v.17 n.46, jul./set. 2013

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Margareth Santini de Almeida, Unesp Túlio Batista Franco, UFF Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Eunice Nakamura, Unifesp Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Márcia Thereza Couto Falcão, USP Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Quarentei Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Renata Monteiro Buelau, USP

Capa/Cover/Portada: Foto de Renan Tobias Duarte e Nara Mitiru de Tani Isoda, 2010

P ES M FA

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Denise Martin Coviello, Unifesp Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elen Rose Lodeiro Castanheira, Unesp Eliane Dias de Castro, USP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Jairnilson da Silva Paim, UFBa José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luciana Kind do Nascimento, PUC/MG Luis Behares,Universidad de la Republica Uruguaia Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Mara Regina Lemes de Sordi, Unicamp Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS/OMS, Argentina Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Dionísia do Amaral Dias, UNESP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Marilia Freitas de Campos Tozoni Reis, Unesp Marina Peduzzi, USP Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Passos Nogueira, IPEA, DF Roger Ruiz-Moral, Universidade de Córdoba, Espanha Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Simone Mainieri Paulon, UFRGS Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Vânia Moreno, Unesp PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Mariângela Quarentei, Unesp Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro


ISSN 1807-5762

ESTILOS DE VIDA

A NCI Ê L VIO

RESISTÊNCIA PARTICIPAÇÃO RIZOMÁTICA

SAÚDE

A API R E T FITO

NAR RAT IVAS

IDENTID ADE

DROGAS

R CILIA I M O D VISITA

TABAGISMO FEMININO EXPERIÊNCIA NEUROFARMACOLOGIA

COMUNICAÇÃO

ENVELHECER

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

INTERSETORIALIDADE

VÍTIMAS

DIREITOS HUMANOS

AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE

ALEG RIAS

TR IST EZ AS

FEMICÍDIOS

EDUCAÇÃO

MORADIA

v.17, n.46, jul./set. 2013


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, v.17, n.46, jul./set. 2013 Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

educação

v.17, n.46, jul./set. 2013 ISSN 1807-5762

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apresentação dossiê

649 Impacto de la visita domiciliaria familiar en el aprendizaje de los estudiantes de medicina en el área de Pediatría Social

Leonor Angélica Galindo Cárdenas; Miglena Kambourova; Liliana Zuliani Arango; María Eugenia Villegas Peña

sobre Violência 515 Diálogos sobre a noção de vítima e construção da identidade Letícia Rodrigues de Azevedo

661 Marcas no corpo, cansaço e experiência: nuances do envelhecer como professor de Educação Física

Sílvia Maria Agatti Lüdorf; Francisco Javier Guerrero Ortega

523 Femicídios: narrativas de crimes de gênero

Stela Nazareth Meneghel; Roger Flores Ceccon; Lilian Zielke Hesler; Ane Freitas Margarites; Stefania Rosa; Valmir Dorn Vasconcelos

535 O desafio de compreender a consequência fatal da violência em dois municípios brasileiros Juliana Guimarães e Silva; Fabiana Castelo Valadares; Edinilsa Ramos de Souza

artigos

espaço aberto 677 O silêncio dos inocentes: por um estudo narrativo da prática médica

Fabiana Buitor Carelli; Carlos Eduardo Pompilio

683 Comunicação, humanidades e humanização: a educação técnica, ética, estética e emocional do estudante e do profissional de saúde

Mario Alfredo De Marco; Mariella Vargas Degiovani; Miriam Sansoni Torossian; Rudolf Wechsler; Silvia Mara Herbelha Joppert; Ana Cecília Lucchese

549 Construção da identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil: uma revisão da literatura

Vinício Oliveira da Silva; Isabela Cardoso de Matos Pinto

561 Movimentos de resistência no Sistema Único de Saúde (SUS): a participação rizomática

Bruna Ceruti Quintanilha; Francis Sodré; Maristela Dalbello-Araujo

575 Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos

695 Prevención del consumo problemático de drogas en la escuela: estrategia de formación docente en Argentina utilizando TIC Ana Clara Camarotti; Ana Lía Kornblit; Pablo Francisco Di Leo

705 O uso de filmes como recurso pedagógico no ensino de neurofarmacologia Setsuko Noro dos Santos; André Noro

Heletícia Scabelo Galavote; Túlio Batista Franco; Rita de Cássia Duarte Lima; Antônio Márcio Belizário

587 Comunicación para la salud y estilos de vida saludables: aportes para la reflexión desde la salud colectiva Soledad Rojas-Rajs; Edgar Jarillo Soto

601 Confluindo gênero e educação popular por meio de uma pesquisa-ação para a abordagem do tabagismo feminino em contextos de vulnerabilidade social Márcia Terezinha Trotta Borges; Regina Helena Simões Barbosa

615 Contribuições das plantas medicinais para o cuidado e a promoção da saúde na atenção primária Gisele Damian Antonio; Charles Dalcanale Tesser; Rodrigo Otávio Moretti-Pires

635 Subsídios para a diversificação de moradias destinadas a pessoas com transtorno mental grave no Brasil: uma revisão Juarez Pereira Furtado

entrevista 715 A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação: entrevista com Yrjö Engeström Monica Lemos; Marco Antonio Pereira-Querol; Ildeberto Muniz de Almeida

729

livros

737

teses criação

743 composições... palavras... imagens... costuras...

Eliane Dias de Castro; Eliane Dias de Castro; Nara Mitiru de Tani Isoda; Renan Tobias Duarte; Sandra Maria Galheigo; Eduardo Augusto Alves de Almeida


comunicação

saúde

educação

v.17, n.46, jul./set. 2013 ISSN 1807-5762

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presentation

649 Impact of family home visits on medical students’ learning in the field of social pediatrics

Leonor Angélica Galindo Cárdenas; Miglena Kambourova; Liliana Zuliani Arango; María Eugenia Villegas Peña

dossier on Violence 515 Dialogues on the notion of victim and identity construction

661 Marks on the body, fatigue and experience: nuances of aging as a physical education teacher

Sílvia Maria Agatti Lüdorf; Francisco Javier Guerrero Ortega

Letícia Rodrigues de Azevedo

523 Femicide: narratives of gender crimes

Stela Nazareth Meneghel; Roger Flores Ceccon; Lilian Zielke Hesler; Ane Freitas Margarites; Stefania Rosa; Valmir Dorn Vasconcelos

535 The challenge of understanding the fatal consequences of violence in two Brazilian municipalities

Juliana Guimarães e Silva; Fabiana Castelo Valadares; Edinilsa Ramos de Souza

articles 549 Construction of the identity of Public Health players in Brazil: a review of the literature

Vinício Oliveira da Silva; Isabela Cardoso de Matos Pinto

561 Resistance movements in the Brazilian National Health System (SUS): rhizomatic participation

open space 677 The silence of the innocents: for a narrative study of medical practice Fabiana Buitor Carelli; Carlos Eduardo Pompilio

683 Communication, humanities and humanization: technical, ethical, esthetic and emotional education for students and healthcare professionals

Mario Alfredo De Marco; Mariella Vargas Degiovani; Miriam Sansoni Torossian; Rudolf Wechsler; Silvia Mara Herbelha Joppert; Ana Cecília Lucchese

695 Prevention of problematic drug use in schools: teacher training strategy in Argentina using ICT Ana Clara Camarotti; Ana Lía Kornblit; Pablo Francisco Di Leo

705 The use of films as an educational resource on neuropharmacology teaching Setsuko Noro dos Santos; André Noro

Bruna Ceruti Quintanilha; Francis Sodré; Maristela Dalbello-Araujo

575 Joy and sadness in the daily activities of community health agents: scenarios of passions and emotions Heletícia Scabelo Galavote; Túlio Batista Franco; Rita de Cássia Duarte Lima; Antônio Márcio Belizário

interview 715 The Historical-Cultural Activity Theory and its contributions to Education, Health and Communication: interview with Yrjö Engeström Monica Lemos; Marco Antonio Pereira-Querol; Ildeberto Muniz de Almeida

587 Joy and sadness in the daily activities of community health agents: scenarios of passions and emotions Soledad Rojas-Rajs; Edgar Jarillo Soto

601 Converging gender and popular education through action research to address female smoking within contexts of social vulnerability Márcia Terezinha Trotta Borges; Regina Helena Simões Barbosa

615 Contributions of medicinal plants to care and health promotion in primary healthcare

Gisele Damian Antonio; Charles Dalcanale Tesser; Rodrigo Otávio Moretti-Pires

635 Support for diversification of housing for people with severe mental disorders in Brazil: a review Juarez Pereira Furtado

729

books

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theses creation

743 compositions ... words ... images ... stitching ...

Eliane Dias de Castro; Eliane Dias de Castro; Nara Mitiru de Tani Isoda; Renan Tobias Duarte; Sandra Maria Galheigo; Eduardo Augusto Alves de Almeida


apresentação

É com prazer que apresentamos um novo fascículo (n.46) da revista Interface Comunicação, Saúde e Educação. O Dossiê sobre Violência brinda os leitores com três artigos, com aspectos originais e inovadores, que avançam a discussão nesta área que é central no debate sobre Direitos Humanos e Saúde Coletiva, desde a década de 1990. O primeiro deles problematiza e trabalha a noção de vítima e a construção da identidade. A problemática surge dentro de uma pesquisa empírica sobre assaltos relâmpagos, e traz interessante e oportuna reflexão para todo o campo de saberes e práticas ligados ao problema da violência como temática, também, da saúde. O segundo artigo trata de visibilizar a morte de mulheres que podem ser classificadas como femicídios, enfatizando a natureza política destes crimes e o seu caráter de mortes evitáveis. A partir de um estudo qualitativo sobre os dados de inquéritos em Delegacias de Defesa da Mulher, somos apresentados à crueldade e misoginia envolvidas nestes assassinatos, agora reconceituados como femicídios. Um estudo que trata do desafio de compreender as consequências fatais da violência em dois municípios brasileiros é o terceiro artigo do Dossiê. Usa o modelo ecológico e a metodologia qualitativa (com triangulação com dados quantitativos de um estudo maior no qual está inserido) para abordar as dimensões individuais, relacionais, comunitárias e sociais do fenômeno. Interface traz, também, estudos críticos relativos à participação popular no SUS para além das já instituídas (conceituadas como movimentos de resistência, ou participação rizomática), e revisões de literatura sobre a identidade dos atores de Saúde Coletiva no Brasil e sobre as ações de moradias destinadas a pessoas com transtorno mental no Brasil. Além disto, há trabalhos abordando comunicação e educação em saúde de diversas perspectivas: uma pesquisa-ação sobre tabagismo feminino, enfatizando a importância do conhecimento compartilhado e da integração entre o saber acadêmico e o saber popular; uma revisão dos programas e ações de fitoterapia no SUS, ressaltando a importância de compor as perspectivas intersetoriais e de participação comunitária com a incorporação de fitoterapias; e outro artigo sobre a importância de ampliar a maneira em que a comunicação em saúde é concebida em relação aos chamados “estilos de vida saudáveis” e sua promoção, a fim de ir além de uma visão instrumental de sua concepção e exercício. Em relação à dimensão da formação, há um interessante estudo sobre os significados que professores de Educação Física atribuem ao corpo e ao envelhecimento, e como estas representações influenciam na prática profissional; e outro acerca da visita domiciliar e seu impacto na formação humanista e social dos alunos. Por último, há um trabalho sobre alegrias e tristezas no trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde, analisado a partir de Espinosa. Como se pode notar, esta edição confirma, mais uma vez, a criatividade e vigor do campo, pela originalidade e perspectiva crítica dos artigos publicados. Completam o número: o Espaço Aberto, as resenhas de livros e resumos de teses, e uma interessante entrevista, realizada em 2012, em Helsinki, Finlândia, com o pesquisador Yrjö Engeström acerca da “Teoria da Atividade Histórico-Cultural”. Baseada nas contribuições de Vigostky, a entrevista detalha aspectos da terceira geração desta teoria e suas aplicações na pesquisa em educação, saúde e comunicação. Desejamos uma boa leitura, e que este conjunto de textos contribua, a partir da reelaboração que cada um fará, para novos questionamentos e críticas, articulados à transformação das práticas. Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira editora de área

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.46, p.513, jul./set. 2013

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presentation

We have the pleasure of presenting a new edition (n.46) of the journal InterfaceComunicação, Saúde e Educação. The Dossier on Violence provides readers with three articles of an original and innovative nature that move the discussion forward in this field, which has been central to the debate on human rights and public health since the 1990s. The first of these raises and addresses the issues of the notion of victim and construction of identity. This question arose within an empirical investigation on “lightning” assaults and brought out some interesting and opportune reflections for the whole field of knowledge and practices relating to the problem of violence as a topic that also correlates with health. The second article deals with giving visibility to deaths of women that can be classified as femicides, with emphasis on the political nature of these crimes and their characteristic of avoidable death. This study, of qualitative nature on data surveyed at police departments for women’s defense, presents to us the cruelty and misogyny involved in these murders, which are here reconceptualized as femicides. The third article of this dossier deals with the challenge of understanding the fatal consequences of violence in two Brazilian municipalities. It uses an ecological model and qualitative methodology (with triangulation with quantitative data from a larger study that it forms part of) in order to cover the individual, relational, community and social dimensions of the phenomenon. This edition of Interface also brings us critical studies relating to popular participation in SUS going beyond what has already been instituted (conceptualized as resistance movements or rhizomatic participation), and reviews of the literature on the identity of public health players in Brazil and on housing actions destined towards people with mental disorders in Brazil. Furthermore, there are studies covering health communication and education from several perspectives: an article on action research relating to female smoking, with emphasis on the importance of shared knowledge and integration between academic and popular knowledge; a review on phytotherapy programs and actions within SUS, with emphasis on the importance of forming intersectoral perspectives and having community participation with incorporation of phytotherapy; and another article on the importance of expanding the way in which health communication is conceived in relation to so-called “healthy lifestyles” and their promotion, so as to go beyond an instrumental view of how this communication is conceived and implemented. In relation to the dimensions of training, there is an interesting study on the meanings that physical education teachers attribute to the body and to aging, and how these representations influence their professional practice. Another study deals with home visits and their impact on students’ humanistic and social training. Lastly, there is a study on joy and sadness in the work of community health agents, with analysis based on Espinosa’s theory. As can be seen, this edition once again confirms the creativity and vigor of the field, through the originality and critical perspective of the articles published. This edition is completed with the Open Space section, book reviews and thesis abstracts, and also with an interesting interview that was conducted in Helsinki, Finland, in 2012, with the researcher Yrjö Engeström on the “Cultural-Historical Activity Theory”. Based on the contributions from Vigostky, the interview details aspects of the third generation of this theory and its applications within research on education, health and communication. We hope that you enjoy reading this edition, and that this set of texts will contribute, through each individual’s reassessment of the material, towards raising new questions and critiques that link to transformation of practices. Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira Area Editor

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.46, p.514, jul./set. 2013


dossiê

Diálogos sobre a noção de vítima e construção da identidade Letícia Rodrigues de Azevedo1

AZEVEDO, L.R. Dialogues on the notion of victim and identity construction. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.515-22, jul./set. 2013.

This study was developed because of the need to analyze and question the notion of victim, in the context of the emergence of use of this term over recent decades, as an identifier for subjects and experiences. While conducting a research project dealing with victimization resulting from “lightning kidnapping” and the repercussions of these events on victims’ health, we were faced with the need to discuss the use of this term and other intertwined issues: “would this be a lifelong identity attribute?” and “what importance does becoming a victim have on people’s lives?”, among other issues. In this regard, we proposed this paper in order to analyze and question the notion of victim, and to discuss this as an identity trait, with the intention of stimulating possible reflections on this topic.

Este ensaio surge da necessidade de se problematizar a noção de vítima perante a emergência do uso deste termo nas últimas décadas, como identificador de sujeitos e experiências. Em plena realização de um projeto de pesquisa que trata da vitimização pelo sequestro relâmpago e suas repercussões à saúde das vítimas, nos deparamos com a necessidade de discutir o uso deste termo e outras questões imbricadas: “seria esse um atributo identitário vitalício?”, “qual o peso que a vitimização tem na vida das pessoas?”, entre outras. Nesse tocante, propomos este texto para problematizar a noção de vítima, discutindo-a como um traço identitário, na intenção de estimular possíveis reflexões sobre o tema.

Palavras-chave: Vítima. Identidade. Interação. Narrativa.

Keywords: Victim. Identity. Interaction. Narrative. 1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário do Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-040. leticiadeazevedo@ gmail.com

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.46, p.515-22, jul./set. 2013

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DIÁLOGOS SOBRE A NOÇÃO DE VÍTIMA ...

Vítimas e identidades Numa perspectiva mais jurídica, a vítima seria aquele que sofre ação – o sujeito passivo, ofendido – ou omissão do autor de algum delito – o sujeito ativo, agente da ação (Kosovski, 2012). Essa definição tem seus limites, já que traz um recorte dicotômico e estanque da dinâmica delituosa – o ativo e o passivo da ação – e deixa de englobar elementos mais sutis como: a construção social desses papéis e possíveis sobreposições entre eles, as subjetividades desses atores, ou, mesmo, a experiência decorrente da interação entre eles. Mendes (2002), em sua rica discussão sobre identidade(s), salienta que, segundo Stuart Hall, em sua obra “Stitching yourself in place”, identidade seria um conceito importante, pois funciona como articulador entre os discursos e práticas que nos interpelam. As identidades seriam relacionais, múltiplas e narrativamente construídas, e as interações teriam papel fundamental no processo (Mendes, 2002). Ao trazer à tona a importância das interações para essa discussão, Mendes (2002) evidencia pressupostos do interacionismo simbólico, corrente teórica que salienta a importância do sentido que as coisas têm para o comportamento humano, concebendo o sentido como emergente do processo de interação entre as pessoas (Haguette, 2005, p.35-6): “[...] o ator seleciona, checa, suspende, reagrupa e transforma os sentidos à luz da situação na qual ele está colocado e da direção de sua ação. A interpretação é, pois, um processo formativo, e não uma aplicação sistêmica de sentidos já estabelecidos”. O trecho acima salienta a construção dos sentidos e significados como processual e contínua, em que a ação do outro é fundamental para a transformação dos sentidos. Assim, para Mead, precursor do Interacionismo Simbólico, “a ação de cada um só obteria seu sentido através da ação do outro” (Carvalho, Borges, Rêgo, 2010, p.150-1). Podemos entender que o reconhecimento de um sujeito como vítima não seria algo dado e estabelecido, seria um sentido formulado e redefinido de modo dinâmico no processo interacional. Para Goffman (2009), o comportamento humano seria análogo a uma representação teatral, em que cada ator da interação agiria ciente de que o outro ator tentará antecipar suas decisões de ação. E, assim, os “cursos de ação ou movimentos serão feitos à luz dos pensamentos que um tem em relação aos pensamentos que o outro tem sobre o primeiro” (Goffman, 1970, p.101). Nesse sentido, as informações exerceriam um papel central na interação, já que “serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar. Assim informados, saberão qual a melhor maneira de agir para dele obter uma resposta desejada” (Goffman, 2009, p.11). Imaginemos a seguinte situação: uma mulher grávida de cinco meses retorna da aula de Pilates e vai ao banco fazer um pagamento. Ao sair do banco, por volta das 19h, ela é capturada por dois homens, que a mantêm cativa por mais de duas horas. Ela é vítima (direta) da criminalidade tão discutida nos dias atuais. Espera-se que ela se enraiveça, sinta-se injustiçada e/ou entristecida, que demonstre isso em verbalizações e em comportamentos/comunicação não verbais (formas de se vestir, de olhar, expressões corporais). Esta seria a fachada pessoal explicitada por Erving Goffman, que se refere ao “equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante a representação” (2009, p.31). Sem essa fachada, sua representação como vítima torna-se incongruente; a face de vítima deve ser mantida e acreditada. Mas em que medida essa fachada e a manutenção da face de vítima se prolongam e tornam-se parte da identidade desses sujeitos? Segundo Erving Goffman, as “identidades são múltiplas, flutuantes e situacionais” (citado por Mendes, 2002, p.506). Nossa personagem acima é real, sendo retratada em Azevedo (2011) como Milena. Ela é mulher, casada, é (quase) mãe, tem certa cor, certa posição social, é professora, é socióloga, tem uma crença religiosa, faz parte de uma determinada família, vive em uma vizinhança, gosta de certas coisas, desgosta de outras, escolheu alguns caminhos de vida e abandonou outros, e assim por diante. Alguns desse traços são mais fluidos e manejáveis do que outros, mas, por fim, ela é resultado desta rede ou matriz de relações, de um cenário relacional (Somers, 1994), numa “concepção relacional de pluralidade de subidentidades” (Mishler, 2002, p.110). 516

