11ª temporada em maio deste ano e tem variações até mesmo no Chile e Taiwan. Ficou conhecida nos anos 1990, virou celebridade com o hit Supermodel (You Better Work), de 1993, foi rosto da marca de cosméticos MAC e atuou em mais de 50 filmes e seriados. Em 2016, venceu o Emmy na categoria apresentador de reality show. É tanto prestígio que ganhou uma estátua nos museus de cera Madame Tussauds, em Nova York, São Francisco e Amsterdã, ao lado de personalidades como a família Kardashians, Barack Obama, Taylor Swift e a Rainha Elizabeth. O reality expandiu as fronteiras da telinha e se tornou um fenômeno global. As participantes rodam o mundo em turnês, gravam álbuns e realizam eventos que movimentam o calendário voltado ao público LGBT+. Desde outubro de 2014 aconteceram 41 apresentações das queens de RuPaul’s em festas noturnas de São Paulo. “Vemos uma juventude mais disposta a gastar dinheiro e assistir os expoentes do próprio programa”, analisa Lucas Bragança, doutorando da Universidade Federal Fluminense e fã do reality há sete anos. No programa, as drags contam suas histórias pessoais na Werk Room – a sala em que as participantes intera-

gem, costuram, completam mini-desafios e se produzem. É nesse momento que afloram conversas que refletem o universo LGBT+, como autoestima, relações familiares, religião, preconceito, infecções sexualmente transmissíveis e limites entre gênero. Entre perucas, maquiagens, lantejoulas, penas e saltos-altos, uma discussão chama atenção para RuPaul’s. O reality atinge um público com poder aquisitivo mais alto do que a média da população. Segundo o Censo IBGE 2010, enquanto as famílias formadas por pessoas de gêneros diferentes representam 3,4% da parcela que recebe de cinco a dez salários mínimos, casais LGBT+ chegam a 9,6% desse grupo. Movimentado por esse segmento, o chamado “pink money” (ou “dinheiro rosa”) soma cerca de 420 bilhões de reais por ano somente no Brasil, conforme dados da Associação Internacional de Empresas, a Out Leadership. “Rupaul é uma máquina da publicidade, o que ela conseguiu realizar ao logo dos dez anos é algo incrível. As parcerias foram fundamentais, assim como as estratégias para promoção cultural e mercadológica do programa”, elogia Cristiano Oliveira, da Universidade Federal da Paraíba. Com esse público, o reality show pode se tornar uma máquina de publicidade e marketing. Em RuPaul’s Drag Race, são veiculadas marcas que dialogam com os fãs do programa. Bragança identifica mais de 30 empresas que utilizaram esse espaço como catapulta publicitária (entre elas estão marcas de vestuário, turismo, cosméticos, óculos, bolsas, joias e perucas). E é um sistema que se autoalimenta, já que a competição funciona como estímulo da imagem da apresentadora, o que é conhecido como self advertising. RuPaul’s Drag Race já pode ser considerado responsável pelo reavivamento cultural do movimento das drag queens. Ao marcar presença na cena LGBT+, o reality incentivou produções nacionais e internacionais seguindo a temática. Glitter: Em Busca de um Sonho, Academia de Drags, Drag Me as a Queen e Drag Me Down the Aisle acompanham a toada da apresentadora norteamericana e quebram padrões. Como diria o bordão do programa para as divas que permanecem no show: “RuPaul, shantay, you stay”. @

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PORTFÓLIO

A BELEZA IN NATURA

As gêmeas Takeuchiss conquistam cada vez mais espaço no mercado com seu olhar político e afetivo sobre a fotografia de moda POR RAFAELA BONILLA

Em sessão de fotos para o Brechó Replay, os cliques foram feitos no apartamento da maquiadora contratada e o casting foi formado por amigas do cliente e convidadas do Instagram

