v.2 n.3, ago. 1998

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Interface

Comunicação, Saúde, Educação

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APRESENT AÇÃO APRESENTAÇÃO ENSAIOS sobre educação Produção de conhecimento, ensino/ aprendizagem e educação

DEB ATES DEBA

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Antonio Joaquim Sev erino Severino

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Notas sobre ideologia e educação 23

Ev er ar do Duar te Nunes Ever erar ardo Duarte

Ari F ernando Maia Fernando

Currículo paralelo em Medicina, experiência clínica e PBL: uma luz no fim do túnel?

Innovación educacional en las profesiones 119 de la Salud: ¿moda o necesidad?

35

José VVentur entur elli enturelli

Sér gio Rego Sérgio

Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil

Saúde Coletiva: história e paradigmas

125

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Internet no ensino universitário: pesquisa e comunicação na sala de aula José Manoel Mor an Moran

Laur aF euer werker Laura Feuer euerwerker

133 AR TIGOS E RELA ARTIGOS RELATTOS De la acción comunicativa a la sociedad democratica

141 TESES NOTAS AS BREVES 145 NOT

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J. Félix Angulo Rasco

O Programa UNI no Brasil: uma avaliação da coerência no seu processo de formulação e implementação 87

LIVR OS E MUL TIMEIOS LIVROS MULTIMEIOS

ESP AÇO ABER ESPAÇO ABERTTO 149

Formação profissional: reflexões sobre interdisciplinaridade Maria Lúcia TTor or alles-P er eir a; oralles-P alles-Per ereir eira; or to F or esti Por orto For oresti Miriam Celí Pimentel P

Auristela Maciel Lins; Luiz Carlos de Oliv eir a Oliveir eira Cecilio

CRIAÇÃO 155

167

Olhares interiores Pierr evin Pierree D Devin Congela dor Eduar do TTriboni riboni Eduardo

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INFORMES


Interface

Comunnication, Health, Education

PRESENT ATION PRESENTA

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ESSA YS ESSAYS on education The production of knowledge, teaching/ learning and education

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DEB ATES DEBA

Antonio Joaquim Sev erino Severino

Notes on ideology and education

107

23

Ari F ernando Maia Fernando

Parallel curriculum in Medicine, clinical practice and Problem Based Learning: is there a way out?

Educational innovation in health professions: 119 fad or necessity? José VVentur entur elli enturelli

35

Sér gio Rego Sérgio

Changes in medical education and medical residency in Brazil

Social Medicine: history and paradigms Ev er ar do Duar te Nunes Ever erar ardo Duarte

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Internet and higher education: research and communication in the classroom José Manoel Mor an Moran

51

Laur aF euer werker Laura Feuer euerwerker

133 141

AR TICLES and REPOR TS ARTICLES REPORTS From communicative action toward a democratic society

THESES

145 BRIEF NOTES

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OPEN P AGE PAGE

J. Félix Angulo Rasco

The UNI Program in Brasil: an evaluation of the coherence of its development and implementation processes 87

BOOKS AND MUL TIMEDIA MULTIMEDIA

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Professional background: reflections on interdisciplinarity Maria Lúcia TTor or alles-P er eir a; oralles-P alles-Per ereir eira; or to F or esti Por orto For oresti Miriam Celí Pimentel P

Auristela Maciel Lins; Luiz Carlos de Oliv eir a Oliveir eira Cecilio

CREA TION CREATION 155

Olhares interiores evin Pierree D Devin Pierr

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Congela dor Eduar do TTriboni riboni Eduardo

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NEWS


Apr esentação presentação INTERFACE Comunicação, Saúde, Educação chega ao terceiro número trazendo transformações em seu projeto gráfico-textual. Sem intenção de cristalizar formas ou hierarquizar conceitos e experiências, a revista trabalha com a idéia de um projeto em movimento. Assume como desafio buscar novas interfaces, procurando cruzamentos e implicações entre diferentes discursos, trazendo relações entre texto e texto, texto e imagem, imagem e imagem, numa concepção de conhecimento não linear, hipertextual. A opção por um bloco temático que, a cada número, está representado na seção de ensaios, constitui um dos recursos de INTERFACE para traçar, com maior precisão, a rede de relações de sentido que constrói sua identidade. Com o bloco temático e as demais seções, a revista vai demarcando seus espaços, em superfície e profundidade, procurando encontrar seu leitor, em sua diversidade, para intensificar trocas, problematizando conceitos e experiências que dão materialidade ao debate que se adensa neste final de milênio, na confluência das três áreas que estão na origem de seu projeto editorial. Como arena desse debate, propõe mediar os conflitos entre as diferentes análises e reflexões teóricas, explorando a pluralidade de temas e abordagens, sem deixar de explicitar seu alinhamento. No atual momento do mundo contemporâneo, em que o avanço científico e tecnológico ocorre numa velocidade bem maior do que a nossa capacidade de interpretar, refletir e decidir, ameaçando transformar, a curto prazo, o corpo humano numa mercadoria, INTERFACE assume uma posição polarizada em favor do humano. A dimensão de responsabilidade que hoje precisamos encarar frente às contradições criadas pela ciência moderna é grande em demasia para poder ser percebida num contexto de formação pautado pelo automatismo tecnológico. Pelo contrário, coloca em evidência a necessidade de recuperar o valor da formação geral e cultural de tipo humanista. A acumulação das irracionalidades que ameaçam a vida humana neste final de século o risco iminente de uma catástrofe ecológica, a miséria e a fome a que é submetida grande parte da população mundial, a violência e a intolerância, a droga e a medicalização da vida nos colocam frente a frente com a complexidade do desafio contemporâneo. A busca de um novo equilíbrio entre capacidade de ação e capacidade de previsão das conseqüências dessa ação exige uma nova articulação entre o conhecimento concreto e a problematização mais ampla do sentido da vida e da sociedade, como bem traduziu Boaventura Santos, cujas idéias têm fundamentado o projeto editorial da revista. Neste sentido, intervir em favor do humano pode significar, hoje, comprometer-se com a desocultação das relações sociais e dos interesses que constróem o automatismo tecnológico. Pode significar criar alternativas que possibilitem uma relação mais conseqüente entre ação e capacidade de previsão. Numa posição de resistência à desumanização da vida e, recuperando uma analogia de Boaventura Santos, a exemplo da postura assumida por um guarda na exposição de arte em Kassel, que, em defesa da autonomia da arte, diz "não toque. Isto é arte", caberia, talvez, dizer: não toque. Isto é humano.

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Presentation INTERFACE Comunicação, Saúde, Educação (Communication, Health, Education) now reaches its third issue, and introduces a transformation of its textual and graphic design. Disregarding fixed formats, and avoiding the establishment of a hierarchy of concepts and experiences, it is a periodical publication that works around the idea of a project in constant motion. It takes on the challenge of searching for new interfaces, looking for the implications and intersections among different lines of discourse, and establishing connections between text and text, text and image, image and image, based on a non-linear concept of knowledge, in a manner reminiscent of hypertext. The choice of a central theme for the essay section of each issue is one of the ways through which Interface traces more precisely the network of relationships of meaning that shape its identity. Through the central theme and other sections, the periodical delimits its scope, both in terms of coverage and of depth, seeking out readers, in their full range of diversity, for an intense exchange. It questions those concepts and experiences which lend substance to the growing debates that occupy the end of this millenium, at the intersection of the three areas that are at the heart of its editorial project. Placing itself in the role of an arena for the said debates, Interface proposes to mediate conflicts between different analyses and theoretical reflections, probing into the plurality of themes and approaches, yet nonetheless making its own position perfectly clear. In our contemporary world, science and technology progress at a rate far superior than our ability to interpret, analyze and decide, which threatens to transform the human body into a mere a commodity, in the near future. Within this context, Interface deliberately adopts a position heavily biased towards the human being. In the current day and age, the dimension of the responsibility one must face, vis à vis the contradictions generated by modern science, is far to great to be captured through a formatting context characterized by technological automatism. On the contrary, it highlights the need to restore the value of a general and cultural, humanities-based upbringing. The accumulation of irrationalities that threatens human life at the end of this century, the impending risk of an ecological catastrophe, the misery and hunger to which a major part of mankind is submitted, the violence and intolerance, drugs and medical orientation of life, together, place us face to face with the complexity of contemporary challenges. The search for a new balance between the capability for action and the ability to forecast the outcome of such action demand a new relationship between real knowledge and broad questioning of the meaning of life and society, as Boaventura Santos, whose ideas have grounded the editorial project of this periodical, has put forward so well. Thus, to interfere in favor of human life, in this day and age, may mean committing oneself to revealing the social relations and the interests that constitute the building blocks of technological automatism. It might mean the creation of new alternatives, capable of leading to a more consequential relationship between action and the ability to forecast. In a position of resistance against the dehumanization of life, an analogy by Boaventura Santos comes to mind, based on the attitude adopted by a guard in the Kassel art exhibition who, in defense of the autonomy of art, says: do not touch. This is art. Perhaps, it would be equally fitting to state: do not touch. This is human.

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Produção de conhecimento, ensino/aprendizagem e educação *

EN SA IO S

Antonio Joaquim Severino

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SEVERINO, A. J. The production of knowledge, teaching/learning and education. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n. 3, 1998. This paper intends to discuss , from a philosophical point of view, the relation between the epistemological process specific to the production of knowledge, the pedagogical process itself that occurs within a situation of teaching/ learning , and the anthropological process of bringing up the learner. It deals with the hypotheses that education does not become an effective tool for the construction of the human development of the learner merely on the basis of epistemic, psychological and pedagogical processes, as has been presented by contemporary schools of constructivism. It then proceeds to defend the idea that the processes of constructivity present in situations of production of knowledge and of effecting teaching/learning only become true mediators of education when they are also branded by the historicity typical of actual practice, which constitutes the substance of concrete human existence itself. In a special way, the current reflection seeks to highlight the potential contributions of Vygotsky’s thoughts toward enlightening the meaning of education relative to its link with involving social and cultural processes. KEY WORDS: knowledge, teaching, learning, education Este trabalho pretende debater, de uma perspectiva filosófica, as relações entre o processo epistemológico específico da produção do conhecimento, o processo propriamente pedagógico ocorrente na situação de ensino/aprendizagem e o processo antropológico de formação do sujeito educando. Lida com a hipótese de que a educação não se efetiva como construção do desenvolvimento humano do educando apenas com base nos processos epistêmico-psíquicopedagógicos tais como vêm sendo apresentados por vertentes contemporâneas do construtivismo. Defende então a idéia de que os processos de construtividade presentes nas situações de produção do conhecimento e de realização do ensino/aprendizagem só se legitimam como mediadores da educação quando marcados também pela historicidade típica da prática real que constitui a substância do próprio existir concreto dos homens. De modo especial, a presente reflexão busca destacar as possíveis contribuições do pensamento de Vygotsky ao esclarecimento do sentido da educação em seu vínculo com processos sócio-culturais envolventes. PALAVRAS-CHAVE: conhecimento, ensino, aprendizagem, educação

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Trabalho apresentado na seção de Painéis no XI Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, maio de 1998. Professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e assessor científico junto ao Programa de Mestrado em Psicologia, Universidade São Marcos, São Paulo. E-mail: severino@uol.com.br 1

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ANTONIO JOAQUIM SEVERINO

A abordagem das relações entre o conhecimento e a educação pressupõe a discussão preliminar sobre o lugar do conhecimento no todo da existência humana. Nesse âmbito, a função substantiva do conhecimento é intencionalizar a prática mediadora dessa existência. Na verdade, o conhecimento é a única ferramenta de que a espécie dispõe para essa intencionalização, ou seja, para dar um sentido orientador para sua existência histórica real. Vistas as coisas à luz da perspectiva da investigação histórico-antropológica, não há como buscar fundamentos transcendentais para a gênese do conhecimento, no âmbito da espécie humana. O conhecimento surgiu como estratégia de ação dos indivíduos humanos, que viviam e agiam coletivamente, ao longo de sua temporalidade histórica. Sem dúvida, a substância do existir é a prática. Não é a expressão teórica, em si mesma, que efetiva nossa existência real. Só se é algo mediante um contínuo processo de agir, só se é algo mediante a ação. É o que testemunham todos os entes que se revelam à experiência humana. É na e pela prática que as coisas humanas efetivamente acontecem, que a história se faz e que o próprio homem vai se fazendo humano. Nesse sentido, a consciência, o pensamento enquanto equipamento da subjetividade humana, nasceu embutido na própria prática do homem, originariamente na sua prática produtiva, pela qual garantia sua existência material, mantendo-a inserida num processo permanente de trocas com a natureza. Por isso, a esfera básica da existência humana é aquela do trabalho propriamente dito, ou seja, prática que alicerça e conserva a existência material dos homens, já que a vida depende radicalmente dessa troca entre o organismo e a natureza física. Esta esfera da prática produtiva constitui o universo do fazer. Mas a prática produtiva dos homens não se dá plenamente só como trabalho individual: ela é, antropologicamente falando, expressão necessária de um sujeito coletivo, ou seja, a espécie humana só é humana na medida em que se efetiva em sociedade. Não se é propriamente humano fora de um tecido social, que constitui o solo de todas as relações sociais, não apenas como referência circunstancial, mas como matriz, placenta que nutre toda e qualquer atividade posta pelos sujeitos individuais. Os homens, para que sejam especificamente humanos, têm de habitar uma ‘societas’, precisam ser efetivamente socícolas! Mas é preciso observar que essa trama de relações sociais que tece a existência real dos homens não se caracteriza apenas como coletividade gregária dos indivíduos, como ocorre nas “sociedades” animais: um elemento específico interfere aqui, mais uma vez marcando uma peculiaridade humana: a sociedade humana é atravessada e impregnada por um coeficiente de poder, ou seja, os sujeitos individuais não se justapõem, uns ao lado dos outros, em condições de simétrica igualdade, mas se colocam hierarquicamente, uns sobre os outros, uns dominando os outros. Torna-se, assim, uma sociedade política, uma cidade. Este coeficiente que marca as nossas relações sociais como relações políticas e que caracteriza nossa prática social, envolve os indivíduos na esfera do poder. Mas se a prática é prioritária e fundamental na configuração do modo de existir humano, impõe se considerar que a prática humana tem suas especificidades, não se reduzindo nem ao determinismo onto-essencialista da

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PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, ENSINO...

metafísica, nem ao mecanicismo naturalista da ciência, nem ao seu decorrente pragmatismo funcionalista. A prática tipicamente humana, que delineia seu modo de ser, não é a prática mecânica, transitiva; ao contrário, é uma prática intencionalizada, marcada desde suas origens, pela simbolização. Vai ocorrer, então, que tanto a prática produtiva quanto a prática política só se tornam práticas humanas porque são atravessadas por uma terceira dimensão específica do agir humano: trata-se da simbolização, da prática simbolizadora. Pode-se sintetizar essa tomada dos homens sobre o mundo como uma constituição do sentido, a própria base de sua capacidade simbolizadora. Mas essa função simbolizadora não se faz nem pela explicitação de uma intuição imediata de uma essência, nem pela mera transposição da percepção empírica e transitiva dos órgãos dos sentidos, nem pela elaboração de um constructo puramente lógico-formal. O que se tem, de fato, é uma construção histórica e coletiva do objeto pelos sujeitos. Mas é preciso ter ainda presente que o sentido do existir humano também não se dá apenas como decorrente da experiência estetizante dos sujeitos. No clima de crítica ao racionalismo e às suas manifestações iluministas, tem sido comum confundir-se conhecimento e racionalidade. Sem dúvida, quando se trata das opções valorativas necessárias para a significação de nosso agir, base de orientação da própria existência, a sensibilidade afetiva, a emotividade, a subjetividade desejante, são fatores dinâmicos indiscutíveis. Mas o que é preciso ter bem presente é que essa potência desejante, se não impregnada pela intencionalização da subjetividade epistêmica, perde toda sua especificidade humana. O território da subjetividade envolvida na atividade de conhecimento não se confunde com nem se restringe ao território da racionalidade lógica. Toda expressão emocional da subjetividade humana é igualmente atravessada pela dimensão epistêmica do saber! Por isso, o sabor, presente na vivência afetiva, emocional, só se vivencia como sabor na exata medida em que é atravessado pela vivência do saber; ou dito de outra forma, o desejo só se sabe (só se saboreia como) sabor, na medida em que se sabe (se vivencia, se apreende) como saber. Mas, na verdade, o conhecimento individual se dá sobre um fundo de uma experiência radicalmente histórica e coletiva que lhe é anterior e que lhe serve de matriz placentária. Esse contexto, como que um tecido que vai se complexificando pela contínua articulação de novas experiências, já tornadas possíveis pelas experiências passadas e acumuladas, é a cultura, uma das mediações concretas da existência dos homens. E a cultura é o universo do saber. Isto é válido tanto no plano da experiência epistêmica do indivíduo - trata-se sempre de uma experiência que se vai construindo, acumulando, sintetizando, reorganizando, sistematizando dados - quanto no plano da própria humanidade; tanto na perspectiva ontogenética como na perspectiva filogenética. Podemos então equacionar a existência humana como se dando mediada pelo tríplice universo do trabalho, da sociedade e da cultura. Como os três ângulos de um triângulo, esses três universos se complementam e se implicam mutuamente, um dependendo do outro, a partir de sua própria

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especificidade. E é nesse contexto que podemos entender as relações do conhecimento com o universo social. Com efeito, o conhecimento pressupõe um solo de relações sociais, não apenas como referência circunstancial, mas como matriz, como placenta que nutre todo seu processamento. Mas essa trama de relações sociais em que se tece a existência real dos homens, como já adiantamos, não se caracteriza apenas pelas relações de gregaridade dos indivíduos, como ocorre nas “sociedades” animais, mas, sobretudo, por relações de hierarquização, envolvendo, pois, o elemento específico a interferir no social humano, o poder, que torna política a sociedade. O saber aparece, portanto, como instrumento para o fazer técnicoprodutivo, como mediação do poder e como ferramenta da própria criação dos símbolos, voltando-se sobre si mesmo, ou seja, é sempre um processo de intencionalização. Assim, é graças a essa intencionalização que nossa atividade técnica deixa de ser mecânica e passa a se dar em função de uma projetividade, o trabalho ganhando um sentido. Do mesmo modo, a atividade propriamente política se ideologiza e a atividade cultural transfigura a utilidade pragmática imediata de todas as coisas. Como entender, então, a educação nesse contexto das mediações histórico-sociais que, efetivamente, manifestam e concretizam a existência humana na realidade? Ela deve ser entendida como prática simultaneamente técnica e política, atravessada por uma intencionalidade teórica, fecundada pela significação simbólica, mediando a integração dos sujeitos educandos nesse tríplice universo das mediações existenciais: no universo do trabalho, da produção material, das relações econômicas; no universo das mediações institucionais da vida social, lugar das relações políticas, esfera do poder; no universo da cultura simbólica, lugar da experiência da identidade subjetiva, esfera das relações intencionais. Com efeito, se se espera, acertadamente, que a educação seja de fato um processo de humanização, é preciso que ela se torne mediação que viabilize, que invista na construção dessas mediações mais básicas, contribuindo para que elas se efetivem em suas condições objetivas reais. A problemática das relações entre epistemologia, psicologia e educação ocupa um lugar de destaque no debate filosófico relacionado com o construtivismo. Por sua própria configuração categorial e por seus objetivos intrínsecos, o construtivismo compreende uma proposta de articulação entre uma concepção do sujeito epistêmico com a atividade de um sujeito-educando, mediados por um sujeito psíquico. As preocupações epistemológicas Carlos Fajardo, 1989

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centrais do construtivismo integram o mesmo universo temático de um movimento filosófico atual bastante significativo, movimento que venho designando como transpositivismo. Em grandes linhas, esse movimento se caracteriza por uma postura mais lúcida e esclarecida frente ao conhecimento científico. Com efeito, reconhece e reafirma a autonomia e a relevância da ciência mas, ao mesmo tempo, entende necessário superar aquela postura de puro deslumbramento frente a ela, típica do positivismo ortodoxo. Por isso mesmo, o transpositivismo se dá fundamentalmente como epistemologia que, aliás, é entendida como reflexão voltada especificamente para o discurso científico. E nessa análise crítica sobre a atividade científica, a ciência não é mais considerada como se fosse uma atividade puramente lógica, que nada tivesse a ver com outras dimensões do conhecimento, da cultura e da própria existência humana em geral. Desenvolvido por pensadores familiarizados com a prática científica - físicos, biólogos, matemáticos - o transpositivismo quer livrar a ciência de alguns resíduos metafísicos e de outros tantos viéses dogmáticos que lhe deixou ainda o positivismo comteano, ao mesmo tempo que quer “enriquecer” o conhecimento científico enquanto processo epistêmico, mostrando que ele não é apenas de textura lógico-formal. Destacam-se, nesse amplo movimento, dentre outros, pensadores tais como Poincaré, Canguilhem, Meyerson, Koyré, Brusnchvig, Bachelard, Kuhn e Feyerabend, aos quais se pode acrescentar autores mais recentes do campo da educação, como Piaget e Vygotsky. Estes pensadores, conhecendo a fundo a ciência e ciosos de sua validade e relevância, sentiram a necessidade de fundamentá-la cada vez mais com rigor e lucidez, tentando modernizar essa fundamentação. Nesse sentido, compartilham das preocupações epistemológicas relacionadas às condições de possibilidade do conhecimento científico, mas julgam que a epistemologia não pode se reduzir a uma pura lógica formal, ela envolve necessariamente considerações de ordem axiológica, ou seja, ela não se desvincula de uma filosofia da ciência. Tratase, pois, de uma reflexão que incide sobre a significação da ciência, enquanto processo e produto da atividade humana, avaliando seus resultados e desenvolvendo uma discussão sobre o sujeito construtor do saber científico. Nesse sentido, o transpositivismo contrapõe-se ao outro também significativo movimento filosófico contemporâneo que é o neopositivismo, tendência esta que reduz a epistemologia a uma análise meramente formal da configuração lógico-lingüística do discurso científico. Como todas as tendências filosóficas preocupadas em desenvolver uma reflexão sobre a ciência, também o transpositivismo é herdeiro mediato da tradição iluminista da filosofia da modernidade, retomando e valorizando suas perspectivas subjetivistas. Em que pesem as diferenças e especificidades também marcantes, presentes no interior desse movimento, algumas preocupações comuns entre todos os pensadores que o integram, o caracterizam, dando-lhes um ar de família. Assim, a idéia de ciência, forma indiscutivelmente válida de conhecimento, não se exaure nem nos processos experimentais de apreensão de seus objetos nem nos esquemas formais de sua expressão lógico-matemática. Também a idéia que muitos outros fatores intervêm nesse processo, marcando profundamente o conhecimento

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científico e fazendo dele uma atividade intrinsecamente histórica, não se tratando de pura reconstrução racional, independente do processo de descoberta e de invenção criativa. Descoberta e justificativa se mesclam nos contextos fisiológico, psíquico, social, cultural, político e ideológico. Sem dúvida, esta inflexão da tradição positivista, que leva à constituição de uma epistemologia crítica, representa uma retomada atualizadora de alguns aspectos fundamentais da epistemologia kantiana, quais sejam, aqueles relacionados com a ativa participação do sujeito na construção do objeto. É bem verdade que se trata de um kantismo sem Kant, já que não está em pauta a assunção de todo o complexo sistema kantiano, mas apenas o reconhecimento da atividade do sujeito, da afirmação da relevância da razão na construção do objeto, sem que isso implique qualquer compromisso com o idealismo apriorista e transcendental de Kant. Reconhecida assim a importância da participação da subjetividade, reconhece-se, por decorrência, o caráter do objeto enquanto configuração, enquanto constructo, o que compromete a identificação do objeto como mero fenômeno natural, como mera coisa, e a passividade do sujeito frente às impressões sensíveis. É forçoso reconhecer também o caráter formalístico e axiomático dos sistemas científicos e sua necessária pluralidade. Enquanto esse formalismo e axiomatismo levam uma significativa corrente de pensadores a uma postura puramente lógico-formalista, presente tanto no neopositivismo como no estruturalismo, outra corrente é levada a repensar o procedimento científico enquanto vinculado a uma subjetividade humana, só que totalmente desligada de qualquer perspectiva de transcendentalidade formal. Ao contrário, no plano epistemológico, o processo do conhecimento é um processo radicalmente imanente às condições concretas do existir natural do homem. Assim, é preciso reinserir o conhecimento no fluxo bio-fisio-psíquico. Se é verdade que o conhecimento amadurecido se configura enquanto estruturação lógico-formal, ele se faz num contínuo processo, numa constante passagem de estágios de conhecimento menor a estágios de conhecimento maior. A ciência tem uma gênese, a estruturação final do conhecimento é sempre progressiva. Por isso, impõe-se levar em consideração a dimensão psicogenética do conhecimento científico; a análise lógica do conhecimento não podendo se separar de uma análise psicológica. Nesta linha, ressaltam-se a grande contribuição das abordagens construtivistas na elaboração da teoria do conhecimento e da teoria da aprendizagem. O conhecimento se dá sempre como uma assimilação ativa do sujeito que vai incorporando o objeto nos seus esquemas sensório-motores, isto é, àquelas de suas ações capazes de se reproduzirem e de se combinarem entre si. Trata-se então de uma epistemologia que tenta superar tanto o idealismo quanto o empirismo. No caso de Piaget, temos um construtivismo interacionista que, enquanto estruturalismo genético, busca resolver a problemática do conhecimento e da aprendizagem, salvaguardando as contribuições tanto subjetivas quanto objetivas na constituição desses processos. Piaget não escapa, no entanto, de certa dependência em relação ao esquematismo a priori da inteligência, só que não admite este a priori como

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inato, pronto e acabado no sujeito: ele vai se formando no decorrer do próprio processo. Só que isso gera uma espécie de círculo vicioso: o mero processo de desenvolvimento da consciência em sua relação com o mundo pressupõe uma estruturação lógica a priori por parte do sujeito, mas o esquema responsável por essa estruturação se forma também no próprio processo de desenvolvimento... Sem dúvida, Piaget pretende avançar em relação a Kant. Primeiro, ao enfatizar que os esquemas formais do sujeito epistêmico são realmente presentes e ativos, são condições sine qua non do conhecimento, só que não são a priori no sentido absoluto, ou seja, eles também vão se construindo num processo genético. Portanto, vistos deste ângulo, são também a posteriori. Além disso, não se trata mais de priorizar a sensação, mas a ação. Apoiado nessa epistemologia construtivista, Piaget vai fundo na explicação do processo da aprendizagem. Com efeito, o processo de aprendizagem está intimamente vinculado ao processo de desenvolvimento do psiquismo humano. É, aliás, pelo estudo do processo de desenvolvimento do pensamento que Piaget se propõe prioritariamente a estudar a aprendizagem. Ela é fundamentalmente um processo de conhecimento que, por sua vez, se dá como um processo de desenvolvimento psíquico, embora ancorado em condições estruturantes da subjetividade lógica. O processo de aprendizagem se alicerça nas condições postas pelo próprio desenvolvimento psíquico. É verdade que esse processo está ligado ao fluxo da embriogênese, sendo, portanto, conduzido e regulado, em última instância, pelas forças articulatórias da totalidade estrutural do conhecimento. A aprendizagem, no entanto, é provocada por situações externas. Mas isto não muda a substância do processo, pois de nada adiantariam esses estímulos exógenos se eles não encontrassem os esquemas endógenos aptos a lhes dar articulação. Aprender, desde a mais tenra idade, é “conhecer”, ou seja, assimilar os objetos em vista de uma acomodação para a equilibração adaptativa, sempre em compatibilidade com as estruturas disponíveis no estágio de maturação psíquica em que se encontra o sujeito epistêmico. Mas este processo de conhecer não é mera percepção e representação, é ação, operação, é atuação prática, pragmática. Desde os primeiros agenciamentos práticos e perceptivos, a criança está ‘trabalhando’ sobre um objeto e, até mesmo, construindo esse objeto. No entanto, por mais lúcido e crítico que seja esse psicologismo, ele não dá conta da significação do processo educacional no seu todo. A educação, enquanto prática social, não se limita aos processos de aprendizagem. Ela envolve relações entre os homens que são atravessadas por vetores especificamente políticos, no seu sentido profundo, portadores de um coeficiente de relações de poder. Esse psicologismo acaba por ignorar a dimensão sócio-histórica e política da própria ciência ou então a encará-la sob um viés ideologizado. Não basta referir-se, quando se trata de explicitar

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as condições de possibilidade da própria psicogênese, ao lado dos fatores biológicos (hereditariedade e maturação do sistema nervoso) e cibernéticos (equilibração e auto-regulação interna), aos fatores sócio-culturais (socialização familiar e transmissão educativa). Além deste último conjunto de fatores ser o menos abordado por Piaget, quando ele é explicitado, não vai além de uma abordagem positivista e funcionalista. Aliás, não basta reconhecer os condicionamentos sociais do conhecimento para se dar conta de seu caráter político. É preciso explicitar as relações de dominação, de exercício do poder e da prática real de opressão. Com relação a isso, as ciências podem até expressar os mecanismos físicos e operacionais que tornam visíveis os processos de dominação política, mas não elucidam a questão fundamental do poder. Algumas rápidas referências ao pensamento de Vygotsky ajudam a se compreender melhor as relações entre os processos psicológicos e epistemológicos postos em ação na atividade do conhecimento. A teoria do psicólogo russo avança em relação ao construtivismo piagetiano, exatamente por inserir melhor o dimensionamento lógico-formal do conhecimento no processo histórico-social em que ele se dá. Isso se explicita melhor nas discussões que Vygostsky desenvolve com relação à emergência e constituição da subjetividade, para ele necessariamente ligada à intersubjetividade. Ao falar do conceito de consciência, Vygotsky o associa à sua tentativa de construção de uma ‘nova psicologia’, para superar a chamada crise da psicologia do início do século. O reducionismo comportamentalista, por um lado, procurava explicar processos elementares sensoriais e reflexos, propondo a eliminação do constructo consciência da psicologia científica. A psicologia idealista, por outro lado, tomava a consciência como substância, como ‘um estado interior’ preexistente, uma realidade subjetiva primária, de cunho metafísico. Contra estas duas abordagens, “Vygotsky argumentava que era possível evitar esse dilema concebendo a consciência como organização objetivamente observável do comportamento, que é imposta aos seres humanos através da participação em práticas sócio-culturais.” (p. 78, citação extraída de Wertsch, 1988, p. 195-6) O conceito de consciência em Vygotsky, embora derivado do marxismo, não se vinculava a temas tradicionais do marxismo como consciência de classe ou falsa consciência. Sua fundamentação nos postulados marxistas é evidente: toma a dimensão social da consciência como essencial, sendo a dimensão individual derivada e secundária. O processo de internalização, isto é, de construção de um plano intrapsicológico a partir de material interpsicológico, de relações sociais, é o processo mesmo de formação da consciência (Wertsch, p.78).

Carlos Fajardo

Para Vygotsky, “a internalização não é um processo de cópia da realidade externa num plano interior já existente; é, mais do que isso, um processo em cujo seio se desenvolve um plano interior da consciência” (p.78, citação de Wertsch, 1988, p. 83).

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PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, ENSINO...

A consciência representaria, assim, um salto qualitativo na filogênese, sendo o componente mais elevado na hierarquia das funções psicológicas humanas. Seria a própria essência da psique humana, constituída por uma inter-relação dinâmica, e em transformação ao longo do desenvolvimento, entre intelecto e afeto, atividade do mundo e representação simbólica, controle dos próprios processos psicológicos, subjetividade e interação social (Wertsch, p. 79).

O processo de internalização que corresponde à própria formação da consciência é também um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade. A passagem do nível interpsicológico para o nível intrapsicológico envolve, assim, relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a um patamar meramente intelectual. Envolve também a construção de sujeitos absolutamente únicos, com trajetórias pessoais singulares e experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas. A questão da formação da consciência e a questão da constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade nos remetem à questão da mediação simbólica e, conseqüentemente, à importância da linguagem no desenvolvimento psicológico do homem. Uma das idéias centrais, e mais difundidas, de Vygotsky, é a idéia de que os processos mentais superiores são processos mediados por sistemas simbólicos, sendo a linguagem o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. A linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento (Wertsch, p. 80).

A concepção de Vygotsky sobre o significado das palavras deixa evidente a conexão entre os aspectos cognitivos e afetivos do funcionamento psicológico. Ele distingue dois componentes do significado da palavra: o significado propriamente dito e o “sentido”. O significado propriamente dito se refere ao sistema de relações objetivas que se formou no processo de desenvolvimento da palavra, consistindo num núcleo relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências afetivas do indivíduo. Assim, a linguagem sempre requer interpretação com base em fatores lingüísticos e extralingüísticos, já que compreender a fala de alguém significa compreender seu pensamento, e não suas palavras. Além disso, nenhuma análise psicológica de um enunciado estará completa sem levarmos em conta suas motivações.

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ANTONIO JOAQUIM SEVERINO

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Notas sobre ideologia e educação

Ari Fernando Maia

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MAIA, A. F. Notes on ideology and education. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n.3, 1998 The cornerstones for the critical theoretical assessment of educational reality have been the concept of ideology such as it was developed in Marxist literature, especially through the contributions of Gramsci, Lukacs and Althusser. The text seeks to investigate some of the consequences of the redevelopment of the concept of ideology put forth by T.W. Adorne and M. Horkheimer, with a view to attaining a critical reflection on the theme of education. The essay also highlights the ideological function of the cultural industry and of the growing technological orientation within broad segments of society, which directly influence school reality , as well as raising issues that have only rarely been considered to date. KEY WORDS: ideology, historic-structural theory, education. A base da elaboração teórica crítica da realidade educacional tem sido o conceito de ideologia como foi desenvolvido na literatura marxista, principalmente a partir das contribuições de Gramsci, Lukacs e Althusser. O texto procura explorar algumas conseqüências da reelaboração do conceito de ideologia, feita por T. W. Adorno e M. Horkheimer, para a reflexão crítica sobre o tema da educação, destacando a função ideológica da indústria cultural e do crescente processo de tecnificação em amplos setores da sociedade que influenciam diretamente a realidade escolar e colocam em pauta questões pouco exploradas. PALAVRAS-CHAVE: ideologia; teoria histórico-estrutural; educação.

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Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Bauru.

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ARI FERNANDO MAIA

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Uma revisão importante do conceito, inclusive por conta de suas implicações explícitas para a escola, é o conceito de ‘Aparelhos Ideológicos de Estado’ elaborado por Althusser; as vicissitudes do conceito de ideologia na literatura marxista podem ser vislumbrados no artigo de Eagleton “A Ideologia e suas Vicissitudes no Marxismo Ocidental” (Zizek, 1997), em que o autor destaca ainda as contribuições de Lukács e Gramsci.

A realidade escolar que vigora atualmente no Brasil, no bojo das ‘modificações’ econômico-sociais que ocorrem mundialmente e em acordo com elas, persiste sendo profundamente antidemocrática e excludente. A mera observação demonstra o que as pesquisas sérias, sem dúvida de forma mais eloqüente, comprovam: a escola brasileira não tem sido capaz de cumprir seu papel em uma sociedade desigual, qual seja, o de ‘ir contra a corrente’, resistir ao processo de progressivo fechamento das brechas que permitem fazer avançar o processo democrático, mantendo uma ordem social bárbara. Para aqueles que se dispõem a pensar a escola nessa realidade, cumpre levar a sério a avaliação do contexto histórico e de suas vicissitudes com relação à educação. Não são poucos os autores, no âmbito da Psicologia, que se dispuseram e ainda se dispõem a pensar a realidade escolar de forma crítica. Sem dúvida, boa parte da produção científica em Psicologia Escolar procura desvendar criticamente as práticas educacionais em nosso país para apontar caminhos para ações democratizantes que permitam resistir à barbárie generalizada. Tentando acompanhar essa orientação, procurar-se-á pensar o fracasso da escola em resistir ao ‘rolo compressor’ neoliberal dentro da perspectiva teórica da Teoria Crítica, mais especificamente de um de seus representantes: Theodor W. Adorno. O conceito adorniano que parece permitir uma articulação fértil para refletir sobre a realidade escolar é o conceito de Ideologia. O uso indiscriminado do termo ideologia, além do fato de vários autores ‘marxistas’ elaborarem o conceito de formas distintas2 , impõe a necessidade de tecer algumas considerações a seu respeito, para identificar a posição adorniana. Um dos aspectos irônicos da utilização atual, em alguns setores acadêmicos, no senso comum e na indústria cultural, do termo ideologia, é que se tenta negar o conceito e assim, ao mesmo tempo, ele é confirmado. Afirma-se que não há mais ideologias (!) para justificar a ordem social existente, e dessa forma, no plano da doxa, acaba-se por afirmar aquilo que, num certo sentido, no plano do pensamento filosófico-crítico, se reconhece como o conceito de ideologia. Segundo Adorno e Horkheimer (1978): Com efeito, a ideologia é justificação. Ela pressupõe, portanto, quer a experiência de uma condição social que se tornou problemática e como tal reconhecida mas que deve ser defendida, quer, por outra parte, a idéia de justiça, sem a qual essa necessidade apologética não subsistiria e que (...) se baseia no modelo de permuta de equivalentes (p. 185).

O cerne da justificação consiste na tentativa de afirmar o existente como o que é, como uma forma definitiva e não histórica, expurgando por decreto as contradições que, a despeito do que se diga, concretamente persistem. No entanto, cabe também não naturalizar essas contradições. Elas são fenômenos humanos e, portanto, fenômenos históricos decorrentes das formas sociais construídas pelos homens, implicando uma ação coletiva desses homens para ocorrer. Nesse sentido, a afirmação de que não há mais

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3 O artigo “A Ideologia”, escrito por Adorno e Horkheimer (1978) foi publicado pela primeira vez em 1966.

4 O conceito de mediação é importante para a compreensão desse processo. Segundo Lalande (1993) o conceito de mediação indica a “ação de servir de intermediário entre um termo ou um ser do qual se parte, e um termo ou um ser ao qual se chega, sendo esta ação produtora do segundo, ou pelo menos, condição de sua produção” (p. 656).

ideologias quase diz a verdade, já que ela atualmente se confunde com a própria realidade social. Numa avaliação que não identifique a noção de progresso simplesmente ao avanço técnico, mas principalmente ao progresso da humanidade reconciliada consigo mesma, as contradições que impulsionam esse processo parecem paralisadas. Portanto, a ideologia e as teorias sobre ela estão sujeitas à dinâmica histórica cuja violência tentam justificar; e as afirmações ideológicas não podem ser identificadas como simplesmente verdades ou mentiras. Na época em que escreveram sobre esse conceito3 , Adorno e Horkheimer viram-se diante de um contexto histórico em que pelo menos dois fatos eram cruciais: a regressão bárbara que ocorrera na Alemanha e a generalização da forma da indústria para praticamente todos os âmbitos da vida dos indivíduos. A atualidade da crítica dos filósofos pode ser vislumbrada na consideração de que as condições que possibilitaram o nazifascismo persistem enquanto avança ainda mais o processo de administração ‘científica’ da sociedade. Quando as esferas da produção, distribuição e consumo das mercadorias obedecem a uma lógica industrial, a alienação do sujeito e a fantasmagoria do valor de troca que a caracteriza, materializada no equivalente universal, ocupa todos os espaços das relações entre os homens. Estes são constituídos como sujeitos pela mediação4 desta fantasmagoria administrada tecnicamente, o que constitui uma das faces da ideologia contemporânea segundo os autores: o véu tecnológico. Nesse contexto, tornam-se problemáticas as relações entre a aparência e a essência na sociedade, relações essas que servem de apoio para a crítica à ideologia, entendida como um conjunto “lógico, sistemático e coerente” (Chauí, 1994, p. 113) de idéias, crenças, valores, normas e leis que corresponderiam a uma má consciência da totalidade social em função de sua parcialidade - da ‘autonomia’ do espírito que não reconhece suas determinações -, relativa à classe social em que atua o sujeito5 . A ideologia é entendida, assim, como um discurso lacunar, sofístico que, coerentemente com a realidade da posição social do sujeito, avessa, inverte a realidade social visando à manutenção do poder da classe dominante numa sociedade caracterizada pela luta de classes. Atualmente, segundo Adorno (1994), o véu tecnológico, a administração totalitária da sociedade tolhe mesmo aquela autonomia irrefletida do espírito que caracterizava a ideologia: A aparência poderia ser traduzida na formulação de que tudo que existe socialmente está, hoje, tão completamente mediatizado em si que exatamente o momento da mediação acaba sendo deformado por sua totalidade. Já não há lugar fora da engrenagem social a partir do qual se reconcilia na medida em que impõe pura e simplesmente o caráter inconciliável do universal e do particular. Sua essência é a essência desnaturada; porém sua aparência, a mentira, graças à qual subsiste, é o lugar-tenente da verdade (p. 98).

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5 A mesma autora (Chauí, 1997), em outra oportunidade define: “A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (...), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real. Fundamentalmente a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir. (...) o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e a realidade...” (p. 3). Essa definição tem elementos em comum com a posição adorniana, mas esta destaca o caráter totalitário da sociedade industrial moderna que acaba por identificar a ideologia como a imagem do existente; certamente aparência mas como que ‘colada’ à essência - o fazer histórico coletivo que caracteriza o modo de produção.

A crítica à ideologia é, necessariamente, uma crítica à própria sociedade e ao processo de desenvolvimento do esclarecimento que mediou sua história, mas dado o caráter de falsidade do todo social (que anteriormente seria o critério da verdade), Adorno e Horkheimer (1978) atêm-se obstinadamente ao objeto particular para, por meio da determinação das mediações que o constituem, olhá-lo. A crítica à ideologia, portanto, é uma crítica imanente, isto é, a possibilidade de uma experiência ‘não ideológica’ implica considerar a singularidade do objeto em questão, assim como aquilo que nele representa o não singular, a cultura. A posição dos indivíduos nesse contexto tornou-se delicada, pois quase nada resta da relativa autonomia de que dispuseram no início da ordem burguesa, e ao mesmo tempo, é pela ação conjunta desses ‘indivíduos’ que se reproduz o todo social. A ideologia, embora tenha origem na materialidade das relações sociais de produção, para garantir a reprodução dessas relações, toma corpo, ‘ancora-se’, no psiquismo individual, e isso na medida mesma em que este é constituído pela mediação do ‘todo falso’. Na sociedade, o fetichismo da mercadoria ampliado ad infinitum implica a desconsideração de toda particularidade - o primado do pensamento identificatório, da ratio técnica, que é irracional na medida em que é uma razão parcial, na medida em que desconsidera seus limites; o indivíduo constituído nessa sociedade impõe-se (com um ‘pequeno auxílio’ da Indústria Cultural) formas de pensar e de experienciar adequadas à ratio. A justificação ideológica se dá na medida do não reconhecimento - ou do rechaço irado - daquilo que não é idêntico ao existente, ao preço, evidentemente, de uma violenta mutilação do não idêntico no próprio indivíduo. A falsa consciência se assenta sobre uma dinâmica de personalidade que dificulta ao sujeito a percepção e a interpretação da realidade. Esta é interpretada a partir da projeção de elementos internos do sujeito sobre ela, e isso tanto mais quanto mais rígida e estereotipada é a estrutura da personalidade. Dado que esta personalidade foi constituída pela mediação da cultura, ela será tanto mais rígida quanto mais excluir - como o faz o princípio lógico da sociedade capitalista - o não idêntico, e esta é a base ‘psicológica’ do preconceito, tão bem analisado por Adorno e seus colaboradores no estudo sobre a Personalidade Autoritária (Adorno et al, 1965). No entanto, o próprio Adorno (1993) adverte contra algo que seria sumamente ideológico: pensar a sociedade como uma totalidade una, isto é, pensar como irremediavelmente conciliadas a sociedade e os indivíduos:

O mundo é o sistema do horror, mas quem ainda procura pensá-lo inteiramente como um sistema faz-lhe uma excessiva honraria, pois seu princípio unificador é a cisão, que reconcilia na medida em que impõe pura e simplesmente o caráter inconciliável do universal e do particular. Sua essência é a essência desnaturada; porém sua aparência, a mentira, graças à qual subsiste, é o lugar-tenente da verdade (p. 98).

