v.22 n.67,out./dez. 2018

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a a Filosofia, as Artes e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy, Arts and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la la Filosofia, las Artes y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITOR-CHEFE/CHIEF EDITOR/EDITOR JEFE Antonio Pithon Cyrino, Unesp

DEBATES Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti, Fiocruz

EDITORES/EDITORS/EDITORES Denise Martin Coviello, Unifesp e UNISANTOS Lilia Blima Schraiber, USP

EDITORA DE RESENHAS/ REVIEWS EDITOR /EDITORA DE RESEÑAS Lina Rodrigues de Faria, UFSB

EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp

EDITOR DE ENTREVISTAS/INTERVIEWS EDITOR/EDITOR DE ENTREVISTAS Pedro Paulo Gomes Pereira, Unifesp

EDITOR JUNIOR/JUNIOR EDITOR/EDITOR JUNIOR Tiago Rocha Pinto, UFRN EDITORES ASSISTENTES/ASSISTANT EDITORS/EDITORES ASISTENTES Ana Flavia Pires Lucas D’Olveira, USP Claudio Bertolli Filho, Unesp Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES ASSOCIADOS/ASSOCIATE EDITORS/EDITORES ASOCIADOS Ana Domínguez Mon, UBA, Argentina Aylene Emilia Moraes Bousquat, USP Barbara Eleonora Bezerra Cabral, Univasf Charles Dalcanale Tesser, UFSC Chiara Pussetti, Universidade de Lisboa, Portugal Cristina Larrea Killinger, Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha Daniele Sacardo, Unicamp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Fátima Corrêa Oliver, USP Fernando Altair Pocahy, UERJ Francine Lube Guizardi, Fiocruz Janine Miranda Cardoso, FioCruz Joana Raquel Santos de Almeida, University of London, Inglaterra Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Lilian Koifman, UFF Luciano Bezerra Gomes, UFPB Marcelo Viana da Costa, UFRN Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Mónica Petracci, UBA, Argentina Patrícia Karina Natalia Schwartz, UBA, Argentina Rosamaria Giatti Carneiro, UnB Rosana Teresa Onocko Campos - Unicamp Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Tiago Correia, CIES, Lisboa, Portugal Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITOR DE DEBATES/DEBATES EDITOR/EDITOR DE Capa/Cover/Portada: Nice Gonçalvez, 2016

EDITORA DE CRIAÇÃO/CREATION EDITOR/EDITORA DE CREACIÓN Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Juliana Araújo Silva, Unesp Renata Monteiro Buelau, USP EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Adriana Ribeiro Felipe Alves Peres Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Coordenação Editorial/Editorial Coordination/Coordenaciõn Editorial Juliana Freitas Oliveira Renato Ribeiro Normalização/Normalization/Normalización Luciana Pizzani Rinaldo José Ortiz Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) Liane Christine L. P. Pilon (Português/Portuguese/Potugués) Carolina S. M. Ventura (Inglês/English/Inglés) Maria Jesus Carbajal Rodriguez (Espanhol/Spanish/Español) Web design Ester Campos Mello de Andrade Manutenção do website/Website support/Manutención del sitio Felipe Alves Peres


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alcindo Ferla, UFRGS Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Aluísio Gomes da Silva Junior, UFF André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Angelica Maria Bicudo, Unicamp Anne Christine Damasio, UFRN António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS Daniel Catalan Matamoros, Universidad Carlos III de Madrid, Espanha Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Ednalva Maciel Neves, UFPB Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Fernando Peñaranda Correa, UFPr Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Gastão Wagner de Sousa Campos, Unicamp George Dantas de Azevedo, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Helena Maria Scherlowski Leal David, UERJ Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Luis Terrón Blanco, Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leila Sollberger Jeolás, UEL Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lia Geraldo da Silva Batista, UFPE

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Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marco Akerman, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Naomar de Almeida Filho, UFBa Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Raquel Rigotto, UFCE Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Ricardo Sparapan Pena, UFF Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Rogério Miranda Gomes, UFPR Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sergio Tavares de Almeida Rego, Fiocruz Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Túlio Batista Franco, UFF



APOIO/SPONSOR/APOYO Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp Fundação para o Vestibular da Unesp - Vunesp Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Web of Sciences

(Emerging Sources Citation Index, ESCI) http://clarivate.com/products/web-of-science . Scopus - http://info.scopus.com . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal http://redalyc.uaemex.mx/ . DOAJ - Directory of Open Access Journal http://www.doaj.org . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde http://www.bireme.org . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal http://www.latindex.unam.mx . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades http://www.dgbiblio.unam.mx . Indice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Iresie) http://www.iisue.unam.mx/iresie/revistas_analizadas. php . SciELO Brasil/SciELO Social Sciences http://www.scielo.br/icse . SciELO Citation Index (Thomson Reuters) http://thomsonreuters.com/scielo-citationindex/ . Google Academic http://scholar.google.com.br . Free Medical Journals http://www.freemedicaljournals.com

TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br> SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br



comunicação

saúde

2018; 22(67)

editorial 987 Tensões e paradoxos em saúde envolvendo direitos, conhecimento e confiança: mapeamento do debate e indicação de direcionamentos de pesquisa Tiago Correia

dossiê O ensino de História nas profissões da Saúde 993 O ensino de História Social na carreira de Enfermagem

Juan Manuel Cerdá; Karina Ramacciotti

educação

ISSN 1807-5762

1099 Análise da participação popular na política de atenção à saúde da pessoa com deficiência em Aracaju, Sergipe, Brasil

Marcus Valerius da Silva Peixoto; Géssica Santana Santos; Gabriela Rodrigues Dourado Nobre; Ana Paula de Souza Novais; Paloma Martins Reis

1111 Relação entre trabalho especializado e técnico: o caso da ortodontia à luz da bioética clínica amplificada Doris Gomes; Mirelle Finkler

1123 Análise do processo de acolhimento em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil: considerações de uma investigação etnográfica

Carolina Pinheiro Moreira; Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté; Vládia Jamile dos Santos Jucá

1003 Ensinar História em carreiras de Saúde

1135 Suicídio, cultura e trabalho em município de colonização alemã no sul do Brasil

1017 A multitemporalidade como trabalho prático: uma experiência sobre a utilidade do ensino de História na carreira de Trabalho Social

1147 Oferta de programação da Rede Globo de Televisão em face de audiência infantojuvenil: estudo empírico

Adrián Cammarota; Karina Faccia

Canela Constanza Gavrila; Andres Stagnaro

artigos 1029 As contribuições das Ciências Sociais e Humanas no campo da Saúde Coletiva: vinte anos da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação

Denise Martin; Patrícia Martins Montanari; Pedro Paulo Gomes Pereira; Flávio Guinsburg Hamburger; Cássio Silveira

1043 Encontros na rua: possibilidades de saúde em um consultório a céu aberto Carla Félix dos Santos; Ricardo Burg Ceccim

1053 Educação para a saúde: horizontes e estratégias recorrentes na Argentina (1970-1980) Carla Reyna 1065 Habitar invisível: produção de vida e cuidado na experiência urbana

Diogo Vaz da Silva Junior; Márcio Mariath Belloc

1077 Pesquisa participativa e as estratégias de promoção da saúde integral da criança no Sistema Único de Saúde (SUS)

Júlia Florêncio Carvalho Ramos; Lilian Miranda; Maria Virgínia Marques Peixoto; Mariana Ribeiro Marques; Larissa Costa Mendes; Eduardo Henrique Passos Pereira

1091 Comportamento antissocial nos jovens como sequela da privação: contribuições da clínica winnicottiana para as políticas públicas Rosana Onocko-Campos

Stela Nazareth Meneghel; Rosylaine Moura

Claudia Galhardi; Maria Cecília de Souza Minayo

1159 Narrativas de motociclistas acidentados sobre riscos e os diversos meios de transporte Hercília Najara Ferreira de Souza; Deborah Carvalho Malta; Maria Imaculada de Fátima Freitas

1173 Arriscar a vida por uma corrida: risco e corridas ilegais de carros e motos Leila Sollberger Jeolás

1183 Diretrizes curriculares nacionais das profissões da Saúde 2001-2004: análise à luz das teorias de desenvolvimento curricular

Dayane Aparecida Silva Costa; Roseli Ferreira da Silva; Valéria Vernaschi Lima; Eliana Cláudia Otero Ribeiro

1197 Narrativas de estudantes de Medicina e Enfermagem: currículo oculto e desumanização em Saúde

Maria Auxiliadora Craice De Benedetto; Dante Marcello Claramonte Gallian

1209 Entre experimentações e experiências: desafios para o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro

Kênia Lara da Silva; Bárbara Jacome Barcelos; Bruna Dias França; Fernanda Lopes de Araújo; Izabela Thaís Magalhães Neta; Michelle Melo Ledo

revisão 1221 Avaliação de competências individuais e interprofissionais de profissionais de saúde em

atividades clínicas simuladas: scoping review Fernanda Berchelli Girão Miranda; Alessandra Mazzo; Gerson Alves Pereira Junior

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comunicação

saúde

2018; 22(67)

educação

ISSN 1807-5762

espaço aberto 1235 A humanização da atividade física em um programa governamental: um olhar necessário

resenhas 1279 Narrative across disciplines Everardo Duarte Nunes

Marcos Gonçalves Maciel; Luiz Alex Silva Saraiva; José Clerton de Oliveira Martins; Paulo Roberto Vieira Junior

1247 O desafio da formação permanente no fortalecimento das Redes de Atenção Psicossocial

Fernando Sfair Kinker; Maria Inês Badaró Moreira; Carla Bertuol

notas breves 1285 Centenário do livro Remaking a man: one successful method of mental refitting Sanyo Drummond Pires

1257 Integração ensino-serviço-comunidade nos cenários de práticas na formação interdisciplinar em Saúde: uma experiência do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) no sul da Bahia, Brasil Lina Faria; Márcia Alves Quaresma; Rafael Andrés Patiño; Raquel Siqueira; Gabriela Lamego

criação 1287 Parangolés: inspiração para dançar no território

Marina Souza Lobo Guzzo; Flavia Liberman; Nice Gonçalvez; Lenita Maria Tonon; Viviane Santalucia Maximino; Conrado Augusto Gandara Federici

entrevistas 1267 Traços e desafios da modernidade alimentar - uma entrevista com Jesús Contreras Anelise Rizzolo

1299

errata


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saúde

2018; 22(67)

editorial 987 Tensions and paradoxes in health involving rights, knowledge and trust: mapping the debate and pointing to directions of research Tiago Correia

dossier The teaching of History in the Health professions 993 The teaching of Social History in the Nursing profession

Juan Manuel Cerdá; Karina Ramacciotti

1003 Teaching History in Health careers Adrián Cammarota; Karina Faccia

1017 Multitemporality as practical work: an experience about the usefulness of History teaching for the career of Social Work Canela Constanza Gavrila; Andres Stagnaro

articles 1029 The contributions of the Social and Human Sciences in the field of Collective Health: twenty years of the journal Interface

Denise Martin; Patrícia Martins Montanari; Pedro Paulo Gomes Pereira; Flávio Guinsburg Hamburger; Cássio Silveira

1043 Encounters on the street: possibilities of health in a street health care center

Carla Félix dos Santos; Ricardo Burg Ceccim

1053 Education for health: recurring strategies and perspectives in Argentina (1970’s-1980’s) Carla Reyna 1065 Invisible dwelling: life production and care in the urban experience

Diogo Vaz da Silva Junior; Márcio Mariath Belloc

1077 Participative research and comprehensive child healthcare promotion strategies in the Brazilian National Health System (SUS)

Júlia Florêncio Carvalho Ramos; Lilian Miranda; Maria Virgínia Marques Peixoto; Mariana Ribeiro Marques; Larissa Costa Mendes; Eduardo Henrique Passos Pereira

1091 Juvenile anti-social behavior as deprivation consequence: winnicottian clinical contributions for public policies Rosana Onocko-Campos

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educação

ISSN 1807-5762

1099 Analysis of popular participation in healthcare policy for people with disabilities in Aracaju, Sergipe, Brazil Marcus Valerius da Silva Peixoto; Géssica Santana Santos; Gabriela Rodrigues Dourado Nobre; Ana Paula de Souza Novais; Paloma Martins Reis

1111 The relationship between specialized and technical work: the case of orthodontics from the perspective of amplified clinical bioethics Doris Gomes; Mirelle Finkler

1123 Analysis of the embracement process in a Child and Adolescent Psychosocial Healthcare Center: considerations from an ethnographic investigation

Carolina Pinheiro Moreira; Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté; Vládia Jamile dos Santos Jucá

1135 Suicide, culture and work in a German-colonized municipality in the South of Brazil Stela Nazareth Meneghel; Rosylaine Moura

1147 Rede Globo TV listings in view of children’s audience: empirical study

Claudia Galhardi; Maria Cecília de Souza Minayo

1159 Narratives of injured motorcyclists regarding risks and the various means of transport Hercília Najara Ferreira de Souza; Deborah Carvalho Malta; Maria Imaculada de Fátima Freitas

1173 Risking your life for a race: risk and illegal automobile and motorcycle street races Leila Sollberger Jeolás

1183 National curriculum guidelines for health professions 2001-2004: an analysis according to curriculum development theories Dayane Aparecida Silva Costa; Roseli Ferreira da Silva; Valéria Vernaschi Lima; Eliana Cláudia Otero Ribeiro

1197 The narratives of medicine and nursing students: the concealed curriculum and the dehumanization of health care

Maria Auxiliadora Craice De Benedetto; Dante Marcello Claramonte Gallian

1209 Between experiments and experiences: challenges for teaching competencies for health promotion in Nursing Education

Kênia Lara da Silva; Bárbara Jacome Barcelos; Bruna Dias França; Fernanda Lopes de Araújo; Izabela Thaís Magalhães Neta; Michelle Melo Ledo

review 1221 Assessment of individual and interprofessional skills of health professionals in simulated clinical activities: a scoping review Fernanda Berchelli Girão Miranda; Alessandra Mazzo; Gerson Alves Pereira Junior


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saúde

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educação

ISSN 1807-5762

open space 1235 The humanization of physical activity in a governmental program: a necessary look

critical reviews 1279 Narrative across disciplines Everardo Duarte Nunes

Marcos Gonçalves Maciel; Luiz Alex Silva Saraiva; José Clerton de Oliveira Martins; Paulo Roberto Vieira Junior

1247 The challenge of continuing education in the strengthening of Psychological Care Networks

Fernando Sfair Kinker; Maria Inês Badaró Moreira; Carla Bertuol

brief notes 1285 Centennial of the book Remaking a man: one successful method of mental refitting Sanyo Drummond Pires

1257 Teaching-service-community integration in practice scenarios of interdisciplinary Health Education: an experience of the Work Education for Health Program (PET-Saúde) in Southern Bahia, Brazil Lina Faria; Márcia Alves Quaresma; Rafael Andrés Patiño; Raquel Siqueira; Gabriela Lamego

creation 1287 Parangolés: inspiration to dance in the territory

Marina Souza Lobo Guzzo; Flavia Liberman; Nice Gonçalvez; Lenita Maria Tonon; Viviane Santalucia Maximino; Conrado Augusto Gandara Federici

interviews 1267 Traits and challenges of food modernity - an interview with Jesús Contreras Anelise Rizzolo

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saúde

2018; 22(67)

editorial 987 Tensiones y paradojas en salud involucrando derechos, conocimiento y confianza: mapeo del debate e indicación de direccionamientos de investigación Tiago Correia

dosier La enseñanza de Historia en las profesiones de la Salud 993 La enseñanza de Historia Social en la carrera de Enfermería

Juan Manuel Cerdá; Karina Ramacciotti

1003 Enseñar Historia en las carreras de Salud Adrián Cammarota; Karina Faccia

1017 La multitemporalidad como trabajo práctico: una experiencia sobre la utilidad de la enseñanza de la Historia en la carrera de Trabajo Social Canela Constanza Gavrila; Andres Stagnaro

artículos 1029 Las contribuciones de las Ciencias Sociales y Humanas en el campo de la Salud Colectiva: veinte años de la revista Interface

Denise Martin; Patrícia Martins Montanari; Pedro Paulo Gomes Pereira; Flávio Guinsburg Hamburger; Cássio Silveira

1043 Encuentros en la calle: posibilidades de salud en un consultorio a cielo abierto Carla Félix dos Santos; Ricardo Burg Ceccim

1053 Educación para la salud: horizontes y estrategias recurrentes en Argentina (1970-1980) Carla Reyna 1065 Habitar invisible: producción de vida y cuidado en la experiencia urbana Diogo Vaz da Silva Junior; Márcio Mariath Belloc

1077 Investigación participativa y las estrategias de promoción de la salud integral del niño en el Sistema Brasileño de Salud (SUS)

Júlia Florêncio Carvalho Ramos; Lilian Miranda; Maria Virgínia Marques Peixoto; Mariana Ribeiro Marques; Larissa Costa Mendes; Eduardo Henrique Passos Pereira

1091 Comportamiento antisocial en los jóvenes como secuela de privación: contribuciones de la clínica winnicottiana para las políticas públicas Rosana Onocko-Campos

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educação

ISSN 1807-5762

1099 Análisis de la participación popular en la política de atención a la salud de la persona discapacitada en Aracaju, estado de Sergipe, Brasil

Marcus Valerius da Silva Peixoto; Géssica Santana Santos; Gabriela Rodrigues Dourado Nobre; Ana Paula de Souza Novais; Paloma Martins Reis

1111 Relación entre trabajo especializado y técnico: el caso de la ortodoncia a la luz de la bioética clínica amplificada Doris Gomes; Mirelle Finkler

1123 Análisis del proceso de acogida en un Centro de Atención Psico-social Infanto-juvenil: consideraciones de una investigación etnográfica

Carolina Pinheiro Moreira; Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté; Vládia Jamile dos Santos Jucá

1135 Suicidio, cultura y trabajo en un municipio de colonización alemana en el sur del Brasil Stela Nazareth Meneghel; Rosylaine Moura

1147 Oferta de programación de la Red Globo de Televisión para el público infanto-juvenil: estudio empírico

Claudia Galhardi; Maria Cecília de Souza Minayo

1159 Narrativas de motociclistas accidentados sobre riesgos y los diversos medios de transporte

Hercília Najara Ferreira de Souza; Deborah Carvalho Malta; Maria Imaculada de Fátima Freitas

1173 Arriesgar la vida por una carrera: riesgo y carreras ilegales de autos y motos Leila Sollberger Jeolás

1183 Directrices curriculares nacionales de las profesiones de la Salud 2001-2004: análisis a la luz de las teorías de desarrollo curricular Dayane Aparecida Silva Costa; Roseli Ferreira da Silva; Valéria Vernaschi Lima; Eliana Cláudia Otero Ribeiro

1197 Narrativas de estudiantes de Medicina y Enfermería: currículo oculto y deshumanización en Salud

Maria Auxiliadora Craice De Benedetto; Dante Marcello Claramonte Gallian

1209 Entre experimentaciones y experiencias: desafíos para la enseñanza de las competencias para la promoción de la salud en la formación del enfermero Kênia Lara da Silva; Bárbara Jacome Barcelos; Bruna Dias França; Fernanda Lopes de Araújo; Izabela Thaís Magalhães Neta; Michelle Melo Ledo

revisión 1221 Evaluación de competencias individuales y interprofesionales de profesionales de salud en actividades clínicas simuladas: scoping review

Fernanda Berchelli Girão Miranda; Alessandra Mazzo; Gerson Alves Pereira Junior


comunicação

saúde

2018; 22(67)

educação

ISSN 1807-5762

reseñas

spacio abierto 1235 La humanización de la actividad física en un programa gubernamental: una mirada necesaria

1279 Narrative across disciplines Everardo Duarte Nunes

Marcos Gonçalves Maciel; Luiz Alex Silva Saraiva; José Clerton de Oliveira Martins; Paulo Roberto Vieira Junior

1247 El desafío de la formación permanente en el fortalecimiento de las Redes de Atención Psicosocial

Fernando Sfair Kinker; Maria Inês Badaró Moreira; Carla Bertuol

notas breves 1285 Centenario del libro Remaking a man: one successful method of mental refitting Sanyo Drummond Pires

1257 Integración enseñanza-servicio-comunidad en los escenarios de prácticas en la formación interdisciplinaria en salud: una experiencia del Programa de Educación por el Trabajo para la Salud (PET-Saúde) en el Sur del Estado de Bahia, Brasil Lina Faria; Márcia Alves Quaresma; Rafael Andrés Patiño; Raquel Siqueira; Gabriela Lamego

creación 1287 Parangolés: inspiración para bailar en el territorio Marina Souza Lobo Guzzo; Flavia Liberman; Nice Gonçalvez; Lenita Maria Tonon; Viviane Santalucia Maximino; Conrado Augusto Gandara Federici

entrevistas 1267 Rasgos y retos de la modernidad alimentaria - una entrevista con Jesús Contreras Anelise Rizzolo

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Tensões e paradoxos em saúde envolvendo direitos, conhecimento e confiança: mapeamento do debate e indicação de direcionamentos de pesquisa Direitos, conhecimento e confiança são os principais impulsionadores de sistemas de saúde integrais em todo o mundo, independentemente de seus esquemas específicos de funcionamento e financiamento. Os direitos relacionados à saúde são baseados em uma expectativa de vida mais longa e com mais qualidade. Essa definição inclusiva de saúde inclui bem-estar. Seus dois pilares são o acesso à atenção à saúde e o respeito à autodeterminação dos indivíduos. O conhecimento relacionado à saúde remete ao papel das evidências na tomada de decisões clínicas e políticas e, cada vez mais, na articulação com um conhecimento leigo mais exigente e mais bem informado. Em saúde, confiança envolve o relacionamento dos indivíduos com os sistemas e profissionais de saúde. Esse relacionamento é sustentado por um contrato moral com base no qual os indivíduos abdicam parcialmente de suas escolhas e motivações pessoais a favor do gerenciamento coletivo de conhecimentos e comportamentos. Presumidamente, o resultado é a busca de oportunidades iguais e de menos exposição aos efeitos negativos do mercado. Os efeitos positivos de políticas representativas, do respeito a diferentes conhecimentos e do gerenciamento coletivo de riscos nos resultados de saúde e na coesão social já foram amplamente discutidos. Além disso, continua sendo inegável o efeito multiplicador de sistemas de saúde integrais na economia e nos esquemas de previdência social na chamada política pós-verdade. O percurso político relacionado aos problemas de saúde em países desenvolvidos e em desenvolvimento na segunda metade do século 20 foi capaz de superar tensões conhecidas. As políticas têm se alinhado cada vez mais com as necessidades dos imigrantes, das minorias étnicas e religiosas, das mulheres, das crianças, dos idosos e das pessoas LGBTI. Os órgãos reguladores têm tentado intervir cada vez mais na conduta profissional para garantir decisões clínicas seguras e transparentes e um melhor controle na prestação de cuidados de saúde. O conhecimento tem tido uma posição de destaque na tomada de decisões relacionadas a políticas e na proteção da vida das pessoas. A opinião das pessoas é cada vez mais ouvida na governança de sistemas de saúde. Em 2020, a questão será se essas tensões ocorridas foram superadas com eficácia e até que ponto novos paradoxos tornarão os problemas não resolvidos mais complexos. Com relação a antigas tensões, ainda há desigualdades na saúde, e os direitos relacionados à saúde nem sempre são respeitados. A conduta dos profissionais de saúde está em constante vigilância, embora sua função de mediadora entre as evidências e os usuários seja considerada decisiva para a saúde da população. Isso resultou em uma relação aparentemente contraditória de desconfiança e dependência do conhecimento especializado. Os usuários são responsabilizados por suas escolhas, e as restrições subjacentes aos estilos de vida de cada indivíduo são ignoradas. Investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento para fins lucrativos continuam sendo importantes para tecnologias e conhecimentos inovadores, pois possibilitam a definição de agendas políticas e acadêmicas, embora se baseiem em relacionamentos geopolíticos injustos em todo o mundo devido a vínculos complexos envolvendo saúde em assuntos políticos, militares e econômicos. Os paradoxos emergentes em saúde incluem aquecimento global, a crise financeira e econômica de 2008, fluxos crescentes de migrantes e refugiados,

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2018; 22(67):987-92

editorial

DOI: 10.1590/1807-57622018.0438

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o ressurgimento do extremismo e nacionalismo políticos, por exemplo. Esses fenômenos não são delimitados geograficamente e impactam um número considerável de pessoas. Eles afetam a saúde e o bem-estar das pessoas, além do funcionamento dos sistemas de saúde em escala mundial. Portanto, exigem atenção especial da Academia. “Velhas tensões e paradoxos emergentes em saúde: direitos, conhecimento e confiança” foi o tema do 17º Congresso Bienal da Sociedade Europeia de Saúde e Sociologia Médica, realizado em Portugal em 2018. Os principais tópicos de discussão no congresso estão resumidos aqui para diagnóstico de algumas tensões e paradoxos relacionados à saúde em todo o mundo e para direcionamento de futuras pesquisas. A medicalização (processo de tornar algo médico) ainda é fundamental no debate e é adotada em várias abordagens multidimensionais. Uma abordagem à medicalização está relacionada às questões éticas e morais da inovação biotecnológica. Isso se deve ao fato de que suas práticas e decisões podem alterar as expectativas que os indivíduos têm de sua experiência de vida e de seus relacionamentos com outras pessoas, principalmente em fases de transição da vida (sobre reprodução assistida e cuidado paliativo1). Outra abordagem à medicalização está relacionada a disputas por direitos e legitimidade. É notável a medida na qual os médicos buscam proteger o status de evidências científicas da Medicina e de profissionais da saúde aliados para demonstrar o valor de sua prática. Além disso, as diferentes subáreas da chamada medicina alternativa ou complementar dão destaque ao valor agregado de abordagens não biomédicas à vida. Uma questão emergente é como os indivíduos e grupos usam o conhecimento médico com relação a pontos de vista específicos da interação entre patologia e comportamentos (sobre histórias de transição de homens trans e seus pontos de vista sobre masculinidade2). A questão é se a medicalização e a patologização são dimensões analíticas distintas. Nesse caso, convém agregar conceitos como livre arbítrio e reflexividade ao debate. Resumidamente, a questão inerente da medicalização deve ajudar a entender melhor as diferenças empíricas de como doenças e patologias são reconhecidas como tal no contexto mundial de pluralismo médico3. Reprodução humana não é um tópico novo, embora muitas vezes não seja considerado fora do contexto de estudos feministas e movimentos sociais. É necessário dar mais importância à intersecção entre as formas de regulamentação social e política e os direitos dos indivíduos à autodeterminação para fortalecer a pesquisa acadêmica. Uma questão é se essas forças são opostas ou articuladas de alguma forma. No último caso, como essa articulação é traduzida. Outra questão é como as dimensões envolvidas na reprodução humana (por exemplo, fertilidade, opções contraceptivas, tecnologias de reprodução assistida, parto e papéis parentais) estão vinculadas a uma variedade de dimensões analíticas. Essas dimensões analíticas incluem experiências, representações de gênero, estratificação social, migração, modelos de trabalho, equilíbrio entre trabalho e família, interação entre experiências leigas e conhecimento especializado, financiamento e prestação de cuidados de saúde, práticas profissionais, ideologias e valores, livre arbítrio e direitos do cidadão4-6. Conhecimento e confiança em saúde são tópicos inter-relacionados sobre os quais há uma ampla variedade de literatura. A confiança está relacionada às expectativas positivas de quem confia no conhecimento e nas intenções do provedor. Tradicionalmente considerada pelas perspectivas dos usuários e dos órgãos reguladores de profissionais de saúde, é cada vez mais defendida a existência de mais evidências sobre a confiança dos profissionais em seus 988

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colegas, nos prestadores de cuidados de saúde, nos financiadores, nas evidências científicas e nos pacientes. Além disso, precisamos descobrir se a tecnologia tem alguma influência na confiabilidade e, em caso afirmativo, de que forma7. Outro tópico de discussão é se a confiança na profissão médica está diminuindo, conforme indicam evidências empíricas sobre descobertas aparentemente contraditórias em diferentes países e serviços de saúde8. É possível que isso se deva a diferentes processos regulatórios que, na verdade, alteram concepções normativas de confiança. No entanto, não se deve desconsiderar a possibilidade de interpretações empíricas errôneas. Uma forma de melhor identificar interpretações empíricas errôneas quanto à diminuição da confiança na profissão médica é identificar o foco do ceticismo. Ele está relacionado ao conhecimento em si ou aos agentes da interação? O ceticismo quanto às evidências médicas para o benefício de outro tipo de conhecimento é diferente do ceticismo quanto a quem aplica o conhecimento. A resposta a essa pergunta requer o reconhecimento das controvérsias entre conhecimento leigo e especializado e entre as diferentes subáreas de conhecimento especializado quanto aos direitos e à legitimidade. Um terceiro tópico de discussão são as mudanças na abordagem clínica das evidências, da prática e dos pacientes que surgem da área médica, chamada de medicina narrativa. Embora a atenção acadêmica seja crescente9, ainda restam incertezas quanto ao seu conteúdo, prática, resultados e posicionamento epistemológico no campo das humanidades médicas, sugerindo a necessidade de avaliações críticas e questionamentos mais aprofundados10. As desigualdades sociais são fundamentais na pesquisa em saúde. Elas podem ser exploradas, por um lado, no vínculo bidirecional entre relacionamentos assimétricos e distribuição assimétrica de recursos, e, por outro lado, na saúde, no bem-estar, na mortalidade e na morbidez. Inicialmente limitados à estratificação baseada na renda, os avanços conceituais demonstram que os privilégios e as desvantagens são multidimensionais e interdependentes11. Eles podem estar relacionados a capitais culturais e sociais12-14; condições de trabalho, carga de trabalho e equilíbrio entre trabalho e família15; situação empregatícia16; ou gênero, etnia e cidadania17. Além disso, essas desigualdades sociais nos sistemas de saúde podem ser consideradas em termos de acesso a cuidados de saúde, qualidade da interação entre os usuários e os profissionais, e a capacidade de os indivíduos entenderem, lidarem e usarem as informações especializadas. Um direcionamento de pesquisa interessante é expandir sobre a multidimensionalidade e interdependência de fatores subjacentes às relações assimétricas e à distribuição de recursos em saúde. Outro direcionamento é refletir sobre como e por que alguns atributos sociais em saúde são vinculados a dominância e discriminação. Um terceiro direcionamento é analisar em mais detalhes a dupla influência de determinantes sociais e resultados de saúde. Por fim um quarto direcionamento é usar esses desenvolvimentos conceituais em pesquisa aplicada, particularmente em epidemiologia e nas áreas médicas relacionadas. As reformas da saúde são um campo mais amplo de discussão que pode ser abordado de diferentes ângulos de análise. Um ângulo abordado no congresso foi o papel dos líderes clínicos na melhoria do controle de custos, da qualidade e da segurança como alternativa às decisões superiores de fora de organizações da saúde e a cortes severos no orçamento18. No entanto, as diferenças nos sistemas nacionais de saúde e descobertas contraditórias na literatura com relação aos resultados de empresários institucionais facilitam a realização de pesquisas empíricas mais avançadas em diferentes países e cenários. Outro direcionamento é descobrir quais agentes são mais adequados para funções de

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liderança e qual combinação de conhecimento profissional e de gerenciamento melhora os resultados organizacionais e as relações intra e interprofissionais. Também é importante estudar os efeitos das funções de liderança nas ideologias, na autonomia e na autoridade das profissões19. Outro ângulo de análise sobre as reformas da saúde foi a adoção de sistemas de saúde para a mobilidade forçada (por exemplo, migrantes, refugiados e aqueles que buscam asilo). Esse problema é particularmente importante na Europa20, mas deve ser levado em consideração por todos os sistemas de saúde cujos princípios sejam baseados na solidariedade e no compartilhamento de riscos. Os direcionamentos de pesquisa incluem a maneira como diferentes países normalmente lidam com esses fenômenos, os limites à inclusão, o aumento da discriminação, e os efeitos políticos, ideológicos e representacionais na população residente e nos recém-chegados21. Um terceiro ângulo de análise das reformas da saúde foi o envolvimento dos usuários na tomada de decisões. Os estudos devem incentivar uma posição analítica (em vez de normativa) que possibilite a melhor compreensão das mudanças na representatividade política e na cidadania, nos relacionamentos dos indivíduos com o conhecimento especializado e as instituições, e a dinâmica interna de grupos de defesa22. Comportamentos, bem-estar e tecnologias refletem os efeitos de oportunidades aparentemente novas proporcionadas aos indivíduos no contexto de consumismo, liberdade de escolha e decisões informadas. Um direcionamento de pesquisa é como as escolhas e a responsabilidade dos indivíduos pelos resultados de saúde estão conectadas a risco, gênero, idade, igualdade e emancipação23-25. Há também as mudanças nas políticas relacionadas ao cuidado informal, autogerenciamento e governança do corpo em busca do bem-estar26, e ao melhor gerenciamento de doenças comunicáveis e não comunicáveis27,28. A tecnologia é fundamental para esse debate, considerando que desmaterializa os processos e reduz o tempo e o espaço. Além disso, ao proporcionar aos indivíduos a chance de tomar suas próprias decisões, ela é capaz de reconfigurar interações humanas entre os usuários e os profissionais29-31. Também é importante analisar de maneira mais detalhada os efeitos da privacidade e da vigilância de dados e as mudanças ocasionadas pela Inteligência Artificial. Tiago Correia(a) (a)

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Avenida das Forças Armadas, 1649-026. Lisboa, Portugal. tiago.correia@iscte-iul.pt

Referências 1. Delaunay C, Martins AC. Dialectical tensions between caregivers and patients in ART and Palliative Care: ethical and moral issues raised by the (bio)medicalization of birth and death. In: Resende JM, Martins AC, organizers. The making of the common in social relations. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing; 2015. p. 53-100. 2. Aboim S, Vasconcelos P. Sexualities in the social world. In: Proceedings of 110th ASA Annual Meeting; 2015; Chicago. Chicago: ASA; 2015. 990

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4. Borozdina E. Introducing ‘natural’ childbirth in Russian hospitals. Midwives’ institutional work. In: Zvonareva O, Popova E, Horstman K, editors. Health, technologies, and politics in post-soviet settings. Basingstoke: Palgrave Macmillan; 2018. p. 145-71.

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3. Correia T. Revisiting medicalization: a critique of the assumptions of what counts as medical knowledge. Front Sociol. 2017; 2:14.

5. Jette AC, Santos M. Capturing the complexity of practice as an insider: in-labour ethnography. In: Church S, Frith L, Balaam M-C, Berg M, Smith V, van der Walt C, et al. editors. New thinking on improving maternity care: international perspectives. London: Printer and Martin; 2017. p. 73-89. 6. Vanderlinden K, Levecque K, Van Rossem R. Breastfeeding or bottled milk? Poverty and feeding choices in the native and immigrant population in Belgium. J Immigr Minor Health. 2015; 17(2):319-24. 7. Douglass T, Calnan M. Trust matters for doctors? Towards an agenda for research. Soc Theory Health. 2016; 14(4):393-413. 8. Calnan M, Rowe R. Trust matters in healthcare. London: Open University Press; 2008. 9. Fernandes I, Martins C, Reis A, Sanches Z, editors. Creative dialogues: narrative and medicine. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing; 2015. 10. Fernandes I. Leituras holísticas: de Tchékhov à medicina narrativa. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):71-82. 11. Gkiouleka A, Huijts T, Beckfield J, Bambra C. Understanding the micro and macro politics of health: inequalities, intersectionality & institutions-a research agenda. Soc Sci Med. 2018; 200:92-8. 12. Veenstra G. Social capital, SES and health: an individual-level analysis. Soc Sci Med. 2000; 50(5):619-29. 13. Delaruelle K, Buffel V, Bracke P. Educational expansion and the education gradient in health: a hierarchical age-period-cohort analysis. Soc Sci Med. 2015; 145:79-88. 14. De Clercq B, Abel T, Moor I, Elgar FJ, Lievens J, Sioen I, et al. Social inequality in adolescents’ healthy food intake: the interplay between economic, social and cultural capital. Eur J Public Health. 2017; 27(2):279-86. 15. Muckenhuber J, Volk H. Gesundheitliche Ungleichheit im internationalen Vergleich. In: Jungbauer-Gans M, Kriwy P, editors. Handbuch Gesundheitssoziologie. Springer Reference Sozialwissenschaften. Wiesbaden: Springer Fachmedien; 2018. p. 1-27. 16. Mikucka M. Does individualistic culture lower the well-being of the unemployed? Evidence from Europe. J Happiness Stud. 2014; 15(3):673-91. 17. Parra-Casado D, Stornes P, Solheim E. Self-rated health and wellbeing among the working-age immigrant population in Western Europe: findings from the European social survey (2014) special module on the social determinants of health. Eur J Public Health. 2017; 27 Suppl 1:40-6. 18. Denis J-L, Dompierre G, Langley A, Rouleau L. Escalating indecision: between reification and strategic ambiguity. Organ Sci. 2011; 22(1):225-44. 19. Correia T, Denis J-L. Hybrid management, organizational configuration, and medical professionalism: evidence from the establishment of a clinical directorate in Portugal. BMC Health Serv Res. 2016; 16 Suppl 2:161. 20. Botrugno C. Immigrazione ed unione europea: un excursus storico ragionato. Sociol Diritto. 2014; 1:121-43. 21. Lombardi L. Violence against refugee and migrant women. The reproduction of gender discrimination and inequality. Milan: ISMU Foundation; 2017. 2018; 22(67):987-92

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22. Raz A, Jordan I, Schicktanz S. Exploring the positions of German and Israeli patient organizations in the bioethical context of end-of-life policies. Health Care Anal. 2014; 22(2):143-59. 23. Følling IS, Solbjør M, Midthjell K, Kulseng BE, Helvik A-S. Exploring lifestyle and risk in preventing type 2 diabetes-a nested qualitative study of older participants in a lifestyle intervention program (VEND-RISK). BMC Public Health. 2016; 16:876. 24. Lewis S, Willis K, Collyer F. Navigating and making choices about healthcare: the role of place. Health Place. 2018; 52:215-20. 25. Verbakel E. How to understand informal caregiving patterns in Europe? The role of formal long-term care provisions and family care norms. Scand J Public Health. 2018; 46(4):436-47. 26. Bloy G, Philippon L, Rigal L. Les médecins généralistes et le conseil en activité physique: des évidences aux contingences de la consultation. Sante Publique. 2016; s1(HS):153-61. 27. Dziuban A, Sekuler T. Mapping HIV-related figures of risk in Europe’s blood donation regime. Disentangling European HIV/AIDS policies: activism, citizenship and health (EUROPACH). Working Paper. 2017;17. 28. Franklin M, Lewis S, Willis K, Bourke-Taylor H, Smith L. Patients’ and healthcare professionals’ perceptions of self-management support interactions: systematic review and qualitative synthesis. Chronic Illn. 2018; 14(2):79-103. 29. Maturo A. Doing things with numbers. The quantified self and the gamification of health. J Med Humanit Soc Stud Sci Technol. 2015; 7(1):87-105. 30. Lombi L, Marzulli M, editors. Theorizing sociology in the digital society. Milan: FrancoAngeli; 2017. 31. Petrič G, Atanasova S, Kamin T. Impact of social processes in online health communities on patient empowerment in relationship with the physician: emergence of functional and dysfunctional empowerment. J Med Internet Res. 2017; 19(3):1-17.

Traduzido por Caroline Luiza Alberoni

Submetido em 31/07/18. Aprovado em 02/08/18.

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Tensions and paradoxes in health involving rights, knowledge and trust: mapping the debate and pointing to directions of research Rights, knowledge and trust are key drivers of comprehensive-based health systems around the globe regardless of specific functioning and funding schemes. Health-related rights build around the expectancy of living longer and better on the basis of an inclusive definition of health that embraces well-being and in which access to healthcare and respect for individuals’ self-determination are two cornerstones. Health-related knowledge regards the role of evidence in clinical and political decision-making and, increasingly, articulation with better informed, more demanding lay knowledge. Trust in health entails individuals’ relationship with health systems and professionals. Underpinning this relationship is a moral contract based on which individuals partially abdicate personal choices and motivations in favour of collective management of knowledge and behaviours. The outcome is presumably the pursuit of equal opportunities and less exposure to the market’s negative effects. Much has been said about the positive effects of representative policies, respect for the different types of knowledge and the collective risk management on health outcomes and social cohesion. Also, the multiplying effect of comprehensive-based health systems on the economy and social security schemes is still undeniable in so-called post-truth politics. The political pathway on health issues in both developing and developed countries in the second half of the 20th century was able to overcome wellknown tensions. Policies have been increasingly aligned with the needs of migrants, ethnic and religious minorities, women, children, the elderly and LGBTI. Regulators have sought to interfere more and more in professionals’ conduct to ensure safe, transparent clinical decisions and ensure better control over the provision of healthcare. Knowledge has been given a key position in informing policy decision-making and protecting people’s lives. The people’s voice has been heard more and more in the governance of health systems. The issue in 2020 should be whether these past tensions have been effectively overcome and the extent to which new paradoxes are making the unsolved problems more complex. Where old tensions are concerned, health inequalities persist and healthrelated rights are not always respected. Health professionals’ conduct is under continuous scrutiny even though their mediating role between evidence and users is perceived as decisive to population health, which has resulted in a seemingly contradictory relationship of distrust of and dependence on expert knowledge. Users are held accountable for their choices while the constraints underpinning individual lifestyles are ignored. Private for-profit investment in R&D is still just as important to ground-breaking knowledge and technologies, because it conditions political and academic agenda-setting, even though it builds on unfair geopolitical relationships around the world due to complex links involving health in political, military and economic affairs. Emerging paradoxes in health include global warming, the 2008 financial and economic crisis, the growing flows of migrants and refugees, the resurgence of political extremism and nationalism, just to mention a few examples. These phenomena are not geographically delimited and they impact on a considerable number of people. They affect people’s health and well-being and the functioning of health systems on a global scale and call for further academic attention. ‘Old Tensions, Emerging Paradoxes in Health: rights, knowledge, and trust’ set the tone for the 17th European Society for Health and Medical Sociology

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DOI: 10.1590/1807-57622018.0438

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biennial conference held in Portugal in 2018. The main topics of discussion at the conference are summarized here for a diagnosis of some health-related tensions and paradoxes around the globe and point to directions for future research. Medicalization (the way ‘things are made medical’) is still key in the debate and is embraced in multidimensional approaches. One approach to medicalization has to do with the ethical and moral issues of biotechnological innovation, given that its practices and decisions may change individuals’ expectations of their living experience and relationships with others, especially in transitional stages of life (e.g. medically assisted procreation and palliative care1). Another approach to medicalization concerns disputes for rights and legitimacy. The extent to which medical doctors seek to protect the status of medicine’s scientific evidence and allied health professionals to demonstrate the value of their practice is wellknown. Furthermore, the different branches of so-called complementary and alternative medicine are shining the light on the added value of non-biomedical approaches to life. An emerging issue is how individuals and groups make use of medical knowledge against specific views of the interplay between pathology and behaviours (e.g. the transition stories of trans-men and their views of masculinity2). The point is whether medicalization and pathologisation are distinct analytical dimensions, in which it is helpful to bring concepts like agency and reflexivity to the debate. Briefly, the underlying issue in studying medicalization should be make better sense of empirical differences as to how diseases and pathologies are acknowledged as such in the global context of medical pluralism3. Human reproduction is not a new topic, although it is too often disregarded outside feminist studies and social movements. Greater importance needs to be given to the intersection between forms of social and political regulation and individuals’ rights to self-determination in order to strengthen academic research. One question is whether these forces are in opposition or somehow articulate and, in the latter case, how the articulation translates. Another question is how the dimensions involved in human reproduction (e.g. fertility, contraceptive choices, assisted reproductive technologies, childbirth and parenting roles) are linked to a variety of analytical dimensions. These include bodily experiences, gender representations, social stratification, migration, work models, work-family balance, the interplay between lay experiences and expert knowledge, healthcare funding and delivery, professional practices, ideologies and values and agency and citizenship rights4-6. Knowledge and trust in health are interrelated topics about which there is a vast array of literature. Trust has to do with the truster’s positive expectations from the trustee’s expertise and intentions. Traditionally viewed from users’ and regulators’ perspectives of health professionals, it has been increasingly argued that there should be more evidence on professionals’ trust in their peers, healthcare providers, funders, scientific evidence and patients. Also, we need to know whether and how technology shapes trustworthiness7. Another topic of discussion is whether trust in the medical profession is in decline, as empirical evidence points to seemingly contradictory findings in different countries and health services8. What may be at stake are different regulatory processes that in fact change normative conceptions of trust, although empirical misinterpretations should not be ruled out. One step towards better identification of empirical misinterpretation as to whether trust in the medical profession is in decline is to pinpoint the focus of scepticism. Does it relate to the knowledge itself or to the interacting players? One thing is being sceptical about medical evidence in favour of another type of knowledge; another is being sceptical about who applies the knowledge. The answer to this question entails recognising the disputes 988

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between lay and expert knowledge and between the different branches of expert knowledge over rights and legitimacy. A third topic of discussion is changes in the clinical approach to evidence, practice and patients that is emerging from within the medical field, so-called narrative medicine. Although academic attention has grown9, uncertainties remain as to its content, practice, outcomes and epistemological positioning within the field of medical humanities, hence suggesting the need for further questioning and critical evaluation10. Social inequalities are key in health research and can be explored in the bidirectional link between asymmetric relationships and distribution of resources on the one hand and health, well-being, mortality and morbidity on the other. Initially limited to income-based stratification, conceptual advances have demonstrated that privileges and disadvantages are multidimensional and interdependent11. They may be related to cultural and social capitals12-14, working conditions, workload and work-family balance15, employment status16 or gender, ethnicity and citizenship17. Moreover, these social inequalities in health systems can be viewed in terms of access to healthcare, quality of user-professional interaction and individuals’ ability to understand, cope with and make use of expert information. One interesting direction of research is to expand on the multidimensionality and interdependency of factors underpinning asymmetric relationships and distribution of resources in health. Another is to reflect on how and why certain social attributes in health are linked to dominance and discrimination. A third direction is to look deeper into the twofold influence of social determinants and health outcomes. A fourth direction is to make use of these conceptual developments in applied research, especially epidemiology and related medical fields. Health reforms are a broad field of discussion that can be approached from different angles of analysis. One angle that was addressed at the conference was the role of clinical leaders in improving cost control, quality and safety as an alternative to top-down decisions from outside health organizations and severe budget cuts18. Nonetheless, differences in national health systems and contradictory findings in the literature as to the outcomes of institutional entrepreneurs make it necessary to conduct further empirical research in different countries and settings. Another direction is finding out which actors are best in leadership roles and what combination of professional-managerial expertise best enhances organizational outcomes and intra- and inter-professional relationships. It is also important to study the effects of leadership roles on professions’ ideologies, autonomy and authority19. Another angle of analysis on health reforms was the adaption of health systems to forced mobility (e.g. migrants, refugees and asylum seekers). This issue has been particularly important in Europe20 but it should concern every health system whose principles lie in solidarity and risksharing. The directions of research include how different countries are generally coping with these phenomena, limits to inclusiveness and a rise in discrimination and the political, ideological and representational effects on both the resident population and newcomers21. A third angle of analysis of health reforms was users’ involvement in decision-making. Studies should foster an analytical position (instead of a normative one) that allows a better understanding of changes in political representativeness and citizenship, individuals’ relationships with expert knowledge and institutions and inner dynamics of advocacy groups22. Behaviours, well-being and technologies reflect the effects of seemingly new opportunities given to individuals in the context of consumerism, freedom of choice and informed decisions. One direction of research is how individuals’ choices of and accountability for health outcomes link with risk, gender, age,

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equality and emancipation23-25. There are also the changes in policies on informal care, self-management and body governance in the pursuit of well-being26 and better management of non-communicable and communicable diseases27,28. Technology is key to this debate, given that it dematerializes processes, reduces time and space and, by giving individuals room for manoeuvre to make their own decisions, is likely to reconfigure human interactions between users and professionals29-31. It is also important to further analyse the effects of data privacy and surveillance, and the changes made by artificial intelligence. Tiago Correia(a) ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Avenida das Forças Armadas, 1649-026. Lisboa, Portugal. tiago.correia@iscte-iul.pt (a)

References 1. Delaunay C, Martins AC. Dialectical tensions between caregivers and patients in ART and Palliative Care: ethical and moral issues raised by the (bio)medicalization of birth and death. In: Resende JM, Martins AC, organizers. The making of the common in social relations. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing; 2015. p. 53-100. 2. Aboim S, Vasconcelos P. Sexualities in the social world. In: Proceedings of 110th ASA Annual Meeting; 2015; Chicago. Chicago: ASA; 2015. 3. Correia T. Revisiting medicalization: a critique of the assumptions of what counts as medical knowledge. Front Sociol. 2017; 2:14. 4. Borozdina E. Introducing ‘natural’ childbirth in Russian hospitals. Midwives’ institutional work. In: Zvonareva O, Popova E, Horstman K, editors. Health, technologies, and politics in post-soviet settings. Basingstoke: Palgrave Macmillan; 2018. p. 145-71. 5. Jette AC, Santos M. Capturing the complexity of practice as an insider: in-labour ethnography. In: Church S, Frith L, Balaam M-C, Berg M, Smith V, van der Walt C, et al. editors. New thinking on improving maternity care: international perspectives. London: Printer and Martin; 2017. p. 73-89. 6. Vanderlinden K, Levecque K, Van Rossem R. Breastfeeding or bottled milk? Poverty and feeding choices in the native and immigrant population in Belgium. J Immigr Minor Health. 2015; 17(2):319-24. 7. Douglass T, Calnan M. Trust matters for doctors? Towards an agenda for research. Soc Theory Health. 2016; 14(4):393-413. 8. Calnan M, Rowe R. Trust matters in healthcare. London: Open University Press; 2008.

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10. Fernandes I. Leituras holísticas: de Tchékhov à medicina narrativa. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):71-82.

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9. Fernandes I, Martins C, Reis A, Sanches Z, editors. Creative dialogues: narrative and medicine. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing; 2015.

11. Gkiouleka A, Huijts T, Beckfield J, Bambra C. Understanding the micro and macro politics of health: inequalities, intersectionality & institutions-a research agenda. Soc Sci Med. 2018; 200:92-8. 12. Veenstra G. Social capital, SES and health: an individual-level analysis. Soc Sci Med. 2000; 50(5):619-29. 13. Delaruelle K, Buffel V, Bracke P. Educational expansion and the education gradient in health: a hierarchical age-period-cohort analysis. Soc Sci Med. 2015; 145:79-88. 14. De Clercq B, Abel T, Moor I, Elgar FJ, Lievens J, Sioen I, et al. Social inequality in adolescents’ healthy food intake: the interplay between economic, social and cultural capital. Eur J Public Health. 2017; 27(2):279-86. 15. Muckenhuber J, Volk H. Gesundheitliche Ungleichheit im internationalen Vergleich. In: Jungbauer-Gans M, Kriwy P, editors. Handbuch Gesundheitssoziologie. Springer Reference Sozialwissenschaften. Wiesbaden: Springer Fachmedien; 2018. p. 1-27. 16. Mikucka M. Does individualistic culture lower the well-being of the unemployed? Evidence from Europe. J Happiness Stud. 2014; 15(3):673-91. 17. Parra-Casado D, Stornes P, Solheim E. Self-rated health and wellbeing among the working-age immigrant population in Western Europe: findings from the European social survey (2014) special module on the social determinants of health. Eur J Public Health. 2017; 27 Suppl 1:40-6. 18. Denis J-L, Dompierre G, Langley A, Rouleau L. Escalating indecision: between reification and strategic ambiguity. Organ Sci. 2011; 22(1):225-44. 19. Correia T, Denis J-L. Hybrid management, organizational configuration, and medical professionalism: evidence from the establishment of a clinical directorate in Portugal. BMC Health Serv Res. 2016; 16 Suppl 2:161. 20. Botrugno C. Immigrazione ed unione europea: un excursus storico ragionato. Sociol Diritto. 2014; 1:121-43. 21. Lombardi L. Violence against refugee and migrant women. The reproduction of gender discrimination and inequality. Milan: ISMU Foundation; 2017. 22. Raz A, Jordan I, Schicktanz S. Exploring the positions of German and Israeli patient organizations in the bioethical context of end-of-life policies. Health Care Anal. 2014; 22(2):143-59. 23. Følling IS, Solbjør M, Midthjell K, Kulseng BE, Helvik A-S. Exploring lifestyle and risk in preventing type 2 diabetes-a nested qualitative study of older participants in a lifestyle intervention program (VEND-RISK). BMC Public Health. 2016; 16:876. 24. Lewis S, Willis K, Collyer F. Navigating and making choices about healthcare: the role of place. Health Place. 2018; 52:215-20. 25. Verbakel E. How to understand informal caregiving patterns in Europe? The role of formal long-term care provisions and family care norms. Scand J Public Health. 2018; 46(4):436-47. 26. Bloy G, Philippon L, Rigal L. Les médecins généralistes et le conseil en activité physique: des évidences aux contingences de la consultation. Sante Publique. 2016; s1(HS):153-61. 27. Dziuban A, Sekuler T. Mapping HIV-related figures of risk in Europe’s blood donation regime. Disentangling European HIV/AIDS policies: activism, citizenship and health (EUROPACH). Working Paper. 2017;17. 2018; 22(67):987-92

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28. Franklin M, Lewis S, Willis K, Bourke-Taylor H, Smith L. Patients’ and healthcare professionals’ perceptions of self-management support interactions: systematic review and qualitative synthesis. Chronic Illn. 2018; 14(2):79-103. 29. Maturo A. Doing things with numbers. The quantified self and the gamification of health. J Med Humanit Soc Stud Sci Technol. 2015; 7(1):87-105. 30. Lombi L, Marzulli M, editors. Theorizing sociology in the digital society. Milan: FrancoAngeli; 2017. 31. Petrič G, Atanasova S, Kamin T. Impact of social processes in online health communities on patient empowerment in relationship with the physician: emergence of functional and dysfunctional empowerment. J Med Internet Res. 2017; 19(3):1-17.

Submitted on 07/31/18. Aproved on 08/02/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0464

La enseñanza de Historia en las profisiones de la Salud

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La enseñanza de Historia Social en la carrera de Enfermería Juan Manuel Cerdá(a) Karina Ramacciotti(b)

Cerdá JM, Ramacciotti K. The teaching of Social History in the Nursing profession. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):993-1002.

This study presents a teaching experience of Social History in Nursing undergraduate courses. Specifically, it has the aim to show how cinematographic documentaries are a suitable tool to train human resources in the Social Sciences field and notably in Nursing. Documentaries allow nursing professionals to observe expectations and the collective imaginary of specific social groups, allowing to see and listen to direct participants. This contribution is used together with readings during classes and students experiences.

Keywords: Social History. Nursing. Cinematographic documentary. History teaching.

Este artículo presenta una experiencia didáctica de Historia Social en el ámbito de la Licenciatura en Enfermería. En particular, se pretende mostrar cómo los documentales cinematográficos son un medio idóneo para la formación de recursos humanos en el ámbito específico de las ciencias sociales en general y de la enfermería en particular. El cine documental nos permite observar las expectativas y los imaginarios de ciertos grupos sociales, y permitir escuchar y ver a los participantes directos. Dicho aporte, luego, es puesto en tensión con las lecturas de clase y las vivencias de los propios estudiantes.

Palabras clave: Historia Social. Enfermería. Documental cinematográfico. Enseñanza de Historia.

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Godoy Cruz 2290. Buenos Aires, Argentina. jmcerda@ unq.edu.ar; karinaramacciotti@ gmail.com (a, b)

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Introducción ¿Por qué y para qué estudiar Historia en la carrera de Enfermería? Esta quizás sea una de las preguntas más recurrentes que nos hacen las y los estudiantes al momento de comenzar cada curso. Nuestro desafío es que, al final de la cursada, sean ellos los que puedan encontrar un sentido a la materia, al margen del sentido pragmático que puedan encontrar al aprobarla. Si bien, tenemos muchas dudas en torno a la creencia que sostiene que conocer el pasado sirve para no realizar los mismos errores de otros tiempos, consideramos que, si de algo sirve la historia es para comprender mejor las prácticas cotidianas y la formación integral del enfermero. En función de esta convicción, entendemos que enseñar Historia Social en la carrera de Licenciatura en Enfermería de la Universidad Nacional de Quilmes (UNQ) nos interpela sobre los desafíos que plantea ser enfermeros. El cuidado profesional demanda saberes, técnicas y habilidades que apuntan a la promoción, recuperación, mantenimiento de la salud y, en la medida de las posibilidades, una transición digna a la muerte. Estos procesos se van reformulando al calor de las tecnologías médicas y las posibilidades concretas de implementarlas en contextos sociales diversos. Estas modificaciones y, también las continuidades, portan una historicidad que es el eje central de reflexión de la asignatura Historia Social. Los procesos de salud, enfermedad y muerte nos interesan en cuanto su capacidad de haber ingresado al debate público y haber impulsado modificaciones en las estructuras del Estado, cambios en las relaciones profesionales y de géneros. Abordar dichos procesos, nos permite comprender la complejidad del mundo en el que estamos inmersos, evitar las interpretaciones simplistas y prestar atención a las voces marginales, muchas veces silenciados por los relatos tradicionales. Tal como advierte Claudia Agostoni1, las historias acerca de los procesos de enfermedad, salud y cuidados no están ceñidos a una lógica y tampoco a un modelo inequívoco para articularlas. Si por algo se distinguen, al igual que otros campos de la investigación histórica actual, es por la fragmentación y por la tensión entre los diferentes actores y niveles de complejidad. Por ello, es vital reconstruir los múltiples contextos en los que esas historias se han inscripto: contextos específicos y puntuales del pasado que requieren un examen exhaustivo para analizar sus causas, regularidades, filiaciones, móviles, motivos e impulsos implícitos y explícitos. Es decir, no sólo es apremiante el análisis de un vasto cúmulo de información y de fragmentos dispares de múltiples procedencias, sino también de anclarle sólidamente a un contexto histórico, temporal, espacial, cultural, político y social puntual. Dentro de este marco, la Enfermería reviste la particularidad de definirse a sí misma en términos de su objetivo de brindar cuidados. Así pues, en este artículo nos interesa reflexionar sobre el papel que cumple una de las dinámicas usadas en clase como es el análisis de documentales que portan una interpretación sobre la expansión del sistema sanitario, la consolidación de organismos públicos, la formación de enfermeras profesionales y el influjo algunos referentes de la Enfermería y de la medicina argentina. Las películas son de gran utilidad para discutir procesos, reforzar ideas y agudizar el espíritu crítico en los ámbitos educativos. En general, las películas son recomendados como materiales anexos o complementarios de las clases, pero no se constituyen en objeto de estudio de los estudiantes como pretendemos hacerlo aquí. A partir de estas apreciaciones, este artículo tendrá dos apartados. Primero se discute la importancia y la utilidad de incluir la materia Historia Social en la formación de Enfermería. En el segundo se analiza las potencialidades de incluir los registros audiovisuales en la enseñanza de las políticas sanitarias y de la formación de enfermeras en la Argentina. Estos documentales son: Tierras prohibidas. La historia de Cecilia Grierson (2006), Ramón Carrillo, El médico de Pueblo (2007), Las enfermeras de Evita (2015).

¿Por qué Historia Social para la formación de Enfermería? La apertura de la carrera de Enfermería en las universidades del conurbano bonaerense durante de la primera década del siglo XXI ha permitido la formación de profesionales con una alta calidad técnica y una sólida formación profesional. Este espacio facilitó el acceso a la universidad de un conjunto de trabajadores y trabajadoras de la salud y de jóvenes que se incorporaron a la universidad con el fin 994

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de obtener un título habilitante. En este contexto, el compromiso de la Universidad ha sido brindar una formación integral y no sólo técnica a las y los enfermeros. En así que se incorporaron asignaturas orientadas a la formación humanística a partir de la cual se brindan conocimiento de los procesos históricos y sociales de su profesión. El objetivo explícito de la asignatura es transmitir un panorama de la Historia Social de la salud y la enfermedad en Argentina. En particular se ha optado por brindar un recorrido centrado en el estudio del sistema sanitario y las características de las profesiones ligadas al cuidado, en la cual la Enfermería cumple un papel fundamental. El programa se divide en dos ejes. El primero transita los posibles entrecruzamientos entre el proceso de construcción de la política social en Argentina, especialmente en lo que atañe al campo de la salud pública. Se delinean allí, procesos fundamentales como la conformación y el afianzamiento de la corporación médica como grupo profesional, al calor de las urgencias impuestas por los brotes epidémicos del siglo xix, su papel en el diseño de las primeras medidas vinculadas a la salubridad pública; el estudio del surgimiento y consolidación de las reparticiones sanitarias durante el siglo xx y la delimitación e implementación de las políticas en este campo. Además, se pretende desentrañar los conceptos que entrecruzan estos armados institucionales. Así pues, higienismo, sanitarismo y comunitarismo serán los plafones de ideas desde donde se impulsarán gran parte de las intervenciones públicas en salud del siglo xx. Uno de los ejes vertebradores de esta primera parte es revisar las continuidades y las rupturas que se produjeron durante el siglo xx en materia de políticas sanitarias a fin de alejarnos, en lo posible, de los marcos temporales delimitados por los procesos políticos locales o internacionales. El segundo eje se enfoca en la historia de la Enfermería en Argentina ya que consideramos importante avanzar en la reconstrucción de las historias de las especialidades. También, es necesario situarlos como actores activos y relevantes ya que, en definitiva, son parte constitutiva del sistema sanitario, aunque hayan sido colocadas en un lugar secundario por la historia de la salud más tradicional. Los relatos centrados en las llamadas grandes figuras, muchas veces denominados pioneros o apóstoles de la Medicina o de la Enfermería, oculta a quienes tuvieron un papel destacado en el surgimiento y en la consolidación del sistema sanitario. Enfermeras, visitadoras, parteras, auxiliares, entre otras profesiones, merecen un estudio profundo y detallado que entrelace sus características laborales particulares ligadas al cuidado de los otros/otras con las afectivas. El cuidado es un trabajo que, como todos, implica tiempo, conocimientos y relaciones sociales complejas. Su especificidad es la de estar basado en lo relacional y su carácter, a la vez obligatorio y desinteresado le otorga una dimensión moral y emocional que está marcado por la relación de servicio y asistencia. El análisis de la profesionalización de ocupaciones feminizadas, entre las cuales se encuentra la Enfermería, resulta un desafío para estudiar cómo la dominación sexual no sólo estructura el hogar conyugal, por el contrario, es capaz de definir roles en los lugares de trabajo, incluso en aquellos donde el conocimiento y la expertise pretenden o se adjudican cierta neutralidad de género. El establecimiento del control, la autonomía y el límite de muchas profesiones respecto de la medicina y otras ocupaciones afines es un inacabado proceso histórico que se hace necesario desmenuzar para librar a las profesiones ligadas al cuidado de la pesada carga de la subalternidad, la jerarquía y la naturalización con que se las suele asociar y analizarlas como actividades que demandan energía, tiempo, recursos financieros y en la que intervienen saberes, redes sociales, tecnologías y tareas específicas2. En este contexto institucional y normativo, una de las estrategias utilizadas para motivar a las y los estudiantes es buscar constantes conexiones, ya sea entre el pasado y el presente, o entre problemáticas generales y circunstancias concretas con su futura (o actual) inserción profesional. Esta es una cuestión central, pues la historia carece de sentido si quienes la estudian no le asignan algún tipo de valor o funcionalidad con relación a sus intereses, dudas y necesidades. En efecto, no hay posibilidad de aprendizaje significativo si éste no puede ser relacionado con los conocimientos previos de los distintos sujetos que encaran la tarea de aprender, así como tampoco si no hay una disposición afectiva o motivación que los lleve a involucrarse3. El empleo de fuentes y recursos audiovisuales está pensado de manera de despertar el interés en los y las alumnos/as e incentivarlos/las al intercambio de opiniones, el establecimiento de conexiones y el 995


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fomento de planteos y discusiones sobre la cuestión abordada, en forma articulada con el tratamiento de la bibliografía. A partir de esta batería de materiales esperamos que los y las estudiantes incorporen categorías analíticas que permitan superar los meros datos anecdóticos o descriptivos y puedan avanzar hacia la integración o conexión de temas, problemas y temporalidades diferentes. A continuación analizaremos los desafíos que nos impone una de las estrategias didácticas que usamos en la cursada: la proyección de documentales cinematográficos, entendidos como una producción que da cuenta de procesos históricos particulares. En general, se piensa al documental como un “reflejo” de la realidad cuando en verdad es una reconstrucción discursiva del pasado que tiene como finalidad informar, educar y formar opinión en la mayoría de los casos. Como dice Lidia Acuña el cine documental es una imagen de lo real que no sustituye a lo real sino que nos trae la experiencia de otros en el proceso de filmar4. Detrás de un documental hay un realizador que elige un tema, que lo desarrolla y lo presenta como “la realidad”. Una realidad mediada por intereses económicos, políticos y sociales que, a su vez, estarán cruzadas por las experiencias y un contexto histórico presente que ha llevado al grupo de dirección y producción involucrarse en dicho proceso de creación. También, debe tenerse en cuenta que en el cine existen limitaciones técnicas y estéticas condicionan al realizador. Este contexto debe ser analizado y puesto en un primer plano a la hora de reflexionar sobre el mensaje del documental.

Documentales para la enseñanza de la Historia El cine documental es un instrumento de comunicación que fue utilizado desde comienzo del siglo XX y que pretende llegar al mayor número posible de individuos. Su objetivo es plural: narra, representa, influye, comunica, informa, enseña, crea y recrea modelos de comportamiento; y transmite, a partir de las ideas del que ejerce la dirección fílmica, los problemas, angustias, sueños o necesidades de un grupo determinado de la sociedad. En otras palabras, el documental produce la condensación entre el conocimiento y el reflejo sensorial y sensitivo necesario para su mayor proximidad con las representaciones sociales. Desde la historia, Ferro5 fue uno de los primeros analistas que vieron el cine como una fuente de documentación útil para la investigación y la enseñanza de la Historia, debido a sus enormes posibilidades de expresión y a su capacidad para mostrar y connotar determinados aspectos de la vida cotidiana: estereotipos, mentalidades, poder simbólico, relaciones sociales de género, etc. Según el realizador y el teórico inglés Rotha6, el cine documental es un medio de expresión poderoso ya que puede encontrar los medios a través de los cuales puede emplear su capacidad de persuasión pública para ubicar a las personas y sus problemas delante de sí mismo y, por tal motivo, tiene un enorme potencial educativo. Según este autor, los documentales deben reflejar los problemas y las realidades del presente, pero no tendrían que lamentarse del pasado y suele ser peligroso para el género intentar predecir el futuro. Si bien el pasado se utiliza como fuente, solo se lo hace para ponerlo al servicio de un argumento moderno. Desde ciertas interpretaciones, el documental no es una reconstrucción de “la realidad” histórica y los intentos de transformarlo en eso están destinados al fracaso. Como suele suceder con los relatos históricos, ningún documental puede ser completamente verdadero, es solo un punto de vista en torno a ciertos sucesos que permite reflexionar sobre temas, acciones, procesos. Abundan películas que tiene como finalidad mostrar procesos políticos históricos tales como las Guerras Mundiales, la Revolución Rusa, el Holocausto, etc. Los temas vinculados a las crisis sociales desencadenadas por procesos de enfermedades crónicas epidémicas o endémicas, sucesos de invalidez y muertes ocupan un lugar accesorio que, en ciertas lógicas argumentativas, colabora con el tono de dramatismo argumental o para construir un relato heroico, en el cual médicos y enfermeras, se convierten en protagonistas anónimos. Para el caso argentino, no se cuentan con películas realizadas desde las agencias sanitarias que tuvieran como fin la educación higiénica, tal como el caso mexicano, solo se cuentan con un conjunto de cortos cinematográficos producidos durante el peronismo y preservados en el Archivo General de la Nación. Sin embargo, existen materiales fílmicos ligados a los procesos de salud, enfermedad, cuidados 996

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y muerte. Los más antiguos son dos operaciones quirúrgicas realizadas por el doctor Alejandro Posadas en el Hospital de Clínicas de la Universidad de Buenos Aires a fines del siglo XIX. Estas breves imágenes (duran cerca de tres minutos cada una) son los registros más remotos que existen en nuestro país de la relación entre el cine y la enseñanza de las Ciencias Médicas. Poco se sabe acerca de las circunstancias de rodaje de estas películas llamadas “Operación de quiste hidatídico de pulmón (1897)” y “Operación de hernia inguinal (1899)”, ambas técnicas quirúrgicas desarrolladas por Posadas7. A este remoto antecedente, debemos sumar un interesante corpus de filmes de ficción para analizar cómo en diferentes momentos del siglo XX fue representado el hospital público, las políticas sanitarias, la relación médico paciente y el tema salud y enfermedad. Solo para mencionar algunas películas y, sin pretender hacer un análisis exhaustivo, podemos mencionar Sala de Guardia (1952, Tulio Demicheli), Mercado de Abasto (1954, Lucas Demare), De turno con la muerte (1951, Julio Porter), Darse cuenta (1984, Alejandro Doria) y Casas de fuego (1995, Juan Bautista Stagnaro), entre muchas otras. Más allá de las diferencias, estas películas suelen destacar la heroica entrega de los médicos a su oficio de curar; la subalternidad de las enfermeras; las tragedias individuales o familiares provocadas por la negligencia o ignorancia de quienes se enferman; las responsabilidades sociales del Estado en el sostenimiento de los hospitales públicos y las bondades de la medicina moderna por sobre otras formas de curar. A partir de la presidencia de Néstor Kirchner se impulsó una política de fomento al cine por medio INCAA (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales) y se vio reflejada en el incremento a los subsidios al cine de ficción y a los documentales. La promoción a los documentales debe entenderse, también, como parte de un contexto más amplio donde el documentalismo latinoamericano se expandió gracias a las figuras de grandes realizadores como el brasileño Eduardo Coutinho, el chileno Patricio Guzmán, el uruguayo Mario Hendler y el argentino Fernando Solanas. En el ámbito local, esto se tradujo en el surgimiento de nuevas universidades de cine, el desarrollo de revistas especializadas y colectivos de cineastas como es Documentalistas Argentinos (DOCA). En este marco, y a partir del 2005, se realizaron tres documentales cinematográficos que tuvieron como objetivo destacar aspectos relacionados con procesos de la historia de la salud y la enfermedad: Tierras Prohibidas. La historia de Cecilia Grierson (Silvina Chague, 2006); Ramón Carrillo, El médico de pueblo (Enrique Pavón Pereyra (hijo), 2007); y Las Enfermeras de Evita (Marcelo Goyeneche, 2015). Los tres documentales proponen la interrelación entre sucesos que se produjeron en el pasado con situaciones actuales y utilizan el testimonio como una estrategia para dar voz a figuras marginales de los relatos historiográficos habituales. La potencia de la voz de los protagonistas constituye un recurso utilizado que permite hacer pública la vida privada de los distintos agentes y, desde ese lugar, sacarlos de la invisibilidad que se pretende modificar. En este sentido, comparten también la construcción del discurso argumental que parte del presente para analizar el pasado. Esta construcción, habitual del género documental, sirve para analizar los procesos de institucionalización y de la construcción histórica de la feminización de los y las enfemeros/as. En particular, los dos documentales que relatan situaciones ocurridas durante el primer peronismo –Ramón Carrillo… y Las enfermeras de Evita– tienen una mirada romántica del pasado y buscan, en dicho período, una agenda que permita reflexionar sobre el presente. Más allá de sus diferencias, el discurso audiovisual se construyen a partir de la realización de entrevistas y la utilización de la “voz en over” acompañada por imágenes de archivo. Esta técnica tiene como objetivo la creación de climas de atención que pretende transmitir un halo de autenticidad a la narración. Así, los documentales suelen invitar al espectador a validar como verdadero lo que los sujetos narran en sus entrevistas, aspecto que aleja al documental del cine tradicional donde la ficción nos invita a sospechar de lo que dicen los personajes7. Esto fue llevado al extremo en el documental sobre Cecilia Grierson donde la protagonista dialoga con su pasado, suponiendo una conversación entre una Cecilia ya entrada en años y otra en su etapa de juventud. Este recurso, en algunos pasajes, hace caer al director en anacronismo y en diálogos poco verosímiles. Por otro lado, Tierras Prohibidas y Las Enfermeras de Evita incorpora al clásico documental la dramatización del pasado y los musicales. Esta tendencia tiene un doble objetivo: por un lado, la ficción es introducida para mostrar los límites difusos que existen entre el cine de ficción y el documental y, por otro lado, constituye un intento de renovar el género para lograr que atraiga a un 997


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público más amplio y no solamente a quienes se interesan por la historia. Los tres ejemplos logran adaptarse al doble objetivo de captar la atención del espectador – especializado o no – sin renunciar a abrir la polémica sobre los hechos. En todos los casos los sucesos históricos son contrastados con la actualidad, tendiendo puentes de interpretación entre ambos. En este sentido, ‘actualizan’ el pasado, lo reavivan y le dan al documental cierta utilidad social8. Cronológicamente el film Tierras Prohibidas es el primero de la serie. A través de la recreación de la vida de la primera médica argentina Cecilia Grierson (1859-1934) y a partir de narrar diferentes aspectos de su vida y su carrera se metaforizan varios de los obstáculos y prejuicios de la mujeres profesionales en el sistema de salud. De los tres documentales analizados Tierras Prohibidas fue el único que logró ser declarado de interés social y cultural por la Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires en el 2008 por un proyecto de la filósofa feminista y, por entonces, legisladora Diana Maffía. Este documental nos sirve para revisar como fue el camino de las mujeres en el mundo profesional vinculado a la medicina y como se aunó su trabajo al reformismo social y al feminismo. Asimismo, el documental nos permite reflexionar sobre cómo las mujeres deciden moverse en el universo supuestamente masculino. A partir de la figura de Grierson el director del documental construye un discurso por medio del cual la protagonista, para sobrevivir al mundo masculino de la universidad, debe dejar de lado las “características femeninas” y, en la medida de lo posible, se anula la sensualidad femenina. Transformando sus cualidades “naturales femeninas” a un estilo sobrio, cierta rigidez y rectitud, todas conductas supuestamente masculinas. También, nos permite poner en discusión cómo ejercen el poder las mujeres, se suele asociar la ambición como un atributo masculino, por lo que aquellas mujeres que buscan el ascenso y el prestigio no estarían en línea con los atributos marcados por su sexo, el que determinaría un lugar subordinado y desinteresado. El documental trae a colación tanto el ejemplo de Cecilia Grierson, por medio de la recreación ficcional, como el de la Dra. Silvia Kochen (Jefa del Servicio de Neurocirugía del Hospital Ramos Mejía), por medio del recurso del testimonio. Ambas, diferenciadas por la época que les tocó vivir, buscan espacios de poder y prestigio dentro de la comunidad científica por lo cual nos lleva a cuestionar ese supuesto rol naturalizado y esencializado de las mujeres. En las entrevistas se revelan, también, otros aspectos que se continúan hasta el presente como son la misoginia, los límites de ciertas profesiones para las mujeres y el grado de segregación/discriminación al interior de la profesión médica. Esto no sólo se revela a partir de las entrevistas sino que para reforzar el discurso son teatralizados. Los otros dos documentales deben ser analizados dentro de la revalorización que se realiza, a partir del 2006, de la figura de Ramón Carrillo con el cumplimiento del centenario de su nacimiento. Carrillo fue el primer ministro de salud de la Argentina durante el primer peronismo y quien colaboró con la expansión del sistema de salud público de manera significativa. Cabe recordar que la primera valoración tanto de su desempeño en el campo de la ciencia como desde el punto de vista político fue en los años 1970. En aquellos años la reivindicación coincidió con la repatriación de sus restos mortales desde Brasil, la entrega póstuma del título de Profesor de Neurocirugía de la Universidad de Buenos Aires (UBA) y la publicación por parte de la editorial Eudeba de algunos de sus trabajos. En ese marco Rodolfo Alzugaray9 contribuyó con una biografía sobre Carrillo con características laudatorias. En el 2002, esta entronización encontró eco cuando una comisión de expertos de la Organización Panamericana de la Salud eligió a Carrillo como uno de los “Héroes de la Salud en la Argentina”, y destacó su gestión contra el paludismo y sus aportes al campo de la neurocirugía. Otro momento clave en la vindicación de la figura de Carrillo fue el año 2006, declarado por el presidente de la Nación, Néstor Kirchner, “año de Homenaje al doctor Ramón Carrillo”, en el centenario de su nacimiento, ocurrido en Santiago del Estero el 7 de marzo de 1906. A partir de entonces se han sucedido diferentes homenajes que van desde la concreción de actos públicos, instalación de bustos en plazas y hospitales, grafitis en paredes con su figura y algunas de sus frases, inauguración de numerosos centros hospitalarios que llevan su nombre, la publicación de numerosas notas periodísticas, la realización de una canción folclórica que porta una oda a su figura, la elaboración de una serie de dibujos animados infantiles que apuntan a mejorar la educación sanitaria y tienen al “Dr. Carrillo” como protagonista central, y el lanzamiento de una producción cinematográfica acerca de su vida denominada Ramón Carrillo, El médico de pueblo. 998

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El documental dirigido por Enrique Pavón Pereyra (hijo) se presentó como el primero de una Colección de Vidas Argentinas que no tuvo desarrollo luego de este documental. Ramón Carrillo, El médico de pueblo pretende sintetizar los aspectos más destacados de su gestión tales como la creación de hospitales, la erradicación de endemias y epidemias, la formación de médicos y enfermeras así como también la honradez y lealtad hacia su presidente. La estrategia narrativa está basada en entrevistas de funcionarios de la época, familiares e historiadores, además cuenta con un meticuloso trabajo de preservación de registros históricos como fotografías, audiovisuales de época y testimonios de funcionarios de la época. La imagen que brinda el documental Ramón Carrillo, El médico de pueblo tiene un discurso lineal sin grietas y fisuras, una historia sin conflictos. En particular, la visión que brinda sobre la política y la sociedad de su tiempo –que si bien parece verosímil– se alejan del conocimiento histórico académico. Por el contrario, se recrea una mirada heroica de Carrillo, en la que aparece la idea del científico que actúa en un medio aséptico, racional y objetivo, y que ve limitado sus intereses debido a oscuros intereses de la clase política o por problemas de índole personal. Esta operación narrativa retoma fórmulas del documental tradicional en el que se ignora el análisis social, se toman ideas en lugar de hechos y se remarca el heroísmo del personaje. El médico aparece en oposición a la política y se invisibiliza cómo la medicina fue unos de los saberes, conjuntamente con la abogacía, que fueron constitutivos de las políticas sociales y de los saberes del Estado. Sin embargo, no habría tensiones dentro de estas disciplinas ni entre ellas. Asimismo, se minimizan los conflictos existentes entre La Fundación Eva Perón y el Ministerio de Salud en la implementación de las políticas sanitarias. Si bien la información del documental hace visible por medio del testimonio de Nilda Cabrera –una enfermera de la época–, aristas de estos conflictos no son puestos en el centro del debate. En ciertos casos, como por ejemplo con la formación de Enfermería, los conflictos quedan minimizados a partir del artilugio de presentarlo como parte de anécdota graciosas de los entrevistados. Por su parte, el documental Las Enfermeras de Evita se aboca a unos de los aspectos enunciados en el documental anterior: la capacitación de enfermeras durante el peronismo. La expansión del sistema hospitalario y las demandas implicaron, entre otras cuestiones, la necesidad de contar con recursos humanos que pudieran afrontar los desafíos que imponía las modernas formas de curar. La duplicación de las camas disponibles en los hospitales públicos, las campañas sanitarias en diferentes partes del país, la creación de centros maternos infantiles demandaba la mayor profesionalización de médicos y enfermeras. En este contexto se crearon dos escuelas de formación para enfermeras: la de la Secretaría de Salud Pública, bajo la dirección de Ramón Carrillo, y la de la Fundación Eva Perón. El documental se ocupa de esta segunda escuela y basa su reconstrucción, fundamentalmente, en cinco testimonios de enfermeras que se formaron allí y que protagonizaron un período de cambios para la Historia de la Enfermería: Dolores Rodríguez, Lucy Rebelo, Magali Sánchez Alleno, María Eugenia Álvarez y María Luisa Fernández. Estas mujeres, a diferencia del film de Pavón Pereyra (hijo), no son personajes públicos sino figuras “comunes” –mujeres de cierta edad– que validan sus palabras con sus propias experiencias como enfermeras egresadas de la Fundación. Sus derroteros biográficos permiten hacer visible una experiencia social y, especialmente, política: la expansión de profesiones sociosanitarias para las mujeres y el papel que tuvo el peronismo en dicho proceso. Los relatos de estas mujeres no son homogéneos, muestran recorridos de vida bien variados en sus inscripciones laborales y políticas. En este sentido, la mirada construida, si bien se posiciona en una sensibilidad política peronista, es mucho más compleja que el documental anterior. Aquí, hay “voces” diferentes y, por lo tanto, se pueden reconstruir posturas políticas cercanas al peronismo y otras no tanto. Lo que las unifica es el sentido de entrega otorgado por la profesión y el valor de sacar del anonimato figuras, hasta el momento olvidadas de los relatos históricos tradicionales. No obstante, de manera similar con el documental de Pavón Pereyra (hijo), se presentan escenas con un potencial mensaje disruptor pero éstas no son analizadas y son presentadas en la lógica argumental de una manera en la que esperan disparar la gracia en el auditorio. Este documental es de utilidad para trabajar el proceso de feminización de la Enfermería y las vinculaciones entre dicha profesión y la política durante el peronismo. Por otro lado, es posible tender lazos con el documental sobre la vida de Cecilia Grierson, donde también se da cuenta de las 999


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dificultades que tuvieron las mujeres de comienzo de siglo para ocupar espacios dominados por los hombres. Asimismo, las mujeres son miradas e interpeladas por la cámara para resaltar su sensibilidad de género, su vocación de servicio y posibilidad de transformación desde la acción cotidiana. Si bien esto no excluye la vida pública o política ésta queda centralmente restringida a la imagen de Evita, promotora y dadora de sentido para estas mujeres. También, es un aporte para visibilizar una profesión, habitualmente situada en los márgenes laborales, y, de forma similar al documental de Chague y Pavón Pereyra, conectar con situaciones del presente para buscar líneas de rupturas y continuidades entre el pasado y el presente. Una línea que atraviesan los tres documentales es la incorporación de imágenes de archivo que como sostuvo el camarógrafo y teórico polaco Boleslaw Matuszewski a fines del siglo XIX, “si bien el cineasta tal vez no registre la totalidad de la historia, pero al menos la parte que nos ofrece es indiscutible y absolutamente verdadera (…) ya que la fotografía animada tiene intrínsicamente una autenticidad, exactitud y una precisión que solo le pertenecen a ella”10, por lo que esa veracidad es un elemento muy potente en el género documental, que si bien debe ser problematizado, tiene una potencia destacada para la enseñanza de la historia y para colaborar con la preservación de este tipo de materiales.

A manera de cierre Como se ha querido mostrar a lo largo de este artículo, los documentales cinematográficos no son utilizados a los fines de mostrar una historia sino de incorporar una mirada diferente que permita complejizar el aprendizaje de las y los estudiantes. El documental tiene la potencialidad de poner en imagen un discurso que, al mismo tiempo que educa, también recrea un espacio y una época. Ayuda a comprender los cambios producidos, dando pie a que las personas, a partir de sus testimonios, expliquen los acontecimientos, tiñéndolos de su humanidad. En clase estos documentales son vistos como acompañamiento de lecturas y de material gráfico que permite matizar los aportes de unos y otras construcción del pasado. Los textos entran en tensión con el documental y así el alumno logra una perspectiva más compleja, que intenta matizar las visiones y que pretende que sean las y los estudiantes los que creen su propia idea. Coincidimos con Maximiliano Ekerman11 cuando señala que toda imagen tiene poder, es decir, trasmite ideas, valores, emociones, adhesiones, rechazos, moviliza afectos, proporciona sensaciones, generan placeres o disfrutes y no sólo conocimientos; las imágenes son polisémicas, es decir, tiene varios significados, lo que ayuda a pensar que los procesos sociales no pueden ser entendidos de una sola manera, ayudando así al desarrollo del pensamiento crítico; y las imágenes pueden ayudarnos a entender aquello que con palabras es más dificultoso; y por último, existe una relación de retroalimentación entre el ver y el saber, que enriquece la situación de aprendizaje. Además, mirar documentales, conjuntamente con alumnos universitarios de carreras sociosanitarias, nos plantea un doble desafío; por un lado, analizar el mensaje implícitos o explícito de quien dirige el documental, el cual puede entrar en tensión con la bibliografía trabajada en clase; por otro lado, valorizar la preservación del material de archivo y los testimonios de los protagonistas, que muchas veces están puestos con escasa contextualización histórica, o como meros datos anecdóticos. La experiencia en clase nos permite ver cómo esta ampliación de miradas permite a las y los estudiantes comenzar a problematizar su propia práctica profesional así como también la historia de la Enfermería. Este proceso necesita también de la participación de los docentes para generar la reflexión, orientar la discusión y contextualizar los problemas.

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Colaboradores Los autores trabajaron juntos en todas las etapas de la producción del manuscrito. Agradecimientos Este artículo se enmarca en los resultados del proyecto de investigación financiado por la Universidad de José C. Paz (Proyecto NA00317) y por la Universidad Nacional de Quilmes. Referencias 1. Agostoni C. Historias, enfermedades y salud pública. En: Biernat C, Ramacciotti K, editoras. Historia de la salud y la enfermedad. Bajo la lupa de las ciencias sociales. Buenos Aires: Biblos; 2014. p. 23-36. 2. Martin AL, Ramacciotti K. Profesiones socio-sanitarias: género e historia [Internet]. Av Cesor [Internet]. 2016 [citado 4 Jun 2016]; 13(15):81-92. Disponible en: http://web2. rosario-conicet.gov.ar/ojs/index.php/AvancesCesor/article/view/v13n15a04. 3. Vezub L. La selección de los contenidos curriculares: los criterios de significatividad y relevancia en el conocimiento escolar. Apuntes para la selección de contenidos en historia. Entrepasados. 1994; 4(7):151-66. 4. Acuña L. El cine documental como herramienta en la construcción de la memoria y el pasado reciente [Internet]. La Plata: Hist Enseñada; 2009 [citado 4 Jun 2016]; 13:61-8. Disponible en: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.4625/pr.4625.pdf. 5. Ferro M. Historia contemporánea y cine. Barcelona: Editorial Ariel; 1995. 6. Rotha P. Algunos principios del documental [Internet]. Buenos Aires: Cine Documental; 2010. p. 2. [citado 4 Jun 2016]. Disponible en: http://revista.cinedocumental.com.ar/2/ traducciones.html. 7. Paladino D. ¿Qué hacemos con el cine en el aula? En: Dussel I, Gutiérrez D, compiladores. Educar la mirada, política y pedagogía de la imagen. Buenos Aires: Manantial; 2006. p. 135-44. 8. Céspedes J. La dramatización como estrategia narrativa en el documental de investigación histórica [Internet]. Buenos Aires: Cine Documental; 2015 [citado 4 Jun 2016]; 12. Disponible en: http://revista.cinedocumental.com.ar/la-dramatizacion-comoestrategia-narrativa-en-el-documental-de-investigacion-historica/. 9. Alzugaray R. Ramón Carrillo, el fundador del sanitarismo nacional. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina; 1988. 10. Matuszewski B. Una nueva fuente de historia: la creación de un archivo para el cine histórico [Internet]. Buenos Aires: Cine Documental; 2012 [citado 4 Jun 2016]; 5. Disponible en: http://revista.cinedocumental.com.ar/5/traducciones_01.html. 11. Eckerman M. La utilización del cine en la escuela secundaria para la enseñanza de la historia reciente: un desafío metodológico y conceptual [Internet]. La Plata: Hist Enseñada; 2014 [citado 4 Jun 2016]; 19:18-9. Disponible en: https://bibliotecavirtual.unl.edu.ar/ojs/ index.php/ClioyAsociados/article/view/4759/7250.

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LA ENSEÑANZA DE HISTORIA SOCIAL EN LA CARRERA DE ENFERMERÍA

Cerdá JM, Ramacciotti K. A instrução da História Social na carreira de Enfermagem. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):993-1002. Este trabalho apresenta uma experiência didática de História Social no curso de Enfermagem. Em particular, pretende-se mostrar como os documentários cinematográficos são um meio idôneo para a formação de recursos humanos no âmbito das Ciências Sociais em geral e da Enfermagem em particular. O documentário nos permite observar as expectativas e os imaginários de determinados grupos sociais e ouvir/ver os participantes diretos. Tal contribuição é colocada em diálogo com as leituras em sala de aula e vivências dos próprios estudantes.

Palavras-chave: História Social. Enfermagem. Documentário cinematográfico. Ensino de História.

Sometido en 15/08/2017. Aprobado en 09/10/2017.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0458

La enseñanza de Historia en las profisiones de la Salud

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Enseñar Historia en las carreras de Salud

Adrián Cammarota(a) Karina Faccia(b)

Cammarota A, Faccia K. Teaching History in Health careers. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1003-15.

The objective of this study was to describe and reflect on the importance of social sciences in the field of medical sciences based on the experience of our work in the field of History of Argentine and Latin American Health Sciences at the National University of La Matanza and, specifically, in the Nutrition undergraduate degree program. This work is supported by the development of studies on health/disease and is in line with an initial process in which the parameters of social sciences have been incipiently permeating the training of future health professionals.

Keywords: Social sciences. History teaching. Nutrition.

El trabajo tiene como objetivo describir y reflexionar sobre la importancia de las Ciencias Sociales en el campo de las ciencias médicas, tomando como experiencia nuestra labor en la materia Historia Argentina y Latinoamericana de las Ciencias de la Salud en la Universidad Nacional de La Matanza y, específicamente, en la carrera de grado de la Licenciatura en Nutrición. Nuestra labor se ve potentada por el desarrollo de los estudios sobre salud/enfermedad y en consonancia con un incipiente proceso en el cual, los parámetros de las ciencias sociales han permeado de manera incipiente la formación de los futuros profesionales de la salud.

Palabras clave: Ciencias sociales. Enseñanza de la historia. Nutrición.

Universidad Nacional de La Matanza. Florencio Varela 1903, B1754JEC, San Justo. Buenos Aires, Argentina. adriancammarota 2000@ gmail.com; karinafaccia@ gmai.com (a, b)

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¿Qué rol juegan las Ciencias Sociales y especialmente la historia en la formación de los futuros profesionales en las carreras médico- sanitarias? A partir de esta pregunta el trabajo tiene como objetivo describir y reflexionar sobre la importancia de expandir el lugar que ocupan las Ciencias Sociales en el campo de las ciencias médicas. Para ello tomamos como experiencia nuestra labor en la materia Historia Argentina y Latinoamericana de las Ciencias de la Salud en la Universidad Nacional de La Matanza y, específicamente, en la carrera de Licenciatura en Nutrición. Nuestro trabajo se ve potentado por el desarrollo de los estudios sobre salud/enfermedad. Nos proponemos describir aspectos didácticos utilizados en clase, entendiendo que el artículo puede aportar a la enseñanza de la historia en carreras no específicamente ligadas con la disciplina. La licenciatura en Nutrición se creó en la Universidad Nacional de La Matanza en el año 2012. Según el diseño curricular se intenta formar profesionales orientados al trabajo en y con la comunidad para que en un futuro formen parte de equipos profesionales interdisciplinarios. Para este fin la carrera tiene contenidos comunes con la licenciatura de Enfermería, en Kinesiología y la carrera de Medicina. Aspira a crear profesionales capaces de actuar en el campo de la nutrición con conocimientos, habilidades y actitudes que les permitan manejar de manera racional la alimentación del ser humano, teniendo en cuenta los factores biológicos, psicológicos, patológicos, económicos y socioculturales que la condicionan. Al momento de pensar y diseñar el espacio curricular conversamos sobre el lugar que ocuparía la historia como clave explicativa del presente. Buscamos que los estudiantes desarrollen determinadas habilidades relacionadas con la integración de los procesos históricos, la observación, la conceptualización, la generalización y el análisis, como veremos más adelante. Sobre este escenario, delineamos la materia entendiendo la relevancia que tiene la comprensión de los procesos históricos en tanto explicación de la realidad. Así estructuramos la propuesta en cuatro unidades/problemas que responden a los contenidos mínimos del plan de estudios de la carrera. Hay que señalar que una de las problemáticas que se repiten regularmente en el curso son los escasos conocimientos en historia que los alumnos/as acarrean del ciclo secundario. Hemos decidido delimitar el programa en un periodo específico: fines del siglo XIX hasta la primera mitad del siglo XX en Argentina En la unidad 1 exploramos las problemáticas que obstaculizaron el proceso de la conformación de la Nación a fines de siglo XIX, la “cuestión social”, la expansión de las epidemias y el problema de la urbanización, entre otros. En la unidad 2 proponemos entablar el análisis y el rol que jugó el Estado en la primera mitad del siglo XX en el proceso de medicalización; que alcanzaría su punto de inflexión a mediados de la primera mitad del siglo XX. Por su parte, la unidad 3, tiene como eje analizar la presencia de las mujeres en la historia de la medicina y de la enfermería para comprender la “naturalización” de ciertos roles de género, cuyo sostén ideológico fue el positivismo decimonónico, los prejuicios científicos y los mandatos socio-culturales. Por último, la unidad 4, aborda una historia de la Nutrición en la Argentina y en América Latina durante el siglo XX a partir del rol del Estado y el desarrollo de las políticas públicas. Nuestro aporte pretende concientizar/problematizar y enriquecer el debate del aprendizaje y la enseñanza alentando el intercambio de ideas para la elaboración de nuevos paradigmas que alienten las intervenciones de los profesionales en el cuerpo social.

Historia y contextualización Otra de las cuestiones en que coincidimos radica en la función de la historia como usina que puede aportar categóricos elementos para problematizar los procesos de salud/enfermedad, articulando las problemáticas del pasado con las del presente. Y esto se debe a que, la historia, en tanto reconstrucción del pasado, se enfoca en distintos interrogantes que se hace el investigador desde el presente. Debemos aclarar que los procesos de salud y enfermedad no son lineales sino que se sitúan en avances significativos con el descubrimiento, la prevención o la cura de las enfermedades, las luchas institucionales, las prácticas sociales y culturalmente instituidas. De resultas, propusimos una perspectiva que evade una versión “in crescendo” de la medicina, predominante en una amplia literatura que estudia la historicidad con resabios del modelo positivista. 1004

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Esta historia estaba hegemonizada por la enseñanza de un pasado en donde las variables “economía”, “sociedad”, “cultura” y “política”, que ayudarían a explicar el desarrollo de la medicina, fueron abordadas de manera segmentada. La integración de estas variables en los contenidos de la materia nos permite advertir una interpretación más cabal de los procesos estudiados. Los estudiantes no se ven interpelados en internalizar como antaño una historia de los “grandes médicos”, de los “grandes descubrimientos científicos” o de las “invenciones tecnológicas”. La placa para detectar la tuberculosis o los métodos para observar el interior del cuerpo humano, no nos dice nada en función de la clave explicativa sino auscultamos sobre un enfoque integral de los diversos factores que nutren el objeto de estudio. Desde la cátedra proponemos que los estudiantes puedan contextualizar estos procesos que distan de ser lineales y en donde se imbrican las intervenciones estatales y su repercusión en la vida cotidiana, la profesionalización de la medicina, el desarrollo de la ciencia, y la resistencia, en ocasiones, de los destinatarios del proceso de medicalización. Las posibilidades de intervenir sobre las enfermedades infecto-contagiosas a fines del siglo XIX y comienzos del siglo XX –primera unidad del programa -son abordadas desde distintas claves interpretativas. Una de ellas es la historia social y cultural de la enfermedad. Como ha señalado el historiador Diego Armus, los historiadores en su afán por contextualizar refieran a marcos teóricos más o menos consistentes metodológicamente abrevando en diversas tradiciones evitando encorsetar la trama del pasado en rígidas teoría o metodologías1. Por lo tanto, este enfoque – aunque no es el único– nos pareció como una vía de entrada muy estimulante para el diseño de los contenidos disciplinares. Teniendo en cuenta que muchos estudiantes tienen un preconcepto difuso de la historia − entendida como una materia “memorística”– uno de nuestros aportes insiste en transmitir una historia explicativa, procesual y que permita comprender la realidad actual. También intentamos romper con cierta “tradición”, no universitaria, que identifica a la historia con un saber erudito y acumulador de conocimientos inconexos. En resumen, el enfoque seleccionado intenta transmitir a los estudiantes las posibilidades de desarrollar un pensamiento crítico y trasladar ese sentido a la comprensión de ciertos problemas, por ejemplo, en el ámbito de la salud comunitaria, como veremos al final de este trabajo, e incidir en los diversos ambientes en los cuales se van a desempeñar con su saber especializado.

Experiencias didácticas y recursos Las unidades didácticas están orientadas hacia un aprendizaje significativo de los contenidos, recuperando las ideas y experiencias previas de los alumnos/as. El proceso de enseñanza-aprendizaje es concebido como un espacio constructivo, participativo y crítico de los conocimientos. Los aspectos didácticos contemplan un abordaje secuenciado e interactivo de los contenidos de las unidades y fueron planificadas desde un enfoque interdisciplinario. Para el abordaje de estos temas hemos diseñado una serie de guías de lectura y redes conceptuales que facilitan la lectura comprensiva y el análisis de los autores. Asimismo, las clases están organizadas a partir de presentaciones Power Point y redes conceptuales que nuclean los ejes temáticos propuestos. En las mismas insertamos imágenes y fotografías recuperadas de los archivos históricos informatizados, facilitando el acercamiento de los estudiantes a los escenarios históricos. Uno de los problemas abordados al inicio de la materia son los obstáculos que tuvo que afrontar la clase dirigente a fines del siglo XIX para construir la Nación. Entre estos problemas estaba la ausencia de infraestructura sanitaria, la expansión de las enfermedades infecto-contagiosas y las epidemias; el “problema de la inmigración” y la educación pública como un instrumento para educar y modelar/ disciplinar/ y, a su vez, corregir los cuerpos enfermos. Por lo tanto, introducimos a los alumnos/as en los conocimientos históricos necesarios con líneas de tiempo y las ya mencionadas presentaciones Power Point. A continuación, haremos referencia a tres actividades puntuales esbozadas en clase y los recursos utilizados. Los temas elegidos se inscriben en problemáticas que iluminaban realidades más amplias 2018; 22(67):1003-15 1005

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acuciantes en la agenda del Estado a fines del siglo XIX y comienzos del XX: la expansión de las “pestes”, la construcción de hospitales y la relación entre salud y educación.

Epidemias, hospitales y salud infantil El cólera llegó a Buenos Aires por primera vez en 1856 y las epidemias de la fiebre amarilla se sucedieron en los años 1852, 1858, 1870 y 1871. Ambas enfermedades formaron parte de un cuadro de pandemia mundial extendida durante el siglo XIX y se cree que llegaron a Buenos Aires por vía marítima y, en el caso de la fiebre amarilla del año 1871, fue importada por los soldados argentinos que regresaban de la Guerra de la Triple Alianza. Como actividad disparadora para abordar la fiebre amarilla proyectamos un documental producido por el Canal Encuentro −creado en 2007 y emitido por la Televisión Pública− “La fiebre amarilla en Buenos Aires”. Nuestro objetivo es que los alumnos/as puedan ver el impacto social, político y cultural de la fiebre amarilla que asoló la ciudad en 1871. Decidimos proyectar este documental por ser una síntesis equilibrada entre los hechos históricos y una descripción acertada del trabajo arqueológico urbano. El documental avanza en la importancia de la arqueología urbana como ciencia para reconstruir el pasado material de la enfermedad permitiéndole a los estudiantes adentrarse en la vida social y material de la época, es decir, las condiciones habitacionales, materiales y los espacios determinados para la enfermedad y la muerte (hospitales y cementerios urbanos, la ausencia de una conciencia higiénica). Esta actividad se ve alentada por el uso pinturas que hacen referencia a la epidemia. Por ejemplo, el cuadro del pintor Juan Manuel Blanes “Un episodio de la fiebre amarilla en Buenos Aires (1871)”. Hay que señalar que las imágenes, las pinturas o las fotografías son un soporte de vital importancia que contribuyen a la motivación y a la comprensión de datos abstractos2.

Imagen 1. Un episodio de la fiebre amarilla en Buenos Aires Fuente: Museo Nacional de Artes Visuales. Disponible en http://mnav.gub.uy/cms.php?o=77.

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La epidemia de fiebre amarilla constituye un quiebre, no solo por sus dimensiones cuantitativas y por los efectos materiales sobre la ciudad, sino también por las querellas que suscitó entre diversos discursos en pugna. La escena del cuadro de Blanes transfiere el dramatismo de la epidemia. La mujer abatida se llamaba Ana Brisitiani y vivió en un conventillo de la calle Balcarce hasta encontrar su trágico fin el 17 de marzo de 1871. Los médicos, el Dr. Roque Pérez y su colega Manuel Argerich, que aparecen en el centro de la escena, poco tiempo después de ser pintados por Blanes, también fueron víctimas de la enfermedad que combatían. Ahora bien, la escena nos permite descontruir determinados elementos que son trabajados en clase con el texto. “Médicos y policías durante la fiebre amarilla” del investigador Diego Galeano3. El texto nos ayuda a analizar la actuación de médicos y policías durante la expansión de la epidemia y nos sugiere como las figuras de los médicos y los policías fueron posicionadas en relación al tema del héroe y del sacrificado en cumplimiento del deber. En esta dirección, una de las actividades estriba en identificar los personajes que aparecen en la escena resignificados por el pintor, quien eliminó al sereno que había realizado el descubrimiento por la figura de los médicos, acompañados por un joven descalzo con ropas humildes. La experiencia didáctica se ve complementada con el mencionado documental donde se señalan las condiciones de vida de los sectores subalternos en la Buenos Aires decimonónica. Entablando una relación entre el documental y la obra de Blanes, rastramos los instrumentos materiales que posibilitaron el habitad para el mosquito que transmitió la enfermedad. A continuación los alumnos/ as deben inquirir y hacer un informe sobre todos los posibles causales de la enfermedad que aparece en el texto y en el documental, a saber: la carencia de agua potable, la contaminación de las napas subterráneas por desechos humanos y el hacinamiento en la zona sur de la ciudad de Buenos Aires. Otra de las actividades propuesta estriba en identificar en un mapa de época el espacio territorial que fue afectado por la epidemia.

Imagen 2. Mapa de la ciudad de Buenos Aires (1870). Fuente: http://www.buenosaires.gob.ar/planeamiento/cartografia/mapas-historicos.

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El mapa de lo que hoy es Capital Federal, data de 1870. Los números indican la división civil (Juzgados y Parroquias) con sus respectivos nombres. Por ejemplo, la zona 1 es Catedral Norte, la zona 2, Catedral Sur la 3-San Telmo; zona 4, San Cristóbal y así sucesivamente como se detalla en el margen superior izquierdo del mapa. También se puede vislumbrar el cementerio de la Recoleta. El mapa a indicar las zonas más más afectadas por la epidemia y sus franjas de influencia. Luego buscamos analizar las estrategias del Estado municipal para erradicar y enterrar a los que padecieron la enfermedad. Cabe destacar que las epidemias de fiebre amarilla y cólera pusieron en jaque las tradiciones sociales y culturales asociadas a la muerte, a saber: oficios religiosos, posas, velorios, cajones y entierro en tumbas individuales4. Estos rituales funerarios se vieron alterados por la inmediatez para deshacerse de los cadáveres y la consecuente creación de nuevos lugares de enterramiento como el Cementerio del Sur (actual Parque Patricios). Es decir, la fiebre amarilla también cambió la fisonomía de la ciudad con la creación de nuevos cementerios como el de la Chacarita ya que los existentes no daban abasto para recibir a los muertos de la pandemia. Incluso, la clase encumbrada que vivía en el sur de la ciudad, abandonaba sus propiedades ante el avance de la epidemia y se trasladó a la zona norte. En líneas generales nos proponemos que las actividades vayan variando de una cursada a otra. Por esta cuestión, en ocasiones hacemos hincapié en las fotografías de los conventillos o escenas de la vida cotidiana de la ciudad decimonónica y en otras utilizamos solo el documental y los textos abordados en clases. Por ejemplo, para el tema del cólera analizamos el texto de Kapeluzz Poppi que da cuenta de las teorías sobre el origen, el contagio y el control del cólera a fines del siglo XIX5. Como señala la autora, hasta ese momento las medidas preventivas habían priorizado la desinfección y el aislamiento de viviendas y personas enfermas. A partir de 1910 el Departamento Nacional de Higiene impuso un sistema de análisis bacteriológico obligatorio. En particular, el artículo examina las ideas y actividades de los médicos José Penna y Salvador Mazza. Otra de las medidas fue la creación de hospitales acorde al modelo europeo.

