Caravela | Edição 05 | 2021

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EDIÇÃO

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Imagem: Anderson Dantas

porque “navergar é preciso”

INSPIRE-SE PARA RESISTIR E SONHAR

Literatura e mobilidade: Biblioteca movimenta cultura de Parelheiros (SP) | Comunidade ecológica: Novo jeito de viver na Chapada Diamantina | Amazônia em versos: Os poemas de escritoras do Região Norte do Brasil | Pós-pandemia: Precarização e ansiedade no mundo do trabalho | Ensaio do cotidiano: O semiárido paraibano sob as lentes de Anderson Dantas | Grafismo e cor: Cultura indígena na arte de Fátima Miranda


Nosso agradecimento às pessoas que contribuíram com esta edição: Marize Castilho Juliana Olivieri Paulo Lima Vanessa Balsanelli Pereira Felipe Pinheiro Werner Garbers Manuela Ribeiro

Mande seus textos, ilustrações, ensaios, comentários e sugestões de pauta para: redacao.caravela@gmail.com. E acesse: www.caravelablog.com.br


Sonho que se sonha junto

Editor Bruno Ferreira Arte e projeto gráfico Manuela Ribeiro Colaboradores(as) desta edição Ana Flávia Marx Ana Sodré Anderson Dantas Daniela Marino Débora Menezes Fátima Miranda Lara Utzig Luiz Felipe Bessa Manassés de Oliveira Mayara La-Rocque Pollyana D’Ávila Priscila Pinto Rodri Nazca Werner Garbers Jornalista Responsável Bruno Ferreira – MTb 62552/SP

Mais do que condição da psique humana, sonhar, em sua perspectiva simbólica e poética, é o motor da vida. Pode representar, para muitos, o espaço privado do refúgio, dos desejos mais íntimos e loucos, mas também o esboço da necessária e constante transformação do mundo. Acontece que vivemos tempos sombrios, cujas sentinelas do ódio e do medo entorpecem nossa capacidade onírica. Exercitar a abstração e idealizar um mundo mais justo e acolhedor a todos e todas pode ser (interpretado como) um sintoma de esquizofrenia. Seja porque a concretude da vida aterroriza os mais críticos, que se não conseguem semear nada além de catástrofe. Ou ainda porque os que insistem em sonhar e lutar têm sido ardentemente perseguidos por reacionários entusiastas de ideologias torpes, reunidas em um movimento que hoje expressa a catarse de preconceitos, racismos, machismos, LGBTfobias e soberbas históricas. A Caravela volta ao mar, após o pandêmico ano de 2020, para contribuir com o sonho que alimenta a alma humana dos defensores da justiça social. Longe de sermos Polianas ingênuas, entendemos o sonho como princípio da luta, que pode ser tratava com firmeza e leveza, sensibilidade e beleza. Os conteúdos desta edição revelam as experiências e o compromisso de seus autores e autoras nesse sentido. Estabelecer uma biblioteca comunitária em um antigo cemitério, viver e colaborar numa comunidade ecológica, registrar e representar o cotidiano de gente simples e de povos originários, refletir e pesquisar sobre liberdade de expressão e formas de enfrentar as precariedades do mundo do trabalho são demonstrações de que sonhar é necessário para fortalecer e inspirar os dias presentes e vindouros, que muito nos exigirão. Que ao ler esta edição, você possa se sentir inspirada(o) e certa(o) de que não está só. Boa leitura! Bruno Ferreira Editor


Serviço de bordo

Papo na Proa. A inspiradora trajetória da educadora social Bel Santos Mayer, vendedora do prêmio APCA 2020, uma das responsáveis por implementar uma biblioteca comunitária num antigo cemitério de Parelheiros, zona sul de São Paulo. Rodri Nazca compartilha sua experiência na comunidade ecológica Campina, na Bahia. E Werner Garbers versa sobre A gestação de 9 meses do novo mundo. Escute o rio, pede Débora Menezes, ao declarar seu amor roxo por Manaus. Enquanto Priscila Pinto compara a capital do Amazonas a uma Maloca. Mayara La-Rocque revela qual é A cor do amor. E Lara Utzig revela a sua versão do Sagrado Feminino. As lentes de Anderson Dantas mostram o cotidiano simples do semiárido paraibano. Ana Flávia Marx reflete sobre os rumos do mundo do trabalho pós-pandemia. E Daniela Marino mostra quais são os limites do humor no contexto da liberdade de expressão. Por fim, o colorido grafismo de Fátima Miranda.


Ponto de partida BRUNO FERREIRA

Aprender e praticar jornalismo Em tempos de desinformação e “fake news”, aprofundar conhecimentos acerca de procedimentos jornalísticos, como apuração, checagem e verificação de informações é algo que toca a todo cidadão consciente de seu papel na cadeia informacional, sobretudo das redes sociais e digitais, em que somos, ao mesmo tempo, receptores e difusores de mensagens. Nesse sentido, é válida a leitura do livro Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir, dos autores estadunidenses Bill Kovach e Tom Rosentiel, que elencam e problematizam nove princípios fundamentais ao exercício do jornalismo, reforçando seu compromisso com a cidadania. Esses princípios resumem-se em: (1) A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade, (2) A primeira lealdade do jornalismo é com os cidadãos, (3) A essência do jornalismo é a disciplina da checagem, (4) Os praticantes do jornalismo devem manter independência de quem estão cobrindo, (5) O jornalismo deve funcionar como um monitor independente do poder, (6) O jornalismo deve apresentar um fórum para a crítica pública, (7) O jornalismo deve lutar para transformar o fato significante em interessante e relevante, (8) O jornalismo deve manter as notícias compreensíveis e equilibradas e (9) Os praticantes do jornalismo devem ter liberdade para exercer a consciência pessoal. Nessa obra, os autores resgatam o sentido público dessa atividade profissional e condenam a atitude acrítica que muitos veículos de imprensa adotam ao darem espaço a opiniões estapafúrdias, negacionistas da ciência e dogmáticas, o que ainda é recorrente em espaços midiáticos que preferem a polêmica em vez da problematização. Por essa razão, Os elementos do jornalismo segue tão atual e merece ser lido.

Educação Midiática na TV Em 2020, o Canal Futura estreou a série Idade Mídia, apresentada por Alexandre Sayad e dirigida por Leonardo Brant. Os 13 episódios da temporada, exibida de 13 de julho a 5 de outubro, estão disponíveis na plataforma Futura Play. Experiências brasileiras de educação midiática, em escolas e organizações sociais, e entrevistas com especialistas no assunto compõem a atração, que conta com a participação de estudantes da Universidade Belas Artes. Desinformação, audiovisual na educação, plataformas digitais para a participação cidadã e games como recursos pedagógicos são alguns dos temas dos episódios, que podem ser assistidos gratuitamente pelo link: https://url.gratis/Kj5LE

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BRUNO FERREIRA

Papo na Proa

Sonho e transformação inspirados pela literatura

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m 2011, começava a me aventurar pelos caminhos da educação que me transformaram para sempre. Nos primeiros passos que dei, tive o privilégio de conhecer a educadora social Bel Santos Mayer, desde então gestora do IBEAC - Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário, com sede em São Paulo. Lembro-me que a única vez que estive em Parelheiros, território no extremo sul da capital paulista, foi na companhia dela e de Gisella Hiche, minha colega, coordenadora da Viração Educomunicação, organização onde pude desabrochar como educador. Lá, Bel e o IBEAC estabeleceram vínculos profundos em razão da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura que ajudaram a fundar e a gerir. Na ocasião, pela pouca experiência e timidez, prestei-me a ouvir mais do que falar. Sabia que teria muito a aprender no diálogo entre aquelas duas mulheres que, desde então, muito me inspiram. Há dez anos, portanto, acompanho Bel, cuja trajetória e amor pela literatura têm semeado força, sonho e autonomia em jovens moradores de Parelheiros. Tanto é que Bel é a vencedora do prêmio APCA 2020, da Associação Paulista dos Críticos de Arte, por seu trabalho de difusão da literatura no país. Aos 14 anos já era alfabetizadora de adultos no Parque Santa Helena, favela onde nasceu, na zona leste de São Paulo. Desde os anos 1990 trabalha