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FORMAÇÃO/FORMAR/DAR FORMA/TOMAR FORMA/CONSTRUIR/CRIAR

ESTUDO 1: FORMAS/FÔRMAS/CONSTRUÇÃO/CRIAÇÃO, Inácia Pereira, 1998

A falsa consciência diz respeito a determinado particular em questão e o falsifica em função de sua fixidez, em acordo com as fórmulas prévias dadas pela ordem social; a decifração da dinâmica da falsa consciência revela a violência da auto-submissão do sujeito a essas categorias prévias e seu ódio voltado contra a cultura que o submete. É verdade que essas formas de pensar e experienciar, dadas previamente, atendem a alguns impulsos dos sujeitos, particularmente aqueles ligados à pulsão de morte, mas isso não significa que alguma violência seja inevitável, mas somente que a forma atual de constituição do psiquismo dos indivíduos permite a gratificação da pulsão de morte por formas que os levam a ações que reproduzem a ordem social. A indústria cultural é o principal veículo de divulgação e de manutenção dessa forma de ideologia e se aproveita dos impulsos ligados à pulsão de morte. O conceito de indústria cultural foi utilizado pela primeira vez na ‘Dialética do Esclarecimento’ (Adorno; Horkheimer, 1991), e identifica o conjunto dos meios de produção e divulgação da ‘arte’, isto é, de mercadorias ‘culturais’, no capitalismo moderno. Não pode ser confundida, portanto, com uma ‘cultura de massas’, como algo que emana naturalmente da população e atende a seus gostos e interesses. Ela funciona especificamente como força de unificação dos indivíduos e força a falsa identidade entre os interesses da cultura e dos indivíduos, sendo o elemento fundamental da ideologia contemporânea. A força de unificação da indústria cultural utiliza-se dos impulsos regressivos cuja demanda é pela mimese, pela imitação. Segundo Adorno (1993): A indústria cultural modela-se pela regressão mimética, pela manipulação dos impulsos de imitação recalcados. Para isso ela se serve do método de antecipar a imitação dela mesma pelo espectador e de fazer aparecer como já subsistente o assentimento que ela pretende suscitar (p. 176).

Os produtos oferecidos têm como principal característica a padronização. O sempre igual é oferecido como se fosse diferente para dar a impressão de

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que são os sujeitos que ‘escolhem’, confundindo essa possibilidade de escolha entre mercadorias iguais com a ‘individualidade’. A indústria cultural alardeia a si mesma como o âmbito do diferente, em que haveria possibilidade de escolha, mas está tão identificada ao processo produtivo industrial que suas mercadorias são tão fetichizadas quanto qualquer outra. A autopropaganda da indústria cultural é ameaçadora e cínica até os ossos, e acaba generalizando esse procedimento mentiroso fornecendo exemplos de como proceder aos sujeitos6 . A individuação procurada com relação a seus produtos esbarra na pseudo-individuação que os caracteriza. Nas palavras de Adorno (1994): 6 Exemplos desse cinismo são abundantes. Quanto a um filme recente, alardeia-se seus custos de produção (os maiores de toda a história, segundo dizem) como se isso fosse algum critério para sua excelência. Numa matéria a esse respeito, no suplemento ‘cultural’ de um grande jornal, (O Estado de São Paulo, sábado, 16/01/98) a jornalista escreve, num tom francamente ameaçador, a frase que define o texto: ‘Quem não vir o filme corre o risco de ficar sem assunto’. A ameaça de exclusão explícita representa a verdadeira catástrofe que o filme reproduz com assustadora realidade.

Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de

hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer, escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, ‘pré-digerido’ (p. 123).

As possibilidades de o processo educativo se opor a esse estado de coisas implicam várias dificuldades. Segundo Adorno (1995a, p. 152): “A educação para a individualidade não pode ser postulada” pela circunstância de que não existem possibilidades sociais reais para o desenvolvimento de indivíduos. Mas, novamente, a questão não se resume à mera constatação: A situação é paradoxal. Uma educação sem indivíduos é opressiva, repressiva. Mas quando procuramos cultivar indivíduos da mesma maneira que cultivamos plantas que regamos com água, então isso tem algo de quimérico e de ideológico. A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação; por exemplo (...) colocar no lugar da mera adaptação uma concessão transparente a si mesma onde isto é inevitável, e em qualquer hipótese confrontar a consciência desleixada. Eu diria que hoje o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência (Adorno, 1995a, p. 154).

Além disso, retomando a questão da indústria cultural, os produtos oferecidos são ideológicos num outro sentido, pela forma técnica da transmissão das mensagens em alguns de seus veículos: a velocidade das seqüências de imagens na televisão e no cinema impossibilitam ao sujeito deixar de vê-las se quiser segui-las, e impedem o pensamento pela inexistência de tempo para elaborar as mensagens para além do mero reconhecimento e, além disso, habituam o sujeito a estímulos dessa natureza; a distinção de uma música popular com relação às outras músicas populares está em alguns detalhes, o que força novamente o reconhecimento como a única forma de apreensão. É importante observar que a linguagem nesse meio torna-se racionalizada para o fim de transmitir mensagens ideológicas e, adaptada a

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esse fim, torna-se também tecnicamente controlada, tentando atribuir a cada palavra um sentido inequívoco. A identificação da palavra com a coisa, com o objeto que se quer significar, é uma forma de regressão mimética; o objeto é sempre algo mais que a palavra que o significa e além disso, a palavra pode ir além do objeto existente e projetar sua superação. A fixação e a padronização da linguagem é um dos efeitos nefastos da indústria cultural, pois nela a linguagem assemelha-se à propaganda: é simplesmente instrumento de manipulação e, como tal, perde sua relação com a verdade. O empobrecimento da linguagem e das imagens veiculadas pela indústria cultural invadem o cotidiano escolar sob a forma de uma espécie de aversão à educação, de um querer se desvencilhar do “peso da experiência” (Adorno, 1995a, p. 150). Na verdade, os sujeitos rejeitam o que a eles foi reiteradamente negado: a possibilidade de uma experiência autêntica no contato com o objeto, o que evidentemente implica algum tipo de esforço e de dedicação ao objeto, que o contato com as mercadorias da indústria cultural impossibilita. Um outro dado importante com relação à indústria cultural é a ilusão de proximidade que é criada pelo encurtamento da distância entre os produtos oferecidos e o espectador, escondendo o fato de que um aparelho de televisão monopoliza a atenção de quantos espectadores estiverem diante dele, impedindo - ou pelo menos dificultando - a possibilidade de proximidade entre eles. A distância entre as imagens reais e as imagens apresentadas pela televisão e pelo cinema - que são fragmentadas, editadas, dissolvidas - não é sentida como problemática pois a fragmentação é um complemento da dissolução das qualidades no mundo das mercadorias. Mas, é mais difícil de entender como os sujeitos se sujeitam à repetição dos quadros televisivos que, à primeira vista, deveriam causar desprazer. A posição adorniana quanto a esse ponto demonstra sua desconfiança da afirmação simplória de que os conteúdos ideológicos são meramente ‘inconscientes’. A ideologia contemporânea, na medida em que é mera afirmação do existente, é por demais visível. A não autonomia do espírito afirmada irrefletidamente também é ideológica, pois é o próprio sujeito que se envolve ‘conscientemente’ com os produtos oferecidos pela indústria cultural. Afirmar que a atuação dos sujeitos é puramente inconsciente ao falarmos de ideologia retira deles toda a responsabilidade sobre suas ações e coloca a situação de um modo que anula toda a possibilidade de negatividade. Sobre essa questão, num texto sobre a música popular como manifestação da ideologia na indústria cultural, Adorno (1994) afirma: Assim como a divergência entre a ilusão da propriedade privada e a realidade da propriedade pública é muito ampla (...) não se pode encarar tais ocorrências como sendo também totalmente inconscientes. Provavelmente é correto presumir que a maioria dos ouvintes, a fim de obedecer ao que eles encaram como desejos sociais e provar sua ‘cidadania’, juntam-se ‘semi-humoristicamente’ à conspiração (...) suprimindo a chegada à consciência do mecanismo operacional, mediante a insistência, diante de si e dos outros, no sentido de que a coisa toda, de qualquer modo, é apenas uma brincadeira bem limpa (p. 135).

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ESTUDO 2: FORMAS/FÔRMAS/CONSTRUÇÃO/CRIAÇÃO, Inácia Pereira, 1998

Mas, se é assim, vemo-nos diante de uma espécie de paradoxo: se os indivíduos precisam esforçar-se por não ver a natureza dos conteúdos ideológicos a que aderem, porque aderem? O ‘véu’ que se estende diante dos homens na sociedade ‘falsa’ é frágil, mas aparentemente indestrutível. Essa aparência pode ser ultrapassada pelo esforço do pensamento, da reflexão, mas isso implica tirá-los de sua paralisia induzida pela ordem social. Além disso, há a ameaça bem visível tanto da violência física quanto da exclusão e, em última instância, da dissolução do Eu. Mas a esperança consciente que resiste e representa a esperança de reconciliação está presente também no texto de Adorno e Horkheimer (1978), afirmando: ... no final das contas, a única coisa que se autonomizou foram as relações entre os homens, soterradas sob as relações de produção. Por isso é que a toda poderosa ordem das coisas continua a ser, ao mesmo tempo, a sua própria ideologia, virtualmente impotente. Por mais insuperável que seja o feitiço, é apenas feitiço (p. 203).

Considerando os apontamentos sobre o conceito de ideologia já feitos, poder-se-ia arriscar algumas observações sobre a educação escolar em nossas plagas. Obviamente não há pretensão de esgotar a questão, mas apenas de apontar alguns elementos para uma reflexão que é imprescindível. Em última instância, poder-se-ia pensar nos seguintes termos: em que medida e por que tipo de ações a escola - e também a produção ‘científica’ sobre ela - reproduzem a realidade social existente e, nesse sentido, reproduzem o mundo da alienação, da fetichização e da ideologia? Ou por outro lado, que tipo de ações possibilita 'ir contra a maré' e ao sujeito um pensar que não se reduza ao existente e que possa fazer avançar o processo educativo em direção à autonomia, ao desenvolvimento de qualidades no sujeito que permitam a ele o exercício da reflexão? Em primeiro lugar, cumpre considerar a escola como um campo potencialmente fértil para contradições, refletindo a própria ordem social. Apontando algumas, pode-se citar, por exemplo: a necessidade ética de promover ações que levem à emancipação e à autonomia e/ou à heteronomia e à adaptação vigentes; o predomínio de uma razão técnica e identificatória levando à apropriação de determinado referencial técnico e/ ou a reflexão crítica, a razão emancipadora e o contato com o diferenciado. Ao que parece, há uma contradição básica que diz respeito ao processo educativo; ele é, principalmente no capitalismo moderno, o principal meio de divulgação e ampliação do ‘esclarecimento’, do saber, portanto, de produção e reprodução da cultura, mas: “a civilização (...) origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório (...) Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador” (Adorno, 1995b, p.119-120). Referindo-se a Freud, nessa passagem Adorno aponta o cerne da questão: como se poderia interromper esse processo que, apesar de não ser inexorável, tem raízes tão profundas

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NOTAS SOBRE IDEOLOGIA E EDUCAÇÃO

em nossa cultura? Entre o esclarecimento, a razão e a liberdade não há relação de vínculo natural ou automática. Por outro lado, não se pode abrir mão da razão se se aspira à liberdade. A questão pode ser posta em outros termos: não há democracia sem emancipação, sem uma formação que permita aos sujeitos uma atuação crítica, política e ética em sua ação social. Nesse sentido, a emancipação pressupõe uma formação intelectual para toda a população, sem distinção quanto à futura tarefa social a ser cumprida pelo sujeito. Mas, além do fato de que esta formação não está em pauta, há uma outra, apontada por Adorno (1995a): A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisso, produzindo (...) pessoas bem ajustadas (...) Nesses termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambigüidade (p. 143-4)

7 A ciência, atualmente, assumiu o lugar da verdade, do ‘discurso competente’ como definido por Chauí (1997): “O discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (...) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem” (p. 7). As raízes desse poder do discurso científico podem ser remetidas ao mito, que identifica a palavra e a coisa, suma expressão ideológica - do poder e da impotência.

No entanto, o próprio filósofo adverte que, nas atuais condições, a necessidade de adaptação - já tão forçada em outras instâncias - torna-se secundária frente à necessidade de crítica. Em suas palavras: “A educação (...) teria nesse momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação” (Adorno, 1995a, p. 144). Provavelmente, considerando a realidade escolar, encontrar-se-iam essas contradições vivas, para além do simples ‘ou ... ou ...’. Conformismo e resistência convivem no cotidiano escolar, mas é preciso também considerar que nem sempre o que representa resistência à violência imposta pela cultura através do processo educativo nega essa violência ou constitui uma experiência formativa; mais comum é a reprodução dessa violência, dos professores contra os alunos, destes contra os colegas mais fracos ou então o retorno da violência para o próprio sujeito. A resistência é rompida na medida em que a ordem coletiva objetiva materializa-se em ações ‘educativas’ que se impõem violentamente ao individual abstrato, às singularidades. A observação empírica desse processo, sem dúvida difícil, é urgente e fundamental, e implica um olhar crítico às ‘metodologias’ que se pretendem educativas imbuídas de uma ‘aura’ de cientificidade técnica7 . Certos conceitos adquiridos pelo saber ‘pedagógico’ pela incorporação de ciências como a Psicologia - como motivação, inteligência, os testes psicológicos etc, expressam sutilmente o princípio do equivalente. A exigência de ordem e disciplina aproxima a escola da indústria, embora seus fins sejam, ou devam ser, diversos. As ações intelectuais programadas obedecem aos moldes das ações braçais industriais -, pois são fragmentadas e sem sentido, destituindo o pensamento de sua dimensão de liberdade. Sobre a ‘pedagogia’, Adorno (1995a) afirma:

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Max Scheler disse certa feita que só atuou pedagogicamente porque nunca tratou seus estudantes de maneira pedagógica. Se me permitem a observação pessoal, a minha própria experiência confirma inteiramente este ponto de vista. Ao que tudo indica, o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia para influenciar, à recusa em convencer (p. 104).

Essa é uma questão delicada: por um lado, não se pode abrir mão de estratégias pedagógicas - não necessariamente voltadas para o ‘convencimento’ - pois uma prática educativa sem intenção e reflexão pedagógicas seria cega; por outro, é preciso considerar que muitas das práticas pedagógicas atualmente utilizadas já são em si mesmas cegas e, além disso, é preciso sempre considerar que os problemas educacionais não podem ser resolvidos somente pedagogicamente; eles apontam para além da escola, para a sociedade. Novamente, a saída desse emaranhado parece ser a constante reflexão sobre as contradições que estão presentes no cotidiano escolar. A tecnificação, principal face da ideologia, atinge o processo educativo de várias maneiras, decorrentes do desenvolvimento do processo educativo como um processo ‘industrial’. Apenas para citar algumas; a) o conhecimento pode ser tratado como coisa em si, como dado técnico desprovido de outras mediações que não sua própria finalidade ‘útil’, e assim ser coisificado. Nesse caso a formação é substituída pela informação e pelo ‘treino’ dos alunos que, obviamente, aprendem mais que o mero conteúdo, incorporando a disciplina e a alienação. Por outro lado, cabe considerar que de fato alguns tipos de conhecimento - principalmente aqueles que ‘não servem para nada’, a Filosofia e a Arte, por exemplo, - têm um inegável valor humano, histórico e técnico (!) e, além disso, são os instrumentos de que se utiliza o pensamento crítico, sendo portanto imprescindível pensar a natureza dos conteúdos ensinados e o processo de aprendizagem individual dos alunos, para além do ‘método’ utilizado; b) o ‘método’ pedagógico pode ser um subterfúgio, um substituto à experiência no trato com os alunos; mas a experiência dos professores já é sempre - por assim dizer - mediada pela cultura e nesse sentido, todo cuidado é pouco, isto é, cabe ao professor uma constante capacidade de (auto) crítica e abertura à experiência. Ações que refletem preconceito vicejam no cotidiano escolar e somente uma constante reflexão - entendida como prática formativa também para o professor - pode minimizar esses ‘reflexos’ da realidade material na escola; c) a ‘ciência’

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NOTAS SOBRE IDEOLOGIA E EDUCAÇÃO

8 Uma excelente análise da generalização da forma industrial para a educação e dos desdobramentos dessa forma de ideologia para a propagação dos preconceitos encontrase no artigo “Aspectos que Permitem a Segregação na Escola Pública” (Crochik, 1997).

psicológica, pedagógica, médica etc, também são incorporadas à prática do cotidiano escolar e em muitos casos se prestam à justificação da violência imposta aos alunos sob o disfarce do discurso competente. Estas ciências fornecem receitas e máximas à escola, técnicas sobre como proceder e lidar com os alunos. Mas uma ‘técnica educativa’ pronta e acabada seria, em última instância, uma espécie de ‘sublimação’ das máquinas de ensinar, à qual o professor deve se adequar para corresponder às expectativas de algum novo plano pedagógico governamental ou para corresponder à propaganda de determinada escola particular; d) são incorporados ao processo educativo meios técnicos novos, computadores, aparelhos de televisão etc, sem que se reflita sobre como essas novas técnicas influenciam o próprio processo educativo; e) são estimuladas a competição e a hierarquização entre os alunos, e seu desempenho é medido por instrumentos avaliatórios coisificados, como os testes psicológicos; f) institui-se o princípio do desempenho e da competência individual, tanto para alunos quanto para professores, e no bojo dessa ideologia, a capacidade e a inteligência, por exemplo, são entendidas como características naturalmente individuais, desconsiderando sua dimensão social; como conseqüência, são instituídas classificações, baseadas em atributos arbitrários e subjetivos de competência, que servem, por exemplo, como critério para a criação de ‘classes especiais’, ou então outras distinções não oficiais, que afirmam a diferença daqueles que são discriminados para poder novamente confirmá-las - obviamente no sentido de mantê-las sob controle, e assim permitem e estimulam o preconceito8 . Seria impossível imaginar todos os desdobramentos da tecnificação no âmbito escolar. No entanto, ter em vista essa realidade é fundamental para se poder resistir ao irresistível: ao fechamento das brechas de negatividade, à ideologia. Em todos os casos em que a tecnificação e o ‘discurso competente’ são incorporados irrefletidamente, a finalidade do processo educativo - pelo menos as intenções apresentadas - e os meios para alcançá-la não são articulados. O próprio pensamento entendido como uma faculdade cognitiva, é ao mesmo tempo uma faculdade afetiva e ética (!), pois não há pensamento excluído das determinações inconscientes, que são estruturadas na prática dos indivíduos em sociedade constituindo sua personalidade, e envolvendo uma totalidade afetivo-cognitiva. A exclusão da dimensão da práxis do processo educativo torna os processos cognitivos exigidos um simulacro do pensar, excluindo dele sua dimensão afetiva, ética e política. Por outro lado, seria idealismo imaginar que se pode simplesmente incorporar uma dimensão ético-política - a práxis - ao processo educativo se este está submetido ao processo social que o corrompeu. A crítica à ideologia consistiria na visão clara dessa exclusão, o ‘cisco no olho que faz ver’, a consideração das conseqüências de mais essa cisão em seus mais sutis desdobramentos. É importante também observar que o saber produzido sobre a realidade educacional nem sempre atende à necessidade da crítica e, ao contrário, muitas vezes atende a necessidades ideológicas. No contexto histórico brasileiro há excelentes exemplos de como o conhecimento ‘científico’ sobre

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9 Identificando os médicos pertencentes à Liga Brasileira de Higiene Mental, entidade criada por Gustavo Riedel em 1922, no Rio de Janeiro, que acumulou uma série de trabalhos sobre a realidade educacional brasileira. Alguns desses trabalhos como: “Idéas Geraes de Hygiene Mental” de F. Esposel, “Menores Incorrigiveis” de Ernani Lopes, “A Criança Problema” de Arthur Ramos, entre outros, são francamente protofascistas em algumas de suas proposições, por exemplo, a inferioridade racial e a eugenia (Scwarcz, 1996). Mais tarde, a partir da década de 70, a exclusão e o ‘fracasso escolar’ são atribuídos não mais à biologia, mas à carência cultural. De qualquer modo, em comum há a justificação da reprodução na escola das desigualdades sociais.

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a escola contribuiu para justificar a violência social e para implantar o ideal de uma sociedade administrada. Médicos higienistas e psicólogos escolares,9 por muito tempo cumpriram, obviamente com as melhores intenções, o papel de criadores de justificativas ideológicas para a realidade escolar nacional. Esse conhecimento sumamente ideológico é um exemplo eloqüente do iluminismo irrefletido. Além disso, nada garante que determinado saber não possa ser interpretado erroneamente e utilizado com finalidades que lhe são alheias. Reconstituir a possibilidade da experiência e da crítica é urgente e fundamental a todos os envolvidos no processo educativo. A possibilidade de ações que levem à formação (Bildung) no sentido em que o termo é utilizado por Adorno implica uma crítica permanente, uma reflexão que ultrapasse o existente, reconhecendo as determinações objetivas por ele constituídas. Nesse sentido, pensar a formação implica pensar a exclusão e a violência em todas as suas nuances, especialmente a exclusão do singular, do diferenciado, que pode se dar sem que os alunos deixem de freqüentar as aulas e, o que é pior, sob a aparência de perfeita ordem e ótima produtividade. Nesses casos, teremos profissionais respeitados, aparentemente competentes, mas envolvidos com a reprodução da barbárie que viceja ao nosso redor, e que depende de nós para persistir ou sucumbir. Referências bibliográficas ADORNO, T. W. et al. La personalidad autoritária. Buenos Aires: Ed. Proyección, 1965. ADORNO, T.W. Mínima moralia. São Paulo: Ática, 1993. _______________. Sobre música popular. In: COHN, G. Theodor Adorno. São Paulo: Ed. Ática, 1994. _______________. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995a. _______________. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995b. ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1991. _____________________________________ La sociedad: leciones de Sociologia. Buenos Aires: Ed. Proteo, 1978. CHAUI, M. S. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1994. _____________. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1997. CROCHIK, J. L. Aspectos que permitem a segregação na escola pública. In: Educação Especial em Debate. São Paulo: Casa do Psicólogo, CRP 06, 1997. LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1993. SCWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

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Currículo paralelo em Medicina, experiência clínica e PBL: uma luz no fim do túnel? Sérgio Rego

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REGO, S. Parallel curriculum in Medicine, clinical practice, and Problem Based Learning: is there a way out? Interface Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n. 3, 1998

This article discusses the parallel curriculum in Medicine, in the light of the theoretical frame of reference of the theory of socialization of adults. It points out the key reasons that lead students to seek for extracurricular apprenticeships, as a means of complementing their formal education. Through the introduction of Problem Based Learning, the author intends to identify the main advantages and obstacles to the implementation of a curriculum based on this pedagogical strategy, and discusses the possibility of this new proposal curtailing the search for extracurricular training programs. KEYWORDS: medical education, professional education, curriculum.

Este artigo discute o currículo paralelo em Medicina, à luz do referencial teórico da teoria da socialização de adultos. São indicados os principais motivos que levam os estudantes a buscarem os estágios extracurriculares como forma de “complementarem” sua formação. Introduzindo a discussão sobre o Problem-based Learning, o autor busca identificar as principais vantagens e obstáculos na implementação de um currículo baseado nessa estratégia pedagógica e discute as possibilidades dessa nova proposta vir a inibir a busca pelos estágios extracurriculares. PALAVRAS-CHAVE: ensino médico, formação profissional, currículo.

1 Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP, Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, Rio de Janeiro. E-mail: rego@ensp.fiocruz.br

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A crise no setor saúde, obviamente, não se restringe aos campos aqui apontados. Não nos estenderemos neste tema por não ser relevante para o que aqui abordaremos.

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Este artigo tem como referência fundamental minha dissertação de mestrado (Rego, 1994).

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O processo de formação dos médicos tem sido objeto de inúmeros conclaves, publicações e debates. Recentemente, temos observado que o debate ultrapassa os limites restritos da própria corporação médica e acadêmica (os meios de comunicação social têm sido pródigos em comentar as deficiências desse processo). A “explosão” democrática na área da saúde teve como seu marco histórico fundamental a 8ª Conferência Nacional de Saúde. A criação dos Conselhos de Saúde em seus diversos níveis, também tem contribuído para romper as amarras corporativas. A crise, que hoje é uma das mais discutidas características na prestação de serviços de saúde também está presente na formação de seus profissionais e técnicos2 . Nesse contexto, temos observado também uma mudança no perfil daqueles que vêm se dedicando ao estudo dos temas afeitos à Educação Médica. Se, no passado, os trabalhos e estudos publicados eram de autoria de eméritos professores de Medicina, vemos, progressivamente, esse perfil de autores se ampliando com a incorporação de estudiosos que têm, na Educação Médica, seu campo de atuação principal. Não são mais apenas médicos os que a ele se dedicam. Temos pedagogos, sociólogos, filósofos, além de outros profissionais. Com isso, há uma mudança qualitativa nos rumos dos debates em curso, sendo incorporadas diferentes abordagens teóricas e instrumentos de análise. Inegável, também, é constatarmos um possível agravamento na crise que ronda a Escola Médica - inserida na crise enfrentada pela Universidade brasileira -, especialmente apontada ao final dos anos oitenta. Nesse contexto emergiram as propostas de avaliação dos graduados em Medicina, de avaliação das escolas médicas e uma maior difusão de novas alternativas pedagógicas , entre elas o “Problem-Based Learning - PBL”. Neste artigo3 pretendemos destacar a importância da “experiência clínica” como valor fundamental na formação dos médicos, algumas das dificuldades encontradas pelas Escolas Médicas em patrocinar a aquisição dessa experiência nas atividades oferecidas em seu currículo e discutir as possibilidades de êxito nesse propósito por meio da incorporação do PBL como metodologia pedagógica. A crise da Universidade e a crise na Escola Médica

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Para uma análise das questões relacionadas mais especificamente a América Latina, ver Paiva, Vanilda e Warde, Mirian Jorge Dilemas do ensino superior na América Latina. Ed. Papirus, 1994, São Paulo.

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Devemos entender que a crise na Universidade não é uma exclusividade brasileira, muito menos latino-americana 4 . Santos (1995), tendo como ponto de partida a identificação dos objetivos da Universidade, demonstrou que pouco se modificaram ao longo de sua história, salvo na década de sessenta, quando passaram a ser a investigação, o ensino e a prestação de serviços. A grande novidade nesse momento foi a inclusão da “prestação de serviços”, acompanhada de uma série de funções também incorporadas, como, por exemplo, “educação geral pós-secundária; fornecimento de mãode-obra qualificada; educação e treinamento altamente especializados; mobilidade social para os filhos e filhas das famílias operárias; prestação de serviços à região e à comunidade local” (Santos, 1995, p.189). São as contradições entre suas diferentes funções o tema que deve ser abordado prioritariamente para entender-se a Universidade hoje e suas crises,

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identificadas por este autor como: a) de hegemonia – representada pela sua incapacidade de desempenhar algumas de suas funções contraditórias, o que leva os grupos sociais não satisfeitos em sua necessidade (ou o Estado em seu nome) a buscarem meios alternativos para atingi-los. Por exemplo, ao se revelar incapaz de responder às demandas específicas do mercado de trabalho, surgem instituições não universitárias que passam a oferecer formações específicas que atendem a essas necessidades; b) de legitimidade – decorrente da incapacidade referida; c) institucional – devido à contradição entre autonomia e produtividade social. É nesse contexto, e mais especificamente naquilo que Santos chamou de crise de hegemonia, que pretendemos nos deter para introduzir a discussão sobre o currículo paralelo. Antes, porém, é importante que consideremos uma das características dessa crise – a que está relacionada à dicotomia educação e trabalho, que fez com que existissem dois mundos “com pouca ou nenhuma comunicação entre si: o mundo ilustrado e o mundo do trabalho. Quem pertencia ao primeiro estava dispensado do segundo; quem pertencia ao segundo estava excluído do primeiro” (Santos,1995, p.195). Afinal, durante todo o período do capitalismo liberal, a Universidade estava voltada para a produção e transmissão da alta cultura, assim como à socialização de seus alunos para a função de dirigentes da sociedade. Mas, já no final desse período, “a dicotomia passou então a significar a separação temporal de dois mundos intercomunicáveis, a seqüência educaçãotrabalho. A educação cindiu-se entre a cultura geral e a formação profissional e o trabalho entre o qualificado e o não qualificado” (p.196). Essa dicotomia vem sendo questionada em dois níveis: a) sua relação seqüencial pressupõe a existência de uma correspondência estável entre oferta e demanda de trabalho, o que já não ocorre. O tempo de formação universitária de um profissional é bem superior à demanda por este profissional, sendo que o perfil definido para um dado profissional, em um momento específico do mercado, não necessariamente estará mantido após quatro, cinco ou seis anos de formação universitária (acrescida do tempo necessário para a Universidade detectar essa necessidade e redirecionar seus objetivos); b) o questionamento da própria seqüência “educação-trabalho”, já que cada vez mais surgem indicativos de busca concomitante de outras formas de educação - vide as exigências da formação permanente e reconversão profissional. A Escola Médica sofre as repercussões desse fenômeno em todos os seus aspectos. O planejamento adequado de seu sistema educativo para fazer frente às necessidades previsíveis de mão-de-obra no mercado de trabalho é talvez um de seus exemplos mais eloqüentes. Qual a efetiva atuação da escola médica brasileira no sentido de adequar suas ações educativas, inclusive fomentar a formação deste ou aquele tipo de especialista (ou generalista), tendo como referência a análise concreta das necessidades futuras do mercado de trabalho? Tomando-se um exemplo mais concreto, temos o Programa Saúde da Família, do atual governo federal. Devemos discutir ou não mudanças no planejamento educacional para responder às necessidades demandadas por este programa específico? Será a Universidade capaz ou não de fazê-lo em tempo razoável? Quantas faculdades médicas

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têm procurado discutir questões como essa? O fato é que a grande maioria de nossas escolas experimenta a mesma dificuldade de transformação das Universidades em geral. Refletem, em seu seio, a dificuldade de harmonizar os diferentes objetivos que lhes são impingidos, de tal forma que a pesquisa e a prestação de serviços têm, muitas vezes, se sobreposto aos objetivos de ensino (sejam os relacionados à chamada “alta cultura”, sejam os de formação profissional). Sem dúvida, por este caminho poderíamos encontrar explicações razoáveis para o fenômeno do currículo paralelo, não fosse esse, ao menos no caso da Medicina (que tem sido a profissão objeto do maior número de estudos), um fato bem anterior aos anos sessenta. Ou seja, embora esta linha de análise seja muito útil para o entendimento das transformações nos mundos do trabalho e da educação para o destaque de questões decorrentes das contradições entre seus múltiplos objetivos, ela por si só é insuficiente para o entendimento do objeto em questão, embora colabore com a identificação de elementos para a análise. O currículo paralelo Carlos Fajardo, 1989

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Antes de introduzirmos o conceito de “currículo paralelo”, devemos nos remeter ao próprio conceito de currículo. Como afirma Koifman (1986), podemos sintetizar as múltiplas conceituações sobre o currículo em dois pólos: currículo como texto de grade curricular e currículo como todo educativo. No primeiro caso, se aproxima o conceito de currículo ao de ‘documento escrito’. Esta analogia está presente não somente em parte da produção escrita, como também no uso coloquial do termo no âmbito educativo: quando os professores, por exemplo, falam de currículo, se referem aos documentos com base nos quais definem seus programas anuais (programa por série a partir da grade curricular). No segundo caso, está incluído o conceito de currículo oculto, que se refere às experiências vivenciadas no cotidiano escolar, embora não prescritas formalmente em um texto escrito. Para Galli (1989, p. 345) “existem dois tipos de currículo: o formal, manifesto e previsto, que expõe os alunos a determinadas experiências e [prevê] aulas, trabalhos práticos e exames; e o informal ou oculto, que é o conjunto de experiências e estímulos que o estudante recebe sem que tenham sido previstos nem planejados”. Para esta autora, o currículo oculto “consiste na transmissão de uma cultura particular através de processos de identificação e não implica em cursos nem exames. (...). O aluno incorpora a cultura médica, identifica os atributos que obtêm prestígio social e adquire uma escala de valores”. Notem que o currículo oculto não se confunde com o chamado “currículo paralelo”. Este constitui-se como “o conjunto de atividades extracurriculares que os alunos desenvolvem, subvertendo, na maioria das vezes, a estrutura curricular formal estabelecida pela Faculdade” (Rego, 1994, p.10). Para que possamos compreender a importância do “currículo paralelo”, devemos nos reportar ao conceito de socialização profissional, que teve em

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Embora seja certo que esses valores e atitudes também sejam transmitidos pela inserção do estudante na sociedade em geral, com seus meios de comunicação social tendo um papel destacado. Mas, como dissemos, não se trata de discutir aqui os diferentes aspectos do conceito de socialização ou do currículo oculto.

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Merton (1957) e Becker (1984) seus principais estudiosos, inclusive contemplando o caso da profissão médica. Não sendo pertinente estendermo-nos na discussão dessa teoria nesse artigo, recordaremos alguns de seus postulados. A socialização de adultos, para Merton (1957) , inclui mais do que é habitualmente descrito como educação e treinamento: “o mais conspícuo neste processo é a aquisição de um considerável estoque de conhecimento e habilidades o que ocorre mesmo com a menor parcela dos estudantes” (p.41). Além disso, ele afirma ser útil pensar no processo de aquisição da função em duas classes principais: aprendizado direto mediante o ensino didático de um ou outro tipo e aprendizado indireto, no qual atitudes, valores, padrões de comportamento são adquiridos como subprodutos do contato com instrutores e pares, com pacientes e com membros da equipe de saúde. Os estudantes aprendem não somente do padrão ou mesmo do exemplo deliberado; eles também aprendem - e pode ser a forma mais duradoura de aprendizado - do envolvimento contínuo naquela sociedade de staff médico, colegas estudantes e pacientes que constituem a Escola Médica como uma organização social (p.41-2). Assim, a Escola Médica tradicionalmente é identificada como elemento crucial na aprendizagem profissional “porque representa o contexto institucional no qual se inicia a socialização. A Faculdade de Medicina é importante porque constitui não somente o ambiente onde se transmitem os conhecimentos, experiência, hábitos, atitudes e valores, mas também o meio pelo qual os membros da profissão controlam o que seus colegas serão e o nível de aprendizagem que recebem” (Coe, 1984, p. 234). Conclui-se, assim, que nesse contexto o estudante de medicina será formado e adquirirá sua base teórica e a “cultura profissional” (entendida em seu sentido amplo, incluindo-se valores e atitudes5). Mas é nos estágios e na prática regularmente oferecida pela Faculdade que o estudante é efetivamente forjado como profissional. Aí adquire segurança para iniciar-se efetivamente na prática da profissão que escolheu. Em suas atividades práticas ele “desenvolve seu ‘eu-profissional’, com seus valores característicos, atitudes, conhecimento e habilidades, fundindo-os em disposições mais ou menos consistentes que orientam seu comportamento em uma ampla variedade de situações profissionais ou não” (Merton, 1957, p. 287). Os estágios extracurriculares (que compõem o chamado currículo paralelo) são uma tradição no ensino da Medicina. Embora nem sempre sua existência seja admitida formalmente pelas Escolas Médicas, pela corporação médica ou autoridades governamentais, eles são não apenas aceitos como até mesmo estimulados ou promovidos. Se em nosso país eles ainda fazem parte do processo de formação de nossos alunos, só encontramos referência a esse tipo de prática na literatura internacional dos países centrais como referências históricas. Referindo-se ao período que antecedeu a Reforma Flexner, Coe assim descreveu o quotidiano nas universidades inglesas e americanas: “os estudantes assistiam a umas poucas lições, com freqüência perseguiam interesses independentes e aprendiam a maior parte de seus conhecimentos acompanhando os médicos em suas visitas às

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salas do hospital. Os exames versavam em sua maior parte sobre os conhecimentos de ciências básicas e deixavam pouco lugar para a aplicação destas.(...). Os programas eram muito flexíveis e, exceto em alguns casos, era permitido aos estudantes procurarem o seu próprio ensino” (Coe, 1984, p. 234-5). Esta situação, com as ressalvas indispensáveis, uma vez que não vivemos uma situação de anomia e tampouco os exames costumam ser tão desvinculados do campo de atuação prática de um médico, poderia ser referida ao nosso país. Àqueles mais renitentes em aceitar esta comparação, apresentamos um extrato do Parecer n° 506/69, aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 11/07/69, que buscava enaltecer as transformações que adviriam da Reforma Universitária e que superariam seu diagnóstico: “nenhum médico dos que se formaram no Brasil até aquela época cumpriu senão parcela reduzidíssima dos horários oficialmente estabelecidos pelas escolas. Era praxe vincular-se cada estudante, desde o segundo ou terceiro ano, a determinado serviço clínico, onde, no horário oficialmente destinado ao aprendizado teórico das várias disciplinas, procurava aprender ou exercitar-se nas tarefas necessárias à prática da profissão, com desconhecimento quase completo do programa escolar” (Santos, 1987, p.229). Como pode ser facilmente constatado nas Escolas Médicas (ou mesmo em anúncios classificados dos principais jornais do país), os estudantes de Medicina não deixaram de procurar tais estágios, assim como as Escolas Médicas não têm maiores preocupações com a freqüência a eles por seus alunos. E por que isto não ocorre? Várias são as explicações possíveis para esse fato, mas nos deteremos apenas naquelas que nos parecem mais relevantes. Em primeiro lugar, cada vez mais temos observado que os critérios de aprovação e de acompanhamento do desempenho dos alunos são objeto de menos reflexão pelo conjunto da escola. Como avaliar o desempenho de um aluno? Qual a política de cada instituição a esse respeito? Qual é a política adotada para o controle da freqüência dos alunos nas aulas teóricas, práticas e nas práticas de enfermaria e no internato? Dificilmente encontraremos uma proporção significativa entre as escolas que possuam uma diretriz que oriente seus docentes nesses assuntos. Na maioria das vezes, são os departamentos (ou ainda os próprios coordenadores de disciplina) que estabelecem seus critérios, quase sempre baseados na tradição ou em experiências pessoais. Não houvesse uma grande flexibilidade no trato dessas questões, seria inviável que todos os alunos entrevistados por nós em um recente estudo a esse respeito, realizado em uma das mais

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tradicionais escolas médicas do país, afirmassem terem feito ao menos um estágio extracurricular durante seu curso (sem que esses estágios fossem necessariamente no período noturno). Mas esta não é nem a única nem a principal razão para existência desses estágios. O fato é que eles têm sido tolerados, aceitos e incentivados por docentes e pela própria escola médica há muitos e muitos anos. Poderíamos, portanto, supor que justamente esta tradição possa ser o fator de tolerância a essa prática. Afinal, o ensino médico em tempos mais remotos era caracterizado pela relação do mestre diretamente com o aprendiz, em uma relação tutorial intensa. O aprendiz acompanhava o mestre em sua prática e assim ele aprendia. A seqüência educação-trabalho era, como hoje volta a ser posta em discussão, inexistente. Aprendia-se trabalhando, acompanhando seu mestre. Mas para que possamos acatar a hipótese da tradição, seria necessário que a relação tutorial ainda fosse observada, em nossos dias, no cotidiano das práticas extracurriculares, e isso não ocorre. Na maioria dos hospitais onde esses estágios são oferecidos, inexistem programas pedagógicos para os estágios ou mesmo a possibilidade de uma relação tutorial efetiva, ainda que sob a forma de uma simples supervisão. O que se observa é uma supervisão “formal”. Um “estar disponível” em caso de dúvidas, ou, às vezes, até uma disponibilidade apenas formal. Sendo assim, só iremos encontrar uma explicação mais satisfatória tanto para a busca dos alunos pelos estágios extracurriculares como para a tolerância implícita da corporação médica por esse tipo de prática, se algo mais estiver em jogo nesse processo. Esse diferencial é a chamada experiência clínica. A experiência clínica A experiência clínica é um dos valores fundamentais da profissão médica. Decorre diretamente da prática da profissão, prática essa que, para os estudantes, já era referida em 1974 pela então Comissão de Ensino Médico do Ministério da Educação e Cultura - MEC (1974, p.10): “a componente essencial da formação do estudante de Medicina reside nas características do atendimento dos pacientes no ambiente hospitalar, do qual participa na qualidade de estagiário ou de interno”. Nesta mesma direção apontava o clássico trabalho de Miller (1961, p.137-45) que preconizava ser o trabalho clínico “incomparável, e por essa razão geralmente considerado como o verdadeiro coração da educação médica”. A valorização da prática na formação do médico está clara também no trabalho de Merton (1957, p. 41-2) ao afirmar que “deste ponto de vista, os estudantes de Medicina estão engajados em estudar as funções profissionais do médico através da combinação tanto de seu componente de conhecimento, habilidades, atitudes e valores, como em serem motivados e habilitados para desempenhar este papel num estilo social e profissionalmente aceitável”. Esta é, portanto, componente essencial da transformação do estudante em médico. É a busca pela aquisição dessa experiência uma das principais forças que mobilizam os alunos em seu período de formação - eles valorizam a

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experiência clínica (como de resto a corporação médica) e procuram adquirila sempre que possível. Desejam acompanhar e tratar pacientes com doenças que esperam tratar freqüentemente após a formatura. E esperam, ainda, que seu contato com esses pacientes se dê em uma situação semelhante àquela que acreditam experimentarão após a formatura. Mas afinal, como definir a “experiência clínica”? Para tal, recorreremos a Becker (1984, p. 231). Este termo refere-se à verdadeira experiência em lidar com pacientes e doenças, e o principal significado desta expressão repousa na polarização implícita com o ‘aprendizado de livros’. Experiência clínica, na visão adotada para este termo, confere ao médico um conhecimento que ainda não foi sistematizado e verificado cientificamente. Não é possível adquirir este conhecimento através do estudo acadêmico - é necessário observar o fenômeno clínico e lidar com os problemas clínicos diretamente (grifo nosso). A experiência clínica pode inclusive substituir o conhecimento comprovado cientificamente, pode ser usado para legitimar um conjunto de opções de procedimentos para o tratamento de um paciente e, da mesma forma, pode ser usada para contra-indicar alguns procedimentos que tenham sido estabelecidos cientificamente. A experiência clínica, portanto, só pode ser adquirida com a prática. Ela está intimamente ligada ao conceito de que a Medicina é uma Arte, antes de ser uma Ciência. E os estudantes de medicina aprendem cedo a valorizar essa experiência, só adquirida com a prática. Eles parecem se guiar por uma pergunta: “Como posso aproveitar melhor meu tempo para preparar-me para a prática profissional como médico?”. Foi ainda Becker quem primeiro destacou esta característica e sistematizou suas reflexões sobre este conceito, como se segue: 1 É importante para um médico ter experiência clínica. 2 As atividades na faculdade são boas para sua formação quando dão aos estudantes a oportunidade de adquirir experiência clínica ou dão a eles acesso à experiência clínica de seus professores; são ruins quando não fornecem nenhuma dessas coisas. 3 Um estudante está fazendo um progresso real em sua preparação para a prática quando ele pode demonstrar para si próprio e para outros que ele absorveu algumas lições da experiência clínica (...). Nós concluímos, do exame de nossos dados, que os alunos adotam esta perspectiva e organizam seu comportamento por caminhos congruentes com ela (Becker, 1984, p. 242).