Hospitales Otra de las secuencias didácticas tiene como prioridad la explicación el nacimiento de la clínica moderna en Europa como antecedente de los aspectos científicos que comenzaron a colonizar el espacio asignado para la religión ante el padecimiento del enfermo. El hospital, como instrumento de intervención sobre el enfermo, surgió en Europa en el XVIII. Hasta ese momento la institución hospitalaria era un espacio donde el cuerpo enfermo iba a perecer6. Uno de los modelos utilizados en Europa en el siglo XVIII fue la construcción de hospitales con pabellones dispuestos a lo largo de un corredor. El inglés John Howard, formuló la separación de los diferentes pabellones para lograr más independencia, insolación, ventilación transversal y la posibilidad de especializar cada pabellón en función de las diferentes enfermedades. Durante el siglo XIX se apostó al modelo de hospital formado por pabellones aislados y paralelos, con especialización por patología, la organización sanitaria y el aislamiento del enfermo. Conforme se expandía la medicina moderna, gracias a los descubrimientos de Pasteur, la anestesia, los contagios y el descubrimiento de los Rayos X; entre otras revelaciones, la estructura hospitalaria se fue diversificando. La utilización de material fotográfico sobre las fachadas y el interior, los grandes ventanales necesarios para la oxigenación y el caudal de luz solar; son elementos que se constituyeron como parte de la organización científica del hospital moderno. Por ejemplo, la necesidad de ventilar, asolear e iluminar tuvo como consecuencia la proyección de espacios abiertos (patios) al interior del mismo. Lo espacios verdes eran efectivos para la cura de las enfermedades, entre ellas, la tuberculosis. El parque era asociado como el sistema respiratorio de la ciudad cuya fisonomía crecía a pasos agigantados con la urbanización y la incipiente industrialización a principios del siglo XX. Los parques como el Rivadavia, el Centenario o el Parque Avellaneda (Capital Federal) y otros instalados en la trama urbana, promovieron la creación de nuevos barrios. Junto a ellos también florecieron las colonias de vacaciones, las escuelas al aire libre, los clubes y los dispensarios de atención a la salud7. De esta forma el verde urbano ofrecía una serie de virtudes higiénicas por la posibilidad de respirar aire puro y hacer 1008

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ejercicios que fortalecían los cuerpos; el verde pulmón en los hospitales ofrecía, no solo la posibilidad de oxigenar los cuerpos enfermos, sino también, agilizar los sentidos y la distracción de los recluidos en proceso de recuperación. La actividad que proponemos estriba en que los estudiantes identifiquen estos elementos en los hospitales Durand, Muñiz y Ramos Mejía, realizando el siguiente procedimiento esquemático: identificación y fecha de la fotografía, tipo de imagen, contexto histórico y descripción de los elementos que emergen de la imagen. La comprensión de las fotografías y de la temática histórica representada, las ideas y conceptos graficados; son contrastados con los textos y fuentes primarias trabajadas en clase. Un posible trabajo, que aún no hemos realizado, es que los estudiantes efectúen un informe sobre los elementos que contribuyeron a modificar la tipología arquitectónica de los hospitales. Para ello tendríamos que profundizar en el material bibliográfico de la cátedra o sumar a las instancias de investigación en la cual los alumnos puedan abrevar sin mayores dificultades.

Imagen 3. Galeria del Hospital Ramos Mejia (principios del siglo XX). Fuente: http://buenosaires.gob.ar/salud/hospital-ramos-mejia-un-recorrido-historico.

Imagen 4. El nuevo Hospital Durand. Fuente: http://www.acciontv.com.ar/soca/puey/fotos/duran1.htm.

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Imagen 5. Hospital Ramos Mejía Año 1927. Fuente: http://www.buenosaires.gob.ar/salud/hospital-ramos-mejia-un-recorrido-historico.

Niñez y salud escolar La cuestión de la niñez y la salud escolar, como ya mencionamos, es otro de los ejes que se desprenden de los contenidos y de los núcleos problemas de las primeras tres unidades y nos consiente a pensar la realidad del presente. Desde comienzos del siglo XX diversos especialistas bregaron por el cuidado de la salud de los ciudadanos y futuros ciudadanos – léase escolares- por medio de controles periódicos que apuntaban al mejoramiento de la salud. La escuela funcionó como un laboratorio para mejorar la salud de los futuros ciudadanos. El saber higienista buscó imponer prácticas reguladoras sobre las conductas tanto grupales como individuales, más que enseñar conocimientos referidos a la anatomía y la fisiología. Acorde con las ideas del positivismo, los gobernantes y pensadores creían que se podía diagnosticar las complejidades sociales mediante el estudio, la cuantificación y la medición. Como ha señalado Lionetti la escuela, permeable a los nuevos saberes expertos de principios del siglo XX, contribuyó al proceso de construcción simbólica de los cuerpos8. Medicina y pedagogía se entrecruzaban para el fortalecimiento de la raza. A partir de esta afirmación hilábamos con los dispositivos de regulación de cuerpos que obraron dentro de las escuelas, y que persiguieron eliminar las “anomalías” e inculcar una moral republicana acorde a los preceptos de las nacionales modernas. Por ejemplo, la implementación de la libreta sanitaria era uno de los proyectos impulsados por la comunidad médica9. En esta dirección, uno de los interrogantes planteados en el espacio áulico es el siguiente ¿hasta qué punto la escuela funcionó como un laboratorio para el fortalecimiento de una ciudadanía moldeada en determinado valores físicos y morales que imposibilitaban, según la clase dirigente, la modernización del país? ¿Cuáles fueron los mecanismos que posibilitaron la creación de una ingeniería social para el mejoramiento de la salud de la niñez? La utilización de los interrogantes funciona como disparadores que permiten arribar a la indagación de nuevas etapas al conocimiento en construcción dentro del aula. Las imágenes de las libretas sanitarias, las cédulas escolares y certificados odontológicos, son expuestas en power point. Los estudiantes tienen que detectar los datos consignados por los profesionales (evolución de las enfermedades, antecedentes hereditarios, examen prenupcial, observaciones odontológicas y los datos referidos a la evolución de la primera infancia), con el fin de vislumbrar el biopoder dentro del espacio escolar. 1010

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Imagen 6. A. Libreta sanitaria. B. Cédula escolar. C. Certificado de vacunación. Fuente: Archivo Escuela Normal de Quilmes (Provincia de Buenos Aires).

Imagen 7. Certificado odontológico. Fuente: Archivo Escuela Normal de Quilmes (Provincia de Buenos Aires).

En la presentación visual, los alumnos/as también tienen que inferir los elementos que puede derivar la biotipología pendeana. Estos conceptos son abordados en las primeras clases con una serie de textos especializados en el tema. También buscamos que los alumnos/as rastreen las distintas reparticiones que realizaban los exámenes de salud de acuerdo al origen de los documentos, para vislumbrar como se superponían las reparticiones en el cuidado de la salud escolar. Paralelamente trabajamos con una serie de imágenes de niños y niñas en las escuelas al aire libre en la década de 1930. El término “debilidad” se relacionaba con la progresiva pérdida de dinamismo y fortaleza, tanto física como psíquica, y se vinculaba estrechamente con una postura pesimista que atravesaba el pensamiento de intelectuales nacionales influidos por el positivismo europeo10. La debilidad también se asociaba con la “anormalidad”. En la primera mitad del siglo XX la anormalidad 2018; 22(67):1003-15 1011


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estuvo asociada con las enfermedades sociales y a la consecuente carga hereditaria que perimía los cuerpos infantiles. El Estado pugnó por medio de la educación, fortalecer la herencia, separando a los “deseables” de los “indeseables”, protegiendo la salud de los niños y niñas que el día de mañana abastecería a la República de buenos ciudadanos. En consecuencia, proponemos a los estudiantes trabajar sobre los distintos aspectos que se pueden rastrear en las fotografías: la importancia de la naturaleza para los niños débiles, el disciplinamiento corporal mediante la postura y el uso del guardapolvo blanco cómo un recurso simbólico y homogeneizante; los orígenes de las escuelas al aire libre, y su funcionamiento. En las fotografías también se puede apreciar que el personal de las escuelas es netamente femenino lo que nos sugiere todo un núcleo de apreciación de corte genérico en cuanto a la elección del personal, entroncado con la idea de que la docencia era consideraba como la extensión de rol maternal. También se ha trabajado con el menú escolar que les brindaban a los niños en las escuelas para mejorar las condiciones de los organismos perimidos, interactuando con los conocimientos que los alumnos/as han adquirido en la carrera Ahora bien, las actividades reseñadas siempre implican un desafío para el desarrollo de las clases. Y esto se debe a que la disciplina tiene sus problemáticas puntuales a las que hay que enfrentar en el espacio áulico. Por un lado, hay que tener en cuenta una definición de la historia como campo de investigación y de producción de conocimiento y, por el otro lado, como una historia solo para la enseñanza. En esta lógica binaria los alumnos/as se ven interpelados a pensar la realidad del presente y la praxis de su carrera apelando a la historicidad. A su vez, deben abonar su formación en la lógica de las ciencias sociales como constructo de una realidad que, por fuera de los muros universitarios, se manifiesta de modo complejo y nutrido de conflictividad social. El trabajo de campo que nuestros estudiantes realizan les permite ver estas cuestiones señaladas.

Representaciones y trabajo de campo En el plano de la intervención comunitaria- como han demostrado los estudios sobre el Estado y las políticas sociales los estudiantes deben batallar con fuertes representaciones arraigadas en las subjetividades de los individuos marcadas por fuertes imaginarios que construyen nociones no solo de salud y enfermedad sino también de relaciones de género. Dichas representaciones funcionan como un sistema de interpretación de la realidad que rigen las relaciones de los individuos con su entorno físico y moral erigiéndose como una guía para la acción11. Por ejemplo, ¿cuánto del tratamiento del embarazo, la maternidad o la discusión en torno al aborto no siguen bajo el paraguas de una serie de discursos biomédicos médicos atravesados, inevitablemente, por construcciones socio-culturales genéricas? En vistas de estas consideraciones, uno de los ejes abordados en clase está entroncadas con las cuestiones de género, la salud y las representaciones sociales. A partir de los contenidos disciplinares desarrollados en clase con las ideas/experiencias que los alumnos/as acarrean de su ambiente o con los trabajos de extensión universitaria, como el programa “Ellas Hacen”. Este programa estaba destinado a mujeres en situación de vulnerabilidad priorizando a madres de familias numerosas. Una parte del programa contemplaba la inserción de los estudiantes de diversas carreras de salud de la Universidad de La Matanza para que dicten talleres de prevención de la violencia patriarcal, la salud sexual y reproductiva y brindar nociones sobre hábitos alimenticios. Así, los alumnos/as incidían en estas realidades como forma de insertar sus conocimientos adquiridos en una realidad social más amplia que los márgenes institucionales de la universidad. El programa dependía del Ministerio de Desarrollo Social de la Nación. Durante el año 2015 los estudiantes realizaron una interesante actividad con el programa “Ellas Hacen” en articulación con la asignatura que dictamos. Por ejemplo, brindaron una serie de charlas en relación a género, la salud y el trabajo. Los alumnos/as encontraron que la unidad patriarcal, el machismo y la asignación de roles sexualmente asignados; seguían imperando en las representaciones de las mujeres de dos barrios populares en el partido de La Matanza. Un dato interesante que nos trasmitieron los alumnos/as es la organización que manifestaron algunas de ellas ante la violencia 1012

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masculina, mediante el contacto por teléfono celular para la protección mutua. En cuanto a la sexualidad, otro grupo manifestó que las mujeres participantes del programa seguían reproduciendo una serie de imaginarios trabajados en clase desde la historicidad, como la “mujer ama de casa” y la “mujer sumisa” reproduciendo la “teoría de la domesticidad”. Como sostiene Marcela Nari, las ideas de “fragilidad” y “debilidad” femeninas, como rasgos componentes de su naturaleza, justificaban y legitimaban otro tipo de debilidades y fragilidades sociales, políticas y económicas12. Como hemos señalado en la primera parte del trabajo, en las clases se plantean casos-problemas de la práctica cotidiana y profesional, de manera individual y grupal para articular con otras materias como Atención Primaria de la Salud (APS). APS tiene el objetivo de vincular el abordaje territorial y práctica situada con aspectos teóricos trabajados en el recorrido curricular y problematizar sobre el proceso salud/ enfermedad de una comunidad e identificar grupos de población con mayor riesgo. Allí hacen un diagnóstico de la situación y un diagrama del servicio, los obstáculos, debilidades y fortalezas para el desarrollo de la práctica. Una de las cuestiones que surgieron en torno a la intervención que realizan los alumnos/as a partir nuestra asignatura y en articulación con APS y su experiencia en los barrios; es el rol que juega el Estado en las políticas nutricionales de la población y las medidas aplicadas a partir del denominado programa “precios cuidados”. Hay que señalar que la nutrición pública es una prioridad de Estado en muchos países, incluyendo el conocimiento de cómo comer saludablemente. Como ha señalado Parales Quenza, para el caso de Colombia, el comer saludablemente es tema apropiado para el estudio de las representaciones sociales: ¿cómo la gente transforma conocimiento científico en heurísticas sociales? La aparición de productos y palabras, por ejemplo, fibra, colesterol, libre de grasa, light, vegetarianos, omega tres; lleva a los individuos a familiarizarse con lo desconocido para tener control sobre lo que sucede en el ambiente. Por lo tanto, para el autor, el comer es entonces un asunto histórico y cultural que acarrea transformaciones en sistemas de conocimientos y prácticas13. Esta observación se liga con lo señalado por María Andreatta, en cuanto a que en la construcción de las representaciones sociales de la salud intervienen una serie de factores tales como la cultura alimentaria, las condiciones materiales de existencia y las relaciones de poder. En rigor de verdad, la alimentación es objeto de representación en tanto generadora de opiniones, creencias y significados que circulan socialmente y que tienen impacto en la producción, la distribución, la selección, la preparación y el consumo de alimentos14. Las dos observaciones nos condujeron a debatir sobre el rol del Estado, la aplicación de las políticas de salud y las intervenciones en los barrios populares planteando en clase el siguiente interrogante: ¿hasta qué punto el Estado no se guía por una serie de representaciones teñidas de una cultura comercial contraproducente a las expectativas alimenticias de los especialistas a la hora de diseñar y aplicar sus políticas públicas? Un ejemplo práctico fue expuesto por los estudiantes a partir de su participación en las prácticas de APS, cuando señalaban las contradicciones de un Estado que “cuida los precios de la Coca-Cola”, pero no de los productos o alimentos esenciales para mantener una dieta equilibrada. Esto se debe a que la cultura del consumo es un sistema de significación que comprende a los consumidores y las empresas, agentes publicitarios y funcionarios estatales. Desde esta visión presentamos la cuestión de la alimentación como un problema histórico y cultural. En resumen, las prácticas de los estudiantes en programas de extensión o en materias que apuntan al trabajo territorial, se ven alimentadas por los insumos teóricos y los conocimientos del campo de las Ciencias Sociales adquiridos en la carrera. Estos conocimientos y métodos se ponen al servicio de una mejor formación del futuro profesional incentivándolos a la participación en equipos interdisciplinarios de salud, para la planificación, el desarrollo y evaluación de programas, entre otras cosas, a nivel central, local y regional.

Conclusiones El desarrollo de los estudios sobre salud/ enfermedad han potenciado el llamado de atención sobre la importancia de las Ciencias Sociales en las profesiones médico-sanitarias. El trabajo interdisciplinario 2018; 22(67):1003-15 1013

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ENSEÑAR HISTORIA EN LAS CARRERAS DE SALUD

tantas veces invocado por los cientistas sociales, ha permeado la formación de los futuros profesionales de la salud. Dicho trabajo amerita la constitución y transmisión de los conocimientos históricos y las herramientas propias de construcción de las Ciencias Sociales y, especialmente, de la Historia. La perspectiva histórica aporta herramientas para problematizar críticamente los diferentes aspectos de la formación y del desempeño profesional de los/as nutricionistas, articulando problemáticas sociosanitarias del presente con las problemáticas analizadas del pasado histórico. Con el aporte de las Ciencias Sociales nos proponemos el desafío de ir más allá de la formación tradicional biomédica y fortalecer la formación a partir de los ejes vectores de la Salud Pública para desarrollar intervenciones holísticas. Por lo tanto, proponemos en la cátedra una mirada crítica sobre los problemas sanitarios que implica recuperar paradigmas y referentes teóricos de las Ciencias Sociales para desarmar/desconstruir la formación biomédica tradicional en las profesiones de la salud. La edificación de un pensamiento crítico nos involucra a repensar en las diversas formas y las estrategias de intervención profesional en los diferentes ámbitos del campo socio-sanitario. Comprendemos que no se trata de formar un nutricionista con especialidad en Ciencias Sociales e Historia, sino un especialista en salud pública que se nutra del enfoque histórico, sociológico y psicológico. En esta dirección las ciencias sociales aportan al profesional de la salud un vínculo importante que deben comprenderse dentro de las experiencias de las relaciones humanas.

Contribuciones de los autores Los autores trabajaron juntos en todas las etapas de la producción del manuscrito, en la discusión de los resultados, en la revisión y aprobación de la versión final del trabajo. Agradecimientos Este artículo se enmarca en los resultados del proyecto de investigación financiado por la Universidad de José C. Paz (Proyecto NA00317) y por la Universidad Nacional de la Matanza. Referencias 1. Armus D. ¿Qué historia de la salud y la enfermedad? [Internet]. Salud Colect. 2010 [citado 23 En 2016]; 6(1):5-10. Disponible en: http://www.scielo.org.ar/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1851-82652010000100001. 2. Tapia JA. Motivación para el aprendizaje: perspectiva de los alumnos. Madrid: MEC; 2005. p. 209-42. 3. Galeano D. Médicos y policías durante la epidemia de fiebre amarilla (Buenos Aires, 1871). Salud Colect. 2009; 5(1):107-20. 4. Fiquepron M. Cadáveres, epidemias y funerales en Buenos Aires (1856-1886). En: Gayol S, Kessler G, editores. Muerte, política y sociedad en la Argentina. Buenos Aires: Edhasa; 2015. p. 227-50. 5. Kapeluz-Poppi AM. José Penna y Salvador Mazza en tiempos del cólera: salud, inmigración y legitimidad política en Argentina de 1910. Temas Histor Argent Am. 2011; (19):117-55.

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Cammarota A, Faccia K. Ensinar História em carreiras de Saúde. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1003-15. O objetivo do trabalho é descrever e refletir sobre a importância das Ciências Sociais no campo das ciências médicas, tendo como experiência o nosso trabalho no campo da História da Ciência da Saúde Argentina e Latino-Americana na Universidade Nacional de La Matanza e, especificamente, no programa de graduação do Bacharel em Nutrição. Nosso trabalho é potencializado pelo desenvolvimento de estudos sobre saúde / doença e em consonância com um processo incipiente em que os parâmetros das ciências sociais têm permeado de forma incipiente a formação de futuros profissionais de saúde.

Palavras-chave: Ciências sociais. Ensino de história. Nutrição.

Sometido en 23/11/17. Aprobado en 18/01/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0457

La enseñanza de Historia en las profisiones de la Salud

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La multitemporalidad como trabajo práctico: una experiencia sobre la utilidad de la enseñanza de la Historia en la carrera de Trabajo Social Canela Constanza Gavrila(a) Andres Stagnaro(b)

Gavrila CC, Stagnaro A. Multitemporality as practical work: an experience about the usefulness of History teaching for the career of Social Work. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1017-28.

This article presents a pedagogical proposal for the framework for a history teaching to be part of the career of Social Work. The aim of this course is to shed light on the existence of different temporalities within the professional interventions of social workers. Because of the profession’s link with the field of medicine, we question how this relationship is perceived by students, especially that between history and Social Work, in order to discover the best didactic strategies to construct historical knowledge.

Keywords: History. Social work. Professional education.

En el siguiente trabajo nos proponemos presentar una propuesta pedagógica, en el marco de la asignatura de Historia de la carrera de Trabajo Social, para la comprensión de la existencia de diferentes temporalidades en la intervención profesional de un/a trabajador/a social. Puesto que esta profesión estuvo fuertemente vinculada con la medicina, nos preguntamos, a fin de realizar un diagnóstico, de qué modo es percibida por los estudiantes esta relación, en particular entre la historia y el Trabajo Social, con el objetivo de avanzar en mejores estrategias didácticas en la construcción del conocimiento histórico.

Palabras clave: Historia. Trabajo social. Formación profesional.

CC

BY

Instituto de Estudios en Trabajo Social y Sociedad, Facultad de Trabajo Social, Universidad Nacional de La Plata. Calle 9, 1484, La Plata. Buenos Aires, Argentina. cgavrila@ trabajosocial.unlp.edu.ar (b) Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales, Universidad Nacional de La Plata. Conicet. Buenos Aires, Argentina. astagnaro@ fahce.unlp.edu.ar (a)

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Introducción El Trabajo Social (en adelante TS) se caracteriza por ser una profesión reconocida y legitimada en la sociedad por responder a las necesidades sociales en el proceso de producción y reproducción de sus medios de vida y de trabajo1. Su emergencia está ligada al fenómeno que Harold Perkin2 llamó la “sociedad profesional”, en tanto su reconocimiento y legitimidad están vinculados a un proceso de conformación profesional que identifica una demanda determinada de la sociedad y se propone atenderlas a través de la jerarquización de saberes específicos avalados por el Estado mediante la expedición de títulos habilitantes. Dado que el TS opera sobre sectores sociales incapaces de satisfacer sus necesidades básicas para la reproducción material, la intervención no está separada de las condiciones socio históricas del desarrollo capitalista, como tampoco de los mecanismos, dispositivos y reglas de juego que se imprimen en la toma de decisiones y modos de dominación del Estado en cada momento. Esta relación entre la intervención sobre la cuestión social y los modos históricos en que se configuraron las respuestas para distintas problemáticas de reproducción social hacen que el estudio de la historia y de las ciencias sociales cobren relevancia para vincular problemáticas actuales con un escenario histórico que lo antecede. Sobre las contradicciones para la reproducción es que el TS proyecta posibles soluciones para la intervención que no resultan aisladas sino constitutivas del carácter ideológico que hace de algunas cuestiones problemáticas válidas o no de atender. Estas configuraciones ideológicas son el conjunto de normas, valores e ideales que realizados mediante ritos y rituales construyen ciertos arquetipos como normales y deseables, y objetan lo que no responda a dicho orden3. Las configuraciones ideológicas correspondientes a cada período particular en el desarrollo de las contradicciones entre el capital y el trabajo configuran variadas constantes ideológicas que definen el trabajo de los futuros profesionales de la asistencia En este sentido la historia cobra relevancia al develar el carácter ideológico en que se construyeron los abordajes a la cuestión social. Esta íntima relación entre las transformaciones económicas y sociales con las posibles soluciones que el TS proyecta y realiza para la intervención sobre las refracciones de la cuestión social(c), no se traducen como un vínculo de utilidad para los estudiantes. En este punto nos convocamos a reflexionar si el carácter accesorio y aislado con que la asignatura historia es considerada por los y las estudiantes para el desarrollo formativo no es parte de la vieja contradicción que guarda esta profesión en el campo de las ciencias sociales, donde la urgencia por la intervención en la realidad inmediata opera en desmedro de una reflexión situada en un tiempo de mayor alcance. Este problema manifiesta una concepción inmediatista de la intervención que olvida que el TS es un dispositivo estratégico en el abordaje de cuestiones de orden socio-histórico para el tratamiento de asuntos doméstico, y viceversa3. En este rumbo propondremos un abordaje crítico del sentido de lo “contemporáneo” para los estudiantes, avanzando en una conceptualización que permita comprender la contemporaneidad no solo en términos de lo intempestivo, sino en vinculación con otros tiempos, mediante un desfasaje que permita la percepción del presente sin esencialismos5. En esta vinculación entre las problemáticas particulares y las generales no solo se esconde una preocupación por el tiempo histórico, sino también, por como estas prácticas reales y concretas, moldean distintas subjetividades que se insertan en relaciones sociales y colectivas. Es así que nuestra insistencia por establecer 1018

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Para Netto la “cuestión social” es atacada en sus refracciones (el desempleo, el hambre, la carencia habitacional, el accidente de trabajo, la falta de escuelas, la incapacidad física etc.) que aparecen como problemáticas particulares, que niegan la naturaleza totalizante de la contradicción capital trabajo4. (c)


en las clases mayores diálogos entre la historia y el TS no resulta de un capricho disciplinar, sino de un interés por complejizar la multiplicidad del tiempo histórico que constituye a la cuestión social actual y a los sujetos que la componen. Esta motivación por repensar la historia y el estudio de la misma desde la formación en TS forma parte de un interés mayor por abordar críticamente el pasado de la disciplina, para desmitificar las apariencias humanitarias y universalizantes que desde la pretendida ingenuidad epistemológica e ideológica encubrieron el carácter conservador de la misma1. Por esta razón nos proponemos realizar una reflexión acerca de los desafíos con los que nos encontramos al momento de abordar la historia social argentina y latinoamericana con estudiantes de TS. El trabajo presenta tres instancias: en principio una breve descripción de la materia en el contexto general de la formación en la actualidad, junto a una breve historización del ingreso de las ciencias sociales en la disciplina. En segunda instancia presentaremos las opiniones manifestadas por los estudiantes respecto a la pregunta ¿Por qué estudiar historia de Argentina y Latinoamérica en la formación en Trabajo Social? Por último, y acorde a los objetivos de este trabajo, realizaremos un diálogo entre las instancias anteriores de reflexión y de diagnóstico a fin de compartir una propuesta pedagógica plausible de ser utilizada como actividad de síntesis y evaluación final. Con ella pretendemos presentar fuentes históricas de primera y segunda mano, de distintos espacios y tiempos, a fin de dar cuenta de la historicidad de la cuestión social y su abordaje profesional.

Los inicios profesionales de las agentes del Trabajo Social La situación política y social de principios del siglo XX en Argentina se caracterizó por varias tensiones entre ellas la de crecimiento económico, que estaba sujeto a una serie de vaivenes y no lograba superar recurrentes crisis, en un movimiento descripto como un “péndulo de la riqueza”6. Este no era solo de la riqueza sino que también atendía a los movimientos oscilantes del Estado en relación a sus principios constitutivos entre una pretendida imagen republicana y moderna y el avance genocida de la frontera ganadera de fines del siglo XIX, que favoreció un mayor despliegue del modelo agroexportador. Este modelo económico no implicó, como en otros casos latinoamericanos, la dualización total de la economía en un sector exportador y una economía de subsistencia, sino que favoreció el desarrollo de una incipiente industria con mano de obra extranjera llegada por inmigraciones masivas del período, generando un proceso de urbanización en toda la zona pampeana con eje en la ciudad de Buenos Aires y sus alrededores. El proceso de modernización de la economía incluyó un doble proceso de industrialización y urbanización que fortalecieron la dependencia de los trabajadores de ingresos extra salariales que ya no podían suplir con productos de la economía doméstica. Esto generó el crecimiento de una masa de trabajadores y trabajadoras cuyos salarios no podían costear su reproducción, dando lugar a tensiones sociales que se suponían podía poner en peligro la cohesión social, como sostiene Robert Castel7. Dadas las condiciones precarias de desarrollo de estos sectores, debieron soportar epidemias que azotaron a la población local, fenómeno que promovió una serie de transformaciones institucionales, políticas y económicas. Junto con estas problemáticas, la disminución de la natalidad en los ámbitos urbanos resultaba alarmante. Como contrapartida, el Estado propuso distintas políticas maternalistas focalizadas8 en la consolidación de la familia, el desarrollo doméstico, la protección del binomio madrehijo y en la disminución de la mortalidad infantil9. En este contexto, distintos sectores de la elite gobernante promovieron una intervención educativa y sanitaria, no solo de orden técnico, sino también moral10 con el objetivo de modificar hábitos de los sectores populares y así evitar la propagación de enfermedades(d) Entre los agentes capaces de gestionar las soluciones requeridas para la asistencia social predominaron los médicos.

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La relación entre medicina y cuestión social iniciada a fines del siglo XIX como un acercamiento paliativo a las instalaciones urbanas, cobró otro carácter entrado el siglo XX. El discurso médico científico se ligó íntimamente en la planificación de políticas sociales y en la creación de redes entre instituciones de asistencia, prevención y moralización11. En los casos de las grandes ciudades, como Buenos Aires y La Plata, el crecimiento urbano y poblacional hizo temer a los sectores gobernantes por el despliegue de la miseria, el hacinamiento y la expansión de epidemias. Estos hechos permitieron a la higiene acoplarse al proceso institucional suministrando un corpus normativo de orden prescriptivo y proscriptivo al Estado, e hizo de los médicos actores centrales en la proyección de las políticas sociales12. El higienismo, como rama de la medicina, consideraba a la salud como una resultante de las condiciones física y social en que se desarrollaban los hombres y mujeres y para ello ejecutaban multiplicidad de estrategias educativas para intervenir sobre los sectores populares y facilitar la modificación de hábitos13. En este escenario comenzó a funcionar la Escuela para Visitadoras de Higiene Social (EVHS) a cargo de la Cátedra de Higiene Médica y Preventiva de la Facultad de Ciencias Médicas (FCM) de la Universidad Nacional de Buenos Aires (UBA) en 1924 y en la Universidad Nacional de La Plata (UNLP) en el año 1938, antecedente universitario de la actual carrera de TS(e). Estas instituciones formaron agentes auxiliares a los médicos, instruidas en conocimientos técnicos sobre higiene y prevención, que en comunión con sus dotes “amorosas y altruistas”14, pudieran intervenir con acciones de profilaxis, prevención social y educación sanitaria a fin de luchar contra la intemperancia de las costumbres perniciosas al individuo y la comunidad. Para mitad del siglo XX la malla curricular de la carrera tuvo una serie de modificaciones vinculadas a las innovaciones en materia de políticas sociales y el alcance comunitario que pretendían obtener(f). Si bien en un principio la formación alentaba a la subordinación con la ciencia médica, progresivamente el servicio social junto con la sociología, la administración sanitaria, la psicología, entre otras, se constituyeron en materias específicas de los planes de estudio, desequilibrando el peso de la palabra médica para la configuración de respuestas a la cuestión social a favor de una formación interdisciplinaria para pensar las refracciones de la cuestión social(g). Entre las décadas de 1960 y 1970 la profesión experimentó cambios en consonancia con los sucesos políticos a nivel nacional y latinoamericano, como también de los pedidos de la Organización Mundial de Salud que nutrieron a la disciplina de nuevas concepciones teóricas y metodológicas relacionadas con la teoría de la dependencia y el desarrollismo. Ingresaron contenidos de Salud Pública y medicina comunitaria, junto con materias que permitirían complejizar la intervención sobre la cuestión social desde un abordaje de las ciencias sociales, como: psicología, antropología cultural y sociología. Es así que en el año 1974 se crea el título de Licenciado en Servicio Social, con una duración de cinco años(h). En la década de 1980 el proceso de normalización de las universidades nacionales pos dictadura permitió que el TS ganase autonomía como campo disciplinar. En la UNLP durante 1987 la carrera obtuvo la autonomía, desprendiéndose de la Facultad de Medicina al crearse la Escuela Superior de Trabajo Social. Aumentaron materias vinculadas al estudio de las problemáticas sociales, aspectos metodológicos y técnicos de intervención profesional. En el programa correspondiente al año 1989 las autoridades de la casa de estudios reconocieron la necesidad de abandonar la concepción paramédica del TS entendiendo que las problemáticas vinculadas al área de la salud eran sólo un 1020

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Un ejemplo fue la creación de ligas e instituciones de lucha contra la tuberculosis, esta enfermedad caracterizada por transitar en todos los ambientes y especialmente en los lugares poco ventilados, húmedos y sucios, como fábricas, instituciones de reclusión y en casas familiares de precaria infraestructura que mayormente eran habitadas por los sectores populares, quienes hacinados en sus lugares de trabajo o incluso en sus propias viviendas eran vulnerables de contagio. (d)

En el año 1930 otro grupo de médicos higienistas y reformadores crea la Escuela de Servicio Social en el Museo Social Argentino, esta pretendía la formación de profesionales que podían ser hombres o mujeres. Los objetivos de esta Escuela eran proporcionar enseñanza técnica y administrativa para jóvenes que pretendieran ocupar puesto de gestión en obras de asistencia y previsión social. Sin embargo esta experiencia no fue replicada en la ciudad La Plata dentro del ámbito universitario. (e)

Para esta reflexión tomamos como referencia la definición de currículo propuesta por De Alba en 1998 “se entiende a la síntesis de elementos culturales (conocimientos, valores, costumbres, creencias, hábitos) que conforman una propuesta político educativa pensada e impulsada por diversos grupos y sectores sociales cuyos intereses son diversos y contradictorios, aunque algunos tiendan a ser dominantes o hegemónicos, y otros tiendan a oponerse y resistirse a tal dominación o hegemonía”15 (p. 75). (f)


“Las secuelas de la “cuestión social” son recortadas como problemáticas particulares (el desempleo, el hambre, la carencia habitacional, el accidente de trabajo, la falta de escuelas, la incapacidad física etc.) y así enfrentadas. La constatación de un sistema de nexos causales, cuando se impone a los intervinientes, alcanza a lo sumo un cuadro de integración de referencia centrado en la noción de integración social […] Así, la “cuestión social” es atacada en sus refracciones, en sus secuelas aprehendidas como problemáticas cuya naturaleza totalizante, si es asumida consecuentemente, impediría la intervención.”4 (p. 22). (g)

Para un análisis pormenorizado del proceso de modernización del Servicio Social en la ciudad de La Plata se sugiere la lectura de la Tesis de maestría de Néstor Arrúa disponible en http://sedici.unlp.edu. ar/handle/10915/52560. (h)

Ver: Plan de estudios de la carrera de Trabajo Social. 1989. Fundamentación pp. 3-4. (i)

(j)

Plan de estudios 2015. pp 4-7.

exponente más –pero no exclusivo– de la problemática social, al igual que la pobreza, la marginalidad, el empleo, entre otras; que exigían un tratamiento desde las ciencias sociales(i). En la actualidad los y las trabajadoras sociales han ganado autonomía profesional, y han logrado multiplicar los espacios de inserción profesional, desde el área de justicia, educación, salud, minoridad, comunidades urbanas, rurales e indígenas, hasta intervenir en empresas, relaciones laborales, previsión y seguridad social, entre otras. Esta ampliación del campo profesional, manifiesta el carácter multifacético de la cuestión social y proyecta constantes desafíos para los y las futuros agentes en formación, hecho que exige un mayor acercamiento a las ciencias sociales.

La Historia Social para estudiantes de Trabajo Social La asignatura Historia Social Argentina y Latinoamericana (HSAL) se inscribe en el primer año de la carrera de Trabajo Social perteneciente al Plan de Estudios vigente desde el año 2015. En este se reconoció la necesidad de que los estudiantes de TS tengan como base de su formación la “cuestión social” desde una fundamentación socio- histórica. Así la materia es la única dedicada, exclusivamente, a la historia social en el programa y por ello debe cubrir una secuencia temporal de dos siglos, desde la formación de los Estados nacionales y el ingreso en el mercado mundial, es decir, las últimas décadas del siglo XIX, hasta los debates sobre el cambio de época en Latinoamérica y las tensiones entre populismo y neodesarrollismo en la última década. El reconocimiento de la centralidad de la cuestión social como base de la fundamentación socio histórica de la intervención en la realidad social, propone un análisis de tres actores fundamentales: el Estado, los sujetos sociales y sus necesidades, y por último, la trabajadora social con su saber específico. Con este paradigma se pretende una formación que permita comprender, interpretar y resignificar las particularidades de cada situación, a fin de reconocer el carácter ideológico de la profesión y, con ello, trascender el carácter inmediatista de la intervención. Se espera que los y las futuras profesionales puedan comprender el Estado y su relación con la sociedad, en particular con las problemáticas que se expresan de la conflictividad social y las políticas sociales como estrategias de intervención respecto de los mismos, para que puedanfortalecer los proyectos colectivos de resistencia y transformación social en que se involucren(j). Esta materia, además, se establece como punto de inicio del Trayecto Socio Histórico de la formación(k). Siguen a esta Economía Política, Teoría del Estado, Teoría del Derecho y Derecho Social, Política Social y Conformación de la Estructura Social Argentina, de modo, que HSAL presenta un marco histórico sobre el que los y las estudiantes podrán articular y complejizar otros conocimientos del Plan de Estudios. Como asignatura del trayecto inicial, y reconociendo la importancia del vínculo entre historia y TS, consideramos imprescindible incorporarestrategias pedagógicas interdisciplinarias que nos acerquen a trabajar sobre la construcción histórica de la estructura socioeconómica y política de nuestra sociedad actual, las constantes ideológicas que configuraron instituciones y modos de control social, las múltiples resistencias, la formación de proyectos alternativos, las configuraciones de lo cotidiano, entre otras cuestiones, que posibiliten a los y las estudiantes pensarse como sujetos históricos, que se hacen y rehacen en ese proceso, del que incluso salen prácticas renovadoras1.

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Uno de los desafíos inmediatos es valorizar el desarrollo y el análisis conceptual de los múltiples tiempos de la contemporaneidad5, el estudio de los sujetos y asociaciones posibles entre estos, el análisis de los distintos modos de intervención, el desarrollo de las instituciones de control social, como también los sujetos que intervinieron en la construcción de las políticas sociales, entre otras cuestiones, como estrategias posibles para acercar a los y las estudiantes a los análisis y estudios de ciencias sociales que trasciendan la primacía del orden “práctico” y coyuntural de su profesión. Es importante destacar que el estudiantado del primer año se corresponde mayormente con recientes egresados y egresadas de la educación secundaria y provienen de provienen de distintas formaciones académicas, cuestión que hace imprescindible reconocerlas para poder trabajar sobre ellas en la instancia del trabajo práctico. Otro elemento característico del estudiantado en TS es su elevada matrícula femenina, que a pesar de no encontrase presentada en cifras oficiales desde la institución, resulta evidente cada vez que uno ingresa en las aulas de la facultad, cuestión que resulta del legado asistencial, auxiliar y subalterno de la disciplina16. Ahora bien, todo este análisis acerca de los diálogos entre la historia y el TS, junto con la caracterización del estudiantado, no resulta suficiente a priori para la planificar las acciones a desarrollar con los grupos que anualmente se renuevan. Asumimos que nuestro rol como docentes de historia no solo debe facilitar la comprensión de los contenidos históricos prescriptos en el programa, sino también animar al desarrollo de la comprensión. De algún modo, enseñar historia es guiar otro modo de aprehensión de la realidad donde distinguir procesos, rupturas y continuidades de las estructuras sociales de las que son partícipes. Para ello, comprendemos que en el proceso de construcción del conocimiento, el estudiantado es un sujeto activo del mismo, que junto a los y las docentes, construyen las herramientas para que puedan fundar sus propios procedimientos de aprendizaje en función de esquemas previos que se reestructuran con las nuevas nociones adquiridas17. Para dar paso a la acción con los y las estudiantes indagamos sobre que piensan de las utilidades de estudiar HSAL en la formación profesional en TS. Presentaremos algunas de estas respuestas para realizar una propuesta didáctica que permita trabajar sobre los supuestos de los y las estudiantes.

¿Para qué sirve estudiar historia en Trabajo Social? En la primera clase del ciclo lectivo 2017 iniciamos el diálogo con esta pregunta ¿Para qué sirve estudiar historia en Trabajo Social? La respuesta era entregada por escrito y de manera anónima. Esperábamos encontrarnos con los preconceptos y expectativas que el estudiantado tenía sobre la materia y con ello obtener pistas que nos permitan trazar estrategias de trabajo. Con estos indicios pensamos como maniobra posible realizar una actividad de repaso e integración que detallaremos más adelante que favorezca la continuidad del estudiantado luego del primer exámen(l). Si bien era un total de cincuenta y ocho estudiantes en la planilla, al ser la primera clase del año un grupo de ingresantes estaba ausente seguramente tratando de encontrar la comisión, el/ la docente y el aula correcta. Estaban presentes cuarenta y dos estudiantes que respondieron ¿Para qué sirve estudiar historia en Trabajo Social?

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(k) Con la reforma del plan de estudios del año 2015 se establecieron cuatro trayectos formativos: 1. Trayecto de Formación Disciplinar formado por cinco materias de Trabajo Social I, II, III, IV y V, junto con Trabajo Social y análisis institucional; Políticas Públicas planificación y gestión, Configuración de Problemas Sociales, Debate Contemporáneo en Trabajo Social y Trabajo Social y Sujetos Colectivos. El 2do Trayecto de Fundamentos de la Teoría Social compuesto por Introducción a la Teoría Social, Introducción a la Filosofía, Filosofía Social, Teoría de la cultura y antropologías de las sociedades contemporáneas, Epistemología de las Ciencias Sociales, Teoría Social, Introducción a la Psicología y Psicología del desarrollo y la subjetividad. El tercero es el mencionado Socio Histórico. El cuarto, y ultimo, corresponde al Trayecto de Fundamentos Teórico- Metodológicos para la Investigación y la Intervención, conformado por: Investigación Social I y II, Perspectivas antropológicas para la intervención social, Derechos de Infancia, familia y Cuestión Penal, Teoría y Práctica de la educación, y por ultimo Salud Colectiva.

Este primer examen que rinden los estudiantes aborda los contenidos trabajados durante todo el primer cuatrimestre que abarca desde 1860 hasta 1955. En muchos casos los y las estudiantes abandonan la materia antes de intentar rendirlo. (l)


Luego de leer las respuestas consideramos que estas podían agruparse en tres grandes núcleos, junto con algunas de las opiniones expresadas de manera anónima. En principio encontramos una fuerte identificación de la historia como maestra de vida. Así lo enuncian dos estudiantes: “Estudiar historia sirve para tener conocimiento de los diferentes contextos históricos, porque para entender el hoy debemos conocer lo que pasó antes”; “La historia nos permite entender la cuestión social actual y a partir de experiencias anteriores no cometer los errores en el hoy”. Estas consideraciones – que aparecen de manera mayoritaria entre el estudiantado– identifican a la historia como un receptáculo de múltiples experiencias que tiene una función liberadora para los sujetos actuales en tanto ilumina el presente y el futuro para no repetir los errores del pasado18. El problema que guarda esta consideración es que el pasado parece no ser constitutivo de los sujetos, sino aislado y sin conexiones que inviten al estudiantado a identificarse como parte del proceso histórico, y por tanto, resulte dificultoso establecer un correlato entre la actualidad y el pasado, o identificar cambios, rupturas y continuidades. Otra tipificación que apareció en las respuestas es que la HSAL es un escenario y telón de fondo para el desarrollo del TS. Quienes se acercaron a esta postura fue un grupo minoritario, aunque claros en la expectativa sobre la materia. Uno de ellos sostuvo “La historia sirve para conocer los procesos que transforman el contexto y los enfoques del trabajo social”. En este sentido, la historia abonaría al conocimiento de las razones por las cuales aún la profesión es necesaria para la sociedad, pero no parecería influir sobre los individuos, ni sobre sus condiciones de vida, intereses, ocupación, ideología y sexualidad. El problema que encubre esta consideración de la historia como accesoria del desarrollo profesional y aislada de los sujetos y sus problemáticas, es que no contempla como el carácter ideológico y subjetivo de las condiciones sociales produce efectos en la historia económica y política, como también en las relaciones afectivas3. Un último sentido, sobre la relación entre historia y TS condensa y supera las nociones de magistra vitae y de historia como escenario inerte. Al decir de un estudiante “Pienso que los problemas sociales en los que vamos a intervenir son construcciones sociales históricas, por eso es importante conocer lo sucedido en el pasado para entender el presente, viendo avances y retrocesos” Aquí la historia es considerada como parte de las problemáticas y resoluciones que aborda el TS, donde se entienden las transformaciones políticas y sociales, desde la noción de conflicto y disputa en la que se configuran los sujetos sociales. La historia aparece como “materia misma de la intervención social” puesto que el TS trabaja sobre las configuraciones de esa historia y se sitúa en distintas coyunturas sociales3. Esto permite acercarnos a la idea de la historia como el haz de sombra que ilumina la contemporaneidad del momento presente en términos de Agamben5. Es decir, comprender como a partir de la operación de percibir, dividir e interpolar el tiempo, el sujeto está en condiciones de transformarlo –el presente de la acción de la intervención- y ponerlo en relación con otros tiempos más allá de aquél vivido. Ejercer, en última instancia, la capacidad de citar la historia ya no a su arbitrio, sino como una exigencia metodológica ineludible. Esta es una concepción dinámica de la historia constituida por conflictos y disputas que colaboran en las transformaciones de la cuestión social, y a su vez influyen dialécticamente con la subjetividad de los futuros “usuarios” del TS. En función de estas respuestas realizamos una propuesta didáctica que permitiera avanzar sobre las relaciones entre historia y TS, y evidenciara el carácter ideológico de la práctica profesional. El objetivo principal de la actividad es que los estudiantes se identifiquen como sujetos sociales capaces de intervenir en el entramado histórico que constituye la cuestión social y, además, realicen un ejercicio de percepción temporal que les permita reconocer la particularidad de las problemáticas sociales de un momento de la estructura social determinado, es decir, evitar el riesgo del inmediatismo que supone la primacía de la actualidad ahistorizada. El ejercicio propuesto pretende que los estudiantes intenten resolver situaciones hipotéticas como trabajador social sumergido en las problemáticas de una época determinada y no como un sujeto externo y omnisciente, sino históricamente situado. 2018; 22(67):1017-28 1023

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Además, se promueve el proceso de diálogo entre distintos registros textuales (textos académicos y fuentes de época) y se favorece, así, el proceso de apropiación por parte de los estudiantes de los contenidos del programa de la materia. La presentación de los resultados del ejercicio obliga a los y las estudiantes a fomentar la presentación oral y escrita en forma clara en una instancia formativa fundamental que es la puesta en común. Este tipo de intervenciones se encuentran en sintonía con los objetivos pedagógicos declarados en el programa. Otro objetivo pedagógico de la actividad es funcionar como hilo conductor de los distintos contenidos de la materia ya que la misma se ordena cronológicamente desde mediados del siglo XIX hasta principios del siglo XXI y se dicta a lo largo de todo un año académico. Uno de los textos que más gusta entre los y las estudiantes es el de Andrea Oliva “Trabajo Social y lucha de clases. Análisis histórico de las modalidades de intervención en Argentina”, específicamente los capítulos I “Demandas colectivas y respuestas institucionalizadas” y el capítulo II “Configuración de los modos de intervención”, trabajado en las clases prácticas. Este texto es el único de la materia que aborda el proceso de institucionalización del TS desde la configuración del campo profesional de las visitadoras de higiene, y en ello atiende a distintas modalidades de intervención (como el suministro de recursos, visitas de profilaxis, de control de las condiciones de trabajo y de control de las condiciones de vida). Una de las cosas que genera aceptación es que los alumnos pueden identificar como la profesión inicia su recorrido para dar respuesta a la cuestión social, cómo se la define, y como en ese proceso se configuran distintos espacios de intervención y herramientas e instrumentos de trabajo profesional. Con el texto de Oliva a nuestro favor, es que nos planteamos elaborar una propuesta pedagógica para una clase de repaso y síntesis previa al primer examen. La propuesta de trabajo propone que los y las estudiantes “ensayen” diagnósticos sobre distintas problemáticas de la cuestión social a principios del siglo XX y que para ello pongan en diálogo textos correspondientes a la cronología a trabajar. Con ese objetivo, ofreceremos tres fuentes documentales distintas, cada grupo trabajará con una. La primera es la “Memoria de la administración municipal de ciudad de La Plata” (1936), en ella se describen las acciones que realiza el Estado a través de sus agentes, los problemas de intervención y las estrategias para el abordaje. En la segunda fuente trabajamos con dos discursos del presidente Juan Domingo Perón (1946-1955) en los que se alude a las nuevas políticas sociales de su gobierno. Por último, sumamos un extracto de un discurso de Gabriela Laperriere, reconocida antecesora de las inspecciones sociales, donde denuncia el proyecto del Dr. Belisario Roldan, y en ello manifiesta los conocimientos que ella había producido como agente del servicio social.

Propuesta para los y las estudiantes Consignas de trabajo Ustedes trabajarán en grupos de no más de seis estudiantes y simularán ser un equipo profesional a cargo de diagnosticar la situación presentada por los docentes y proponer una modalidad de intervención. La situación deberá ser construida en base a las lecturas específicas del programa y las fuentes que se transcriben. Deberán atender a las condiciones sociales descriptas en los textos a fin de generar una escena históricamente situada. A partir del planteamiento de la escena realizarán sus observaciones y propuestas, con un formato similar a un diario de campo, y plantearán una posible estrategia de abordaje. Cada grupo compartirá en una instancia plenaria su propuesta. A fin de facilitar la elaboración de su diagnóstico y propuesta les proponemos algunas preguntas que operarán como guías en su reflexión: ¿Cuáles son las problemáticas para la reproducción social que se detectan en el caso a trabajar? ¿En qué contexto histórico particular emergen estas situaciones?

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(m) “Usuarios ” es como se denomina en lenguaje nativo a los sujetos beneficiarios de la acción

¿Qué sujetos sociales aparecen como beneficiarios de la intervención –“usuarios”(m)? ¿Qué sujetos profesionales podrían intervenir? ¿El grupo profesional que sugieren formar podría ser parte de una institución? ¿Cuál? De acuerdo a la propuesta de Andrea Oliva ¿creen que sería pertinente utilizar alguno de los modos de intervención de los inicios de la profesión? De ser afirmativa su respuesta ¿cuál sería el indicado? Justifiquen su diagnóstico y propuesta de intervención. Memoria de la administración municipal. 1936. Ciudad de La Plata. pp 119- 120. Inspección de Sanidad Jefe: Dr. Laureano Arau. Médicos: Dr. Eduardo Lavalle Dr. Julio Echagüe Dr. Florencio Alesso Dr. RaulStagnari La municipalidad cuenta con un servicio sanitario cuya labor se desarrolla dentro del palacio, donde se hallan sus instalaciones, y fuera de él. En el edificio de la Comuna están: el Dispensario Antivenéreo; Laboratorios de análisis clínicos, industriales y bromatológicos; Gabinete Radiológico; Consultorio Ginecológico y otorrinolaringología. La campaña sanitaria se cumple en toda la ciudad de acuerdo a las ordenanzas en vigor y cuyo detalle se observará enseguida. El Consultorio Externo de la Inspección de Sanidad, que funciona en el Palacio Municipal realiza las siguientes funciones: 1º Asistencia médica gratuita a los pobres. 2º Examen médico de los conductores de vehículos, carros, automóviles, motocicletas etc. Este examen comprende: 1º Examen clínico general. 2º Examen de la agudeza visual con optópicos. 3º Examen de agudeza auditiva. 4º Examen de sistema nervioso. 3º Examen de los empleados y obreros municipales. 1º Riguroso examen médico de los aspirantes a empleos municipales en el que se constate las condiciones de salud al incorporarse a la administración comunal. 2º Constatación de enfermedades del personal municipal a los efectos de justificar inasistencias. 3º Informes periciales a los efectos de la ley de accidentes de trabajo ante el Departamento Provincial del Trabajo y de los Tribunales. 4º Dispensario Antivenéreo: A) Examen de prostitutas. 1º Examen clínico general. 2º Examen ginecológico. 3º Examen de la piel. 4º Análisis clínicos que comprenden reacciones de Wasserman y Kahn; esputos; flujo vaginal, uretral, etc. 5º Examen radiológico. B) Examen de varones: 1º Exámen clínico general. 2º Examen de la piel. 3º Análisis clínicos y examen genital. Campaña Sanitaria 5º Inspección Sanitaria de locales. 1º Casa de vecindad, hoteles, fondas, pensiones, restaurantes, rotiserías, confiterías, bares etc. 2018; 22(67):1017-28 1025

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6º Inspección sanitaria de piletas de natación. 7º Desratización y desinfección de locales. 8º Inspección de prostíbulos. 9º Reconocimiento a domicilio: de empleados y obreros municipales a objeto de justificar su inasistencia. 10º Difusión de preceptos higiénicos: por medio de impresos para combatir enfermedades infecto- contagiosas más comunes. (Fuente histórica nº1)

Extracto del Discurso del coronel Perón sobre la política social del Estado transmitido por la red argentina de radiodifusión, Diciembre 2 de 1943 El Estado cumplirá ahora su deber social […] El Estado manteníase alejado de la población trabajadora. No regulaba las actividades sociales como era su deber, solo tomaba contacto en forma aislada cuando el temor de ver turbado el orden aparente de la calle lo obligaba de la calle le obligaba a descender de Latorre de marfil de su abstencionismo suicida. No se percataban los gobernantes de que la indiferencia adoptada ante las contiendas sociales, facilitaba la propagación de esta rebeldía porque era precisamente el olvido de los deberes patronales que, libres de la tutela estatal, sometían a los trabajadores a la única ley de su conveniencia. […] Los problemas que sean consecuencia natural de los hechos sociales serán estudiados y recibirán la rápida solución que justicieramente merezcan […]. (Fuente histórica Nº 2)

Extracto del discurso En Berisso, 10 de agosto de 1944 […] Hemos de organizar la acción social, ya sea en su aspecto de asistencia social como en el de previsión social. Entendemos por asistencia social el principio que asegura que el hombre debe tener su salario para comer, habitar y vestirse. Cualquier otro gasto que se produzca y que deba abonar el obrero, sea suprimido, a fin de que el Estado se haga cargo, ya sea enfermedad, o pasajera inepcia para el trabajo. Y cuando fuera de carácter permanente, por invalidez o vejez, el hombre debe ser tomado a cargo del Estado. (Fuente histórica Nº 2)

Extracto de “Dos iniciativas femeninas” Gabriela Laperriere. 1901. Revista antituberculosa. Tomado de Gabriela Laperriere de Coni. Tejero Coni, Graciela, Oliva, Andrea. 2016. Es utopía pensar por el momento en medios prácticos para que la mujer abandone el trabajo fabril y se dedique al cuidado de su interior, esposo e hijos. Transcurrirá mucho tiempo antes de que modifique el estado actual y de que vislumbre para ella esta perspectiva. Solo sucederá cuando el salario del obrero sea elevado, para satisfacer las necesidades de su familia. Mientras falten mejoras fundamentales, sociales y económicas, no queda otro recurso que aliviar en lo posible su situación. La mujer obrera debería cobrar en realidad dos salarios con los quehaceres domésticos que realiza. Debería pagar a otra mujer si por enfermedad o por exceso de trabajo en el taller no pudiera atender su casa. Se calcula desde las 4.30 hs en que se levanta para estar a las 6 en el taller, después de haber preparado el desayuno, arreglado su casa, vestido a sus hijos, etc… hasta las 9 de la noche, después de haber limpiado la vajilla, cosido, lavado, etc, que ha trabajado sin interrupción 17 horas. ¿Cuánto resistirá a este recargo, máxime cuando desempeña a veces en los talleres trabajos musculares que deberían ser reservados a hombres? ¿Cómo no será víctima de la tuberculosis si esta ataca principalmente a agotados y sin fuerzas para luchar? (Fuente histórica nº3)

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Consideraciones finales En este trabajo nos propusimos realizar una reflexión acerca de cómo enseñar historia en la carrera de Trabajo Social a partir de revisar las condiciones en que ingresaron las ciencias sociales en el desarrollo de la profesión. Sumamos a ello las consideraciones del estudiantado acerca de las utilidades de estudiar historia dentro de su formación. La reflexión de los estudiantes fue utilizada con una doble función: primero con un objetivo pedagógico exploratorio que desnaturaliza la presencia de la asignatura en el entramado curricular; y segundo, como un insumo fundamental que habilitase la reflexión sobre las formas en que la Historia se piensa como insumo fundamental para el desarrollo profesional de los trabajadores social. En este sentido el diagnóstico llevó a considerar la creación de nuevas estrategias y actividades que permitiesen a los estudiantes a pensarse históricamente y concebirse como sujetos con capacidad para comprender diversas temporalidades y, a su vez, ser portadores de la capacidad de transformar dicha realidad. Esto implica resituar los distintos presentes de acción de la y el trabajador social. De esta forma el ejercicio propuesto permite trabajar sobre los significados de los diversos tiempos que componen un presente. Es decir, escapar de la tentación de la contemporaneización ahistórica permanente, entendida esta como la realidad actual que experimentan los estudiantes, al promover su resitualización en un contexto histórico diferente constituido de múltiples temporalidades. A partir de estas reflexiones realizamos una propuesta pedagógica donde los vínculos entre historia y definición de problemáticas sociales de la cuestión social pudieran ser comprendidos desde el presente, siendo este el que otorga sentido, cuestiona y desnaturaliza al pasado. Si bien la propuesta aguarda ser puesta en práctica, esperamos con ella que los y las futuras profesionales puedan identificar las condiciones estructurales e históricas que hacen a las problemáticas individuales y colectivas sobre las que van a involucrar profesionalmente, e incluso puedan tener como insumo esa historia para pensar en las estrategias para intervenir.

Colaboradores Canela Constanza Gavrila y Andres Stagnaro participaron en todas las fases de la producción del artículo y aprobaron la versión final presentada. Referencias 1. Iamamoto M. Servicio social y división del trabajo. Un análisis crítico de sus fundamentos. San Pablo: Cortez; 1997. 2. Perkin H. The rise of professional society: England since 1880. London: Routledge; 2002. 3. Karsz S. Problematizar el trabajo social. Barcelona: GEDISA; 2007. 4. Netto JP. Capitalismo monopolista y cuestión social. San Pablo: Cortez; 2002. 5. Agamben G. Desnudez. Barcelona: Anagrama; 2011. 6. Rocchi F. Un largo camino a casa: empresarios, trabajadores e identidad industrial en Argentina, 1880-1930. En: Suriano J. La cuestión social en Argentina, 1870-1943. Buenos Aires: La Colmena; 2002. 7. Castel R. Las metamorfosis de la cuestión social. Una crónica del salariado. Buenos Aires: Paidós; 2009.

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8. Nari M. Políticas de maternidad y maternalismo político. Buenos Aires, 1890-1940. Buenos Aires: Biblos; 2004. 9. Biernat C, Ramacciotti K. Crecer y multiplicarse. La política sanitaria materno infantil. Argentina, 1900-1960. Buenos Aires: Biblos; 2013. 10. Ramacciotti K. La política sanitaria del peronismo. Buenos Aires: Biblos; 2009. 11. Armus D. El descubrimiento de la enfermedad como problema social. En: Lobato MZ. El progreso, la modernización y sus límites (1880-1916). Buenos Aires: Eudeba; 1999. p.132-54. 12. Vallejo G. Escenarios de la cultura científica argentina. Ciudad y Universidad (18821955). Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas; 2007. 13. Recalde H. La higiene y el trabajo. Buenos Aires: CEAL; 1988. (tomo 1). 14. Dezeo P. Discurso inaugural de la escuela para visitadoras de higiene social. Buenos Aires: Imprenta y casa Editora Coni; 1938. 15. De Alba A. Currículo, crisis y mito. Buenos Aires: Miño y Dávila; 1998. 16. Grassi E. La mujer y la profesión de asistente social. Buenos Aires: Humanitas; 1989. 17. Carretero M. Constructivismo y educación. Buenos Aires: Paidós; 1997. 18. Koselleck R. Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidós; 1993.

Gavrila CC, Stagnaro A. A multitemporalidade como trabalho prático: uma experiência sobre a utilidade do ensino de História na carreira de Trabalho Social. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1017-28. No presente trabalho nos propomos apresentar uma proposta pedagógica para o ensino de História na carreira de Trabalho Social, para a compreensão da existência de diferentes temporalidades na intervenção profissional do trabalhador/a social. Posto que a profissão vinculou-se à Medicina, nos perguntamos sobre o modo que esta relação é percebida pelos estudantes, em particular a relação entre a História e o Trabalho Social, com objetivo de procurar melhores estratégias didáticas para a construção do conhecimento histórico.

Palavras-chave: História. Trabalho social. Formação profissional.

Sometido en 17/08/17. Aprobado en 21/06/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0219

artigos

As contribuições das Ciências Sociais e Humanas no campo da Saúde Coletiva: vinte anos da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação Denise Martin(a) Patrícia Martins Montanari(b) Pedro Paulo Gomes Pereira(c) Flávio Guinsburg Hamburger(d) Cássio Silveira(e)

Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C. The contributions of the Social and Human Sciences in the field of Collective Health: twenty years of the journal Interface. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1029-42.

We present a discussion about the bibliographic production in Social and Human Sciences in Health (SHSH) published by the journal Interface in the last twenty years (1997-2017). We aim to describe the legitimation process of the SHSH by disseminating theoretical and methodological knowledge and specific themes within the Brazilian scientific production. All the publications of the period were consulted and 216 articles identified with the SHSH were selected. The analysis resulted in categories that highlighted the following themes: mental health, aging, infectious diseases, gender, reproductive health, and theoreticalconceptual. The combination of the themes with current problems of the Brazilian society reveals authors as protagonists of studies that have social relevance and political commitment to transformations and changes occurring both in health care and in public policies.

Keywords: Social and human sciences in Health. Scientific communication. Collective Health.

CC

BY

Apresentamos uma discussão sobre a produção bibliográfica em Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS) publicada pela Revista Interface nos últimos vinte anos (1997-2017). Buscamos descrever o processo de legitimação das CSHS por meio da divulgação de saberes teórico-metodológicos e de temáticas específicas no conjunto da produção científica nacional. Foram consultadas todas as publicações do período e selecionados 216 artigos identificados com as CSHS. A análise resultou em categorias que evidenciaram os seguintes temas: saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero, saúde reprodutiva e teórico-conceitual. A conjunção dos temas com problemas contemporâneos da sociedade brasileira revela autores como protagonistas de estudos de relevância social e comprometimento político com as transformações e mudanças ocorridas tanto no plano do cuidado em saúde quanto no das políticas públicas.

Palavras-chave: Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Comunicação científica. Saúde Coletiva.

(a, c) Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo. Rua Botucatu, 740, 4o andar, sala 406 B. São Paulo, SP, Brasil. 04023-900. denise.martin@ unifesp.br; pedropaulopereira@ gmail.com (b, e) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. patricia.montanari@ fcmsantacasasp.edu.br; cassio@cealag.com.br (d) Graduando do curso de medicina. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. flavioghbr@gmail.com

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Introdução A revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação foi concebida por um grupo interdisciplinar de estudos em Educação e Comunicação no campo da Saúde e, como consta em seu projeto editorial, foi gerada em um contexto de crise e transição do fim de século, em que o ensino universitário – em especial, a área da Saúde – começa a questionar seus processos de formação. Nasceu como uma publicação interdisciplinar, editada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em agosto de 1997, voltada para a articulação das Ciências da Saúde com as Humanidades, especialmente com a Comunicação, a Educação e a formação universitária. Atualmente, seu escopo foi redefinido especificamente para a Saúde Coletiva “em sua articulação com a Filosofia, as Ciências Sociais e Humanas, a Educação, a Comunicação e as Artes nas práticas de saúde e de formação de profissionais de saúde” (p. 2060)1. O diálogo com as Humanidades foi-se evidenciando ao longo do tempo também pela preferência em publicar pesquisas com abordagens e metodologias qualitativas. Assim, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia e outras disciplinas tiveram na Interface uma possibilidade de diálogo com a área da Saúde. Recentemente, o corpo editorial assumiu também a perspectiva da história recorrente2. A revista Interface tornou-se um sólido meio de difusão da produção científica nacional, viabilizando a expansão da comunicação de conhecimentos em saúde, particularmente em relação aos campos disciplinares das CSHS, que formam com a Epidemiologia e com a Política, Planejamento e Gestão em Saúde (PPGS) as três áreas da Saúde Coletiva (SC). Neste artigo, apresentamos uma discussão sobre a produção bibliográfica das CSHS nas duas décadas de sua existência. A análise da produção intelectual das CSHS veiculada pela revista Interface nesse período constitui mais um parâmetro para um dimensionamento quantitativo e qualitativo de sua evolução no contexto da SC. Um exame cuidadoso dessa produção pôde identificar que as publicações expressam verdadeiros amálgamas de temas descentrados em disciplinas específicas das CSHS: sociologia, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras. Além disso, mostra como a investigação sobre as temáticas geradoras dos artigos publicados permitiu vislumbrar a formação de espaços de fruição da criação multidisciplinar e da produção de inovações teórico-conceituais. Surgem nesses espaços experimentações metodológicas aplicadas a processos investigativos que ousaram transpor fronteiras disciplinares para conhecer concepções e práticas em saúde, processos de institucionalização configurados em formas organizativas, assim como processos de adoecimento perscrutados na complexidade de contextos socioculturais. A difícil tarefa de contextualizar, no conjunto da produção científica nacional, a legitimação da produção científica das CSHS, que se pronuncia por meio da divulgação de saberes teóricometodológicos e de temáticas específicas, colocou-nos o objetivo de contribuir à expansão do entendimento do movimento de transformação de redes que interconectam centros de ensino e pesquisa; instituições de fomento à pesquisa; e instituições de produção de serviços e tecnologias em saúde, assim como revelar a complexa trama de relações que envolvem setores atuantes da sociedade civil3-7. Vários estudos produziram importantes reflexões sobre a formação do campo de conhecimento denominado SC nos anos 19708-11. Denominado por Birman8 como uma “invenção conceitual”, o campo emergiu como polo de transformações epistemológicas, viabilizando a criação de novos horizontes no conjunto de debates sobre o conceito de saúde, até então desenvolvido exclusivamente pelo campo de práticas em Saúde Pública por meio de aportes teóricos consolidados em matrizes da biomedicina. Prefigurou-se, portanto, como um campo de tensões interdisciplinares que, ao mesmo tempo em que aproximava disciplinas de campos de conhecimento mais distantes, também constituía novas relações de saber-poder permeadas por conflitos. As CSHS também estão presentes nas origens desse novo campo de conhecimentos12-14. Segundo Loyola15,16, a ocupação de um lugar subalterno pelas CSHS dentro do campo da SC marcou esse início, apontando para a análise de um percurso inicialmente dominado pela PPGS e, posteriormente, pela ascensão da epidemiologia como predominante no campo da SC. Se, por um lado, a aproximação de 1030

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diferentes matrizes teórico-metodológicas, com vistas à construção de conhecimentos sobre o processo saúde-doença-cuidado, produziu conflitos e tensões profícuos ao desenvolvimento de processos investigativos mais complexos, por outro, a aceleração da produção de artigos e o produtivismo como modelo cada vez mais reconhecido e legitimado pelas instituições de fomento à pesquisa selaram as desigualdades entre as áreas15,17,18. De uma perspectiva institucional, o campo da SC contou com a força de uma importante organização denominada de Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), atualmente Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Formada em uma base representativa das três subáreas do campo, estruturadas sob a forma de comissões, promoveu ações fundamentais, tais como o incentivo à formação de programas de pós-graduação no país, a realização de encontros técnicos, a articulação com gestores e setores governamentais em saúde, além de congressos de grande porte e repercussão internacional19,20. A legitimação das subáreas no campo teve nesta organização espaço fundamental de referência, em particular as CSHS cuja história ainda recente não remontava às experiências já acumuladas pelas demais subáreas na trajetória da Saúde Pública brasileira19. Os periódicos do campo da SC, por sua vez, também refletem em suas trajetórias o conflituoso conjunto de tensões constituído em sua história. Cumpriram o importante papel de oferecer visibilidade aos conhecimentos produzidos pelas subáreas, desde a tradição de revistas já consagradas no campo da Saúde Pública brasileira até as mais recentes que emergiram justamente no processo de formação do campo nas décadas de 1980 e 1990. Observa-se que os periódicos foram configurando um caráter multidisciplinar em suas publicações. Certa é, porém, a constatação de que algumas revistas oferecem ainda maior espaço às publicações de subáreas de suas origens, segundo suas próprias perspectivas teóricas e metodológicas, assim como das temáticas mais comuns aos campos disciplinares que compõem suas bases21. Outras revistas que emergiram no campo nesse período passaram a constituir canais para uma produção científica cujas bases teórico-conceituais e vertentes metodológicas têm suas origens nas ciências humanas e sociais e exploram temas e problemas de pesquisa com abordagens interpretativas sobre o processo saúde-doença-cuidado18,22,23. A partir do olhar sobre a produção científica de uma revista da área, pretende-se expor os contornos principais das CSHS no campo da SC, mostrando sua complexidade e transformações ao longo do período de vinte anos de Interface. O material de análise dessas publicações permite dimensionar algumas das modificações ocorridas na área de CSHS no contexto da SC e contribuir para análises sobre o campo específico da SC no Brasil.

Percurso metodológico O grupo de estudo foi composto por cinco pesquisadores, sendo dois da área de sociologia, dois da área de antropologia e um acadêmico de medicina. O material de consulta foi uma planilha com todas as publicações da revista Interface (de 1997 a 2017), que continha as seguintes informações configuradas como variáveis: volume (do número 1 ao 21), número, ano, seção (subdividida em: Artigos, Debates, Dossiês, Editoriais, Ensaios, Entrevistas e Espaço aberto), autor, título do artigo, filiação institucional dos autores, cidade, estado, país e palavras-chave. A planilha totalizava um conjunto de 1.223 registros, tendo sido incluídas todas as publicações de todas as seções durante o período analisado. Em uma primeira fase, fizemos análises individuais com leitura de toda a planilha. Realizamos encontros do grupo com leituras coletivas com o intuito de selecionar as publicações que pertenciam à área de CSHS. As publicações cuja classificação ainda gerava dúvidas foram avaliadas em quatro rodadas de leitura coletiva. O conjunto de registros presentes na planilha compreendeu publicações que formavam um largo espectro de abrangência envolvendo desde a educação, passando pela saúde até a comunicação, conforme prevê o escopo da revista. Como nosso objetivo era analisar os artigos das CSHS, foi feita uma seleção das informações contidas nas planilhas, excluindo aquelas de educação, comunicação e de 2018; 22(67):1029-42 1031

artigos

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PPGS. A partir de mais leituras da planilha, identificamos e incluímos nos registros para posterior análise as seguintes disciplinas do conhecimento: sociologia, antropologia, política, história, geografia, filosofia, psicologia e serviço social. Uma dificuldade aí encontrada foi a definição do que estaria contido na extensa e complexa subárea das CSHS. Nascimento et al.6 advertem sobre “a dispersão do que se entende por cientistas sociais e por saúde coletiva; e sobre como estabelecer as aproximações e dispersões entre os cientistas sociais e o campo da saúde coletiva” (p. 1584). Dessa forma, destacamos a impossibilidade de identificar um conjunto de produções homogêneo e com identidade comum. Além disso, a delimitação das disciplinas que seriam incluídas na definição de CSHS é bastante variada entre os autores que discutiram o campo3,5,7,16,19,24: das clássicas das Ciências Sociais (sociologia, antropologia e política) até a história, filosofia e psicologia. Nossa escolha, seguindo a orientação de Luz24, não foi olhar para a contribuição específica, maior ou menor de cada disciplina. Optamos “[...] pelo olhar disciplinar dessas ciências, centrado na compreensão e na interpretação dos fenômenos socioculturais ligados à saúde e ao adoecimento, isto é, nas suas abordagens conceitual e metodológica, que reside sua maior contribuição à vida humana contemporânea” (p. 26). O caráter interdisciplinar do campo da SC exigiu maior atenção às possíveis interfaces com outras áreas de conhecimento. Nesse primeiro momento, foram selecionados 352 textos em todas as seções de publicação da revista, o que representou 28,7% do total de manuscritos publicados no período. A seguir, foi considerado para análise o material contido nas seções de artigos e de dossiês, porque mais da metade das publicações já estavam contidas nessas seções. Além disso, consideramos que os artigos explicitavam e/ou representavam uma demanda espontânea dos pesquisadores do campo da SC em busca da divulgação de conteúdos de suas pesquisas e reflexões elaboradas. Ao fim da seleção, foram computados 216 registros de artigos das CSHS publicados, encerrando a primeira fase de organização do material. Os registros foram agrupados em quatro períodos de cinco anos cada, a saber: de 1997 a 2001, de 2002 a 2006, de 2007 a 2011 e de 2012 a 2017. Esse critério atendeu à necessidade de verificar a evolução da publicação em relação aos temas abordados e quanto à origem dos artigos (local, regional, nacional ou internacional). O primeiro nome de autoria do artigo definiu a instituição de origem. A categorização dos artigos apoiou-se na leitura dos títulos dos artigos e das palavras-chave, dos quais foram extraídos conteúdos com potencial para descrição e análise das tendências temáticas e metodológicas desenvolvidas. Nos casos em que a dúvida em relação à categorização permanecia na equipe, realizamos consultas ao resumo e também às referências do artigo. O recurso de leitura à bibliografia foi interessante porque permitiu incluir artigos cujo diálogo era predominantemente com as CSHS, mas que não estavam evidentes nos critérios anteriormente estabelecidos para a seleção. A bibliografia também nos possibilitou identificar o pertencimento à área de CSHS por meio de citações de autores clássicos. Essa aproximação com a área não reflete toda a diversidade e complexidade de análises individualizadas de cada produção. Todavia, permite um panorama abrangente de grandes tendências e abordagens específicas, que serão descritas a seguir.

A presença das CSHS em Interface As diferentes seções da revista apresentam uma variedade de produções científicas nos seguintes formatos: artigos; artigos e relatos; dossiê; debates; entrevistas; ensaios; editorial, e espaço aberto. O Gráfico 1 indica a distribuição dos temas de CSHS pelas seções da revista. Fica evidente o incremento de textos publicados na seção Artigos, inicialmente denominada Artigos e relatos e, ao fim do primeiro período, modificada para a denominação atual. Os ensaios marcam forte presença no primeiro período. A partir de 2010, a revista redirecionou seus conteúdos e passou a publicar artigos de SC, além daqueles já tradicionalmente publicados pelas áreas de Educação e Comunicação, presentes desde suas origens. Interessante também observar a introdução de editoriais e entrevistas no último período, o que pode revelar um fortalecimento da área de CSHS em termos de pautas editoriais e reforço do arcabouço teórico no contexto de desafios impostos na empreitada 1032

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interdisciplinar1. A seção Espaço aberto permanece em todos os períodos, desde o surgimento da revista, garantindo acesso à veiculação de experiências as mais variadas e fundamentadas em bases teóricas.

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1997-2001 Artigos

2002-2006

Artigos e Relatos Debates

Dossiê

2007-2011 Ensaio

Espaço Aberto

2012-2017 Editoriais e Entrevistas

Gráfico 1. Distribuição dos temas de Ciências Sociais e Humanas por seções da revista Interface

Quanto à presença da área de CSHS nas publicações de Interface, observa-se que, no primeiro período (1997-2001), a participação era pequena e o início do seu crescimento deu-se no período seguinte (2002-2006), com ascensão até o período final de análise, o que está diretamente relacionado às mudanças da proposta editorial descritas acima. O Gráfico 2 ilustra esse movimento.

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Número de artigos

Gráfico 2. Número de artigos de Ciências Sociais e Humanas publicados na revista Interface, por período de tempo

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artigos

Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C


AS CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ...

De maneira mais detalhada, observamos que, a partir de 2001, os artigos da área começaram a ser publicados com um aumento a partir de 2006, tendo picos de produção em 2008 e 2012, como mostra o Gráfico 3.

60 50 40 30 20 10 0

1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Número de artigos

Gráfico 3. Número de artigos de Ciências Sociais e Humanas publicados na revista Interface, por ano

Quanto à distribuição geográfica dos autores, a maioria dos artigos é nacional, seguida por autores de São Paulo (capital) e estado de São Paulo, com mostra o Gráfico 4.

149

37 21

Brasil**

São Paulo Capital

Estado de São Paulo*

13

Internacional

* Exceto Capital ** Exceto Estado de São Paulo

Gráfico 4. Distribuição geográfica dos autores dos artigos de Ciências Sociais e Humanas da revista Interface

1034

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O Gráfico 5 apresenta a distribuição geográfica de origem dos autores ao longo do tempo. Interface é uma revista que surge na cidade de Botucatu, interior do estado de São Paulo, tendo sido observado um rápido impacto em sua região, no estado e no país1. A internacionalização observada no gráfico ainda é pequena e teve seu início no período de 2007-2011, em que se observa também intensa inserção no âmbito nacional de Interface.

140 120 100 80 60 40 20 0

1997-2001 Total

2002-2006 São Paulo Capital * Exceto Capital

2007-2011 Estado de São Paulo*

Brasil**

2012-2017 Internacional

** Exceto estado de São Paulo

Gráfico 5. Distribuição geográfica dos autores dos artigos de Ciências Sociais e Humanas da revista Interface, por período de tempo

A análise dos temas dos artigos foi uma etapa bastante complexa pois, como descrito anteriormente, além da diversidade de disciplinas que compõem as CSHS, também nos deparamos com uma pluralidade de temas presentes nos artigos, como já haviam observado outros autores3,7. Inicialmente, agrupamos temas que apareciam com maior frequência. Foram considerados temas aqueles que possuíam mais de dez artigos publicados no período. Quando os temas se sobrepunham, optamos por trabalhar com o conteúdo cuja discussão estava mais presente no texto. Os temas mais frequentes nas publicações foram: envelhecimento, gênero, saúde mental, doenças infectocontagiosas, saúde reprodutiva e abordagens teórico-conceituais. Vale ressaltar que o agrupamento em temas não significa aproximações conceituais semelhantes; pelo contrário, observamos uma diversidade de abordagens que ora eram complementares, ora se opunham conceitualmente. No tema “envelhecimento”, abordamos todos os processos relacionados a esse período da vida. Os tópicos compreendiam: percepção do envelhecimento, concepções e autopercepção de saúde, institucionalização, subjetividade, cuidados, histórias de vida, qualidade de vida, mulheres idosas, gênero, corpo, trabalho, profissões, uso de serviços, masculinidade, homens idosos, suicídio, sexualidade e medicalização. O envelhecimento, no conjunto das transformações demográficas, destaca-se pela variedade de problemas identificados nos vários artigos levantados na pesquisa, constituindo, dessa forma, tema importante para debate e reflexão no vasto campo de estudos sobre saúde. Tal variedade e amplitude nos desdobramentos dos estudos das CSHS sobre envelhecimento expressam a possibilidade de agregar aos estudos demográficos e epidemiológicos disciplinas já consagradas na produção intelectual sobre envelhecimento e novas possibilidades de intelecção do fenômeno do envelhecimento13,25. 2018; 22(67):1029-42 1035

artigos

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AS CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ...

No tema “gênero”, foram identificados os seguintes tópicos: produção científica; sexualidade masculina; masculinidade; saúde do homem; medicalização; esteroides; atenção primária em saúde; agentes comunitários em saúde; patriarcado; gênero e juventude; saúde reprodutiva; representação social; violência contra a mulher; identidade de gênero; violência e masculinidade; homossexualidade masculina; comportamento sexual; sexo sem proteção; e homens adolescentes. Os artigos encerram debates profundos e provocadores, explicitando também possíveis caminhos a serem seguidos dentro do amplo campo de análises em saúde pelo recorte de gênero. As diferenças e as desigualdades constituem parte importante de um mapa teórico-conceitual crítico acerca de aspectos problemáticos já evidenciados em outros veículos acadêmicos, dentro e fora do país, tais como publicações que versam sobre temas como as violências praticadas contra as mulheres e estudos mais recentes que tratam da saúde dos homens. Segundo Canesqui3, a perspectiva de gênero, incluindo saúde reprodutiva, sexualidade e também masculinidade e saúde do homem foram temas das CSHS na produção acadêmica de 1997 a 2007. Dessa forma, esses temas continuam fortalecidos na nossa análise, praticamente dez anos depois. No tópico sobre “saúde mental”, incluímos todos os textos que abordavam o cuidado em saúde mental, experiências institucionalizadas ou não de pessoas vivendo com problemas de saúde mental, o processo de medicalização, dependências químicas (como alcoolismo e uso de crack, cocaína, tabaco e outras drogas), redução de danos, prevenção ao uso de drogas, representações da doença mental, corpo, mídia, autismo, redes sociais, itinerários terapêuticos, estética, sofrimento psíquico, relações familiares, cuidadores, identidade, reforma psiquiátrica, depressão, classificações diagnósticas, instituições escolares, uso de medicamentos, medicalização, anorexia, internet, adolescente, reabilitação, recuperação, desastres, psicologia, trabalhador em saúde, comunidades terapêuticas religiosas, institucionalização de crianças e adolescentes, atenção psicossocial, redes, projeto terapêutico, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), infância e crise psicótica. O conjunto de artigos compilados dentro da rubrica “saúde mental” contém um vasto campo de problematizações que explicitam enfoques teórico-metodológicos múltiplos. Podem ser identificados tanto estudos que versam sobre análises de instituições e suas transformações históricas quanto temáticas mais específicas que envolvem abordagens teóricas sobre o corpo e sobre o modelo de atenção em saúde mental. É importante ressaltar que a saúde mental esteve presente desde o fim da década de 1990 na produção científica da subárea4,7. O tema das doenças infectocontagiosas foi marcado predominantemente por artigos relacionados à infecção por HIV/aids, com os seguintes tópicos: gestão de riscos, homens que fazem sexo com homens, transmissão vertical, gestação, aconselhamentos, capacitação profissional, itinerários terapêuticos, religião, orfandade, juventude, casais sorodiscordantes, profilaxia pós-exposição sexual do HIV, adesão a tratamento, intervenção psicossocial, barebacking e saúde bucal. Houve somente um artigo que tratava sobre dengue e outro sobre hanseníase, fato que merece destaque. A importância do HIV e da aids e, principalmente, da produção científica, regional e nacional, dentro das várias abordagens teórico-metodológicas no campo da SC, tem espaço garantido na revista e na produção bibliográfica das CSHS3,7. O estímulo à produção de artigos sobre as recentes epidemias que assolam o país (como a Chikungunya, a febre amarela e as doenças negligenciadas) poderiam constituir parte integrante do planejamento editorial para estimular reflexões sobre as doenças infectocontagiosas em suas correlações com aspectos sociossanitários, com as políticas de saúde, com as iniquidades e, principalmente, com as recentes transformações e ameaças que pesam sobre as políticas públicas de saúde e o sistema de seguridade social no país, com a diminuição de recursos financeiros. Dentro do tópico “saúde reprodutiva”, foram observadas análises com base em reflexões que expõem diferenças e, de certo modo, acusam e contestam as desigualdades sociais e sexuais. Uso de medicamentos, anticoncepção, aborto induzido, legalização do aborto, anencefalia, hospitalização, humanização da assistência, contracepção de emergência, direitos sexuais e reprodutivos, maternidade, feminismo, discriminação, direitos humanos, tecnologias reprodutivas, homossexualidade, família, hipertensão na gravidez, acesso a serviços de saúde e integralidade perfazem um amplo panorama de um conceito cuja densidade política incide justamente em suas qualidades de, primeiro, ter constituído seu arcabouço teórico contrário às orientações exclusivamente biologicistas26 e, segundo, abrir 1036

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caminho à formulação de conhecimentos que atingem diretamente a necessidade imposta à superação das necessidades e iniquidades historicamente sofridas pelas mulheres. Canesqui5 também observou a presença de alguns desses temas (os direitos reprodutivos, o aborto e a sexualidade) na produção científica das CSHS publicada em periódicos da área de Saúde Coletiva/Saúde Pública no Brasil, no período de 1997 a 2007. No tema “teórico conceitual”, selecionamos os artigos que tratavam de abordagens teóricas próprias da área de CSHS, não empíricas. Por exemplo, temos nesse período não apenas a referência, mas a apropriação teórico-metodológica de nomes como Paulo Freire, Heiddegger, Foucault, Guatarri, Butler, Deleuze, Berger, Bourdieu, Giddens, Kuhn, Schutz, Boltanski, Castel, Arendt, Ricouer, Castoriadis e Mauss. Clássicos das Ciências Sociais como Durkheim e Marx estão também presentes nos debates, complementados por análises por e/ou sobre autores como Castells, Elias, Bauman, Beck, Morin, Kleinman, Le Goff, Boaventura, Illich, Canguilhen, Feyrebend, Goffman, Latour, Lévi-Strauss, Nietzsche, Maturana, Varela, Derrida, Gadamer, Habermas, Groddeck, Spinoza, Rabinow e Agamben. Na leitura dos artigos, alguns temas, como o da medicalização, da sexualidade e da violência, embora não citados entre os mais frequentes, ocuparam um espaço de transversalidade em vários textos, revelando a importância dessas questões para as CSHS e para a SC, de maneira geral, como já tratado em outros estudos3,5. O Gráfico 6 mostra os temas mais frequentes, assim como sua distribuição ao longo do tempo. Observa-se a forte presença de artigos teórico-conceituais, assim como um aumento importante de publicações na área de saúde mental.

30 25 20 15 10 5 0

2001-2004 Envelhecimento

2005-2008 Gênero

Doenças infectocontagiosas

2009-2012 Saúde Mental

Saúde Reprodutiva

2013-2016 Teórico-Conceitual

Obs: No período de 1997-2000 não houve artigos publicados

Gráfico 6. Número de artigos de temas selecionados, por período de tempo.

Do total de artigos selecionados por tema, expostos no Gráfico 7, é possível observar a relevância das abordagens teórico-conceituais, seguidas pela saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero e saúde reprodutiva, respectivamente. Dada a diversidade de temas publicados, criamos uma categoria chamada “Outros” para abarcar temas que foram presentes, mas com pouca expressão numérica para serem agrupados na análise. Destacamos alguns deles para evidenciar a riqueza de enfoques tratados: corpo, doenças crônicas, juventude, deficiência, 2018; 22(67):1029-42 1037

artigos

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AS CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ...

bioética, desigualdade social, morte, terapias alternativas e complementares, genética, biotecnologia, medicalização e neurociência. O tema de metodologia também esteve presente, evidenciando contribuições aos debates sobre estratégias metodológicas específicas para a área de CSHS.

39%

19%

Outros

Teórico-Conceitual

18%

Saúde Mental

6%

6%

6%

6%

Envelhecimento

Doenças infectocontagiosas

Saúde Reprodutiva

Gênero

Gráfico 7. Tema dos artigos.

Alguns temas apareceram apenas uma vez na nossa categorização. Todavia, revelaram a contemporaneidade das abordagens relevantes no campo das CSHS. São eles: alcoolismo em uma população indígena, dor (como um estudo sobre narrativas de pacientes com disfunção temporomandibular), a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde, transplantes de rins com doador vivo, o impacto da internet na interação entre pacientes, aleitamento materno e nutrição e, por fim, a experiência de um movimento popular fitoterápico. Tais temas específicos trazem problemas relevantes para serem estudados pelas CSHS e ainda a pequena expressão de pesquisadores abordando tais problemáticas. Chama-nos a atenção especialmente a questão da saúde indígena, que não é um tema novo, mas foi pouco explorado na revista Interface. Os processos migratórios e a saúde dos imigrantes surgem no último ano analisado, revelando a importância do debate nacional e internacional. O impacto de tecnologias baseadas na internet nos processos de saúde e doença é um tema ainda pouco abordado, embora tenha crescido desde 2013, quando foi citado como palavra-chave pela primeira vez. Observamos também ausência de estudos sobre as questões do meio ambiente e a pequena abordagem identificada sobre as doenças negligenciadas e as emergentes.

Considerações finais A análise aqui proposta sobre a produção das CSHS na revista Interface evidenciou sua progressiva consolidação no campo da SC, tanto pelo aumento do número de artigos quanto pela diversidade teórico-conceitual e temática presentes nas publicações. Os temas encontrados e mais frequentes foram: saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero e saúde reprodutiva. Os mesmos respondem a interpelações dos problemas sociais e às políticas públicas relacionadas. Assim, há clara relação com os processos de reforma e consolidação do modelo de assistência à saúde mental no Brasil27, com o processo demográfico de envelhecimento da população brasileira e suas consequências para a área da saúde28, com a presença da epidemia de HIV/aids e sua priorização no campo do cuidado em saúde29, com a perspectiva de gênero como um campo de atuação nas 1038

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CSHS e em outras áreas30, e, por fim, com o estabelecimento e as políticas relacionadas aos direitos reprodutivos31. Essa conjunção com problemas contemporâneos da sociedade brasileira mostra também os autores como protagonistas de estudos de relevância social e comprometimento político com as transformações e mudanças ocorridas tanto no plano do cuidado em saúde quanto no das políticas públicas propriamente ditas. Nesse período, os artigos da área de CSHS apresentaram uma multiplicidade de disciplinas, como filosofia, história, antropologia, sociologia, ciência política, entre outras, assim como uma variedade de alternativas teórico-metodológicas (fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo, entre outras) que fundamentam os artigos. Há também uma apropriação de autores em diversos arranjos e combinações. A interdisciplinaridade leva às vezes a ruídos nos diálogos entre linguagens teóricas distintas, mas também produz sua proliferação em análises criativas e caracterizadas por junções inusitadas: por exemplo, médicos inseridos teórica e metodologicamente nas Ciências Sociais ou mesmo psicólogos produzindo etnografias. Nesse sentido, “multiplicidade, diversidade, arranjos e combinações” parecem mesmo sinalizar a consolidação e potência da área de CSHS, o que conduz à expectativa sobre algo novo que está surgindo dessas novas configurações. Todavia, os autores citados no tema “teórico conceitual” revelam uma predominância de teóricos do Norte Global, exceção feita a referências a Paulo Freire, Maturana e Varela. Teorias formuladas na Europa e nos Estados Unidos e exportadas para o Brasil aqui discutidas, estudadas e aplicadas, revelam a atuação de uma geopolítica que coloca uns como fornecedores de experiências e outros como exportadores de teorias. A ciência europeia e norte-americana, por vezes datadas em suas origens, continua a ser exportada e coloca o risco de estarmos repetindo aqui o que está datado alhures. Muito do que circula como “teoria universal” está fortemente enraizado na experiência sociopolítica da Europa e Estados Unidos, o que nos faz refletir sobre a necessidade de internacionalização da própria revista Interface. Perguntamo-nos se queremos replicar esse modelo de teorias (do Norte Global) e sobre como multiplicar a criatividade das temáticas e abordagens se há sempre uma imaginação prefigurada a nos obsedar. Pensar estratégias que ampliem nossas possibilidades teórico-metodológicas, incluindo as conexões Sul-Sul, parece constituir importante caminho na consolidação da produção de conhecimentos. Nossa análise permite também refletir sobre a contribuição das CSHS para o campo da SC. Inserida em uma proposta interdisciplinar, não é possível pensar as CSHS com limites muito definidos e em uma posição hermética. Há diálogos, tensões e conflitos dentro da própria subárea, assim como na interface com a epidemiologia e a política, o planejamento e a gestão. Essa produção não pode ser definida por suas técnicas (majoritariamente qualitativas), como mostrou Luz24, muito menos por “temáticas”. Como apontado na análise, as temáticas presentes refletem contextos históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais que demandam das CSHS abordagens criativas e teóricas em busca de sua compreensão. É desejável que os temas se mantenham relevantes, mas também que os pesquisadores estejam atentos às suas transformações e aos seus desdobramentos. Iriart et al.32 chamam a atenção para os novos objetos emergentes e os desafios teórico-metodológicos e éticos que se apresentam para a antropologia da saúde na contemporaneidade (como a biotecnologia e os processos de mobilidade humana) que também se colocam para as CSHS. Limitações do estudo

A escolha pela instituição de origem do manuscrito e pelo primeiro autor pode ter omitido a diversidade institucional presente nas pesquisas e comprometido as possíveis interfaces com outras áreas do conhecimento publicadas na revista. Os limites entre as grandes categorias selecionadas muitas vezes foram tênues e a sobreposição daqueles revela suas importantes interconexões. O recorte de análise proposto no método, embora delineie certa especificidade às CSHS, diminui as possibilidades de diálogo com outras áreas de conhecimento, cerceando o caráter indisciplinar da revista Interface.

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artigos

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Colaboradores Denise Martin, Cássio Silveira, Patricia Montanari e Pedro Paulo Gomes Pereira participaram, igualmente, da elaboração do artigo, da discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação final do texto. Flavio Hamburguer participou da produção dos dados, análise, discussão dos resultados, redação e aprovação final do texto. Referências 1. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP, Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista Interface Comunicação, Saúde, Educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68. 2. Bertolli Filho C. Por uma história recorrente da medicina, da saúde e da enfermidade. Interface (Botucatu). 2017; 21(61):251-5. 3. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66. 4. Canesqui AM. Os estudos de antropologia da saúde/doença no Brasil na década de 1990. Cienc Saude Colet. 2003; 8(1):109-24. 5. Canesqui AM. Produção científica das ciências sociais e humanas em saúde e alguns significados. Saude Soc. 2012; 21(1):15-23. 6. Nascimento JL, Stephan C, Nunes ED. Cientistas sociais da saúde coletiva: uma abordagem pela óptica fuzzy. Cienc Saude Colet. 2015; 20(5):1583-93. 7. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72. 8. Birman J. Apresentação: a interdisciplinaridade na saúde coletiva. Physis. 1996; 6(1-2):7-13. 9. Nunes ED. Saúde coletiva: história de uma idéia e de um conceito. Saude Soc. 1994; 3(2):5-21. 10. Osmo A, Schraiber LB. O campo da saúde coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saude Soc. 2015; 24 Suppl 1:205-18. 11. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica. 1998; 32(4):299-316. 12. Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003 [citado 7 Mar 2018]. Disponível em: http://static.scielo.org/scielobooks/d5t55/pdf/ goldenberg-9788575412510.pdf. 13. Minayo MCS, Coimbra Jr CE, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005 [citado 7 Mar 2018]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/w5p4j/pdf/ minayo-9788575413920.pdf. 14. Minayo MCS, Coimbra Jr CE, organizadores. Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. 15. Loyola MAR. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis. 2008; 18(2):251-75. 16. Loyola MA. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saude Soc. 2012; 21(1):9-14. 17. Hortale VA, Moreira COF, Bodstein RCA, Ramos CL. Pesquisa em saúde coletiva: fronteiras, objetos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010.

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artigos

Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C


AS CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS ...

Martin D, Montanari PM, Pereira PPG, Hamburguer FG, Silveira C. Las contribuciones de las Ciencias Sociales y Humanas en el campo de la Salud Colectiva: veinte años de la revista Interface. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1029-42. Presentamos una discusión sobre la producción bibliográfica en Ciencias Sociales y Humanas en Salud (CSHS) publicada por la revista Interface en los últimos veinte años (1997-2017). Buscamos describir el proceso de legitimización de las CSHS por medio de la divulgación de saberes teórico-metodológicos y de temáticas específicas en el conjunto de la producción científica nacional. Se consultaron todas las publicaciones del período y se seleccionaron 216 artículos identificados con las CSHS. El análisis resultó en categorías que dejaron en evidencia los siguientes temas: salud mental, envejecimiento, enfermedades infectocontagiosas, género, salud reproductiva y teórico-conceptual. La conjunción de los temas con problemas contemporáneos de la sociedad brasileña revela autores como protagonistas de estudios de relevancia social y compromiso político con las transformaciones y cambios habidos tanto en el plano del cuidado en salud como en el de las políticas públicas.

Palabras-clave: Ciencias sociales y humanas. Comunicación científica. Salud Colectiva.

Submetido em 27/04/17. Aprovado em 21/12/17.

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2018; 22(67):1029-42


DOI: 10.1590/1807-57622017.0228

artigos

Encontros na rua: possibilidades de saúde em um consultório a céu aberto

Carla Félix dos Santos(a) Ricardo Burg Ceccim(b)

Félix-dos-Santos C, Ceccim RB. Encounters on the street: possibilities of health in a street health care center. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1043-52.

The present study discusses street health care and maps out the work of a health team to reflect about: encounters on the street, reducing harm, respecting people in their modes of being/existing/building a life, and the inscription of suitable healthcare models. Videos recordings, team annotations and the experiences of the authors were used for data analysis. The following expressive dimensions were constructed from our contact with the street population: the experience of living on the streets, the experience of working with health on the streets, the experience of on-the-job learning of a multiprofessional/interdisciplinary team, and the sociocultural intersection that originated from our “encounter” with this population. Providing health care on the streets is not a merely technical action, but represents a political presence involving the spheres of human rights, equity and justice, as well as political and cultural interventions. It is a way to respect ways of life, promote health, and defend multiplicity in citizenship.

Keywords: Street health care. Psychosocial care network. Primary care network. Street dwellers. Education and health promotion.

CC

BY

O presente estudo debate o Consultório na Rua, envolvendo a cartografia do trabalho de uma equipe de saúde para “pensar”: encontros na rua, redução de danos, respeito às pessoas em seus modos de ser/existir/constituir vida e inscrição em modelos próprios de saúde. Foram usados vídeos gravados na rua, atas de equipe e vivências dos autores. No desenvolvimento, foram construídos quatro âmbitos expressivos do contato com essa população: experiência do morar na rua, experiência do atuar com saúde na rua, experiência do aprender em ato de equipe multiprofissional/interdisciplinar e intercessão sociocultural proveniente do “encontro” com essa população. Na conclusão, destaca-se que a presença do consultório na rua não é simplesmente técnica, trata-se de uma presença política na esfera dos direitos, da equidade e da justiça, assim como intervenção política e cultural, respeitando modos de vida, promoção da saúde e defesa da multiplicidade na cidadania.

Palavras-chave: Consultório na rua. Rede de atenção psicossocial. Rede de atenção básica. Moradores de rua. Educação e promoção da Saúde.

(a) Consultório na Rua Pintando Saúde, Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Praça Alfred Sehbe, 45, Vila Ipiranga. Porto Alegre, RS, Brasil. 91360340. enfcarlafelix@ yahoo.com.br (b) Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. burgceccim@gmail.com

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ENCONTROS NA RUA: POSSIBILIDADES DE SAÚDE ...

Introdução Em nosso país, a condição de vida da população de rua coloca, no cenário das políticas públicas de saúde, uma desafiadora e intensa situação de iniquidade. Nesta direção, a construção de um modelo de atenção voltado a este segmento populacional precisa considerar: seus cenários de vida, desigualdade social e características do “morar” e “circular” nas cidades, vindo a contemplar necessidades individuais e coletivas de saúde1,2. A elaboração e implantação de estratégias de saúde devem dizer respeito a “esta” população, não à higienização de sua condição com medidas corretivas ou compensatórias. Nosso pressuposto é de que uma prática de saúde não opera em discriminação, opera em inclusão da diversidade, seja ela qual for; que a vida não é uma regra das ciências da saúde, é a invenção de tantas saúdes, quantas forem necessárias à vazão do viver; que ofertas terapêuticas devem ser condizentes com os pedidos de mais vida provenientes de cada lugar onde a vida pede passagem. Assim, por vezes, é preciso incluir intuitivamente uma rede de zelos simplesmente porque não sabemos que vidas pedem passagem ou que vidas são experimentadas por pessoas em diversidade dos modos de ver ou conseguir ver o mundo em relação a nós, nossas instituições e nossas verdades. Os modos do trabalho em um Consultório na Rua devem ser capazes de articular: atenção básica, atenção psicossocial e mediações socioculturais2,3. A proposta de política nacional nesse campo demonstra práticas de zelo especialmente sob o contorno das drogas, da violência e da saúde pública4-6. São destacadas a prevalência e a vulnerabilidade quando a saúde pública vem marcada pelos indicadores de vigilância epidemiológica: gravidez (sempre apresentada como de risco), doenças sexualmente transmissíveis, tuberculose, periodontite e transtornos mentais; mas a população de rua pede por um zelo com outras designações: alívio de dores e desconfortos físicos, acesso ao asseio corporal, alimentação e curativos7,8. A população requer a ampliação do acolhimento em ações de cuidado, estratégias de promoção do bem-estar saudável e acesso à proteção da saúde; cabendo, ao planejamento e gestão setorial, a organização de ofertas terapêuticas e políticas de trabalho fora da clausura do protocolo, do sistema de informação, da porta de entrada em linha vertical de trânsito por serviços instituídos e predefinidos à população a assistir2,3,8. O presente artigo nasce de um trabalho de pesquisa que teve como proposta “falar e pensar” sobre: atendimento, escuta, cuidado e tratamento desenvolvidos em um Consultório na Rua da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, designado, em sua criação, pelo nome de Pintando Saúde. Tal consultório integra a rede de serviços externos do Grupo Hospitalar Conceição, um complexo de saúde na zona norte da cidade, tendo sido implantado no ano de 20109,10. O objeto da pesquisa perpassou a descrição do trabalho no Consultório, mas apresentou quatro tópicos de análise: a experiência do habitar a/na rua (moradores), a experiência do atuar interdisciplinar e interprofissional da equipe de saúde na rua, a intercessão sociocultural com arte e saúde, questionando a produção sanitária neste tipo de serviço. A experiência do trabalho foi tomada em causa, assim como o relato de um casal de moradores em seu “pedacinho do céu” e a interposição positiva do rap na abordagem de rua (como vivência do/no Consultório).

Saberes antecedentes As atividades do Consultório na Rua Pintando Saúde acontecem com a disposição de: um veículo de 15 lugares, dois telefones celulares, cota de lanches e sucos, estoque de preservativos, material de enfermagem para curativos e administração de medicamentos, kit teste rápido de HIV/ Sífilis e alguns dos medicamentos que podem ser prescritos por enfermeiro, conforme protocolo institucional/municipal. As atividades de trabalho da equipe são divididas por microequipes, conforme a combinação de, aproximadamente, três pessoas por microárea, atuantes em dias fixos da semana, como estratégia de vinculação com a população local (rotina de território). Atualmente, são abordadas cinco microáreas na zona norte de Porto Alegre, definidas a partir de um mapeamento do território físico e de relações (locais que apresentam coletivos distintos de pessoas em relação aos modos de viver na rua, alternando concentração de gênero, atividades na rua e tipos de substâncias psicoativas predominantes). 1044

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Contudo, a ideia é escapar dos modelos da vigilância epidemiológica, da clínica psiquiátrica ou do consultório médico (engrenagem biopolítica da racionalidade biomédica), dando passagem a um “consultório a céu aberto”10,11. A principal característica a ser destacada no trabalho a céu aberto é a abordagem de pessoas no local onde se encontram (a calçada, a praça, o beco, o terreno baldio, a quebrada, a biboca, a bocada, o maloco, o mocó...) e em meio a relações que se movem e se enredam “ao vivo”, ou seja, não há a assepsia, disposições e guarnições de um “locus médico”. Levando em conta a desguarnição sanitária desse consultório, sua clínica não pode mais ser a clínica (bio)médica, mas uma clínica dos encontros, uma clínica aberta ao que as cenas de encontro requererem, um “consultório desguarnecido do consultório” (um consultório de rua, como o teatro de rua, o circo de rua ou a arte de rua, que só existem na e pela interação; não se destinam ao palco, precisam a linguagem, as formas e as disposições da rua, do povo de rua, do povo na rua). Por outro lado, existe o “locus educossanitário”12,13, a “sede” da equipe, o ponto de encontro dos trabalhadores em atividades como: reuniões, momentos de fortalecimento dos laços interdisciplinares ou interprofissionais, educação permanente, discussão e estudo de casos, compartilhamento de ações e intervenções realizadas em cenas de rua ou programadas em microáreas, e promoção da gestão coletiva na construção das estratégias de saúde a serem implantadas. A clínica “peripatética”, como definida por Lancetti11, também é recurso conceitual e inspiração à prática da equipe do Consultório de/na Rua, pois norteia as ações no campo da saúde mental, oferecendo possibilidades terapêuticas, uma vez que orienta funcionar/operar em meio aberto, onde os usuários podem encontrar as situações cotidianas com função clínico-terapêutica (redes familiares, socioculturais, de trabalho etc.).