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v.17, n.46, p.515-22, jul./set. 2013


AZEVEDO, L.R.

dossiê

Todos esses elementos repercutem na noção que esta nossa personagem tem e terá sobre o “ser vítima”, o “não ser vítima”, ou qualquer gradação entre esses dois extremos. Assim, ela estaria, conforme Schwalbe, em constante movimento de “integração da multiplicidade de pertenças sociais e papéis a que está submetido” (Mendes, 2002, p.509-10). Ser vítima de assalto de rua difere de ser vítima de abuso sexual infantil. A construção da identidade de vítima é passível de existir para ambos os sujeitos exemplificados acima, mas a legitimação dessa identidade (por si e pelos outros), assim como o desempenho dessa identidade (a representação para Goffman) e sua manutenção podem ter intensidade e “aparências” bastante distintas. Assim, a noção de “ser vítima” agrupa um espectro sem fim de possibilidades; as experiências são plurais. Uma determinada situação pode se traduzir como evento vitimizador para alguns, e não para outros. Assim como aquele, que se sente vítima em determinada situação, pode perceber-se ofensor em outras; e vice-versa. Como exemplo, Marongiu e Clarke (1993) explicam a relação entre sequestrador-sequestrado como sendo movida pela “inveja hostil” do primeiro em relação ao segundo. Por conta disso, o sequestrador pode empregar o uso desproporcional de “violência irracional”, que teria como função levar o objeto invejado (o sequestrado) à sua destruição econômica, psicológica e física; que, então, deixaria de ser invejado. Os sequestradores perceber-se-iam como vítimas de problemas políticos, sociais ou econômicos que são produzidos – ou representados – pela pessoa sequestrada. Nesse sentido, o sequestrador despersonaliza o sequestrado, percebendo-o como causador das suas mazelas, e, então, entra num ciclo de violência brutal “justificável” (Marongiu, Clarke, 1993). Parece-nos que qualquer um pode, em alguma medida, se perceber como vítima (talvez mais raramente percebem-se como ofensores). O estatuto de “ser vítima” – e.g. vítima da criminalidade urbana, vítima de violência doméstica, vítima do abuso da autoridade policial, vítima de assédio moral no trabalho etc., etc. – representa um status, hoje legítimo, de direito violado. Numa época de globalizações, isto é, de intensificações dos fluxos econômicos, políticos, culturais e simbólicos a nível mundial, as pessoas e os coletivos vêem alargado o leque dos possíveis e dos recursos disponíveis para a elaboração dos argumentos que justificam as suas identidades e os seus processos de identificação. (Mendes, 2002, p.503-4)

É assim que, na contemporaneidade, políticas públicas e movimentos de defesa de vítimas de violência representam esse fluxo político e simbólico intensificados na esfera da violência. Se há um século não se falava em direitos da criança e do adolescente, hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente os protege, como sujeitos de direitos e saberes, e torna qualquer violação desses direitos passível de punição pelo Estado. Para Sarti (2011), a noção de vítima na sociedade contemporânea é uma resposta aos “anseios de democracia” e surge como “forma de legitimação moral das demandas sociais” (p.51). Assim, a noção de vítima se fortalece em uma nova conjuntura social resultante dos avanços no campo dos direitos humanos e violência, e ganha força política. Nessa conjuntura, a noção de “ser vítima” não se constrói por acaso, ela faz parte de uma “construção social e histórica” (Sarti, 2011, p.51) localizada. De modo análogo, Mendes (2002, p.505) salienta para a importância das questões de poder e desigualdades no processo identitário: “A posição no espaço social, o capital simbólico de quem diz o quê, condiciona a construção, legitimação, apresentação e manutenção das identidades.” Nesse tocante, Sarti (2011, p.55) nos esclarece que o diagnóstico do Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um “importante articulador ideológico da produção da noção de vítima de violência no mundo contemporâneo”. É a legitimação política, moral, e social das violências e suas consequências aos sujeitos que a experienciam. Nesse sentido, também se deu a necessidade de nomeação dessa experiência de “vitimização” e ser “vítima”. É este nome que permite aos sujeitos dar um sentido ao que foi vivido, ao mesmo tempo que os sujeitos reformulam os sentidos deste termo, num processo fluido de ressignificações. É também a possibilidade desta nomeação que aproxima sujeitos com experiências semelhantes de violação em busca de reparação – como a busca das “mães da praça de maio” por seus filhos desaparecidos à época COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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DIÁLOGOS SOBRE A NOÇÃO DE VÍTIMA ...

da ditadura argentina, e as versões brasileiras das “mães da praça da Sé” em São Paulo, que criaram a ABCD (Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas), e das “mães da Cinelândia”, no Rio de Janeiro. Assim, reconhecemos que a noção de vítima vem como um “reconhecimento social pelo sofrimento [...], uma maneira de dar inteligibilidade ao sofrimento de segmentos sociais específicos, em contextos históricos precisos, [...] conferindo legitimidade moral às suas reivindicações” (Sarti, 2011, p.54).

Vítimas, identidades e narrativas As narrativas seriam um “modo fundamentalmente humano de dar significado/sentido à experiência” (Garro, Mattingly, 2000, p.1). Elas são construídas e constroem (Garro, Mattingly, 2000) e podem ser uma forma de acesso ao sistema simbólico dos sujeitos, que Sarti (2011) aponta como essencial à análise do sofrimento associado à violência. As narrativas centrais e discursos públicos forneceriam “recursos individuais e coletivos para afirmar ou reafirmar essas identidades” (Mendes, 2002, p.506). As narrativas públicas seriam aquelas “narrativas atreladas a formações culturais e institucionais, maiores que o indivíduo único”. Vão desde narrativas da própria família, do local de trabalho (mitos organizacionais), igreja, governo e nação (Somers, 1994). Assim, as concepções atuais sobre vítima e vitimização compõem narrativas públicas contemporâneas e, na dinâmica relacional das interações, acabam por fornecer os “recursos” aos indivíduos para construírem continuamente suas identidades através de suas narrativas ontológicas. Para Somers (1994, p.618): A localização da narrativa dota os atores sociais com identidade – sendo ela múltipla, ambígua, efêmera, conflitante. [...] narrativas ontológicas só podem existir de modo interpessoal no decurso das interações sociais e estruturais ao longo do tempo. Para ter certeza, os agentes ajustam histórias para atender suas próprias identidades, e, em contrapartida, eles costuram a “realidade” sob medida para atender suas histórias.

A autora evidencia, entre outras coisas, a dimensão temporal das narrativas e, por conseguinte, das identidades. Nesse sentido, podemos pensar que a narrativa ontológica dos sujeitos que envolve sua vivência de vitimização, os guia no entendimento de si como “vítimas”; entretanto, essa identidade de vítima se modifica, se reformula com as infindáveis narrativas biográficas desses sujeitos. Em outras palavras, “narrativas ontológicas não são a priori tampouco fixas. Elas formam a identidade e o self que alguém se torna” (Somers, 1994, p.618). As narrativas sempre se renovam, renovando consigo as identidades do sujeito e vice-versa, num fluxo de idas e vindas infindável. Nesse sentido, a vítima em mim de ontem é diferente da vítima em mim de hoje, que é diferente da vítima em mim de amanhã. Daí, surge-nos outra questão de interesse: seria a existência da categoria “vítima” um traço identitário vitalício? Os autores (Mendes, 2002; Mishler, 2002; Somers, 1994) parecem concordar que não existe uma identidade única, essencialista e estável do sujeito, existem, sim, identidades múltiplas e em constante mutação, que se formam no cenário relacional dos sujeitos, em viva interação com os outros. O diálogo com os outros é essencial na construção da consciência de cada indivíduo, diálogo que é multivocal e que se produz na interseção de forças centrípetas (necessidade de se ligar ao outro) e de forças centrífugas (necessidade de diferenciação do outro). (Mendes, 2002, p.505, 518)

Sofrer algum tipo de violência, seja em um evento único ou de modo contínuo e duradouro, passa a ser parte da experiência de vida dos sujeitos vitimizados. Isto tem implicações que repercutem na construção de identidade a partir do contraste com o eu-anterior (o eu-não-vítima), o outro-não-vítima, o outro-ofensor, os muitos outros desse eu. É esta a dinâmica que permite, aos sujeitos, significar sua experiência e constituir a si mesmos. 518

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Voltemos ao caso de Milena mencionado anteriormente. Ela expressa ter sofrido um sequestro relâmpago com tentativa de estupro. Antes deste evento, ela tentara engravidar durante alguns anos consecutivos e, finalmente, conseguira gerar uma criança quando, em seu quinto mês de gestação, foi submetida a episódios de violência psicológica agravados pela sucessão de agressões físicas e violência sexual (Azevedo, 2011). Sofrer tais violências nestas circunstâncias – “vulnerável por ser mulher e vulnerável porque está carregando um bebê” (Milena) – poderia repercutir em perder seu filho, fruto de muito investimento emocional e econômico. Ela relata um profundo sofrimento persistente, que acredita ser incompreendido por seus familiares e por desconhecidos. Por fim, ela acredita ter deixado para trás a “mulher brava” que costumava ser (sendo reconhecida como tal), e passa a identificar-se como uma mulher “paranoica” (Azevedo, 2011, p.159). Estaria esta narrativa representando a “verdadeira” Milena, então? A paranoica? Ou seria ela “no fundo” ainda a mulher brava? Mendes (2002, p.506) nos diria que “a identidade pessoal articula-se na dimensão temporal, num projeto de vida. Esta permanência no tempo, a relação da identidade pessoal com o tempo, pode ser entendida como um trabalho constante num espectro de variações, como uma síntese do heterogêneo”. Sarti (2011, p.57) também coloca em evidência a dimensão temporal e o contexto da narrativa, argumentando que “a dor da violência, como experiência traumática, pode [...] ser ressignificada em momentos posteriores de elaboração, o que torna relevante o contexto de sua manifestação e o de sua elaboração, a partir do discurso de quem fala”. Identidade e tempo caminham juntos. Se Milena era brava e hoje é paranoica, amanhã ainda é uma interrogação. Somers (1994, p.621) contribui: A abordagem da identidade narrativa incorpora o ator dentro de relacionamentos e histórias que mudam ao longo do tempo e do espaço. Assim, evita a estabilidade categórica em ação. Estas mudanças de configurações temporal e espacial formam as coordenadas relacionais de narrativas ontológicas, públicas e culturais. Dentro dessas narrativas temporais e múltiplas, as identidades são formadas; daí a identidade narrativa ser processual e relacional.

Mishler (2002) propõe que as narrativas devem ser analisadas à luz da “mão dupla do tempo”, fugindo do modelo causal de ordem temporal linear. Assim, o final de uma narrativa é imprescindível à compreensão da narrativa como um todo. Da mesma forma, o eu-atual pode significar suas experiências de modo diferente ao eu-passado. É uma característica inerente e intratável de como nos lembramos do nosso passado e continuamente o re-historiamos, variando a significância relativa de diferentes eventos de acordo com a pessoa em que nos transformamos, descobrindo conexões das quais não estávamos previamente cientes, nos reposicionando a nós mesmos e aos outros em nossas redes de relações. O passado não está gravado em pedra, e o significado dos eventos experiências está constantemente sendo reenquadrado dentro dos contextos de nossas vidas correntes e em curso [...]. (Mishler, 2002, p.105)

Este autor ainda salienta a importância dos pontos de virada, “incidentes que muitas vezes ocorrem de modo repentino e inesperado”, (Mishler, 2002, p.107), sendo algo semelhante às rupturas biográficas. Os pontos de virada referem-se a eventos – um tanto epifânicos – que promovem a modificação da compreensão dos sujeitos sobre suas experiências passadas, levando-os à re-historiação do passado e à adoção de uma nova identidade; muda-se, também, o modo como a pessoa interpreta sua vida; e revisa-se a história vivida de forma a fazer sentido (Mishler, 2002). O sequestro relâmpago, para Milena, foi um ponto de virada na forma como compreendia a si mesma e as suas relações. O que não significa que a forma com que se vê hoje é definitiva e imutável. Assim como, em 2010 (quando a entrevista foi realizada), ela compreendia-se como a paranoica, hoje e daqui a alguns anos, essa compreensão já não será a mesma. Outros eventos de vida comporão a matriz de experiências biográficas vividas, possivelmente com novos pontos de virada, que possibilitam a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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formulação de novos “finais” das suas narrativas ontológicas e novas formas de se compreender como sujeito vitimizado. A própria Milena, à época em que foi entrevistada, declarou que gostaria de voltar a receber atendimento psicoterápico, ao qual recorreu depois do sequestro relâmpago e abandonou quando sua gravidez passou a ser de risco. Milena expõe a “necessidade” de falar sobre suas angústias e de ouvir, de ter um espaço em que a sua narrativa seja expressa e reconstruída. Afinal, o: ‘contar e recontar experiências’ promovem a oportunidade de terapeuta e cliente colaborarem no desenvolvimento de ‘versões alternativas de histórias’ que ‘cria novas compreensões’ enquanto também leva a uma ‘visão revisada de si e dos outros que além de remodelar o passado cria novos caminhos para o futuro. (Capps, Ochs, 1955 citado por Garro, Mattingly, 2000, p.7)

O terapeuta, aqui, seria algo como um guia na reconstrução das narrativas que o sujeito produz. Percebo isto como uma aproximação ao Outro do sujeito moral do último Foucault (Grós, 2006, p.11): “Quanto mais eu me procuro, tanto mais obedeço ao Outro”. A necessidade de responder a “quem sou eu?” implicaria uma submissão ao Outro, que seria aquele a indicar o caminho em que faça “coincidir cada vez mais ‘quem eu creio que sou e quem eu sou verdadeiramente’”, e que o eu que realmente sou se faça aparecer. É assim, a partir do outro nas interações psicoterápicas (e, também, nas interações em geral), que buscam-se novos sentidos e significados para o vivido. Dito para si ou dito para outros, as narrativas são parte do processo de cura. Quando este trabalho cultural é bem-sucedido, narrativas aperfeiçoam rupturas: habilita o narrador a remendar as rupturas, tecendo-as no tecido da vida, para pôr a experiência em perspectiva. (Becker, 1997; Capps, Ochs, 1995 citados por Garro, Mattingly, 2000)

Considerações finais (porém provisórias) A familiaridade com que a noção de vítima aparece nas narrativas públicas contemporâneas e ontológicas dos sujeitos reflete o fenômeno apontado por alguns estudiosos como a vítima sendo a “figura reveladora de nossa época” (Sarti, 2011). Koltai (2002 citado por Sarti, 2011) fala da vítima como representação dominante da subjetividade contemporânea. No Brasil, notamos o termo “vítima” como integrante do vocabulário cotidiano das pessoas. Nem todas são vítimas concretas de eventos violentos no âmbito urbano, mas não seriam elas vítimas do medo do crime, do medo da violência? Em certa medida, seríamos todos vítimas... vítimas do marginal da selva de pedra, vítimas do Estado, vítimas do capital, vítimas dos males da vida... buscamos todos algum tipo de reparação por esses males. Nesse tocante, Sarti (2011, p.54) nos explica que “a identificação da vítima faz parte dos anseios de democracia e justiça, dentro do problema da consolidação dos direitos civis, sociais e políticos de cidadania”. Com isso, entendemos que a vitimização e a autoidentificação como vítima são fenômenos contemporâneos. A produção dessa vítima – e quem ela será no percurso de sua vida – é social e histórica, mas resulta em sujeitos singulares. Cada um pode perceber, sentir, significar e exercer práticas cotidianas diferentes no que se refere à experiência de vitimização. Apesar de existirem eventos e histórias parecidas, a experiência é única e acessível em sua plenitude apenas a cada sujeito. Toda experiência é inserida em cenários relacionais que formam os sujeitos singulares. Assim, ser vítima torna-se um traço vitalício na medida em que este evento se entrelaça a todos os outros eventos de vida desse sujeito, numa dinâmica trama de interações, acontecimentos, sentimentos, saberes e sentidos. Entretanto, a relevância que o “ser vítima” terá nessa trama e a maneira como os sujeitos significam essas experiências dependerão das peculiaridades do(s) evento(s) vitimizador(es) e da singularidade complexa dos sujeitos. 520

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Em estudo anterior, relatamos que a vivência de um sequestro relâmpago implica mudar a forma como o indivíduo vive suas experiências e as significa (Azevedo, 2011). Muitos passam a crer em um mundo social muito mais perverso do que se gostaria, afetando sua segurança ontológica (Giddens, 1991), já que a vitimização pode atingir a noção de estabilidade e o sentido de ordem que os sujeitos têm a respeito do ambiente social e material circundante. Vale ressaltar que essa noção que o sujeito tem de estabilidade se estende à identidade. Ainda que as identidades sejam “múltiplas, flutuantes e situacionais” (Goffman, citado por Mendes, 2002, p.506), os indivíduos parecem buscar a permanência identitária, “mesmo que esta seja mais uma percepção subjetiva ou imaginada do que real” (Mendes, 2002, p.511-2). As pessoas desejam se compreender a partir de traços de “essência”. Com todas as contradições inerentes às narrativas ontológicas, muitos se angustiam na tentativa de responder ao “Quem sou eu?”. Essa é uma resposta que não tem alternativa correta, única e fixa. Ela se constrói continuamente, no percurso de vida dos sujeitos, em referência às interações sociais que se tem ao longo do tempo e dos espaços sociais. Mendes (2002), citando Jonathan Friedman em sua obra “Identity and Global Process”, de 1997, argumenta que: A constituição da identidade é um jogo perigoso e elaborado de espelhos. É uma interação temporal complexa entre múltiplas práticas de identificação internas e externas a um indivíduo ou a uma população. De forma a compreender-se esse processo constitutivo é necessário, por conseguinte, situar espelhos no espaço e o seu movimento no tempo. (Friedman, 1997, p.532)

As experiências de vitimização não determinam quem é o sujeito e como ele se vê; mas, certamente, ajudam a compor os vários “espelhos” que esse sujeito “é” (ou seria melhor “está”?) e “será”.

Referências AZEVEDO, L.R. A viagem em cárcere móvel: um estudo de vitimização por sequestro relâmpago. 2011. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Bahia. 2011. CARVALHO, V.D.; BORGES, L.O.; RÊGO, D.P. Interacionismo simbólico: origens, pressupostos e contribuições aos estudos em Psicologia Social. Psicol. Cienc. Prof., v.30, n.1, p.146-61, 2010. GARRO, L.C.; MATTINGLY, C. Narrative as construct and construction. In: MATTINGLY, C.; GARRO, L.C. (Orgs.). Narrative and the cultural construction of ilness and healing. Berkeley: University of California Press, 2000. p.1-49. GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. 17.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. ______. Strategic interaction. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1970. GRÓS, F. O cuidado de si em Michel Foucault. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (Orgs.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p.127-38. HAGUETTE, T.M.F. Metodologias qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2005. KOSOVSKI, E. Fundamentos da vitimologia: âmbito jurídico. Disponível em: <http:// www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=1813>. Acesso em: 5 jul. 2012.

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MARONGIU, P.; CLARKE, R.V. Ransom kidnapping in Sardinia, subcultural theory and rational choice. In: CLARKE, R.V.; FELSON, M. (Orgs.). Routine activity and rational choice: advances in criminological theory. New Jersey: The State University, 1993. p.179-200. MENDES, J.M.O. O desafio das identidades. In: SANTOS, B.S. (Org.). A globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002. p.503-40. MISHLER, E.G. Narrativa e identidade: a mão dupla do tempo. In: LOPES, L.P.M.; BASTOS, L.C. (Orgs.). Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, CNPq, 2002. p.97-119. SARTI, C. A vítima como figura contemporânea. Cad. CRH, v.24, n.61, p.51-61, 2011. SOMERS, M.R. The narrative constitution of identity: a relational and network approach. Theor. Soc., v.23, p.605-49, 1994.

AZEVEDO, L.R. Diálogos entre la noción de víctima y construcción de la identidad. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.515-22, jul./set. 2013. Este ensayo surge de la necesidad de problematizar la noción de víctima ante la creciente utilización de este término, en las últimas décadas, como identificador de los sujetos y sus experiencias. Al llevar a cabo un proyecto de investigación que se ocupa de la victimización por secuestro relámpago y sus impactos en la salud de las víctimas, enfrentamos la necesidad de discutir el uso de este término y otras cuestiones relacionadas como: “ ¿sería un atributo de identidad para toda la vida?”, “¿cuál es el peso que la victimización tiene en la vida de las personas?”, entre otras preguntas. En este sentido, proponemos este texto con el fin de problematizar la noción de víctima, planteándola como un trazo de la identidad, con la intención de estimular la reflexión sobre el tema.