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A CHARMOSA SALA DE ESTAR do apartamento nos Jardins, em São Paulo, ganha vida com suas grandes janelas. A iluminação natural refletindo no nostálgico chão de taco cria o ambiente perfeito para Nathalia e Andreia Takeuchi, que finalizam seu set fotográfico arrastando móveis de um lado para o outro. Os cachorros Tigrão e Cora observam, sem sobressaltos, a entrada e saída de pessoas. Modelos, stylists e maquiadores são figuras comuns no apartamento das irmãs Takeuchiss – como as gêmeas assinam suas fotos. Sempre unidas, revezam funções. “Uma faz o clique, mas a outra está do lado falando ‘testa isso, acho que vai ficar melhor’”, diz Nathalia. A sintonia das duas se estende por todo o processo criativo e administrativo do trabalho: também tratam as imagens e respondem aos e-mails juntas. Quando perguntadas se sabem de quem é cada foto, Andreia responde: “Acabou o job, a gente já esqueceu. É nosso, rola um desapego”. Há quase dez anos imersas no universo da moda, as jovens de 29 anos possuem uma carreira de ascensão invejável: seu portfólio possui publicações em tradicionais revistas do segmento como Elle, Claudia e Glamour, além de trabalhos para grandes marcas nacionais e internacionais como Natura e Adidas. As Takeuchiss sabem exatamente o que querem de uma fotografia: uma imagem autêntica e a desconstrução do padrão de beleza atual. Sabem também o que esperar da moda. Adeptas ao slow fashion, afirmam não acompanhar grandes tendências e compram suas roupas em brechós, reservando para lojas especializadas apenas o “essencial”. Também não são fãs de maquiagem. “Decidimos parar de esconder a nossa pele acneica”, explica Andreia, que também questiona com preocupação seu papel como fotógrafa num mercado tão volúvel. “Até que ponto a gente vai construir uma imagem para a pessoa consumir mais?” A dupla cresceu em Florianópolis e começou a fotografar quan-

Acima, foto para matéria “Minha Cicatriz“ da Glamour. Abaixo, imagem do projeto do Brechó Replay CÁSPER

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À esquerda e à direita, projeto pessoal da dupla; no meio, matéria da Elle “Vamos pensar sobre beleza”. Na página ao lado, foto feita na casa das irmãs para especial de casamento da Folha de S.Paulo

do ainda eram adolescentes. Com uma câmera semi-profissional que Andreia ganhou em 2008, as irmãs aperfeiçoaram a técnica na base da tentativa e de erro. Na época, surgiu nas redes sociais um desafio de postar uma foto temática por dia na plataforma Flickr e elas abraçaram o projeto. “Foi o melhor jeito para aprender Photoshop”, conta Andreia. Em 2009, as gêmeas tinham certeza que queriam seguir uma profissão que envolvesse criatividade e oferecesse liberdade para criar. Decidiram cursar design gráfico na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Juntas, envolveram-se com a cobertura fotográfica dos eventos universitários e lá conheceram estudantes de moda de outra faculdade da região, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Nathalia e Andreia conquistaram seus primeiros jobs ajudando alunos a fotografarem seus projetos de conclusão de curso. “A gente fez só para se diver-

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tir, mas descobrimos que queríamos isso”, conta Andreia. Decididas a seguir com fotografia de moda, elas se separaram pela primeira e única vez (pelo menos até o momento) entre os anos 2011 a 2013: Andreia foi para Los Angeles estudar design e Nathalia para Londres estudar fotografia. Foi durante seus intercâmbios que criaram contatos internacionais e começaram a fotografar modelos. Em 2013, ainda estudantes e já de volta ao Brasil, elas iniciaram um estágio na Revista Catarina, uma das publicações de maior notoriedade no jornalismo de moda do Brasil. Depois de formadas, começaram a trabalhar de forma independente e testaram formatos desenvolvendo campanhas publicitárias, books de agência de modelos e lookbooks (livro de fotos para apresentar peças de roupa a clientes) como freelancers para stylists e empresas de Florianópolis. As duas perceberam com certa frustração que o mercado catarinense