Métodos A metodologia nesta investigação, como em qualquer pesquisa, pretendeu nortear o encontro com o campo. Por outro lado, supunha uma disposição de corpo aos encontros. Como ocorre no trabalho junto à rua, o desafio agora era o de pesquisa junto à rua. Cartografia dos encontros: prática do trabalho. Cartografia do trabalho: prática da pesquisa. Seguimos, pesquisadora em formação e orientador metodológico da investigação, com os pares de pesquisa e trabalho, as disposições éticas ao “pensar”. Pensar é acolher a desestabilização que devém, não reorganizar as desestabilizações que sobrevêm; pensar é uma “movência”, trânsito entre ideias, não uma reflexão, não uma interpretação ilustrada14. Os passos da cartografia não “pré-vistos”, são sabidos ao final, uma maneira de relatar percursos, aprendizados, exposições, experimentações, por exemplo15. Qualquer tentativa de “metodologizar” a cartografia termina por inscrevê-la numa teoria baseada em dados (grounded theory), concepção científica já afirmada nas ciências sociais desde 1990, com Alselm Strauss e Juliet Corbin16 e suas bases da pesquisa qualitativa, apresentando concepção, técnicas e procedimentos múltiplos, abertos, variados. Uma teoria embasada em dados precisa de diversificadas fontes, admite a complexidade e reconhece a pluralidade, mas não é isso a cartografia. Ela precisa acolher os desafios de pensamento emergentes das redes de interação, das redes de conversa e das redes de conexão espontânea que convocam experimentações e perturbam análises, interpretações e teorizações17. A cartografia se contrapõe a uma tradição que define o método a partir das metas, propondo, em seu lugar, a centralidade do caminho em relação às metas18. O que nos propusemos foi a efetivação de uma ética dos encontros, aqui foram três: afeto-equipe, afeto-moradores e afetorap-na-rua, não o ritual das metas. Assim, fez-se com que a pesquisa fosse, antes de tudo, uma experimentação, um processo em aberto. Suely Rolnik19, pensadora e pesquisadora que introduz a cartografia na ciência universitária brasileira com sua tese de doutorado, nos ensina que o pesquisador cartógrafo “leva no bolso um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações”. Conforme a pensadora, cada cartógrafo vai definindo, mas também redefinindo, para si mesmo – e constantemente – suas preocupações. Este é um tópico de relevo, afastado da teoria da evidência ou dos dados. Contando com estratégias metodológicas e procedimentos investigativos mais abertos e inventivos, um estudo pode atender aos valores da cartografia, como desafiaram Gilles Deleuze e Félix 2018; 22(67):1043-52 1045

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Guattari20,21, quanto à produção de subjetividade. A proposta de investigar processos de produção de realidades, acompanhar percursos em um certo tempo que dura de maneira mais aberta e que amplia suas conexões1,22. Foram selecionados dois casos “de campo” e um “caso de implicação”. Os dois casos de campo se impuseram, se colocaram em cena como demanda ética ao pensar23; o caso de implicação foi o inescapável, foi o método do cartógrafo, sua equipe de colegas em cena. Dentre os dois casos de campo, um portava um casal e sua casa de/na rua; outro, um morador e um estudante de graduação em estágio, ambos em uma performance musical na rua, cartógrafos de si mesmos. Quanto ao casal, moradores de rua que apresentam sua morada, seu “pedacinho do céu”, ao tempo em que veem a possibilidade de reencontro com uma família do interior e sua reintegração à mesma. Quanto ao morador e estudante, o afeto-rap e sua produção de saúde. O tema do casal também trouxe o tema da equipe de saúde, os trabalhadores e um de seus momentos educossanitários13. O “caso” foi configurado como relato em uma reunião de equipe específica, um momento de apoio matricial, um momento de educação permanente em autogestão local. Houve a gravação em vídeo do contato com a “casa de rua”; a gravação em áudio da reunião de estudos e apoio matricial; o registro de impressões com a emergente roda de conversa dos trabalhadores; e o acesso à ata de análises e encaminhamentos debatidos. A gravação em vídeo é de setembro de 2015 e o mesmo encontra-se público na Internet, na página do Consultório na Rua Pintando Saúde junto à rede social Facebook24. O tema do dueto de rap – morador e estudante universitário – também possuía um vídeo junto à rede social Facebook, já constante na mesma página25, mostrando um momento de retomada de um encontro numa praça da região, na zona norte de Porto Alegre, onde ambos cantam Negro Drama, de Edy Rock e Mano Brown, dos Racionais MC’s. A letra do rap tem, aproximadamente, sete minutos de duração. Nos estudos de caso junto à equipe do Consultório sobre nossos usuários moradores de rua, colhemos as vivências relatadas pelos trabalhadores nos vídeos e materiais de acesso público e percebemos como se afetam e interagem. No relato sobre o contato com a população de rua, flutuam as conversas sobre acolhimento, vínculo, responsabilização, resolutividade e participação na construção da autonomia de vidas em movimento. Uma saúde “falada” e uma saúde “sentida” pelo encontro dos trabalhadores com os usuários. O relato ganha uma tonalidade na narrativa e outra na construção do projeto terapêutico a ser construído na rua. O trabalho atendeu às diretrizes dispostas na Resolução nº 466, de 12 de setembro de 2012, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep, do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta os aspectos éticos da pesquisa que envolve seres humanos (Protocolo 29.876.15). Para a realização e divulgação dos vídeos, todos os envolvidos assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, permissão de uso de imagem em redes sociais da rede mundial de computadores, e tomaram ciência da possibilidade de revogar disponibilidades por indisponibilidades a qualquer tempo.

Resultados Os encontros que se produzem nas reuniões semanais são momentos de discussão sobre: os acompanhamentos de usuários e familiares, a rede intersetorial, as possibilidades de encaminhamento, e as intervenções focais longitudinais. A atenção é pensada sem se fragmentar a produção de saúde; e, também, os atendimentos, encaminhamentos e acompanhamentos na rede devem ter em conta condições subjetivas e viabilidades reais. As deliberações envolvem a construção de pactuações com os usuários sobre: consultas médicas e de enfermagem, internações, indicações para abrigos, atividades de geração de renda, inserção em centros de atenção psicossocial ou socioassistenciais, entre outros. Os momentos de reunião tornam-se potentes ao encontro a partir dos trabalhadores, que falam de suas percepções, incômodos, ideias e de seus estranhamentos (momentos educossanitários). A expressão de sentimentos, envolvida no contato com histórias de vida na rua; seu relato nos momentos coletivos do trabalho; e as interações de equipe emergentes da presença na rua ou da presença em coletivos do trabalho representam a experiência do aprender em ato da equipe 1046

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multiprofissional e interdisciplinar na rua. Uma narrativa do/no trabalho na rua mobiliza afetos, mostra facetas da realidade, e seu debate coloca em evidência variáveis pouco exploradas naquele momento, mas é possível reconhecer a discussão dos modos de vida, sobre o viver e sobre as fragilidades da vida. Tomamos, em uma cena da rua, um casal com o desejo da “organização de um lar”; apresentam-nos seu “cantinho”, que os “abriga da chuva e do frio”. Falam de um lugar personalizado, mostram-nos plantinhas que tinham nome, um limoeiro no terreno onde havia uma casa e hoje fornece a oportunidade de uma fruta colhida do pé. Uma mulher que narra sua vida de casal com um companheiro que, apesar das brigas e da violência sofrida com ele, configura a presença do amor íntimo. No dia a dia, surge uma vida de moradores de rua, que formam sua saúde por meio de atividades diárias em modos de vida próprios. Ações sutis criam, a céu aberto, seu “pedacinho do céu”. Microterritorialidades que constituem subjetividade e comunidade. Apreendemos territórios construídos diariamente por gestos, variáveis pessoais, econômicas, culturais e políticas que incitam ou facilitam o processo de moradia nas ruas. Microterritórios constituídos por afecções de sobrevida e possibilidades de saúde, seja sob o caráter solitário, de relações pouco estabelecidas, ou sob fragmentos do cotidiano que desenham personalidades provisórias. Em uma visita ao assim designado “nosso cantinho, nosso pedacinho do céu”, foi gravado um vídeo, transcrito e estudado (nos deixamos afetar) em reunião de equipe no matriciamento pela Saúde Mental. Em apenas 2,5 min, todo o lar do casal estava apresentado: a cama, os móveis, os objetos de decoração, as plantas, as árvores em torno, a presença de mariposas noturnas (bruxas), a lona alta que agora permitia ficar em pé quando antes habitavam um lugar de “andar agachadinho”. Saídos da rua por terem sido reencontrados pela família do interior, à rua retornaram pouco tempo depois. O vídeo teve duração de 3,21 min.

Figura 1. “Rosimar e André mostrando seu espaço...”

Fonte: https://www.facebook.com/pintandosaude/videos/523896197765515/

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Um segundo vídeo colhemos do espaço aberto de uma praça. O contexto de representatividade e agenciamento do hip-hop. Podemos dizer que, por meio da música, tivemos: um estímulo de reterritorialização da subjetividade entre moradores de uma praça na periferia da cidade, troca de ideias, histórias de vida, espaço para debate e troca de experiência. Nossas propostas de mediação sociocultural aconteciam, até então, no formato de roda de conversa e de atividade física (partidas de futebol), pensadas como estratégias de interação; contudo, de forma espontânea e sem combinações prévias, um dos moradores nos trouxe o rap, demonstrando maior “presença” ao expressar suas opiniões, revoltas e críticas, inscreve a si mesmo em uma cultura urbana, de vivências coletivas e transversalidade política com o país e o mundo. Nosso vídeo, na cena de uma ação em redução de danos com uma “comunidade” de usuários “abusivos e dependentes” do álcool, colhe a performance espontânea de um morador e um estudante de graduação em saúde coletiva com o rap Negro Drama. O vídeo produzido durante o encontro na praça teve duração de 2,24 min, trazia a interação entre um morador e um estudante universitário, o convite à comunidade para inscrever-se em um contexto maior que sua vida na praça-rua. Foi possível atentar para uma canção declamada em 26 estrofes, trazendo o jogo cancioneiro entre dois homens diferentes, que se dessubjetivam/ressingularizam nesse ato. Denunciam para a sociedade o preconceito com os negros e com a periferia. A letra traz palavras fortes e sensíveis para quem habita (afeto do morar) a rua e para quem aderiu ao trabalhar em um consultório de/na rua. Escuta-se: negro drama, (...) à procura da cura; o trauma que eu carrego para não ser mais um preto fodido; agonia que sobrevive; me ver pobre, preso ou morto já é cultural; eu era a carne, agora sou a própria navalha; a alma guarda o que a mente tenta esquecer; sempre a provar que sou um homem e não um covarde; poeta entre o tempo e a memória; falo pro mano que não morra e também não mate; inacreditável, mas meu filho me imita; [sob] esgoto a céu aberto; aê, você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você, morou irmão?; “firme e forte, guerreiro de fé, vagabundo nato!26

Figura 2. “Atividades de lazer/cultura realizadas pela equipe do Consultório na Rua/Pintando Saúde em territórios da zona norte” Fonte: https://www.facebook.com/pintandosaude/videos/340127296142407/

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O hip-hop trouxe não apenas conexões musicais, mas a construção de um espaço produtivo de sentidos próprios e novos olhares, não apenas por oportunizar a fala, mas por oportunizar a insurreição de saberes e processos de subjetivação local. A subjetividade, conforme Deleuze, é constituída por múltiplas linhas e planos de forças que atuam ao mesmo tempo: linhas duras, que detêm a divisão binária de sexo, profissão, camada social, e que sempre classificam, sobrecodificam os sujeitos; e linhas flexíveis, que possibilitam acometer a subjetividade e criam zonas de indeterminação, permitindo-lhe agenciar27. A equipe devém rua ao tratar desses temas, se renova, se compromete, se faz inédita de um momento para outro, entende seu fazer, as exigências éticas de seu ir, vir, permanecer28.

Discussão Nos percursos de atendimento à população de rua, são os encontros que portam olhares e escutas. Olhares e escutas que, na rua, não são metáforas para os trabalhadores do consultório de/na rua, são seus dispositivos assistenciais. Chama-se “consultório”, mas não oferta consultas, realiza abordagens, oferta olhares e escutas. Realiza procedimentos de coleta de exames, aplicação de testes sorológicos rápidos, administração de medicamentos e providência de curativos; mas estes somente ocorrem sob ações de interação nas quais identidades díspares se tencionam, inscrição em mediações socioculturais e submissão a compromissos socioassistenciais em rede. Um simples procedimento, quando se trata de um paciente que acorre voluntariamente a um serviço, com ambientes sob processo asséptico e rotinas de biossegurança, pode se tornar de grande complexidade, quando se trata da população de rua: compreender a aceitação ou não de um procedimento, construir significados, oferecer condições adequadas e humanizadas de intervenção, prover recursos socioafetivos de retaguarda ou de base etc. Nos serviços da rede intersetorial, nos registros em prontuário, no preenchimento de números em sistemas de informação, percebe-se que as possibilidades de pensar são mínimas. O pensar só se concretiza nas reuniões onde os casos são, não necessariamente, detalhados, mas discutidos. Claro que, em parte, são os problemas socioeconômicos, de desigualdades e discriminações, mas existem as dificuldades das equipes de saúde em trabalhar com sentimentos, e muitos significados profissionais e morais dos trabalhadores desmoronam. Alguns conceitos surgem ressignificados ou são emergentes em ato: acolhimento, afeto, desejo, escuta, potência de vida, responsabilização, vazio e vínculo. Esses conceitos – novos ou revistos – são provenientes das narrativas dos trabalhadores sobre o que reverbera no seu “encontro” com a população atendida. O trabalhador pode ser criativo e autônomo quanto aos instrumentos à sua disposição, desde que fletidos ao outro, não aos objetivos das regras e protocolos. São importantes um olhar atento e uma escuta ativa para se alcançar o estreitamento de vínculos por entre redes de trabalho afetivo29. Como fala Ricardo Teixeira, quando remete a clínica a Spinoza, não se trata apenas de eficácia, mas de potência, e a “potência é sempre em ato”, é sempre efetuada, e são os afetos que a efetuam. A clínica a céu aberto é a clínica dos encontros, encontros que são afetos ou afecções a céu aberto. Nos encontros por motivo de atenção à saúde30 com os moradores de rua, é necessário crer na potência do cuidado e construir a saúde das pessoas que ali estão: possibilidades de saúde, um percurso onde vozes da diferença se entrelacem, onde discursos entrem em problematização, atuando como imersão na subjetividade e recriando a experiência social da rua, do habitar a rua como afeto do morar e como afeto do atender em saúde.

Considerações finais A presença, na rua, de um consultório a céu aberto ou a garantia de uma política pública de saúde e de atenção psicossocial que preveja esse tipo de serviço, essa modalidade de atenção, é desafio ético e político. Sua presença, entretanto, não é simplesmente técnica, trata-se de uma presença política na esfera dos direitos, da equidade e da justiça, mas trata-se, também, de intervenção política e cultural respeitando os modos de vida, a promoção da saúde e a defesa da multiplicidade na cidadania. De certa forma, trouxemos o pensar de outros atores sociais, estes do escopo sociocultural, como Mano 2018; 22(67):1043-52 1049

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Brown: “aos parceiros tenho a oferecer minha presença, talvez até confusa, mas leal e intensa”31. A preocupação na manutenção de um permanente “encontro”30 com a população atendida é aliviar/lidar com o afeto de frustração ante a vontade de uma vida com máximo acesso aos mínimos direitos e com a sensação de vazio ante a ausência de alternativas ou de explicações ou, ainda, a ausência de recursos materiais e conceituais de intervenção e com apoiadores. Os Racionais Mc’s também inscrevem o afeto de frustração quando explicam a periferia: “corpos vazios e sem ética lotam os pagodes rumo à cadeira elétrica; eu sei, você sabe o que é frustação, máquina de fazer vilão32. O rapper alerta: “me ajude, sozinho penso merda pra caralho”. São os aprendizados que, por fim, vieram da pesquisa realizada porque buscou a experiência do morar na rua, a experiência do atuar com saúde na rua e a experiência educossanitária12,13 de uma equipe multiprofissional e interdisciplinar de consultório na rua. As abordagens na rua, quando “encontros”, afecção, disposição de corpo à cartografia, são possibilidades de saúde, próximas ou distantes, ao acaso, da vigilância epidemiológica, ou da saúde pública baseada em evidências, só se fazem consultório se a céu aberto, oferecendo presença (se confusa, leal e intensa).

Colaboradores Carla Félix dos Santos participou da elaboração e execução da pesquisa, participou diretamente na coleta, análise e discussão dos dados, atuando na redação conjunta do artigo. Ricardo Burg Ceccim participou da supervisão na elaboração e execução da pesquisa, na análise dos dados e no relatório de pesquisa, atuando na redação conjunta do artigo e dos textos de extração da dissertação de mestrado. Fontes de financiamento A investigação científica se insere em projetos maiores de pesquisa e ensino do supervisor, mesmo não tendo financiamento específico. Referências 1. Borges RL. A grande saúde peregrina: vidas que constituem o jornal Boca de Rua [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2016. 2. Assumpção ELA, Antunes VH, Lima CLC, Freitas DLG, Costa MS, Costa AA, et al. A atenção básica do fora: construção do consultório na rua. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Paivade-Campos JD, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Informes da atenção básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. p. 133-53. 3. Morganti R, Franco T. Palhaçaria na gestão com acolhimento: o caso do morro do Cantagalo/Pavão/Pavãozinho (Cidade do Rio de Janeiro). In: Ceccim RB, Kreutz JA, Paiva-de-Campos JD, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidade na atenção básica: prospecção de experiências “informes” e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. p.195-308. 4. Ministério da Saúde (BR). Portaria GM/MS nº 122, de 25 de Janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União. 25 Jan 2012.

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5. Ministério da Saúde (BR). Portaria GM/MS n° 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 23 Dez 2011. 6. Presidência da República (BR). Decreto Federal nº 7.179, de 20 de Maio de 2010. Institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor e dá outras providências. Diário Oficial da União. 20 Maio 2010. 7. Candiani C, Pedra M, Gallassi A. 7.7. Álcool e drogas. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. p. 72-6. 8. Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):251-60. 9. Grupo Hospitalar Conceição. Consultório de rua do SUS: projeto “Pintando Saúde”. Porto Alegre: GHC; 2010. 10. Félix-dos-Santos C. Encontros na rua: possibilidades de saúde em um consultório a céu aberto [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2017. 11. Lancetti A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec; 2006. 12. Ceccim RB, Kreutz JA. Prospecção de modelos tecnoassistenciais na atenção básica: protocolo de pesquisa colaborativa multissituada na educação em saúde coletiva. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Paiva-de-Campos JD, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. In-formes da atenção básica: aprendizados de intensidade por círculos em rede. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. p.17-32. 13. Ceccim RB, Kreutz JA, Paiva-de-Campos JD, Culau FS. Educação em saúde coletiva, pesquisa-formação e estratégia de prospecção de modelos tecnoassistenciais na atenção básica. In: Ceccim RB, Kreutz JA, Paiva-de-Campos JD, Culau FS, Wottrich LAF, Kessler LL, organizadores. Intensidade na atenção básica: prospecção de experiências “informes” e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. p.17-30. 14. Siegmann C, Fonseca TMG. Caso-pensamento como estratégia na produção de conhecimento. Interface (Botucatu). 2007; 11(21):53-63. 15. Amorim AKMA, Severo AKS, Romagnoli RC. Cartografia de um grupo-pensamento em saúde mental: experimentações rizomáticas no que a vida pode mais. Physis. 2015; 25(2):657-78. 16. Strauss A, Corbin J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2008. 17. Ceccim RB, Ferla AA. Notas cartográficas sobre escuta e escrita: contribuições à educação das práticas de saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. 2a ed. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005. p. 253-67. 18. Passos E, Escóssia L. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009. p. 17-31. 19. Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; 2006. 20. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 1995. v. 1. 21. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 2012. v. 3.

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ENCONTROS NA RUA: POSSIBILIDADES DE SAÚDE ...

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Félix-dos-Santos C, Ceccim RB. Encuentros en la calle: posibilidades de salud en un consultorio a cielo abierto. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1043-52. En este articulo se discute el Consultorio en la Calle, envolviendo la cartografía del trabajo de un equipo de salud para “pensar”: encuentros en la calle, reducción de daños, respeto a las personas en sus modos de ser/existir/constituir vida, e inscripción en modelos propios de salud. Se usaron videos grabados en la calle, actas del equipo y vivencias de los autores. En el desarrollo se constituyeron cuatro ámbitos expresivos del contacto con esta población: experiencia del vivir en la calle, experiencia del actuar con salud en la calle, experiencia del aprender en acto de equipo multi-profesional/interdisciplinario e intercesión sociocultural proveniente del “encuentro” con esta población. En la conclusión, se subraya que la presencia del consultorio en la calle no es simplemente técnica, sino que se trata de una presencia política en la esfera de los derechos, de la equidad y de la justicia, así como una intervención política y cultural, respetando modos de vida, promoción de la salud y defensa de la multiplicidad en la ciudadanía.

Palabras clave: Consultorio en la calle. Red de atención psicosocial. Red de atención básica. Personas que viven en la calle. Educación y promoción de la Salud.

Submetido em 27/04/17. Aprovado em 28/08/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0527

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Educación para la salud: horizontes y estrategias recurrentes en Argentina (1970-1980)

Carla Reyna(a)

Reyna C. Education for health: recurring strategies and perspectives in Argentina (1970’s-1980’s). Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1053-64.

This article analyzes the changes that took place in the education for health policy in Argentina, under the Primary Health Care strategy. The objective was to identify the reception of international recommendations and their local circulation and reproduction. The first section analyzes, at the end of the 1960’s, the context of the hegemonic crises of the health care model in Latin America, the answers for the legitimacy of the Primary Health Care strategy in international meetings, and the proposal of a new disciplinary perspective in preventive education. The second section focuses on the reception of these ideas in Argentina during the 1970’s, according to the editorial characteristics of the Education for Health magazine, published by the Education for Health Department, during the 1970’s and 1980’s.

Este artículo analiza las transformaciones de la política de educación para la salud en Argentina, enmarcadas en la estrategia de Atención Primaria de la Salud. El objetivo fue identificar la recepción de las recomendaciones internacionales y su circulación y reproducción local. La primera sección revisa, a fines de los 1960, el contexto de crisis hegemónica del modelo sanitario en América Latina; las respuestas de legitimación de la estrategia de Atención Primaria de la Salud en encuentros internacionales y la propuesta de un nuevo horizonte disciplinar en educación preventiva. El segundo apartado focaliza en la recepción de estas ideas en Argentina en la década de 1970, según las características editoriales de la revista “Educación para la Salud”, publicada por el Departamento de Educación para la Salud, durante el período 1970-1980.

Keywords: Education for health. Primary health care. Public Health. Public Health in Argentina.

Palabras clave: Educación para la salud. Atención primaria de la salud. Salud Pública. Salud Pública Argentina.

CC

BY

Doctoranda en Estudios Sociales de América Latina, Instituto de Estudios para el Desarrollo Social, Universidad Nacional de Santiago del Estero. Avenida Belgrano Sur 2100, C.P. 4200. Santiago del Estero, Argentina. reynacarla.e82a@ gmail.com (a)

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Introducción Luego del golpe militar de 1955, la política de salud pública argentina se caracterizó por la proscripción al peronismo, momento en que cobraron mayor peso las recomendaciones de los organismos sanitarios internacionales. Bajo este influjo, las endemias y los brotes epidémicos fueron vistos como intersticios de inestabilidad social, de modo que la prevención de las enfermedades y el estímulo al desarrollo económico mediante iniciativas comunitarias fueron los dos ejes centrales del modelo sanitario recomendado. La modernización de las sociedades latinoamericanas dependía de una rigurosa planificación y de una eficiente racionalización de los programas en el sector1-4. El impulso otorgado a la educación para la salud en el país durante los años 1960 fue notorio. La impronta de la Organización Mundial de la Salud y de la Organización Panamericana de la Salud se reflejó en las ayudas financieras que se concentraron en el otorgamiento de becas de formación de expertos argentinos en el exterior y de auxiliares en el interior, en la organización de encuentros nacionales e internacionales sobre la disciplina, en la asistencia de consultores, en el desarrollo de investigaciones, de experiencias piloto comunitarias y escolares y en la creación de resortes legales, como la Ley n° 15.767, de “Interés Nacional de la Educación Sanitaria” (1960), y de dispositivos editoriales: informes técnicos, revistas de salud pública y especializadas en instrucción sanitaria5. En 1960 el Departamento de Educación para la Salud, bajo la dependencia del Ministerio de Asistencia Social y Salud Pública de la Nación, comenzó a publicar la revista “Educador Sanitario” y, con una frecuencia trimestral, alcanzó a editar durante la década 30 números. La Revista constituyó un vehículo de divulgación de las prescripciones metodológicas, teóricas y temáticas de los organismos internacionales para docentes, personal de salud y asociaciones civiles, involucrados en actividades de salud comunitaria. Asimismo, sus páginas buscaron proyectar el apoyo financiero recibido de la Organización Mundial de la Salud y la Organización Panamericana de la Salud y las actividades técnicas del Departamento a nivel federal5. En 1970, la Revista tomó un giro editorial. Comenzó a publicarse bajo el título “Educación para la Salud”, anunciando las transformaciones técnicas y la pertinencia de una nueva concepción disciplinar en el marco de un emergente modelo internacional en salud pública. No obstante, fue notorio el retiro de las ayudas financieras al Estado, visible en la reducida formación de cuadros técnicos, en la mayor participación de las asociaciones civiles en las campañas preventivas y en la menor frecuencia de las publicaciones de la Revista. Las rupturas en la política argentina de educación para la salud durante la década se precipitaron no sólo por la actitud refractaria de las agencias sanitarias internacionales, sino también por el clima de hostilidad institucional que atravesaba el país. Las intermitencias democráticas, inauguradas por el Golpe de Estado encabezado por Juan Carlos Onganía (1966-1969), generaron un frecuente recambio burocrático y la progresiva desjerarquización del Departamento a Sección de Educación para la Salud, que pasó a depender de la Subárea de Promoción y Protección de la Salud de la Secretaria de Salud Pública de la Nación. Estos vaivenes institucionales causaron la remoción y reducción habitual de los equipos de redacción de la Revista y le imprimieron un perfil corporativo. En esta línea, el presente trabajo tiene una doble inscripción epistemológica. En primer lugar, se ubica en el campo de la historia de la salud pública en América Latina6-15. En segundo lugar, integra un grupo de estudios que emergieron en la última década en la región, ligados al heterogéneo universo de formatos, dispositivos y actores en la enseñanza de prácticas vinculadas a la salud desde la esfera estatal5,16-19. Dentro del corpus de investigaciones que tomamos como referencia, se encuentran los trabajos que abordan la circulación transnacional de saberes, ideas y expertos. Éstos puntualizan en la conformación de elites estatales que, en coyunturas particulares, funcionan como bisagras entre las potencias hegemónicas y los países en desarrollo. Exploran también los mecanismos de estandarización de los saberes expertos: la legitimación de discursos, la movilización de dispositivos y de recursos técnicos y el desplazamiento de los expertos desde la esfera política/estatal para llegar a la sociedad a través de la notoriedad mediática. No obstante, el influjo de estos saberes supone una reformulación creativa atravesada por los mecanismos y argumentos de legitimación locales20,21. Un segundo grupo de 1054

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(b) El cambio de titulación de la Revista, de la repartición, de los integrantes de su equipo de redacción durante el período 1960-1980 dificultan el ejercicio de escritura y pueden confundir al lector en la interpretación del análisis editorial. Por este motivo, de aquí en adelante, se opta por el término Revista para hacer referencia en forma genérica a la editorial publicada en forma oficial por la cartera sanitaria en Educación para la Salud a nivel central.

estudios que nutren nuestro análisis son los de Mónica Petracci y Silvio Waisbord sobre la histórica relación entre comunicación, educación y promoción de la salud y su constitución como esferas casi indiferenciadas. Sostienen que la confluencia de estas áreas disciplinares refleja “[…] la visión instrumental imperante en ópticas de salud y en ámbitos destinados a la formulación e implementación de políticas públicas de salud”22 (p. 11). En línea con estas ideas, el objetivo de este artículo es estimular la reflexión sobre la participación de los Estados miembro en las “convenciones” sanitarias mundiales durante la era desarrollista y, en este marco, identificar en el país las rupturas y las continuidades de la política de educación para la salud. El trabajo se organiza –temática y metodológicamente− en dos secciones. En la primera se revisa, a fines de los sesenta del siglo XX, el contexto de crisis hegemónica del modelo sanitario en América Latina; las respuestas de legitimación de la estrategia de Atención Primaria de la Salud (de ahora en adelante, APS) y la propuesta de un nuevo horizonte disciplinario en educación preventiva. Se analizan documentos oficiales de la Organización Mundial de la Salud (de ahora en adelante, OMS) y de la Organización Panamericana de la Salud (de ahora en adelante, OPS) emitidos en encuentros internacionales. La segunda sección se centra en la recepción de aquellas ideas en Argentina en la década de 1970. Con este propósito, se examinan las características editoriales de la revista “Educación para la Salud”(b).

La crisis hegemónica y la legitimación de un “nuevo consenso internacional” El Plan Decenal de Salud Pública 1962-1971 rubricado en la Alianza para el Progreso (Punta del Este, 1961) se constituyó en la credencial para el financiamiento y las inversiones que lograrían modernizar a las naciones latinoamericanas. La adopción de una perspectiva pretendidamente tecnocrática sería el garante operativo del desarrollo socio-económico3,23. No obstante, los regímenes dictatoriales en diferentes países de la región estimularon la volatilidad de los elencos burocráticos y la discontinuidad de las políticas públicas. Como señala Marcos Cueto, este escenario marcó la brecha entre los objetivos de la Alianza y los resultados alcanzados, provocando la suspensión de las ayudas financieras y de los programas en curso4. La búsqueda de un “nuevo consenso mundial” en la segunda mitad de los sesenta en el siglo pasado fue una clara evidencia de la crisis hegemónica del modelo sanitario. Los organismos internacionales emplearon como argumentos de peso el éxito de arquetipos alternativos de salud en países en desarrollo, propiciados por la alianza de las iniciativas privadas, las escuelas y las comunidades para atender las principales necesidades de salud de la población. Las retóricas de legitimación ponían el foco en la persistencia de un enfoque limitado a la curación debido a un excesivo número de médicos, cuestionando asimismo la necesidad de más servicios de salud y de una mayor transferencia tecnológica4,24. Estas experiencias e ideas fueron abonando el terreno para la concertación de la estrategia de APS, que comprueba sus orígenes mucho antes de su declaración oficial en la Reunión de Alma-Ata (1978). El modelo de atención primaria propuesto integraba la educación preventiva y la erradicación de las principales endemias y epidemias, las inmunizaciones, la provisión de alimentos y de agua potable, la asistencia materno-infantil, el control de natalidad y el suministro de medicinas esenciales. La descentralización de estos servicios en pequeñas postas 2018; 22(67):1053-64 1055

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sanitarias permitiría que la capacidad hospitalaria fuese eficaz, reservada para casos clínicos complejos que viniesen a requerir la intervención de personal especializado y de mayor tecnología25. En efecto, las convocatorias internacionales durante los años 1970 fueron sesiones preparatorias para afianzar la “nueva” estrategia de salud pública. Una de las más importantes por su afluencia fue la Tercera Reunión Especial de Ministros de Salud de las Américas (1972) que se celebró en Chile bajo el auspicio del Segundo Decenio de las Naciones Unidas para el Desarrollo (1971-1980). El eje de este encuentro fue la ampliación de la cobertura sanitaria mediante líneas de acción preventivas y la definición de un primer nivel de atención para racionalizar la capacidad hospitalaria. Las principales recomendaciones no guardaron cambios sustanciales con el período anterior: establecer un calendario oficial de vacunación obligatoria, sistemática y masiva; disminuir la incidencia de las enfermedades de transmisión sexual; identificar y reducir la distribución y la frecuencia de la enfermedad de ChagasMazza y de la lepra; reducir las tasas de mortalidad infantil por infecciones entéricas; implementar programas materno-infantiles para la institucionalización de los partos y la cobertura de niños menores a un año en un 90%; estimular el diagnóstico y el tratamiento precoz de las enfermedades cardiovasculares y del cáncer; regular la dinámica de la población mediante el control de la natalidad; fomentar la salud dental a través de programas escolares; intensificar las acciones de saneamiento ambiental; promocionar la salud ocupacional y la higiene industrial y prevenir los accidentes viales26. La eficacia de las áreas programáticas señaladas dependía de una política de educación para la salud con un mayor anclaje en el curriculum escolar. Aunque la participación del magisterio en estas tareas fue histórica, siempre se caracterizaron por ser extra-áulicas o extracurriculares. Éstos representaron indicios sobre cómo el cambio deseado en las prácticas sanitarias buscó una vía más diligente y económica. La plasticidad cognitiva de los educandos para asimilar estas pautas podría soslayar las supuestas resistencias socio-culturales en el seno familiar; el trabajo sanitario de los y las docentes sortearía la persistente escasez de personal de salud en zonas relegadas. Estas ideas se replicaron en la XXVIII Asamblea Mundial de la Salud (Ginebra, 1975) en la que por primera vez se proclamó a la estrategia de APS como materia prioritaria y urgente para lograr la extensión de la cobertura y la satisfacción de las necesidades básicas de la salud comunitaria27. Del mismo modo, la IV Reunión Especial de Ministros de Salud de las Américas, que se celebró en Washington en 1977, tuvo como base el documento de la OMS “Extensión de la cobertura de servicios de salud con las estrategias de atención primaria y participación de la comunidad”. La convocatoria tuvo por propósito analizar las dificultades técnicas y financieras para su implementación y la normatividad del concepto, adaptable a las circunstancias nacionales28,29. Finalmente, la consagración mundial tuvo lugar en 1978, en la Conferencia Internacional oficiada en la ex-Unión Soviética, también conocida como Declaración de Alma-Ata. Bajo el lema “Salud para todos en el año 2000”, se prescribía que la asistencia debería ser acorde “a un costo que la comunidad y el país puedan soportar”25. En este encuentro la educación para la salud había sido postulada como un componente central de la estrategia. Favorecería los procesos de organización comunitaria para identificar necesidades, inducir prioridades y buscar alternativas de solución con recursos locales. Sin duda, la experiencia de estos países que sedimentaron los antecedentes de la estrategia de APS reflejaba la incapacidad estatal para atender las necesidades sanitarias de los sectores más postergados. Este escenario institucional no era extraño para algunos Estados latinoamericanos, en los que la irrupción de dictaduras militares favoreció la recepción del modelo, que transfirió la responsabilidad y los costos de su salud a la propia comunidad. De este modo, se legitimó un concepto polisémico y dinámico, adaptable a las necesidades sentidas de los pobladores y reductible a los recursos disponibles en cada contexto. Para el caso argentino, la reestructuración del sistema sanitario en términos de centralización normativa y descentralización ejecutiva durante los sesenta generó dificultades técnicas y financieras de largo aliento al transferir a las provincias la sanidad pública. Esta situación se profundizó cuando se sancionó la Ley de Obras Sociales n° 18.610 en 1970, que prescribió para los trabajadores en relación de dependencia que la atención médica fuese cubierta por prestadores privados. Según Susana Belmartino, a fines de la década de los setenta en el siglo XX, la cobertura sanitaria del 75% de la población era provista por obras sociales, medicina prepaga, mutuales o bien por el abono directo de 1056

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los honorarios médicos. El 25% restante acudía a los servicios públicos de salud, que desde gestiones anteriores ya presentaban serios problemas de infraestructura y personal reducido1,30. En este sentido, la heterogeneidad y la fragmentación del sistema sanitario en el marco de sucesivos gobiernos dictatoriales, propició que Argentina se adhiriera formalmente a la tendencia mundial de APS.

La revista Educación para la Salud: nuevos horizontes, estrategias recurrentes Según la editorial, el retorno de la Revista en 1970 bajo el título “Educación para la Salud” se debía a un reordenamiento de los lineamientos generales de la doctrina, enfocados en las ciencias de la conducta y de la educación31. La salud fue definida como un equilibrio dinámico entre el sujeto y su medio natural y social y debía ser coherente con una nueva concepción disciplinar y metodológica. Este viraje discursivo manifestaba la necesidad de despojar al término “sanitario” de su connotación intervencionista, una visión heterónoma y verticalista, por otra que implicara la responsabilidad y el autocuidado de la salud a través de procesos educativos. Los nuevos lineamientos debían ser compatibles con los umbrales ideológicos de la “realidad argentina” y, desde esta óptica, las escuelas fueron vistas como centros promotores de salud comunitaria. Durante el período 1970-1980 en las secciones de la Revista se transcribieron, con algunas adaptaciones locales, fragmentos de los informes técnicos de la OMS, la OPS, la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (UNESCO) y de la revista “Salud Mundial” editada por la OMS. Las nuevas prescripciones técnicas sobre educación para la salud se conjugaron con material gráfico de producción local, entre ellos representaciones estadísticas, fotografías, caricaturas y viñetas humorísticas. En 1971 las ediciones pasaron de una frecuencia cuatrimestral a una semestral, pero con una tirada gratuita que pasó de 20.000 a 40.000 ejemplares, distribuidos en el país y en el extranjero. El eje central de cada número se estructuró en base a la problemática destacada en el Día Mundial de la Salud, el 7 de Abril, conmemorativo del aniversario fundacional de la OMS. Las secciones más destacadas por su continuidad fueron los segmentos sobre actualización disciplinar en ciencias de la conducta y de la educación en el área de salud pública; sobre metodologías y ayudas audiovisuales; un apartado sobre las actividades técnicas desarrolladas por el Departamento; reportajes a instituciones públicas y privadas vinculadas a experiencias de participación comunitaria; una sección dedicada al homenaje de figuras masculinas destacadas de la medicina argentina; noticias breves nacionales e internacionales sobre problemas y avances en salud pública y reseñas bibliográficas, muchas de ellas traducidas por la propia repartición. “Figuras a la distancia”, el primer segmento de cada edición, veneró a célebres médicos argentinos por sus aportes al campo de la higiene y de la salud humana, como Gregorio Araoz Alfaro, Pílades Dezeo, Rodolfo Vacarezza y Manuel Carbonell entre otros. Este apartado retomó un eje habitual de otras publicaciones médicas: la celebración y homenaje de algunas personalidades icónicas de la medicina. Sólo dos mujeres fueron homenajeadas en la sección. El espacio asignado a la primera médica argentina, Cecilia Grierson, fue por considerarla una de las precursoras de la educación para la salud32. La segunda mujer destacada fue Elena Larroque de Roffo, estudiante de medicina junto a su futuro marido, el médico higienista Ángel Roffo. Tras abandonar sus estudios, Elena fue reconocida por sus contribuciones a la salud pública, como “Mujer ante todo [que] dedicó desde entonces su vida y su capacidad al triunfo del compañero y al beneficio de la humanidad”33. Aunque fueron figuras destacadas de la medicina y de la salud pública, en estas páginas sus imágenes fueron representadas en un lugar de subordinación laboral y de una “natural” abnegación femenina. Por otro lado, las secciones ubicadas en las últimas páginas; como la columna de humor médico, la galería de arte y “El test de las 5 preguntas”; trataron de darle a la Revista un tinte de interés general, pero, al mismo tiempo, intentaron representar al galeno desde un lugar menos autoritario y más humanizado. Aunque los mensajes de las primeras y las últimas secciones parecían contrastar, sugerían que el éxito de la salud pública provenía del esfuerzo coordinado entre el personal de salud y los ciudadanos, confrontado a las resistencias que generaban las prescripciones médicas en la consulta individual, a menudo dramatizadas como tardías o innecesarias. 2018; 22(67):1053-64 1057

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En línea con estas ideas, una diferencia significativa con las publicaciones de los años 1960 fue que los temas centrales no se reforzaron con entrevistas a médicos especialistas. Esta figura se fue difuminando y el respaldo científico de los contenidos provenía del reportaje a instituciones argentinas que aportaron al avance de la salud pública, por ejemplo, el Instituto de Microbiología “Dr. Carlos Malbrán” y el Instituto “Pasteur” por sus contribuciones a desarrollo de vacunas contra la rabia canina, entre otros34-36. El desarrollo de investigaciones en la disciplina fue una de las recomendaciones centrales enunciada en la VII Conferencia Internacional sobre la Salud y la Educación Sanitaria celebrada en Buenos Aires, en 1969, y en otros informes técnicos de la OMS37-39. Era necesario develar las dificultades técnicas y las supuestas barreras culturales que postergaban el éxito de los programas para la reorganización de éstos según focos poblacionales. Se estimaba que en América la mitad de los habitantes correspondía al estrato infanto-juvenil. Bajo estos lineamientos, en sucesivos números la Revista reservó un espacio para difundir los avances de una investigación realizada en escuelas primarias entre 1969 y 1970, denominada “Actitudes, opiniones y conocimientos de docentes, padres y alumnos frente a la salud y la educación sanitaria”. La pesquisa a nivel federal tenía por propósito regionalizar los objetivos y las acciones de los programas en educación para la salud: debían estructurarse según el perfil endémico, las epidemias más urgentes y los recursos disponibles de cada provincia/región. A estos efectos, se seleccionaron 9 jurisdicciones federales, cada una representativa de las regiones demarcadas por la Comisión Nacional de Desarrollo(c). Se encuestaron a 9.639 maestros, a 5.290 alumnos y a 9.194 padres y madres para relevar el nivel de conocimientos sobre alimentación, inmunizaciones, primeros auxilios, saneamiento ambiental, cáncer, enfermedad de Chagas-Mazza, higiene materno-infantil, higiene buco-dental y alcoholismo. Asimismo, docentes y padres fueron consultados sobre la pertinencia de incorporar educación sexual en la currícula y sobre la propia recurrencia al curanderismo y a la enfermería doméstica para atender sus necesidades de salud40,41. Las actitudes y prácticas que se pretendían sondear respecto a estas temáticas de salud demostraron el delineamiento de la política de sanidad pública argentina en torno a las áreas programáticas sugeridas en el Segundo Decenio de las Naciones Unidas para el Desarrollo en las Américas, es decir, en el marco de emergencia del modelo de APS. En efecto, dicha investigación fue la antesala para la firma del Convenio “Argentina 3400” entre el Gobierno de la Nación y la OPS destinado al desarrollo y a la evaluación de los programas escolares en salud. Se conformaron comisiones interministeriales y, a partir de 1972, se decretó la incorporación obligatoria de unidades curriculares en salud a los programas escolares de los establecimientos estatales y en el último año del nivel de enseñanza secundario se reemplazó, como experiencia piloto, la asignatura Higiene por la de Educación para la Salud42. Estas transformaciones institucionales establecieron rupturas con la década anterior y demostraron el influjo de los organismos internacionales, al canalizar los programas educativo-sanitarios a través del Ministerio de Educación de la Nación. Otra de las secciones de la Revista que adquirió notoriedad fue el espacio asignado a la difusión de las actividades de instituciones privadas en las tareas de promoción de la salud y prevención de enfermedades. La más destacada fue el Comité Argentino para la Educación Sanitaria de la Población (CAESPO) que nucleaba a particulares, a 39 asociaciones civiles y que desde 1970 contaba con 11 comités regionales(d). Durante la década, el CAESPO contó con subsidios 1058

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Entre éstas, Capital Federal y ocho provincias: Entre Ríos, Mendoza, Jujuy, Formosa, Río Negro, Santa Cruz, Santa Fé y San Luis. (c)

El CAESPO fue fundado en 1958 y desde entonces es miembro de la Unión Internacional para la Educación Sanitaria (UIES). (d)


estatales para financiar la apertura de cursos de formación auxiliar, la concesión de becas, el auspicio de conferencias nacionales e internacionales y para editar publicaciones periódicas. El protagonismo otorgado a la entidad en la Revista intentó reflejar la intervención eficaz de actores para-estatales en favor de la salud comunitaria y el potencial de las organizaciones locales en la solución de sus problemas sanitarios. Este nuevo enfoque era indicativo de que, si en la década anterior la educación para la salud fue considerada una estrategia para sensibilizar a la población sobre los modernos programas de salud pública; en el período 1970-1980 el rol asignado a la disciplina cambió de signo: debía promover el fortalecimiento de los vínculos comunitarios para fomentar un mayor distanciamiento de la tutela del Estado. En este sentido, el segmento “Cómo transmitir los conocimientos” fue un espacio dedicado a la difusión de métodos en educación para adultos, dinámica de grupos, liderazgo y coordinación, aprendizaje y diseño audiovisual. Estas precisiones técnicas permitirían lograr una óptima participación de los líderes y los grupos comunitarios en la identificación, priorización y resolución de problemas de salud locales.

La Educación para la Salud en la enseñanza sistemática

(e) En 1973 el Departamento en Educación para la Salud descendió a la jerarquía de Sector, dependiente de la Secretaría de Salud Pública del Ministerio de Bienestar Social. En 1975 el Sector descendió a la categoría de Sección de Educación para la Salud, bajo la égida de la Subárea de Promoción y Protección de la Salud de la Secretaria de Salud Pública, Ministerio de Bienestar Social.

Desde 1973 los matices editoriales se hicieron más evidentes producto de las sucesivas des-jerarquizaciones del Departamento hasta alcanzar el rango de Sección de Educación para la Salud(e). Esto provocó la caída presupuestaria para los programas y un frecuente recambio de su plantel y del equipo de redacción de la Revista. Este quiebre institucional provocó una mayor intervención del Ministerio de Educación en la política de educación para la salud. Las escuelas debían constituirse como espacios de organización colectiva para padres, vecinos, docentes e instituciones locales, en particular en zonas desprovistas de servicios sanitarios públicos. Desde entonces, la Revista se transformó en una especie de manual en pedagogía sanitaria. Comenzó a incorporar temáticas en salud, estrategias pedagógicas y recursos didácticos para trabajar en el aula según la edad de los escolares. Una de las características destacadas fue la densidad de recursos gráficos que provocaron la reducción de las secciones. Se incorporaron más dibujos, caricaturas, viñetas humorísticas, fotografías, gráficos porcentuales y cuadros demostrativos. Además de la transcripción de informes de la OMS y de la OPS, se incluyeron extractos de desplegables, afiches y folletos producidos en la Sección. Otro rasgo importante fue el aporte de material gráfico y de artículos especializados provistos por medios de comunicación privados y por las revistas de organismos estatales, como Revista Gente, 7 Días, Seguridad Industrial de Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), Editorial Abril, Gas del Estado y Nestlé S.A. entre otras. Estos contenidos fueron organizados en las nuevas secciones “Temas de educación para la salud en la escuela primaria” prescriptos por la OMS, la OPS y UNESCO, “Su opinión nos interesa” para relevar las demandas de los lectores sobre temáticas específicas en salud y “¿Sabe usted cómo se dice?”, destinada al empleo correcto del lenguaje técnico médico. Estos espacios no estuvieron presentes en todos los números. La columna de humor y las notas breves sobre novedades nacionales e internacionales permanecieron, mientras que la sección de arte fue reemplazada por un segmento fotográfico en la página final. De acuerdo a algunas de las áreas programáticas señaladas en el Segundo Decenio de las Naciones Unidas para el Desarrollo, la Revista abordó con mayor 2018; 22(67):1053-64 1059

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frecuencia la promoción de la seguridad vial, el uso eficaz de los servicios de salud y las ventajas de la organización y la participación comunitaria, el saneamiento ambiental; la prevención de las enfermedades venéreas, de las adicciones, de la contaminación ambiental y la enfermedad de ChagasMazza. La temática central en esta faceta editorial fue el calendario de vacunación oficial. Entre 1973 y 1979 las tapas y contratapas de la Revista fueron ilustradas con afiches diseñados por la Sección, alusivos a la importancia de las inmunizaciones. Si bien éste era uno de los lineamientos que integraba la estrategia de APS, el refuerzo de estos contenidos también se debía a la discontinuidad de la política sanitaria en el contexto argentino durante el período, signada por la remoción constante de funcionarios, la reformulación de las acciones y el recorte presupuestario. El trabajo de María Isa et. al. ilustra esta situación cuando se lanzó en 1971 la Primera Campaña de Vacunación contra el Sarampión, de acuerdo a La Ley Nacional n° 19.968. La discontinuidad en su implementación, la cobertura reducida y la inadecuada conservación en frío provocaron su persistencia endémica con algunos brotes epidémicos a lo largo de la década del 197043. La cantidad de espacios asignados a las campañas sobre inmunización en la Revista respecto de otras temáticas en salud sugirió que no sólo se pretendió derribar mitos y prejuicios sobre sus efectos secundarios, sino que además intentó invisibilizar las irregularidades en su implementación. Otra suspensión editorial fue provocada por el Golpe de Estado iniciado el 24 de marzo de 1976. La Revista retornó en 1977 y en sus ediciones posteriores pudo observarse cómo los años de la dictadura representaron un período de mayor influjo de los organismos internacionales en salud. Desde entonces los números incorporaron extensos extractos de las Revista Salud Mundial y de la Revista Salud Panamericana, destinada a educadores sanitarios profesionales, técnicos y auxiliares. En líneas generales, en esta etapa las temáticas seleccionadas se centraron en las endemias argentinas más apremiantes, como la enfermedad de Chagas-Mazza y la tuberculosis en el norte del país, y en enfermedades crónicas propias de los conglomerados urbano-industriales, como las patologías cardiovasculares, el cáncer, la diabetes, la contaminación sonora y los accidentes viales. Los criterios de selección temática señalaron el contraste sanitario a nivel federal. Aún en los años 1970, Argentina se caracterizaba por una nosología disonante: mientras en Córdoba, Santa Fé y Buenos Aires el perfil epidemiológico era semejante al de los países desarrollados, en el resto del territorio nacional las enfermedades infecciosas y las endemias de principio de siglo persistían, agravadas por las dificultades técnicas y financieras provocadas por la descentralización ejecutiva en el área de salud y de educación. La crisis fiscal alcanzó su punto más álgido cuando en 1978 se transfirieron las escuelas primarias a las provincias, de forma unilateral y sin provisión de partidas presupuestarias44. En este marco se observó que la Revista adquirió otro matiz editorial. Desde 1978 se incorporaron las secciones “Conozcamos nuestro cuerpo” y “Primeros Auxilios” con el objeto de proveer de métodos y de técnicas para que el docente, el agente sanitario o cualquier persona con el dominio mínimo de estas nociones pudieran intervenir ante urgencias de salud, en particular en zonas desprovistas de servicios públicos de asistencia. Estas modificaciones fueron indicios de que la estrategia de APS en Argentina cobró mayor peso y fue el marco de referencia para la política de educación para la salud. Una política pública que tuvo por destinatarios a las poblaciones más desprotegidas por la tutela estatal.

A modo de cierre A pesar de que vislumbraban nuevos horizontes en la salud pública internacional, el fomento de la participación comunitaria y de las escuelas promotoras de salud fueron estrategias recurrentes para atender las necesidades sanitarias de la población. El rasgo distintivo fue una menor asignación de fondos internacionales en proporción a una mayor descentralización ejecutiva a nivel estatal en los sectores de salud y de educación. Si bien la política de educación para la salud argentina en esta etapa fue austera comparada con la década anterior, la Revista funcionó como un dispositivo editorial para consolidar la hegemonía del enfoque de APS. El rol asignado a la disciplina en esta etapa cambió de signo: debía promover el 1060

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fortalecimiento de los vínculos comunitarios para fomentar un mayor distanciamiento de la tutela del Estado. Para finalizar, este análisis abre más interrogantes y cuestiona los alcances del modelo por esos años. Son necesarios otros estudios que permitan avanzar sobre la capacidad de agencia de los grupos comunitarios ante el Estado para colocar en la agenda gubernamental sus demandas en torno a su salud; sobre las resistencias, las concesiones y las negociaciones respecto al modo en que estos programas sanitarios intervinieron en su cotidianeidad y el papel que cumplió el personal de salud oficial y tradicional para persuadir sobre los modernos consejos sanitarios o bien, para revalidar las prácticas tradicionales.

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Reyna C. Educação para a saúde: horizontes e estratégias recorrentes na Argentina (19701980). Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1053-64. Este artigo analisa as transformações da política de educação para a saúde na Argentina, enquadrada na estratégia de Atenção Primária à Saúde. O objetivo foi identificar a recepção de recomendações internacionais e sua circulação e reprodução local. A primeira seção analisa, no final da década de 1960, o contexto da crise hegemônica do modelo de saúde na América Latina; as respostas de legitimação da estratégia de Atenção Primária à Saúde em reuniões internacionais e a proposta de um novo horizonte disciplinar na educação preventiva. A segunda seção centra-se na recepção dessas ideias na Argentina na década de 1970, de acordo com as características editoriais da revista “Educação para a Saúde”, publicada pelo Departamento de Educação para a Saúde, durante o período 1970-1980.

Palavras-chave: Educação para a saúde. Atenção primária à saúde. Saúde Pública. Saúde Pública na Argentina.

Sometido en 11/09/17. Aprobado en 14/02/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0452

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Habitar invisível: produção de vida e cuidado na experiência urbana

Diogo Vaz da Silva Junior(a) Márcio Mariath Belloc(b)

Silva Junior DV, Belloc MM. Invisible dwelling: life production and care in the urban experience. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1065-75.

This article discusses the relations of life production in the urban setting, and its potential for teaching how to think, plan and produce health. It is a space made up of relationships of living and dwelling in it, through a system of social-economicpolitical values. It transcends the linearity and questions the dual opposition of home-street, inside-outside; but, it is also an exposure of social and economic vulnerabilities that put a burden on living with stigma, prejudice, and invisibility. It sheds light on the care for homeless people, which goes beyond the physical structure and the conventional standards and protocols of healthcare units. Meeting the other and living work in the act become an essential technology. It is a way of providing Collective Health and understanding the relationships of living the urban experience through the production of relational spaces of care.

Este trabalho discute as relações de produção de vida no espaço urbano, e sua potência para ensinar a pensar, planejar e produzir saúde. É um espaço que se constitui pelas relações do viver e habitar nele, por um sistema de valores político-econômico-sociais; transcende a linearidade, questiona a contraposição dual lar-rua, dentro-fora. Mas também é exposição a vulnerabilidades sociais e econômicas, que sobrecarregam a existência com estigma, preconceito e invisibilidade. Produz-se uma reflexão sobre a atenção às pessoas em situação de rua para além da estrutura física e das normas e protocolos convencionais das unidades de saúde. O encontro com o outro, trabalho vivo em ato, passa a ser a tecnologia fundamental. Um fazer em Saúde Coletiva vinculado a compreender as relações de viver na experiência urbana, pela produção de espaços relacionais de cuidado.

Keywords: Collective Health. Homeless population. Life production. Care. Urban experience.

Palavras-chave: Saúde Coletiva. População em situação de rua. Produção de vida. Cuidado. Experiência urbana.

CC

BY

(a) Fotógrafo e médico veterinário sanitarista. Porto Alegre, RS, Brasil. diogovazjr@gmail.com (b) Asociación Socio Cultural Radio Nikosia. Barcelona, Catalunha, Espanha. mmbelloc@gmail.com

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Introdução O presente texto é resultado da produção reflexiva de um processo de ensino em serviço, a partir do contato com os campos da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, produção que aqui se redobra nas ideias e autores que acompanharam esse processo. Essa experiência nos serviços de saúde – especialmente o consultório na rua – desde o início provocou a reflexão sobre as relações de produção de vida e de habitação no espaço urbano; e sua potência para ensinar a pensar, planejar e produzir saúde. Tal questão surgiu como um horizonte na preparação de um olhar atento durante as atividades de campo realizadas na rua, na cidade. Essas atividades, por sua vez, exigiram a constituição de uma presença, engendrada por um fazer militante em saúde coletiva, que possibilitasse o encontro com todas as pessoas envolvidas no ato do cuidado, ao mesmo tempo ferramenta desse cuidado e postura investigativa. Discutiremos, assim, a construção dos caminhos narrativos de um fazer militante que estabelece, ao mesmo tempo e inseparavelmente, metodologia de pesquisa e intervenção. São caminhos que nos levarão à reflexão sobre a abordagem das paisagens urbanas em produção da vida que na rua acontece, atravessada pelas possibilidades e impossibilidades de uma multiversa cidade. A rua do dentro e do fora, dialética, que descobrimos a partir das pessoas que nela circulam, moram e trabalham. A rua dos transeuntes, das pessoas em situação de rua, dos trabalhadores do consultório na rua; onde todos atuam em um jogo de presença-ausência na experiência urbana. A rua que incide e que clama por uma forma de cuidar na rua, que impõe deslocamentos mais que geográficos. Que pode ser cúmplice de estigma, preconceito e exclusão, mas também pode ser uma espécie de coprotagonista da produção de vida. Tal dialética nos exige uma postura ativa e aberta, que possibilite estar sempre e continuamente aprendendo a pensar, planejar e produzir saúde.

Caminhos narrativos de um fazer militante Ressalta-se de antemão, no que diz respeito à constituição dos caminhos inseparáveis de intervenção e investigação, que tomar essa potência dialética como horizonte da produção de experiência em saúde coletiva, por sua vez, vai exigir uma forma também dialética de se colocar no campo. Nesse sentido, o conceito do conhecer militante do sujeito implicado, aprendido com Merhy1, representa muito bem a relação estabelecida com a questão suscitada. “[...] o sujeito que interroga é ao mesmo tempo o que produz o fenômeno sob análise e, mais ainda, é o que interroga o sentido do fenômeno partindo do lugar de quem dá sentido ao mesmo, e neste processo cria a própria significação de si e do fenômeno.”1 (p. 26). Essa maneira de o sujeito se colocar frente ao fenômeno estudado, dando sentido a si e ao acontecimento, atua como uma maneira de fazer a pesquisa e, no caso, cuidado. Neste tipo de estudo o mais importante do ponto de vista metodológico é a produção de dispositivos que possam interrogar o sujeito instituído no seu silêncio, abrindo-o para novos territórios de significação, e com isso, mais do que formatar um terreno de construção do sujeito epistêmico, aposta-se em processos que gerem ruídos no seu agir cotidiano, colocando-o sob análise.1 (p. 33)

O território onde nos colocamos sob análise é o espaço urbano, a cidade. Fosse no deslocamento até o trabalho por meio de transporte público (ônibus e trem) ou a pé, e mesmo nas caminhadas acompanhadas pelas equipes de saúde e por usuários, estava-se sempre em atenta relação com o território. Partimos do conceito de território proposto por Santos2. Para esse autor, o território é dialético, uma vez que, usado, o território é humano, “podendo, desse modo, comportar uma dialética”2 (p. 17). Cada sujeito, em sua singularidade, habita e é habitado pelo urbano, sendo o habitar uma das vias de relação com o território. 1066

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E para construir aqui a presente reflexão, que se dobra e indaga o próprio caminhar militante, a escolha é pela narrativa como metodologia, essa que desde Benjamin3 aprendemos a reconhecer como um dispositivo de colocar em ato a produção de experiência, e, por sua vez, também tramada como uma narração, ou seja, artesanal e cuidadosamente produzida nos encontros, na transmissão de conhecimento construído em ato entre todos os sujeitos implicados. Um caminhar narrativo pari passu com a produção de vida na experiência urbana, que aqui presentifica os encontros possibilitados e provocados por tal produção.

Paisagens urbanas em produção: o urbano que nos habita As características que compõem as paisagens e as cenas urbanas são elementos que também determinam o modo como nos relacionamos em comunidade. Entre as diversas denominações utilizadas para o nosso tempo, uma das mais significativas é a do período tecnológico, em que a técnica, como intermediária entre o homem e a natureza, “[...] converteu-se no objeto de uma elaboração científica sofisticada que acabou por subverter as relações do homem com o meio, do homem com o homem, do homem com as coisas, bem como as relações das classes sociais entre si e as relações entre as nações”4 (p. 16). Pode-se dizer, também, da influência que o “sistema” acompanhado desse avanço tecnológico tem sob as relações humanas, quando composto por valores políticos, econômicos e sociais que irão financiar a construção do “progresso” urbano. Santos4 nos ajuda a compreender que há uma universalização da produtividade econômica que acaba por alterar as dimensões geográficas das atividades humanas. A cidade, muitas vezes, “não produz mais para servir às necessidades reais daqueles que a habitam.”4 (p. 29). O sistema passa a obedecer uma lógica de empresas multinacionais, além de incentivar uma estrutura de acumulação que “tem um certo efeito sobre a organização do espaço, visto que ela agrava as disparidades tecnológicas e organizacionais entre lugares e acelera o processo de concentração econômica e geográfica.”4 (p. 23). Nesse sentido, os valores que financiam o progresso e a maneira como se constroem as cidades estabelecem os ritmos, as dinâmicas e os (não) valores das vidas que habitam o urbano e são por ele habitadas. Viver na cidade envolve a capacidade de transitá-la, percorrer as vias que conectam um lado a outro. Lefebvre expõe e apresenta a “problemática urbana”5 (p. 11), que está ligada ao processo de industrialização, que transforma a sociedade e induz a “problemas relativos ao crescimento e à planificação, às questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana [...]”5 (p. 11). A utilização do termo “planificação” por Lefebvre5, reatualizada pelo olhar construído em nossas caminhadas militantes da Saúde Coletiva, faz referência a uma ideologia dominante que escolhe para onde irão os investimentos na estrutura urbana. Por esses caminhos fica evidente que não se pensa em alternativas de mobilidade que incentivam o uso seguro de bicicletas, por exemplo. No entanto, vendem-se territórios públicos para a construção de estruturas comerciais megalomaníacas, de maneira que o progresso urbano vai sucumbindo à interação nesses espaços por meio de avenidas asfaltadas, viadutos e passarelas concretados. A rua, reificada como objeto de consumo, é então construída como espaço de passagem rápida e eficiente, por exemplo, da casa para o trabalho, do trabalho para o lazer, preferencialmente de garagem a garagem. Como ligação entre espaços privados, a rua é investida afetiva e economicamente, na micro e na macropolítica, também como objeto do âmbito privado. Nesse sentido, em consonância com Arendt6, a rua exerce a função de privação do contato com o outro; nesse caso, paradoxalmente, seria a rua como avesso do espaço público. Arendt6 nos ensina que o espaço público se dá no encontro plural, na própria produção de cidadania, da política. A autora toma o modelo da democracia ateniense no século de Péricles e demonstra que somente nesse espaço público, na ágora, é que o cidadão poderia exercer a liberdade. Naquela época, o homem ateniense adulto (mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram cidadãos), que na ágora tinha exercício libertário da política, decidindo plural e coletivamente os assuntos da cidade por meio das palavras e ações, em sua casa não era livre: era déspota. Decidia despoticamente sobre a vida da casa e de quem ali habitava. Mulheres, crianças, estrangeiros e 2018; 22(67):1065-75 1067

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Silva Junior DV, Belloc MM


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escravos eram privados de liberdade sob mão firme do homem da casa. Por sua vez, na casa, esse homem era privado de liberdade, ele não podia, não era livre para deixar de ocupar a posição de déspota. É por isso que Arendt6 afirma que a liberdade só se dá no espaço público, enquanto a casa privada é o espaço da privação. Isso alimenta a contradição de quando se investe na rua como ligação entre espaços privados, transferindo seu caráter público de encontro plural para o exercício de investimentos com interesse privado.

A rua do dentro e do fora Se levarmos Arendt6 para caminhar conosco nessa postura militante, podemos observar a ampla produção de espaços urbanos privados. Nossas cidades cada vez mais são pensadas para os carros e sua mobilidade e facilmente ficamos envolvidos no trânsito dos centros urbanos por horas. Nesse tráfego, frenético e aflito, por vezes, imóvel, nós nos desconsideramos, desidentificamos, invisibilizamos e privamo-nos do contato com o outro. Na mesma via de planificação do urbano, o progresso sucumbe à interação-empatia, distancia, marca a diferença e vigia. A conexão criada é via tramas de cabos, fios, trilhos, câmeras de vigilância. Os seres urbanos, tão próximos, transitam distantes, vivem alheios. Essa cena vivida no tráfego indica o intenso processo de crescimento das cidades, que, associado à desigualdade social, possibilita ou dificulta a ocupação do espaço e determina quem pode ou não habitar, permanecer ou estar em cada espaço urbano. Quanto mais o processo produtivo é complexo, mais as forças materiais e intelectuais necessárias ao trabalho são desenvolvidas, e maiores são as cidades. Mas a proximidade física não elimina o distanciamento social [...]. Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros. O espaço que, para o processo produtivo, une os homens, é o espaço que, por esse mesmo processo produtivo, os separa4. (p. 33)

Ao longo das caminhadas diárias percorridas durante o turno de trabalho, iam se revelando desdobramentos e percepções do espaço urbano que se modificavam quase que diariamente. O território complexo da rua, dialético pela relação, deixa de ser somente o espaço externo, o fora. Na intensificação da convivência com o ambiente urbano e da convivência com pessoas que habitam nesse universo, a rua se redobra como uma continuidade do espaço interno, do dentro. Fora e dentro da própria possibilidade de ser-no-mundo. Fora e dentro da experiência de cuidado. Deleuze7 propõe que não existe uma separação definitiva entre dentro e fora; ambos são estados de um mesmo espaço que se dobra e redobra sobre si mesmo, tendendo a transbordar o espaço. Concomitantemente com o sentimento da rua como extensão ou dobra do interior, ao conviver com a rotina de quem habita a rua – muito diferente desse caminhar, que transita, que simplesmente percorre – passa-se à reflexão sobre o quanto a rua atua, culturalmente falando, como representação do fora, do externo, e a casa, da mesma maneira, como símbolo de habitar, do espaço protegido, do interno. Nesse sentido, Vieceli8 discute o sentido cultural do lar e da casa. O termo “lar”, ainda que possa ser considerado um sinônimo de “casa”, tem uma conotação muito mais profunda quando apresenta um significado mais afetivo e pessoal: é a casa vista como o lugar próprio de um indivíduo, onde se encontra a sua privacidade e onde a parte mais significativa da sua vida pessoal se desenrola8. (p. 145)

Trata-se de um morar que remonta uma construção que perpassa lembranças vividas desde a infância. Para Bachelard9, a casa está vinculada, a partir de sua função de cobrir e proteger, com a representação da constância. Bollnow10, por sua vez, coloca a casa como ponto de referência do homem para mundo, o ponto central para qualquer distância. Ainda para Bollnow10 habitar é a maneira como o homem vive sua casa, assim como habita a cidade. Nesse sentido, a relação com o habitar estaria intrinsecamente ligada a um sentimento familiar e cultural no qual se busca a proteção e o 1068

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aconchego de uma casa – um espaço privado, separado do fora, da rua, do outro. Privado, lembra-nos Arendt6, vem de privar, de privação. Por sua vez, Baptista11 problematiza essa própria contraposição entre lar e rua. A naturalização da concepção de lar como a casa burguesa e seu sonho de idílica felicidade e segurança – e aqui não podemos deixar de pensar nos modelos midiáticos como a popularizada família do comercial de margarina –, o lugar protegido onde tudo vai bem, enquanto a rua teria a significação do perigo e do mal. Baptista11 ainda nos ensina que essa concepção do morar se constitui a partir do século XIX, estando em jogo um modelo de sociedade baseado na propriedade e no consumo, que constrói o estigma da rua – do fora – como sinal de perigo e de barbárie, avalizado inclusive por uma concepção clínica higienista e sua razão científica. Tal modelo de sociedade, então, naturaliza uma concepção em que habitar confere a necessidade de um espaço geográfico construído para tal função. Para refletir e pincelar um outro contraponto, Sarlo12 faz uma etnografia urbana ao percorrer diferentes espaços de Buenos Aires, apresentando a cidade real e as cidades imaginárias. Todas as noites preparam seu dormitório na esquina de um edifício público, que já não funciona como entrada para parte alguma. É um espaço suficientemente amplo para que duas pessoas possam deitar-se para dormir. A não ser que a chuva venha do sul e seja com vento, a água respinga apenas nos cinquenta centímetros da frente do refúgio. Como a esquina foi uma entrada importante, tem-se acesso a ela por meio de três degraus que contribuem para a sensação de isolamento e permitem traçar uma espécie de umbral imaginário entre os que ocupam e a rua12. (p. 54)

A autora narra a cena cotidiana de duas pessoas que vivem na rua, nos momentos antecedentes a se recolherem para dormir. Há um cuidado na escolha do espaço aproveitado do edifício público, um estudo da estrutura física em relação à proteção das intempéries do tempo. A noção de habitar, diante disso, transcende o espaço geométrico. Nessa perspectiva: [...] habitar não é estar passivamente em um lugar, habitar pressupõe criar sentidos, criar relações, desdobramentos e aprofundamentos na espacialidade onde se inscreve um homem. Habitar é uma experiência de amorosidade, de afetividade, é um processo de imaginação. O ato de habitar não se resume somente à casa como objeto de construção8. (p. 147)

Nesses espaços habitados por pessoas que vivem na rua, além de assumirem essa característica no momento em que se habita, o ambiente é transformado pela presença de objetos-pertences que alteram a paisagem. Colchões, travesseiros, cobertores, roupas, sapatos, chinelos, redes de descanso, lonas, barracas, papelões, jornais, carrinhos, materiais recicláveis, sacos de lixo são objetos-pertences que compõem as cenas urbanas dos que habitam nas ruas. Praças e entornos de viadutos e passarelas são curiosamente transformados na presença dessa população. A transformação ultrapassa o sentido físico-visual, transcendendo o valor funcional dessas estruturas. As estruturas das passarelas e viadutos, necessárias ao já referido progresso urbano, são utilizadas como pontes que ligam dois pontos sem comunicação e representam locais de atravessar, transitar, percorrer, cruzar, conectar. A estrutura de concreto necessária para a construção desses dispositivos urbanos acaba por produzir espaços públicos ociosos, suficientemente seguros e acolhedores para se constituírem como abrigos, suportar a construção de fogões a lenha, salas de estar e varais de roupas. Se nos deslocarmos da proteção privilegiada que ocupamos dentro de um sistema urbano, talvez consigamos ser afetados pelo mosaico de atravessamentos que envolve o cotidiano de quem vive na rua. Falo de “um” cotidiano que não é um, em número; o espaço urbano transforma-se conforme o sujeito se relaciona com ele. Constrói-se, por consequência, um território onde cada sujeito que vive na rua produz de forma singular sua rede de convivências. É nesse sentido que o espaço habitado transcende a ideia de ocupar um espaço geográfico, habitar pressupõe criar sentidos, estabelecer 2018; 22(67):1065-75 1069

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relações. Seria reducionismo classificar a condição de estar e viver na rua de uma maneira, como se os sujeitos fossem todos catadores, vadios, drogados, sujos e malcheirosos. A quadra é singularmente ativa no início da noite; oferece bastante material aos catadores de papel [...]. Os da esquina não se misturam à meia dúzia de adultos e crianças catadores de papel que se movem velozes e concentrados, em silêncio. Eles não são trabalhadores da rua, mas ocupantes fixos; durante o dia seus colchões, cobertores e sacos com farrapos permanecem ali enrolados; quando a luz não é mais a sombra acinzentada do entardecer, preparam-se para passar a noite, acordados, mas já deitados, cobertos por camadas de cobertores e plásticos. [...] Outros vivem, num regime parecido, numa praça próxima, e cujas árvores deixam os colchões embrulhados em plástico, enquanto andam pela cidade em busca de oportunidades ou descuidos alheios: esmolas, sobras, comida velha, restos. Esses dormitórios ao relento variam de lugar; quando seus ocupantes são desalojados, percorrem alguns quarteirões, simulam uma retirada, mas voltam a se instalar. São resistentes por necessidade12. (p. 54-5)

Sarlo12 auxilia novamente relatando o cotidiano, entremeado por nuances que podem ultrapassar o olhar observador de quem não vive a condição de habitar a rua. Demonstra, também, alguns elementos que irão influenciar os modos e as escolhas ao viver a rua: a maneira como busca renda, a segurança/proteção dos locais que opta permanecer/dormir, a preferência por estar em grupo ou viver desacompanhado, as rotinas mais itinerantes ou em locais mais fixos, o acesso a serviços de abordagem e acolhimento, a rede comunitária que auxilia na proteção e no sustento, a escolha por bairros mais centrais ou marginais e a dinâmica dos locais onde há violência urbana provocada pela segurança tanto pública quanto privada (como por civis). Há que ser dinâmico ao viver o cotidiano na rua. O cotidiano de quem vive na rua, assim como o habitar, é produzido na relação com o urbano. Ao conviver com essa realidade, é possível compreender as tramas que envolvem a busca por um sustento a partir do que a rua oferece, traduzindo-se em relações construídas em um território de relações. Pensando assim, viver na rua é estar presente nas cenas urbanas e na ocupação-modificação do espaço público, produzindo redes que se constroem, para alguns, na catação da sobrevivência. A produção exagerada de produtos de consumo, financiada pelo sistema econômico capitalista, gera um excedente que garante o sustento (mínimo e precário) de quem não tem lugar no próprio sistema. A vida na rua faz parte de um mundo que se constrói juntamente do mundo de todos que habitam o espaço urbano.

Presença-ausência: o não ser na experiência urbana Ser, estar, habitar e permanecer na rua, nesse conjunto de possibilidades que se formam no urbano, pensado como ambiente, construído social e politicamente, é complexo. Envolve estar na margem da presença-ausência social, no ser ou não ser visto, não considerado. A invisibilidade se materializa no medo de quem desvia, atravessando a rua, na recusa por um aperto de mão, ao evitar o olhar no olho, no não reconhecimento de um pedido por moedas ou de um prato de comida. O não ser visto se torna mais gritante quando transversaliza estruturalmente o desenvolvimento de políticas públicas, quando forma parte de quem trabalha nos serviços públicos e na produção de situações violentas. O não ser visto, ainda, se materializa quando não se reconhece as especificidades de uma população que por vezes não possui documento de identificação, quando enfrenta dificuldades de acesso à qualificação profissional, educação, saúde e habitação. Essa brutal desvantagem é ao mesmo tempo acompanhada e constituída por uma invalidação da sua experiência. Belloc13, investigando especialmente os processos de estigmatização das pessoas diagnosticadas com problemas de saúde mental, constrói o conceito de homem-sem-história para discutir tal validação. Fala das pessoas presas a um diagnóstico em saúde mental, que deixam de ser Fulano de Tal para serem o diagnóstico. “Toda a produção dessa pessoa passa a ser entendida como sintoma, ou como característica da doença.”13 (p. 33). Nesse sentido, Belloc, refletindo sobre as experiências contemporâneas de exclusão, a partir do trabalho de De Martino14, conclui que a pessoa, na condição de homem-sem-história, tem sua presença mediada por uma definição, um pré-conceito 1070

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científico e/ou do senso comum. Sua história é invisibilizada, sua singular forma de ser-no-mundo é invalidada, pois somente é enxergado, escutado e interpretado a partir do filtro dessa definição. O homem-sem-história é a condição de alienação exclusão, quando a pessoa é tratada a partir de uma definição externa à sua própria história, sendo esta relegada ao esquecimento ou à causa científica de sua condição atual. O homem-sem-história surge quando uma pessoa, por suas vivências – e é possível afirmar também que por sua história – tem seu ser-no-mundo em risco. Assim sendo, o homem-sem-história é forçosa e violenta tentativa de compensação da sociedade ocidental atual frente a uma presença em risco, quando tal pessoa rompe com o pautado culturalmente, pois com sua potencialidade rompedora, para os olhos preconceituosos, pode colocar em risco a presença de todos13. (p. 43)

Nesse sentido, o lugar que é colocado o morador de rua ao ser classificado como tal, considerando o estigma e preconceito que o acompanha, não só pela sua condição, mas também pela conjuntura social e econômica instaurada que o faz estar em tal situação, também é a produção de um homemsem-história definido de uma forma total e externamente à sua trajetória de vida. Um morador de rua, de certa forma, rompe com o culturalmente pautado ao habitar o urbano, ao habitar no lado de fora; não é só transeunte, não é só passageiro, ele dorme na rua. Rompe de certa maneira, também, com o pautado pela cultura da moradia, da casa como espaço reservado para habitar. Ainda, rompe por sobreviver, dormir e se alimentar por meio da catação de sobras do nosso consumo. E rompe “de certa forma” e “de certa maneira” porque, sendo o espaço dialético2, também faz a função de garantia do morar burguês. Encarnado o fora como perigo, como mal, como barbárie, ele garante a tranquilidade do dentro, garante a ideia de felicidade da popularizada família de propaganda de margarina do modelo da casa burguesa. Mas a presença em risco da pessoa em situação de rua não está só nessa encarnação do mal, mas também é efeito da situação de vulnerabilidade em que se encontra. Sua múltipla produção da possibilidade de não ser passa a colocar em risco a presença de todos. A presença-ausência no cotidiano da pessoa que vive na rua está na margem da sociedade, um limite tênue do não ser que a maioria que transita não olha, passa por cima e deixa jogado. Não importa quem seja, o que pensa, o que viveu e o que deseja, ele passa a ser catador, vadio, drogado e malcheiroso. Também não importa que tenha na infância, como muitos, utilizado a rua como espaço e morada das brincadeiras ou mesmo como protagonista destas. Viver na rua que não é de brincadeira, nessa incorporação como espaço do mal, torna-se um ciclo vicioso de estar, permanecer e não ser.

Cuidar na rua Os diversos elementos até então levantados, relacionados à complexa vivência e inserção social da população que vive em situação de rua, que ao batalhar pela sobrevivência constrói diversos cotidianos na relação de habitar o urbano, auxiliam a compreender a invisibilidade e o risco de não ser desses sujeitos. Integra-se à reflexão, então, alguns pontos em relação a questões relacionadas à produção de cuidado em saúde a essa população, também vinculados à vivência no consultório na rua. As questões ligadas à saúde da população em situação de rua são muito mais complexas do que é possível ver nas praças e calçadas dos centros urbanos. Para começar, estas pessoas vivem em condição de vulnerabilidade, reforçada pela desigualdade de acesso aos direitos fundamentais e pelo estigma que acompanha sua condição – o que as afasta das condutas saudáveis e também dificulta seu acesso aos bens, programas e serviços de saúde15. (p. 25)

Convencionalmente, a instituição saúde – representada por unidades de saúde da família, unidades básicas, unidades de pronto atendimento e hospitais, por exemplo – está associada a uma estrutura física, uma edificação/imóvel que comporta equipes de trabalhadores detentoras do conhecimento e da técnica funcional de equipamentos e medicamentos. Merhy16 auxilia no entendimento de que os 2018; 22(67):1065-75 1071

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processos contemporâneos de produção de saúde passam por tensões que estão relacionadas aos atos de produzir saúde. O autor destaca “a lógica da produção de atos de saúde como procedimentos e a produção dos procedimentos como cuidado [...]”16 (p. 119). Essas “[...] relações que se estabelecem na cena do cuidado também são atravessadas por normas e protocolos, que normalmente estabelecem molduras fixas e incidem sobre a cultura de saúde das pessoas.”17 (p. 55). Para além da dicotomia saúde-doença, a busca por produzir relações de cuidado envolve a criação de laços afetivos, de vínculos. Os diferentes modelos de saúde variam exatamente na oferta do “espaço relacional trabalhador-usuário”16 (p. 97). A produção de cuidado, que ocorre nesse espaço, só se realiza em ato. E “é esse encontro que dá, em última instância, um dos momentos mais singulares”16 (p. 97) do cuidado em saúde. Esse fazer em ato, que acontece no encontro entre o trabalhador de saúde e a pessoa, é entendido por Franco et al.18 como trabalho vivo em ato: a “fonte criativa e criadora de um novo momento na configuração do modelo de assistência à saúde”18 (p. 4), centralizado no ato de cuidar do outro. Mais do que um problema operacional, a capacidade de deixar a prática tornar-se híbrida de valores e saberes diversificados potencializa a integralidade pela abertura à alteridade. Para tanto, é necessário pôr o trabalho, a relação com o trabalho e a relação com o outro em análise, buscando quebrar as naturalizações que o conhecimento, a técnica e as normas dos serviços tendem a produzir. O cuidado não será integral se apenas estiver moldado pelo conhecimento biomédico disponível17. (p. 55)

Portanto, pensar na produção de cuidado às pessoas que vivem na rua por meio da criação de espaços relacionais entre o trabalhador de saúde e os sujeitos, realizados em ato, significa, para o profissional de saúde, sair das estruturas/armaduras institucionais e entrar em contato com o fora, no corpo a corpo com a rua, com toda a sua carga simbólica e imaginária, seja a produção da liberdade ou encarnação do mal. Potencializar a integralidade pela abertura à alteridade é se colocar ao lado, é permanecer suscetível, é afetar-se pela rua, é romper com o estigma, com os preconceitos. Compreende, às vezes, suportar o cheiro, suportar o estigma e se contaminar com a pessoa sujeita ao não ser, ao contrário de relacionar-se com os pré-conceitos que causam esse desaparecimento. Estar implicado na vivência com a equipe do consultório na rua, assim como na ressignificação da relação com o estar e ser urbano, produziu uma expansão do olhar e da percepção ao estar disposto em ato, juntamente com os profissionais de saúde, na produção do espaço relacional de cuidado na rua. Esse aprendizado trouxe para perto o pensar sobre valores (medos e estigmas) em relação às situações cotidianas acompanhadas no serviço, dando passagem para a “capacidade de análise de si e das relações com o entorno como dispositivo de aprendizagem permanente.”17 (p. 59). Esse processo foi possível porque a própria equipe produzia as estratégias de trabalho por meio do uso da educação permanente, fazendo reflexões no coletivo de trabalhadores a partir do que era vivenciado no individual e no coletivo. Durante o trabalho no território, nas conversas com as pessoas atendidas, era comum escutarmos a dificuldade de acesso dessa população a serviços públicos, tanto por não haver informações suficientes em relação aos seus direitos sociais quanto por estigmas e preconceitos revelados pelos trabalhadores dos serviços. Havia também muitas reclamações em relação às abordagens violentas feitas pelos serviços de segurança pública e privada. Isso faz pensar que nesse complexo campo de atuação de políticas públicas, formuladas por um mesmo Estado, há um abismo entre ações fragmentadas, distantes e solitárias. Nesse território há, por exemplo, de um lado, os serviços de saúde que procuram produzir e oferecer algum tipo de cuidado, e, de outro lado, um serviço de segurança pública que criminaliza, aprisiona e produz violência aos sujeitos. Mas parece que o que se impõe como uma constante é a fragmentação, pois nem a busca por produzir cuidado no âmbito da saúde é uma constante. Também podemos encontrar a produção de risco da presença e estigmatização desde os próprios serviços de saúde, muitas vezes culpabilizando o usuário pelo seu padecimento, aprisionando o sujeito em um diagnóstico/preconceito e produzindo também violência. Mais que fragmentação, produção de privação e, sendo assim, no sentido arendtiano, transformando o espaço público do serviço em espaço privado. 1072

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Não obstante, o consultório na rua, com o qual se estabeleceu essa caminhada militante em saúde coletiva, conseguia produzir espaços públicos. Nesse campo de aprendizado dado em ato, com o auxílio da vivência que os próprios membros da equipe de saúde tinham em relação ao viver na rua, era rotina encontrar locais na cidade que se adaptavam à necessidade habitar/morar em seu sentido de proteção. Esses espaços podem se configurar tanto a céu aberto, por vezes associados ao descarte e acúmulo de sobras e entulhos produzidos pela cidade, como também em estruturas de casas e edifícios abandonados. Terrenos baldios e edificações não ocupadas normalmente se apresentam como locais ociosos, com pouco acesso da comunidade em geral. Tais espaços permanecem descartados, deixados de lado, circundados pela atmosfera da recusa. Acabam por se caracterizar como ambientes que aceitam abrigar o interior do considerado não ser e, muitas vezes, estão disponíveis para se fazer os usos da vida resguardados de transeuntes, guardas e câmeras de segurança. Pensando no trabalhador de saúde implicado na produção de espaços relacionais de cuidado, faz parte estar próximo e se contagiar pelas cenas construídas nesses ambientes envoltos pela recusa. A arqueologia desses locais utilizados pelas pessoas que vivem na rua significa uma maneira de interagir e reconhecer as práticas e usos. Representa uma intervenção que ultrapassa o observar a distância e expressa conviver no meio onde a pessoa em situação de rua estabelece relações. Significa sentir o duro concreto onde se dorme, cheirar o desconforto e o odor do que sobra, do que é abandonado em escombros pelo consumo social-urbano. A maneira como esses ambientes são (des)organizados por quem os ocupa permite sentir os modos de viver a partir de vestígios materiais, estar em contato com esses vestígios proporciona a aproximação da construção e do processo que é compreender a existência do viver na rua.

Aprendendo a pensar, planejar e produzir saúde Como vimos, as características que compõem as paisagens e cenas urbanas são elementos que também determinam o modo como nos relacionamos em comunidade, seja a produção econômica, por exemplo, que influencia nas dimensões das atividades humanas, seja no crescimento da cidade e no desenvolvimento da realidade urbana. A cidade e a rua, como espaço da passagem, estão sob investimentos afetivos e econômicos voltados ao âmbito privado. Isso alimenta a contradição por transferir o caráter público da rua, onde se dá o encontro plural, para o exercício de investimentos com interesse privado. Na prática, à medida que a convivência com o ambiente urbano foi se intensificando, foi possível perceber o distanciamento entre as pessoas que transitam no urbano e as pessoas que vivem na rua. O dolorido foi reconhecer essa distância em nós. Essa autoanálise permitiu problematizar a naturalização da concepção de lar e abrigo protegido da casa burguesa (representação do dentro) e da rua enquanto lugar do perigo e do mal (representação do fora). Assim, na convivência com os profissionais de saúde e com as pessoas que vivem na rua e nos locais onde habitam, batalham pelo sustento e produzem seus cotidianos, percebe-se que a noção de habitar transcende a ocupação do espaço geográfico. Habitar a rua é transformar o rígido concreto de uma passarela ou viaduto – as estruturas do progresso urbano – em locais de acolhimento onde os sujeitos se relacionam e produzem suas vidas. Relacionado, também, ao distanciamento entre as pessoas que transitam e as que vivem na rua, está a invisibilidade do morador de rua, que é definido externamente à sua trajetória de vida, como um homem-sem-história, condição que se redobra no efeito da situação de vulnerabilidade social que atinge esta pessoa (dificuldade de acesso a serviços como saúde, educação, trabalho e renda; estigma e preconceito social; e violência urbana). Reconhecendo a complexa história que envolve a vida em situação de rua, é possível despertar o olhar e a escuta para o momento de encontro com as pessoas a serem atendidas, muito antes de dizer ou prescrever o que e como os sujeitos deviam se cuidar, morar e viver. A desconstrução dos estigmas e preconceitos para com as pessoas que vivem e habitam a rua deu-se ao mesmo tempo em que se retira essas pessoas da invisibilidade do nosso olhar, tornandoos não só visíveis, mas carregados de produção de vida e como possibilidade de troca; tudo isso nos espaços relacionais de cuidado – a própria rua. 2018; 22(67):1065-75 1073

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O urbano passou a nos habitar com tal intensidade que reverberou na maneira como participamos e atuamos junto com a equipe de saúde. A maioria dos profissionais carregavam uma trajetória intensa de experiências urbanas, colocando-as no planejamento cotidiano das ações do trabalho, entendendo a saúde para muito além da ausência de doenças. Não só em nós estava o conhecer militante; os profissionais estavam implicados na construção do cuidado coletivo feito por um serviço público de saúde que acontece e se realiza no espaço público da rua. A experiência no consultório na rua foi uma troca disposta, na experiência urbana, a produzir relações na rua entre os trabalhadores da equipe e as pessoas que vivem e habitam esse espaço dialético e relacional.

Contribuições dos autores Diogo Vaz da Silva Junior contribuiu no manuscrito por meio de sua narrativa a respeito das vivências como residente em Saúde Coletiva. A partir do seu olhar no campo de trabalho, dialogado com as leituras que companharam todo o processo, convergiu suas reflexões na escrita proposta pelo manuscrito, colaborando ativamente na discussão dos resultados, na revisão e aprovação da versão final do trabalho. Márcio Martiath Belloc contribuiu com o delineamento do objetivo principal, auxiliando no processo de escrita e na consolidação das referências bibliográficas utilizadas. Também participou ativamente da discussão dos resultados, na revisão e aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo como saber válido [Internet]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense; 2004 [acesso 31 Ago 2017]. Disponível em: http://www.uff.br/saudecoletiva/professores/merhy/ capitulos-02.pdf. 2. Santos M. O retorno do território. In: Santos M, Souza MAAS, Silveira ML, organizadores. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec; 1998. p. 15-20. 3. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense S.A.; 1987. p. 197-221. 4. Santos M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2012. 5. Lefebvre H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora; 2001. 6. Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. 7. Deleuze G. A dobra: Leibniz e o barroco. 6a ed. Campinas: Papirus; 2011. 8. Vieceli AP. Lugares da Loucura: arquitetura e cidade no encontro com a diferença [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014.

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9. Bachelard G. A poética do espaço. In: Bachelard G. Coleção: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural; 1978. p. 187-354. 10. Bollnow OF. O homem e o espaço. Curitiba: Editora UFPR; 2008. 11. Baptista LA. Dispositivos e as máquinas do morar. In. Jacó-Vilela AM, Cerezzo AC, Rodrigues HB, organizadores. Clio-Psyché – História e memória. Rio de Janeiro: Clio Edições Eletrônicas; 2005. p. 71-9. 12. Sarlo B. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes; 2014. 13. Belloc MM. Homem-sem-história. A narrativa como criação de cidadania [tese]. Tarragona: Universitat Rovira I Virgili; 2011. 14. De Martino E. El mundo mágico. Buenos Aires: Libros de la Araucaria; 2004. 15. Lavor A. À margem de direitos efetivos. Radis. 2016; 165:18-27. 16. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2014. 17. Collar JM, Neto JBA, Ferla AA. Educação permanente e o cuidado em saúde: ensaio sobre o trabalho como produção inventiva. Saude Redes. 2015; 1(4):53-64. 18. Franco TB, Merhy EE, Gonçalves RBM. Trabalho em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: EPJV/Fio Cruz; 2005 [acesso 31 Ago 2017]. Disponível em: http://www.uff.br/ saudecoletiva/professores/merhy/capitulos-19.pdf.

Silva Junior DV, Belloc MM.Habitar invisible: producción de vida y cuidado en la experiencia urbana. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1065-75. Este trabajo discute las relaciones de producción de vida en el espacio urbano y su potencia para enseñar a pensar, planificar y producir salud. Es un espacio que se constituye por las relaciones del vivir y habitar en él, por un sistema de valores político-económicosociales, transciende la linealidad, cuestiona la doble contraposición casa-calle, dentrofuera. Pero también es la exposición a vulnerabilidades sociales y económicas que sobrecargan la existencia con estigma, prejuicio e invisibilidad. Se produce una reflexión sobre la atención a las personas que viven en la calle más allá de la estructura física y de las normas y protocolos convencionales de las unidades de salud. El encuentro con el otro, trabajo vivo en acto, pasa a ser tecnología fundamental. Un hacer en Salud Colectiva vinculado a comprender las relaciones de vivir en la experiencia urbana, por la producción de espacios relacionales de cuidado.

Palabras clave: Salud Colectiva. Población que vive en la calle. Producción de vida. Cuidado. Experiencia urbana.

Submetido em 23/08/17. Aprovado em 17/12/17.

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Pesquisa participativa e as estratégias de promoção da saúde integral da criança no Sistema Único de Saúde (SUS) Júlia Florêncio Carvalho Ramos(a) Lilian Miranda(b) Maria Virgínia Marques Peixoto(c) Mariana Ribeiro Marques(d) Larissa Costa Mendes(e) Eduardo Henrique Passos Pereira(f)

Ramos JFC, Miranda L, Peixoto MVM, Marques MR, Mendes LC, Pereira EHP. Participative research and comprehensive child healthcare promotion strategies in the Brazilian National Health System (SUS). Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1077-89.

The article discusses methodological aspects of an investigation aimed at promoting the involvement of participants as a challenge. We were interested in understanding how family health teams made sense of the child handbook Caderneta de Saúde da Criança, and child development. The intervention-research promoted the sharing of viewpoints among researchers and providers in focal groups with the use of narratives making it possible for the participants to become key players of the proposed investigation. The implementation of the strategy promoted: 1) the greater ownership of the instrument, 2) the deepening and repositioning regarding crystalized issues in the functioning of teams, and 3 ) the validation of research results. These results indicate that there is a contribution of participatory research to the consolidation of SUS because they propose access to a common plan as methodological strategy and promote greater engagement of the teams in relation to the proposed themes.

Keywords: Community-based participatory research. Intervention-research. Child health. Child Health Handbook.

CC

BY

Neste artigo, discutem-se aspectos metodológicos de uma investigação que tomou a promoção da participação dos envolvidos como desafio. Interessou compreender os sentidos atribuídos por equipes de Saúde da Família à Caderneta de Saúde da Criança (CSC) e ao desenvolvimento infantil. A pesquisaintervenção promoveu o compartilhamento de pontos de vista entre pesquisadores e trabalhadores em grupos focais com utilização de narrativas, construindo condições para que os participantes se tornassem protagonistas da investigação proposta. A realização dessa estratégia promoveu: 1) maior apropriação do instrumento; 2) aprofundamento e reposicionamento quanto a questões cristalizadas nos modos de funcionamento das equipes; 3) validação dos resultados da pesquisa. Tais resultados indicam que há uma contribuição das pesquisas participativas para a consolidação do SUS, pois, ao proporem o acesso a um plano comum como estratégia metodológica, promovem também maior engajamento das equipes em relação aos temas propostos.

Palavras-chave: Pesquisa participativa baseada na comunidade. Pesquisaintervenção. Saúde da criança. Caderneta de Saúde da Criança.

(a, c, d, e) Laboratório de Métodos Quantitativos, Departamento de Pesquisa, Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fiocruz. Avenida Rui Barbosa, 716, Flamengo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20021-140. bebolia@gmail.com; virginia@ iff.fiocruz.br; marirmarques@ gmail.com; larissacostamendes@ gmail.com (b) Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. lilian.miranda@ ensp.fiocruz.br (f) Departamento de Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, Brasil. e.passos1956@ gmail.com

2018; 22(67):1077-89 1077

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0280


PESQUISA PARTICIPATIVA E AS ESTRATÉGIAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE ...

Introdução Neste artigo discutem-se aspectos metodológicos da pesquisa “Compreensão do discurso profissional sobre a prática da vigilância do crescimento e desenvolvimento da criança na Estratégia de Saúde da Família” , na qual se procurou compreender as causas da reduzida taxa de preenchimento da Caderneta de Saúde da Criança (CSC)1 e as concepções das equipes relacionadas à saúde integral na infância. As indagações em torno desses temas se tornaram importantes durante pesquisa realizada em 2013 com as mães de crianças que utilizam os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) para acompanhamento da saúde dos filhos. Preliminarmente, verificou-se reduzida taxa de preenchimento da CSC pelos profissionais da Atenção Básica (AB), concordando com a literatura2-4. Outro achado sugeria que os aspectos da CSC voltados para a promoção do desenvolvimento infantil eram pouco valorizados5,6. A hipótese de baixa apropriação da CSC e dos aspectos relacionados ao desenvolvimento infantil por parte dos trabalhadores motivou a realização de uma pesquisa participativa com as equipes da estratégia Saúde da Família (ESF). A diretriz da participação estabelecida pelo SUS7,8 representa um marco para a inclusão da população na formulação e no controle das políticas de saúde9, tornando-se um compromisso que deve atravessar todas as ações de saúde, da gestão10 à clínica11. Trata-se de princípio pautado no reconhecimento de que aquele a quem uma ação de cuidado se destina é protagonista de sua própria história12, sendo, portanto, coautor da produção de saúde13. Nesse sentido, o trabalho em saúde tem dupla finalidade12: produção de saúde e construção conjunta de capacidade de reflexão e autonomia para profissionais, gestores e usuários. Entendemos a autonomia como um recurso que precisa ser constantemente (re)construído em meio às relações intersubjetivas. Consequentemente, os graus de autonomia que podem ser experimentados têm relação com o funcionamento das organizações de saúde e com os valores que lá são veiculados, assim como da cultura na qual se está inserido. Considera-se que a autonomia é tão maior quanto mais ampla e diversificada é a rede de dependências de cada indivíduo e os modos de lidar com ela14,15. Reconhecendo-se a participação ativa dos atores de pesquisa16,17, adotou-se um delineamento de pesquisa em que os efeitos da intervenção – sempre inevitáveis18 – contribuem com o aumento do conhecimento, da capacidade crítica e dos recursos para a ação autônoma dos trabalhadores, gestores e usuários do SUS. Tais modalidades de pesquisa buscam respostas coerentes às questões impostas por “esferas da vida que não podem ser estudadas pela via dedutiva clássica (teste empírico de teorias prévias)”19 (p. 1270). O referencial teórico incluiu autores do campo da Saúde Coletiva que, embora pensem a atenção em saúde com base em diferentes matrizes epistemológicas, têm em comum a consideração de seu aspecto intersubjetivo ou relacional, enfatizando que os processos de gestão e clínica são impactados por elementos que se estendem das relações de poder à dimensão do desejo e às questões existenciais. Trata-se de trabalhos que vêm valorizando aspectos do cotidiano dos serviços, empreendendo contundente crítica aos limites do paradigma biomédico e destacando a importância de abordagens ampliadas do cuidado, pautadas pelos aspectos não apenas biológicos e sociais, mas também culturais, emocionais e/ou psíquicos12,13,17,18,20.

A pesquisa-intervenção e seus desafios no contexto da atenção integral à saúde da criança A CSC é um instrumento estratégico para o acompanhamento da saúde das crianças que nascem em território brasileiro. Após sofrer sucessivas modificações com as quais se pretendeu contemplar a integralidade do cuidado na infância, chegou à sua última versão em 20101. Trata-se de instrumento para ser utilizado por mães e profissionais de saúde, especialmente na AB, responsável pela longitudinalidade do cuidado. A despeito da importância do papel da CSC para a promoção da saúde infantil, preconizada por uma série de políticas que visam garantir direitos para a infância21,22, a experiência23 de sua utilização tem sido pouco estudada. Que atores utilizam a CSC? O que entendem como sendo o trabalho 1078

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possível com ela? Que dificuldades enfrentam? Como podem ampliar suas possibilidades de uso? A abordagem de tais questões precisa ser mais explorada com base em desenhos metodológicos orientados para a inclusão dos participantes como protagonistas do processo de produção de conhecimento16,17,24. A utilização de metodologias participativas pode contribuir significativamente para o campo de estudos relacionados ao cuidado na infância. Porém, o que se toma por participação e os procedimentos que se realizam para promovê-la podem ser bastante distintos25-29. Diante da variedade presente no campo, faz-se necessário apresentar de que maneira a participação é compreendida neste trabalho. O referencial da pesquisa-intervenção18 foi adotado para a compreensão do problema sujeitoobjeto no campo de pesquisa. Para Aguiar e Rocha30, embora incluída entre as pesquisas consideradas participativas, a pesquisa-intervenção, baseada, principalmente, no pensamento institucionalista francês e na esquizoanálise, estabelece uma ruptura mais profunda com enfoques de pesquisa tradicionais e com noções de sujeito pautadas seja na centralidade da consciência, seja na determinação social. Ela empreende um processo de desnaturalização do cotidiano sobre o qual se instala (um serviço ou uma prática de saúde, por exemplo), tematizando aspectos que surgem “[...] nas situações que resistem aos modelos, no que, nas sucessivas repetições, tensiona as crenças, os valores, a lógica que norteia a rotina.”31 (p. 537). “Nessa perspectiva, pesquisar é, antes de mais nada, uma atitude que interroga os homens e os fatos em seus processos de constituição, trazendo para o campo da análise as histórias, o caráter transicional e parcial, os recortes que a investigação imprime nas práticas”30 (p. 654) e os efeitos que produz tanto sobre os grupos que se pretendia investigar quanto sobre os pesquisadores. Assim, produzir conhecimento implica necessariamente intervir naquilo que se pretende conhecer18. A realidade não é um dado pronto, acabado, à espera de que alguém (o pesquisador) desvele seu sentido. Tanto o fenômeno que se pretende conhecer (a que tradicionalmente designa-se objeto de pesquisa) quanto aquele que conhece estão em processo de construção conjunta ininterrupto18, pois conhecer é um ato que faz surgir simultaneamente tanto aquele que conhece (sujeito) quanto o que é conhecido (objeto)32. Pesquisador e participante são pontos de vista heterogêneos que compartilham o processo de produção de conhecimento33. Nesse sentido, diz-se que a pesquisa realiza “colheita” dos dados, pois o conhecimento é produzido no/pelo próprio processo de pesquisar. Não se trata de extrair informação do campo (procedimento de coleta) para representar um mundo estabelecido a priori34, mas de participar de seu processo de criação e transformação.

Participantes Para se compreender como a CSC é apropriada pelas equipes, foram realizados grupos focais com trabalhadores da ESF. Com cada uma das equipes participantes, foram realizados dois encontros com duração média de duas horas cada um. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos participantes segundo sua categoria profissional por município.

Tabela 1. Tabela de participantes Categoria Município Joinville (SC) Santarém (PA) Campina Grande (PB) São Gonçalo (RJ) Total

Agente Comunitário de Saúde 8 8 4 6 26

Técnico de Enfermagem 1 1 1 1 4

Enfermeiro

Médico

Dentista

1 2 1 1 5

1 1* 1 1** 4

1 1

Auxiliar de Saúde Bucal 1 1

Total 11 12 9 9 41

*Não participou do segundo encontro. **Idem.

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A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética (parecer no 745.856) e autorizada pelas Secretarias Municipais de Saúde das cidades onde o trabalho de campo foi desenvolvido. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Grupos focais (GF) Tradicionalmente, a técnica de grupo focal constitui uma ferramenta de coleta de dados utilizada isoladamente ou em conjunto com outras cujo objetivo é promover a interação dentro de um grupo com o propósito de favorecer a troca de opiniões, percepções e conhecimentos e de ampliar as perspectivas sobre determinado tema35-37. Diferencia-se pela possibilidade de observar o surgimento de pontos de vistas novos, frutos do próprio processo grupal, que não se reduzem à soma das perspectivas individuais38. Mediante seu uso, atinge-se um número maior de pessoas concomitantemente, obtendose certo grau de profundidade em curto intervalo36. Na área da Saúde Coletiva, são numerosas as pesquisas que a utilizam para avaliar implantações de políticas, serviços e experiências39,40, na medida em que ela permite o reconhecimento não apenas do que as pessoas pensam, mas das suas motivações e dos processos por meio dos quais formulam seus argumentos, enfrentam controvérsias, criam consensos e se posicionam nas dinâmicas intersubjetivas16. Contudo, a despeito de sua ampla utilização, são raras as publicações que versam sobre questões metodológicas ligadas ao grupo focal, tal como se propõe desenvolver no presente artigo, especialmente no que tange à análise dos dados obtidos por meio dessa técnica36. No primeiro encontro, o foco da discussão foi orientado por roteiro temático, composto por três eixos: 1) Práticas de cuidado dirigidas à infância; 2) Formas de utilização da CSC; e 3) Formação em saúde integral infantil. Muito embora o roteiro contivesse perguntas previamente formuladas, no modo de suscitar as questões na discussão buscou-se acompanhar a dinâmica grupal. O trabalho do moderador consistiu em guiar o grupo para que este investigasse sua própria experiência, de maneira não diretiva, auxiliando a proliferação dos pontos de vista e convidando o grupo a experimentar certo distanciamento em relação ao que é naturalizado41. A literatura relacionada à utilização de GF38 indica a homogeneidade como condição favorável à sua utilização, pois facilita o aprofundamento de reflexões e questionamentos no grupo. Nesta pesquisa, optou-se pela realização de grupos com equipes de ESF completas, adotando-se como critério de homogeneidade o pertencimento a uma mesma equipe de ESF. Tratou-se, portanto, de um tipo de homogeneidade que comporta a heterogeneidade de categorias e funções profissionais. Com isso, buscou-se reproduzir nos dispositivos da pesquisa uma situação análoga àquela vivida pelos trabalhadores das equipes da ESF, na qual experiências e formações distintas se engajam na produção de saúde. A pesquisa se orientou por uma tríplice inclusão42 cujo efeito foi a lateralização entre pesquisadores trabalhadores e pesquisadores universitários: 1) inclusão dos diferentes atores implicados no processo de produção de saúde – roda com os trabalhadores das equipes da ESF e pesquisadores universitários; 2) inclusão das questões cruciais suscitadas pela experiência em roda – produção coletiva das questões para a análise da pesquisa ou colheita de dados; 3) inclusão do protagonismo coletivo gerado pelo próprio procedimento de inclusão – contração de grupalidade e experiência de participação no processo de produção e conhecimento.

Construção de narrativas Redigiu-se uma narrativa relacionada à experiência de cada GF por campo participante específico, totalizando quatro narrativas. Na construção das narrativas, procurou-se desenvolver os núcleos argumentais que se destacaram nas memórias redigidas pelos pesquisadores após o término dos GF. Metodologicamente, nessa etapa há um trabalho de sistematização dos dados, que são organizados e têm seus sentidos encadeados pelos pesquisadores. É importante enfatizar que a tarefa de construção da narrativa se dá em função de um processo de análise que é iniciado durante o GF. Considera-se que as experiências de lateralização desde o GF 1080

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fomentam o surgimento de um ethos analítico43 compartilhado com os participantes da pesquisa, que enseja a elaboração de novos sentidos para funcionamentos tácitos. Nesse sentido, esta pesquisa se diferenciou de grande parte dos estudos que, ao utilizar a técnica de GF, optam por proceder à interpretação do material empírico valendo-se de abordagens etnográficas, análise de conteúdo ou de discurso40,44,45. Diferentemente, optou-se por um trabalho de construção, possibilitado pela leitura e discussão das narrativas com os participantes da pesquisa. Tal opção baseou-se no pressuposto de que as narrativas nunca estão prontas dentro dos indivíduos: elas são construções que advêm de uma relação. Nelas, sempre se encontram marcas dos narradores, além daquelas próprias aos atores da “história narrada”46. Esse trabalho de construção de narrativas é efeito da negociação de sentidos sobre o fenômeno em estudo. Nos emaranhados das discussões, foram buscados sentidos para os três eixos temáticos que, embora intensamente vividos, ainda não haviam sido narrados. Com a utilização de narrativas, visava-se criar as condições para que pesquisadores e participantes pudessem partilhar e interferir mutuamente nas análises do processo de pesquisa, problematizando suas próprias experiências16.

GF narrativos e construção de planilha de núcleos argumentais O grupo focal narrativo (GN) é uma segunda rodada de GF na qual se apresenta e se discute com os pesquisadores trabalhadores a narrativa construída pelos pesquisadores universitários. Foi a ocasião para a validação dos sentidos produzidos durante a pesquisa e, principalmente, para a ampliação e aprofundamento das discussões, além de possíveis reposicionamentos dos envolvidos. Tendo a promoção da participação como princípio norteador, na realização do GN, os sentidos formulados pelos pesquisadores universitários foram submetidos à análise dos demais participantes da pesquisa. Com a realização dessa nova etapa, surgiram novos núcleos argumentais. Os núcleos formulados a partir do GF e aqueles destacados na discussão do GN foram organizados de maneira a permitir a visualização dos efeitos da intervenção. No Quadro 1, tem-se uma linha de análise.

Quadro 1. Linha de análise GF GN Queixa acerca da falta Grupo afirma não realizar nenhum trabalho de promoção da leitura com as mães, outrora realizado de leitura da CSC pelos agentes comunitários de saúde (ACS) durante o pré-natal. [...] A equipe se compromete a pelas mães. realizar a ideia que surgiu no GF de utilizar a CSC nos atendimentos em grupo como estratégia de incentivo à leitura.