Palabras clave: Víctima. Identidad. Interacción. Narrativa.

Recebido em 12/03/13. Aprovado em 19/06/13.

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Femicídios: narrativas de crimes de gênero*

Stela Nazareth Meneghel1 Roger Flores Ceccon2 Lilian Zielke Hesler3 Ane Freitas Margarites4 Stefania Rosa5 Valmir Dorn Vasconcelos6

MENEGHEL, S.N. et al. Femicide: narratives of gender crimes. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.523-33, jul./set. 2013.

Femicides are violent deaths of women resulting from power struggles between men and women. This was a qualitative study that used the tool of narratives to analyze police investigations of female homicides in Porto Alegre, in the years from 2006 to 2010. Ninety-two police inquiries conducted by the Homicide Division of Porto Alegre were studied and six cases that were considered representative of intimate femicide, femicide with sexual abuse, death through execution or connection and sex worker femicide were selected. The presence of gender crimes characterized by cruelty, similar to those found in regions of high violence and misogyny, was observed. This study sought to give visibility to femicide as a crime of political nature and had the aim of denouncing these preventable deaths, whose victims are mostly young black women, sex workers and residents of districts marked by drug trafficking and poverty.

Keywords: Homicide. Femicide. Female deaths due to assault.

Femicídios são mortes violentas de mulheres, decorrentes do exercício de poder entre homens e mulheres. Este é um estudo qualitativo que utilizou a ferramenta das narrativas para analisar inquéritos policiais de homicídios femininos em Porto Alegre nos anos de 2006 a 2010. Foram estudados 92 inquéritos da Delegacia de Homicídios de Porto Alegre, dos quais selecionamos seis casos considerados representativos de: femicídio íntimo; femicídio com abuso sexual; morte por execução ou conexão, e femicídio de profissional do sexo. Observou-se a presença de crimes de gênero caracterizados pela crueldade, semelhantes aos encontrados em regiões de elevada violência e misoginia. O trabalho procura visibilizar os femicídios como crimes de natureza política, e objetiva denunciar essas mortes evitáveis, cujas vítimas são, em sua maioria, mulheres: jovens, negras, profissionais do sexo e moradoras de territórios marcados pelo tráfico e pela pobreza.

Palavras-chave: Homicídio. Femicídios. Mortes femininas por agressão.

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* Texto financiado por meio do projeto “Femicídios e outros assassinatos baseados em gênero no Rio Grande do Sul” (Meneghel, 2010); Edital CNPq Gênero, Mulheres e Feminismos, Processo 401870/2010-3. Projeto aprovado no CEP-ESP-RS. 1 Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rua São Manoel, 963. Porto Alegre, RS, Brasil. 90620-110. stelameneghel@ gmail.com 2,3 Doutorandos, Programa de PósGraduação em Enfermagem, UFRGS. 4,5 Discentes, Bacharelado em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, UFRGS. 6 Discente, curso de Psicologia, UFRGS.

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FEMICÍDIOS: NARRATIVAS DE CRIMES DE GÊNERO

Introdução Os homicídios podem ser considerados o término de itinerários de vida de homens e mulheres marcados pelas violências. A mortalidade masculina por agressão tem se mostrado historicamente maior que a feminina, apresentando taxas até dez vezes maiores. Este pode ser um dos motivos pelos quais as mortes femininas por agressão são pouco estudadas. No Brasil, em 2010, ocorreram 44.827 homicídios masculinos, representando um coeficiente de 45/ 100 mil homens, e 4.465 femininos, com uma taxa de 4,6/100 mil mulheres. Com relação aos homicídios femininos, o Brasil ocupa o sétimo lugar entre 84 países do mundo (Waiselfisz, 2012). Diferente dos homicídios masculinos, os femininos possuem, em sua maioria, uma direcionalidade única; a maioria é cometida por homens contra mulheres e esses homens são conhecidos das mulheres. Assassinatos de mulheres não podem ser entendidos como acidentais ou de cunho patológico, o maior fator de risco é ser mulher, e elas são mortas por viverem em sociedades patriarcais (Carcedo, 2010). Um dos atos inaugurais da luta contra violência de gênero no Brasil foi a campanha “Quem ama não mata”, que ocorreu na década de 1970, a partir do assassinato de uma socialite brasileira cometido pelo namorado após a separação do casal. O autor foi inocentado a partir dos argumentos da “defesa da honra”. Esse fato mobilizou a sociedade e o movimento de mulheres, porém, ainda não se falava em femicídio. Os homicídios decorrentes de conflitos de gênero têm sido denominados femicídios, termo de cunho político e legal para se referir a esse tipo de morte. Assim, considera-se femicídio qualquer manifestação ou exercício de relações desiguais de poder entre homens e mulheres que culmine com a morte de uma ou mais mulheres (Carcedo, Sagot, 2000). Esse tipo de crime pode ocorrer em diversas situações, incluindo: mortes perpetradas por parceiro íntimo, crimes seriais, violência sexual seguida de morte, femicídios associados ou extermínio (Carcedo, 2010). O femicídio encontra-se no ponto mais extremo do continuum de violência misógina, podendo ocorrer junto a outras formas de violências extremas: tortura, prostituição forçada, estupros corretivos, espancamentos, mutilação e privação de liberdade para mulheres (Russel, Caputti, 1992). Sendo assim, o conceito de femicídio contribui para desfazer os argumentos de que a violência de gênero é uma questão privada e pessoal, e a posiciona como um fato político e social. Mais da metade dos homicídios de mulheres corresponde a femicídios, e esse fenômeno apresenta alta prevalência em várias regiões do mundo. Na África do Sul, as taxas de femicídios são de 8,8/100 mil mulheres; nos Estados Unidos, 3,4/100 mil (Mathews et al., 2008), e, no Brasil, 4,6/100 mil (Waiselfisz, 2012). A América Central possui taxas de femicídio mais elevadas, sobretudo em três países: Guatemala, Honduras e El Salvador, que vivem situações extremas de violações de direitos humanos (Carcedo, 2010; Prieto-Carrón, Thomson, MacDonald, 2007). Mulheres assassinadas encontram-se, preferencialmente, entre adolescentes e adultas jovens. Em alguns países, as vítimas são predominantemente pobres, vivendo em espaços urbanos inseguros, dominados pelo tráfico e por gangues, nos quais a segurança tem se restringido a ponto de desaparecer (Campbel, 2007; Oliveira, Geraldes, 1998). Os femicídios, portanto, têm sido associados a: situações de privação econômica, masculinidade machista e agressiva, envolvimento com o crime organizado, tráfico de drogas e de pessoas, conflitos armados, e lugares onde há altas taxas de assassinatos de homens (Meneghel, Hirakata, 2011). Em vários países, grande parte das mulheres assassinadas possuía história de violências reiteradas e tentava obter a separação antes de ser morta, especialmente nos três meses que antecederam o crime (Grana, 2001). Este texto tem como objetivo narrar histórias de mulheres assassinadas em decorrência de desigualdades de gênero, obtidas através de inquéritos policiais da Delegacia de Homicídios do município de Porto Alegre – Rio Grande do Sul.

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MENEGHEL, S.N. et al.

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Percurso metodológico Este é um estudo qualitativo, que utilizou a ferramenta das narrativas de histórias (Leal, Leal, Libório, 2007; Larrosa et al., 1995) como recurso metodológico para visualizar e analisar aspectos que permeiam a problemática femicídios. As histórias foram escolhidas pelo seu caráter de singularidade e representam os principais tipos de femicídios que acontecem em Porto Alegre. Trabalhar com narrativas significa valorizar a dimensão qualitativa da pesquisa, representada por aspectos subjetivos contidos em cada história (Bauer, Gaskell, 2002). Este texto utiliza a narrativa como um dispositivo de agenciamento de significados. A narrativa permite retomar experiências que foram invisibilizadas ou secundarizadas na cultura, ajuda a reconstruir identidades e a preservar a memória coletiva. A sociedade está atravessada por narrativas que se entrecruzam e dialogam entre si, outorgando realidade ao mundo em que vivemos (Ochs, 2003; Alves, Rabelo, 1999; Gergen, 1994; Benjamin, Horkheimer, Adorno, 1975). As memórias, histórias de vida e identidades pessoais são organizadas em padrões narrativos. Histórias não acontecem simplesmente, mas são contadas, embora nem sempre esteja explícito quem é e onde está o contador. Às vezes, o narrador é uma só pessoa, outras vezes, a história é criada conjuntamente ou cooperativamente por um coro de vozes (Meneghel, Iniguez, 2007; Brockmeier, Harré, 2003). De qualquer modo, cada história e cada palavra é polifônica, e seu significado é dado pelos incontáveis contextos onde apareceu, fato que Bakthin (2006) chamou de princípio dialógico do discurso. As narrativas que construímos neste texto possuem vários narradores, são: as testemunhas, os familiares, os policiais que ouviram a história, que investigaram ou não os fatos. Há situações em que a lei do silêncio é mais forte e eles não conseguem ouvir nada; há outras em que a pessoa que morreu é tão desvalorizada que a investigação não acontece. Além de possuírem vários narradores e pontos de vista, escutam-se vozes, mas, também, silêncios e omissões, produzidos pelo medo e pelas injustiças sociais. De qualquer modo, as narrativas que trouxemos são uma aproximação do fato ocorrido. As histórias foram lidas nos inquéritos policiais disponíveis na Delegacia de Homicídios da cidade de Porto Alegre, e reconstituídas a partir da categorização política “femicídio”, que foi o referencial que orientou a narrativa. O estudo faz parte de uma pesquisa intitulada “Femicídios e assassinatos pautados em gênero no Rio Grande do Sul” (Meneghel, 2010), em que foram estudados 92 inquéritos policiais referentes aos assassinatos de mulheres no período de 2006 a 2010, obtidos através da consulta na Delegacia de Homicídios de Porto Alegre. Para cada homicídio feminino, foi realizada a leitura integral do inquérito policial, com registro dos dados da vítima, do indiciado e do relatório final, onde há a síntese dos depoimentos dos envolvidos, a posição do relator e o indiciamento. As histórias das mulheres assassinadas foram selecionadas através da leitura e discussão dos casos com a equipe de pesquisa, após a realização da tipificação dos crimes como femicídios ou outras mortes por agressão. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e pela Comissão de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Narrativas de femicídios Há diferentes cenários onde os femicídios podem ocorrer, tornando esse conjunto de mortes heterogêneo e complexo, embora se possa afirmar que todos eles são provocados pela condição de discriminação e subordinação das mulheres na sociedade patriarcal. Em trabalho realizado na América Central (Carcedo, 2010), os cenários dos femicídios foram conceituados como contextos sociopolíticos e culturais que produzem ou propiciam relações desiguais de poder entre homens e mulheres e geram violência. Foram descritos velhos e novos cenários, em primeiro lugar, os já conhecidos e presentes em todas as sociedades: a família, as relações entre casais, os ataques sexuais perpetrados por homens conhecidos ou desconhecidos, e o comércio sexual. Os novos cenários compreendem as redes internacionais de tráfico e a exploração de mulheres, que movimentam enormes somas de dinheiro e atingem dimensões mundiais. Para o comércio de mulheres, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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FEMICÍDIOS: NARRATIVAS DE CRIMES DE GÊNERO

é importante que a mercadoria esteja viva, porém, se há ameaça de fuga, pedido de ajuda, contato com outras pessoas ou adoecimento, a mulher torna-se uma peça sacrificável. Por fim, os cenários que usam o corpo das mulheres como território de vingança, compreendendo os crimes de execução, conexão e ódio, perpetrados por gangues e máfias, em que os corpos são mutilados, os rostos destruídos e, além da morte, há o desejo de submeter o outro com crueldade e mandar uma mensagem à sociedade. Neste texto, apresentamos seis relatos de femicídios, que exemplificam diferentes tipos deste delito: aqueles perpetrados por parceiro íntimo, que denominamos “Crônica de mortes anunciadas”, e femicídios com violência sexual intrafamiliar, que chamamos “Incesto, assédio sexual e morte”. Relatamos uma morte por execução e outra por conexão, que denominamos “Morreu por engano” e “Estava no lugar errado”. Finalmente, apresentamos a história de uma profissional do sexo, que denominamos “As mulheres de morte fácil”. Identificamos as vítimas com uma frase síntese que nos pareceu expressar as fragilidades pessoais e sociais onde a morte foi produzida.

Crônica de mortes anunciadas Trazemos duas narrativas de mortes anunciadas ou femicídios íntimos perpetrados por parceiro, que seguiram uma longa história de agressões e ameaças. O femicídio perpetrado por parceiro íntimo representa uma taxa elevada desse tipo de morte em praticamente todas as regiões do mundo; em outras palavras, é uma manifestação da dominação masculina presente historicamente em todas as culturas (Taylor, Jasinski, 2011). Vários autores têm se debruçado sobre a investigação do femicídio perpetrado pelos maridos, companheiros e ex-companheiros, situações em que, geralmente, há relato de violências que vão se agravando paulatinamente. A primeira história é a de uma mulher de trinta anos, moradora da periferia de Porto Alegre, morta pelo companheiro com o qual manteve um relacionamento de seis anos e com quem tinha uma filha. O crime sucedeu a uma longa rota de conflitos e violência por parte do marido. Nos depoimentos das testemunhas, o casal mantinha um relacionamento instável, com repetidas separações. No momento do assassinato, estavam morando juntos, embora, em muitas ocasiões, ela tenha se refugiado na casa de vizinhos para fugir da violência. Foi assassinada na véspera do ano-novo, com uma facada na região torácica; o corpo ficou na cozinha sangrando, enquanto vizinhos e o agressor chamavam ajuda. Foram três registros policiais por lesão corporal durante o ano de 2007, que não produziram mudança no comportamento do agressor. Foi uma morte anunciada, já que um importante fator de risco para o femicídio é a existência de agressão e ameaça de morte pelo parceiro (Campbell et al., 2007). A aplicação de medidas protetivas pelas instituições que prestam atendimento a mulheres vítimas de violência ainda é um ponto crítico. Em pesquisa realizada em Porto Alegre, as mulheres declararam não se sentirem seguras em relação à cessação das agressões e ameaças, pois os agressores não são responsabilizados e o sistema policial, quando acionado, não responde aos pedidos de proteção com a rapidez e presteza necessárias (Meneghel et al., 2013, 2011). A segunda morte também se refere a uma mulher de trinta anos, de classe média baixa, mas vivendo com companheiro de situação financeira abastada e com ocupação ligada ao judiciário. Tinha uma filha de sete meses, cuja gravidez não foi desejada pelo pai, que a acusava de ter dado “o golpe da barriga”. Os femicídios íntimos acontecem, em maior frequência, entre mulheres pobres, migrantes, de grupos ou etnias desfavorecidos. Entretanto, também acontecem entre mulheres de classe social elevada, motivados por ciúmes e desejo de posse da mulher pelo marido (algumas vezes, mais velhos; outras em que a mulher quer a separação ou teve envolvimento afetivo fora da relação) ou em situações de disputa de bens (homens que não querem repartir os bens ou pagar pensão alimentícia). A situação que relatamos é a de um casal em que há disparidade econômica e o marido não quer repartir os bens e pagar pensão à filha. Segundo depoimentos de familiares e amigos, o marido abusava

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física e psicologicamente da companheira e a ameaçava de morte. Ele a chamava de “presunto”, termo popular que significa cadáver, uma alusão ao desejo de morte e uma ameaça velada. A mulher temia por sua vida e havia feito, recentemente, um seguro de vida em benefício da mãe. Havia um histórico de vários registros policiais denunciando as ameaças de morte. O marido ia concorrer à vereança do município e possuía dívidas de campanha. Precisava pagar um prestador e pediu à mulher que fizesse o pagamento porque estava impossibilitado de dirigir. Ela estacionou o carro em via pública, no aguardo do credor. Falava ao telefone com a mãe quando foi abordada, e a mãe ainda a ouviu dizer “que tinha trazido o dinheiro e que tinha uma filha pequena”. O corpo foi encontrado amordaçado, braços amarrados às costas e com três tiros, dois abaixo da axila esquerda e um na altura do coração. O marido tinha um álibi para o momento do crime, mas, no celular, havia ligações telefônicas para os suspeitos do assassinato. Esses homens foram indiciados: o marido, como mandante do crime, e dois executores. Contudo, todos foram inocentados por uma prova circunstancial, que desconsiderou as chamadas telefônicas entre marido e executores, porque o telefone estava longe do local do crime. As investigações foram encerradas. O femicídio é mais frequente em regiões onde o Estado não dá garantias e condições de segurança para as mulheres que estão sendo ameaçadas. Albergagem em casas de passagem, serviços de proteção de testemunhas, efetivação de medidas protetivas e atendimento a chamados de urgência são medidas que protegeriam as mulheres de situações de violência e diminuiriam as chances de femicídios íntimos. Essa é uma das razões pelas quais o femicídio também pode ser considerado um crime de Estado.

Incesto, assédio sexual e morte A história a seguir narra o femicídio de uma jovem de 19 anos, moradora da Restinga, um bairro pobre na zona sul de Porto Alegre. Ela foi assassinada pelo padrasto, com quem mantinha relações sexuais havia três anos. Morreu no domicílio onde vivia, mostrando, como em outros crimes desta natureza, que muitos jovens são mortos por pessoas com as quais possuem (ou deveriam possuir) laços de afeto e confiança (Guimarães, Villela, 2011). As relações sexuais entre a jovem e o padrasto eram desconhecidas pela mãe da vítima e esposa do agressor, e iniciaram quando ela tinha 16 anos, segundo o depoimento do próprio acusado, o que configura, apesar do pretenso consentimento, um abuso incestuoso, visto o baixo poder de negociação sexual da adolescente. No local do crime, segundo testemunha, havia pratos quebrados e objetos fora do lugar, o que sugere que a relação que ambos mantinham não era consensual. No depoimento, o agressor afirmou que matou a moça por ciúmes, porque desconfiou que ela estivesse namorando outro homem, justificando o crime através do velho argumento da “paixão” (Correa, 1981). Os depoimentos de conhecidos indicam que a vítima era vigiada constantemente, muitas vezes mantida em cárcere, já que o padrasto não a deixava sair de casa e a buscava na escola, como uma forma de vigiar suas condutas sociais. Segundo o irmão, “o pai levava ela de rédea curta e às vezes batia nela”. O autor do crime estava casado com a mãe da vítima havia 17 anos, fazendo pensar que os abusos sexuais podem ter se iniciado na infância. O fato de a jovem tornar-se adulta e poder relacionar-se fora da família, além de ter mais chance de denunciar os abusos e sair da situação, pode ter desencadeado o crime, que já estava sendo premeditado, uma vez que ele avisara à mulher que precisava comprar uma arma. Nesse femicídio, fica claro o exercício do domínio patriarcal, em que o controle masculino sobre as mulheres significa poder irrestrito, incluindo o direito de abusar sexualmente de crianças, vigiá-las, mantê-las sob controle coercivo (Stark, 2007) e matá-las se o “direito” da posse estiver ameaçado (Saffioti, 2004). O assassino foi indiciado e sua prisão preventiva foi decretada. Embora não se possa generalizar, percebemos que crimes que envolvem crianças e menores são investigados com mais cuidado e há maior preocupação com a impunidade.

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Execução e conexão: mulheres como território de vingança A maior parte dos assassinatos de mulheres ocorre no espaço doméstico, perpetrado por parceiros íntimos ou conhecidos. Entretanto, é preciso explorar as mortes em outros contextos menos investigados pelos estudos no Brasil, estudando a crescente mortalidade de mulheres como vítimas indiretas da criminalidade urbana (Pasinato, 2011). Os códigos de honra do patriarcado, ao longo da história, colocam a proteção das mulheres como um dos deveres masculinos e, em caso de conflito, apenas os homens se enfrentam. Essa norma fazia com que as mulheres, usualmente, ficassem fora dos ajustes de contas entre homens, mesmo em contextos muito violentos. Atualmente, as organizações e redes delitivas, alimentadas pelo neoliberalismo patriarcal, não compartilham estes códigos de conduta e são regidas pelo princípio de rentabilidade. Assim, os corpos das mulheres se transformam em territórios de vingança e de ajustes de contas entre homens que pertencem a máfias, redes de tráfico e outros grupos criminosos. Além do mais, as mulheres são mais facilmente encontráveis que os homens, na medida em que assumem o cuidado da família, além de terem menos chances de fugir e esconder-se (Carcedo, 2010). Aparecem, então, novas formas de femicídio: a execução de mulheres, os crimes de conexão e os crimes de ódio, em que os corpos das mulheres se tornam “territórios de vingança”.