A introdução do valor “EXPERIÊNCIA CLÍNICA”, na análise dos estágios extracurriculares, clareia diversos pontos que até então estavam obscuros em nossa análise, como por exemplo: porque os alunos dizem que os buscam “para complementar sua formação”, “para aprender o que a faculdade não ensina”, “para aprender a medicina do dia-a-dia”, “para aprender a tratar os pacientes de verdade”, e outras respostas semelhantes. É exatamente por reconhecerem que esta experiência é passível de ser adquirida nos locais de grande movimento de pacientes, onde eles podem ver não um ou dois casos

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de determinada patologia, mas diversos. Onde eles podem ver o profissional médico em seu “verdadeiro” local de trabalho, longe do viés que o Hospital doenças mais raras e para os casos mais complexos, a despeito das mudanças no perfil observadas em muitos deles. Este viés ainda não foi rompido, apesar dos convênios MEC/Ministério da Previdência e Assistência Social MPAS da década de setenta e da recente implantação do Sistema Único de Saúde. É nessa perspectiva que os estágios extracurriculares são aceitos com tamanha facilidade pela corporação médica. Cada profissional reconhece, na busca dos estudantes, um movimento coerente para o aperfeiçoamento de sua prática, de ampliação de sua própria experiência clínica. Portanto, algo está faltando nas atividades desenvolvidas pelos estudantes nas Faculdades e que eles estão encontrando, por conta própria, nos serviços de saúde. Este algo mais, traduzido às vezes como “botar a mão na massa” ou “buscar segurança na prática”, é a possibilidade de obter a experiência clínica. Em que a experiência adquirida nos estágios extracurriculares difere daquela obtida no seio das Escolas Médicas? Comecemos pelas aulas práticas das diversas disciplinas. Nestas, o papel destinado aos estudantes é, via de regra, o de observadores. São aulas demonstrativas, nas quais são exibidos – qual atlas ilustrado e interativo pacientes portadores de patologias específicas. Mesmo nas atividades de enfermaria, a responsabilidade atribuída aos alunos que ainda não estão no período de internato é muito pequena. Nem mesmo a responsabilidade de

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obter a história clínica do paciente costuma lhes ser atribuída. Os internos e residentes têm precedência, na hierarquia funcional de um hospital universitário. Na realidade, será apenas quando começarem seu internato que os alunos estarão efetivamente envolvidos, com responsabilidades, na assistência do paciente. A discussão sobre a necessidade de ampliar a carga horária e a participação dos estudantes nas atividades práticas não é recente, sendo possível identificar propostas nesse sentido ainda na década de cinqüenta. Mas não basta apenas modificar a carga horária. A mudança precisa ser qualitativa. Nos estágios extracurriculares, longe da supervisão docente, os estudantes desfrutam de uma autonomia inaceitável e incompatível com seu nível de formação. Desempenham atividades que envolvem diagnóstico e terapêutica para os quais ainda não receberam formação adequada. Mas, no cotidiano desses estágios, nos quais os casos se multiplicam parecendo repetir-se em uma infinita monotonia, os alunos repetem procedimentos e rotinas, reduzindo a prática médica a um perigoso tecnicismo. Considerando-se que a maioria desses estágios se dá sob o regime de plantão, perdem também as possibilidades de acompanhar a evolução da doença do paciente atendido; de saber se efetivamente o diagnóstico estava correto e a terapêutica instituída adequada, ou não. Esta é uma das razões pela qual os estágios extracurriculares não podem ser mais tolerados. É também uma motivação a mais para que as Escolas Médicas redefinam suas práticas, reorganizando-as de maneira a envolver efetivamente seus alunos nas atividades clínicas, embora com responsabilidades compatíveis com sua formação. A multiplicação dos campos de prática, com a implementação de programas de integração docente assistencial, pode ser um caminho, desde que as Faculdades não se restrinjam ao encaminhamento dos estudantes e que estes não sejam submetidos a uma mera “exposição” à realidade. Outra questão coloca-se agora: serão os novos métodos de ensino capazes de responder a essa necessidade? Será que a implementação de um currículo fundamentado no PBL é capaz de resolver essa questão? Apresentaremos nossas reflexões a este respeito, bem como a identificação de alguns dos problemas inerentes à implementação de um currículo com esse enfoque. O PBL e os estágios extracurriculares

Carlos Fajardo, 1989

Existe uma fábula que vem se tornando muito popular no meio educacional e que se refere a uma comunidade da idade da pedra cujo maior problema era a obtenção de alimentos. Caçavam-se tigres de dente-de-sabre. Com o objetivo de incrementar a caça, foi criada uma escola que ensinava as melhores técnicas de caça. O sucesso da empreitada foi tão grande que, em pouco tempo, já não havia mais tigres de dente-de-sabre para caçar. A comunidade teve que buscar outros alimentos para combater a fome. Mas os jovens daquela comunidade continuavam a freqüentar a escola que ensinava a

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Alguns autores, como Berbel (1998), defendem uma terminologia diferente para o método quando utilizado em disciplinas isoladas ou apenas em alguns conteúdos específicos. Embora a distinção não seja essencial para a discussão aqui empreendida, é importante para aqueles que estejam envolvidos na implementação do novo método.

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caçar tigres de dente de sabre. A reflexão que esta fábula proporciona é aplicável, sem grandes esforços, às discussões sobre o currículo médico. Como sabemos, o atual modelo hegemônico para o ensino da Medicina tem suas origens no distante relatório Flexner, nos idos de 1910. Embora façamos questão de nos diferenciarmos daqueles que se limitam a criticá-lo implacavelmente, sem reconhecer seus méritos, inclusive em uma perspectiva histórica, também o questionamos, já que nos parece que nos dias atuais estamos continuando a ensinar como caçar tigres de dente-de-sabre. É nessa perspectiva que a metodologia do PBL parece-nos uma “inovação” especialmente alvissareira, inclusive no que se refere às questões sobre treinamento prático e desenvolvimento de habilidades específicas. Acreditamos, entretanto, que exatamente pelas perspectivas vantajosas propostas pelo método, impõe-se sua apropriação cuidadosa, para não vê-lo como uma panacéia para os males que a educação médica tem apresentado. É sabido que desde as experiências pioneiras, há cerca de trinta anos, nas Universidades de McMaster, no Canadá e, posteriormente, na de Limburg, em Maastricht, na Holanda e em Newcastle, na Austrália, diversas outras Faculdades desenvolveram e implementaram currículos baseados no PBL. Já existe uma grande diversidade de experiências em curso, muitas se distanciando da “Meca” pioneira e mantendo programas simultâneos de currículos tradicionais com os baseados na nova metodologia, ou ainda implementando-a apenas em algumas disciplinas, especialmente naquelas do ainda chamado “ciclo básico”(Camp, 1996; Missouri, 1998 e Childs, 1997).6 Um currículo integralmente fundamentado no PBL oferece, ao menos teoricamente, mais vantagens para o processo ensino-aprendizagem do que aqueles estruturados segundo o modelo tradicional. Destacaríamos, em especial, aquelas decorrentes da relação pedagógica, cujo foco principal centra-se no aluno e não no docente, e o forte envolvimento com a realidade e o ambiente clínico que ele preconiza. Tais características são consonantes com a concepção de conhecimento como construção de relações significativas (construtivismo), cujo êxito na educação de adultos tem sido comprovado nas mais diferentes situações e campos do conhecimento em que foi aplicada. Nessa abordagem, o conhecimento não é algo dado, absoluto, que o aluno recebe pronto e acabado, mas algo que precisa ser construído por eles a partir de sua interação com o ambiente (tendo como referência seu conhecimento prévio e entendimento pessoal do mundo). As experiências pedagógicas fundamentadas no construtivismo têm sido bem sucedidas tanto na educação fundamental de adultos como em cursos de pós-graduação. Sua aplicação na educação básica de crianças, embora largamente difundida, ainda é fruto de muita controvérsia, algumas das quais também se estendem ao uso do PBL nos cursos de graduação, como veremos mais adiante. O PBL pode ser entendido também como um método que possibilita ao aluno a experiência de aprender fazendo. E este fazer não está apenas relacionado à pesquisa por informações que auxiliem na compreensão dos problemas apresentados nos grupos de estudo. Um fazer que se restrinja apenas ao desenvolvimento do hábito e da capacidade da pesquisa. Refere-se

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Para maiores informações sobre dificuldades na implementação do PBL ver, por exemplo: Albanese, M. & Mitchell, S. (1993), Aspy, D.N., Aspy, C.B. & Quimby, P.M. (1993) e Vernon, D.T. & Blake, R.L. (1993).

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também, e especialmente, ao envolvimento direto com a realidade e com o ambiente clínico. Existem porém, alguns obstáculos e dificuldades nesse processo vastamente referidos na literatura. Faremos aqui uma pequena síntese, como um contraponto indispensável ao excesso de otimismo que muitas vezes acompanha as discussões sobre o PBL. Além das dificuldades inerentes a qualquer mudança curricular e que estão relacionadas à criação de um novo currículo e às disputas de poder entre docentes, outras referem-se especificamente ao novo método, que pressupõe transformações significativas no comportamento de estudantes e docentes. Para alunos, traz uma revolução em relação ao modelo de ensino-aprendizagem. Para docentes, que passam a necessitar de uma carga horária maior para ensinar o mesmo conteúdo, um dos maiores desafios é resistir à tendência tradicional de dar uma “aula” sobre o tema. A princípio, a mudança de currículo implica também em novos custos. Como as discussões ocorrem em pequenos grupos, são necessários mais docentes para cumprir o mesmo conteúdo. Outra questão habitualmente referida deve-se à dificuldade em adaptar os docentes ao papel de facilitador, o que demanda treinamentos específicos e uma maior disponibilidade7 . Uma das mais polêmicas advertências apontadas na literatura sobre o tema é a possibilidade de o aluno formado segundo essa metodologia vir a encontrar dificuldades na aprovação em concursos para Residência Médica ou obtenção de cargos no serviço público, já que o processo de formação exige mais tempo para a construção dos conteúdos. Esse questionamento merece ser levado em consideração pelas escolas que estão iniciando

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8 A Internet oferece a possibilidade de discussões amplas sobre o método e o rápido acesso a informações sobre sua implementação em inúmeras Faculdades em todo o mundo. Para subscrever listas de discussão sobre o PBL, enviar mensagem “subscribe seu nome”, sem aspas, para listproc@ sparky.uthscsa.edu e/ ou para majordomo@ eng.monash.edu.au, sendo que esta última refere-se a um curso de engenharia. Para o contato com organizações que promovem o uso do PBL, enviar mensagem para: Australian Problem Based Learning Network (alpil@ cc.newcastle.edu.au) ou Network for ComunityOriented Schools in the Health Sciences (secretariat@ network.rulimburg.nl)

programas experimentais nesse sentido, buscando, por meio de um levantamento sistematizado, maiores informações sobre o desempenho de alunos egressos de programas semelhantes. Concluindo, podemos afirmar que, ao menos teoricamente, a implementação de currículos que utilizem a metodologia do PBL pode vir a suprir as necessidades dos estudantes em relação à aquisição de sua experiência clínica, na medida em que estimula a autonomia dos estudantes e busca situar o processo de ensino-aprendizagem em íntimo contato com a realidade. Os pequenos grupos, com um médico tutor, tendem a possibilitar uma maior participação dos estudantes, fazendo com que eles deixem sua tradicional posição de espectadores privilegiados de uma ação de saúde, tornando-os sujeitos do processo. Podemos, neste momento, nos reportar novamente às tendências apontadas no início deste artigo, quando falávamos da tendência atual de fusão dos mundos da educação e do trabalho, o fim da tradicional seqüência educação-trabalho. Assim, respondendo a nossa própria provocação no título deste artigo, concluímos afirmando que sim. A introdução da metodologia do PBL pode ser uma luz que venha a proporcionar aos estudantes uma formação que articule teoria e prática sob os auspícios das escolas médicas, embora a simples adoção do método, sem que as questões aqui discutidas sejam levadas em consideração, seja insuficiente para resolver a questão8 . Referências bibliográficas ALBANESE, M. e MITCHELL, S. Problem-based learning: a review of the literature on its outcomes and implementation issues. Academic Medicine, v. 68, n.1, p. 52-81, 1993. ASPY, D.N. et al. What doctors can teach teachers about problem-based learning? Educational Leadership, v. 50, n.7, p. 22-4, 1993. BECKER, H. S. et al. Boys in white: student culture in a medical school. Chicago: University of Chicago Press, 1984. BERBEL, N. “A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos?” Interface- Comunic, Saúde, Educ, v.2, n.2, p.139-54, 1998. CAMP, M. G. “Problem-Based Learning: A Paradigma Shift or a Passing Fad?”. MEO, 1, p.2, 1996. CHILDS, G. V. The use of PBL in the proposed new curriculum. 1997, available from Internet: http://cellbio.utmb.edu/curriculum/PBL.htm. COE, R. M. Sociologia de la medicina. 3.ed, Alianza Universidad, Versión Española, 1984. COMISSÃO DE ENSINO MÉDICO DO MEC Documento n.2, In: Documentos do ensino médico. 3.ed. Brasília: MEC, 1989. CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO Resolução n.8 de 8/10/69, In: Currículos mínimos dos cursos de graduação. 4.ed. Brasília: MEC, 1981. GALLI, A Argentina: transformación curricular. Educación Medica y Salud, v.23, n.4, p. 344-53, 1989.

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KOIFAMN, L. A crítica ao modelo biomédico na reformulação curricular do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 1996. Dissertação (Mestrado). Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, 1996. MERTON, R. K. “Some preliminaries to a sociology of medical education appendix A “Socialization: a terminological note”. In: MERTON, R. et al. The student-physician: introductory studies in the sociology of medical education. Cambridge, Massachussetts: Harvard University Press, 1957. MILLER, G. E. Teaching and learning in medical school. Cambridge, Massachussetts: Harvard University Press, 1961. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA Programa de integração docenteassistencial. Brasília, 1981. (Série Cadernos de Ciências da Saúde, n.3). UNIVERSITY OF MISSOURI, 1998, available from Internet: http://www.hsc.missouri.edu/cares/som/cur1.html. REGO, S.T.A. A prática na formação médica: o estágio extracurricular em questão. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação (Mestrado). Instituto de Medicina Social, UERJ, 1994. SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na sociedade pósmoderna. São Paulo: Cortez, 1995. SANTOS, J. O. Educação médica filosofia, valores e ensino. Salvador: Gráfica e Editora Arembepe, 1987. VERNON, D.T. e BLAKE, R.L. Does problem-based learning work? A metaanalysis of evaluative research. Academic Medicine, v. 68, n.7, p. 550563, 1993.

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Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil

Laura Feuerwerker

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FEUERWERKER, L. C. M. Changes in medical education and medical residency in Brazil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n.3, 1998

This essay seeks to identify the main movements and tendencies in medical education in Brazil over the last thirty years and , within this framework, to understand the process of social structuring of Medical Residency as well as its potential role with regard to the proposals of change in that area. Initially, the author describes the current status of the structural health-care crisis as well as the transformations it forces upon the medical profession. This is followed by a survey of the history, over the last thirty years, of the movements concerning the changes in medical education in this country, and their interconnection with Latin American and world movements. Finally, the author offers a profile of Medical Residency in Brazil, particularly in São Paulo, over the same period of time. KEY WORDS: medical residency, medical education, education

Este ensaio busca identificar os principais movimentos e tendências da Educação Médica no Brasil nos últimos trinta anos, e, nesse marco, entender o processo de construção social da Residência Médica e seu potencial de articulação com as propostas de mudança na área. Inicialmente, caracteriza-se a conjuntura atual de crise estrutural da saúde e as transformações que ela impõe à profissão médica. Depois, recuperam-se os últimos trinta anos de história dos movimentos de mudança na educação médica no país, sua articulação com movimentos latino-americanos e mundiais. Segue-se uma caracterização da Residência Médica no Brasil, e particularmente em São Paulo, no mesmo período. PALAVRAS-CHAVE: residência médica, educação médica, formação.

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Consultora da Fundação Kellogg no Brasil para o Programa UNI e da Fundação do Desenvolvimento Administrativo - Fundap, para residência médica. E-mail: lcmf@wkkf.org.

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Problemas conceituais das propostas de mudança na Educação Médica 1960 - 80 A partir de uma reconstituição histórica das propostas de mudança na educação médica no Brasil, procurou-se identificar problemas conceituais que podem ter contribuído para o seu fracasso e apontar elementos significativos para o sucesso de propostas em construção. Um primeiro problema das propostas de mudança até o final da década de 80 teria sido a dificuldade em traduzir para o campo da educação médica as insuficiências e dificuldades da prática médica e da organização dos serviços de saúde (diagnosticadas de maneira parcial e incipiente) (Schraiber, 1989). Como traduzir em novos conteúdos de ensinoaprendizagem, em novas maneiras de pensar e organizar os currículos a possibilidade de organizar serviços de saúde mais acessíveis e eficientes, mais humanos e democráticos? Outra questão importante foi o fato de durante um longo período não se ter conseguido estabelecer a distinção entre a importância da formação geral de um médico na graduação (independentemente de sua inserção futura no mercado de trabalho) e a formação do médico geral, generalista etc. Toda a análise crítica a respeito do impacto negativo da introdução de especialidades já na graduação em função da fragmentação excessiva do conhecimento ficou perdida em meio a uma discussão ideologizada a respeito do médico a ser formado (na verdade, um debate sobre qual deveria ser o papel social do médico). Um terceiro problema foi a subestimação da importância de trabalhar por transformações dentro das escolas médicas motivada pela convicção de que era preferível agir no outro prato da balança, a organização dos serviços de saúde e a prática assistencial, já que um teria maior poder de determinação sobre o outro. As práticas sanitárias e a organização do sistema de saúde e o mercado de trabalho exercem influência decisiva sobre o perfil e o conteúdo da formação dos médicos. Mas é preciso buscar influir nesse processo de formação durante todo o tempo e em todas as oportunidades: é necessário criar pontos de contato, elementos de identificação, possibilidades de discussão com o maior número possível de médicos. É preciso criar uma massa crítica que possa atuar nos dois terrenos: o da educação e o da prática e, sobretudo, não parece possível promover mudanças em qualquer desses terrenos prescindindo da participação de parte significativa da categoria médica. Outro problema relevante foi a insuficiência da abordagem dos problemas propriamente pedagógicos da educação médica. As estratégias de mudança, apesar de partirem da identificação correta de problemas nessa área, não foram capazes de produzir/reunir conhecimento consistente que de fato contribuísse para a superação das dificuldades apontadas. A dificuldade em articular as disciplinas básicas e a clínica, a distinção do processo de capacitação em metodologia científica e no raciocínio clínico poderiam corresponder a um problema conceitual, epistemológico, não claramente respondido, significativo das estratégias de mudança na

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educação médica. Também considerado relevante na formulação das estratégias foi o problema da super-valorização de simples mudanças de cenário de aprendizagem como agentes de transformação dos conteúdos ensinados e aprendidos: a prática mostrou que não bastou ao estudante ser exposto à realidade, à miséria e à maneira de operar dos serviços para que se conseguisse interferir de fato na essência de seu processo de formação. A introdução de novos cenários de ensino pode desempenhar um papel fundamental na mudança do perfil dos profissionais formados, contribuindo para concretizar esse conceito mais amplo de saúde, desde que venha acompanhada de mudanças nas práticas de saúde. Existe uma nova dimensão de atuação profissional dada pela possibilidade de se construir saúde de uma outra maneira, de se estabelecerem outras/ novas relações entre as diferentes profissões da saúde e entre os profissionais e a comunidade. Em verdade, há novas práticas a construir dentro mesmo de cada um dos níveis de atenção, desde que se considere/ admita que todos os profissionais têm uma contribuição significativa a dar e que a população/os pacientes podem e devem ter um papel ativo nesse processo. Outro obstáculo enfrentado nos processos de mudança foi imaginar ser possível produzir mudanças na escola médica a partir de um ou alguns departamentos isolados (Preventiva, Pediatria e raramente GinecologiaObstetrícia). Essa dificuldade foi ainda agravada pelo fato de existir uma fratura entre os departamentos de Medicina Preventiva, Medicina Social e depois Saúde Coletiva em relação aos demais departamentos e em relação à categoria médica de modo geral. Esse hiato foi criado em decorrência da desqualificação da prática clínica e do trabalho médico em geral, em que muitas vezes se incorreu quando da crítica à abordagem biologicista e centrada na doença da medicina flexneriana. A tentativa de incorporar ao trabalho médico a formação para a saúde (que costuma ser identificada com as atividades de prevenção e promoção) muitas vezes levou à desqualificação da prática clínica, por ela ser centrada na abordagem ao paciente através da doença (Campos,1994). Como atualmente as bases do conhecimento e dos métodos de trabalho do médico repousam sobre o raciocínio clínico, que tem a doença como objeto, esse tipo de questionamento envolve a necessidade de reformulação das bases desse conhecimento. E essa certamente não é uma discussão

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já suficientemente desenvolvida. Também a crítica ao atendimento individual levou freqüentemente à desqualificação da prática clínica. Por mais que as condições de vida e a inserção do indivíduo na sociedade sejam fundamentais na determinação do processo saúde-doença, quando o indivíduo adoece, sua dor e seu sofrimento são de ordem privada. Ver a doença como fenômeno social possibilita ações sobre o coletivo, mas atender a um doente também exige ações individuais. Como abordar o doente e qual o papel do médico no domínio do combate social à doença não são tampouco questões esgotadas. A insuficiência da abordagem crítica à medicina científica em responder a essas questões provocou uma quase impossibilidade de diálogo entre os representantes da saúde coletiva e o restante da categoria médica, inviabilizando qualquer iniciativa de mudança que partisse desses departamentos ou dessas correntes. Outro elemento significativo foi a insuficiência das propostas de integração docente-assistencial na valoração da necessidade da mudança de práticas, das relações entre profissionais de saúde, das relações entre médicos e pacientes (Marsiglia,1995). Além de ser uma questão fundamental na construção de um novo modelo assistencial, é também ponto crucial no desenvolvimento de novos conteúdos e novas experiências de ensinoaprendizagem durante o processo de formação e definição do perfil dos profissionais de saúde. Outro problema apontado foi a reduzida capacidade de influência sobre o ensino médico que a introdução de disciplinas como a Sociologia, as chamadas ciências do comportamento e outras demonstrou ter. Uma primeira razão foi a perspectiva com que essas disciplinas foram introduzidas. Assim como ocorre em outras especialidades, não se procurou identificar quais conteúdos dessas disciplinas seriam essenciais e úteis à formação dos médicos. Um outro equívoco foi imaginar que a incorporação de um conceito mais complexo de saúde e de elementos do instrumental sociológico à construção do raciocínio clínico e à prática médica pudesse corresponder a uma mudança do eixo epistemológico da medicina (a Sociologia passaria a ser um de seus eixos constitutivos). A compreensão da causalidade social da doença implica abordar a saúde dentro do contexto social, implica buscar ações intersetoriais, implica construir saúde socialmente, mas não implica negar a necessidade de curar doenças. Compreender a causalidade social da doença deve auxiliar o médico a construir seu raciocínio e até a aumentar a eficiência de suas propostas terapêuticas, mas não o transforma em um sociólogo. Considera-se que o perfil da atividade médica vai mudar ao se transformarem suas relações com os pacientes e com os demais profissionais da saúde. Ou seja, o médico deve ter em sua formação elementos indispensáveis para que compreenda a complexidade de certos problemas e seja capaz de reconhecer a necessidade de trabalhar em equipe, mas não deixará de ser médico, nem se transformará em um super-profissional. Os limites das propostas para mudanças na educação médica até o final da década de 80 estão demonstrados concretamente por sua incapacidade de produzir mudanças reais. O discurso é recorrente, algumas vezes reelaborado, mas impotente.

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A potencialidade dos projetos atuais de mudança na educação médica A partir do final dos anos 80, as iniciativas de propor mudanças na educação médica multiplicaram-se e ganharam força. A crise da saúde e a crise de identidade da corporação médica produzidas pela capitalização do setor saúde contribuíram decisivamente para a intensificação desse processo. No Brasil, o processo de implantação do Sistema Único de Saúde - SUS, tradução na prática do movimento pela Reforma Sanitária, está-se dando de maneira paradoxal, como refere Campos (1994): Por um lado, a crise de financiamento do sistema de saúde está provocando uma parcial e desordenada desativação de leitos hospitalares em todas as especialidades (...) Por outro lado, há um esforço ordenado, um projeto geral, voltado para a criação de alternativas assistenciais em vários campos que vem se implantando em ritmo lento e ainda com um empuxe pequeno, a ponto de não haver logrado redirecionar os recursos públicos aplicados em saúde.

O SUS está sendo construído no interior, e a partir de um sistema de saúde regido por lógicas muito distintas das propostas de universalidade, eqüidade e integralidade da assistência. A necessidade de superar certas limitações e problemas existentes em suas formulações, assim como de reconstituir sua base de sustentação começou a ser apontada por diferentes autores (e sujeitos). Várias experiências político-administrativas recentes têm se demonstrado impotentes para alterar o status-quo, na medida em que não conseguiram favorecer a produção de sujeitos sociais competentes para dar sustentação e prosseguimento a mudanças institucionais (Campos, 1994). Mais importante que retocar, atualmente, “imagens-objetivo” da Reforma Sanitária Brasileira, é iniciar processos, constituir sujeitos sociais que possam dar conta dos novos desafios impostos pela realidade. E a formação de recursos humanos e a educação médica em particular não podem ser negligenciados enquanto espaços de constituição desses sujeitos, ainda que não exclusivos (Paim, 1995).

Não se pode supor que a solução para a crise paradigmática da saúde vá surgir a partir de projetos de mudança na educação médica. Ou que os problemas enfrentados na implantação do SUS possam encontrar sua solução na discussão sobre a formação de recursos humanos. Nos dois casos, a solução depende de haver uma mudança na maneira como a sociedade enfrenta a construção da saúde. Mas o processo de produção de alternativas ocorrerá nos dois campos: educação e prática. E os processos de mudança deverão ter um grau de simultaneidade. É parte da dialética das transformações.

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Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM) desencadeou a partir de 1991 um movimento de autoavaliação do ensino médico no Brasil. Na fase atual o processo conta com a participação de 48 das 80 escolas médicas e já se produziram estudos sobre o corpo docente e os estudantes (Gallo, 1996; Piccini, 1997).

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Uma das vertentes alternativas (em processo de construção) é a que propõe a introdução do paradigma da saúde em contraposição ao paradigma da doença. Segundo essa proposição, o processo de construção social da saúde, baseada na ação intersetorial e na crescente autonomia das populações em relação à saúde, é que deveria passar a ser central, reorientando as relações entre profissionais de saúde e comunidade e redefinindo o peso e o papel do setor de prestação de serviços de saúde nesse processo (Mendes, 1996). Não existirá apenas um projeto de superação da crise. Este é um momento apropriado à emergência de novas teorias. As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrito a um segmento da comunidade política, de

A Iniciativa UNI é apoiada pela Fundação Kellogg e abrange 23 projetos em 11 países da América Latina, em que se procura desenvolver uma parceria entre a universidade, os serviços de saúde e a comunidade com o objetivo de produzir mudanças na educação dos profissionais de saúde, na organização e no funcionamento dos serviços de saúde e na participação da comunidade nas decisões que interferem em sua qualidade de vida (Kisil e Chaves, 1994; Feuerwerker, 1996; Kisil, 1996).

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Agenda for Action é uma iniciativa da Divisão de Recursos Humanos da Organização Mundial da Saúde, que propõe uma ação coordenada de escolas médicas em articulação com associações profissionais médicas para buscar uma melhoria na qualidade e cobertura dos serviços de saúde, assegurar a relevância e a qualidade da educação e da pesquisa, implementar processos de aprendizagem eficientes e comprometer-se com os processos de garantia de qualidade e avaliação tecnológica. (World..., 1991)

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que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma (Kuhn, 1995).

O momento de crise é favorável à gestação de alternativas. As propostas de mudanças na educação médica analisadas até aqui tiveram provavelmente o limite histórico que as antecipações enfrentam, por isso são parciais, incompletas e não conseguiram a adesão indispensável às transformações desejadas. Algumas das propostas de mudança da educação médica mais recentes, ainda em processo de construção na prática, revisitando criticamente as experiências anteriores, podem estar desenhando um caminho mais favorável a transformações substantivas. Farei referência a quatro propostas presentes de alguma maneira no cenário nacional: o movimento desencadeado pela CINAEM2 , a proposta UNI3 , “Agenda for Action”4 da OMS e a proposta de Gestão de Qualidade na Educação Médica5 da OPS. Destacarei apenas alguns elementos que parecem mais significativos por abordar temas essenciais ao processo de mudança e por serem distintivos em relação às propostas anteriores. Em primeiro lugar, algumas dessas propostas dirigem-se não somente à educação médica, mas ao conjunto das profissões da saúde (importante, porque a crise é da saúde e não simplesmente da medicina, e envolve necessariamente a redefinição das relações e papéis das distintas profissões). Em segundo lugar, aponta-se a necessidade imperiosa de um compromisso institucional com o processo de mudança (refletindo a preocupação de criar alternativas que tenham possibilidade real de implantação, que se traduzam em ação potente e que envolvam a maior parte das disciplinas nas escolas médicas). A articulação com os serviços de saúde não é vista como circunstancial.

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Gestão de Qualidade na Educação Médica foi uma proposta apresentada pela Organização Panamericana de Saúde em 1991, que propunha a gestão estratégica de qualidade para desencadear um processo de mudança nas escolas médicas (Organización..., 1994).

Ela é essencial e a percepção de problemas e a construção de soluções se daria simultaneamente, numa relação dialética, num processo interpenetrado (os serviços de saúde são os locais onde se desenvolvem as práticas de saúde, alvo estratégico de mudanças capazes de transformar a lógica de um sistema). Pela primeira vez também as estratégias apontam a necessidade de a comunidade/pacientes participarem desse processo como atores essenciais (já que necessariamente terá que existir uma redefinição dos papéis dos diferentes sujeitos no processo de construção da saúde). Há heterogeneidade na maneira como as referidas estratégias tratam essas questões. A CINAEM, utilizando a avaliação como instrumento de transformação, trabalha, ainda que de maneira não muito elaborada, a necessidade do compromisso institucional com a avaliação e com as propostas de mudança, a importância da construção de consensos nesse processo, a necessidade de articulação com “a sociedade civil”. O maior mérito da CINAEM tem sido sua capacidade de envolver no movimento voluntário de auto-avaliação um número significativo de escolas médicas brasileiras. Como a orientação dos processos de mudança eventualmente desencadeados pela avaliação é, de certo modo, fluida, há a possibilidade de projetos mais estruturados ganharem espaço na produção de soluções para os problemas encontrados nas escolas. A “Agenda for Action” da OMS têm a preocupação de incentivar a articulação das escolas médicas com outros setores sociais e com outros atores do cenário da saúde, considerando que somente uma interação mais ampla poderá gerar alternativas para uma nova maneira de encarar a saúde. É uma proposição flexível, que possibilita a interação com as demais propostas de mudança. A OPS enfrenta uma crise por conta da redefinição do papel (e do poder) de organismos internacionais no contexto pós-guerra fria. Como conseqüência, decidiu suspender a publicação da revista “Educación Médica y Salud”, que era a única publicação latino-americana sobre educação médica (e de profissionais de saúde). Apesar disso, e de estar relativamente enfraquecida (e empobrecida), a OPS tem procurado manter-se ativa no cenário da educação médica. Como já foi dito, não houve iniciativas de concretização da proposta de qualidade, mas a organização tem procurado viabilizar a articulação das forças comprometidas com mudanças para a educação médica pela iniciativa chamada “Educación Médica Permanente en beneficio de la equidad y calidad de la respuesta social en Salud en América Latina y Caribe”, que pode tornar-se também um espaço de intervenção . A iniciativa UNI parece articular mais claramente os elementos estratégicos aqui apontados. A modalidade de associação entre universidade, serviços de saúde e comunidade proposta pelo programa UNI é um de seus aspectos mais inovadores. É uma relação de parceria, que pressupõe uma distribuição real de poder entre esses segmentos e que possibilita a constituição de novos atores num exercício prático de construção de novas maneiras de produzir saúde. Os serviços de saúde e os espaços comunitários revelam-se como os cenários privilegiados desse processo de experimentação, que envolve a comunidade, os profissionais dos serviços,

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estudantes e professores, todos redesenhando seu papel na construção da saúde e na produção de conhecimento sobre saúde, propiciando a constituição de novos sujeitos sociais. Uma das principais qualidades dessas propostas mais recentes é conectar a mudança na educação médica com movimentos sociais de transformação. Este é o elemento que pode torná-las potentes. A proposta UNI é a que utiliza essa estratégia de maneira mais clara: a parceria entre universidade, serviços de saúde e comunidade conecta os movimentos pela construção de um novo sistema de saúde e pela democratização da participação popular com as mudanças na formação profissional. O papel da residência na formação médica Atualmente 70% dos médicos que se formam têm a oportunidade de freqüentar um programa de Residência. Não está disponível o número exato de vagas preenchidas em todo o país, mas tomando São Paulo como referência, pode-se supor que pelo menos 60% dos médicos que se formam a cada ano ingressem em programas de Residência Médica (Fundap,1996). É importante, então, buscar compreender o papel que a Residência Médica tem hoje na formação dos médicos no Brasil. São fartos os depoimentos atribuindo a ela um duplo papel na formação dos médicos. Complementar o processo de graduação, tendo em vista as deficiências amplamente reconhecidas desse processo. E também oferecer a especialização como uma possibilidade de melhor inserção no mercado de trabalho, constituindo uma forma específica de ingresso no mercado. É possível levantar a hipótese de que a importância da Residência no processo de formação dos médicos seja maior e distinta. A Residência Médica parece ter se convertido no momento que mais fortemente marca o perfil profissional dos jovens médicos. A hipótese da Residência funcionar como facilitador de uma inserção privilegiada no mercado necessita ser melhor discutida. Esse fenômeno é em parte verdadeiro, principalmente para os médicos que conseguem freqüentar um programa de Residência em instituições de renome, como as universitárias de maior tradição. Não se pode dizer o mesmo a respeito dos que freqüentam os programas mantidos pela maior parte das instituições de serviço. Grande parte dos egressos dos programas de Residência exercem atividades profissionais em outras áreas que não a de sua especialização (o que é esperado, considerando que não estão operando mecanismos eficientes de concatenação entre a formação de especialistas e as necessidades do mercado público e privado), mas esse fato desqualifica em parte essa “inserção privilegiada” no mercado. O processo de deterioração salarial dos médicos em nosso país é patente e causador da multiplicidade de empregos simultâneos desses profissionais. São esses mesmos médicos especialistas que se submetem ao aviltamento salarial (já que quase 60% dos médicos brasileiros declararam ter título de especialista, como revela a pesquisa sobre o perfil do médico) (Machado, 1996). Este é mais um elemento de desqualificação dessa “inserção

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privilegiada” no mercado. A Residência Médica como forma específica de ingresso no mercado também merece melhor discussão. Considerando o nível de deterioração do mercado de trabalho médico, seria de se esperar que não houvesse vagas ociosas na Residência. Não é o que acontece. Muito embora haja casos de residentes que ingressam em programas de baixa procura exatamente para garantir um período de dois anos de remuneração segura, de modo geral não é esse o comportamento dos recém-formados. A ociosidade de vagas é função das especialidades e também das instituições. Tanto assim que em São Paulo, conforme já apresentado, a taxa de preenchimento das vagas de R1 nas áreas básicas é de 71,1% e oscila de 77 a 85% nas especialidades clínicas, cirúrgicas e nos métodos diagnósticos. Também em São Paulo, as universidades estaduais e alguns hospitais de maior prestígio têm taxas de preenchimento variando entre 85 e 95%, enquanto os hospitais de menor prestígio da rede apresentam taxas entre 53 e 60%. Ou seja, os recémformados não utilizam a Residência como possibilidade de ocupação a qualquer preço (Fundap, 1996). Devemos buscar, então, explicações adicionais para a procura dos médicos recém-formados pela Residência. Surge como alternativa importante a necessidade de complementação da formação de graduação. Há dois elementos que podem auxiliar na compreensão desse fenômeno: a importância histórica da prática no processo de formação do médico e as conseqüências da especialização crescente nesse mesmo processo de formação. A prática profissional historicamente tem sido transmitida através de treinamento em serviço. É no processo de combinar os conhecimentos teóricos adquiridos com a experiência clínica (indicando relacionamento com pacientes) que se encontra a “mágica” da prática profissional médica. Somente a experiência adquirida na prática pode completar a formação (científica) do médico: é pela experiência clínica que o profissional se apropria dos doentes (e não mais apenas das doenças). É pela prática que se constrói a experiência clínica e é mediante o aprendizado em serviço que o futuro profissional constrói também a ética de suas relações com os pacientes, baseada no exemplo e na experimentação. A clínica é o instrumento de articulação da patologia ao conhecimento da subjetividade dos pacientes, pois na clínica estão presentes várias dimensões de subjetividade: sintomas, reação ao sofrimento e à dor, situação de vida etc. Se o conhecimento científico é essencial à construção de hipóteses, a prática clínica é essencial para exercitar a capacidade de apreensão da realidade. E essa é uma habilidade que se adquire e exercita na prática concreta, no exercício acumulado (Schraiber,1993, descrevendo a prática médica no período da medicina liberal).

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Sabe-se que o corpo científico de conhecimentos necessário à construção do saber médico tem sofrido ampliação ininterrupta no processo de desenvolvimento científico e tecnológico. Sabe-se também que a reconstrução da autonomia profissional médica baseou-se no acúmulo e na intensidade da cientificidade possibilitada pela incorporação de tecnologia. Ora, a utilização progressivamente mais intensa de tecnologia na prática médica torna mais objetiva (e científica) a apreensão da realidade pelo médico e as suas intervenções sobre ela, mas não elimina a necessidade de construir um raciocínio clínico, nem de considerar as necessidades subjetivas do paciente. Persiste, portanto, a necessidade do treinamento clínico. O treinamento prático dos estudantes de medicina inicia-se, na realidade, no internato, obrigatório nas escolas médicas brasileiras. E é provavelmente durante esse processo que se dá a primeira diferenciação na qualidade básica da preparação dos médicos pelas diferentes escolas. Apesar de poder marcar o perfil e a qualificação do médico recém-formado, o treinamento ao nível de internato não tem sido suficiente para garantir a terminalidade do curso médico. Apontam-se como possíveis motivos para a insuficiência da graduação exatamente os processos de especialização e de incorporação tecnológica. O volume e a profundidade de informações geradas a partir do desenvolvimento das especialidades produzem uma fragmentação do conhecimento que prolonga/retarda seu processo de integração pelos estudantes na graduação. Da ação da insulina sobre os receptores celulares ao paciente diabético e da bomba de sódio e potássio ao coma por edema cerebral há uma grande distância. O raciocínio fisiopatológico, hoje, envolve a utilização de conhecimentos complexos, cuja articulação não é simples, nem automática. A multiplicação de procedimentos, também trazida pelo processo de especialização e de utilização tecnológica, presentes na prática no internato, pode comprometer a possibilidade real de adestramento prático do estudante. Multiplicaram-se os procedimentos mínimos indispensáveis e, conseqüentemente, reduziram-se as oportunidades de experimentá-los e executá-los da maneira e na intensidade adequadas (ou seja, fazer muitas vezes). Todos os graduados devem saber interpretar um eletrocardiograma? Ou devem solicitar uma consulta ao cardiologista sempre que precisarem utilizar esse recurso diagnóstico (atualmente disponível em muitas unidades básicas)? A mesma pergunta se aplica ao raio X simples de tórax. Ou esses procedimentos não são necessários na prática clínica desenvolvida na rede de atenção primária? É preciso considerar a hipótese de que, dado o nível atual de desenvolvimento técnico e científico, a formação geral do médico na graduação não seja capaz de assegurar o nível necessário de treinamento nas atividades práticas de todas as áreas básicas (pelo menos da maneira como a graduação está organizada atualmente). O treinamento na Residência, dentro já de uma especialidade (o que reduz o escopo da área de aprendizagem), pode ter se transformado em uma das alternativas para viabilizar a incorporação de

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conhecimentos tão específicos. Também a existência de um rico arsenal de propedêutica armada reduziu, como já se viu, a oportunidade (e a necessidade aparente) de contato entre o médico (estudante) e os pacientes. A introdução da tecnologia e da propedêutica armada corresponde a um processo de objetivação da apreensão da realidade pelo médico. Mas a perda de qualidade e intensidade da relação entre médico (estudante) e paciente poderia comprometer o “potencial de apreensão” da clínica, do raciocínio clínico e do paciente nos estágios práticos existentes. O estudante necessitaria de mais tempo, de um maior número de contatos para desenvolver e aperfeiçoar seus “mecanismos de apreensão”. É exatamente por dar continuidade a esse processo de formação iniciado no internato, por combinar a aquisição de conhecimentos especializados mediante um treinamento prático em serviço, que a Residência Médica adquire relevância na educação dos médicos. A diversidade de experiências práticas que a Residência propicia (em relação a casos, cenários, exames, condutas, procedimentos), associada a uma atividade teórica de sistematização e a níveis crescentes de autonomia (sem estar abandonado à própria sorte) parece compor um estágio eficaz (e insubstituível no momento) do treinamento profissional do médico. Além disso, é no processo de especialização, no treinamento prático que a Residência propicia, que se dá a verdadeira “iniciação profissional” do médico. Tanto que, para a inserção no mercado de trabalho, é mais importante e significativa a instituição onde os médicos fizeram seu processo de especialização do que a escola médica de origem. Muito embora seja fenômeno presente desde a graduação, é principalmente pelos contatos propiciados pela Residência Médica que se compõem as relações profissionais, que surgem as oportunidades para os jovens médicos se integrarem às equipes de profissionais mais experientes e ingressarem efetivamente no mercado. Esse certamente é um dos motivos que têm levado ao prolongamento dos programas de Residência: a inserção progressiva nos grupos, com a assunção também progressiva de responsabilidades e autonomia (dentro e fora do hospital de ensino). A institucionalização da residência médica O principal estudo sobre o processo de institucionalização da Residência Médica em nosso país considera que esta adquiriu papel fundamental como instrumento de prestação de serviços de saúde e que os residentes, como profissionais, passaram a ser atores fundamentais no mundo dos serviços de saúde (públicos e privados). Segundo Elias (1987) essa teria sido a tônica principal do processo de institucionalização da Residência Médica “no interior das Políticas de Saúde”. A prestação de serviços teria assumido importância tão grande que comprometeria a caracterização da Residência Médica como processo educacional, já que a lógica da organização dos estágios obedeceria muito mais às necessidades dos serviços do que às de aprendizagem. O autor considera também que, ao se articular às transformações

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ocorridas na prática médica e no mercado de trabalho, a Residência Médica passou a interessar a outros setores sociais que não os médicos. Caracteriza o momento de sua regulamentação como o marco inicial do processo de apropriação do Estado em relação à Residência e aponta a existência de um consenso, no interior do aparelho estatal, na definição da Residência como projeto educacional (a partir do qual buscava-se articulá-la às políticas de saúde). Na operacionalização da regulamentação, no entanto, haveria algumas divergências, que teriam levado, por exemplo, ao abrandamento das relações da Residência Médica com a pós-graduação. O tempo permite analisar algumas dessas questões com outros olhos. Qual seria exatamente o terreno em que aconteceu a institucionalização da Residência Médica? O exame das estratégias de mudança da educação médica e das políticas oficiais nessa área revela que a Residência Médica não chegou a ser alvo das preocupações desses setores. Nem tampouco chegou a ser objeto de formulação dos responsáveis pelas políticas de saúde, apesar do papel relevante que os residentes têm na prestação dos serviços e da importância de se definir uma política para a formação dos recursos humanos da saúde, médicos em particular. Nem mesmo governos e secretarias estaduais que investem recursos e têm poder real para definir políticas em relação à Residência Médica tomaram a iniciativa de utilizar esse poder e interferir no processo. A Residência Médica no Brasil, portanto, apesar de institucionalizada, potencialmente sobre controle dos Ministérios da Educação e da Saúde e de outras autoridades dessas áreas, tem tido seus rumos definidos pelas instituições que mantêm os programas, pelo mercado de trabalho, em uma relação mediatizada pelos interesses da corporação médica: médicosresidentes, sociedades de especialistas e outras entidades. Há várias evidências sobre isso desde a criação da Comissão Nacional de Residência Médica - CNRM, que foi, de fato, o único momento em que o Estado interveio claramente no processo. A CNRM estabeleceu, no processo de regulamentação da Residência Médica, requisitos e condições mínimas para o processo pedagógico e de trabalho, reconheceu o residente como trabalhador (mas autônomo, sem reconhecimento do vínculo empregatício com a instituição que mantém o programa). Foi determinado um piso salarial, mas na forma de uma bolsa de estudos. Outros direitos trabalhistas, como férias, licença-maternidade, foram também assegurados ao longo do tempo. Como se vê, apesar de a Residência Médica ser regulamentada por uma Comissão abrigada no MEC e reconhecida formalmente como processo educacional, na prática, a maior parte das reivindicações trabalhistas dos residentes foi atendida. Essa é uma evidência de acordo, de compatibilização de interesses, pois o Estado garantiu os direitos dos residentes - ao contrário do que gostariam as instituições mantenedoras de programas - mas sem o reconhecimento completo da sua condição de trabalhadores. O certificado conferido pelos programas de Residência Médica foi elevado à categoria de título de especialista, reconhecido pelo MEC, sem deixar de reconhecer como válidos os títulos aprovados pelas Sociedades de Especialistas. Esta é uma atitude que novamente evidencia acordo, pois se o

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governo não abriu mão de sua responsabilidade no processo de titulação como gostariam as sociedades de especialistas e a Associação Médica Brasileira - também não excluiu certo grau de autonomia dessas instituições no processo - como talvez preferisse o mercado. A composição da CNRM é marcada pela presença das organizações da corporação médica - o que também evidencia acordo, pois o governo tomou a si a tarefa de regulamentação, mas deixou sua concretização a cargo do plenário da Comissão, composta pelas principais entidades representativas da categoria. E nunca mais o MEC ou o Ministério da Saúde ou qualquer outra autoridade interferiu nos trabalhos da CNRM. Aparentemente, portanto, apesar de institucionalizada, a Residência Médica não escapou do âmbito da categoria médica do ponto de vista de suas definições. O governo criou a instância para que as negociações entre os vários segmentos médicos ocorresse. A importância que a Residência Médica tem para a categoria é confirmada por outros dados da realidade. A intensa procura da Residência pelos médicos recém-formados (os dados já apresentados são eloqüentes) e a oferta (sempre crescente) de vagas e programas é um deles. O tipo de articulação que ocorre dentro da CNRM, em suas relações com as diversas entidades de classe da categoria médica e com o Congresso Nacional é outro. Há uma articulação que tem viabilizado decisões curiosas como, por exemplo, a preservação do piso salarial nacional dos residentes. Ou seja, a Residência parece ser um momento tão precioso no processo de formação do profissional médico que o piso nacional resiste a todos os conflitos que potencialmente poderiam ser gerados pela própria categoria (em função das discrepâncias salariais entre residentes e preceptores). E, por outro lado, o tema Residência foi deixado tão exclusivamente ao sabor da categoria que o piso ainda persiste nesta conjuntura fortemente marcada pela desregulamentação: A estruturação do mercado de trabalho oferece várias alternativas para se assegurar ao médico um determinado nível de renda, sem que este se veja necessariamente obrigado a adotar formas coletivas de luta. Estratégias individuais de integração no mercado ainda garantem relativo sucesso (Campos, 1988).