Nesse exemplo, pode-se observar como um dos núcleos destacados no primeiro encontro se desdobra no segundo, ampliando a compreensão do problema apresentado inicialmente. Essa ampliação, acompanhada de estranhamentos, questionamentos e incômodos vividos pelos participantes durante os encontros grupais, indica que a técnica de GF pode produzir efeitos que se estendem para além da obtenção de informações, que tradicionalmente dela se espera16,44. Esse efeito de ampliação dos sentidos relacionados a um problema deve-se a um procedimento analítico participativo43. Por fim, organizam-se cruzamentos das narrativas das diferentes equipes e das discussões de diferentes momentos (GF e GN) da mesma equipe, evidenciando-se as diferenças entre os grupos e também os efeitos da intervenção.

Sobre os efeitos de intervenção advindos do método de pesquisa adotado Durante o processo, a equipe de pesquisadores identificou resultados relativos à utilização da CSC e aos efeitos advindos do método adotado. O primeiro deles foi a possibilidade que os trabalhadores, 2018; 22(67):1077-89 1081

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principalmente os ACS, tiveram de manusear a CSC, vendo pela primeira vez o conjunto das informações nela contidas. Além disso, a proposição da pesquisa serviu para despertar o interesse pelos temas da CSC e do desenvolvimento infantil, que pareciam submersos no automatismo das ações cotidianas. O segundo efeito foi o favorecimento de mudanças no modo como parte dos trabalhadores se referia aos membros adultos das famílias, principalmente às mães. Construíram-se, conforme se apresentará mais adiante, avaliações menos centradas em julgamentos morais e mais sensíveis à consideração da complexidade das questões envolvidas na tarefa cotidiana do cuidado com crianças. O terceiro efeito se exprime no fato de que, ao falar sobre a CSC, os profissionais puderam desenvolver e compartilhar reflexões críticas sobre o próprio processo de trabalho, reconhecendo potencialidades, conflitos e problemas que se encontravam silenciados. Resultado semelhante incidiu sobre a própria equipe de pesquisa, que, com base na experiência do trabalho em campo, acabou por se reposicionar em relação às próprias questões e ao objeto de pesquisa, que revelaram abrangência e complexidade antes desconsideradas. Cada um desses efeitos é analisado separadamente, a seguir, na tentativa de imprimir maior clareza ao texto, mas sua emergência nos grupos foi simultânea e não se deu em uma cronologia linear. Note-se que a maior parte das citações de trechos das narrativas não está identificada por categorias profissionais, na medida em que são fruto de um processo de validação coletiva. Uma categoria foi destacada sempre que protagonizou um argumento ou comentário.

A CSC adquire lugar na cena de trabalho Todas as equipes participantes afirmaram que se ocupavam de preencher a CSC ou, no caso dos ACS, de utilizá-la para verificar a atualização da vacinação e a assiduidade da puericultura. Contudo, as discussões nos grupos levaram os trabalhadores a concluir que, embora manuseassem o material em questão, não o conheciam integralmente ou, como em um grupo específico, sequer pensavam sobre a função dele: Até mesmo alguns de nós não tínhamos familiaridade com a caderneta. Talvez até pudéssemos incentivar mais as mães a lê-la, mas somos muito cobradas e temos pouco tempo para fazer as coisas... Passamos a nos interessar mais por ela depois que vocês vieram propor a pesquisa. É preciso que haja uma propaganda maior, porque ela mudou muito. (Narrativa São Gonçalo)

Foi no processo da pesquisa que muitos agentes de saúde puderam folhear a CSC, pois só tinham acesso a ela quando faziam visitas às famílias. Nessas ocasiões, liam apenas as páginas que continham as informações que precisavam acompanhar, o que os levava a identificá-la com a “carteirinha de vacinas”, chegando, inúmeras vezes, a nomeá-la com essa expressão. Comentar sobre a dificuldade de acesso à CSC levou alguns profissionais a desabafar acerca do incômodo que sentem ao perceber que a AB é muito desvalorizada no campo da Atenção à Saúde como um todo. A caderneta é tomada como símbolo disso, pois as equipes, além de não a receberem na unidade, não contaram com nenhum treinamento para usá-la. Vale esclarecer que, sendo um documento da criança e de sua mãe, a CSC é entregue diretamente à última no momento do parto. Sentindo-se praticamente esquecidos, os trabalhadores comentam que esse descaso acaba por prejudicar também os usuários: Pois é... mas, para nós, agentes e técnica de enfermagem, é mais difícil. Nós só folheamos a caderneta quando fazemos uma visita ou somos procuradas na unidade. Nunca pudemos ler a caderneta toda, porque nós não temos um exemplar para estudar. Só vemos aquela que fica com as mães. Assim, na nossa divisão do nosso trabalho como equipe, a técnica de enfermagem preenche a parte das vacinas e da vitamina A e os agentes utilizam caderneta para verificar se o peso e as vacinas estão em dia. É o que nos resta! (Narrativa Campina Grande)

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Essas reflexões e apontamentos evidenciam a potência dupla do método adotado: os pesquisadores colheram os dados da pesquisa, ao mesmo tempo que as equipes se apropriaram mais da CSC.

Reflexão crítica dos profissionais diante do papel de cuidador atribuído aos familiares das crianças As primeiras referências que os profissionais fizeram ao papel da mãe na utilização da CSC constituíram-se, em sua maioria, em julgamentos morais. Afirmou-se, por exemplo, que as mães são desleixadas ou que só se ocupam do cuidado com os filhos quando induzidas por algum outro ganho, advindo de programas sociais: Se em casa as mãezinhas só leem a parte relativa ao peso, altura e vacina, é porque apenas esses dados são cobrados. E não somos só nós que cobramos. Outros programas sociais, como o Bolsa Família, cobram a vacina e o crescimento. ... Em outras situações, vemos que a mãe não faz o básico: não limpa a casa, não lava a roupa, não cozinha para os filhos. Fica o tempo todo deitada. A condição de descuido das crianças nos mobiliza muito! (Narrativa Joinville)

Entretanto, foi interessante observar que, no decorrer da discussão – e principalmente após a leitura das narrativas –, no GN, ao entrarem em contato com o ponto de vista de outros colegas, alguns profissionais se reposicionaram diante do comportamento das mães para com a caderneta e o cuidado geral com os filhos. Alguns deles conseguiram se aproximar mais da realidade de vida dos familiares, compreendendo questões envolvidas com aquilo que estavam julgando como descuido. Outros, por sua vez, conseguiram reconhecer que também têm responsabilidade em relação à resistência das mães em lerem a CSC: “Mesmo que a mãe não saiba ler, sempre tem alguém em casa que pode ler para ela. Mas, é claro que, para que isso ocorra, nossa função é incentivá-la” (Narrativa Santarém). Ao se confrontarem com as críticas que faziam às mães, alguns profissionais contribuíram para o aprofundamento da análise, colocando em discussão também algumas questões socioculturais e políticas, não contempladas no roteiro de perguntas do GF: Para alguns de nós, hoje em dia ela [a caderneta] se faz mais necessária, pois algumas mães não podem contar com a ajuda dos familiares; antigamente existia um suporte maior quando nascia um bebê em uma família. Poucas mães vêm ao serviço acompanhadas do pai ou da avó da criança, por exemplo. A Caderneta ajuda muito essas mães que não têm com quem contar. (Narrativa São Gonçalo)

Esse efeito de reposicionamento dos profissionais em relação à mãe pode também contribuir para a construção de vínculos mais positivos entre trabalhadores de saúde e usuários. O maior compartilhamento na construção dos projetos terapêuticos singulares é um objetivo do SUS com o qual a pesquisa realizada se associou.

As cenas de trabalho e de pesquisa são analisadas por meio da discussão sobre a CSC Os apontamentos acima permitem concluir que, para além do efeito mais concreto de acesso à CSC, a utilização dos GF e o compartilhamento das narrativas propiciaram aos profissionais o desenvolvimento de uma análise crítica de seu próprio trabalho e a elaboração de propostas de qualificação. Esses efeitos incidiram também sobre os pesquisadores que, questionados acerca de alguns valores e formas de uso do material de pesquisa, acabaram por ampliar a compreensão acerca do fenômeno em estudo. Com isso, a nosso ver, colaborou-se também com a realização de um dos objetivos do trabalho em saúde12: a construção compartilhada de autonomia. O trecho a seguir pode ser tomado como um indicador de que alguns desses efeitos de crítica e qualificação do processo de trabalho demandam o desdobramento em ações que excedem o período de realização da pesquisa.

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É..., talvez elas [as mães] fiquem focadas na vacina porque nós, profissionais, também nos preocupamos muito com isso. Pois é... talvez esse foco na vacina faça com que a gente se confunda e chame a caderneta de cartão, às vezes. Pensando nisso agora, percebemos que entre nós, ACS, não é nosso hábito folhear o “cartão” com a mãe. Poderíamos passar a fazer isso na sala de espera, enquanto aguardam a puericultura... nas casas, quando elas têm alguma dúvida, nós orientamos que leiam a caderneta. Mas é bem verdade que nunca lemos com ela. Podemos mudar isso... (Narrativa Campina Grande)

Observamos que as equipes puderam repensar a inserção da CSC no trabalho de promoção de saúde realizado com as mães e passaram a considerar a possibilidade de adotá-la de diferentes maneiras doravante. Outra possibilidade de uso da caderneta aventada nos grupos foi a de tomá-la como instrumento de formação para a própria equipe, tal como no exemplo a seguir: [X] afirma que percebeu que há um desencontro da equipe no que se refere ao trabalho com a caderneta, que ela e a enfermeira estão fazendo uma série de coisas que os demais não estão acompanhando e menciona, como exemplo, a discussão sobre desenvolvimento. [...] Márcia retoma a proposta de uma oficina interna. (Memória GN Campina Grande)

O exercício do posicionamento crítico da equipe também foi identificado em alguns apontamentos que os profissionais faziam acerca de trechos das narrativas, destacando equívocos de compreensão dos pesquisadores ou questões que precisavam ser mais valorizadas, tal como se observa no trecho da memória do GN realizado em Campina Grande: Mais adiante, a leitura da narrativa indica que “o que resta” aos ACS e à técnica de enfermagem é trabalhar com vacina e peso, pois eles não têm acesso à caderneta. Essa compreensão não é válida para ambos, técnica e ACS. Para a técnica, na compreensão dela mesma e da equipe, a vacina não é o que resta, é o que de fato deve ser feito por ela. (Memória GN Campina Grande)

Evidenciava-se para os pesquisadores a configuração da pesquisa como uma cena relacional, que constrói informações e produz efeitos sobre todos os envolvidos47. Exemplo disso foi o reposicionamento que os pesquisadores se viram obrigados a fazer quando corrigidos pela técnica de enfermagem, que lembrou a importância do trabalho de vacinação, evidenciando a inadequação do tipo de ênfase dada à expressão “a vacina é o que resta”. Preocupados com o uso de outros elementos da CSC além da checagem das vacinas, os pesquisadores acabaram por tratar a vacinação como algo trivial do cotidiano assistencial, desconsiderando sua importância para a manutenção da vida e da saúde da criança, assim como sua função na organização da divisão do trabalho. Escutar a retificação feita pela técnica de enfermagem foi, portanto, essencial para a revisão de questões que, já tratadas exaustivamente no campo de pesquisa, acabaram por ser demasiadamente simplificadas no processo que vinha se desenvolvendo. Outro importante efeito que o método utilizado produziu sobre a equipe de pesquisadores foi seu reposicionamento em relação à própria questão norteadora da pesquisa. Esta, inicialmente derivada dos resultados de uma pesquisa prévia, interrogava os motivos da reduzida taxa de preenchimento da CSC. Mas o diálogo com o campo mostrou que esse material tem usos que ultrapassam os limites formais do preenchimento, traduzindo-se, por exemplo, como instrumento de mediação do contato entre profissionais e destes com as mães ou, paradoxalmente, de vigilância do cumprimento das orientações acerca do cuidado com a saúde das crianças. Assim, o trabalho vivo em ato sempre extrapola aquilo que está prescrito, guardando um potencial criativo20. Um exemplo disso pode ser identificado no trecho a seguir:

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Retomo para o grupo duas falas, uma da Luíza e outra da Ana, nas quais se considera que o registro da caderneta é útil para outros profissionais, e pergunto se o grupo concorda com essas afirmações. Começa a surgir uma série de falas no sentido de valorizar o diálogo com outros profissionais da AB e de outros níveis da atenção. ... Em seguida, ela começa a desdobrar outras possibilidades de diálogo a partir do uso da caderneta: a CSC é um instrumento para diálogo com outros profissionais, com os profissionais da própria equipe e também com as famílias. (Memória do segundo grupo de Campina Grande)

Cabe admitir, contudo, que extrapolar o que está prescrito pode significar também reduzir a potência do trabalho, como ilustrado pela afirmação a seguir: “Para nós, profissionais de saúde, atualmente, a caderneta serve para que controlemos a vacinação das crianças. Na opinião de alguns de nós este é o maior objetivo da carteira. ...Nossas metas têm sido estas: acompanhar o gráfico de crescimento e as vacinas” (Narrativa São Gonçalo). A restrição do potencial da CSC ao seu uso privilegiado como instrumento de acompanhamento vacinal, isto é, a apenas uma de suas possibilidades, perpassa a experiência das equipes em todos os campos onde a pesquisa se realizou. Porém, a mesma equipe que no último exemplo afirma ter como meta o controle vacinal, ao ler esse mesmo fragmento no GN, inicia um processo de discussão no qual termina se perguntando: “e o resto?” (Memória GN São Gonçalo). Tal questionamento atesta um processo de reposicionamento da equipe, que passa a considerar que há um conjunto de outras ações relacionadas à atenção integral à saúde da criança. Esse reposicionamento foi um efeito da realização da pesquisa-intervenção, que contribuiu para que as próprias equipes pudessem se questionar acerca de seus posicionamentos.

Considerações finais A discussão das práticas de produção da saúde integral da criança ensejou a possibilidade de compartilhamento de pontos de vista entre pesquisadores e trabalhadores. Essa experiência promoveu transformações em duplo sentido. De um lado, ressignificou o próprio problema da pesquisa, que deixou de estar ligada apenas ao preenchimento da CSC e passou a se interessar pelas distintas formas de utilização desse instrumento. Por outro, houve relatos de mudança de perspectiva das equipes quanto à participação das famílias no cuidado das crianças, bem como de criação de modos de utilização da caderneta mais afeitos à proposta de atenção integral à saúde da criança. A pesquisa se desenvolveu de maneira a construir um dispositivo que favorecesse a promoção da participação dos envolvidos na construção de conhecimento acerca do problema abordado. Estabelecendo-se uma analogia entre este e a metodologia proposta, pode-se afirmar que os desafios relacionados à promoção da atenção integral à infância são também concernentes ao tema da participação. Apropriar-se da CSC implica construir um cuidado no qual todos os envolvidos (diferentes membros da equipe de saúde e família) são considerados autores importantes. Assim, observa-se uma relação de circularidade entre a metodologia e o problema investigado. A promoção da participação das equipes de Saúde da Família em práticas de integralidade na infância foi a questão que, ao mesmo tempo, motivou a pesquisa e definiu o desafio metodológico imposto. A participação é um desafio para a consolidação do SUS. Os efeitos de reposicionamento e aumento de participação aqui descritos indicam que as pesquisas de caráter participativo têm contribuição importante a dar para a consolidação do SUS como política pública de saúde.

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Contribuições dos autores Júlia Florêncio Carvalho Ramos e Lilian Miranda participaram da discussão dos resultados, da redação do manuscrito, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Maria Virgínia Marques Peixoto, Larissa Costa Mendes, Mariana Ribeiro Marques e Eduardo Henrique Passos Pereira participaram da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Caderneta de Saúde da Criança. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2010. 2. Almeida AC, Mendes LC, Sad IR, Ramos EG, Fonseca VM, Peixoto MVM. Uso de instrumento de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança no Brasil: revisão sistemática de literatura. Rev Paul Pediatr. 2016; 34(1):122-31 3. Alves CR, Lasmar LM, Goulart LM, Alvim CG, Maciel GV, Viana M Retal. Qualidade do preenchimento da caderneta de saúde da criança e fatores associados. Cad Saude Publica. 2009; 25(3):583-95. 4. Linhares AO, Gigante DP, Bender E, Cesar JA. Avaliação dos registros e opinião das mães sobre a caderneta de saúde da criança em unidades básicas de saúde, Pelotas, RS. Rev AMRIGS. 2012; 56(3):245-50. 5. Figueiras AC, Puccini RF, Silva EM, Pedromônico MR. Avaliação das práticas e conhecimentos de profissionais da atenção primária à saúde sobre vigilância do desenvolvimento infantil. Cad Saude Publica. 2003; 19(6):1691-9. 6. Figueiras AC, Puccini RF, Silva EMK. Continuing education on child development for primary healthcare professionals: a prospective before-and-after study. Sao Paulo Med J. 2014; 132(4):211-8. 7. Ministério da Saúde (BR). Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. 8. Ministério da Saúde (BR). Lei nº 8.142, de 28 de Dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Dez 1990. 9. Rolim LB, Cruz RSBLC, Jesus KJA. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saude Debate. 2013; 37(96):139-47. 10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização. Gestão participativa e co-gestão. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. 11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização: clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. 12. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. 13. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 2003. p. 89-112. 14. Onocko Campos RT, Campos GWS. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-714.

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Ramos JFC, Miranda L, Peixoto MVM, Marques MR, Mendes LC, Pereira EHP. Investigación participativa y las estrategias de promoción de la salud integral del niño en el Sistema Brasileño de Salud (SUS). Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1077-89. En el artículo se discuten aspectos metodológicos de una investigación que consideró la promoción de la participación de los envueltos como un desafío. El interés se concentró en entender los sentidos atribuidos por equipos de Salud de la Familia a la Cartilla de Salud del Niño (CSC, por sus siglas en portugués) y al desarrollo infantil. La investigaciónintervención promovió la compartición de puntos de vista entre investigadores y trabajadores en grupos focales con utilización de narrativas, construyendo condiciones para que los participantes pasaran a ser protagonistas del estudio propuesto. La realización de esta estrategia promovió: 1) mayor apropiación del instrumento; 2) profundización y reposicionamiento con relación a cuestiones cristalizadas en los modos de funcionamiento de los equipos; 3) validación de los resultados del estudio. Tales resultados indican que hay una contribución de los estudios participativos para la consolidación del SUS, puesto que al proponer el acceso a un plan común como estrategia metodológica también promueven un mayor compromiso de los equipos en relación a los temas propuestos.

Palabras clave: Investigación participativa basada en la comunidad. Investigaciónintervención. Salud del niño. Cartilla de Salud del Niño.

Submetido em 19/09/17. Aprovado em 22/12/17.

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Comportamento antissocial nos jovens como sequela da privação: contribuições da clínica winnicottiana para as políticas públicas Rosana Onocko-Campos(a)

Onocko-Campos R. Juvenile anti-social behavior as deprivation consequence: Winnicottian clinical contributions for public policies. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1091-8.

Following the path between Psychoanalysis and Public Health, this article uses several categories of the Winnicottian clinical theory to rethink the approaches of the Brazilian public policies for juvenile offenders and their families. Many young people are currently dealing with violence-related problems in Brazil. For the psychoanalytical clinical approach based on the contributions of D. W. Winnicott, this problem arises from a failure during the initial narcissistic phase of development. The article also analyses the drawbacks of these policies within the current context with an aim at providing information to achieve the desired effectiveness for these practices, and to prospect suitable educational processes for health and social workers. It is expected to contribute to a proper and fertile intersection of different disciplinary fields, thus putting Winnicott’s psychoanalysis in contact with urgent issues of our time, as recent international publications have addressed in this area.

Keywords: Young people. Psychoanalytic clinics. Public policies. Public health. Winnicott.

CC

BY

Este artigo, trilhando uma rota entre a Psicanálise e a Saúde Pública, utiliza várias categorias da clínica winnicottiana para repensar as abordagens das políticas públicas brasileiras para jovens infratores e suas famílias. Há muitos jovens que lidam com problemas de violência no Brasil de hoje. Para a abordagem clínica psicanalítica baseada nas contribuições de D. W. Winnicott, esse problema surge de uma falha na fase inicial, durante o desenvolvimento narcísico. O artigo também analisa os obstáculos dessas políticas no contexto atual e busca fornecer informações para obter a eficácia desejada dessas práticas e para projetar processos educacionais adequados para trabalhadores sociais e de saúde. Espera-se contribuir para um entrecruzamento incipiente, mas fértil, de campos disciplinares diferentes, colocando a Psicanálise de Winnicott em contato com questões urgentes de nosso tempo, como tem se visto em algumas publicações internacionais recentes no campo.

Palavras-chave: Jovens. Clínica psicanalítica. Políticas públicas. Saúde Pública. Winnicott.

(a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. rosanaoc@mpc.com.br

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0315


COMPORTAMENTO ANTISSOCIAL NOS JOVENS COMO SEQUELA ...

Introdução Existe grande quantidade de jovens às voltas com problemas de violência no Brasil. A imensa desigualdade social brasileira tem feito de muitos desses jovens as principais vítimas de uma guerra não assumida pelo poder público, mas que tem, ano a ano, vitimado jovens de bairros pobres, na sua maioria de raça negra e com poucos anos de educação formal. Grave e preocupante é a tendência crescente dessa vitimização homicida na faixa de 16 e 17 anos de idade: de uma taxa de 9,1 homicídios por 100 mil jovens em 1980, pula para 54,1, em 2013, crescimento de 496,4% no período. De responsável por 9,7% da mortalidade nessa faixa etária em 1980, passou para 46% em 2013. Para os dias de hoje, 2015, a estimativa é que metade das mortes de nossos jovens de 16 e 17 anos será por homicídio.1 (p. 5)

Segundo esse estudo, 93% dos jovens entre 16-17 anos assassinados eram homens. Morreram proporcionalmente 173,6% mais negros do que brancos, em 2013. A maioria dessas vítimas possuía entre um e sete anos de estudo, abaixo da média nacional para a idade. Ao mesmo tempo que esses jovens se tornam vítimas de uma sociabilidade atravancada, na mídia e no senso comum, eles são considerados responsáveis pela violência e pela criminalidade. Muitos jovens “infratores” pagam com sua vida – ou com reclusão – algumas de suas transgressões. Outros tornamse – de fato – criminosos. Reverter esse quadro preocupante e que está se naturalizando em nossa sociedade é um imperativo ético para com as gerações futuras. Que abordagens poderiam contribuir para lidarmos com essa juventude? Como têm operado nossas políticas públicas até agora? O relatório do Mapa da Violência no Brasil se encerra com o seguinte parágrafo: Hoje, 17 anos depois da divulgação do primeiro Mapa da Violência, em 1998, vemos com enorme preocupação que os mesmos argumentos de culpabilização são esgrimidos na tentativa de fundamentar a diminuição da maioridade penal, alavancados pela fúria de certa mídia sensacionalista e pela enorme inquietação da população diante de uma realidade cotidiana cada dia mais complicada e violenta. Esquece-se, de forma intencional, que não foram os adolescentes que construíram esse mundo de violências e corrupção. Esse está sendo nosso legado. Devem ser eles a pagar a conta?1 (p. 12)

Winnicott – pediatra e psicanalista inglês – chamou a atenção para a saudável (porém, muitas vezes difícil de suportar) tensão que os adolescentes trazem à sociedade desde tempos imemoriais. Ele refletiu sobre a necessária mistura entre rebeldia e dependência que caracteriza essa fase da vida, atribuindo às lutas e reinvindicações juvenis parte importante dos estímulos para a mudança social. Pretendemos, neste artigo, explorar algumas categorias da clínica winnicottiana para contribuir no enfrentamento desse grave problema de Saúde Pública. Não se trata de uma extrapolação linear de conceitos psicanalíticos às teorias macrossociais, nem se pretende produzir “psicologização” de transformações sociais complexas. Almeja-se, isto sim, contribuir para um incipiente – porém fértil – entrecruzamento de campos disciplinares, colocando a Psicanálise winnicottiana em contato com questões urgentes de nosso tempo. No contexto internacional, vários estudos vêm sendo desenvolvidos utilizando as contribuições da Psicanálise winnicottiana para compreender a expansão do mercado de consumo, a nova ordem social e questões clínicas emergentes2-4.

Tendência antissocial Começamos estas reflexões revisitando alguns textos do Winnicott nos quais ele distingue entre tendência antissocial e delinquência e enfatiza que a tendência antissocial não é um diagnóstico. Como bem nos lembra, essa tendência pode aparecer episodicamente em pessoas neuróticas ou psicóticas, tendo significados diferentes em cada caso. Mas, o mais importante para Winnicott é perceber que essa tendência é um sinal de que a esperança persiste viva nesses sujeitos e que é chamando a atenção 1092

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por meio de suas infrações que esses jovens fazem um apelo ao ambiente para receberem ajuda de pessoas fortes, amorosas e confiantes. Esses gestos são sinais de que o ambiente é importante. A capacidade de se controlar é sempre desenvolvida em um lar (o que não equivale a qualquer casa, lembra-nos Winnicott) e, se tudo correr bem, isso contribuirá para a criação de um “ambiente interno”. Há muitos testemunhos de como essa capacidade, uma vez desenvolvida, permite sobreviver a situações extremas. Relatos de pessoas em campos de concentração, submetidas a tortura ou isoladas na intempérie – em muitos casos – apontam a essa capacidade de estar só (porém, com esperança, sem vazio interior) como uma das condições que tornaram suportável o inimaginável5. No caso da tendência antissocial, há uma relação com a privação na primeira infância (entre 1-2 anos de idade) de algo que – anteriormente – foi vivido como bom. Para Winnicott6, essa tendência se apresenta como sintomatologia em duas direções: - como procura do objeto, e aí ele localiza os roubos e furtos, mas também as compras compulsivas, por exemplo, algo muito mais evidente em nosso contemporâneo do que em sua época. Para Winnicott, os presentes de aniversário e as mesadas poderiam ser compreendidos como tentativas socialmente aceitas de “tratar” disso. No mundo de hoje, perguntamo-nos se a adolescência eterna de alguns jovens não tem a ver com esse gesto entre reparador e culpado – ambíguo – de muitos pais. - e se apresenta também como destrutividade: quebradeira de coisas, bagunça. Gestos que procuram por acolhimento e suporte e que podemos facilmente reconhecer em inúmeras festas de jovens. Esse reconhecimento torna-se mais difícil quando essa destrutividade emerge associada com desigualdade extrema e reivindicações agressivas. A festa bagunceira do adolescente filho do vizinho do lado resulta em algo muitas vezes desagradável, mas compreensível. “Rolezinhos” de jovens pobres nos shoppings da classe alta deixam todo mundo em pânico e poderiam ser tomados como exemplo da situação descrita. Para compreender essa falha que estamos chamando de privação, é útil revisitar o papel da mãe ou figura materna na fase precoce do bebê. A mãe que cuida e ama é, também, aquela que sente incômodo pelo seu bebê. O bebê quer mamar e faz xixi. O bebê se suja e a obriga a perder horas de sono, etc. A inclusão desses aspectos ambíguos da mãe em nossas reflexões parece bem importante, pois circula um winnicottismo pasteurizado (com permissão do neologismo) que equipara materno e maternante a bondoso ou bonzinho, com todos os problemas clínicos que essa concepção teórica errada pode trazer. Enfim, voltando à mãe, ela deve ser bem-sucedida em se adaptar às necessidades do ego do bebê, diz Winnicott, mas ela sempre falhará ao se adaptar às necessidades do id. A mãe que consegue dar suporte ao ego de seu bebê realiza uma terapia bem-sucedida do complexo de privação. O primeiro sintoma pode ser caracterizado pelo que Winnicott chama de “avidez” do bebê (e que ele distingue da voracidade, mais precoce). A avidez cura-se com mimos. Assim, o amor materno é uma terapia a respeito da omissão do amor materno. Como vemos, o papel que Winnicott7 outorga às mães reais nada tem a ver com a idealização da maternidade que se faz por aí. Nos casos em que se instala uma tendência antissocial, provavelmente o bebê teve na ocasião a maturidade suficiente para perceber que a causa do desastre residiu em uma falha ambiental, e é por isso que buscará a cura por meio de novos suprimentos ambientais. O problema é que esses sujeitos são incapazes de utilizar esses suprimentos caso lhes sejam oferecidos. A sua tendência destrutiva testará o ambiente repetidamente em sua capacidade para suportar a agressão, impedir ou reparar a destruição, tolerar o incômodo, fornecer e preservar o objeto. Em suma: sobreviver. Voltaremos a isso.

Agressão Quando forças cruéis ou destrutivas ameaçam dominar as forças de amor, o indivíduo tem de fazer alguma coisa para salvar-se, e uma das coisas que ele faz é pôr para fora o seu íntimo, dramatizar exteriormente o mundo interior, representar ele próprio o papel destrutivo e provocar seu controle por uma autoridade externa6. (p. 99)

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COMPORTAMENTO ANTISSOCIAL NOS JOVENS COMO SEQUELA ...

A agressividade é quase sempre essa dramatização da realidade interior quando é ruim demais para ser tolerada como tal. Os indivíduos normais fazem sozinhos o que os mais doentes só podem realizar por meio de muita ajuda e tratamento. Converter em bem, na vida real, o que era dano na fantasia inconsciente pressupõe uma atividade razoavelmente integrada das coisas internas do sujeito. Portanto, o ódio ou frustração ambiental despertará reações diferentes (controláveis ou não) conforme o montante de tensão que exista na fantasia inconsciente de cada sujeito. É triste perceber que no nosso contexto educacional, por exemplo, as pessoas a cargo das quais estão as crianças não são preparadas para lidar com essa dificuldade, esperando-se delas que simplesmente “controlem ou coíbam” as agressões. Dessa maneira, cada vez que esse não reconhecimento da esperança, que implica o gesto destrutivo, ocorre, é como se fosse lançada ao mar uma garrafa cuja mensagem não será lida nunca... e se alimenta o mito das crianças incontroláveis, às quais serão dados medicamentos no momento oportuno, como um atestado de incompetência de nossa sociedade adulta. É tarefa dos adultos impedir que essa agressão fuja ao controle. Espera-se de nós, adultos, que possamos oferecer uma autoridade confiante e dentro de cujos limites um certo grau de maldade possa ser experimentado sem perigo (as brigas e as fofocas dentro das turmas de amigos se incluem aí). Cabe a nós, adultos, empreender uma retirada gradual desse lugar de autoridade, tarefa difícil para muitos pais de adolescentes e também para um sem número de educadores. Por que difícil? Porque muitos desses pais e educadores estão eles próprios – ainda – às voltas com restos não amadurecidos de seu eu infantil, eles mesmos precisando da reparação narcísica que o amor dos jovens (sob a forma de obediência e/ou de admiração) possa lhes trazer. Muitas das dificuldades que muitos pais têm em dar aos seus filhos adolescentes limites firmes (porém amorosos) residem nessa fragilidade egoica dos próprios pais. Contudo, o pior que poderia acontecer seria deixar essas crianças e adolescentes sozinhos no exercício da autoridade. Para Winnicott6, isso é fonte de autoritarismo, ditadura. Uma criança poderá facilmente se tornar cruel se sobrecarregada com essas funções. E não seria algo disso o que sofrem muitos jovens em comunidades carentes, nas quais a retirada do Estado tem feito quase que obrigatório que os irmãos mais velhos se tornem responsáveis pelos mais novos? Winnicott achava que a Inglaterra contava com os tempos de guerra para colocar a agressão adolescente a serviço da nação, e se perguntava – preocupado – o que aconteceria após a bomba atômica ter marcado o fim das grandes guerras. Ele cogitava se o aumento das brigas de ruas e de gangues, dos anos 1960, não guardaria relação com essa perda de um motivo socialmente louvável para descarregar a agressão juvenil. Para Winnicott, a única esperança encontrava-se nas atividades culturais e de grupo, como o sucesso dos Beatles (ele chega a se perguntar – surpreso – como alguns adultos da época poderiam ser contra os Beatles, pergunta que poderíamos sem dúvida ecoar!)7. Na periferia das grandes cidades brasileiras, ou no alto dos morros, carecem atividades culturais e esportivas. Poucos projetos sociais conseguem – mas quando o fazem, são bem-sucedidos – engajar os jovens em propostas de criação e mudança. Arte e cultura. Causas sociais. Resgate de identidade cultural. Identidade que em muitos bairros – e sobretudo para os meninos – se é construída no sonho por bens materiais, que seriam conseguidos não pelo esforço e dedicação a algum trabalho útil socialmente, mas pelo engajamento e liderança no tráfico. Será que da falta de causas socialmente louváveis e da falta de espaços de identificação cultural se alimenta a guerra civil que assola o Brasil? Uma forma de lidar com a agressividade já descrita por Winnicott, e que tem sido muito presente na clínica atual, é a saída masoquista, na qual o sujeito encontra o sofrimento, autopune-se e, ao mesmo tempo, expressa agressividade, assim aliviando seus sentimentos de culpa e desfrutando de excitação e gratificação sexual. Quantos jovens não apelam hoje a essa modalidade se ferindo e se cortando? Eles dizem só assim sentir “algo” (verdadeiro, poderíamos completar). Não são tentativas de suicídio, apesar de a psiquiatria, muitas vezes, as diagnosticar como tais ou como borderlines e entupir tais de antipsicóticos de última geração. Na nossa experiência clínica, isso também é um apelo ao ambiente, acontecendo em geral com jovens que estão desacreditando do valor da palavra. Quase sempre seus pais não estão presentes ou, 1094

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quando estão, são incapazes de verdadeiramente ouvir esses jovens e muito mais de se inquietar e interrogar a si mesmos com as questões que lhes são endereçadas pelos filhos. O sangue que escorre e a ferida que dói constituem, assim, o último refúgio de um eu submetido a uma adaptação mutiladora. Nesses pacientes, a escuta sensível na terapia costuma rapidamente esvaziar esse sintoma, caso se mostre bastante empática e bem ativa em reconhecer a verdade de seu sofrimento: a necessidade de ser reconhecido como alguém único, diferente dos pais, inédito. Muitas equipes de saúde poderiam muito bem ajudar esses jovens se fossem advertidas da importância de uma escuta atenta e empática. Diz Winnicott: Finalmente toda agressão que não é negada, e pela qual pode ser aceita a responsabilidade pessoal, é aproveitável para dar força ao trabalho de reparação e restituição. Por trás de todo jogo, trabalho e arte está o remorso inconsciente pelo dano causado na fantasia inconsciente, e um desejo inconsciente de começar a corrigir as coisas6. (p. 101)

O sentimentalismo negador também contém uma negação inconsciente da destrutividade subjacente à construção. Diz Winnicott: “só se soubermos que a criança quer derrubar a torre de cubos, será importante para ela vermos que sabe construí-la”6 (p. 101). Parafraseando-o, poderíamos dizer: só se soubermos entender que ela está nos falando pelo corte na carne é que poderá advir um corte (advento de si, diferença radical) pela palavra.

Delinquência Em uma palestra dirigida a magistrados, Winnicott disse que uma das questões que mais o preocupava com relação a esse tema era evitar os efeitos de uma atitude sentimentalista em relação ao crime. Para ele, o sentimentalismo seria sinal de ódio recalcado e, sendo assim, ele voltaria, mais cedo ou mais tarde. Disse ele: “O crime produz sentimentos de vingança pública. A vingança pública redundaria em algo perigoso, se não fosse a lei e aqueles que têm por missão implementá-la [...] Só assim podem ser estabelecidas as bases de um tratamento humano ao infrator ”6 (p. 128). Ele desconstrói, portanto, nossa visão “boazinha” do tratamento. Para ele, a legislação e a justiça devem proteger o criminoso dos efeitos da vingança inconsciente e cega dos outros. Não seria algo disso o que está posto em jogo hoje na sociedade brasileira, nos horríveis casos de linchamento que ocuparam a mídia em tempos recentes? Uma sociedade que passa ao ato o desejo de vingança... No mesmo texto, Winnicott define uma função paterna “faltante”, ou falha, nos criminosos: Na delinquência plenamente desenvolvida [...] o que nos chama a atenção é a necessidade aguda que a criança tem de um pai rigoroso, severo, que proteja a mãe quando ela é encontrada. O pai rigoroso que a criança evoca também pode ser amoroso, mas deve ser, antes de tudo, severo e forte. Somente quando a figura paterna rigorosa e forte está em evidencia a criança pode recuperar seus impulsos primitivos de amor, seu sentimento de culpa e seu desejo de corrigir-se6. (p. 131)

Se o jovem fica inibido no amor, ele só poderá sentir a realidade da violência. Para Winnicott, o tratamento nesses casos não seria a Psicanálise, mas o “manejo”, precisando esses jovens ficar sob forte controle. Ele também nos indagou sobre nossas próprias limitações como psicanalistas, questionando se o que torna tão difícil receber esses pacientes em tratamento não é uma forma de resistência contratransferencial, desde que todos abominam ser roubados. Destacamos desta leitura a ênfase no papel da função paterna, geralmente pouco lembrada nas divulgações da obra do Winnicott, e a nossa reflexão sobre o quanto essas indicações tão valiosas são absolutamente ignoradas pelo sistema judicial e penitenciário brasileiro. Vejamos.

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Sobre políticas e serviços Se atribuímos os problemas de violência e agressões a uma falha na fase precoce e narcísica do desenvolvimento desses jovens, decorreria disso que as abordagens terapêuticas precisariam levar em conta uma postura de holding e manejo(b), que, sendo capazes de resistir às investidas agressivas desses jovens, seriam também capazes de limitar pela contenção, sem retaliar6,8. São capazes, ainda, de sobreviver a esses ataques (e aqui sobreviver significa muitas vezes ser capaz de se sustentar na função terapêutica). É essencial, como lembra Clare Winnicott6, que as crises possam ser atravessadas e não enfrentadas, no sentido de se passar por elas e não de reagir a elas. Porém, é exatamente o contrário do que vemos acontecer na prática. Ante o primeiro desafio lançado por esses jovens, em muitos serviços destinados a jovens infratores a “punição” utilizada é o desligamento do serviço. O que equivale – do ponto de vista simbólico – a não sobreviver, privando esses jovens, assim, da possibilidade da reparação. Às vezes, quando algum profissional bem formado suporta atravessar esse teste esperançado e duro, então, os frutos começam rapidamente a se manifestar clinicamente: os jovens começam a se implicar em seu tratamento, começam a ser capazes de lidar com a destrutividade por meio de atividades criativas (como esportes, pintura e música). Porém, muitas vezes, aí quando tudo começa a funcionar, esse profissional sai do serviço, ou as frequentes reorganizações do trabalho mudam as equipes de referência e o paciente é encaminhado a outro profissional com total desconhecimento do que está em jogo. A falta de continuidade e a fragmentação – neste tipo de caso – equivalem ao fracasso terapêutico. Esse aspecto tem se mostrado quase sempre falho nos serviços públicos brasileiros nos quais a rotatividade de pessoal tem sido parte da falência crônica do Sistema Único de Saúde. Poderia ser diferente, deveria ser diferente. Diz-nos Clare Winnicott, no prefácio da obra “Privação e delinquência”: O ponto de interação entre os que prestam e os que recebem cuidados é sempre o foco para a terapia neste campo de trabalho, e requer atenção e apoio constantes dos especialistas envolvidos, bem como suporte esclarecido dos administradores responsáveis6. (p. XV)

Não faz sentido atribuir a esses jovens falta de limites e organizar para eles serviços rígidos e cheios de regras, pois eles seriam “perversos”. Nem tampouco lhes receitarmos repressão policial. E mais, isso constituiria um erro clínico. Porém, faria sentido poderem ser acolhidos em casas de passagens, moradias protegidas. O adolescente de tendência antissocial necessita de um lar (ou substituto) no qual, sob o cuidado dos pais (ou substitutos), possa regredir ao estágio no qual se formou a tendência antissocial e, então, diante de um ambiente mais acolhedor, reparar a deprivação sofrida. Famílias com certa organização podem muito bem prover esses cuidados a seus filhos, como ilustra o próprio Winnicott em alguns de seus relatos de casos7. Isso tem sido praticamente impossível em um sistema que dissocia o cuidado clínico do manejo – Caps X Febem – sendo que em ambos os casos a força de trabalho tem dificuldade em assumir esse papel. Muitos trabalhadores que vão ocupar esses lugares nas Fundações Casa da Vida (nome dado à Febem no Estado de São Paulo, como se a mudança de nome garantisse a característica de lar) têm eles próprios problemas mal resolvidos com sua própria agressividade e se utilizam do lugar de poder não para encarnar uma função paterna severa e forte, mas sim uma 1096

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Holding e handing são dois conceitos centrais para Winnicott, frequentemente traduzidos como suporte e manejo. Caracterizam funções necessárias para a constituição de um sujeito humano. Winnicott os inclui no que ele chama de “função materna” e contribuem para desenvolver no bebê a sensação de continuidade de ser e segurança. (b)


função do patrão sádico. Insistindo: a figura da qual precisam esses jovens precisa ser firme, rigorosa e forte, mas também justa e amorosa. Outra questão que não contribui para o bom desempenho das instituições criadas para acolher esses jovens na realidade brasileira atual é a grande carga de responsabilidades colocada sobre funcionários que são chamados de educadores ou monitores, mas que carecem de educação formal que os habilite para lidar com essas questões e que não foram selecionados atentando para as qualidades pessoais que deveriam possuir. Winnicott6 falava que era muito importante que a seleção de pessoas para esses trabalhos fosse feita com muito critério e avaliando mais aquilo que a pessoa era (o grau de maturidade pessoal, diria ele) do que a educação formal que possuía. Concordamos. Porém, também destacamos que a educação formal pode oferecer dispositivos de reserva pessoal9,10, ou seja, recursos para retomar um contato defensivo – sempre necessário – com o próprio eu, e, assim, suportar as dificuldades do trabalho. Nessas organizações, também é muito raro os trabalhadores contarem com estratégias de supervisão institucional que poderiam ajudá-los. Assim, produz-se uma espécie de depósito dos duplamente excluídos da sociedade: jovens infratores e seus supostos cuidadores, que são isolados, sozinhos e lançados à encenação das próprias defesas e agressividade. O pai firme e forte que deveria ser o Estado brilha pela sua ausência. No caso brasileiro, isso se agrava por meio de mais violência e das falhas do amadurecimento que séculos de intensa desigualdade social contribuíram para produzir. Muitas mães, nas periferias das grandes cidades, já foram elas mesmas vítimas de falta de reconhecimento, carentes de um olhar que lhes servisse de espelho8. Grande parte dessas famílias são monoparentais, carecendo essas mulheres do respaldo e holding que um companheiro ou família poderiam propiciar, uma forma mais tranquila de se viver a maternidade. Muitas sofrem carências materiais importantes e a elas a política pública costuma somente prescrever regras (“faça isto ou aquilo”, “venha em tal ou em tal horário”), e não oferecer holding9,10. Se o Brasil quiser interromper essa cadeia infinita de desigualdade e exclusão precisa de investimento robusto e consistente em políticas sociais e de proteção para essas mães e jovens. Não somente nos faltam creches; faltam-nos boas creches. Não somente nos faltam vagas nos abrigos para jovens, mas também nossos abrigos violentam e não abrigam ninguém. As comunidades precisam de espaços culturais abertos à noite e nos fins de semana, cheios de propostas e atrativos para que os jovens possam se identificar. E nossas políticas precisam de continuidade e qualificação. Um último aspecto que vale a pena destacar é a desigualdade brasileira, não já no campo fartamente conhecido da vida econômica e social, mas em relação à justiça. Muitas das saídas violentas e agressivas de revolta a que temos assistido têm a ver com uma espécie de rolar solto – na pura atuação – da sensação de vingança inconsciente da qual nos falou Winnicott. Uma atitude de linchamento que se sustenta na falta de esperança de que a justiça realmente será feita. Finalizando, pelas argumentações que tentamos construir, defendemos a necessidade de repensar as políticas públicas para esses jovens infratores com investimento na capacitação e supervisão clínica dos trabalhadores que cuidam deles, para que abrigos, residências e repúblicas protegidas possam cumprir seu papel reparador e não punitivo. Se isso for feito, milhares de jovens retomarão seu papel social de recriar as coisas dos homens na pólis. Produzindo, criando, criticando. Para que não percamos a esperança, vejamos em uma pessoa socialmente útil e criativa a confissão de suas condutas antissociais na infância e juventude: “Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia meu desejo de possuíla como uma coisa só minha”11 (p. 361). Ela e uma amiga entravam correndo no jardim, colhiam uma rosa e fugiam. Continua ela: Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava11. (p. 361)

Alguém a condenaria para sempre? 2018; 22(67):1091-8 1097

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Referências 1. Waiselfisz JJ. Mapa da violência no Brasil [mapa] [Internet]. Brasília: Flacso; 2015 [citado 3 Jun 2016]. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/ mapa2015_SumarioExecutivo.pdf. 2. Groarke S, Managed L. Managed lives: psychoanalysis, inner security and the social order. London: Routledge; 2013. 3. Woodward I. Towards an object-relations theory of consumerism: the aesthetics of desire and the unfolding materiality of social life. J Consum Cult. 2011; 11(3):366-84. 4. Caldwell L. Winnicott and the psychoanalytic tradition: interpretation and other psychoanalytic issues. London: Karnac Books; 2007. 5. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed; 1983. 6. Winnicott DW. Privação e delinquência. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005. 7. Winnicott DW. Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984. 8. Winnicott DW. A família e o desenvolvimento individual. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes; 2013. 9. Onocko-Campos RT. Psicanálise e saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. 10. Figueiredo LC, Coelho NE Jr. Ética e técnica em psicanálise. 2a ed. São Paulo: Escuta; 2008. 11. Moser B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosacnaify; 2009.

Onocko-Campos R. Comportamiento antisocial en los jóvenes como secuela de privación: contribuciones de la clínica winnicottiana para las políticas públicas. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1091-8. Este artículo, siguiendo una ruta entre el Psicoanálisis y la Salud Pública, utiliza diversas categorías de la clínica winnicottiana para repensar los abordajes de las políticas públicas brasileñas para los jóvenes infractores y sus familias. Hay muchos jóvenes que enfrentan problemas de violencia en el Brasil actual. Para el abordaje clínico psicoanalítico basado en las contribuciones de D. W. Winnicott, ese problema surge de una falla en la fase inicial, durante el desarrollo narcísico. El artículo también analiza los obstáculos de esas políticas en el contexto actual y busca proporcionar informaciones para obtener la eficacia deseada de esas prácticas y para proyectar procesos educativos adecuados para trabajadores sociales y de salud. Se espera contribuir para un entrecruzamiento incipiente, aunque fértil, de campos disciplinarios diferentes, colocando el Psicoanálisis de Winnicott en contacto con cuestiones urgentes de nuestro tiempo, como se ha visto en algunas publicaciones internacionales recientes en el campo.

Palabras clave: Jóvenes. Clínica psicoanalítica. Políticas públicas. Salud Pública. Winnicott

Submetido em 25/06/17. Aprovado em 17/12/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0230

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Análise da participação popular na política de atenção à saúde da pessoa com deficiência em Aracaju, Sergipe, Brasil Marcus Valerius da Silva Peixoto(a) Géssica Santana Santos(b) Gabriela Rodrigues Dourado Nobre(c) Ana Paula de Souza Novais(d) Paloma Martins Reis(e)

Peixoto MVS, Santos GS, Nobre GRD, Novais APS, Reis PM. Analysis of popular participation in healthcare policy for people with disabilities in Aracaju, Sergipe, Brazil. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1099-110.

The aim of the present article is to analyze the role of civil society in healthcare policymaking for people with disabilities in the municipality of Aracaju, Sergipe, Brazil. This was a qualitative study with semistructured interviews with representatives of the Council for the Defense of the Rights of People with Disabilities. The data were analyzed according to thematic content analysis. The results show that the representatives held diffuse understandings of the concept of disability, shifting among existing paradigms. Special mention goes to the difficulty presented by the representatives to propose issues for the local political agenda and participate in the creation and implementation of public health policy, creating a gap between social control organizations and public management.

Keywords: Health policymaking. Social control. Public policies.

CC

BY

Este artigo objetiva analisar o papel da sociedade civil na política de saúde da pessoa com deficiência no município de Aracaju-SE. Foi realizado um estudo qualitativo com entrevistas semiestruturadas com representantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoas com Deficiência. Os dados foram analisados de acordo com a análise temática de conteúdo. Os resultados demonstram que o entendimento da concepção da deficiência, por parte dos representantes da sociedade civil, é difuso, transitando entre os paradigmas existentes. Foi notável a dificuldade dos representantes em propor temas para a agenda política no âmbito local e participar na formulação e implementação da política pública de saúde, criando um distanciamento entre os órgãos de controle social e gestão.

Palavras-chave: Formulação de políticas de saúde. Controle social. Políticas públicas.

Departamento de Fonoaudiologia, Campus São Cristóvão, Universidade Federal de Sergipe (UFS). Av. Marechal Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze, São Cristóvão, SE, Brasil. CEP 49100-000. marcusvalerius@ufs.br; gessicaeng@ hotmail.com; gabbi_nobre@ hotmail.com; aninhanovais123@ gmail.com; palomamartinsreis@ gmail.com (a, b, c, d, e)

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ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA DE ATENÇÃO À SAÚDE

Introdução Ao longo dos anos, a deficiência foi vista como uma perturbação do funcionamento biológico, ligada a um atributo individual que tornava o sujeito incapaz de trabalhar e desenvolver tarefas cotidianas. No entanto, não existe uma sentença predestinada, mas, sim, um prejulgamento da sociedade que não está preparada para compreender as diferenças1. Segundo a Convenção Mundial sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”2. A deficiência é considerada, portanto, uma condição social caracterizada pela limitação ou impedimento da participação da pessoa com deficiência nos diferentes âmbitos de tomada de decisões na sociedade. As pessoas com deficiência possuem necessidades de saúde que precisam ser respondidas pelos serviços, programas e políticas de Estado, uma vez que estas necessidades perpassam pela acessibilidade, apoio psicossocial, aspectos gerais de saúde, autonomia e independência; equipamentos e tecnologia assistiva, informação, prevenção e diagnóstico precoce; reconhecimento de garantias e direitos; reencontro com atividades significativas, validação e ajuda nas estratégias de enfrentamento, e o vínculo com o profissional de saúde3. No Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, aproximadamente 24% da população brasileira declararam possuir algum tipo de deficiência4. Apesar da magnitude do problema, o Brasil possui um histórico de políticas de saúde fragmentadas no que diz respeito a esta população5-7. O Sistema Único de Saúde - SUS foi criado sob a premissa de que saúde é um direito de todos e dever do Estado, possuindo, como um dos seus princípios, o controle social, com a função de integrar a sociedade civil com a gestão pública na resolução de problemas e necessidades sociais. Desta forma, cabe à sociedade civil, mediante instâncias de controle social: exercer um efetivo controle dos governantes, moldando as ações do Estado, bem como exigir transparência no repasse dos recursos financeiros; conhecer as necessidades reais da população, instaurando um espaço fértil de diálogo mediante os conselhos de saúde8. A sociedade civil influencia diretamente as políticas públicas de saúde, podendo interferir na formulação, implementação e avaliação, visando à definição das necessidades em saúde de cada momento histórico, defendendo os interesses da coletividade e garantindo um maior comprometimento do governo9. Os espaços participativos podem ser tipificados em: Conselhos de Políticas Públicas, Conselhos de Fundos e Conselhos de Direitos, de modo que este último tem a finalidade de atender prioritariamente as necessidades de marginalizados do sistema político, movimentos populares e identitários. São conselhos que buscam políticas transversais por grupos específicos de situações em que pessoas têm seus direitos sistematicamente desrespeitados por meio de discriminação, seja explícita ou implícita10. O seguimento da pessoa com deficiência encontra, nos Conselhos de Direitos, um espaço de debates e lutas na busca da garantia da proteção social do Estado. A maior representação nacional consiste no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - CONADE, órgão superior de deliberação colegiada, criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento de uma política nacional para inclusão da pessoa com deficiência e das políticas setoriais de: educação, saúde, trabalho, assistência social, transporte, cultura, turismo, desporto, lazer e ações urbanas dirigidas a esse grupo social11. Um dos papéis do CONADE é fortalecer a rede de conselhos para que as pessoas com deficiência tenham espaços locais de protagonismo e participação direta na implantação e monitoramento das políticas públicas. O CONADE, assim como os conselhos municipais e estaduais, devem ter participação paritária entre membros do Estado (organizações governamentais) e sociedade civil (movimentos sociais e organizações não governamentais)11. A participação popular na gestão pública garante que os mais diversos movimentos sociais influenciem as políticas públicas com base nas demandas sociais, assegurando a democracia no país12. 1100

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No entanto, ressalta-se que a efetividade do controle social só será possível a partir do momento em que os conselhos se tornarem verdadeiramente um espaço de democracia participativa, ou seja, um espaço para interceder nos interesses e conflitos entre os mais diversos seguimentos da sociedade. Não se sabe ao certo os limites e possibilidades desses espaços representativos e qual a influência e conhecimento da sociedade civil no processo decisório. Assim, abre-se um leque de questionamentos acerca daqueles que representam o povo, exercendo o controle social13. A Organização Mundial da Saúde – OMS produziu o Relatório Mundial sobre a Deficiência em 2011, com o intuito de oferecer, aos governantes, líderes de Estado e à sociedade civil, o conhecimento de como melhorar a acessibilidade e igualdade de oportunidades, promover a participação, inclusão, autonomia e dignidade das pessoas com deficiência14. No mesmo ano, um conjunto de medidas foi publicado no Brasil, contidas no Plano Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, chamado de Plano Viver sem Limite, o qual se apresenta em quatro eixos: Acesso à Educação; Inclusão Social; Atenção à Saúde, e Acessibilidade. Cada ação presente nesses eixos é interdependente e articulada com as demais, construindo redes de serviços e políticas públicas capazes de assegurar um contexto de garantia de diretos para as pessoas com deficiência, considerando suas múltiplas necessidades nos diferentes momentos de suas vidas15. No âmbito da saúde, formulou-se a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, que tem como objetivo ampliar a integração e articulação dos serviços de reabilitação com a rede de atenção primária, especializada e hospitalar, promovendo atenção integral à saúde e a qualificação do atendimento às pessoas com deficiência16. A nova rede propôs colaborar com a superação de visões que privilegiem o reconhecimento da pessoa com deficiência exclusivamente pela lógica bioidentitária a partir da condição biológica e isolacionismo social5. Ressalta-se a importância da mobilização de grupos sociais para criar situações favoráveis, chamadas de “janelas de oportunidades”, na definição de problemas que envolve a participação do Estado e grupos sociais de interesse na demarcação de um assunto público por meio de intensa negociação. Existe um jogo de tensão entre as partes de interesse que permeia todo o ciclo de uma política pública, desde a entrada na agenda à sua formulação, implementação e avaliação17. Diante da criação de um marco político no campo da saúde da pessoa com deficiência, bem como do papel que os conselhos de direitos da pessoa com deficiência podem exercer na sociedade, este artigo teve como objetivo analisar a participação popular na política de saúde da pessoa com deficiência no âmbito municipal.

Metodologia Foi realizado um estudo de cunho qualitativo no município de Aracaju-SE. As técnicas e procedimentos para a produção de dados foram: entrevistas semiestruturadas aplicadas com os representantes das pessoas com deficiência, os quais atuam em espaços de controle social, a saber, o Conselho Municipal de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência. A representação dos atores está ligada aos movimentos sociais e organizações não governamentais. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para análise. Foram utilizados, também, diários de campo, com anotações, comportamentos descritos e reflexões. Foram entrevistadas sete pessoas (informantes-chave) no total. Optou-se por entrevistar exclusivamente os representantes da sociedade civil no sentido de produzir uma maior aproximação das pessoas com deficiência, dos seus movimentos e entidades, bem como evitar possíveis assimetrias de poder dos agentes públicos do Estado por ocuparem funções no aparato burocrático-institucional que venham a neutralizar ou anular interesses da sociedade civil. Os informantes-chave da pesquisa são caracterizados conforme os dados dispostos no quadro 1, incluindo: o tipo de entidade que o sujeito representa, a função que exerce (vínculo de trabalho assalariado, trabalho voluntário, militante ou dirigente), bem como se o sujeito possui ou não algum tipo de deficiência.

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ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA DE ATENÇÃO À SAÚDE

Quadro 1. Características dos participantes da pesquisa Informante A B C D E F G

Representação Organização não Governamental de Pessoas com Deficiência Intelectual Organização não Governamental de Pessoas com Deficiência Intelectual Movimento Social ligado às Pessoas com Deficiência Física Organização não Governamental de Pessoas com Deficiência Física e Intelectual Sem vínculo com Entidades Organização não Governamental de Pessoas com Deficiência Física e Intelectual Organização não Governamental de Pessoas Surdas

Função Trabalhador(a)

Deficiência Sem Deficiência

Voluntário(a)

Sem Deficiência

Militante Voluntário(a)

Deficiência Física Sem Deficiência

Militante Sem Deficiência Dirigente de Entidade Sem Deficiência Voluntário(a)

Sem Deficiência

Os sujeitos da pesquisa foram compreendidos como “atores sociais” com o potencial para: analisar determinada conjuntura política no âmbito nacional, estadual e local; propor temas para agenda; protagonizar o processo de formulação, implementação e avaliação das ações voltadas para a saúde da pessoa com deficiência, expressando as demandas sociais. As entrevistas foram transcritas e analisadas à luz da Análise Temática do Conteúdo de Minayo18. A análise se desdobrou em três etapas: 1a pré-análise, a qual foi composta por uma “leitura flutuante”, contemplando um contato intenso com o material e impregnação pelo conteúdo com um movimento entre as hipóteses iniciais e hipóteses emergentes. Foi realizada, também, uma segunda tarefa, que compreende a constituição do corpus, contemplando normas de validação mediante a homogeneidade e representatividade. Na 2a exploração do material, foram levantadas categorias, selecionadas as unidades de registro, e os dados foram categorizados de acordo com os temas. Foram criadas cinco categorias para análise e discussão: A trajetória dos atores; Concepção da política de saúde da pessoa com deficiência; Necessidades de saúde; Janela de oportunidades, e Conformação da agenda política.

Aspectos Éticos O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com o número 798.182. As participações foram voluntárias, com assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e Discussão Trajetória dos atores Uma vez feita a análise dos dados, foi percebido que os atores percorreram percursos distintos até se tornarem representantes da sociedade civil no tocante aos direitos da pessoa com deficiência. Um dado relevante foi o fato de a maioria dos atores não estar na condição de pessoa com deficiência, o que, em alguma medida, contradiz o mote encampado pela Convenção Mundial sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: “Nada sobre nós sem nós”. Foi observada a necessidade de se compreender melhor tal composição mediante a categoria da “trajetória dos atores”. Nesse sentido, vêm à tona três hipóteses de trajetórias que levaram cidadãos a se tornarem representantes das pessoas com deficiência. Foram traçadas três trajetórias a partir dos relatos obtidos: trajetória burocrático-institucional, trajetória ligada aos vínculos afetivos e, por fim, a transformação de um vínculo burocrático-institucional ou afetivo na trajetória de engajamento político.

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Trajetória burocrático-institucional

Alguns atores tornaram-se conselheiros devido a uma imposição institucional da entidade que eles vieram representar. Essa imposição induz ao pensamento de que uma parcela dos informantes-chave ocupa espaços nos conselhos em virtude do cumprimento de tarefas burocráticas delegadas pelas instituições, como é visto no discurso dos sujeitos A e B respectivamente: “[...] O que me levou a ser, foi pra preencher a vaga. Tinha uma vaga lá no conselho que tinha que ser preenchida por alguém do Instituto e eu fui, não tinha conhecimento de causa e fui parar lá [...].” (SUJEITO A) “[...] Bom, é... o que me tornou assim..., eu tenho que participar do conselho! Faz parte aqui da (instituição) grifo nosso a gente participar de todos os conselhos de direito que tem pra pessoa com deficiência. A (instituição) exige a gente seja conselheira [...].” (SUJEITO B)

Trajetória ligada aos vínculos afetivos A segunda hipótese é a de que os atores entrevistados se envolveram na causa da pessoa com deficiência por meio de vínculos afetivos, como possuir algum familiar ou amigo com deficiência. Os relatos de alguns dos entrevistados demonstram um elo direto com pessoas com deficiência, levandoos a ocuparem espaço nos conselhos, como representantes dessas pessoas. Podem ser observados nos trechos: “[...] já havia feito alguns trabalhos na associação de deficientes motores do estado, mas não assim de forma direta assim, indireta, mas com o tempo me afastei e percebi, por sempre estar na rua, vi muitas pessoas passando por determinadas situações e no advento de um amigo que era presidente do conselho em 2006 ter falecido e ele representava a mesma instituição que eu aqui no conselho, só que eu era atleta e precisava de uma pessoa pra poder fazer a representação no lugar do que havia falecido, na época era o presidente [...].” (SUJEITO C)

Transformação de um vínculo burocrático institucional ou vínculo afetivo no engajamento político No relato de parte dos entrevistados, foi observado que alguns deles estão inseridos na defesa dos direitos da pessoa com deficiência por terem se identificado com a luta do seguimento, mesmo na ausência da condição de ser pessoa com deficiência. Alguns deles trouxeram, em seu discurso, que o primeiro contato com os conselhos ocorreu devido à obrigatoriedade de suas instituições de trabalho. Entretanto, a partir do momento em que tomaram conhecimento sobre esse grupo social e permitiramse um envolvimento com as lutas em defesa dos direitos existentes, transformaram uma representação burocrático-institucional em um engajamento afetivo e político com os pares em defesa dos direitos humanos. “[...] isso é normal, gente comum como representante do governo, é então aí quando chega ofício solicitando representante da secretaria – e aí faço parte da secretaria de governo – quando aí o secretário me incumbiu pra representar a secretaria nesse conselho. Daí em diante, não só nesse conselho, como outros Conselhos... Conselho da Criança e Adolescente, Conselho da Mulher, só não o da terceira idade, mas o conselho... o Conselho, que é de alimentação também fiz parte, certo?! E agora as políticas e o que mais abraçou a causa foi o Conselho da Pessoa com Deficiência [...].” (SUJEITO E) “[...] A causa que eu acredito e também, porque eu já passei por algumas experiências. Já trabalhei com surdo, já trabalhei com autista e agora trabalho com deficiência intelectual. São 2018; 22(67):1099-110 1103

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ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA DE ATENÇÃO À SAÚDE

down... síndrome de Asperger. O interesse... por que assim... eu me considero em descobrir também, não só porque abraço essa causa, porque eu desenvolvo um trabalho que é voltado para pessoas com deficiência, né?! [...].” (SUJEITO D)

Entende-se que a deficiência não é um marcador para a representatividade das pessoas com deficiência, como é visto na heterogeneidade das trajetórias dos atores. Esses diferentes caminhos podem se refletir no comprometimento desses sujeitos junto às pessoas com deficiência, porém a trajetória não é um fator de exclusão nesse engajamento. Nota-se que o fluxo percorrido pelos atores, em alguns casos, pode ser um elemento facilitador que cria subsídios para o reconhecimento enquanto sujeito político; ou pode criar um obstáculo para alavancar as discussões de temas políticos tanto nos espaços dos conselhos como nas instituições, devido ao baixo nível de reflexão e interesse de alguns representantes. Percebe-se que as relações com o objeto em que são imersas podem ser criadas por meio da coalizão integrada para além dos marcos normativos em que sujeitos se constituem, a partir de um habitus advindos da constituição coletiva19. No caso das lutas da pessoa com deficiência, existe uma bioidentidade marcada na condição da deficiência que pode ser um facilitador para a organização política pela vivência real dos processos de exclusão; mas também existe uma necessidade latente de proposição de pautas que agreguem o grupo em torno de um movimento político independentemente das marcas no corpo5. Um estudo sócio-histórico analisou a gênese da política de controle da aids no Brasil e recorreu à sociologia reflexiva de Bourdieu para a compreensão do espaço, agentes, trajetórias sociais, disputas e interesses. A trajetória social, no caso dessa política, surge como um importante elemento para a compreensão dos principais interesses e os acúmulos de capital científico, burocrático e político naquilo que os autores compreendem por “Espaço Aids no Brasil”. A pesquisa demonstra grande heterogeneidade dos agentes, e que a participação de militantes de movimentos sociais e do movimento sanitarista tiveram grande importância na constituição do espaço Aids20. Um estudo que analisou a formulação da política de saúde da população negra em Salvador à luz do Ciclo da Política revelou que os grupos sociais que atuaram na composição da política são muito heterogêneos; mas que, no entanto, muitos destes atores transitaram, ao longo de sua atuação, entre os espaços governamentais e não governamentais, o que reflete, inclusive, certa capacidade de mobilização e pressão política por parte das organizações da sociedade civil sobre a burocracia estatal, influenciando o trabalho dos técnicos e consultores da política, bem como as decisões dos gestores e coordenadores de programas e projetos. Assim, os atores envolvidos conseguiram dar visibilidade a problemas historicamente negligenciados e incluí-los na agenda política da saúde21. Um estudo do tipo survey, realizado com 29 conselheiros de direitos da pessoa com deficiência e 21 especialistas em políticas públicas e gestão governamental, apontou que, para os conselheiros, a deficiência é uma questão social que deve ser compartilhada na sociedade; ao passo que, para os gestores, trata-se, sobretudo, de uma tragédia pessoal circunscrita à esfera individual e familiar. Foi considerado que a maioria dos conselheiros possuía alguma deficiência, em contrapartida aos gestores, que não possuíam. Portanto, o estudo mostra que a visão diferenciada pode se refletir de perspectivas diferentes em relação às formas de pressão sobre o Estado e à alocação dos recursos públicos7.

Concepção da política de saúde para a pessoa com deficiência Observou-se que as narrativas dos sujeitos transitaram entre dois paradigmas de relação da pessoa com deficiência com a sociedade, conceituados como Integração e Inclusão Social22. Para alguns entrevistados, a política pública de saúde se reduz a uma visão assistencialista com auxílios individuais e pontuais. Nos relatos coletados, afirmavam que o atendimento à pessoa com deficiência deveria ser feito em centros especializados e exclusivos para a circulação dessas pessoas, equiparando ao paradigma da integração, como é visto logo a seguir.

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“[...] vamos dizer aqui é só para pessoa com deficiência, tem neurologista... tem... mas o público daqui vai ser só pessoa com deficiência, não sei se isso facilitaria [...] um centro. Pronto, pronto!! Um centro, certo, especializado [...] mas um centro especializado, entendeu?! Que ali não colocasse pessoas ditas normais... fosse só pra atender eles... que existisse um trabalho voltado mais pra isso [...].” (SUJEITO B) “[...] a gente aqui (instituição para pessoa com deficiência) conta com o trabalho de uma médica pediatra e a gente sempre colocou isso nos relatórios, porque a gente sempre achava que isso era um “plus”, esse trabalho da instituição, como a gente trabalha com criança, a gente tem um pediatra aqui, que eu acho ótimo, porque o que as mães mais reclamam é que tem dificuldade de encontrar pediatra em postos de saúde, no caso das pessoas com deficiência que tem dificuldade de marcar pra neuro ou pra psiquiatra [...] e a gente achava que isso era, sabe... o ápice da instituição [...].” (SUJEITO F)

Outro pensamento relatado por parte dos entrevistados é a concepção de direito da pessoa com deficiência. A visão de que as pessoas com deficiência são cidadãos, possuindo, assim, direitos e deveres garantidos pela legislação, apareceu nas entrevistas de conselheiros que agregam, em seus discursos, o paradigma da inclusão social, compreendendo a saúde e sua interação com outros aspectos sociais, como a educação. “[...] É um direito, né? E tá lá na Constituição, um direito de todo o cidadão ser muito bem atendido, de que não só as pessoas com deficiência chegue... possa chegar no posto encontrar sua fralda descartável, que encontre a sua medicação, que esse médico, que é da família, esteja fazendo a visita, tendo cuidado com essas famílias, o que está acamado, a pessoa idosa que precisa do cuidado que é outro... outra referência que a gente tem que tá cuidando também, certo, existe a mobilidade reduzida que não são tratados direito [...] a gente fala muito de saúde, mas se não tiver educação não existe a saúde, né... então em primeiro lugar a educação, educação para a inclusão dessas pessoas. Traçar essa política e essa conscientização também das pessoas, inclusive as famílias [...].” (SUJEITO E)

O reconhecimento de que todos são iguais perante o Estado, porém diferentes no âmbito da diversidade humana, tão discutido no paradigma da inclusão social, é defendido por algumas falas, apontando a presença de posicionamentos com o entendimento de que a deficiência é determinada pelo contexto social23. No Brasil, a transição de paradigmas da institucionalização, integração social até a inclusão social ainda ocorre de maneira lentificada, de modo que, nos dias atuais, o que se vê são espaços que se rotulam inclusivos, porém de forma fantasiosa, isolando sujeitos devido à falta de recursos tanto materiais quanto humanos.

Necessidades de saúde Observou-se que os atores possuem o entendimento de que as pessoas com deficiência, assim como qualquer outro grupo social, têm necessidades de saúde, trazendo, em seus discursos, que existe uma carência de serviços especializados de saúde e suprimentos da deficiência –que envolve medicamentos, sondas, próteses e órteses – que precisa ser suprida, como é constatado nos trechos: “[...] “por que falta fralda descartável?”, “por que falta sonda dentro dos postos de saúde?”, “o médico da família tá indo visitar esse deficiente que tá acamado?”, “idoso também, a assistente social tá indo também?”. Quer dizer, tudo isso é uma política que a gente tem que tá diariamente fiscalizando [...].” (SUJEITO E)

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“[...] no meu caso, né... a falta de atendimento especializado para o surdo, que não tem, em local nenhum a gente encontra um interprete de libras pra facilitar a comunicação entre eles e a pessoa da saúde [...].” (SUJEITO A)

Quando se fala em necessidades de saúde, os sujeitos apontam imediatamente para o que viria a ser suas demandas: as lacunas dos serviços de saúde e direito a insumos. No entanto, as necessidades de saúde ultrapassam esses limites3. No discurso dos representantes das instituições transparece um desconhecimento da amplitude do que se faz essencial às pessoas do grupo social ressaltado, se limitando às demandas exclusivas da deficiência e se igualando ao pensamento de indivíduos que acreditam que pessoas com deficiência só possuem necessidades no tocante ao corpo biológico, não acreditando numa vida plena e efetiva na sociedade. É preciso levar em consideração a convergência do discurso dos atores em relação às dificuldades no acesso e utilização dos serviços de saúde, e a necessidade de serviços especializados em reabilitação; no entanto as exclusividades de serviços podem também ser um obstáculo para a inclusão social, sabendo-se que, por mais que existam necessidades e demandas específicas, é preciso que os movimentos sociais e atores da sociedade civil se juntem em prol de um SUS para todos. Foi observada, também, a importância da legislação da política de saúde, porém é nítido, nos discursos, uma insatisfação na aplicabilidade e execução, especialmente pelas dificuldades de acesso. “[...] O SUS consegue abranger, consegue atender todo o suporte. Única coisa que todo mundo questiona, e é uma verdade, é a questão financeira do SUS, mas o SUS o programa, cobertura das necessidades, cobertura dos procedimentos, o SUS dar esse suporte sim [...].” (SUJEITO G) “[...] eu acho que na nossa lei, as políticas públicas da pessoa com deficiência, eu acho que tem tudo de bom, só falta funcionar. A gente não precisa fazer tantas coisas ainda. É só fazer que isso aconteça, verdadeiramente acontecer [...].” (SUJEITO D) “[...] Deveria é... funcionar de forma efetiva como realmente está no papel. Se ele funcionasse da forma que ele está, dá..dá formação de lei, nós não teríamos toda essa gama de problemas que nós encontramos hoje, da questão da prioridade, da falta de medicamentos, problema de atendimento com...com...com pessoas que não querem atender da forma adequada os pacientes [...].” (SUJEITO C)

Outro ponto a ser considerado é a crítica, por parte dos entrevistados, de que as políticas da pessoa com deficiência são formuladas sem a participação daqueles que vivenciam diariamente a deficiência, como é visto abaixo: “[...] meu olhar, as coisas, às vezes... agora assim, tem um novo olhar, diferente... as coisas deveriam ser construídas por aqueles que sentem a causa, que tem a dificuldade e não vim de alguém que nunca passou pela dificuldade da necessidade do uso de uma rampa, da necessidade de tá no posto de saúde [...].” (SUJEITO A)

Para que ocorra a efetividade da política, faz-se necessária a mobilização de várias instâncias, como de forças políticas organizadas (grupos sociais de pressão)17. Um estudo realizado no Brasil acerca do dilema da alocação de recursos públicos para a assistência à saúde das pessoas com deficiência observou que, em razão de sua vulnerabilidade, as pessoas com deficiência devem ser protegidas pelo Estado; e que, apesar da previsão de recursos já existente, a efetiva destinação destes depende de outros fatores, tais como a participação sociopolítica das pessoas com deficiência na pactuação das políticas de saúde7. A atenção às pessoas com deficiência transcende à garantia de direitos, ela exige a dignidade e respeito humano. É notório o prejulgamento sobre a identidade da pessoa com deficiência, com a negação das necessidades sociais e de saúde dessas pessoas, que ocorre tanto pela sociedade quanto 1106

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pelo próprio grupo social. A noção de deficiência é marcada pela insolubilidade do próprio grupo social, com marcas do individualismo de cada deficiência, o que sustenta, na maioria das vezes, o assistencialismo material e social23. Fica, portanto, um grande desafio colocado aos movimentos sociais ligados ao campo da deficiência, o de fortalecerem seus laços de identidade e proporem temas na agenda política de saúde; bem como, o Brasil, mediante o SUS, sobretudo seu ente gestor local, construir articulações para garantir um processo de formulação e implementação de uma política pública incluindo os diversos atores sociais.

Janela de Oportunidades A janela de oportunidades consiste em um conjunto de condições favoráveis a alterações governamentais, decisão e à entrada de novos temas na agenda24. Essas condições favoráveis são representadas pela junção de fatores como indicadores sociais e problemas concomitantes com as propostas de soluções elaboradas por especialistas e/ou funcionários públicos e o momento em que o governo vive sob a influência de pressões de grupos sociais24. O Plano Viver sem Limite pode ser considerado uma janela de oportunidades, pois foi criado enquanto resposta às pressões sociais para a discussão de novas propostas e espaço na sociedade para as pessoas com deficiência. No entanto, é preciso compreender que as políticas, planos e programas podem sofrer refrações no âmbito local, e por isso o seu processo de formulação e implementação é inacabado, já que existem determinações locais e correlações de forças entre os distintos atores. Os relatos coletados mostram que os entrevistados aparentemente possuem algum conhecimento sobre o Plano Viver sem Limite, porém eles não identificaram que essa oportunidade poderia ampliar a visibilidade das pessoas com deficiência, garantindo seus direitos por meio de novos projetos nas três esferas do governo. Seguem, abaixo, trechos: “[...] Quando a gente tem alguma coisa, a gente busca se tá dentro do plano, como é que não tá. Teve algumas ações voltadas pra inscrições de cursos para a pessoa com deficiência, mas depois morreu e ficou por aí mesmo. Entra em contato com o conselho municipal ou com a menina... acho que é (Maria) grifo nosso, que é do conselho de direitos humanos, que trouxe o plano pra cá, que detalhou pra gente[...].” (SUJEITO A) “[...] Esse ano mesmo a gente já teve fazendo visita na UBS... do atendimento até a acessibilidade, a gente tem todo esse olhar clínico, certo. E ainda tem outras pra fazer [...].” (SUJEITO E)

Coelho25 afirma que “a capacidade de um grupo social impor suas demandas nas pautas de negociação, ou seja, ter assegurado pelo Estado o enfrentamento de seus problemas por meio de políticas públicas, depende da conjuntura política e econômica. Contudo, é importante nesse processo formar sujeitos coletivos, constituindo-se autonomamente na esfera política para integrarem a base de sustentação e imporem projetos contrários ao do capital”25 (p. 146).

Conformação da Agenda Política Os atores ficaram divididos quanto à participação na agenda política, gerando dois grupos que compreendem de diferentes formas os espaços dos conselhos. Houve o entendimento do conselho enquanto “Espaço burocrático institucional”, uma vez que alguns dos atores entrevistados contribuem com a construção da pauta das reuniões ordinárias do conselho, com demandas pontuais e, na sua maioria, com problemas institucionais. Estes atores trazem, em seus relatos, que, na maioria das vezes, não solicitam a inclusão de assuntos na pauta, deixando a livre escolha dos temas abordados para a diretoria:

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“[...] na convocação, no exercício da convocação vem dizendo as pautas que vão acontecer. Quando a gente tem alguma coisa pra levar, leva e lá na plenária a gente abre... abre o espaço e expõe a nossa necessidade [...].” (SUJEITO A) “[...] nesse da pessoa com deficiência em particular a gente não tá nem tão ativo, porque a gente percebe que é um conselho tão compromissado com as questões que a gente meio que (risos) relaxa, sabe? [...]” (SUJEITO F) “[...] eu levo... eu levo algumas questões aqui... da, da instituição que trabalho [...] Tem um pai aqui, que tá precisando de uma sonda. Não conseguiu. Já tem 1 ano que ele não consegue pela saúde [...].” (SUJEITO D)

Os relatos conduzem à ideia de que os representantes das pessoas com deficiência são coadjuvantes, e não os protagonistas na produção de pautas das políticas públicas da pessoa com deficiência, assumindo os conselhos como espaços burocráticos institucionais para a resolução de demandas pontuais. Quando se trata dessa participação de representantes da pessoa com deficiência no controle social do SUS, foi constatado, nas entrevistas, que todos os atores participantes desta pesquisa afirmam a ausência dos mesmos nas reuniões dos conselhos de saúde, pois alegam não existir um convite aos conselheiros da pessoa com deficiência, não havendo, assim, a participação de nenhum representante da pessoa com deficiência nesses espaços. “[...] Não, que a gente termina achando que esses conselhos é que vão fazer essa intermediação, sabe?! Entendeu?! Que realmente, de fato você colocando agora, ficaria mais fácil se a gente chegasse dentro do conselho da saúde e colocar essas questões, diretamente [...].” (SUJEITO F) “[...] nós não temos nenhum contato com o Conselho de Saúde. Nem o municipal, nem estadual, nem de outra esfera. Desde que estou no conselho, que estou 8 anos, nunca veio nenhum contato do conselho de saúde, na verdade eles deveriam nos procurar pra podermos passar as orientações necessárias pra que foquem no conselho, pra poder prestar o serviço de qualidade, tanto às pessoas com deficiência, quanto a população em comum [...]” (SUJEITO C)

O primeiro passo para exercer o controle social é a plena participação nas reuniões dos diversos conselhos, pois é por meio dos movimentos sociais nesses espaços que há a construção da política de saúde8. O desconhecimento para a proposição de temas na agenda política gera um enfraquecimento da política existente ou a ser formulada, sendo assim marginalizada pelo próprio Estado. Sabe-se que a presença da sociedade civil nos conselhos de saúde é de grande valia para a melhoria do SUS, pois são nesses espaços onde são tomadas as decisões, havendo a construção e reformulações de políticas públicas de saúde. A ausência de representantes da pessoa com deficiência em espaços com poder deliberativo deixa ainda mais à margem da agenda política do governo as problemáticas para a garantia dos direitos desse grupo social, consequentemente, gerando um maior esquecimento quanto aos direitos da pessoa com deficiência.

Conclusão O entendimento da deficiência, por parte dos representantes da sociedade civil da pessoa com deficiência, é difuso, transitando entre os paradigmas existentes, com o destaque da integração e inclusão social. É necessário ascender o debate em relação à deficiência e construir caminhos convergentes que podem gerar um fortalecimento do grupo social, criando-se um cenário de lutas com propósitos mais coesos. 1108

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Foi notável a carência de propostas de temas para a agenda política por grande parte dos representantes das pessoas com deficiência, havendo um distanciamento na participação da formulação e implementação da política pública de saúde. Apesar de existir um caráter fiscalizador de políticas anteriores, os representantes das pessoas com deficiência não têm visibilidade do que pode ser melhorado ou modificado. Pode-se afirmar que existe um distanciamento dos órgãos que realmente têm o poder de decisão, dificultando a articulação de ideias de atores essenciais, como a sociedade civil e os gestores representativos do Estado. A mobilização e pressão política que parte dos movimentos sociais é de caráter decisório para a conquista dos direitos sociais, porém salienta-se a importância do engajamento entre os membros dos movimentos. Faz-se necessária maior articulação entre os próprios atores sociais, para assim defenderem as mesmas ideias do movimento social, ganhando força para superar a exclusão social existente na sociedade.

Colaboradores Marcus Valerius da Silva Peixoto e Géssica Santana Santos participaram ativamente no planejamento da pesquisa, coleta e análise dos dados, discussão dos resultados e aprovação da versão final do trabalho. Gabriela Rodrigues Dourado Nobre, Ana Paula de Souza Novais e Paloma Martins Reis participaram ativamente da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Diniz D. O que é deficiência? Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense; 2007. p. 324. 2. Resende APC, Vital FMDP. A Convenção sobre os Direitos das pessoas com deficiência comentada. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos; 2008. p. 164. 3. Othero MB, Ayres JR. Necessidades de saúde da pessoa com deficiência: a perspectiva dos sujeitos por meio de histórias de vida. Interface (Botucatu). 2012; 16(40):219-33. 4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. 2010 [citado 18 Jan 2017]. Disponível em: http://censo2010.ibge.gov.br 5. Campos MF, Souza LADP, Mendes VLF. A rede de cuidados do Sistema único de saúde à saúde das pessoas com deficiência. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):207-10. 6. Ribeiro C, Ribeiro M, Araújo A, Mello L, Rubim L, Ferreira J. O sistema público de saúde e as ações de reabilitação no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2010; 28(1):43-8. 7. Bernardes LCG, Maior IMMDL, Spezia CH, Araujo TCCF. Pessoas com deficiência e políticas de saúde no Brasil: reflexões bioéticas. Cienc Saude Colet. 2009; 14(1):31-8. 8. Correia MVC. Que controle social? Os conselhos de saúde como instrumento. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 164. 9. Rolim LB, Cruz RSBLC, Sampaio KJAJ. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saude Debate. 2013; 37(96):139-47. 10. Chaves AC, Souza D, Fiuza P. Arquitetura da participação no Brasil: uma leitura das representações políticas em espaços participativos nacionais. Inst Pesqui Econ Apl. 2012; 1735:7-42. 11. Perfil dos Conselhos de Direito da Pessoa com Deficiência. Brasília-DF: CONADE; 2014. p. 50. 12. Inês M, Bravo S, Valéria M, Correia C. Desafios do controle social. Serv Soc Soc. 2012; 109:126-50. 2018; 22(67):1099-110 1109

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ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA DE ATENÇÃO À SAÚDE

13. Gomes EGM. Conselhos gestores de políticas públicas: aspectos teóricos sobre o potencial de controle social democrático e eficiente. Cad EBAPEBR. 2015; 13(4):894-909. 14. Organzação Mundial da Saúde. Banco Mundial.Relatório mundial sobre a deficiência. São Paulo:SEDPcD; 2012. p. 334. 15. Presidência da República (BR). Decreto no 7.612, de 17 de Novembro de 2011. [Internet]. Brasília-DF: Diário da República, 1a série - no 116; 2015. p. 3901–2. Disponível em: https://dre.pt/application/file/67508032 16. Ministério da Saúde (BR). Portaria no 793, de 24 de Abril de 2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília-DF; 2012. 17. Pinto I, Vieira-da-Silva LM. Ciclo de uma política pública de saúde: problematização, construção da agenda, institucionalização, formulação, implementação e avaliação. In: Paim JS, Almeida-Filho N, editores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 69-81. 18. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 407. 19. Pinnel P. Análise sociológica das políticas de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 250. 20. Barros SG, Vieira-da-Silva LM. The genesis of the AIDS policy and AIDS Space in Brazil (1981-1989). Rev Saude Publica. 2016; 50:1-13. 21. Araújo MVR, Teixeira CF. A participação dos atores na formulação da política de saúde da população negra na cidade de Salvador. Physis. 2013; 23(4):1079-99. 22. Aranha M. Paradigmas da Relação da sociedade com as pessoas com deficiência. Rev Minist Publico Trab. 2001; 21:160-73. 23. Pereira S, Lima IMSO, Pinto I. Integralidade como eixo de atenção à saúde da pessoa com deficiência. In: Pereira S, Lima IMSO, Pinto I. Política públicas e pessoa com deficiência: Dieritos humanos, familía e saúde. Salvador: Edufba; 2011. p. 93-114. 24. Pinto I. Formulação de políticas públicas: a perspectiva da teoria do ciclo da política. In: Pereira S, Lima IMSO, Pinto I. Política públicas e pessoa com deficiência: Dieritos humanos, familía e saúde. Salvador: Edufba; 2011. p. 135-53. 25. Coelho JS. Construindo a participação social no SUS: um constante repensar em busca de equidade e transformação. Saude Soc. 2012; 21 Supl 1:138-51.

Peixoto MVS, Santos GS, Nobre GRD, Novais APS, Reis PM. Análisis de la participación popular en la política de atención a la salud de la persona discapacitada en Aracaju, estado de Sergipe, Brasil. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1099-110. El objetivo de este artículo es analizar el papel de la sociedad civil en la política de salud de las personas con discapacidad en el municipio de Aracaju-Estado de Sergipe. Se realizó un estudio cualitativo con entrevistas semi-estructuradas con representantes del Consejo de Defensa de los Derechos de las Personas con Discapacidad. Los datos se analizaron de acuerdo con el análisis temático de contenido. Los resultados demuestran que el entendimiento de la concepción de la discapacidad por parte de los representantes de la sociedad civil es difuso, transitando entre los paradigmas existentes. Fue notable la dificultad de los representantes en proponer temas para la agenda política en el ámbito local y participar en la formulación e implementación de la política pública de salud, creando un distanciamiento entre los órganos de control social y gestión.

Palabras clave: Formulación de políticas de salud. Control social. Políticas públicas. Submetido em 24/04/17. Aprovado em 09/09/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0206

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Relação entre trabalho especializado e técnico: o caso da ortodontia à luz da bioética clínica amplificada

Doris Gomes(a) Mirelle Finkler(b)

Gomes D, Finkler M. The relationship between specialized and technical work: the case of orthodontics from the perspective of amplified clinical bioethics. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1111-22.

In the reorganization of the oral health field, the transition to team relationships is an ethical-political challenge. This is an exploratory, descriptive and qualitative study, and gathered data through semi-structured interviews with 11 orthodontists who were examined through discursive analysis. The results disclosed ethical problems, such as the ideology of professionalism, confusion of competences with technical work, and hierarchy in opposition to the construction of leadership. Amplified clinical bioethics revealed a tendency to stick to traditional knowledge and procedures. The search to overcome commercialization and hierarchy suggests that practice is becoming comanaged and qualified for deliberation, based on solidarity, dialogue and cooperation, from undergraduate to lato sensu graduate courses.

Keywords: Oral health. Dentistry. Orthodontics. Job market. Bioethics.

CC

BY

Na reorganização da saúde bucal, percebese, como desafio ético-político, a transição para as relações em equipe. Aplicouse pesquisa exploratório-descritiva de abordagem qualitativa, que coletou dados por meio de entrevistas semiestruturadas com 11 ortodontistas, analisados por Análise Textual Discursiva. Evidenciamse problemas éticos como: ideologia do profissionalismo; confusão de competências com o trabalho técnico; e hierarquização em contraposição à construção de liderança. À luz da bioética clínica amplificada desvela-se uma tendência à persistência de saberes e fazeres tradicionais. A busca pela superação da mercantilização e hierarquização sugere uma prática cogestionada e capacitada à deliberação, a partir da solidariedade, diálogo e cooperação, da graduação à formação lato sensu.

Palavras-chave: Saúde Bucal. Odontologia. Ortodontia. Mercado de Trabalho. Bioética.

Associação Educativa do Brasil (Soebras). Rodovia Rafael da Rocha Pires, 3913, Sambaqui. Florianópolis, SC, Brasil. 88051001. dorisgomes@ bol.com.br. (b) Departamento de Odontologia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. mirellefinkler@ yahoo.com.br. (a)

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RELAÇÃO ENTRE TRABALHO ESPECIALIZADO E TÉCNICO: ...

Introdução A crise profissional da odontologia das décadas de 1980-90, como resultado da transição epidemiológica da doença cárie associada ao crescimento exponencial no número de cirurgiõesdentistas (CD) no Brasil, culmina com o esgotamento do tradicional modelo liberal-individual em consultório e na ampliação da competitividade interpares. A exigência de produtividade-lucratividade transforma a opção pelo trabalho especializado em necessidade de sobrevivência no mercado, grande parte, em novo formato clínico-empresarial que absorve Auxiliares (ASB) e Técnicos de Saúde Bucal (TSB) sob perfil tradicional de equipe de produção1. A ortodontia, uma especialidade historicamente acessível a poucos, tem apresentado um aumento significativo de sua abrangência populacional a partir da ampliação do acesso e formação de novos especialistas2, em novos formatos de equipes de trabalho. No setor público-estatal, a inclusão da Equipe de Saúde Bucal (ESB) na Estratégia de Saúde da Família em 2000, incrementada significativamente pela Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) “Brasil Sorridente” a partir de 2004, expandiu e reorganizou o serviço de atenção básica e especializada com implantação de Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias, incorporando a ortodontia e a implantodontia no serviço especializado, a critério da gestão municipal3. O tratamento ortodôntico no serviço público ganhou força com a Portaria Nº 718/SAS de 2010, que inclui, na gama de procedimentos dos CEOs, intervenções corretivas e preventivas das deformidades bucofaciais2. O serviço odontológico, construído como padrão moderno de saúde e qualidade de vida na junção do ramo médico denominado estomatologia com uma “arte dentária” prática e comercial4,5, foi consolidado sob o imaginário liberal-privatista nos moldes de um serviço clínico-individual e biomédico6, prestado por CDs e ancorado no hegemônico Estilo científico de Pensamento multicausalbiologicista7. Entretanto, sempre se manteve um mercado paralelo de prestadores informais da “arte dentária”, voltado às populações de baixa renda nas periferias dos centros urbanos ou nas regiões do país com escasso acesso aos serviços odontológicos legalizados. Consolida-se, assim, a histórica disputa de mercado da odontologia com o ofício de prático, tornando a categoria dos CDs fortemente corporativa no intento de alcançar a exclusividade da prática privada, e rejeitando, defensivamente e até os dias atuais, tanto a configuração legal e a incorporação do TSB em equipes de trabalho, quanto o trabalho cogestionado em equipe. Os TSBs e os ASBs tiveram definidas suas atribuições no ano de 2008, direitos e deveres dentro de novo enfoque em equipe: compartilhando conhecimento numa abordagem multidisciplinar e integral8. Regulamentados, podem atuar sob novas formas de organização do trabalho que solicitam diferente comunicação, linguagem e cooperação do saber, em relações sociais derivadas de um indivíduo coletivo produtor de conhecimento, relações e afeto9. Uma equipe que amplia substancialmente a produtividade, com redução de custos e otimização do trabalho, maximizando competências exclusivas do profissional em separado das competências do técnico e do auxiliar, demandando capacitação profissional diferenciada e qualificada em ambas esferas pública e privada da produção10. Um novo contexto produtivo que a saúde coletiva em intersecção epistemológica e prática com a Bioética deve desvelar e intervir, ressignificando esta nova práxis coletiva e a identidade dos profissionais da odontologia. Na atual conjuntura hegemonizada pelo modelo neoliberal, onde versa a concepção hedonista de ser humano e o Estado mínimo, são impostas restrições à saúde como direito, enfraquecendo a consolidação dos sistemas universais de saúde e o comprometimento dos trabalhadores da saúde com o democrático-dialógico e o coletivo-social. Assim, uma nova bioética, caracterizada pela intersecção epistemológica e prática aos preceitos da saúde coletiva11,12, questiona o enfoque principialista13 na resolução dos conflitos clínicos construídos em relações individualizadas e contratuais, por não responder aos desafios relacionados à participação social, qualidade de vida de populações vulneradas e universalidade no acesso à saúde. Questões cruciais para a construção de relações essencialmente democráticas.

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Partindo-se do referencial da Bioética Clínica-amplificada – que assume, como objeto de debate, a densidade das relações intersubjetivas entre profissionais, membros das equipes de saúde e usuários14 –, objetiva-se analisar problemas éticos surgidos no aperfeiçoamento dos novos processos coletivos de trabalho na odontologia, no âmbito dos serviços especializados.

Método Realizada pesquisa exploratório-descritiva de abordagem qualitativa, com coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas focadas em 11 CDs ortodontistas de um universo de 25 especialistas entrevistados, onde 9 eram formandos em um curso de ortodontia e dois em exercício. Os participantes foram acessados por critério de conveniência, a partir de um serviço público vinculado a uma Secretaria Municipal de Saúde da região sul do Brasil que autorizou a realização da pesquisa, previamente aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (n. 851.888, em 28/10/2014). A seleção da amostra se valeu do método “bola de neve”, em que as novas indicações de participantes foram feitas pelos já entrevistados, privilegiando sujeitos com as características necessárias ao conhecimento buscado, até a repetição de informações, sem acréscimos significativos. A entrevista foi guiada por um roteiro semiestruturado, gravada com auxílio de gravador de voz e, posteriormente, transcrita. Os resultados foram analisados pelo método de Análise Textual Discursiva15 por meio de: 1. desmontagem dos textos seguida de sua fragmentação em unidades de base; 2. estabelecimento de relações entre essas unidades formando sistemas de categorias; 3. nova combinação de sentidos expressados num metatexto, construído pelas próprias autoras e embasado na literatura; e 4. ciclo de análise com crítica e validação do metatexto.

Resultados e discussão A análise dos dados evidenciou que a odontologia caminha por uma transição na organização de seu processo de trabalho: de relações individualizadas profissional-paciente, para relações em equipe, ainda que centralizadas na figura do CD. “Sou a favor da inclusão do técnico no mercado de trabalho em larga escala. Eu acho que ele vem para ajudar o profissional. Esse trabalho deve ser coordenado pelo profissional, estabelecer as regras do que ele pode ou não fazer. Vejo com bons olhos também a relação desses profissionais com a ortodontia. Acho que o ortodontista pode ser ajudado por quem tem uma boa formação, fazendo o trabalho braçal. Cabe ao dentista o trabalho pensante.” (Esp. 11) “Antigamente não tinha que ter um técnico […] agora tem uma capacidade bem grande da gente trabalhar com eles e aumentar bem mais o nosso potencial de trabalho.” (Esp. 10) “Das especialidades, a orto é uma das melhores para se trabalhar com o técnico.” (Esp. 12)

No setor público, a adesão ao trabalho especializado nos CEOs assumiu novos arranjos organizacionais que aumentaram a importância estratégica das tecnologias relacionais. Uma nova convivência interpares é construtora de intersubjetividades: interespecialistas; entre especialistas e clínicos gerais; intraequipe (CD-ASB-TSB); interequipes (ESB-Equipe de Saúde da Família (ESF); e entre ESB e paciente-comunidade. Amplia-se uma nova divisão social do trabalho pautada na qualificação profissional por intermédio da acumulação de saber especializado, monopólio do serviço e preceitos éticos associados, que outorga, a trabalhadores com menor grau de formação, atribuições prescritas e supervisionadas, em ambientes de trabalho coletivizados, propícios às trocas multidisciplinares. Uma

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configuração em equipe que solicita espaço de mediação bioética na incorporação e compartilhamento de novos saberes e fazeres: novas tecnologias relacionais de respeito, solidariedade e diálogo que ultrapassam o âmbito dos princípios da ética biomédica14. Entretanto, constata-se forte contradição nas diferentes formas de atuação destas ESB, configurando problemas na compreensão do novo estatuto ético e legal no trabalho em equipe. Enquanto a quantidade de TSBs no serviço público carece, ainda, de ampliação para uma mudança qualitativa na racionalização do trabalho em SB e para aumento da abrangência populacional; no serviço privado da ortodontia, esta modalidade de trabalhadores começa a ser amplamente empregada sob o paradigma da produtividade-eficiência. Aponta-se que mudanças nas relações entre seus diferentes membros, de historicamente competitivas para mais solidárias, precisam ser incorporadas, também, no serviço especializado em equipe. “Sei que têm clínicas por aí que a THD (TSB) faz o papel do ortodontista. Não sei se pode, mas sei que colocam um especialista em orto e cinco THDs para atender a demanda, não sei se isso é ético ou anti-ético. Ali, elas colam aparelho, fazem a manutenção mensal, sabem medicar paciente. Uma coisa que a gente tem que tomar cuidado é na colocação desse limite. O problema é o controle do limite. Geralmente as atividades que elas fazem é o que os profissionais mandam elas fazerem.” (Esp. 6) “Funciona em lugares com uma rotatividade maior de pacientes com várias cadeiras, aí você monta toda a estrutura para isto, contrata 3, 4, 5 técnicos e você entra só para fazer as trocas de arco. Isto eu já vi, não faço, morro de medo […] consegue dar sequência para os tratamentos sem aquele controle ideal, em função de você ter muita gente deixando tudo pronto, fazem higienização, tiram braquetes quebrados, a borrachinha e o fio, deixam a boca prontinha para o dentista chegar e botar arco novo e muitas vezes elas mesmo já…” (Esp. 1)

Estudos constatam que diversos procedimentos não permitidos pela legislação brasileira referente a atribuições do TSB e ASB estão sendo delegados por ortodontistas à equipe auxiliar, nem sempre acompanhada por supervisão direta ou indireta; que uma minoria de especialistas consegue indicar corretamente qual legislação regulamenta as atribuições de ASB e TSB16; e que, apesar de a maioria do corpo auxiliar possuir curso de formação específica, recebe “treinamento” dos especialistas17. São constituídos importantes problemas éticos nestes cenários de novas relações de trabalho, em especial, em uma clínica-empresa (convencionalmente chamada “popular”) que emprega especialistas e técnicos para aumento da produtividade. Nesta lógica empresarial, a ética acaba sendo entendida como um código de condutas definido de acordo com objetivos da empresa (clínica). Os modelos de trabalho centralizados na figura do CD e em interesses particulares, normalmente, significam adesão a uma ética relativizada, onde prevalecem relações do tipo patrão-empregado, em ambientes com exacerbada pressão gerencial por lucratividade e em uma clínica que confunde orientação, liderança e trabalho em equipe, com mando e subserviência. Nestes ambientes, são delegadas ordens aos demais trabalhadores pelos CDs ou grupo empresarial, sustentadas por uma permissividade corporativa, que sugerem uma correlata relativização de sua competência ético-social. Em detrimento de uma possível produção coletiva assentada em relações solidário-dialógicas e de um comprometimento com as necessidades reais da população brasileira no campo do trabalho especializado, assume-se uma reestruturação produtiva pautada em complexa competitividade de mercado. Uma competitividade que toma o lugar da antiga competição, construtora de e construída por um indivíduo atomizado que passa a buscar ascensão social a qualquer custo, em um mercado sempre incerto18. Assim, o relativismo ético é contraposto a uma ética mínima – mínimos morais aos quais não se pode renunciar, sem renunciar, ao mesmo tempo, à própria humanidade19 – e a uma ética pública, fundamentada na existência de um interesse comum da sociedade para o bem-estar de todos e na busca por uma regulamentação legal das relações de trabalho20, das quais o profissional deveria estar imbuído.