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no IBEAC, onde começou como formadora em Direitos Humanos. Ela se considera leitora tardia, pois foi aos 18 anos que tomou conhecimento da literatura negra, com os Cadernos Negros, série literária criada no final dos anos 1970 que publicou o trabalho de autores(as) negros(as). Em 2010, atravessando um tratamento de câncer, Bel teve que se afastar de muitas de suas atividades. Mas negou-se ao ócio e ao medo. Foi nessa ocasião que retomou a condição de aluna: cursou Turismo, na EACH/USP. A nova carreira fez tanto sentido que, além de colocá-lo a serviço de sua atuação em Parelheiros, refletindo seu potencial em turismo comunitário, Bel está na reta final de um mestrado na área, também na EACH/USP, onde trabalha com o paradigma das novas mobilidades, conceito novo nas ciências sociais, em que “as mobilidades (e a ausência delas) explicam todas as relações que existem na sociedade”, explica Bel. Em sua dissertação, a educadora analisa “as mobilidades que as leituras de Parelheiros proporcionaram aos jovens, a nós, gestoras, e para o próprio território. Estou dizendo que a literatura faz com que corpos circulem, as pessoas circulam, os objetos circulam – livros, mobiliários – e também os imaginários, aquilo que a gente deseja que seja esse lugar do livro e da leitura. E aí chega num ponto que quem viaja é a própria biblioteca”.


Crédito da imagem: Livia Wu

“Eu fui me formando com os meninos, fomos aprendendo estratégias de mediação de leitura, jeitos de reescrever textos até a mãe da gente entender.”

Como se deu essa sua aproximação com Parelheiros? Nós, em 2006 – quando eu falo nós é a gestão do IBEAC, eu e a Vera Lion – começamos a nos perguntar o que aconteceria se nós levássemos tudo aquilo que a gente sabe fazer, as pessoas mais bacanas que a gente conhecia para um território que fosse considerado o pior lugar para se viver. Pouco tempo depois, no comecinho de 2008, sai um ranking do Índice de Desenvolvimento Humano da cidade de São Paulo. Naquele ranking, organizado por distritos, Pinheiros aparecia como melhor lugar da cidade de São Paulo em infraes-

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Crédito das imagens: Fernando Cavalcanti

trutura, longevidade, escolarização da população e Parelheiros aparecia como o pior lugar. O IBEAC está em Sumaré, próximo a Pinheiros. Então, a gente falou: agora o melhor lugar, com todas as aspas, precisa se encontrar com o pior lugar porque tem uma dívida com o pior lugar. E como a gente tinha trabalhado quase sete anos com os profissionais de saúde de lá, voltamos e os encontramos nas mesmas posições. E em sete anos você precisa garantir mobilidade para as pessoas. Então aquilo para a gente foi mais um indicador de que tinham coisas ali que precisavam mudar. E aí nós começamos apresentando os dados de Parelheiros para a gerente da unidade de saúde. As pessoas ficaram revoltadas em ver como as pesquisas vão lá, perguntam, publicam os dados e ninguém volta, nem para discutir os dados, nem para transformar a realidade a partir dos dados que elas observaram. Foram três encontros e as pessoas quiseram começar pelos jovens, mas só tinha velho naquela reunião. Então, uma professora os chamou e na semana seguinte apareceram 27 jovens. E aí a gente começa reescrevendo os Direitos Humanos, olhando como eles estavam garantidos ou não em Parelheiros. E aí apareceu o Direito à Educação, a biblioteca da escola estava fechada há um ano porque a professora que cuidava da biblioteca foi embora e a escola tinha medo de entregar a chave para os alunos. Os meninos falaram: “A gente quer abrir a biblioteca da escola”. Nós falamos: “Puxa vida, de biblioteca a gente entende. E se a gente criasse a nossa?”. Criamos, um ano depois. “Eu digo que ali [a biblioteca] é um dos poucos casos em que sair de uma unidade de saúde para um cemitério significou uma melhora, porque foi o que aconteceu conosco. Hoje, a biblioteca se esparrama pela comunidade.”

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Você disse que você foi uma leitora tardia. Como é que, então, surge o seu interesse por literatura. Eu vi alguns vídeos seus e você se destaca neles ao recitar poemas, demonstrando envolvimento e sensibilidade para textos literários. Essa relação se deu a partir de quando, e de que autores e autoras? O primeiro contato foi com os autores negros numa manifestação contra o racismo no Brasil. Olha, super atual! Foi no Ipiranga, que é um bairro aqui da região sudeste [da cidade de São Paulo] e era uma manifestação dentro do Feconezu [Festival Comunitário Negro Zumbi] e eu lembro desses jovens do Rio de Janeiro, mais velhos que eu e eles, na Avenida Nazaré, declamando poemas, particularmente do Solano Trindade, que tem um trecho que ele fala: “Eles querem que nós saibamos que eles foram senhores e que nós fomos escravos”. E aí, no final ele fala: “Eu disse fomos”. Eu lembro de ter voltado para a minha casa, na zona leste, com esse poema na minha cabeça. Então, esse foi um começo para acessar os Cadernos Negros. Nele, a rainha Conceição Evaristo publicou seus poemas, a Miriam Alves, Cuti, Oswaldo de Camargo. Então, eu fui conhecendo essas pessoas ali. Mas depois, quando eu conheço o Programa Prazer em Ler, em 2009, a gente entra nessa rede, onde havia pessoas que viviam da literatura, grandes leitores, grandes formadores de leitores literários. Eu fui me formando com os meninos, fomos aprendendo estratégias de mediação de leitura, jeitos de reescrever textos até a mãe da gente entender. Então a gente sabia falar com a nossa comunidade não leitora e nem letrada. A biblioteca de Parelheiros, a Caminhos da Leitura, fica num cemitério? Eu digo que ali [a biblioteca] é um dos poucos casos em que sair de uma unidade de saúde para

Crédito da imagem: Acervo IBEAC

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“Um dos jovens me disse que, para ele, tem sido enlouquecedor estar há três meses sem ter silêncio para a leitura. Então eu acho que eu acho que a gente vai começar a reivindicar o direito ao silêncio também.”

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Acervo pessoal de Bel Santos Mayer

um cemitério significou uma melhora, porque foi o que aconteceu conosco. A gente saiu de uma unidade de saúde, foi para os fundos da unidade, que é onde fica o cemitério do Colônia, reformamos a casa do coveiro, que estava abandonada, porque hoje o coveiro é um morador do bairro, ele não precisava da casa, e aí a gente transformou um lugar de morte num lugar de vida, com os jovens, a maioria negros, que tem que enfrentar o genocídio da comunidade negra, e está lá no cemitério, falando de vida, de leitura. A gente ganhou essa narrativa de presente, foi lindo e estamos mais vivos do que nunca. A biblioteca Caminhos da Leitura foi criada há 11 anos pelos jovens e por nós, de lá nasceu a Casinha das Histórias, que fica ao lado da escola [Escola Estadual Belkice Magalhães Reis], nós temos uma cozinha de alimentação saudável, que surgiu também de dentro da biblioteca, nós temos uma casa do Meio do Caminho, que fica ao lado da maternidade de Interlagos, que é uma casa onde as crianças e suas mães passam a entrar em nossa família literária de Parelheiros e hoje a gente tem um roteiro de turismo de base comunitária, que é o GAP – Grupo de Apoio de Parelheiros. Hoje, a biblioteca se esparrama pela comunidade. A gente vai produzir o primeiro livro literário das crianças de Parelheiros, dentro de um projeto que chama Nascidos para ler no melhor lugar para se viver. A gente quer que Parelheiros saia desse lugar de pior lugar para se viver para ser o melhor lugar para se nascer.