Morreu por engano Contamos, agora, a história de uma jovem negra de 18 anos, moradora de um dos municípios mais pobres da região metropolitana de Porto Alegre, conhecido como cidade-dormitório e, atualmente, território dominado pelo tráfico. Tímida e quieta, era estudante, morava com os pais e possuía um trabalho temporário de distribuição de panfletos nas ruas. Este crime foi uma execução em que a vítima foi assassinada por engano, pois foi morta ao ser confundida com a cunhada, devido à semelhança física, já que ambas tinham a mesma idade, estatura, usavam o cabelo trançado e, no momento do assassinato, a jovem usava roupas emprestadas da cunhada. Ela esperava o ônibus em uma parada pouco movimentada, quando uma moto se aproximou com dois homens, que dispararam 11 tiros, atingindo, sobretudo, a cabeça e o tórax, ou seja, atiraram para matar. Doze dias antes do assassinato, seu irmão havia sido morto a tiros. Segundo depoimentos, foi um assassinato por vingança, e os vingadores iriam eliminar também sua mulher. A moça foi executada por engano, confundida com a mulher do irmão. Este tipo de crime tem acontecido em outras regiões, e mostra que uma expressiva parcela das vítimas do sexo feminino é morta em ações que visavam atingir homens envolvidos com a criminalidade (Biancarelli, 2006). Na região em que ela vivia, prevalece a lei do silêncio, assim, poucas pessoas se arriscam a falar sobre o fato, o que dificulta a investigação. Dois suspeitos foram indiciados, um deles foi morto e, alguns dias depois, o outro “desapareceu”. A morte ficou impune e o “morrer por engano” revela que a vida pouco vale nos territórios menos favorecidos das grandes cidades, onde predomina a população negra, sem letramento, pobre, que vive de trabalhos precários e sob o domínio do tráfico, em um verdadeiro apartheid social. As gangues, máfias e organizações criminosas, como já visto em Ciudad Juárez e outro locais da América Central (Prieto-Carron, Thomson, MacDonald, 2007; Lagarde, 2004; Monarrez Fragoso, 2002), revivem a hierarquia patriarcal, em que mulheres e crianças são os grupos mais atingidos.

Estava no lugar errado Os femicídios por conexão acontecem quando mulheres são mortas por se encontrarem na “linha de fogo” de um homem que quer assassinar outra pessoa. São episódios em que meninas ou mulheres

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morrem por tentarem impedir a prática de um crime contra outra mulher, independente do tipo de vínculo entre a vítima e o agressor. Esta é a razão pela qual pessoas desconhecidas, fortemente armadas, irrompem pelas casas usualmente modestas e desprotegidas de comunidades carentes e, sem aparente razão, massacram as mulheres que aí se encontram, frequentemente rodeadas de crianças, enfermos e idosos. (Carcedo, 2000, p.28)

A narrativa que segue é a da morte de uma moça, mulata, 26 anos, que ocorreu em via pública quando estava na carona da motocicleta do namorado. Foram alvejados por diversos disparos de arma de fogo vindos de um veículo Citröen preto, cuja placa e ocupantes não foram identificados. A mãe da moça, ao depor, disse que a filha vivia com o rapaz, mas era contra esse relacionamento porque ele não era boa companhia, e que viviam como ciganos, mudando-se a todo instante, dormindo em motéis e esconderijos, porque ele havia feito algo errado. “Minha filha morreu porque estava no lugar errado, na hora errada e principalmente na companhia da pessoa errada.” A mãe do rapaz, ao depor, disse que ele estava envolvido com drogas, não trabalhava, havia adquirido a motocicleta recentemente e já tinha sido preso por porte ilegal de arma. Nenhuma informação adicional foi obtida pela polícia ao visitar o local do crime e na conversa com moradores. Segundo o inquérito, “nada foi visto por ninguém”, e a conclusão é de que “o rapaz estava envolvido com entorpecentes e provavelmente foi alvo de um acerto de contas, fato comum no submundo do crime. Por sua vez, a moça foi morta por estar acompanhando o rapaz naquele dia”. Não houve indiciado. Embora o crime tenha ocorrido em via pública, a moça morreu porque estava “na linha de tiro” do rapaz e, por essa razão, classificamos essa morte como conexão. Ressalta-se que os discursos dos operadores policiais não percebem as execuções como femicídios, mas acertos de conta entre gangues ou traficantes, deixando de visibilizar a vulnerabilidade de gênero que trata as mulheres como “territórios de vingança”.

As mulheres de morte fácil As mortes de prostitutas exemplificam a divisão social operada pelo patriarcado entre o grupo de mulheres descartáveis, que são propriedade de todos os homens, e as mulheres “de família”, que devem ser protegidas pelos códigos de honra. As prostitutas apresentam um risco sessenta vezes maior que outras mulheres de serem assassinadas, e há pouco interesse da sociedade em elucidar estes crimes, devido, sobretudo, ao preconceito em relação às vítimas e à falta de credibilidade das testemunhas. A maioria dos assassinos são clientes que buscam, através deste ato, obter poder, dinheiro, gratificação sexual ou algum outro tipo de satisfação. Ao pagar pelo sexo oferecido por mulheres que exercem a prostituição, o homem passa a tratá-las como uma mercadoria de sua propriedade, submetidas à vontade do dono, que pode, inclusive, matálas (Salfati, 2012). A prostituição feminina expõe as mulheres a riscos, especialmente as que exercem as atividades na rua. Além da violência física, são comuns os abusos, estupros e roubos, ofensas que podem culminar com o assassinato da mulher (Moreira, Monteiro, 2009). A história aqui relatada é de uma jovem branca de 21 anos, semianalfabeta e pobre. Trabalhava como prostituta para satisfazer as necessidades básicas, já que possuía poucas chances de ingressar no mercado de trabalho, como acontece com milhares de mulheres que moram nas periferias das grandes cidades brasileiras, o que as torna reféns da exploração sexual comercial. Trabalhava em um ponto de prostituição no bairro da Restinga e desapareceu em novembro de 2006. O corpo foi encontrado depois de dois dias, com marcas de extrema violência. Estava despida, com as mãos ao solo e com os joelhos flexionados, numa posição, descrita no inquérito, como “de quatro”. O corpo sustentava-se amarrado pelo pescoço com um cabo de aço em uma árvore, sendo

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que as regiões do ânus e da vagina apresentavam-se ensanguentadas e com vestígios de agressão. A análise do sêmen encontrado nos preservativos próximos ao cadáver coincidiu com o do agressor. Cenários semelhantes a esse foram observados nos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, em que os corpos foram descartados em valas, lixões e terrenos baldios, com marcas de violência sexual e tortura, algumas com as mãos amarradas e com sinais de estrangulamento, outras com os corpos mutilados e mensagens depreciativas escritas na pele (Prieto-Carron, Thomson, MacDonald, 2007; Lagarde, 2004; Monarrez Fragoso, 2002). O femicida, um rapaz de vinte anos, trabalhava como agricultor nas proximidades do local do assassinato. Após o crime, comentou com seus colegas que precisava ir embora da cidade porque “havia feito uma besteira, matando uma putinha na estrada”. Era cliente das prostitutas da redondeza, inclusive da que matou. Negou as acusações, afirmando que não fora o autor do assassinato e que não residia no bairro no momento do crime. Mencionou que, quando morou em Porto Alegre, foi vizinho da mulher assassinada e que fez programas com prostitutas que moravam no bairro, mas negou envolvimento com a vítima. A polícia buscava o acusado quando o mesmo evadiu-se da cidade. No entanto, já tinha um mandato de prisão e uma acusação de estupro, evidenciando reincidência neste tipo de crime. Foi preso em um município do interior do Rio Grande do Sul, mas está em liberdade, “prestando serviços” à comunidade como pagamento da pena.

Considerações finais Este estudo possibilitou problematizar histórias categorizadas como diferentes tipos de femicídio, e denuncia a violência misógina, cujos autores ameaçam, ferem, matam e, muitas vezes, permanecem impunes. Um dos maiores desafios para os estudos sobre femicídios no Brasil é a falta de dados oficiais, o que impede uma visão dos contextos e situações em que estes femicídios ocorrem, diz Vania Pasinato (2011). Acrescentamos, como entraves, a não-tipificação do femicídio em lei, assim como a categorização do mesmo como crime comum, e não crime hediondo, como demandam algumas feministas, considerando que ele representa um verdadeiro genocídio de mulheres. A não-tipificação desse delito permite que eles fiquem velados e muitos permaneçam impunes, sobretudo quando as mulheres são “ninguém”. Apesar dos avanços dos estudos nos últimos anos, a morte de mulheres por homicídio ainda é um problema invisibilizado na sociedade. As mídias e as instituições sociais, mesmo as que atuam contra a violência, reproduzem a ordem patriarcal e minimizam essas mortes, atribuindo a culpa às próprias vítimas, que: estavam vestidas de modo inadequado ou em local e horário interditado ao seu gênero; provocaram o agressor, despertando-lhe ciúmes; pediram a separação; revidaram as agressões (elas também são violentas); ou os denunciaram à polícia. Ainda elas podem ser desqualificadas por: viverem às expensas de outras pessoas, serem negligentes com os filhos, trabalharem no comércio do sexo, usarem drogas, ou, até mesmo, por serem “vaidosas”, apresentando, no ponto de vista das normas patriarcais, conduta indefensável. Finalmente, há o recurso de mobilizar a opinião pública em simpatia ao agressor, enfatizando o papel de pai, de provedor e os sentimentos despertados por ter sido traído ou abandonado, construindo, portanto, através da argumentação e do discurso, a defesa dos chamados “crimes de paixão” (Correa, 1981). Uma última questão, que merece ser narrada, diz respeito aos sentimentos da equipe da pesquisa. Trabalhar com as mortes femininas por agressão, que aconteceram na cidade de Porto Alegre – a maioria delas femicídios – mobilizou, intensamente, os sentimentos do grupo. Nossa posição não é neutra, e, sim, militante pela igualdade de direitos às mulheres. Desse modo, foi difícil conter a indignação ao percorrer este trajeto e verificar a ocorrência de mortes tão absurdas e cruéis, muitas já anunciadas e tantas evitáveis. Acreditamos, porém, que, ao recontarmos estas histórias, estamos fazendo o papel do narrador que não quer que a memória se perca, que usa a narrativa como denúncia

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e chamamento para que se possa intervir e fazer justiça. Há necessidade de nomear o sucedido e apontar as violências para se enfrentar a impunidade estatal, diz Dora Munévar (2012). Entendemos que essas histórias são singulares e não generalizáveis, embora possam ser encontradas em todas as regiões onde as desigualdades de gênero submetem as mulheres (Schraiber et al., 2007). Elas objetivam despertar a atenção dos trabalhadores sociais e da saúde para essas pobres vidas precárias, descartáveis, vidas nuas, como denominou Giorgio Agambem (2007). Assim, os achados deste estudo pretendem servir como uma denúncia às condições deploráveis em que estão vivendo (ou sobrevivendo) muitas mulheres, que as tornam suscetíveis de serem assassinadas pelo simples fato de serem mulheres.

Colaboradores Os autores Stela Nazareth Meneghel, Roger Flores Ceccon, Lilian Zielke Hesler participaram igualmente da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Ane Freitas Margarites, Stefania Rosa da Silva, Valmir Dorn Vasconcelos participaram da coleta de dados, de discussões e revisão do manuscrito. Referências AGAMBEM, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. ALVES, P.C.; RABELO, M. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1999. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. BAUER, M.; GASKEL, G. Pesquisa qualitativa com imagem, texto e som. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores). BIANCARELI, A. Assassinatos de mulheres em Pernambuco: violência e resistência em um contexto de desigualdade, injustiça e machismo. São Paulo: Publisher Brasil, Instituto Patrícia Galvão, 2006. BROCKMEIER, J.; HARRÉ, R. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma alternativo. Psicol. Reflex. Crit., v.16, n.3, p.525-35, 2003. CAMPBELL, J.C. et al. Intimate partner homicide: review and implications of research and policy. Trauma Viol. Abuse, v.8, n.3, p.246-69, 2007. CARCEDO, A. No olvidamos ni aceptamos. Femicidio em Centro América, 2000-2006. San Jose: CEFEMINA, 2010. CARCEDO, A.; SAGOT, M. Femicidio en Costa Rica: 1990-1999. Costa Rica: Instituto Nacional de Mujeres, 2000. (Colección teórica n.1). CORREA, M. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981. GERGEN, K. Realidades y relaciones: aproximación a la construcción social. Barcelona: Paidós, 1994. GRANA, S.J. Sociostrutural considerations of domestic femicide. J. Fam. Violence, v.16, n.4, p.421-35, 2001. GUIMARÃES, J.A.T.L.; VILLELA, W.V. Características da violência física e sexual contra crianças e adolescentes atendidos no IML de Maceió, Alagoas, Brasil. Cad. Saude Publica, v.27, n.8, p.1647-53, 2011.

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Palabras clave: Homicidio. Femicidio. Asesinatos de mujeres.

Recebido em 07/03/13. Aprovado em 19/06/13.

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O desafio de compreender a consequência fatal da violência em dois municípios brasileiros Juliana Guimarães e Silva1 Fabiana Castelo Valadares2 Edinilsa Ramos de Souza3

GUIMARÃES E SILVA, J.G.; VALADARES, F.C.; SOUZA, E.R. The challenge of understanding the fatal consequences of violence in two Brazilian municipalities. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.535-47, jul./set. 2013. It was sought to understand murders through a complex systemic approach by applying the ecological model, which involves the individual and relational conditions of the subjects and context. Two cases were studied, with triangulation of quantitative and qualitative data. The municipalities selected (Paulista, Pernambuco, and Jaraguá do Sul, Santa Catarina) showed opposite behavior in relation to homicide rates between 1980 and 2007. Qualitative analyses revealed the following, for each dimension of the ecological model: individual: low education level and drug use; relational: domestic violence and drug use by family members; social and community: work and unemployment; public education; public security; drug trafficking; and religiosity. It was concluded that homicides involve combinations of vulnerability, precariousness and breakage of bonds within the individual and social dimensions. These issues can be addressed through an inclusive, interdisciplinary and intersectoral perspective.

Keywords: Homicide. Case study. Violence. Social vulnerability.

Buscou-se compreender os homicídios por meio da abordagem sistêmica complexa aplicando-se o Modelo Ecológico (ME), que envolve condições individuais e relacionais dos sujeitos e do contexto. Foram realizados dois estudos de caso triangulando dados quantitativos e qualitativos. Os municípios selecionados, Paulista, Pernambuco, e Jaraguá do Sul, Santa Catarina, apresentaram comportamentos opostos em relação às taxas de homicídios entre 1980 e 2007. Na análise qualitativa, descortinou-se, em cada dimensão do modelo ecológico: individual - baixa escolaridade e uso de drogas; relacional violência intrafamiliar e uso de drogas por membros da família; comunitário e social - trabalho e desemprego; educação pública - segurança pública; tráfico de drogas e religiosidade. Conclui-se que os homicídios envolvem a combinação de vulnerabilidades, precariedades e rupturas de vínculos na dimensão individual e social, passíveis de enfrentamento em uma perspectiva inclusiva, interdisciplinar e intersetorial.

Palavras-chave: Homicídio. Estudos de casos. Violência. Vulnerabilidade social.

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Doutoranda em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Av. Brasil, 4036, 7o andar, sala 700, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-361. ju.guimaraess@gmail.com 2,3 Centro LatinoAmericano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), Ensp, Fiocruz. 1

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Introdução O homicídio, uma das múltiplas expressões da violência e seu indicador universal, é caracterizado como a morte que ocorre por agressão, independentemente da sua tipificação legal. No Brasil, o homicídio contribuiu para o aumento significativo das mortes por causas violentas, no conjunto dos óbitos por todas as causas, desde o final da década de 1980. Só a partir de 2003 observou-se uma inflexão das taxas de mortalidade por homicídio (TMH), em municípios como São Paulo e Rio de Janeiro, e em outras áreas urbanizadas do país; e a primeira década dos anos 2000 foi marcada pela denominada interiorização da violência, que se caracteriza pelo incremento das TMH nos municípios do interior dos Estados (Peres et al., 2011; Rechenheim et al., 2011; UNODOC, 2011; Waiselfisz, 2011; Souza, Lima, Bezerra, 2010). Considerado um fenômeno complexo, o homicídio se distribui de forma heterogênea e tem sido estudado, sobretudo, por meio de abordagem quantitativa, na qual se analisam: sua distribuição segundo áreas, grupos populacionais mais afetados e sua tendência no tempo (Andrade et al., 2011; Rechenheim et al., 2011; Sant’anna, Aerts, Lopes, 2005). Mesmo os estudos que buscam explicá-lo em sua complexidade, considerando o contexto em que ocorrem, ainda são incipientes e também priorizam enfoques quantitativos (Duarte et al., 2012; Meneguel, Hirakata, 2012; Peres et al., 2012; Andrade et al., 2011; Peres et al., 2011). Estudiosos do tema têm proposto modelos explicativos que captem os aspectos qualitativos dessa violência, tentando abordá-la com uma visão compreensiva (Briceño-Leon, 2005, 2002). Uma dessas iniciativas é o Modelo Ecológico adotado pela Organização Mundial de Saúde. Tal modelo se fundamenta na multicausalidade da violência e analisa as inter-relações entre condições individuais e contextuais, considerando que ela resulta da influência de quatro diferentes dimensões: (a) individual, que focaliza as características do indivíduo que podem favorecer sua implicação em atos violentos (condições biológicas, demográficas, abuso de substâncias, dentre outras); (b) relacional, que identifica como a vitimização ou perpetração da violência pode ser influenciada pelas relações sociais próximas (família, parceiros íntimos, amigos); (c) comunitária, que focaliza as condições dos cenários em que se dão as relações e que possibilitam o envolvimento com a violência (escolas, locais de trabalho, vizinhança); e (d) social, que analisa as condições sociais e culturais mais amplas que influenciam os índices de violência (políticas de saúde, educacionais, econômicas e sociais) (OMS, 2002). Neste artigo pretende-se compreender o fenômeno dos homicídios por meio da abordagem dos sistemas sociais complexos (Luhmann, 2006), a partir de um estudo empírico que combina o método quantitativo e qualitativo e utiliza o Modelo Ecológico como fio condutor.

Metodologia A pesquisa que originou este artigo investigou o impacto dos homicídios em quatro países da América Latina - Brasil, Argentina, Colômbia e México. Envolveu um estudo epidemiológico e estudos de caso com o objetivo de obter uma visão complexa do objeto de investigação. Assim, as abordagens quantitativa e qualitativa foram combinadas na perspectiva da triangulação de métodos (Minayo, Assis, Souza, 2005). Neste texto faz-se um recorte da pesquisa original e apresenta-se a análise qualitativa dos dois estudos de caso realizados no Brasil. Os critérios de escolha dos municípios estudados, definidos na etapa quantitativa do estudo, foram: (1) população superior a cem mil habitantes, excluindo-se as capitais; (2) possuir dados de mortalidade por homicídios disponíveis para o período de 1980 a 2007, e (3) apresentar diferentes comportamentos em relação às TMH: um com aumento da taxa de mortalidade por homicídios mesmo com piora da qualidade da informação (grupo de óbitos por lesões ignorado intencionalmente); e o outro com queda da TMH, mesmo com melhora da qualidade da informação. Considerando-se o último triênio analisado, foram selecionados Jaguará do Sul/SC, com a menor TMH, e Paulista/PE, com a maior taxa. Para esses municípios, foram coletados indicadores como: Índice de Desenvolvimento Humano, Índice de Gini, proporção de pobres, taxa de analfabetismo, taxa de desemprego, taxa de mortalidade geral e por 536

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homicídios, dentre outros. As fontes pesquisadas foram o Censo 2010 realizado pelo IBGE e o Sistema de Informação sobre Mortalidade/SIM. Buscou-se identificar e compreender as condições que, sob a ótica dos atores locais, podem influenciar a ocorrência e a dinâmica dos homicídios, considerando-se as dimensões do modelo ecológico (OMS, 2002). Foram investigadas as percepções dos sujeitos acerca dos homicídios no seu município, indagando-lhes sobre: as suas explicações para a ocorrência deste fenômeno; a realização de ações institucionais voltadas à prevenção destes eventos, e as iniciativas que poderiam ser implementadas para reduzi-los. Entre novembro e dezembro de 2010, foram realizadas 12 entrevistas individuais semiestruturadas e 12 grupos focais. Foram entrevistados: gestores da segurança pública e da assistência social, prefeitos, conselheiros tutelares, policiais e lideranças comunitárias. Dos grupos focais participaram: profissionais da estratégia saúde da família, jovens religiosos e em conflito com a lei, professores e estudantes de escolas públicas, e familiares de jovens, totalizando 64 informantes-chave. Os depoimentos foram gravados com a autorização dos sujeitos, transcritos e checados quanto à fidedignidade do relato oral. A análise seguiu as etapas de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação (Minayo, 2006). Na pré-análise, foi feita a leitura flutuante dos relatos e a constituição do corpus no qual se pautou a comparação entre os municípios. Na exploração do material, os agrupamentos e categorizações dos textos foram ancorados nas dimensões do modelo ecológico. Foram identificados como temas as dimensões: individual, relacional, comunitária e social. Em cada um deles, emergiram as seguintes categorias: (i) individual: escolaridade e uso de drogas; (ii) relacional: família, violência intrafamiliar e entre parceiros íntimos, e uso de drogas por membros da família, e (iii) comunitárias e sociais: trabalho e desemprego, educação pública, segurança pública, tráfico de drogas e religiosidade. Na fase de análise e interpretação, foram identificadas semelhanças e singularidades dos municípios (Minayo, 2006). A triangulação dos dados qualitativos e quantitativos foi feita sempre que possível, e a discussão foi realizada com base na literatura pertinente. Os depoimentos dos sujeitos foram identificados nas seguintes categorias: gestor, profissional, familiar e jovem, com vistas a garantir o anonimato dos participantes. A pesquisa original foi aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz.