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“Eu tinha certo preconceito, mas depois que eu percebi um profissional bem treinado… Eu tenho intenção de regularizar essa situação para que ela faça na forma mais legal possível.” (Esp. 5) “A parte clínica sou eu quem faço, não delego funções. Elas não trocam borrachinha, não passam fio, não fazem nada disso, a função delas é estritamente me auxiliar e me ajudar no controle geral do consultório. Com esse avanço das técnicas poderem fazer mais coisas, acaba nos atrapalhando, porque daqui a pouco elas vão estar competindo conosco, como tem várias clínicas em que elas estão fazendo o trabalho do dentista.” (Esp. 7)

Coloca-se em xeque o desconhecimento da legislação sobre o trabalho do ASB/TSB ou sua desconsideração, bem como a aceitação de determinadas práticas consideradas “eticamente suspeitas”, já incorporadas ao cotidiano de trabalho do técnico na clínica ortodôntica. Mesmo que o especialista assuma papel protagonista por conta do predomínio de seu saber/poder e seu empoderamento na definição das atribuições dos demais da equipe, consolida-se uma autonomia ou autoridade clínica como fetiche, permitindo ao CD estabelecer competências, por meio de “treinamento”, ao corpo técnico-auxiliar, sem controle externo público (leis e códigos trabalhistas, de categoria ou normas do SUS). Uma “autoridade” com baixo compromisso social e eticamente negligente, preponderando uma confusão de papéis: do trabalho auxiliar como sinônimo de técnico e do técnico como um profissional não formado, um “prático”, conformando um desarranjo permissível à atuação de “não especialistas”. Uma postura profissional consubstanciada na incorporação de preceitos defendidos por autores conceituados no campo da ortodontia, como Alexander Wick21, de “treinamento” do serviço auxiliar, em que aprender a delegar funções e ensinar alguém a fazer os procedimentos são ações preconizadas como necessárias ao ortodontista contemporâneo. Entretanto, quando estes preceitos de “treinamento” do corpo auxiliar são acriticamente incorporados de realidades profundamente distintas da brasileira (em nível de desenvolvimento socioeconômico e cultural, iniquidades sociais e sistemas de saúde), influenciam o tratamento ortodôntico e estabelecem-se como padrão de comportamento moderno na clínica ortodôntica brasileira, sob uma compreensão distorcida dos parâmetros ético-legais atribuídos aos CDs e TSBs. Preconiza-se um amplo debate na categoria relacionado aos preceitos ético-legais vigentes do serviço auxiliar, relacionando características distintas entre países e sistemas de saúde, além do estabelecimento de possíveis adaptações às necessidades da clínica ortodôntica, no Brasil. Mesmo em uma realidade social com expressiva quantidade de profissionais ortodontistas, grande parte da população brasileira com necessidades de tratamento especializado ainda está impedida a este acesso, por sua condição de vulneração social. Sendo incipiente o tratamento ortodôntico público-gratuito oferecido, permanece, como negligência ética, um quadro de doenças ortodônticas preveníveis, mas não prevenidas. Questiona-se: qual a função ético-social da ortodontia brasileira, e qual o papel do especialista e da equipe auxiliar na prevenção e interceptação de problemas ortodônticos na população? Focando o olhar na necessidade de um maior investimento na ortodontia em nível sanitário por meio do SUS (prevenção e cura), chega-se ao importante papel clínico/ profilático, preventivo e promotor de saúde, desempenhado pelo TSB. Assim, faz-se urgente a delimitação de possíveis novas competências do trabalho técnico para aumento de produtividade na ortodontia, clareando preceitos ético-legais existentes na atividade clínica, tanto quanto o redescobrimento do papel principal do TSB no trabalho em equipe: o cuidado, a prevenção para além da doença cárie, e a promoção à saúde das pessoas. “[...] não sei muito bem o que a auxiliar e a THD podem ou não fazer, não tenho isso tão claro, a gente acaba tendo que treinar, mesmo que elas tenham o curso. Cada dentista acaba até criando um protocolo próprio. Muitas vezes elas têm que aprender a técnica do doutor. Mas já trabalhei em alguns consultórios onde elas eram muito bem treinadas e facilitavam muito a nossa vida, nesse consultório eu tive que me adaptar a elas, não eram elas que tinham que se adaptar a mim.” (Esp. 6)

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A possível incorporação de determinadas atividades da clínica ortodôntica como atribuições do técnico, instiga pensar sob quais parâmetros éticos e legais o especialista poderia assumir a responsabilidade do planejamento e da supervisão direta ao trabalho mais “braçal” do técnico, sem configurar infração ética, quando o Código de Ética Profissional define, em seu Art. 11, como infração: “delegar a profissionais técnicos ou auxiliares atos ou atribuições exclusivas da profissão de cirurgiãodentista”22. Especialmente, porque a Lei 11.889/2008 especifica, em seu Art. 3º, que o TSB e o ASB estão obrigados a se registrarem nos Conselhos de Odontologia e por eles serem regidos. A mesma lei, ao estabelecer, em seu Art. 5°, as competências do TSB, não inclui a possibilidade de realização de procedimentos não discriminados como: colocação ou remoção de braquetes, borrachinhas, bandas e fios ortodônticos, a não ser que tais atividades sejam consideradas parte da remoção do biofilme, na limpeza e antissepsia do campo operatório23. É fato que esta lei não opta pela positividade que poderia ter nesta questão tão substantiva e conflitante relacionada às disputas interprofissionais CDs versus TSBs, sempre envolvida em conflito histórico. As indefinições legais e corporativas acabam refletindo nas mudanças necessárias para incorporação de novas competências profissionais diferenciadas à equipe, resultado dos novos conhecimentos esotéricos e tecnológicos acrescidos no assenso da intelectualização e especialização e, também, dos exotéricos, constituindo zonas de superposição, indefinição e confusão de papéis com as profissões auxiliares. Os Conselhos profissionais, conduzidos pela ideologia do profissionalismo – discurso tradicionalista pautado na autonomia profissional, no credencialismo e no controle monopolista do mercado, entre outros –, sempre expressaram posições conceitualmente imprecisas, negando a racionalização do trabalho odontológico em equipe para resolutividade dos serviços em saúde. Assim, constrói-se uma negação puramente ideológica à incorporação de tecnólogos auxiliares, excetuando-se as clássicas relações de mando-obediência ao tradicional auxiliar de consultório24,25, além de forte adesão ao relativismo ético. O aumento crescente de novos CDs e, também, de ortodontistas, não acompanhado de um planejamento do sistema de saúde para alocação destes novos profissionais de acordo com as necessidades populacionais, incrementa consideravelmente a competitividade de mercado, acirrando ainda mais o conflito sobre os limites do trabalho na equipe, trazendo novas questões ao coletivo profissional: 1. como fazer acontecer um “treinamento” do serviço técnico-auxiliar, pelo ortodontista, sem prescindir das competências do TSB/ASB já previstas na legislação e preconizadas pelos cursos de formação destes trabalhadores da SB?; 2. como delegar práticas próprias da ortodontia ao trabalho técnico na realidade brasileira, sem submeter este poder-saber de “mando” à ética?; e 3. como ressignificar o trabalho em equipe subsumindo valores de mercado aos valores morais de responsabilidade social, diálogo e solidariedade? Respostas que reivindicam, para a Bioética, um debate transdisciplinar, para além da definição do status legal das relações entre CDs e TSBs, que redefina, conceitual e praticamente, desde a formação, as relações e diferenças entre: mando e diálogo; poder centralizado e cogestão; decisão individual e deliberação coletiva; hierarquia e liderança. “Tem uma colaboração, mas existe uma hierarquia, até porque é normal. Tem que ter alguém para comandar. É difícil fazer um trabalho sem ter alguém para gerenciar.” (Esp. 8) “Prevalece a cooperação. É bem tranquilo trabalhar, tanto no posto de saúde como no consultório, todo mundo se dá muito bem. Claro, existe a hierarquia, não tem como não existir.” (Esp. 7) “É hierárquica, a experiência que eu tive, geralmente é assim: o dentista se coloca num patamar um pouco mais alto que dá as ordens. A técnica ou a auxiliar só obedecem. Não teve troca.” (Esp. 9)

Nas falas, a hierarquia é valorizada como um tipo de autoridade e responsabilidade em equipe, naturalizada como atribuição do CD e confundida, especialmente no modelo liberal de consultórios 1116

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ou clínicas privadas, com uma relação tipo patrão-empregado. A antiga personificação da ética beneficente paternalista, somada às responsabilidades civis ainda centradas no CD, mantém quase inalterada a caricatura de uma autoridade clínica que implica a existência de subalternos. Produto e produtora de relações sociais estabelecidas, a hierarquia aparece como habitus de um Estilo de Pensamento odontológico, entendido como uma estrutura estruturada e estruturante, geradora de conhecimentos, práticas e representações que coersionam a reprodução de determindado modus operandi26. Um modo de fazer resistente à construção de novos significados e papéis em equipe; de supervisão direta ou indireta de ASBs e TSBs pelos CDs; de gerência, liderança e responsabilidade coletiva. Assim, o predomínio de uma relação hierárquica, ainda repassada pelo modelo formador, começa a deixar evidente suas contradições e esgotamento, mesmo sob o ponto de vista da odontologia de mercado. A hierarquização constrói-se como conceito entrelaçado ao discurso da “autonomia profissional” – entendida como prática individual e liberal, com monopólio dos saberes-fazeres circunscritos à boca, fortemente corporativa e socialmente descomprometida –, que confere à profissão um status de produção independente, à parte da realidade social e sem nenhuma regulação para além das leis do mercado26,27. Mesmo em um contexto de terceirização gerencial, com intermediação das operadoras de planos e seguros de saúde; agentes empresários-administradores de clínicas forâneos à prática odontológica; e precarização das relações de trabalho que enfraquecem, cada vez mais, a dita “autonomia”, este discurso acaba reforçado pela ideologia contemporânea, individualizante e invisível da competência (eficiência e profissionalismo). Assim, a especialização assume forte viés técnicocientífico e competitivo, separado das competências éticas, humanas e sociais. O discurso meritocrático da competência, hegemônico do modelo (neo) liberal de clínica e profissão, voltado ao treinamento de mão de obra para o mercado, estimula uma ascensão profissional posicionada sobre forte hierarquia organizacional e social. Ainda reproduzida pelo aparelho formador, esta busca pela “competência” está construída sobre um utilitarismo hedonista, que camufla a produção de ideias como própria das “leis de mercado” e sustenta características da administração “científica”. Uma administração voltada à eficiência, erigida sobre rígida hierarquização de cargos e funções, com relação de status social e poder, que evidencia uma divisão social de classes, onde os que possuem saber, possuem poder. Serve, assim, ao estabelecimento de meios eficazes para obtenção de metas, sem espaço para se pensar coletivamente a quem devem servir tais metas, inclusive no setor público28,29. Esta meritocracia confronta a formação de sujeitos-profissionais pensadores (auto) críticos a partir de práticas reflexivas, pautadas em saberes transversais, como a ética, e em uma produção do conhecimento comprometida com as necessidades de saúde da população. Na procura por uma excelência no serviço odontológico, a superespecilização, consolidada neste saber-fazer técnico, dificulta a consciência da dimensão do indivíduo enquanto sujeito ativo de relações éticas e estéticas, desconsiderando a complexidade das relações humanas e suas conexões sociais9. Mesmo em um contexto em que ganha forças o novo paradigma da SB como um modelo de produção de saúde baseado no trabalho em equipe, integral e multi/interdisciplinar, ficam restritos os avanços possíveis a partir das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (2002). A graduação segue pautada no trabalho clínico fragmentado, reprodutor de antigos modos de fazer individualizados e voltados ao desenvolvimento de habilidades técnico-manuais, com objetificação do paciente/usuário e desvalorização da educação para a cidadania e a democracia. Assim, superar a velha referência teóricometodológica individual-fragmentada da competência e da hierarquia desde a formação, parece central para construção de novo paradigma na SB30,31. O tipo de formação ainda prevalente, baseada no antigo modelo instrucionista – de fora para dentro e de cima para baixo –, configura-se excludente por não efetivar a prática clínica a quatro ou seis mãos (sem incorporação do ASB e TSB); desincorporada de novas habilidades inter-relacionais31, com baixo potencial de desenvolvimento de competências para o trabalho em equipe; e mantenedora da integralidade e da clínica ampliada, como pontuais e isoladas. Práticas que resistem emperrando a construção de uma cultura valorativa de ações coletivas, em equipe, colocam em xeque os esforços para construção de uma SB consoante com os princípios do SUS32. Assim, o estudante ainda incorpora uma cultura social/profissional pautada em uma escala de valores autocentrados e em modelos de 2018; 22(67):1111-22 1117

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comportamento (identidade) estereotipados, onde a hierarquização é naturalizada33. Seja em virtude do saber-poder exercido pelos professores (de privilégio ao prestígio profissional); em virtude dos valores veiculados direta ou indiretamente pelo currículo oculto ou paralelo (conservadorismo e pragmatismo, subordinação ao mercado, desprestígio na escolha da carreira de generalista); ou por práticas de gestão hegemonizadas por um poder centralizado e unidirecional. Chega-se às seguintes reflexões: 1. quando a vivência em equipe – clínica ou não – passa a acontecer no cotidiano acadêmico somente nos programas específicos como Pró-saúde (Programa de Reorientação da Formação Profissional em Saúde) e Pet-saúde (Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde), será este contato suficiente para desencadear o compartilhamento de ações, a convivência e o fazer em equipe? 2. Como ensinar-aprender a desenvolver relações cogestionadas, quando mantém-se um contexto de desvalorização da formação humanística e democrática, com baixo estímulo à reflexão ética30? 3. Como desenvolver capacidade de liderança transformacional no trabalho34 que envolve compromisso, responsabilidade, empatia e habilidade para tomada de decisões, sem que o profissional prescinda de um comprometimento com o conjunto da sociedade brasileira? O olhar da bioética na ordenação da formação de recursos humanos em SB, voltado às relações inter e intraequipe, em uma categoria profissional imbuída pela ética da responsabilidade social e pelo trabalho cogestionado, está associado a uma ressignificação da solidariedade, do diálogo e do respeito mútuo, desde a formação. Quando parte dos profissionais se torna incapaz de solidarizar-se com o outro, ou mesmo, de comprometer-se com uma causa do outro – desconhecido ou social –, é preciso repensar as diferentes atribuições entre os membros da equipe de SB, para diminuir o fosso existente entre uma hierarquia de superpoderes profissionais/empresariais de um lado, e inter-relações cooperativas, comunicativas e solidárias, eticamente potentes e capazes de gerar uma maior satisfação no trabalho, por outro. Na transição de um trabalho clínico individualizado para o trabalho a quatro ou seis mãos, ao mesmo tempo em que o profissional procura manter uma autoridade/autonomia receando a perda de poder em uma relação pouco aberta à troca de conhecimentos e diálogo, ele encontra uma realidade de trabalho em equipe em que o outro-trabalhador detém, também, um saber técnico, empírico e humano. Neste contexto, novos desafios éticos são interpostos à mera ação técnica clínico-cirúrgica, pois o convívio com o outro deve acontecer sobre nova relação intersubjetiva, onde o cuidado apareça como ato relacional14,35 e o diálogo, entre todos e em todos os sentidos, como promotor da comunicação. Neste sentido, o âmbito do serviço liberal-privado também deve estar subsumido à dimensão pública de convivência com outros, favorecendo uma construção coletiva de mínimos morais que consideram a dignidade e a igualdade em termos de direitos humanos, e guiado por máximos sociais de justiça e solidariedade, construtores de nova comunicação para cogestão e o exercício da deliberação coletiva. Elma Zoboli36 aponta que o desenvolvimento de competências deliberativas nas equipes de saúde (conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes) seria um importante instrumento da bioética clínica-amplificada para aumento da qualidade na atenção à saúde. A deliberação, como um “meio de discussões e decisões feitas por um diálogo interpessoal, visa soluções prudentes e não a decisão ideal, certa ou que maximiza resultados”36 (p. 393). Para a ética guiar as ações individuais e sociais, tornando-se fundamental de forma transversal na formação profissional, os processos de deliberação ético-políticos devem se transformar em ferramenta pedagógica prática, ao ampliarem o sentido de justiça social e proteção, orientados de forma a transporem as fronteiras da relação profissionalpaciente, pelo sentido indivíduo-social. A competência deliberativa – por meio de uma formação continuada desde a graduação, sob nova abordagem pluralista da ética e buscando soluções para os problemas reais, pautada na vontade comum – solicita, ao especialista, ao Técnico e ao Auxiliar, exercerem a liberdade de participar das problematizações cotidianas, sem coerções a padrões restritos que impeçam a reflexividade. Além disto, implicaria uma educação para a cidadania e para a vivência democrática, questionando os próprios valores e as virtudes desejáveis, vinculados à justiça e ao respeito aos direitos humanos e ao diferente – igualdade e equidade, cidadania e solidariedade, qualidade de vida e prática do diálogo –, como meio de lidar com conflitos morais. Em conjunto com a construção científica e 1118

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o exercício profissional, o desenvolvimento moral requer relações intersubjetivas dialógicas para um posicionamento construtivo e verdadeiramente solidário, sem manipulação ou alienação dos participantes. Diferentemente de relações de mando-obediência, a solidariedade engajada pauta-se na busca pelo bem do outro e baseia-se em preceitos de alteridade, igualdade e reciprocidade, funcionando como um valor que precisa ser aprendido e praticado. Esta solidariedade expressa o exercício da liberdade individual e coletiva que prescinde e transcende prescrições e imposições de qualquer ordem, livre de paternalismos e autoritarismos. Para tanto, além da educação para uma cultura que forma uma identidade no ser solidário, necessita-se um exercício reflexivo sobre a própria prática, de forma consciente e comprometida com o outro e com os objetivos definidos em comum37. Assim, o debate do papel social contemporâneo do profissional da odontologia aponta para a humanização e a bioética como centrais na construção da reflexividade e no desenvolvimento da eticidade.

Considerações finais A especialidade da ortodontia amplia o acesso da população aos seus serviços, inclusive no atendimento público-estatal e incorporando o trabalho em equipe, assim fazendo-se necessários: 1. uma formação revestida de objetivos sanitaristas e responsabilidades ético-políticas que capacite o ortodontista à consideração e transformação da realidade social, desenvolvendo aptidões para o diálogo e a solidariedade, construtores da cogestão e deliberação coletiva, em benefício do aumento da qualidade de vida da população. 2. um posicionamento ético-político dos CDs de maior qualidade, que reconheça as reais competências e inter-relações entre membros da equipe, em especial com TSBs, clareando práticas clínicas consideradas “eticamente suspeitas”, relacionando características distintas entre países e sistemas de saúde, e estabelecendo possíveis adaptações às necessidades da clínica ortodôntica no Brasil. 3. amplo debate na categoria para reivindicar seu comprometimento social, buscando maior investimento no tratamento especializado público-gratuito, em especial, à população vulnerada. 4. maior investimento no trabalho preventivo da ESB sobre as doenças ortodônticas preveníveis, mas ainda não prevenidas, e na interceptação de problemas – redescobrindo o papel principal do TSB no cuidado, prevenção e promoção à saúde.

Colaboradores Doris Gomes participou ativamente da concepção e redação do artigo e da discussão dos resultados e revisão final; Mirelle Finkler participou da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. 2018; 22(67):1111-22 1119

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Gomes D, Finkler M. Relación entre trabajo especializado y técnico: el caso de la ortodoncia a la luz de la bioética clínica amplificada. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1111-22. En la reorganización de la salud bucal se percibe como desafío ético-político la transición para las relaciones en equipo. Se aplicó una encuesta exploratorio-descriptiva de abordaje cualitativo que colectó datos por medio de entrevistas semi-estructuradas con 11 especialistas en ortodoncia, analizados por Análisis Textual Discursivo. Se evidencian problemas éticos tales como: ideología del profesionalistmo, confusión de competencias con el trabajo técnico, la jerarquización en oposición a la construcción del liderazgo. A la luz de la bioética clínica amplificada se desvela una tendencia a la persistencia de saberes y haceres tradicionales. La búsqueda por la superación de la mercantilización y jerarquización sugiere una práctica co-gestionada y capacitada para la deliberación, a partir de la solidariedad, diálogo y cooperación, de la graduación a la formación lato sensu.

Palabras clave: Salud bucal. Odontología. Ortodoncia. Mercado de trabajo. Bioética.

Submetido em 11/05/17. Aprovado em 29/09/17.

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Análise do processo de acolhimento em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil: considerações de uma investigação etnográfica Carolina Pinheiro Moreira(a) Mônica de Oliveira Nunes de Torrenté(b) Vládia Jamile dos Santos Jucá(c)

Moreira CP, Torrenté MON, Jucá VJS. Analysis of the embracement process in a Child and Adolescent Psychosocial Healthcare Center: considerations from an ethnographic investigation. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1123-34.

The present article analyzes how children and adolescents are receveid by professionals at a Child and Adolescent Psychosocial Healthcare Center (CAPsi) in the municipality of Salvador, Bahia, Brazil. In an ethnographic study, institutional and clinical aspects were analyzed, starting with the arrival of first time users to the center and including referrals given to their cases. The following categories emerged from data analysis: the organization of the work environment, interdisciplinary work processes, psychosocial assessment strategies, and continuity of care. The manner in which the first meeting between users and professionals is organized and experienced is an important indication of how the patient-professional relationship will develop and of the responsibility taken by professionals for the cases that arrive at the center. Furthermore, the data show the specific need to invest in the education of mental health workers and the reorganization of work processes in the CAPSi.

Este artigo analisa as práticas de acolhimento a crianças e adolescentes desenvolvidas pelos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) do município de Salvador, Bahia, Brasil. Em uma investigação etnográfica, foram analisados os aspectos institucionais e clínicos envolvidos desde a chegada do usuário pela primeira vez ao serviço até o encaminhamento dado ao seu caso. Na análise, foram utilizadas categorias que se referem à organização da ambiência, aos processos de trabalho interdisciplinares, às estratégias de avaliação psicossocial e à continuidade do cuidado. Evidencia-se como a organização e vivência do encontro de usuários e profissionais no momento do acolhimento são importantes demarcadores para a forma de vinculação e responsabilização com os casos que chegam ao serviço, apontando também necessidades específicas para investimento na formação dos trabalhadores de saúde mental e na reorganização dos processos de trabalho no CAPSi.

Key words: Child and adolescent mental health. Embracement. Work processes.

Palavras-chave: Saúde mental infantojuvenil. Acolhimento. Processos de trabalho.

CC

BY

Psicóloga. Rua da Mouraria, 2, Nazaré. Salvador, BA, Brasil. 40040090. carollpinheiro@ hotmail.com (b) Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Salvador, BA, Brasil. monicatorrente11@ gmail.com (c) Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA, Brasil. vladiajuca@gmail.com (a)

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0500


ANÁLISE DO PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO ...

Introdução Os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) foram dispositivos propostos a partir de 2002, que, como as demais modalidades de CAPS, configuram-se como serviços de base territorial, de natureza pública, com a função de oferecer atenção em saúde mental com vistas à integralidade do cuidado¹. Os CAPSi têm a finalidade de atender casos de maior gravidade e ordenar a demanda em saúde mental infantojuvenil no seu território de abrangência. São prioritários os atendimentos de crianças e adolescentes com graves comprometimentos psíquicos (como autistas, psicóticos, neuróticos graves), incluindo aqueles decorrentes de uso de substâncias psicoativas e aqueles cuja problemática incida diretamente em prejuízos psicossociais severos, afetando a capacidade do sujeito de estabelecer ou manter os laços sociais em seu entorno e realizar projetos de vida2-4. Destaca-se aqui a necessidade de problematização sobre a denominação de “gravidade” dos quadros de sofrimento na infância e adolescência, distintos daqueles aportados para o público adulto, uma vez que os agravos vivenciados nesta fase da vida têm impactos mais profundos para o desenvolvimento futuro dos sujeitos. Compreendemos, nesta pesquisa, que o acolhimento, além de ser uma ferramenta que altera a ordenação dos processos de trabalho em saúde mental, configura-se como espaço privilegiado de expressão da heterogeneidade de concepções e valores em torno da atenção à saúde mental, permitindo acessar como as construções morais operam nas percepções em torno do sofrimento dos usuários e das práticas de cuidado escolhidas. O acolhimento representa uma das principais diretrizes da Política Nacional de Humanização do SUS e pode ser compreendido como o primeiro contato com quem procura o serviço, que tem nesse momento seus recursos postos à prova: quem atende, o que pode oferecer, como pode acolher, avaliar e discriminar a demanda5. O acolhimento deve ser também interpretado como um dispositivo relacional que, articulado ao estabelecimento de vínculo entre trabalhadores, usuários e gestores, edifica as possibilidades de efetivação da humanização do cuidado, transversalizando toda ação terapêutica do serviço6. É possível identificarmos distintas dimensões do processo de acolhimento: uma dimensão ética, referente ao compromisso de reconhecimento do outro em sua singularidade, em seu sofrimento, em suas potencialidades e em seu modo de vida específico; uma dimensão relacional, no desenvolvimento de habilidades que permitam receber, escutar e tratar as demandas com o estabelecimento de uma relação de confiança e apoio entre trabalhadores e usuários; uma dimensão técnica, que exige a articulação dos saberes da equipe multiprofissional, a fim de construir e articular respostas às necessidades identificadas nos casos acolhidos; e uma dimensão política, pois implica em um compromisso coletivo de potencializar nas relações a autonomia e protagonismo do sujeito; e, assim, assume a dimensão de reorientação do serviço. Nessa direção, o acolhimento ocupa um lugar central no projeto terapêutico institucional e, por isso, deve ser priorizado na organização dos processos de trabalho e cuidado e ser considerado nos processos de educação permanente das equipes, para que não se torne uma triagem burocrática7,8. Nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), sobretudo nos CAPS, o acolhimento apresenta-se como possibilidade de receber o sujeito em sofrimento mental em sua integralidade, indo além de uma avaliação psicopatológica e avançando na tentativa de compreensão do contexto vivencial, relacional e comunitário em que esse sofrimento se configura em sua especificidade. Dessa forma, podemos distinguir o acolhimento nos serviços de saúde mental em duas perspectivas interconectadas. Uma primeira perspectiva é institucional, pressupondo uma estética, um ambiente e formas de relação que facilitem o sentimento de pertença, segurança e acolhimento, que veicule a disponibilidade para o cuidado incondicional e que crie condições adequadas para a expressão genuína do sujeito. O acolhimento envolve também uma perspectiva clínica que exige habilidades técnicas e apropriação sobre o funcionamento do serviço e da rede de atenção e é capaz de viabilizar uma avaliação psicossocial que faça o delineamento inicial sobre a expressão e história de sofrimento e vulnerabilidade, indo além da identificação de sintomas, buscando a dimensão subjetiva destes, mas também vislumbrando ações e articulações concernentes às demandas apresentadas pelo sujeito e seus cuidadores. 1124

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Por reconhecer a importância do acolhimento nos serviços substitutivos, com destaque para o CAPSi, principalmente quanto à vinculação e à responsabilização sobre os casos, este artigo teve por objetivo descrever e analisar a organização institucional e os processos de trabalho envolvidos no acolhimento a crianças e adolescentes em sofrimento psíquico, desde a sua chegada na unidade até o encaminhamento dado ao caso.

Metodologia A partir do método etnográfico, foi realizada a imersão por três meses no cotidiano da instituição, observando, analisando e registrando em diário de campo as dinâmicas que se operam entre técnicos e entre estes com usuários e familiares, com enfoque no processo de acolhimento. A escolha pela etnografia deu-se por esta permitir o conhecimento das dinâmicas socioculturais e dos modos de subjetividade individual e coletiva forjados nas instituições e grupos sociais, com a apreensão da singularidade dos modos de produzir, conceber, significar e vivenciar das pessoas e grupos culturais. Nesse sentido, compreendem-se os fenômenos em análise como configurações sociais cuja construção está em íntima dependência da forma como o sujeito a vivencia e dos recursos que lhes são socialmente disponibilizados para lidar com as situações concretas9. Utilizaremos neste estudo a concepção proposta por Nunes et al.10 de que os CAPS devem ser compreendidos enquanto universos culturais próprios, com seus idiomas, práticas e significantes terapêuticos. Nesse contexto, as experiências individuais e coletivas são articuladas a partir do idioma cultural, expresso em recursos, mecanismos e significantes, capazes de produzir sentido e ação concreta. Os CAPS se constituem, nesta perspectiva, a partir da combinação entre uma orientação pautada em um modelo ideal, baseado nos pressupostos da atenção psicossocial e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, e das peculiaridades produzidas pelo seu contexto local e pelos atores que o constituem. Esta pesquisa foi desenvolvida em um CAPSi da cidade de Salvador. Como o município só conta com dois serviços especializados para atenção psicossocial de crianças e adolescentes, a divisão territorial entre eles é complexa, e, na realidade cotidiana, ambos atendem a todo o território municipal. No início de 2016, a equipe técnica era composta por 22 profissionais estatutários: três psicólogas, dois professores de educação física, três assistentes sociais, uma enfermeira, cinco técnicas de enfermagem, três terapeutas ocupacionais, uma farmacêutica, duas psiquiatras e dois oficineiros (profissionais de nível médio). Desse quadro de profissionais, três eram do sexo masculino e 19 do sexo feminino. O serviço era gerido por uma gerente administrativa (cargo de confiança política). Esse CAPSi contava ainda com grupos de estagiários dos cursos de Psicologia e Enfermagem e com residentes de um programa de residência multiprofissional em saúde mental – todos estes permaneciam em média seis meses no acompanhamento das atividades do serviço. No período de realização da coleta dos dados, os profissionais que assumiram o acolhimento (enquanto primeiro contato com os casos que chegam ao serviço) foram: uma assistente social, uma farmacêutica, dois oficineiros, quatro técnicas de enfermagem e, pontualmente, uma psiquiatra. Essa escolha era definida de acordo com a disponibilidade pessoal dos profissionais e buscava-se uma rotatividade periódica (a cada seis meses) dos profissionais nessa função. Para a análise dos dados, foram utilizadas categorias que se referem à organização da ambiência, aos processos de trabalho interdisciplinares, às estratégias de avaliação psicossocial e à continuidade do cuidado. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sendo observadas as recomendações e normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – Resolução CNS 466/12 – a respeito de pesquisas que envolvem seres humanos, e teve anuência da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador para sua realização. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, disponibilizando a publicação das informações produzidas nesta investigação.

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ANÁLISE DO PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO ...

Resultados e discussão Sobre o espaço acolhedor Sobre a chegada do usuário no serviço, destacou-se um aspecto reconhecido pela equipe como uma mudança recente de impacto positivo: a estética e ambiência do serviço. Esta unidade herdou o espaço físico de um ambulatório de saúde mental que funcionava nas instalações de um hospital psiquiátrico. Isso significa que, ao contrário do que é proposto pela Raps sobre os espaços físicos dos CAPS11, este serviço traz, em suas paredes de azulejo branco, aliado à pouca iluminação e às janelas altas gradeadas, marcas de um espaço manicomial. No âmbito da humanização da atenção em saúde, considera-se o local físico enquanto espaço social, profissional e de relações interpessoais, que deve proporcionar uma atenção acolhedora, resolutiva e humana na produção de ambientes que viabilizem, além de privacidade e conforto, a produção de subjetividades no encontro entre sujeitos para reflexão sobre os processos de trabalho e cuidado12. As mudanças recentes, operadas pelos técnicos e residentes multiprofissionais em atuação no serviço, incluíram a criação de espaços de livre expressão nas paredes da sala de espera, com lápis coloridos, tintas e revistas à disposição; afixação de artes e poesias; e pequenas mesas com cadeiras em que as crianças podiam desenhar, escrever e se expressar antes dos atendimentos. Aliado a isso, a realização de uma oficina de grafite deu novas cores ao muro que une o CAPSi ao hospital psiquiátrico vizinho. Outro aspecto discutido pela equipe foi o tempo e as filas de espera no acolhimento. No contexto desta unidade, a concentração do acolhimento em poucos turnos semanais implicava na limitação dos casos a serem atendidos. Tal circunstância acabou por gerar uma dinâmica na qual os usuários começavam a chegar até duas horas antes do horário de abertura do serviço para garantia de atendimento ou aguardavam do início do turno matutino até o início da tarde para serem atendidos. Por vezes, usuários com familiares residentes de bairros distantes tinham que retornar às suas residências sem terem sua demanda escutada. A naturalização do discurso sobre as filas de espera do SUS entre alguns profissionais confrontavase com a problematização feita por outros sobre o diferencial que precisava ser analisado no contexto de um serviço de saúde mental. O sofrimento vivenciado pelos usuários e familiares que buscam tal serviço é atravessado por uma urgência de escuta e acolhimento – assim, ainda que a resposta a ser dada implique em uma espera posterior, em ter que retornar em outro dia ao local, é importante que a equipe compreenda o acolhimento para além da realização de um procedimento, mantendo uma postura acolhedora diante da demanda apresentada e a avaliação prévia sobre a possibilidade de espera ou não13 do caso.

Sobre o profissional acolhedor Um aspecto técnico importante que merece destaque nesta discussão é a escolha dos profissionais que atuam como acolhedores. A realização do acolhimento é proposta como uma atividade do campo da saúde mental, que, ao assumir a complexidade do sofrimento psíquico, propõe sua compreensão a partir da transversalidade entre os saberes14, não devendo ser específica a nenhuma categoria profissional. Porém, ao atribuirmos ao acolhimento a importância de ser uma estratégia essencial para a avaliação inicial dos casos, para a construção de vínculo entre usuário e familiares com a instituição e para construção de respostas às demandas apresentadas pelos sujeitos, é preciso estabelecer a premissa de que não é qualquer profissional que pode assumir tal função. Apontamos aqui algumas habilidades relacionais, conhecimentos clínicos e a apropriação sobre aspectos do funcionamento do serviço e da rede de atenção integral que consideramos necessárias ao profissional atuante no acolhimento em um CAPSi. Entre as habilidades relacionais, podemos elencar algumas que se apresentam como fundamentais no exercício de receber um sujeito em sofrimento em um serviço de saúde mental. Peixoto et 1126

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al.15 apontam a empatia como elemento relacional que permite uma melhor compreensão da experiência do usuário e que favorece a relação entre este e o profissional, sendo fundamental para o desenvolvimento do processo de cuidado. A empatia é apresentada pelos autores como “sentir ou representar algo semelhante ao que é a experiência do outro” (p. 881). Outro aspecto é a disponibilidade para uma escuta atenta e para a interação com um sujeito que pode expressar seu sofrimento de forma difícil de ser compreendida, mas necessariamente possível de ser acolhida. Pinto16 avalia que o sucesso da clínica nos CAPSi parece estar atrelado à sua capacidade de “suportar as idiossincrasias do ser humano, não acolhidas em outros serviços, fazendo falar o sofrimento, ao invés de oferecer-lhe uma escuta surda” (p. 11). Atuar no acolhimento em um CAPSi envolve uma postura ética que pressupõe desconstruções de ordem moral, das significações elaboradas em torno do ideal de infância, adolescência, família e saúde. Exige do profissional um descentramento de sua habitual leitura de mundo para contextualização subjetiva e cultural da experiência do usuário15. Tensiona também o redimensionamento do lugar de saber-poder do profissional em relação ao usuário de um serviço público, com o respeito ao seu modo de vida e aos saberes produzidos sobre sua existência17. Essas desconstruções exigidas para o encontro genuíno com os sujeitos em sofrimento são essenciais para a emergência no usuário do sentimento de ser acolhido e, a partir daí, para a construção do vínculo. Sobre essa questão, ao discutir-se um caso de uma adolescente acolhida no serviço, uma profissional destaca: Às vezes as adolescentes chegam aqui maquiadas, bem-arrumadas, têm até namorado. Percebo que é difícil para a equipe reconhecer que uma menina dessas pode ter um sofrimento grave. É preciso escutar o que elas têm a dizer sobre como estão, o que sentem. Elas muitas vezes estão se cortando, tentam suicídio. É mais fácil para a equipe dizer que um caso é para cá quando chega todo desorganizado. (Diário de campo, novembro de 2015)

Maynart et al.18 afirmam que a não realização de uma escuta qualificada no acolhimento a um sujeito em sofrimento é capaz de produzir insatisfação no usuário e gerar sentimentos negativos em relação ao profissional e à instituição, bem como o bloqueio à expressão de seu sofrimento, aumentando os riscos e vulnerabilidades do quadro, com consequente agravamento do sofrimento mental. A disponibilidade à convivência e diálogo com a diferença dos modos de significar e agir dos sujeitos precisa ser vivenciada não só na relação com os usuários e familiares, mas também na equipe multiprofissional. É imprescindível assumirmos que, em equipes com essa diversidade de formações e experiências (profissionais e pessoais), confrontam-se diferentes valores morais, visões de mundo e referências culturais, o que acaba por gerar, por vezes, campos de disputa e tensão. Eventualmente, esse conflito ocorre no âmbito teórico-técnico, com confrontação de modelos de atenção e concepções sobre o cuidado, avançando inclusive no terreno ético, em momentos em que se confrontam a ética de manutenção da ordem da instituição e a ética do sujeito. No serviço investigado, o acolhimento aos usuários que chegam pela primeira vez é realizado por dois profissionais de categorias diferentes. Esse formato foi proposto pela equipe por compreender que tal espaço demanda uma multiplicidade de saberes, necessários para ampliar a capacidade de análise e de oferta de respostas às especificidades dos casos acolhidos. No período da investigação, observou-se que, na conformação das duplas, não havia a exigência de garantia de um técnico de nível universitário, com existência de duplas de profissionais de nível técnico e de nível médio de ensino (oficineiros). Sobre a necessidade de desenvolvimento de habilidades do campo da atenção psicossocial, é necessário afirmar que o trabalhador em saúde mental, além de ser um agente de cuidado, atua também como agenciador de uma rede de cuidados19. O cumprimento dessas funções exige do profissional que atua no acolhimento a capacidade de identificar a multiplicidade de demandas explícitas e implícitas no discurso, além do conhecimento dos dispositivos da rede intersetorial de atenção integral: suas ofertas, suas funções e fluxos. É preciso, ainda, que o profissional tenha no horizonte a concepção de que seu trabalho deve atuar no sentido da ampliação dos direitos dos usuários e de sua autonomia e cidadania. 2018; 22(67):1123-34 1127

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Apesar dos avanços produzidos pelo paradigma da atenção psicossocial sobre a complexidade da compreensão do sofrimento mental, a concepção de clínica ainda tem forte referencial no paradigma biomédico, com ênfase na avaliação de sintomas, associação aos quadros psicopatológicos e intervenções medicamentosas. Se, por um lado, o conhecimento psicopatológico não deve se restringir à decodificação dos sintomas a partir de uma nosologia que reduz a experiência do sofrimento a uma categoria, por outro, a apropriação de alguma teorização acerca da experiência do pathos é imprescindível. A ausência de uma perspectiva teórica a nortear o olhar e as ações do profissional no acolhimento inviabiliza uma leitura apropriada sobre o sofrimento apresentado, o que repercute nos processos decisórios subsequentes. Outra situação observada foi o acolhimento de casos que chegam em situação de crise no serviço, “crise” por vezes traduzida como tal a partir exclusivamente da constatação de um quadro de agitação psicomotora por parte da criança ou adolescente. Para os casos em “crise”, a prioridade de intervenção é pela psiquiatria, pois se compreende a necessidade de urgência da intervenção medicamentosa, geralmente anterior a qualquer outra tentativa de cuidado. Na ausência de um médico no serviço, foram observados, por vezes, casos encaminhados diretamente para atendimento na emergência psiquiátrica, logo ali ao lado: “nós não atendemos emergência porque não temos sempre médico”, disse uma profissional a uma família que chegava à recepção do CAPSi. É importante destacar o diferencial que a intervenção nas primeiras crises tem para o desenvolvimento posterior do quadro de sofrimento dos sujeitos nesta fase da vida, mostrando-se o acolhimento qualificado nessas situações uma chance valiosa para prevenção de novos episódios e do agravamento do caso20. Chama atenção a necessidade de empoderamento e capacitação da equipe para sentir-se capaz de lidar com os casos em situação de crise para além das estratégias de silenciamento dos sintomas e de isolamento, repensando as práticas de cuidado no sentido de aproximação com a complexidade e a incerteza que cercam as crises neste campo, com a articulação de ações na equipe e na Rede de Atenção21. Além dos desafios produzidos por essa especificidade da clínica da infância e adolescência, de nos remeter às nossas próprias experiências dessa fase e das relações vinculares que a constituem22, outras dificuldades são apontadas pelos profissionais, que atribuem ao acolhimento o potencial de produção de sofrimento para eles. O contato com as histórias de sofrimento, perpassadas por contextos de muita violência, diferentes vulnerabilidades e pobreza extrema, não raro gera angústia entre os profissionais que atuam no acolhimento, principalmente pela responsabilidade que lhes é atribuída para dar respostas às demandas, frente à fragilidade da rede de atenção, que possui poucas estratégias e serviços disponíveis. Uma técnica de enfermagem relatou em um de nossos contatos: A gente não teve formação para estar aqui. No nosso curso, saúde mental era hospital psiquiátrico. A gente caiu aqui e de repente tem que dar respostas para problemas muito graves. É suicídio, é estupro, é muita pobreza. Não conto quantas vezes me tranquei numa sala dessas chorando porque sofro com as histórias que escuto aqui. E muitas vezes a gente não tem para onde encaminhar, mas a gente vai fazer o quê? (Diário de campo, outubro de 2015)

O sentimento de impotência é mencionado em diversos momentos de compartilhamento dos casos acolhidos com o restante da equipe técnica. Nesse sentido, é importante que o serviço crie, além de estratégias de educação permanente que sejam capazes de ampliar a capacidade resolutiva dos casos pelos profissionais, intervenções de cuidado à saúde mental dos trabalhadores. Dessa forma, acreditamos que, em primeira instância, sejam prioritárias as estratégias de ampliação da participação dos trabalhadores nos espaços decisórios e, como propõe Elia23, o trabalho com o coletivo de profissionais no sentido de formação de uma “equipe de CAPS”, ancorada no desejo de atuação nesse espaço, com todas as nuances que esse serviço propõe em seu modelo de cuidado.

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O encontro entre acolhedor e sujeitos em sofrimento Sobre o encontro entre o profissional responsável pelo acolhimento e os sujeitos em sofrimento que chegam pela primeira vez ao serviço com seus cuidadores (genitores, outros familiares ou representantes de instituições), debruçamo-nos sobre dois aspectos principais: as estratégias de vinculação com os sujeitos em sofrimento e a forma de apresentação do serviço. Ao significarmos a produção de saúde enquanto movimento de responsabilização dos sujeitos e das comunidades sobre o cuidado de si e do outro, o direito à palavra torna-se princípio fundamental. “Ao falarem sobre si e ao se identificarem com suas próprias histórias, a criança e o adolescente veem possibilidades de encontrar novos significados e novas formas de inserção na sociedade e na família”4 (p. 23). Essa premissa clínica e política envolve um alinhamento ético dos técnicos que trabalham em um CAPSi, pois reconhecemos que socialmente há ainda uma tendência a negar às crianças a fala e a expressão dos desejos, assim como, por vezes, são desconsiderados seus sofrimentos. A priorização da fala das crianças e dos adolescentes no exercício de buscar uma linguagem que promova a comunicação (seja a linguagem verbal mais próxima do universo infantojuvenil, sejam outras formas de linguagem corporal, ou a utilização dos instrumentos lúdicos ou expressivos) foi observada como uma estratégia que permite melhor compreensão das queixas apresentadas, bem como a produção de autonomia e vinculação com os sujeitos. A disposição pessoal, observada entre os profissionais ao sentarem-se no chão para brincar junto com as crianças e ao criarem jogos com alguns recursos próprios para a expressão desse público, permite o distanciamento do discurso produzido pela família ou pelas instituições sobre o sujeito e a aproximação deste em sua expressão mais genuína. Um segundo aspecto do acolhimento foi o discurso produzido sobre o serviço pelos profissionais ao apresentarem o funcionamento da instituição aos usuários e familiares. Observou-se que o discurso ora era atravessado pela intencionalidade de promover a vinculação (nos casos que se compreendia que deveriam ser acompanhados no CAPSi), com falas no sentido de exaltar elementos de identificação do serviço com o sujeito, ora era afetado pela pretensão de não fazê-la, perante os casos que seriam encaminhados a outros dispositivos. Nesses últimos casos, conscientemente ou não, o discurso sobre o CAPSi tinha a potência de gerar o afastamento dos sujeitos em acolhimento do serviço. Identificamos narrativas como “não é justo colocar seu filho organizado aqui, com outros esquizofrênicos, com depressão grave”, que denotam que, na expectativa de frustrar a identificação de uma demanda interpretada como “leve” com o tipo de necessidade a ser assistida no CAPSi, acaba-se por promover um discurso que distorce a caracterização do serviço e ainda tem a capacidade de gerar estigmas em torno dos usuários por ele acompanhados.

Avaliação psicossocial do caso Outra dimensão do acolhimento é o seu intento de iniciar uma avaliação do caso. Para além da identificação de sintomas, típica do processo de avaliação em saúde mental em um modelo manicomial, a análise de um caso que chega a um CAPS deve contemplar a apreciação dos fatores de risco (variáveis que aumentam a vulnerabilidade para o desenvolvimento de uma psicopatologia ou para resultados negativos no desenvolvimento) e dos fatores de proteção (recursos pessoais ou sociais que diminuem ou inibem o impacto do risco) presentes na história e no contexto sociocultural atual do sujeito e de sua família. Os fatores de risco para problemas de saúde mental entre crianças e adolescentes podem ser agrupados entre os biológicos (problemas vivenciados na gestação, no parto, ou complicações clínicas na primeira infância); genéticos (histórico de transtorno mental na família); psicossociais (disfunções na vida familiar e na inserção escolar; perda de vínculo com genitores; ausência de vinculação a grupos sociais, baixos níveis de suporte social); eventos de vida estressantes (altos níveis de estresse familiar, separação dos pais, perda de pessoa afetivamente significativa, evasão escolar); exposição a maustratos (violência intrafamiliar, violência em contexto escolar ou comunitário, abuso físico ou sexual); e fatores ambientais (baixa renda, más condições de moradia, acesso limitado à saúde e à educação)24,25. 2018; 22(67):1123-34 1129

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ANÁLISE DO PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO ...

A identificação dos fatores de proteção é fundamental para a criação posterior de estratégias de cuidado, ao se configurarem enquanto potenciais para investimento terapêutico. Os fatores de proteção podem ser categorizados em atributos da criança (autonomia, autoestima, preferências), características da família (coesão, afetividade, clareza de regras e responsabilidades entre membros) e fontes de apoio individual ou institucional disponíveis para a criança e a família (apoio de outros familiares, suporte cultural, vinculação à instituições religiosas, etc.)24. A identificação dos fatores de risco e de proteção deve ser considerada em sua contextualização socio-histórica-cultural, em um esforço de não realizar a imposição de valores, referências e normas pessoais às famílias atendidas. Observamos que, nas entrevistas iniciais realizadas no acolhimento dos casos que chegam pela primeira vez ao CAPSi, são priorizados aspectos do desenvolvimento da criança (gestação, parto, desenvolvimento na primeira infância), da dinâmica familiar (relação com familiares e identificação das pessoas com maior vínculo, relação com a autoridade dos pais e separação ou perda de pessoas significativas), da inserção social (dinâmica escolar, realização de outras atividades de esporte ou cultura, organização do lazer e relacionamento com outras crianças ou adolescentes) e da rotina (alimentação, sono e atividades que realiza cotidianamente). Na escuta com familiares e instituições, é possível ampliar a leitura sobre o problema e, por vezes, desconstruir a demanda de cuidado especializado para a criança. Em alguns acolhimentos, por exemplo, foi possível identificar que o problema maior estava situado em uma crise no casamento dos genitores, ou na ansiedade da mãe em lidar com a vivência da maternidade, ou, ainda, nas dificuldades de manejo da família sobre as questões próprias da adolescência. Nesses casos, é importante que se acolha a demanda, que se construa junto com os sujeitos a ampliação da leitura do problema e que sejam dados os devidos encaminhamentos.

Os encaminhamentos Ao discorrermos sobre os aspectos do acolhimento em um CAPSi, não podemos perder de vista o exercício de seus dois papéis fundamentais: o terapêutico e o gestor, que o incumbe de desenvolver ações para conhecimento e ordenação das diferentes demandas que concernem à saúde mental da infância e adolescência no território sob sua responsabilidade3. Desse modo, recai sobre o CAPSi a responsabilidade de direcionamento para o cuidado adequado das crianças e adolescentes que chegam ao serviço, ainda que se reconheça que não é o CAPSi o lugar que responderá a essas demandas. É importante compreender que “o encaminhamento é necessariamente um procedimento clínico, em que o paciente e o profissional estão implicados na decisão institucional”16 (p. 25). Esse destaque é fundamental, sobretudo, para desconstruir a compreensão difundida entre muitos serviços públicos do encaminhamento como um mero trâmite burocrático. O encaminhamento deve ser realizado no caso de identificação de outro dispositivo que possa responder melhor às necessidades do usuário e deve ser realizado de forma implicada e corresponsável, com o acompanhamento pelo profissional que acolheu o caso no CAPSi até o atendimento e inclusão do usuário no outro serviço. Esse processo pode envolver comunicação interinstitucional, visitas para estabelecimento de parcerias, discussão de caso entre as equipes envolvidas, ou ainda o atendimento conjunto pelos diferentes dispositivos. É importante que a equipe reflita sobre estratégias que podem tornar mais efetivos os encaminhamentos realizados, impactando na redução dos longos itinerários realizados pelas famílias em busca de cuidado. O contato direto com outras instituições, com a discussão do caso acolhido e a garantia de disponibilidade do outro dispositivo de dar continuidade ao cuidado, tem chances maiores de gerar um encaminhamento efetivo do que a entrega de uma lista de contatos de instituições para as famílias fazerem a busca por conta própria. Um nó na rede identificado pelos profissionais do CAPSi é a resolutividade nos encaminhamentos com a continuidade da atenção nos outros pontos de atenção da rede. Com poucos serviços disponíveis e com longas filas de espera nos existentes, o encaminhamento dos casos sob a incerteza 1130

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de serem assumidos por outros pontos da atenção confronta-se com a impossibilidade de abarcar o cuidado desses no CAPSi. Porém, percebe-se no cotidiano do serviço que muitos casos, reconhecidos como de responsabilidade de outros serviços, acabam sendo acompanhados no CAPSi por não haver para onde encaminhá-los ou por não se confiar na capacidade de outro serviço ofertar o devido cuidado. Destaca-se aqui a necessidade de investimento contínuo do serviço no conhecimento dos diferentes dispositivos de cuidado a essa população, incluindo aqui aqueles de oferta nos campos da arte, esporte, lazer, cultura e iniciação profissional.

Considerações finais A etnografia do acolhimento no CAPSi permitiu a compreensão de como, para além da normatização que rege as práticas dos serviços segundo os princípios do SUS, configuram-se as tensões, ambiguidades e conflitos na conformação do cuidado neste serviço, regido por diferentes compreensões e valores em torno do sofrimento psíquico. A escolha do acolhimento enquanto espaço privilegiado para essa análise justificou-se pelo reconhecimento de que a forma de organização e vivência do encontro de usuários e profissionais neste momento é importante demarcador para continuidade do cuidado, seja nesse serviço ou em outras instituições. Foi possível nesta análise identificar dois aspectos centrais do acolhimento: a vinculação e a responsabilização. Observa-se que os modos de operar as relações (entre profissionais e usuários e entre os profissionais), e de apresentação da instituição (na concretude espacial e na produção do discurso sobre o papel e as possibilidades de intervenção do serviço), a forma de organização institucional (turnos e profissionais disponíveis para acolhimento, tempo e filas de espera) e como são dados os encaminhamentos dos casos acolhidos definem a possibilidade de vinculação do usuário ao serviço e/ou ao profissional. Essa vinculação pode ser traduzida na percepção do usuário de ser respeitado e acolhido em seu sofrimento e no seu reconhecimento da capacidade do serviço e/ou do profissional de oferecer respostas ao seu problema, ainda que estas sejam o encaminhamento para outro dispositivo ou estratégia de cuidado. Quanto à responsabilização, temos, em primeira instância, a necessidade de, desde o acolhimento, intervir na produção em saúde como movimento de responsabilização dos sujeitos sobre o cuidado de si e do outro, premissa inaugurada com o paradigma psicossocial ao deslocar o sujeito do lugar daquele que apenas sofre as consequências de seus conflitos. Esse movimento implica na necessidade de conferir a fala aos sujeitos em sofrimento: no campo da infância e adolescência, é necessário considerar ainda a mudança histórica, cultural e política da retirada da criança e do adolescente do lugar de objetos de disciplinarização e normatização para seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos. Em outra dimensão, o acolhimento apresenta-se como importante espaço de gerenciamento das demandas emergentes do território, o que implica no exercício de gestão da rede de atenção local para ampliação das possibilidades de resposta aos problemas apresentados pelos sujeitos que chegam ao serviço. A responsabilização do CAPSi não pode ser, assim, somente junto com os casos que potencialmente podem ser acompanhados nesta unidade, mas também daqueles que podem beneficiar-se de uma intervenção breve – como uma escuta qualificada, uma avaliação mais processual – ou de um direcionamento implicado para continuidade do acompanhamento em outro ponto da rede. Essa premissa aponta para a necessidade de o CAPSi atuar em seu território junto com os serviços de educação, assistência social, saúde e demais setores envolvidos no cuidado ao público infantojuvenil, no sentido de problematizar o processo de medicalização embutido nos encaminhamentos aos CAPSi, com o questionamento dos elementos contextuais (socioeconômicos, culturais, políticos, institucionais) dos enquadrados “criança-problema” ou “adolescente-problema”, que expressam problemas de ordem coletiva. Esse movimento envolve a desconstrução da demanda de acompanhamentos especializados e a criação de estratégias de abarcamento da expressão e vivência desses sujeitos, que rompem com o ideal de criança e adolescente “ajustado”, “adequado” às normas institucionais. 2018; 22(67):1123-34 1131

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Moreira CP, Torrenté MON, Jucá VJS


ANÁLISE DO PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO ...

Desta pesquisa, emerge a necessidade de discussão sobre o trabalho em saúde mental, no qual predomina a reprodução na formação acadêmica do modelo manicomial de intervenção em saúde mental, com centralidade nos procedimentos biomédicos e na relação hierárquica de poder entre profissional e usuário. Evidencia-se a demanda de um investimento maciço em espaços de educação permanente que intervenham na cultura profissional e institucional, expressa, por vezes, em discursos e práticas manicomiais dentro dos serviços substitutivos. Diante dessas considerações, assumimos o acolhimento enquanto um ato clínico, que exige conhecimentos técnicos e habilidades para sua operacionalização, mas também como um compromisso ético e político com as populações, enquanto estratégia de afirmação das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e como espaço de intervenção que deve direcionar-se à garantia do cuidado e proteção integral a este público.

Colaboradores

A autora Carolina Pinheiro Moreira participou, como autora principal, da concepção da pesquisa, produção, análise e interpretação dos dados e da redação do manuscrito, incluindo a discussão dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo. As coautoras Mônica de Oliveira Nunes Torrente e Vládia Jamile dos Santos Jucá contribuíram substancialmente em todas as etapas da elaboração do artigo, incluindo a discussão dos dados, revisão e aprovação da versão final do artigo.

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artigos

Moreira CP, Torrenté MON, Jucá VJS


ANÁLISE DO PROCESSO DE ACOLHIMENTO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO ...

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Moreira CP, Torrenté MON, Jucá VJS. Análisis del proceso de acogida en un Centro de Atención Psico-social Infanto-juvenil: consideraciones de una investigación etnográfica. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1123-34. Este artículo analiza las prácticas de acogida a niños y adolescentes desarrolladas por los profesionales de un Centro de Atención Psico-social Infanto-juvenil (CAPSi) del municipio de Salvador, Bahia, Brasil. En una investigación etnográfica se analizaron los aspectos institucionales y clínicos envueltos, desde la llegada del usuario por la primera vez al servicio hasta el direccionamiento dado a su caso. En el análisis se utilizaron categorías que se refieren a la organización del ambiente, a los procesos de trabajo interdisciplinarios, a las estrategias de evaluación psico-social y a la continuidad del cuidado. Se muestra como la organización y vivencia del encuentro de usuarios y profesionales en el momento de la acogida son importantes demarcadores para la forma de vinculación y toma de responsabilidad con los casos que llegan al servicio, señalando también necesidades específicas para inversión en la formación de los trabajadores de salud mental y en la reorganización de los procesos de trabajo en el CAPSi.

Palabras clave: Salud mental infanto-juvenil. Acogida. Procesos de trabajo.

Submetido em 03/09/17. Aprovado em 04/12/17.

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Suicídio, cultura e trabalho em município de colonização alemã no sul do Brasil Stela Nazareth Meneghel(a) Rosylaine Moura(b)

Meneghel SN, Moura R. Suicide, culture and work in a German-colonized municipality in the South of Brazil. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1135-46.

Suicide is a serious public health issue with increasing rates. The state of Rio Grande do Sul, Brazil, has a history of high mortality rates, mainly in regions colonized by German populations. The present investigation is a social case study, whose information was obtained through narratives of 14 informers from the health, agriculture, justice, public safety, social communication and education fields. The decisive factors for suicide reported by the informers were the German culture, protestant ethics and suffering at work, which affects family farmers who grow tobacco. The reflections of the interviewees point to suicide as a resource used in the culture of people who descend from German populations to cope with difficulties, which persists as a consequence of the introduction of capitalism in the countryside and the subordination of producers to the tobacco industry.

Keywords: Suicide. Work. Protestant ethics. German culture.

CC

BY

O suicídio é um problema de saúde pública de magnitude elevada e ascendente. No Brasil, o Rio Grande do Sul tem apresentado, historicamente, altas taxas de mortalidade, sobretudo em regiões colonizadas por alemães. Este é um estudo de caso social, cujas informações foram produzidas com base em narrativas de 14 informantes-chave, pertencentes aos campos da saúde, agricultura, justiça, segurança pública, comunicação social e educação. Os determinantes atribuídos pelos informantes ao suicídio incluíram: a cultura germânica, a ética protestante e o sofrimento no trabalho que afeta agricultores que trabalham com o fumo em regime de pequena propriedade familiar. As reflexões dos entrevistados apontam para o suicídio como um recurso usado na cultura desses descendentes de alemães para enfrentar as dificuldades, cuja frequência se manteve com a introdução do capitalismo no campo e com a subordinação dos agricultores à indústria fumageira.

Palavras-chave: Suicídio. Trabalho. Ética protestante. Cultura alemã.

(a) Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Unversidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua São Manoel, 963. Porto Alegre, RS, Brasil. 90620110. stelameneghel@ gmail.com (b) Curso de Enfermagem, Universidade de Santa Cruz do Sul. Santa Cruz do Sul, RS, Brasil. moura@unisc.br

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622017.0269


SUICÍDIO, CULTURA E TRABALHO EM MUNICÍPIO DE COLONIZAÇÃO ALEMÃ ...

Introdução O suicídio é considerado o ato humano de infligir a si próprio o fim da vida1, resultado de um ato deliberado e executado por uma pessoa com pleno conhecimento do desfecho fatal2. No Brasil, o Rio Grande do Sul apresenta, historicamente, os maiores coeficientes de mortalidade3-5, ocorrendo, sobretudo, com agricultores e em municípios de pequeno ou médio porte. O município de Santa Cruz do Sul apresentou a sétima posição no país, durante o triênio 2005-2007, mantendo tendência ascendente e configurando um grave problema de saúde pública 5,6. Entre os possíveis determinantes do suicídio, uma das hipóteses refere-se à influência da ética do trabalho presente na cultura germânica, já que municípios de colonização alemã apresentam elevada prevalência de suicídios. Durkheim7, estudando o suicídio em países europeus, encontrou altas taxas na Saxônia, uma região que fazia parte do Império alemão. Um século mais tarde, pesquisadores exploraram a relação que parecia ocorrer no Brasil, entre altas taxas de suicídio e municípios colonizados por alemães 8-11. Os imigrantes alemães que vieram para o Brasil eram, em sua maioria, luteranos, embora houvesse subgrupos de católicos. Para Durkheim7, as normas morais veiculadas por meio da religião, leis e costumes são responsáveis pela manutenção da coesão na sociedade; e, quando há quebra dessas regras, ocorre desestabilização, gerando uma situação denominada anomia, em que os laços de solidariedade ficam enfraquecidos, podendo haver aumento no número de suicídios. No Rio Grande do Sul, vários pesquisadores investigaram a presença do comportamento suicida em agricultores que trabalhavam com o fumo, a partir da pressuposição de relação entre uso de agrotóxicos, depressão e suicídio12,13. Porém, descendentes de alemães em municípios onde não há produção de fumo apresentam altas frequências de comportamento suicida8,9. Para Heck9, o mais importante não é saber quantos descendentes de alemães se suicidam, mas entender como esses remanescentes da colonização elaboram suas razões para resistirem na terra em que vivem frente às dificuldades de sobrevivência com a entrada do capitalismo no campo, diante da qual houve expansão do processo de assalariamento rural, empobrecimento e perda de autonomia14. A vertente teórico-metodológica denominada psicodinâmica do trabalho15 tem estudado o suicídio no ambiente laboral, embora o sofrimento gerado pelo trabalho e seus efeitos sobre a saúde mental e a vontade de morrer dos trabalhadores ainda seja pouco estudado. As situações que podem aumentar a incidência de suicídios no trabalho incluem: as recessões econômicas e os ajustes estruturais na economia que levam ao aumento de demissões, desemprego, falência e trabalho precário em contextos de superexploração16,17. Os novos arranjos do capitalismo, em sua etapa global, utilizam: a desregulamentação, a flexibilização, a terceirização, a precarização do trabalho em benefício do capital e em detrimento do trabalhador18. A micropolítica da sujeição é instrumento de controle para desestruturar, emocionalmente, os trabalhadores, além do estímulo à competitividade, à indiferença com o outro e à atribuição de culpa, pelo fracasso, ao indivíduo, gerando insegurança quanto à permanência no emprego ou à perda da terra. Em relação a esses contextos, emergem as patologias do medo, caracterizadas por angústia, mal-estar e ansiedade frente ao futuro, associadas ao aumento de suicídios relacionados ao trabalho19,20. A inserção da lógica capitalista na área rural acarretou uma das mudanças sociais mais profundas da segunda metade do século XX: a morte do campesinato21. Para Ianni22, o mundo rural encontra-se ocupado por empresas, corporações e conglomerados industriais, que transformaram os processos de produção para ampliar o lucro e a mais-valia. Essa mudança ocorreu e está acontecendo no meio rural brasileiro – o que Werlang23 chama de desruralização, processo em que os vínculos do agricultor com a terra são desfeitos e seu trabalho é expropriado em um cenário de exploração que atinge esse setor em âmbito mundial24. O sofrimento gerado pelo trabalho pode levar ao suicídio, assim como a falta de trabalho, o desemprego25. A perda do emprego é considerada incompetência do trabalhador e a culpa pela demissão é transferida ao próprio empregado. Assim, quando o suicídio ocorre em chão de fábrica ou 1136

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local de trabalho, como no caso de um galpão de fumo para o trabalhador rural, o ato significa uma denúncia das condições laborais 15,26,27. Em algumas regiões do Rio Grande do Sul, colonizadas por imigrantes alemães, como o município de Santa Cruz do Sul, há uma combinação de condicionantes socioculturais, econômicos e psicológicos, que aumentam o risco de suicídio. Dentre eles, pode-se pensar na ética do trabalho herdada pelos imigrantes alemães que vivem na região; na subordinação à agroindústria fumageira transnacional; na sobrecarga exigida pelo trabalho familiar nas pequenas propriedades produtoras de fumo, e no temor da perda da terra frente à entrada do capitalismo no campo. Frente a esse quadro, pode-se acrescentar a permanência transgeracional do comportamento suicida adotada para a resolução de problemas 28-31. O objetivo deste estudo é, portanto, a reflexão sobre a cultura alemã e a ética do trabalho como determinantes do suicídio, em um município colonizado por alemães e cuja atividade predominante está ligada à monocultura do fumo.

Metodologia Este é um estudo de caso social, em que se buscou conhecer, em profundidade, uma situação única, para aprofundar o que há nela de singular32,33, objetivando ampliar a compreensão do fenômeno em regiões similares. O caso selecionado foi Santa Cruz do Sul, um município de imigração alemã, com população de 126.775 habitantes34 e cuja principal produção é o fumo. Segundo o Datasus, o município apresenta alta mortalidade por suicídio e, em 2013, a taxa de mortalidade foi de 22,5 óbitos por 100.000 habitantes, em comparação com a média nacional de cinco óbitos para cada 100.000 habitantes. A produção de informações ocorreu por meio de entrevistas temáticas com 14 informantes-chave, que atuam nos setores: saúde (sete profissionais), agricultura (um funcionário da EMATER e outro do sindicato dos trabalhadores rurais), justiça (um promotor), segurança pública (um servidor) e comunicação social (um jornalista). Além destes, foram entrevistados dois pesquisadores, professores da Universidade local. Quatro informantes se consideram de etnia alemã e cinco são naturais do município. A seleção dos informantes foi ocorrendo ao longo da pesquisa; os profissionais de saúde foram os primeiros entrevistados, e os demais incluídos por indicação. As narrativas foram produzidas em entrevistas semiestruturadas com duração que variou de 30 a 90 minutos. As narrativas foram consideradas um constructo coletivo, pois, em sua elaboração, o narrador utiliza princípios e lógicas culturais, expressando crenças, opiniões e pontos de vista referentes à sociedade em que vive35. Assim, o sujeito, além de falar por si, fala do grupo em que está inserido, revelando ideias que circulam na localidade. Esses depoimentos, embora marcados pelos pontos de vista dos informantes, trazem elementos que auxiliam a compreender o fenômeno na sua dimensão local. Para a análise dos dados qualitativos, realizou-se uma leitura exaustiva das gravações das falas dos informantes-chave, e identificaram-se as atribuições causais mais significativas. Os informantes, ao falarem sobre o suicídio em Santa Cruz do Sul, remontaram ao passado, contaram e recontaram histórias da cidade e da colonização, teceram considerações sobre a cultura germânica, a ética do trabalho protestante e o trabalho com o fumo. Uma questão importante consistia em conhecer o ponto de vista desses informantes-chave sobre as causas dos suicídios. As respostas foram agrupadas em categorias: fatores individuais (psicológicos, relacionais, familiares e morbidades), fatores ligados ao trabalho (pequena propriedade rural, trabalho com o fumo, endividamento e perda da terra), fatores ligados à cultura (cultura alemã, ética protestante); e um informante podia indicar mais de uma causa e atribuir graus de importância a elas. Neste estudo apresentam-se fatores ligados ao trabalho e à cultura alemã. As narrativas foram agrupadas em, apenas, um conjunto, compondo um texto único, elaborado com base em muitas conversas, mas apresentado como se fosse uma única voz, como se tratasse da fala de, apenas, um narrador. Esse cuidado foi realizado para não identificar os informantes-chave e 2018; 22(67):1135-46 1137

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para potencializar as informações produzidas, na medida em que foram sendo acrescentadas a cada tema as várias perspectivas manifestas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o nº 25.922.

Cultura, trabalho e suicídio em um município de “alemães” do Rio Grande do Sul A visão de mundo dos colonos alemães Para apresentar o município em estudo, remonta-se ao processo migratório implementado nos estados do sul do Brasil com a vinda dos primeiros colonos alemães, a partir de 1824. Os alemães se estabeleceram em mais de uma centena de núcleos, onde houve a formação de sociedades camponesas com a economia baseada na policultura realizada em pequenas propriedades familiares36. Nas regiões de imigração alemã, a valoração do trabalho e da poupança como elementos-chave para atingir o êxito econômico afetaram não apenas os descendentes de imigrantes, mas todos os grupos étnicos que ali vivem11. A propriedade de uma colônia e o estilo de vida comunitário constituíram a identidade social do colono, que persiste até a atualidade36,37. As narrativas ouvidas reforçaram essa ideia: Antigamente, no meio rural se falava muito em ‘nervenkrankheit’ que em alemão quer dizer doença dos nervos. Isso parece reforçar a questão cultural, talvez os de origem germânica sejam mais exigentes consigo mesmos, possivelmente os luteranos se cobrem mais. Algo na cultura dos alemães faz com que o índice de suicídio seja mais elevado, comparando com cidades de origem portuguesa.

Essas constatações parecem se referir aos princípios da ética protestante, que Max Weber38, ao analisar o surgimento do capitalismo, encontrou em relação ao protestantismo, religião que, contraditoriamente, propunha a simplicidade e a frugalidade, mas utilizava essas características para aumentar a exigência frente ao trabalho e acumular riquezas. Cada um é responsável pelo êxito e pelos recursos financeiros que consegue acumular durante a vida, o que dificulta a aceitação dos reveses econômicos, já que a responsabilidade é individual frente à fortuna ou à ruína. A perspectiva weberiana38 da ética protestante em sua relação com o capitalismo acentua a ideia do trabalho como dever. Consequentemente, há uma relação entre trabalho e acumulação, que propicia a geração de lucro, condizente com o espírito do capitalismo. Os princípios morais da ética protestante valorizam a meritocracia e a livre iniciativa e consideram o lucro como sinal de eleição — visto que essa recompensa divina já estaria predeterminada, de acordo com a doutrina da predestinação. Os alemães que vieram para o Brasil trouxeram esses princípios em sua bagagem: o valor do trabalho, a conquista metódica da riqueza por meio do labor contínuo, da economia e poupança, a busca de bens materiais e o acúmulo do capital para agradar a Deus38. Dessa maneira, pode-se entender o sentimento trágico que assola esses homens e mulheres frente ao fracasso econômico, visto como devido à sua incapacidade de administrar os bens, e não é de admirar que se suicidem, como aponta o narrador: o protestante sempre diz que não é pecado ser rico, é bom ser rico, é bom o capitalismo. Ele não avalia a questão de explorar o próximo, do sucesso a qualquer preço, de oprimir o outro para ganhar mais. Mas, com a crise do capitalismo, a pessoa não vê mais a luz no fim do túnel, perde a esperança, não vê mais saída e se sente um ninguém, acha que morrer é melhor. Até que ponto essa compulsão que parece genética não é uma predisposição veiculada pela cultura?

Para Durkheim7, não se deveriam buscar as causas do suicídio em características individuais, já que o suicídio é um fato social e o que vai explicar o comportamento suicida é o ethos ou a visão de mundo de um povo ou grupo, pensado como o sentido que esse grupo dá a si mesmo, à vida e à morte. 1138

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Então, é preciso entender que elementos velhos e novos misturados influenciaram a visão de mundo desses alemães no Brasil; e como essa visão pode ajudar ou não nos embates frente aos novos processos de exploração do trabalho rural, com que se defrontam na atualidade9. Uma cultura de honra em que questões referentes à vida familiar, aos papéis de gênero, à identidade de pequenos proprietários rurais ou colonos, às decisões sobre o uso da terra são tensionadas pelas novas exigências do capitalismo. A masculinidade em sociedades rurais tradicionais está vinculada: ao estereótipo do homem provedor, do chefe de família que precisa sustentar a casa, demonstra força e coragem, decide o que plantar e quando vender, faz empréstimos e hipotecas ou veta qualquer empreendimento que lhe pareça arriscado39,40. Porém, quando esse homem perde a propriedade da terra e precisa migrar para a cidade, se não consegue trabalho, ele passa a ser considerado um incapaz e pode pensar em se matar, como conta o narrador, agora do setor saúde: Eu já tive pacientes com 20 anos de serviço que perderam o emprego e tentaram o suicídio. Para as mulheres não é problema, porque quando elas perdem o emprego de safristas, passam a trabalhar como faxineiras. Mas para o homem é diferente, ele é o chefe da família, então isso pesa porque quando ele vai para casa desempregado, ele não consegue olhar os filhos, a mulher. Passa o tempo e se ele não acha emprego, se sente diminuído e culpado porque a sociedade não admite que o homem fique sem trabalhar.

O narrador considera que “a perda do trabalho para as mulheres não é importante porque elas passam a trabalhar como faxineiras”, porém, na agricultura, a divisão sexual do trabalho significa que, além do cuidado da casa, dos filhos, da horta, dos animais domésticos, elas precisam auxiliar em todas as etapas do cultivo do fumo; e a sobrecarga pela dupla função de agricultoras e donas de casa produz adoecimento, mal-estar e até suicídio, mesmo em menores proporções que os homens31,40. Os descendentes de colonos alemães que vieram para o Brasil seguem mantendo tradições, costumes e modos de pensar vigentes desde a época da imigração, entre eles uma visão de mundo tradicional, compatível com sociedades de honra, na qual a ética do trabalho daqueles primeiros luteranos, ainda, parece estar presente. O trabalho nas pequenas propriedades rurais O cenário rural de Santa Cruz do Sul sofreu mudanças estruturais nas últimas décadas, e, na atualidade, presencia a luta pela sobrevivência desses descendentes de colonos alemães. Desde o momento da chegada ao Brasil, eles começaram a trabalhar com o fumo, um produto para a exportação, que significava um excedente financeiro e uma moeda de troca a ser aplicada em produtos adquiridos no mercado externo41,42. Nos anos 1970, frente à crise mundial do capitalismo, as indústrias multinacionais começaram a transferir as fábricas para países do Terceiro Mundo. Instalou-se, então, em Santa Cruz do Sul, o complexo agroindustrial-fumageiro com o intuito de processar o fumo produzido na região, e a cidade torna-se a principal produtora brasileira de fumo. Na área rural, as multinacionais começaram a impor um modelo tecnológico rígido, utilizando sementes selecionadas, agrotóxicos, fertilizantes e estufas, para aumentar a produtividade43. No entanto, a modernização do processo de cultivo não significou a mecanização da lavoura e mudanças nas relações de produção, que seguiram o modo não capitalista, por meio do trabalho familiar. A produção aumentou pelo aprofundamento da exploração da mão de obra familiar subordinada aos interesses e receituário técnico das empresas multinacionais e aos ditames do mercado. Desse modo, as agroindústrias fumageiras, por meio do monopólio do mercado do fumo e da extração do excedente do trabalho familiar, mantêm os agricultores subordinados ao capital internacional44,45. A agricultura familiar realizada nas pequenas propriedades pressupõe interdependência entre o grupo, que, muitas vezes, significa cessão da maior parte do tempo às atividades laborais. Inclui: 2018; 22(67):1135-46 1139

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trabalho infantil, de mulheres e de idosos, ausência de diversões e sociabilidades. As narrativas mostraram a intensificação desse quadro, gerando depressão, apatia, falta de perspectivas e exacerbando os conflitos entre gerações e as condutas autodestrutivas: “O jovem do meio rural quer ir para o meio urbano, não há muitas perspectivas no meio rural. Mas por outro lado, tem muito conformismo com a situação, com o descrédito de que algo vai ser diferente, de que a vida vai melhorar. Esse sofrimento passa de geração a geração”. Os agricultores são reféns das fumageiras que compram a matéria-prima e lhes impõem condições cada vez mais duras. Em todo o processo, o controle da produção é rígido, o risco de perda das safras é uma ameaça sempre presente, e, a cada ano, um contingente de pequenos agricultores é descartado por não ter alcançado as metas. Para o informante, um pesquisador local do campo dos estudos rurais: [...] a vida no campo deixou de ser aquela em que se produzia e se tinha tempo e autonomia. Cada vez mais, há interferências na vida do homem do campo e hoje o meio rural está pautado pelo urbano. Os agricultores não têm mais uma renda considerável, o pagamento é anual, se eles perdem a safra ficam sem nada. Têm famílias que se dedicam totalmente para uma cultura que não produz comida [o fumo] e se há perda, não resta nada. Eles trabalham o ano inteiro para vender a safra do fumo e garantir o sustento no ano seguinte. Se perdem, como nos anos em que há uma catástrofe, uma estiagem ou temporais, neste ano acontecem três, quatro ou mais suicídios...

O modelo econômico causa efeitos nas subjetividades, produzindo sentimentos de impotência e desesperança. Não é apenas a relação entre pobreza e suicídio46,47, mas a falta de controle sobre a vida e o futuro que torna os sujeitos impotentes48 e propensos a buscarem a morte. Muitos são obrigados a vender parte e até toda a propriedade agrícola, para pagarem dívidas49. “Eles se endividam e como não gostam de ter o nome sujo na praça, isso é uma das possíveis causas do suicídio”. O aumento da produção de fumo no mercado internacional foi acompanhado de mudanças no beneficiamento industrial do produto e no emprego de tecnologias sofisticadas para aumentar os níveis de produtividade e diminuir o tempo da safra, concentrando-a em um período de quatro a seis meses. Como o fumo é um produto perecível, na safra há necessidade de grande número de trabalhadores contratados temporariamente. No restante do ano, essa população de empregados temporários vive de atividades informais e, embora muitos venham do interior, a maioria reside na periferia urbana, onde há elevada frequência de suicídios50. Há um exército de reserva de safristas, que vivenciam o desemprego como condição permanente43. Os trabalhadores rurais sofrem a mesma instabilidade, pois se dedicam quase que exclusivamente à monocultura do tabaco, que lhes propicia uma única safra anual e constitui o rendimento total da família. O valor a ser pago pela indústria fumageira ao produto somente é conhecido após longa rodada de negociações entre representantes dos fumicultores e da indústria; e o valor estabelecido para a folha de fumo depende das condições climáticas, das variáveis econômicas e fiscais do país e dos interesses da indústria de capital estrangeiro. A saturação e o preço do fumo no mercado internacional fazem com que a empresa classifique o produto como de qualidade inferior e, como consequência, ocorre a baixa do preço, reduzindo a lucratividade do agricultor51. O informante que estuda o rural, aponta: Esse vínculo da indústria com o produtor deixa o agricultor preso à fumageira. Quando o agricultor fala do trabalho, ele diz: ‘vou entregar o fumo’, ele entrega para alguém o produto do seu trabalho. Ele sente que não é dele, que não têm autonomia para decidir nada. É um instrutor que decide como deve ser realizado o processo de trabalho. Na produção do fumo, o agricultor só sabe que vai vender o produto, mas nunca sabe se vai obter o preço que espera. Esse sistema deixa as pessoas pressionadas, acrescido da questão cultural que torna difícil lidar com as adversidades.

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Os efeitos do trabalho: “um trabalho que mata” Para o agricultor de Santa Cruz do Sul, o trabalho é uma atividade que maltrata, não respeita os limites do corpo, exaure52, podendo, ainda, causar adoecimento e morte: “A frustração na safra traz uma tensão muito grande para a família. Quando a safra do fumo tem baixa produtividade, aumenta o endividamento das famílias e muitos homens se suicidam”. Houve relatos de suicídios altruístas, aqueles que, segundo Durkheim7, teriam a pretensão de trazer algum benefício aos sobreviventes. O objetivo desses agricultores ou safristas é deixar uma pensão ou herança para os familiares, já que são realizados em situações de débito com a fumageira ou banco, havendo risco de perda da terra hipotecada. Mas a única herança que a família recebe é a própria dívida: No interior, se o fumo não deu certo é como se tivesse terminado o mundo. Eles acreditam que se morrerem vão deixar a família bem. Porém, a dívida fica e, além da dívida, a culpa e o remorso para os sobreviventes. [Os safristas desempregados ou doentes] encontram muita dificuldade para conseguir benefício, então sem dinheiro e sem recursos para se tratarem, ficam deprimidos, nervosos, não dormem, precisariam tomar um antidepressivo, e não têm dinheiro porque vai faltar para comida, vai faltar para os filhos. Qual a solução que eles encontram? Se matar. Acreditam que assim a família fica amparada, se ele morrer a mulher receberá a aposentadoria por viuvez.

O suicídio relacionado ao trabalho está blindado por um “pacto de silêncio”15, ou uma espécie de tabu para a população local e as famílias afetadas. Isso vai produzindo indiferença frente ao sofrimento e aos sintomas psicopatológicos. Mesmo quando há um sintoma ou uma doença, se é uma queixa de ordem psíquica, ela pode ser subestimada e desqualificada, considerada um subterfúgio para burlar o trabalho. Essa situação ficou patente nos depoimentos de informantes que atuavam no sindicato e na assistência ao trabalhador rural: A depressão é vista como frescura, como vagabundagem, o alcoolismo é visto como semvergonhice, a família diz que não vai gastar dinheiro com aquele vagabundo. A sociedade não admite o homem sem trabalhar, muitos deles estão desempregados, estão doentes, tentam o INSS, tentam se encostar, mas não conseguem porque há um preconceito na sociedade em relação ao sofrimento mental.

Quando ocorre um suicídio no local de trabalho, significa que as estratégias de defesa que o trabalhador possa ter usado – como a negação do sofrimento, a medicalização e, mesmo, a ajuda de companheiros e familiares – não surtiram efeito. Um suicídio ligado ao trabalho indica um estado de degradação no tecido humano e social onde esse evento se produz e representa uma denúncia de uma situação coletiva, embora seja mais fácil atribuí-lo ao indivíduo que morreu53. Na pesquisa realizada sobre suicídios em idosos, a maioria das autópsias psicossociais foi realizada nas propriedades dos familiares54. No Rio Grande do Sul, muitos haviam se enforcado nos galpões de fumo, e os sobreviventes fizeram questão de mostrar as traves ou “tesouras” que serviram para amarrar a corda e onde acharam o corpo11,55. Esses suicídios não foram percebidos como ligados ao trabalho nem pelos familiares, nem pela população local. Mas, se o suicídio no local de trabalho funciona como uma mensagem ou denúncia das condições de vida daquele grupo do qual o suicida é o porta-voz, o fato de os familiares levarem os pesquisadores para os galpões de fumo ou local de trabalho representa uma constatação – mesmo não verbalizada – de que o trabalho teve um papel crucial na realização do ato. A forma como os indivíduos vivem, sofrem e sublimam os sentimentos na atividade laboral está intimamente associada ao valor moral atribuído ao trabalho e sua importância na configuração do ideal de eu, ou os valores em relação aos quais os indivíduos julgam o sucesso ou o fracasso de suas vidas39. Em um cenário de cultura germânica, onde o trabalho é parte importante da identidade desses 2018; 22(67):1135-46 1141

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sujeitos, a falência, a perda econômica, o insucesso material representam uma marca tão terrível, que só a morte pode(ria) apagar. A percepção do(s) narrador(es) ouvidos nesta pesquisa reafirmou essa asserção, mostrando que a perda da terra, o desemprego e o desamparo econômico parecem ser o gatilho do desejo de morte, para os remanescentes de uma cultura em que honrar os compromissos e atingir sucesso econômico eram (e continuam sendo) valores fundamentais. Embora não se tenha a pretensão de desvendar as causas complexas desse fenômeno multicausal, em Santa Cruz do Sul, as narrativas dos informantes indicam que a presença de dois elementos: a visão de mundo perpassada pela ética do trabalho trazida pelos colonos germânicos e mantida até o contemporâneo, e os embates econômicos com que os pequenos proprietários rurais se defrontam frente à entrada do capitalismo no campo, podem ser responsáveis pela mortalidade por suicídio nesses locais: O que chama a atenção em relação ao suicídio é a questão financeira, é o baque financeiro que o cidadão tem na cidade e no campo. Quando a lavoura vai mal e há muitas dívidas, ele se desespera e quer morrer. Na cidade é a perda de emprego na faixa etária dos cinquenta anos. Ele não vai mais conseguir emprego, então o indivíduo castrado na sua autoestima sente-se desvalido, revoltado, injustiçado e é comum tentar o suicídio...

A reestruturação produtiva na agricultura, que ocorreu no Brasil com a globalização, incidiu, pesadamente, sobre a pequena propriedade rural, acarretando impactos que culminaram com: maior concentração da propriedade da terra, fragmentação do espaço agrícola e incremento da urbanização, implantando-se um modelo que promoveu, como nenhum outro, pobreza, desigualdade, sofrimento e morte56.

Considerações finais No mundo contemporâneo, as perdas financeiras e o sofrimento ligado ao trabalho constituem alguns dos determinantes do suicídio. Em culturas tradicionais, como a de agricultores de origem germânica, a ética do trabalho pressupõe que, quando eles não conseguem cumprir os compromissos firmados, podem atentar contra a própria vida57,58. Esta pesquisa propôs-se a estudar um caso único, o município de Santa Cruz do Sul, para aprofundar a reflexão sobre esse tema complexo, multifacetado e sujeito a controvérsias. Uma contribuição alcançada foi a sistematização de uma narrativa com base nas percepções dos entrevistados, trazendo os significados atribuídos ao suicídio por atores que, embora não vivenciem diretamente o problema, estudam e atendem pessoas atingidas, estando em posição de proximidade com os trabalhadores rurais locais. Realizou-se um esforço analítico para deixar emergir, dentre as múltiplas narrativas e atribuições causais, aquelas que mostraram maior consistência. O trabalho desses colonos “alemães” nas pequenas propriedades rurais, hoje submetidas a um processo de desruralização, que inclui a perda de autonomia e a dependência da indústria fumageira, foi considerado, pelos narradores, como um determinante que gera sofrimento e pode contribuir para a busca da morte. “Em Santa Cruz, o trabalho – e o não trabalho – matam”, foi a mensagem que julgamos decifrar. Como a maioria dos informantes-chave narrou, os cenários econômicos e culturais influenciam a ocorrência do suicídio no município e na região. Enfatizaram o papel da ética do trabalho e da cultura trazidas da Alemanha no século dezenove, e quanto ela segue presente na vida dos fumicultores, expressa na exigência desmesurada de desempenho e no medo onipresente da falência e da perda das terras. Mesmo assim, as categorias analíticas do estudo, cultura alemã e ética do trabalho, não foram esgotadas nessa discussão e precisam ser ampliadas e aprofundadas. Uma das limitações deste estudo é que, ao enveredar no campo da história da imigração alemã no Rio Grande do Sul e dos estudos do rural, não se investigaram outros fatores causais. Ao organizar esta narrativa, fatores causais podem ter ficado subsumidos em questões mais amplas. Mesmo assim, 1142

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acreditamos que a recuperação da memória desses atores que estudam, trabalham ou se identificam com os “alemães brasileiros” de Santa Cruz do Sul pode trazer alguma contribuição, mesmo que modesta, para o estudo do suicídio e, em decorrência, para a sua prevenção.

Colaboradores As autoras participaram de todas as etapas da elaboração do artigo. Referências 1. Shneidman E. Definition of suicide. New York: John Wiley & Sons; 1985. 2. World Health Organization. The world health report 2001: mental health, new understanding, and new hope. Geneve: WHO; 2001. 3. Lovisi GM, Santos AS, Lagay L, Abelha L, Valencia E. Análise epidemiológica do suicídio no Brasil entre 1980 e 2006. Rev Bras Psiquiatr. 2009; 31 Supl 2: 86-94. 4. Marín-León L, Oliveira HB, Botega NJ. Suicide in Brazil, 2004-2010: the importance of small countries. Rev Panam Salud Publica. 2012; 32(5):351-9. 5. Nogueira RC. Repercussões de projeto de implantação de rede intersetorial de prevenção do suicídio em municípios do Rio Grande do Sul [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá; 2013. 6. Pinto LW, Assis SG, Pires TO. Mortalidade por suicídio em pessoas com 60 anos ou mais nos municípios brasileiros no período de 1996 a 2007. Cienc Saude Colet. 2012; 7(8):1963-72. 7. Durkheim E. O suicídio: um estudo sociológico. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1982. 8. Heck MR. Suicídio: um grito sem eco - contexto social de Santo Cristo. Pelotas: Ed. UFPEL; 1994. 9. Heck MR. Contexto sociocultural dos suicídios de colonos alemães: um estudo interdisciplinar para a enfermagem [tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2000. 10. Capucho MC, Jardim AP. Os pomeranos e a violência: a percepção de descendentes de imigrantes pomeranos sobre o alto índice de suicídio e homicídio na Comunidade de Santa Maria de Jetibá. Gerais Rev Interinstitucional Psicol. 2013; 6(1):36-53. 11. Meneghel SN. Algumas reflexões acerca do suicídio e do comportamento suicida. In: Minayo MC, Figueiredo AEB, Silva RM, organizadoras. Comportamento suicida em idosos. Fortaleza: Edições UFC; 2016. p. 93-118.

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Palabras clave: Suicidio. Trabajo. Ética protestante. Cultura alemana.

Submetido em 18/05/17. Aprovado em 27/10/17.

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Oferta de programação da Rede Globo de Televisão em face de audiência infantojuvenil: estudo empírico Claudia Galhardi(a) Maria Cecília de Souza Minayo(b)

Galhardi C, Minayo MCS. Rede Globo TV listings in view of children’s audience: empirical study. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1147-58.

Although contemporaneity has brought the development, the presence and the use of new communication and entertainment platforms, in Brazil television remains the most consumed mass media among children and adolescents. In this scenario, 75.4% of children and adolescents recognize the existence of an inappropriate content that they should not see. Thus, this article aims to reveal the current scenario of programs offered for children and adolescents of the country’s largest audience TV channel, Rede Globo, a Brazilian free-to- air TV based in the city of Rio de Janeiro. This is a quantitative empirical study, carried out from the content analysis technique of the programming shown in the period of March 2016. The results indicate that there is a low number of content suitable for children and adolescents.

Keywords: Television. Children’s programming. Children and adolescents. Content analysis. Brazil.

CC

BY

Embora a contemporaneidade tenha trazido o desenvolvimento, a presença e o uso de novas plataformas de comunicação e entretenimento, no Brasil a televisão segue sendo o meio massivo mais consumido entre crianças e adolescentes. Nesse cenário, 75,4% das crianças e adolescentes reconhecem a existência de conteúdo inapropriado ao qual eles não deveriam assistir. Este artigo visa revelar o atual quadro de oferta de programas destinados ao público infantojuvenil da emissora de maior audiência no país, a Rede Globo, uma rede de televisão comercial aberta brasileira com sede na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo empírico quantitativo, realizado a partir da técnica de análise de conteúdo da programação veiculada no período de março de 2016. Os resultados indicam uma escassa veiculação de conteúdos adequados ao público infantojuvenil.

Palavras-chave: Televisão. Programação infantil. Crianças e adolescentes. Análise de conteúdo. Brasil.

(a) Programa de PósGraduação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz (ENSP-Fiocruz). R. Leopoldo Bulhões, 1480, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. claudia.pereira@ fiocruz.br (b) Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), ENSP-Fiocruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. maminayo@ terra.com.br

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622017.0499


OFERTA DE PROGRAMAÇÃO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO ...

Introdução Este artigo parte do pressuposto de que, em consonância com as leis estabelecidas pelo setor de radiodifusão no Brasil, as emissoras comerciais abertas devem atender a uma programação com finalidades educativas, culturais e informativas, suscitando a cultura nacional, valores éticos e sociais, produção de conteúdos culturais, artísticos e informativos regionais1 e, ademais, fomentar as produções independentes2. Essa obrigação obedece ao artigo 221 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que regulamenta as obras audiovisuais veiculadas nas emissoras de televisão. Apesar da importância da televisão como um meio socializador e formador de opinião pública, observa-se, no Brasil, uma lacuna nas investigações que contextualizam a relação desse meio com o público infantojuvenil no que tange à análise da programação e ao impacto de seus conteúdos no comportamento e no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Contribuições acadêmicas feitas por pesquisadores nacionais3,4, buscando compreender a preferência de crianças e adolescentes face aos conteúdos presentes na programação televisiva, constataram que os gêneros de maior êxito são filmes, telenovelas, programas de humor e desenhos animados. No mesmo sentido, é importante conhecer, ainda que brevemente, algumas investigações desenvolvidas em alguns países sobre recepção infantojuvenil e mídia. Somente nos Estados Unidos foram produzidas aproximadamente 3.500 pesquisas sobre a influência que pode causar a televisão no comportamento da audiência infantojuvenil. Trabalho pioneiro desenvolvido pela Surgeon General´s Scientific Advisory Committee on Television and Social Behavior demonstrou, no fim da década de 1960, a grande probabilidade de o indivíduo apresentar comportamento agressivo após assistir a um conteúdo de entretenimento violento5. A contribuição do pesquisador Jo Groebel6, da Universidade de Utrecht, Holanda, revelou uma maior tendência das crianças expostas a conteúdos violentos a desenvolverem um fascínio por heróis violentos. O estudo Children, adolescents & the Media, do Canadá, reforçou a teoria dos efeitos cognitivos quanto à exposição das crianças a conteúdos inadequados e ao estimulo à atividade sexual precoce7. . O aporte cientifico por parte da investigação La infância construída: efectos prosociales y antisociales de los contenidos televisivos, da Espanha, comprova que pelo menos 10% da conduta agressiva por parte de crianças e adolescentes derivam do consumo de conteúdos violentos por meio da televisão8. Em contraposição, a pesquisadora Helena Thorfinn9, da Suécia, entende que os reflexos comportamentais na audiência dependem dos elementos que compõem as obras audiovisuais. Para a autora, as condutas podem ser influenciadas pela recepção de conteúdos tanto negativos quanto positivos. Embora os estudos acima mencionados sugiram a relação entre a violência na mídia e comportamentos agressivos, para McQuail10, as narrativas audiovisuais não devem ser tomadas, por si só, como únicas causadoras de efeitos no comportamento manifesto pelas audiências. Em consonância com McQuail10, Michaud11 recomenda que as pesquisas sobre as audiências e sua relação causal entre exposição e ação12 devem ser pautadas nas evidências diretas (fatores socioeconômicos, geográficos culturais e familiares) e indiretas (conteúdos veiculados pela mídia). A aparente conotação que a TV exerce como um meio de descontração e passatempo agradável para as crianças e adolescentes pode fazer com que os pais usem a televisão como uma babá eletrônica, destinando pouca reflexão sobre o teor dos programas veiculados na programação da TV aberta13. Neste texto, propõe-se a conhecer e analisar a programação infantojuvenil da Rede Globo de Televisão destinada a crianças e adolescentes e observar que importância ela tem para a formação desse grupo etário.

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Recepção infantojuvenil no Brasil Investigação realizada por Galhardi e Ortega14 com objetivos gerais de monitorar a oferta da programação dos canais abertos comerciais generalistas veiculados no estado de São Paulo pelas emissoras Rede Globo, Rede Record e Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) mostra baixa oferta de conteúdos para o público infantojuvenil. Em âmbito nacional, replicou-se, no ano de 2012, a pesquisa com os mesmos instrumentos e pressupostos, com uma amostra de 19.322 programas emitidos no decorrer de 12 meses contínuos, pelas emissoras-cabeças de redes: Globo, Record, SBT e suas afiliadas nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia. O diagnóstico seguiu idêntico: 6,2% foi a proporção da produção voltada especificamente para o público infantil, restringida a dois formatos: desenhos animados (majoritariamente de origem norte-americana) e programas infantis de produção nacional15. Algumas investigações nacionais também validam a influência da TV no comportamento e desenvolvimento das crianças e adolescentes. “Fala galera” é o título de uma pesquisa realizada pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Fiocruz), em parceria com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), na qual os autores buscam compreender os diferentes aspectos de percepção, sociabilidade e construção de identidade de jovens de faixa etária compreendida entre 14 e 20 anos de diferentes estratos socioeconômicos, no município do Rio de Janeiro. Entre os temas abordados, foi tratada a forma como os jovens interpretam os conteúdos e mensagens de cidadania, juventude e violência veiculados na mídia. O diagnóstico apresentado foi o seguinte: 79% dos educadores disseram que a TV influencia de forma negativa os jovens; 47% dos meninos e meninas envolvidos na pesquisa, pertencentes a estratos sociais A e B e 32,1% dos pertencentes aos estratos sociais C, D e E, declararam receptar influência negativa dos conteúdos da TV16.Considera-se que pedem atenção os dados apresentados pela pesquisa “Radiodifusão de Conteúdo Inadequado: a Classificação Indicativa e os Direitos Humanos”16, realizada por meio de entrevistas coletadas durante o ano de 2008 em domicílios das cinco regiões do Brasil. Nesse cenário, 75,4% das crianças e adolescentes reconhecem a existência de conteúdo inapropriado ao qual eles não devem assistir. Já 74,8% dos pais e responsáveis entrevistados afirmaram um alto grau de preocupação com os conteúdos exibidos pela programação, listando entre eles: cenas de sexo, violência, formação de conceitos e comportamentos não éticos e drogas17.

Materiais e método Foi aplicada a técnica de análise de conteúdo quantitativo sobre a programação da emissora de televisão aberta comercial Rede Globo. O período estabelecido para a análise da grade televisiva compreendeu um total de sete dias consecutivos, entre 29 de fevereiro e 6 de março de 2016. Neste sentido, Gambaro e Becker (2016), em sua pesquisa sobre a grade de programação da Rede Globo, advertem que desde o “final da década de 1970, a emissora introduziu o seu ‘padrão de qualidade’, fórmula desenhada que mantém, como um dos elementos, a programação horizontal e tradicionalmente estável até os dias atuais”18. Galhardi e Ortega14 constataram a inserção de reality show e programas musicais nos meses de janeiro e fevereiro. No mês de dezembro, também se observou a inclusão na grade de programas musicais 15. Portanto, o recorte de análise de uma semana de programação se determina em função de um fluxo estável de oferta das obras audiovisuais. Analisou-se a transmissão ao longo das 24 horas da projeção, sendo o horário inicial 6h00min e horário final 5h59min do dia seguinte, segundo dados coletados a partir das publicações nas páginas da internet da referida emissora. Os períodos estabelecidos para o estudo foram (A): das 6h00min às 9h59min; (AA): das 10h00min às 14h59min; (AAA): das 15h00min às 18h59min; (AAAA): das 19h00min às 23h59min; e (AAAAA): das 0h00min às 5h59min.

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Para este estudo, quantificou-se uma amostra total de 163 programas veiculados pela emissora no período da coleta de dados estabelecido. A análise de conteúdo estrutura-se em uma série de fases19. Como em qualquer área de estudo de natureza empírica, o processo de definição conceitual e operacionalização das categorias está entre os passos mais importantes do processo de investigação20. Portanto, foi significativo adotar a definição terminológica precisa das unidades da comunicação discursiva a analisar. Nesse sentido, realizou-se uma exploração qualitativa dos conceitos aplicados às pesquisas de análise de conteúdos a partir de diferentes perspectivas teóricas: Nordenstreng e Varis21, Melo22, Reimão23, Malcher24, Mazziotti25, Souza26, Tondato27, Garza28, ANDI29, Bakhtin30 e Freire31. Na seguinte fase, elaborou-se o codbook, ou livro de códigos, que constitui-se em uma ferramenta fundamental de consulta, explicitando as conceitualizações das unidades de análise e situando as diretrizes para o processo de codificação. Em seguida, foi elaborada a ficha de análise. Similar a um questionário, a ficha foi manejada como um instrumento de medida das variáveis, na qual as unidades de análises (códigos numéricos ou textuais)20,32 foram identificadas e registradas. Nessa etapa, foram selecionadas as fontes ou amostras estatisticamente representativas do objeto de estudo. O suporte foi a página web da emissora, examinada como fonte de informação primária. Em continuação, aplicou-se um prévio treinamento da amostra selecionada. O exercício de pilotagem de codificação é um processo imprescindível para que o codificador se familiarize com a prática da análise de conteúdo, implicando aclarações contidas no livro de códigos e, paralelamente, resolvendo dúvidas sobre os distintos critérios de análise20. Cabe precisar que codificar é viabilizar o tratamento de uma quantidade de material bruto mediante regras precisas (recortes, agregação e enumeração), transformando-o em uma descrição curta e representativa de seu conteúdo e tornando-o suscetível à análise33,34. Na aplicação da análise de conteúdo e em estudos quantitativos, é usual utilizar programas de informática, o que facilita ao analista, estudante ou pesquisador, resultados gráficos e tabelas confiáveis, viabilizando, posteriormente, a elaboração do informe final dos resultados. Para o cumprimento dessa tarefa, foi utilizado o programa estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS). Aplicou-se o coeficiente de Kappa de Cohen a fim de assegurar a qualidade dos dados para a análise de conteúdo. Nessa etapa da pesquisa, participaram diferentes colaboradores que analisaram e codificaram separadamente um mesmo material (as unidades de análise). Nessa operacionalização, utilizou-se a porcentagem reduzida do total da amostra (20%). O nível de concordância35 de cada variável que compõe o livro de código apresentado pelos codificadores foi “muito boa”20, validando os dados apresentados nesta investigação, como se observa na Figura 1.

Figura 1. Indicadores do nível de concordância entre codificadores O valor numérico indica a magnitude da concordância Sem concordância 0.0

Concordância mínima

0.2

0.4

Concordância baixa

0.6

Concordância moderada

Fonte: Adaptado de Sociedade Peruana de Bioestatística

1150

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0.8

Concordância boa

Concordância perfeita 1.0

Concordância muito boa


Resultados A seguir, apresentam-se os resultados obtidos por meio da Tabela 1, apresentada a seguir, realizando a interpretação dos dados quantitativos. Por fim, é preciso esclarecer que, ao realizar a revisão de literatura sobre estudos da programação da emissora Rede Globo, não se encontrou produção acadêmica sobre as obras audiovisuais produzidas e ofertadas à audiência brasileira e nem sobre sua recepção infantojuvenil. Por esse motivo, alguns dos elementos encontrados na programação serão interpretados com apoio nos dados quantitativos apenas, tendo em vista ausência de base teórica para evocar um debate mais profundo.

Tabela 1. Oferta da grade de programação por gênero e período de transmissão (29 de fevereiro a 6 de março de 2016) Período de transmissão

Gênero

Total

A

AA

AAA

AAAA

AAAAA

01 Telejornal

55.6

32.4

0

29.3

14.7

26.8

02 Reportagem

22.2

16.2

0

2.4

2.9

8.5

03 Revista eletrônica

0

0

0

2.4

0

0.6

04 Auditório

0

13.5

4.0

2.4

0

4.3

05 Telenovelas

0

0

64.0

3.7

2.9

18.3

06 Séries

0

0

0

4.9

17.6

4.9

07 Seriados

0

0

0

0

11.8

2.4

08 Filmes

0

0

24

0

38.2

11.6

09 Esportes/transmissão

0

0

4.0

2.4

0

1.2

10 Esporte/Gravado

0

16.2

0

0

0

3.7

11 Musical

0

2.7

0

0

0

0.6

12 Talk show

0

0

0

2.4

2.9

1.2

13 Reality show

0

0

0

17.1

5.9

5.5

14 Humorístico

0

2.7

0

0

0

0.6

3.7

0

0

0

0

0.6

0

0

0

4.9

0

1.2

18.5

16.2

4.0

0

0

7.3

0

0

0

0

2.9

0.6

100

100

100

100

100

100

15 Missa 16 Propaganda política 17 Variedades 18 Não se especifica Total

A Rede Globo é líder em audiência e atinge 99,62% nos domicílios com TV em todo território nacional36. No período da investigação, a emissora ofertou, conforme informações de categorias disponíveis em sua página eletrônica, os seguintes gêneros: seis novelas de produção nacional (Êta Mundo Bom, Caminho das Índias, Totalmente Demais, A Regra do Jogo, De Pernas pro Ar e Malhação), três séries (Chapa Quente, Mister Brau e Pé na Cova – produção nacional –; e Agentes da S.H.I.E.L.D e Prova do Crime – produção dos EUA); dois seriados (Agenda Proibida e Os Bad Boys – produção dos EUA); 17 programas categorizados pela própria emissora como jornalísticos (Bom Dia Brasil, Autoesporte, Bem Estar, Como Será?, DFTV, Fantástico, Globo Repórter, Globo Rural, Hora Um da Notícia, Jornal da Globo, Jornal Hoje, Jornal Nacional, MGTV, PEGN, Profissão Repórter, RJTV 2018; 22(67):1147-58 1151

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Galhardi C, Minayo MCS


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e SPTV); 13 programas definidos na página web da emissora como variedades (Altas Horas, Amor & Sexo, Caldeirão do Huck, Criança Esperança, Domingão do Faustão, É de Casa, Encontro com Fátima Bernardes, Esquenta!, Estrelas, Mais Você, Programa do Jô, Tamanho Família e Vídeo Show); dois programas de humor (Tá no ar: a TV na TV e Zorra); cinco programas de esportes (Corujão do Esporte, Esporte Espetacular, Fórmula 1, Globo Esporte, Planeta Extremo); três reality shows (Big Brother Brasil, Super Star e The Voice Brasil), 16 filmes de produção norte-americana, sendo seis veiculados no horário vespertino (Esposa de mentirinha, Uma manhã Gloriosa ,Querido John, De Repente Grávida, Mudança de Hábito e Eu sou o número quatro) e dez no período noturno (Morto ao chegar, Plano de voo, O Homem da Califórnia, Beleza do mundo dos negócios, O vigilante, Lista Negra, Uma loira em minha vida, Nosso Tipo de Mulher, Os três mosqueteiros e Olho por Olho). Além desses, há também um de produção nacional (O Primo Basílio)37. Comparando-se as estatísticas apresentadas no monitoramento da grade de programação durante o ano de 2012 e os dados quantitativos apresentados nesta investigação, observa-se, a priori, a extinção dos programas infantis e dos desenhos animados (Tabela 2).

Tabela 2. Oferta da grade de programação por gênero e período de transmissão (16 de janeiro a 31 de dezembro de 2012) Gênero

A

Total

AA

AAA

AAAA

AAAAA

01 Telejornal

19.7

27.8

17.8

26.5

7.8

19.2

02 Reportagem

46.7

1.1

0.7

2.1

1.9

10.6

03 Entrevista

0.0

5.0

0.0

0.0

8.4

3.2

04 Revista eletrônica

0.0

0.0

0.0

4.8

0.0

0.9

05 Auditório

0.0

7.2

10.1

4.3

0.9

4.0

06 Desenho animado

11.0

9.2

0.0

0.0

30.

4.9

07 Telenovelas

0.0

0.0

43.3

34.4

0.7

13.1

08 Séries

0.0

0.4

0.0

0.6

0.9

0.4

09 Seriados

0.0

0.0

0.0

2.5

3.0

1.2

10 Filmes

0.0

3.1

11.8

7.7

21.0

9.3

11 Esportivo/transmissão

0.6

2.8

6.8

0.6

2.9

2.5

12 Esportivo/gravado

5.0

17.5

0.0

0.0

4.9

5.8

13 Musical

0.0

0.9

0.7

0.0

5.4

1.2

14 Talk show

0.0

9.4

0.0

0.0

0.4

2.0

15 Reality show

0.0

0.0

2.4

5.6

3.6

2.2

16 Infantil

0.0

0.9

0.0

0.0

0.0

0.2

17 Humorístico

0.0

2.0

0.0

5.6

0.0

1.4

18 Educativo

0.0

0.0

0.0

0.0

27.4

7.1

19 Missa

7.6

0.0

0.0

0.0

8.1

3.6

20 Propaganda política

0.0

3.9

0.0

5.2

0.0

1.7

21 Variedades

9.3

8.8

7.0

0.2

0.0

4.8

22 Eventos

0.0

0.2

0.0

0.0

0.0

0.0

100

100

100

100

100

100

Total

1152

Período de transmissão

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Até junho de 2012, os desenhos animados eram veiculados de segunda a sábado na grade de programação matinal da emissora15. No dia 25 de junho de 2012, a Rede Globo retira da grade os desenhos animados exibidos no formato TV Globinho, de segunda a sexta, e estreia o programa de auditório Encontro com Fátima38. Em 2015, a emissora coloca fim na programação infantil e ocupa a grade aos sábados com três horas de duração, inaugurando o programa de variedades É de Casa. Quando a Rede Globo encerrou os desenhos animados de segunda a sexta-feira, a direção da emissora já defendia o fim da programação infantil argumentando que “a migração da plateia mirim para os canais pagos feitos só para sua faixa etária é uma tendência mundial”39. A jornalista e apresentadora Patrícia Poeta, do programa É de Casa, endossa a argumentação da direção da emissora, afirmando que “é uma tendência mundial que a TV aberta atenda melhor ao público adulto e o público infantil vá todo para a TV paga, que tem uma série de canais, para as mais variadas faixas etárias”39. Nesse contexto, a “Pesquisa brasileira de mídia: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira” revela que somente 26% dos lares brasileiros têm acesso a um serviço pago de televisão40. Com a extinção da programação infantil, crianças e adolescentes encontram também na grade da emissora uma massiva oferta de telejornais nos períodos matinais (A e AA). Gênero de caráter informativo, o telejornal exerce um papel socializador contínuo que vai da infância à velhice e é por meio dele que o indivíduo internaliza a cultura de seu grupo e interioriza as normas sociais41. Não obstante, tais programas incluem na pauta notícias de crimes e cenas de violência42. Estudo realizado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), objetivando compreender a forma como a violência é representada nas narrativas veiculas nos telejornais, comprova que os dez programas jornalísticos veiculados nas principais capitais do Brasil disseminaram, por meio de suas narrativas, violações dos direitos humanos, “a sensação de impunidade, o descrédito nas instituições responsáveis pela administração da justiça e a crença no caminho da violência, da intolerância, do arbítrio e do crime”43. O segundo gênero que se destaca na grade, nos períodos (AA) e (AAA), é o programa de auditório. É necessário sublinhar que esse formato é publicado e divulgado na página web da emissora como sendo um programa de variedades. Ora, se a função classificatória dos gêneros televisuais é orientar o telespectador em relação ao conteúdo que será exibido, nota-se um teor escorregadio na classificação44 do texto midiático adotado pela emissora. Como bem coloca Aronchi45, atualmente, as emissoras de TV classificam os programas de auditório como sendo de variedades por dois motivos: primeiro, como forma de elitizar o formato com o objetivo de atrair anunciantes e, segundo, atrair o telespectador em vez de se restringir à essência do gênero. Outra observação pertinente sobre esse item da grade é sua inclinação em veicular quadros inapropriados para o público infantojuvenil. Algumas investigações vêm mostrando isso. A pesquisa “Violência na mídia ou violência na sociedade? A leitura da violência na mídia”46 objetivou compreender, do ponto de vista do telespectador, o que é um programa sensacionalista e violento nas emissoras de TV aberta comercial do Brasil. Os resultados evidenciam que o receptor considera como violência a falta de respeito e as brigas entre participantes nos programas de auditório, assim como a forma como o corpo feminino é explorado, a exposição exacerbada da vida de deficientes físicos e a reprodução de cenas que mostram sangue e conflitos com uso de armas de fogo entre policiais e bandidos. Outro fenômeno em destaque é a participação majoritária das telenovelas no período (AAA). Comparando-se os resultados estatísticos do monitoramento da grade de programação da emissora no ano de 2012 com os dados quantitativos divulgados nessa investigação, observa-se que a Rede Globo incrementou 5,2% de produção e transmissão do gênero no mencionado período. Nessa abordagem, Sampaio4, ao analisar a preferência do público infantojuvenil face aos conteúdos presentes na programação televisiva, constata que 87% do total desse grupo tem preferência por filmes; 75%, por desenhos animados; e 62%, por telenovelas. O Instituto Central Internacional para a Juventude e a Televisão Educativa, na Alemanha, sinaliza o estabelecimento de relações afetivas de crianças e adolescentes com personagens de telenovela com os quais se identificam47. 2018; 22(67):1147-58 1153

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O segundo gênero que divide a tela da TV com as telenovelas, no período (AAA), são os filmes. Cabe precisar que as seis obras cinematográficas veiculadas nesse período procedem dos Estados Unidos e cinco delas não são recomendadas para menores de dez anos. Segundo a avaliação do conteúdo dos filmes realizado pelo Ministério da Justiça48, há os seguintes filmes, com seus respectivos descritores de análise: 1-Esposa de mentirinha – linguagem impropria; 2-Uma manhã gloriosa – conteúdo sexual e drogas lícitas; Querido John – cenas de violência; De repente grávida – uso de drogas lícitas); Eu sou o número quatro – cenas de violência; Mudança de hábito (livre). Ocupando a primeira colocação no ranking de obras audiovisuais preferidas por crianças e adolescentes, “os filmes fazem parte do processo global de socialização dos jovens e seus efeitos pró-sociais não podem ser ignorados. Filmes podem auxiliar escolas, famílias na educação sobre a fenomenologia da delinquência juvenil”49. Em contraposição, os filmes que apresentam cenas de violência, segundo vários autores, contribuem para a conduta agressiva de crianças e adolescentes. Em pesquisa de caráter experimental, com a participação de 360 adolescentes de ambos os sexos, a investigadora Gomide50 analisa o impacto dos filmes contendo cenas de violência, utilizando como instrumento de medida os filmes Time Cop: o guardião do tempo, Kids e Mortal Kombat, todos de produção norte-americana. O diagnóstico do estudo evidenciou que crianças e adolescentes após exposição aos conteúdos violentos dos filmes apresentaram comportamentos agressivos. No que tange aos programas de variedades, registra-se um aumento expressivo do gênero nos períodos matinais (A) e (AA). Tradicionalmente, o programa de variedades é o carro-chefe da emissora, projetado para ofertar entretenimento para toda a família. Sua análise exige um olhar mais atento em dois sentidos: em relação ao que compõe o termo “variedades” (pois, assim como os programas de auditório, este engloba diversas atrações destinadas ao público adulto44) e para o fato de esse formato ser conduzido por um apresentador, mas mantendo como cenário assistentes de palco bailarinas com trajes, gestos e comportamentos sensuais. É o caso do programa dominical Domingão do Faustão, veiculado das 17h às 21h. A pesquisa intitulada “A influência televisiva como desencadeadora da erotização infantil na contemporaneidade entre crianças de 3 a 5 anos” demonstra que o acesso por parte do público infantil a conteúdos erotizados, estimula as crianças a imitar a sensualidade adulta, por meio da linguagem, do vestuário e da conduta inapropriada para sua faixa etária51.