Eu li uma matéria a seu respeito em que você destaca bastante a questão da memória e a importância de o jovem contar sua própria história, com suas próprias palavras. Como as mídias digitais, que reforçam tanto a instantaneidade e o imediato, facilitam ou dificultam o trabalho de resgate e construção da memória? Nós, no início, não conseguíamos utilizar as mídias em Parelheiros porque celular não funciona na maior parte da região, na biblioteca também não. Mas hoje, são quase 50 pessoas do território, que são os gestores, articuladores. A tecnologia passou a ser essencial para a nossa comunicação. E aí, o que a gente começou a fazer, no começo, tudo o que a gente ia aprendendo, ia partilhando. Dois jovens [de Parelheiros] foram para Berlin, foram os primeiros a ir para um outro país, um dos primeiros a pegar avião. E quando eles estavam lá, eles criaram a hashtag #DeParelheirosParaOMundo. E a hashtag virou um jeito de a gente contar a memória do que


está acontecendo em Parelheiros durante esses 12 anos, porque todo mundo incorporou isso. Então a tecnologia vira uma forma de garantirmos o direito à comunicação, o direito à cultura, o direito a usar nossa própria voz e com um alcance muito maior. Nesse momento de Covid-19, o que ela tem feito para os jovens é o desafio de transformar isso em linguagens e formatos que mais pessoas tenham acesso. Então, agora tem o podcast Vozes Daqui de Parelheiros, que está virando uma agência de comunicação, em que a literatura vai conectando tudo aquilo que a gente faz e todo mundo consegue se envolver. Mas aí as pessoas não têm alguns aplicativos para conseguir fazer a leitura, então o pessoal tem transformado isso em áudio que vai para o celular e também tem um carro de som que circula, veiculando os conteúdos do podcast. É um pessoal que está a mil. Como você vislumbra a produção cultural nas periferias, a partir de agora, nesse contexto de pandemia, e a educação social. Que desafios teremos? Pelo que a gente está vendo agora, algumas tendências: nós vamos lutar mais pelo direito à comunicação, porque a gente não tem banda larga na periferia e em muitas áreas rurais. Ninguém vai querer ficar dentro de casa como nós estamos agora só ouvindo o que os outros dizem sobre nós. Eu tenho falado com os jovens e uma das coisas que eles mais têm sofrido é nunca mais ter conseguido ter silêncio, porque ninguém mora sozinho, todo mundo mora com famílias e em casas em que dividem o quintal com um monte de gente e a leitura pede para a gente um pouco de pausa, silêncio também. Um dos jovens me disse que, para ele, tem sido enlouquecedor estar há três meses sem ter silêncio para a leitura. Então eu acho que eu acho que a gente vai co-

meçar a reivindicar o direito ao silêncio também. A gente vai precisar se cuidar para não sermos invadidos pelos outros, já que não dá para pegar avião para viajar para longe, vão então conhecer Parelheiros e aí perturbar o cotidiano das pessoas que vivem lá. Há três anos, nós precisamos criar um limite para as visitas, fixar um dia no mês, porque senão, os meninos diziam, a gente não vai fazer mais nada, só contar o que a gente faz. Então, os nossos modos de vida vão interessar cada vez mais gente. Toda hora eu vejo uma live com alguém de Parelheiros”. Porque uma das primeiras coisas que a gente fez, para um dos nossos apoiadores, foi escrever e falar: olha, a gente quer transformar todo o recurso que tem para transporte e alimentação em internet, senão esses meninos não vão ter com quem falar, porque o que eles têm de internet no celular deles mal vai dar para eles conversarem com o pessoal da faculdade para terminar os trabalhos. E aí isso virou um movimento nacional de quem é apoiado por organizações para transformar o recurso. Isso ao mesmo tempo que alguns, facilmente, tinham pensado em cancelar seus cursos e esperar a vida voltar ao normal. Que normal? Sabe o que é para um jovem entrar numa universidade, o que isso significa para a família? Então, agora é a hora de a universidade entrar na casa desses meninos. Então, não é cancelar. Vamos nos virar todo mundo e aprender a usar a tecnologia, pensar qual é o melhor formato. Acho que nós, das periferias, os educadores sociais, temos uma boa estrada que vai dar para compartilhar.

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RODRI NAZCA

A Larguei a cidade e me mudei para uma comunidade ecológica na Chapada Diamantina

A Campina é tecida por inúmeras trilhas belas por entre a floresta. Para todo lugar que você vai aqui dentro, é um caminho repleto de beleza.

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té os 27 anos vivi na cidade. Natal (RN), capital, beirando um milhão de habitantes e todas as “maravilhas” que isso representa, trânsito, shoppings, barzinhos, violência, vida agitada, poluição, universidade, barulho. Mas desde jovem sentia que tinha algo errado nisso, ao menos para mim. A partir dos 16, envolvida com movimentos sociais, passei a refletir sobre o espaço urbano e o modo de vida, para que e para quem ele serve. Sobre as longas distâncias e horas de vida perdidas em engarrafamentos, a insônia do ritmo de vida acelerado, o estresse e ansiedade, o medo e angústia, a desigualdade gritante e os conflitos e sofrimentos gerados. Aos 22 me mudei para um bairro que tinha um forte sentimento de territorialidade, pois antes fora uma vila de pescadores. Vivia em uma casa com amigos onde buscamos criar uma comunidade alternativa urbana, que fosse lar, espaço cultural, jardim-horta, lugar de trabalho, lazer, afetos, autocuidados, celebração, que fosse o lugar mais integral possível.


Todos os meses acontece na Campina a Sambada do Abobe, um evento aberto ao público em que dançamos música popular, cocos, maracatus, sambas de roda, enquanto produzimos tijolos de barro cru, conhecidos como adobes.

Foi quando, aos 24, visitei o sítio de amigos em Minas Gerais e tive um grande salto de experiência e consciência. Eles viviam numa casa feita de barro, construída por eles mesmos e amigos em mutirões, tratando todos os seus resíduos e energia solar, plantando e criando galinhas, vivendo numa paz que eu nunca sentira antes. Reencontrei a Permacultura, ciência que busca planejar e realizar ambientes humanos sustentáveis e decidi me dedicar a ela. Naquele mesmo ano participei pela primeira vez do Enca - Encontro Nacional de Comunidades Alternativas. Foram sete dias no mato, com mais de mil pessoas de todo país, fazendo

refeições de forma comunitária e com a participação de todas na cozinha, sem eletricidade ou telefone, banho de rio todo dia, discutindo e vivendo ali mesmo de uma forma totalmente diferente, mais simples, com menor impacto ambiental, em contato direto com a natureza. Após várias tentativas de viver de forma mais natural e comunitária na cidade, passei por uma profunda crise existencial e emocional por não me sentir parte da cidade nem dessa sociedade capitalista. Era para mim um ambiente estranho e feito para dar errado, fruto e gerador de injustiça, consumismo, doenças, destruição, poluição e desconexão com a natureza e consigo.

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O principal prédio comunitário da Campina é nossa cozinha. Nela nos reunimos todos os dias para partilhar o alimento e interagir entre nós. Reuniões e celebrações, brincadeiras, danças e capoeira também acontecem aqui.

Em 2019 eu realizei várias ações culturais no Vale do Capão e na Campina. Uma delas foi a Semana da Memória do Capão, que aconteceu em três bibliotecas comunitárias, entre elas a biblioteca da Campina, onde essa foto foi produzida.