ainda não estava pronto para abraçar a liberdade e criatividade de seus trabalhos. Para mostrar com fidelidade as cores e o caimento das peças, tudo deveria sair perfeito, sem espaço para experimentação. A modelagem também deveria ter um formato tradicional, apenas modelos de tamanho 34 participavam das fotos. “Lá o padrão é muito europeizado, fazíamos muitas fotos com modelos de olho claro e loiras”, diz Andreia. “Muitas vezes os clientes não entendem nosso lado, eles escolhem as modelos. É uma desconstrução que começa pela gente”, defende Nathalia. Florianópolis começou a ficar pequena para as Takeuchiss e juntas decidiram que era hora de partir. Ao chegarem em São Paulo em 2016, bateram pernas pelas agências oferecendo serviços de book para as modelos, antes de iniciar a tradição que seguem até hoje: sem estúdio próprio, começaram a fotografar no apartamento que dividiam. Utilizavam suas próprias roupas para vestir


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À esquerda, ensaio com os filhos do rapper Mano Brown e Eliane Dias

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as modelos e criavam os cenários com os próprios móveis. Foram ganhando espaço no mercado a partir das experimentações que esse formato permitiu e conquistaram os primeiros trabalhos remunerados na capital paulista. Certa vez, desenvolvendo um projeto, tentaram levar a cabo sua filosofia de trazer mais naturalidade para a moda. Após uma longa e difícil conversa com um cliente, optaram por não fazer uso de maquiagem nem de tratamento nas imagens do

ensaio editorial. Elas queriam mudar as regras do jogo. O resultado final agradou a todos. Com o mesmo cliente, agora convencido, também passaram a utilizar mulheres reais nas fotografias. “Se sei que uma foto vai influenciar o que pensam sobre beleza, por que vou fazer uma foto tão alterada e perfeita que não existe?”, comenta Andreia. As Takeuchiss fazem de seu trabalho o instrumento de um ativismo afetuoso e silencioso não somente por questionarem a realidade da moda

como também por apenas existirem num mercado onde a grande maioria dos profissionais são homens. Inspiradas por uma viagem ao continente asiático, desenvolvem desde 2017 um projeto pessoal de fotografar garotas orientais comuns, grupo muitas vezes negligenciado no quesito representação midiática. As gêmeas entendem o poder que uma imagem pode ter. “Queremos mostrar que existe beleza no natural”, diz Andreia. “Mais beleza até”, completa Nathalia. @

Fotos do projeto pessoal que busca se aproximar de mulheres com ascendência asiática, como as Takeuchiss. À direita, foto de modelo feita na viagem para Japão em 2017, também parte do projeto

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ASPERIANAS

‘Cadê o pajé?’ O diretor Luiz Bolognesi participou de evento na Cásper e conta como seu filme Ex-Pajé aborda a questão da perseguição religiosa nas aldeias do País POR PAULA LEAL MASCARO E RAFAELA BONILLA

A temática indígena foi destaque no primeiro Cine Debate Cásper, organizado em abril pela professora Roberta Brandalise, coordenadora de Cultura Geral da Faculdade. A discussão sobre a antropologia do audiovisual nas questões indígenas tomou como argumento o filme Ex-Pajé, do diretor e roteirista Luiz Bolognesi. Exibido durante o evento, a obra é um híbrido entre documentário e ficção e conta a história de Perpera, um pajé forçado a abandonar seu cargo e suas funções na liderança espiritual da tribo para se converter ao cristianismo. O diretor, responsável por roteiros de filmes premiados como Bicho de Sete Cabeças, Elis, Como Nossos Pais e Bingo – o Rei das Manhãs, marcou presença no evento para um debate após a exibição de seu longa, que recebeu menção honrosa de melhor documentário do Festival de

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Berlim em 2018. A seguir, trechos do bate-papo com Bolognesi sobre os principais questionamentos do filme. SABER INDÍGENA “Queria fazer um filme sobre os pajés porque eles reúnem um conhecimento que deveria estar nas universidades. Na verdade, a gente deveria estudar nas universidades deles – em que eles possam dar aulas para os brancos e ensinar como conseguem viver sem esse fetiche de mercadoria, sem consumir tanto e ficar angustiado.” A QUESTÃO EVANGÉLICA “O filme teve uma repercussão grande e causa um incômodo em relação à questão evangélica. Os jornalistas que viram o filme disseram que não sabiam que tinha violência evangélica nas aldeias indígenas.