Conclusões Localizar em 2016 um panorama similar ao monitoramento realizado em 2009 e 2012 leva a constatar a predominância de programas de orientação adulta na grade de programação da emissora, como expressam os dados estatísticos aqui expostos. Cabe precisar que o Decreto 236, de 28 de fevereiro de 1967, determina a obrigatoriedade de produção e transmissão de programas educativos na grade de programação das emissoras de TV52. Isso não se encontrou na programação no período estudado de 2016 da TV Globo. Ressalta-se, portanto, a ausência de conteúdos específicos para crianças e adolescentes, como desenhos animados ou programas infantis, extintos da grade de programação dessa emissora. Os dados desta pesquisa permitem evidenciar a massiva veiculação de programas jornalísticos nos períodos matinais (A) e (AA), nos quais, segundo autores já citados, observa-se violação dos direitos humanos, assim como a incitação à violência. Destaca-se a centralidade das telenovelas nacionais e dos filmes de produção exclusiva dos Estados Unidos no período (AAA). Nesse caso particular, algumas contribuições acima citadas alertam para a probabilidade de contribuírem para o desenvolvimento de perfil violento em crianças e adolescentes quando apresentam reiteradamente cenas de violência. Observa-se também nos períodos matinais que os programas de variedades e de auditório vêm ganhando cada vez mais espaço na grade de programação da emissora. Essa categoria de programa é direcionada principalmente para o público adulto. Considerando a relevância da temática, destaca-se no Brasil uma lacuna de estudos sobre conteúdo da mídia, sob a ótica da saúde pública53. 1154

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Apesar de pesquisadores brasileiros se apoiarem nas teorias de estudos realizados em diversos países, urge por parte de centros acadêmicos o desenvolvimento de pesquisas sobre a violência na mídia, com adequações teóricas e metodológicas ao contexto nacional, particularmente enfatizando os aspectos socioculturais e os interesses econômicos na forma de produção, circulação e consumo dos produtos midiáticos veiculados pela indústria cultural53. No cenário apresentado, registra-se a necessidade de estudos subsequentes que monitorem e examinem por meio de uma leitura textual e em um fluxo contínuo os conteúdos das obras do setor audiovisual destinados ao público infantojuvenil, para que se ofereça uma programação saudável para crianças e adolescentes. É necessário ampliar a discussão e suscitar que o governo e entidades reguladoras da indústria televisiva nacional tomem medidas necessárias para a adequação das normas de proteção da infância e adolescência e do direito à educação midiática.

Contribuições dos autores Claudia Galhardi foi responsável pela elaboração e delineamento do manuscrito; e análise e interpretação dos resultados. Maria Cecília de Souza Minayo orientou a pesquisa e contribuiu na revisão crítica. Ambas autoras participaram ativamente da discussão dos resultados, da revisão e da aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. Presidência da República (BR). Constituição (1988). Emendas Constitucionais de nº 1 a 15. Constituição da República Federativa do Brasil. 17a ed. São Paulo: Atlas; 2001. 2. Fechine Y. Núcleo Guel Arraes: formação, influências e contribuições para uma TV de qualidade no Brasil. In: Figueirôa A, Fechine Y, editores. Guel Arraes: um inventor no audiovisual brasileiro. Recife: CEPE Editora; 2008. p. 23. 3. Camurra L, Teruya TK, Mesti RL. Os conteúdos televisivos nos gostos e preferência infantis. Rev Educ PUC Campinas. 2007; 23:91-101. 4. Sampaio I. Modos de ver a violência na mídia entre adolescentes cearenses. Compós. 2008; 11(3):1-18. 5. Surgeon General´s Scientific Advisory Committee on Television and Social Behavior 1972. Television and growing up: the impact of televised violence. Report to the Surgeon General, United States Public Health Service. Washington: Government Printing Office; 1972. 6. Groebel J. Acesso à mídia e uso da mídia entre as crianças de 12 anos no mundo. In: Carlsson U, Von Felitzen C, organizadores. Criança e a mídia: imagem, educação, participação. São Paulo: Cortez; 2002. 7. Strasburger VC, Wilson BJ. Children, adolescents & the media. Thousand Oaks: Sage Publications; 2002. 8. Igartua JJ. La infancia construida: efectos prosociales y antisociales de los contenidos televisivos. Doxa Comun. 2007; (6):179-206. 2018; 22(67):1147-58 1155

artigos

Galhardi C, Minayo MCS


OFERTA DE PROGRAMAÇÃO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO ...

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artigos

Galhardi C, Minayo MCS


OFERTA DE PROGRAMAÇÃO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO ...

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Galhardi C, Minayo MCS. Oferta de programación de la Red Globo de Televisión para el público infanto-juvenil: estudio empírico. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1147-58. Aunque la contemporaneidad haya traído el desarrollo, la presencia y el uso de nuevas plataformas de comunicación y entretenimiento, en Brasil la televisión sigue siendo el medio de masa más consumido por niños y adolescentes. En este escenario, 75,4% de los niños y adolescentes reconocen la existencia de contenido inadecuado que ellos no deberían ver. Por lo tanto, este artículo tiene el objetivo de revelar el actual cuadro de oferta de programas destinados al público infanto-juvenil de la emisora de mayor audiencia del país, la Red Globo, una red de televisión comercial abierta brasileña con sede en la ciudad de Río de Janeiro. Se trata de un estudio empírico cuantitativo, realizado a partir de la técnica de análisis de contenido de la programación vehiculada en el período de marzo de 2016. Los resultados muestran una escasa transmisión de contenidos adecuados al público infanto-juvenil.

Palabras clave: Televisión. Programación infantil. Niños y adolescentes. Análisis de contenido. Brasil.

Submetido em 13/09/17. Aprovado em 17/12/17.

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2018; 22(67):1147-58


DOI: 10.1590/1807-57622017.0333

artigos

Narrativas de motociclistas acidentados sobre riscos e os diversos meios de transporte Hercília Najara Ferreira de Souza(a) Deborah Carvalho Malta(b) Maria Imaculada de Fátima Freitas(c)

Souza HNF, Malta DC, Freitas MIF. Narratives of injured motorcyclists regarding risks and the various means of transport. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1159-71.

In this article, the objective was understand the representations of motorcyclists that suffered a traffic accident about the risks as well as the various means of transportation. The qualitative approach was based on the notions proposed by Giami, using the psychosocial frame of the Social Representations. We interviewed 16 motorcyclists injured in traffic accidents in Belo Horizonte-MG/Brazil, that were cared for at a referral hospital for trauma. Results show that everyday experiences, the attributes observed in vehicles and above all, involvement in traffic accidents are used as a framework to represent transport as “safe” or “unsafe”. The balance between the advantages and disadvantages presented by the vehicles are basic to predict the option for this or that kind of vehicle. Although the motorcycle is considered an unsafe vehicle, its use is defended by the interviewees who continue to imagine themselves untouchable.

Keywords: Traffic accidents. Motorcycles. Risk. Public Health. Qualitative research.

CC

BY

“Neste artigo, o objetivo foi de compreender representações de motociclistas que sofreram acidente de trânsito acerca dos riscos e os diversos meios de transporte. Adotou-se a abordagem qualitativa fundamentada em noções propostas por Giami, no referencial psicossocial das Representações Sociais. Foram entrevistados 16 motociclistas acidentados no trânsito de Belo HorizonteMG/Brasil, atendidos em hospital de referência para o trauma. Os resultados apontam que experiências cotidianas, atributos observados nos veículos e, sobretudo, o envolvimento em acidentes de trânsito, são utilizados como arcabouço para representar os transportes como “seguros” ou “inseguros”. A ponderação entre as vantagens e desvantagens apresentadas pelos veículos se constituem fundamentais para predizer a opção por este ou por aquele veículo. Embora a motocicleta seja considerada um veículo inseguro, seu uso é defendido pelos entrevistados que continuam a se imaginar inatingíveis.

Palavras-chave: Acidentes de trânsito. Motocicletas. Risco. Saúde Pública. Pesquisa qualitativa.

Departamento de Medicina Básica, Faculdade de Medicina, Faculdade de Minas. Av. Cristiano Machado, 1201, Vila Clóris. Belo Horizonte, MG, Brasil. 31744-007. hercilianajara@ hotmail.com (b, c) Departamento Materno-Infantil e Saúde Pública, Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. dcmalta@uol.com.br; peninhabh@ yahoo.com.br (a)

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NARRATIVAS DE MOTOCICLISTAS ACIDENTADOS SOBRE RISCOS ...

Introdução Os acidentes de trânsito representam um crescente problema de saúde pública em todo o mundo. Destaca-se o cenário complexo e violento que transcende a magnitude no número de vidas ceifadas e o poderio incapacitante. Aproximadamente 1,24 milhão de pessoas são mortas por ano, e entre 20 e 50 milhões ficam feridas em decorrência de acidentes de trânsito, em todo o mundo1,2. A metade das mortes registradas no mundo envolvem os usuários denominados “vulneráveis”: motociclistas (23%), pedestres (22%) e ciclistas (5%)2. O Brasil ocupa a 5ª posição entre os países com maior número de mortes no trânsito, precedido por Índia, China, Estados Unidos e Rússia3. As causas externas representam a terceira causa de morte entre a população brasileira4, e um terço dessas mortes são referentes a lesões/traumas decorrentes dos acidentes de trânsito5,6. O número de óbitos por Acidentes de Transporte Terrestre (ATT) no Brasil, em 2013, foi de 45.099 óbitos7. Desse total, aproximadamente 27% ocorreram entre motociclistas7. Apesar dos esforços para reduzir o número de vítimas no trânsito, observa-se o crescimento na frota de veículos, sobretudo o crescimento da frota de motocicletas, que aumentou na ordem de 403,7% entre 2001 e 2014, sendo o maior aumento nas regiões Norte e Nordeste do país8. O aumento exacerbado de motocicletas ocorre em vários países, sobretudo entre pessoas mais jovens atraídas, em sua maioria, pela possibilidade de rápido deslocamento, especialmente nos grandes centros urbanos, e em busca das vantagens oferecidas pelo veículo, como baixo custo e economia de combustível9. A supervalorização do transporte individual, traduzida no aumento de carros particulares e de motos que disputam o espaço no trânsito, as dificuldades para a efetivação de transportes de massa de qualidade e a pressão das empresas para a rapidez nas entregas de encomendas, levando a formas perigosas de dirigir pelos motociclistas, além das condições das vias e da organização urbana, são fatores explicativos do aumento de acidentes neste grupo10-16. Reichenheim et al.17 apresentam diversos fatores de risco relacionados a óbitos e lesões ocorridos no trânsito, incluindo os acidentes envolvendo motociclistas, como: fatores humanos (dirigir sob o efeito de álcool, estresse, fadiga e tonteiras); os relativos ao sistema viário (sinais de trânsito deficientes e manutenção ruim das estradas, iluminação insuficiente ou inexistente, falta de acostamento e inclinações, drenagem ineficiente, muros de contenção e curvas inadequadas); os relacionados aos veículos (manutenção inadequada), assim como o excesso de velocidade. Entretanto, a literatura é escassa sobre aspectos que dizem respeito à subjetividade dos condutores, suas visões de mundo, suas representações em torno do objeto motocicleta e dos riscos possíveis, que podem definir suas escolhas para maior ou menor proteção. No presente estudo, propõe-se, então, um olhar sociológico sobre o risco que ultrapasse as condições materiais da organização social, centrando-se: nas características singulares das pessoas, nos valores culturais, nas representações e interações sociais que contribuem para a identidade e identificação dos sujeitos, em seus contextos de vida18. O conceito de risco em epidemiologia foi utilizado para delimitar relações causais analíticas e abstratas, na forma de associações de caráter probabilístico com ampla aceitação científica no campo da saúde19,20. Ampliou-se com o conceito de vulnerabilidade, que passou a expressar o reconhecimento dos diferentes graus e natureza da suscetibilidade dos indivíduos e coletividade às doenças e aos agravos, formado pelo conjunto integrado de aspectos sociais, programáticos e individuais que colocam os sujeitos em relação com o problema e com os recursos para seu enfrentamento21. A sociologia do risco é uma esfera privilegiada neste sentido, pois aborda tanto a maneira pela qual os indivíduos se sentem ou não em perigo, dão sentido e agem em relação aos riscos, bem como os modos que as sociedades os concebem e os definem22-23. Risco é uma noção socialmente construída, variável segundo lugares e épocas distintas. A percepção de risco remete aos modos de vida, aos valores familiares e coletivos introjetados por cada sujeito, refletindo uma moral em ação e uma visão de mundo que fazem parte também da vida intrapsíquica22, ao mesmo tempo em que há reconhecimento da existência de um mundo externo, com seus riscos objetivos24,25.

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Por não ser um decalque da realidade na consciência do indivíduo, o risco se mistura à subjetividade das representações sociais e culturais. Provém de um imaginário, e não de uma falta de reflexão ou de pretensa irracionalidade, é uma representação introjetada26. Considerando a complexidade do enfrentamento do problema, do crescimento da frota de motocicletas e dos acidentes a ele agregado, a promoção da saúde e a prevenção de agravos exigem conhecimentos para além de dados que associam eventos e fatores objetivos, que constituem a base de estudos quantitativos. Destaca-se a necessidade de estudos qualitativos que enfoquem as formas de viver das pessoas, para que se possa dar maior abrangência e profundidade ao conhecimento nesta área importante da saúde coletiva. A dinâmica e a multicausalidade do fenômeno acidentes de trânsito envolvendo motociclistas exigem estudos que enfoquem aspectos psicossociais para a compreensão sobre o que os sujeitos pensam e como enfrentam os possíveis riscos no uso da motocicleta nos espaços urbanos. Nessa perspectiva, o risco, em sua vertente sociológica, aprofunda a reflexão na discussão de vulnerabilidade social, porque acrescenta, à sua conceptualização, as representações, como aspectos psicossociais que condicionam os modos de viver e, por extensão, de promover saúde. Nesse enfoque, o presente estudo tem o objetivo de compreender representações de motociclistas que sofreram acidente de trânsito em Belo Horizonte, Minas Gerais, acerca dos riscos e os diversos meios de transporte.

Metodologia Pesquisa qualitativa de abordagem sociológica, com trabalho de campo realizado por meio de entrevistas abertas, iniciadas por uma questão central indireta sobre o objeto de estudo: “gostaria que me falasse sobre o uso de motocicleta por você” e questões de relance que contemplaram seus modos de pensar os riscos e modos de agir no trânsito. A coleta realizou-se no período de fevereiro a maio de 2014, e foram entrevistados 16 motociclistas com idades entre 18 e 47 anos, em atendimento em hospital de referência para vítimas politraumatizadas, após a ocorrência do acidente de trânsito, em Belo Horizonte (BH), capital de Minas Gerais. Os critérios para inclusão dos sujeitos foram: (a) ser o condutor da motocicleta no momento do acidente; (b) ser maior de 18 anos, por ser a idade mínima prevista pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para aquisição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH); (c) residir e ter sofrido o acidente no perímetro urbano da capital; (d) permanecer em atendimento no pronto-socorro ou internado por, no mínimo, 24 horas após admissão via ficha de atendimento do hospital; (e) apresentar condições clínicas para participar da entrevista. A obrigatoriedade da CNH não foi definida como um critério de inclusão, justamente por ser um evento oportuno para compreensão das noções de riscos dos condutores que trafegam sem a CNH no trânsito de BH. As entrevistas ocorreram depois de transcorridas 24 horas, pelo menos, da entrada do/a motociclista no hospital, devido ao maior número de atendimento de profissionais da equipe multiprofissional, procedimentos clínicos e exames complementares nestas primeiras horas. A seleção dos participantes foi iniciada após levantamento dos prontuários para confirmação dos critérios de inclusão e, na sequência, foi realizado contato durante o período de internação com os ‘possíveis participantes elegíveis’ para verificação dos demais critérios de inclusão. As entrevistas duraram em média 40 minutos cada, foram realizadas nas dependências do hospital, em locais que garantiam segurança e privacidade aos participantes, acertados previamente com a equipe do serviço. A entrevista ocorreu após esclarecimentos e objetivos da pesquisa, o aceite para participar voluntariamente e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para análise. O processo de coleta dos dados foi realizado em duas etapas. A primeira constou de identificação do perfil sociodemográfico dos participantes, levantamento de informações referentes ao acidente e ao uso da motocicleta, coletadas nas fichas de atendimento, nos prontuários e no relato dos participantes.

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artigos

Souza HNF, Malta DC, Freitas MIF


NARRATIVAS DE MOTOCICLISTAS ACIDENTADOS SOBRE RISCOS ...

A segunda etapa consistiu em entrevista aberta e em profundidade27,28, para propiciar uma narrativa que desvelasse os modos de pensar e agir dos entrevistados em relação aos acidentes de trânsito, num processo de reflexão sobre os riscos, enfocando sua vivência e contexto de vida, inseridos no acontecimento do acidente ou riscos incorridos. Não houve definição a priori do número de participantes. O critério para o término da coleta de dados foi o de saturação dos dados, verificado quando houve a existência de repetições de pontos de vista, de julgamentos e sentimentos sobre fatos e experiências relativos aos objetos presentes nas narrativas, o que propiciou segurança para definir a suspensão da coleta com novos participantes e permitiu estabelecer interpretação rigorosa e contextualizada do objeto em estudo29. Durante o processo de revisão dos prontuários para levantamento dos possíveis participantes segundo os critérios de inclusão e confirmação da elegibilidade, houve recusa por parte de sete pessoas. Essas foram substituídas por outras, até que a saturação dos dados qualitativos fosse alcançada, não havendo nenhum prejuízo para a coleta e os resultados. Tal recusa reforçou a importância de aprofundar a discussão das representações, pressupondo-se que há processos de negação dos sujeitos sobre o evento, a exemplo “não quero falar no assunto”. Foram realizadas 16 entrevistas, sendo oito na Unidade de Pronto-Socorro e oito nos Setores de Internação (ortopedia, clínica cirúrgica e neurologia). Cada entrevistado recebeu uma identificação, com letra E seguida da letra inicial de seu prenome e o número correspondente à ordem crescente de realização da coleta, para preservar o anonimato. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), parecer nº 471.184, e da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), parecer n° 604.412-0. A análise dos dados coletados fundamentou-se na proposta de Análise Estrutural de Narrativa (AEN), apresentada por Demazière e Dubar30, fundamentada em Greimas31, Greimas e Landowski32 e Barthes33, no eixo da Grounded Theory34: as categorias teóricas surgem após a interpretação das categorias empíricas criadas a partir da análise do conjunto das entrevistas. Nessa linha, considerase que tudo na fala do sujeito tem sentido, e que a entrevista é uma construção de sentidos pelo entrevistado que narra fatos, histórias e as justificativas, além de apresentar pessoas e instituições envolvidas ao longo de sua fala. Depois de transcritas, cada entrevista foi exaustivamente lida. Inicialmente, por uma leitura vertical, na qual se buscou o sentido global, respondendo à questão: de que fala este texto? Posteriormente, houve a leitura horizontal: o texto foi sequenciado por ordem de aparecimento de cada objeto na fala, e cada sequência foi numerada em ordem crescente (S1, S2, ...). Em cada sequência foram identificados: os fatos (F), as justificativas apresentadas (J) e os personagens (P). Os dois primeiros foram numerados em ordem crescente dentro da sequência, e os personagens receberam o mesmo número ao serem repetidos em outras sequências. Em seguida, as sequências que tratavam de um mesmo assunto abordado em suas confirmações, diferenças e contradições, foram reagrupadas e receberam um título provisório que deram origem a uma categorização provisória da totalidade da entrevista individual. Em uma terceira etapa, buscou-se encontrar as semelhanças e as diferenças no conjunto das entrevistas, em uma leitura denominada transversal, na qual as categorias provisórias encontradas foram comparadas e reagrupadas para a totalidade das entrevistas, definindose, em suas conjunções e disjunções, as categorias empíricas sobre os objetos de estudo em pauta. Ao final, os resultados foram cotejados com a literatura pertinente, explicitando-se as categorias teóricas. A partir da interpretação dos dados, definiu-se a categoria das representações sobre os meios de transporte. O conteúdo desta categoria é sustentado por representações em torno de condutas e riscos vivenciados no cotidiano do trânsito, compreendidas dentro de um contexto material e social, estrutural e conjuntural, de vida dos entrevistados.

Resultados Foram entrevistados 16 sujeitos do sexo masculino, com idades entre 18 a 47 anos. Havia mulheres envolvidas em acidentes com motocicleta internadas ou em atendimento no hospital, entretanto, 1162

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nenhuma delas preencheu, na totalidade, os critérios de inclusão. Em sua maioria, as mulheres eram ‘garupas’ no momento do acidente ou eram provenientes de outros municípios. Os dados relativos à profissão, tempo de habilitação, tempo de pilotagem, uso da motocicleta (horas/dias), número de acidentes sofridos, motivo da locomoção durante o acidente atual e os diagnósticos secundários mais frequentes, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde35, estão dispostos no Quadro 1.

Quadro 1. Perfil dos Entrevistados

Entrevistado

Idade (anos)

E1

21

E2

27

E3

18

E4

37

E5

22

E6

47

E7

38

E8

35

E9

46

E10

24

E11

40

E12 E13 E14 E15

29 36 20 24

E16

45

(*)

Profissão

Agente de Serviço Servente de Pedreiro Atendente Chaveiro Chefe Pizzaiolo

Tempo Tempo de Uso da de Pilotagem motocicleta (*) Habilitação(*) (horas/dia)

Acidentes Sofridos (n)

Motivo da locomoção – Acidente Atual

Diagnóstico Secundário (CID-10)

3a

3a

2

2

Passeio

S82.0

Sem habilitação

14a

3

1

Passeio

S82.6

10m

2a

5

2

Passeio

--

12a

10a

4

10

2a 6m

2a 6m

1

2

25a

25a

1

1

Passeio

S72.0

3a

3a

3

Passeio

S82.1

13a

5a

3 6 (fim de semana)

1

Passeio

S06

Marceneiro

6a

6a

1

3

Trajeto casa/ trabalho

S82.1

Mecânico Suspensão Motorista Carreteiro Motoboy Motoboy Autônomo Motoboy Representante comercial

Sem 14a habilitação(**)

3

2

Passeio

S81.9

15a

15a

1

1

5a 15a 1a 3m 2a 6m

15a 15a 1a 3m 10a

12 10 4 8

6 3 3 3

26a

3m

6

2

Impressor Supervisor de Pessoal Pedreiro Ajudante Lojista

Trajeto casa/ trabalho Trajeto casa/ trabalho

Trajeto casa/ trabalho Trabalho Trabalho Passeio Passeio Trajeto casa/ trabalho

S82.2 S62.3

S00.0 S82.3 S81 S62.6 S82.2 S92.4

a: anos; m: meses (**) Perdeu após primeiro acidente

Representações sobre os meios de transporte O eixo central dessa categoria foi construído pelas representações acerca da segurança ofertada pelos diversos meios de locomoção. Inicialmente, os motociclistas classificam os meios de transportes em seguros e inseguros, apesar de haver uma representação corrente de que todos os meios de transporte apresentam riscos porque nenhum deles é totalmente seguro. A maioria dos entrevistados baseou-se nas experiências cotidianas, nos atributos observados nos veículos e, sobretudo, no envolvimento em acidentes de trânsito para considerar quais meios de transportes são seguros ou não. Em geral, são listadas vantagens e desvantagens para qualificar o meio de transporte na categoria de seguro ou inseguro. Cabe aqui ressaltar que essa dicotomia 2018; 22(67):1159-71 1163

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foi representada como fundamental na hora de o entrevistado optar por este, e não aquele meio de transporte. Verificou-se, ainda, que há um balanceamento entre a lista de vantagens e aquela das desvantagens, para que, finalmente, a opção seja feita, agregando aos valores objetivos – esses definidos de acordo com as necessidades e possibilidades do indivíduo –, valores sentimentais e psicológicos, dentro de um conjunto de representações sobre os meios de transporte. Meio de transporte seguro Aspectos ligados à estrutura e ao porte do veículo preponderam entre os relatos e são desvelados como base para representações sobre meios de transporte seguros: “O carro é um dos mais seguros, né? Se você tiver cuidado... Mesmo assim... Mas o mais seguro, eu acho que é o carro ainda” (E11). Proteções físicas, como a existência de lataria fechada e o porte maior dos veículos são descritas como capazes de conferir maior sensação de proteção e segurança para os indivíduos. Concomitantemente, a representação de transporte seguro torna-se ainda mais evidente ao ser comparado com a motocicleta. Para os motociclistas, embora o prazer seja reconhecido no uso da motocicleta, a segurança é avaliada como baixa, sendo os veículos de quatro rodas ou o trem de ferro, aqueles que garantem melhor a segurança para o condutor. A possibilidade de sofrer lesões em eventuais acidentes é determinante para assegurar tal definição. Sendo assim, o ponto de partida para explicar o transporte seguro é a existência de estruturas físicas, presentes nos veículos, que servem como barreira e garantem, ao mesmo tempo, maior sensação de segurança. Ao introjetar a existência de proteções inerentes à estrutura de veículos como carros, ônibus e metrô, os entrevistados a reconhecem como algo concreto e objetivo que será capaz de assegurar mais segurança e proteção física em caso de envolvimento em acidentes. A imagem da motocicleta é, então, de um veículo aberto e sem proteção física. Por outro lado, os veículos citados como seguros ou que agregam outras vantagens foram representados também como desvantajosos em vários aspectos. Nos deslocamentos realizados no trânsito em Belo Horizonte, destaca-se a dificuldade de efetivação do transporte coletivo como principal barreira, na opinião de motociclistas, para suprir as necessidades de seus usuários. A lotação do transporte coletivo, demora na realização dos trajetos e a opção restrita de deslocamento (quilometragem) percorrida pela malha ferroviária, dentre outros, são apontados como problemas no transporte público. Por outro lado, o excesso de veículos e a consequente falta de espaço no trânsito para consumação dos deslocamentos são descritos como elementos que impedem a opção por automóveis. A segurança torna-se um critério superado em face das desvantagens dos transportes considerados seguros: “O carro, trânsito muito agarrado, não anda. Ônibus, além de cheio, o trânsito muito ruim. Metrô leva a gente, tipo, de nenhum lugar a lugar nenhum” (E5). Muitos motociclistas utilizam o argumento da qualidade insatisfatória dos transportes coletivos para explicar a escolha pela motocicleta como meio de transporte: Eu mesmo comecei a andar de moto por causa de transporte mesmo, muito trânsito. De ônibus é muito ruim, eu não consigo andar de ônibus, eu acho muito difícil se locomover de ônibus do serviço pra casa, de casa para o serviço, a gente perde muito tempo, chega muito estressado. (E9)

Embora as representações de transporte seguro excluam a motocicleta, observa-se que o elemento crucial para escolhê-la como meio de transporte é a sua representação de rapidez e eficiência: ‘pode ser inseguro, mas resolve o problema’. Meio de transporte inseguro, mas ágil A caracterização da motocicleta como um transporte inseguro remete a aspectos observados pelos entrevistados no cotidiano das interações estabelecidas no trânsito, devido, sobretudo, ao 1164

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design da motocicleta. A ausência de proteção física é, de certa maneira, preocupação evidente nos deslocamentos com motocicleta. Essa preocupação se torna ainda maior nos momentos em que os entrevistados ficam diante da possibilidade de envolver-se em acidentes: “[Moto] é um veículo que não tem muita segurança. Para falar a verdade, pra ser sincero, não tem segurança nenhuma. Os acidentes podem ser horríveis” (E12). A consciência acerca da periculosidade da motocicleta, na maioria das vezes, é orientada pela probabilidade de sofrer um acidente e, sobretudo, pelas lesões que dele podem decorrer, como se a motocicleta tivesse vida própria e todo acidente ocorresse devido a fatores externos ao condutor. Dessa forma, a representação do risco pelos motociclistas não está nunca contida em suas condutas ou riscos decorrentes dos modos de usar o veículo, ou, mesmo, da situação das vias, mas realçados somente nos possíveis danos à integridade física que se pode sofrer: “A moto é tipo o para-choque... O peito da gente é tipo o para-choque do carro e a gente sofre direto o choque e pode ser o fim, né?” (E10). À probabilidade de ocorrência de acidentes, explicita-se aqui o risco real de morte. Ele passa a ser dimensionado como muito maior quando comparado ao risco do carro, em função da ausência de proteções físicas nas motocicletas, como a “lataria” nos automóveis. O fato de não ter uma barreira protetora em eventuais acidentes, deixa o motociclista vulnerável e sem segurança – o que foi apresentado por todos os entrevistados, com mais ou menos gravidade das lesões, sendo os riscos percebidos de forma mais evidente por motociclistas que as utilizam como instrumento de trabalho. A jornada de trabalho para esses profissionais pode durar entre oito e 12 horas, perfazendo um tempo de exposição superior ao dos demais entrevistados. Sendo assim, a possibilidade de não retornar para casa após a jornada de trabalho é destacada como ameaça real: “A gente sai de casa pra poder trabalhar, pra poder ir ganhar o ganha pão da gente e talvez não volte” (E13). Porém, a utilização diária da motocicleta evidencia vantagens constatadas na prática, pelos motociclistas, como representações que preponderam sobre os riscos, expressas de forma pragmática sobre rapidez e redução de tempo entre os deslocamentos, aspectos considerados fundamentais para escolher a motocicleta como meio de transporte. A capacidade que o motociclista tem de driblar o trânsito e, consequentemente, de mover-se com agilidade entre os veículos, devido ao tamanho reduzido da motocicleta, é a base das ambíguas posturas em relação a esse meio de transporte: “A moto é muito ágil. Você tem o trânsito agarrado, você consegue passar, ser mais ágil do que os carros. É mais rápido, mais fácil. O motoqueiro, não quer ficar preso nem no corredor nem no trânsito e nem lembra que existe perigo. Por isso, a agilidade da moto” (E5). Paralelamente às representações de rapidez, quando comparadas às de outros meios de transporte, a motocicleta é descrita também como uma oportunidade de facilitar o deslocamento pela calçada quando o ‘retorno está muito longe’, o que configura uma conduta transgressiva, mesmo que considerada, aparentemente, somente como um “drible ao trânsito”: “Qualquer canto você passa, às vezes você sobe até no passeio, saí do outro lado. Facilita, ganha tempo. Talvez você vai estar numa via, você passa do lugar que você tem que ir e o retorno é muito longe” (E15). Outro aspecto considerado vantagem está na economia da motocicleta, mensurada no baixo custo de aquisição, no gasto com combustível e nas manutenções do equipamento, comparando-a tanto com o transporte individual como com o coletivo: “É mais prático e é mais econômico, mais barato” (E12). Assim, a opção por este meio de transporte é cada vez mais frequente. Seduzidos por vantagens como economia e diminuição de tempo entre os trajetos, os motociclistas optam por incorrer em riscos e perigos diariamente.

Discussão No estudo atual, ao se analisarem representações dos condutores de motocicletas relacionadas aos acidentes de trânsito, encontrou-se, na categoria sobre os meios de transporte, seu conteúdo sustentado no reconhecimento de que o transporte coletivo (ônibus e metrô) e o transporte individual (carro) proporcionam maior segurança. Entretanto, esses meios de transporte não se configuram 2018; 22(67):1159-71 1165

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como opção real de transporte para esses motociclistas. A motocicleta, mesmo sendo um transporte inseguro, é representada como a alternativa para solucionar os percalços vividos no trânsito, para deslocamentos com rapidez e versatilidade, para não ficar “preso no trânsito”, controlando-se o tempo e ‘fazendo a vida fluir’, além de ser um veículo econômico. Fatores relacionados ao veículo que influenciam na segurança dos motoristas estão associados ao desempenho do veículo nas manobras de trânsito e à ergonomia/conforto do motorista36. Concomitantemente, ressalta-se a influência do design do veículo sobre essas duas variáveis37. Sendo assim, experiências cotidianas e os atributos observados na composição dos diversos veículos e, sobretudo, a possibilidade de envolver-se em acidentes são os construtos que determinam a caracterização como transporte seguro ou inseguro. Conforme descrito por Veronese16, “o domínio do conhecimento sobre o cotidiano resulta numa sensação de segurança”. Nesse sentido, ao introjetar a existência de proteções inerentes à estrutura de veículos como carros, ônibus e metrô, os entrevistados a reconhecem como algo concreto e objetivo que será capaz de assegurar mais segurança e proteção física em caso de envolvimento em acidentes. A imagem da motocicleta é, então, de um veículo aberto e sem proteção física. Todavia, a qualidade insatisfatória dos transportes coletivos fez com que muitos indivíduos optassem por meios de transportes individuais, o que piorou os problemas de trânsito nas grandes cidades10,17. Muitos motociclistas utilizam este mesmo argumento para explicar a escolha pela motocicleta como meio de transporte individual. Destaca-se que, além da versatilidade e do baixo custo de aquisição, a vantagem econômica, frente ao custo de usar o transporte coletivo, foi um dos motivos importantes para o aumento no uso das motocicletas10. Como consequência, a motocicleta tornou-se o meio de transporte individual mais popular do Brasil16 e, também um dos meios de transporte mais perigosos12,38. Entretanto, as motocicletas oferecem maior mobilidade e vantagens na utilização do espaço quando comparadas aos automóveis, bem como permitem o deslocamento em espaços reduzidos de forma eficiente, garantindo mobilidade e acessibilidade mesmo em ambientes congestionados12,36,39,40. A redução de permanência em engarrafamentos foi apontada como vantagem para os motociclistas12. Além da possibilidade de redução do tempo de viagem, é um meio mais econômico de se deslocar e um meio de trabalho para algumas pessoas40. A ênfase na ausência de segurança ou proteção confere aos motociclistas maior possibilidade de se envolverem em circunstâncias nas quais as situações de perigo ocasionem lesões a sua integridade física. O perigo ocorre, sobretudo, por causa da convivência com veículos de grande porte, pela dificuldade de esses condutores verem a motocicleta e pela falta de proteção física dos motociclistas, tornando-os especialmente vulneráveis10. Pesquisa41 realizada na Nova Zelândia e Austrália revelou que motociclistas são vulneráveis a lesões mais graves pela falta de proteção do veículo. Além disso, em situações semelhantes de um mesmo acidente, as consequências são mais severas para os motociclistas do que para os motoristas de carros41. Nas motocicletas, um grande desafio para a melhoria da segurança está associado à tecnologia de frenagem e aos dispositivos de segurança mais eficazes, como coletes infláveis, capacetes e melhor proteção para membros42. Os benefícios advindos do uso da motocicleta no cotidiano superam os riscos que são vislumbrados como probabilidade de acontecer, e não como certeza de que, de fato, ocorreram, como foi o caso dos entrevistados. Toda percepção de risco implica forte conotação afetiva e intervenção de um discurso social e cultural. O medo parece estar menos relacionado à objetividade do risco e mais ao imaginário produzido e induzido por ele, incluindo-se certo fatalismo em relação aos perigos. A representação de risco não é uma fantasia do sujeito, mas sua medida pessoal do perigo, não havendo erro ou deformação no momento da decisão, e sim busca de uma significação própria26. É resultado de uma paixão singular, de um prazer que inaugura um modo de vida, ou é considerado como exterior ao sujeito23. Se, coletivamente, o risco ganha, por vezes, proporções de ameaça muito maiores do que o real, na esfera individual o sujeito sente-se, muitas vezes, atraído por ele e o vivencia como ato proibido ou transgressão desejada, seja pelo prazer que sente pela conduta e seu enraizamento em sua

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identidade, seja pela recusa que lhe ditem seus atos ou porque considera que os outros não são ele, e, no que lhe diz respeito, nada teme porque se considera mais forte que a morte26. Riscos construídos ‘mentalmente’ e aqueles que surgem como ameaças ‘reais’ foram desvelados pelos entrevistados ao remeterem às vantagens e desvantagens decorrentes do uso de motocicletas, amparados tanto no conceito de risco como algo distante ou como de risco sendo sinônimo de perigo43, seja ele imponderável, fora do controle do sujeito, ou desejado e assumido para se reforçarem identidades18. A percepção dos riscos no trânsito parte, então, da disposição do sujeito para vislumbrar possibilidades de um tipo de acidente acontecer e de gerar consequências44, assim como à sua subjetividade para não querer entrar neles, ou, ao contrário, acreditar que vale a pena vivê-los, fundados em valores, crenças e significados sociais correntes da contemporaneidade, como a crença em ser diferente, por usar um meio de transporte que oferece “maior liberdade” e, por isso, maior possibilidade de infringir regras, de não ter de cumprir as normas instituídas45. Os resultados da pesquisa corroboram achados anteriores que apontam que quanto mais o motociclista está habituado a condutas arriscadas, mais ele comete infrações, e, ao enxergar benefícios, arrisca-se a cometê-las46; além de que aquele condutor que se sente mais inseguro em relação à motocicleta, tende a cometer menos violações47. Quebrar a lógica pragmática da sociedade, que leva a representações de desvalorização da vida em detrimento de benefícios imediatos, parece fundamental para um trânsito com menor risco aos motociclistas, no qual uns e outros se reconheçam como iguais, inclusive em relação às leis e punições.

Considerações Finais A opção pela abordagem teórico-metodológica utilizada nesta pesquisa possibilitou desvelar as posturas e des(caminhos) dos motociclistas no cenário multifacetado do trânsito, numa trama complexa de representações sustentadas e imbricadas em torno dos riscos vivenciados no cotidiano do trânsito. Transportes seguros são retratados, pelos sujeitos, como capazes de conferir proteção em caso de acidente. A presença de “lataria” fechada e o “porte do veículo” são representados como elementos que agregam maior sensação de segurança e produzem menor possibilidade de ocasionar lesões, descritos, sobretudo, para automóveis e ônibus. Porém, dificuldades observadas no cotidiano para efetivação do transporte coletivo ou individual – como a lotação, a demora, o tempo de deslocamento, o excesso de veículos e o trânsito – são representadas como entrave, pelos motociclistas, para optar por estes meios de transportes no dia a dia. Embora as representações de transporte seguro excluam a motocicleta, observa-se que o elemento crucial para escolhê-la como meio de transporte é uma visão pragmática da vida social, expressa nas representações de rapidez e eficiência. Além disso, os riscos significam também prazer e identidade, sendo a infração de normas considerada com naturalidade. Optou-se, nesse estudo, por desvelar sentidos atribuídos às experiências e condutas desempenhadas no trânsito pelos motociclistas, ao se considerar que compreender suas formas de pensar o mundo é fundamental para se interpretar o fenômeno dos acidentes de trânsito que tanto mal fazem à sociedade. Os resultados suscitam discussões e maior aprofundamento acerca de aspectos importantes a serem pesquisados na abordagem do fenômeno de saúde coletiva. Aspectos, por exemplo, que aprofundem a análise das representações aqui explicitadas, porém com delimitação também por: gênero, idade, relações familiares, condições clínicas, tempo de internação, outros atores no trânsito e rede social, além de acrescentar cotejamentos com representações de condutores de outros veículos sobre o tema. Estudos que busquem aprofundar aspectos subjetivos dos sujeitos acerca do ‘trânsito’ ainda são pouco frequentes e, certamente, podem contribuir para que as políticas públicas de saúde sejam mais voltadas para a valorização da vida.

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Contribuições dos autores Hercília Najara Ferreira de Souza participou do delineamento e concepção da pesquisa, elaborou a proposta do artigo, participou da coleta, processamento, categorização e análise do material qualitativo, revisão, discussão dos resultados e redação final do artigo e aprovação da versão final do trabalho. Deborah Carvalho Malta participou ativamente da discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Maria Imaculada de Fátima Freitas Souza participou do delineamento e concepção da pesquisa, categorização e análise do material qualitativo, revisão, discussão dos resultados, redação final do artigo e aprovação da versão final do trabalho. Agradecimentos À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) – Protocolo APQ-02265-13, pelo financiamento da pesquisa. À Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES), pela bolsa de estudos concedida à primeira autora do artigo. Referências 1. World Health Organization. Global status report on road safety 2013: supporting a decade of action. Geneva: World Health Organization; 2013 [citado 15 Mar 2014]. Disponível em: http://www.who.int/violence_injury_prevention/road_safety_ status/2013/en/ 2. World Health Organization. World report on road traffic injury prevention. Geneva: World Health Organization; 2004 [citado 4 Fev 2012]. Disponível em: http://www.who. int/violence_injury_prevention/publications/road_traffic/world_report/en/ 3. World Health Organization. Global status report on road safety: time for action. Geneva: World Health Organization; 2009 [citado 27 Jun 2011]. Disponível em: http:// apps.who.int/iris/bitstream/10665/44122/1/9789241563840_eng.pdf. 4. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2013: uma análise da situação de saúde e das doenças transmissíveis relacionadas à pobreza. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. 5. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2012: uma análise da situação de saúde e dos 40 anos do Programa Nacional de Imunizações. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. 6. Morais Neto OL, Montenegro MMS, Monteiro RA, Siqueira Júnior JB, Silva MMA, Lima CM, et al. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Cienc Saude Colet. 2012; 17(9):2223-36. 7. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília: Ministério da Saúde; 2015. 8. Observatório das Metrópoles. Estado da monitorização individual no Brasil – Relatório 2015. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles; 2015 [citado 9 Fev 2017]. Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/automoveis_e_motos2015. pdf. 9. Chung Y-S, Wong J-T. Beyond general behavioral theories: structural discrepancy in young motorcyclist’s risky driving behavior and its policy implications. Accid Anal Prev. 2012; 49:165-76.

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Souza HNF, Malta DC, Freitas MIF. Narrativas de motociclistas accidentados sobre riesgos y los diversos medios de transporte. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1159-71. El objetivo del artículo es comprender las representaciones de motociclistas que sufrieron accidentes de tránsito sobre los riesgos y los diversos medios de transporte. Se adoptó el abordaje cualitativo basado en nociones propuestas por Giami, en el referencial psicosocial de las Representaciones Sociales. Se entrevistaron 16 motociclistas accidentados en el tránsito de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, atendidos en hospitales de referencia para trauma. Los resultados muestran que experiencias cotidianas, atributos observados en los vehículos y, principalmente, el envolvimiento en accidentes de tránsito, se utilizan como estructura para representar los transportes como “seguros” o “inseguros”. La ponderación entre las ventajas y desventajas presentadas por los vehículos se constituyen como fundamentales para predecir la opción por uno u otro vehículo. Aunque la motocicleta sea considerada un vehículo inseguro, su uso es defendido por los entrevistados que continúan imaginándose intocables.

Palabras clave: Accidentes de tránsito. Motocicletas. Riesgo. Salud Pública. Encuesta cualitativa.

Submetido em 26/06/17. Aprovado em 21/12/17.

2018; 22(67):1159-71 1171



DOI: 10.1590/1807-57622017.0548

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Arriscar a vida por uma corrida: risco e corridas ilegais de carros e motos

Leila Sollberger Jeolás(a)

Jeolás LS. Risking your life for a race: risk and illegal automobile and motorcycle street races. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1173-82.

The objective of the present article is to analyze the practices and meanings produced by youths involved in illegal automobile and motorcycle street races and radical maneuvers. This ethnographic study sought to understand risk behaviors among racers and the meaning they attribute to danger, adventure and the body sensations experienced in their practices. To this end, the authors had to adopt a broader meaning of risk and understand certain practices as a counterpoint to biopolitics or forms of life control. The racers are young individuals from lower-income classes, who respond to social impotence, which deprives them of economic (and social) capital, by using technological capital. This gives them status among their peers and social visibility, even if in contraband, as these practices are illegal, and their risks and adventures become a constituting element of identity construction.

Keywords: Youth. Risk behaviors. Automobiles and motorcycles. Illegal street races

CC

BY

O artigo propõe analisar práticas e produção de significados de jovens aficionados por corridas ilegais de carros e de motos (“rachas”) e por manobras radicais. A pesquisa etnográfica busca compreender as condutas de risco entre os “rachadores” e o sentido que eles próprios atribuem ao perigo, à aventura e às sensações corpóreas presentes em suas práticas. Isso obriga a alargar os significados de risco e compreender determinadas práticas como contraponto às biopolíticas ou às formas de controle da vida. Os “rachadores” são jovens de classes populares e respondem à impotência social, que os destitui de capital econômico (e social), mediante um capital tecnológico que lhes permite reconhecimento de seus pares e visibilidade social, mesmo que a contrabando, em razão da ilegalidade dessas práticas, quando o risco-aventura torna-se um constitutivo da construção identitária.

Palavras-chave: Juventude. Condutas de risco. Automóveis e motocicletas. Corridas ilegais.

(a) Departamento de Ciências Sociais-CLCH, Universidade Estadual de Londrina. Rodovia Celso Garcia Cid, PR 445, km 380, Campus Universitário. Londrina, PR, Brasil. 86057-970. leilajeolas@gmail.com

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ARRISCAR A VIDA POR UMA CORRIDA: RISCO E CORRIDAS ILEGAIS ...

Introdução Este artigo traz questões oriundas de pesquisa etnográfica sobre práticas e produção de significados de jovens aficionados por corridas ilegais de carros e motos (“rachas”) e por manobras radicais. Para tanto, abordarei o lugar do risco e da aventura nessa manifestação das chamadas “culturas juvenis”, através dos sentidos que os próprios “rachadores” atribuem às suas práticas, o que me obrigou a alargar os significados de risco como contraponto à biopolítica, ou seja, da apreensão da vida pela política. A pesquisa aborda jovens que se lançam em corridas ilegais e em manobras radicais de forma a buscarem a experiência com o risco; jovens que provocam desafios e arriscam a vida, de maneira mais deliberada, se assim se pode afirmar, contrariamente aos discursos formais e institucionais, nos quais os riscos são negados e controlados na atual sociedade tecnologizada e securitária. Os dados sobre mortes em acidentes de trânsito, como um dos problemas que mais afeta os jovens brasileiros, instigaram a pesquisa. Apesar dessa evidência, tal tema é pouco estudado nas Ciências Sociais, sendo pesquisado na Saúde Coletiva com prioridade para a epidemiologia dos acidentes de trânsito, uma vez que as estatísticas colocam o país em evidência neste campo. O automóvel se tornou um fenômeno de massa e, com isso, o aumento de acidentes e mortes transformou-se em fenômeno social a ser analisado, como indicado por Marin e Queiroz1. Jovens do sexo masculino são as principais vítimas de acidentes no país, de acordo com estudo sobre mortes por causas externas de Souza e Minayo2. Dados de pesquisa realizada em Londrina/PR apontam que acidentes de trânsito e traumas decorrentes apresentam-se como um problema de saúde pública. A pesquisa realizada por Bastos, Andrade e Soares3 no Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma e às Emergências, de 1997 a 2000, demonstra que, das 14.474 vítimas registradas, mais de 70% era do sexo masculino e tinha de 10 a 39 anos; além disso, os motociclistas foram o principal tipo de vítima em todos os anos, com valores superiores a 40%. Entretanto, não se pode determinar a percentagem dos acidentes causados pelas corridas clandestinas (os “rachas”) com relação ao cômputo geral dos acidentes, em razão da carência de dados. A radicalidade dessas práticas merece atenção, uma vez que recentemente adquiriram visibilidade na mídia, apesar de existirem no Brasil desde os anos 1960, de acordo com Carmo4. Na literatura internacional, Featherstone5 chama atenção para o fato de que o interesse voltado para o estudo do movimento e da mobilidade na vida social não foi acompanhado de estudos sobre o automóvel. Embora a velocidade tenha adquirido valor central nas sociedades ocidentais, como bem aponta Cunha6 e outros autores como Sennett7, que a ressaltaram como um dos traços da revolução urbano-moderna, o trânsito e o automóvel ainda merecem estudos mais aprofundados nas Ciências Sociais. No Brasil, o antropólogo Roberto da Matta e dois pesquisadores – Vasconcellos e Pandolfi8 – examinaram a cultura do trânsito capixaba e ressaltaram hábitos, posturas e valores de motoristas e usuários. Eles analisaram atitudes ligadas à agressividade, à imprudência e à confiança na impunidade, ilustrando a hipótese da coexistência de valores igualitários e hierárquicos na sociedade brasileira. De acordo com os autores, faz-se necessário compreender os comportamentos agressivos e egoístas no trânsito para se alcançar o entendimento dos altos índices de mortes no país. No caso do estudo dos “rachas”, foram dois os pressupostos que orientaram a pesquisa e que apontaram, justamente, para a ambivalência da relação existente com o risco presente nessas práticas: de um lado, a íntima relação que os “rachadores” desenvolvem com motores e velocidade ao longo do processo de socialização minimiza os riscos vivenciados; e de outro, a existência de valores próprios de uma forma tradicional de masculinidade hegemônica, exibidos por meio da confirmação pública de coragem e audácia, potencializa o risco aí presente.

Metodologia: pesquisa de campo “em movimento” Trata-se de um trabalho de campo, realizado ao longo de cinco anos (2007-2012) e que acompanhou “rachadores”, interlocutores da pesquisa, em ruas e estradas da cidade de Londrina/ 1174

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PR, bem como no autódromo local, em uma tentativa de enquadramento e institucionalização dessas práticas perigosas. O método etnográfico permitiu o cotejamento da observação das práticas sociais e da fundamentação teórica. Os dois fundamentos principais do método continuam pertinentes: os comportamentos humanos só podem ser apreendidos se levados em conta os contextos sociais nos quais atuam e a necessidade de se apreender o ponto de vista do outro. Entretanto, a mediação necessária entre conceitos teóricos e nativos, ou entre teoria e observação empírica, continua a ser o desafio maior da etnografia, de acordo com antropólogos de referência nacional como Peirano9, Woortman10 e Goldman11. Trata-se de realizar o diálogo entre o dado observado e sua interpretação, orientada pela teoria, tentando superar as descrições meramente fenomenológicas. O método etnográfico vem sendo repensado contínua e criticamente, pois se, inicialmente, aplicava-se a estudar sociedades tradicionais, indígenas ou “tribais” em suas dimensões de totalidade, ao se voltar para o estudo das sociedades moderno-contemporâneas, teve que ser readequado em suas técnicas e abordagens, adaptando-se aos novos campos de pesquisa e objetos de estudo mais complexos, não apenas focados em um grupo circunscrito no espaço e no tempo. De acordo com Marcus12, o mundo globalizado e as sociedades transnacionais exigem etnografias multissituadas. No caso das pesquisas etnológicas realizadas entre populações indígenas brasileiras que apresentam ritmos descontínuos, visitas mais ou menos curtas ao longo de um amplo período de campo foram denominadas por Ramos13 de “etnografias em movimento”. No caso dos “rachas”, prática ilegal que ocorre sem lugar ou hora marcada, foi necessário enfrentar esse desafio, desenvolvendo uma pesquisa-percurso14. Inicialmente, analisei conteúdos de listas de discussão na internet tendo os “rachas” como foco de interesse. Esse procedimento ajudou-me a conhecer a linguagem e os significados desse universo fundamentalmente masculino, na sociedade brasileira, e diante do qual me sentia como “estrangeira”. Em seguida, com ajuda de um estudante e “rachador”, que serviu de guia e assistente de pesquisa, pude me familiarizar e participar das atividades de grupos atuantes na cidade. Dessa forma, a pesquisa etnográfica utilizou várias técnicas e abordagens: pesquisa na internet; pesquisa de campo em quatro locais da cidade (duas vias de circulação rápida; uma praça e posto de gasolina; e o autódromo), com observação e elaboração de caderno de campo; conversas informais e entrevistas formais registradas e transcritas; e registro de fotos e vídeos15,16. A pesquisa de campo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEL, garantindo que os procedimentos seguidos estivessem de acordo com o respeito ao anonimato dos participantes. O perfil dos “rachadores” mostrou-se heterogêneo, a não ser pelo fato de serem todos do sexo masculino. A faixa etária de 18 a 40 anos aponta uma dificuldade em qualificá-los de jovens, apesar de todos desenvolverem desde cedo, na infância ou pré-adolescência, o gosto pelos motores. Suas referências são pais, tios, irmãos mais velhos, primos ou amigos e começam as práticas com carros e motos como lazer ou como trabalho informal e precário. Alguns já formaram família, outros moram ainda com os pais. A juventude parece, então, referir-se mais ao sentimento de “ser jovem” ligado a essas práticas do que aos limites fixados pela idade.

Busca da adrenalina: riscos sofridos/negados versus riscos corridos/buscados Dos riscos que “sofrem” para os riscos que “correm” ou “buscam”, há um “deslocamento” de sentido que enfatiza a ação ativa desses atores. É verdade que essa tal distinção é imprecisa, uma vez que dicotomiza e simplifica uma relação mais complexa, mas ressalta diferenças existentes nas tradições discursivas relacionadas à gestão da vida, por meio da comunicação sobre risco, como nos ressalta Menegon e Spink17: risco-perigo, próprio do senso comum e referente aos infortúnios que fogem às possibilidades de cálculo e previsão; risco-probabilidade, que remete a discursos e sentidos sobre riscos como estratégias de governamentalidade; e risco-aventura, que herda o sentido de positividade da aventura. Tais tradições discursivas e seus conteúdos coexistem e dão indicações sobre o desenvolvimento histórico da noção de risco. 2018; 22(67):1173-82 1175

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Os sentidos de risco-aventura apontam para a necessidade de se reconhecer que as teorizações sobre risco precisam incorporar também o sentido de risco buscado, almejado, enfrentado. São os perigos corridos mais “deliberadamente” e valorizados por parte de grupos e redes de jovens de diferentes classes sociais. Eles se afirmam como sujeitos-atores que fazem apreciações positivas de suas performances. Tal abordagem implica compreender como os atores sociais vivem e representam os riscos presentes em suas práticas e experiências. Pesquisadores com Mary Douglas18,19 e Peretti-Watel20 enfatizam o plano da percepção dos riscos e suas implicações culturais e sociais. Nessa perspectiva, Le Breton21,22 ressalta o gosto pelo risco por parte daqueles que não o evitam, mas buscam e valorizam sua experiência, tais como empreendedores, desportistas, guerreiros, entre outros. Esses estudos possibilitam aprofundar a compreensão da exposição dos sujeitos sociais às diversas formas de risco e à possibilidade − maior ou menor − de perder a vida, no contexto de uma sociedade obcecada por segurança, preservação e prolongamento da vida, como afirma Ribeiro23. Há ambivalência e ambiguidade entre a libertação da paixão e a gestão do risco; entre a busca de liberdade, ligada à transgressão das normas sociais, e a busca de segurança e proteção. Um dos pressupostos da pesquisa é o de que, em suas performances, os jovens de classes populares (motos de baixa cilindrada) e os de camadas mais baixas da classe média (carros “tunados”) respondem à impotência que os destitui de um capital econômico e social por meio de um capital tecnológico que lhes permite ganhar reconhecimento: eles “bricolam”/constroem não só suas máquinas, mas também uma imagem de si próprios, a fim de exibir potência e ganhar prestígio entre os seus pares. O risco-aventura, portanto, necessita ser analisado como constitutivo das construções identitárias desses jovens, parte de suas políticas de existência, como espero aprofundar. A primeira dificuldade enfrentada, logo de início, nas conversas espontâneas com os “rachadores”, foi que eles não falam de risco, havendo uma ausência da ideia de risco-probabilidade, no sentido mais corrente da possibilidade de um evento negativo ocorrer. A dimensão do prazer, associado à velocidade, foi ressaltada em depoimentos, gestos e expressões de seus rostos, ao mesmo tempo em que há uma (quase) ausência do risco em seus discursos, contrapostas à ênfase do domínio técnico das máquinas e de suas performances como condutores. Ressalto como tais práticas estabelecem uma contraposição à noção de risco como força negativa que ameaça a saúde e as políticas de prevenção. Elas se contrapõem à biopolítica, entendida como “apreensão da vida pela política”, de acordo com os estudos de Foucault24,25 e ressaltado por Farhi Neto26, permitindo trazer para o debate a compreensão dessas práticas como resistência à forma como o Estado busca se encarregar de nossas vidas. Se as manifestações juvenis não têm o caráter de resistência de classe ou de transgressão contra instituições delimitadas, como a família ou a escola, e se aparecem como fragmentadas, elas podem ser compreendidas, no entanto, como formas de confrontação e de experimentações alternativas; um tipo de transgressão não mais de confrontação ao instituído que se almeja transformar, mas no sentido de uma rebelião latente contra uma sociedade vigiada e com tendência a amortecer corpos e consciências. Como afirma Ferreira27, elas não objetivam suprimir o sistema de dominação, mas “fissurá-lo micropoliticamente” (p. 114) e proporcionam, dessa forma, ganhos de singularização, autenticidade e reconhecimento sociais, mesmo em se tratando de práticas ilegais. As práticas dos “rachadores”, que intensificam o presente e não se preocupam com o futuro, suscitam reprovação moral e são alvo de estereótipos e discriminação no contexto contemporâneo, em que prever o futuro tornou-se uma tendência, de acordo com Beck, Giddens e Lash28.

Os “rachas” entre o jogo e o rito, entre o prazer da velocidade e o desafio da coragem O cotejamento dos dados e da teoria permitiu uma análise que busca compreender o risco presente nos “rachas” como jogo e rito, ao mesmo tempo. Por meio da mediação entre as categorias nativas dos próprios sujeitos que definiram suas práticas e representações como “brincadeira”, “diversão”, “curtição” e as categorias analíticas de jogo e rito, cheguei à compreensão dos “rachas” como jogobrincadeira e rito de masculinidade. 1176

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Os contornos entre jogo e rito são fluidos, pois diferentes tipos de jogos − de esportes a jogos eletrônicos − estabelecem limites porosos com os ritos, as cerimônias, a festa e o espetáculo, conforme apontam as discussões apresentadas por St-Germain e Ménard29 e Segalen30. O que designei de jogo-brincadeira advém da categoria nativa “brincadeira”, utilizada com recorrência pelos “rachadores” para se referirem às suas práticas de arrancadas, competições e manobras: o burnout ou borrachão (manobra de queimar pneus com o carro parado até estourarem); o “zerinho”, “cavalo de pau” (manobra de fazer círculos com o carro acelerando e freando ao mesmo tempo); a “cadeira elétrica” (manobras radicais com carros preparados); o wheeling (“empinar” motos). O termo jogo-brincadeira expressa as dimensões de jogo e prazer que começam nos jogos de criança e passam pelas experiências lúdicas dos jovens, chegando às tentativas de controle da vertigem. Por outro lado, a compreensão dos “rachas”, não apenas como jogo-brincadeira, mas igualmente como ritos permanentes de virilidade, nas palavras de Le Breton31, permite focar a dimensão da competição, do desafio e da coragem expressos publicamente e de forma recorrente. A pesquisa de campo mostrou que rito (definido no sentido estrito de ordem, regulação e hierarquização) e jogo (associado idealmente à liberdade, à espontaneidade e ao prazer) não são, na complexidade da realidade vivida, tão estritamente opostos e desconectados como aparecem em alguns modelos teóricos. Entre jogo e rito, as práticas e narrativas dos “rachadores” não podem ser compreendidas por meio de polarizações do tipo espontâneo/regrado, lúdico/sério, gratuito/competitivo, mas sim por inter-relações das dimensões citadas: jogo-brincadeira e rito de masculinidade.

Jogo-brincadeira e “coisa séria”: sensações corpóreas, emoções e intensificação da vida O corpo (e as sensações) nessas práticas retoma o seu uso como “instrumento sensorial”, afirma Segalen30, e coloca em evidência a busca pela intensificação da vida e a fuga da rotina e da monotonia cotidianas. A automobilização acelerada desses jovens se dá por meio dos jogos e das brincadeiras que permitem a ruptura com os ritos do cotidiano e com a pressão das responsabilidades, utilizando, para tal, um domínio de liberdade e de possibilidades criativas. Portanto, o risco aí presente, ao invés de uma ameaça que deve ser eliminada é, ao contrário, um desafio constitutivo de uma vida intensa. O sentido de suas práticas se distancia do sentido prevalente de risco como “efeito negativo” ou “dano”, individuais ou coletivos, na linguagem de “grupos” e “fatores de risco”; e marca uma contraposição à abordagem dos riscos como efeitos colaterais ou produto das novas tecnologias. Para a maioria desses jovens, “chamar para o racha” é uma diversão, ou seja, uma atividade voluntária e na qual o prazer e o lúdico ocupam o lugar central: “a gente pode fazer isso 24 horas por dia, sem parar, só curtindo”; “toda preocupação desaparece, você não pensa em nada”. Desde crianças eles exercem com repetição o aprendizado dos motores. O prazer advém da fusão da potência corporal com a potência mecânica de suas máquinas, de uma sintonia entre corpo-máquina e suas primeiras experiências são vividas menos como risco e mais como brincadeira. Esse é o sentido central do risco para os “rachadores”: a busca da vertigem ou da (re)intensificação das sensações corporais, conforme Sennett7. O que importa para eles não é evidentemente evitar o risco, mas buscar experiências extremas nas quais a importância das sensações corporais se faz fundamental: a auditiva (som dos motores); a visual (faróis dos carros e motos que chamam para os “rachas”); a olfativa (cheiro do combustível e dos pneus); e a tátil (trepidação corporal): “Sensação de adrenalina no sangue, prazer, excitação, falta o ar, a gente fica fascinado”; “primeira vez que fiz um burnout eu não dormi durante uma semana”; “é tão bom como sexo, é melhor que trepar”; “cê fica com o pau duro, a gente fica rindo sozinho de prazer”. São sensações que mudam os registros da percepção do tempo e do espaço (realidade suspensa), do peso e da gravidade do corpo. Mas a vertigem para eles se produz em uma relação tênue entre falta de controle e controle, ou seja, brincadeira e diversão têm também um lado sério: “tem a ver com controle, domínio, concentração total, sensibilidade total, é adrenalina e o cara fica atento a tudo”; “Eu me deixo levar 2018; 22(67):1173-82 1177

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pela velocidade, por alguns segundos saio de mim, mas a atenção está sempre lá, como um pano de fundo”. A vertigem é buscada sob o modo da aceleração e da derrapagem controladas, pois a “renúncia da consciência” e a “embriaguez dos sentidos”, nas palavras de Le Breton2, são breves e devem estar sob controle: “é adrenalina pura, mas o cara atento a tudo não só com o carro, mas com seu desempenho, com o cara do lado”. Na verdade, a relação dos “rachadores” com as máquinas é ambígua: colocando-se sensorialmente em sintonia com elas, buscam seu controle no limite da potência de cada uma, mas às vezes elas parecem tomar vida própria como se fosse “vício”, “doença” ou “droga” ‒ “pra quem gosta disso, é uma doença”; “nossa droga é nosso carro”; “tá no sangue”; “é um vício”. Parece uma força contra a qual o sujeito pode muito pouco: “tava voltando pra casa, ouvindo um sonzinho, quando um carro me chamou pro racha”. Nesse caso, o domínio (vertigem sob controle) é posto em xeque e, como na dependência e na doença, coloca em risco a própria vida. Isso é reforçado pelo sentido de competitividade e pela vontade de ganhar, sempre presentes. Perder e ganhar são a essência dessas práticas: o melhor/mais rápido motor; a máquina melhor preparada; o melhor desempenho do piloto. A brincadeira faz interface com a competição, como no caso dos “rachadores” de moto que entram no vácuo da moto da frente para alcançar velocidade e tocar o pé do condutor (que corre deitado sobre a moto) para desequilibrá-lo e, dessa forma, ultrapassá-lo. Essa relação entre controle e descontrole diz respeito aos locais da cidade onde ocorrem os “rachas”, pois, em parte, são realizados nas ruas e estradas e, em outra parte, ocorrem quinzenalmente no autódromo local nas “sextas-quentes”, levando em conta os dispositivos do Estado, da polícia e de saúde e transformando-se em metáfora das biopolíticas que buscam enquadrar e “civilizar” as condutas perigosas. Porém, a maior parte deles não se deixa “recuperar” pelas instituições que eles consideram disciplinares e “coisa de criança”, pois a pista liberada é uma reta muito curta para alcançar velocidade, no caso das motos de baixa cilindrada, e o local vigiado com ambulância, bombeiros e seguranças representa apenas uma das possibilidades para a prática, sobretudo quando se trata da exposição dos carros e das performances e enquanto local de lazer. Esse circuito não permite, entretanto, os imponderáveis das ruas: “na rua tem mais emoção, mais adrenalina”, “na rua tem o desafio de fazer uma curva mais rápido que o adversário”. Poderíamos pensar na diferença proposta por Dunning e Elias32 entre “excitação séria”, produzida pelas situações vividas no cotidiano em contato com perigos reais (a rua), e “excitação mimética”, na qual a emoção é produzida pela mimese das situações reais no seio de espaços controlados (autódromo). Entretanto, a diferença entre rua e autódromo não é tão simples e nem de oposição, pois muitos dos jovens frequentam os dois locais e alguns enfatizam a possibilidade de “serem vistos” no autódromo, de “exporem” suas máquinas e suas performances. Os eventos no autódromo têm semelhanças com exposições, espetáculos, festas e encontros dos quais fazem parte comércio e mercado. O autódromo representa, dessa forma, uma metáfora dos dispositivos securitários e a rua, uma metáfora dos riscos corridos que transgridem os dispositivos biopolíticos.

Rito de masculinidade e busca de reconhecimento Pensar a importância que o aspecto ritual ganha nos “rachas” pode ser explicado face às dificuldades de construção de identidades estáveis na atualidade, sobretudo quando os percursos de vida são fluidos, flexíveis e incertos e as transições não mais demarcadas por ritos comuns. As passagens são múltiplas, os percursos indeterminados e os ritos “bricolados” pelos sujeitos, uma vez que dificilmente podem contar com ritos unívocos que propiciam significações coletivas. Os ritos atuais marcariam as passagens de maneira mais individual do que coletiva, de forma mais privada do que pública, possibilitando reforçar a construção de uma identidade original e individual, mas não um sentido de pertencimento coletivo ou de mudança de status social, conforme apontam diferentes autores como Balandier33, Jeffrey, Le Breton e Levy34, Le Breton31 e Segalen30.

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Nesse sentido, as práticas de risco juvenis podem adquirir uma forma de passagem ritualizada, individual, em pequenos grupos ou em redes de pares, fundamental para a construção das identidades. No contexto da pesquisa, o sentido de jogo dos “rachas” se articula ao sentido de rito permanente de virilidade, como proposto por Le Breton31, no qual a expressão de valores centrais de um modelo tradicional e hegemônico de masculinidade se fazem presentes por meio da comprovação pública de coragem, competição, audácia e desafio. Esse modelo foi discutido amplamente por autores como Almeida35, Calpe36, Cecchetto37, Connell38 e Kimmel39 em diferentes contextos socioculturais. O domínio técnico e o de competição são demonstrações públicas ritualizadas com a função não de marcar a passagem de uma fase de um status a outro, mas de dar visibilidade e reconhecimento aos olhos dos pares, das garotas e da polícia. A potência dos motores se transforma em metáfora da potência dos condutores, possibilitando a esses jovens responderem à impotência social com potência tecnológica. Eles têm acesso ao automóvel, esse bem preferencial de consumo, transformando e personalizando carros e motos à sua própria imagem, à medida de suas possibilidades e inseridos em uma ampla rede de trocas de serviços, peças e favores. Nos dicionários, “rachar” é se romper por excesso de tensão e “racha” é “fenda ou sulco causado por ruptura”; “estilhaço, lasca causados por impacto violento ou explosão”. A palavra é sugestiva, pois no senso comum se refere, de forma pejorativa, ao sexo feminino. Esse sentido não é sem importância, dada a frequente analogia que os “rachadores” fazem com o prazer experimentado na relação de seus corpos com a máquina acelerada e com o gozo sexual: “é melhor do que sexo”. As mulheres, entretanto, parecem representar um papel de espectadoras diante das quais os jovens se apresentam e encenam suas performances. As mais bonitas são também signos de prestígio ao lado dos veículos, um tipo de presença-ausência. Em todo caso, são mais difíceis de serem compreendidas do que os motores, conforme afirma um dos participantes: “casei com o meu carro”. Além disso, são discriminadas nesse universo: “[...] aos 14 anos pela primeira vez descobri a sensação de ter um volante nas mãos, essa sensação de superioridade masculina, você não admite que uma mulher dirija lentamente na sua frente, não só mulher, mas japonês, velhos, nada que seja lento”. Nos ritos permanentes de virilidade, dois aspectos desempenham um papel primordial: as pulsões de onipotência, sobretudo durante a adolescência/juventude, que dirigem contra a rotina morna de uma cotidianidade que transmite experiências de impotência e lhes dá a impressão de não terem escolhas ou controle sobre os seus percursos de vida; e a necessidade identitária que os leva à busca de reconhecimento em suas redes com quais compartilham gostos e interesses por marcas de carros e motos, música e estilos. Poderíamos falar de (micro)resistências que tendem a benefícios pessoais e identitários, por meio de performances e competências que permitem reconhecimento necessário à formação de suas identidades, proporcionado ganhos expressivos de singularização social, de autenticidade e de reconhecimento. O que esses jovens parecem expressar, nas palavras de Ferreira27, são um: [...] desejo de existência, de protagonismo e de emancipação, enquanto práticas potenciadoras de um sentimento de estar activamente no mundo e de ser “alguém” no mundo como compensação de uma espécie de sentimento de inexistência (Aubert, 2005), particular ao estatuto de cidadania dos jovens. (apud Ferreira, p. 120)

O sociólogo português José Machado Pais40 ajuda a compreender as práticas dos “rachadores” ao chamar a atenção para a dimensão de resistência grupal, presente em várias manifestações dos grupos urbanos juvenis, nas quais o corpo se destaca como locus de expressão e de enfrentamento: grafiteiros/pichadores com inscrições, desenhos e assinaturas que ocupam a cidade e skatistas que deslizam pelas ruas afrontando as convenções urbanas.

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Considerações finais Os dados de campo permitem reforçar um dos argumentos centrais da análise que é a interpretação do risco, ou de uma das formas de arriscar a vida relacionada ao sentido de riscoaventura, como possibilidade de construção identitária. No caso dos “rachadores”, foi necessário alargar as teorias sobre risco de maneira a incorporar também o sentido de risco buscado, almejado, enfrentado, uma vez que a busca pelas sensações intensas faz parte do jogo e propicia reconhecimento entre os pares e um sentimento de potência. Se os jovens “rachadores” não falam de risco e sim de “brincadeira” é porque aprenderam a testar e a controlar a vertigem nas experiências lúdicas e nos jogos de competição relacionados a manobras e velocidade; e, ao mesmo tempo, a valorizar a demonstração de coragem e de audácia, de forma a ritualizar seu desempenho. Além de serem reforçadas no processo de socialização, tais práticas demonstram que não há contradição nas atitudes de superestimação de si e de subavaliação do risco, próprias do contexto sociocultural atual, bem analisado por Peretti-Watel20, que, de um lado, conjura riscos e multiplica seguros de todo tipo e, de outro, valoriza o sucesso material, a iniciativa, a performance e o reconhecimento pessoais. Esse contexto desenvolve uma tendência securitária com relação aos riscos, mas cria, ao mesmo tempo, novas situações-limite (a invenção do carro acompanha a do acidente) e convive com a necessidade de experiências extremas. Podemos pensar os “rachadores” como aventureiros primários que “correm” riscos sem seguro de vida, pois os seguros simulariam a aventura, ao invés de lhes garantir uma experiência intensa, em um campo de escolhas e de competências próprias, que possibilita enfrentar as experiências de impotência diante das impossibilidades de escolhas e de controle sobre os seus próprios percursos sociais.

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artigos

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ARRISCAR A VIDA POR UMA CORRIDA: RISCO E CORRIDAS ILEGAIS ...

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Jeolás LS. Arriesgar la vida por una carrera: riesgo y carreras ilegales de autos y motos. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1173-82. El artículo se propone analizar prácticas y producción de significados de jóvenes aficionados a carreras ilegales de autos y motos y a maniobras radicales. La investigación etnográfica trata de comprender las conductas de riesgo entre los “pilotos” y el sentido que ellos propios atribuyen al peligro, a la aventura y a las sensaciones corporales presentes en sus prácticas. Eso obliga a ensanchar los significados de riesgo y comprender determinadas prácticas como contrapunto a las bio-políticas o a las formas de control de la vida. Los “pilotos” son jóvenes de clases populares y responden a la impotencia social que los destituye de un capital económico (y social) por medio de un capital tecnológico que les permite el reconocimiento de sus pares y visibilidad social, aunque sea de contrabando, debido a la ilegalidad de esas prácticas, cuando el riesgo-aventura pasa a ser un factor constitutivo de la construcción de la identidad.

Palabras clave: Juventud. Conductas de riesgo. Autos y motos. Carreras ilegales.

Submetido em 02/10/17. Aprovado em 04/12/17.

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Diretrizes curriculares nacionais das profissões da Saúde 2001-2004: análise à luz das teorias de desenvolvimento curricular Dayane Aparecida Silva Costa(a) Roseli Ferreira da Silva(b) Valéria Vernaschi Lima(c) Eliana Cláudia Otero Ribeiro(d)

Costa DAS, Silva RF, Lima VV, Ribeiro ECO. National curriculum guidelines for health professions 2001-2004: an analysis according to curriculum development theories. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1183-95.

This study aimed to analyze the National Curriculum Guidelines (DCNs) published from 2001 to 2004 for fourteen careers in the area of Health. A descriptive exploratory study was conducted in 2015 and 2016 through a documental analysis of the DCNs according to Resolution no. 287/1998. Data were collected from the website of the Ministry of Education. To analyze the data, an analytical matrix with two axes was used: Curriculum (evaluation process; teaching-learning process; curriculum organization) and Professional Profile (professional profile; healthcare; health education; health management). The results showed that the DCNs maintained aspects of the traditional model of teaching, and the innovative pedagogical orientations were not qualified in a clear way in these documents. The association of these findings with the presence of gaps in the articulation among education, health needs and the demands of the Brazilian National Health System (SUS) reveal that further analyses of this type should be carried out and that the DCNs should be reviewed.

Keywords: Health professionals. Curriculum. Brazilian National Health System.

CC

BY

O objetivo desta pesquisa foi analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do período de 2001 a 2004 para 14 carreiras da Saúde. Foi conduzido um estudo descritivo exploratório entre 2015 e 2016, mediante a análise documental das DCNs conforme a Resolução nº 287/1998. A coleta dos dados foi por consulta ao site do MEC/Portal. Para análise dos dados, utilizou-se uma matriz analítica com dois eixos/categorias: Currículo (processo de avaliação; processo de ensinoaprendizagem; e organização curricular) e Perfil Profissional (Perfil Profissional; Cuidado com a Saúde; Educação na Saúde; e Gestão em Saúde). Os resultados mostram que as DCNs mantiveram aspectos do modelo tradicional de ensino, com pouca qualificação nas orientações pedagógicas inovadoras. A associação desses achados com a presença de lacunas na articulação entre formação, necessidades de saúde e demandas do Sistema Único de Saúde (SUS) apontam o desafio de uma maior produção desse tipo de análise e da revisão das DCNs.

Palavras-chave: Profissionais da saúde. Currículo. Sistema Único de Saúde.

(a) Departamento de Serviço Social, Secretaria de Cidadania e Assistência Social. Rua Conde do Pinhal, 2.228, Centro. São Carlos, SP, Brasil. 13560-648. dayaninhacosta@ gmail.com (b, c) Programa de PósGraduação Gestão da Clínica, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, Brasil. roselifs@ufscar.br; valeriavl@ufscar.br (d) Médica. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. eclaudiar@gmail.com

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0376


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Introdução Com a intenção de contribuir para a consolidação do SUS no Brasil, o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Saúde (MS) instituíram as DCNs para 14 profissões da Saúde, com o objetivo de oferecer uma formação que possibilite a qualificação do cuidado da assistência à saúde, contemplando os princípios do SUS. As DCNs foram resultado de um processo que envolveu aspectos políticos, institucionais, culturais e educacionais. Alguns dos valores educacionais expressos nessas diretrizes podem ser encontrados no movimento escolanovista do início de século XX. No Brasil, esse movimento ganhou força com o Manifesto de 19321, que se contrapunha às tendências exclusivamente passivas, intelectualizadas e verbalistas da escola tradicional. Esse movimento apontava para a necessidade de mudança, voltada para uma formação integral do aluno, no intuito de desenvolver as capacidades de criação e construção ativa de conhecimentos. No fim de década de 1950, o manifesto de 19591 trouxe condições favoráveis à elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 19612. Já a Constituição Federal de 19883 contribuiu com princípios fundamentais para a revisão da LDB de 19964. Essa revisão valorizou a formação da cidadania, destacando a flexibilização curricular e as fronteiras da ciência no exercício profissional. Nesse contexto, a graduação foi entendida como um estágio do processo de formação, que deve ser contínuo para enfrentar a permanente mudança na produção de conhecimentos e uma formação que incorpore os processos de aprender a aprender e que busque atender às demandas da sociedade, além de priorizar uma formação de profissionais autônomos e flexíveis. Em 9 de janeiro de 2001, foi aprovado o Plano Nacional de Educação, por meio da Lei nº 10.172, que estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais, no sentido de assegurar a “flexibilidade e diversidade nos programas de estudos oferecidos pelas diferentes instituições de educação superior”5 (p. 33). As DCNs constituem um padrão geral de orientação para a elaboração dos projetos políticopedagógicos e currículos pelas Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil. A primeira resolução com diretrizes para a área da Saúde – Resolução CNE/CES no 1.133/2001 – de 7 de agosto de 20016, que dispõe sobre as DCNs dos cursos de Medicina, Enfermagem e Nutrição, apresenta elementos sobre perfil, competências e habilidades dos egressos, conteúdos curriculares, estágios e atividades complementares, organização do curso, acompanhamento e avaliação que atendam as demandas do SUS. O MEC, bem como os atores envolvidos na construção das DCNs, destaca que: [...] o projeto político-pedagógico seja construído coletivamente; a interdisciplinaridade conforme o processo ensino-aprendizagem; haja valorização das dimensões éticas e humanísticas; a inserção de professores e estudantes nos serviços existentes nas respectivas localidades fortaleça a parceria ensino-serviço; haja diversificação de cenários; a gestão desenvolva um sistema de corresponsabilização, de avaliação e acompanhamento livre de medos; e a seleção dos conteúdos seja orientada às necessidades sociais7. (p. 20)

De 2002 a 2004, foram estabelecidas as DCNs das demais carreiras da área da Saúde. Essas diretrizes tiveram ampla participação de diversas instituições e atores sociais na sua elaboração, tais como: Rede Unida, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Conselho Nacional da Saúde, Secretaria de Educação Superior, Fórum Nacional de Pró-Reitores das Universidades Brasileiras, associações de ensino, conselhos profissionais e comissões de especialistas de ensino da Secretaria de Educação Superior (SeSu/MEC)8. As DCNs, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação entre 2001 e 2004, inserem-se no processo de reforma educacional brasileira como resultado de um longo processo de lutas, debates, reflexões e propostas que são advindos dos Manifestos da Educação de 19321 e 19591, principalmente da LDB de 19964 e com a contribuição da Lei Orgânica da Saúde (LOS) no 8080/19909. Por se tratar de uma política pública que envolve amplamente as carreiras da área da saúde, considerando o longo tempo de implantação dessas DCNs, este trabalho busca analisar o conjunto 1184

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das diretrizes curriculares das 14 profissões da Saúde publicadas entre os anos de 2001 a 2004: Biomedicina, Biologia, Educação Física (Bacharelado), Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço social e Terapia ocupacional. Por meio dessa análise, pretende-se refletir sobre a formação em Saúde no contexto do SUS, com foco no papel das DCNs como diretriz para a elaboração de projetos para cursos das carreiras da Saúde. Ressalta-se que algumas DCNs já foram revisadas; no entanto, as novas DCNs não foram objeto desta pesquisa.

Aspectos metodológicos Trata-se de um estudo descritivo-exploratório sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais 2001-2004 referentes às 14 carreiras da saúde. A coleta de dados foi realizada por meio de consulta ao site do MEC, no qual se encontram as resoluções das 14 carreiras. A análise dos dados foi realizada por meio de categorias temáticas, compreendendo três etapas: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados obtidos; e interpretação10. A matriz analítica utilizada (Figura 1) foi construída por professores e mestrandos vinculados a um projeto de pesquisa de educação na Saúde de um Programa de Mestrado Profissional da área de Saúde Coletiva da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ao qual esta pesquisa foi vinculada.

EIXO CURRICULAR

EIXO PERFIL PROFISSIONAL

PROCESSO DE AVALIAÇÃO

PERFIL PROFISSIONAL

PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

CUIDADO À SAÚDE

ORGANIZAÇÃO CURRICULAR

EDUCAÇÃO NA SAÚDE

GESTÃO EM SAÚDE

Figura 1. Matriz Analítica

Essa matriz contempla dois eixos representados pelas categorias que delimitam o escopo desta investigação: Currículo e Perfil Profissional. Para a categoria Currículo, foram consideradas três subcategorias: 1) Processo de avaliação, 2) Processo de ensino e aprendizagem e 3) Organização curricular. Para a categoria Perfil Profissional, foram definidas quatro subcategorias, sendo: 1) Perfil Profissional, 2) Cuidado com a Saúde, 3) Educação na Saúde e 4) Gestão em Saúde. A caracterização da categoria Currículo foi ancorada nas teorias sobre desenvolvimento curricular. Essas teorias foram estabelecidas considerando-se o processo de seleção dos conteúdos curriculares em um contexto que articula sociedade, cultura e educação. Assim, destacam-se as teorias tradicional, crítica e pós-crítica11. 2018; 22(67):1183-95 1185

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Segundo a teoria tradicional, baseada na linha filosófica positivista e inspirada na administração “científica” de Taylor, os docentes e as escolas passaram a privilegiar a divisão de tarefas para a obtenção de uma maior eficiência no sistema educacional. Os conteúdos selecionados pelos docentes passaram a ser expressos na forma de comportamentos a serem alcançados, segundo uma organização mais eficiente para atingir os objetivos estabelecidos. O professor se manteve no centro do processo ensino-aprendizagem e os conteúdos passaram a ser abordados segundo uma perspectiva tecnicista e voltada à inserção dos alunos no mercado de trabalho11. Considerando a hegemonia da teoria tradicional no desenvolvimento curricular, as teorias crítica e pós-crítica emergiram a partir da análise do impacto da organização curricular tradicional na relação educação-trabalho. A teoria crítica destacou, fundamentalmente, o componente histórico do desenvolvimento curricular, conceituando o currículo como sendo uma construção social. Por considerar a escola como um equipamento voltado à reprodução do status quo, a tendência crítica não aportava alternativas para a organização curricular. Nesse contexto, as teorias pós-críticas passaram a defender que a sociedade não poderia ser vista como uma totalidade e tampouco as escolas poderiam ser vistas de modo determinista. Embora compartilhem as explicações histórico-sociais da tendência crítica, elas passaram a atribuir aos contextos locais uma maior relevância na construção de propostas alternativas para os projetos educacionais12,13. As teorias pós-críticas ressaltam a diversidade, reconhecem que as diferenças são decorrentes dos sentidos atribuídos pelos sujeitos aos fenômenos presentes na sociedade e que estes são determinados pelo contexto social, político e econômico11. De modo geral, as DCNs se alinham às teorias pós-críticas, no sentido de que os currículos devem responder às necessidades sociais, enquanto a educação deve-se responsabilizar pela formação de profissionais capazes de pensar e agir de modo crítico, propositivo e transformador nas sociedades. A proposta curricular defendida pelas DCNs tem a intenção de superar as práticas educacionais fragmentadas, tecnicistas e descontextualizadas. Apesar dessa orientação, os atuais currículos convivem com influências das três teorias descritas11-13. Assim, considera-se um currículo inovador aquele cuja proposta educacional busca superar as fragmentações entre teoria e prática, a desarticulação entre disciplinas, a descontextualização de saberes, o predomínio do uso de metodologias passivas de ensino-aprendizagem, o privilégio da memorização em detrimento do raciocínio e a abordagem atomística de competência. A concepção holística de competência, em contraposição à atomística, representa uma das mais relevantes características de currículos inovadores. Essa relevância se expressa pela articulação “de atributos (cognitivos, psicomotores e afetivos) que, combinados, ensejam distintas maneiras de realizar, com sucesso, tarefas essenciais e características de determinada prática profissional”14 (p. 374). Além dessa característica, a abordagem dialógica da concepção holística destaca: “[...] a história das pessoas e das sociedades nos seus processos de reprodução ou de transformação dos saberes e valores que legitimam os atributos e os resultados esperados numa determinada área profissional”15 (p. 371). Desse modo, a concepção dialógica de competência coloca na interação entre os elementos constitutivos da competência a força da síntese que combina um conjunto de atributos para realizar uma prática profissional, segundo contexto e critérios de excelência socialmente e cientificamente estabelecidos. O diálogo entre os constituintes da competência requer, necessariamente, a articulação entre a formação e o mundo do trabalho15. Assim, o percurso metodológico contemplou: 1o) Identificação e agrupamento dos artigos das 14 DCNs estudadas de acordo com cada categoria em núcleos de sentido, ou seja, núcleos que, de modo literal ou interpretativo, alinhavam-se às categorias de análise. 2o) Categorização desses agrupamentos segundo características tradicionais ou inovadoras. Foram consideradas inovadoras aquelas proposições cujo(a): •  processo de avaliação do estudante apresentasse a avaliação de modo acolhedor, articulado, participativo, contínuo, propositivo e baseado na ética16-18; •  processo ensino-aprendizagem apontasse uma visão crítica, reflexiva e criativa, sendo o papel do aluno ativo e o do professor como um facilitador ou mediador da aprendizagem; 1186

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•  organização curricular priorizasse a articulação entre disciplinas, com integração das ações em saúde segundo uma perspectiva multiprofissional; •  perfil profissional definisse uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, que valorizasse as necessidades reais do SUS; •  cuidado com a saúde destacasse a integralidade do cuidado, a autonomia do sujeito, a criação de vínculos, a humanização das ações, a articulação entre as dimensões biológica, subjetiva, étnica, socioeconômica, política, ambiental e cultural; •  educação na saúde explicitasse a formação na perspectiva da transformação das práticas, da abertura e proatividade para aprender ao longo da vida, da busca contínua por novos conhecimentos no sentido da educação permanente; e •  gestão em saúde: apresentasse uma perspectiva de gestão compartilhada e do trabalho em equipes multiprofissionais, voltada ao melhoramento contínuo das práticas em saúde e cuidado. 3o) confronto do material explorado com os marcos conceituais de cada categoria. 4o) interpretação crítica dos significados e propósitos da análise dos dados coletados por categoria. Resultados e discussão Eixo Curricular Processo de Avaliação do Estudante Nas Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs dos cursos de Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia e Terapia Ocupacional, pode-se observar que para as avaliações dos estudantes, além do domínio cognitivo, também foram considerados outros domínios, como a avaliação de competências, habilidades e conteúdos19. Orientam, ainda, a utilização de metodologias e critérios de avaliação em consonância com o sistema de avaliação do IES. As DCNs da Educação Física (bacharelado) acrescentaram na avaliação do estudante a verificação de conteúdos e experiências relacionadas às ações político-sociais, ético-morais, profissionais e científicas pertinentes a essa carreira. As DCNs da Psicologia nessa categoria apenas citaram a necessidade de assegurar os procedimentos específicos da avaliação em cada atividade acadêmica do curso, não havendo artigo específico sobre a avaliação do estudante. Nas DCNs das Ciências Biológicas e Serviço Social, por sua vez, não houve menção ao processo de avaliação do estudante. Os textos das DCNs dos cursos de Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia e Terapia Ocupacional referem-se à “avaliação de competências, habilidades e conteúdos”. Pode-se observar que há uma sobreposição na utilização dos termos “competência” e “habilidades”. Segundo o referencial teórico utilizado, as habilidades são consideradas capacidades relativas ao domínio psicomotor e fazem parte do conjunto de capacidades que, juntamente com outros elementos, conformam a concepção holística de competência. A concepção de competência referenciada: “[...] trabalha com o desenvolvimento de capacidades ou atributos (cognitivos, psicomotores e afetivos) que, combinados, conformam distintas maneiras de realizar, com sucesso, as ações essenciais e características de uma determinada prática profissional”15 (p. 372). Em relação à definição de conteúdo, Libâneo (apud SILVA)20 considera como conteúdos os conhecimentos sistematizados, as habilidades, os hábitos, as atitudes e as convicções. Desse modo, considera-se que os textos das DCNs não apresentam concepções claras e especificas desses elementos, seja para uma melhor definição do processo de avaliação do estudante ou mesmo para a organização curricular. Os artigos das DCNs, de certa forma, suscitam dúvidas e podem gerar diferentes interpretações. Considerando-se que, predominantemente, a avaliação tradicional se expressa pela classificação dos desempenhos dos estudantes por meio de notas relativas à verificação do domínio cognitivo, 2018; 22(67):1183-95 1187

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verificados em provas objetivas21,22, há fragilidades nas DCNs para indicarem meios e métodos alternativos que permitam uma avaliação articulada das capacidades cognitiva, psicomotora a atitudinal, assim como a construção e reconstrução de saberes e práticas ao longo da formação. Processo Ensino-Aprendizagem As DCNs dos cursos de Biomedicina; Enfermagem; Medicina Veterinária e Nutrição trazem elementos que indicam um processo de ensino-aprendizagem inovador, na medida em que recomendam uma visão crítica, reflexiva e criativa da aprendizagem, na qual o aluno é considerado um sujeito ativo nesse processo. Nessa subcategoria, foram encontradas ideias relativas à educação para a cidadania, participação plena na sociedade e o estímulo para a reflexão sobre a realidade social. As capacidades de aprender a aprender, a fazer, a saber, a conviver, a ser e a trabalhar em grupos aparecem vinculadas à interação de coletivos e às relações interpessoais. Essa orientação segue a perspectiva sociocultural e humanística da aprendizagem, na qual o aluno é visto como sujeito, construtor do conhecimento de forma autônoma e com a perspectiva da educação para a cidadania, participação na sociedade e compreensão de contextos a partir do cotidiano na saúde e em cenários reais da prática. Ao vivenciar esse processo, o aluno é capaz de construir o próprio conhecimento, no sentido de não reproduzir e sim transformar. Dessa forma, é possível superar a consciência ingênua para dar lugar à consciência crítica. As DCNs dos cursos de Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Odontologia e Terapia Ocupacional abordam de forma breve as características de como deve ser o processo de ensinoaprendizagem. Elas apresentam somente que o processo de aprendizagem deve ser centrado no aluno como sujeito e no professor como facilitador. As DCNs da Farmácia referem-se a um equilíbrio teórico-prático, “desvinculado da visão tecnicista” de modo a permitir a “aprendizagem da arte de aprender”23. As DCNs dos cursos de Ciências Biológicas, Educação Física (bacharelado), Psicologia e Serviço Social não explicitam artigos que apresentem elementos que contribuem para a compreensão do processo de ensino-aprendizagem. Nessa subcategoria, algumas DCNs avançam na especificação da inovação pedagógica, apontando para uma concepção de aprendizagem crítico-reflexiva. O papel do professor é caracterizado como sendo de um facilitador na construção e compartilhamento de saberes, sendo os alunos considerados sujeitos ativos nesse processo, ao invés de receptores passivos. Organização Curricular As DCNs de Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina veterinária, Nutrição e Odontologia apresentam elementos da teoria crítica e pós-crítica11 quando apontam para um currículo que tenha “compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural”19 (p. 4). Entretanto, nessas DCNs, há indicativos de modelos de organização curricular baseados em disciplinas, em uma variante por áreas de conhecimento24. Em geral, os currículos baseados em disciplinas são traduzidos segundo conteúdos temáticos, frequentemente desarticulados entre si. Ressalta-se que, apesar do enfoque do currículo baseado em disciplinas, algumas DCNs apresentam artigos que indicam as necessidades das atividades teóricas e práticas estarem presentes desde o início do curso, de forma integrada e interdisciplinar. Outras DCNs apontam as atividades práticas desde o início do curso, mas não indicam a integração teoria e prática. Outras ainda nem citam a necessidade de atividades práticas desde o início do curso. A participação do estudante na organização curricular foi observada apenas por meio das Atividades Curriculares Complementares (ACC), expressas no Parecer no 67 do CNE/CES25, e na Resolução CNE/CES no 2/200726. Essas atividades trazem flexibilidade aos estudos, de modo que os estudantes exerçam com maior autonomia a busca por novos conhecimentos, conforme suas necessidades. Esses apontamentos trazem a ideia de um modelo de organização curricular centrado no aluno. 1188

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Outro núcleo de sentido dessa subcategoria gira em torno da prática profissional interdisciplinar27. Pode-se considerar que, mesmo nas carreiras que focalizam essa orientação, essa expressão ocorre de forma pouco específica. As DCNs da Educação Física (bacharelado) destacam-se das demais, na medida em que expressam que “a formação do graduado em Educação Física deve assegurar a indissociabilidade da teoria prática”28 (p. 4), isto é, que o currículo deve integrar a teoria com a prática por meio dos estudos interdisciplinares. Citam brevemente a questão da vivência do aluno nas práticas sociais, por meio dos estágios curriculares, mas não apresentam essa orientação com mais detalhes. Nas DCNs da Psicologia, a organização curricular é orientada segundo um modelo baseado em disciplinas fundamentadas em eixos estruturantes que articulam conhecimentos, habilidades e competências. Apesar de citarem em alguns trechos a intenção de articular saberes, saberes e práticas são apresentados de forma pouco articulada, ficando mais próxima da organização tradicional dos currículos. As DCNs da profissão de Terapia Ocupacional se diferenciam das outras carreiras, pois apresentam elementos que remetem às teorias crítica e pós-crítica do desenvolvimento curricular, quando ressaltam que a formulação da política de saúde está fundamentada nas relações entre saúde e sociedade. Essa carreira relaciona a ideia da diversidade e do multiculturalismo como perspectivas para a compreensão dos fenômenos sociais, culturais, políticos e as problemáticas de saúde da população, em um sentido emancipatório e ampliado de vivências, de forma democrática e ética. As DCNs dos cursos de Ciências Biológicas e Serviço Social não mencionam artigos que tragam orientações sobre como organizar os respectivos currículos. Assim, na categoria Organização Curricular, há indícios de um modelo de organização curricular inovador; porém, em alguns textos das DCNs, há artigos que contradizem os princípios inovadores do currículo ou que apresentam pouca clareza quanto aos direcionamentos a serem seguidos no sentido de uma proposta transformadora para os currículos tradicionais, organizados segundo disciplinas.

Eixo Perfil Profissional Perfil Profissional Embora as DCNs das 14 carreiras da área de Saúde apresentem uma importante diversidade em relação ao perfil de competência desejado, assemelham-se quando citam que os egressos devem ter uma formação “generalista, humanista, crítica e reflexiva”. Direcionam as instituições formadoras ao vincularem o conhecimento construído ao longo do curso às necessidades reais da população. Essa orientação só não está presente nos cursos de Ciências Biológicas e Serviço Social que não contemplam a categoria Perfil. As DCNs dos cursos de Biomedicina, Educação Física (bacharelado), Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia e Terapia Ocupacional citam que os egressos devem se pautar em princípios éticos e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade, em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico e intelectual. Cabe aqui destacar que os cursos que se preocupam em atrelar o ensino, formação e serviço à realidade da população expressam responsabilidade social e compromisso com o cuidado em saúde em todos os níveis de atenção, no sentido da articulação entre promoção, prevenção e recuperação e/ou reabilitação da saúde19. O perfil dos enfermeiros e dos médicos nas respectivas diretrizes destaca que o egresso deve estar capacitado a atuar “com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano”19,29 (p. 1). As DCNs da Psicologia não citam de forma clara a palavra “perfil”, mas trazem indicativos da atuação profissional na área de saúde. As DCNs dos cursos de Ciências Biológicas e Serviço Social não mencionam artigos que apresentam informações que colaborem para a compreensão da categoria Perfil Profissional. Para a categoria Perfil Profissional, praticamente todas as carreiras defendem uma formação generalista, humanista, crítica, reflexiva e que valoriza a relevância social nas ações em saúde. Esse 2018; 22(67):1183-95 1189

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tipo de perfil traz avanços significativos para a formação do profissional de saúde, uma vez que orienta práticas transformadoras em detrimento das práticas reprodutivas. Cuidado com a Saúde A maioria dos cursos de saúde, exceto Ciências Biológicas, Educação Física (bacharelado) e Serviço Social, cita a atenção à saúde como um conjunto de ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde. Essas dimensões do cuidado são expressas de forma integrada e articulada aos problemas da sociedade, em busca de resoluções e respostas para estes. As DCNs dos cursos de Enfermagem, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Psicologia e Terapia Ocupacional trazem o sentido mais próximo do cuidado, pois reconhecem que o profissional tem que realizar ações conforme a necessidade de saúde do indivíduo, família e/ ou sociedade, na perspectiva da integralidade em todos os níveis de complexidade do sistema. A direção dessas DCNs é de formar profissionais que realizem práticas com criticidade, resolutividade e propositividade. As DCNs de Biomedicina, Farmácia, Fisioterapia e Odontologia defendem que a prática do profissional siga a linha da integralidade e valorizam que os trabalhadores do SUS tenham sensibilidade e comprometimento com o ser humano, de forma a valorizar e respeitar o usuário atendido. As DCNs do curso de Educação Física (bacharelado) não citam de forma objetiva e esclarecedora as orientações para a subcategoria cuidado à saúde. Apesar de pontuar que a formação deve ser orientada pelos “valores sociais, morais, éticos e estéticos próprios de uma sociedade plural e democrática”28, essas recomendações são descritas de forma mais técnica voltada às ações profissionais em si. Não citam a questão de prestar o cuidado para dar respostas aos problemas de saúde das pessoas no contexto do SUS. Embora as DCNs não explorem de forma mais direta a questão do cuidado à saúde, considerase que estes documentos indicam a atenção à saúde baseada na integralidade, pois destacam as dimensões biopsicossociais do processo saúde-doença e apontam o cuidado para além da abordagem técnica, no sentido de serem produzidas respostas para os problemas da saúde, visando à mudança de relações, modos de produção e valor atribuído à vida humana. Também não foram encontrados artigos que, de forma esclarecedora, apontassem orientações para a formação de profissionais capazes de proporcionar um cuidado pautado na ampliação da autonomia das pessoas sob cuidado, fazendo com que estes se reconheçam enquanto sujeitos construtores do próprio processo saúde/doença, com as necessidades singulares e permeadas por complexidades. A assistência integral, a ética, o respeito e entendimento das dimensões biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental e cultural, entre outros condicionantes da vida humana, são mencionados brevemente, ou, em algumas DCNs, não são citados. Portanto, nesta subcategoria, as DCNs apresentam tanto orientações que apontam modelos tecnicistas e fragmentados quanto outras voltadas à integralidade do cuidado. Nesse sentido, destacase que, em ambas as situações, essas orientações são pouco claras ou específicas. Educação na Saúde Para Ceccim, Bravin e Santos30, a educação na saúde deve ser entendida como uma política pública. Esses autores citam pontos de tensão e desafios na relação entre a formação em saúde e a produção de respostas do sistema às necessidades das populações, no contexto do SUS. Dentre esses pontos, destacam-se: 1) a inadequação da formação profissional em saúde considerando os atuais desafios do cuidado; 2) a pouca eficácia das atividades educativas convencionais; 3) a necessidade de elevação de qualidade e da resolutividade da atenção à saúde; 4) a insuficiente articulação entre ensino e trabalho; e (5) a dificuldade de reconhecimento do trabalho como espaço de produção de saberes. Considerando esse contexto, as DCNs dos cursos de Biomedicina, Enfermagem, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia e Terapia Ocupacional orientam uma formação voltada à superação dos desafios acima mencionados. Apontam que os graduandos e, inclusive, os profissionais formados devem desenvolver capacidades para a identificação 1190

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das próprias necessidades educacionais e busca por novos conhecimentos, de modo articulado com processos de educação permanente. As DCNs da Educação Física (bacharelado) não explicitam a formação no contexto do SUS. Os artigos dessa carreira, alinhados a esta subcategoria, trazem apenas elementos voltados às especificidades da própria profissão. Não há menção de processos de educação permanente como um dos componentes da educação na saúde. As DCNs da Psicologia citam a educação permanente como uma capacidade do egresso de aprender de forma contínua, sendo o desenvolvimento dessa capacidade um compromisso da formação. Nas diretrizes curriculares para essa carreira, há uma breve menção à capacidade de identificação das situações e problemas específicos da prática profissional, mas sem citar claramente que esta atuação também pode ocorrer no âmbito do SUS, de modo orientado às necessidades de saúde da população. As DCNs dos cursos de Ciências Biológicas e Serviço Social não apresentam artigos com informações que se alinhem a essa subcategoria. Mesmo considerando a existência de políticas públicas voltadas à indução de mudanças nas graduações em Saúde, a pouca especificidade dos artigos nessa subcategoria pode dificultar a incorporação de tecnologias educacionais que desloquem a centralidade do processo de aprendizagem31. O deslocamento dessa centralidade do docente para o estudante pode ser considerado um dos mais expressivos desafios da prática pedagógica, que nos acompanha desde o fim do século XIX. Embora tenha sido reativado no início do século XX com o movimento escolanovista, e mais recentemente com as metodologias ativas de ensino-aprendizagem no ensino superior, as inovações na prática pedagógica convivem de maneira contra-hegemônica com as práticas tradicionais32,33. Para além das mudanças relativas às tecnologias educacionais, o “[...] campo de construção de conhecimento, necessariamente inter/transdisciplinar, em que [há] os entrelaçamentos entre filosofia, ciência, técnicas, tecnologias e práticas sociais [...]”31 (p. 4) também pode ser considerado um importante desafio para a organização de currículos baseados na interação de saberes e práticas. Essa abordagem, quando aparece nas diretrizes, também é pouco específica. Em função dessas limitações, a orientação de uma educação na saúde voltada à formação de profissionais críticos, reflexivos, proativos, autônomos e capazes de produzirem um cuidado contextualizado nas realidades singulares e locais encontra poucos subsídios práticos que orientem a organização curricular, apesar do claro isomorfismo entre a relação professor-estudante no campo da educação e a relação profissional-paciente no campo do cuidado. Gestão em Saúde Nas DCNs de Biomedicina, Educação Física (bacharelado), Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Terapia Ocupacional, a gestão é mencionada como ato de administrar e gerenciar a “força de trabalho, recursos humanos e materiais de informação” e, “os profissionais devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou líderes de equipe de saúde”. Algumas capacidades da área da gestão são mencionadas nas DCNs para o exercício das profissões, tais como liderança, tomada de decisão, administração e gerenciamento. Porém, a forma desarticulada como são apresentadas sugerem um maior alinhamento às Teorias da Administração Clássica, reproduzindo um modelo de administração que diferencia aqueles que planejam daqueles que operam os processos de trabalho34. Nesse sentido, não foram encontrados elementos que apontassem para uma gestão compartilhada com outros profissionais na perspectiva da integralidade35. Uma gestão compartilhada, construída em parceria por equipe e usuário, possibilitaria o envolvimento e o compartilhamento na tomada de decisão e na implementação de objetivos e metas, fortalecendo-se, assim, processos em cogestão36. As DCNs dos cursos de Ciências Biológicas; Educação Física (bacharelado) e Serviço Social não apresentaram artigos com informações alinhadas a essa subcategoria, particularmente na perspectiva do trabalho coletivo em saúde. 2018; 22(67):1183-95 1191

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Cabe destacar, ainda, a inexistência de orientações para a gestão do cuidado em saúde, particularmente em relação ao uso de ferramentas e dispositivos de gestão que, articulados aos processos de cuidado, promovem melhorias no cuidado integrado e na qualidade da atenção, com segurança para pacientes e profissionais. Assim, a análise dessa subcategoria revela o ainda presente desafio de melhor orientar a formação de profissionais na direção da gestão do cuidado por meio de indicações e posicionamentos mais claros referentes à articulação entre gestão e saúde, de modo a contemplar as dimensões política, social, econômica e cultural da produção de saúde e o papel dos profissionais de saúde nesse campo de atuação.