Resultados Diferenciais socioeconômicos e demográficos dos cenários estudados Situada no Nordeste brasileiro, Paulista, a cidade com maiores TMH, compõe a região metropolitana do Recife/PE. Jaraguá do Sul, aquela com as menores taxas, integra a área metropolitana de Joinville, no interior do Estado de Santa Catarina. Ambas têm o histórico de ocupação de seu território relacionado à colonização do país nos séculos XVI e XVII, respectivamente. Desenvolveram-se a partir da presença de proprietários de terras que nelas se instalaram e passaram a produzir produtos agrários e extrativistas para a colônia. Em Paulista, esta produção foi gradualmente substituída pela indústria ligada à tecelagem. Em Jaraguá do Sul, houve uma maior diversificação da produção industrial, fundada em torno do engenho de açúcar, serraria e olaria, e, mais tarde, pelas atividades dos setores de alimentos. Ambas foram emancipadas durante a década de 1930, e registraram incremento industrial durante os anos de 1970. Há informações de forte fluxo imigratório em Paulista nesse período, relacionado à presença de trabalhadores de toda a região Nordeste que buscavam emprego formal em seu distrito industrial. Por sua vez, Jaraguá do Sul registrou forte presença de imigrantes estrangeiros, ainda na década de 1890. Paulista vivenciou uma forte crise econômica de 1980 a 1990, com o fechamento das fábricas e o desemprego de sua população, que perdura até o presente. Em Jaraguá do Sul, a diversificação da economia preservou a cidade dos grandes impactos da crise econômica brasileira que emergiu com o fim do milagre econômico dos anos 1960. Paulista possui maior população e densidade demográfica (2.974/Km2) que Jaraguá do Sul (269/ Km2). Na primeira, no ano de 2011, os 300.466 habitantes concentravam-se na faixa etária de 18 a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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quarenta anos. Entre os 143.123 habitantes de Jaraguá do Sul, predominava o grupo de vinte a 49 anos de idade, no mesmo ano. Além de concentrar sua população numa faixa etária mais velha, Jaraguá do Sul também possuía distribuição mais equitativa entre os sexos: os homens representavam 49,9 %, percentual maior que o observado em Paulista (47,2%). Na Tabela 1, observam-se grandes disparidades nos indicadores sociais das duas cidades, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE (IBGE, 2010). De forma geral, Paulista apresenta os piores indicadores socioeconômicos. Em 2010, o índice de Gini, o IDH e o PIB de Jaraguá do Sul se mostraram substancialmente melhores do que em Paulista. Nessa última, se observa a deterioração da renda per capta média em reais, que corresponde à metade dos rendimentos encontrados em Jaraguá do Sul. No mesmo período, Paulista concentrou as piores condições materiais de vida e maior instabilidade econômica, apresentando elevada proporção de pobres e taxas de desemprego em maiores de 16 anos, quase seis vezes maiores que a de Jaraguá do Sul e duas vezes superior à do Brasil. A taxa de analfabetismo para maiores de 15 anos em Paulista foi muito superior à registrada em Jaraguá do Sul e quase quatro vezes maior que a taxa brasileira. Quanto aos indicadores de trabalho e rendimento, em Paulista predomina o subemprego, representado pela elevada proporção da população que exerce atividades laborais sem carteira assinada.

Tabela 1. Indicadores socioeconômicos e demográficos de Paulista, Jaraguá do Sul e Brasil Indicadores Índice de Desenvolvimento Humano (2000) Índice de Gini (2000) Produto Interno Bruto – PIB (R$ mil) (2009) Proporção de pobres (2010) Proporção da população de baixa renda Habitação (2010) Água encanada Energia elétrica Coleta de lixo Domicílios com geladeira Domicílios com computador (2000) Educação (2010) Taxa de analfabetismo para 15 ou mais anos Proporção de pessoas que frequentavam escola ou creche Proporção de pessoas que frequentavam a rede de ensino pública Proporção de pessoas que frequentavam a rede de ensino privada Proporção de pessoas que nunca frequentaram escola ou creche Proporção de pessoas no Ensino Fundamental Proporção de pessoas no Ensino Médio Proporção de pessoas no Ensino Superior Proporção de pessoas dos 4 aos 19 anos que frequentavam escola Trabalho e rendimento Taxa de desemprego de pessoas com 16 e mais anos Proporção de pessoas empregadas com carteira assinada Proporção de pessoas empregadas sem carteira assinada Rendimento médio mensal de pessoas com 10 ou mais anos (em reais) Renda per capta média em Reais (2010) Saúde Taxa de Mortalidade Geral por 100.000 hab. (2009) Taxa de Mortalidade Infantil por 1.000 nascidos vivos (2007) Taxa de Mortalidade por Causas Externas por 100.000 hab. (2009) Taxa de homicídios por 100.000 hab. (2009) Unidades de Saúde no município (2007) Unidades de Saúde da Família (2007) Fonte: DATASUS/IBGE

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Paulista

Jaraguá do Sul

Brasil

0,799 0,55 52.609 54,1 39,62

0,855 0,38 4.697.090 4,3 5,78

0,747 0,602 3.239.404.053 20,02 34,67

98,03 99,92 91,04 96,98 37,22

99,62 99,96 99,40 99,12 58,45

94,23 98,73 87,41 93,68 38,31

32,2 30,78 17,14 13,65 7,08 48,89 19,59 11,29 73,32

1,8 29,66 22,09 7,57 4,71 42,41 18,66 14,51 66,40

9,6 31,23 24,39 6,84 9,82 51,62 17,79 10,40 74,69

14,36 52,53 19,25 948,87 507,98

2,68 72,24 7,10 1.058,70 1.091,86

7,42 45,29 20,17 1.344,70 767,02

492,8 12,6 72,6 42,6 119 40

504,3 7,7 63,3 5,0 296 -

576,0 20,0 72,4 26,8 170.979 30.163


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Os indicadores de mortalidade não discrepam tanto. No entanto, diferem quanto à taxa de mortalidade infantil, que, em Paulista, é quase duas vezes maior que em Jaraguá do Sul, e em relação às taxas de homicídios, que, no primeiro, mostram-se 8,5 vezes maior que a de Jaraguá do Sul e 1,6 vezes superior à do Brasil, em 2009.

Abordagem das condições individuais e contextuais na busca de uma visão compreensiva dos homicídios Poucas foram as diferenças relatadas pelos informantes das duas cidades, acerca das condições individuais relacionadas aos homicídios. A baixa escolaridade dos autores e das vítimas dessa violência configurou-se como a principal distinção, com os moradores de Paulista associando-a ao uso de drogas e à criminalidade: “Se você fizer um levantamento do nível de escolaridade dessas pessoas que cometem homicídio, são pessoas que geralmente se envolvem com baixíssima escolaridade, começam na vida do crime, a partir das drogas e daí, depois começam a se, nesse envolvimento, a cometer os crimes”. (Gestor - Paulista)

Além disso, a baixa escolaridade também foi apontada em Paulista como condição que dificulta o acesso da população ao mercado de trabalho formal. O envolvimento com drogas foi também referido por grande parte dos entrevistados nas duas cidades, mais enfaticamente em Paulista, como uma situação de risco para homicídios em função da dificuldade financeira de sustentar o vício: “Eu fumo, aí eu vou pegar pra vender, aí eu vou fumar e ficar devendo, dinheiro eu não vou ter, ele vai querer me matar, entendeu, é por isso que eu não pego pra vender, sabendo que eu fumo”. (Jovem - Paulista) “[...] aqui em Jaraguá a gente ouve pouco falar em homicídio, mas sempre quando ouve é passional. [...] ou é dívida de dinheiro, talvez tenha alguma coisa de droga. Isso a gente não sabe, mas a gente escuta falar que devia 20 reais, 50 reais e foi cobrar, brigaram e um esfaqueou o outro”. (Profissional - Jaraguá do Sul)

Observa-se, pelos relatos, que, em Jaraguá do Sul, a ocorrência dos homicídios é também atribuída a causas passionais ou dívida de dinheiro que podem envolver a questão das drogas. Já em Paulista, as drogas, especialmente o crack, são mencionadas como justificativa central para os assassinatos. Para os entrevistados, o uso abusivo de drogas e de álcool estaria associado à perda de consciência e aumento dos impulsos agressivos, sendo este o motivo do risco: “Porque quando os homicídios acontecem é porque realmente eles estão envolvidos, tomados pela droga” (Gestor - Paulista). Ao se considerar a contribuição das condições relacionais na ocorrência dos homicídios, os depoentes, com distintas percepções, destacaram as relações familiares. Em Jaraguá do Sul, os vínculos familiares foram muito valorizados e qualificados como sólidos. A família foi citada como o principal meio de socialização e lazer, sendo, nesse caso, considerada como protetora: “Então a gente aprende que família é importante. Então a gente cresceu, nós crescemos dentro de uma família estruturada e a gente passa isso para os filhos. Eles sabem a importância de ter uma estrutura boa na família. Quando eles tiverem seus filhos eles vão querer para eles aquilo que eles tiveram”. (Gestor - Jaraguá do Sul)

Em Paulista, a “família desestruturada”, a falta de planejamento familiar e o machismo configuraramse como risco para os homicídios. Os profissionais relataram, frequentemente, a fragilidade dos vínculos familiares e as situações de abandono e negligência por parte dos pais. A violência intrafamiliar foi COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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enfatizada pelos profissionais e gestores, o que pode redundar na reprodução do seu ciclo (Cavalcante, Schenker, 2009). “A violência dentro de casa, né, são jovens, na maioria das vezes que, são os jovens que não tem respeito, dentro de casa não tem a questão da atenção, não receberam amor, também, aquela questão, da educação, falo educação de casa mesmo, né, são pais que simplesmente não planejaram a vinda do filho, então são pessoas que têm um laço afetivo fragilizado, né, são adolescentes que são criados em meio a conflitos, a confusões, a palavrões, não existe aquele respeito com a pessoa”. (Profissional - Paulista)

Nas duas cidades, a violência entre parceiros íntimos e o ciúme foram retratados por gestores e profissionais como associados aos homicídios: “A gente observa o caso, como foi passado, de padrastos, a gente passou uma época em Paulista, que enfim, que matavam mulheres assim, de diversas idades, aí vinha pela linha do abuso sexual, né, da violência sexual, do estupro seguido de morte”. (Gestor - Paulista) “[...] aconteceu de uma mulher que o marido assassinou. Teve um que chamou muita atenção que foi de um padrasto que esfaqueou a enteada. A princípio, ele diz que ela não obedecia ele. Ele mandava ela lavar louça e ela não foi. Corre pela cidade que ele tentou abusar dela e ela reagiu e aí ele acabou fazendo isso”. (Profissional - Jaraguá do Sul)

O uso de drogas por membros da família foi mencionado pelos sujeitos em Paulista como uma das principais condições relacionais que contribuem para condutas como abuso de substâncias ilícitas, envolvimento com crimes e para a ocorrência de homicídios: “A família errada, a família errada, não vai fazer nada [...] aquele negócio, né, mãe cachaceira, pai cachaceiro, filho drogado, não vai ter [...] ter uma mãe em casa para chegar perto do filho desse jeito não vai dar, [...] é filho solto na rua e geralmente o pai e a mãe ficam pouco em casa, e aí, o filho pode ter 10 anos, mas chega aí, vamos matar”. (Jovem Paulista)

Entre as condições comunitárias e sociais, foram relatados, pelos entrevistados, como associados aos homicídios: trabalho/desemprego; educação pública; segurança pública; tráfico de drogas e religiosidade. A forma de organização e estruturação do trabalho é bem distinta entre as cidades. Em Paulista, o vínculo formal de trabalho é escasso e as atividades são mal remuneradas, como apontam os indicadores sociais apresentados. As estratégias de inserção no mercado de trabalho são permeadas pelas atividades ilícitas, nas quais o tráfico de drogas e a exploração sexual foram muito relatados pelos jovens. Esta realidade influencia na baixa qualidade de vida dos moradores: “Os pobres, o pobre, a pobreza, a classe mais baixa, quanto menos pobre, melhor, que se ele está, com a família que vai estar e roubar, pela necessidade de, às vezes, de não ter dinheiro” (Jovens - Paulista). Em Paulista, a proporção de pobres chega a 54,1% e a taxa de desemprego de maiores de 16 anos foi de 14,36% em 2010. Em Jaraguá do Sul, a vivência do pleno emprego se reflete em uma sociedade que valoriza a aquisição do poder econômico pela via do trabalho formal no setor industrial. No município, em 2010, a proporção de pobres foi de 4,3%, e um total de 72,24% dos trabalhadores possuía carteira assinada, dados que corroboram os relatos dos sujeitos. Os jovens moradores afirmam que a rotina é mais restrita, com horários definidos e espaços de lazer restritos em função das atividades laborais: “Talvez a estrutura empresarial por ter um número mais elevado de emprego, que faz com que diminua o número de homicídios. Aqui o pessoal trabalha muito e não tem tempo para pensar nisso. Tem muita oportunidade de emprego e não trabalha quem não quer, tem muito emprego”. (Jovens - Jaraguá do Sul) 540

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No contexto de trabalho, majoritariamente industrial e formal, em Jaraguá se produziu um pacto coletivo que atribui às instituições, públicas e privadas, a excelência da qualidade dos serviços prestados e a confiança de que são capazes de exercer adequadamente as suas funções. Isto se reflete na qualidade dos serviços públicos em que urbanização, saneamento, saúde, educação e segurança pública são bem avaliados. Há um processo de responsabilização dos moradores que visa à promoção da qualidade de vida e demonstra uma elevada consciência e controle social: “[...] o investimento social, saúde e, principalmente, educação é que no decorrer dos anos dão esse quadro favorável para Jaraguá do Sul que eu acredito que serão ainda melhores no futuro” (Gestor - Jaraguá do Sul). Já em Paulista, o caráter majoritariamente informal (19,25% da população trabalhava sem carteira assinada em 2010), e, às vezes, ilegal das atividades laborais parece fragilizar os vínculos sociais e a confiança nas instituições. Além do que, a informalidade do trabalho produz bens e serviços sem fiscalização e sem controle da qualidade do que é ofertado. A educação pública foi qualificada pelos entrevistados, em Paulista, como um serviço de má qualidade. Tal compreensão, também evidenciada nos indicadores sociais, converge para os relatos dos grupos de jovens que atribuem à evasão escolar a precariedade deste setor. Para eles, permanecer na escola é uma iniciativa individual, já que, muitas vezes, não há professores, os cronogramas de aula não são cumpridos e a estrutura física das escolas não é priorizada pelos gestores: “pode ser no colégio, pode ser fora, a gente não sabe o que está acontecendo nas salas, não tem todas as aulas. Chega numa, não tem todas as aulas; chega, o professor não veio e como não tem todas as aulas, não dá nem para saber do colégio”. (Jovens - Paulista)

A segurança pública foi apontada como um fator importante para a ocorrência de homicídios em Paulista. Os presídios dos municípios vizinhos, ao oferecerem indulto em datas comemorativas e regimes semiabertos, parecem contribuir para a ocorrência de crimes e mortes. Segundo parte dos entrevistados, nos finais de semana e em datas comemorativas, aumentam o número de crimes e a sensação de insegurança dos moradores. Foi muito relatada, pelos sujeitos mais expostos à violência, como os jovens abrigados, seus familiares e pelos estudantes, a presença de grupos armados envolvendo policiais que ofertam segurança particular e formam “grupos de extermínio” responsáveis por mortes na comunidade: “Uns morrem de bala perdida, os homens também contribuem pros que tão aí morrer, os próprios policial. O próprio policial que tem grupo de extermínio por aí. Se disfarçam de segurança de loja, aí fica só visando os que estão furtando, até pra roubar o litro de um leite, pra roubar, pra dar o que comer a família, quer saber não, mete o dedo mesmo, “tora”, e mata mesmo, o próprio policial, se junta com os outros aí, os colegas, e tira onda”. (Jovens Paulista)

Na dimensão comunitária e social, o tráfico de drogas e o envolvimento com seus usuários aparecem na visão dos entrevistados com um papel fundamental na ocorrência dos homicídios em ambas as cidades. Em Paulista, o tráfico surge como uma forma de ocupação rentável que acena com a possibilidade, sobretudo para o jovem, de consumir bens e produtos valorizados no mundo contemporâneo: “O traficante oferece outras coisas que a mãe não pode dar, que a mãe não pode oferecer, como celular, como roupa, como uma corda, eles chamam de corda aquele negócio que fica no pescoço. Aí ele vê aquele cidadão todo bonzinho, dando tudo isso a ele, então ele vai fazer o que aquele cidadão deseja que faça, porque aquele cidadão que faz tudo por ele, enquanto em casa não tem quem faça”. (Profissional - Paulista)

A religiosidade foi apontada como recurso para a proteção contra os homicídios nas duas cidades, porém com menor expressão em Paulista. Um dos entrevistados informou que a falta de trabalhos da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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igreja com jovens tem contribuído para a cooptação destes pelo crime organizado. Já no relato dos jovens religiosos, o caráter preventivo da religiosidade é efetivo, pois oferta possibilidades positivas de lazer e de relações sociais: “Uma pessoa jovem chega na igreja diferente a gente vai lá, faz um contato, sai com a gente para ver como é que faz, a pessoa se sente a vontade, então a gente faz vários passeios, ao ar livre” (Jovens - Paulista). Os jovens religiosos de Paulista realçaram que as atividades de lazer comuns na cidade, como festas culturais, casas noturnas e praias, são também os cenários preferenciais para a ocorrência de homicídios. Um grupo de profissionais reforça o relato destes jovens ao afirmar que tais eventos acontecem frequentemente e, como há diferentes grupos armados na cidade, tornam-se espaços de encontro e conflito entre eles: “A maioria desses homicídios é cometido em outras situações, né, em situações que quando eles saem para discotecas e também de drogas, tem problemas que envolvem questões particulares deles, de traições, então esses homicídios são cometidos, questão de galeras, dos encontros, um bate no amigo do outro, um bate, o outro foi vítima de uma agressão”. (Profissional - Paulista)

Em Jaraguá do Sul, a religiosidade, como um traço fundante de uma “índole pacífica” e temente a Deus, foi defendida pelos entrevistados como responsável pela cultura de paz, atribuída ao “povo alemão”: “Acho que o povo Jaraguense é muito religioso. Toda religião tem um grupo específico e eu acho que isso faz com que cada pessoa tenha essa base. Tanto que o município dá total apoio à igreja” (Jovens - Jaraguá do Sul). A forte atuação das igrejas locais nas ações de apoio social e tratamento de usuários de drogas, voltada para a reclusão, foi relatada como iniciativa relevante no município.