E só vi um site que tentou desqualificar a obra tentando deturpar o trabalho realizado nas aldeias. Por outro lado, li um texto de um pastor defendendo o filme, dizendo que o papel dos evangélicos não é agredir a cultura dos indígenas, que não era isso que Jesus pregava.” A REALIDADE FRAGMENTADA “Não existe documentário, tudo é ficção. Se eu gravo uma entrevista e for montar, já é um ato de ficção, porque transformei aquela realidade em função do efeito que quero construir com a narrativa do meu filme. Montar é fragmentar a realidade. Acho que a vida é ficção. O que está acontecendo no País é ficção. As pessoas enxergam realidades diferentes, é uma pluralidade tão grande que vivemos nesse mundo de ficção. Tudo é uma construção de narrativa. Pensar que


REPRODUÇÃO

Perpera é um ex-pajé que trabalha como zelador de uma igreja evangélica, mas não esquece suas origens

QUAL REPRESENTAÇÃO “Quando está construindo uma narrativa e chama aquilo de documentário, você está dizendo para as pessoas que vão assistir que aqueles atores/personagens que aparecem na tela são eles mesmos. No meu caso, estavam representando eles mesmos, além de serem eles mesmos. Aí tem uma questão ética complexa: que consequências isso vai ter na vida daquelas pessoas? Por uma questão ética, às vezes não podemos fazer nossa melhor opção narrativa.

É muito difícil decidirmos o que é certo e o que é errado, o que vai causar um bem e o que vai causar um mal às pessoas que estão retratadas no filme. E aprendi que só tem um jeito: perguntar a eles. O que posso filmar? Todas as cenas discutia e debatia com eles: ‘o que vocês querem que eu filme?’ e não tinha discussão. Se não podia filmar isso, mesmo querendo muito, eu não filmava.” ANTROPOLOGIA DO AUDIOVISUAL “Uso os estudos da antropologia nos meus roteiros. No momento da pesquisa e na construção dos personagens, trabalho com as ferramentas da antropologia, e não do jornalismo. A diferença é que no jornalismo partimos de hipóteses e tentamos entregar na realidade. O antropólogo tenta anular seus valores para tentar entender o outro.”

MARIANA CAVALCANTI

o documentário é aquilo que te expõe a uma realidade única e a ficção uma transformação, não é. Essa é uma questão secundária. Entretanto, é fundamental a questão ética. O epicentro estético de uma obra é a ética. E é a partir disso que tomamos nossas decisões estéticas.”

Bolognesi escreveu e dirigiu o longa de animação Uma História de Amor e Fúria (2013), vencedor do prêmio Cristal de Melhor Longa-Metragem em Annecy (França)

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ASPERIANAS

COMUNICAÇÃO EM PAUTA prensa, alertaram os dois. “Reproduzimos preconceitos”, disse Bellinghini. No bate-papo “Documentário experimental e debates sociais inovadores”, que reuniu o diretor Kiko Goifman e o coordenador de Rádio, TV e Internet, Marco Vale, o debate girou sobre as possibilidades e os formatos na criação de obras de não-ficção. A Coordenadoria de Cultura Geral promoveu em parceria com os coletivos AfriCásper e Lizandra as oficinas “Escrita Anti-racista” e “Ela mudam o mundo pela plataforma digital”, abordando questões sobre comunicação e diversidade. A programação transitou ainda por temas como ativismo digital, inovação no mercado de games, estratégias para creators, relações públicas nas disputas políticas e acessibilidade digital na comunicação pública. (Paula Leal Mascaro)

A QUALIDADE DA PÓS

MARIANA CAVALCANTI

Projetos concluídos na pós lato sensu da Cásper revelam uma nova safra de profissionais de comunicação. Marília Alves escreveu a monografia A importância das Relações Públicas no processo de construção de posicionamento de marca: análise do videocase Beleza à Flor da Pele. “Queria muito fazer um trabalho ligado à ação social, que mostrasse o papel das relações públicas para realçar uma iniciativa social dentro de uma empresa”, afirma. Leonardo Oliveira, graduado em moda, escolheu a Cásper para adentrar no campo da comunicação e investigou o universo da cultura pop. Pisa Menos nasceu em sala de aula como um podcast e resultou num projeto transmídia. “Aprendi que ainda temos um espaço muito grande para esse tipo de produto ser inserido no mercado.”, diz. (Ana Navarro)