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Enfim chegou o meu limite. Após 6 meses de forte depressão e desamparo, resolvo largar esse lugar que me criou e ir viver mais intensamente o que eu vinha estudando, pesquisando e sonhando há anos. Logo após o Enca de 2019 na Chapada Diamantina, me mudei para a Comunidade Campina, ecovila situada no Vale do Capão, Bahia. E foi e está sendo uma revolução pessoal. Morando aqui, já passei por diversas processos e fases, antes da pandemia e após a pandemia. Momentos expansivos e reclusivos, eufóricos e disfóricos, de deslumbramento e de reflexões e conflitos. A Comunidade Campina fica a cinco quilômetros do “centro” da vila Caeté Açu, distrito rural do município de Palmeiras (BA). Demora de 40 minutos a uma hora para chegar lá a pé, eventualmente com caronas. E aqui é comum as pessoas da região oferecerem carona para pedestres. Mas essa distância já é o suficiente para nos proporcionar um certo sentimento de isolamento em relação ao frenesi multicultural da vila, que atrai pessoas de todo o mundo e tem muita arte, cultura, espiritualidade e esoterismo. No início eu tinha a sensação que a Campina era outro planeta. Primeiro porque aqui é bem grande. São 180 hectares, 1 milhão e 800 mil metros quadrados. Dessa área, nós ocupamos com as casas e construções comunitárias uma pequena parte e o restante são matas, campos, pequenos morros, rios. Somos cercados por um riacho. Então dá para andar bastante por diversas trilhas aqui dentro e daqui temos acesso para várias trilhas naturais do Vale do Capão. Segundo porque pode-se passar meses sem precisar sair da comunidade, mesmo antes do isolamento social. Nesse espaço temos quase tudo que uma pessoa pode precisar. Temos o trabalho comunitário dividido entre a agricultura, bioconstrução, biocosméticos, produção de


eventos e cursos, manutenção da comunidade e alguma outra demanda que possa surgir. Temos as três refeições do dia todos os dias da semana de forma comunitária, preparadas por todas as pessoas moradoras e aspirantes a moradoras, revezadas numa escala semanal. Temos herbário com plantas medicinais para muitas de nossas necessidades de saúde e chás. Temos uma pequena pré-escola para crianças de até seis anos. Produzimos nossa própria eletricidade com painéis solares, captamos nossa água de uma nascente próxima, tratamos nossos resíduos, transformando os restos de alimentos e nossos dejetos humanos em adubo. E temos Internet. Somos uma grande família, hoje com 18 pessoas vivendo, trabalhando, se alimentando e se cuidando todos os dias. Tem gente menos e mais sociável, falante e mais calada, arteira e tecnológica, mística e cética. Uma variedade de pessoas em constante mudança porque, exceto neste período de pandemia, estamos sempre recebendo gente nova. No começo, o contraste entre o modo de vida urbano e esse modo de vida mais ecológico e em intenso contato com a Natureza é profundo. Nos primeiros meses eu me peguei diversas vezes com a indagação interna sobre se aquilo era real. Sentia-me num sonho, numa dimensão paralela. Aos poucos fui me adaptando com a pureza da vida, com ar e água de “verdade” (não contaminados); com um horizonte não artificial (montanhas e ondulações do relevo verde a perder de vista); com convivências simples com pessoas que compartilhavam, com suas diferenças, sonhos comuns. Com o tempo também pude adentrar mais profundamente em cada pessoa, percebendo suas sombras, limites, processos de aprendizado. Passei por conflitos, discussões, dificuldades sociais, que me transformaram e me levaram a uma compreensão dessas linhas tênues entre as

compreensões de cada uma e as melhores maneiras de propormos transformações coletivas. Um dos grandes aprendizados foi a relação com o tempo. Na cidade nos é imposta uma velocidade, uma intensidade, uma ansiedade por resultados, respostas, produção, acontecimentos. Nos mantemos ocupadas muito constantemente, não temos tempo para a contemplação, para o ócio ou se, por acaso nos permitimos esse tempo, também sofremos uma crítica visível ou invisível, uma pressão e cobrança para voltarmos ao fluxo frenético. E quando eu cheguei, acabei trazendo comigo essa expectativa de velocidade, de mudanças constantes. E fui descobrindo, aos poucos, e com tropeços no percurso, que o tempo na Campina é lento, que muito se passa no subsolo da existência, e que com paciência e constância as coisas vão acontecendo ou deixando de acontecer, conforme as possibilidades e limites de todas. Atualmente estamos nessa jornada de atravessar a crise da pandemia. Descobrimos o quão importante e urgente é garantirmos nossa autonomia alimentar, produzindo o máximo possível do que consumimos. Fortalecendo a importância de cuidarmos de nossa saúde mental e convívio social saudável, praticando o respeito, empatia e perdão umas com as outras. Não está sendo fácil, mas todas aqui sabemos o quão privilegiadas estamos sendo por estarmos aqui, especialmente nesse difícil período global. A pandemia, entre tantos efeitos, aumentou as tensões socioafetivas entre nós, diante do temor do vírus adentrar nossa comunidade e ameaçar a vida das pessoas no grupo de risco. Recentemente iniciamos uma roda de saúde social, um momento semanal para trabalharmos nossa comunicação interpessoal, nosso autoconhecimento e melhorarmos nossa mediação de conflitos. É uma ação que muito me identifico e

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Nos últimos tempos passei a fazer caminhadas ao fim de tarde até o Curucuro, percurso que leva cerca de 40 minutos. Em uma destas jornadas, presenciei um dos arco-íris mais belos da vida.

estou participando dos planejamentos e preparações de cada encontro. Também porque me inspira e fortalece minha experiência para multiplicar esses saberes com outros grupos e pessoas que queiram viver de forma comunitária. Sinto que essa crise mundial pode ser um divisor de águas para muitas pessoas em relação a esse modo de vida dominante e destrutivo e acredito que mesmo durante e principalmente após o isolamento social, muitas pessoas buscarão sair das cidades e encontrar outros modos de vida mais saudáveis, conectados consigo e com a

Natureza, mais justos e partilhados. A Campina tem muito a contribuir com esse movimento, da qual já participa há décadas, e já espero com alegria as pessoas que chegarão nesse próximo ciclo. Daqui dois meses me torno oficialmente moradora da Campina (o que acontece após viver aqui durante um ano), o que marcará mais uma etapa desse enraizamento neste lugar, nesta família e um grande amadurecimento em mim sobre outras formas de viver que me deem mais sentido, esperança, saúde, paz e amor. Tenho muito a agradecer e sei que há muito trabalho pela frente. E reforço esse chamado a todas as irmãs e irmãos leitoras a caminharmos juntas rumo a mundos baseados no Bem-Viver, na conexão de todas as seres, em harmonia, superando a exploração, a violência, a injustiça e as desigualdades. Quanto mais nos unirmos e criarmos laços de solidariedade e apoio, seja na cidade ou no campo, mais nossa vida florescerá e a vida ao nosso redor. Após a pandemia, voltaremos a receber pessoas visitantes, voluntárias e interessadas em morar conosco pelo tempo que sentir.

Compartilho com todas meu instagram @rodri8nazca, o da Campina @comunidadecampina, nosso site www.comunidadecampinga. org e meu e-mail de contato mandalapermacultura@gmail. com para que possamos seguir conversando e partilhando.

Rodri Nazca é uma desajustada ao sistema dominante, teimosa em buscar viver diferente. Amante e praticante de artes e educações para o bem viver em conexão com a Mãe Natureza e a Vida Cósmica, vem atualmente dedicando-se a produzir alimento na Horta e nos sistemas Agroflorestais na Comunidade Campina.