A Residência pode estar cumprindo um papel fundamental, talvez como um instrumento (coletivo) de autodefesa da categoria médica, que detém, assim, o controle sobre uma etapa fundamental de seu processo de formação. O perfil do profissional formado pelos programas de Residência Médica é definido pelas características de cada uma das instituições formadoras, conectadas ao heterogêneo mercado de trabalho real. As tendências do mercado interferem diretamente na demanda maior ou menor dos futuros residentes por esta ou por aquela especialidade (a queda da procura por Medicina Preventiva, Pediatria e Patologia e o crescimento da procura por programas na área de Radiologia e Métodos Diagnósticos deixam entrever claramente esse fenômeno). Mas a pressão do mercado não tem sido

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suficiente para vencer algumas barreiras impostas pela corporação: por exemplo, há escassez de médicos nas áreas de Otorrinolaringologia e Oftalmologia em todo o país, e no entanto as vagas destinadas a essas especialidades vêm apresentando um crescimento mínimo. A natureza da residência médica Outra questão fundamental é compreender a natureza da Residência Médica, ou seja, qual seria seu aspecto fundamental: o processo educacional ou o processo de trabalho? Segundo Elias (1987): inúmeros autores, ao tomarem a Residência Médica como objeto de estudo, procedem referenciados numa concepção de Residência Médica como sendo um projeto educacional, destinado à especialização do médico. (...) Ao procederem desse modo, tais autores acabam por limitar as possibilidades de compreensão das questões postas pela Residência, advindas da complexidade que esta adquiriu a partir de sua integração às Políticas de Saúde. Disto provavelmente decorre o alcance restrito das propostas de intervenção objetivando o encaminhamento dos problemas enfrentados pela Residência. Assim, as propostas hoje colocadas para superar-se a subordinação dos aspectos educacionais da Residência aos interesses institucionais na prestação da assistência médica, freqüentemente cingem-se à reformulação do perfil curricular dos Programas. Sem se desconsiderar a necessidade de revisar alguns aspectos destes Programas, ressalta-se que ao se restringirem às questões curriculares, tais propostas, se de um lado representam melhores possibilidades de desenvolvimento dos programas, por outro, não dão encaminhamento ao problema central que as origina, vale dizer, a importância adquirida pela residência médica no sistema de prestação da assistência médica.

Adiante, como já foi referido, o autor afirma que o estudo das concepções básicas em relação à Residência permitiu identificar duas correntes, denominadas de “pedagógica ”e “trabalhista”. Reconhecia que ambas apresentavam alguns elementos comuns, “destacando-se o caráter prescritivo na abordagem da Residência”. Atribuía esses pontos comuns a um fato: “a resistência das duas correntes em aceitar a institucionalização da Residência no interior das Políticas de Saúde”. Em relação à caracterização da Residência, desqualificam-se as pretensões das duas correntes. Apesar de poderem-se reconhecer na residência as dimensões educacional e a de trabalho, ela não se reduz ou esgota em nenhuma delas. Assim, a verdadeira característica, assumida pela residência, será dada pela interação dessas duas dimensões em situações institucionais concretas.

Analisando o problema dez anos depois, é possível afirmar que houve a

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correta identificação da complexidade da natureza da Residência Médica, simultaneamente de trabalho e de treinamento. Mas não ficou claro o que seria compreender a Residência em sua dupla dimensão. A caracterização das correntes identificadas como “pedagógica” e “trabalhista” não dá exatamente conta da realidade. Como o próprio autor aponta, as concepções se interpenetravam e variavam ao longo do tempo e ao sabor das situações concretas. Nesse trabalho, Elias não conseguiu formular claramente como a singularidade da Residência Médica poderia se traduzir do ponto de vista da política. A tradução dessa singularidade poderia ser o reconhecimento e valorização do papel do trabalho como instrumento fundamental do aprendizado na Residência Médica. Não existe contradição entre trabalho e aprendizado, nem subordinação de um processo ao outro. Um se faz dentro do outro, de maneira indissociável. O tratamento adequado à Residência Médica implicaria em reconhecer que ela é parte integrante e fundamental do processo de formação dos médicos, porém, intrinsecamente ligada à produção dos serviços de saúde. A Residência Médica estaria na interface (que é concreta e real) entre as políticas de educação médica e as políticas de saúde. Residência médica: propostas de mudança na educação médica e na Saúde No que então teria se transformado a Residência Médica? Segundo as reflexões aqui desenvolvidas, num momento privilegiado de treinamento clínico para a maior parte dos médicos no Brasil. Haveria, portanto, elementos para que a Residência passasse a ser encarada como parte integrante do processo de formação dos médicos e, por sua relevância no treinamento clínico, teria se convertido em um momento marcante na definição do seu perfil profissional. No entanto, nenhuma das propostas de mudança na educação médica presentes no cenário nacional propõe qualquer intervenção no processo de formação na Residência e é necessário entender por que isso acontece. Para tanto, é útil retomar a discussão sobre a defesa da terminalidade do curso de graduação. Sem dúvida ela foi um ponto fundamental das propostas para a educação médica em nosso país e é possível identificar vários elementos de sua racionalidade. Num primeiro momento, os países em desenvolvimento contavam com poucos médicos e poucas escolas. Os médicos que estavam sendo formados necessitariam estar prontos para ingressar imediatamente no mercado, pois havia grandes contingentes populacionais sem assistência. Depois do processo de multiplicação de escolas médicas, já não havia escassez de

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profissionais, mas o modelo de atenção continuava excludente. Então continuava necessário formar profissionais menos sofisticados, que se prestariam a uma hipotética redistribuição dos médicos, que se disporiam a prestar cuidados à população mais pobre e exigiriam níveis mais baixos de remuneração (já que não teriam investido tantos anos e recursos em seu processo de formação e que, na verdade, estariam prestando serviços simplificados). Provavelmente (e há, como se viu, declarações explícitas a respeito) essa defesa intransigente da necessidade de terminalidade do curso de graduação foi um elemento decisivo para que o movimento por mudanças na educação médica nunca elaborasse propostas para a formação em nível de pósgraduação. A realidade é que se criou um sistema de formação em nível de Residência Médica capaz de absorver 70% dos médicos que se formam anualmente em nosso país. Mas como esse seria um investimento “irracional”, não prioritário, ele foi praticamente desconsiderado pelos formuladores de propostas para a educação médica. As únicas tentativas de interferir no processo de formação na Residência foram os programas de Medicina Preventiva e Medicina Geral Comunitária, que não foram resposta suficiente às necessidades colocadas pela Reforma Sanitária em relação à formação de profissionais de saúde. A defesa da terminalidade e a avaliação de que o processo de especialização profissional seria uma alternativa incorreta para nosso sistema de saúde teriam se constituído em alguns dos motivos para que a Residência Médica não fosse objeto da formulação de propostas em termos de estratégias de mudança na educação médica. Mas há outros elementos nesse processo. Recentemente, o Ministério da Saúde vem investindo maciçamente no Programa de Saúde da Família. Certas correntes consideram que a saúde da família pode se constituir em um dos eixos da mudança de paradigma na saúde (Mendes, 1996). Nesse processo, está surgindo novamente a idéia de criar programas de Residência Médica em Saúde da Família como alternativa para formar “os profissionais necessários”, um dos instrumentos de transformação do sistema de saúde. Novamente (assim como na época da Medicina Preventiva), apresenta-se como alternativa ao modelo atual de formação dos médicos uma proposta que atinge somente uma parcela pequena dos recém-formados. Como se não fosse necessário trabalhar com a maior parte desse contingente de jovens médicos no sistema de saúde real. E como se fosse possível promover mudanças estruturais na saúde sem envolver a categoria médica. Por trás desta omissão e da insistência em estratégias restritivas do ponto de vista da formação dos médicos (quer dizer, que atingem potencialmente uma parcela muito pequena dos recém-formados) poderia estar a dificuldade de relacionamento com a categoria médica tanto nos processos de mudanças na educação, como na implantação de reformas no sistema de saúde. Muitas das correntes propositoras de mudanças na educação médica subestimaram o potencial de reconstrução da autonomia e da prática liberal. Desde o início dos anos 70 identificaram o processo crescente de

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assalariamento do médico e daí tiraram algumas conclusões. A primeira é que seria “a-histórica” a defesa da autonomia e, em conseqüência, politicamente insustentável ao longo do tempo. A segunda é que imaginavam que o processo de assalariamento estabeleceria uma relação de identidade (automática) entre médicos assalariados e trabalhadores e, conseqüentemente, entre médicos e população nas questões de organização do sistema de saúde e da educação médica, por exemplo (e então os médicos passariam a ser favoráveis à formação daquele generalista destinado a trabalhar na atenção primária). Ou então, considerando a “diversidade da inserção dos médicos assalariados e dos demais trabalhadores tanto ao nível da estrutura produtiva, como também da diferente função social de suas práticas” se fazia a crítica a essas correntes que tentavam estabelecer relações de identidade automática entre essas categorias. Considerou-se então provável “que a intervenção dos médicos na política de saúde” se desse “principalmente objetivando a manutenção e a ampliação do exercício autônomo da profissão” (Campos, 1988). A realidade revelou-se mais complexa e o comportamento político dos médicos também. Estes reconhecem a dupla natureza de sua inserção no mercado de trabalho: participam de movimentos por melhores salários, defendem a possibilidade de participarem do processo de capitalização da saúde como autônomos ou mediante cooperativas, defendem a saúde como um direito, o papel do Estado na garantia da prestação de serviços às camadas desprivilegiadas da população, o dever dos seguros-saúde de dar cobertura a todos os tipos de doenças etc. A corrente política que conquistou a hegemonia nos movimentos médicos a partir da metade dos anos 80 foi a que se revelou “capaz de representar de forma eficaz os diferentes interesses de várias frações da categoria, diversidade esta produto da heterogeneidade com que se estrutura o mercado de trabalho dos médicos” (Campos, 1988). Tanto em nível das propostas de mudança na educação médica como das políticas de saúde, existiu uma subestimação da importância e das possibilidades de intervenção do fator humano na produção de mudanças na saúde. Os homens, atores reais do processo, estavam esmagados sob o peso de muitas determinações estruturais: o complexo médico-industrial, o aparelho estatal, a instituição médica, o peso determinante do Estado e da infra-estrutura econômica na conformação das políticas sociais, a ordem médica, a estruturação do saber clínico (Campos, 1994). Essa postura teórica, que influenciou grande parte do movimento pela Reforma Sanitária, certamente contribuiu para o fato de até recentemente os reformadores da saúde no Brasil não haverem se proposto a intervir na orientação do processo de educação dos profissionais de saúde (nem na graduação, nem na pós-graduação). O grau máximo de intervenção no processo de educação médica ficou reduzido ao veto do Conselho Nacional de Saúde à abertura de novas escolas. Essas concepções teóricas também contribuíram para que houvesse pouca preocupação com a construção de uma nova prática sanitária e uma subestimação/negação da importância da prática clínica. A expropriação da

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saúde, a medicalização (entre outros) são processos reais, mas não podem levar à negação da existência da doença e do doente como problemas reais e da clínica como um instrumento concreto de abordar a dor e o sofrimento individual. Por todas essas razões, a Residência Médica, como palco privilegiado do treinamento clínico, não poderia mesmo ter sido alvo da preocupação e da elaboração dessas correntes em nível das políticas educacionais ou da formação de recursos humanos para a saúde. O desafio atual É interessante examinar o perfil atual do processo de formação propiciado pela Residência Médica para identificar quais seriam os elementos de uma proposta de transformação na área. Alguns estudos, como o de Elias (1987), apontam a Residência Médica como uma opção para o treinamento profissional dos médicos que teria se fortalecido a partir da concepção flexneriana de educação médica. Por esse motivo, a Residência teria o hospital como local privilegiado para o treinamento prático dos médicos. No entanto, ao contrário do que Flexner defendia, são utilizados como campo de treinamento não somente os hospitais-escola, os hospitais universitários, mas também os hospitais da rede de serviços. Hoje a Residência Médica produz médicos aptos para atuar fundamentalmente em nível hospitalar: unidades de internação, UTI e urgência/emergência. A atividade ambulatorial já teve seu espaço ampliado em muitos programas, mas o que predomina ainda são os estágios em enfermarias, com o agravante de que o congestionamento dos serviços de apoio diagnóstico dos hospitais de ensino faz com que persista a deplorável categoria da “internação para investigação” (Feuerwerker, 1996). Os hospitais onde ocorrem os programas de Residência, mesmo os que pertencem à rede pública de serviços, não se integraram de fato ao sistema de saúde. Existem evidências desse fato: a) as prioridades de ação, as especialidades que existem em cada um deles e as relações que estabelecem com a população de sua área de abrangência são definidos internamente, sem levar em conta os demais recursos existentes, a situação epidemiológica e as prioridades de intervenção definidas pelas autoridades regionais de saúde; b) apesar de prestarem serviços ao SUS, não há relações sistemáticas entre os hospitais e as demais unidades de saúde, levando a que os mecanismos de referência e contrarreferência não funcionem. O processo de treinamento em nível da Residência Médica, como visto, tem tido seus rumos definidos num processo relativamente independente do que está ocorrendo no terreno da educação médica e também das políticas de saúde. São as necessidades das instituições que mantêm os programas e os interesses da corporação médica os principais elementos definidores de suas características. Os residentes têm poucas oportunidades de atuar com outros elementos das equipes de saúde, desconhecem o que seja a rede de serviços, seus

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recursos e as atividades ali desenvolvidas. Vigilância epidemiológica, territorialização, planejamento local, trabalho com grupos, programas de promoção e prevenção são temas praticamente desconhecidos para eles. Os médicos que desenvolvem as atividades de preceptoria em muitos dos hospitais da rede de serviços não recebem qualquer aporte especial em seu processo de atualização, em sua capacitação pedagógica e tampouco estão familiarizados com a dinâmica das unidades não hospitalares. Ora, o conteúdo da formação, da prática profissional e os cenários utilizados para treinamento durante a Residência Médica não podem ser indiferentes para os que tentam reorganizar as práticas sanitárias, nem para os que tentam implementar mudanças na graduação médica. Pensar a Residência Médica como parte do processo de formação dos médicos pode ser um passo essencial para interferir de fato na definição do perfil dos profissionais médicos. Um elemento central da atual crise da saúde é a necessidade de transformar as relações entre os médicos e os demais profissionais da saúde, entre os profissionais da saúde e a população, entre a população e sua própria saúde. A mudança dessas relações envolve transferência de poderes e a redefinição da autonomia de todos esses sujeitos no processo da saúde e da doença. A compreensão do processo saúde-doença como construção social redefine o terreno de ação e a inserção dos serviços e dos profissionais de saúde. Como já foi dito, a ação intersetorial e social ganha papel preponderante nessa construção. Aí se dá a redefinição das relações dos sujeitos sociais com a saúde. Mas, como já foi também discutido, essa revalorização da saúde não implica na negação da doença e da necessidade de se intervir sobre ela. Por isso é preciso redefinir também o espaço da doença, redefinir as relações dos sujeitos com seu processo de adoecer, sofrer e morrer. E é também necessário redefinir o papel da clínica e da ação específica não somente dos médicos, mas de todos os profissionais de saúde nesse campo. Como momento privilegiado do treinamento clínico dos médicos e em função de sua interface com a prestação de serviços de saúde, a Residência Médica pode cumprir um papel importante nessa redefinição. Pode servir como cenário favorável à reorientação da interação/integração entre universidade e serviços e como palco da construção de novas práticas sanitárias. Não se pretende com essa sugestão diminuir a importância das estratégias de promover mudanças na graduação: elas são fundamentais. O problema é que o resultado das mudanças pode ser muito enfraquecido se não se considerar também a Residência Médica como palco necessário de transformações. Se a Residência tem hoje de fato um papel definidor em relação ao perfil do profissional formado, ela pode enfraquecer muito o impacto que as mudanças da graduação são capazes de produzir. E, ao contrário, o processo de mudanças na graduação pode ser potencializado ao se investir em mudanças na Residência Médica. Neste momento de crise da saúde, a categoria médica encontra-se profundamente tensionada. Seu lugar social está ameaçado. A reconstrução

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da relação médico-paciente e saúde-coletividade estão no centro da crise atual. Por isso a categoria provavelmente esteja mais aberta à reflexão e a proposições de mudança. Talvez esta seja uma oportunidade para que se produzam novos compromissos e novas relações. Mas para isso é preciso interferir no processo. É preciso que todos os atores sejam considerados (o que não significa que todos os interesses possam ser conciliados) e que os problemas relacionados com a profissão médica sejam examinados em toda a sua complexidade, incluindo seu processo global de formação. Não se pode deixar esse terreno de ação somente para os setores interessados em rever o paradigma da saúde nos marcos da viabilização da acumulação capitalista no setor. É preciso romper os limites históricos e criar áreas de interação e possibilidades de diálogo com a categoria médica. Referências bibliográficas CAMPOS, G.W.S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECÍLIO, L.C.O. et al. Inventando a mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. __________________ Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec, 1988. ELIAS, P.E.M. Residência Médica no Brasil: a institucionalização da ambivalência. São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado). Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP. FEUERWERKER, L.C.M. e MARSIGLIA, R.G. Estratégias para mudança na formação de Rhs com base nas experiências IDA/UNI. Divulgação para Saúde em Debate, n.12, p.24-28, 1996a. FEUERWERKER, L.C.M. Avaliação da residência Médica em São Paulo. In: Qualidade em Saúde, Cadernos FUNDAP, n.19, p. 153-169, 1996b. _________________________ As mudanças na educação médica e a residência médica no Brasil. São Paulo, 1997. Dissertação (Mestrado), Departamento de Prática de Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. FLEXNER, A. Medical Education in the United States and Canada. A report to the Carnegie Foundation for the advancement of teaching. New York, 1910. FUNDAP. Análise do processo de seleção dos médicos-residentes do Estado de São Paulo, 1996. FUNDAP. Distribuição da força de trabalho de nível superior na área da Saúde no Estado de São Paulo em 1992. Documento de Trabalho, 1997. GALLO, E. Inovação, planejamento estratégico e gestão de qualidade nas escolas médicas brasileiras. In: Qualidade em Saúde, Cadernos FUNDAP, n.19, p.131-52, 1996. KISIL, M. e CHAVES, M. Programa UNI: uma nova iniciativa na educação dos profissionais de Saúde, Battle Creek: Fundação W. K. Kellogg, 1994. KISIL, M. Uma estratégia para a Reforma sanitária: a Iniciativa UNI. Divulgação em Saúde para Debate, n.12, p. 5-14, 1996. KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.

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CecĂ­lia Pereira, 1990


ARTIGOS E

De la acción comunicativa a la sociedad democrática

RELATOS

J. Félix Ángulo Rasco 1

RASCO, J. F. A. From communicative action toward a democratic society. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n.3, 1998

This essay is a reflection on the fundamentals of Habermas’ communicative ethics, defending the ethics of communication as the underlying condition for the construction of a democratic society of free individuals, based on the distinction between two fields of discourse development: the theoretical and the practical. KEY WORDS: ethics, communication, democracy. Defendendo uma ética da comunicação como condição da construção de uma sociedade democrática de indivíduos emancipados, o texto traz uma reflexão sobre os fundamentos da ética comunicativa de Habermas, a partir da distinção entre dois campos de desenvolvimento discursivo: o discurso teórico e o discurso prático. PALAVRAS-CHAVE: ética, comunicação, democracia.

1 Facultad de C.C. de La Educación, Campus Puerto Real. Departamento de Didáctica, Cádiz, Spain. E-mail: felix.angulo@uca.es

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J. FÉLIX ANGULO RASCO

La acción comunicativa Las acciones comunicativas son acciones en cuya base se encuentran procesos sociales de interacción encaminados y orientados -directa o indirectamente- al entendimiento o la comprensión mutua entre los sujetos. Esta orientación, que invoca cierta normatividad en la relación, viene sustentada, según Habermas (1970a, 1976a, 1976b, 1979, 1983), por una serie de suposiciones que en última instancia se remiten a los actos de habla entre interlocutores que comunican. Las acciones comunicativas implican, por sí mismas, un “acatamiento” inherente de “normas de validez intersubjetivas” (1976a, p.33). En efecto, cuando los sujetos interaccionan en su vida cotidiana y tienen realmente la intención de comunicarse, necesitan presuponer ‘siempre e inevitablemente’ en su relación, ciertas pretensiones de validez (Habermas 1976a, 1979, 1983). Estas normas, que no son meramente invocadas por la voluntad de los sujetos que comunican entre sí, están presupuestas por el mismo carácter normativo del lenguaje, “enquistadas”, como afirma Habermas (1976a, p. 307), en las estructuras lingüísticas de que tienen que hacer uso los hablantes: se las introduce pragmáticamente en la comunicación por el mero hecho de querer comunicarse. Dicha validez normativa de los actos de habla, transmitida a la acción comunicativa, como acción sustentada en el lenguaje humano, está determinada por los cuatro requisitos siguientes (Habermas 1976a, 1979): la comprensibilidad de las locuciones; la verdad del contenido enunciado; la veracidad (o sinceridad) de las intenciones de los hablantes; y la corrección de la relación misma. Comunicar (lingüísticamente) algo, implica por lo tanto, que los sujetos enuncien claramente sus ideas, que el contenido de las mismas no sea falso o erróneo, que la intención que mueva a ambos sea sincera, y que la relación asegure, al menos, el derecho de cada hablante a comunicarse. Los hablantes - afirma Habermas - tienen que seleccionar una expresión lingüística comprensible en orden a que hablante y oyente puedan comprenderse el uno al otro; el hablante tiene que tener la intención de comunicar un contenido proposicional verdadero en orden a que el oyente pueda compartir el conocimiento del hablante; el hablante tiene que querer expresar sus intenciones verazmente en orden a que el oyente pueda creer en sus locuciones (confiar en él); y finalmente, el hablante tiene que seleccionar una locución que sea correcta a la luz de las normas y valores vigentes en orden a que el oyente la acepte, para que ambos puedan llegar a un acuerdo entre sí en lo que se refiere al transfondo normativo reconocido (1979, p. 2-3).

Esta normatividad implícita se detecta con relativa claridad en los actos de habla que tienen lugar dentro del marco de un consenso, es decir, cuando la acción comunicativa se desarrolla en una situación en la que dicho consenso se da por hecho y es aceptado como terreno firme y legítimo de comunicación; pero también está ya invocada, cuando los interlocutores

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2 Véase Habermas (1983, p. 77-157).

comunican buscando el entendimiento y la comprensión, cuando el consenso tiene que ser establecido. Mientras que en el primer caso las pretensiones de validez constituyen el sentido del consenso alcanzado que incluye el reconocimiento común y ‘objetivo’ de las mismas, en el segundo actúan como una estructura general presupuesta (aunque intencional) para lograrlo. Esta es una distinción importante porque, como advierte McCarthy (1978, p. 287 y ss.), son precisamente las acciones comunicativas consensuales, las que Habermas toma como marco de investigación y, en general, como marco de fundamentación de su perspectiva ética. La razón es obvia: la acción comunicativa consensual representa por su acatamiento explícito, y no sólo supuesto, de las pretensiones de validez, una base sólida de comparación 2 . Pero evidentemente las pretensiones de validez pueden no cumplirse, tanto porque son pretensiones ideales y no factuales, como porque no todas las formas de comunicación se rigen de facto por dichas pretensiones. Especialmente en las formas ‘estratégicas’ de comunicación existe una manifiesta suspensión de las mismas. La manipulación, la mentira o el engaño, por ejemplo (McCarthy, 1978, p. 287) destruyen desde el principio la confianza en la veracidad de lo manifestado y atentan a la corrección de los valores introducidos. Está claro que cuando una forma estratégica tiene lugar acarrea consigo una voluntad manifiesta de no comunicación; es decir, quien actúa estratégicamente se niega por principio a comunicar válidamente e introduce, en su relación con el otro, una forma muy cercana a la opresión. Como veremos más tarde, esta cuestión es esencial para entender en todas sus dimensiones la ética de la emancipación. Pero la interrupción de la comunicación consensual puede ocurrir por otras razones, distintas a la deformación manifiesta que acabamos de ver. En los casos más elementales (cuando por ejemplo, las emisiones de cada sujeto resultan ininteligibles o la sinceridad de las intenciones del hablante es cuestionada) la comunicación puede restituirse de manera inmediata en el proceso mismo de interacción (Habermas, 1974, p. 18; McCarthy, 1978, p. 286); pero cuando la verdad de lo afirmado, y el derecho de cada sujeto a expresar sus ideas, queda en entredicho, a los hablantes no les quedan otras opciones que o bien derivar hacia formas estratégicas de relación, o proseguirla a un nivel diferente, el nivel del discurso. En el primer caso, cualquier posibilidad de consenso y de reconocimiento comprensivo queda automáticamente descartado. Como acabamos de decir, optar por una forma estratégica es negarse explícitamente a comunicar, en cuanto que se niega la identidad del otro como interlocutor válido. Sin embargo, el que los sujetos decidan proseguir su comunicación en la esfera del discurso, implica una manifiesta voluntad de reconocimiento mutuo y una esperanza de entendimiento. El discurso La esfera del discurso, que Habermas (1974, p.19), no sin cierta ironía, define como una forma “particularmente improbable” de comunicación, es el único ámbito posible en el que pueden llegar a ser validadas

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racionalmente la verdad de lo afirmado y la corrección de las normas de acción. Éstas - señala Habermas - "son peticiones de validez que solamente pueden ser probadas en el discurso. Su reconocimiento factual está basado él mismo en cada caso, incluso en caso de error, en las posibilidades de validación discursiva de las afirmaciones hechas. Los discursos son actuaciones en las que intentamos mostrar los fundamentos de nuestras declaraciones cognitivas" (1974, p. 18). Pero para que en la esfera de la comunicación discursiva sea posible asegurar los fundamentos de nuestras normas y nuestras afirmaciones es necesario asumir una doble “virtualización”. (Habermas, 1974, p. 18). En primer lugar, se requiere que los comunicantes se extraigan de las coerciones de la acción. Esto quiere decir que los sujetos, embarcados en la restitución del consenso perdido o en la búsqueda del mismo, no se vean determinados por las perentorias demandas de la acción. En segundo lugar, también se requiere que se suspendan las pretensiones de validez mismas. La primera virtualización es fácilmente comprensible. No se puede llegar a un consenso si los interlocutores se sienten coaccionados por exigencias o motivaciones externas al discurso mismo. El único requisito que una situación discursiva demanda es la disposición de todos los participantes “a llegar a un acuerdo racionalmente motivado”. (McCarthy, 1978, p. 292). Esto se propone - afirma Habermas - "para dejar inoperantes todos los motivos excepto la sola búsqueda cooperativa para el logro de comprensión” (1974, p. 18). La segunda virtualización requiere, por el contrario, una explicación más detallada. La introducción por Habermas de este requisito no significa que se suspendan las pretensiones de validez generales del propio discurso (algo que en realidad sería imposible), sino las pretensiones de validez de las afirmaciones y las normas individuales. Cuando los sujetos comprometidos en una acción comunicativa ‘deciden’ introducirse en la esfera del discurso y apartarse momentáneamente de la acción, lo hacen con el sano propósito de analizar y resolver racionalmente sus divergencias. En este sentido han de tematizar discursivamente (a través de argumentaciones) sus pretensiones individuales de validez (la validez individual de la verdad de la información y la validez individual de la corrección de las normas por las que se rigen), pero al mismo tiempo han de asumir inevitablemente la validez general de la comunicación discursiva; es decir, la inteligibilidad, la verdad, la veracidad y la corrección del discurso.El propio acto de participar en un discurso - señala McCarthy - "implica la suposición de que es posible un consenso genuino y de que es posible distinguirlo de un consenso falso. Si no supusiéramos esto, entonces quedaría en cuestión el propio significado del discurso" (1978, p. 306). Mientras que el consenso genuino se alcanza cuando prevalece la fuerza del mejor argumento, el significado del discurso se mantiene por la fuerza de las pretensiones de validez ‘actualizadas’ en el discurso. Es decir, se puede dudar sobre la verdad de una afirmación particular o sobre la corrección de una norma, y por ello los sujetos expresan sus razones argumentativamente y defienden sus interpretaciones y valoraciones individuales, pero, por así decirlo, no se puede dudar de que el

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discurso sea en sí mismo una comunicación válida en la que han de prevalecer la inteligibilidad, la verdad, la corrección y la sinceridad. Y justamente porque en el discurso las pretensiones de validez se realizan, es cuando menos potencialmente posible que prevalezca entre los interesados la mejor de las justificaciones y argumentos presentados, discutidos y analizados. Dicho de otra forma: si el acuerdo adoptado discursivamente “ha de ser producto de una 'con la única fuerza aceptable de la'”; y si el único “motivo permisible” es la búsqueda “cooperativa de la verdad” (McCarthy, 1978, p. 306) entonces, la participación en el discurso invoca por lo menos, y para cada uno de los interesados, las pretensiones de validez de la comunicación discursiva. La mentira, la manipulación, el engaño etc., todas ellas deformaciones (estratégicas) de la comunicación en las que las pretensiones de validez son desfiguradas, impiden absolutamente que el consenso racional aparezca. En la acción comunicativa se presupone la base de validez del discurso. Las pretensiones universales de validez (verdad, corrección, veracidad), que los participantes en él plantean cuando menos implícitamente y se reconocen con reciprocidad, hacen posible el consenso que sirve de base al común obrar. Semejante consenso de fondo falta en el caso de la acción estratégica: allí no se espera la veracidad de las intenciones observadas y la conformidad de un aserto con las normas (en su caso, la corrección de la misma norma subyacente) se presupone en un sentido distinto de aquél con el que se presenta en el caso de la acción comunicativa, concretamente: en forma contingente” (Habermas, 1976a, p. 33).

Por lo tanto, al sobreentenderse los requisitos de validez, la comunicación discursiva se convierte en un ámbito de libertad argumentativa, en el que los participantes desembarazados de coacciones externas e internas ( sin amenazas de violencia y sin deformaciones ideológicas), pueden expresar, justificar y problematizar libremente sus opiniones, sus normas de acción y las de los otros, en una, como la llama McCarthy (1978p, 306 y ss), “distribución simétrica de oportunidades”. Ahora bien: entender de este modo el diálogo implica forzosamente concebirlo como una situación ideal de habla, como una acción comunicativa pura y privilegiada, en el mismo sentido en el que la competencia comunicativa de un hablante refiere también inevitablemente a dicha situación ideal (Habermas, 1970a, p. 369; Thompson, 1981, p. 92 y ss). Al entrar en un discurso con la intención de resolver sobre una pretensión de verdad, suponemos que somos capaces de hacerlo así, que la situación de discurso es tal que sólo esos méritos serán los determinantes - esto es, que estamos en una situación ideal de habla (McCarthy, 1978, p. 309).

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Pero, de la misma manera que las acciones comunicativas no están excluidas de perturbaciones y limitaciones, los discursos tampoco se dan en toda su ‘pureza’. Raramente la comunicación discursiva tiene lugar en la forma supuesta de una situación ideal de habla. Lo importante en este caso, sin embargo, es que frente a esa imperfecta realidad comunicativa, el ideal se presenta como “guía para la institucionalización” efectiva del discurso y como “estándar crítico con que medir cualquier consenso alcanzado de hecho”. (McCarthy, 1978, p. 309) Esto tiene una importancia decisiva para nuestros intereses. En primer lugar, al concebir el discurso como una situación de habla supuesta y anticipada por la mera voluntad comunicativa de búsqueda del consenso en los hablantes, estamos presentando el proceder legítimo para ‘racionalizar’ la acción comunicativa. Apoyar y promover en los ámbitos vitales y cotidianos de la interacción, o en la resolución de los problemas prácticos, la creación y extensión de formas comunicacionales regidas por la validez del discurso, significa comenzar a abolir las comunicaciones sistemáticamente distorsionadas (Habermas, 1970b) y a eliminar las relaciones violentas y de opresión entre los seres humanos. Racionalización significa aquí cancelación de aquellas relaciones de violencia que se han acomodado inadvertidamente en las estructuras comunicacionales y que, valiéndose de barreras tanto intrapsíquicas como interpersonales, impiden dirimir conscientemente y regular de modo consensual los conflictos. Racionalización significa la superación de semejantes comunicaciones sistemáticamente distorsionadas, en las que el consenso sustentador de la acción, en torno a las pretensiones de validez elevadas por unos y por otros, en especial la de veracidad de la manifestación intencional y la de corrección de la norma subyacente, sólo es mantenido aparentemente, esto es: de manera contrafáctica (Habermas, 1976a, p. 34-35).

Trajano Sardenberg

En segundo lugar, el ideal del discurso en cuanto “hipótesis práctica” (McCarthy, 1978, p. 310) de realización es, al mismo tiempo y en consecuencia, una promesa de vida buena y verdadera; es a su modo, un ‘deber ser’, un principio ético, que anuncia una sociedad libre y justa, en la que los sujetos se comunican desde el reconocimiento mutuo y no desde su supresión, en la que los sujetos organizan su realidad social consensualmente a partir de la racionalidad y la fuerza del mejor argumento y no a partir de la coacción externa de argumentos fundados "nomológicamente" por intereses instrumentales o simplemente por la degradante utilización de la violencia. En fin, la comunicación discursiva es, con respecto al orden social, el ideal de una sociedad democrática de individuos emancipados. Tomando como transfondo la riqueza racional del discurso, Habermas traza las líneas maestras de su ética comunicativa.


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La fundamentación de la ética comunicativa

3 Véase Albert (1961) y Cortina (1985).

El proceso que sigue Habermas para fundamentar su ética comunicativa, que ha expuesto McCarthy (1978) con inusitada claridad, es el siguiente: Una vez introducido y restituido el discurso con la cualidad propia de ser un ámbito comunicativo ideal de cumplimiento de las pretensiones de validez, Habermas distingue, a su vez, dos campos de desarrollo discursivo: el discurso teórico y el discurso práctico. La función epistemológica de estas dos vertientes del discurso puede ser explicada por el tipo de pretensiones de validez que respectivamente tematizan. En este sentido, el ‘discurso teórico’ se encarga de determinar las condiciones bajo las cuales un enunciado o una afirmación son verdaderas o, por decirlo con mayor propiedad, bajo qué condiciones está justificada la aserción de un enunciado (McCarthy 1978, p. 298 y ss). Por el otro lado, en el ‘discurso práctico’ se cuestionan las condiciones y los supuestos bajo los cuales una norma o un postulado ético es correcto o es justificable su aceptación (Habermas, 1983, p. 76 y ss; Apel, 1986, p. 171 y ss). La introducción de esta distinción no es tan obvia como parece. Hay que recordar que una de las críticas más fuertes a la que se ve sometido todo planteamiento ético-moral de la práctica humana por la racionalidad tecnológica se encuentra en la acusación de falta (o imposibilidad) de fundamentación de las normas éticas de acción desde la misma ética, en razón de lo cual resulta necesario apelar a un, o a la traducción del enunciado ético en enunciado tecnológico 3. La vía que Habermas adopta para evitar tanto esta acusación como su inevitable resultado, está en constituir el discurso práctico (el discurso de la argumentación moral) con propiedades semejantes, o al menos paralelas, a las del discurso teórico. Es decir, ambos son discursos y esto quiere decir que en ellos, y por ellos, las pretensiones de validez ‘generales’ tendrían que ser cumplidas. Este cumplimiento asegura que siempre predomine la fuerza del mejor argumento, en un caso con respecto a la verdad del enunciado y en el otro, con respecto a la corrección de la norma. Dicho de otra forma: al ser tanto el uno como el otro ámbitos de comunicación discursiva, comparten formas epistemológicas semejantes; pero difieren concretamente en la ‘naturaleza cognitiva’ de las afirmaciones resultantes. Si, vendría a decir Habermas, es posible y lícito en el discurso aceptar provisionalmente la verdad de un enunciado que afirme algo sobre la realidad a partir de la sola fuerza del mejor argumento, es a su vez posible y lícito que las argumentaciones sobre la corrección de las normas de acción sean aceptables, y aceptadas, con la misma fuerza, siempre que las cuestiones éticas se atengan al ideal discursivo. Como advierte McCarthy (1978), Habermas se ha visto de esta manera impelido no sólo a mantener la distinción sino a analizar primero las propiedades formales del discurso teórico y ‘trasladarlas’ luego a la constitución del discurso práctico. Desde luego este proceder, que repito tiene significación medular en el pensamiento de Habermas, no está exento de ciertas dificultades. Tomado en profundidad, parece que nos devuelve el acatamiento estricto de la ‘falacia naturalista’4 . Tendríamos, por un lado,

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4 Sobre este problema véase el excelente trabajo de Muguerza (1977); la relación entre ‘falacia naturalista’ y racionalidad tecnológica está trabajada por mí en Ángulo (1990).

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enunciados neutrales sobre la realidad (verdaderos o falsos), y enunciados valorativos o normativos (correctos o incorrectos), por el otro. Y no sirve frente a esta consecuencia afirmar sólo que en el nivel más radical de argumentación (la crítica del conocimiento) los límites entre ambos contextos discursivos se diluyen (McCarthy, 1978, p. 305). Sin embargo, incluso en su forma más abstracta, resulta difícil sustraerse a las implicaciones de las pretensiones de validez del mismo discurso. Aunque en verdad los interlocutores pudieran entrar en un discurso teórico puro, tienen al menos que presuponer la corrección de las normas por las que se rigen (por ejemplo, el derecho de todo hablante a expresar sus afirmaciones); por lo mismo, en un discurso práctico puro, los hablantes han de aceptar la verdad de las locuciones proferidas. Quiero decir que en todo discurso, sea éste cual fuere, ‘cuestiones de valor’ y ‘cuestiones de hecho’ se encuentran indefectiblemente entrelazadas. Esto resulta especialmente agudo, como es fácil reconocer, en las ciencias sociales para las que no resulta tan sencillo en principio distinguir un enunciado de hecho de un enunciado de valor o un problema teórico de un problemas práctico (Muguerza, 1977; Lamo, 1975; Dreitzel, 1972). Concluiré aquí esta pequeña digresión. El discurso práctico se suscita para dar respuesta a la pregunta ‘qué debo hacer’, que es esencialmente una pregunta moral (Habermas, 1983, p. 91), y cuya respuesta es un ‘deber ser’ de cumplimiento. El significado inmediato de tal interrogación no es otro que el de, como afirma Habermas, “tener razones para hacer algo” (1983, p. 66). Es decir, un ‘deber hacer’ invoca siempre el supuesto de que quien se interroga tiene ‘suficientes razones para hacer’. De la misma manera, como apunta agudamente Muguerza (1985, p. 31), se ha de plantear la cuestión en lo relativo a la colectividad, en tanto que el significado también inmediato de la pregunta ‘qué debemos hacer’, que es extensión de la pregunta individual original, supone a su vez aclarar “qué razones tenemos para hacer algo”. En ambos casos la preocupación de la ética comunicativa sería ‘demostrar’ o ‘confirmar’ que las razones que se han supuesto, o las razones que se han tenido en cuenta, son las adecuadas; de tal manera que tanto el sujeto como la colectividad que acatan y aceptan la corrección de la norma, se sientan racionalmente comprometidos y motivados en su cumplimiento. ¿Cómo lograr que éticamente puedan ser defendidos y aceptados juicios de ‘deber ser’ sin que pierdan un ápice de racionalidad y sin que sean relegados al subjetivismo? ¿Cómo fundamentar los enunciados y razonamientos morales para que gocen de la misma fuerza cognitiva que, por así decirlo, poseen -al menos provisionalmente- los enunciados y razonamientos sobre la verdad de los acontecimientos, sin caer en el ‘utilitarismo tecnológico’? Según Habermas, la ética comunicativa ha de estar anclada en dos tipos de postulados: el postulado ético discursivo (D) y el postulado de la universalidad (U). El primero pertenece directamente al mismo orden del discurso en el que se inscribe la ética o el razonamiento ético: el discurso práctico. El segundo es, sin embargo, una regla (o norma) de argumentación (Habermas, 1983, p. 86).

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El postulado ético discursivo no hace más que asegurar que para la fundamentación racional de normas (de su deber ser) los interesados tienen que entrar en un discurso práctico. De conformidad con la ética discursiva, una norma únicamente puede aspirar a tener validez cuando todas las personas a las que afecta consiguen ponerse de acuerdo en cuanto participantes de un discurso práctico (o pueden ponerse de acuerdo) en que dicha norma es válida (Habermas, 1983, p. 86, 117).

La garantía que representa para el razonamiento ético la adopción por los participantes e implicados del discurso práctico es la misma garantía (ideal) que representa en general la esfera del discurso para dirimir los problemas suscitados en la acción comunicativa: la voluntad de “neutralizar todas las fuerzas excepto la del mejor argumento y todos los motivos excepto el de la búsqueda cooperativa de la solución“ (McCarthy, 1978, p. 312). El discurso práctico, como discurso ético, no tiene otro fin. Los resultados respecto a la aceptación de normas problemáticas son acuerdos “racionalmente motivados” y libres; acuerdos que comprenden a todos los participantes debidos al peso de la evidencia y de la argumentación y no a coacciones o violencias internas o externas. Habermas define el postulado ético discursivo, en los siguientes términos: …únicamente pueden aspirar a la validez aquellas normas que consiguen (o puedan conseguir) la aprobación de todos los participantes en cuanto participantes de un discurso práctico (1983, p. 117).