Discussão A fim de obter uma visão compreensiva dos homicídios nos municípios estudados, ao mesmo tempo complexa e triangulada, analisam-se as percepções dos informantes tomando-se as dimensões individual, relacional, comunitária e social definidas pelo modelo ecológico, contextualizando-as, sempre que possível, com os indicadores socioeconômicos e demográficos dessas respectivas dimensões de determinação. Na dimensão individual, a baixa escolaridade foi associada às altas TMH pelos entrevistados em Paulista. Embora alguns estudos mostrem que essa condição é comum entre vítimas e autores de homicídios (Sá, Werlang, 2007), não se pode afirmar que há, entres elas, uma relação direta. Os indicadores educacionais, para 2010, mostram que, em Paulista, a taxa de analfabetismo de jovens com 15 anos ou mais foi 17,9 vezes maior que a de Jaraguá, e que a proporção de pessoas que nunca frequentaram a escola foi de 7,08% em Paulista e 4,71% em Jaraguá. Tais disparidades nestes indicadores apontam uma situação de exclusão marcante em Paulista, caracterizada, também, pela privação de acesso à educação de grande parcela da população, que acarreta dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal. Verifica-se que, em Paulista, a taxa de desemprego de pessoas com 16 anos ou mais de vida e a taxa de trabalho informal (sem carteira assinada) eram, respectivamente, 5,3 e 2,7 vezes maiores que as de Jaraguá do Sul, em 2010, o que repercute sobre as condições de vida, colabora para a manutenção das desigualdades e pode resultar em violências, particularmente em homicídios. Ressalta-se que diferentes formas de exclusão conduzem a uma violência difusa que se associa a um estado de desagregação e decomposição social (Minayo-Gomez, Thedim-Costa, 1999). Considerando-se o tema das drogas, os profissionais e jovens que participaram desta pesquisa apontaram que a sua relação com os homicídios ocorre de três formas: pelo envolvimento com usuários de drogas, adicção de membros da família e tráfico ilegal dessas substâncias. Observa-se que, no imaginário social, a violência é comumente associada aos usuários de drogas, especialmente aos de crack. No entanto, estudiosos das adicções questionam tal relação, afirmando que não há vinculação 542

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causal entre a produção de violência física e o consumo de substâncias, sejam elas lícitas ou ilícitas. Ressalta-se que os usuários têm em comum vulnerabilidades que os levam à situação de rua e desestruturação dos laços sociais e familiares, acrescidas, ainda, da flagrante ausência de políticas públicas, capazes de intervir nessa realidade com medidas eficazes que não levem a novas exclusões (Alarcon, Jorge, 2012; Pitta, 2011). Quanto ao consumo de drogas por familiares, destacado nesta pesquisa, estudiosos afirmam que é, sobretudo, a atitude permissiva dos pais em relação às drogas que influencia no risco de os filhos se tornarem usuários, pois o comportamento parental lhes serve de modelo (Schenker, Minayo, 2005). Esse imbricamento foi apontado pelos jovens de Paulista como facilitador do envolvimento com crimes e morte. A principal diferença entre as cidades, no que se refere às drogas, é a presença de grupos organizados do tráfico na região. Paulista apresenta uma condição mais vulnerável, pois possui grupos rivais que dominam o comércio ilegal de drogas. Neste contexto insere-se, ainda, o porte ilegal e o tráfico de armas, ferramentas imprescindíveis na defesa do território e no enfrentamento entre as quadrilhas rivais e dessas com a polícia, a fim de garantir a venda e o consumo das substâncias psicoativas. Essa disputa pelo território e a ilegalidade do produto, aliadas a uma política de segurança repressiva, torna-se um cenário fértil para a ocorrência dos homicídios. Assim, o narcotráfico, atividade altamente rentável, promove o consumo, induz à dependência e incrementa a criminalidade, embora não se possa afirmar que a totalidade dos homicídios decorre dessas atividades ilícitas (Andrade et al., 2011). Neste cenário é preciso ter-se a clareza de que a violência é inerente às redes de comercialização de drogas ilícitas. Considera-se, então, que as conexões entre drogas e violência, com desdobramento nos homicídios, são complexas, apresentam diversas facetas e suscitam reflexões articuladas com o contexto social, cultural, político e com as características individuais. Cabe, portanto, ampliar a discussão sobre essa temática, uma vez que é inegável que a mudança no padrão de consumo de drogas influencia na forma de organização social, mas não pode ser interpretada como o único e principal problema a ser enfrentado. No que se refere à dimensão relacional, a valorização dos vínculos familiares em Jaraguá do Sul e a “família desestruturada” em Paulista foram características destacadas pelos depoentes. Neste contexto, estudiosos afirmam ser a família o núcleo de socialização primária no qual se constrói a autoimagem do sujeito por meio de processos identificatórios, sendo responsável pela inserção dos seus membros na cultura (Shenker, 2008; Shenker, Minayo, 2005). Assim, pode-se inferir que as relações familiares são capazes de modular o comportamento de seus membros. Quando os vínculos familiares são positivos e fortes, as chances de manifestação de comportamentos antissociais são menores e essa família se configura como protetora contra os homicídios. Em contraposição, cuidados maternos ou paternos inadequados, vivência em meio à discórdia conjugal e a presença de pais agressivos ou violentos podem resultar no comportamento agressivo de seus membros (Minayo-Gomez, Thedim-Costa,1999). O contato com a violência intrafamiliar na infância e adolescência pode desencadear, na vida adulta, atitudes e comportamentos violentos que reproduzem experiências vivenciadas anteriormente. Há que se considerar, também, a vulnerabilidade social das famílias em Paulista, que vivem em situações precárias e são comumente responsabilizadas pela miséria, abandono e negligência de suas crianças e adolescentes, e, muitas vezes, pelo envolvimento destes com as drogas e com o crime. Nessa cidade, a renda per capta média é de R$ 507,98 (US$ 250,00), 11,6% menor que a de Jaraguá do Sul, e 39,6% da sua população têm baixa renda. Estes indicadores corroboram as precárias condições de vida dos seus moradores, e, neste contexto de vulnerabilidade, estudiosos pontuam que estas famílias enfrentam maiores dificuldades para prover seus filhos das condições materiais de vida que possam protegê-los da violência (Sant’anna, Aers, Lopes, 2005). Nesta pesquisa, a violência contra a mulher e o abuso sexual evidenciam a necessidade de se trabalharem mudanças do padrão cultural machista, ainda arraigado em ambas as regiões. Em Paulista (8,8/100.000 hab.), a TMH de mulheres foi oito vezes superior à de Jaraguá do Sul (1,4/100.000 hab.) e o dobro da taxa nacional (4,4/100.000 hab.) no ano de 2010, o que suscita uma reflexão acerca dos padrões culturais de gênero. Percebe-se que a ocorrência dos homicídios é também permeada pelas relações de gênero e pelos modelos de masculinidade que associam contradições internas e rupturas históricas, originando diversas masculinidades. Algumas delas podem ocupar um lugar de hegemonia, 543


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tornando-se o modelo a ser seguido nas relações de gênero, exprimindo uma ideologia em que a masculinidade se baseia na heterossexualidade, na racionalidade e no privilégio de infligir a violência (Souza et al., 2012; Nascimento, Gomes, Rebello, 2009). Ao se observarem, nas dimensões comunitárias e sociais, as diferenças entre a estrutura e organização do trabalho, percebe-se que há uma forte influência deste na forma de constituição das cidades. A capacidade de o trabalho produzir modos de organização e disciplinarização social e do corpo humano é abordada por diversos autores, que o consideram uma atividade constitutiva do humano (Barros, MinayoGomez, 2002; Dejours, 1992). Ao exercer sua atividade laboral, o homem transforma o mundo, a si próprio e as suas relações com os outros. As dificuldades de inserção profissional e o mal-estar vivenciado nas transformações ocorridas no mundo do trabalho influenciam na definição de si mesmo, fazendo com que ocorra uma crise de identidade. A dimensão profissional interfere na construção e reconstrução de identidades e de trajetórias de vidas, e ganha visibilidade e impacto em um cenário em que o emprego torna-se raro e o mundo do trabalho sofre profundas modificações (Maia, Mancebo, 2010). Os indicadores referentes ao trabalho retratam esta realidade: em Paulista, a proporção da população que exerce atividades laborais sem vínculo formal (19,25%) é quase três vezes superior à de Jaraguá do Sul (7,10%). Assim, os modos de organização do trabalho e sua repercussão nas trajetórias dos indivíduos e de suas identidades se mostram nas duas cidades de forma bastante ilustrativa. No que se refere à rede pública de ensino, em 2010, verificava-se que 17,14% dos estudantes em Paulista a frequentavam. Em Jaraguá do Sul esta proporção era de 22,09%, o que reforça a maior credibilidade dos seus moradores na educação pública. A precária oferta de educação formal em Paulista, tal como mencionado pelos jovens, compromete a função da escola enquanto agente transformador, protetor e de aprendizagem. Os problemas apontados, sobretudo no ensino público, destituem a escola de atrativos que acabam por desmotivar os jovens a frequentá-la. Na sociedade atual, a escola se constitui como um valor pela função que desempenha, tendo em vista a necessidade da educação formal na socialização dos indivíduos e sua integração nas formas de subsistência. No entanto, esse importante espaço reflete o sistema excludente e a reprodução das desigualdades sociais no momento em que não se conforma em campo de oportunidades e garantias universais (Cocco, Lopes, 2010). Quanto às questões de segurança pública, a falta de confiança na polícia, a corrupção de membros dessa corporação e a presença de grupos armados ligados ao tráfico de drogas e às milícias comprometem a circulação urbana dos moradores de Paulista, que compreendem não ter a quem recorrer em casos extremos, e buscam soluções individuais, muitas vezes, pela via da violência. Em Jaraguá, parte dos entrevistados afirmou que a população estabelece controle social e vigilância permanentes quanto às questões de segurança pública. A polícia é constantemente informada pelos moradores de ações suspeitas nos espaços privados e públicos, o que reprime as ações delituosas e reduz as possibilidades de impunidade. Ressalta-se que a polícia é a linha de frente do controle da desordem social, em função da sua rede territorial, sua capacidade de lidar com as emergências e seus poderes legais (Silva Filho, Gall, 2002). No entanto, o desvio para as atividades ilícitas cometidas por policiais desperta a desconfiança e o sentimento de insegurança do cidadão diante de sua polícia. Neste contexto, a religiosidade foi apontada como possibilidade de proteção para os homicídios. Estudiosos afirmam que esta poderia auxiliar na construção da personalidade do indivíduo por meio dos fundamentos pregados, incutindo-lhe valores morais que têm por fim o respeito e a preservação da vida, podendo proteger o indivíduo de transtornos de condutas violentas (Cruzeiro et al., 2008; Sanchez, Oliveira, Nappo, 2004). A religiosidade pode ser ainda considerada como componente da rede de apoio, fortalecendo o capital social das comunidades, colaborando na prevenção da violência.

Conclusão Diante desta análise, pode-se afirmar que o Modelo Ecológico constitui uma ferramenta importante para a compreensão dos homicídios ao adotar uma visão sistêmica que considera as condições individuais, relacionais, comunitárias e sociais do contexto em que estes ocorrem, o que representa um 544

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avanço para o conhecimento. Como limite, pode-se apontar a impossibilidade de generalização dos achados desta pesquisa, uma vez que cada município apresenta condições peculiares que merecem aprofundamento. No caso de Paulista, relacionando-se os indicadores sociais aos relatos dos sujeitos, percebe-se uma sobreposição de vulnerabilidades econômicas e sociais, como: baixa escolaridade, uso de drogas e envolvimento com o tráfico, fragilidade dos vínculos familiares e violência intrafamiliar, desemprego e precariedade da educação e segurança públicas. Tais condições aprofundam as situações de exclusão social dos sujeitos, conformando um terreno fértil para a violência letal. Já em Jaraguá do Sul, os indicadores socioeconômicos mostram melhores condições de vida, e os relatos evidenciam um contexto social em que há: fortes vínculos familiares, acesso à educação, emprego, confiança nas instituições e maior consciência da importância delas e de um controle social que acabam por inibir as situações de violência. Neste último município, as falas dos sujeitos apontam a violência letal como resultado de ações passionais ou endividamentos. Destaca-se que, em ambos os municípios, o consumo de drogas e o narcotráfico permearam todas as dimensões do modelo ecológico, sendo apontados como as principais causas dos homicídios. Essas percepções, forjadas no imaginário social com a forte contribuição da mídia e das abordagens repressivas por parte da segurança pública, parecem ocultar questões mais complexas relacionadas à cultura machista e a questões étnicas discriminatórias presentes em Jaraguá do Sul. Por outro lado, também encobrem as precárias condições socioeconômicas que levam grande parcela da população de Paulista à exclusão. Assim, a abordagem ao fenômeno das drogas nos municípios reproduz um modelo cultural de exclusão focado nos usuários, e, como um tema de grande apelo social, parece camuflar processos sociais mais complexos, relacionados, sobretudo, à exclusão de parcelas específicas da população. Conclui-se que a determinação dos homicídios parece ser permeada por um contexto que envolve a combinação de: vulnerabilidades, fragilidades, precariedades e rupturas de vínculos na dimensão individual e na vida social. No entanto, essas condições adversas são passíveis de ações de prevenção e enfrentamento que devem incluir a família, a escola e a comunidade, além de empenharem esforços no sentido de reduzir a exclusão e as desigualdades sociais. Tais ações devem ser implementadas em uma perspectiva inclusiva, interdisciplinar e intersetorial, com vistas à construção da cidadania.

Colaboradores Juliana Guimarães e Silva, Fabiana Castelo Valadares e Edinilsa Ramos de Souza participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Agradecimentos Ao CNPq, pelo apoio dado ao estudo, por meio do INCT Violência, Democracia e Segurança Cidadã. Referências ALARCON, S.; JORGE, M.A.S. Álcool e outras drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012. ANDRADE, S.M. et al. Homicídios de homens de quinze a 29 anos e fatores relacionados no estado do Paraná, de 2002 a 2004. Cienc. Saude Colet., v.16, supl.1, p.1281-8, 2011.

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GUIMARÃES E SILVA, J.G.; VALADARES, F.C.; SOUZA, E.R. El desafío de comprender la consecuencia fatal de la violencia en dos municipios brasileños. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.535-47, jul./set. 2013. Buscamos comprender los homicidios por medio del abordaje sistémico complejo, abordando el Modelo Ecológico (ME), que envuelve condiciones individuales y relacionales de los sujetos y del contexto. Se realizaron dos estudios de caso triangulando datos cuantitativos y cualitativos. Los municipios seleccionados Paulista, Pernambuco, y Jaraguá do Sul, en el Estado de Santa Catarina, mostraron un comportamiento opuesto a las tasas de homicidio entre 1980 y 2007. El análisis cualitativo mostró en cada dimensión del modelo ecológico: individual: bajo nivel educativo y consumo de drogas; relacional: violencia intrafamiliar y consumo de drogas por miembros de la familia; comunitario y social: trabajo y desempleo; educación pública; seguridad pública; tráfico de drogas y religiosidad. Se concluye que los homicidios envuelven una combinación de vulnerabilidad, precariedad y ruptura de vínculos en la dimensión individual y social, que pueden enfrentarse en una perspectiva incluyente, interdisciplinaria e intersectorial.

Palabras clave: Homicidio. Estudio de Caso. Violencia. Vulnerabilidad social. Recebido em 11/04/13. Aprovado em 19/06/13.

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artigos

Construção da identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil: uma revisão da literatura Vinício Oliveira da Silva1 Isabela Cardoso de Matos Pinto2

SILVA, V.O.; PINTO, I.C.M. Construction of the identity of Public Health players in Brazil: a review of the literature. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.549-60, jul./set. 2013. The objective of this study was to analyze the scientific production on the identity of Public Health players in Brazil, between 1990 and 2011. A systematic review of the literature was conducted, from abstracts, articles and academic papers such as theses and dissertations, in the LILACS, SciELO and CAPES databases. From analysis on the published texts selected, three categories emerged: construction of identity; training and identity; and labor market and identity. In almost the studies, it was seen that the discussions had little to do with a basic body that establishes identity within Public Health, but rather, with a set of values in which convergences appear. It is necessary to reflect on the complexity implied in this process, especially with the emergence of health worker training through undergraduate courses, thus pointing towards possible professionalization.

O objetivo deste estudo foi analisar a produção científica sobre a identidade de atores da Saúde Coletiva no Brasil, entre 1990 e 2011. Realizou-se um estudo de revisão da literatura, a partir de resumos, artigos e trabalhos acadêmicos, como teses e dissertações, nas bases de dados LILACS, SCIELO e CAPES. Das publicações selecionadas, após análise, emergiram três categorias: construção da identidade, formação e identidade, e mercado de trabalho e identidade. Verifica-se, na quase totalidade dos estudos, que as discussões pouco se referem a um corpo básico que configura a identidade em Saúde Coletiva, mas, sim, a um conjunto de valores nos quais aparecem convergências. É necessário refletir sobre a complexidade implicada nesse processo, especialmente com a emergência da formação de sanitaristas, a partir da graduação, apontando, portanto, para uma possível profissionalização.

Keywords: Public Health. Professional identity. Health professionals.

Palavras-chave: Saúde Pública. Identidade profissional. Profissionais de saúde.

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Mestrando, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário, Canela. Salvador, BA, Brasil. 40110-040. vinicio_oliveira@ hotmail.com 2 ISC/UFBA. 1

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CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS ATORES ...

Introdução Nas ultimas décadas, o mundo do trabalho vem passando por constantes transformações, a partir das quais as profissões vêm ganhando novos delineamentos e os profissionais enfrentando novos desafios. Nesse cenário, entram em jogo: autonomia, ética, vocação, identidade, status, posição econômica e reconhecimento dos profissionais. Com a reestruturação da prática profissional e crescente especialização no campo do trabalho, a identidade profissional, por sua vez, vem sendo questionada por diferentes áreas do conhecimento (Beck, Young, 2008; Hall, 2000). No caso da saúde, o trabalho, nesse setor, tem especificidades que se expressam na sua organização institucional, quais sejam: a forma de articulação da prestação de serviços; o ritmo de avanço das inovações tecnológicas; as atividades altamente especializadas. Entre outras, e, em particular, no caso brasileiro, que conta com um sistema de saúde público e universal, com princípios finalísticos que implicam a transformação do modelo de atenção em saúde, e, consequentemente, nos processos de trabalho, tais elementos, indubitavelmente, implicam a identidade dos profissionais (Campos, Albuquerque, 1998). Com a emergência e o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, diversas ações estratégicas, políticas e novos programas de saúde vêm sendo implementados no país, resultando na expansão e reconfiguração do mercado de trabalho em saúde e em transformações no campo da Saúde Coletiva (Varella, Pierantoni, 2008). Essas mudanças exigem um novo perfil profissional, capaz de atender às demandas sociais e políticas da população brasileira. Tais fatores devem ser considerados na definição e/ou na transformação da identidade dos trabalhadores que atuam nessa área, bem como na incorporação de novas características ao perfil profissional. A identidade profissional tem sido utilizada para compreender a inserção do sujeito no mundo do trabalho e sua relação com o outro. Identidade configura-se em um conceito dinâmico, o qual desconstrói a ideia de uma identidade única e integral, podendo ser compreendida como algo múltiplo, coletivo, e não como uma realização individual. Caracteriza-se, portanto, como um processo de mudança pela qual os papéis vão adquirindo contornos, de acordo com os contextos sociais. É, por conseguinte, produto de sucessivas socializações, permanentemente reconstruída para o próprio indivíduo ao longo do tempo (Coutinho, Krawulski, Soares, 2007). Já Dubar (1997) compreende que a identificação é estabelecida pela socialização, a qual revela o sentimento de pertencer a determinado grupo, assumindo suas atitudes e valores que guiam as condutas. A identidade é, portanto, “resultado simultaneamente estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições” (Dubar, 1997, p.105). A identidade torna-se um tema relevante, especialmente no âmbito da Saúde Coletiva, que corresponde a um campo científico de saberes e práticas, agregando profissionais de diversas modalidades de formação, trajetória, e identidade daqueles que atuam nesse segmento. Nas últimas décadas, os trabalhadores da Saúde Coletiva vêm ocupando novos espaços e desenvolvendo uma prática cada vez mais específica – com ênfase no SUS e compromisso com a Reforma Sanitária Brasileira –, assim viabilizando a construção de uma nova identidade do sanitarista brasileiro. Entretanto, essa questão torna-se complexa, pois o campo da Saúde Coletiva agrega diversas categorias profissionais – e não apenas profissionais da área da saúde. Caracteriza-se, pois, pela grande heterogeneidade no que diz respeito à qualificação e formação, envolvendo, nessa direção, os profissionais com especializações lato sensu, residência profissional, mestrados acadêmicos e profissionais, doutorados, e, atualmente, graduados em Saúde Coletiva. Essa reconfiguração vem apontando para a definição de uma identidade específica de seus integrantes e uma possível profissionalização, conformando-se, desse modo, uma área dinâmica, composta por distintas trajetórias e múltiplas interfaces com outros grupos profissionais (Bosi, Paim, 2010). Nesse particular, os conhecimentos produzidos nessa área podem ser aplicados por diferentes categorias profissionais, até mesmo advogados, arquitetos, cientistas sociais, físicos, assistentes sociais, dentre outros, os quais têm recebido títulos de mestre e doutor em Saúde Coletiva, concedidos pelos distintos programas de pós-graduação strictu senso. Contudo, existe um corpo básico que confere 550

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identidade ao “pensar” e ao “fazer” (aspas do autor) em Saúde Coletiva, a partir de um conjunto de valores, semelhante às demais profissões (Bosi, Paim, 2010, p.2033). Na literatura científica, poucos são os estudos que discutem acerca da identidade específica dos trabalhadores da Saúde Coletiva, havendo, assim, inúmeras lacunas do conhecimento sobre essa temática. A Saúde Coletiva configura-se em uma importante área do conhecimento, com importantes contribuições ao sistema público de saúde no Brasil, sendo que, nos últimos anos, tem demonstrado grande evolução – muitos cursos de pós-graduação se expandiram pelo país e, atualmente, está inserida a graduação em Saúde Coletiva. Por conta desse processo evolutivo e da sua significância, que é, sem dúvida, fruto do seu amadurecimento, a área vem adquirindo reconhecimento internacional, merecendo, assim, uma investigação sobre a identidade dos que atuam nesse segmento. Considerando-se as inúmeras variáveis no que diz respeito à trajetória dos atores da saúde coletiva, e reconhecendo-se a importância de discutir e tomar, como categoria de análise, a identidade profissional nessa área, o presente trabalho teve como objetivo analisar os estudos produzidos sobre a identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil, segundo a literatura científica, no período de 1990 a 2011. Nesse sentido, poderá trazer elementos para reflexão e compreensão acerca da conformação da identidade dos recursos humanos na Saúde Coletiva, bem como seus percursos e trajetórias de construção.