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WERNER GARBERS

A gestação de 9 meses do novo mundo Eis ela, em quarentena maternal, barrigal, natal Criando proteção, (trans)formação, - é meio ser Deus(a) isso de ser mulher, não? Todos os ânimos, todos os estímulos, todos os hormônios… em comunhão… As mulheres, mesmo quando não têm filhos, aprenderam a gerar o mundo, e foi com a mãe Terra. Enquanto a mulher pode criar um ser dentro da sua barriga, já o homem… bom… o homem…… Ele só pode criar – Ah, aquele filho da mãe! -…

Você já sabe o que ele pode criar na barriga!

Resultado: menos mortes em muitos países gestados por mulheres durante a pandemia - Claro, tem também algumas má(s)culadas pelo vírus dos genocidas febris e em cólera Mas as mulheres, sofrimento e sangue, conseguem: parto de esperança, natural, vital, Sim, todos queremos voltar a esse estado de equilíbrio entre os corpos No fundo, a carência que todos sentimos na quarentena é de ter, de novo, uma energia maternal Entre o eu e o outro. Simples assim E as mulheres estão à frente desse novo mun do em ges ta çã o

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DÉBORA MENEZES | ILUSTRAÇÃO: PRISCILA PINTO

Escute o rio Um dia, certo homem disse Semicerradamente olhando-me nos olhos: Escute o rio Sinta o que ele te susurra E que suas águas escorram pela sua alma Para que entendas Tu, e ele Rio e pedra rolando E naquela esquina Daquela movimentada cidade Foi que o Negro mar se revelou Um ser que me transporta caminho adentro. Mesmo quando longe Mesmo quando fora da linha do horizonte Mesmo que daqui só veja a ponte Em meio a muitos telhados E muitos pores do sol. Manaus que cospe, tritura, chacoalha e revira Manaus que surta, colore, dança e delira Uma cidade que define quem somos Nascendo ou não aqui Ninguém é indiferente a ti Existimos porque estamos Onde vamos parar depois daqui Não sei. Mas, com certeza Nunca mais serei a mesma E vou carregar suas pedras Suas folhas Suas águas Seus paradoxos E suas certezas Por aí. 18

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Débora Menezes, jornalista de formação, poeta e autora do livro Amor Roxo por Manaus e Outras Histórias (2018), com fotos e ilustrações de sua autoria. É apaixonada pela Amazônia, viveu três anos em Manaus (AM) e pouco mais de seis meses em Roraima, quando lançou o livro independente sobre suas andanças na capital do Amazonas e pelos rios que passou por esses anos todos. Em Manaus, organizou três saraus com escritoras e o fanzine 350 graus, em homenagem aos 350 anos da cidade, em 2019. Desde o início da quarentena, em final de março de 2020, voltou para sua cidade de origem (Campinas, SP) e realizou a série de saraus-live O Norte é Forte, no instagram @debieco, com participação de escritoras (e alguns escritores) de Manaus, Boa Vista (RR), Porto Velho (RO), Belém e Altamira (PA), Macapá (AP) e Rio Branco (AC). Foram 13 encontros e 25 participantes. A autora quer lançar um segundo livro de poemas e, por enquanto, publica no blog debieco. tumblr, videopoemas no Youtube http://bit.ly/ YoutubeDM2020 e no próprio Instagram.


PRISCILA PINTO | ILUSTRAÇÃO: DÉBORA MENEZES

Maloca Manaus, maloca da cobra, obra - inacabada na beira do rio, plantada. oca que não é oca, que é funda, profunda, louca cheia de mundo, cheia de si, cheia de tudo e nada!

Priscila Pinto (1978) é artista visual, poetisa e professora de arte na Universidade Federal do Amazonas. É licenciada em Artes Plásticas e tem mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia - UFAM. Pesquisa sobre processos de criação artísticos. Possui premiações em artes visuais e literatura, com livros publicados.

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MAYARA LA-ROCQUE

a cor do amor

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Queria escrever um tanto sobre tantas coisas mas só me vem frases esparsas fragmentos fissuras mal contadas frente à intensidade do que só acontece sem pedir licença sem esperar parece um rio abaixo de outro rio esse mundo que corre maior que a palavra e a palavra de tão funda inunda o próprio rio mas

quem sabe essa é a forma que eu encontro de não me explodir junto com a casa toda bagunçada e vazia eu tenho atravessado noites a dentro dessa casa bagunçada e vazia embora dentro de mim os hóspedes sejam muitos e também as visitas inusitadas, para estas, tenho deixado a porta completamente escancarada

Tá tudo tão que parece o estômago tomou o lugar da boca e dói me vem uma azia pelo acúmulo de coisas de que não te falei e poderia mesmo ter falado mas agora me pergunto como, há coisas que precisam ser digeridas mesmo é no estômago e nesse caso, sei que não foram é por isso que estou cá a escrever frases esparsas insuficientes do tamanho dessa casa vazia com a pia sempre abarrotada de louça quanto mais eu lavo mais se sujam os pratos e se deixar eu atravesso o dia ariando panelas esfregando palha de aço na boca do fogão


certa noite lua cheia abri todas as janelas feito louca varrida e gritei para que todos entrassem e para que os que tivessem dormindo acordassem mas não quis acender as lâmpadas para que não ofuscassem os olhos por isso ascendi uma vela de cada vez: uma no meu quarto outra no de minha mãe e nos quatro cantos da sala também vazia, eu só ouvia o meu grito parecia só eu estar acordada mas foi no banheiro mesmo que eu lembro de ter rezado à luz de vela, enquanto a água caía da torneira lembro de ter me emocionado com a sombra da fumaça que subia pela parede parecia uma miragem queria ter fotografado mas há tempo compreendi: não se fotografa sonhos há certas aparições que só existem para aquele que as vê

o fato é que o sonho por um instante foi o maior consolo de meu rezo esse de se ver em um mundo tão caro e não custar absolutamente nada acreditar que do lado de cá é tal qual um conto de fada na parede até se vê um espelho de sombras e as salamandras vez ou outra alumiam no escuro Dias depois minha mãe me contou uma história lá da casa de minha avó ela também estava acordada e de madrugada as tampas das panelas se debatiam sozinhas debaixo da pia e nesse momento não sei se por medo ou em busca de consolo ela também acendeu uma vela talvez fosse eu que gritasse talvez fosse pra acordar todo mundo da casa onde só minha mãe estava acordada

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Na mesma semana ou na semana anterior já nem mesmo me recordo quando foi que eu escrevi um poema sobre minha avó - a mãe de meu pai Não se foi por conta de um poema que li ou por conta dos dias que me levaram até o poema lembro de minutos antes ter caminhado por detrás da Basílica e ao dobrar a esquina me afrontar com um fim de tarde esgalhando o cinza contra os ramos da velha samaúma fronteirando aves num rastro laranja de céu vermelho prossegui os passos e mais a frente noutra parte do caminho escuto alguém dizer: como pode um lugar tão frio guardar tanta beleza? Foi exatamente o que pensei Quando vi o cinza e o rastro laranja vermelho E era tudo mais um disfarce para falar do poema que falava sobre os ossos sobre como carregá-los e de se ter entre os braços um feixe amoroso um corte uma lembrança onde de repente me dei conta: minha avó a mãe de meu pai morreu com um câncer na garganta

lembrei de sua casa que é a mesma de meu avô hoje, vejo não ser muito diferente da minha é a mesma de meu pai e de meu irmão meu pai que não mora aqui e meu irmão que por vezes parece, também não pensei nessa ausência pensei como é ter um ferimento que cresce na garganta pensei no silêncio e no estômago que se confunde com a garganta e que minha vó mesmo com voz ausente alimentava a todos sem distinção talvez fosse o amor que ela tinha por todos com alguma distinção um amor maior do que ela própria e que ninguém a não ser minha avó poderia sustentar e ainda sustenta é por isso que hoje quando penso na ausência eu escrevo esse poema e é na sua voz que me faço presente e se pedissem para que eu dissesse sobre a cor desses dias que se seguem eu diria vermelho vermelho porque é e sempre foi senão a cor do sangue senão a cor da vida a-cor-do amor

Mayara La-Rocque é escritora paraense, poético-educadora, contadora de histórias, graduada em letras com habilitação em língua francesa pela Universidade Federal do Pará. É autora do livro artesanal Atravessa a tua viagem (2016) e de Uma luminária pensa no céu, publicada pela Edições do Escriba (2017).