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INVESTIGAÇÕES PREMIADAS GUTO MARCONDES/ABRAJI

A 3ª edição da Semana de Comunicação Cásper Líbero, entre 26 e 30 de agosto, teve como eixo central “Comunicação, Pluralidade e Política”. Para dar conta de planejar a agenda, que possuía mais de 50 atividades entre debates, workshops, oficinas e palestras, o coordenador de Publicidade e Propaganda, Fábio Caim, montou uma equipe de alunos voluntários. “Foi uma experiência divertida, com bom humor e muito organizada”, conta. O Centro de Eventos deu o suporte para trazer a série de convidados e organizar os locais das atividades. A palestra “Saúde Mental e mídia” abriu o evento e trouxe o psiquiatra e colunista da Folha de S.Paulo Daniel Barros ao lado da editora da revista Questão de Saúde Ruth Bellinghini. Ansiedade, depressão e suicídio são temas mal cobertos pela im-

Em junho, o painel “Mostre e conte: a nova geração de jornalistas”, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, homenageou novos nomes do jornalismo brasileiro. Entre eles, dois trabalhos do curso de Jornalismo da Cásper. O livro-reportagem Indigentes: o Estado que enterra sem avisar, das ex-alunas Victoria Gonçalves e Maria Vitória Ramos, recorreu à Lei de Acesso à Informação e a uma rigorosa apuração para revelar como o poder público trata mal seus moradores de rua mortos. “A investigação revelou uma realidade kafkaniana e situações extremas, que são de interesse público e tinham que ser expostas”, diz a docente Roberta Brandelise, orientadora do projeto. Outro trabalho homenageado foi o também livro-reportagem Transviados no cárcere: um retrato de LGBTs no sistema penitenciário, de Felipe Sakamoto e Lucas Cabral, sob orientação de Rodrigo Ratier. Para Cabral, a pesquisa trouxe à tona uma realidade carcerária do País que muitos desconhecem. “Conseguimos fazer com que as pessoas olhassem para essa problemática, que é uma discussão ainda muito embrionária e segmentada.” (AN)


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ANTEN DOS

IMPERDÍVEIS As recomendações do que não pode faltar no radar de um bom comunicador por quem entende do assunto: nossos professores.

Cena do jogo The Missing: J.J. Macfield and the Island of Memories

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ANTEN DOS DIVULGAÇÃO

AMOR MODERNO

The Missing: J.J. Macfield and the Island of Memories

Emily e J.J., protagonistas do jogo.

O jogo The Missing, da desenvolvedora White Owls, é um drama que conta a história de J.J., uma adolescente que está em busca de sua amiga e parceira Emily, desaparecida sem deixar rastros em uma ilha misteriosa. Logo no início ela é atingida por um raio que lhe dá a habilidade de se desmembrar e voltar ao normal conforme sua vontade. Essa mecânica peculiar de automutilação é utilizada para resolver enigmas e transmitir o sofrimento que a protagonista sente durante a trama por conta de seus problemas pessoais. Com influências de Twin Peaks, filmes de terror e seriados adolescentes dos anos 1990, The Missing se destaca dos grandes jogos da mídia não só por ter elementos e mecânicas diferenciados, mas também por tratar de temas da comunidade LGBTQ+ com o devido respeito e maturidade. O jogo está disponível em versões para PC (Windows), PlayStation 4, XBox One e Nintendo Switch. Gilberto Faria, professor de Jornalismo e Rádio, TV e Internet