Pero con la sola inclusión del discurso es insuficiente. Una norma puede ser aceptada libre y ‘racionalmente’ por los participantes en un discurso práctico y sin embargo estar circunscrita a los intereses exclusivos de dicho colectivo. Si sólo tuviéramos este postulado en vigencia, difícilmente podríamos rechazar la corrección de una norma “fácticamente existente” (McCarthy, 1978, p.314). Esto es así porque las normas (o los valores, los principios, las convenciones etc.) son intersubjetivamente vinculantes (p.314). La intersubjetividad no puede estar especificada en un conjunto particular de individuos. La vinculación ha de ser generalizable. La racionalidad de la vinculación descansa en el poder de generalización de la norma, en la posibilidad de que sea una norma ‘correcta’, no sólo para aquellos que la han formulado, sino para cualquier otro sujeto que pueda verse afectado por ella o que comunicativa y libremente pueda conocer y aceptar los argumentos y la evidencia en la que se sustenta; es decir, en que comprometa a todos. Aquí es donde el principio - ‘cuasi-kantiano’ (McCarthy, 1978) - de universalidad tiene su lugar. Si todo el que participa en argumentaciones entre otras cosas afirma Habermas - tiene que hacer presupuestos, cuyo contenido puede reflejarse bajo la forma de reglas discursivas… y si, además,

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entendemos que las normas justificadas tienen como objeto regular materias sociales en el interés común de todas las personas posiblemente afectadas, en tal caso todo aquel que aborda seriamente el intento de comprobar de modo discursivo las pretensiones normativas de validez tiene que aceptar de modo intuitivo condiciones procedimentales que equivalen a un reconocimiento implícito (1983, p.116).

La universalidad, es también, por lo tanto, una cualidad que suscita la dependencia de la corrección de la norma aceptada en el “mejor argumento”. Un argumento susceptible de ser aceptado por todos los participantes, tanto los que han intervenido en el acto, como los que hipotéticamente pudieran hacerlo. El principio de universalidad es una “regla de argumentación”, que como tal regla se encuentra implícita en los “presupuestos de cualquier argumentación” (Habermas, 1983, p. 110). Sin embargo, como en los discursos prácticos se tematizan las ‘cuestiones de interés común’ y el orden normativo de las relaciones sociales, ‘el mejor argumento’ para una norma regulativa ‘universal’ es aquél con el que los participantes pueden ‘comprometerse’ con respecto a las consecuencias y efectos que en su vida, o en su acción social comunicativa general (en su práctica social), su adopción acarrea. Así es como Habermas lo define: Una norma polémica únicamente encuentra aceptación entre los participantes de un discurso práctico cuando es válida, esto es, - cuando todos pueden aceptar libremente las consecuencias y efectos colaterales que se producirán previsiblemente del 5

Véase al respecto Weber (1922-69) y (1976), y Habermas (1968) y (1979). En otro lugar (Ángulo 1990) he señalado con detenimientos la estructura y las implicaciones de la racionalidad mediosfines, y también en su aplicación a la educación (Ángulo 1989).

cumplimiento general de una norma polémica para la satisfacción de los intereses de cada uno (1983, p. 116).

Si recordamos, la admisión de las ‘consecuencias secundarias’ era una de las cualidades que Weber atribuía a la racionalidad medios-fines5 . Pero ahora, y esto es muy importante, la aceptación de dichas ‘consecuencias secundarias’ viene precedida, al contrario que en el razonamiento tecnológico, de requisitos substancialmente divergentes. En la fundamentación discursiva de las normas éticas, no sólo la libre vinculación de los participantes autoriza la racionalidad del resultado, sino además es imprescindible que, cuando menos hipotéticamente, el resultado argumentativo vincule a todo posible participante o afectado. Pero ésto sólo puede decidirse, a su vez, por el diálogo, por la asunción consciente de los requisitos del discurso. La cuestión de si una norma es universalizable, susceptible de un consenso racional, sólo puede decidirse dialógicamente en un discurso no restringido y no sometido a coacciones (McCarthy, 1978, p. 326).

Universalidad y diálogo están pues interpenetrados. Mientras que la universalidad asegura la generalización de la norma aceptada, el diálogo

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discursivo asegura su aceptación argumentativa. Por ello los argumentos éticos no son argumentos ad hoc, válidos en las circunstancias concretas en las que tiene lugar la discusión, o válidos según los intereses particulares predominantes en un momento dado. La fundamentación de la ética, no se realiza a través de una comunicación mediatizada estratégicamente por la violencia relativa del posibilismo al que arrastran los acontecimiento y mucho menos por la violencia absoluta ejercida explícitamente en la suspensión del reconocimiento de los otros, de su subjetividad, de las legítimas aspiraciones de validez de las que son portadores. La racionalidad de la ética estriba en la racionalidad ineludible de una comunidad de diálogo ideal. La ética comunicativa y la sociedad democrática La proyección social del ideal que representa la ética comunicativa no es difícil de suponer. Sólo dicha ética, viene a decirnos Habermas, precisamente porque consolida la validez y universalidad de las normas, asegura la autonomía de los sujetos que comunican… …por cuanto recurre exclusivamente a la corroboración discursiva de las pretensiones de validez de las normas; admitiendo como válidas aquellas en que todos los interesados se ponen de acuerdo (o podrían ponerse de acuerdo), sin coacción alguna, como participantes en un discurso, cuando entran (o podrían entrar) en un proceso de formación discursiva de la voluntad (Habermas, 1973, p. 111).

La autonomía se mantiene porque en el discurso cada sujeto es reconocido por los otros como sujeto de argumentación. Esto es, porque cada sujeto goza de la libertad de exponer sus argumentaciones. La ética comunicativa es una región dialógica en la que convergen posturas valorativas divergentes con el único requisito de argumentar bien y no llegar a un entendimiento estratégico y particularista. Los intereses y las inclinaciones no son suprimidos, sino ‘insertados’ y ‘formados’ en dicha “comunicación no deformada”. (McCarthy, 1978, p. 328). Ningún interés o inclinación particulares se imponen porque todos son problematizados en el discurso; pero el interés general afianzado por el mejor argumento, la norma válida en su corrección, es el resultado de la voluntad discursiva de los participantes. En la ética comunicativa como proceso de formación de la voluntad, como proceso de ilustración, sólo puede haber participantes (Habermas, 1974, p. 40). El respeto a lo individual, que conlleva a su vez la crítica reflexiva, asegura el respeto a lo general que trasciende en lo social como comunidad de diálogo. ¿No es entonces la ética de la comunicación la estructura normativa de legitimación de la democracia política? ¿No es acaso, la comunidad de diálogo implícita en ella, una necesidad vinculante de seres humanos autónomos y libres? ¿No es el diálogo genéricamente una región en la que la comunicación está emancipada de las cosificaciones y deformaciones? ¿No es

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J. FÉLIX ANGULO RASCO

la misma formación discursiva de la voluntad un proceso democrático de ilustración? En realidad la respuesta indudablemente afirmativa a estas preguntas, implica que la proyección social de la ética comunicativa posee una doble inflexión. Mientras que con ella los fines normativos por los que se sustenta la ordenación de la sociedad son fundamentados racionalmente en razón de la fuerza generalizadora del mejor argumento, la ética comunicativa en cuanto comunidad de comunicación es un fin social generalizable, un deber ser racional. La exigencia política del libre acuerdo, en tanto condición necesaria de la fundamentación pública de las normas, - afirma Apel - es ella misma una consecuencia de la exigencia ética de formación de consenso bajo condiciones de reglas de una comunidad ideal de comunicación. Por lo tanto, la democracia, en tanto aproximación a esta exigencia ideal, es algo más que un mero concepto de procedimientos valorativamente neutros observados en virtud de una decisión pragmática: tiene su fundamentación ético-normativa en la ética de la comunidad ideal de comunicación, que ya es siempre reconocida en el argumentar. Los procedimientos democráticos de la fundamentación de normas a través del acuerdo - al igual que los procedimientos de las convenciones internacionales presupuestos y previstos en la idea del derecho internacional - tienen pues su ‘idea regulativa’ en la concepción del ‘discurso práctico’, tal como está implicado en la ética del discurso argumentativo (1986, p. 170).

La comunidad de comunicación impulsa un ideal democrático realizable como orden social en el que los sujetos se reconocen autónomos y libres y en el que los fines que regirán sus destinos son sustentados y aceptados racionalmente. La sustentación de fines y normas auténticamente democráticas para la práctica social es asimismo la realización de una auténtica democracia político-social sustantiva. Pero sólo una ética de la comunicación representa la participación y construcción democrática de los ciudadanos en el porvenir de la sociedad y la cultura en la que viven, en tanto que la misma ética comunicativa sea la aspiración y el garante de la democracia. Dicho de forma más contundente y definitiva: unicamente es posible a través de la ética comunicativa la fundamentación racional del ‘deber ser’ con el que organizar las acciones y el conjunto de las relaciones sociales, si es ella misma como comunidad de comunicación el ‘deber ser’ modelo de sociedad al que aspiramos y tenemos la voluntad de realizar.

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Um coeficiente mínimo de estilo Carlos Fajardo, 1997

O que conta na instalação que integra esses trabalhos e a esfera de cipó é a junção que faz comunicar objetos aparentemente díspares num mesmo contexto. O ponto de junção, que é também aquilo que desconjunta incessantemente a exposição, é a marca pessoal do artista. Salzstein, 1997


O Programa UNI no Brasil:

uma avaliação da coerência no seu processo de formulação e implementação

Auristela Maciel Lins

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Luiz Carlos de Oliveira Cecílio

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LINS, A.M., CECÍLIO, L.C.O. The UNI Program in Brazil: an evaluation of the coherence of its development and implementation processes. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n.3, 1998 This study assessed the coherence of the set of ideas behind the UNI Program, over three projects in Brazil, analyzing the relationship between Purposes, Methods, and Organization, in the light of Mario Testa’s coherence postulate. The empirical material on which this paper was based consisted of bibliography on the UNI Program and interviews with twelve key individuals, “actors” who helped shape the process. These were classified into three groups: UNI Program Formulators, UNI Project Directors, and Evaluators. The data were edited, systematized and analyzed according to both analytical categories (determination, conditioning, collective subject and paradigm) and empirical categories (purpose, method and organization). The analysis evidenced an idealized view of the true context within which the Projects are made operational. Furthermore, it identified dialectically constructed lines of determination and conditioning, within the actual scenario of the actors, and in the relationship between subject and object, sometimes in a direction directly contrary to that which had been taken for granted during the formulation of the Program. The investigation also identified shifts towards change in the reality of the UNI Projects, whether at the university or within health and community services. The limitations present both in the theoretical functionalistic frame of reference adopted during the initial structuring of the Program, and in the limited importance granted to the lines of conditioning or determination that organizations issue, may be considered as the explanation for the Program’s failure to attain full efficacy. KEY WORDS: Public Health- Evaluation; Community- Development; Community - University. O estudo avaliou a coerência do ideário do Programa UNI, em três projetos no Brasil, analisando a relação entre Propósitos, Métodos e Organização, à luz do Postulado de Coerência de Mario Testa. Bibliografia sobre o Programa UNI e entrevistas com doze atores do seu processo, agrupados como Formuladores do Programa UNI, Diretores de Projetos UNI e Avaliadores, compuseram o material empírico. Este foi recortado, sistematizado e analisado segundo categorias analíticas de determinação, condicionamento, sujeito coletivo e paradigma e segundo categorias empíricas de propósito, método e organização. Evidenciou-se uma formulação idealizada do espaço real de operacionalização dos Projetos e a presença de linhas de determinação e condicionamento construídas, dialeticamente, no espaço concreto de atuação dos atores e na relação entre sujeito e objeto, algumas vezes, em sentido contrário ao que previamente se supôs na formulação do Programa. A investigação conseguiu identificar movimentos de mudanças nas realidades dos Projetos UNI, tanto na universidade, como nos serviços de saúde e comunidade. As limitações presentes no referencial teórico funcionalista, adotado na formulação inicial do Programa e na pouca valorização dada às linhas de condicionamento ou determinação que partem das organizações podem ser apontadas como explicações para o não alcance de sua eficácia plena. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Pública-Avaliação; Comunidade-Desenvolvimento; Comunidade - Universidade.

1 Avaliadora do Projeto UNI de Botucatu, médica sanitarista do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - Unesp.E-mail: auri@botunet.com.br. 2 Docente do Departamento de Medicina Preventiva e Social. Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas Unicamp.

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Introdução A Fundação W. K. Kellogg, enquanto organização financiadora de projetos, tem tido uma inserção muito importante nos países da América Latina, desde a década de quarenta. Tem financiado inúmeros projetos vinculados ao ensino das profissões médicas e à área da saúde, entre outros, constituindo-se, portanto, como objeto de estudo obrigatório para quem tem como preocupações investigativas o campo da Saúde Coletiva. Um de seus mais recentes programas para a América Latina (início da década de 90) é o Programa UNI, um conjunto de 20 projetos espalhados por países da região, sendo seis deles no Brasil. Denominado Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais do Setor de Saúde, o programa UNI propõe uma mudança de paradigma na educação desses profissionais a partir, principalmente, da crítica ao modelo flexneriano de formação médica e aos projetos sociais que propunham modelos que isolavam três setores fundamentais na promoção de uma melhor qualidade de vida para as comunidades. Nesse sentido, a universidade, os serviços de saúde e os movimentos organizados da comunidade deveriam atuar em conjunto na formação dos profissionais de saúde, levando-os para ambientes de ensino/ aprendizagem diferentes do hospital, nos quais classicamente são formados, ambientes esses mais próximos da comunidade. O objetivo seria proporcionar-lhes um processo de ensino/aprendizagem construído de forma multidisciplinar, exercido em caráter multiprofissional e voltado para as necessidades dessas comunidades, oferecendo contribuição na construção de sistemas de saúde mais acessíveis e acolhedores e favorecer o fortalecimento da organização dos movimentos comunitários em saúde. O novo paradigma proposto é, portanto, centrado na parceria entre as organizações envolvidas e as existentes dentro delas próprias. A pesquisa que ora apresentamos teve a preocupação de avaliar a própria concepção do Programa UNI, em seus pressupostos teóricometodológicos, e verificar sua potencial eficácia enquanto proposta de intervenção sobre a realidade, analisando a coerência de seu ideário entre Propósitos, Métodos e Organização, à luz do Postulado de Coerência de Mario Testa. Utilizamos o conceito de avaliação formulado por Scriven (Worthen et al., 1997) que define avaliar como julgar valor e mérito do objeto da avaliação, porém considerando, como Fetterman (1997), que valor e mérito não são estáticos e que não devem ser seu objetivo final, e sim, parte do processo. Segundo Testa (1992), deve existir uma necessária relação de coerência entre os propósitos de governo (ou de um programa), os métodos utilizados para implementá-los e as organizações onde deverão ser operacionalizados. Essa relação de coerência é dada, em ciências sociais, pela determinação e pelo condicionamento, sendo a primeira, uma força positiva que estabelece limites dentro dos quais um fenômeno deve ocorrer e a segunda, uma força negativa que fixa limites fora dos quais um fenômeno não pode ocorrer. Testa afirma que a não observância dessa relação de coerência pode levar à falência do projeto. Essa idéia perseguiu o desenvolvimento da pesquisa, na

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qual procuramos estabelecer se a coerência dada no momento da formulação do Programa UNI concretizou-se nos espaços dos projetos durante sua operacionalização e quais seus efeitos sobre o Programa. O material empírico da pesquisa compôs-se de bibliografias sobre o Programa UNI, seu ideário, propostas e avaliação e por entrevistas com doze atores de seu processo, selecionados dentre o staff da representação da Fundação W. K. Kellogg no Brasil e dentre os Projetos UNI de Botucatu, Brasília e Londrina. Esses entrevistados foram, posteriormente, agrupados como Formuladores do Programa UNI, Diretores de Projetos UNI, sendo um ex-diretor e três atuais diretores, e Avaliadores, sendo dois da equipe de avaliadores do Cluster e dois avaliadores de projetos. O material foi recortado, sistematizado e analisado segundo algumas categorias analíticas emprestadas do Postulado de Coerência e outras que consideramos importantes: determinação, condicionamento, sujeito coletivo e paradigma, e segundo as categorias empíricas de propósito, método (parceria e participação comunitária) e organização. O postulado de coerência modificado Para Testa (1992) existem dois níveis de determinação e condicionamento. Um mais interno, representado pela relação entre proposta, método e organização. Outro mais externo que, além de determinar o primeiro, também apresenta linhas de determinação e condicionamento entre seus componentes: o Papel do Estado, a Teoria e a História. Para Testa, o papel do Estado determina seus propósitos; a teoria sobre o problema determina o método com o qual se pretende resolvê-lo e a história determina as organizações da sociedade. No nível mais interno, as relações se dão no sentido da determinação dos propósitos para os métodos; dos propósitos para as organizações e do método sobre a organização. Por outro lado, os métodos condicionariam os propósitos e ambos seriam condicionados pela organização (figura 1).

PAPEL DO ESTADO determinação

PROPÓSITO condicionamento

ORGANIZAÇÃO HISTÓRIA

MÉTODO TEORIA

Figura 1 - Postulado de Coerência de Mario Testa. (Fonte: LINS, 1997)

Promovendo um recorte no Postulado de Coerência e fundamentados nas categorias determinação e condicionamento aí presentes, usamos esses conceitos, aceitos por Testa ao formular seu postulado, e tomamos o

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conceito de paradigma encontrado em Gilles (1993, p.264): “na ciência, padrão, teoria explicativa de processos ou de fenômenos” para criar um esquema analítico na tentativa de verificar a coerência do Programa UNI, como foi formulado e como tem sido implementado e avaliado. No que concerne à relação de determinação entre os componentes de segundo para o primeiro nível, mantivemos a Teoria (ou Paradigma) como categoria presente porque acreditamos que a teoria é peça fundamental no Programa UNI. É ela quem, por assim dizer, “comanda” o ciclo de determinações e condicionamentos (figura 2).

Paradigma (Teoria)

determinação

Método (Estratégia)

Propósitos

condicionamento

Organizações

Figura 2 - Postulado de Coerência Modificado. (Fonte: LINS, 1997)

A teoria utilizada pelo Programa UNI para explicar as condições de vida das populações nos países da América Latina é herdeira de tradições sócioculturais e religiosas da organização que lhe deu origem, a Fundação W. K. Kellogg e das inúmeras experiências de programas e projetos irmãos desenvolvidos em países da América Latina. Assim, ela propõe integrar os diversos setores - formação de profissionais de saúde, prestação de assistência à saúde e comunidade - ao pensar um novo paradigma para o setor social (Figura 3). Acreditamos que, na visão dos formuladores do Programa UNI, esse paradigma determinava seus propósitos e as estratégias pensadas e utilizadas para atingi-los, porque as organizações são sobredeterminadas por propósitos e métodos. Uma proposta como a do UNI, que tenta desenvolver um trabalho em parceria entre três distintos atores ou sujeitos coletivos como a academia, os serviços de saúde e a comunidade organizada, é mediada por diversos interesses e objetivos comuns, mas é também, e principalmente, atravessada por conflitos cognitivos, conflitos de interesses e por relações de poder. Daí usarmos o conceito de Sujeito Coletivo conforme presente em Sader (1991): “...uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessa luta”, que comporta os conceitos de conflito e poder.

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As categorias empíricas Propósito, Método e Organização surgiram junto com a reflexão acerca do Postulado de Coerência como referencial teórico e foram sendo mais qualificadas com as repetidas leituras do material bibliográfico e das entrevistas. Assim, propósito e método são vistos conforme Ferreira (1991): “algo que se pretende fazer ou conseguir; projeto ou fim a que se visa”,“caminho para chegar a um fim” e organização, como formulado por Baremblitt (1996, p.235), “conjuntos de formas materiais que põem em efetividade as opções que as instituições distribuem, que as instituições enunciam”. Teoria, propósito, método e organização no Programa UNI Teoria no Programa UNI Como podemos visualizar na Figura 3, a Fundação Kellogg e o Programa UNI partem da afirmação da inadequação dos modelos de formação de profissionais, de assistência e de participação comunitária, para explicar as insatisfatórias condições de saúde e de vida da população latino-americana.

Modelo de formação hospitalocêntrico verticalizado em profissões verticalizado em disciplinas leva à especialização precoce

Modelo assistencial centrado no médico verticalizado em profissões modelo clínico medicalizante centrado no indivíduo serviços desarticulados

Modelo de participação comunitária em Saúde dependente dos serviços dependente dos profissionais de Saúde comunidade como objeto de ação

COMUNIDADE COM DIVERSOS PROBLEMAS DE SAÚDE

INADEQUAÇÃO NA QUALIDADE DE VIDA

Figura 3 - Estrutura geral do modelo explicativo do Programa UNI para as condições de vida da população

Na perspectiva da Fundação Kellogg, os indivíduos e os grupos têm potência para conduzir transformações em suas condições concretas de vida e de saúde, desde que utilizem adequadamente o conhecimento e os recursos existentes.

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Na perspectiva do Programa UNI, há, claramente, uma referência à Teoria de Sistemas como suporte teórico a sua formulação. Outra referência teórica presente na fala dos atores formuladores do Programa UNI diz respeito a aspectos advindos da corrente fenomenológica, que postula aos pequenos grupos como: associações de moradores, conselhos de saúde, associações profissionais, à própria família e aos grupos participantes dos Projetos, a responsabilidade por sua identificação enquanto grupo, por sua estabilidade (Minayo, 1993, p. 58) e a do próprio sistema, em última instância. Ao afirmarmos a vinculação do Programa UNI à corrente funcionalista, perpassada por alguns princípios fenomenológicos, não tivemos a pretensão de expressar um juízo de valor maniqueísta tipo “bom ou ruim”. Quisemos tão-somente analisar a potência explicativa da teoria que fundamenta os propósitos, métodos e organizações eleitos pelo Programa UNI. O uso de concepções funcionalistas como instrumental de análise de contextos complexos e pouco estruturados, como os espaços concretos dos Projetos UNI, levou a uma idealização dos mesmos, não considerando os conflitos de interesses e até antagonismos presentes entre os diferentes grupos nesses espaços. Propósito no Programa UNI Nos grupos de formuladores e gerentes de Projetos há, em geral, regularidades presentes em seus enunciados. O grupo de formuladores parece apontar para a melhoria da qualidade de vida da população como propósito final do Programa UNI, vindo o desenvolvimento de modelos na formação, assistência e desenvolvimento comunitário - como propósitos intermediários (ou produtos) e a parceria entre as três organizações como uma das principais, diríamos a principal, estratégia a ser utilizada. O grupo de diretores afirma o desenvolvimento do modelo de formação de profissionais de saúde como o propósito final do Programa, transformando-o em um projeto acadêmico, no sentido de que também nomeiam como propósitos intermediários produtos internos à universidade: reforma curricular, capacitação pedagógica dos docentes e outros. Nesse sentido, o desenvolvimento dos modelos assistencial e de participação comunitária seriam utilizados como estratégias. Um terceiro grupo, não tão coeso, composto por atores dos três grupos, nomeia a melhoria do sistema de saúde como propósito final, definindo a formação de recursos humanos e a organização da comunidade como estratégias para atingi-lo. Já dentre o grupo de avaliadores, encontramos mais diferenças que regularidades, no que se refere a seu imaginário sobre propósito no Programa UNI. Pudemos ver, no entanto, que, apesar das diferenças, este grupo não se atém aos limites de qualquer modelo ao nomear os propósitos. Expressam uma visão de finalidade social mais ampla, mesmo que seja para uma das organizações: a universidade ou o serviço. As diferenças mais acentuadas, portanto, se dão entre os grupos de formuladores do Programa e os diretores de Projetos UNI. Entre os

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primeiros, o propósito visualizado e esperado é o de transformação mais ampla, transformação social com foco no setor saúde, mas utilizando a formação de pessoal e a participação comunitária como estratégias. Há uma preocupação de superação de experiências anteriores (Projetos IDA) no que elas tiveram de limitante (o isolamento, por exemplo), daí diretrizes como a de “parceria”. Entre os diretores de Projetos, o propósito é de transformação do modelo de formação profissional para a saúde, mas o foco é colocado na Universidade, com parcerias, mas aparentemente descolado de um propósito de transformação social mais ampla. Dessa forma, três distintos grupos estavam conformados - os formuladores, os diretores de Projetos e os avaliadores - com relação às imagens que estabeleceram para os propósitos a serem buscados pelos Projetos ou pelo Programa em última instância. Dois deles apareciam com imagens bem marcantes e um terceiro nem tanto. Apareceram, portanto, três distintos propósitos finais que poderiam ser considerados como complementares, mas que, em sua operacionalização, poderiam ocorrer vieses em conseqüência dos diferentes interesses envolvidos. É na análise da categoria propósito que melhor aparece o princípio funcionalista de articulação das partes ou dos subsistemas para a recuperação da totalidade social. Em qualquer dos propósitos identificados, assumidos pelos grupos de atores entrevistados, há uma clara referência à necessidade de articular, como em uma engrenagem, sejam as organizações envolvidas, sejam os diversos departamentos ou disciplinas, sejam ainda os estabelecimentos de saúde, ou os diversos grupos no nível da comunidade. No caso específico dos Projetos UNI, a incorporação, por outros atores, em sua realidade concreta, de outros referenciais mais potentes que o funcionalismo, possibilitou avanços importantes na parceria entre as organizações envolvidas e no seu desenvolvimento. À luz das categorias analíticas de determinação e condicionamento e no espaço correspondente ao movimento que se dá entre Teoria e Propósito, conforme colocados no Postulado Modificado e no Postulado de Coerência de Testa, podemos afirmar que a teoria explicativa do Programa UNI sobre o processo de disputas, interno aos projetos, pelo menos no momento de sua concepção, sobrevalorizou os conflitos cognitivos em detrimento dos conflitos de interesses dos diferentes grupos, que também têm seus projetos e controlam recursos, o que determinou estratégias insuficientes ou equivocadas para sua operacionalização. Quando confrontados com a realidade dos contextos dos projetos, a teoria passou a ser condicionada pelos propósitos reais dos grupos com mais poder em cada projeto e o paradigma, assim como os objetivos intermediários e finais, foram se modificando e sendo adaptados. Método no Programa UNI Pudemos ver que os princípios colocados pelo Programa UNI no trato com os Projetos, desde que adequadamente gerenciados, colocavam-se como estratégias de conformação dos grupos enquanto sujeitos. O protagonismo ativo (Kisil e Chaves, 1994, p. 5) tem, claramente, uma definição do grupo

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enquanto sujeito do processo. Há um reconhecimento explícito da presença da categoria poder na relação do grupo condutor e dos líderes com outros grupos e atores nas organizações (Kisil e Chaves, 1994, p. 8), mas há, por outro lado, uma lacuna por conta do não reconhecimento de que os outros atores, outros grupos externos aos Projetos, também manejam recursos de poder e portam outros projetos. A mensagem claramente colocada é a de que o poder que detém o grupo condutor deva ser “distribuído” com os diversos grupos. Nesse momento de concepção inicial e no que os autores explicitamente referiam enquanto estratégias ou métodos, não há uma abordagem direta às categorias que mencionamos. Elas, porém, estão presentes em diversos outros momentos e documentos do Programa. O próprio título dado ao Programa UNI, “Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade”, já fala de uma das estratégias propostas. PARCERIA E CONFLITO: da concepção idealizada à operacionalização em situação Um desses documentos de suporte teórico elaborados pela equipe de avaliação do Cluster define assim a parceria: El partneship o parcería es una asociación entre actores diferentes, para el logro de fines comunes; constituye una modalidad de gestión asociada; los vínculos entre los socios se dan en un pie de igualdad o semejanza en la correspondencia y la proporción. Esta modalidad es superadora de los poderes relativos de las partes, se orienta al desarrollo de cada una y al mejoramiento del conjunto. La modalidad de gestión asociada contribuye a la democratización (Programa UNI, 1996, p. 2).

A parceria era, desta forma, um meio pelo qual os diferentes grupos ou organizações envolvidos poderiam atingir fins comuns e, segundo seus formuladores, a intenção do Programa UNI era colocá-los em igualdade de condições. A parceria era também entendida como uma característica essencial e definidora dos Projetos UNI (Programa UNI, 1996, p. 3). O reconhecimento do poder relativo das partes interessadas e a expectativa de superá-lo podem ser o reconhecimento da existência da assimetria de poder entre os parceiros, principalmente ao pregar a necessidade de fortalecimento (empowerment) de alguns grupos, mais especificamente de grupos da comunidade, participantes da parceria. Vimos que os formuladores do Programa traziam, claramente, a idéia de busca de objetivos comuns, ou seja, havia uma ausência explícita da possibilidade da existência de conflitos de interesses na concepção inicial. Para o Entrevistado 3, os conflitos ocorrem por conta dos desvios na formação, desvios esses que podem ser corrigidos pelo próprio sistema formador. O Entrevistado 4 também expressa idéia de funcionalidade, ao traduzir a possibilidade de que, aos poucos, as divergências possam ser convertidas em interesses comuns.

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Já os diretores de Projetos expressam a existência de conflitos de interesses e as dificuldades para encontrar os “interesses comuns”. Os avaliadores são muito enfáticos ao afirmarem a existência de contradições internas e externas aos diversos grupos e até a “ingenuidade na concepção de parceria entre iguais”. Mesmo o Entrevistado 5, que não vê conflitos no desenho, ou na concepção do Programa, reconhece o surgimento deles durante sua operacionalização nos Projetos. Essas falas reforçam o pressuposto de que a formulação ou o desenho do Programa idealizava os contextos nos quais ocorreriam os projetos. A operacionalização das idéias fez surgir diferentes conflitos ideológicos e de interesses, o que levou os grupos condutores a promover novos desenhos para propósitos e estratégias. Essa atuação situacional promovida pelos grupos em seus contextos foi provocada pelas relações de poder que permeavam os atores e ou as instituições parceiras do processo, condicionando os propósitos iniciais e até redirecionando ou determinando a conformação de novos propósitos, talvez transformando os propósitos intermediários em finais. Essa idealização por parte dos formuladores se dá em razão do referencial teórico que embasa o Programa UNI e, em última instância, a própria Fundação W. K. Kellogg. A complementaridade de propósitos entre os diversos atores ou instituições, a idéia de adaptação colocada pelo Entrevistado 4 e a concepção de desvios ou disfunções do aparelho formador colocadas pelo Entrevistado 3 traduzem um referencial funcionalista, permeado por referenciais fenomenológicos (Minayo, 1993) de afirmação da autonomia das pessoas e grupos, que trazem a importância dos significados subjetivos das relações sociais, mas que não pressupõem a existência de necessidades e interesses, também construídos a partir de determinantes históricos e econômicos da sociedade. Na análise dos métodos, nos momentos e espaços concretos das organizações nas quais se deu a operacionalização dos propósitos, fervilham as expressões de inadequação dos instrumentais funcionalistas para a realidade dos Projetos UNI. Aí surgem, claramente, as propostas de busca de objetivos comuns “superadores de los poderes relativos de las partes” e orientados “al mejoramiento del conjunto” ; neles surgem também as perspectivas de mudanças graduais e progressivas, de forma a serem absorvidas pelo sistema, sem provocar qualquer solução de continuidade. Em contrapartida, é aí que surgem os conflitos com toda sua expressão de pertinência ao contexto e não como desvios que podem ser absorvidos pelas partes ou pela totalidade. As estratégias de participação comunitária e parceria tomadas por nós como categorias empíricas para melhor aprofundar a análise e sistematização das falas dos atores, dentro da categoria método, foram sendo adaptadas de acordo com a finalidade de cada grupo de sujeitos no processo, mostrando a relação dialética entre o objeto e o método, conforme explicita Campos (apud Silva Júnior, 1996), sobre as contribuições de Mario Testa à formulação do modelo “Em Defesa da Vida” e mostrando a relação sujeito-objeto nas construções e reconstruções do espaço cotidiano. A concepção da parceria como uma relação de iguais mostrou-se uma

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concepção idealizada. É interessante observar a regularidade presente na fala dos entrevistados no que concerne à reprodução do discurso oficial do Programa UNI - a articulação de diferentes parceiros na busca de objetivos comuns e, em última instância, do bem comum. É um discurso repetido em diversos momentos pelos vários grupos de entrevistados, embora esses expressem uma série de experiências cotidianas que negam essa funcionalidade nas relações concretas. A parceria entre as três organizações é uma das mais inovadoras concepções e estratégias colocadas pelo ideário e deve ser estimulada, mas não como um instrumento para encobrir as diferenças. A parceria nos UNI é, intrinsecamente, conflituosa. Acreditamos que os conflitos são os desencadeadores do diálogo, devendo para tanto ser “publicizados”, não para superar os poderes das partes ou para o melhoramento geral, mas para marcar as diferenças e, mesmo, para aclarar as não-diferenças. Contudo, os atores dos espaços concretos dos Projetos têm utilizado estratégias de conformação de sujeitos, possibilitando o acúmulo de poder por certos grupos. Porém, qual a direcionalidade da parceria? Com qual finalidade estimular um trabalho conjunto com essas três diferentes organizações? Um dos documentos do Programa que orientam a avaliação de Cluster, ao falar dos propósitos do Programa, diz: Estimular y apoyar la articulación entre las áreas de educación, servicios y comunidad, para contribuir a la mejoria de las condiciones de salud de la poblacíon y la formación de los professionales de la salud (Programa UNI, 1993, p. 1).

Portanto, a parceria entre as três organizações estava sendo utilizada, na concepção dos seus formuladores, como estratégia para a melhoria das condições de saúde da população e para a melhoria da formação dos profissionais de saúde. Outros dois documentos, também do Cluster, reforçam esta visão, dois e três anos após o primeiro documento: (el partnership) constituye una estrategia superadora del poder relativo de las partes interessadas para generar un cambio beneficioso de su propia situación y de la salud y bienestar de sus comunidades (Programa UNI, 1995 e 1996).

Em um documento da avaliação de Cluster (Programa UNI, 1997), parceria é apresentada como ...um dos princípios realmente inovadores do UNI em relação a outras estratégias desenvolvidas para promover mudanças na formação dos profissionais de saúde. (grifo nosso)

Os documentos do Cluster, assim, direcionavam suas lentes para acompanhar, pela parceria, o desempenho dos projetos no sentido de dois

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grandes propósitos: melhoria das condições de saúde da comunidade e melhoria da formação de profissionais de saúde. No documento mais recente, o propósito é reduzido para um, a promoção de mudanças na formação dos profissionais de saúde. Perguntamos: nessa afirmação, o segundo propósito está implícito? Melhorar a formação dos profissionais de saúde leva a uma melhoria da condição de saúde da comunidade? Ou a afirmação do documento é conseqüência de uma tendência observada na operacionalização do ideário? As falas dos atores acerca de sua concepção inicial sobre propósito e estratégias do Programa UNI e os textos que embasaram a sua concepção e a dos projetos nos levam a concluir que havia um postulado inicial dos formuladores do Programa. No tocante aos componentes “propósito” e “estratégia”, indicava a proposição de uma estratégia de “desenvolvimento sincrônico das organizações envolvidas” como o estabelecimento de limites dentro dos quais deveria ocorrer a “melhoria das condições de saúde e de vida da população”. Vimos, também, que o propósito inicial para os diretores de projetos já apontava para a “formação de profissionais de saúde” o que, claramente, determinou estratégias mais dirigidas, mesmo se considerarmos uma mesma categoria como “parceria”. Observando as imagens mais atuais dos sujeitos sobre o propósito dos projetos e a partir de estudos recentes sobre o programa e os projetos, podemos concluir que a forma como foi desenvolvida a parceria nesses projetos condicionou e reduziu o propósito inicialmente colocado no ideário. PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA E CONTROLE SOCIAL: tudo o que é sólido, se desmancha e se refaz no caminhar O terreno da “participação comunitária” pisado e trilhado pelos diversos grupos do Programa UNI (formuladores, diretores de projetos e avaliadores) foi tido como estando muito longe de se constituir como terreno sólido. Os conceitos “participação comunitária”, “envolvimento comunitário” e “controle social” aparecem indistintamente e, aparentemente, ao sabor das leituras mais recentes de cada um dos entrevistados. Mesmo assim, acreditamos ter delimitado o conceito com o qual cada grupo trabalhou, através da ação quotidiana revelada pelos atores. O conceito de participação comunitária utilizado pelo Programa UNI é descontextualizado. Valla (1993, p.58), discutindo a participação popular sob o ponto de vista da educação em saúde, ressalta que o que está em jogo é um embate das diferentes forças da sociedade ao se falar de “participação popular”. As várias definições existentes obedecem à concepção da sociedade e aos interesses presentes nos grupos. Fala-se de participação comunitária em contextos concretos, com um olho em contextos sociais diversos. Ou seja, ela é historicamente construída e deve ser analisada como socialmente condicionada. A participação comunitária, em Botucatu, certamente não é igual à da Nicarágua. O mesmo autor diferencia “participação popular” de “participação social”, referindo-se a esta última como as múltiplas ações que diferentes forças

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sociais desenvolvem para poder influenciar as políticas públicas na área social (Valla, 1993). Ao formular um programa que tentasse dar conta de fragilidades percebidas nos projetos que o antecederam, como a ausência de participação da comunidade nos projetos de Integração Docente-Assistencial, por exemplo, o Programa UNI estabelecia uma outra estratégia de construção de condições para a ocorrência da melhoria das condições de vida da população. Propunha a participação da comunidade como sujeito no seu próprio espaço, promovendo o cuidado com o ambiente e o auto-cuidado, mas também como sujeito nos espaços das outras organizações parceiras, ao participar de colegiados gestores dos serviços e de colegiados acadêmicos. Como colocado pelo Entrevistado 6, a concepção teórica de participação comunitária é uma estratégia revolucionária para o contexto das organizações envolvidas nos Projetos UNI e os atores constatam um efetivo crescimento e fortalecimento das organizações comunitárias participantes dos Projetos. Alguns afirmam que esse fortalecimento da participação da comunidade é uma das grandes marcas no conjunto deles. Por outro lado, considerando que o propósito dos Projetos foi mais focado na reformulação do modelo acadêmico, o que dizem os atores sobre a “impermeabilidade” da universidade à participação da comunidade nas discussões sobre a formação profissional é revelador do condicionamento imposto pela estrutura da universidade à estratégia proposta. Portanto, também para a categoria “participação comunitária” ocorre uma idealização de seu desenvolvimento nos projetos, pois, por ser uma proposta revolucionária e contra-hegemônica, é geradora de conflitos por confrontar diferentes interesses. Por conta disso, a estratégia de participação acaba sendo reestruturada para níveis mais operacionais no desenvolvimento dos projetos, pouco ou nada efetivo nos níveis decisórios da universidade, também no seu próprio espaço, como revelado pelo não dito na fala dos atores: a ausência do estímulo ao autocuidado e ao cuidado com o ambiente. Esses conflitos passam, também, no Programa UNI, pela concepção de “comunidade” assumida pelos diferentes atores sociais. Pensando comunidade como uma parcela do corpo social, ou uma parte do todo na qual estão presentes as diversas forças em disputa, podemos afirmar que já existe um controle social - por parcelas da sociedade - sobre o serviço de saúde e sobre a universidade. Trata-se, portanto de ampliá-lo. Acreditamos que isto os Projetos UNI têm propiciado, trazendo “novos personagens para a cena”, e tentando capacitá-los para as disputas. No entanto, o processo não é linear. Ele não se dá na mesma intensidade e não possui a mesma direcionalidade em todos os Projetos, porque está vinculado aos interesses e à potência dos diversos grupos. As linhas de determinação e condicionamento que, segundo Testa, envolvem o poder como categoria central, já reconhecem e explicitam que os fatores positivos que estabelecem limites dentro dos quais deve ocorrer o fenômeno (determinação) e as forças negativas que impõem limites, fora dos quais não pode mais ocorrer o fenômeno (condicionamento), são impulsionadas pelos diversos poderes manejados pelos diversos grupos de

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atores constituídos. Desta forma, podemos verificar que, também a estratégia de Participação Comunitária, quando confrontada com a expectativa de um controle social sobre as organizações participantes, se vê condicionada pelos projetos dos grupos de atores com mais recursos envolvidos no processo. Organização no Programa UNI O componente organização no Projeto UNI, representado pela universidade, serviço de saúde e comunidade apresentou-se como o que mais condicionamento impôs sobre o propósito. Para o serviço, a proposta de Sistemas Locais de Saúde - SILOS, enquanto modelo tecno-assistencial, não deixa de ser uma proposta que traz a perspectiva de ser o modelo para dar respostas à complexidade dos fenômenos determinantes das condições de vida e saúde da comunidade. Mesmo que a avaliação de resultados não seja um dos objetivos desta análise, não vimos que o SILOS tenha se estabelecido como modelo dos Projetos por nós investigados. Ele não se deu por diversos motivos, mas, dentre eles, podem ser levantados alguns relativos à própria potência e efetividade do modelo proposto, outros relativos ao contexto das organizações e dos Projetos propriamente ditos. No Brasil, o UNI surgiu em um momento de transição da transição: um momento em que o Movimento Sanitário, após conquistar a inclusão de suas bandeiras para a reforma do sistema de saúde na Constituição, pelo Sistema Único de Saúde - SUS, enfrentava a forte reação de forças neoliberais contrárias. O UNI representava um reforço importante ao SUS. Vários autores já identificaram a coincidência do ideário com o SUS (Chompre, 1996; Gil, 1995; Cecilio, 1997). Acreditamos que essas coincidências se dêem por causa de fatores como: a) diretrizes colocadas pelo ideário, em geral, como a participação comunitária, e pelo modelo tecno-assistencial proposto - o SILOS -, como a descentralização e a regionalização, são, também, diretrizes do SUS; b) como já afirmamos, o SILOS representa um modelo hegemônico dentre os contra-hegemônicos, o que faz com que os gerentes, em parte, o assumam como discurso. Cecilio (1997), discutindo a concepção de serviço de saúde no Programa UNI, observa que há uma insuficiência na definição do que são serviços ou que serviços de saúde interessam à população. Nessa discussão, o autor levanta o debate, já referido, que ocorre entre os diversos autores formuladores dos diferentes modelos tecno-assistenciais em saúde e filia o SILOS, em suas versões mais recentes, ao modelo programático que assume a epidemiologia como a lógica de organização dos serviços de saúde, contrapondo-a ao modelo clínico. Não reproduziremos, aqui, esse debate. Apenas abordaremos o que, nele, mais diretamente nos interessa e pode aclarar nosso objeto. O modelo SILOS é uma proposta, fundamentalmente, de integração intersetorial, portanto, de resolução de problemas macroestruturais. Não negando a necessidade de integração macroestrutural, afirmamos que ela não é potente para lidar com os fatores ligados ao microespaço dos

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estabelecimentos de saúde e ao médio-espaço do sistema de saúde. Levantamos, em favor desta afirmação, os seguintes argumentos: a) os micro e médio-espaços da saúde são locus de disputas, muitas vezes, mais conflitivos que os espaços intersetoriais, porque pouco visíveis, e não adequadamente considerados; b) de acordo com Campos (apud CECILIO, 1997), é questionável a capacidade da programação para dar conta de todas as tarefas relacionadas à organização de um sistema de saúde; c) decorrente da anterior, as necessidades não-técnicas, sentidas pela população e trazidas aos serviços de saúde precisam ser adequadamente consideradas, se não, corre-se o risco de uma completa descrença da população nos estabelecimentos e no sistema de saúde; d) recentemente, tem ficado mais claro o discurso racionalizador do SILOS, como caminho para a retirada gradual do Estado da prestação à saúde, mais que como forma de potencializar as organizações envolvidas no setor. Cecilio (1997) comenta que o UNI, na figura dos dirigentes dos Projetos que conheceu, acaba assumindo o SILOS como modelo tecno-assistencial em seu discurso e em sua prática. Na pesquisa aqui apresentada vimos, nas falas dos atores entrevistados, que o SILOS, enquanto modelo, acaba sendo lembrado por apenas um dos diretores. Independentemente do que se assume como discurso, vemos, na prática dos serviços, que os modelos propostos têm se tornado formas que engessam a criatividade dos trabalhadores e gerentes dos serviços e as necessidades da população, tornando quase disfuncionais os ruídos de seu cotidiano, tanto relativos ao processo de trabalho, quanto à relação serviço-usuário. Mais explicitamente, queremos dizer que os dirigentes não têm sabido aproveitar o que de potente existe nas diversas propostas, ao assumir um modelo e negar outros. Para minimizar e resolver alguns sofrimentos, a clínica tem se mostrado potente e tem credibilidade junto à população; para conhecer parte das necessidades das comunidades, a epidemiologia é importante e tem reconhecimento, inclusive da clínica, bem como a programação consegue dar conta de alguns dos chamados “grupos de risco”; para planejar e realocar alguns investimentos, a territorialização pode ser efetiva. Contudo, não podemos negar os conflitos e as disputas dos micropoderes presentes em diferentes espaços do sistema, como fator importante no momento de se operacionalizar a reorganização do setor, principalmente quando para ele convergem organizações como a universidade e a comunidade. A universidade mostrou, no dia-a-dia dos Projetos, sua face conservadora e conflitiva, levando, certamente, os Projetos a concentrarem seus recursos e energias no trabalho de sensibilizar e suplantar as disputas internas, o que se constituiu em estratégias consumidoras de recursos e sem eficácia, conforme observado por alguns dos seus diretores. Não desconhecendo os diversos movimentos e contra-movimentos existentes internamente à universidade e no campo da Educação (ToralesPereira, 1997; Pires, 1997 e Schraiber, 1997), bem como os mesmos movimentos na relação da universidade com os processos e estruturas sociais de seus contextos (Wanderley, 1986; Giannotti, 1986; Cunha, 1980), queremos nos ater à discussão da coerência e potência de uma proposta de

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Carlos Fajardo, 1990

transformação paradigmática que se utiliza da universidade como sua mentora. Nesse sentido, o que vimos nas falas dos atores do processo por nós entrevistados, foi uma difícil relação da universidade com as duas outras organizações e, internamente, entre os departamentos ou disciplinas. A justificativa da estabilidade desta organização, pouco afeita a mudanças bruscas por conta de suas decisões terem que ser colegiadas, como justificativa para que lhe fosse destinado mais poder na relação dos três, pode ter sido o desperdício de uma excelente oportunidade para criar potentes movimentos instituintes atravessadores das práticas instituídas nessa organização e nessa relação. À comunidade foi aplicado o princípio, enunciado por diversos entrevistados, de compartilhar o discurso técnico, na suposição de que os conflitos se resolveriam pela razão iluminista e tecnocrática que suporta esse discurso. Como observaram alguns entrevistados, a comunidade continuou a reivindicar soluções afeitas ao “velho e hegemônico” modelo. É interessante observar que alguns desses sujeitos, apesar de assumirem o discurso colocado na formulação do Programa, perceberam as contradições presentes em seus espaços concretos e foram à busca de novos referenciais, de forma mais ou menos sistematizada; outros continuaram a privilegiar as partes estáveis do sistema e “esconder” os conflitos de uma forma instrumental, ou seja, teorizando sobre os mesmos, mas se utilizando de estratégias que não possibilitavam seu afloramento. Podemos, ainda, extrair dos enunciados desse grupo de atores uma concepção, ao nosso ver equivocada, que trata a organização comunidade como um espaço intrinsecamente democrático. Como outras organizações e instituições, ela pode ser construída de forma democrática, mas isso não lhe é inerente. Pelo contrário, por sua própria definição, é um espaço atravessado por inúmeros grupos com interesses e desejos muito diversos e contraditórios, o que, em uma sociedade de tradições autoritárias e populistas como a nossa, não se autoriza essa pressuposição, no mínimo, ingênua.