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LARA UTZIG | ILUSTRAÇÃO: POLLYANA D’ÁVILA

Sagrado feminino

Tem vezes que eu queria ser bicho. Ser gente pesa. Ser mulher pesa ainda mais. dores mensais dores diárias seios fartos que servem só para ser colo do mundo me desnudo em paciência e sangue. (Ser mulher no Norte é sustentar o país inteiro) Mesmo escolhendo não ter filhos sou mãe daqueles ao meu redor: amigos alunos colegas namoradas sei o nome de todos de cor e jamais devo esquecer. Mulher não pode falhar em nada, mulher só precisa fazer as tarefas, lembrar e ceder. Ser mulher é abrir mão. Ser mulher é não dizer não. Sim para a mais suja proposta sim para um encontro de bosta sim para um compromisso extra sim para uma reunião besta sim para tudo que resta. Inclusive… Ser mulher também é emudecer. Já tive que encontrar meu próprio remédio para superar calada um assédio… Aliás, essa é a única coisa que à mulher é permitido esquecer.

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TEXTO: MANASSÉS DE OLIVEIRA | ENSAIO: ANDERSON DANTAS

O processo criativo de Anderson Dantas

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s personagens deste ensaio surgiram em frente à lente da câmera de Anderson Dantas. Na porta de casa ou durante um trabalho de rotina, as janelas de oportunidades se abriram e ganharam um olhar sensível de quem acredita que o efêmero também pode ser perenizado. Os lugares retratados também não passaram por seleção prévia. São, na verdade, fruto da passagem do fotógrafo pelo cotidiano das cenas retratadas e da sua vontade de perceber o fortuito. Sem um porquê nem um motivo declarado de antemão, o fotógrafo Anderson Dantas clicou pela emoção de fotografar as cenas, as pessoas e os lugares com os quais se deparou. Com isso transformou em história a simplicidade dessas

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rotinas e destacou sua importância. Nem sempre a vida tem um projeto. Nem sempre o fotógrafo tem clareza sobre o objeto de sua arte. É vivendo que se vive. E é fotografando, com algum sentimento inconsciente, que se descreve a luz de todo instante para o qual não percebemos e, quase sempre, desprezamos. Anderson não é fotógrafo de tempo integral. Já tentou ser astrônomo. Mas acabou enveredando para a medicina. Enquanto não termina o curso, fotografa para testar técnicas, guardar as imagens das pessoas e lugares que lhe encantam e alegrar o próprio coração. Quando afeta outras pessoas, multiplica sua alegria e ganha mais motivos para continuar fotografando.


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ANA FLÁVIA MARX | IMAGEM: LUIZ FELIPE BESSA

Refletir sobre os rumos do mundo do trabalho é pensar sobre o futuro da sociedade

Há muitas semelhanças entre o trabalho do entregador de aplicativo – que tem se levantado contra as condições precárias de trabalho – e outros como por exemplo, secretárias, professores, jornalistas etc. O traço comum é o contexto de crescente mediação das plataformas na vida em sociedade.

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pandemia da Covid-19 (Sars-CoV2) tem revelado diferentes desafios para a humanidade. A doença que já se alastra há meses em todos os continentes do mundo tem feito com que as pessoas reflitam também sobre mudanças que afetam a todos nós: as transformações no mundo do trabalho. Essas alterações não se iniciaram na pandemia, mas o período foi o dínamo para que fossem testadas e implantadas como a expansão do teletrabalho, o crescimento do home-office e outros dispositivos que fazem parte do projeto da chamada Indústria 4.0. Diferente das imagens dos filmes futuristas em que o homem descansa enquanto as máquinas fazem todo o seu trabalho dos mais complexos aos serviços de casa, como no famoso The Jetsons, de Hanna Barbera, o sujeito do século XXI é como se fosse uma extensão das máquinas em uma jornada atenuante de mais de oito, 10 e que chegam até 14 horas diárias. No desenho, George Jetson reclamava de suas três horas de trabalho diário na Spacely Sprockets, onde sua principal responsabilidade era repetidamente apertar um botão em um computador grande. Assim como na criação de Barbera, as semelhanças entre os propagandistas da “nova” Revolução Industrial 4.0 são residuais. Há mais de cinquenta anos, o mito do determinismo tecnológico utiliza diferentes dispositivos discursivos e simbólicos para esmaecer que somente o trabalho é capaz de gerar valor. É, portanto, como afirmou o certeiro alemão Karl Marx, uma mercadoria diferente de qualquer outra porque é a única que cria valor. Desde 1973, crise que desencadeou o neoliberalismo, as tecnologias de informação e comunicação (TICs) assumiram o papel de organizar a gestão das empresas, agora distribuídas em diferentes países, principalmente onde o custo

do trabalho é menor, e também como mecanismo de controlar as ações dos trabalhadores, para citarmos apenas duas funções, entre muitas que as TICs cumprem na cadeia global de valor. Da década de 70 para a outra crise estrutural do capital em 2008, essas características foram ainda mais desenvolvidas e encontraram no cenário devastado pela recessão do subprime o assento ideal para ampliação da flexibilidade, alargamento da jornada de trabalho, devastação de direitos e garantias sociais. Como reflexo dessa crise, estava dada disputa desenfreada por recursos naturais, estatais e geopolíticos entre forças e corporações que utilizam-se por estratégias por dentro dos Estados-Nações. Já na largada dessa “corrida” é possível ver uma perdedora potencial: a classe-que-vive-do-trabalho.1 Só é possível aprovar os planos de austeridade com a retirada de direitos e conquistas históricas se estiver em jogo também a subjetividade coletiva do povo, ou seja, faz parte desta estratégia criar mecanismos e discussões públicas que plasmem o conservadorismo e o individualismo. “A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”, como afirmou por diversas vezes Margareth Thatcher.2

1  ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho, 2015. 2  Foi primeira-ministra do Reino Unido de 1979 até 1990 e uma defensora do neoliberalismo.

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Tempos modernos, tipo de exploração antiga Com a pandemia e, consequentemente, as medidas de isolamento e distanciamento social, o cenário do trabalho passou a ser o de casa. Algumas pessoas se viram, de repente, em um “curso intensivo” de como utilizar dezenas de aplicativos e plataformas. As mudanças que estavam em curso antes desse processo encontraram terreno fértil para a sua aceleração. Para algumas funções, o trabalho home-office e o teletrabalho eram as modalidades possíveis, antecipando a plataformização do trabalho ou a chamada uberização de uma miríade de profissões. Não à toa, empresas que mais lucram, como os bancos, já anunciaram que os profissionais não precisarão voltar aos postos físicos. Outros anunciam a “fenomenal” ideia do “trabalho híbrido”, cujos momentos criativos serão nas empresas e os outros, que exigem concentração, em regime home-office. Forma arranjada para extrair todo o engajamento possível do trabalhador que em casa passou a trabalhar mais de dez horas por dia. Antes da pandemia, essas empresas já relutavam em pagar alguns direitos como vale-transporte e alimentação. Perceberam com a situação do coronavírus que mesmo sem fornecer os instrumentos de trabalho, os profissionais continuaram com a dedicação total, trabalhando mais e, agora sem poder partilhar de suas angústias com os colegas, ainda mais conformado, sem conseguir fazer algo para mudar essas condições. Diante disso, é possível perceber características comuns que atravessam diferentes profissões. Há muitas semelhanças entre o trabalho do entregador de aplicativo – que tem se levantado