Procedimentos metodológicos Realizou-se um estudo de revisão da literatura, a partir de resumos, artigos e trabalhos acadêmicos, como teses e dissertações, publicados dentro da temática “Identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil”. O período dessa revisão foi determinado de acordo com o momento histórico de construção de um novo sistema de saúde no país, oficialmente a partir de 1990, com a promulgação das leis orgânicas da saúde, após longas lutas, movimentos sociais e ideológicos, tendo em vista a democratização da saúde, que impulsionou significativas mudanças no mercado de trabalho nesse setor, passando a Saúde Coletiva a se ocupar com a formação de um novo perfil profissional. Foram consideradas publicações nacionais com texto em qualquer língua, entre 1990 e 2011, no Scientific Electronic Library Online/Scielo, na Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde/LILACS e no portal de periódicos CAPES. Em cada uma dessas bases, foram utilizadas as seguintes palavras de busca: saúde coletiva; saúde pública; saúde comunitária; medicina preventiva e medicina social – cada uma em combinação com as palavras: identidade, profissional e sanitarista, separadamente e em qualquer parte do texto. A escolha por publicações científicas exclusivamente brasileiras, no presente estudo, baseia-se no fato de que os profissionais sanitaristas são trabalhadores que lidam com questões específicas da população e do sistema público de saúde do Brasil, considerando-se, portanto, que sua práxis e sua identidade são construídas em um universo sociocultural específico. Foram excluídos trabalhos relativos às diversas categorias profissionais em saúde que não tinham como foco a identidade no âmbito da Saúde Coletiva e na perspectiva dos princípios e diretrizes do SUS, a exemplo de estudos que abordam a alta complexidade da atenção em saúde com enfoque meramente biológico. Em alguns casos, quando se utilizaram diferentes descritores ou bases de dados, ocorreu duplicidade de publicações, sendo consideradas apenas uma vez. Após a seleção, procedeu-se à análise das informações de cada estudo, realizando-se leitura interpretativa, sistematização e catalogação, a partir de uma planilha em Excel® contendo: identificação do estudo, palavras-chave, tipo de estudo (ensaios teóricos / artigos de discussão / opinativos; estudos empíricos; revisões da literatura e relatos de experiência), objetivos, metodologia, resultados, análise e conclusões. Para a análise, recorreu-se aos textos completos dos trabalhos selecionados, dos quais sete (quatro dissertações e três teses) não foram encontradas, utilizando-se apenas os seus resumos, que pouco ofereceram elementos necessários para análise na construção desse trabalho. Os estudos foram lidos atentamente para se encontrarem pontos de convergência entre os assuntos tratados, sendo extraídas/ definidas as seguintes categorias temáticas sobre identidade profissional na Saúde Coletiva: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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. Construção da identidade – Estudos que abordam distintas categorias profissionais que desenvolvem suas atividades na área da Saúde Coletiva, enfocando a construção/transformação da sua identidade a partir da trajetória, prática profissional e relações envolvidas nesse processo; . Formação profissional e identidade – Estudos que abordam o processo educacional em Saúde Coletiva em diversas modalidades, escolha vocacional, estrutura e conteúdos curriculares relacionados à identidade dos trabalhadores; . Mercado de trabalho e identidade – Estudos sobre as diversas interfaces da identidade com a estruturação do mercado de trabalho em saúde, campo de atuação profissional em uma perspectiva econômica e de carreira.

Resultados e discussão A busca de trabalhos sobre a temática no período compreendido entre 1990 e 2011 resultou na seleção de setenta trabalhos (vinte resumos de artigos, 34 resumos de mestrado acadêmico e 16 resumos de teses) para uma análise preliminar. Após a exclusão dos trabalhos que não atendiam aos critérios de inclusão deste estudo, foram analisados: quatro resumos de artigos, seis resumos de mestrado acadêmico e três resumos de teses, totalizando 13 publicações que se enquadram nos critérios de seleção. Os resultados apontam para um número pouco expressivo de estudos sobre a temática da identidade dos atores da Saúde Coletiva no Brasil, como mostra a Tabela 1.

Tabela 1. Distribuição dos estudos, segundo período e natureza da publicação Período 1990-2000 2001-2011 Total

Artigos

Dissertações de mestrado

Teses de doutorado

Total

4 4

1 5 6

1 2 3

2 11 13

Observa-se que o número de publicações na década de 1990 foi bastante reduzido, contribuindo apenas com 15,38% da produção, enquanto, na ultima década, verificou-se a concentração de 84,62% dos estudos publicados. Quanto à natureza da publicação, as dissertações de mestrado ocupam 50%, artigos (28,57%) e teses de doutorado (21,43%). Em relação ao tipo de estudo, 23% (três) são ensaios teóricos e 77% (dez) são empíricos. Referindose às categorias analíticas, 76,92% (dez) são publicações sobre a Construção da identidade, 15,38% (dois) sobre Mercado de trabalho e identidade, e 7,7% (um) correspondem à Formação e identidade.

Categoria 1. Construção da identidade As pesquisas sobre a construção da identidade dos atores da Saúde Coletiva mostraram-se frequentes nesse levantamento, representando o maior quantitativo (dez estudos), os quais apresentam especificidades e diferentes perspectivas que merecem ser destacadas. São estudos sobre distintas categorias profissionais que desenvolvem suas atividades na área da Saúde Coletiva, enfocando, portanto, a construção ou transformação da identidade desses atores, a partir de sua trajetória e prática profissional na perspectiva dessa área do conhecimento, bem como nas relações envolvidas nesse processo. Em enfermagem, foram encontrados dois estudos. Gomes e Oliveira (2005) descrevem e analisam as imagens profissionais presentes nas representações de enfermeiros de saúde pública. Faria (2006) discute o papel dos centros de saúde na formação do enfermeiro e na construção de uma identidade 552

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profissional “feminina”, a partir da história das educadoras sanitárias e das enfermeiras de Saúde Pública na primeira metade do século XX, mostrando o desafio das mulheres de demarcar um território de decisões e atuação. O estudo de Faria (2006) revela que a criação e valorização do espaço da enfermagem de Saúde Pública no Brasil foi fruto do esforço inicial da Escola Anna Nery e do Instituto de Higiene de São Paulo, a partir de 1925, com a criação do Curso de Educação Sanitária – além dessas instituições, contou com o apoio da Fundação Rockefeller, que desempenhou um importante papel nesse processo. Dentre os obstáculos enfrentados para a inserção da mulher no mercado de trabalho e na constituição de sua identidade profissional, estava a rígida diferenciação de papéis sociais entre homens e mulheres, além de questões relacionadas à autonomia profissional. Segundo Gomes e Oliveira (2005), os enfermeiros identificam uma imagem do seu trabalho junto à população a partir da relação existente entre eles, gerando, assim, certa credibilidade. Por outro lado, a sociedade demonstra não diferenciar o enfermeiro e a equipe de enfermagem, além de não haver clareza entre identidade e papel profissional do enfermeiro e do médico, ficando implícitos os conflitos relacionados às questões hegemônicas de poder e as múltiplas interfaces da identidade do enfermeiro. Sobre a identidade do médico na Saúde Coletiva, foram encontrados três estudos: a tese de Andrade (2011) sobre os caminhos institucionais e cognitivos percorridos pelo médico Heraclídes de Souza Araújo, que se dedicava a temas sanitários, bem como os personagens que participaram e o auxiliaram na construção de sua trajetória, e como se modelou sua identidade profissional; a tese de Bonet (2003), que analisa o processo de construção da identidade profissional dos médicos de família como um grupo social, a partir da institucionalização e da epistemologia, e a dissertação de Almeida (2010), que investiga a construção da identidade profissional do médico, considerando a diversidade de relações envolvidas nesse processo. Outros dois estudos foram encontrados nessa categoria sobre a identidade do psicólogo na Saúde Coletiva. Santos (2002), em sua dissertação, se propôs a compreender de que forma foi possível o psicólogo que atua na Saúde Pública manter ou transformar sua identidade, a qual, segundo a autora, também se constitui das políticas de Saúde Pública. O estudo revela que houve pouca mudança na identidade desse profissional, que desenvolve sua prática no âmbito da Saúde Pública, ou seja, estes continuam atuando, enfaticamente, como psicoterapeutas. Já Castanho (1996) investiga como os psicólogos que atuam em unidades básicas de saúde reagem e assimilam a transferência da educação para a saúde, a partir da implantação de uma nova política de saúde mental no município de São Paulo, utilizando pressupostos teóricos do conceito de identidade, cujos resultados revelam que os psicólogos estão conquistando a sua autonomia e que o fortalecimento de uma identidade necessita de debates na perspectiva da formação e da prática profissional. A identidade do farmacêutico na Saúde Coletiva foi estudada por Saturnino (2008), a qual analisou a contribuição do Internato Rural do curso de Farmácia da UFMG na formação, resgatando historicamente a construção da sua identidade profissional e sua inserção no SUS. O estudo revela que há um limitado conhecimento sobre o SUS e que o Internato Rural é considerado um importante meio de construção do conhecimento. Ainda afirma a autora que o profissional farmacêutico passa por rompimento de paradigmas e inicia uma nova fase de reconstrução de sua identidade como profissional da saúde. Nesse sentido, Mazer e Melo-Silva (2010) corroboram que mudanças de paradigmas afetam as identidades dos profissionais ao passarem por processos de modificação e transformações na carreira. Cabe destacar que a formação e a prática profissional em Saúde Coletiva estão sustentadas por um corpo de conhecimentos, diferentemente das bases teóricas das diversas profissões da saúde que têm seu foco em aspectos meramente biológicos e no tratamento de patologias. Essa situação tem forte influência na construção de um outro profissional, que incorpore os valores inerentes à área da Saúde Coletiva dificultando a consolidação de uma identidade clara. O estudo de Costa, Fernandes e Pimenta (2008) analisa o processo de conformação da vigilância sanitária no Brasil, sua inserção nas políticas de saúde, a construção da identidade de seus trabalhadores e sua especificidade, o qual revela que, com a reorganização administrativa do Ministério da Saúde no final de 1976, e o reconhecimento da importância da vigilância sanitária no âmbito da Saúde Pública, reafirmou-se a configuração de um novo perfil profissional – o técnico de vigilância sanitária –, 553


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construindo-se, então, uma identidade própria e um saber específico desse trabalhador da saúde. Assim, entram em pauta discussões, seminários e oficinas de trabalho a respeito dos requisitos necessários à formação desses profissionais, emergindo cursos de diversas modalidades, tendo um grande significado no reconhecimento e construção da identidade do profissional de vigilância sanitária. Ainda segundo Costa, Fernandes e Pimenta (2008), a realização de concurso público na década de 2000 passa a constituir a trajetória do profissional de vigilância sanitária, bem como fortalece a sua identidade. A construção da identidade desses profissionais, nos últimos dez anos, tem forte afirmação diante das políticas de saúde, no Brasil, associada à maior visibilidade da área no campo da Saúde Coletiva. Peixoto (2010) investiga sobre a dinâmica do encontro entre duas dimensões da identidade profissional – a do grupo de formação acadêmica e a do grupo de trabalho –, quando o indivíduo se insere em uma equipe multiprofissional. Os resultados revelaram que a dinâmica interativa entre a identidade do grupo de formação e a do grupo de trabalho se complementam, e afirmaram que a construção ou manutenção de uma identidade sofre forte influência de fatores grupais, podendo ser fortalecida quando há reconhecimento dos integrantes sobre sua importância para as relações no âmbito das equipes multiprofissionais. A diversidade de modalidades de formação na Saúde Coletiva e a necessidade de fazer parte de um dado segmento profissional também podem ser consideradas responsáveis pela imagem que o sanitarista elabora de sua prática e de seu campo específico de atuação. Nos espaços de socialização, nas relações entre atores da Saúde Coletiva e, até mesmo, no meio acadêmico, são notáveis as diversas maneiras como alguns sujeitos se apresentam: “sou enfermeiro de formação”, “sou odontólogo de formação”, “sou médico sanitarista”, dentre outras tantas formas. Tais profissionais, ao se expressarem, parecem ter perdido referência da formação inicial, ou seja, da formação graduada, embora essas autodenominações possam ter relação com a construção de uma nova identidade na Saúde Coletiva. Nesse sentido, cabe questionar se, para esses profissionais, a formação pós-graduada é apenas um upgrade que imprime um status diferenciado, e qual identidade prevalece – se a inicial, adquirida no processo de se graduar em determinada profissão, ou se a identidade adquirida ou reconstruída em sua trajetória a partir da inserção e prática profissional no âmbito da Saúde Coletiva. São essas as questões, sobre a identidade dos que atuam nesse segmento, ainda sem respostas na literatura científica. Segundo Dubar e Triper (1998), os processos de construção de identidades são influenciados tanto por fatores profissionais quanto pelas formas típicas de trajetórias individuais e de mundos sociais, sistemas de crenças e de práticas, habitus e projetos de vida. Para Vieira (2007), a dimensão central das identidades se constitui pela questão do trabalho, de seu lugar na sociedade e do sentido que lhes é atribuído. Tais identidades são as formas socialmente construídas pelos indivíduos de se reconhecerem uns aos outros no campo do trabalho e do emprego. A literatura evidencia que a construção da identidade profissional está fortemente ligada à escolha de uma área e ao processo formativo na graduação. Nesse sentido, cabe refletir se a pós-graduação em Saúde Coletiva oferece elementos suficientes para dar conta de transformar/reconstruir essa identidade, ou, até mesmo, se é responsável por isso. Eis, portanto, uma dificuldade a ser superada pelos profissionais, os quais, ao serem formados pelos diversos cursos de graduação da área da saúde com caráter e predominância terapêutica e insuficiência de conhecimentos na Saúde Coletiva, ao se inserirem nesse campo, passam por diferentes sensações e situações que requerem a quebra de paradigmas na reconfiguração de sua identidade, ou, caso contrário, sua prática poderá reproduzir o modelo de atenção em saúde hegemônico. Algumas características da formação e da identidade profissional dos atores da Saúde Coletiva no Brasil têm relação direta com: o processo histórico de desenvolvimento da Reforma Sanitária Brasileira, o amadurecimento, construção e difusão do conhecimento técnico-científico da área. As mudanças em processo nas práticas, nos saberes e na formação refletem no modo de trabalhar e fazem com que a identidade se constitua conforme o envolvimento, a atuação e o papel desempenhado por esses atores na sociedade brasileira. Os estudos demonstram que os profissionais passam por uma reconstrução de sua identidade na Saúde Coletiva, porém com dificuldades no rompimento de paradigmas e na incorporação de novas 554

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práticas e valores inerentes a essa área do conhecimento, ocasionando, assim, uma crise de identidade. Apontam, ainda, que tais mudanças necessitam de debates na perspectiva da formação e da prática profissional.

Categoria 2. Formação profissional e identidade A relação entre a formação profissional e a identidade do trabalhador da Saúde Coletiva foi questão discutida em apenas um estudo desta revisão. No artigo intitulado “Graduação em saúde coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional”, de Bosi e Paim (2010), os autores problematizam a Saúde Coletiva como âmbito de profissionalização, sistematizando alguns fundamentos teóricos, sociais e ético-políticos de uma formação em nível de graduação. Para tanto, recuperam a trajetória em que se vem dando a formulação desses cursos e resgatam alguns elementos sobre a identidade desses atores. Para os autores, o elemento essencial na constituição de uma carreira – com destaque no âmbito da profissionalização em saúde e que confere identidade própria ao profissional – não é dado pela especialização, mas constrói-se na experiência de se graduar em uma determinada área e fazer parte de um segmento profissional. A construção de identidades, em determinado momento histórico, implica relações de poder, como pode ser observado na história das profissões que foram se estabelecendo ao longo do tempo. Bosi e Paim (2010), em seu importante artigo, levantam uma série de questões sobre elementos que são relevantes na construção da identidade dos que atuam nesse segmento: São necessários jovens profissionais em início de carreira, que demarcarão suas trajetórias delineando sua identidade na experiência de ser um sujeito-agente da Saúde Coletiva, sem se submeter a uma “regraduação” ou “desconstrução” ao ingressar com suas formações de origem no campo da Saúde Coletiva, em nível da pós-graduação. Talvez a isso se vincule a nebulosidade observada no que concerne à identidade do campo e dos próprios atores, pós-graduandos, advindos das mais diversas formações da saúde, grosso modo pautadas em núcleos de saberes distantes ou mesmo conflitantes com aqueles que norteiam a identidade profissional da Saúde Coletiva. (Bosi, Paim, 2010, p.2033)

Nesses aspectos, se considerarmos que a construção da identidade profissional é legitimada pela experiência de se graduar em determinada área, observa-se que, diferentemente de outras categorias profissionais, na Saúde Coletiva aconteceu o inverso. Isso porque a graduação em Saúde Coletiva surgiu após anos de amadurecimento e acúmulo de conhecimentos nessa área, a partir dos programas de pósgraduação que se expandiram por todo o Brasil e das disciplinas que compõem os currículos dos cursos de graduação da área da Saúde. Sendo assim, reforça o questionamento sobre qual identidade profissional do agente da Saúde Coletiva prevalece: se a identidade dada pela formação inicial graduada ou a identidade conferida pela pós-graduação, ainda uma lacuna do conhecimento não preenchida pelos estudos encontrados nesta revisão da literatura. Antes da recente abertura dos cursos de graduação em Saúde Coletiva, um aspecto a ser considerado no processo de construção da identidade a partir da formação é o de que o desejo de ser sanitarista não começava a ser despertado durante a escolha e interesse de se graduar em determinada área, como ocorre nas outras profissões, mas, sim, no decorrer do processo formativo na área escolhida, em cujo percurso, ao se aproximar de conteúdos da Saúde Coletiva e de representações sobre a prática do sanitarista, pode surgir o interesse em fazer a pós-graduação. Porém, a identidade desses trabalhadores, para além da formação e da adoção de valores inerentes à prática desenvolvida nessa área, certamente envolve um complexo conjunto de experiências internas e externas, as quais constituem base importante para os primeiros significados atribuídos. Como afirmam Bosi e Paim (2010), a graduação pode conferir uma identidade específica que não se confunde com a dos demais, pois Saúde Coletiva não é especialidade médica, nem de outras profissões da saúde. Nesse sentido, as semelhanças e diferenças na preparação acadêmica dos profissionais sanitaristas – com distintas trajetórias e diversos modelos de formação, seus papéis, diversidade e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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complexidade dos assuntos relacionados a esse campo de atuação – mostram uma obscura identidade dos seus atores. Para além dos estereótipos, ser sanitarista graduado em Saúde Coletiva ou pós-graduado constitui um importante elemento da identidade profissional, podendo-se destacar que a experiência de se graduar influencia na elaboração das identidades, uma vez que se aprende a ser sanitarista desde a graduação, a partir de vivências, estágios, envolvimento com a atuação e a prática, diferentemente de se pós-graduar, com um novo caminho a ser percorrido e construído, na maioria das vezes, prioritariamente com disciplinas teóricas, compreendendo o currículo como limitador. Como afirmam Bosi e Paim (2010, p.2033): “Em termos de identidade, ser pós-graduado é um estatuto distinto de graduado. Não obstante se reconheça a “reconfiguração identitária” oportunizada pela pós-graduação em Saúde Coletiva, o curso de graduação deverá ajudar na demarcação mais clara dos contornos dessa identidade”. Os cursos de graduação em Saúde Coletiva, no Brasil, vêm sendo implantados por diversas instituições, em sua quase totalidade em universidades federais – nesse particular, cabe destacar que esses cursos estão sendo ofertados com distintas nomenclaturas. Outra questão relevante a ser observada é se suas matrizes curriculares são compatíveis e se estão organizadas em um corpo básico de elementos, princípios e valores que convergem, capazes de formar sujeitos com um perfil semelhante. Tais aspectos merecem atenção e reflexão sobre suas influências no perfil do egresso e na conformação de sua identidade. Nesse sentido, conforme apontam Bosi e Paim (2010, p.2033), “é previsível e promissor que se interrogue essa nova identidade, ou seja, esse fenômeno inaugural da graduação em Saúde Coletiva no Brasil e seus efeitos identitários sobre o campo”. Tal fenômeno já põe em pauta uma série de dúvidas e indagações dos profissionais dessa área, seja em ambiente acadêmico, profissional ou em espaços de discussões, como seminários, congressos, dentre outros. Um fato recente se refere à mudança do nome da Associação Brasileira de PósGraduação em Saúde Coletiva para Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a alterações no seu estatuto, com o objetivo de incorporar a graduação. Tais mudanças mobilizaram os sanitaristas, cujo título foi obtido através da realização de curso de pós-graduação na área da Saúde Coletiva/Saúde Pública, produzindo questionamentos sobre a formação do graduado. Desse modo, no momento em que os cursos de graduação em Saúde Coletiva começam a lançar profissionais no mercado de trabalho, surge um conjunto de preocupações sobre a “imagem” e o “espaço” que cada um desses perfis ocupa no mercado, o que pode ser considerado no desenvolvimento de crises de identidade.