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Acreditamos, portanto, que o Programa UNI postulava uma linha de determinação dos propósitos e do método sobre a organização, ou seja, seus formuladores contavam que seus propósitos e métodos encontrariam, nessas organizações, possibilidades para o seu desenvolvimento, ou que, no mínimo, as resistências não seriam tão intensas. Ao ser operacionalizado, nos diferentes Projetos, o Programa UNI iniciou com três diferentes propostas, embora interligadas. Primeiro, a melhoria das condições de saúde e de vida da população, que pressupunha como estratégia o avanço gradual e em parceria das três organizações envolvidas; segundo, a melhoria do sistema de saúde, pela construção de um novo modelo assistencial, de um novo modelo formador de profissionais e da participação comunitária nessa construção; terceiro, a produção de mudanças no modelo formador de profissionais da área da saúde, utilizando a parceria com os serviços de saúde e com a comunidade como estratégia. Devemos, também, citar o reconhecimento explícito que os atores fazem às inegáveis forças positivas operadas pelos propósitos nos microespaços organizacionais dos Projetos, como as que se seguem: a) o apoio decisivo para “desencantar” propostas de reforma curricular em algumas universidades; b) o movimento por capacitação pedagógica dos professores das universidades; c) a presença de Conselhos Tripartites ( academia, serviço e comunidade) decidindo atividades da universidade, mesmo que de forma localizada; d) o despertar de profissões não tradicionais do campo da saúde, como portadoras de novas formas de olhar a relação da equipe de saúde; e) a reorganização dos sistemas de referência e contra-referência nos sistemas de saúde; f) a organização de sistemas de informação e de apoio logístico pela informatização das redes de serviços de saúde; g) a melhoria da rede de serviços de saúde, com a construção e ampliação das unidades e compra de equipamentos; h) a capacitação técnica dos profissionais dos serviços; i) a ampliação dos espaços de participação da comunidade nos serviços de saúde, com a criação de Conselhos Locais; j) a reorganização dos movimentos comunitários, fazendo ressurgir novos/velhos personagens nas cenas de disputas; l) a ampliação da efetiva participação desses movimentos nos espaços do serviço e da universidade. Conclusões Durante nossa análise, pudemos observar que, na verdade, o processo de construção e reconstrução dos propósitos e métodos pelos Projetos foi se dando na prática concreta das organizações e das relações sociais, atravessadas por micropoderes e por grupos de indivíduos atuando como “máquinas desejantes” (Merhy, 1997, p.88) nas relações de determinação e condicionamento entre os componentes do postulado de coerência e no nível dos Projetos. Havia, aparentemente, uma coerência entre propósito, método e organização na formulação do ideário, sugerindo determinações dos primeiros para este último e de propósito para método. Porém, durante a análise, estas linhas não se configuraram como reais.

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Paradigma (Teoria)

determinação

Método (Estratégia)

Propósitos

condicionamento

Organizações

Figura 4 - Coerência no espaço concreto de Serviços e Comunidade. (Fonte:LINS,1997)

Paradigma (Teoria)

Método (Estratégia)

Propósitos

Organizações

Figura 5 - Coerência no espaço concreto da Universidade. (Fonte:LINS,1997)

O que observamos é que as linhas de determinação e condicionamento são diferentes para as três organizações envolvidas. No espaço concreto de operacionalização dos Projetos, os propósitos são fortemente condicionados pelas organizações Serviços e Comunidade, embora eles as determinem (Figura 4). No caso da Universidade, ocorre uma dupla determinação no sentido de propósitos para organização e, desta, para aqueles; a universidade também condiciona, fortemente, os propósitos do Programa (Figura 5). Identificamos vários fatores que podem explicar os sentidos das linhas de condicionamento e determinação das organizações sobre os propósitos e métodos do Programa UNI. No caso da Comunidade, podemos ressaltar fatores limitantes, como: a assimetria dos saberes entre as organizações; as disputas políticas entre os diversos grupos; as diferenças na participação; o atraso conceitual sobre participação; o descrédito nos modelos assistenciais. Nos Serviços, identificamos como fatores condicionantes: a crise paradigmática, organizacional, ética e financeira do SUS; a resistência das

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corporações do setor; a hegemonia do modelo médico-liberal; a baixa credibilidade junto às duas outras organizações; a desorganização e desestruturação dos movimentos mais combativos do setor. A Universidade, enquanto organização, se diferencia das duas outras por apresentar, além das linhas de condicionamento, outras de determinação. Como fatores limitantes aos propósitos e métodos do Programa, podemos relacionar: os diversos e potentes micropoderes existentes, representados pelos departamentos e pelas disciplinas; os interesses corporativos existentes nesses espaços; a cultura da predominância do saber aí produzido, sobre os demais saberes; a hegemonia do modelo flexneriano de formação. Já como fatores determinantes que partem dessa organização, podemos identificar, principalmente, sua estrutura mais conservadora e estável e a própria atribuição de poder à Universidade, pelo Programa, ao colocá-la como protagonista da parceria, destinando-lhe, formalmente, tal papel e a guarda dos recursos financeiros destinados a cada Projeto. Desta forma, a Universidade capturou propósitos e métodos dos Projetos, reinterpretandoos para seu espaço e finalidade. Mesmo levando em conta que a formulação inicial do Programa não tenha considerado adequadamente as linhas de determinação e condicionamento entre os três componentes do postulado, acreditamos não ter havido uma falência da proposta, provavelmente porque essas coerências, como vimos, foram sendo construídas em cada espaço concreto e, também, por conta das inúmeras forças positivas operadas pelo ideário no espaço dos projetos. Há que se ressaltar que o Ensino, a Saúde e porções da Sociedade, como instituições enunciantes das opções concretizadas pelas organizações participantes do Programa UNI, têm um peso determinante sobre elas, o que faz com que seja criada uma linha de condicionamento muito forte das organizações sobre os propósitos, ou mesmo de determinação no mesmo sentido, como pudemos verificar na relação da Universidade com os propósitos e métodos dos Projetos UNI. Acreditamos que esta organização passou, na realidade dos Projetos, a determinar os seus propósitos. Portanto, em nossa visão, a observação da relação de coerência entre propósitos, métodos e organização é condição necessária para a efetividade de projetos ou programas, mas não suficiente, havendo outros fatores intervenientes, como: a) a potência do paradigma explicativo adotado, diante da complexidade do objeto; b) a existência da relação dialética que se estabelece entre objeto e sujeito, verdadeira construtora das linhas de determinação e condicionamento. Concluímos pela necessidade premente de se investigar instrumentos de avaliação que, no cotidiano dos projetos, possam captar as linhas de determinação e condicionamento presentes, suas direcionalidades e possam alertar para a insuficiência contextual das teorias explicativas, possibilitando a mobilização de novos e mais adequados referenciais. Referências bibliográficas BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 3.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. CECILIO, L.C.O. Uma reflexão sobre o desenvolvimento dos serviços de saúde no Programa UNI da Fundação Kellogg. São Paulo, 1997.(mimeo). CHOMPRÉ, R. A enfermagem nos projetos UNI: contribuição para a redefinição de um novo projeto político para a enfermagem brasileira. São Paulo, 1996. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem da

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Bronze, Carlos Fajardo, 1992

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Saúde Coletiva:

D E B A T E S

história e paradigmas*

Everardo Duarte Nunes

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Ao aceitar o convite para pronunciar uma aula inaugural neste Curso, percebi a grande responsabilidade de que fui investido. Voltei-me, então, a rememorar como alguns eminentes pensadores deste século iniciaram suas aulas inaugurais. Interessante que os dois pensadores sobre os quais me detive se perguntam sobre esse direito. Pierre Bourdieu, em 23 de abril de 1982, assim se refere a essa situação: “Deveríamos poder ministrar uma aula, mesmo inaugural, sem nos perguntarmos, com que direito: aí está a instituição para afastar essa interrogação, assim como a angústia ligada ao arbitrário que se faz lembrar em todo o começo”(1988, p.3). Michel Foucault, em 2 de dezembro de 1970, já havia insinuado este posicionamento: “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar, uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa” (1971, p.7). Lendo esses dois trabalhos é que se pode dar conta do elevado sentido que representa a aula, mais ainda, o discurso que se elabora nela e que, para mim, se situa além do seu conteúdo. Se Bourdieu elabora uma profunda reflexão sobre o discurso da Sociologia, Foucault aborda as relações entre as práticas discursivas e o poder. E as falas desses autores, carregadas de tantos significados, apontam para o que nos interessa neste momento, pelo menos em dois pontos fundamentais. Como escreve Bourdieu, “só a História pode nos desvencilhar da História” e “A crítica epistemológica não se dá sem uma crítica social”; e, como escreve Foucault, “o discurso

Aula Inaugural proferida no Curso de Pós-Graduação de Medicina Preventiva. Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 7 de março de 1997, com adaptações. Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.

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não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar”. Frente às inúmeras possibilidades de abordagem do tema, fiz uma escolha. Pela lição de Bourdieu, começarei pela História. Mas, de que História estarei falando? A dos eventos em sua sucessão cronológica? A dos personagens, que, ao vivenciarem os acontecimentos e muitas vezes ao relatá-los, se transformaram inexoravelmente em figuras centrais da História? Da participação anônima - “the history from below”, na expressão de Thompson (1966) -, daqueles que viveram a cotidianidade dos acontecimentos sem se darem conta de que estavam construindo os próprios fatos históricos? Certamente, nenhum dos aspectos isolados forneceria uma visão adequada. Acrescente-se que sem o contexto e sem a crítica interna não existe o “campo”. Foi Moses Finley (1989, p.114) quem disse: A história não é um fluxo contínuo de eventos, e sim uma escolha descontínua, feita pelo homem, desses incidentes e processos que são ajustados a uma ordem lógica pela mente humana. A cronologia é, portanto, importante não como uma afirmação de continuidade ou desenvolvimento real, mas como uma indicação de como a mente humana agrupa, codifica e impõe um sentido a um conjunto de unidades constituintes tiradas da seqüência ininterrupta dos acontecimentos.

Historiadores da medicina e sociólogos da saúde têm apontado que as preocupações com um pensamento social em saúde não são tão recentes na história da saúde no mundo ocidental. Se sua formalização, considerando o momento em que se criam cursos e instituições para a própria reprodução do conhecimento, data do final do século 19 e início do século 20, com a criação do curso de Medicina Social, em 1881, em Munich, seguido pelo de Harvard, em 1913, pela Escola de Saúde Pública de Johns Hopkins em 1916, e do Departamento de Higiene, junto à Faculdade de Medicina e Cirurgia, em São Paulo, em 1918, sua “arqueologia” pode ser buscada em práticas discursivas que se estendem desde o século XVII. Michel Foucault (1979) foi muito feliz quando periodizou a história européia da Medicina Social em “medicina do Estado”, “medicina urbana” e “medicina da força de trabalho”. Acrescente-se que somente na metade do século XIX, em 1848, a expressão medicina social ganharia registro. Surgiu na França e, embora concomitante ao movimento geral que tomou conta da Europa, num processo de lutas pelas mudanças políticas e sociais, vibrantes e revolucionárias de curta duração, o conceito apresentado por Jules Guérin defende o monopólio da profissão médica sobre o saber e a prática médica (Nunes, 1996). Anterior a esse momento, que encontra também entre os alemães, nas figuras de Virchow, Neumann e Leubuscher, intensa defesa do caráter social da medicina, e a partir de diferentes maneiras e por diferentes caminhos, tentava-se estabelecer algum conhecimento sobre a doença e situação sanitária - Snow investigando o cólera em 1824, ou Villermé, escrevendo sobre as condições das fábricas têxteis, em 1840, ou Engels, relatando as dramáticas condições de vida dos operários ingleses, em 1844. E, nesse momento, o conhecimento sobre as doenças repousava, em grande medida, em teorias que as relacionavam a aspectos sociais e ambientais, embora vistos sob diferentes perspectivas teóricas e ideológicas. Muitos denominam o período de Era Social, “quando a saúde tornou-se um assunto de interesse público e muitas medidas efetivas foram desenvolvidas para o controle da doença nas populações” (Twaddle e Hessler, 1977, p.9). Há um longo período na história que culmina com as propostas alemãs, inglesas e francesas de atuar no campo da saúde, mesmo quando ainda não se tinha conhecimento sobre os agentes infecciosos. De outro lado, não se pode esquecer da longa tradição dos estudos demográficos sobre mortalidade e morbidade, que datam do início da segunda metade do século XVII, com Graunt, e do exemplar estudo de

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Durkheim sobre o suicídio, publicado em 1897. Foi somente a partir da segunda metade do século XIX, marcado pelas investigações de Pasteur e Koch, que se inauguraria a Era do Germe, e que transformaria dramaticamente a medicina de “uma profissão orientada para as pessoas para orientada para a doença” (Twaddle e Hessler, 1977, p.12). Como escreve Salomon-Bayet (1986, p.12), a revolução biomédica suscitada pelos trabalhos de Pasteur pode ser denominada de “la pastorization de la médicine” que a distingue de “la pasteurization de la médicine”, no sentido de que ela significa, de um lado, uma revolução teórica e, de outro, a medicalização de uma sociedade, legislando sobre a saúde pública, institucionalizando o ensino e atuando no plano político e social. Sem dúvida, as descobertas dos microrganismos serão da maior importância para a saúde pública, especialmente quando, além da relação indivíduo-agente, se estabelece um modelo epidemiológico como uma interação entre esses dois elementos e o ambiente. Este foi o modelo básico da saúde pública no século XIX. Bem mais tarde é que o modelo sobre a doença, da teoria microbiana, ampliado no modelo ecológico, seria alvo de críticas. Suas insuficiências são conhecidas: de um lado, não dava conta de explicar as doenças crônicas, e, de outro, com o advento da psiquiatria, colocava-se em evidência que muitas doenças tinham causas psicológicas. Acrescente-se, ainda, que as explicações dadas giravam em torno das relações de uma ou várias “causas” e um ou vários “efeitos” em saúde, vinculando esse modelo ao pensamento clínico sobre saúde e doença, ou seja, em suas manifestações individuais (Castellanos, 1991, p. 15-6). Na Era Pós-Germe iria ocorrer um revival dos aspectos sociais na medicina/saúde, mas, como apontam Twaddle e Hessler (1977, p.13), “neste momento baseados muito mais nas ciências sociais do que na filosofia social”. Para Susser e Susser (1996 a, p.669) foi a partir da Segunda Guerra Mundial que se estabeleceu com maior evidência o que eles denominam da Era da Epidemiologia das Doenças Crônicas, com o paradigma da “caixa preta”e que, na atualidade, já estaria atingindo seu climax, cedendo lugar a uma nova era e a um novo paradigma. Esta, conforme Susser e Susser (1996b, p. 675-76), é denominada Era Eco-epidemiológica e o paradigma é o das “chinese boxes”. A reelaboração dos modelos dos estudos epidemiológicos foi sendo realizada ao longo dos anos 70, como é sintetizada por Castellanos (1991), apontando entre esses modelos o de Morris (1975), chamado sócio-ecológico, que substitui, no modelo ecológico anterior, o agente por fatores comportamentais ou de conduta pessoal; o de Mosley e Chen (1984), que propuseram para o estudo da mortalidade infantil um esquema de referência com base em três grupos de determinantes: ecológicos, econômico-políticos e sistemas de saúde; o de McKeown (1990), ao criticar a classificação internacional de doenças, propondo que, segundo sua determinação, as doenças podem ser classificadas em pré-natais, da pobreza e da riqueza. Outro modelo considerado “entre os mais importantes esforços para estudar a situação de saúde de um ponto de vista epidemiológico, mais integrador” é o de Dever (1980), denominado modelo epidemiológico de análise de políticas de saúde, com quatro dimensões explicativas dos problemas de saúde de uma população: a biologia humana, o ambiente, o estilo de vida e o sistema de atenção à saúde. Outros trabalhos críticos sobre a epidemiologia clássica iriam aparecer nos anos 90, como o escrito por Pierce (1996). Além desses modelos, o grande destaque na busca de modelos que apreendessem os aspectos sócio-

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econômicos e políticos da saúde foi desenvolvido em países latino-americanos, com as propostas elaboradas por diversos estudiosos, no que vem sendo denominado de Epidemiologia Crítica, Epidemiologia Social ou Epidemiologia Estrutural. Da origem mais diretamente sociológica, há que se registrar não somente a tradição organicista, mas as herdadas da Escola de Chicago, a partir dos anos 20, e os estudos de comunidade, contemporâneos a essa Escola. Sem dúvida, dois estudos dos anos 50 são paradigmáticos: a análise sobre a prática médica de Parsons (1951) e os estudos sobre as relações entre classe social e doença mental (Hollinghshead, 1958). Os anos 60 assistiriam ao avanço da perspectiva interacionista; os anos 70, a retomada dos estudos sobre a profissão médica, de Freidson (1970), como também, na segunda metade dessa década, a dos estudos marxistas na saúde, com a presença destacada de Navarro (1976), Waitzkin e Waterman (1974) e outros estudiosos que haviam sido sufocados pelo macartismo nos anos 50, quando são publicados os pioneiros trabalhos de Stern (Nunes, 1997). Esta tradição sociológica da apreensão do social em medicina e saúde refere-se muito mais ao ocorrido nos Estados Unidos. A partir dos anos 70 cresce a importância do papel das ciências sociais na abordagem da saúde na América Latina, como pode ser visto em inúmeras publicações, como livros, teses e artigos (Nunes, 1986, 1997a), tendo se caracterizado por sua originalidade e profundidade. Há, portanto, a possibilidade de se estudar a Saúde Pública/Coletiva tentando periodizá-la, lembrando que as práticas que emergem nesses períodos não podem ser desarticuladas de inúmeros fatores, como também que certos objetos de estudo, como escreve Fourez (1995, p.104), somente têm condições de aparecer em dado momento histórico, enfatizando a construção cultural dos conceitos. De outro lado, de um ponto de vista khuniano, como assinala Santos (1989, p.57), é necessário que se procure “mostrar que a racionalidade e a veracidade do conhecimento científico só são compreensíveis no interior do paradigma em que se acolhem, pois é este que proporciona o quadro de sentido de todas as práticas científicas no seu âmbito”. Não se trata, neste momento, de se fazer uma digressão sobre os paradigmas, mas de tentar verificar o que ocorreu mais próximo a nós, considerando que não se podem perder de vista as ocorrências universais do campo, tendo-se sempre o cuidado de lembrar que em cada país há peculiaridades marcadas por sua história. García (1981, p.72) apontava, para a América Latina, numa perspectiva histórico-estrutural, a seguinte periodização: De 1880 a 1930 surge a investigação bacteriológica e parasitológica vinculada aos problemas da produção agro-exportadora. De 1930 a 1950 desenvolve-se a investigação básica e clínica conectada com o crescimento hospitalar impulsionado pela industrialização. A partir de 1960, e especialmente em 1970, observa-se um renascimento da medicina tropical, que acompanha o novo interesse pela produção agro-pecuária, e os estudos sobre os serviços de saúde impulsionados pela necessidade de racionalizar o setor, frente à diminuição dos gastos estatais.

Dentro do marco estrutural adotado pelo autor e pela verificação das relações que se estabelecem entre Estado e saúde, García (1981, p. 81-2) dizia que “as mudanças nos temas de estudo e na importância atribuída às diferentes disciplinas médicas parecem coincidir com diferentes fases do desenvolvimento da medicina estatal. Assim, nas primeiras décadas deste século, a saúde pública apresentava-se como a ação de maior vitalidade, enquanto a atenção médica somente se torna dominante a partir de 1940. Estes fenômenos indicam que existe uma correspondência entre a prática médica e a pesquisa".

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Em relação ao Brasil, verificamos que se pode adotar a estrutura anterior; nós, também, tivemos a nossa Era Social, a Era da Teoria do Germe, a Era Pós-Teoria do Germe. Quando Roberto Machado e seus colaboradores publicaram, em 1978, um detalhado estudo sobre a emergência da medicina social no Brasil, nos marcos da abordagem foucaultiana da arqueologia do saber, eles nos forneceram a mais sistemática recuperação documental sobre a história das idéias da saúde do Brasil colonial até as primeiras décadas do século XIX. Texto fundamental para se entender a medicina como um poder disciplinar cuja ação recairia sobre a vida social urbana (Carvalho e Lima, 1992, p.13). Anunciam a emergência de um projeto de medicina social para o começo do século XIX, relacionado, sobretudo, com a higiene pública e a medicalização do espaço urbano, no momento em que ocorrem transformações políticas e sociais com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, quando “o conhecimento da colônia é colocado como fundamento necessário para uma intervenção dirigida ao aumento da produção, defesa da terra, e a saúde da população” (Machado et al., 1978, p.16). Não conheço outros estudos que tenham retomado, dessa maneira, o período estudado. Mas ele seria aos poucos completado por pesquisas históricas que iriam dar continuidade a outras etapas da história da saúde pública. Assim, os estudiosos da questão da saúde no Brasil apontam a importância que teve o período de 1870 até 1930, no qual distinguem várias subconjunturas, pois ela adquire contornos mais definidos que em outras conjunturas, dada a particularidade do momento, quando ocorrem bruscas mudanças no conjunto da sociedade (Luz, 1982, p.36-37). Os vinte anos que antecedem à República são de transição e crise: no plano interno - a crise do modelo escravagista; no externo - redefinição da hegemonia nacional do capitalismo. “O momento de crise”, como aponta Moraes (1983, p.97), “faz surgir propostas variadas. Os médicos, reunidos em associações corporativas, desenvolvem modelos de cura da sociedade. Advogados propõem novas relações jurídicas e de poder. Militares contestam o poder e o sistema hierárquico etc.”. Foi ao revisitar o período de 1866-1896 que Oliveira (1982) analisou de forma aprofundada o papel dos intelectuais formuladores de discursos científicos e políticos, em especial aqueles dirigidos a promover a intervenção médica no corpo social. Para tal, estuda como se estruturou o método experimental que fundamentou a saúde pública, pelas propostas desenvolvidas pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e da Escola Tropicalista Bahiana. Os projetos de medicina social estariam vinculados ao controle social, na perspectiva da higiene e controle sanitário da população, como também, ao controle jurídico-administrativo pela medicina legal. Na mesma direção, mas tomando outra conjuntura, Moraes (1983) analisa a saúde no período de 1914 a 1930, considerando o papel da Academia Nacional de Medicina e da imprensa através do jornal O Estado de São Paulo. O projeto da Academia não é o de uma medicina de massa, mas de luta pela universalização da atenção médica de caráter clínico. Já o projeto do Estado é o da saúde pública, tendo como modelo de médico e cientista Oswaldo Cruz. O objetivo é combater as endemias e as epidemias: 1918 é marcado pela gripe espanhola e 1928 pelo ressurgimento da febre amarela. A chamada “conjuntura Oswaldo Cruz” inaugura a organização da saúde em moldes científicos com base na bacteriologia e microbiologia e as ações com respeito à imunização por vacinas. Como é apontado pelos estudiosos da saúde pública, embora Oswaldo Cruz tenha

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introduzido a medicina científica no Brasil, foi em São Paulo que surgiram os primeiros emprendimentos de higiene pública visando a manutenção da força de trabalho (Mehry, 1985, p.41). Nesse sentido, o trabalho pioneiro de Emílio Ribas não pode ser esquecido: entre 1897 e 1918 esteve à frente tanto no combate às epidemias e endemias que ameaçavam as áreas cafeeiras do Estado de São Paulo, como dando início ao saneamento de Santos. Este modelo, denominado bacteriológico-campanhista, encontraria sua primeira reformulação no que ficou designado como modelo médico-sanitário, inaugurado por Paula Souza, que, como diretor do Serviço Sanitário Estadual de São Paulo de 1922-1931, vincula o projeto de saúde às ações educativas realizadas por meio dos Centros de Saúde. Com sua participação e presidido por Carlos Chagas, organiza-se, em 1923, o Primeiro Congresso Brasileiro de Higiene. Numa passagem tão geral sobre a história, não entraremos em detalhes sobre esse período. Há fatos importantes que introduziram muitas questões no âmbito da saúde; por exemplo, a lei de indenização dos acidentes de trabalho, em 1919; a criação do Conselho Nacional do Trabalho, em 1922; a Lei Elói Chaves, em 1923. Mas a partir dos anos 30 é que se inicia a constituição das Políticas Sociais, especialmente as trabalhistas, como forma de controlar a classe trabalhadora. Todos são unânimes em apontar que, a partir dos anos 30, pode-se falar de política de saúde de caráter nacional (Braga e Paula, 1981, p.50). Emblematicamente, há um fato que talvez ilustre esse momento: a criação, em 1930, do Ministério de Educação e Saúde; e, como evento político-sanitário, a centralização da política de saúde, com a retomada da prática das campanhas sanitárias. Braga e Paula (1981) analisam que a política de saúde inaugurada em 1930 apresenta um caráter restritivo em sua amplitude de cobertura populacional, assim como em seus aspectos técnicos e financeiros. Esse trabalho, embora enfatize os aspectos econômicos, oferece um quadro analítico importante do período que se estende até a segunda metade dos anos 70. A análise desse longo período - de 1930 à atualidade - extrapola os objetivos desta apresentação. Em realidade, há uma quantidade apreciável de trabalhos que estudaram a saúde pública no Brasil até a Primeira República, sendo que, além do trabalho citado de Braga e Paula (1981), não existem muitos estudos sobre o período que se segue aos anos 30. Entre eles, o de Yida (1988), que analisa a saúde pública como parte integrante da formação de um estado burguês; o de Mehry (1992), que analisa o período de 1920 a 1948, realizando uma “leitura das políticas governamentais como modelos tecno-assistenciais” , vinculando-os às correntes tecnológicas do campo sanitário e às questões políticas mais amplas. Correndo o sério risco de destacar somente uns poucos eventos de um período longo, inclusive marcado por um golpe militar, em 1964, não posso deixar de citar: a criação do Ministério da Saúde, em 1953, cuja reorganização havia sido pensada em 1941; a expansão do SESP nos anos 50; a criação da Lei Orgânica da Previdência Social, em 1960; a unificação dos Institutos de Previdência em 1967. Os anos 60 e 70, a partir de 1964, até 1974, serão caracterizados por um Estado centralizador e burocratizado, em um regime fortemente autoritário. A redemocratização seria para a segunda metade dos anos 70 e, como se sabe, “lenta e gradual” e somente em 1988 é que se promulga a nova Constituição Federal. Dois anos antes, em 1986, com a presença de cerca de 4.000 participantes, a VIII Conferência Nacional de Saúde propunha a organização do Sistema Único de Saúde e, efetivamente, no ano seguinte, 1987, é aprovado o SUDS - Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, pelo qual todas as pessoas passam a ter atendimento nos ambulatórios da rede básica e nos hospitais públicos e conveniados. A construção do SUS está em processo. Em 1992, na IX Conferência Nacional de Saúde, os princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988 são reafirmados. Insisto que, embora a cronologia dos eventos seja importante e nos oriente em uma primeira aproximação, não será detalhada. O que se pretende ao recuperar uma história tão longa é a aceitação de que, parafraseando Fourez (1995, p.105), um campo de conhecimento - a medicina

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social/a saúde pública/a saúde coletiva - “nasce como uma nova maneira de considerar o mundo e essa nova maneira se estrutura em ressonância com as condições culturais, econômicas e sociais de uma época”. Portanto, é claro, que os campos da medicina social, da saúde pública e da saúde coletiva têm características que são peculiares a cada um deles e não se confundem entre si. Não precisaríamos repetir que o “social” que se anexa à medicina e à saúde está presenteausente-presente na trajetória histórica; num primeiro momento, quase que de forma préparadigmática, quando de maneira incerta e nebulosa atribui-se, por exemplo, de forma genérica, que a desorganização social é a causa de todos os males, numa fase pré-constituição da sociologia como ciência. E, se o conhecimento é dado, como aponta Fourez (1995, p. 119-20), mais pela familiaridade com os acontecimentos do que pela utilização de métodos precisos, pela prioridade existencial sobre as regras da disciplina e maior importância às demandas sociais externas do que às da comunidade científica, o que chama a atenção é que “O período préparadigmático se caracteriza em particular pelo fato de que não existem ainda formações universitárias precisas para se tornar um especialista dessa disciplina”. Mas isto não diminui sua importância. Sem dúvida, a fase pré-paradigmática se ancora, como exemplifica Fourez (1995, p.120), analisando o que se passou em inúmeras disciplinas, como a física, a geografia, a vulcanologia, a geologia, a medicina, na idéia de que “os problemas se originam de maneira mais ou menos direta da vida cotidiana, ou em todo caso, de fora das disciplinas: do mundo industrial, militar, da produção, de outras disciplinas científicas etc.”. Da mesma forma, o “epidemiológico” que se busca é atravessado pelas representações que se constróem sobre a doença. Considere-se que durante o século XIX o debate teórico girou em torno de explicitar se as doenças eram causadas por contágio ou por miasmas. Milton Terris sintetiza este ponto quando salienta que até 1874 os partidários dos miasmas dominaram e que a questão do miasma versus contágio era uma luta política. Os conservadores e reacionários eram contagionistas e os liberais e radicais atribuíam às doenças causas como a pobreza e outras condições sociais, e os miasmas (Buck, Llopis, Nájera e Terris, 1988, p.4). A “ruptura epistemológica” só viria com Pasteur e Koch. O reencontro com o social seria para quase cem anos depois. A nova fase paradigmática, em que o social e o epidemiológico se redefinem em bases conceituais e metodológicas, não é obra acabada. Em recente artigo, Barata e Barreto (1996, p. 73) situam os impasses da própria Epidemiologia, quando escrevem que “o desafio está em superar as limitações representadas pelo caráter instrumental, materializado no conceito de risco, na busca de objetos modelos com capacidade heurística, sem entretanto romper, descaracterizando, os limites da disciplina”. Já mencionei a importância que tiveram os latino-americanos que reaparecem nesse texto de Barata e Barreto (1996) e cujos modelos já fazem parte da história da epidemiologia: o perfil epidemiológico de Breilh, o nexo biopsíquico de Laurell, o modo de vida de Cristina Possas e a teoria da saúde com o conceito de reprodução social de Juan Samaja. Acrescentaria a originalidade dos estudos históricos-conceituais sobre a disciplina, objeto das pesquisas de Ayres (1994, 1995), Czeresnia (1997), Almeida Filho (1989). Resumiria, dizendo que continua presente o dilema entre a instrumentalidade e a politicidade, o saber acadêmico e o saber militante, como pontos importantes para o debate atual da saúde coletiva. Já há algum tempo, após a leitura de um belíssimo ensaio de Ianni (1989) sobre a crise dos paradigmas em Sociologia, relacionados ao método e ao objeto dessa disciplina, eu escrevia que as mesmas idéias se aplicavam ao campo da medicina social e, ao reproduzi-las novamente, acredito que esses são os problemas que continuamos a enfrentar. “Discutem-se prioridades ou adaptações em relação à indução quantitativa e qualitativa, à análise sincrônica e diacrônica, à contraposição entre as partes e o todo, à dinâmica e à

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estabilidade sociais, ao indivíduo e à sociedade, ao objetivo e ao subjetivo”. Não é este o momento para desenvolver essas idéias. Citaria o ensaio de Carvalho (1996), que elabora uma oportuna abordagem de como trabalhar com as relações subjetivo-objetivo e coletivo-individual no campo sanitário. Muitos desdobramentos iriam ocorrer em datas bem recentes no campo da saúde coletiva. O próprio envolvimento mais direto dos profissionais com as questões políticas e sua discussão no momento em que se propunha a Reforma Sanitária, fundamentando a discussão e posteriormente avaliando-a criticamente (veja-se, por exemplo, os trabalhos de Cohn, 1995, Barros, 1996, Campos, 1996), favoreceram o recrudescimento de uma abordagem política da saúde, servindo-se de instrumental conceitual e teórico das ciências políticas. De outro lado, reativa-se a investigação histórica, em especial de doenças e não somente da organização sanitária, já existente anteriormente (Vieira, 1995). O Planejamento e a Administração em Saúde avaliam o campo e suas bases teóricas (Teixeira e Sá, 1996). Num momento de crise no trabalho, reacende-se a discussão da saúde do trabalhador e dos novos poblemas trazidos pela globalização da economia e pelo avanço tecnológico (Ribeiro, 1997). Acrescente-se, também, o avanço das práticas não-biomédicas, muitas delas tendo como ponto de referência uma retomada das relações homem/natureza, exigindo a atenção dos pesquisadores (Barros, 1997). Mas, sem dúvida os problemas das relações entre ética e saúde são os mais recentes em nosso campo, e trabalhos sobre bioética passam a ser preocupação da saúde coletiva em uma pauta já sobremodo carregada com tantas questões (Schramm, 1993). Como enfrentar tantas questões? Obviamente, pesquisando, formando recursos humanos e participando do próprio movimento da saúde, a fim de tentar colocar em prática preceitos e princípios que, sobretudo, valorizem a vida. Referências bibliográficas ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia sem números: uma introdução crítica à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus, 1989. AYRES, J. R. C. M. Epidemiologia e emancipação. São Paulo: HUCITEC/ Rio de Janeiro: HUCITEC, ABRASCO, 1994. ______________________ Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: HUCITEC, 1996. BARATA, R. B. , BARRETO, M. L. Algumas questões sobre o desenvolvimento da Epidemiologia na América Latina. Ciência e Saúde Coletiva, v. 1, n.1, p.70-79, 1996. BARROS, E. Política de Saúde no Brasil: a universalização tardia como possibilidade de construção do novo. Ciência e Saúde Coletiva, v.1, n.1, p.5-17, 1996. BARROS, N. F. Médicos em crise e em opcão: uma análise das práticas não biomédicas em Campinas. Campinas, 1997. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP. BOURDIEU, P. Lições da aula. Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em Paris, em 23 de abril de 1982. Trad. de Egon de Oliveira Rangel. São Paulo: Ática, 1988. BRAGA, J. C. , PAULA, A. G. Saúde e previdência: estudos de política social. São Paulo: CEBES/ HUCITEC, 1981. BUK, C. et al. El desafio de la epidemiología: problemas y lecturas selecionadas. Washington: OPS/OMS, 1988 (Publ. Cient. n.505). CAMPOS, W. de S. A reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: HUCITEC, 1992. CARVALHO, A. I. Da saúde pública às políticas saudáveis - Saúde e cidadania na pósmodernidade. Ciência e Saúde Coletiva, v. 1, n.1, p.104-121, 1996.

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Innovación educacional en las profesiones de la Salud: ¿moda o necesidad?

José Venturelli

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La necesidad de innovar en medicina ya no es más una simple tendencia de la moda. La situación histórica de las necesidades de salud de las poblaciones, junto con los costos que las respuestas adecuadas a dichas necesidades puedan implicar ha cambiado en muchos aspectos. Es así como la conciencia de la urgencia por un cambio importante en el proceso de salud latinoamericano – de análisis, de servicio, de participación real comunitaria y de educación de los profesionales de la salud - toma cuerpo y busca nuevas formas de expresión. El poder llegar a tener nuevos Servicios de salud, (con un alto sentido de mejorar la calidad y equidad), de establecer lazos fuertes, permanentes en el Trabajo Comunitario (donde la comunidad tiene un rol de actor central en el proceso de salud) y también forzar el cambio en la formación profesional (y en la educación permanente de los millares de profesionales y trabajadores de la salud) son méritos importantes de este proyecto. Han puesto el desafío a toda la sociedad y a los actores más inmediatos de este campo en términos reales e ineludibles. Un mérito que no es pequeño cuando vemos que la inercia y los tiempos que corren son más de abandono de los compromisos sociales y de metas establecidas en las décadas de los años 60 y 70 en lo que a progreso social se refiere. Vivimos tiempos en que la insistencia es hacia el olvido de dichas responsabilidades históricas, - aquellas que realmente establecen el progreso: la equidad, la justicia social, el mejoramiento de la vida y sus determinantes - y también de este efímero avance social que muchos tratan de medir según intereses inmediatos ajenos al hombre común … Es decir, perderse en las mediciones económicas ajenas a los problemas del diario vivir de las personas.

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Profesor de Pediatría y Cuidados Intensivos, Universidad de McMaster, Hamilton, Ontario (Canadá).

E-mail: venturel@fhs.csu.McMaster.ca

agosto, 1998

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JOSÉ VENTURELLI

LA PRODUCCIÓN SOCIAL DE SALUD El desafío para profesionales y trabajadores de salud, para gobiernos y organizaciones profesionales del sector salud, que han visto su número crecer pero no necesariamente mejorar el impacto de su accionar, para las comunidades que vislumbran sus derechos y pueden reconocer formas de llevarlos a una ejecución más concreta es inmenso. Dentro del gran océano de necesidades del subcontinente latinoamericano, quienes tienen la reponsabilidad del cambio y de lo que se debe hacer ven cada vez más que el cambio es una necesidad. Es por ello que los gobiernos, servicios de salud, las organizaciones profesionales, la comunidad se encuentran frente a decisiones dificilmente postergables. El concepto de producción social de salud 2 es un proceso complejo pero que debe permitir poner los factores, necesidades, recursos y decisiones en un contexto más real. Al mismo tiempo, más político… en lo que se refiere a una política al servicio de las poblaciones. Este concepto es muy importante ya que las presiones actuales de que “el mercado lo determina todo” llevan a una confusión inmensa y, al mismo tiempo, favorecen decisiones mercantilistas incluso en las áreas que correponden a derechos sociales… Si es que el progreso social tiene algún sentido, el acceso a mejor educación, condiciones de vida, niveles de salud y lo que sean los servicios que promuevan prevención, reparación en salud y rehabilitación, deben ser compromisos irrenunciables. Existe, a nivel planetario, la intención de hacer prevalecer la idea de que “el mercado lo determina todo”, como si esta fuera la piedra angular o la nueva y única diosa de todas las sociedades del planeta. La globalización, sin embargo, está llevando a un deterioro en la calidad de la respuesta social. El mercado no es un fenómeno estático y, especialmente hoy día, cuando vemos que las fuertes y especulativas ganancias que se pueden obtener en diferentes rubros (salud es una de las áreas donde esto puede ser más ventajoso que en otros sectores) están llevando a un grave deterioro en los sectores salud. Y esto sucede no sólo en los países del Tercer Mundo sino también en las economías más sólidas. Aquellas llamadas del grupo industrializado de los siete. Este deterioro es paralelo a la privatización que se intenta imponer. Sin embargo, es muy claro que la privatización de la salud no sólo disminuye la cobertura sino que aumenta los costos de atención. Estados Unidos usa un 15% de su Producto Nacional Interno y tiene cerca de un 40% de la población sin acceso a atención en salud o con un nivel de atención pésimo. Ese modelo ha demostrado, a través de los últimos 25 años, que sus costos son incontrolables y que se ha ido produciendo un aumento sostenido de aquellas personas que no tienen acceso a atención de salud de mediana o buena calidad. Sólo la fuerza política que controla el mundo - la de los dioses mercantiles - puede pretender que sistemas de salud equitativos y muchísimo más eficientes puedan ser llevados a su proprio suicidio. El caso de Canadá, que no discutiremos aquí, está en la silla del condenado... Es en este contexto que los gobiernos latinoamericanos (y también los industrializados o de otros países en desarrollo) deberán mirar las necesidad de los cambios en salud. Algunos objetivos han sido claramente indicados y repetidos hasta el cansancio por la Organización Mundial de la Salud. En América Latina iniciativas del tipo UNI (Una nueva iniciativa) miran hacia como mejorar la respuesta de salud y a una participación eficiente de las comunidades. El concepto de responsabilidad social que la OMS promueve debe ser un elemento guía en lo que a innovación en salud se refiere. Es necesario ir más allá de simples discusiones

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Para ampliar este concepto, es interesante leer el capítulo “Um novo paradigma sanitário: a produção social da saúde”. In: Uma

agenda para saúde. São Paulo: HUCITEC, 1996.