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contra as condições precárias de trabalho – e outros como, por exemplo, secretárias, professores, jornalistas etc. O traço comum é o contexto de crescente mediação das plataformas na vida em sociedade. Chamado por nomes distintos que vão desde capitalismo de plataforma à capitalismo de vigilância3, as cinco grandes empresas – Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – e outras que fornecem plataformas estruturais para serviços e indústrias dominam e dirigem os “novos” modos de vida e as transformações do trabalho. O trabalho passar por esses dispositivos que são criados com os mesmos objetivos de 1973, que citamos acima, mas têm se aperfeiçoado na forma de extração de valor e controle do trabalho. Assim como o serviço do entregador de aplicativo, quem controle a gestão do trabalho são os algoritmos. A figura do gerente não é mais centrada em uma pessoa na cadeia de produção, mas no inovador “gerente-cliente”, com a avaliação do usuário que, em muitas vezes, é contabilizada por estrelas de satisfação com o serviço. Cumpre o papel que antes era de pessoa contratada para garantir a eficiência e qualidade do trabalho. Desse modo, os próprios algoritmos vão “aprendendo” as formas de fiscalização do trabalho. Quanto mais é utilizado, mais as máquinas apreendem a lógica de avaliação. Não é o caso de invocar o ludismo4 para

3  ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalismo, 2018 e Srnicek, Nick platform capitalismo, 2017. 4  Foi um movimento de trabalhadores ingleses do ramo de fiação e tecelagem, ativo no início do século XIX, nos primórdios da Revolução Industrial, e que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto.


quebrar as máquinas, mas sim de compreender a força destrutiva do capital que assim como prevê a obsolescência de seus produtos trata a força de trabalho de forma igual. Isso fica claro se nos apoiarmos em Marx, no Capital III, que aponta a produção capitalista “num grau muito maior que qualquer outro modo de produção, uma dissipadora de seres humanos, de trabalho vivo, uma dissipadora não só de carne e sangue, mas também de nervos e cérebro”. 5

Que rumo civilizacional queremos? Já que sabemos que a produção de bens no capital visa a geração de valores de troca e lucro e não para atender as necessidades humanas, pois se fosse o contrário as máquinas já estariam fazendo diversos trabalhos que degradam de forma rápida e intensa a saúde do trabalhador, por exemplo. Também compreendemos que o capital não se valoriza apenas com a produção das máquinas porque depende do trabalho-vivo para criar valor, como ficou evidente no contexto da pandemia. É preciso refletir qual é o rumo do trabalho que queremos para responder quais níveis de civilização estamos construindo, assim mesmo, em gerúndio, numa junção entre presente e futuro. Estamos diante de um período transitório no qual as mudanças estão em plena movimentação e em uma “briga dialética” para se consolidarem.

5 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro III. 2017.

Do mesmo modo temos a nossa frente o desafio de reinventar um modo de vida que a ordem seja trabalhar para viver e não viver para trabalhar. A não reação e resistência vão acentuar as condições de precarização, o crescimento de doenças como o transtorno de ansiedade e quadros depressivos oriundos da falta de perspectiva em que não há sentido dentro e fora do trabalho. Para mudar essa situação periclitante dois temas são essenciais: a discussão sobre a jornada (a redução e regulamentação foi uma conquista histórica com mais de um século de vigência); a bandeira do trabalho digno (os chamados “bike-boys” – meninos de 12 a 15 anos que fazem entregas hoje nas grandes cidades são exemplos de como estamos voltando a um passado em que crianças são exploradas). Solidariedade entre os trabalhadores para enfrentar esse quadro é um elemento que precisa ser estimulado. Repensar o modo de vida é uma decisão que cabe a todos nós. Mesmo não sendo somente uma decisão individual, as escolhas em plano micro podem auxiliar de forma consciente, como: a divisão dos trabalhos domésticos e a gestão compartilhada por todos da família desses afazares; o posicionamento diante de questões como o trato com o meio-ambiente e mesmo a defesa da universalização de educação e saúde são assuntos que coadunam com o trabalho e a sociedade que queremos. Pensar coletivamente já é se colocar como contracorrente na maré do capital que tenta nos levar em suas correntezas.

Ana Flávia Marx é jornalista, mestre e doutoranda em Ciências da Comunicação da ECA/USP. É integrante do Centro de Pesquisa Comunicação e Trabalho (CPCT) da ECA/USP.

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DANIELA MARINO | ILUSTRAÇÃO: ANA SODRÉ

Liberdade de expressão e os limites do humor

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e você procurar esse mesmo título em um site de busca, diversos resultados irão aparecer propondo uma reflexão sobre os limites de nossa livre expressão quando se trata da produção humorística. Isso porque o debate acerca desse tema se tornou especialmente mais acalorado após o ataque terrorista sofrido por cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015.


Possivelmente, você também publicou em suas redes sociais a frase “Je suis Charlie” em apoio aos artistas e certamente, se alguém lhe perguntasse se deveria haver limites para o humor, você responderia que não, afinal, limitar a expressão artística que, acima de tudo, se propõe a criticar políticos, líderes religiosos e celebridades, poderia abrir um precedente perigoso para a limitação de outras liberdades individuais, certo? Sim, esse pensamento é coerente, principalmente se considerarmos que em regimes ditatoriais, a arte e a cultura são os principais alvos de perseguição, apagamento, censura e, como aprendemos, censura é mesmo algo muito, muito ruim. Mas o que aconteceria com um adulto que acreditasse que seu direito de se expressar livremente é ilimitado? Por que qualquer ser humano, artista ou não, deveria ter direito ilimitado a uma ação que pode gerar danos morais, físicos e psicológicos a outros seres humanos? Por que o que alguém tem a dizer é mais importante do que o direito de outra pessoa de ter sua integridade preservada? Ao contrário do que muitos pensam, a liberdade de expressão, em nenhum país, é um direito ilimitado. Constituições de países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre os quais o Brasil se encontra, preveem punições e restrições a discursos que representem ameaças às pessoas em função de sua cor, etnia, religião, gênero e orientação sexual, ou seja, nenhuma constituição ampara o discurso de ódio. No entanto, até aqui estamos falando do direito individual de alguém se expressar. A concepção de liberdade de expressão compartilhada pela maioria das pessoas se pauta no senso comum e em conceitos estabelecidos há muito tempo, quando não se pensava em nada parecido com globalização e internet. Isso significa que a nossa percepção de liberdade de expressão é ob-

soleta. Ela também só se refere ao direito individual das pessoas se expressarem em ambientes privados, uma vez que discursos proferidos em ambientes públicos e que firam outras pessoas são passíveis de restrições e punições previstas em lei. Assim, será que o direito à expressão de artistas que se manifestam em veículos de comunicação e redes sociais estaria sujeito às leis referentes à liberdade de expressão? Uma pessoa que se expressa em um veículo que obtém lucro com sua produção está exercendo seu direito à liberdade de expressão como indivíduo ou estaria a serviço de uma empresa de comunicação sujeita às leis relacionadas à liberdade de imprensa, que por sua vez, possuem restrições específicas? O que o episódio do Charlie Hebdo pode nos fornecer em termos de reflexão? Charb, o então diretor do jornal independente Charlie Hebdo na época do atentado em janeiro de 2015, registrou sua relação com os fundamentalistas mulçumanos em uma carta que seria postumamente editada como livro. Essa carta era destinada a apenas algumas centenas de leitores, mas ganhou visibilidade e consequentemente o ódio dos extremistas, devido ao fato de Charb ter se manifestado em favor das charges dinamarquesas do jornal Jyllands-Posten, em setembro de 2005. Desde 2005 então, Charb começou não só a figurar entre as “celebridades” inimigas de Alá em sites mantidos por terroristas islâmicos, como também garantiu que qualquer publicação de seu periódico ganhasse uma visibilidade nunca antes imaginada pelos cartunistas franceses. Nos anos que se seguiram, a sede do Charlie Hebdo passou a ser alvo de incêndios e ameaças, mas foi em janeiro de 2015, após a publicação de charges satirizando o profeta Maomé, que um grande atentado levou Charb e junto com ele 11 de seus colegas, além de civis e policiais