Considerações finais A partir da análise dialogada das subcategorias Processo de Avaliação do Estudante, Processo Ensino-Aprendizagem e Organização Curricular que compõem o eixo curricular, pode-se apontar que a maioria das DCNs apresenta elementos do modelo tradicional de ensino e, mesmo que algumas carreiras tenham explicitado orientações para a superação das práticas hegemônicas, as mudanças inovadoras não foram expressas de forma clara nos documentos estudados. No eixo Perfil Profissional, que contemplou as subcategorias Perfil Geral, Cuidado com a Saúde, Educação na Saúde e Gestão em Saúde, as DCNs apresentam a intencionalidade de trazer um novo olhar para o perfil das profissões de saúde. Entretanto, a tradução dessa intenção em orientações organizativas para o currículo ainda requer maior especificidade. Esses achados apontam os desafios enfrentados na construção de diretrizes nacionais que devem orientar o desenvolvimento curricular considerando melhores práticas levando-se em conta a articulação entre educação e trabalho, sem padronizar ou cercear a produção de projetos singulares. Apesar de as DCNs de 2001 a 2004 representarem um significativo avanço nas discussões e orientações para uma formação alinhada aos desafios do século XXI, há ainda a necessidade de revisões que possibilitem uma maior especificação da organização de saberes e práticas de modo interdisciplinar e interprofissional. Nesse sentido, uma melhor conceitualização sobre a noção de competência e a articulação com a avaliação dos diferentes componentes das práticas competentes devem ser implementadas. A revisão desses referenciais tende a qualificar a base teórica que orienta a formação por competência e a tradução desta na organização de currículos que promovam o desenvolvimento articulado de capacidades mobilizadas na realização de ações profissionais contextualizadas e baseadas em critérios de excelência. Espera-se que, após 14 anos da publicação dessas DCNs, as instituições formadoras, a sociedade e os atores envolvidos na luta por mudanças educacionais possam manter vivas e atualizadas essas diretrizes. Esse processo deve ser conduzido por meio de revisões que conservem as conquistas alcançadas e avancem no enfrentamento dos desafios da formação de profissionais de saúde para uma atuação voltada à consolidação dos princípios do SUS, baseada nos valores de cidadania e justiça social.

Contribuição dos autores Dayane Aparecida Silva Costa teve participação ativa na redação, discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Roseli Ferreira da Silva, Valéria Vernaschi Lima e Eliana Cláudia Otero Ribeiro tiveram participação ativa na discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho.

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Costa DAS, Silva RF, Lima VV, Ribeiro ECO. Directrices curriculares nacionales de las profesiones de la Salud 2001-2004: análisis a la luz de las teorías de desarrollo curricular. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1183-95. El objetivo de esta investigación fue analizar las Directrices Curriculares Nacionales (DCNs) del período de 2001 a 2004 para 14 carreras de Salud. Se realizó un estudio descriptivo exploratorio entre 2015 y 2016, mediante el análisis documental de las DCNs conforme la Resolución nº 287/1998. La colecta de los datos se realizó mediante consulta a la página web del MEC/Portal. Para análisis de los datos, se utilizó una matriz analítica con dos ejes/categorías: Currículo (proceso de evaluación, proceso de enseñanzaaprendizaje y organización curricular) y Perfil Profesional (perfil profesional, cuidado con la salud, educación en salud y gestión en salud). Los resultados muestran que las DCNs mantuvieron aspectos del modelo tradicional de enseñanza con poca calificación en las orientaciones pedagógicas innovadoras. La asociación de esos hallazgos con la presencia de lagunas en la articulación entre formación, necesidades de salud y demandas del Sistema Brasileño de Salud (SUS) señalan el desafío de una mayor producción de ese tipo de análisis y de la revisión de las DCNs.

Palabras clave: Profesionales de la salud. Currículo. Sistema Brasileño de Salud.

Submetido em 20/07/17. Aprovado em 05/02/18.

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Narrativas de estudantes de Medicina e Enfermagem: currículo oculto e desumanização em saúde

Maria Auxiliadora Craice De Benedetto(a) Dante Marcello Claramonte Gallian(b)

De Benedetto MAC, Gallian DMC. The narratives of medicine and nursing students: the concealed curriculum and the dehumanization of health care. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1197-207.

A predominantly biomedical focus attributed to teaching and practice in health sciences contributes to a dehumanization process, which is one of the main complaints of Brazil’s health system users. Any strategy that intends to address the issue depends on the presence of well-educated health professionals from both the technical and humanistic point of view. The greatest deficits concern humanistic education. The present article presents part of a larger study that aimed to investigate the effectiveness of using narratives as a didactic resource in humanistic teducation of medical and nursing students. Among the themes that emerged from the qualitative methods, emphasis goes to the concealed curriculum, which permeated all the other themes and against which students could be inoculated through exposure to a patient-centered teaching model that gives priority to ethical reflections.

Um enfoque predominantemente biomédico atribuído ao ensino e à prática das Ciências da Saúde contribui para o processo de desumanização, que representa uma das principais queixas dos usuários dos sistemas de saúde em nosso país. Qualquer estratégia para enfrentar a questão depende da presença de profissionais de saúde bem formados de um ponto de vista técnico e humanístico. As maiores deficiências concernem à formação humanística. Este artigo constitui um recorte de um estudo cujo objetivo foi investigar a efetividade da utilização de narrativas como recurso didático na formação humanística de estudantes de Medicina e Enfermagem. Entre os temas emergentes a partir de métodos qualitativos, destacou-se o currículo oculto, que permeou todos os demais e contra o qual os estudantes poderiam ser imunizados mediante a exposição a um modelo de ensino centrado no paciente e que prioriza a reflexão ética.

Keywords: Narratives in health. Medical and nursing education. Humanization in health. Concealed curriculum.

Palavras-chave: Narrativas em saúde. Educação médica e de enfermagem. Humanização em saúde. Currículo oculto.

CC

BY

(a, b) Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi), Escola Paulista de Medicina (EPM), Universidade Federal de São Paulo. Rua Loefgreen, 2032, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. 04040-003. macbet@ sobramfa.com.br; dante.cehfi@epm.br

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622017.0218


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Introdução O paradigma cartesiano-newtoniano que fundamenta a pesquisa científica desde o século XVII estendeu-se, a partir da física clássica, aos diferentes campos do conhecimento, incluindo a Biologia e as Ciências Sociais e Humanas. O modelo biomecânico decorrente dessa visão positivista é alicerçado na especialização, fragmentação e avanços tecnológicos. A metáfora do universo como uma grande máquina, um imenso relógio, cuja totalidade é a soma das partes, foi o grande trunfo desse paradigma. Ao adotar-se essa metáfora em relação aos seres vivos, incluindo os seres humanos, estabeleceu-se o modelo biomédico de ensino e de prática da medicina, que predomina na atualidade. Neste, deixou-se de contemplar as dimensões sutis do ser humano, as quais, por milênios, foram consideradas importantes no que concerne à forma como os indivíduos adoecem e aos processos de cura1. Além disso, na atualidade, comparar-se o médico a um mecânico que repara as partes avariadas do corpo humano não chega causar estranheza entre profissionais de saúde e leigos2. Não podemos negar que o modelo biomédico assegurou a diminuição de grande parte do sofrimento humano decorrente de doenças e traumas e ainda mantém a promessa de que todos os problemas médicos têm ou terão, em curto prazo, uma solução propiciada pelo vertiginoso progresso científico, visão essa constantemente veiculada nos meios de comunicação, o que faz com que os leigos também valorizem e coloquem todas suas esperanças nesse estilo de prática da medicina. Todavia, profissionais e usuários dos sistemas de saúde em todo o mundo têm consciência de que muitas promessas jamais poderão ser cumpridas e sentem que algo está faltando. Este modelo fracassa, por exemplo, especialmente nas questões em que a tecnologia não pode mais prover soluções definitivas, como é o caso dos cuidados paliativos3. McWhinney4 considera que a fragmentação da profissão e a ênfase na tecnologia tiveram um efeito muito sério, que é a deterioração do relacionamento médico-paciente, sendo que este foi – e sempre será – a base de uma boa prática da medicina5. Na verdade, o que o paciente quer é ser cuidado por alguém que, além de competência técnica, saiba entendê-lo como um ser humano com sentimentos, que busca uma explicação para sua enfermidade e que anseia por respeito e amparo em seu sofrimento6. Por não comportar aspectos essenciais dos indivíduos, tais como singularidade e subjetividade, que denotam sua humanidade, a aplicação exclusiva do modelo biomédico propicia a desumanização do cuidado à saúde. Em nosso país, esta tem sido largamente divulgada pela mídia e explicitada em pesquisas de opinião7, sendo caracterizada por sintomas tais como: filas desnecessárias; descaso e descuido com as pessoas; incapacidade de lidar com histórias de vida, sempre singulares e complexas; práticas éticas descabidas, que incluem a discriminação, intimidação e submissão a práticas e procedimentos desnecessários; e exclusão e abandono8. Esses são sintomas que persistem apesar de todas as ações do Sistema Único de Saúde (SUS) para suprimi-los, entre as quais destacamos o Programa de Saúde da Família (PSF)9 e o Humaniza SUS10. Certamente, qualquer iniciativa que vise à humanização em saúde requer a presença de profissionais motivados, idealistas e bem formados tanto do ponto de vista técnico quanto humanístico. Essas questões não são alheias ao Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação do Brasil, conforme evidenciam as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde. Estas recomendam a formação de um profissional capaz de atuar de acordo com uma visão biopsicossocial que abranja as necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS. O perfil almejado do formando egresso/profissional é um enfermeiro ou médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva11. Assim, não se trata de abolir o modelo biomédico, mas sim de incorporar novos modelos que possam suprir as deficiências concernentes à formação humanística na área de saúde. Nesse sentido, o ensino das humanidades médicas tem sido introduzido em faculdades de medicina ao redor do mundo. Em nosso país, essa tendência apenas se inicia e é caracterizada por algumas iniciativas isoladas acerca das quais temos notícias eventualmente12. Consideram-se humanidades médicas como algumas combinações de disciplinas relevantes do campo das modernas artes liberais – ética e filosofia, estudos acerca da espiritualidade, literatura e assim por diante – enfocadas em contextos médicos13. Shapiro et al.14, cientes da falta de clareza em relação ao objeto de estudo da disciplina, referem que 1198

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as humanidades médicas utilizam métodos e conceitos de uma ou mais disciplinas que compõem as humanidades e ensinam aos estudantes uma reflexão crítica visando a uma prática mais humanista e são por sua própria natureza interdisciplinares e colaborativas. Um modelo que vem se desenvolvendo nas últimas décadas em cenários clínicos e didáticos da área de saúde – medicina baseada em narrativas (MBN)15, medicina narrativa ou narrative medicine16 – tem-se demonstrado congruente com as humanidades médicas. O fundamento da MBN consiste em escutar as histórias dos pacientes com atenção e empatia, mesmo aquelas que aparentemente nada tenham a ver com suas histórias clínicas, e utilizá-las como instrumento terapêutico e didático. A MBN refere-se às narrativas médicas, que são aquelas que emergem e são contempladas em cenários de ensino e prática da medicina e disciplinas afins, incluindo narrativas reais de pacientes, seus familiares, profissionais e estudantes da área de saúde e também as ficcionais, quando aplicadas a este contexto. Rita Charon, que cunhou o termo narrative medicine, afirma que a prática da medicina requer competência em narrativa, o que significa a capacidade para reconhecer, assimilar, interpretar e atuar de acordo com as histórias e dificuldades dos pacientes. A leitura e discussão acerca de obras literárias e a escrita reflexiva complementam o método e auxiliam a clarificar situações difíceis16. Em educação médica, a aplicação de um enfoque narrativo permite ao estudante de medicina um maior entendimento da enfermidade graças à combinação do conhecimento biomédico obtido por meio das abordagens educacionais tradicionais com o conhecimento pessoal, afetivo e experiencial obtido por meio da inter-relação entre estudantes, pacientes e familiares propiciado pelas narrativas17. Essa abordagem didática envolve o compartilhamento de narrativas médicas para a promoção da reflexão. Este artigo apresenta um recorte de um estudo intitulado “Narrativas como recurso didático na formação humanística dos estudantes de medicina e enfermagem”. O objetivo geral deste estudo foi investigar a efetividade da utilização de diferentes tipos de narrativas como fonte de reflexão e recurso didático na formação humanística dos estudantes de medicina e enfermagem.

Metodologia Uma disciplina eletiva – Narrativas em Saúde: um caminho para a humanização – representou o objeto deste estudo. Esta teve uma duração de 36 horas divididas em nove encontros semanais e foi dirigida sequencialmente a dois grupos em que foram mesclados 25 estudantes de medicina e enfermagem de segundo e terceiro anos. Nessa disciplina, promoveu-se a reflexão a partir de três tipos de narrativas – histórias de vida em primeira pessoa de pacientes transplantados cardíacos e de seus familiares obtidas a partir das entrevistas realizadas em um projeto de história oral de vida denominado Memória do Coração, desenvolvido pelo Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); narrativas médicas que emergiram em cenários de cuidados paliativos, que fazem parte de artigos publicados em revistas científicas3,18; e uma narrativa literária – a novela A morte de Ivan Ilitch19. Dada a natureza das questões a serem investigadas, optamos por métodos qualitativos enfocados na história oral de vida20 e na fenomenologia hermenêutica21 para nortear este estudo. Os dados utilizados para análise foram as narrativas oriundas de três fontes: observação participante22, em que os autores anotaram em um diário de campo suas impressões e tudo que julgaram relevante para a construção de sentido; entrevistas de oito estudantes (cinco de medicina e três de enfermagem) obtidas por meio da abordagem da história oral de vida20; e histórias apresentadas pelos alunos em uma sessão de narrativas, que representou a avaliação final da disciplina. Os textos foram interpretados de acordo com técnicas de imersão/cristalização (I/C)23 inspiradas na fenomenologia hermenêutica. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EPM, Unifesp, via Plataforma Brasil. Todos os estudantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cientes de que suas falas poderiam ser citadas, mas que o anonimato seria garantido.

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Resultados e discussão A partir das referidas narrativas emergiram muitos subtemas, que foram organizados nos seguintes temas maiores: da morte ao renascimento da narrativa – um caminho para a reflexão; quebrando o isolamento para reconhecer questões emocionais e sentimentos; empatia; das narrativas à humanização: fomentando o profissionalismo; e currículo oculto. Nos primeiros encontros, a afirmação de Benjamin datada da década de 1930 de que a arte de narrar estava em vias de extinção parecia ter-se cumprido quase plenamente24. Os alunos, embora já estivessem interagindo com pacientes e professores em cenários de prática da medicina e enfermagem, nunca haviam sequer ouvido falar acerca do modelo MBN. Mesmo estimulados pelas narrativas utilizadas em sala de aula com o intuito de deflagrar a reflexão, poucos, em um primeiro momento, sentiram-se encorajados para narrar suas histórias ou vivências pessoais que se esperava terem sido despertadas pelos textos enfocados. Felizmente, poucos deles – para quem o ato de contar histórias, quiçá por características de personalidade ou decorrentes de influências familiares, representava uma tendência natural – apresentaram o impulso de relatar histórias emergentes em cenários clínicos dos quais haviam participado. Isso ocorreu em ambos os grupos. Na verdade, o ato de contar histórias é uma tendência fortemente arraigada ao core do ser humano. O antropólogo Pedreño define o ser humano como bípede com mãos que conta histórias25. Segundo Frank26, essa ideia aplica-se em especial às pessoas doentes. Talvez seja por isso que esse movimento inicial contagiou outros alunos que, aos poucos, foram sentindo-se mais à vontade para expor suas ideias, sentimentos e emoções, percebendo que fazer isso por meio das histórias que começavam a vivenciar tornava essa exposição mais leve, fluida e fácil, conforme se entregavam ao itinerário de discussão12 inspirado pela narrativa que servia como base de reflexão a cada encontro. Pudemos observar que ninguém fica indiferente a uma boa história, principalmente se esta é contada com o coração. Por meio das narrativas, os graduandos conscientizaram-se da importância e necessidade de reflexão para todos que atuam na área da saúde. Referiram que, em decorrência do currículo extremamente exigente em relação ao conteúdo técnico, faltam-lhes tempo e oportunidade para pensar, refletir e organizar o caos27 que tantas vezes assoberba suas mentes. Certamente, a formação adequada na área da saúde exige a capacidade de reflexão, essencial ao enfrentamento das adversidades e incerteza inerentes à prática diária28. Um estudante de medicina afirmou: Tivemos poucas oportunidades como esta, em que temos o ensejo de falar livremente aquilo que se passa em nossas mentes e corações. No terceiro ano, com a Semiologia, nossa situação melhorou um pouco. Mas de forma geral, durante a maior parte do tempo, ou estamos estudando ou ouvindo um professor lendo slides no Power Point. O impacto de ter contato com conteúdos que vão além das ciências biológicas duras em minha formação como profissional de saúde é muito positivo.

O poder das narrativas em estimular a reflexão foi se evidenciando naturalmente a cada encontro. Uma estudante de enfermagem afirmou: “sem narrativa não há reflexão; são as narrativas que medeiam a reflexão”. Não causou estranheza o fato de que, na maioria das narrativas pessoais compartilhadas, temas concernentes à incerteza, dor, morte, aos dilemas e ao sofrimento estivessem quase sempre presentes, uma vez que estes são recorrentes no cotidiano de profissionais e estudantes da área da saúde. Certamente, tais tópicos despertam emoções e sentimentos, que parecem ser ignorados ou colocados à margem ao longo da graduação29. A morte e a impossibilidade de tratamento para certas condições clínicas são confundidas com fracasso e incompetência e as emoções e os sentimentos despertados nessas circunstâncias não se adequam à imagem do médico herói que parece fazer parte do imaginário dos estudantes de medicina. A impressão que ficou é a de que os alunos, na medida em que avançam na graduação, vão aprendendo a ocultar ou ignorar suas emoções e sentimentos, quer seja para não revelar sua eventual 1200

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sensação de impotência, para fugir do sofrimento, para imitar os mais velhos que lhes servem como modelo ou por não terem suporte para lidar com as dificuldades que se revelam em cenários clínicos. Um estudante de medicina relatou a experiência marcante vivida por um colega em fase precoce do curso. Este foi observar uma consulta na oncologia, em que o paciente era um rapaz de dezoito anos, portador de um tumor cerebral, para o qual haviam dado uma previsão de três meses de vida. Meu colega tinha quase a mesma idade do paciente e ficou muito afetado com o que presenciou. Tratou-se de uma consulta enfocada basicamente em aspectos técnicos, quando seria procedente fazer muito mais que isso. Ele colocou-se no lugar do paciente e chorou muito quando chegou em casa. Assim como o paciente não teve nenhuma oportunidade de receber um atendimento que também suprisse suas necessidades emocionais e/ou espirituais, meu colega também não teve nenhum suporte para lidar com essa experiência. Deveria haver uma forma de concluir aquele atendimento ocorreu. E esse meu colega criou uma barreira psicológica em relação a situações similares. Sofreu tanto, não soube lidar e disse: “nunca mais vou prestar atenção nisso para não me prejudicar, para não sofrer”. Se a pessoa cria essa barreira já no início do curso, fica difícil aprender como se envolver sem mergulhar em tanto sofrimento. Penso que fatos assim podem levar à desumanização.

Alguns alunos referiram-se ao isolamento que de alguma forma dificulta o compartilhamento de emoções e sentimentos, o qual os acomete desde os primeiros anos da graduação e aparentemente decorre das referidas exigências do curso e também de características pessoais. O isolamento e a dificuldade para refletir acerca do compartilhamento de emoções e sentimentos parecem ser agravados por um traço de personalidade que ficou explicitado nas narrativas de alguns alunos: a timidez. Por outro lado, a troca de narrativas em sala de aula mostrou-se um bom recurso para se lidar com tal característica. Uma estudante de medicina afirmou: Sou muito tímida. A timidez atrapalha minha aproximação com os pacientes. Entretanto, conforme fui aprofundando o relacionamento com meus colegas de classe, os quais iam exteriorizando seus sentimentos e emoções, entendi que todo o mundo tem suas limitações. E, então, comecei a falar mais facilmente com os pacientes internados e com os colegas. O interesse em suas histórias e a constatação que todos temos nossas fraquezas e limitações fezme esquecer da timidez.

Emoções evocam empatia e este foi um tema muito enfocado a partir de diferentes pontos de vista. Os estudantes concordaram que, para uma boa prática, esta atitude humanística deveria estar sempre presente. Muitos deles tinham, intuitivamente, o entendimento de que “empatia significa olhar mais profundamente para o paciente, colocar-se em seu lugar e tratá-lo como gostariam de ser tratados”, o que foi explicitado muitas vezes em suas falas. Colocar-se no lugar do outro foi a frase-chave com a qual insistentemente definiam empatia. A reação de um aluno de medicina que relatou um fato que presenciou relacionado a um paciente considerado difícil que foi tratado de forma muito inadequada por um residente ilustra essa ideia. Quando o paciente se mostrou enraivecido e disse: “tenho vontade de dar um tiro”, o estudante buscou acalmá-lo. Tentei acalmá-lo, mas eu também havia ficado com raiva. Também tive a vontade de dar um tiro. Parece que o tão falado discurso da humanização não chegou à prática. É importante desenvolvermos atividades voltadas para questões humanas relacionadas ao sofrimento e que estimulem a empatia e a compaixão.

Falas como essa resultaram no seguinte questionamento: será que se formos empáticos não vamos sofrer junto com o paciente e, assim, perder o discernimento e a capacidade de julgamento? O estudante acima, por exemplo, experimentou inicialmente sentimentos e emoções semelhantes às 2018; 22(67):1197-207 1201

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vivenciadas pelo paciente e sofreu junto com ele. Por outro lado, relatou ter conseguido se distanciar o suficiente para atuar a contento na situação e ajudar o paciente da melhor forma. Outra questão que veio à tona foi a seguinte: é necessário que eu experimente doenças, sofrimento e situações difíceis para exercer empatia? Algumas narrativas pessoais apontaram para essa ideia. Os estudantes transmitiram a impressão de que quando alguém vivencia circunstâncias difíceis envolvendo doença e sofrimento, sua capacidade para entender situações similares vividas por pacientes e seus familiares aumenta significativamente. A empatia é considerada uma característica pessoal inata e difícil de ser ensinada, enquanto outros advogam que ela representa um estado pessoal que pode declinar ao longo da graduação médica, mas que também pode ser melhorada por meio de atitudes educacionais direcionadas30. Os graduandos reproduziram ideias similares em sala de aula. Parte deles concluiu que algumas pessoas são naturalmente mais sensíveis, empáticas e compassivas e outras são mais racionais. Isto se daria por causas multifatoriais. E que até mesmo essas pessoas mais racionais poderiam desenvolver esse olhar compassivo e empático ao longo do curso de medicina e enfermagem desde que houvesse um esforço da vontade e bons exemplos daqueles que comumente servem de modelo aos jovens estudantes. E que sem esse reforço positivo, os mais empáticos também poderiam perder ou apresentar a diminuição dessa característica. Por outro lado, alguns dos graduandos revelaram que as narrativas adotadas para servir de suporte ao processo reflexivo foram capazes de lhes despertar a empatia, especialmente as concernentes a cuidados paliativos. A empatia foi muitas vezes relacionada à ou confundida com humanização em saúde. Na verdade, questões pertinentes à humanização apareciam frequentemente mescladas aos demais temas enfocados nas narrativas pessoais e discussões em sala de aula. A ideia de que um bom profissional de saúde deva ser necessariamente “humanizado”, ainda que o significado do termo tenha adquirido diferentes conotações, não foi de forma alguma contestada. Para uma pequena porcentagem de estudantes, especialmente de enfermagem, a questão pareceu estar bem resolvida, sendo que humanização foi claramente associada a características pessoais que conduziriam a certos comportamentos e atitudes adequadas. Acho que, sem humanização, a nossa área não funciona. Você tem que ter amor ao próximo, compaixão, empatia e proporcionar às pessoas o mesmo tratamento que gostaria de receber. Penso que humanização é isso. Sem humanização não é possível ser um bom profissional de saúde.

A humanização em saúde já havia sido discutida em sala de aula com os graduandos em disciplinas como Psicologia Médica e Saúde Coletiva. No entanto, julgaram que isso ainda é muito pouco, principalmente pela falta de conexão entre teoria e prática. Um estudante de medicina comentou: Acho as discussões em sala de aula muito válidas. Entretanto, estas, muitas vezes, dão-se em um nível muito abstrato. Não há conexão com a prática. Para mim não há nada que substitua uma experiência de vida. E ter a oportunidade de compartilhar tal experiência com os colegas e com quem tenha mais vivência é fundamental.

Alguns alunos consideraram que há pessoas que apresentam a humanização interiorizada dentro de si. Estas demonstrariam um interesse natural pelas sutilezas que caracterizam os seres humanos e buscariam se aprofundar nesse conhecimento por considerá-lo essencial para um cuidado efetivo e integral, em que a dor e o sofrimento especialmente presentes nas pessoas doentes não fossem ignorados. Para tais alunos, essas sutilezas concernem especialmente à vida afetiva das pessoas, que deveria ser perscrutada e valorizada no atendimento ao paciente. Os graduandos também constataram que as narrativas podem auxiliar no processo de humanização, pois elas representam uma forma de se contemplar o ser humano em sua totalidade. Ao adotarem, por conta própria, o modelo MBN em cenários clínicos que começavam a frequentar, perceberam que, ao considerar a afetividade dos pacientes pela escuta atenta, conseguiram 1202

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estabelecer um vínculo mais estreito com estes e exercer a empatia, o que propiciou uma maior adesão ao tratamento e o fortalecimento do vínculo profissional de saúde-paciente, ainda que se deparassem com pacientes difíceis. A narrativa de um estudante de medicina em especial ilustra o papel humanizador das narrativas: Ouvir os pacientes com empatia e compaixão e ir além dos protocolos pode parecer uma perda de tempo, mas não é. Quando atendi aquele paciente considerado difícil devido a seu mau humor e péssimo comportamento, do qual todos os residentes e estudantes tinham vontade de fugir, tentei fazer algo diferente. Olhei em seus olhos, mostrei interesse em sua vida. E demonstrei que estava disposto a escutá-lo, não importava o que quisesse dizer, ainda que, inicialmente, ele houvesse caçoado de mim e de meus colegas. Logo senti que havia aberto uma espécie de portal e pude estabelecer um excelente relacionamento profissionalpaciente, o qual perdurou por muitas consultas, até que eu saísse do estágio no ambulatório. O paciente melhorou o seu comportamento, aderiu ao tratamento e deixou de causar aversão aos estudantes e profissionais que o atendiam, sempre que era tratado com um mínimo de respeito, é claro.

A MBN mostra-se alinhada com a escuta atenta, ponto importante da Clínica Ampliada e Compartilhada, estratégia desenvolvida pelo Humaniza SUS para fomentar a humanização e que engloba os seguintes cinco eixos fundamentais: compreensão ampliada do processo saúde-doença, construção compartilhada dos diagnósticos e terapêuticas, ampliação do objeto de trabalho, transformação dos meios e instrumentos de trabalho e suporte para profissionais de saúde31. A visão dos graduandos acerca da humanização em saúde apresentou paralelos com um tema muito enfocado em educação médica: o profissionalismo médico. Este é caracterizado por comportamentos pelos quais os médicos demonstram ser merecedores da confiança que recebem dos pacientes por estarem trabalhando para o seu bem. Swick identifica alguns comportamentos que caracterizam o profissionalismo, tais como: busca de altos padrões éticos e morais; compromisso contínuo com a busca de excelência; busca de aprimoramento graças à constante aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de novas habilidades; capacidade para lidar com altos graus de complexidade e incerteza; manifestação do que o autor chama de valores humanísticos e que inclui empatia e compaixão; honestidade e integridade; cuidado e altruísmo; respeito pelos outros e lealdade; e, finalmente, reflexão sobre decisões e ações32. Certamente, a formação de tal profissional requer o foco não apenas no ensino da biomedicina, mas também uma incorporação harmônica de outros corpos de conhecimentos relacionados ao estudo das humanidades. A ideia de que a predisposição para atuar com humanização – ou seja, para demonstrar atitudes humanísticas em ambientes clínicos – pode ser adquirida ou estimulada por meio de exemplo veio à tona. A presença de professores ou familiares que desempenham o papel de modelos ou exemplos mostrou-se contundente. Ao relatarem suas experiências pessoais, os alunos demonstraram que suas fontes de aprendizado ultrapassam o conteúdo que a instituição, por meio de uma grade curricular bem estabelecida, propicia ou tem a intenção de ensinar. Para o bem ou para o mal, comportamentos e atitudes de professores, tutores, residentes e veteranos os afetam profundamente, servindo de exemplos ou contraexemplos passíveis de nortear o estabelecimento de prioridades em relação aos temas a serem estudados e à forma como será conduzida a futura vida profissional. Apesar de não conhecerem o termo currículo oculto33, como poderíamos chamar essa dimensão informal do processo educacional, sua influência se faz sentir especialmente em ambientes clínicos, conforme os graduandos sugeriram em suas narrativas. Professores que para eles representaram modelos de coerência ao cumprirem totalmente seu discurso acerca da humanização, compaixão e empatia – atitudes que para alguns deles representam o core de valores que influenciou sua escolha da profissão – no trato aos pacientes foram muito valorizados e elogiados. Nessa fase precoce da formação, também foram muito tocados por comportamentos e atitudes que julgaram reprováveis, referindo que iriam esforçar-se para evitá-los em sua atuação profissional, mas que temiam não ser fortes o suficiente para tal. No entanto, para 2018; 22(67):1197-207 1203

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eles, o mais chocante pareceu ter sido a dicotomia entre discurso e prática que caracterizava alguns de seus orientadores que proferiam um discurso maravilhoso e convincente acerca da humanização e que, em cenários clínicos, chegavam a destratar os pacientes. Felizmente, deu-se também o contrário. Uma estudante de enfermagem relatou: Fiquei surpresa, positivamente, em relação a uma professora. Ela parecia tão rígida e austera e não demonstrava seus sentimentos nas aulas teóricas. Mas, diante dos pacientes, ela se revelou outra pessoa. Muito carinhosa, compreensiva. Olhava-os nos olhos e conversava com eles naturalmente, deixando-os muito à vontade. Tratou os pacientes como eu gostaria de ser tratada por um profissional de saúde. Sempre vou me lembrar dela como um grande exemplo a ser seguido em minha carreira.

Quando se iniciam as primeiras atividades clínicas, os estudantes focam-se nesses bons exemplos, procurando adotá-los em seu relacionamento com os pacientes. Por outro lado, afirmaram que em algumas vezes em que tentaram propiciar um atendimento mais humanizado e individualizado, que incluía a escuta atenta, foram desencorajados pelos estudantes veteranos, residentes e até mesmo por profissionais mais experientes. Assim, a ideia de que não há tempo a perder com as narrativas dos pacientes e que, por isso, é necessário ater-se exclusivamente aos aspectos técnicos vai aos poucos se delineando como outra, talvez única possibilidade a ser adotada pelo graduando em formação. Estava fazendo o atendimento inicial a um paciente antes que o residente chegasse para passar a conduta. Fui instruída a perguntar o essencial, mas o paciente teve a necessidade de me falar o quanto a doença havia afetado sua vida. Escolhi deixá-lo falar, mas quando o residente chegou, ainda não havia obtido todas as informações que ele necessitava. Fui repreendida por isso. E, para completar, na frente do paciente. O residente saiu bravo do consultório, mas me deu mais um tempo para completar minha tarefa. De minha parte, fiquei muito satisfeita ao perceber que havia criado um bom vínculo com o paciente, que se mostrou muito solícito, parecendo estar querendo me ajudar.

Cada história que ilustrava um fato positivo relacionado a uma abordagem narrativa era frequentemente acompanhada por um contraexemplo em que os estudantes reportavam terem sido desencorajados em incorporar os recém-adquiridos recursos humanísticos. Nos cenários de prática, a referida falta de tempo ia aos poucos se tornando um argumento importante para uma abordagem preferencialmente técnica e pragmática. A questão que se apresentou foi a seguinte: até que ponto conseguirão, com o predomínio de contraexemplos a que são submetidos e a escassez de reforço positivo, manter os ideais que inicialmente os nortearam? Alguns comentários ilustram essa dúvida. Apesar de minha curta experiência, já constatei inúmeras vezes o quão relevante é ouvir os pacientes além de suas histórias clínicas. Ficou claro que a qualidade da escuta é mais importante que a quantidade, que a linguagem subliminar também conta e que um toque ou um olhar nos olhos faz toda a diferença. Faltam pouco mais de três anos para que eu termine o curso. Tenho medo de acabar perdendo esse aprendizado. Somos tão sobrecarregados com horas e horas de estudo e fica difícil ter tempo ou força para refletir em relação a essas questões. O ideal seria que a abordagem narrativa fosse adotada em todos os anos do curso, especialmente por professores que atuam em ambulatórios e enfermarias.

Outro argumento para a adoção de um enfoque puramente pragmático e técnico foi o fato de que um envolvimento com o paciente caracterizado pela compaixão e empatia possa resultar em sofrimento para o profissional. Assim, a mensagem subliminar “não se envolva, senão você vai sofrer e perder o discernimento” é constantemente transmitida, especialmente em cenários clínicos nos quais são frequentes os temas relacionados à incerteza, dor, morte ou ao sofrimento. A falta de modelos que norteiem uma forma adequada de lidar com tais situações e que contemplem não apenas a técnica, 1204

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mas também a afetividade, pode gerar resultados desastrosos, como mostrou a narrativa do estudante que se mostrou bloqueado após presenciar o atendimento em oncologia.

Considerações finais Ainda que o tema humanização em saúde seja extremamente complexo e decorrente de múltiplos fatores, um enfoque puramente tecnicista e as influências do currículo oculto podem colaborar para um processo de desumanização ainda na fase de graduação do profissional de saúde. O ensino das humanidades e a incorporação de um enfoque narrativo aos cenários didáticos e clínicos representam alguns dos recursos que poderiam minimizar esse processo. Os resultados da experiência didática aqui relatada sugerem que as narrativas representam um instrumento capaz de auxiliar os graduandos a estabelecerem um repertório de condutas muito satisfatórias a serem adotadas em sua futura vida profissional. É importante que educadores e tutores estejam atentos ao currículo oculto, contra o qual os estudantes poderiam ser “imunizados” mediante a exposição a um modelo de ensino fortemente centrado no paciente e que prioriza a formação do caráter profissional e a reflexão ética34.

Colaboradores Maria Auxiliadora Craice De Benedetto teve participação ativa na pesquisa de campo e na elaboração, discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação final do manuscrito e Dante Marcello Claramonte Gallian teve participação ativa na elaboração, discussão dos resultados, revisão e aprovação final do manuscrito. Referências 1. Capra F. O ponto de mutação. Cabral A, tradutor. 26a ed. São Paulo: Cultrix; 2006. 2. Blasco PB. O médico de família hoje. São Paulo: SOBRAMFA; 1997. 3. De Benedetto MAC, Castro AG, Carvalho E, Sanogo R, Blasco P. From suffering to transcendence: narratives in palliative care. Can Fam Physician. 2007; 53(8):1277-9. 4. McWhinney IR. Textbook of family medicine. 2nd ed. New York: Oxford University Press; 1997. 5. Helliwell JA. A shave, a chat, and a bloodletting: two bits. The evolution and inevitability of family practice. Can Fam Physician. 1999; 45:859-61. 6. Calman KC. Literature in the education of the doctor. Lancet. 1997; 350(9091):1622-4. 7. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Assistência à Saúde. Programa nacional da assistência hospitalar [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2001 [citado 14 Mar 2014]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnhah01.pdf. 8. Pasche DF. Humanizar a formação para humanizar o SUS. In: Ministério da Saúde. Caderno humaniza SUS 1. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [citado 25 Fev 2016]. p. 63-71. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos humanizaSUS.pdf.

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Palabras clave: Narrativas en salud. Educación médica y de enfermería. Humanización en salud. Currículo oculto.

Submetido em 02/05/17. Aprovado em 27/11/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0467

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Entre experimentações e experiências: desafios para o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro Kênia Lara da Silva(a) Bárbara Jacome Barcelos(b) Bruna Dias França(c) Fernanda Lopes de Araújo(d) Izabela Thaís Magalhães Neta(e) Michelle Melo Ledo(f)

Silva KL, Barcelos BJ, França BD, Araújo FL, Magalhães Neta IT, Ledo MM. Between experiments and experiences: challenges for teaching competencies for health promotion in Nursing Education. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1209-20.

The aim of this study was to analyse the teaching of competencies for health promotion in Nursing Education and to identify experimentations and experiences in this process. It was a qualitative whose data were collected in focus groups with teachers and students from 11 undergraduate nursing courses in Brazil. The results showed that health promotion competencies are temporally taught in the contact and interaction with reality through experimentations and experiences. Experimentation is an event determined by a specific place and time in the course, while experiences are related to a meaningful discovery and an opening to the unknown. The challenge to the teaching of competencies for health promotion is that it should overcome the logic of experimentation, which is structured on technical rationality, and favour a perspective that allows and values experiences in Nursing education.

Key words: Nursing education. Health promotion. Professional competency.

CC

BY

O objetivo da presente pesquisa foi analisar o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro, identificando as experimentações e experiências nesse processo por meio de um estudo qualitativo cujos dados foram obtidos de grupos focais com professores e estudantes de 11 cursos de graduação em Enfermagem no Brasil. Observou-se que as competências para a promoção da saúde são temporalmente ensinadas no contato e na convivência com a realidade por meio de experimentações e experiências. A experimentação é um acontecimento determinado por um local e um tempo específico na formação. Por outro lado, as experiências se relacionam com uma descoberta marcante e com a abertura ao desconhecido. Assim, há desafios para o ensino das competências para a promoção da saúde superando a lógica da experimentação estruturada na racionalidade técnica para uma perspectiva que permita e valorize as experiências na formação do enfermeiro.

Palavras-chave: Formação do enfermeiro. Promoção da saúde. Competência profissional.

Departamento de Enfermagem Aplicada, Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Avenida Alfredo Balena, 190, Santa Efigênia. Belo Horizonte, MG, Brasil. 30130-100. kenialara17@ gmail.com, bbarbarabarcelos@ gmail.com, brunadiasfranca@ gmail.com, fernanda.lopesaraujo@ gmail.com, izabelatmn@gmail.com, michellemelo.184@ gmail.com (a, b, c, d, e, f)

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Introdução No Brasil, os avanços políticos e institucionais da promoção da saúde estão sendo implementados a partir de diversas iniciativas no campo da Saúde Pública. Nos anos recentes, a publicação da Política Nacional de Promoção da Saúde, em 2006, e sua revisão, em 2014, sinalizam esforços para ampliar as ações de promoção da saúde no território e promover processos de educação, formação e capacitação profissional em promoção da saúde1. A busca por capacitação e formação profissional na área da promoção da saúde é uma demanda crescente, mas ainda incipiente no país2. Nesse sentido, algumas instituições de ensino superior no Brasil têm organizado cursos de pós-graduação latu e strito sensu na área. Na graduação, uma das dificuldades apontadas para a introdução da temática relaciona-se à imprecisão conceitual que permeia o campo da promoção da saúde e isso reflete na formação e na atenção desenvolvida pelos profissionais de saúde no cotidiano dos serviços2. Por isso, é necessário o avanço na discussão sobre as competências para a promoção da saúde adaptadas para o contexto brasileiro, de modo a expandir as possibilidades de desenvolvimento de ações efetivas3. O Projeto Developing Competencies and Professional Standards for Health Promotion Capacity Building in Europe (CompHP) vem se destacando como um referencial baseado nas Competências para Promoção da Saúde delineadas no Consenso de Galway. Esses documentos fornecem uma definição comum e domínios de competência essenciais aos que se envolvem em práticas de promoção da saúde4. O debate sobre as competências profissionais na perspectiva da promoção da saúde e da saúde coletiva ainda é incipiente. O ensino dessas competências deve ser pautado no pensamento crítico e reflexivo, implementando ações na prática pedagógica que contenham elementos estimuladores do aluno corresponsável pela sua aprendizagem e do docente facilitador deste processo5, criando, assim, experiências educativas sobre a promoção da saúde na formação. Assim, percebe-se a necessidade de aprimoramento do ensino das competências para a promoção da saúde a partir das diversas estratégias educativas, fortalecendo o conceito e a prática da promoção da saúde. O Ministério da Educação, em 2001, preconizou as diretrizes curriculares para os cursos de graduação da área da saúde, que apontam para a construção de competências e habilidades gerais e específicas dos profissionais; contudo, não especificou quais eram as competências direcionadas para a promoção da saúde2,6. Isso, de certa forma, dificulta na disseminação desse tema para os atores envolvidos, apontando para a necessidade de se definir competências específicas para o campo devido à potência que essa definição cumpre na conformação dos papéis profissionais4. Tradicionalmente, a formação dos profissionais de saúde segue um modelo biologicista, hospitalocêntrico, com práticas fragmentadas, desarticulação entre teoria e prática e influenciado pela concepção estruturalista, o que dificulta a abordagem das competências para a promoção da saúde. Superar essa perspectiva é um desafio na atualidade. Uma das possibilidades é pensar novas formas de ensino que incorporem a concepção ampliada da saúde e da educação, em novos espaços de aprendizagem, com práticas integrais, orientadas por um pensamento inovador e transdisciplinar. Nessa direção e na relação dialética entre teoria e prática, é possível pensar experiência na educação7 e, consequentemente, no desenvolvimento de competências. A experiência, segundo Bondía8, é um momento de exposição; é o que nos passa, o que nos acontece ou o que nos toca. Entretanto, nem tudo que é vivenciado no campo prático pode ser considerado experiência, indicando que algumas vivências são “apenas” experimentadas pelo sujeito. A experimentação é caracterizada pela repetição, previsibilidade e generalidade, diferente da experiência que tem sua marca na singularidade, irrepetibilidade e imprevisibilidade. O ensino de graduação em Saúde tem proporcionado poucas experiências por, ainda, centrarse em uma “pedagogia da transmissão, desconexão entre núcleos temáticos, desvinculação entre o ensino, a pesquisa e a extensão, predominando um formato enciclopédico e uma orientação pela doença e pela reabilitação”9 (p. 137). Esse modelo de ensino dificulta a incitação do estudante à criatividade, à reflexividade e à transformação, contrariando os princípios da experiência apresentados 1210

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(g) Larrosa-Bondía refere-se ao autor Jorge Larrosa Bondía, professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona. Apresenta diversas publicações, algumas com a entrada Larrosa e outras pela entrada Bondía. Neste manuscrito, para adequar a forma da citação, optamos por manter a referência segundo a tradição espanhola, citando os sobrenomes paternos e maternos.

por Larrosa-Bondía10(g): “princípio da subjetividade”, “princípio da reflexividade” e “princípio da transformação”. Para Larrosa-Bondía, o sujeito da experiência é único, singular, particular, próprio e está exposto ao processo da sua própria transformação10. Por isso, questionam-se formas de construir uma nova universidade aberta para diferentes maneiras de produzir o conhecimento, ou seja, que permita a descentralização da ciência. Contraditoriamente a isso, a universidade previsível, testável e centralizada, que concentra suas atividades nas experimentações, torna-se insuficiente às experiências e, especificamente no campo da saúde, aos acontecimentos de promoção da saúde. Para confrontar essa realidade, é preciso questionar o espaço e o tempo disponibilizados para a criatividade na universidade, bem como construir estratégias de integração dos conhecimentos e flexibilização aos ordenamentos que contribuam para a formação de profissionais “pensantes”9. Assim, questionamos se os cursos de graduação em enfermagem têm proporcionado momentos para a formação de competências para a promoção da saúde. Há evidências de experiências e experimentações nessa formação? Com base no exposto, o presente artigo tem como objetivo analisar o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro, identificando as experimentações e experiências neste processo.

Metodologia Trata-se de um estudo qualitativo, ancorado no referencial teórico metodológico da dialética, resultante da pesquisa nacional “Competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro: experiências, resultados e desafios no contexto brasileiro”, realizada em três fases. A primeira fase foi caracterizada por um levantamento sobre as competências para a promoção da saúde, o momento da formação, o tipo de atividade e as metodologias utilizadas para sua abordagem em cursos de graduação em enfermagem no Brasil. Desse levantamento foram definidos cursos para análise em profundidade considerando os critérios: escolas de todas as regiões administrativas do país, representando o estado com maior percentual de respostas na sua região; com organização político-administrativa distinta e que afirmou o desenvolvimento do maior número de competências segundo o CompHP. Na região Sudeste, optou-se por incluir dois cursos em cada estado e em Minas Gerais foi definido um curso em cada região administrativa que atendesse aos critérios citados. No total, foram selecionadas 27 escolas de enfermagem para a segunda fase, das quais 11 compuseram o cenário do estudo. Em 16 escolas não foi possível realizar a coleta de dados por recusas, inexistência do número mínimo de docentes ou estudantes para a composição do grupo focal e impossibilidade de contato, mesmo após inúmeras tentativas. Os dados da segunda fase foram obtidos da realização de grupos focais com professores e estudantes das instituições-cenários, no período de novembro de 2015 a maio de 2017. O grupo focal foi orientado pela pergunta norteadora “Que competências para a promoção da saúde são trabalhadas na formação do enfermeiro nesta instituição?” Participaram do estudo seis escolas públicas e cinco privadas, sendo uma representante da região Nordeste, uma da Centro-Oeste, uma da Sul e oito da região Sudeste do país. Foram realizados 20 grupos focais, totalizando 17 2018; 22(67):1209-20 1211

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horas, 27 minutos e 17 segundos de gravação em áudio, que foram transcritos. Em duas instituições, o grupo focal não aconteceu com professores. Participaram dos grupos 46 professores que lecionavam disciplinas nos diferentes períodos, com tempos variados de exercício da docência e 82 estudantes, de ambos os sexos, representantes de todos os períodos e com vivências extracurriculares diversas (como projetos de iniciação científica e de extensão; e estágios). Os dados foram analisados na perspectiva da Análise de Discurso Crítica proposta por Fairclough e sistematizada por Resende e Ramalho11. Em um primeiro momento, realizou-se a leitura das transcrições, organizando os relatos nas categorias analíticas concepção de promoção da saúde; competências; ensino; avanços e desafios. Posteriormente, procurou-se identificar os elementos discursivos que revelassem as evidências do desenvolvimento de competências para a promoção da saúde no contexto da formação do enfermeiro. Neste artigo, apresentamos os resultados da categoria que destaca a prática como o momento do ensino das competências para a promoção da saúde. Na apresentação dos resultados, foram atribuídos códigos para preservar a identidade das instituições e dos participantes. Os depoimentos dos professores estão registrados como “Grupo focal escola 1 a 11 – professores” e os depoimentos dos estudantes como “Grupo focal escola 1 a 11 – estudantes”. Em relação aos aspectos éticos, respeitou-se a Resolução 466/12 do Ministério da Saúde, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer de número CAAE- 22830812.5.0000.5149. Os sujeitos foram informados sobre os objetivos e finalidades do estudo; e consentiram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados Os discursos dos participantes revelam o ensino da promoção da saúde de uma maneira geral e, especificamente, das competências para a promoção da saúde. Não foi explícita a distinção do fenômeno geral (promoção da saúde) da sua abordagem específica (o ensino das competências). Os participantes relatam que não existe uma linha condutora nos currículos/projetos pedagógicos para o desenvolvimento das competências para a promoção da saúde. Contudo, afirmam que essa é uma preocupação incorporada no ensino e evidenciada por meio de metáforas (“sensibilidade para a causa da promoção da saúde”) ou generalizações discursivas que estendem o tema da promoção da saúde a todos os professores ou todas as disciplinas nos diferentes períodos. Eu acho que [...] não existe uma linha condutora assim de que todo mundo faz a mesma coisa é [...] determinada pela própria instituição, vamos dizer assim, próprio PPP [projeto políticopedagógico], mas que todas as disciplinas, de modo geral, todos os professores dentro das suas áreas eles têm essa preocupação de trabalhar com questão de promoção. (Grupo focal escola 2 – professores) Acho que são grupo de professores possuir uma sensibilidade para essa causa da promoção da saúde. Então é um curso que desde a origem é curso generalista [...] e a gente percebe essa sensibilidade do professor em trilhar o caminho que realmente vai nesta proposta que é a promoção da saúde. (Grupo focal escola 6 – professores) Eu acho que o projeto pedagógico da instituição ele é muito alinhado pra isso, né. Então a gente acaba conseguindo trabalhar isso em todos os períodos, nas várias dimensões [...]. (Grupo focal escola 3 – professores)

Contraditoriamente, a promoção da saúde é temporalmente situada em determinados momentos do curso: ou no início, quando se desperta para o tema geralmente com disciplinas teóricas ou visitas/

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vivências práticas, ou nos estágios curriculares obrigatórios em que o tema se torna mais evidente, pois os estudantes têm a oportunidade de “aplicar” o que aprenderam no campo de prática. É, a gente começa, na verdade, com essa promoção, desde o primeiro período. [...] Então, assim, desde o primeiro período, a gente já faz esse conjunto com, com eles de realmente desenvolverem uma visão mais, mais ampla. [...] então desde o começo [...]. (Grupo focal escola 3 – professores) Acredito que a gente já seja desde o início já incentivada essa promoção. (Grupo focal escola 7 – estudantes) Eu acho que a questão da promoção da saúde, igual ela falou, é trabalhada com a gente enquanto aluno, desde que a gente chega na universidade. Eu, pelo menos, eu vivi isso desde que eu cheguei aqui na universidade. (Grupo focal escola 8 – estudantes) Nos períodos mais próximos ao término porque, é, a gente observa isso e até faz sentido porque aí quer dizer o aluno tá enxergando sob uma perspectiva diferente, né [...] porque eu acho que esse contato com a prática, realmente, ele, ele acaba amadurecendo o aluno e [...]. Eu sinto que, nos últimos, no último ano, porque tem uma particularidade: eles vão pra estágio. (Grupo focal escola 4 – professores)

Como conteúdo disciplinar, a promoção da saúde está inserida predominantemente na Saúde Coletiva (e em suas variações). Outros relatos permitem identificar, ainda, que o ensino da promoção da saúde ocorre de maneira localizada em algumas disciplinas ou de maneira inespecífica em todas as disciplinas: São três disciplinas que são alicerces da promoção da saúde aqui hoje que é saúde coletiva 1, a saúde coletiva 2 e o estágio supervisionado 1. (Grupo focal escola 6 – professores) Aí a gente começa a ter ações e promoções de saúde disciplinas do departamento de saúde pública e a gente começa a aprender de fato como é a promoção de saúde dentro da área de enfermagem. (Grupo focal escola 7 – estudantes) É, na Saúde Coletiva, mas é o primeiro [semestre], pra enfermagem, isso acontece nos primeiros semestres da graduação, então já é um ponto de partida, primeiro, é um primeiro contato com o campo, né, de atuação e em segundo lugar, já é um contato focado na promoção em si, eles acompanham as consultas, eles acompanham as atividades que são de promoção, de prevenção mesmo. (Grupo focal escola 1 – professores) Você tem alguns períodos que a promoção é matéria mesmo. Foi eu acho no 6º que estudamos mesmo a promoção. [...] E foi isso que eu posso dizer que foi um período específico, que falou um pouco mais foi esse no 6º período. [...] Então, eu acho que a gente começa a ter meio noção, mesmo desde o primeiro período, mas eu acredito, mesmo, que no sexto deve, que vai integrar tudo mesmo. (Grupo focal escola 8 – estudantes) Eu acho que assim, todas as matérias, os professores se preocupam muito com a questão de promo-prev, de promoção e de prevenção, né, até mesmo porque o foco hoje é isso. (Grupo focal escola 9 – estudantes)

Os participantes utilizam a estratégia discursiva de assimilação para demonstrar que a promoção da saúde é ensinada no contato e convivência com a realidade. Nesse sentido, a relação teoria-prática é relatada como a possibilidade de experienciar e experimentar a promoção da saúde. 2018; 22(67):1209-20 1213

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[...] caderno, sala de aula e na verdade não é isso, né. A gente tem que colocar o aluno de frente, né, da realidade que ele vive ou que nós vivemos, né, na promoção de saúde, na promoção da saúde. Porque isso vai ser importante em qualquer lugar que a gente vá, essa promoção da saúde. Então o aluno, além dele ter a teoria, ele tem que ter a convivência, saber aquilo ali, a prática dele, para que que serve, para que que ele está. (Grupo focal escola 9 – professores) E que eu acho que isso só acontece através da vivência. Não adianta eu dar fundamento, teoria, né, pegar toda a filosofia tudo e eu não ter ação. É o momento que consolida, né? Eu não ter a prática ali, senão fica uma coisa muito distante do que é o real dele. (Grupo focal escola 3 – professores)

Em outros relatos, os participantes revelam a necessidade de reiteração do conteúdo teórico para não levar ao esquecimento na prática em que “muitas coisas acontecem”. Assim, “várias discussões que são guiadas no sentido de esclarecer” indicam que o embasamento teórico é imprescindível para subsidiar a prática em promoção da saúde. Então, a gente tem uma base muito forte no primeiro ano de faculdade que são desde os primeiros que é Saúde Coletiva e promoção da saúde. Junto de promoção da saúde, a gente trabalha também as tecnologias de educação em saúde [...] É, dentro dessas matérias a gente tem várias discussões que são guiadas no sentido de esclarecer a gente assim em... em... muitas coisas que, que, que acontecem quando a gente vai pra... pra... pra prática, né. (Grupo focal escola 10 – estudantes) Eu acho que é muito importante pra construção das competências dos nossos acadêmicos de enfermagem a relação teoria e prática [...]. Isso de fazer um vínculo indissociável de teoria e prática eu acho que ajuda muito a desenvolver as competências. (Grupo focal escola 1 – professores) Então realmente a gente tem que ter um embasamento teórico pra ter um embasamento prático. A gente tem que ter isso pra gente desenvolver nesse indivíduo a promoção da saúde. (Grupo focal escola 5 – estudantes)

A prática como lócus do ensino da promoção da saúde é reportada nos estágios e nas atividades de extensão, pontuais ou permanentes nas instituições formadoras. Esses são os momentos relatados pelos participantes como aqueles nos quais ocorre, de forma predominante, o ensino das competências para a promoção da saúde. Eu acho que a gente não tem participado de muitos outros espaços, tem as feiras de saúde, a gente trabalha, participa daquele projeto de extensão em saúde na estrada, que são montadas tendas num posto de gasolina pra trabalhar com caminhoneiros. Então as pessoas que transitam, que não têm um tempo pra buscar o serviço de saúde [...]. (Grupo focal escola 1 – professores) Bom, aqui na faculdade sempre tem os, aqueles dias de ação, dias de campo e que isso desperta um pouco nos meninos o gosto da promoção. (Grupo focal escola 9 – professores) Então, os PETs de uma certa forma também, eles vieram, né, enquanto programa governamental pra nos ajudar a trabalhar nesse contexto de competências e como se fazer uma formação e pensando na promoção da saúde. (Grupo focal escola 10 – professores

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Acho que a questão da promoção da Saúde para formação do enfermeiro e da enfermeira parte também da questão do conceito de saúde que a gente aprende durante a nossa formação e durante as atividades de extensão que a gente desenvolve também. (Grupo focal escola 11 – estudantes)

As possibilidades de experimentações das competências para a promoção da saúde são evidenciadas no discurso por meio do verbo “mostrar”. A gente leva nas instituições, leva no asilo, leva no hospital, tem a aula prática, leva eles no laboratório. Pra quê? Mostrar o que a gente está [...]. Então, a gente tem que mostrar para ele o porquê que ele está aprendendo, mostrar a importância daquilo ali, daquele conteúdo, daquela disciplina na prática dele, na vivência dele. (Grupo focal escola 9 – professores) Eu acredito que nós temos professores que incentivam bastante a promoção da saúde, né? [...] nós temos professores que nos mostram isso assim dados claramente, expõem situações reais e ideais e isso acho que deixa bem claro pra gente, né? [...] E eles, a maioria dos professores, também mostram como tá a promoção da saúde no momento atual no Brasil. (Grupo focal escola 4 – estudantes)

Relatos como “ele trouxe da teoria”, “nós procuramos colocá-lo diretamente”, e “o aluno já vai com um conhecimento suficiente” evidenciam a experimentação proporcionada no ensino das competências para a promoção da saúde. Nesse processo, ao aluno é determinado o momento de “aflorar” o que ele deveria ter absorvido anteriormente. Eu acho que, primeiro né a gente consegue captar essas, essas competências quando os meninos vão pra campo de estágio, então é sempre no início vai um professor junto com eles e lá é que a gente consegue ter uma ideia do que que ele trouxe de, de é de teoria, né, como que ele vai juntar com a prática. E juntando essas duas então ele vai desenvolver habilidade a competência. (Grupo focal escola 6 – professores) Ah, eu percebo que pelo menos na, na minha vivência no estágio, nós procuramos colocá-lo diretamente com algumas situações-problemas também porque possa aflorar tudo aquilo que aos quatro anos de teoria, né, ele foi absorvendo. (Grupo focal escola 4 – professores)

Os estudantes reconhecem um processo cumulativo de integração dos conhecimentos que aportam as experiências no ensino da promoção da saúde ao longo do curso. Nesse sentido, temporalmente, o discurso revela que é “no fim” que se efetiva a integração, pois “vai tudo se integrando” ao longo do curso para efetivar a promoção da saúde. Você vê alguma, pelo menos umas duas... uma coisinha no início do curso, então aí cê vai desenvolvendo alguma competência e habilidade, “ah, aqui você se torna observador, ali você começa...” e como isso? É... colocando você diante de uma situação, você pode questionar, principalmente se você fez você vai conseguir responder, isso foi gradativamente. (Grupo focal escola 4 – estudantes) Isso porque... eu quero lembrar agora, porque tipo, nesse, no primeiro período, a gente vai conhecer aquela rua que tem... esgoto aberto, esse bairro que tem uma escola, que tem crianças que precisam ser vacinadas, aí de repente você vai pro segundo fazer puericultura que passa daquela criança daquela escola, você vai para o terceiro vacinar crianças que podem ser daquela escola, ou daquele asilo que tem nesse bairro também, então, vai tudo se integrando. (Grupo focal escola 8 – estudantes)

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Os discursos dos estudantes indicam que a experiência se relaciona com uma descoberta marcante, evidenciada por “aí foi aí que eu fui integrando e fui percebendo”, demonstrada pelo intertexto “nossa, se eu tivesse ido lá visitar, se eu soubesse...”. Além disso, há uma abertura ao desconhecido, evidenciada pelo intertexto “caramba, era isso, era exatamente isso”. [...] aí foi aí que eu fui integrando e fui perecendo assim que uma coisa não leva a outra. No primeiro período foi só visita, aí no segundo eu ficava “nossa, se eu tivesse ido lá visitar, se eu soubesse’”, seria muito mais fácil fazendo uma visita, você vê como é que é... você vai conhecendo muito mais. Você consegue, por exemplo, melhor acompanhamento para essa pessoa. (Grupo focal escola 8 – estudantes) Você chega no oitavo, no nono e você fala “caramba era isso, era exatamente isso”, a gente não percebe que é isso que tem disciplinas que vão e no final a gente acaba juntando tudo. (Grupo focal escola 7 – estudantes)

Os discursos relevam que a promoção da saúde também pode ser vivenciada em ambientes que fogem ao lugar comum. Foi possível identificar nos relatos experimentações emancipadoras, nas quais os estudantes vivenciaram o movimento social como lócus de desenvolvimento das competências para a promoção da saúde. A gente realiza seminário é... de vivências, né, interdisciplinares no SUS que é um, uma vivência assim um estágio de vivência que permite que a gente pense a promoção de saúde a partir de vários aspectos, né, do aspecto da vivência de outros povos, do movimento social, da promoção da saúde política. (Grupo focal escola 11 – Estudantes) [...] na questão de promoção da saúde seria junto a movimentos sociais, alguns movimentos que trabalham é... com questão do estudo em saúde coletiva, também tem toda a questão da, acaba entrando a questão de promoção da saúde. [...] São espaços que a gente consegue consolidar algumas das coisas que a gente vê, por exemplo, na disciplina que a gente, a aplicabilidade. Têm as conferências também que a gente acaba trazendo também a questão do controle social... tudo isso. Têm alguns espaços também relacionados a... a coletivos independentes que eu conheço, eu tive a oportunidade de tá vivenciando algumas experiências de aplicabilidade pra promoção da saúde. (Grupo focal escola 10 – estudantes) [...] eu lembrei de uma aula de meio ambiente primeiro período com a professora X e nós estávamos conversando, discutindo sobre alguma coisa, e ela deu exemplo é de uma vez que ela foi e levou os alunos dela em um lixão [...] então aquela situação foi muito marcante pra mim e eu acho que eu comecei a entender e a procurar saber o porquê que a pessoa está naquela situação. (Grupo focal escola 7 – estudantes)

Discussão Os achados do estudo permitem analisar que, discursivamente, os relatos são marcados por afirmações modais de que a promoção da saúde é ensinada desde o início do curso. Essa concepção é reforçada pelas normativas gerais que abordam a promoção da saúde como uma competência geral na formação do enfermeiro. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em enfermagem reforçam essa ideia ao trazerem ações de promoção da saúde dentro das competências e habilidades gerais e específicas no exercício da profissão. Nessa perspectiva, essas diretrizes apontam para uma mudança na formação profissional voltada para as necessidades de saúde da população brasileira6,12.

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Os resultados indicam que o ensino das competências para a promoção da saúde ocorre em diferentes momentos e espaços da formação do enfermeiro. Contraditoriamente, há evidências de que a experimentação da promoção da saúde é um acontecimento determinado por um local e um tempo específico na formação, em especial nas disciplinas de Saúde Coletiva/Saúde Pública e em suas variações. Segundo Carvalho e Ceccim9, esses conteúdos precisariam transversalizar a formação, perpassando todas as disciplinas e estabelecendo interseções com diversas áreas sociais, como educação, história, ciências sociais, artes, entre outras. Os discursos dos participantes marcam temporalmente o ensino das competências para a promoção da saúde, caracterizando, assim, o periodismo. Segundo Benjamin, citado por Larrosa-Bondía8 (p. 22), “o periodismo é o grande dispositivo moderno para a destruição generalizada da experiência”. O periodismo direciona práticas à repetitividade e uniformidade, bloqueando momentos de significados singulares aos sujeitos. Por isso, a retórica contemporânea de formarmos sujeitos informantes e informados exclui as possibilidades de experiências por permitir a reiteração do conhecimento, mas não a experienciação deste. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que há que separá-la da informação. E a primeira coisa que eu gostaria de dizer sobre o saber da experiência é que há que separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação, quando se está informado.10 (p. 20)

Os achados permitem analisar que a prática é empregada no ensino das competências para a promoção da saúde para fundamentar o conteúdo teórico, pois é o momento que a consolida, proporcionando uma experimentação. Assim sendo, a prática é entendida como uma composição de “acontecimentos regulares e como coisas a ser manipuladas, entre tradição e esquecimento”7 (p. 56). Essa experimentação é controlada pelos professores que se utilizam da prática para demostrar a importância dos conhecimentos teóricos. Revela-se, assim, um ensino repetível e previsível, produzindo consenso e homogeneidade entre sujeitos, características das experimentações8. Em parte, esse achado se deve ao entendimento de que o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro é temporalmente marcado pela priorização da teoria sobre a prática e raramente propicia sentido à prática do aluno, oferecendo mais possibilidades de experimentações do que experiências. Nessa compreensão, a demonstração expressa nos discursos é um elemento que marca o experimento ou a experimentação. Segundo Schön13, a noção de experimento indica o “ver como” associado ao “fazer como”. A partir de seu repertório de exemplos, como as aulas teóricas ou as demonstrações dos professores, os estudantes podem fazer como, ou seja, colocar em prática ou aplicar aquilo que aprenderam. Para esse autor, o experimento é uma atitude deliberada tomada com a finalidade em mente, pautado na racionalidade técnica13. O experimento, pela lógica da ciência, é genérico, sua lógica produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, é repetível, predizível e previsível. À luz desse referencial, entende-se que as vivências proporcionadas aos estudantes para o desenvolvimento das competências para a promoção da saúde estão na ordem do testável e do tecnicismo, em que a prática é entendida como um momento de “treino”. Assim, os professores atuam no controle do processo de experimentação, partindo do pressuposto de que a teoria já foi toda aprendida e a prática é o momento para o estudante consolidar ou testar o que já foi ensinado. Essa compreensão confirma a perspectiva discutida por Schön13, na qual o professor, a partir de seu repertório de temas e exemplos, leva os alunos a experimentações na ordem do “vendo como e fazendo como” guiados pelo controle, distanciamento e objetividade, próprios da racionalidade científica13 (p. 70). Por outro lado, os resultados indicam que algumas experimentações proporcionaram experiências no ensino das competências para a promoção da saúde, pois foram capazes de transcender uma vivência genérica e sem sentido para um movimento singular e heterogêneo. Assim, configura-se como algo que “nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”8 (p. 21). 2018; 22(67):1209-20 1217

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Destaca-se que o discurso de professores e estudantes se diferenciam quanto ao significado das vivências no ensino das competências para a promoção da saúde. Nesse contexto, o discurso dos professores é estruturado nas experimentações, caracterizado por uma perspectiva positiva e retificadora, em que os estudantes são vistos como “sujeitos técnicos” sobre os quais se aplicam as tecnologias pedagógicas8 (p. 20). O discurso dos estudantes, por sua vez, estrutura-se sobre as experiências no ensino das competências para a promoção da saúde. Entre as experiências, os movimentos sociais e outros lugares que “fogem do comum” foram apontados como espaços nos quais o estudante expressa surpresas, novos conhecimentos e reflexão sobre a promoção da saúde. Em especial, esses espaços permitem que o estudante se surpreenda ao perceber que é possível, que ele consegue “aplicar” a promoção da saúde. São experiências, pois não antecipam um resultado, [...] a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar, nem “pré-ver”, nem “pré-dizer” [...]8 (p. 28). Assim, os achados do estudo revelam que as experiências acontecem na ordem do imprevisível, na qual os estudantes, por meio da reflexividade, remetem às descobertas e à abertura ao desconhecido.

Considerações finais Conclui-se que o ensino das competências para a promoção da saúde na formação do enfermeiro é marcado pelo modelo hegemônico centrado em disciplinas e na dissociação entre teoria e prática, na qual a primeira antecede a segunda. A prática social no campo da formação das competências é marcada pelo modelo tradicional do ensino e da concepção de promoção da saúde. Essa prática se reforça durante o processo de formação no qual, embora haja oportunidades para se vivenciar experiências de promoção da saúde e do desenvolvimento de suas competências, de modo geral essas experiências estão restritas. Afirma-se que o desenvolvimento de competências para a promoção da saúde deve ser pautado no pensamento crítico e reflexivo, criando-se experiências educativas na formação. Nesse sentido, aponta-se como principal desafio para o ensino das competências para a promoção da saúde superar a lógica da experimentação estruturada na racionalidade técnica para uma perspectiva que permita e valorize as experiências na formação do enfermeiro. As conclusões do estudo não garantem generalizações dada a natureza da pesquisa qualitativa. Contudo, a amplitude e representação dos cursos analisados no cenário nacional permitem estender os achados a outros contextos que possuem características similares e enfrentam as mesmas questões apresentadas neste texto. Indica-se a necessidade de ampliar nos cursos de graduação em enfermagem no Brasil momentos, estratégias e atividades de ensino que garantam especificidade para a formação das competências para a promoção da saúde, superando o periodismo, o ensino disciplinar localizado e oferecendo mais possibilidades de experiências do que experimentações.

Colaboradores Kênia Lara Silva participou da concepção do estudo, coleta e análise dos dados, discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação da versão final do trabalho; Bárbara Jacome Barcelos e Bruna Dias França participaram da análise dos dados, discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação da versão final do trabalho; Fernanda Lopes de Araújo, Izabela Thaís Magalhães Neta e Michele Melo participaram da coleta e análise dos dados, discussão dos resultados, redação, revisão e aprovação da versão final do trabalho. 1218

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Referências 1. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.446, de 11 de novembro de 2014. Dispõe sobre a atualização da Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União. 11 Nov 2014. 2. Pinheiro DGM, Scabar TG, Maeda ST, Fracolli LA, Pelicioni MCF, Chiesa AM. Health promotion competencies: challenges of formation. Saude Soc [Internet]. 2015 [citado 1 Ago 2017]; 24(1):180-8. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24n1/ en_0104-1290-sausoc-24-1-0180.pdf. 3. Tusset D, Nogueira JAD, Rocha DG, Rezende R. Analysis of the health promotion competencies from the official document and the speeches of the actors that implement the Health School Program in Federal District. Tempus Actas Saude Colet [Internet]. 2015 [citado 1 Ago 2017]; 9(1):189-204. Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/ index.php/tempus/article/view/1701/1393. 4. Netto L, Silva KL, Rua MS. Competency building for health promotion and change in the care model. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [citado 1 Ago 2017]; 25(2):e2150015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n2/0104-0707tce-25-02-2150015.pdf. 5. Rodrigues J, Zagonel IPS, Mantovani MF. Alternativas para a prática docente no ensino superior de enfermagem. Esc Anna Nery [Internet]. 2007 [citado 1 Ago 2017]; 11(2):3137.Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n2/v11n2a20.pdf. 6. Ministério da Educação (BR). Parecer CNE/CES nº 1.133/2001, aprovado em 7 de agosto de 2001. Dispõe dobre as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição [Internet]. Diário Oficial da União. 7 Ago 2001 [citado 01 Ago 2017]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ ces1133. 7. Almeida JR. Experiência, acontecimento e educação a partir de Foucault. Filogênese [Internet]. 2013 [citado 2 Ago 2017]; 6(2):48-62. Disponível em: https://www.marilia. unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/jonasrangel.pdf. 8. Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ [Internet]. 2002 [citado 1 Ago 2017]. (19):20-8. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/ n19/n19a02.pdf. 9. Carvalho YM, Ceccim RB. Formação e educação em saúde: aprendizados com saúde coletiva. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 137-70. 10. Larrosa-Bondía J. Experiência e alteridade em educação. Rev Reflex Ação. 2011; 19(2):4-27. 11. Resende VM, Ramalho V. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto; 2006. 12. Chiesa AM, Nascimento DDG, Braccialli LAD, Oliveira MAC, Ciampone MHT. A formação de profissionais da saúde: aprendizagem significativa à luz da promoção da saúde. Cogitare Enferm. 2007; 12(2):236-40. 13. Schön DA. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 2000.

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artigos

Silva KL, Barcelos BJ, França BD, Araújo FL, Magalhães Neta IT, Ledo MM


ENTRE EXPERIMENTAÇÕES E EXPERIÊNCIAS: ...

Silva KL, Barcelos BJ, França BD, Araújo FL, Magalhães Neta IT, Ledo MM. Entre experimentaciones y experiencias: desafíos para la enseñanza de las competencias para la promoción de la salud en la formación del enfermero. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1209-20. El objetivo de la investigación fue analizar la enseñanza de las competencias para la promoción de la salud en la formación del enfermero, identificando las experimentaciones y experiencias en este proceso. Se trata de un estudio cualitativo cuyos datos se obtuvieron de grupos focales con profesores y estudiantes de 11 cursos de graduación en Enfermería en Brasil. Las competencias para la promoción de la salud se enseñan temporalmente en el contacto y en la convivencia con la realidad por medio de experimentaciones y experiencias. La experimentación es un acontecimiento determinado por un local y un tiempo específico en la formación. Por otro lado, las experiencias se relacionan con un descubrimiento señalado y con la apertura a lo desconocido. Hay desafíos para la enseñanza de las competencias para la promoción de la salud, superando la lógica de la experimentación estructurada en la racionalidad técnica para una perspectiva que permita y valorice las experiencias en la formación del enfermero.

Palabras clave: Educación en enfermería. Promoción de la salud. Competencia profesional

Submetido em 25/08/17. Aprovado em 27/11/17.

1220

2018; 22(67):1209-20


DOI: 10.1590/1807-57622017.0628

revisão

Avaliação de competências individuais e interprofissionais de profissionais de saúde em atividades clínicas simuladas: scoping review Fernanda Berchelli Girão Miranda(a) Alessandra Mazzo(b) Gerson Alves Pereira Junior(c)

Miranda FBG, Mazzo A, Pereira Junior GA. Assessment of individual and interprofessional skills of health professionals in simulated clinical activities: a scoping review. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1221-34.

Objective: to identify in the literature how the assessment of individual and interprofessional skills in simulated clinical activities in the training and qualification of health professionals has been performed. Method: study conducted through a scoping review according to the Joanna Briggs Institute. The searches were conducted between December 2015 and February 2016 in the established electronic databases through descriptors and synonyms. Results: Twenty studies that were in line with the established inclusion criteria were analyzed; communication and procedural skills were the most frequently assessed items in all professional categories, and checklists were the most frequently used instruments to assess the skills. Conclusion: the development and assessment of professional and interprofessional skills in clinical simulation have been carried out with the support of different instruments and methods, however their content and use may limit and direct the assessment process.

Keywords: Health personnel. Simulation. Clinical skill. Assessment methods.

CC

BY

Objetivo: identificar junto à literatura como tem sido realizada a avaliação de competências individuais e interprofissionais em atividades clínicas simuladas na formação e capacitação de profissionais da área de Saúde. Método: estudo realizado por meio de Scoping Review, conforme Joanna Briggs Institute. As buscas foram realizadas entre dezembro de 2015 a fevereiro de 2016 nas bases de dados eletrônicas estabelecidas, por intermédio dos descritores e sinônimos. Resultados: Foram analisados 20 estudos que atenderam aos critérios de inclusão estabelecidos; os itens avaliados com maior frequência em todas as categorias profissionais foram as habilidades procedimentais e de comunicação; os dhecklists foram os instrumentos mais frequentes para avaliar competências. Conclusão: o desenvolvimento e a avaliação de competências profissionais e interprofissionais em simulação clínica têm sido realizadod com o apoio de instrumentos e métodos variados, todavia, o conteúdo e utilização destes podem limitar e direcionar o processo avaliativo.

Palavras-chave: Pessoal de saúde. Simulação. Competência clínica. Métodos de avaliação.

Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Avenida dos Bandeirantes, 3900, Campus Universitário, Bairro Monte Alegre. Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14040-902. fernanda.berchelli@ usp.br (b) Departamento de Enfermagem Geral e Especializada, Escola de Enfermagem Geral e Especializada, USP. Ribeirão Preto, SP, Brasil. amazzo@eerp.usp.br. (c) Curso de Medicina de Bauru, Cirurgia de Urgência e Trauma, USP. Bauru, SP, Brasil. gersonapj@gmail.com

(a)

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AVALIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS E INTERPROFISSIONAIS ...

Introdução Existem inúmeros conceitos utilizados para definir competências. Atualmente, competência tem sido descrita como um processo contínuo que, no contexto da saúde, envolve: habilidades cognitivas, psicomotoras, de comunicação, raciocínio clínico, capacidade de resolver problemas, tomada de decisões, e comportamento psicológico e social do aprendiz para se adaptar aos novos ambientes e condições1-4. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Medicina de 20145 definem competência como sendo a capacidade de mobilizar diferentes recursos para solucionar, com pertinência e sucesso, os problemas da prática profissional em diferentes contextos do trabalho em saúde. A mobilização de capacidades cognitivas, atitudinais e psicomotoras promove uma combinação de recursos que se expressa em ações frente a um problema. As ações são traduzidas por desempenhos que refletem os elementos da competência, as capacidades de intervenção dos valores e padrão de qualidade num determinado contexto da prática. Assim, traduzem a excelência da prática médica nos cenários do Sistema Único de Saúde (SUS). A formação interprofissional é eficaz para o desenvolvimento de profissionais competentes, possibilitando: um estilo de educação que permite o trabalho em equipe, a integração e a flexibilidade da força de trabalho, além da reflexão dos aprendizes sobre a necessidade de domínios de conhecimentos, habilidades e atitudes para que possam atuar e contribuir para a socialização entre os profissionais6,7. Também permite a discussão de temas que, normalmente, apenas margeiam os conteúdos curriculares de uma forma pouco prática, como: profissionalismo, liderança, comunicação, tomada de decisão, administração e gerenciamento, educação permanente, ética e bioética, e juízo de crenças e valores pessoais e corporativos, compondo as competências gerais (ou comuns a todos os profissionais da saúde) da prática interprofissional compartilhada. A Organização Mundial da Saúde (OMS)8 defende que, dentre as estratégias de progresso para o futuro, devemos destacar a educação interprofissional. No Brasil, o avanço dessa temática tem sido associado às propostas do SUS para o desenvolvimento das equipes. Todavia, os processos de formação nem sempre englobam o trabalho interprofissional, o que repercute de forma negativa na prática clínica, no relacionamento do profissional com o paciente, com o familiar e com os demais membros da equipe multiprofissional9-11. Conceitualmente, o termo multiprofissional diz respeito ao conjunto de profissionais que trabalham de maneira simultânea, mas sem estarem relacionados entre si, enquanto, no interprofissional, refere-se àquilo que se realiza entre duas ou mais profissões ou profissionais; em que participam indivíduos de diferentes profissões. A formação em serviço proporciona não somente a qualificação dos trabalhadores do SUS, mas o desenvolvimento do próprio sistema de saúde, partindo da reflexão sobre a realidade dos serviços e sobre o que precisa ser transformado, com a finalidade de melhorar a gestão e o cuidado em saúde. O trabalho colaborativo em equipes de saúde, respeitando normas institucionais dos ambientes de trabalho e compromissos ético-profissionais, pode superar a fragmentação dos processos de trabalho e promover parcerias e constituição de redes, ampliando a aproximação entre instituições, serviços e outros setores envolvidos na atenção integral à saúde. As diretrizes curriculares podem apontar para a elaboração compartilhada e interprofissional de projetos terapêuticos que estimulem o autocuidado e a autonomia das pessoas, famílias, grupos e comunidades, reconhecendo os usuários como protagonistas ativos de sua própria saúde. Dentre as inúmeras estratégias que têm sido utilizadas para modificar tais situações e alcançar o aprimoramento e o desenvolvimento de competências específicas e interprofissionais de estudantes e profissionais de saúde, destaca-se o uso da simulação clínica. A simulação clínica é uma estratégia de ensino- aprendizagem que permite que, em ambiente artificial, se imitem as situações reais com a melhor verossimilhança possível. Pode ser utilizada em diferentes complexidades de cenários e com diversas modalidades de recursos. A fidelidade dos cenários é delimitada pelos objetivos de aprendizagem das atividades e, nesse contexto, as simulações de alta fidelidade geralmente envolvem situações complexas, raciocínio clínico e trabalho em equipe interprofissional12,13. Nas práticas clínicas simuladas os processos de desenvolvimento de competências interferem na formação individual, o que repercute também no trabalho interprofissional e é acompanhado pelas 1222

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distintas formas como as competências individuais e interprofissionais têm sido avaliadas. Avaliar competências envolve a compreensão em plenitude do aprendiz pelo docente, é capaz de estimular no aprendiz: a autoavaliação, o raciocínio clínico, a consciência das atitudes, a percepção da infraestrutura e os recursos humanos, diagnósticos e terapêuticos disponíveis na instituição de saúde, tornando-o capaz de correlacionar esses fatores com o nível de atenção oferecido aos usuários dentro do sistema de saúde. A formação dos profissionais em saúde é conduzida pelas Diretrizes Nacionais Curriculares, nas quais o desenvolvimento das competências e habilidades específicas sinalizam contribuições dessas profissões para a consolidação e fortalecimento do SUS. Assim, desenvolver e avaliar as competências desses profissionais torna-se necessário, podendo refletir diretamente na qualidade da assistência aos usuários do sistema de saúde brasileiro. Nesse sentido, para apoiar esse processo, esse estudo tem como objetivo identificar, junto à literatura nacional e internacional, como tem sido realizada a avaliação de competências individuais e interprofissionais em atividades clínicas simuladas na formação e capacitação de profissionais de saúde.

Método Estudo realizado por meio de Scoping Review, conforme a proposta do Joanna Briggs Institute (JBI)14. Para a construção da pergunta da pesquisa, aplicou-se a estratégia PCC, que representa uma mnemônica para População, Conceito e Contexto14, definindo: P - alunos, profissionais de saúde; C avaliação de competências; C - atividade simulada. Para a busca e seleção dos estudos, foi estabelecida a seguinte questão norteadora: “Como avaliar competências entre alunos e/ou profissionais de saúde em atividades clínicas simuladas?”. A busca foi realizada por dois pesquisadores independentes, conforme critérios do JBI14, nas bases de dados: Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Literatura LatinoAmericana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), National Library of Medicine (PubMed), SCOPUS; e na plataforma Web of Science, por meio dos descritores e/ou seus sinônimos, de acordo com os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical Subject Headings (MeSH), para cada item da estratégia. Dessa forma, foram utilizados para População (P): “Estudantes de Enfermagem” OR “Estudantes” OR “Pessoal de Saúde” OR “Enfermeiros” OR “Enfermagem” OR “Alunos de Enfermagem” OR “Enfermeiras Estudantes” OR “Enfermeiros Estudantes” OR “Profissional da Saúde” OR “Profissional de Saúde” OR “Profissionais da Saúde” OR “Trabalhador de Saúde” OR “Trabalhador da Saúde” OR “Trabalhadores de Saúde” OR “Trabalhadores da Saúde” OR “Students Nursing” OR “Students” OR “Health Personnel” OR “Nurses” OR “Nursing” OR “Nurses Students” OR “Nursing Students” OR “Student Nurses” OR “Health Professional” OR “Health Professionals” OR “Health Worker” OR “Health Workers”; Conceito (C): “Competência Clínica” OR “Competência Profissional” OR “Educação Baseada em Competências” OR “Avaliação” OR “Metodologia de Avaliação” OR “Métodos de Avaliação” OR “Técnicas de Avaliação” OR “Clinical Competence” OR “Professional Competence” OR “Competency-Based Education” OR “Evaluation” OR “Evaluation Methodology” OR “Assessment methods” OR “Technical Evaluation”; Contexto (C): “Simulação de Paciente” OR “Simulação” OR “Paciente simulado” OR “Patient Simulation” OR “Patient Simulations” OR “Simulation, Patient” OR “Simulations, Patient”. Para a combinação dos descritores, foram considerados os termos booleanos: AND, OR e NOT15. Após a realização da busca, foram inclusas: as pesquisas realizadas nos idiomas inglês, espanhol e português, com abordagem quantitativa e qualitativa, estudos primários, revisões sistemáticas, metanálises e/ou metassínteses, livros e guidelines, publicados em fontes indexadas ou na literatura cinzenta, que respondessem a pergunta estabelecida; não foram incluídos os artigos em idiomas diferentes dos estabelecidos, publicações de opiniões, consensos, retrações, editoriais, websites e propagandas veiculadas em mídias. As buscas foram executadas entre os meses de dezembro de 2015 a fevereiro de 2016, período no qual todas as publicações foram acessadas, sem quaisquer restrições quanto ao espaço temporal. Para a seleção dos estudos, foi realizada a leitura criteriosa do 2018; 22(67):1221-34 1223

revisão

Miranda FBG, Mazzo A, Pereira Junior GA


AVALIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS E INTERPROFISSIONAIS ...

título, resumo e palavras-chave, e, posteriormente, a adequação aos critérios de inclusão e exclusão estabelecidos. Em relação aos estudos em que o título, o resumo e as palavras-chave não foram suficientes para definir a seleção, buscou-se a leitura do artigo na íntegra. Para a extração dos dados, entre os estudos selecionados, utilizou-se um instrumento estruturado pelos próprios pesquisadores conforme recomendações do JBI14. Na análise crítica dos artigos selecionados, foi ainda realizada análise do delineamento das pesquisas16.

Resultados Foram identificados 2.936 estudos por meio da pesquisa nas bases de dados. Após leitura dos títulos e resumos, selecionaram-se 72 artigos para leitura na íntegra. Após análise da íntegra dos 72 estudos selecionados, vinte foram inclusos por responderem à questão da pesquisa. Para a apresentação dos resultados, as pesquisas foram numeradas de um a vinte. A descrição detalhada do processo de seleção e inclusão dos artigos encontra-se descrita no Fluxograma 1. Os vinte estudos incluídos na amostra foram publicados entre os anos de 2003 a 2015. O Quadro 1 apresenta os estudos analisados segundo: o ano de publicação, autores, país de origem do estudo, amostra, abordagem metodológica, itens avaliados e estratégia simulada utilizada na avaliação; e o Quadro 2 apresenta os estudos avaliados conforme denominação e conteúdo dos instrumentos utilizados para a avaliação de competências.

Artigos identificados através de pesquisa de bases de dados (n=2.936)

Artigos excluídos após leitura de título (n= 2.730)

Artigos repetidos nas bases de dados (n= 7)

Artigos selecionados para análise do resumo (n= 206)

Artigos selecionados para análise de texto completo (n=72) Estudos selecionados através das referências dos artigos na íntegra (n=1)

Artigos excluídos após leitura do resumo (n=127)

Artigos excluídos pela leitura de texto completo (n=52)

Estudos selecionados após análise de texto completo (n=20) Fluxograma 1. Descrição do processo de seleção dos estudos. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2016.

1224

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Quadro 1. Estudos analisados segundo: o ano de publicação, autores, país de origem do estudo, amostra, abordagem metodológica, itens avaliados e estratégia utilizada em simulação para a avaliação. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2016. Ano

Autores

País

Amostra

Metodologia

Itens avaliados

Estratégia de avaliação

200317

Yoo MS, Yoo Y.

Coreia do Sul

quarenta estudantes de graduação em enfermagem

Quase experimental

Habilidades (procedimentos, comunicação)

OSCE*

200518

Baez A.

Estados Unidos da América

Estudantes de graduação de serviço social

Descritivo

Habilidades (entrevista e tomada de decisão)

OSCE

200619

Quest TE, Ander Estados DS, Ratcliff JJ. Unidos da América

37 alunos de graduação em medicina

Observacional, prospectivo

Habilidades (comunicação em notícias de morte)

Cenário simulado de alta fidelidade

200920

Varga CRR, Almeida VC, Germano CMR, Melo DG, Chachá SGF, Souto BGA et al.

Brasil

Estudantes de graduação em medicina

Relato Reflexivo

Habilidade (comunicação)

OSCE

200921

Kurz JM, Mahoney K, Martin-Plank L, Lidicker J.

Estados Unidos da América

37 estudantes de pós-graduação em enfermagem

Quase experimental

Habilidades (procedimentos, comunicação)

OSCE

201022

Jarzemsky P, McCarthy J, Ellis N.

Não descreve

Estudantes de graduação em enfermagem

Relato de experiência

Conhecimentos, habilidades e atitudes

Cenário simulado

201123

Carvalho IP, Pais VG, Almeida SS, Ribeiro-Silva R, FigueiredoBraga M, Teles A et al.

Portugal

25 profissionais (médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas)

Quase experimental

Habilidades (comunicação)

Cenário simulado

201124

Armstrong KJ, Walker S, Jarriel AJ.

Estados Unidos da América

Estudantes graduação em medicina

Descritivo

Habilidades Cenário (relacionamento com simulado a equipe de saúde, clínicos e comunicação)

201125

Cates LA, Wilson D.

Estados Unidos da América

Enfermeiras neonatais

Relato de experiência

Aquisição e manutenção de competências

Cenário simulado de alta fidelidade

201126

Kubota Y, Yano Y, Seki S, Takada K, Sakuma M, Morimoto T et al.

Japão

nove estudantes de graduação e 6 estudantes de pós-graduação em farmácia

Quase experimental

Competência (comunicação)

OSCE

201227

Young KH, Eun K, Lee ES.

Coreia do Sul

73 alunos de graduação em enfermagem

Quase experimental

Habilidades (comunicação) Competência clínica

Cenário simulado de alta fidelidade

201228

Waterval EME, Stephan K, Peczinka D, Shaw A.

Estados Unidos da América

Multidisciplinar

Relato de experiência

Habilidades e competências clínicas

Cenário simulado

continua

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revisão

Miranda FBG, Mazzo A, Pereira Junior GA


AVALIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS E INTERPROFISSIONAIS ...

Quadro 1. continuação Ano

Amostra

Metodologia

País

201229

Hinton JE, Mays MZ, Hagler D, Randolph P, DeFalco N, Kastenbaum B et al.

Estados Unidos da América

21 estudantes de graduação em enfermagem

Relato de experiência

Competência (segurança do paciente)

Cenário simulado de alta fidelidade

201430

Hsu LL, Huang YH, Hsieh SI.

Taiwan

122 profissionais de enfermagem

Experimental

Competência (comunicação) Autoeficácia Performance do atendimento

OSCE

201431

Eun K, Kim HY.

Coreia do Sul

65 estudantes de graduação em enfermagem

Quase experimental

Pensamento Crítico Resolução de Problemas Competência Clínica

Cenário simulado de alta fidelidade

201432

Franklin AE, Sideras S, Gubrud-Howe P, Lee CS.

Estados Unidos da América

vinte profissionais de enfermagem

Experimental

Habilidades (técnicas, segurança do paciente, exame físico, administração de medicamentos, comunicação e liderança)

Cenário simulado de alta fidelidade

201433

Milner KA, Watson SM, Stewart JG, Denisco S.

Não descreve

28 estudantes de graduação em enfermagem

Descritivo

Habilidades (exame físico, profissionalismo, raciocínio crítico, comunicação, organização e eficiência), Competência clínica

OSCE

201534

Watts PI

Estados Unidos da América

vinte instrutores de enfermagem que trabalham com simulação clínica

Teoria fundamentada

Competência na administração de medicamentos, de oxigênio e avaliação física

Cenário Simulado

201535

Bodamer C, Feldman M, Kushinka J, Brock E, Dow A, Evans JA et al.

Estados Unidos da América

349 estudantes de graduação medicina

Quase experimental

Conhecimento Habilidades clínicas para o diagnóstico Julgamento clínico e tomada de decisão

OSCE

201536

Franco CAGS, Franco RS, Santos VM, Uiema LA, Mendonça NB, Casanova AP et al.

Brasil

16 estudantes de graduação medicina

Observacional, transversal

Competência de comunicação clínica Postura profissional do médico

OSCE

*Objective Structured Clinical Examination

1226

2018; 22(67):1221-34

Itens avaliados

Estratégia de avaliação

Autores


Quadro 2. Estudos analisados conforme denominação e conteúdo dos instrumentos utilizados para a avaliação. Ribeirão Preto, SP, Brasil, 2016. Estudo 117

218

319

420 521

622

723

824

925

1026

1127

Instrumentos utilizados para avaliação Checklist construído pelos autores; Teste de conhecimento por meio da resolução de estudo de caso Checklist construído pelos autores

Conteúdo do instrumento Checklist de habilidades de comunicação e intervenções (cuidados com a boca, mudança de decúbito, cuidados com a pele, cateterismo vesical e enema). Estudo de caso de paciente com paralisias. Checklist de avaliação de competências manifestadas pelos alunos no início da entrevista, na abordagem da história pregressa, encorajamento do paciente, perguntas concretas, uso de paráfrases, reflexões dos sentimentos, triagem, solicitam a autorização do paciente para procedimentos, preservação da intimidade do paciente, sintetiza e recomenda cuidados em saúde mutuamente estabelece metas no tratamento. Checklist construído pelos autores Escala Likert de 5 pontos que avalia a confiança e conforto do estudante denominado Instrumento Affective na comunicação, empatia e sensibilidade com o paciente e familiar, grau Competency Score (ACS) de respeito e profissionalismo, suficiência das informações prestadas e capacidade de consolar o familiar. Não descrito Não descrito Checklist construído pelos autores Instrumento de 20 itens que avalia a performance do estudante em 4 categorias: história da doença atual, histórico médico do paciente, exame físico e outras habilidades de comunicação. Quality and Safety in the Education of Roteiro aplicado antes, durante e após o desenvolvimento de cenário Nurses (QSEN) simulado, que direciona a avaliação de conhecimentos, habilidades e atitudes nos cuidados centrados no paciente, trabalho em equipe, prática baseada em evidências, segurança e recursos de informática. SEGUE framework Instrumento dicotômico, de 25 itens, divididos em 6 áreas, que avalia a Interpersonal and Communication Skills comunicação em momentos críticos, podendo ser aplicado a diferentes Checklist (ICSC) profissionais de saúde. ICSC - Instrumento dicotômico de 17 itens que Self-efficacy avalia habilidades interpessoais e de comunicação durante o início e o final da entrevista com o paciente. Self efficacy - Instrumento com 38 itens, tipo Likert de 7 pontos, que tem como objetivo mensurar a autoconfiança nas habilidades de sensibilidade psicológica, sensibilidade emocional, gestão da somatização, comunicação diretiva e não diretiva com o paciente. 3 Checklists construídos pelos autores: Interpersonal skills/ attributes evaluated by SPs: (avaliação do paciente 1) Interpersonal skills/ attributes simulado) - Instrumento de 10 itens que avalia o desenvolvimento do evaluated by SPs (avaliação dos pacientes estudante quanto à comunicação, interação com o paciente, orientações simulados) sobre procedimentos, sintomas, prevenções ou tratamentos de doenças. 2) Standardized patient history Standardized patient history and physical examination checklist: and physical examination checklist: Concussion Evaluation: (avaliação do facilitador) – Instrumento de 20 Concussion Evaluation (avaliação do itens, dicotômico, que avalia a postura, comunicação com o paciente e o facilitador) desenvolvimento do exame físico. 3) Student self-evaluation of standardized Student self-evaluation of standardized patient evaluation: (autoavaliação patient evaluation (autoavaliação do do estudante): Instrumento de 20 itens (performance correta, incompleta e estudante). não realizada) respondido pelo estudante quanto a anamnese, exame físico e encerramento da consulta médica. National Association of Neonatal Conjunto de 9 itens relacionados às competências neonatais com o Nurse Practitioners (NANNP) Core gerenciamento do estado de saúde e doença, relacionamento, orientação, Competencies papel profissional, gestão de serviços de saúde, segurança de qualidade das práticas de cuidados com o paciente, cuidados culturais, competências na administração de medicamentos, habilidades clínicas. Roter Interaction Analysis System (RIAS) RIAS - roteiro que codifica a comunicação entre profissionais e pacientes por meio das categorias socioemocionais dos alunos, categoria de negociação e categoria processo. Instrumento validado para avaliar Instrumento para avaliar habilidades de comunicação - Instrumento de habilidades de Comunicação. 5 questões e 5 pontos que avalia atitude profissional dos enfermeiros Instrumento validado para avaliar referente às orientações fornecidas ao paciente. competência clínica Instrumento validado para avaliar competência clínica - Instrumento de 19 itens de 5 pontos que avalia o processo de habilidades psicossociais, educação do paciente, a performance nas intervenções, exame físico e capacidade de monitorar o paciente. continua

2018; 22(67):1221-34 1227

revisão

Miranda FBG, Mazzo A, Pereira Junior GA


AVALIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS E INTERPROFISSIONAIS ...

Quadro 2. continuação Estudo 1228

1329

1430

1531

1632 1733

1834

1935

2036

Instrumentos utilizados para avaliação Conteúdo do instrumento Checklist construído pelos autores Checklist baseado nos protocolos institucionais, que envolve avaliação de habilidades de competência numa população específica e teste de avaliação de conhecimento, com base na política do hospital e procedimentos padrão dos profissionais. Nursing Performance Profile (NPP) NPP - Instrumento de 41 itens que permite quantificar a competência dos enfermeiros e identificar a necessidade de capacitação. TERCAP Instrument Taxonomy of Error, Root Instrumento que identifica a prática de enfermagem relacionada a oito Cause Analysis Practice Responsibility categorias: segurança na administração de medicamentos, documentação, (TERCAP) atenção/vigilância, raciocínio clínico, prevenção, intervenção, a interpretação de ordens de superiores e a responsabilidade profissional. Nursing Performance Profile (NPP) NPP instrument competency categories - Instrumento que avalia a instrument competency categories responsabilidade profissional, defesa do paciente, atenção, raciocínio clínico percebido, raciocínio clínico entendido, comunicação, prevenção, Clinical Competency Assessment of competência processual, documentação. Newly Licensed Nurses (NCSBN’s) NCSBN’s - Instrumento de 35 itens que mensura a competência clínica, prática de erros e riscos para intercorrências na prática clínica.

Communication Competence Scale (CCS) CCS - Instrumento de 20 itens, tipo Likert de 5 pontos que avalia Communication Self-Efficacy Scale (CSES) competência na comunicação. CSES - Instrumento de 12 itens, tipo Likert de 11 pontos que avalia Myocardial Infarction Knowledge Test os níveis de autoeficácia e confiança na comunicação com pacientes (MIKT) e familiares. MIKT - Teste de múltipla escolha de 16 itens que avalia o conhecimento do tratamento para Infarto Agudo do Miocárdio (IAM). Learning Satisfaction Scale (LSS) LSS- Instrumento de 11 itens e 5 pontos e duas questões que avalia a Communication Performance Checklist satisfação com a atividade simulada. (CPC) CPC - Instrumento de 8 itens tipo Likert de 3 pontos e 1 item de 5 pontos que avalia a performance na comunicação com pacientes hospitalizados. Instrumento validado para avaliar Instrumento para avaliar habilidades não técnicas - Instrumento de 27 habilidades não técnicas questões e 5 pontos que avalia o pensamento crítico. Instrumento validado para avaliar Instrumento de 19 itens de 5 pontos que avalia o processo de Instrumento competência clínica validado para avaliar competência clínica - habilidades psicossociais, Instrumento validado para avaliar educação do paciente, a performance nas intervenções, exame físico resolubilidade e capacidade de monitorar o paciente. Instrumento para avaliar resolubilidade - Instrumento de 25 itens tipo Likert de 5 pontos que avalia o processo de resolução de problemas. Creighton Simulation Evaluation Instrumento de 22 itens com respostas dicotômicas para avaliação de Instrument (CSEI) competências. Mini-Clinical Evaluation Exercise (MiniFerramenta de 9 pontos que avalia habilidades, desempenho no exame CEX) físico, qualidades humanas/profissionais, julgamento clínico, transmissão de informações, organização/eficiência e competências clínicas gerais. Vídeo e entrevista com proposta de O roteiro subdividido em quatro subtemas, conhecimentos de um roteiro intitulado Desired Student enfermagem, habilidades, atitudes e gestão em enfermagem. Behaviors (DSB) Standardized simulation-based SSBE - Questionário de múltipla escolha de 52 itens que avalia examination (SSBE) conhecimento e atitudes relacionados. United States Medical Licensing USMLE - Teste de conhecimento Examination (USMLE) Checklist construído pelos pesquisadores Instrumento dicotômico, de 14 questões tipo Likert de 6 pontos Questionário de satisfação com o cenário (apresentação, diálogo, linguagem corporal, tom de voz, contato visual, etc.)

Discussão A avaliação, sob a ótica de sua concepção formativa e como mecanismo fundamental de regulação e melhoria da qualidade da educação, desempenha um papel indutor fundamental para o processo 1228

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de mudanças na graduação, tendo em perspectiva a formação de profissionais aptos a prestarem atenção à saúde de forma resolutiva e integral. A avaliação dos estudantes deve ter caráter processual, contextual, multimodal e formativo, com a utilização de instrumentos e métodos que avaliem conhecimentos, habilidades e atitudes, objetivando produzir reflexões coletivas que ofereçam diretrizes para a tomada de decisões e definição de prioridades. Compete às instituições de ensino o desafio de determinar quais competências são as mais críticas e relevantes para que os estudantes e/ou profissionais em período de capacitação estejam seguros e minimamente preparados para a prática, assim como, garantir a avaliação das competências dos aprendizes ao se titularem2,37,38. Como reflexo desse crescimento do uso da simulação clínica na formação e capacitação dos profissionais de saúde, temos visto a proliferação de instrumentos de avaliação destinados a avaliar o desempenho dos participantes nas práticas simuladas39,40. A prática clínica simulada destaca-se pelos efeitos positivos no desenvolvimento do trabalho interprofissional, sobretudo, no que diz respeito às habilidades não técnicas e, também, técnicas da aprendizagem de estudantes e profissionais de saúde8-11. Nos estudos encontrados nesta revisão, os itens avaliados com maior frequência em todas as categorias profissionais foram as habilidades procedimentais e de comunicação. Foi possível identificar ainda, com frequência, o uso do termo avaliação de competências para atributos de habilidades, conhecimentos e, até mesmo, de atitudes. Além disso, os instrumentos mencionados para avaliar competências, em alguns estudos, eram, na maior parte das vezes, compostos por Checklists relacionados a avaliação de habilidades e de conhecimentos17-21,23,24,32,33. O Checklist é um instrumento padronizado composto por um conjunto de condutas, nomes, itens ou tarefas que devem ser lembradas ou seguidas de forma sequencial. Pode ser considerado como uma ferramenta de avaliação que, sistematicamente, classifica o desempenho dos sujeitos. Todavia, pode direcionar o avaliador para outros aspectos esperados dos profissionais de saúde, como o trabalho em equipe, a tomada de decisão, a comunicação terapêutica, entre outros34. O uso de ferramentas pobres ou que possuam medidas inadequadas podem limitar o escopo, o potencial e a qualidade do uso do Checklist. Para que seja efetivo, um instrumento de avaliação necessita clarificar o que é mensurado, o julgamento clínico, o pensamento crítico, a competência ou a habilidade técnica a ser avaliada41. A palavra habilidade é originária do latim Habilitate e possui, como significado, a qualidade de ser hábil, inteligente, de demostrar aptidão, engenho, destreza. Não é competência, mas, na maioria das vezes, caracteriza-se como pré-requisito para determinadas competências. No entanto, nem sempre um indivíduo hábil é um indivíduo competente42. Entre as habilidades mais avaliadas nesse estudo, destacaram-se: a habilidade de comunicação, procedimentais (exame físico, administração de medicamentos, enemas, cuidados com a pele, entre outros). A comunicação permite a transmissão, de um indivíduo para outro, de informações claras e objetivas, tornando possível uma interação social43, e é uma competência fundamental do trabalho interprofissional. O desenvolvimento e a avaliação da competência de comunicação são uma tarefa complexa, pois envolve empatia, clareza, objetividade, segurança, entre outros requisitos. Nessa revisão alguns pesquisadores utilizaram a simulação como estratégia para o desenvolvimento da comunicação em diferentes contextos, abrangendo: as entrevistas clínicas, a comunicação de más notícias, as orientações de procedimentos ou tratamentos a serem realizados, e, também, o relacionamento interprofissional da equipe de saúde18-20,26,27,30,36. As habilidades procedimentais levam à confiança interprofissional e a eficácia dos processos que envolvem as relações dentro da equipe, e com pacientes e seus familiares. São procedimentos integrantes e relevantes na formação individual dos profissionais. Muitas ações têm como base o desenvolvimento procedimental, e o sucesso de uma intervenção depende da destreza técnica na realização desses procedimentos17,21,22,24,28,32,33. As competências descritas em diferentes complexidades envolvem um conjunto de atividades que incluem a inserção do profissional44. As competências avaliadas nos estudos foram: a segurança e a qualidade dos cuidados centrados no paciente22,34,35, o gerenciamento e a gestão do serviço e do cuidado de saúde25,31,34, a comunicação26,27,30,35,36, e os cuidados assistenciais26-28,30,31. As estratégias 2018; 22(67):1221-34 1229

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utilizadas por esses estudos para as práticas simuladas foram: a resolução de cenários clínicos simulados22,25,27,28,31,34 e o desenvolvimento da OSCE26,30,33,35,36. Os instrumentos utilizados na avaliação das competências trataram-se de escalas validadas por outros autores e/ou construídas com base em programas de qualidade e segurança do paciente22,25,26,32,34,35. Entre os estudos que avaliaram competências, dois utilizaram checklist28,36 e um o Mini-CEX33. A simulação tem revolucionado a forma como educadores abordam a educação clínica. Nesta revisão houve diferença considerável no emprego desse método para a avaliação de competências entre as diferentes categorias profissionais, com a concentração em 12 artigos para a enfermagem e a medicina; destaca-se que apenas dois estudos envolveram a temática, com, no mínimo, duas profissões da saúde. Essa concentração de estudos em duas categorias profissionais e uma quantidade limitada de estudos interprofissionais torna-se preocupante, pois, conforme o último relatório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)45 e OMS8, os métodos de simulação clínica estão incluídos como recomendações específicas para a educação transformadora, para aumentar a educação e qualificação de trabalho interprofissional da saúde. Sendo assim, a necessidade de produção científica das demais profissões em saúde e, sobretudo, para atingir os melhores resultados aos usuários dos serviços, investimentos em práticas interprofissionais. Em muitas ocasiões, a simulação clínica pode ser considerada como um grande desafio aos docentes, pois exige capacitação para a sua implementação e desenvolvimento, o que leva a um consumo significativo de tempo e energia, e a necessidade de habilitação do corpo docente, além de dedicação para o planejamento das atividades, utilizando a concepção dos objetivos de aprendizagem e avaliando sua execução quanto ao cumprimento destes objetivos46. O cenário simulado pode ser considerado bem elaborado e realístico quando permite que o aprendiz desenvolva experiências cognitivas, psicomotoras, afetivas e sociais que colaborem para a sua formação profissional. Deve possibilitar a transposição dos conhecimentos do laboratório para os ambientes clínicos reais47-50. A OSCE é uma ferramenta avaliativa versátil, na qual o aprendiz demonstra suas habilidades quando se depara com situações de casos reais51. O Mini-CEX (avaliação do exame clínico) foi um instrumento criado pela American Board of Internal Medicine (ABIM) para desenvolver a formação, a avaliação e para promover a melhora do desempenho clínico de profissionais da saúde e para ser utilizado no campo clínico. Na amostra, o Mini-CEX foi utilizado em prática simulada. Sua confiabilidade e impacto educacional positivo têm sido relatados em muitas especialidades52. Na amostra de estudos, foi possível observar que a avaliação de competências foi realizada com o apoio de instrumentos variados, os quais, utilizados de forma conjunta, apoiaram-se mutuamente para se obterem os resultados almejados18,23,24,27,29-31,35. Além disso, para alguns pesquisadores, foram os protocolos institucionais que determinaram os itens a serem observados nas atividades22,25,28. Como possibilidade para tal finalidade, os marcos de competências, desenvolvidos inicialmente pelo Colégio Real de Médicos e Cirurgiões do Canadá, como um quadro de competências para médicos, o “CanMEDS Framework”53 e, em 2008, o “Milestones”, desenvolvidos pelo Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME)54, têm se apresentado como uma possibilidade no processo de desenvolvimento e avaliação de competências nas diversas áreas do conhecimento e, também, no trabalho interprofissional. Os marcos de competências são descrições do comportamento e desenvolvimento dos estudantes em um quadro no qual, visivelmente, conseguimos perceber a sua evolução ao longo da formação e descrever as expectativas progressivas para a aprendizagem em cada momento e desempenho esperado53-56.