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INOVACCIÓN EDUCACIONAL EN LAS PROFESIONES...

metodológicas. Los documentos de la OMS “Desarrollar protocolos para el cambio en Educación Médica” 3 , “Definir y medir la responsabilidad social de las Escuelas Médicas” 4 y “Hacia una evaluación de la calidad de la Educación Médica” 5 deben ser una buena guía en la planificación hacia el cambio. La mera presentación de tecnologías educacionales, bajo el pretexto de que sólo en eso está la solución, es un error muy serio. La academia se resiste al cambio, especialmente cuando las cosas son miradas en forma aislada. La verdadera y necesaria colaboración entre Servicios de Salud, Profesionales y Universidades no ha llegado, sin embargo, a una verdadera integración. Las estrategias educacionales no pueden quedarse al margen y, para que dicha integración suceda, los académicos deberán identificar cómo crear espacios de tiempo educacional activo (disminuir el contenido irrelevante, no transferible 6 en el proceso educacional y poner un alto grado de facilitación del proceso educacional en la práctica y el trabajo relevante del estudiante), abrir los curricula (evaluar lo que estamos haciendo y desarrollar programas que sirvan a responder a las necesidades prioritarias de salud) y conseguir la integración eficiente de recursos (los docentes deben aprender a trabajar integradamente y, al mismo tiempo, hacer que profesionales, servicios, comunidad y sectores académicos logren trabajar juntos). Estos problemas reflejan la necesidad de que docentes y estudiantes miren a la realidad y, al hacerlo, sepan encontrar las fuentes educacionales, primero y, luego, que permitan resolver los problemas de salud mirando a sus componentes sociales, del comportamiento y de servicio. Objetivos específicos en ciertas áreas deben ser identificados por docentes y estudiantes. Los primeros para desarrollar recursos educacionales de todo tipo, los segundos para conocer sus pacientes o situaciones de salud en forma integral y a las que ellos puedan dar soluciones reales, plausibles de ser hechas dentro del contexto vivencial y de los servicios. No es infrecuente, en muchas conversaciones que he tenido, que me indiquen que “en nuestra escuela usamos la problematización del aprendizaje”. Es importante preguntar lo que eso significa: esto es un poco como poner a muchas personas juntas y asumir que todos definen igual las palabras libertad, democracia o calidad artística. La más frecuente, sin embargo, de las explicaciones que escucho y veo sobre problematización es, para decirlo con un ejemplo, más o menos esto: “la bioquímica (la física o cualquier otra disciplina, para que nadie se sienta perseguido) yo la enseño usando, en el caso de una acidosis metabólica, que los estudiantes lean un problema y luego yo les indico qué deben estudiar y todos los detalles que a mí me parecen. Y, para hacerlo interesante tomo una enfermedad, p.e., la acidemia metilmalónica”. Hacerlo así es simplemente hacer el índice o la introducción al tema más atractiva pero no deja espacio ni para aprendizaje auto-dirigido ni tampoco para la curiosidad, imaginación o desarrollo de sentido crítico que esperamos fomentar. Para hablar de la problematización hago un problema...

3 BOELEN, C et al.: este documento de la OMS (División de Desarrollo de Recursos Humanos, Ginebra – 1995) propone un plan/ itinerario para el desarrollo de los cambios en la formación de profesionales médicos. Por cierto que es sólo una guía que debe ser vista como un plan de sugerencias que sólo es útil si responde a las necesidades internas, identificadas a través de un profundo plan de evaluación, y que, al mismo tiempo, toma en cuenta las fortalezas y debilidades de la institución que intente llevar el cambio adelante.

BOELEN, C, HECK, J. E.: Documento, también de la OMS (WHO/HRH/95.5) discute la necesidad ineludible de reconocer que la tarea de formación de profesionales de la Salud pasa por la respuesta adecuada a las responsabilidades sociales.

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5 BOELEN, C et al: (WHO/HRH/92.7) propone formas específicas de medición de calidad y eficiencia de las escuelas de medicina y de ponerlas en el tamiz de la relevancia, calidad y equidad, entre otras cosas.

Este concepto de transferibilidad en el ABP es importante: el anclar un concepto, un mecanismo, dentro de un contexto facilita el proyectarlo en nuevas situaciones de trabajo. NORMAN, G. R, SCHMIDT, H. G. The psychological basis of problem-based learning: a review of the evidence. Acad. Med. v.67, n.9, p.557-67, 1992.

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JOSÉ VENTURELLI

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La figura 1, donde un anciano se encuentra deshidratado, debe implicar que los equipos docentes que hayan desarrollado este problema deben también haber considerado los diferentes recursos educacionales potenciales que podrían ser requeridos. Esto no requiere que los docentes, al tenerlos, se los den a los estudiantes y les indiquen que “allí está toda la información que necesitan y, ya!, léanla.” Es simplemente haber desarrollado los recursos humanos, escritos, programáticos, institucionales que puedan ser potenciales de uso y que, cuando los estudiantes empiezan a buscar apoyo, puedan encontrarlo. Esto conlleva el hecho de que no basta tener tutores sino también que debemos preocuparnos de desarrollar un equipo (sistema –unidad-programa) de incremento de recursos: allí, los docentes y personas que pueden apoyar el programa, van a aprender a hacer problemas y también a hacer los recursos que puedan requerirse. Mejorar la organización de la biblioteca (que facilite el trabajo de los estudiantes), optimizar las unidades audio-visuales (que consideren el desarrollo y/o adquisición de material que permita al estudiante poder contestarse sus preguntas dentro del contexto de su necesidad y no simplemente buscar el capítulo que le haya impuesto un docente); mejorar y simplificar un laboratorio de morfología donde todo el espectro morfológico (y no sólo anatomía) pueda ser consultado para resolver esta duda y no para engullir toda la neuroanatomía, como puede suceder en un caso problematizado de coma. También en estos laboratorios morfológicos, que resultan más de una reorganización hecha por los mismos docentes tradicionales que ponen ahora más el aprendizaje que la enseñanza pasiva como método central. También ir introduciendo los múltiples sistemas de imagenología – que son la forma de “mirar” la anatomía real y no con disecciones que nunca se le hacen a los pacientes reales - y de usar al docente como consultores del mejor nivel posible. Ya no más como simples y eternos transmisores de material ya escrito. También la problematización permite al estudiante poner sus necesidades educacionales en el contexto educacional real: este paciente requiere el apoyo de varios profesionales (enfermeras comunitarias, asistentes sociales, médicos, mejoramiento de la higiene ambiental, laboratorios que fuesen necesarios para saber, por ejemplo, si tiene disturbios hidro-electrolíticos). Estos profesionales son recursos humanos reales, ubicables y necesarios de conocer. Ese contexto en el que se mueve el paciente, donde lo biológico no se aisla de las causales y determinantes socio-

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INOVACCIÓN EDUCACIONAL EN LAS PROFESIONES...

económicas o del comportamiento, es importantísimo. Mucho más que imponerle al estudiante, fuera de contexto, que se estudie todos los disturbios hidro-electrolíticos posibles y de hacerle tests que se olvidan en mucho menos tiempo que el usado para estudiarlo. El aprendizaje basado en problemas (ABP) favorece y utiliza la contextualización que permite “anclar” la información y, al mismo tiempo, hacerla transferible a otras situaciones donde se ven problemas de salud o nuevas formulaciones o reordenamientos de preguntas de elección múltiple. Este aprendizaje contextualizado es el que permite hacer también el paso fundamental hacia la tarea central de la resolución de problemas. Los problemas son el centro do processo pero no en el vacío. Docentes y estudiantes deben saber integrarlos en el tiempo y espacio. Los problemas toman relevancia al ser llevados a la práctica. El contexto en el que se mueve la educación innovada no es tan diferente de lo que se hace en los programas tradicionales de buena calidad. Lo más importante es que existe la integración de docentes y servicios educacionales de todo tipo.

Aspectos relevantes e cencas scas

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Casos / Problemas esmla

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Este tipo de integración, donde el contexto está siempre puesto en relevancia, debe ser el marco de trabajo tanto del docente (al planificar y desarrollar problemas y actividades educacionales potenciales) como del estudiante que debe saber para qué estudia y en qué contexto estará ubicando su aprendizaje y accionar. En el aprendizaje basado en problemas la evaluación también debe cambiar, hacerse formativa y que responda a objetivos claramente establecidos. Estos son objetivos profesionales y de aprendizaje que deben incluir nuevas destrezas, actitudes y conocimientos relevantes. En resumen, debe incorporar los conceptos de responsabilidad social y de desarrollo de nuevas oportunidades y condiciones que llevan a mejorar la salud.

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JOSÉ VENTURELLI

Esfera de Cipó Carlos Fajardo, 1997 "O que se coloca para ser visto é o puro fazer, pessoal, auto-explicativo do estilo e, ao mesmo tempo, impessoal, frágil". Salzstein

Instalação realizada na AS Studio, com o conjunto dos três desenhos (p. 86)

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Internet no ensino universitário: pesquisa e comunicação na sala de aula

José Manuel Moran

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A educação avança pouco porque ainda estamos profundamente inseridos em organizações autoritárias, em processos de ensino e aprendizagem controladores, com educadores pouco livres, mal resolvidos, que repetem mais do que pesquisam, que impõem mais do que se comunicam, que não acreditam no seu próprio potencial nem no dos seus alunos, que desconhecem o quanto eles e seus alunos podem realizar. Um dos eixos das mudanças na educação passa pela transformação da educação em um processo de comunicação autêntica, aberta, entre professores e alunos, principalmente, mas também incluindo administradores e a comunidade. Só aprendemos profundamente dentro de um contexto comunicacional participativo, interativo, vivencial. Com ou sem tecnologias avançadas podemos vivenciar processos participativos de compartilhamento de ensinar e aprender pela comunicação mais aberta, confiante, de motivação constante, de integração de todas as possibilidades da aula-pesquisa/aulacomunicação, num processo dinâmico e amplo de informação inovadora, reelaborada pessoalmente e em grupo, de integração do objeto de estudo em todas as dimensões pessoais: cognitivas, emotivas, sociais, éticas e utilizando todas as habilidades disponíveis do professor e do aluno. É importante educar para a autonomia, para que cada um encontre o seu próprio ritmo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, é importante educar para a cooperação, para aprender em grupo, para intercambiar idéias, participar de projetos, realizar pesquisas em conjunto. Só podemos educar para a autonomia, para a liberdade, com autonomia e liberdade. Uma

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Professor de Novas Tecnologias de Comunicação da Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo. E-mail: jmmoran@usp.br

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JOSÉ MANUEL MORAN

das tarefas mais urgentes é educar o educador para uma nova relação no processo de ensinar e aprender, mais aberta, participativa, respeitosa do ritmo de cada aluno, das habilidades específicas de cada um. O caminho para a autonomia acontece combinando equilibradamente a interação e a interiorização. Pela interação, aprendemos, nos expressamos, confrontamos nossas experiências, idéias, realizações; por ela, buscamos ser aceitos, acolhidos pela sociedade, pelos colegas, por alguns grupos significativos. Pela interiorização, fazemos a integração de tudo, das idéias, interações, realizações em nós, vamos encontrando nossa síntese, nossa identidade, nossa marca pessoal, nossa diferença. A tecnologia nos propicia interações mais amplas, que combinam o presencial e o virtual. Somos solicitados continuamente a nos voltar para fora, a nos distrair, a copiar modelos externos, o que dificulta o processo de interiorização, de personalização. O educador precisa estar atento para utilizar a tecnologia como integração e não como distração ou fuga. Precisa mostrar para o aluno a complexidade do aprender. Ensina, aprendendo a relativizar, a valorizar a diferença, a aceitar o provisório. Aprender é passar da incerteza a uma certeza provisória que dá lugar a novas descobertas e a novas sínteses. A INTERNET NA SALA DE AULA Venho desenvolvendo algumas experiências no ensino de graduação e de pós-graduação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Criei uma página pessoal na Internet, no endereço www.eca.usp.br/prof/moran. Nela constam as disciplinas de pós-graduação - Redes eletrônicas na Educação e Novas Tecnologias para uma Nova Educação - e três de graduação - Novas Fronteiras da Televisão, Legislação e Ética do Radialismo e Mercadologia de Rádio e Televisão - incluindo programas e alguns textos meus e dos meus alunos. O roteiro básico é o seguinte. No começo do semestre, cada aluno escolhe um assunto específico dentro da matéria, pesquisando-o na Internet e na biblioteca. Ao mesmo tempo, pesquisamos também temas básicos do curso. O aluno apresenta os resultados de sua pesquisa específica na classe e depois pode divulgá-los, se quiser, pela rede. Disponho de duas salas de aula com dez computadores em uma, e quatorze em outra, ligados à Internet por fibra ótica, para vinte alunos, em média. Utilizamos essa sala a cada duas ou três semanas. As outras aulas acontecem na sala convencional. O fato de ver seu nome na Internet e a possibilidade de divulgar seus trabalhos e pesquisas, exerce uma forte motivação nos alunos, estimulando-os a participar mais em todas as atividades do curso. Enquanto preparam os trabalhos pessoais, vou desenvolvendo com eles outras atividades. Começamos com uma aula introdutória para os que não estão familiarizados com a Internet. Nela aprendemos a conhecer e a usar as principais ferramentas. Fazemos pesquisa livre, em vários programas de busca. Cadastramos cada aluno para que tenha seu e mail pessoal (na própria universidade ou em sites que oferecem endereços eletrônicos gratuitamente). Num segundo momento, todos pesquisamos um tópico importante do programa. É importante sensibilizar o aluno antes para o que se quer conseguir neste momento, neste tópico. Se o aluno tem claro ou encontra valor no que vai pesquisar, o fará com mais rapidez e

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INTERNET NO ENSINO UNIVERSITÁRIO...

eficiência. O professor precisa estar atento, porque a tendência na Internet é para a dispersão fácil. O intercâmbio constante de resultados e a supervisão do professor podem ajudar a obter melhores resultados. Eles vão gravando os endereços, artigos e imagens mais interessantes em disquete e também fazem anotações escritas, com rápidos comentários sobre o que estão salvando. As descobertas mais importantes são comunicadas aos colegas. Imprimem os textos mais significativos. No final, os alunos comunicam os principais resultados de sua busca e encontramos os principais pontos de apoio para analisar o tema do dia. Professor e alunos relacionam as coincidências e divergências entre os resultados encontrados e as informações já conhecidas em reflexões anteriores, em livros e revistas. Meu papel é o de acompanhar cada aluno, incentivá-lo, resolver suas dúvidas, divulgar as melhores descobertas. As aulas na Internet se alternam com as aulas habituais, nas quais acrescentamos textos escritos, vídeos para aprofundar os temas pesquisados inicialmente na Internet. Posteriormente, cada aluno desenvolve um tema específico de pesquisa, de livre escolha, conciliando seu interesse pessoal e o da matéria. É interessante que os alunos escolham algum assunto dentro do programa que esteja mais próximo do que eles valorizam mais. Essas pesquisas podem ser realizadas dentro e fora do período de aula. Estou junto com eles, orientando, tirando dúvidas, anotando descobertas. Esses temas específicos são mais tarde apresentados em classe para os colegas. O professor complementa, questiona, relaciona essas apresentações com a matéria como um todo. Alguns alunos criam suas páginas pessoais e outros entregam somente os resultados de suas pesquisas para colocá-los em minha página. Além das aulas, acontece um estimulante processo de comunicação virtual, junto com o presencial. Eles podem pesquisar em uma sala especial em qualquer horário, se houver máquinas livres. Os alunos me procuram mais para atendimento específico na minha sala, e também enviam mensagens eletrônicas. Como todos têm e mail, envio com freqüência textos, endereços, idéias, sugestões em uma lista que crio para o curso. Isso estimula, principalmente na pósgraduação, o intercâmbio, a troca também entre colegas, a inserção de novos materiais trazidos pelos próprios alunos. A navegação precisa de bom senso, cuidado estético e intuição. Bom senso para não se deter, diante de tantas possibilidades, em todas elas, sabendo selecionar, em rápidas comparações, as mais importantes. A intuição é um radar que vamos desenvolvendo de “clicar” o mouse nos links que nos levarão mais perto do que procuramos. A intuição nos leva a aprender por tentativa, acerto e erro. Às vezes passaremos bastante tempo sem achar algo importante e, de repente, se estivermos atentos, conseguiremos um artigo fundamental, uma página esclarecedora. O cuidado estético nos ajuda a reconhecer e a apreciar páginas elaboradas com bom gosto, com integração de imagem e texto. Principalmente para os alunos, o estético é uma qualidade fundamental de atração. Uma página bem apresentada, com recursos atraentes, é imediatamente selecionada, pesquisada. Ensinar utilizando a Internet exige uma forte dose de atenção do professor. Diante de tantas possibilidades de busca, a própria navegação se torna mais sedutora do que o necessário trabalho de interpretação. Os alunos tendem a se dispersar diante de tantas conexões possíveis, de endereços dentro de outros endereços, de imagens e textos que se sucedem

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JOSÉ MANUEL MORAN

Newton Okhama, 1998

ininterruptamente. Tendem a acumular muitos textos, lugares, idéias, que ficam gravados, impressos, anotados. Colocam os dados em seqüência mais do que em confronto. Copiam os endereços, os artigos uns ao lado dos outros, sem a devida triagem. Creio que isso se deve a uma primeira etapa de deslumbramento diante de tantas possibilidades que a Internet oferece. É mais atraente navegar, descobrir coisas novas do que analisá-las, compará-las, separando o que é essencial do acidental, hierarquizando idéias, assinalando coincidências e divergências. Por outro lado, isso reforça uma atitude consumista dos jovens diante da produção cultural audiovisual. Ver equivale, na cabeça de muitos, a compreender, e há um certo ver superficial, rápido, guloso, sem o devido tempo de reflexão, de aprofundamento, de cotejamento com outras leituras. Os alunos se impressionam primeiro com as páginas mais bonitas, que exibem mais imagens, animações, sons. As imagens animadas exercem um fascínio semelhante às do cinema, vídeo e televisão. Os lugares menos atraentes visualmente costumam ser deixados em segundo plano, o que acarreta, às vezes, perda de informações de VER grande valor. REVER REVER É A Internet é uma tecnologia que facilita a motivação dos alunos, VER DE NOVO pela novidade e pelas possibilidades inesgotáveis de pesquisa que VER DE NOVO É oferece. Essa motivação aumenta se o professor trabalha em um VER O NOVO clima de confiança, de abertura, de cordialidade com os alunos. VER O NOVO JAMAIS É Mais que a tecnologia, o que facilita o processo de ensinoREVER aprendizagem é a capacidade de comunicação autêntica do VEJA professor, de estabelecer relações de confiança com seus alunos, O NOVO pelo equilíbrio, competência e simpatia com que atua. A CADA MOMENTO... O aluno desenvolve a aprendizagem cooperativa, a pesquisa em A CADA MOMENTO... grupo, a troca de resultados. A interação bem sucedida aumenta a VER PARA aprendizagem. Em alguns casos há uma competição excessiva, VER monopólio de determinados alunos sobre o grupo. Mas, no REVER PARA conjunto, a cooperação prevalece. VER A Internet ajuda a desenvolver a intuição, a flexibilidade mental, SEMPRE a adaptação a ritmos diferentes. A intuição, porque as informações O NOVO vão sendo descobertas por acerto e erro, por conexões “escondidas”. As conexões não são lineares, “linkando-se” por hipertextos, textos interconectados, mas ocultos, com inúmeras possibilidades diferentes de navegação. Desenvolve a flexibilidade, porque a maior parte das seqüências são imprevisíveis, abertas. A mesma pessoa costuma ter dificuldades em refazer a mesma navegação duas vezes. Ajuda na adaptação a ritmos diferentes: a Internet permite a pesquisa individual, em que cada aluno vai no seu próprio ritmo, e a pesquisa em grupo, em que se desenvolve a aprendizagem colaborativa. Na Internet também desenvolvemos formas novas de comunicação, principalmente a escrita. Escrevemos de forma mais aberta, hipertextual, conectada, multilingüística, aproximando texto e imagem. Agora começamos a incorporar sons e imagens em movimento. A possibilidade de divulgar páginas pessoais e grupais na Internet gera uma grande motivação, visibilidade, responsabilidade para professores e alunos. Todos se esforçam para escrever bem, para comunicar melhor suas idéias, para serem bem aceitos, para “não fazerem feio”. Alguns dos endereços mais interessantes ou visitados da Internet no Brasil são feitos por adolescentes ou jovens. Outro resultado comum à maior parte dos projetos na Internet confirma a riqueza de interações que surgem, os contatos virtuais, as amizades, as trocas constantes com outros

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INTERNET NO ENSINO UNIVERSITÁRIO...

colegas, tanto por parte dos professores como dos alunos. Os contatos virtuais se transformam, quando é possível, em presenciais. A comunicação afetiva, a criação de amigos em diferentes países, transforma-se em um grande resultado individual e coletivo dos projetos. PROBLEMAS NO USO DA INTERNET NA EDUCAÇÃO Há uma certa confusão entre informação e conhecimento. Temos muitos dados, muitas informações disponíveis. Na informação, os dados estão organizados dentro de uma lógica, de um código, de uma estrutura determinada. Conhecer é integrar a informação em nosso referencial, em nosso paradigma, apropriando-nos dela, tornando-a significativa para nós. O conhecimento não se passa, o conhecimento se cria, se constrói. Alguns alunos não aceitam facilmente essa mudança na forma de ensinar e de aprender. Estão acostumados a receber tudo pronto do professor e esperam que ele continue “dando aula”, como sinônimo de ele falar e os alunos escutarem. Alguns professores também criticam essa nova forma, porque parece uma forma de não dar aula, de ficar “brincando” de aula... Há facilidade de dispersão. Muitos alunos se perdem no emaranhado de possibilidades de navegação. Não procuram o que está combinado deixando-se arrastar para áreas de interesse pessoal. É fácil perder tempo com informações pouco significativas, ficando na periferia dos assuntos, sem aprofundá-los, sem integrá-los num paradigma consistente. Conhecer se dá ao filtrar, selecionar, comparar, avaliar, sintetizar, contextualizar o que é mais relevante, significativo. Constato também a impaciência de muitos alunos por mudar de um endereço para outro. Essa impaciência os leva a aprofundar pouco as possibilidades que há em cada página encontrada. Os alunos, principalmente os mais jovens, “passeiam” pelas páginas da Internet, descobrindo muitas coisas interessantes, enquanto deixam, por afobação, outras tantas, tão ou mais importantes, de lado. CONCLUSÃO Educar é estar mais atento às possibilidades do que aos limites. Estimular o desejo de aprender, de ampliar as formas de perceber, de sentir, de compreender, de comunicar-se. Apoiar o estado de prontidão para aprender dentro e fora da escola, em todos os espaços de nosso cotidiano, em todas as dimensões da vida. Estar atento a tudo, relacionando tudo, integrando tudo. Conectar sempre o ensino com a pessoa do aluno, com a vida do aluno, com sua experiência. Educar é procurar chegar ao aluno por todos os caminhos possíveis: pela experiência, pela imagem, pelo som, pela representação (dramatizações, simulações), pela multimídia. É partir de onde o aluno está, ajudando-o a ir do concreto ao abstrato, do imediato para o contexto, do vivencial para o intelectual, integrando o sensorial, o emocional e o racional. O emocional é um componente fundamental da compreensão e do ensino. Ensinar e aprender depende do educador e do educando, é um processo compartilhado. O educador coordena, sensibiliza, organiza o processo, que vai sendo construído em conjunto com as habilidades e tecnologias possíveis a cada grupo, de forma participativa. É um processo

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JOSÉ MANUEL MORAN

baseado na confiança, na comunicação autêntica, na interação, na troca, no estímulo, com normas e limites, mas sempre enfatizando o incentivo. É importante ser professor-educador com um amadurecimento intelectual, emocional e comunicacional que facilite todo o processo de organização da aprendizagem. Pessoa aberta, sensível, humana, que valorize a busca, o estímulo, o apoio, capazes de estabelecer formas democráticas de pesquisa e de comunicação. A educação necessita de pessoas que modifiquem as estruturas arcaicas, autoritárias do ensino. Só pessoas livres, autônomas - ou em processo de libertação - podem educar para a liberdade, podem educar para a autonomia, podem transformar a sociedade. Só pessoas livres merecem o diploma de educador. O poder de interação não está fundamentalmente nas tecnologias, mas na mente de professores e alunos. Ensinar com as novas mídias será uma revolução, se mudar os paradigmas convencionais do ensino que mantêm distantes professores e alunos. Caso contrário será apenas um verniz de modernidade, sem mexer no essencial. A Internet é um novo meio de comunicação, ainda incipiente, mas que pode ajudar a rever, a ampliar e a modificar muitas das formas atuais de ensinar e aprender. BIBLIOGRAFIA DODGE, B. WebQuests: a technique for Internet-based learning. The Distance Educator. San Diego, v. 1, n.2, p.10-13, 1995. FERREIRA, S. Introdução às redes eletrônicas de comunicação. Ciências da Informação, v. 23, n.2, p.258-263, 1994. GARDNER, H. As estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. GILDER, G. Vida após a televisão: vencendo na revolução digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. ELLSWORTH, J. Education on the Internet. Indianápolis: Sams Publishing, 1994. ESTABROOK, N. et al. Using UseNet Newsgroups. Indianopolis: Que, 1995. HOINEFF, N. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de Janeiro: Delume Dumará, 1996. LASMAR, T. J. Usos educacionais da Internet: a contribuição das redes eletrônicas para o desenvolvimento de programas educacionais. Brasília, 1995. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Unb, 1995. LINARD, M. e BELISLE, C. Comp’act: new competencies of training actors with new information and communication technologies. Ecully: CNRS, 1995. LIPMAN, M. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995. MOLL, L. (org). Vygotsky e a educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. MORAN, J. M. Mudanças na comunicação pessoal: gerenciamento integrado da comunicação pessoal, social e tecnológica. São Paulo: Paulinas, 1998. ____________. Como utilizar a Internet na Educação. Revista Ciência da Informação, v. 26, n.2, p.146-153, 1997. ___________. Leituras dos Meios de Comunicação. São Paulo: Ed. Pancast, 1993. ____________. Como ver televisão. São Paulo: Paulinas, 1991. NOVOA, A. (org.) Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, 1992. PAPERT, S. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. POSTMANN, N. Tecnopolio. São Paulo: Nobel, 1994. SEABRA, C. Usos da telemática na educação. Acesso: revista de educação e informática, v.5, n.10, p.4-11, 1995.

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vídeo

LIVROS

vulnerabilidAIDS, vulnerADOLESCENTES

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AYRES, José Ricardo M.C. São Paulo, 1997. 15’ Quem trabalha com prevenção e educação na área de sexualidade e HIV/AIDS no Brasil sabe que precisamos muito mais que boas intenções. Dedicação é essencial para enfrentar essa ameaça à vida de tantos brasileiros, mas, para sermos eficazes e eficientes, e, em última instância, controlar o crescimento dessa epidemia, dependemos de abordagens mais refletidas e menos apressadas. A literatura brasileira e internacional e a experiência que acumulamos por quase uma década no NEPAIDS (Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS- USP), permitem dizer que, simplificadamente, dependemos de: a) Conhecimento atualizado sobre a dinâmica especial dessa epidemia que queremos prevenir. A epidemia da AIDS tem proporções globais e várias caras e dinâmicas; é diferente em cada região ou até cidade deste país com proporções continentais e varia de grupo para grupo. Devemos saber que epidemia: a paulistana? a feminina? a epidemia com a dinâmica da epidemia entre os jovens? 1 b) Familiaridade com a população específica a quem a campanha ou programa educativo se destina (por exemplo, os jovens de ambos os sexos, de baixa renda, de grandes cidades). De preferência, devemos envolver desde o início da iniciativa ou do

desenho do programa, representantes do grupo ou da comunidade em questão2 (escola, comunidade do bairro, da empresa). c) Uma teoria (ou uma hipótese a ser experimentada) de como as mudanças necessárias para a proteção daquele grupo com quem nos preocupamos especialmente acontecerão. Como se consegue aumentar naquela comunidade o acesso aos meios materiais para se proteger do HIV- saúde reprodutiva em dia e camisinha, por exemplo? Quais as informações relevantes ali, como as informações devem ser distribuídas de tal forma que sejam entendidas? Como as pessoas passam, enfim, a se perceber mais vulneráveis ao HIV? Quando e como decidem mudar ou se proteger? Quais as habilidades que precisam dominar e que serão necessárias para se proteger? Que direitos têm que ser garantidos para que todos, independente de credo, raça, gênero, preferências sexuais, idade, nível educacional e renda, local de moradia, tenham como decidir e agir conscientemente? De todas essas coisas, o que depende de uma ação individual, o que é parte do contexto a ser enfrentado e/ou modificado pela comunidade ou pela ação comunitária? Essas e outras perguntas têm respostas que variam de abordagem para abordagem; as perguntas são diferentes, dependendo da

1 Os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde e do Estado de São Paulo, além de trazerem dados atualizados sobre a evolução da epidemia, trazem artigos com análises interessantes. Mas há biblografia a respeito em livros e artigos. 2 Sobre o envolvimento da comunidade nos projetos, há vários textos disponíveis no NEPAIDS e, mais recentemente, disponível na nossa homepage (www.usp.br/nepaids/index) tradução de um texto feito pela UNAIDS - Programa de Aids das Nações Unidas: “Participação comunitária e Aids”. Sugiro também o livro de ALTMAN, D Poder e comunidade, Rio: Relume Dumara.

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teoria que se escolhe. Respondidas essas questões, dependemos também de materiais educativos que facilitem nossa tarefa. Por isso celebramos o novo vídeo, focalizado neste artigo: “VulnerabilidAIDS, vulnerADOLESCENTE” . Produto de um projeto mais amplo do Dr. José Ricardo Ayres, que tem representado e sofisticado a novidade da abordagem inaugurada internacionalmente pela Global Coalition em 1993- iniciativa da qual muitos brasileiros participaram3 , embora até hoje o dia a dia do trabalho preventivo no Brasil não tenha incorporado suas idéias principais4 . O surpreendente no caso desse vídeo argumento de José Ricardo Ayres, Ivan França Júnior e Gabriela Calazans- é que pode ser usado para novas reflexões e aumento da qualidade do trabalho de profissionais e ativistas que já estão em campo e, também, para jovens multiplicadores ou simplesmente por quem pela primeira vez participa de um programa de prevenção. O vídeo usa uma linguagem fácil e cativante para o público jovem e, também, para nós que somos um pouco menos jovens, sem tratar a audiência com o excesso de informações que têm sido passadas pela mídia (finalmente!) desde que a epidemia passou a sua segunda década. Também respeita a inteligência, sem cair numa linguagem simplificada demais. Dura cerca de 20 minutos, foi dirigido por Joel Zito Araújo, com roteiro dele e de Adriana Maricato de Souza e efeitos de computação gráfica bem eficazes de Silvia Laurentis. Usando uma linguagem e até um apresentador “MTV” (Edgar Piccoli) os autores trabalham informações sofisticadas

como a definição do conceito de vulnerabilidade (social, programática e individual), fazendo uma comparação feliz entre a menor vulnerabilidade dos canadenses e uma maior vulnerabilidade dos brasileiros atribuída ao diferente contexto social em que vivem. Edgar Piccoli vai explicando enquanto jovens da periferia de São Paulo contam o que JÁ SABEM sobre AIDS , ou dançam num baile “rap” em São Paulo. Com alegria, podemos apreciar a valorização da presença de jovens negros e não-brancos, ausentes na maioria dos vídeos do início da epidemia e, ainda hoje, na maioria das peças publicitárias produzidas pela indústria de propaganda que ainda é contratada nas campanhas oficiais. São os jovens mesmo que repassam as informações básicas em vários depoimentos que povoam o texto mais “explicativo” falado por Edgard: como o vírus se transmite, quais as situações e aspectos da cultura jovem que tornam o uso da camisinha quaseindesejável; falam sobre a pressão machista, sobre o contexto social em que vivem, das diversas fontes de stress e de riscos que competem pela sua atenção e energia, deixando a necessidade de se prevenir do HIV para segundo plano. Falam principalmente da violência, da falta de um futuro melhor previsível, da necessidade de afirmação de gênero. Reproduzem e exemplificam na sua linguagem o que a literatura e a pesquisa psicossocial no campo da AIDS já identificaram há mais tempo: o gênero, a classe social, o nível de cidadania, o poder individual e o nível de respeito pelos diretos individuais e coletivos, o tipo de casa e o emprego, a raça/etnia e a qualidade de serviços públicos de saúde e educação que

3 Entre os brasileiros, um importante fundador da Global Coalition foi Herbert Daniel, a quem o livro “AIDS in the World” é dedicado. H. Daniel foi também fundador e inspirador do Grupo Pela Vida. Nesse primeiro volume, o conceito de vulnerabilidade aparece de forma mais estruturada sendo aplicado à AIDS. A tradução em português foi publicada pela ABIA/ Relume Dumara de forma reduzida: MANN, J., TARANTOLA, D. AIDS no mundo, Rio: Relume-Dumará,1994, da coleção "História Social da AIDS no Brasil", com vários volumes nessa mesma perspectiva. Agora foi lançado TARANTOLA, D., MANN, J. AIDS in the World II, New York: Oxford University Press, 1996. 4 AYRES, J. R. Vulnerabilidade e AIDS: para uma resposta social à epidemia. Boletim epidemiológico/DST- AIDS, São Paulo, v.15, n.3, p. 2-4, 1997.

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marcam a vida de um indivíduo e de sua comunidade, são as variáveis essenciais para entender as respostas mais ou menos eficazes que vários grupos constróem à ameaça da AIDS. Eles mesmos nos mostram que, como dizem os velhos vídeos de AIDS, embora TEORICAMENTE todos nós sejamos vulneráveis ao vírus, independente de classe, raça, preferência sexual etc e tal… são os pretos, os pobres, as mulheres (melhor dizendo, os passivos e sem poder de comunicação ou negociação sexual em geral), os que não têm acesso à camisinha ou serviços de saúde, ou simplesmente a um lugar decente e privado para transar, que, DE FATO, ficam muito mais vulneráveis. Os dados epidemiológicos dessa tragédia que assombra o globo mostram que, na verdade, “todo mundo pode pegar AIDS”; mas a epidemia cresce menos pelas possibilidades biológicas do vírus, que aproveita da fragilidade dos tecidos do corpo humano, e mais pelos buracos feitos no tecido social e na cidadania dos povos. Como vários estudos em São Paulo com jovens carentes têm mostrado5 , precisamos muito mais do que a informação bombardeada sem sensibilidade cultural ou de classe, ou a “força de vontade” individual para evitar os chamados comportamentos de risco. (Isso porque já estou considerando pré-histórica a abordagem burra baseada no medo acusatório ou no preconceito enganador que fala de “promiscuidade”). Em geral, os programas baseados apenas na responsabilidade individual ou na “vontade de mudar o comportamento” só sobrecarregam de culpa e fatalismo uma pessoa cuja vulnerabilidade não é superada pela pessoa apenas. Só estimula mais uma

vez, entre os mais vulneráveis, a idéia de que o cuidado e a prevenção são “coisa de branco e riquinho”, como já ouvi. Mais uma coisa impossível de consumir: como aquele tênis ou sanduíche, a calça e o dinheiro de plástico que chega em qualquer lugar, compra qualquer coisa. Torna culpada a vítima mais uma vez, sem estimular nenhum exercício de cidadania. É especialmente louvável, portanto, o final do vídeo, que coloca a AIDS como um desafio coletivo, conclama à ação coletiva, incentiva o compartilhar, a disseminarmos o que cada um sabe. Assim combatemos o fatalismo profundamente enraizado em grupos mais vulneráveis e desacostumados a serem sujeitos de sua vida, porque não sabem bem o que é ser um agente com direitos e deveres, ainda não construíram sua cidadania integral. E valoriza a contribuição que todos podem dar para conter essa epidemia. Esse vídeo também discute e dá mais um passo para o enterro das campanhas educativas do início da epidemia que foram tão danosas ao criar a falsa idéia de “grupo de risco”, colocando a opção privada de cada um dos ali chamados “aidéticos” sob suspeita, criando irresponsavelmente a ilusão de imunidade para milhares de pessoas que vieram a se contaminar porque não se consideravam um grupo de risco6 . Ele nos lembra que não é bem “se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”, como na velha campanha. Melhor seria dizer “a gente pega ou não AIDS e se defende coletivamente e solidariamente”. Os autores pretendem também produzir uma cartilha que acompanha o vídeo, certamente um recurso valioso para quem é

5 Ver, por exemplo: a) ANTUNES, MC, STALL, R. , PAIVA V., PEREZ, C, PAUL J., HUGHES, M. HEARST, N, Avaliação de um programa de prevenção de AIDS para jovens adultos. In: MEL, F. (org) Avaliação de Programas de Prevenção, FHI/USAID, São Paulo: VOZES. (no prelo). b) PAIVA, V. Genero, educação e o sujeito sexual. In: BARBOSA, R. (ed) Brazilian Sexualities, Rio: Relume- Dumara,1996. c) Sobre essa discussão ver * Vera Paiva “Gendered scripts and the sexual scene: promoting sexual subjects among Brazilian teenagers”. . In: PARKER, R. (org) Re-concieving sexuality. (no prelo) 6 Ver, por exemplo, a) DANIEL, H., PARKER, R. Aids - a terceira Epidemia. São Paulo: Iglu, 1991. b) PAIVA, V., ALONSO, L. Em tempos de AIDS:viva a vida!. In: PAIVA,V. e ALONSO L., Em tempos de AIDS, São Paulo: Summus Editorial, 1992.

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multiplicador, sistematizando de novo informações mais “clássicas” que o vídeo não contém. O material de apoio deve conter mais informações detalhadas de formas de transmissão e, em especial, sobre as práticas seguras, como pôr e tirar a camisinha (e prazo de validade, diferentes qualidades etc) e sobre outras questões relevantes (reprodução e contracepção) já identificadas em outros projetos como aspectos necessariamente presentes nas decisões sobre sexo. Se os autores não pensaram nisso, fica a primeira sugestão. O vídeo traz ainda um segredo desconhecido - acho que até de seus autores descoberta no meu laboratório doméstico: um indicador potente para medir a eficácia da aprendizagem resultante do tape. Confira se o jovem que o assiste e discute é capaz de repetir 3 vezes!, e alto!, e sem errar! a palavra símbolo:

Quem consegue, já repetiu tantas vezes a palavra vulnerabilidade que DEVE ter conversado muito a respeito! Ou então testamos isso em nosso laboratório familiar também - esse mesmo exercício pode ser feito antes de passar o vídeo, para despertar o interesse pela palavra vulnerabilidade referência teórica que espero seja definitivamente incorporada no nosso dia a dia tratando de promover a saúde.

VulnerabilidAIDS VulnerADOLESCENTES VulnerabilidAIDS VulnerADOLESCENTES VulnerabilidAIDS VulnerADOLESCENTES

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Vera Paiva Instituto de Psicologia da USP, membro da coordenação do Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS


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Fragmentos...