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que foram mortos em ações terroristas durante dois dias seguidos. A comoção causada pelas mortes levou o mundo todo a se posicionar em defesa do jornal não só nas ruas de Paris, mas através das redes sociais reproduzindo em coro a frase “Je suis Charlie”. Ao que parece, por mais que alguns veículos tenham atribuído a culpa do atentado ao descaso dos cartunistas em relação às ameaças que recebiam (Charb dizia que preferia morrer de pé a viver de joelhos), tanto a imprensa internacional como grande parte dos artistas que se manifestaram em programas de TV e nas redes sociais, entenderam que podar ou restringir a expressão artística significaria conceder a vitória aos terroristas, por isso, o artista, enquanto um porta-voz das inquietações da sociedade, deveria encarar de frente qualquer tipo de ameaça ao exercício de seu ofício. No entanto, tendo em vista as mudanças na forma de recepção da produção cultural, não é mais possível pensar em liberdade de expressão e liberdade de imprensa como direitos equivalentes. Refletindo sobre o papel fundamental da imprensa em sua concepção como o meio através do qual o povo deveria obter informação e conhecimento que propicie a descoberta “da verdade”, como forma de obter esclarecimento para questionar ações do governo ou da sociedade que possam ser nocivas, entendemos sua função crítica “como uma condição de possibilidade de transformação”. Segundo Foucault, as mudanças ocorridas a partir do século XV que alteraram o foco religioso do Estado em direção à sua laicização propiciaram o surgimento de indagações acerca de como éramos governados e, principalmente, de como não gostaríamos de ser governados. Mas, considerando as novas formas de recepção em decorrência da tecnologia atual, é possível pensar que certas responsabilidades

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que alguns autores atribuem à liberdade de imprensa fossem então aplicadas às publicações em redes sociais também. A realidade é que, na França, a lei que ampara a liberdade de expressão é extremamente ampla e tolerante em relação a certos discursos, porém, se trata de uma lei do século XVII que diz respeito às ações ocorridas em seu território. Oras, se o conceito de territorialidade tem se liquefeito em decorrência da globalização e da internet, não é possível esperar que todas as pessoas do mundo respondam à mesma lógica. E é justamente aí, na lógica, que precisamos nos atentar. Pessoas públicas estão sujeitas à crítica em função de sua posição. Sendo assim, sátiras, charges, críticas de maneira geral, quando intencionadas a atacar as ações da pessoa pública ou sua inépcia, estão amparadas em nossa constituição e nas de outros países democráticos também. Entretanto, discursos de ódio direcionados a qualquer pessoa que visem atacá-la em função de seu gênero, orientação sexual, etnia, cor ou religião, são passíveis de punições. Mas essas concepções se baseiam na crença de que todos os seres humanos seriam racionais e seriam capazes de empreender uma discussão de forma lógica, a fim de que todas as partes chegassem a algum consenso. Porém, há uma parcela significativa da sociedade que é incapaz de responder a qualquer tentativa de racionalidade: os fundamentalistas. Quando digo fundamentalistas, não me refiro apenas aos fundamentalistas religiosos que atacaram o Charlie, mas a todos os grupos que agem como seita, em uma lógica que simplesmente ignora fatos, dados, pensamento crítico. Essas pessoas estão dispostas a morrer pelo que acreditam, seja um deus, seja um “mito”. Dessa forma, há duas perspectivas que devemos considerar quando pensamos em qualquer


tipo de restrição às produções humorísticas veiculadas em redes sociais e na imprensa ou outros meios de distribuição massiva: 1ª - vale a pena atacar pessoas que estão dispostas a matar e morrer pelo que acreditam? O pensamento de que se nos calarmos, nós perdemos a guerra contra o terrorismo é muito poético, mas justificaria a crítica pública em um contexto em que é impossível prever o alcance de uma produção, de modo que a publicação de tal discurso acarretasse não só no assassinato de quem produziu a peça, mas também de seus colegas, que certamente prefeririam estar vivos para cuidar de seus filhos? O que a sociedade de fato ganhou com a publicação das charges do Charlie? Várias vidas foram perdidas e o quanto nós avançamos na luta contra o terrorismo? A segunda consideração diz respeito ao bom senso e empatia que esperamos que artistas tenham. Nos baseamos na crença de que artistas são seres mais sensíveis às angústias e desejos humanos. Ainda assim, o que nós ganhamos, como sociedade, com piadas e discursos que atacam grupos minorizados? Qual é a justificativa plausível para que a expressão do humor de um

indivíduo seja mais importante que a integridade física/moral/psicológica de outro ser humano? Não acredito que haja uma resposta sólida para essas perguntas, mas, certamente, precisamos refletir sobre o contexto no qual estamos inseridos hoje e entender que as teorias não dão conta de abarcar o presente. Precisamos pensar em meios de equalizar nossa necessidade de expressão com os direitos das pessoas de não serem vítimas de discursos de ódio. A palavra-chave talvez seja “empatia”, uma virtude de quem é capaz de se colocar no lugar do outro e que só pode ser desenvolvida por aqueles que são de fato sensíveis às necessidades das pessoas à sua volta. Esperar que fundamentalistas respondam à razão e seguir atacando seus símbolos e líderes pode nos levar a outro episódio como o do Charlie. Esperar que pessoas simplesmente desenvolvam uma “casca mais grossa” e se submetam às ofensas de quem quer que seja é indício de falta de humanidade. Assim, por enquanto, nossa opção seria apelar para o bom senso de nossos artistas para que não precisemos impor quaisquer restrições às suas produções, não é mesmo?...

Daniela Marino é pesquisadora de Histórias em quadrinhos, professora e mestre em comunicação pela ECA/USP.

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BRUNO FERREIRA | GRAFISMO: FÁTIMA MIRANDA

O colorido grafismo de Fátima Miranda

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ores, traços, natureza e humanidade. Palavras que se conectam ao trabalho da artista visual e arte-educadora Fátima Miranda, dedicada ao grafismo. No início dos anos 1990, procurou compreender o grafismo indígena, forma de representação pictórica que ainda a inspira. “Inspirar-se na temática indígena é algo que sempre fez parte do meu desejo ao desenhar, ao pintar, já que é sobre Natureza. Se quando criança ou adolescente me inspiravam a terra, os animais, a música, quando adulta, a necessidade de expressar a força dos índios com os seus maravilhosos grafismos fez ressignificar o meu trabalho na arte-educação e, principalmente, nas artes plásticas. Poder expressar plasticamente simbologias indígenas, também me permite reconectar com meus ancestrais, podendo reverenciá-los e ao mesmo tempo, torná-los presentes, mesmo que energeticamente”, afirma Fátima. No início dos anos 2000, a artista retratou animais sagrados em trabalho exposto na Caixa Cultural, em São Paulo. Mais adiante, em 2006, Fátima vence a versão brasileira do concurso internacional referente à megaexposição Coexistence, em 2006, com a obra As crianças de Sebastião, em que Fátima retrata crianças refugiadas de guerra. A exposição, de cunho político e que evidencia causas humanitárias, aconteceu também em outros países. Rio Doce (2016)

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Homenagem a Raoni (2017)

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Mandala (2016)

Nosso grande Pajé (2017)

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Índio Kadiwéu (1994) EDIÇÃO 05 | 2021

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