Conclusão As evidências demonstram a simulação clínica de alta fidelidade como uma estratégia que permite o desenvolvimento e avaliação de competências profissionais específicas, comuns e interprofissionais em diversas áreas da saúde. 1230

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Essa avaliação tem sido realizada com o apoio de instrumentos e métodos variados, com diferentes características, que contribuem de alguma maneira para a avaliação das competências desejadas; no entanto, o conteúdo e utilização destes podem limitar e direcionar o processo avaliativo. Por se tratar de uma Scoping Review, esse estudo não permite avaliar a eficácia dos resultados encontrados, o que pode ser considerado uma limitação. Consideramos que a amostra analisada demonstra resultados promissores no uso da simulação clínica para o desenvolvimento e avaliação de competências em saúde e sugerimos que futuros estudos precisam ser desenvolvidos, para que a avaliação de competência de alunos ou profissionais da área da saúde apresente uma objetividade detalhada para o alcance da alta fidedignidade, pois, o processo de avaliação, muitas vezes, gera desfechos para a vida do aprendiz. A relevância desse estudo se destaca por abranger uma gama de instrumentos ou ferramentas para o desenvolvimento da avaliação de competências com detalhamentos sobre cada um deles, além de estarem associados às estratégias simuladas.

Colaboradores Fernanda Berchelli Girão Miranda participou ativamente da elaboração do artigo, seleção dos estudos, discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Alessandra Mazzo e Gerson Alves Pereira Junior participaram ativamente da elaboração do artigo, discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do trabalho. Referências 1. McClelland DC. Testing for competence rather than for “intelligence”. Am Psychol.1973; 28(1):1-14. 2. Sportsman S. Competency education and validation in the United States: what should nurses know?. Nurs Forum. 2010; 45(3):140-9. 3. Bomfim RA. Competência profissional: uma revisão bibliográfica. Rev Organ Sist. 2012; 1(1):46-63. 4. Furukawa PO, Cunha ICKO. Da gestão por competências às competências gerenciais do enfermeiro. Rev Bras Enferm. 2010; 63(6):1061-6. 5. Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina [Internet]. Brasília: MEC; 20914 [ citado 20 Jun 2018]. Disponível em: http://www.abem-educmed. org.br/pdf/diretrizescurriculares.pdf. 6. MacKenzie D, Creaser G, Sponagle K, Gubitz G, MacDougall P, Blacquiere D, et al. Best practice interprofessional stroke care collaboration and simulation: the student perspective. J Interprof Care. 2017; 31(6):793-6. 7. Costello M, Prelack K, Faller J, Huddleston J, Adly S, Doolin J. Student experiences of interprofessional simulation: findings from a qualitative study. J Interprof Care. 2018; 32(1):95-7. 8. World Health Organization. Framework for action in interprofessional education and collaborative practice. Geneva: WHO; 2010. (WHO/HRH/HPN/10.3). 9. Câmara AMCS, Cyrino AP, Cyrino EG, Azevedo GD, Costa MV, Bellini MIB, et al. Interprofessional education in Brazil: building synergic networks of educational and health care processes. Interface (Botucatu). 2016; 20(56):5-8.

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Miranda FBG, Mazzo A, Pereira Junior GA. Evaluación de competencias individuales e interprofesionales de profesionales de salud en actividades clínicas simuladas: scoping review. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1221-34. Objetivo: identificar en la literatura cómo se ha realizado la evaluación de competencias individuales e interprofesionales en actividades clínicas simuladas en la formación y capacitación de profesionales del área de la salud. Método: estudio realizado por medio de Scoping Review, conforme el Joanna Briggs Institute. Las búsquedas se realizaron entre diciembre de 2015 y febrero de 2016 en las bases de datos electrónicas establecidas, por medio de los descriptores y sinónimos. Resultados: Se analizaron 20 estudios que atendieron los criterios de inclusión establecidos, los ítems evaluados con mayor frecuencia en todas las categorías profesionales fueron las habilidades procedimentales y de comunicación; las checklists fueron los instrumentos más frecuentes para evaluar competencias. Conclusión: el desarrollo y evaluación de competencias profesionales e interprofesionales en simulación clínica se han realizado con el apoyo de instrumentos y métodos variados; no obstante, el contenido y la utilización de los mismos pueden limitar y direccionar el proceso de evaluación.

Palabras clave: Personal de salud. Simulación. Competencia clínica. Métodos de evaluación.

Submetido em 17/10/17. Aprovado em 13/04/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0493

espaço aberto

O desafio da formação permanente no fortalecimento das Redes de Atenção Psicossocial Fernando Sfair Kinker(a) Maria Inês Badaró Moreira(b) Carla Bertuol(c)

Introdução A educação permanente no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) tem se colocado como um dos principais instrumentos para se alcançar a qualidade e a resolubilidade no cuidado em saúde. Transitando entre a construção e disseminação de tecnologias leve-duras e leves1, esses processos de qualificação têm sido muitas vezes avaliados de forma crítica por gestores, profissionais da rede e educadores, pois estes questionam se as versões mais conteudistas deixam de produzir transformações potentes nos atores envolvidos e em seus processos de trabalho. Ceccim e Feuerwerker2 defendem um desenho a partir do quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social, ao mesmo tempo em que anunciam os desafios longínquos de tomá-los como direcionamento possível no âmbito dos serviços de saúde em função das demandas cotidianas ao trabalhador. Observa-se, desde a promulgação do Decreto nº 7.508/11 – que dispôs sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa3 – duas novas orientações para as práticas de saúde: a região e a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e, nesse contexto, também a necessidade de viabilizar práticas pedagógicas que facilitem o aprendizado no universo do trabalho e que respeitem as singularidades dos municípios4. Compreende-se, então, a importância de promover espaços de formação que permitam ao trabalhador avançar na construção de conhecimento por meio da experimentação e da transformação da prática cotidiana. Na área da saúde mental, desde os anos 2000, tem se intensificado os investimentos em educação permanente por meio de cursos ou do financiamento de supervisões clínico-institucionais, com o intuito de acompanhar e apoiar os trabalhadores na reflexão e na produção de sentido sobre a própria prática5. Segundo o Ministério da Saúde5, as diferentes ações de formação e educação permanente no período de 2011-2015 tiveram entre seus objetivos a viabilização de um projeto de formação de trabalhadores para a consolidação do modelo de atenção em saúde mental territorial, a partir da troca, da reciprocidade e da integração entre diferentes núcleos de conhecimento em diferentes pontos da rede de atenção psicossocial.

CC

BY

(a, c) Departamento de Saúde, Clínica e Instituições, Instituto Saúde e Sociedade, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Silva Jardim, 136. Santos, SP, Brasil. 11015-020. fernando.kinker@ unifesp.br; carla.bertuol@unifesp.br (b) Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva, Instituto Saúde e Sociedade, Unifesp. Santos, SP, Brasil. maria.ines@unifesp.br

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Esse processo, vinculado ao fortalecimento da política nacional de saúde mental e à multiplicação de seus instrumentos reguladores e indutores, como as portarias e os editais, tem produzido inovações nos últimos anos. Uma dessas inovações foi a reorientação do financiamento dos processos formativos e de supervisão em projetos com escopo mais amplo, com condições de potencializar as transformações dos serviços, por meio do envolvimento e protagonismo de profissionais e usuários e da intensificação das trocas de experiências cotidianas de trabalho. O projeto “Percursos Formativos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)” foi lançado em 2013 pelo Ministério da Saúde5 buscando o fortalecimento das políticas municipais de saúde mental e dos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Tem como premissas o intercâmbio profissional entre redes de atenção psicossocial dos municípios, o desenvolvimento e execução de planos de educação permanente e a circulação de saberes e experiências. Composto por redes preceptoras e redes visitantes, esse projeto ocorreu em diversos estados da Federação e possibilitou que cada município preceptor, escolhido entre aqueles com as redes mais desenvolvidas, recebesse profissionais de municípios diversos, sustentando experiências de acompanhamento cotidiano, de reconhecimento dos dispositivos da rede e de estudo e reflexão por meio da realização de oficinas temáticas. Além disso, os municípios preceptores realizaram oficinas com profissionais e usuários das redes dos municípios visitantes, deslocando-se até esses municípios, como forma de multiplicar e ampliar o número de participantes. Houve intensa participação de profissionais e de usuários nos processos de formação, tanto na condição de professores quanto na de aprendizes, tendo-se como foco a troca de experiências. Como forma de consolidar essa experiência inédita de formação permanente, em 2016 o Ministério da Saúde deu sequência à segunda fase do Projeto Percursos Formativos, instaurando o “Engrenagens dos Percursos Formativos”. Esse projeto, que envolveu os mesmos municípios, consistiu na criação de ativadores de rede. Esses ativadores, um por município, orientados e acompanhados por um tutor, tiveram o papel de articular os vários pontos da RAPS por meio da instauração de processos formativos, da construção de projetos comuns entre os serviços e do fomento de uma produção coletiva em rede5. O desafio de desenvolver novas estratégias e ações de formação permanente continua. Ademais, indica a necessidade de produzir rupturas epistemológicas nas formas de conceber o sofrimento psíquico e de produzir sentido no trabalho. A produção de novos conceitos e práticas que direcionem a atenção psicossocial é um desafio cotidiano, necessário para o enfrentamento e desconstrução das formas que simplificam a experiência do sofrimento psíquico em códigos de doenças e, da mesma forma, a legitimação da desconstrução de dispositivos de contenção, controle e empobrecimento da vida. Nesse sentido, também o Ministério da Saúde, ao lançar o Caderno de Atenção Básica no 34 com o tema Saúde Mental6, propôs uma nova abordagem ao sofrimento, partindo do conceito de pessoa e da convergência da Saúde Mental com a Atenção Primária. Visando “superar as limitações da visão dualista do homem, a construção de um novo modelo dinâmico, complexo e não reducionista e a orientação para novas formas de prática na área da saúde”6 (p. 29), esse caderno problematiza a diferença entre sofrimento e doença, aproximando-se de contribuições como as do médico norteamericano Eric Cassel7,8, além dos autores da psiquiatria democrática italiana. Em busca de aprofundar esse debate, o objetivo deste artigo é apontar alguns desafios acerca da formação permanente no contexto da Reforma Psiquiátrica, em especial no que diz respeito à construção de um novo objeto e de novos sentidos para as práticas na saúde mental. Para isso, utilizar-se-á como substrato para a reflexão a experiência do Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental para a RAPS da Unifesp, desenvolvida entre agosto de 2015 e fevereiro de 2016, descrevendo e discutindo principalmente os aspectos teórico-conceituais. A proposição temática do curso, matéria deste artigo, seguiu um percurso em busca de inaugurar novos olhares e possibilitar novos encontros de trabalhadores da saúde com as pessoas em sofrimento psíquico.

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O curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental As ofertas do curso de especialização em Saúde da Família e a intensificação do trabalho conjunto entre alguns municípios e o polo Universidade Aberta do SUS (Unasus) da Unifesp em torno dos projetos de educação permanente no ano de 2015 explicitaram demandas urgentes no que se refere à qualificação e ao desenvolvimento de ações de saúde mental na Atenção Primária. Persistia a necessidade de intensificar o trabalho nos territórios para consolidar e alimentar a formação da RAPS, conforme a portaria 3.088 de 2011, que tem como importante componente a Atenção Primária9. A partir dessa demanda, iniciaram-se discussões entre a coordenação do Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental e os representantes da educação permanente e dos Programas de Saúde Mental dos municípios de Santos, São Bernardo do Campo, Mauá, Sorocaba e Guarulhos, com o intuito de organizar um curso que fizesse frente a vários desafios colocados às redes desses municípios. A necessidade dos municípios era fortalecer as ações na Atenção Primária e intensificar o trabalho em rede, pois este implica processos formativos e de educação por meio do aprendizado e de construções de ferramentas de ação, como o desenvolvimento de práticas coletivas envolvendo os atores dos diversos serviços de saúde. Sendo assim, a proposta desse curso era envolver os profissionais que desenvolvem seu trabalho na Atenção Primária e nos serviços da RAPS, no processo de educação permanente, de forma a construir uma plataforma comum de conhecimentos e de práticas. A construção desse projeto contou com o desenvolvimento de uma linha temática que percorreu princípios, estratégias e ferramentas da atenção psicossocial, discutindo de forma transversal questões relacionadas à realidade dos adultos, crianças e adolescentes com sofrimento psíquico e das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e drogas. O curso foi oferecido a duzentos profissionais de nível superior dos serviços de saúde dos municípios. Os alunos foram selecionados e indicados pelos gestores das secretarias municipais de saúde. Inicialmente, o curso previa uma metodologia de ensino a distância com acompanhamento e mediação de tutores selecionados por meio do edital da Unasus/Unifesp. Em modalidade de aperfeiçoamento, esse curso teve duração de 180 horas, divididas em seis módulos de trinta horas. Os duzentos alunos foram subdivididos em turmas de vinte alunos acompanhados por tutores, na proporção de um tutor para vinte alunos. Cada um dos cinco municípios apresentou quarenta profissionais de diferentes pontos da RAPS para realização do curso, em uma organização final de dois grupos de vinte alunos em cada município. Ao longo do curso, ocorreram três encontros presenciais gerais, com todos os alunos e tutores, em momentos em que foram realizadas conferências com professores convidados e encontros de cada grupo de alunos com seus tutores. Paralelamente à formação em sistema Educação a Distância (EAD), construiu-se junto com os trabalhadores do município um plano de ação coletivo realizado a partir de demandas do cotidiano do próprio serviço de origem dos alunos, contando com o apoio de um trabalhador local. Para isso, cada grupo de vinte alunos e seu apoiador se reuniam mensalmente em seu território. O plano de ação nos territórios foi construído e executado paulatinamente a partir das tarefas finais de cada um dos módulos desse curso e esteve alinhado aos objetivos dessa proposta. Esse plano representou um importante dispositivo de mobilização do trabalho em rede, a partir das ações realizadas no próprio cotidiano do serviço em que estiveram em foco os temas debatidos no formato EAD. É importante destacar que os apoiadores locais trabalharam em sintonia com os temas debatidos pelos tutores EAD. Tanto apoiadores quanto tutores tiveram encontros presenciais com a coordenação do curso no treinamento inicial de alinhamento e preparação; e encontros presenciais de avaliação e planejamento do trabalho no decorrer do curso, assim como participaram das conferências-encontros presenciais gerais do curso.

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Percursos temáticos seguidos pelo curso Para alcançar o objetivo de inaugurar novos olhares e produzir encontros transformadores entre profissionais e usuários, foram utilizados alguns textos encomendados a autores que tinham uma importante trajetória na Reforma Psiquiátrica e na Saúde Coletiva. Iniciou-se a trajetória do curso com o capítulo 2 do Cadernos de Atenção Básica – “A definição de cuidado, sofrimento, pessoa e território”6 (p. 27-36) –, com uma apresentação de uma concepção própria de sofrimento, diferenciando-o da doença em si, já que as pessoas podem estar doentes e não sofrer, e sofrer e não estarem doentes. Foi problematizado que, apesar da doença, a vida, que é composta por diversas esferas e dimensões, pode ser vivida intensamente, de forma criativa e enriquecedora6. Além disso, os profissionais têm um papel importante na construção dessa possibilidade, uma vez que a sociedade lhes dá o poder de interpretar, traduzir e definir o que se passa com as pessoas, o que poderá acontecer no futuro e do que as pessoas são ou não capazes. Ao abordar e considerar na prática do cuidado as diversas esferas que compõem a vida das pessoas, pode-se seguir no sentido de encontrar caminhos que aumentem a potência de agir e conformem a autonomia das pessoas, entendendo que o trabalho com a autonomia é também o trabalho com a multiplicação das redes de dependência e com a possibilidade de produzir as próprias normas e formas de andar a vida, a partir das relações com as demais pessoas10. Essa inter-relação entre as possibilidades de agir e a ação das pessoas é o que as produz e, portanto, a dimensão das relações de poder é fundamental para a construção de si e do mundo. Detectou-se a necessidade de reconhecer os limites dos paradigmas hegemônicos que sustentam a compreensão das ações de saúde mental a partir do reducionismo do sofrimento humano às nosologias e quadros de transtornos. Sendo assim, buscou-se analisar as consequências desse reducionismo operado nos processos de patologização de experiências de sofrimento ou de comportamentos desafiadores ou diferentes que fazem parte da condição humana e da vida cotidiana e que se referem a como as pessoas lidam com situações difíceis que a vida lhes traz11. Todas essas operações e codificações são sustentadas por ações de defesa dos territórios profissionais e de suas especialidades, que recortam os usuários da complexidade de suas necessidades, reproduzindo fragmentos de respostas que reproduzem o abandono. Assim, a hiperespecialização pode produzir respostas pré-formadas que modulam as perguntas e as demandas, reforçando o lugar de saber dos especialistas e desautorizando qualquer saber que venha da parte dos usuários. Reforçou-se a necessidade de superar os filtros e repertórios que muitas vezes impedem que os profissionais enxerguem aspectos relevantes da experiência dos usuários que os procuram. Ponderou-se que os repertórios são importantes, mas devem ser colocados em seu devido lugar, para que se possa utilizá-los quando necessário e evitar que, ao contrário, sejamos sempre utilizados por eles, em uma relação de dominação. A construção da possibilidade de lidar com a complexidade do sofrimento e das necessidades das pessoas nos levou a discutir no curso a noção de vínculo, de responsabilização e de trabalho focado no território e na realidade concreta de vida das pessoas. Em outras palavras, discutiu-se que a possibilidade de transformação do sofrimento e da vida ocorre quando mantemos certa cumplicidade e envolvimento com os usuários, estabelecendo contratos e sustentando uma presença consistente no cotidiano e no tempo12. O território aparece aqui como o lugar de vida dos usuários e como um organismo vivo, cheio de possibilidades e recursos que podem ser agenciados e acionados para a transformação de si e do próprio território. Território e coletivos de pessoas se autoconstroem reciprocamente, e essa é uma pista para se entender o sofrimento como algo que não está somente dentro do sujeito, mas nas próprias cenas que compõem o cotidiano. Seguiu-se então em direção ao Projeto Terapêutico Singular (PTS) – que depois foi chamado de Projeto Terapêutico Compartilhado. Problematizou-se o PTS como uma construção complexa (para lidar com um fenômeno complexo), diferenciando-o, como ocorre frequentemente, do conjunto de procedimentos e ações que compõem a agenda dos serviços e dos usuários13. Desse modo, discutiu-se que o PTS é a construção de projetos de vida junto com os usuários e que esses projetos são móveis,

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ou seja, movem-se como os territórios e as cartografias dos oceanos, exigindo que se produzam caminhos e direções no próprio caminhar. Nesse sentido, a construção do projeto terapêutico exige um olhar e uma escuta aguçada, dando atenção às diversas relações e aos diversos atores que compõem as cenas cotidianas de vida dos usuários, incluindo uma análise dos próprios serviços que compõem a RAPS. Dessa maneira, trabalhos mais fabris ou mais febris13 comporão os cenários dinâmicos da prática do cuidado, em permanente relação com os territórios de vida, já que os serviços sempre têm um papel importante na construção dos territórios. Foi nessa direção também que se apresentou, a partir dos autores que foram convidados para elaborar os textos do curso, as quatro negações, ao discutir-se a gestão do cuidado. Foram elas: 1) a saúde não é só ausência de doenças; 2) o cuidado em saúde não pode ser realizado isoladamente; 3) não é possível pensar o cuidado em saúde sem considerar quem vai ser cuidado; e 4) não existe um trabalhador moral14. Assim, foram problematizadas as dimensões do trabalho em equipe, do trabalho em rede e da participação do usuário no cuidado de si e no lugar do trabalhador como aquele que também produz normas para si e para seu local de trabalho. O cuidado foi apresentado como um processo delicado a ser composto com o usuário, construindo e tecendo novos mundos e novas realidades. A análise dos elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado, por meio da obra de Leon Tolstoi “A morte de Ivan Ilitch”15, foi exemplar no sentido de mostrar as peculiaridades e a delicadeza de um percurso terapêutico que considera e parte das necessidades dos usuários, compondo movimentos que transformam tanto a pessoa cuidada como o cuidador. Em seguida, discutiu-se e provocou-se os trabalhadores do SUS a olharem para suas próprias vidas e avalizarem formas de se enriquecerem no próprio ato do trabalho16. Como aprofundamento dessas discussões, no último módulo do curso, resgataram-se os princípios e diretrizes atuais da Reforma Psiquiátrica, o protagonismo dos usuários, a reabilitação psicossocial e as políticas de saúde mental no campo da infância e adolescência. Retomou-se uma questão que poderia estar no primeiro módulo, mas que, propositadamente, optou-se por abordar no fim do último módulo, uma vez que se pretendeu, como foi feito, iniciar o curso aproximando-se o máximo possível da prática dos trabalhadores e do que seus corpos vivem diária e diretamente, sem mediações, no contato com os usuários. Esses intentos, por certo, estavam imersos em algumas concepções acerca do objeto da Saúde Mental que pretendiam estimular uma ruptura epistemológica e que analisaremos a seguir.

Um novo objeto para a Saúde Mental: ruptura epistemológica e construção de novos mundos A proposta temática do curso evidenciou uma tentativa de afetar os profissionais para que realizassem encontros transformadores com os usuários e para que se superasse a tendência a encaminhar aos especialistas qualquer situação de sofrimento. Além da maioria das questões de saúde envolver mudanças e representarem uma quebra no cotidiano existencial, o que, por si, implica a necessidade de os profissionais de saúde desenvolverem novas escutas e novos olhares para a existência dos usuários, há também uma ilusão de que os especialistas estão aptos a darem qualquer resposta, por serem considerados portadores de técnicas e saberes especiais. Como apontado, ocorre muitas vezes que os especialistas, também dominados por seus especialismos, deixam de entrar em contato com a existência dos usuários, dialogando apenas com sinais e sintomas e com entidades mórbidas construídas pelas ideologias médico-psicológicas, mesmo que estas estejam pautadas por evidências. Ao dialogar apenas com as entidades mórbidas, os profissionais e os usuários permanecem reféns de uma série de circunstâncias, movidas por relações concretas de poder nos territórios de vida e nos próprios consultórios (que também fazem parte desses territórios e dessas cenas), que não possibilitam metamorfoses, criação de novas formas de vida e novas relações, mas a manutenção de uma simplificação que empobrece o fenômeno e tudo o que ele tem de transformador.

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Se entendermos que o que caracteriza a vida é a constante transformação, entenderemos também que os processos de calcificação e endurecimento das relações terapêuticas produzirão apenas o enfraquecimento da vida e a morte. O papel terapêutico, aqui entendido como um catalisador de transformações na existência, só pode se dar em um constante recompor das cenas, que nunca serão iguais ao momento que passou. O novo objeto da saúde mental, que os italianos nomearam “existência-sofrimento em relação com o corpo social”17, exige a imersão nas cenas que produzem relações de exclusão e invalidação das pessoas e de suas experiências. Essa mudança de objeto exige e é em si uma ruptura epistemológica, uma nova relação de saber, interconectada e autoproduzida por mudanças nas relações de poder entre usuários e profissionais, usuários e instituições, usuários e territórios vivos, famílias, atores sociais múltiplos, culturas e valores. Isso porque entendemos o paradigma como algo que não se refere apenas ao campo do conhecimento, mas também ao campo da cultura, dos valores, da ideologia e das relações18.

Ressonâncias da experiência As ressonâncias da experiência do curso puderam ser verificadas em algumas falas e postagens dos alunos nos fóruns de discussão. Em muitas dessas, os alunos explicitaram como foram afetados pelas discussões e pelas experiências práticas na construção local de projetos de intervenção. Entre os elementos promotores de novos olhares, além de importantes reflexões teórico-conceituais, durante o curso, foi proposto que os alunos passassem um dia trabalhando no serviço do colega, como forma de vivenciar os diferentes pontos da rede. Desse modo, foi possível um mergulho no cotidiano da prática da atenção psicossocial, discutindo alguns dispositivos, ferramentas e situações que podem promover as transformações das cenas de exclusão e de sofrimento. Assim, partiu-se para o campo da associação intensa e quente com o território, seus recursos e seus atores, e propuseram-se algumas iniciativas que podem movimentar e multiplicar as trocas sociais, as experimentações, as afetações e os encontros transformadores de pessoas e de cenas. Essa experiência gerou muitas reflexões e trocas durante o processo. A oferta e o desafio do trabalho conjunto de apoiadores, tutores e alunos no curso foi uma possibilidade concreta de atuação em rede, pois a efetivação das diretrizes e dos objetivos da RAPS e de um trabalho em rede não se dá pela somatória de pontos de atenção implantados, nem pelo elenco organizativo dos componentes ou, ainda, pela simples modernização do circuito assistencial. A RAPS se efetiva – isto é, só existe – na dependência de pessoas (de pontos de atenção diversos) que se conectam e se coordenam com uma finalidade comum. Assim, a RAPS tem duas dimensões: uma normativo-institucional, que afirma a unidade institucional da rede; e outra operacional, prática e concreta, que depende das relações efetivas entre as pessoas4 (p. 91-2). Esses foram, talvez, os pontos mais importantes no desenvolvimento do curso: possibilitar que os profissionais de diversos pontos da RAPS pudessem entrar em contato com os usuários sem serem dominados por repertórios e protocolos; partir das necessidades apresentadas; tornar complexo o entendimento do sofrimento psíquico; e trabalhar em uma rede flexível, criativa e autodeformante, de forma a dialogar e coproduzir processos transformadores com os usuários. Houve também grande aproximação de gestores que desenvolveram o papel de apoiadores ao cotidiano de trabalho dos outros profissionais por eles apoiados. Muitos foram os relatos, no decorrer do curso, afirmando que sentiam sua prática e envolvimento com o trabalho, com a equipe e com os usuários se transformando, e que novos paradigmas estavam se formando. A respeito dos relatos sobre cenas que produzem situações de sofrimento e sobre a participação dos próprios profissionais e de seus saberes, valores e práticas nessas cenas, coproduzindo-as, a aluna do município A manifestou: Têm pessoas cuja vida é ir à UBS [Unidade Básica de Saúde]. Como elas procuram um médico, a queixa acaba sendo clínica. O fato é que, em muitos casos, essas pessoas acabam fazendo uma série de exames que não indicam nada de anormal. Não é de médico (ou então de intervenção 1252

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focada na queixa) que estas pessoas estão necessariamente precisando. Quando se faz uma abordagem mais ampla, entendendo o indivíduo no seu contexto familiar e comunitário, nós temos a possibilidade de dar a ela um atendimento e um acompanhamento melhor.

A aluna do município B reforçou: Transformar o sofrimento implica enriquecer a vida das pessoas em todas as suas esferas. Isso vale tanto para os “loucos” como para aqueles que procuram a UBS com uma queixa vaga.

No que diz respeito à aproximação com os usuários e com os demais profissionais da rede, a aluna do município C escreveu: Por isso, minhas colegas, eu entendo que a desinstitucionalização começou agora dentro de cada um de nós a partir do momento que decidimos iniciar este curso, e percebo o quanto meu entendimento mudou. Hoje vejo que para transformar a realidade precisamos do outro e esse outro inclui não só os profissionais da RAPS, mas também o indivíduo que sofre, sua família, sua vizinhança, seu bairro, etc.

Foi ficando claro aos alunos que o grande desafio e o objeto de intervenção para os planos de ação era o fortalecimento e a constituição das redes. Nesse sentido, diz a aluna do município D: Nessa perspectiva, a desinstitucionalização, além da desospitalização, propõe uma desconstrução da compreensão do sofrimento psíquico como doença, excluindo a ideia de necessidade de tutela ou internação, modificando as relações de saber/poder que estavam a serviço de um tipo de sociedade que não queria lidar com seus problemas, optando pelas redes de contenção da vida. Traz como desafio combater a exclusão e a violência, trazendo novas possibilidade de viver e reinventar a vida para todos os atores do processo, construindo um trabalho contínuo e sem fim.

Por fim, ficou evidente, no curso, a necessidade de um investimento permanente na construção coletiva das práticas e dos saberes de profissionais, nos usuários e nos gestores da RAPS, e não apenas nas iniciativas de aprendizagem isoladas e fragmentadas. É o próprio processo cotidiano de trabalho que deve ser enriquecido, “quente”, por meio do protagonismo e envolvimento de todos os atores. Ou seja, o enriquecimento da prática exige uma construção e um envolvimento sem ponto final. É o que diz uma aluna do município E: “Esse curso foi muito potente. Não deixemos essa chama se apagar”.

Conclusão As produções de novos paradigmas, sempre em mutação, são importantes para se lidar e potencializar a riqueza da vida, aumentar a potência de agir e modificar todos os atores em jogo: usuários dos serviços, profissionais de saúde mental e atores dos territórios existenciais. O objetivo principal do curso em questão, apoiando-se no material produzido sob encomenda a vários autores, foi problematizar o objeto da saúde mental, o que implica em mudanças nas práticas e nos saberes, entendendo que essa é uma aposta fundamental para o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, uma vez que se pretende que a atenção psicossocial se diferencie das trajetórias excludentes e empobrecedoras da ciência positivista e cartesiana, que tanto influenciaram e simplificaram a história da Psiquiatria e que atravessam, mesmo que não percebamos, as nossas práticas cotidianas, seja nos serviços ou na universidade. As transformações propostas exigem que novos mundos sejam produzidos. E essa era a proposta do curso: contribuir na produção de novos mundos e de novas redes, de forma a apostar em processos de formação permanente participativos, que valorizassem a prática cotidiana, integrassem profissionais, 2018; 22(67):1247-56

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usuários, a realidade dos territórios e dos serviços e aproximassem os atores da gestão, tornando-a expandida e participativa. Apenas a vivência dessa ruptura epistemológica pode modificar a relação dos profissionais da atenção primária e da saúde mental com as pessoas que sofrem psiquicamente. Essas rupturas possibilitam o exercício de encontros transformadores, metamorfoses que se dão no aqui e agora da relação, e no ato de agenciar e multiplicar os atores em relação nos territórios de vida. Lidar de frente com a experiência do sofrimento leva necessariamente à construção de novas redes e novas alianças, agenciamentos que produzem novas redes de dependência e fortalecem a autonomia. Essa opção explica porque não se iniciou o curso pelo caminho mais óbvio, que seria retomar o histórico da reforma, seus princípios, diretrizes e dispositivos. Ao contrário, optou-se por iniciar o curso problematizando a experiência cotidiana dos profissionais no encontro com as pessoas em sofrimento para abrir novos caminhos e, posteriormente, quando aqueles estivessem suficientemente mobilizados e envolvidos, iniciar, no fim do curso, a discussão sobre a Reforma Psiquiátrica e seus dispositivos. O percurso do curso reforça a importância de manter espaços de produção de conhecimento em aberto para que se possa relatar experiências, colocá-las em análise e não deixar a chama se apagar.

Contribuições dos autores Todos os autores participaram ativamente de todos os momentos da produção deste texto, desde sua concepção, discussão e revisão até sua aprovação final. Referências 1. Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver – SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p.108-37. (Série B. Textos Básicos de Saúde). 2. Ceccim RB, Feuerwerker L. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65. 3. Presidência da República (BR). Decreto nº 7.508, de 28 de Novembro de 2011. Regulamenta a Lei nº 8080, de 19 de Setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde – SUS, o planejamento da saúde, assistência à saúde a articulação interfederativa, e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2011 [citado 10 Ago 2016]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/D7508.htm. 4. Assis JT, Barreiros CA, Jacinto ABM, Kinoshita RT, Macdowell PL, Mota TD, et al. Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes. Divulg Saude Debate [Internet]. 2014; 52:88-113 [citado 10 Ago 2016]. Disponível em: http:// cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/Divulgacao-52.pdf. 5. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. DAPES. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde mental no SUS: cuidado em liberdade, defesa de direitos e rede de atenção psicossocial. Relatório de gestão 2011-2015. Brasília: Ministério da Saúde; 2016.

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6. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica, n. 34). 7. Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of Medicine. 2nd ed. New York: Oxford University Press; 2004. 8. Cassel EJ. Suffering and medicine. N Engl J Med. 1982; 306(11):639-45. 9. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.088, de 23 de Dezembro de 2011. Republicada em 21 de maio de 2013. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet]. 21 Maio 2013 [citado 10 Ago 2016]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html. 10. Kinoshita RT. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 1996. 11. Braga-Campos FC. Sofrimento e cuidado em saúde mental. Módulo 1. Curso de aperfeiçoamento em saúde mental [Internet]. São Paulo: UNASUS; 2015 [citado 3 Jul 2016]. Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/handle/ARES/3108/ M%C3%B3dulo%201%20SM.pdf?sequence=1. 12. Pinheiro S. Práticas de atenção psicossocial no território. Módulo 2. Curso de aperfeiçoamento em saúde mental [Internet]. São Paulo: UNASUS; 2015 [citado 3 Jul 2016]. Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/handle/ARES/3109/ M%C3%B3dulo%202%20SM.pdf?sequence=1. 13. Lancetti A. O projeto terapêutico singular e o trabalho de matriciamento. Módulo 3. Curso de aperfeiçoamento em saúde mental [Internet]. São Paulo: UNASUS; 2015 [citado 3 Jul 2016]. Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/handle/ ARES/3243/Mod%C3%BAlo%203_SM.pdf?sequence=1. 14. Ceclílio LCO. O cuidado em saúde. Módulo 4. Curso de aperfeiçoamento em saúde mental [Internet]. São Paulo: UNASUS; 2015 [citado 3 Jul 2016]. Disponível em: https:// ares.unasus.gov.br/acervo/bitstream/handle/ARES/3244/M%C3%B3dulo%204%20SM. pdf?sequence=1&isAllowed=y. 15. Cecilio LCO. A morte de Ivan Ilyich, de Leon Tolstoi: elementos para se pensar as múltiplas dimensões do cuidado. Interface (Botucatu). 2009; 13(1):545-55. 16. Maximino VS, Liberman F, Jurdi APS, Brunello MIB. Dispositivo em atenção psicossocial. Módulo 5. Curso de aperfeiçoamento em saúde mental [Internet]. São Paulo: UNASUS; 2015 [citado 3 Jul 2016]. Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/ bitstream/handle/ARES/3582/Modulo_5_SM.pdf?sequence=1. 17. Rotelli F. Desinstitucionalização. 2a ed. Nicácio F, tradutora. São Paulo: Hucitec; 2001. 18. Morin E. O método 4: as ideias - habitat, vida, costumes, organização. 4a ed. Silva JM, tradutor. Porto Alegre: Salina; 2005.

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Este artigo apresenta a proposta temática do curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e discute suas estratégias conceituais no âmbito da formação permanente e da implementação de ações de Saúde Mental na Rede de Atenção Psicossocial. O curso buscou promover a compreensão do sofrimento e as dimensões cotidianas que são afetadas na vida da pessoa como abertura e aproximação para as ações de saúde mental em diálogo com a proposta de construção de um novo objeto para intervenções em saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica. Ofereceu também a possibilidade de trabalho em rede a partir de ações territoriais alicerçadas nesse modo de compreender o objeto da saúde mental. No fim dessa experiência, pôde-se reconhecer que ocorreu maior envolvimento e situações de encontros entre trabalhadores de diferentes pontos da rede e entre trabalhadores e usuários.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico. Educação permanente. Reforma psiquiátrica. Rede de atenção psicossocial. The challenge of continuing education in the strengthening of Psychological Care Networks This article presents the thematic proposal of the mental Health Graduate Course of the Federal University of São Paulo, and discusses its conceptual strategies in the scope of continuing education and the implementation of actions in Mental Health in the Psychosocial Care Network. The aim of the course was to promote the understanding of suffering and the daily dimensions that are affected in people’s life as a starting point for mental health actions in dialogue with the proposal of building a new object for mental health interventions in the context of the Psychiatric Reform. It also provided the possibility of working in a network based on territorial actions grounded on this way of understanding the mental health object. At the end of this experience, it was possible to recognize greater involvement and situations of encounter between users and workers from different points in the network.

Keywords: Psychological stress. Continuing education. Psychiatric reform. Psychosocial care network. El desafío de la formación permanente en el fortalecimiento de las Redes de Atención Psicosocial Este artículo presenta la propuesta temática del curso de Perfeccionamiento en Salud Mental de la Universidad Federal de São Paulo y discute sus estrategias conceptuales en el ámbito de la formación permanente y de la implementación de acciones de salud mental en la Red de Atención Psicosocial. El objetivo del curso fue promover la comprensión del sufrimiento y las dimensiones cotidianas afectadas en la vida de la persona como apertura y aproximación para las acciones de salud mental en diálogo con la propuesta de construcción de un nuevo objeto para intervenciones en salud mental en el contexto de la Reforma Psiquiátrica. También ofreció la posibilidad de trabajo en red a partir de acciones territoriales fundamentadas en ese modo de comprender el objeto de la salud mental. Al final de esa experiencia fue posible reconocer que hubo mayor envolvimiento y situaciones de encuentros entre trabajadores de diferentes puntos de la red, entre trabajadores y usuarios.

Palabras clave: Sufrimiento psíquico. Educación permanente. Reforma psiquiátrica. Red de atención psicosocial.

Submetido em 03/09/17. Aprovado em 06/02/18.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0136

entrevistas

Rasgos y retos de la modernidad alimentaria - una entrevista con Jesús Contreras Traits and challenges of food modernity- an interview with Jesús Contreras Traços e desafios da modernidade alimentar - uma entrevista com Jesús Contreras

Jesus Contreras, arquivo pessoal

Anelise Rizzolo(a)

La antropología de la alimentación es un campo de estudio muy amplio con investigaciones y contribuciones de distintas corrientes teóricas y personalidades académicas. Jesús Contreras Hernández es uno de estas personalidades, pero, en la contemporaneidad ha sido si no el más expresivo en este campo, seguramente uno de los que hicieron mayores contribuciones. Hoy es catedrático de Antropología Social en la Facultad de Geografía e Historia en la Universidad de Barcelona. Sus especialidades son la Antropología Económica y la Antropología de la Alimentación. Ha hecho trabajo de campo en los Andes y en España. Las investigaciones más recientes son acerca de los ámbitos de los comportamientos del consumo y, más particularmente, los comportamientos alimentarios. Ha desarrollado diversas investigaciones sobre las relaciones entre la evolución de las formas de vida y su relación con los cambios alimentarios. Entre sus publicaciones, más se destacan: Antropología de la alimentación (1993)1, Alimentación y cultura: necesidades, gustos y costumbres (1995)2, Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas (2004)3. CC

BY

(a) Departamento de Nutrição, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasilia (UnB). Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Brasília, DF, Brasil. 70910-900. anelise.unb@ gmail.com

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Esta entrevista es planteada como parte integrante del postdoctorado en antropología de la alimentación en Observatorio de la Alimentación – ODELA de la Universidad de Barcelona (UB). Su objetivo es compartir la visión de Jesús, acerca de algunos rasgos actuales importantes de la antropología de la alimentación. Tanto la entrevista como su publicación han sido hechas en español para mantener la originalidad, expresividad y significado de la lengua. Es decir, hubo pocas alteraciones en el habla del entrevistado. Hemos charlado en su despacho en la Facultad de Geografía y Historia en el invierno, enero. Él está jubilándose en este año 2017. Del punto de vista metodológico, esta entrevista está comprendida como un acontecimiento social, en donde el discurso es cooperativamente construido. En este enfoque, los entrevistados no son elegidos cómo una fuente de información y contenido a ser recogido, pero cómo alguien que participa del proceso de construcción con el entrevistador, con-produciendo el discurso en la entrevista. Es decir que ocurre una interacción e intercambio que si establece de acuerdo con subjetividades y resultados singulares revelando como el entrevistado mira el mundo4. Entre las principales teorías o corrientes de la antropología de la alimentación: culturalistas, materialistas, estructuralistas. ¿Podemos decir que alguna de estas corrientes es más influyente o hegemónica? Dentro de la antropología o dentro de las ciencias sociales de la alimentación, no lo sé. Lo que es cierto es que hemos pasado del estudio de la alimentación dentro de la antropología que era relativamente excepcional o marginal a una autentica inflación de estudios de alimentación de todo tipo, desde los más estrictamente simbólicos , que se interesan por las metáforas de la alimentación, los más ligados a la cuestión de la salud que se interesa por las percepciones sociales de la seguridad y de la inseguridad alimentaria, los que se interesan por la cuestiones de soberanía y sostenibilidad alimentaria, los que se interesan por cuestiones más o menos puntuales en términos de preferencias y rechazos , la identidad alimentaria , el patrimonio alimentario. Hay tal diversidad de aproximaciones e interés sobre la alimentación, que diríamos, primero: que es muy plural y diverso en el las elecciones temáticas, porque quien se interesa por la soberanía alimentaria obliga a tener en cuenta unas cuestiones temáticas y además una cierta interdisciplinariedad muy distinta que para quien se interesa por la seguridad alimentaria no en términos de soberanía, si no de salud, toxicidad, higiene, etc. Pues unos se interesan por la ecología y la economía y otros por la nutrición y toxicología, y lo que sea. Entonces es decir que, no sé, pues ignoro el campo, la totalidad del campo, pues mis propios intereses o las circunstancias que me han llevado a investigar una u otras cosas y ha ido marcando unas afinidades temáticas, afinidades con determinados tipos de autores y determinado tipo de aproximaciones y también afinidades con otras disciplinas. Pero, yo desconozco, no sé qué porcentaje... Pero, seguro que desconozco 99% de la producción actual. Por ejemplo: en los catálogos de los editoriales sobre antropología, tradicionalmente había sesiones para el parentesco, la religión, la economía. Nunca había un apartado que era la alimentación: food studies. Ahora, muchos editoriales y catálogos tienen una sección que es alimentación. Se ha crecido mucho. En antropología, en historia, en sociología, en psicología, etc. Otra cosa, es decir, cuando yo hacía antropología del campesinado, yo leía antropólogos. Nosotros que nos dedicamos a la antropología de la alimentación, no leemos solo antropólogos. Porque, la alimentación se aborda, desde muchas otras disciplinas y además de esto, abordajes son relevantes. Hoy hay una multiplicación de aproximaciones a la alimentación, desde disciplinas diversas. Gente que se interesa por el hambre, gente que se interesa por la obesidad, gente que se interesa por la anorexia o por los trastornos alimentarios. Y diríamos que cada uno de estos campos o ámbitos temáticos, estarán dando lugar a una literatura enorme también con aproximaciones diversas. Un ejemplo, que yo conozco mejor, que es la antropología de los trastornos alimentarlos: la anorexia o la obesidad. Bueno, dos abordajes distintos, los que enfatizan fundamentalmente que estos tipos de trastornos alimentarios son construcciones sociales y los analizan fundamentalmente como construcciones sociales y tienen explicaciones estrictamente sociológicas o culturales y otros que interactúan más con la medicina que la nutrición. (...) Solo en este campo encontramos tendencias o prácticas distintas. Y claro, lo que ocurre también es que la alimentación tiene dimensiones de salud, dimensiones culturales, importantes, 1268

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todo el mundo habla de alimentación. Y todo el mundo sabe de alimentación. Hay muchos más blogs sobre alimentación que sobre sexo. Y aunque sobre sexo hay un montón. Yo siempre digo que comer y tener relaciones sexuales son dos actividades fundamentales para la reproducción humana, no en términos biológicos, pero que actúan de manera muy diferente, digamos, una persona puede vivir 100 años sin haber nunca hecho sexo, pero, por otra parte, también es cierto que una persona no puede aguantar más que 30 a 40 días sin comer. Comemos todos, todos los días entonces, es una cosa muy cotidiana, muy familiar que nos afecta de muy diferentes maneras. Comemos por muy diferentes razones. No solo para nutrirnos, comemos también por otras razones. Siempre que celebramos algo está allá la comida por el medio. Vamos a comprar alimentos todos los días o casi todos los días. Solo compramos vestido dos o tres veces el año. Solo compramos coche cada 7, 10 o 15 años. Algunos, nunca. Entonces, la alimentación es algo cotidiano… Es algo, ordinario y extraordinario, al mismo tiempo, para todo el mundo. El sexo, también para algunos es algo ordinario, pero para otros solo extraordinario.

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Para Claude Fischler, la constante flexibilización de las normas y reglas colectivas de la alimentación, amplían la tensión presente en la paradoja del omnívoro y provoca un fenómeno que conceptúa: Gastro- anomia. El ser humano es una especie que necesita de una variedad de alimentos, de distintas naturalezas para nutrirse. Diferente de otras especies, requiere variedades y diversidades para garantizar sus necesidades alimentarias e nutricionales. Pero, la “libertad”, al mismo tiempo que permite una amplia elección de alimentos, genera una enorme ansiedad, pues, con la elección de nuevos alimentos, nuevos riesgos aparecen. Este es la paradoja del omnívoro: el deseo de nuevos sabores y descubiertas y el miedo de los efectos desconocidos. La idea de la paradoja del omnívoro de Fischler sustenta que, aunque los seres humanos tengan la libertad de las elecciones alimentarias, existen límites impuestos por la capacidad biológica humana. Así que, al mismo tiempo que el omnívoro debe variar las fuentes alimentarias, necesita protegerse de los riesgos de intoxicación, generando una tensión a cerca de neofilia y neofobia. Los sistemas culinarios (hábitos, creencias, valores, prácticas y actitudes) son estrategias para mediar y armonizar colectivamente, la paradoja del omnívoro. Estos sistemas culinarios, producen una gramática con normas y significados sociales que estructuran la ingestión de los alimentos. En la contemporaneidad, una creciente desagregación cultural y social, advenida, entre otras cosas, de la presión del mercado, de la industria de alimentos y da publicidad y propaganda, asociada a las prácticas individualistas de consumo tienen provocado una desagregación potente de estas normas. El acto de comer, hoy es auto administrado por individuos en sus rutinas personales, apresadas y solitarias. ¿Qué piensa sobre la Gastro-anomia? Cuando Fischler publicó su artículo: Gastronomía y gastro-anomia, que luego se ha ampliado y se convirtió en su libro clásico, que es una referencia en nivel mundial: El omnívoro, el definía gastronomía como el conjunto del normas en relación a la alimentación. Las normas que los humanos clasifican, o piensan sobre la alimentación pues, un conjunto de normas en relación a qué, cómo, dónde comer, con quien, etc. Fischler constataba que muchas de estas normas y reglas de la alimentación desaparecían y que la sociedad o la cultura, presionaba menos los comportamientos alimentarios. Se estaba dando lugar a una gastro – anomia, es decir, la ausencia de normas relativas a la alimentación. Ahora, visto con perspectiva, porque yo hablé con Fischler, es importante tener en cuenta los tiempos de transición y hasta cierto punto estamos siempre en transición - hoy tenemos mucha más conciencia de cambios. Pues, yo no diría tanto que hay una ausencia de normas, yo diría como que efectivamente, algunas de las normas, han desaparecido, pero aparecen otras. Estas otras normas que están apareciendo, ahora son una simplificación muy grosera, muy burda. Si en las sociedades tradicionales se puede decir que las normas eran aceptadas por todo el mundo, e insisto que estoy simplificando y exagerando, también eran sociedades más sencillas, menos complejas demográficamente, menos complejas en términos de diferentes categorías sociales, eran sociedades 2018; 22(67):1267-77

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un poquito más homogéneas, hasta cierto punto. Entonces, vamos a suponer que nuestra sociedad contemporánea se caracteriza por mayor complejidad y diversidad. Es decir, sigue existiendo normas o aparecen nuevas normas. Lo que pasa es que las nuevas normas que aparecen, no necesariamente son normas compartidas por toda la población, por todos los individuos, toda la sociedad. Por ejemplo, siempre hubo normas nutricionales. Yo he inventado un concepto de etnodietética o etnonutrición porque los antropólogos siempre han hablado de etnoclasificación, etnociencia, etnolingüística. Pues, los conocimientos son el lenguaje de la sociedad, entonces al largo de la historia también hubo conocimiento sobre el efecto de la conveniencia o no de unos alimentos y el efecto que estos alimentos pueden tener en el cuerpo humano. Todas las sociedades han tenido conocimiento de este tipo. Más o menos precisos. Porque la previsión acerca de los conocimientos también cambian. La nutrición ha cambiado sus categorizaciones con cierta frecuencia. Bueno, las normas eran más compartidas o eran prácticamente las mismas para toda la sociedad, por ejemplo, los vegetarianos tienen unas normas y su alimentación se dirige por unas normas que, para decir rápidamente, están dentro de la filosofía vegetariana. ¿Esto quiere decir que los vegetarianos no tienen normas? Sí, también las tienen, pero otro tipo de normas. La particularidad es que en la sociedad hoy, hay vegetarianos y no vegetarianos. Hay omnívoros, vegetarianos, veganos, crudi-vegetarianos... También es verdad que el abandono de algunas normas es porque en algún campo también no hay normas. En España estaba mal visto comer en la calle. No se veía gente en la calle. Hoy comer en la calle, es una práctica bastante habitual, de diferentes formas. Una empresa ha improvisado una mesita para comer en la calle, pero creo que fue un fracaso comercial. Una mesita desplegable. Es fácil explicar el fracaso. La gente que come en la calle lo come por informalidad y no necesita una mesa. ¿Hay normas para comer en la calle? No lo sabemos. Empieza a existir bastantes publicaciones, muchos artículos sobre comer en la calle. También puede ser que haya habido muchas diferentes formas de comer en la calle. Los obreros, muchos ambulantes, siempre comieron en la calle. La tradición de comer en la calle es distinta, por aquí no la había, pero en México, en Perú y no sé en Brasil… Quiero decir que algunos autores hablaban que la alimentación se individualizaba y se informatizaba. Entendiendo por informal, la ausencia de formalismos. Es verdad que ha desaparecido los formalismos pero no quiere decir que no aparezcan otras formalidades o que la informalidad no tenga sus códigos. Bueno, esto es lo que se trata de estudiar un poco. Porque se generaliza determinadas prácticas y ver que códigos, si los hay. Es posible que no, es posible que sí. Yo creo que sí, que hay códigos. Lo que pasa es que, yo siempre he dicho cuando hablé con Fischler, nosotros siempre hemos de partir de que existen las normas, que aunque no las veamos, no quiere decir que no existan. En cualquier caso, si no las vamos a estudiar nunca, no las veremos nunca. Mejor, metodológicamente, que afirmemos que existen y busquémoslas. Si nosotros no las encontramos, diremos: no las hay o no las hemos encontrado. Pero, si nosotros las buscamos, seguro que las vamos a encontrar. Entonces, busquémoslas. Acerca del individualismo en la alimentación, por ejemplo, a partir del tupper(b); la palabra tupper se ha incorporado a la lengua castellana. Pues, en relación a la creación de una norma, hay personas que llevan el tupper y se reúnen para comer de su tupper, pero pueden compartir. Tú pruebas el ambiente. Compartir el tupper, no es una norma que obliga, pero es una norma que se deduce de las practicas, sobre un contexto de espontaneidad. En las 1270

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El tupper o táper, es la adaptación española que hace referencia a los recipientes de plástico popularizados por la empresa Táperware. http://www.fundeu.es/ recomendacion/taperadaptacion-espanola-delanglicismo-táper-1475/ (b)


(c) Pierre Bourdieu, el habitus es un sistema de diposiciones socialmente constituídas que, encuanto esructuras estructuradas y estructurantes, constituen el principio generador y unificador del conjunto de las prácticas y de las ideologias caracteristicas de un grupo de agentes.

escuelas, por ejemplo, como consecuencia de la crisis económica que hubo, muchos niños dejaron de comer en el comedor escolar y se llevaban el tupper de su casa, para ahorrar. Entonces, inmediatamente surgieron determinadas alarmas por parte de los responsables en salud, que por un lado que si los niños guardaran el tupper en la mochila, aquello podría estropearse, o luego, si se sentaran y compartieran algunas cosas y alguno tenia intolerancia, etc.… Entonces los tuppers tenían que seguir un protocolo, tenían que guardarse en las neveras de los colegios y ser vigilados igualmente en el comedor. Veamos, una nueva práctica, genera acciones distintas y diríamos la posible generación de nuevas normas de sociabilidad, basadas en la informalidad, y otras normas de seguridad alimentaria basadas en la prevención. Así que nosotros tenemos que estar muy atentos a lo que ocurre e intentar ver si hay una secuencia más o menos recurrente o si no la hay, si se están elaborando nuevas normas pero, todavía no se han explicitado o no se han concretado. En realidad, en la comida hay muchas normas que nunca han sido explicitadas. Hay muchas normas de comportamiento y consumo que la gente las tiene en la cabeza y que solo se da cuenta que las tiene en el día que se rompen o en el día en que alguien no las cumplen. Estas normas que se están elaborando, están en el proceso de construcción. Necesitamos un poco más de perspectivas. Explicar antes que el fenómeno ocurra, en principio está fuera del alcance de la antropología. En la alimentación, estamos constantemente tomando decisiones que hacen parte de nuestro habitus5 conforme entiende Bourdieu(c). Este es un proceso en construcción muy interesante y que toda la gente participa cotidianamente.

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Los antropólogos hablan mucho de cultura. Cultura es un concepto muy dinámico y muy amplio. ¿Qué es cultura? ¿Dónde está la dimensión política en el concepto de cultura? La antropologia durante mucho tiempo se definió como la ciencia de la cultura. Esta fue una de las definiciones de antropologia. Hay cientos definiciones de la antropologia. Una de ellas, porque también es la ciencia del hombre. Hay muchas ciencias del hombre. La biologia también es la ciencia del hombre. Pero una das definiciones de la antropologia es la ciencia de la cultura. Esto tiene que ver, en primero con un otro concepto de cultura, distinto al concepto de cultura que iluminaba la llamada sociedad ocidental, las culturas ocidentales. Cultura era sinónimo de cultivado. Cultura era sinónimo de las artes. Eventualmente, cultura también podría ser sinónimo de educado, educación. Y hasta el siglo XIX había muchos pueblos, decían los ocidentales, que no tenían cultura, que eran anagrafos , que no tenían escrituras, primitivos, salvajes. Entonces, parecia que cultura era algo exclusivo de algun tipo de sociedad. Para la antropologia , no recuerdo quien lo dijo pero yo me lo he apropriado, la antropologia empieza cuando la palabra cultura se añade de una s. Hablamos de culturas. Todos los pueblos tienen su cultura. Cultura es sinónimo de pueblo. No de cultivado sino de pueblo, de sociedad. También hay muchas definiciones de cultura. Una de las primeras, más exitoses y que marcó mucho el rumbo de la antropologia es que la cultura era el conjunto de instituiciones y de valores relativas al medio , o sea, las condiciones ecológicas, el parentesco, la religión, la organización social, la organización política, etc. La cultura era todo. El derecho, los costumbres, el derecho constitudinário, etc. Todo, en definitivo. Y cada pueblo tenía su cultura. Su sistema de parentesco, su sistema de creencias, su cosmovisión, su organización económica, su tecnologia, sus instituiciones políticas – más sencillas o más complejas, etc. Esta definición de cultura orientó, en buena medida, la antroplogia porque sus estudios consistían fundamentalmente en monografías acerca de esto. Los antropólogos pasaban uno 2018; 22(67):1267-77

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o dos años con un pueblo y hablaban de las condiciones ecológicas, de la tecnologia, del parentesco, de la organización política, de la religión (dicho así rapidamente). De cada uno de estas esferas que constituirían la cultura y luego pues se comparaba los sistemas de parentesco de los Hindúes, de los indios Yanomamis, de los Gitanos, etc. Efectivamente, la cultura es algo muy dinámico. Otras cosas, en el enfoque de la antropologia, decían que la cultura era una respuesta adaptativa. La cultura en este sentido, es una respuesta adaptativa por un lado, tanto para relacionarnos en el medio ambiente como para relacionarnos con nosotros mismos. Dicen que los seres humanos no solo viven en sociedad , sino que crean la sociedad. O sea, crean cultura para relacionarnos entre nosotros. Estas relaciones cambian, las condiciones cambian, las culturas cambian también. Hay instituiciones , practicas y valores que se tornan obsoletos. Acerca de globalización y cultura alimentaria , es correcto pensar que este proceso viola, agrede la cultura y la soberania alimentaria de los pueblos? Usted ha hecho en una clase , una pregunta inquietante: existe algún país con soberania alimentaria? Entonces, yo le pregunto: los factores económicos son trampas para la cultura en general y la cultura alimentaria en particular? O qué piensas sobre esta cuestión? Al principio, la globalización también es un concepto que se concreta, que se define, que se entiende de muy diferentes formas. Nosotros siempre estuvimos globalizados. Nunca hubo sociedades aisladas al 100%. Ahora en la América que se habla de pueblos aislados voluntariamente, no contactados, en Amazonia, en Ecuador, en Brasil. Pero, en definitiva, siempre han tenido vecinos. El mundo nunca se ha reducido a el propio pueblo y siempre ha habido pueblos vecinos con relaciones más o menos conflictivas, más o menos colaborativas. Este proceso se ha ampliado para todo el mundo y hoy es muy raro encontrar un lugar del mundo en que no veas un indio yanomami con su móvil (celular), por ejemplo. Estos aparatos se producen en un lugar y se difunden por todo el mundo. Otro ejemplo, el mango. El mango era una fruta de una región y ahora se puede encontrar mangos en cualquier región. Diríamos que la circulación, el contacto, la interacción de las cosas y de las personas, es casi total, o puede ser casi total, que no quiere decir que efectivamente, lo sea. Digo que las personas circulan y las cosas también. Entre las cosas, los alimentos también. Un móvil pode ser fabricado en China o Taiwán y se expande por el mundo. Lo curioso en la alimentación es que la alimentación, el maíz, la patata o el mango, pueden emigrar, pueden circular en todos los sentidos. Lo cual decir que circulan demasiado, o sea que algunos productos circulan más de la cuenta. Con lo que se supone las agresiones al medio ambiente por el impacto de huella de carbono, etc. ¿Entonces, la globalización es buena o mala? Depende. En principio que yo pueda comer mango y tener celular, ¿qué problema hay? Desde mi punto de vista, no sería este el problema. Lo que ocurre y ahí volvemos a una interpretación de carácter materialista, hay los costos/ beneficios. Los costos/beneficios los podemos medir de muy diferentes maneras. Hoy la forma dominante de medir los costos / beneficios es la monetaria, en términos de capital monetario. Pero, podría decir que las sociedades; su manera de considerar los costos/ beneficios a lo largo de los siglos y siglos, era energética. Energía obtenida y energía gastada para obtener la energía que obtenemos. Bueno, si hoy analizamos por esta doble perspectiva, costos / beneficios en términos energéticos y términos monetarios o de capital, pues, podríamos decir que en términos energéticos, la relación es cada vez más negativa. Cada vez gastamos más energía para obtener, menos energía. Porque si resulta, que como maíz e importo maíz y luego, al mismo tiempo, exporto maíz a aquel lugar de donde yo he importado maíz, quiere decir que allí hay una cierta cantidad de maíz que ha viajado más de la cuenta. Si yo consumo el maíz que produzco aquí, el maíz que viene de México, no haría falta que viniera, y vice-versa. Hay un gasto energético no necesario pues, en principio, no modificamos el consumo. En términos económicos, ¿lo que ocurre? Los costos energéticos los paga todo el mundo. Todas las personas que son contribuyentes. O todas las personas que esperan gracias a sus impuestos obtener algunos servicios o contraprestaciones del Estado, están pagando el costo energético del transporte del alimento. Y la relación costos / beneficios x capital, los beneficios solo van para unos. Pues, a partir de ahí es que donde entran las cuestiones más políticas del asunto. Que los costos energéticos los pagamos todos y los beneficios en capital solo se lo quedan 1272

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algunos. Nosotros decimos que no hace falta que el maíz viaje en dos direcciones distintas, pero resulta que este viaje, que nos empobrece energéticamente a algunos, enriquece capitalistamente a otros pocos. Bueno, esto podríamos ir analizándolo con diferentes ejemplos, con diferentes casos y la significación que esto tiene. La cosa es bastante más compleja porque la mayor parte de los alimentos que consumimos sigue siendo materias primas producidas por la agricultura, ganadería o por la pesca. Y en la agricultura y ganadería o la pesca nosotros podemos encontrar sistemas de producción artesanal – pequeña explotación, explotaciones familiares, grandes explotaciones con miles de cabezas de ganado o miles de hectáreas de cultivo o barcos que hacen todo el o proceso de pesca y captura, etc. Son dos modelos distintos. Conviene no caer en simplificaciones, obviamente, en términos energéticos y en términos de igualdad, cuanto más artesanal fuera la producción y el ciclo de producción alimentaria, tanto mejor para todo el mundo. Pero también es cierto que la población no ha dejado; no ha hecho más que crecer y obviamente, no se puede alimentar la misma cantidad de población con un sistema que con otro. Insisto, costos / beneficios en términos energéticos x costos / beneficios en términos económicos y monetarios y obviamente, un sistema de desigualdades cada vez más fuerte. Las respuestas en algunos casos, podría decir que son muy románticas o idealistas. En otros casos, son muy cínicas. Hay algunos que creen que la ciencia puede solucionar todo. Y es verdad que la ciencia he solucionado muchas cosas, pero la desigualdad no parece que esté en la solución que depende de la ciencia sino de la política. En estos momentos, hay países que podrían ser soberanos alimentariamente. ¿Cuándo hablamos de soberanía alimentaria, podemos tener soberanía alimentaria y no soberanía nutricional? Son dos cosas distintas. ¿O podríamos tener soberanía nutricional y no alimentaria? ¿O las dos cosas al mismo tiempo? Yo creo que la soberanía puede ser una consecuencia de una política o el objetivo para una política. Obviamente, la soberanía alimentaria no depende exclusivamente de los alimentos que se producen. Dependen de cómo estos alimentos se distribuyen y quien los recibe. Podemos hablar de soberanía a corto plazo, soberanía a medio plazo y soberanía alimentaria a largo plazo. Y bueno, como medimos los plazos. En cualquier caso, cualquier político se encuentra frente al dilema de tentar garantizar la soberanía alimentaria y, por otra parte, la soberanía económica. La soberanía económica depende del pleno empleo y las cosas están tan interaccionadas, pues muchas revoluciones harían falta. Revoluciones políticas, económicas, tecnológicas […] una revolución integral. Aceptando que hablar de soberanía alimentaria plena y a largo plazo es un dialogo utópico pero, yo no digo que sea utópico. Bueno, fijarse en este objetivo es una condición necesaria para que se pueda andar en este camino. Porque lo cierto es que, las desigualdades aumentan en todo el mundo. Entonces, tenemos dos problemas alimentariamente hablando, relacionado poco o mucho con la soberanía: 900 millones de personas pasan hambre y mil millones de personas están con sobrepeso u obesidad. ¿Quiénes pasan hambre? Los pobres. ¿Quiénes tienen más obesidad? Los pobres. Entonces, los pobres lo sufren todo. ¿Cómo es posible encontrar una soberanía alimentaria con igualdad para todos? En este modelo está claro que la desigualdad de unos es el beneficio de otros. Y el capitalismo se pasa ganar muy poco de muchos o ganar mucho de muchos o ganar mucho de pocos. Los capitalistas, hacen las tres cosas. Explotan todas las vías posibles.

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Los antropólogos hablan mucho acerca de la modernidad y sus efectos en la sociedad. Hoy vivimos muchos cambios en gran velocidad. ¿Cuáles son los efectos más visibles de la modernidad? Nosotros nos quedamos en la modernidad. Lo moderno es el presente. El termino moderno, cuando había otro tipo de conciencia era algo que se oponía al tradicional. La tradición es lo que existió siempre y el moderno es el cambio. Lo moderno era el cambio. Esto es lo moderno. Los cambios hoy se suceden con mucha rapidez por ejemplo, las modas. La alimentación sería un poco distinta. Las modas, porque también moderno viene de moda. Las modas del vestido podrían durar años. Y este se fue acelerando desde la democratización del consumo, al final del siglo XIX, aparecieron los grandes almacenes, cuando apareció la producción en serie. La gente se confeccionaba el vestido (…) y al determinado momento, se impone la industria de la confección con unas medidas 2018; 22(67):1267-77

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estandarizadas y te compras los pantalones hechos. En términos alimentarios hay un paralelismo que Fischler hace, el prêt a portér, o sea, la alta costura y el prêt a manger, la alta cocina, que sería también la industrialización alimentaria. Pero, mirando para tras, a medida en que el consumo se va democratizando, como el consumo siempre ha sido un factor de diferenciación social, pues resulta que yo imito a la clase alta en el vestido y la clase alta, saca otra moda para diferenciarse. Las modas se han acelerado completamente. Y al momento, es una característica de la modernidad, quitarles valor a las cosas, no añadirles sino quitarles valor. Este año se quita los pantalones con este ancho, el anterior con otro ancho. Las modas duran, en el vestido, una temporada. Hay una aceleración constante. ¡En alimentación, parece que hay catorce tendencias de la alimentación para 2017! La gente ya se diagnostica… La conciencia de modernidad quiere decir de transición permanente, de cambio permanente. Algunos, como el sociólogo que murió hace pocos días Bauman6, hablaba de una modernidad liquida, una cosa mucho más acelerada, de menos permanencia. Ahora, lo curioso resulta una paradoja de la modernidad que es que la tradición es un valor moderno. A mí me gusta mucho hablar de las paradojas de la modernidad. ¡O sea, moderno había sido la oposición a la tradición, la tradición lo opuesto al moderno y ahora lo tradicional es un valor de la modernidad! ¡Y ves tradición por todas las partes! En alimentos (mucho) y en el vestido! Porque en vestido está a la moda retro… En alimentación no hay alimentos retro, pero hay alimentos tradicionales. Los cambios alimentarios que han ocurrido en las ultimas décadas tienen generado muchos problemas aparentemente contradictorios, como: trastornos alimentarios y obesidad. ¿Qué piensa sobre esto? Obviamente, son dos cuestiones muy distintas. Hablamos de trastornos alimentarios pues hay muchos tipos de trastornos. Porque ahora también se considera un transtorno alimentario, la ortorexia. La ortorexia, a principio seria una actitud reflexiva moderna relacionada a la propria alimentación. Si sabemos que lo que ingerimos puede tener efecto positivo o negativo en nuestro cuerpo, en función de esto procuramos lo mejor. Pero lo que diria es que siempre ha existido este interés, por aquello que comemos nos haga bien y no haga mal o por evitar aquello que sabemos que nos puede hacer mal. Ahora hay un articulo mediático: 15 errores o mitos sobre la alimentación: Son cosas que siempre han dado por ciertas y que ahora , no lo son más. Entonces, en el punto de vista de los trastornos alimentarios que son considerados trastornos de carácter psicológico o psiquiátrico, me parece que desde que se creó la clasificacion de enfermedades psiquiatricas en el año 60 había 50 enfermedades catalogadas, ahora son 2 mil. No lo sé las cifras exactas pero lo que quiero decir es ¿ sabemos que hoy estamos más enfermos que hace 50 años? ¿Qué hoy sabemos más de las enfermedades que hace 50 años? ¿O las dos cosas? La cuestión está en el diagnóstico. Cuando Eva Zafra7 hizo su tesis conmigo y le interesaba la cuestión de los trastornos alimentarios, se quedó claro la importancia del diagnóstico. Hay personas hiperdelgadas que no están diagnosticadas de anorexia y se comportan normalmente; hay personas con sobrepeso y obesidad que no estan diagnosticadas. Algunas personas puden decir que no es preciso el diagnóstico pues, el diagnóstico es fundamental. En el diagnóstico, los expertos te describen tu enfermidad o tu transtorno, te prescriben el tratamiento. Tanto la obesidad como la anorexia son multicausales y lo que se tiene que evitar son los diagnósticos tan generalistas. Hay una frase que no es mia pero que a mí me gusta decirla: “es preferible una solución aproximada a que un diagnóstico preciso, que una solución precisa a un diagnóstico aproximado”. En nutrición, hay muchos diagnósticos aproximados y no precisos. Y en el caso de la alimentación , en la medida que es tan compleja y tan multidimensional , diriamos que los diagnósticos tan generales, son un peligro. Ahora, vuelvo a generalizar, exagerar y simplificar. Pudimos decir que la hiperdelgadez no es materia de diagnóstico y estar gordo, que tampoco era materia de diagnostico. Y el delgado o gordo podrian estar bien o mal vistos socialmente. Depende, aqui entramos en un cosa que es muy querida de la antropologia y de la sociologia. La construción social de la enfermidad. La anorexia es una enfermidad socialmente construída. Siempre ha existido personas que se han privado de comer, por unas razones o por otras. Diríamos la gente que se retiraba para hacer las tesis, los sacrificios, renuncias , etc. No eran personas enfermas, eran personas santas! Ahora, las razones para que las 1274

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personas puedan dejar de comer o puedan no querer comer son diversas y volvemos a la cuestion del diagnóstico. Nuestra sociedad es hiperclasificatoria. Necesita clasificar todo. Esto es una manera de defenderse, de protegerse. Estamos clasificando porque precisamos diagnosticar porque la gente no quiere comer. Y entonces aquí es donde aparecen muchos problemas. Yo creo que los diagnósticos han sido muy parciales. Parciales en sentido de incompletos. No quiere decir que lo que se ha dicho de las causas de la anorexia no sean ciertos, pero no son las únicas. Ni simpre son las mismas y no son las mismas para todas las personas. Además las cosas fueron a una comision del Senado - Parlamento para investigar las causas de la anorexia. ¿Sabes cuál fue la principal conclusión? Que la mayoria de las anorexicas, niñas, querian imitar las modelos de las pasarelas. [!!!] Ahora que se habla de acoso escolar, desde mi punto de vista, el acoso escolar es una de las causas de la anorexia. Entonces, hay prácticas alimentarias por exceso o por defecto que pueden ser más o menos prejudiciales a la salud, pero no son prejudiciales para tu vida, tu vida cotidiana. Conducir con exceso de velocidad puede ser muy peligroso para la salud , pero no afecta el rendimento escolar, ni a la vida matrimonial. No pasa nada y puede ser muy peligroso para la salud. ¿Por qué se dice que la obesidad puede ser un riesgo para tu salud laboral? ¿En el sentido de que te marginen, no te den trabajo? O te despidan?

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Usted tiene una propuesta de que la comensalidad sea una categoria nutricional. ¿Cómo elejir la comsensalidad como abordaje nutricional puede auxiliar en la mejoría de la salud poblacional? En primer lugar es importante situar que no es una categoria. Debería serlo. Nosotros hicimos, hace ya unos años, un estudio sobre alimentación, salud y tercera edad. Son dos proyectos europeos. Uno que habia más de 20 equipos de investigación. Solo dos de ciencias sociales, los otros 20 eran de tecnologia, nutrición... Con el envejecimiento hay un proceso de degeneración: se pierden papilas gustativas, muchas personas pierden la dentadura, hay todo una serie de problemas con los alimentos. ¿Qué encontramos en nuestra investigación? Uno de los principales problemas de las personas mayores eran la perdida de apetito. Y una perdida de apetito que estaba ocasionada por la soledad. Cuando las personas mayores enviudan, generalmente tienen una perdida del apetito. Una perdida del apetito por un lado, una perdida de motivación para cocinar por el otro. Ellos comen cualquier cosa o no comen. Pierden la motivación para cocinar para comer comidas estructuradas o verdadera comida. La soledad es hasta cierto punto, en términos alimentarios, la falta de comensalidad. La comensalidad, estimula el apetito. Hay una frase que yo recuerdo, una mujer dijo a la otra: “que suerte tienes que no has perdido al apetito”. Si necesita ganas de comer y la comensalid es un estimulo del apetito, es en esta medida que yo decía que la comensalidad es una categoria nutricional. Entonces, perdona, el mayor problema no es que no mastiquen bien, el mayor problema es que no quieren comer. Si nosotros queremos mejorar la alimentación y la salud de la tercera edad , hay que tener en cuenta estas circunstancias. Y las soluciones, la mejor no es un espesante. Es otro tipo de solución que a lo mejor no está en nuestras manos. Entonces, mira cuantas cosas que hay. ?Porque no organizar comedores no asistenciales que cocinen a la gente? Hoy cocinas tu, mañana yo... Y que la gente tenga compañia y ganas de cocinar para otros y ganas de compartir la comida con otros. En cualquier caso, hemos de abordar la cuestión de la comensalidad. Hice una Conferencia en Bahia con este título. Esto es importante porque la ausencia o el exceso de comensalidad puede comportar excesos o defectos , en términos alimentarios y nutricionales. Hay que abordar esto. La comensalidad tiene sus reglas también. A lo mejor, lo que hay que hacer desde la cultura, es darle una dimensión de más comensalidad a determinados tipos de alimentos que ya no las tiene como, por ejemplo, las verduras y las frutas. Pues, si tu tienes invitados, puedes ofrecer dos postres y uno que pueda ser frutas. Pero solo un postre de frutas sería difícil. Pues, si ofereces solo uno, tiene que ser dulce. Hay una serie de categorias de cultura alimentaria que condicionam o que tienen que ver com la comensalidad. La comensalidade, hay que verla en todas sus dimensiones. Otros ejemplos sacados de nuestra investigación: hay niños que comen cada vez más , con más frecuencia en la casa de sus abuelas. Cuando las abuelas reciben a sus nietos , cocinan lo que les gusta a los niños, porque dicen “para un dia que vienen , no les voy a dar verduras. Ya saben que tienen que comer verduras pero que se las dé su madre. Yo no. El día que vienen a mi casa, les hago macarrones con salsicha, lo que sea...” Hay un 2018; 22(67):1267-77

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montón de cosas, entonces, a veces, desde la nutrición, se olvida que nos acostumbramos a comer con y cocinar para, porque la comida cumple otras funciones. Sin duda esto todo es muy importante. ¿Cómo se puede traducir estas dimensiones para la formación del nutricionista? Pues en los currículos actuales los estudiantes no tienen acceso a esta comprensión. Yo pienso que en la narrativa ellas tienen, pero no saben que tienen. Yo cuando daba clases a las nutricionistas, eran muy jovencitas, 18 anos. Les decía: “vosotras no los sabéis pero os comportáis algunas horas al día como nutricionistas y como nutricionistas decís bla, bla, bla, bla... pero cuando dejáis de ser nutricionistas y sois “personas normales” coméis lo que os da gana comer, coméis lo que coméis...” Pero, no quiero decir que no pueda haber una interación que la gente procura. Porque aquí, en España, no sé en Brasil, pero muchas de las personas que estudian nutrición es porque ya les dan importancia personal a su alimentación. Pero, al otro nivel, ahora yo estoy recorriendo con mis alumnos, biografías sobre procesos de conversión al vegetarianismo, por ejemplo. Estas personas cuentan que al principio, en su casa, tenían problemas. Su madre no quería cocinar vegetariano. Decía que tenía que comer de todo. Comer de todo, siempre ha sido una expresion de buena educación alimentaria. “Hay que aprender a comer de todo” Ahora, cada vez la tolerancia es mayor en relación a esto. Primero porque el vegetarianismo empieza a estar bien visto desde una óptica entre comillas, ideológica y tal, entonces los padres ya son más jóvenes, pero algunos dicen: “te vas a enfermar si solo comes verduras”. Bueno, creo que las cosas van cambiando. Yo siempre pido a mis alumnos: decidme alimentos buenos y alimentos malos y ahora, los estudiantes costumbran responderme en términos nutricionales. Después, al cabo de unos días, cuando ya se han olvidado les pregunto: ¿esta noche, si tuviereis invitados, que ofreceríais a vuestros invitados para cenar y que no les ofreceríais? Resulta que los alimentos malos se ofrecerian a los invitados y los buenos no. Y cuando les pergunto porqué dicen: no, es distinto. ¿Es distinto? Efectivamente, nuestras lógicas clasificatorias tienen diferentes registros y lo que es bueno en términos de hospitalidad , puede no ser bueno en términos de salud y viceversa. Entonces, tenemos que aproximar, tenemos que trabajar para pensar como aproximar estas dos categorias, seguramente modificando un poco una y otra.

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Agradecimientos A Pep Garcia Marcet por la atenta revisión del español. Referencias 1. Hernandez JC. Antropología de la alimentación. Madrid: Ediciones de la Universidad Complutense de Madrid; 1993.

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2. Contreras J. Alimentación y cultura: necesidades, gustos y costumbres. Barcelona: Edicions Universitat Barcelona; 1995. 3. Hernandez JC, Arnaiz MG. Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas. Barcelona: Ariel; 2004. 4. Bastos LC, Santos WS. A entrevista na pesquisa qualitativa. Rio de Janeiro: Quartet, Faperj; 2013. 5. Bourdieu P. A economia das trocas simbólicas. 5a ed. São Paulo: Perspectiva; 2007. 6. Bauman S. La modernidad liquida. México: Fundo de la Cultura Economica; 2002. 7. Zafra EA. Aprender a comer: procesos de socialización y “Trastornos del Comportamiento Alimentario” [tese]. Barcelona: Universitat de Barcelona; 2007.

Palavras-chave: Antropología da alimentação. Modernidade. Cultura alimentar. Mudanças alimentares. Keywords: Anthropology of food . Modernity. Food culture. Food changes. Palabras clave: Antropología de la alimentación. Modernidad. Cultura alimentaria. Cambios alimentarios.

Sometido en 10/07/17. Aprobado en 28/08/17.

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Narrative across disciplines. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016 [citado 1 Jun 2017]; 6(1):1-125. Disponível em: https:// journals.lib.unb.ca/index.php/NW/issue/view/1900.

Everardo Duarte Nunes(a)

Quando a narrativa cruza as disciplinas Hoje, escrever sobre narrativa tornou-se um desafio. Não somente pela impressionante produção, mas pelas abordagens teóricas, conceituais, metodológicas e aplicativas, incluindo suas formas de expressão. Isto já havia sido exposto por Barthes1 quando disse: “Inumeráveis são as narrativas do mundo” (p. 19). Decodificava o campo assinalando que elas se espraiavam por uma enorme variedade de gêneros – do mito à conversação –, presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades. Acrescentava, ainda, que havia uma “multiplicidade de pontos de vista” e sua abordagem podia ser histórica, psicológica, sociológica, etnológica, estética, etc. (p. 20). Na atualidade, o ciberespaço é um dos seus territórios e os periódicos exclusivamente online são fontes bibliográficas da maior importância. Entre esses periódicos, Narrative Works, desde 2011, é um dos mais destacados, ao incluir largo espectro de disciplinas como: psicologia, sociologia, antropologia, gerontologia, estudos literários, estudos de gênero, estudos culturais, estudos de religião, serviço social, educação, cuidado à saúde, ética, teologia, e

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artes. Recentemente, publicou um número temático que trata da questão das disciplinas – Narrative across disciplines2. Este número é formado por cinco artigos e uma introdução que trazem as marcas de oito autores que se dedicam, no Canadá (Clive Baldwin, Andrew Estefan, Vera Caine, D. Jean Clandinin), Finlândia (Matti Hyvärinen, Hanna Meretoja), Estados Unidos (Kate de Medeiros), Inglaterra (Alun Munslow), a desvendar narrativas e construir as bases de sua interpretação. Convidado para organizar esse número temático, Baldwin3 elabora a Introdução lembrando que: Não pretendo discutir os méritos relativos às posições e argumentos dos respectivos autores, nem avaliar a contribuição de seus trabalhos incluídos aqui para estabelecer ligações interdisciplinares [...], mas estabelecer um diálogo com os autores e como contribuíram para o seu próprio trabalho. (p. 2)

O primeiro texto de autoria de Estefan et al.4 tem como temática as intersecções da pesquisa narrativa e a formação profissional. O ponto de partida é que:

(a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Barão Geraldo. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. evernunes@ uol.com.br

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0534


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O estudo da experiência através de estórias é uma forma de entender como as pessoas fazem sentido de seus mundos, que são moldados por narrativas pessoais, sociais, familiares, culturais, habituais ou institucionais. A pesquisa narrativa é uma prática situada e relacional, na qual as histórias da experiência são compreendidas dentro de um espaço de inquérito narrativo tridimensional de temporalidade, socialidade e lugar. (p. 15)

Os autores são educadores que trabalham com as disciplinas de educação e enfermagem num processo de “pensar narrativamente quando engajados no próprio processo pedagógico”. Considerando a variedade dos conceitos de experiência, adotam o de John Dewey [18591952], Experience and nature, originalmente publicado em 1925. Apontam que, para Dewey, a “experiência é entendida como um fenômeno narrativo que é temporal, social, e situado”, e acrescentam do pensador: A experiência também é um fenômeno social que envolve transações entre experiências internas, como pensamentos e sentimentos, e interação social, mesmo quando a outra [a interna] em tal interação é apenas realizada ‘em mente’. (p. 17)

Destacam que os lugares são importantes nas implicações de como as experiências “são capazes de falar sobre eles”, e que as narrativas são temporais – as anteriores partilham o presente e influenciam as futuras. Fundamental, neste texto, é quando os autores salientam que essas ideias “marcadas por um contexto e compromisso profundamente relacional” foram básicas para que pensassem com e não sobre as estórias que ouviram (grifo dos autores). Mais ainda, como tensionaram suas experiências de educadores. Relatam três estórias: a de Vera, quando seu filho pediu que ela examinasse se ele tinha piolhos no cabelo; a de Jean, professora, conselheira e psicóloga que trabalhava em escolas, inclusive com crianças deficientes físicos; a de Andrew, que relata como sua avó enfermeira ensinou-o sobre a profissão. Para os autores, trabalhar com a experiência narrativa traz tensões, em especial, quando se 1280

equacionam os limites dos domínios pessoal e profissional. Para alguns, esses domínios são separados, para outros, práticas como enfermagem e educação envolvem considerar “o self em relação aos outros, (...) negociando e renegociando continuamente as fronteiras” (p. 23). Apontam que outras tensões permeiam o trabalho: padronização dos currículos; entendimento das práticas profissionais de maneira limitada (como habilidades); compreensão restrita do processo educacional e não como um todo; tratamento do contexto de forma estática. Enfim, como dizem: [...] pensar com estórias é uma forma de ajudar os educadores de práticas profissionais a sustentar o pensamento narrativo sobre os contextos de tempo e local e os relacionamentos em que trabalhamos, e com os quais aprendemos a ser profissionais. (p. 34)

O segundo texto é de Hyvärinen5. Trata-se de pesquisador que tem trazido extensas e profundas análises sobre a narrativa. Sua metáfora de que a narrativa é “uma das grandes viajantes acadêmicas dos últimos quarenta anos”6 é um orientador para se entender a sua proposta quando analisa as relações narrativa e sociologia, destacando que “as viagens multidisciplinares da narrativa tem sido frequentemente celebrada” (p. 4). Neste ensaio conta-nos a história da narrativa na sociologia a partir da sua pré-história, cujas origens remontam a Thomas e Znaniecki; e o estudo de 1918-1920 sobre o polonês nos Estados Unidos e Europa, usando cartas e histórias de vida. Essa história biográfica criaria tradição na Escola de Chicago, mas seria marginalizada no pós 2ª Guerra com o fortalecimento da pesquisa quantitativa, e somente ressurgiria nos anos 1980. Hyvärinen anota que é difícil estabelecer “o começo de uma sociologia narrativa propriamente dita” (p. 42). Para ele, Mishler, na década de 1980, pode ser uma referência; e acrescenta, Mishler é “radicalmente interdisciplinar” trazendo à tona vários campos de conhecimento como: a antropologia, sociologia, linguística, psicologia, filosofia, história. Dos anos 1990, cita Reissman e Maines, este último ao caracterizar duas tipologias: a “sociologia da narrativa” e a “sociologia como narrativa”. Situa que, na

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metodologia criticamente reflexiva, que resulta em uma narrativa do envolvimento do pesquisador com outros em contextos socioculturais particulares. (p. 48)

Ao se referir às suas análises narrativas, Hyvärinen diz que “não eclipsa experiências vividas com conceitos, categorias e tipologias”, mas “tenta surpreender e discutir isso em um diálogo entre pesquisador e contador de histórias” (p. 51).

No último tipo de pesquisas sociológicas, Hyvärinen analisa como estudar “realidades narrativas”, que ele associa aos gêneros de narrativas. Baldwin1 comenta que Hyvärinen mostra “como os gêneros encapsulam realidades narrativas particulares que, por sua vez, fazem parte do ambiente narrativo em que vivemos” (p. 6). Ressalta-se, dessa forma, não somente a importância do ambiente, mas os mecanismos de “controles” narrativos exercidos pelo ambiente. No final, Hyvärinen discute as possibilidades de um novo tipo de teoria – a socionarratologia, que inclui a adoção das contribuições da linguística, como a distinção de estória (sequência de eventos) e discurso narrativo (como a estória é representada). Acrescenta que narratologistas deveriam se interessar mais pelas narrativas ficcionais. O terceiro texto é de autoria de Kate de Medeiros7, e trata da gerontologia narrativa. Situa como objetivos: o que é gerontologia, qual o papel da narrativa dentro da gerontologia, como tem sido usada na pesquisa e qual o seu futuro. Destaca, ainda, qual o papel das “narrativas culturais dominantes” (master cultural narratives) e o uso de “estórias emergentes” (counter stories)(b), apresenta exemplos de entrevistas orais e uma oficina de escrita. Ressalta a autora que o campo da gerontologia tem suas raízes no campo da biologia e medicina no final do século XIX [a palavra gerontologia foi criada por Ilya Ilyich Mechnikov em 1903], e somente depois da 2ª Guerra adentra a demografia e a saúde pública. Aponta para o crescimento da pesquisa e da formação graduada e pós-graduada em gerontologia, mas a proposta de “questões mais profundas” ocorreria nos anos 1970, a partir da “perspectiva das humanidades”. A gerontologia narrativa, como campo, seria da década de 1990, quando Jan-Eric Ruth, em 1994, cunhou o termo. Tomando como referência a ideia de que a gerontologia narrativa é “uma heurística para o estudo do envelhecimento”, de Medeiros adota uma concepção ampla de narrativa, que, em “seu nível mais básico, é uma revelação de algum aspecto do self através de símbolos ordenados” (p. 65). Para ela, “símbolos ordenados” destinamse a descrever a grande variedade de maneiras em que o significado pode ser transmitido, como linguagem (oral e escrita), gestos, imagens, movimentos e assim por diante”. Adverte que,

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“virada narrativa”, houve um “relativo silêncio entre as lideranças teóricas da sociologia”; e discute duas diferentes contribuições para o tema, as de Anthony Giddens e de Richard Sennett. Considera que trouxeram contribuições importantes, por exemplo, Giddens com a noção de “continuidade biográfica”, e Sennet, ao destacar “o condicionamento” social e econômico sobre as narrativas, especialmente as condições de trabalho. Porém, nenhum deles “consegue teorizar a capacidade reconstrutiva e ativa das narrativas”. Para Hyvärinen, trabalhar o percurso da narrativa em sociologia se assemelha a reunir um quebra-cabeça, quando a interdisciplinaridade torna-se um dos elementos a ser considerado. Destaco que, segundo Hyvärinen, “A ideia de que uma história de vida relevante requer uma vida linear estável não encontra evidência nos estudos biográficos” (p. 45); e cita, como exemplos, as narrativas de sobreviventes do Holocausto e as narrativas sobre adoecimento. O autor assinala três orientações para a pesquisa que não são categóricas, mas prototípicas e heurísticas, e se aplicam a um siginificado amplo de texto (análises visuais, corporais, usos da voz, mãos, olhares): o estudo de textos narrativos, a sociologia do contar estórias e o estudo das realidades narrativas. Considera que o estudo de textos narrativos é parte integrante da pesquisa qualitativa. Entre os autores que cita, destaco a sugestão de Riessman que divide a perspectiva narrativa em três partes: análise temática, análise estrutural e análise dialógica/perfomática, que responderiam a: o que estudar; como estudar e o relatar. Ao analisar a “sociologia do contar estórias”, Hyvärinen recupera as discussões em torno da autoetnografia, que, segundo Tami Spry, pode ser caracterizada como:

As expressões “narrativas culturais dominantes” e “estórias emergentes” são adaptações do autor da resenha. (b)

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neste artigo, inclui apenas exemplos de narrativas como linguagem. A autora analisa as “narrativas culturais dominantes”, que remetem a imagens ideologizadas – a “velhice como a narrativa de uma jornada”, da solidão, “as pessoas mais velhas são mais solitárias do que outros grupos de idade”, da decadência – “a narrativa do declínio” – e, como podem afetar o processo de pesquisa e interferir no momento de uma entrevista (p.66,67). Destaca que as dificuldades em contrapor “estórias emergentes” às narrativas dominantes devem-se aos “limites dos quadros disponíveis para narrar a experiência”; de Medeiros ilustra, com três casos de senhoras com mais de 70 anos, o significado da generatividade para mulheres idosas sem filhos, o potencial das “counter-stories”, e encerra o artigo com os benefícios das oficinas de escrita. Nessa atividade, as pessoas selecionam diferentes eventos para contá-los sob formas variadas – poemas, cartas, memórias – que “fornecem oportunidades para uma verdadeira criação conjunta de significados [que] podem ser formas de desafiar as “master narratives” (p. 78). Em relação ao futuro, destaca: a necessidade de mais pesquisa sobre as “pequenas estórias” (small stories), que seriam “meios para as pessoas expressarem pensamentos, reações e outras experiências do envelhecimento e que estão fora das grandes narrativas”; mais consideração sobre “o que é narrado como estória”, e que os idosos devem ter uma voz muito maior como suas narrativas são contadas e recebidas” . Encerra alertando que “A ética da narração deve estar no cerne de todo o trabalho narrativo”, como já assinalado por outros autores (p. 79). O quarto texto é de autoria de Meretoja8, que desenvolve uma detalhada reflexão sobre: os fundamentos filosóficos que subjazem às diferentes concepções de narrativas, o sentido histórico na conceituação da narrativa e experiência, e o significado da narrativa para o indivíduo e “nosso sentido de possível”. A autora confessa que, mesmo fazendo a distinção entre estória e narrativa, “muitas vezes me sinto como um pássaro raro em estudos narrativos literários, pois geralmente tenho mais em comum com abordagens filosóficas, psicológicas e sociais científicas da narrativa do que com a tradição formalista da narratologia literária” (p. 83). Acrescenta 1282

que os praticantes de diferentes tradicionais devem exercitar um aprendizado comum. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é um caminho que pode favorecer o diálogo. Para ela, embora tenha aumentado o diálogo, ainda, “o legado formalista e estruturalista predomina nos estudos da narrativa literária” (p. 84). Nesse sentido, assinala duas tendências: a cientificista, de muitos narratologistas, e a abordagem hermenêutica da narrativa. Destaca que a perspectva hermenêutica repousa em uma “dimensão existencial da narrativa que vai além do objetivo – ou, na melhor das hipóteses, marginal – à narratologia literária: Quem somos nós e quem podemos ser?” (p. 84) A fim de desenvolver a sua intensa análise, Meretoja vai em busca de consagrados pensadores do campo da narrativa, como: Barthes, Gadamer, Foucault, Ricouer, Bruner. Ilustra a sua análise no estudo da narrativa de obras literárias com o romance Submissão de Michel Houellebeck. Para a autora, estas reflexões se impõem no momento em que os estudos narrativos se expandem e se tornam cada vez mais interdisciplinares. Em sua visão, a análise das concepções de narrativa depende de como filosoficamente entendemos o que é real – isto é, quais são nossos pressupostos ontológicos (p. 86). No dizer de Meretoja (p. 86), os estudos narrativos literários têm negligenciado o significado ontológico-existencial. Para ultrapassar a tradicional visão da narrativa – “representação de eventos” –, sugere a de uma narrativa como “uma atividade interpretativa mediada pela cultura, dialógica e com forte carga ética”. O quinto artigo, de autoria de Munslow9, aborda os trabalhos narrativos na história, iniciando pelo relato do seu encontro com a história e a ciência política, desde o bacharelato até o doutorado, e interesse pela história americana do século XIX e início do século XX. Como escreve: “Eu era um intransigente “social science historian” que acreditava que o passado era história e história era o passado” (p. 108), quando leu um texto de Hayden White sobre a meta-história, apresentado por um colega. Descobriu que, para White, “o trabalho histórico” era uma forma de discurso narrativo; que:

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A história não é, portanto, uma descoberta – muito menos uma revelação no arquivo –


e que ele [Munslow]: tinha que entender a natureza epistemológica da “história como uma narrativa” [...] a estrutura profunda da imaginação histórica como um processo de criação narrativa [...]. (p. 109)

Retoma o argumento de White de que “‘histórias’ e ‘filosofias da história’ não apenas combinam dados e conceitos teóricos para ‘explicar’ o significado e a natureza do passado, mas são, na verdade, uma representação (simbólica) narrativa de “conjuntos de eventos” que ocorreram no passado” (p. 109). Entre as questões que atravessam o artigo, podem ser citadas: a relação (e significado) de passado-história-passado, quando afirma: “Meu julgamento (e muitos historiadores acadêmicos não concordarão) é que o passado não possui sua própria história que está esperando ser descoberta”. Argumenta este ponto e desenvolve extensa análise, mas ressalto a seguinte passagem: “Os dados são sempre de forma autoral, projetados, imaginados, calculados, construídos ou mesmo desconstruídos”, citando exemplos, como “uma História Social das Classes Trabalhadoras”. Outro ponto que ressalto é sobre o conceito de “espaço da estória narrativa do historiador”, ou seja, “um modelo de como, quando, o que, porque, onde e para quem os eventos aconteceram no passado” (grifos do

autor) (p. 114). Salienta, porém, que “uma narrativa autoral não é somente uma “story space”; ela é também um “discourse” (p.116). São muitos os aspectos analisados e difícil a tarefa de condensá-los sem perder a narrativa do autor, nos limites da resenha. Texto denso, mas, nas palavras do autor: “Posto brevemente, a forma da narrativa do historiador determina o significado e explicação do conteúdo do passado” (p. 121); e encerra advertindo que a “História não é principalmente a sobre[posição] do conteúdo à forma. História é sobre conteúdo e forma” (p. 123). Vários são os pontos positivos deste número: trabalhar com a noção de cruzamento de disciplinas, discutir inovações teóricas de como abordar as disciplinas, e ajudar a repensá-las como pesquisa e aplicação. É evidente o seu valor para estudos na área da saúde. Destaque-se a presença de autores de diferentes nacionalidades, que referenciam clássicos da narrativa, mas, dos europeus, a grande ausência é Walter Benjamin nos artigos que tratam de aspectos filosóficos e, em especial, sobre a experiência-narrativa, tão bem trabalhados pelo filósofo alemão. Outra observação é a de que alguns dos temas tratados não são estranhos (e já há algum tempo) à literatura brasileira. De forma apenas indicativa, podem ser citados: Antonio Candido10 e seus ensaios sobre literatura e sociedade e crítica literária; Ecléa Bosi11 e as memórias de velhos; Lília Blima Schraiber12, sobre médicos paulistas. Em todos eles, a narrativa é central.

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da história do passado, mas é a narrativa do historiador sobre o passado. (p. 109)


RESENHAS

Referências 1. Barthes R. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Barthes R, Greimas AJ, Bremond C, Eco U, Gritti J, Morin V, et al., organizadores. Análise estrutural da narrativa. Rio de Janeiro: Vozes; 1971. p. 19-62. 2. Narratives Works. Special Issue: Narrative across disciplines. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016 [citado 1 Jun 2017]; 6(1):1-125. Disponível em: https://journals.lib.unb.ca/index.php/NW/issue/ view/1900. 3. Baldwin C. Introduction to special issue: narrative across disciplines. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6(1):1-14. 4. Estefan A, Caine V, Clandinin DJ. At the intersections of narrative inquiry and professional education. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6(1):15-37. 5. Hyvärinen M. Narrative and sociology. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6(1):38-62. 6. Hyvärinen M. An introduction to narrative travels. In: Hyvärinen M, Korhonen A, Mykkänen J, editores. COLLeGIUM: studies across disciplines in the humanities and social sciences. Helsinki: University of Helsinki; 2006. v. 1, p. 3-9. 7. Medeiros K. Narrative gerontology: countering the master narratives of aging. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6 (1):63-81. 8. Meretoja H. Exploring the possible: philosophical reflection, historical imagination, and narrative agency. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6(1):82107. 9. Munslow A. Narrative works in history. Narrat Works Issues Investig Interv. 2016; 6(1):108-25. 10. Candido A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática; 1987. 11. Bosi E. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras; 1997. 12. Schraiber LB. Medicina liberal e tecnologia: as transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da USP; 1988.

Submetido em 15/09/17. Aprovado em 02/10/17.

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DOI: 10.1590/1807-57622017.0091

notas breves

Centenário do livro Remaking a man: one successful method of mental refitting Centennial of the book Remaking a man: one successful method of mental refitting Centenario del libro Remaking a man: one successful method of mental refitting

Sanyo Drummond Pires(a)

Aproximamo-nos do centenário do livro Remaking a man: one successful method of mental refitting (publicado originalmente, em 1919, pela editora Mofatt, com várias edições posteriores em diferentes editoras(b)), de Courtenay Baylor1, e este permanece um ilustre desconhecido na comunidade acadêmica brasileira. No entanto, esse desconhecimento não reflete sua importância, sobretudo para aqueles que se interessam pela compreensão da construção histórica do conceito de alcoolismo e da institucionalização das suas formas de tratamento. O livro deve ser compreendido dentro do que se convencionou chamar Movimento Emmanuel, surgido no período da Lei Seca americana, que articulava o acúmulo de movimentos religiosos de acolhimento e tratamento de alcoolistas com os avanços conceituais e metodológicos da Medicina e da Psiquiatria (incluindo a psicanálise e a hipnose) da época para o tratamento da dependência química2. Porém, mais do que isso, o livro ganha importância por ser a primeira formulação de uma perspectiva terapêutica na qual a experiência como alcoolista figura como elemento para a compreensão do fenômeno do alcoolismo e a capacidade de atuação como terapeuta para outros alcoolistas. Sendo o livro inaugural de um novo movimento decorrente do Movimento Emmanuel, que ficou conhecido como Lay Therapy (terapia leiga), o livro traz concepções que vão servir de base para a estruturação de movimentos como os Alcoólatras Anônimos (e suas derivações) e os sistemas americanos de counseling na área da Saúde (e, especialmente, da Saúde Mental e dependência química). Baylor, um alcoolista que passa pelo processo de tratamento na clínica do Movimento Emmanuel, ao conseguir manter a sobriedade, passa a trabalhar na própria clínica, a princípio, em atividades sociais e, posteriormente, como o primeiro terapeuta leigo (a clínica era composta, sobretudo, por médicos e psiquiatras, que trabalhavam a partir da perspectiva da medicina da época, e por pastores, a partir do acolhimento e aconselhamento religioso). O livro é então uma compilação de suas ideias, que aproveita as discussões anteriores do Movimento Emmanuel, inserindo a compreensão vivencial tanto do alcoolismo quanto do seu processo de recuperação. A principal mudança é a do foco do processo interventivo, que deixa de ser comunitário para se tornar mais clínico e

CC

BY

(a)

Curso de Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados. Rodovia Dourados / Itahun, Km 12, Unidade II. Dourados, MS, Brasil. 79804-970. sanyopires@ufgd.edu.br

O livro, bem como outros textos de Baylor e de outros autores do Movimento Emmanuel ou de outros movimentos ligados ao alcoolismo, podem ser facilmente acessados no site Silkworth.net. Para o livro Remaking a man, consultar http://silkworth. net/emmanuel_movement/01011.htm (b)

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NOTAS BREVES

individual, embora mantendo, como atividades acessórias à clínica, a análise e intervenções no ambiente familiar, social e do trabalho do alcoolista. O livro é dividido em duas partes. A primeira, composta de cinco sessões, discorre sobre aspectos teóricos da dependência química. A segunda (intitulada Illustrative cases coment) é composta de casos de pacientes, onde são explicitados aspectos relacionados aos procedimentos de tratamento. Na parte teórica, o autor mantém alguns conceitos desenvolvidos anteriormente na clínica Emmanuel, especialmente os desenvolvidos por Worcester et al.3. Desses, o mais importante é a noção de neurose alcoolista. Essa se caracteriza como a manutenção da percepção equivocada do mundo e da realidade, causada pela embriaguez, também nos períodos de sobriedade. Esse modelo de percepção distorcido da realidade vai então se expandindo aos poucos, em função de fornecer uma forma de não precisar lidar com os elementos concretos e as tensões da vida cotidiana. Tal fato é sustentado por um conjunto de conceitos negativos de si mesmo, que instaura a tensão entre a realidade e a percepção da real capacidade de lidar com ela. Tem-se, então, duas fontes de tensão: a primeira, decorrente da relação do sujeito com o mundo, e a segunda, decorrente do conflito entre essa percepção negativa de si e de sua capacidade de lidar com as situações cotidianas, e a percepção de sua real capacidade de lidar com elas. Essa segunda se configura como o núcleo da neurose alcoolista, e estabelece um ciclo que se retroalimenta, com sentimentos de culpa que geram mais percepções negativas de si, e que levam o sujeito a buscar cada vez mais o álcool como forma de alívio dessas tensões. Todo esse processo é pensado a partir das noções de inconsciente, de uma nascente psicanálise, ainda mesclada com as perspectivas de tratamento a partir da hipnose. O tratamento proposto vai basear-se, sobretudo: na superação, por meio de técnicas de sugestão e autossugestão, da tensão decorrente da percepção da incapacidade de lidar com as demandas da realidade (que é a causa imediata da busca do álcool, para alívio da mesma); na substituição das percepções negativas em relação a si mesmo por percepções mais positivas, e na identificação de aspectos do ambiente que levem a desencadear o aumento de tensão, para buscar modificá-los ou evitá-los. O autor também incorpora as noções de resistência, da psicanálise, que permeariam o tratamento, e a necessidade de adesão voluntária ao tratamento. Na segunda parte do livro, o autor discute quatro casos, mostrando aspectos variados que vão exemplificar tanto as causas e formas de ocorrência da neurose alcoolista, quanto as formas de tratamento mais adequadas em cada caso. Na descrição desses casos, fica mais explícito o distanciamento, tanto em relação ao discurso de aconselhamento religioso quanto em relação ao discurso médico, onde a experiência de vivenciar também a dependência química fornece chaves de interpretação do sofrimento que o sujeito vivencia bem como a construção de um ponto de referência a ser alcançado, que vai nortear o tratamento. Articulando elementos da Psiquiatria, Psicanálise, hipnose, orientação espiritual e assistência social, o livro é uma leitura interessante para os interessados na história do tratamento do alcoolismo; e, também, para os que querem analisar formas já experimentadas historicamente para se compreenderem suas retomadas na atualidade, retomadas essas, na maioria das vezes, desconhecedoras de sua pertença a uma tradição de reflexão e prática de tratamento do alcoolismo e da dependência química.

Referências 1. Baylor C. Remaking a man: one successful method of mental refitting. New York: Mofatt; 1919. 2. Dubiel RM. The road to fellowship: the role of Emmanuel Movement and the Jacoby Club in the development of Alcoholics Anonymous. New York: Universe Inc; 2004. 3. Worcester E, McComb S, Coriat IH. Religion and medicine: the moral control of nervous disorders. New York: Moffat; 1908. Submetido em 28/02/18. Aprovado em 26/03/18.

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No dossiê “Care in the time of Zika: notes on the ‘afterlife’ of the epidemic in Salvador (Bahia), Brazil”, com número de DOI: 10.1590/1807-57622017.0856, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação 2018; 22(66):685-96, p. 685 onde se lia: Key words: Zika. Time. Deficiency. Maternity. Anthropology. leia-se: Key words: Zika. Time. Disability. Maternity. Anthropology.

CC

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errata

DOI: 10.1590/1807-57622018.0218



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