PELA MÃO DE ALICE O social e o político na pós-modernidade Boaventura de Souza Santos São Paulo: Cortez, 4. ed, 1997, 348p. DESAFIO em condições de aceleração da história como as que hoje vivemos é possível pôr a realidade no seu lugar sem correr o risco de criar conceitos e teorias fora de lugar? (p.22) EXCESSOS E DÉFICITS O excesso reside no próprio objetivo de vincular o pilar da regulação ao pilar da emancipação e de os vincular a ambos à concretização de objetivos práticos de TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA racionalização global da vida coletiva e da vida ... por de baixo de um brilho individual.(...) aparente, a ciência moderna, que o Por outro lado, cada um destes pilares assenta em projeto da modernidade considerou lógicas ou princípios cada um deles dotado de uma ser a solução privilegiada para a aspiração de autonomia e diferenciação funcional que, progressiva e global racionalização por outra via, acaba também por gerar uma vocação da vida social e individual, tem-se maximalista, ... Mas a dimensão mais profunda do vindo a converter, ela própria num déficit parece residir precisamente na possibilidade problema sem solução, gerador de destes princípios e lógicas virem humildemente recorrentes irracionalidades. Penso dissolver-se num projeto global de racionalização da hoje que essa transição vida social prática e quotidiana. (P.78) paradigmática, longe de se confinar ao domínio epistemológico, ocorre no plano societal global. (p.34)

PILARES DA MODERNIDADE O projeto sócio-cultural da modernidade ... assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. Pela sua complexidade interna, pela riqueza e diversidade das idéias novas que comporta e pela maneira como procura a articulação entre elas, o projeto da modernidade é um projeto ambicioso e revolucionário. As suas possibilidades são infinitas mas, por o serem, contemplam tanto o excesso de promessas como o déficit do seu cumprimento. (p.78)

IRRACIONALIDADES A acumulação das irracionalidades no perigo iminente de catástrofe ecológica, na miséria e na fome a que é sujeita uma grande parte da população mundial — quando há recursos disponíveis para lhes proporcionar uma vida decente ... — todas estas e muitas outras irracionalidades se acumulam ao mesmo tempo que se aprofunda a crise das soluções que a modernidade propôs... (p.43)

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MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE Afirmar que o projeto da modernidade se esgotou significa, antes de mais, que se cumpriu em excessos e déficits irreparáveis. São eles que constituem a nossa contemporaneidade e é deles que temos que partir para imaginar o futuro e criar as necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e melhor que o presente. A relação entre o moderno e o pós-moderno é uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de ruptura e momentos de continuidade. (p.102-3)

CONSCIÊNCIA POLÍTICA A democracia representativa constituiu até agora o máximo de consciência política possível do capitalismo. Este máximo não é uma qualidade fixa é uma relação social. A renovação da teoria democrática assenta, antes de mais nada, na formulação de critérios democráticos de participação política que não confinem esta ao ato de votar. Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa. A nova teoria democrática deverá proceder à repolitização global da prática social ... (p.270)

NECESSIDADES RADICAIS A formulação das necessidades radicais não é suficiente para distinguir uma teoria crítica moderna de uma teoria crítica pós-moderna. ... tanto Habermas como Heller perfilham a primeira e desdenham a segunda. O que distingue a teoria crítica pós-moderna é que para ela as necessidades radicais não são dedutíveis de um mero exercício filosófico por mais radical que seja; emergem antes da imaginação social e estética de que são capazes as práticas emancipatórias concretas. (p.106) EMANCIPAÇÃO com todas as limitações e fracassos..., os movimentos sociais dos anos sessenta tentaram pela primeira vez combater os excessos de regulação da modernidade através de uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação. (p.276)

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POLITIZAÇÃO Politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada ... distingo quatro espaços políticos estruturais: o espaço da cidadania, ou seja, o espaço político segundo a teoria liberal; o espaço doméstico; o espaço da produção; e o espaço mundial. (p. 270-1)

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UTOPIA Para quem, como eu, pense que estamos a entrar num período de transição paradigmática, a utopia é mais necessária do que nunca. O colapso dos regimes totalitários do Leste Europeu teve, entre muitas outras, duas conseqüências... Por um lado, fez com que perdesse sentido a distinção entre industrialismo e capitalismo... O sistema mundial é um sistema industrial capitalista transnacional que integra tanto setores pré-industriais, como setores pós-industriais. Por outro lado, a idéia de socialismo libertada da caricatura grotesca do “socialismo real” está disponível para voltar a ser o que sempre foi: a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor... (p. 276-7) UTOPIA E SOCIALISMO Um dos maiores méritos de Marx foi o de tentar articular uma análise exigente da sociedade capitalista com a construção de uma vontade política radical de a transformar e superar numa sociedade mais livre, mais igual, mais justa e afinal mais humana. SOCIALISMO E EMANCIPAÇÃO Marx ensinou-nos a ler o real Dada a acumulação de riscos segundo uma hermenêutica de inconcializáveis e inseguráveis, suspeição e ensinou-nos a ler da catástrofe nuclear à os sinais de futuro segundo catástrofe ecológica, a uma hermenêutica de adesão. O transformação emancipatória primeiro ensinamento continua será cada vez mais investida de hoje a ser precioso, o segundo negatividade. Sabemos melhor tornou-se perigoso. (p.43) o que não queremos do que o que queremos. Nestas condições, a emancipação não ESTRUTURA E ABERTURA é mais que um conjunto de Se é verdade que o marxismo procura um lutas processuais, sem fim equilíbrio estável entre estrutura e ação, definido. ... O socialismo é a penso que hoje, sendo incorreto abandonar democracia sem fim. (p.277) completamente a idéia de estrutura, é necessário pluralizar as estruturas a fim de desenvolver teorias que privilegiem a abertura dos horizontes de possibilidades e a criatividade da ação. (p.39)

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ÉTICA ...a modernidade confinou-nos numa ética individualista, uma micro-ética que nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais... Mas também aqui há sinais de futuro. (...) Curiosamente, estes sinais de uma FORMAÇÃO nova ética e de um novo direito estão Verifica-se um certo regresso ao relacionados com algumas das generalismo, ainda que agora concebido, não transformações ao nível do princípio do como saber universalista e desinteressado mercado e do princípio da comunidade. próprio das elites, mas antes como formação Por um lado, a explosão da realidade não profissional para um desempenho mediática e informacional torna possível pluriprofissionalizado. (p.198) uma competência democrática mais alargada. Por outro lado, a retração simbólica da produção face UNIVERSIDADE MODERNA PERFORMANCE ao consumo pode vir a A busca desinteressada da verdade, a CIENTÍFICA reduzir-se na redução da escolha autônoma de métodos e temas de ... apesar de apenas jornada de trabalho, ... e de investigação, a paixão pelo avanço da uma fração dos tal redução pode resultar ciência constituem a marca ideológica da docentes de uma uma maior disponibilidade universidade moderna. (p.199) fração das para atividades socialmente universidades úteis e para o exercício da fazer efetivamente solidariedade. (p.91-2) investigação e contribuir para o AVALIAÇÃO DA UNIVERSIDADE avanço do À medida que a universidade perde centralidade torna-se mais conhecimento, a fácil justificar e até impor a avaliação do seu desempenho. (...) verdade é que o São reconhecidas as múltiplas dificuldades da avaliação do universo simbólico desempenho funcional da universidade. Podem agrupar-se em da vida universitária três grandes problemáticas: a definição do produto universitário, continua povoado os critérios da avaliação e a titularidade da avaliação (p.216) pela prioridade da O recurso à operacionalização quantitativa leva investigação e a inconscientemente a privilegiar na avaliação os objetivos ou definição do produtos mais facilmente quantificáveis. Por exemplo, por essa prestígio, tanto razão, pode fazer-se incidir a avaliação na produção de institucional, quanto conhecimentos científicos (medida pelo número de publicações) pessoal, continua em detrimento da formação do caráter dos estudantes. (p.217) vinculada à realidade ou à ficção verossímil da performance científica. (p.201-2) Maria Lúcia Toralles-Pereira

A CRISE DA UNIVERSIDADE Duplamente desafiada, pela sociedade e pelo Estado, a universidade não parece preparada para defrontar os desafios, tanto mais que estes apontam para transformações profundas e não para simples reformas parcelares. (p.187)

Miriam Celí Pimentel Porto Foresti Departamento de Educação Instituto de Biociências, Unesp, Botucatu

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TESES CONHECIMENTO, EXPERIÊNCIA E FORMAÇÃO: do médico ao professor de Medicina

Esta tese originou-se da observação crítica da disciplina Formação Didático-Pedagógica em Saúde, obrigatória nos cursos de pósgraduação stricto sensu, da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. Analisou a função docente em Medicina durante e após o desenvolvimento da Disciplina aos pós-graduandos. Por meio de múltiplas abordagens metodológicas entrevistas semi-estruturadas, observação participante, pesquisa de conceitos dos pósgraduandos no início e final da disciplina, questionário de avaliação e análise documental - a Disciplina foi ministrada, observada e pesquisada 11 vezes, para grupos de 30 alunos, totalizando 322 pósgraduandos. Constou também da análise de 56 cursos planejados pelos alunos durante as aulas. A reconstrução histórica dos 189 anos de Ensino Médico no Brasil, suas tendências curriculares, suas propostas de integração universidade-serviços-comunidade, o processo de avaliação e a relação com o exercício docente na graduação, foram os eixos que conduziram a Disciplina, bem como esta pesquisa. As mais importantes modificações observadas nos pós-graduandos foram: ampliação do conceito de função docente em Medicina, de uma posição tecnicista para uma visão mais ética, humanística e de relacionamento professor-aluno; estabelecimento de uma série de atributos para o professor de medicina como subsídio para mudança de práticas; opção por abordagens interativas, pelo uso de múltiplos meios, em substituição

às aulas expositivas tradicionais, e aquisição da habilidade de planejar um curso na área da saúde, bem como a percepção da utilidade desse planejamento para obtenção de melhores resultados em sala de aula. Contribuindo para a reflexão sobre aspectos didático-pedagógicos, éticos e humanísticos da função docente em Medicina, o trabalho apresenta alternativa para o desenvolvimento das disciplinas Pedagogia Médica e Didática Especial, obrigatórias nos cursos de Mestrado e Doutorado na área médica. Os estudos e investigações desenvolvidos no âmbito da formação do professor de Medicina, aliados à experiência do autor como professor e formador de docentes, possibilitaram a elaboração de um quadro de atributos/competências que poderiam contribuir para a compreensão da função docente no curso médico, material para a reflexão e mudança de práticas. O bom professor, longe de ser uma abstração, é uma construção contínua de todo o fazer docente comprometido com uma formação profissional que extrapole a mera aprendizagem de procedimentos e técnicas. Ele pensa, organiza e delineia uma intervenção pedagógica atenta à complexa rede de dimensões que permeia sua função social.

Nildo Alves Batista Livre Docência em Educação Médica, 1997 Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina

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PSICOLOGIA E TECNOLOGIA: contribuições críticas de T.W. Adorno à Psicologia

O trabalho procura refletir criticamente sobre a Psicologia a partir dos conceitos de Ideologia e Tecnologia na obra de T. W. Adorno. A análise desses conceitos, desde sua gênese histórica até seus desdobramentos na filosofia iluminista e na sociedade plenamente industrializada, leva a algumas reflexões: sobre o indivíduo; sobre as ligações existentes entre a dinâmica de sua personalidade e sua adesão a pautas ideológicas e sobre a utilização do desenvolvimento tecnológico como meio de disseminação da ideologia e de manutenção da ordem social. Conclui-se que a Psicologia não escapa ao movimento de desenvolvimento do esclarecimento, ou seja, converte-se, em algumas de suas técnicas e teorias, em meio de disseminação da ideologia. A tecnologia criada pela Psicologia, assim como toda tecnologia, não é neutra com relação à ideologia, e somente uma reflexão crítica sobre essa realidade pode criar condições para sua superação.

Ari Fernando Maia Tese de Mestrado, 1996. Psicologia Social Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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AS CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES E A PROPOSTA CURRICULAR PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS E PROGRAMAS DE SAÚDE: possibilidades de inovação

Tomando as concepções dos professores como objeto central de investigação, desenvolveu-se um trabalho que procurou, de um lado, identificar elementos que contribuem para a permanência do descompasso entre o nível das proposições teóricas inovadoras e o nível da prática pedagógica do professor e, de outro, delimitar possíveis dimensões a serem consideradas quando se pensa na superação de tal descompasso. A proposta fundamentou-se nas prerrogativas expostas por duas linhas de pesquisa, estreitamente relacionadas, que passaram a influenciar significativamente as investigações no campo do ensino das ciências, a partir da década de 70: as Concepções Alternativas ou Espontâneas e a Mudança Conceitual. No primeiro caso, considera-se como precursores os estudos desenvolvidos por Driver, nos quais a autora passou a se preocupar de forma sistemática com os


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“erros”, ou respostas “erradas”, dos alunos, quando esses eram confrontados com questões relacionadas ao conhecimento científico. Em termos da Mudança Conceitual, tem-se como precursor o artigo de Posner, Strike, Hewson e Gertzog (1982); “Accomodation of a scientific concepcion: toward a conceptual change”, no qual os autores procuraram delimitar etapas básicas a serem percorridas pelo indivíduo durante o processo de mudança de um conceito de senso comum para um conceito científico. A opção de se discutir as possibilidades de incorporação das inovações educacionais a partir da Proposta Curricular de Ciências deveu-se, principalmente, ao objetivo básico desse documento, ou seja, transformação da prática pedagógica dos professores em exercício. Além disso, interessava verificar o envolvimento direto dos sujeitos da pesquisa com o mesmo, por ocasião da coleta dos dados. A investigação desenvolveu-se com base em dois procedimentos básicos de coleta de dados: a observação das Reuniões de Orientação Técnica de Ciências, promovidas pela Oficina Pedagógica da Delegacia de Ensino de Botucatu - SP, e a realização de entrevistas não-diretivas (Michelat, 1982), com uma parcela das professoras participantes e a Assistente Pedagógica de Ciências, que coordenava tais encontros. Os dados obtidos foram organizados e analisados segundo as três etapas descritas por Bardin (1988) para a análise de conteúdo, ou seja, pré-análise, descrição analítica e interpretação inferencial. Sem perder de vista o caráter sócio-histórico da instituição escolar e, conseqüentemente, da influência direta do mesmo sobre o processo ensino-aprendizagem e sobre a implementação de propostas curriculares, pode-se inferir que três dimensões são relevantes e devem ser consideradas, quando se pensa nas possibilidades de incorporação de inovações na prática pedagógica dos professores, quais sejam: a) concepções de ensino e de inovação: pôde-

se detectar, clara e amplamente, que um problema a ser equacionado refere-se à existência de uma defasagem, ou conflito entre as concepções de ensino e de inovação, daqueles que propõem a inovação, e daqueles que irão implementá-la na sua prática pedagógica; b) referência à pratica real: a compreensão, a credibilidade e a possibilidade de aceitação da inovação relacionam-se estreitamente com a existência de um diálogo efetivo da mesma com as experiências pedagógicas cotidianas dos professores; c) conhecimento disciplinar: ao se pensar na possibilidade de mudança da prática pedagógica do professor, deve-se atentar para a compreensão dos conteúdos ou conhecimentos específicos da área em questão, que o mesmo apresenta. Buscar possíveis dimensões a serem pensadas, quando se considera um processo governamental de introdução de inovações na prática pedagógica do professor, tem sua importância realçada, nesse momento, em que se verificam os processos de implementação e de discussão dos Parâmetros Curriculares Nacionais, promovidos pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC). Renato Eugênio da Silva Diniz Tese de Doutorado, 1998 Faculdade de Educação Universidade de São Paulo

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TESES

Carlos Fajardo*, 1989

*Carlos Fajardo é artista plástico, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, USP.

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ENFOQUES EN EDUCACIÓN MEDICA: integración con los servicios de Salud y sitios de practica

La integración de la docencia con los Servicios de Salud, así como una sólida relación Docente-Asistencial son parte integral de la historia de la salud y de la enseñanza de las carreras de esta área en Chile. Esta integración, se vio facilitada por la creación de un gran Servicio Nacional de Salud en Chile en los años 50 y formalizada en 1974 con la creación de la Comisión Nacional Docente Asistencial (CONDAS), que tiene como función “la coordinación de las actividades que se deban realizar conjuntamente para el desarrollo de programas docente-asistenciales en el área de la Salud”. Tiene como integrantes al Ministro de Salud, los Decanos de las seis Facultades de Medicina y al Presidente del Colegio Médico (Asociación Gremial). Esta instancia de confluencia del sector formador de recursos profesionales, el sector prestador de servicios y del gremial le ha otorgado a esta relación un marco de juridicidad y de respaldo a muchas acciones desarrolladas a partir de dichos principios. En su interior se ha discutido el tipo de médico que el país requiere, la enseñanza de los estudiantes en los recintos de los Servicios de Salud, la generación de masas críticas de grupos médicos en lugares apartados de Santiago, el aprovechamiento mutuo de los recursos humanos y materiales y la definición de una política de formación y distribución de especialistas en el país. Es obvio que esta relación no ha estado exenta de dificultades dado a que en última instancia las acciones son producto de las

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características y la visión de las personas que son responsables de llevarlas a cabo. Aún más, existen hoy en día cada vez más desafíos producto del cambio de las características del país: política económica acentuadamente liberal, retiro progresivo del estado de muchas acciones que antes estaban en sus manos, creación de Facultades de Medicina privadas con misiones diferentes a las tradicionales, entrega de la Salud Primaria a los municipios, privatización progresiva de la Medicina etc. Pero aún así, existe en Chile un concepto y una formalidad en la relación Docente Asistencial que ha sido y es lo que sustenta las acciones asistenciales y docentes en cualquier lugar del país. Temuco, lugar en que se sitúa la Universidad de la Frontera, se encuentra situado a 700 Km al sur de Santiago. Es una ciudad relativamente pequeña (250.000 habitantes) en una región eminentemente agrícola en la cual se concentra el mayor grupo étnico autóctono chileno (la raza mapuche). Cuenta con una Facultad de Medicina con siete carreras o escuelas en su interior (Medicina, Enfermería, Obstetricia, Nutrición, Kinesiología, Tecnología Médica y Odontología), con más de mil alumnos, lo que la hace junto a la Universidad de Chile en Santiago, la de mayor cobertura de carreras de la salud en nuestro país. Esta Facultad ha basado su existencia y toda su estrategia de desarrollo en un trabajo de integración con los Servicios de Salud. La relación formal con las autoridades de salud se realiza a través de la Comisión Regional

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Docente Asistencial (CORDAS) integrada por el representante del Ministro de Salud (Secretario Regional Ministerial de Salud), el Director Regional de Salud (del cual dependen los hospitales públicos), el Director de Salud Municipal (del cual dependen los Consultorios de Atención Primaria) y el Presidente Regional del Colegio Médico. La oportunidad de ingresar al Proyecto UNIKellogg significó un espaldarazo mayor a la integración docente asistencial e involucró a mediano plazo ampliar nuestra integración y sitios de práctica clínica e introdujo a un nuevo actor en esta relación, la comunidad. En 1991, en un diagnóstico realizado en conjunto por la Facultad de Medicina, el Servicio Regional de Salud, el Servicio Municipal de Salud de Temuco y la Comunidad se observió que aún cuando se contaba con un excelente establecimiento de atención terciaria, las condiciones de los Consultorios de Atención Primaria en cuanto a su ambiente físico, su capacidad resolutiva y sus equipos profesionales eran deficientes. Igualmente no existía un nivel de atención intermedio, lo que hacía que en última instancia la mayor parte de la patología terminase derivada al Hospital. Estas condiciones desincentivaban a los profesionales (especialmente médicos) a optar por la Medicina General como un proyecto de vida. Por outro lado, la docencia de las Carreras de la Salud (especialmente en el caso de Medicina) se realizaba en forma casi Carlos Fajardo

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exclusiva en el Hospital Regional con pacientes portadores de patologías complejas, con una orientación fundamentalmente reparadora y con poco trabajo en equipo multiprofesional. Los Consultorios aparecían como lugares poco atractivos para la docencia y sin modelos profesionales que motivaran a académicos y estudiantes a efectuar un porcentaje importante de la docencia en dicho nivel. Y la comunidad jugaba un rol absolutamente pasivo en cuanto a sus problemas de salud, interactuando sólo en forma esporádica y fundamentalmente a través de monitores de salud alrededor de algunos Consultorios Frente a lo exposto, y en forma conjunta, las tres instancias señaladas establecieron lo sus objetivos, dibujando un plan de acción. El substrato fundamental para llevar este plan adelante se basó en la convergencia de diferentes factores que permiten y favorecen estas acciones. La relación docente-asistencial en la ciudad de Temuco ha sido excelente. Incluso la creación de la Carrera de Medicina se basó fundamentalmente sobre el Servicio de Salud de Temuco en los años 70. Por otro lado, esta Facultad tiene una historia breve y está inserta en una ciudad relativamente pequeña, favoreciendo la interacción de sus diferentes actores. El objetivo académico es la formación de profesionales generales y la existencia de siete carreras de la salud en una estructura de Departamentos Multiprofesionales, favorece el trabajo en equipo; igualmente el número reducido de alumnos en cada carrera ha facilitado los cambios. Algunas iniciativas favorables de interacción de estos actores (Universidad, Servicios, Comunidad) habían existido en los Internados Rurales Interdisciplinarios, a cargo del Departamento de Salud Pública en los cuales alumnos de los últimos años de todas las Carreras de la Facultad interactuaban activamente con las comunidades en tres ciudades de la región. Sin embargo, en ese momento tres proyectos internacionales fueron cruciales para llevar a cabo lo propuesto: a. el proyecto UNI,


financiado por la Fundación Kellogg, cuyo objetivo básico es un cambio en el perfil de los egresados de las Carreras de la Salud, haciéndolas más acordes a las necesidades de las comunidades en las cuales se desempeñarán; b. el Proyecto UFROMcMaster, financiado por la Agencia Canadiense de Desarrollo (CIDA), cuyo objetivo es introducir cambios conceptuales y metodológicos en la enseñanza de las Carreras de la Salud; c. el Proyecto de Epidemiología Clínica, financiado por la Red Internacional de Epidemiología Clínica (INCLEN), cuyo objetivo es la formación de epidemiólogos clínicos con el objeto de desarrollar investigación relevante y metodológicamente sólida. Transcurridos tres años desde el comienzo de esta nueva iniciativa, la Facultad comienza a mostrar cambios. Es así como la operacionalización de sus objetivos ha significado la construcción de espacios físicos en los cinco consultorios municipales de la ciudad así como de un piso completo en el Consultorio Miraflores, perteneciente al Servicio de Salud de la Araucanía, el cual se ha establecido como el nivel de atención intermedia en esta red de salud. Se ha mejorado su capacidad diagnóstica con la incorporación de electrocardiografía, ecografía, laboratorio clínico y hematológico. Nuevos recursos audiovisuales han facilitado las actividades de promoción de salud y la labor educativa. También se ha incorporado mayor cobertura así como mayor complejidad de rehabilitación en el nivel ambulatorio. Dada la enorme trascendencia de la formación del recurso humano, en el año 1993 se inició una Residencia en Medicina General Familiar dirigida fundamentalmente a los médicos que se desempeñan en los cinco consultorios de atención primaria en la ciudad de Temuco. El objetivo del programa es entrenar a estos profesionales en aquellos aspectos propios de este tipo de actividad, creando a la brevedad una masa crítica de ellos en la ciudad y formando cuadros académicos que actúen como modelos para

nuestros estudiantes. El personal de los consultorios de atención primaria ha recibido adiestramiento en diferentes áreas como técnicas diagnósticas, gestión en salud y metodología docente. La incorporación de nuevos sitios de prácticas que permitan cumplir en una forma más eficiente la formación de nuestros recursos sólo es posible con la voluntad de los profesionales laborando en dichos lugares. En relación a la actividad docente, la infraestructura docente - asistencial creada en los niveles primario y secundario ha permitido aumentar la práctica estudiantil extrahospitalaria, intentando dar un enfrentamiento clínico epidemiológico y entregando a los estudiantes habilidades en la resolución de problemas con actividades integradas entre diferentes carreras. Asimismo, nuestra intención es entregar progresivamente más habilidades en administración. A los profesionales de los consultorios se les ha ofrecido el reconocimiento académico correspondiente y algunos de ellos han sido favorecidos con un nuevo programa de formación de docentes con el apoyo de la Universidad de Dundee de Escocia. En cuanto a las comunicaciones, una gran red permite hoy en día la interconección vía correo electrónico de todos los consultorios, la Biblioteca de la Salud en el Hospital Regional, la Facultad de Medicina y los Centros de Docencia Rural. La incorporación de la Universidad de la Frontera a la Red Universitaria Nacional ha permitido a todos estos centros su salida a Chile y el mundo, via Internet. La ruta trazada nos ha permitido ir conectando progresivamente nuevos

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programas que son coherentes con los principios anteriores. En 1994 se comenzó un magister en Epidemiología Clínica con docentes de la Universidad y del Servicio de Salud Regional, dirigido a profesionales chilenos y extranjetros bajo el auspicio de INCLEN. También se inició un programa de Diplomado en Gestión Local de Salud, destinado a equipos multiprofesionales de salud de la IX Región, cuyo objetivo fundamental es el efectuar un diagnóstico local de salud y desarrollar la estrategia para enfrentarlo. Con respecto a la comunidad, se ha hecho grandes esfuerzos en cuanto a favorecer una organización participativa en comités locales fomentando su colaboración en el proceso de gestión. Ello se ha intentado a través de los comités locales, del Sistema Municipal de Temuco y favoreciendo el desarrollo de liderazgo entre sus dirigentes. Este aspecto ha sido probablemente uno de los más difíciles de desarrollar, entre otras razones, por la escasa tradición existente en nuestro país. Sin embargo, tenemos la certeza de que la salud en Chile no tendrá solución en cuanto al grado de satisfacción percibido por la población, mientras la comunidad no participe activamente en su gestión y de ese modo comprenda las limitaciones existentes en un país como el nuestro. Todo lo anterior no significa entrar en contradicciones con lo que lugares académicos tradicionales seguirán aportando a la enseñanza. Los laboratorios de Ciencias Básicas y Preclínicas, el Hospital Clínico con sus más de veinticinco años de docencia y su excelente grupo de profesionales, las residencias en las especialidades tradicionales así como subespecialidades. Por el contrario, creemos que es esta justa proporción de ambos ambientes lo que dará fortaleza y marcará la nueva proyección académica de nuestra Facultad. Creemos que en un país como Chile, una sólida relación docente asistencial es fundamental por diversas razones: los aportes de los Servicios Públicos son insuficientes tanto en Educación como en

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Salud; las instituciones de salud y las universitarias cuentan con recursos humanos y materiales que son útiles para unos y otros; aún cuando los roles fundamentales de unos y otros son diferentes, pueden complementarse en forma eficiente; cada institución o grupo de profesionales se beneficiará de la colaboración mutua. Es nuestra opinión que la integración con los Servicios de Salud y sitios de práctica crea, a lo menos en Chile, un ambiente mucho más propicio y realista para la enseñanza de la Medicina. El Hospital perteneciente a una Universidad, aún representando el lugar teóricamente más lógico para la docencia, involucra problemas significativos: sus altos costos de funcionamiento frecuentemente lo hacen privilegiar necesariamente la incorporación de pacientes privados con las consabidas dificultades que ello involucra en los estudios de pregrado; la ausencia de una población asignada puede inducir al alejamiento de los docentes de las labores asistenciales con una marcada teorización y tecnocratización y un quehacer restringido a sus propios intereses; su ambiente en general no reproduce las condiciones de trabajo del futuro profesional. Nuestra concepción es la de un Sistema de Salud Docente - Asistencial que involucra a la ciudad de Temuco y los centros de adiestramiento rural. Un ambiente en el cual los profesionales “practican lo que enseñan y enseñan lo que practican”. Creemos que “Una buena educación médica requiere una eficiente complementación con el sistema de salud. Un médico contemporáneo no puede ser sólo entrenado en hospitales universitarios. Sin esta complementación, el programa educacional tendrá escasa relevancia en relación a la realidad de la práctica profesional y no entregará un entrenamiento apropiado para satisfacer las necesidades de la población”. (Conferencia de Educación Médica de Edimburgo de 1993) Benjamín Stockins Director Proyecto UNI, Temuco, Chile Facultad de Medicina, Universidad de la Frontera.


ESPAÇO ABERTO FORMAÇÃO PROFISSIONAL: reflexões sobre interdisciplinaridade*

Maria Lúcia Toralles-Pereira Miriam Celí Pimentel Porto Foresti1

Num contexto marcado por transformações rápidas e profundas, em que o conhecimento sofre mutações e correções permanentes, o problema da formação profissional torna-se quase impensável fora da interdisciplinaridade enquanto princípio mediador entre diferentes disciplinas (Jantsch e Bianchetti, 1995). Certamente nem todos os objetos de estudo exigem tratamento interdisciplinar. Como observa Sobrinho (1995), o conhecimento específico e detalhado faz parte da lógica do desenvolvimento científico e técnicoeconômico. Contudo, “cada vez mais se impõe na sociedade contemporânea, inclusive no setor empresarial, a necessidade de que os conhecimentos especializados sejam inseridos em áreas mais amplas do saber, que ao rigor científico se some a crítica, ... a aceitação do contraditório, a compreensão da diversidade, ... a interdisciplinaridade” (p.27). A necessidade da interdisciplinaridade na produção e socialização do conhecimento no campo educativo é discutida por vários autores. Na análise de Frigotto (1995, p.26), ela se impõe pela própria forma de o

“homem produzir-se enquanto ser social e enquanto sujeito e objeto do conhecimento social”. Funda-se no caráter dialético da realidade social, pautado pelo princípio da contradição, pelo qual a realidade pode ser percebida, ao mesmo tempo, como una e diversa. Algo que nos impõe delimitar os objetos de estudo — demarcando seus campos — sem contudo fragmentá-los. Significa que, embora delimitando o problema a ser estudado, não podemos abandonar as múltiplas determinações e mediações históricas que o constituem — que insistem porque afirmam a trama da totalidade da qual fazem parte indissociável. Numa outra abordagem, Morin (1990) afirma a necessidade de tomar consciência da complexidade de toda a realidade — física, biológica, humana, social, política. De um lado, observa que as ciências humanas não percebem os caracteres físicos e biológicos dos fenômenos humanos e, de outro, que as ciências naturais não percebem sua inscrição numa cultura, numa sociedade, numa história. Essa distância existente entre as ciências assinala a necessidade da interdisciplinaridade e, como observa o autor, esse problema não se resolve dentro

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Reflexões desenvolvidas a partir de discussões em sala de aula da Universidade, na pós-graduação. Docentes do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista - UNESP, campus de Botucatu. E-mail: toralles@laser.com.br; foresti@laser.com.br. 1

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ESPAÇO ABERTO

de uma concepção simplista de adição ou acoplagem de conhecimentos. Para Machado (1995), a delimitação e a apreensão de um objeto de estudo no mundo moderno não pode prescindir da rede de relações significativas que o constituem — da teia que tece sua totalidade. Observa que essa multiplicidade de fios de interligações e interações presentes no processo de construção de conhecimentos ultrapassa o campo disciplinar, bem como o das ligações lógicas e lingüísticas. Inclui relações de natureza dedutiva, funcionais, causais, mas, também, relações analógicas e interações sincrônicas que não podem ser consideradas no âmbito da causalidade em sentido estrito. A metáfora do conhecimento como rede de relações, em Machado, não só ultrapassa o campo disciplinar, mas contrapõe-se à idéia de linearidade na construção do conhecimento, trazendo inúmeras implicações pedagógicas relativas a prérequisitos, planejamento, organização curricular, avaliação e processos de comunicação entre professor/aluno. A idéia de rede tem origem nas discussões de Lévy (1993), relacionadas aos processos interativos colocados pelas tecnologias comunicacionais neste final de século. O hipertexto, como imensa rede dos universos mentais, aparece como uma metáfora que pode contribuir para compreender as esferas da realidade em que significações estejam

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em jogo. Lévy reforça a idéia de que para conhecermos ou darmos sentido a um texto precisamos conectá-lo a outros textos, construindo, assim, um hipertexto — uma grande rede de relações significativas. Trabalhando com a relação mudanças sociais/ tecnologias/ modalidades de organização intelectual, propõe ferramentas àqueles que tentam tornar-se atores no mundo contemporâneo explorando “novas formas de verdade obscuramente arrastadas pela dinâmica da virtualização” (p.148). Traz para o centro do debate as questões postas pelas novas tecnologias neste final de século, discutindo os processos de virtualização e de comunicação em sua estrutura interativa que conecta textos, palavras, imagens, sons, cujos significados se remetem uns aos outros, dialogando mutuamente para além da linearidade do discurso. A percepção de que o conhecimento constitui, cada vez mais, uma trama de relações complexas, exigindo um trabalho interdisciplinar e novas formas de interação comunicativa, não nos permite pensar o conhecimento em termos de um amálgama de sentido. Nem nos permite pensar que a apreensão da complexidade do objeto ou do problema poderá acontecer por meio da simples somatória de sujeitos pensantes. A percepção da intertextualidade que constrói a totalidade de um objeto de conhecimento ou de um problema exige que se recupere a


ESPAÇO ABERTO

história — a constituição histórica do objeto ou do problema —, assumindo a tensão entre os sujeitos pensantes e as condições objetivas em que se efetiva o pensamento (Jantsch e Bianchetti, 1995). Na sala de aula são inúmeras as relações que intervêm no processo de construção e organização do conhecimento. As múltiplas relações entre PROFESSORES/ ALUNOS/ OBJETO DE ESTUDO constróem o contexto de trabalho, dentro do qual as relações de sentido são construídas. Por outro lado, a importância do trabalho interdisciplinar que possibilita o aprofundamento da compreensão da relação entre teoria e prática, contribuindo para uma formação mais crítica, criativa e responsável, colocanos diante de um grande desafio no plano ontológico e no plano epistemológico. Frigotto (1995) mostra que, no plano ontológico — plano material históricocultural —, o desafio que enfrentamos constitui antes um problema ético-político, econômico, cultural. As relações sociais na estruturação da sociedade moderna limitam e impedem o devir humano na medida em que a exclusão e a alienação fazem parte da lógica da sociedade capitalista. A superação dos limites que encontramos na produção do conhecimento e nos processos pedagógicos e de socialização exige que sejam rompidas as relações sociais que estão na base desses limites. No plano epistemológico — plano das relações sujeito/objeto mediadas pela

teoria científica que dá sustentação lógica a essa relação —, o autor diz que a interdisciplinaridade exige, acima de tudo, uma discussão de paradigma, situando o problema no plano teórico-metodológico. Precisamos perceber que a interdisciplinaridade não se efetiva se não transcendermos a visão fragmentada e o plano fenomênico, marcado pelo paradigma empirista e positivista. Também não se efetiva se cairmos no reducionismo estruturalista, em que as categorias analisadas assumem autonomia face ao real histórico, afirmando-se como verdadeiras camisas de força frente à trama complexa da realidade concreta. A polaridade, como afirma Bunge (1987, p.154) é própria “de uma etapa primitiva do pensamento”. A interdisciplinaridade exige o princípio da contradição dialética. É preciso que se incorpore uma racionalidade aberta que ultrapasse a lógica do isto ou aquilo, aceitando e percebendo a coexistência e as contradições dos múltiplos aspectos do objeto (Sobrinho, 1995) . A interdisciplinaridade é o princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites, mas, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade; (... ) "não poderá jamais ser elemento de redução a um denominador comum, mas elemento teórico-metodológico da diferença e da criatividade” (Etges, 1993, p.18).

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do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

Referências bibliográficas BUNGE, M. Epistemologia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. ETGES, N. J. Produção do conhecimento e interdisciplinaridade. Educação e Realidade, v. 18, n.2, p.73-82, 1993. FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. In: JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (orgs) Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. Interdisciplinaridade: para além da filosofia

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LÉVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. MACHADO, N. Epistemologia e Didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática docente. São Paulo: Cortez, 1996. MORIN, E. O problema epistemológico da complexidade. Portugal: EuropaAmérica, 1996. SOBRINHO, J. D. Universidade: processos de socialização e processos pedagógicos. In: BALZAN, N. C.; SOBRINHO, J.D. (orgs). Avaliação institucional: teoria e experiências. São Paulo: Cortez, 1995.




CR IAÇ ÃO

Olhares interiores ENSAIO FOTOGRÁFICO

Pierre Devin

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A paixão militante é bela, desde que não submetida a nenhuma palavra de ordem, e aureolada do espírito da liberdade, sempre que busca, por seu desejo de convencer, antes de mais nada, o desabrochar da liberdade de seus destinatários. Tal é o papel exemplar do Centro Regional da Fotografia Nord Pas-de-Calais. Seus responsáveis são movidos por uma devorante paixão por sua região; eles conhecem tão bem os contornos atmosféricos gerais de seus arredores, quanto partilham das vicissitudes de seu povo, confrontado à crise industrial que assolou as comunidades operárias. Uma igual paixão pela fotografia os conduziu a um largo gesto de liderança junto a numerosos atores. ‘Arquivos do Norte’ não é mais apenas o título de um livro célebre, é um gesto cotidiano para o Centro Regional da Fotografia. Que as criações em curso de grandes artistas contemporâneos neste domínio se apoiem, um tempo, sobre as perturbações de uma região para figurar a sua metamorfose. Que a fotografia não renuncie em nada a suas prerrogativas de inventar um ponto de vista, que uma região nela encontre razão de se compreender e de se transformar, são fatos que mereciam homenagem; o humanismo jamais a recebe em demasia. Bernard Lamarche-Vadel, outubro de 1991

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diretor do Centro Regional de Fotografia, Nord Pas-de-Calais, França.

* Versão em português do original francês.

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CRIAÇÃO

O Centro Regional da Fotografia (CRF) Poucas estruturas são dedicadas à fotografia na França. Apenas cinco centros de arte, entre os quais o Centro Regional da Fotografia, são reconhecidos pelo Ministério da Cultura. Certos museus começam a se interessar pelo patrimônio fotográfico e é com uma grande timidez que eles abordam episodicamente a fotografia contemporânea. De resto, o aparelho histórico e crítico concernente à fotografia é ainda bastante incompleto. Amostras inteiras de produção permanecem desconhecidas. No que concerne à criação fotográfica contemporânea, a pesquisa na França está nos seus primórdios.

A fotografia em debate O debate se desenvolve em torno da própria matéria da fotografia - que, desde sua origem, coloca questões artísticas -, da especificidade do meio e das interações entre ética e estética que se dão na imagem, onipresente em nosso mundo. No período contemporâneo, a fotografia está, como todas as artes, na origem de múltiplos questionamentos. A esse debate acrescentam-se questões específicas ao meio e à sua história, que dizem respeito à sua bastardia, à sua indexação ao real, aos modos de produção e, enfim, à introdução da imaginária numérica. Desde sempre, por causa de seu recurso à tecnologia e da multiplicidade de seus usos, da qual decorre sua bastardia, a fotografia é posta em dúvida quanto a sua capacidade de ser um meio artístico. Questões epistemológicas lhe são opostas, sem cessar. Seria uma “arte média”, uma “disciplina sem disciplina”, pela qual amadores e praticantes de um uso utilitário da fotografia revelaram-se artistas. “Desperdiçou-se tempo em vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia deveria ser ou não uma arte, mas não se indagou, antes, se esta mesma invenção não transformaria o caráter geral da arte” (Walter Benjamin).

Papel cultural O CRF desempenhou e desempenha um papel na cidade, pela mediação e reflexão que conduz a respeito de novas questões para a cidadania. Ele toma partido na reflexão sobre as relações entre a imagem e o visível e os questionamentos desta região (Nord Pas-de-Calais) quanto a sua identidade, seu futuro e sua representação. O CRF reivindica seu papel como um ator da evolução cultural e, neste sentido, trabalha sobre as necessárias interações com o conjunto do tecido vivo. Desde a origem, o alargamento da oferta cultural e o alargamento dos públicos, numa região onde por muito tempo a segregação cultural foi um

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CRIAÇÃO

dos aspectos da segregação social, é para ele um compromisso maior. Concretamente, o CRF vinculou-se a uma política inovadora em matéria de formação. Bem antes das recomendações, em 1986, do Ministério da Educação Nacional sobre a necessidade da leitura e da crítica da imagem, ele conduziu experiências pedagógicas que integravam a fotografia. Correlativamente, o Centro se dedicou à necessária formação inicial ou contínua dos mestres. Esta démarche foi confirmada por ações em direção aos públicos ditos difíceis (públicos em fracasso escolar, pré-delinqüentes, prisioneiros…), em que a fotografia se revelou, além de uma necessária aprendizagem da leitura e da crítica da imagem, uma possibilidade de descoberta do mundo, de expressão e, portanto, de remotivação. Neste quadro, o CRF sempre propôs encontros fortes com obras fortes. Elas funcionam sobre o inteligível e o sensível para produzir sentido. O sensível, tão desvalorizado na escola francesa, encontra-se, portanto, revalorizado junto àqueles que sofreram o fracasso escolar por causa de uma preponderância do inteligível, para o qual eles não estavam prontos. Para além do encontro da obra, que parecia pertencer a um mundo inacessível, trata-se também de uma reconciliação consigo mesmo, sua identidade e de uma remotivação para a descoberta. “Os povos declinam a partir do momento em que eles perdem a vontade de reconquistar a cada geração sua identidade cultural sempre minada pelo movimento da história” (Claude Montassier). Freqüentemente, esses processos incluem, em algum momento, o encontro com o artista. Isto é para o artista uma experiência muito forte, e para o público, a tomada de consciência ou a confirmação de que o artista é um cidadão. O acesso a este tipo de cultura é uma condição fundamental de justiça social e de desenvolvimento do espírito de criação. Não podemos, portanto, demandar à cultura resolver as conseqüências da crise, de ser um ungüento, um adjuvante. Ao contrário, a ação cultural fundada em conteúdos fortes deve culminar numa apropriação ativa. Na sua prática, o CRF demonstrou que, em relação à imagem, era possível: escapar à fascinação da sua mobilidade, inverter os hábitos de consumo, achar o prazer de encontrar artistas e obras fortes e experimentar o desejo de expressão pela fotografia. Estas práticas são possíveis porque a tecnologia permanece artesanal e, portanto, mesmo uma criança pequena pode seguir o processo do enquadramento à tiragem, à seleção, à montagem final, porque ela é fixa e a reflexão sobre o quadro representa uma passagem obrigatória de toda formação inicial, profissional ou contínua da imagem. As motivações são tanto maiores quanto mais se descobre a polissemia das imagens, mais se pode jogar com todas as suas variáveis, mais esse jogo se torna um espaço de liberdade.

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CRIAÇÃO

Situação concreta

Olhares interiores é um fato raríssimo. Trabalhadores, no caso empregados do Centro Hospitalar Universitário de Lille, tiveram vontade de fotografar seu local de trabalho. Ver, para fazer ver, é também conceber. Para isso, transgrediram diversas barreiras: a fotografia está mais associada a férias que a trabalho, o que exigiu explicar ao seu meio que se tratava de lazer - o tempo livre do estudo (do latim, otium); a arquitetura do hospital do início dos anos cinqüenta é considerada austera e desumana, e eles mostraram que ela poderia ser revivificada pelo imaginário. Também mostraram os bastidores do hospital, aquilo que o público não vê jamais e que, contudo, constitui sua vida cotidiana: salas de cirurgia, escritórios, lojas, lavanderia, caldeiraria, necrotério… Esta última imagem quase foi proibida pela direção, exigindo toda diplomacia dos mediadores para explicar que era um trabalho de expressão e não uma campanha de comunicação. Mas o ponto de maior resistência foi o de olhar de frente seu ofício, confrontado diariamente com a vida, a morte e o sofrimento. A visão fotográfica que se desprende dessa experiência é plena de humanidade, sem ênfase, com a distância sensível. Foi por todas essas transgressões que o CRF apoiou o projeto.

Fotografias de: Jacques Barraqué, Marcelline Bartos, Bruno Becquet, José Coenda, François Depienne, Stéphane Duquesnoy Jean-luc Faucompré, Jean-Marie Fourdrin, Maryse Hilton, Eric Lenouvel, Alain Vanderhaegen

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Eduardo Triboni

CRIAÇÃO

UM VÍRUS ME DISSE Creio que são nada mais nada menos que átomos pretensiosos

CONGELA DOR descompassos internos tempos diversos para o fim sem tido a morte

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CRIAÇÃO

SÃO VIVAS AS DANADAS Darwin, perfeito. Mais lindo, porém, é a DNA polimerase trabalhando pela vida

Eduardo Triboni é estudante de Química da Universidade de São Paulo, USP, São Carlos

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INFORMES FÓRUM PERMANENTE DE ENSINO E DESENVOLVIMENTO DA FORÇA DE TRABALHO PARA O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DE SÃO PAULO - SUS/SP

Foi aprovada na 2ª Conferência Estadual de Saúde de São Paulo, em junho de 1996, a criação de um Fórum Permanente de Ensino e Desenvolvimento da Força de Trabalho para o SUS/SP. O objetivo do Fórum é promover, de forma contínua, atividades de aproximação entre os reais problemas de saúde da população, o aparelho de ensino e desenvolvimento da Força de Trabalho e o aparelho utilizador desta força de trabalho no SUS. O Fórum tem uma secretaria executiva e uma composição mínima formada por representantes dos usuários, atuando por meio do Conselho Estadual de Saúde - CES; do aparelho de ensino, pelas universidades e escolas públicas e privadas da área da saúde; do aparelho utilizador, pelo Conselho de Secretários Municipais de Saúde - COSEMS, da Secretaria Estadual de Saúde - SES, e de representantes das instituições privadas de saúde; e dos trabalhadores da saúde, por meio dos Conselhos Profissionais dos Sindicatos e Associações. Além disso, conta com o apoio de entidades que produzem informações, estudos e pesquisas em recursos humanos na área da saúde e realiza reuniões periódicas regulares, atuando com base em projetos definidos coletivamente. Depois de aprovada a proposta de criação do Fórum, e com a experiência da Comissão de Integração do CES/SP, foi realizada, como atividade de pré-congressos, uma oficina de Trabalho denominada “Fórum Permanente de Ensino e Desenvolvimento da Força de Trabalho para o SUS/SP”. A iniciativa, que

teve apoio da Associação Paulista de Saúde Pública, da Abrasco e da Faculdade de Saúde Pública da USP, reuniu representantes de Conselhos, Sindicatos e Associações Profissionais, de usuários do SUS, de universidades, da SES, COSEMS/SP e prestadores privados. Dois grupos de trabalho heterogêneos discutiram o que significa ordenar a formação de recursos humanos para a saúde e quais os problemas e obstáculos a esta ação. Da discussão, obtiveram-se as seguintes conclusões: a perplexidade dos participantes em relação à forma como o atual governo federal trata a questão; o consenso em relação à estrutura de um Fórum Permanente que envolva questões relativas aos profissionais de Nível Universitário, de Nível Médio, Nível técnico e Elementar; a necessidade de se estruturar este Fórum envolvendo os órgãos Formadores e Empregadores, bem como os trabalhadores de saúde e usuários. Foram definidas, também, as profissões de nível universitário que atuam ou têm interface com a área da saúde e podem orientar os trabalhos do Fórum: Medicina, Odontologia, Enfermagem, Psicologia, Farmácia, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Nutrição, Educação Física, Medicina Veterinária, Ciências Biológicas, Ciências Biomédicas, Serviço Social, Engenharia, Física, Pedagogia e Administração Hospitalar. Houve consenso na dificuldade em se definir imediatamente as profissões e ocupações de nível elementar, médio e técnico que também poderão estar atuando junto ao Fórum.

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INFORMES

Entretanto, pela sua importância, a formação e capacitação destes profissionais também deve ser área de atuação do Fórum, em interação com o Conselho Estadual de Educação e respectivos conselhos profissionais. Quanto à questão da ordenação da formação de RH foram levantados os seguintes aspectos: a) a necessidade de um diagnóstico da situação dos profissionais da saúde:quantos são? Onde trabalham? Onde são Formados? Onde estão empregados? O que fazem?; b) a necessidade de um diagnóstico do aparelho formador: - quantas escolas? Onde estão? Quantos formam? Qual o currículo? O que pesquisam? Onde são os estágios?; c) o SUS como campo de estágio e de formação e desenvolvimento da força de trabalho; d) as repercussões da Lei de

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Diretrizes e Bases da Educação para o setor saúde; e) o modelo gerencial e o modelo assistencial do SUS e a formação de RH; f) atualização permanente do diagnóstico de saúde da população do Estado de São Paulo; g) a necessidade de ações de educação permanente dos RH para o SUS. Desde sua criação, o Fórum se reuniu cinco vezes, nas instalações do CEP (Centro de Educação Permanente) da Faculdade de Saúde Pública. As reuniões são abertas aos interessados e os temas para debate são definidos coletivamente. Está em desenvolvimento proposta de criação de uma home page do Fórum. Contatos e contribuições podem ser encaminhadas pelo fax (011) 280.0112 ou telefone (011) 280.0101, aos cuidados de Emiliana.






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