UMA LUZ PARA ENTENDER POLÍTICA O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la O livro O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la, de Yascha Mounk (Companhia das Letras, 50 reais) apresenta uma análise das transições políticas nas principais democracias liberais do mundo. A tese do estudo se baseia no avanço de movimentos extremistas nos últimos anos, colocando em xeque o sistema de representação política mesmo em países onde o modelo de democracia liberal estava plenamente consolidado. O autor destaca Estados Unidos, Rússia, Turquia, Polônia e Hungria como exemplos desse retrocesso que levou à ascensão de líderes populistas e ainda incluiu na lista o recém-chegado Brasil. O livro também explora o crescimento dessas forças políticas em países como Alemanha, Suécia e Holanda. Dentre as hipóteses levanJefferson Mariano, professor de Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Relações Públicas

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tadas, o autor aponta que crises econômicas e a interrupção no crescimento da renda dos trabalhadores contribuíram para essa guinada conservadora, além do fluxo migratório do Terceiro para o Primeiro Mundo e da ascensão dos novos formatos de mídia. Impossível não estabelecer diálogo com outro título publicado pela editora também nesse mesmo ano: Democracia em Risco (vários autores). A diferença é que esse último é resultado de uma coleção de 22 ensaios, elaborados por importantes pesquisadores brasileiros no âmbito das Ciências Sociais, e tem como foco de análise balanço sobre o resultado das eleições presidenciais no Brasil. A leitura desses dois trabalhos contribui para a compreensão do momento político que vivemos hoje.


DICAS RÁPIDAS REPRODUÇÃO

‘O BRÓCOLI DOS PODCASTS’ It’s All Journalism. Podcast (em inglês). Semanal.

O acervo gigante – são mais de 360 episódios produzidos desde 2012 – justifica o nome de batismo: de branded content à desinformação, da cobertura LGBTQ+ ao culto às celebridades, é tudo jornalismo. O cardápio variado é obra de Michael O’Connell, jornalista com 35 anos de carreira e professor na American University, em Washington. Como host, O’Connell faz o que se espera de um bom entrevistador: estuda a pauta, se interessa pelo que os convidados têm a dizer e, principalmente, os deixa falar. O foco quase sempre recai nas transformações do universo da comunicação. O olhar é de um realismo positivo: as dificuldades estão lá, da monetização no ambiente online ao bloqueio criativo na hora de escrever. Mas a maioria dos entrevistados tem algum tipo de solução ou alternativa concreta para apresentar. Como o papo de meia hora pressupõe familiaridade com o universo do jornalismo, não é todo mundo que vai se interessar pelo programa. O bem-humorado slogan brinca com isso: “o brócoli dos podcasts de mídia”. Um site (itsalljournalism.com), e uma newsletter trazem uma lista de episódios, as últimas atualizações e um miniguia para quem quer gravar seu próprio show em áudio. Disponível nas plataformas Apple Podcasts, SoundCloud, Spotify e Google Play. Rodrigo Ratier, professor de Jornalismo

O DONO DO JN O poder está no ar (Nova Fronteira, 576 págs., 90 reais), biografia de Roberto Marinho, é um trabalho de fôlego do repórter Leonencio Nossa. Vencedor do Prêmio Esso (duas vezes) e do Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (cinco), o biógrafo traduz a trajetória do poderoso homem por trás das Organizações Globo e como um império da comunicação foi forjado no Brasil. Marinho sempre transitou pelas cúpulas decisórias do País e foi beneficiado por essas relações. O livro cobre o período que vai dos primeiros dias do empresário do diário O Globo até o nascimento do Jornal Nacional. É um obra necessária (para estudantes de comunicação), porém não espere revelações bombásticas. (Eduardo Nunomura, professor de Jornalismo)

A REVOLUÇÃO ESTUDANTIL O cinema tem se debruçado sobre a barafunda política brasileira. O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos, e Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, trazem reflexões sob o viés dos políticos. Mas foi a jornalista Elisa Capai que conseguiu, com o documentário Espero Tua (Re)volta, previsto para entrar em cartaz em 15 de agosto, conecta fatos ocorridos entre 2013 (“os 20 centavos”) e 2018 (eleição de Jair Bolsonaro). E isso a partir da ótica de estudantes que participaram das ocupações de escolas, em 2015. Havia naquele embrião de revolta juvenil algo de valioso para a democracia, o que explica a truculência para desarticulação do movimento estudantil. (EN)

TALKEI?! Roteirista e jornalista, José Roberto Torero volta à arte que lhe rendeu um Prêmio Jabuti em 1995: a literatura. Explorando os limites entre a ficção e a realidade, o santista publicou Diário do Bolso – os 100 primeiros dias (Padaria de Livros, 100 págs., 33 reais). Em forma de diário escrito em primeira pessoa, a obra registra os cem primeiros dias de Jair Bolsonaro como presidente da República. Os textos, tecidos a partir de declarações e atos de “Bolso”, mas com a perspectiva de Torero, são muitas vezes hilários. Mesmo após o lançamento do livro, Torero segue criando as páginas do Diário do Bolso na internet. Se depender de nosso presidente, assuntos e motivos não faltarão. (Márcio Rodrigo, professor de Jornalismo)

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PARA ENTENDER MAIS

Além da notícia

:: MULTIMÍDIA :: Confira as dicas de conteúdos para mergulhar fundo nos principais temas desta edição

TECNOLOGIA: O longa

O Jogo da Imitação (2014) conta a saga do matemático Alan Turing para construir a máquina que serviu como arma da inteligência britânica na 2ª Guerra Mundial e como modelo para desenvolver os computadores digitais de hoje em dia.

CULTURA DRAG: Todas as 11 temporadas do reality show RuPaul’s Drag Race estão disponíveis para assinantes do serviço de streaming Netflix. As variações RuPaul’s Drag Race: All Stars e Untucked! também estão na plataforma.

INSPIRAÇÃO: Quem quer

empreender não pode deixar de ler o livro De Zero a Um, de Peter Thiel, cofundador da PayPal. Outra leitura essencial é a obra Startup: Manual do Empreendedor, do professor Steve Blank em parceria com o empreendedor Bob Dorf.

MEMÓRIA: O projeto de digitalização das edições d’O Pasquim pela Biblioteca Nacional virá acompanhado de uma exposição exclusiva a ser lançada também em outubro. Fique atento à agenda do Sesc Ipiranga, em São Paulo, que irá realizar a mostra.

NA ESCUTA: O portal Mundo

Podcast reúne dicas, tutoriais e notícias do universo da podosfera. Outro portal com boas indicações de programas é o B9. O Spotify também tráz a seus usuários a sessão Podcasts, que reúne todos os programas disponíveis na plataforma.

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DIRETO DO CÉU: O proje-

to Exploring The Zone, do fotógrafo americano Philip Grossman, reúne imagens de sobrevôo com drones das áreas de Chernobyl e disponibiliza os conteúdos no site oficial, em que se pode navegar pela região.


PÓS-GRADUAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

Produção e Práticas Jornalísticas na Contemporaneidade Produção, Criação e Gestão Audiovisual Transmídia Marketing e Comunicação Publicitária Comunicação Organizacional e Relações Públicas

Para aperfeiçoar atitudes e competências e se colocar em dia com o que de mais atual Processos Midiáticos: acontece na Comunicação.

Saiba mais sobre os cursos de especialização em:

LINHAS DE PESQUISA

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Tecnologia, Cidadania e Mercado Produtos Midiáticos: Jornalismo, Imagem e Entretenimento

INFORMAÇÕES casperlibero.edu.br


FACULDADE CÁSPER LÍBERO

REVISTA CÁSPER

MESTRADO

COMPREENDENDO OS NOVOS DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO

STARTUPS

Investigar os avanços tecnológicos, dos mercados profissionais e dos processos e produtos da mídia para compreender os novos significados da comunicação contemporânea. Esta é a proposta do Programa de Mestrado da Cásper Líbero. O programa desafia seus alunos como pesquisadores a se envolverem na vida acadêmica para acompanharem os avanços e as mudanças que eles provocam na comunicação e na sociedade através de atividades de pesquisa, grupos de estudo e eventos nacionais e internacionais.

Tecnologia, organizações e poder Jornalismo, imagem e entretenimento

INFORMAÇÕES casperlibero.edu.br

Nº 28 – SETEMBRO, OUTUBRO, NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2019

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