Categoria 3. Mercado de trabalho e identidade Foram dois os estudos encontrados que pesquisaram questões relacionadas ao mercado de trabalho e a identidade dos trabalhadores. Ávila (1998) estudou sobre a especialidade do médico sanitarista com enfoque na Residência Médica, privilegiando a opinião dos estudantes de medicina sobre a escolha desta especialidade como carreira profissional, buscando as razões pelas quais tais discentes não optam pela medicina sanitária, além de analisar os fatores que estariam provocando a diminuição da procura dos médicos pela carreira de sanitarista. Segundo a autora, a partir de uma perspectiva econômica, a escolha de carreira do médico tem sido orientada pelas condições externas do mercado de trabalho, e não pelo processo de socialização ocorrido na sua formação. Dessa forma, nos últimos anos e, sobretudo, a partir da década de 1980, tem diminuído a inserção dos médicos em programas de pósgraduação para a formação de sanitaristas. Tal situação se reflete a partir de questões relacionadas ao mercado de trabalho do sanitarista, caracterizado pela inserção no setor público, com baixos salários e perda de status, em comparação com demais especialidades médicas, além da falta de incentivo na graduação. Ávila (1998, p.62) afirma ainda que, pela natureza interdisciplinar e multiprofissional do objeto da Saúde Coletiva, essa área foi se expandindo, não sendo exclusividade da ciência médica, haja vista a participação de outras áreas do conhecimento. Embora seja reconhecida a importância da multiprofissionalidade na área da Saúde Coletiva, essa configuração produziu, de certa forma, uma “indefinição” (aspas do autor) de um perfil para o sanitarista e a categoria médica, além de ter deixado uma falta de clareza sobre suas atividades. 556

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Já Dubar (1997) menciona que a saída da universidade e o confronto com o mercado de trabalho estão entre os acontecimentos mais consideráveis e essenciais na construção da identidade profissional. Seguramente, a diversidade de escolhas e a inserção em uma especialidade configuram-se como importante elemento a ser ponderado na constituição da identidade. Porém, o maior desafio identitário está no confronto com o mercado de trabalho, que assume variados significados de acordo com o país, o nível escolar e a origem social dos atores. Para Vieira (2007), o trabalho assalariado, caracterizado por diferenciações internas, pela expansão dos serviços e segmentação dos empregos, fomenta uma individualização dos comportamentos no trabalho, além de romper com os interesses dos trabalhadores e provocar o desaparecimento de sua consciência de classe. Já Dubar (2007) afirma que a dimensão profissional da identidade adquiriu importância particular, com o argumento de que, se o emprego condiciona a construção das identidades, o trabalho causa suas transformações. Nesse sentido, muito para além do período escolar, a formação influencia nas dinâmicas identitárias. Ainda, segundo Dubar (1997), a identidade profissional pode ser definida pela interseção de três campos, quais sejam: o mundo vivido do trabalho; a trajetória socioprofissional, e os movimentos de emprego (relação dos trabalhadores com a formação, a forma como aprenderam o trabalho que fazem ou que irão fazer). Tais aspectos apresentam, simultaneamente, certa coerência e dinâmica que implicam significativas respostas aos padrões de emprego e do mercado de trabalho. Nessa perspectiva, a identidade é o que identifica o profissional, visto que o modo como ele se apresenta é algo que vai se construindo ao longo do tempo com suas experiências de trabalho, incorporando, assim, o seu papel. Chaves (2005) analisa os discursos dos odontólogos sobre a sua atuação profissional no Programa de Saúde da Família (PSF), com ênfase nos significados das explicações desses profissionais acerca de: suas expectativas, motivações da escolha profissional, constatações sobre as restrições atuais do mercado de trabalho e o funcionamento do PSF como campo de atuação profissional e prática de trabalho. O resultado do seu trabalho aponta para uma crise de identidade profissional entre os cirurgiões-dentistas que atuam no PSF, determinada pelas condições do mercado de trabalho e pela conjuntura das políticas públicas de saúde bucal no país. Embora em condições restritas, o PSF tem sido uma alternativa para o odontólogo diante da saturação do mercado de trabalho no setor privado para este profissional. Dubar (1997) reforça essa reflexão, ao observar que a crise de identidade, da qual muito tem se falado, está relacionada: às dificuldades de inserção profissional, exclusão social, mal-estar relacionado às constantes mudanças vividas no mundo do trabalho e desagregação das categorias que implicam definições de si e dos outros. Considerando esses aspectos, a graduação em Saúde Coletiva, além de fortalecer o interesse sobre a identidade nessa área, aponta mudanças no mercado de trabalho, a partir de uma possível profissionalização, a qual, de acordo com a sociologia das profissões, repercute na definição da aplicação de conhecimentos específicos e em uma prática restrita a categorias profissionais. Consequentemente, caso ocorra sua regulamentação, com a criação de um conselho, torna-se pertinente refletir se provocará uma reserva de mercado. Nesse particular, cabe um questionamento sobre como ficaria a situação dos profissionais das demais categorias, já que, no momento atual, a regulamentação e a inserção do graduado nos Planos de Cargos, Carreiras e Vencimentos são objeto de discussão.

Considerações finais Este estudo permitiu a sistematização da produção científica brasileira sobre a identidade dos atores da Saúde Coletiva, evidenciando um baixo volume da produção sobre essa temática, a qual, por ser bastante limitada, reafirma que a identidade desses profissionais não é claramente percebida. Verificase, na quase totalidade dos estudos, que as discussões pouco se referem a um corpo básico que configura a identidade em Saúde Coletiva, mas, sim, a um conjunto de valores nos quais aparecem convergências. A identidade profissional nessa área é frequentemente confundida com fundamentos das demais categorias profissionais, configurando-se em uma identidade “híbrida”, que não se ancora a um corpo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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básico de elementos capazes de conferir uma identidade específica na Saúde Coletiva, corroborando, assim, com o que apontam Bosi e Paim (2010) sobre a nebulosa identidade profissional dessa área. Os estudos não revelam até que ponto o profissional dessa área tem uma visão da dimensão político-social do seu papel na sociedade, na qual está inserida sua intervenção, e se tais profissionais têm compromisso com o social e com os valores inerentes à prática nesse campo, que certamente são elementos a serem considerados na sua identidade. É necessário refletir sobre a complexidade implicada nesse processo, cada vez mais heterogêneo e de difícil delimitação, bem como nos desafios a serem enfrentados na construção e fortalecimento de uma identidade específica dos atores da Saúde Coletiva, especialmente com a emergência da formação de sanitaristas, a partir da graduação, apontando, assim, para uma possível profissionalização. É possível afirmar que essa identidade sempre esteve – e está – em um processo de construção, e ainda sem uma clara delimitação, havendo necessidade de investigações que contemplem as lacunas do conhecimento. Tornam-se, pois, pertinentes algumas indagações acerca do nosso objeto, a saber: a diversidade constitutiva do ser sanitarista permitiria a consolidação de uma identidade específica para esse grupo profissional? Quais repercussões podem surgir entre as diferentes identidades profissionais na Saúde Coletiva perante uma possível profissionalização? Embora os profissionais tenham feito pós-graduação em Saúde Coletiva, há predominância da identidade adquirida na formação inicial graduada? A diversidade de nomenclaturas e desenhos de curso que ora se apresentam no cenário de criação das novas graduações em Saúde Coletiva tem contribuído para a consolidação de uma identidade ou contribuirá para o aumento da nebulosidade dessa identidade? Esses questionamentos são, por assim dizer, uma tentativa de redirecionamento para um novo e amplo debate acerca do tema aqui delineado, no entendimento de que a Saúde Coletiva é uma área que suscita inúmeros desdobramentos de abordagens no campo da investigação científica.

Colaboradores Os autores Vinício Oliveira da Silva e Isabela Cardoso de Matos Pinto participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências ALMEIDA, M.T. A ordem médica e a desordem do sujeito na formação da identidade profissional médica. 2010. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. 2010. ANDRADE, M.M. Capítulos da história sanitária no Brasil: a atuação profissional de Souza Araujo entre os anos 1910 e 1920. 2011. Tese (Doutorado) – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2011. ÁVILA, C.S. Médico-sanitarista: ainda uma escolha de carreira. 1998. Dissertação (Mestrado) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 1998. BECK, J.; YOUNG, M.F.D. Investida contra as profissões e reestruturação das identidades acadêmicas e profissionais. Cad. Pesqui., v.38, n.135, p.587-609, 2008. BONET, O.A.R. Os médicos da pessoa: um estudo comparativo sobre a construção de uma identidade profissional. 2003. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2003.

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CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOS ATORES ...

SILVA, V.O.; PINTO, I.C.M. La construcción de la identidad de los actores de la salud pública en Brasil: una revisión de la literatura. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.549-60, jul./set. 2013. El objetivo fue analizar la literatura científica cerca de la identidad de actores de la salud pública en Brasil, de 1990 a 2011. Se realizó una revisión sistemática de la literatura, de resúmenes, artículos y trabajos académicos, a partir de las bases de datos LILACS, SciELO y CAPES. De las publicaciones seleccionadas después de un análisis surgieron tres categorías: construcción de la identidad, formación e identidad y mercado de trabajo e identidad. En casi todos los estudios las discusiones se refieren poco a un cuerpo básico que establece la identidad en salud pública y sí a un conjunto de valores en los que surgen convergencias. Es necesario reflexionar sobre la complejidad de este proceso, especialmente con el surgimiento de la formación de sanitaristas, a partir de la graduación, señalando, por lo tanto hacia una posible profesionalización.

Palabras clave: Salud Pública. Identidad profesional. Profesionales de salud.

Recebido em 16/04/13. Aprovado em 19/06/13.

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artigos

Movimentos de resistência no Sistema Único de Saúde (SUS): a participação rizomática*

Bruna Ceruti Quintanilha1 Francis Sodré2 Maristela Dalbello-Araujo3

QUINTANILHA, B.C.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. Resistance movements in the Brazilian National Health System (SUS): rhizomatic participation. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.561-73, jul./set. 2013. Social participation in the Brazilian National Health System (SUS) ensures that users have an important influence on its construction. However, we postulated that various ways of manifesting this participation exist, going beyond those already instituted. We took the view that these are resistance movements, called rhizomatic participation. With the aim of mapping their occurrence in the daily routine of health centers, we created strategies and instruments within a qualitative research approach inspired by a cartographic stance and implication analysis. The movements perceived were grouped into three types of analysis providers: those that said things, those that said bad things and those that said nothing. We took into consideration the conditions that gave rise to occurrences and the effects that these conditions produced. We suggest that rhizomatic participation movements should be understood as health service analysis points, because making them explicit makes it possible to rethink the practices instituted within SUS.

A participação social no SUS assegura a importância da interferência do usuário para sua construção. Entretanto, postulamos que existem várias formas de manifestação da participação, para além das já instituídas, que afirmamos serem movimentos de resistência, denominados de participação rizomática. Com o intuito de mapear sua ocorrência no cotidiano de unidades de saúde, criamos estratégias e instrumentos inscritos na abordagem qualitativa em pesquisa, inspirados na postura cartográfica e na análise da implicação. Os movimentos percebidos foram agrupados em três tipos de analisadores: os ditos, os mal ditos e os não ditos. Consideramos as condições que propiciaram a ocorrência e os efeitos produzidos por eles. Sugerimos que os movimentos de participação rizomática devem ser entendidos como pontos de análise dos serviços de saúde, pois sua explicitação possibilita repensar as práticas instituídas no SUS.

Palavras-chave: Participação Social. Sistema Único de Saúde. Centros de Saúde.

Keywords: Social participation. Brazilian National Health System. Health Centers.

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* Elaborado com base em Quintanilha (2012); pesquisa realizada com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (Capes). 1 Centro de Referência da Assistência Social de Vitória. R. Santa Rita de Cássia, n.160, Bairros de Lourdes. Vitória, ES, Brasil. 29042-753. quintanilhabc@gmail.com 2,3 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo.

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MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE...

Introdução A participação social é considerada uma das maiores conquistas do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que inclui a população como gestora deste sistema. Essa conquista é fruto de movimentos sociais iniciados na década de 1970, que culminaram na constituição do sistema de saúde brasileiro, em 1990 (Luz, 2007; Gerschman, 2004; Labra, Figueiredo, 2002; Dagnino, 2002). Moreira (2008, p.15) ressalta que institucionalizar os Conselhos e Conferências de Saúde no Brasil, “definindo-os como as instâncias mandatórias responsáveis pela promoção da participação da sociedade na gestão do SUS, foi uma ousadia democratizante que apontava para uma proposta de reforma política”. Com a regulamentação da lei 8.142/90, a interferência dos usuários no sistema passa a ser legitimada. Esta lei estabelece as instâncias colegiadas dos Conselhos e Conferências de Saúde, em cada esfera de governo, como mecanismos para efetivação da participação, instâncias que são compostas por gestores, profissionais da saúde e usuários. Estes detêm representação paritária em relação aos demais segmentos. Assim, do total de conselheiros que os constituem, 25% são representantes de gestores, 25% de profissionais e 50% de usuários (Brasil, 1990). Entretanto, diversos autores têm apontado que a participação social não se restringe às instâncias instituídas. Nesse sentido, Longhi e Canton (2011) afirmam que se faz necessário encontrar outras vias de mobilização para que os direitos dos usuários sejam assegurados. Costa e Lionço (2006) reforçam essa premissa ao proporem o fortalecimento da vocalização de grupos sociais. Já Soratto, Witt e Faria (2010), Guizardi, (2009, 2008) e Brasil (2009) discutem que o processo de participação deve estar vinculado também a outros espaços, os quais devem ser mais flexíveis e porosos do que as instâncias de participação já existentes (Brasil, 2006). De acordo com Guizardi (2009), a participação do usuário tem sido cerceada pelos mecanismos instituídos, tornando-os menos eficazes no propósito de serem locais de vocalização política da sociedade civil. O documento ParticipaSus (Brasil, 2005) ressalta que a gestão participativa se encontra presente no cotidiano dos serviços de saúde. Dalbello-Araujo (2005) observa que a população participa da construção do SUS, mesmo quando esta não acontece nos moldes institucionais previstos pelas diretrizes. Segundo a autora, a população “participa porque produz tensão, gera conflito, exige mudança de posturas” (Dalbello-Araujo, 2005, p.160). Em recentes pesquisas realizadas sobre os processos de trabalho nas Unidades de Saúde, Quintanilha e Dalbello-Araujo (2009), Iglesias (2009) e Faria (2010) puderam mapear os jogos de força que perpassam a relação entre usuário e profissionais, no cotidiano dos serviços, e concluíram que os usuários se utilizam de diversos meios para anunciar o que pensam e querem. De acordo com Iglesias (2009, p.122), a população inventa formas para impedir que a controlem e assinala: “o usuário se afirma como gestor e inventor de sua própria vida, baseado em seus interesses e valores. Isso [...] [resgata] a importância de tomar os sujeitos como imprescindíveis no processo de produção de saúde”. Segundo Quintanilha e Dalbello-Araujo (2009), os usuários criam brechas para se expressarem, mesmo quando não são convidados a dizer o que sentem ou pensam. Faria (2010) constatou que a participação social em Unidades de Saúde, por vezes, se manifesta na forma de gritos e confusões. Em nosso entendimento, essas manifestações são formas de resistência, movimentos que vão de encontro à ordem estabelecida (Foucault, 2006; Oliveira, 2001). A essas formas de participação denominamos participação rizomática (Quintanilha, 2012). Neste artigo, explicitaremos sua conceituação e a cartografia de sua configuração no cotidiano de seis Unidades de Saúde, componentes da região de Maruípe, no município de Vitória/ES.

Os movimentos de resistência e a participação rizomática Os usuários participam a seu modo do cotidiano dos serviços de saúde. Assim sendo, podemos afirmar que a participação social também se efetiva em espaços diferentes dos já institucionalizados e assegurados por lei, tais como os Conselhos e Conferências de Saúde. É inegável que a população provoca interferências nos serviços de saúde, e movimentos se materializam e ganham corpo nas mais diversas formas, ainda que, muitas vezes, sejam abafados ou calados. Fica evidente que as formas encontradas pela população para participar e interferir nos serviços de saúde podem ser tomadas como 562

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movimentos de resistência, como descritos por Foucault (2006). Para ele, as resistências são distribuídas de modo irregular: Os focos de resistências disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. [...] É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, trançando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (Foucault, 2006, p.106)

Os movimentos de resistência extravasam o significado de se opor a algo ou a alguém, eles envolvem a criação e a mudança no que está estabelecido. Como afirma Oliveira (2001, p.56), as resistências são “uma criação sempre social de outras possibilidades de vida”. Muitas vezes, são ações empreendidas sem uma intenção preestabelecida, isto é, não há um planejamento prévio do agir. No entanto, Romagnoli et al. (2009) afirmam que, se existe resistência, é porque não há total captura das forças inventivas da vida. Assim, se há produção de novas formas de vida, é porque existem movimentos de resistência. As resistências quebram ou questionam uma forma hegemônica e preestabelecida de funcionamento das instituições. Neste contexto, estas não correspondem às estruturas físicas ou prédios. De acordo com Lourau (2004a, p.71), instituições são normas, que “incluem também a maneira como os indivíduos concordam, ou não, em participar dessas mesmas normas”. O autor ressalta que as relações sociais fazem parte do conceito de instituição. Com base nessa análise, entendemos que as instituições devem ser tomadas como relações consideradas comuns ao modo de funcionamento do serviço de saúde, da família, da escola, da fábrica, da loja, do presídio. Os incômodos são produzidos a partir das relações que os sujeitos estabelecem entre si, provocando movimentos de resistência. Todo encontro é perpassado por jogos de forças que produzem tensão, modificando a conformação das forças que perpassam e compõem os corpos, pois, não é possível afirmar que este ou aquele encontro provocou o incômodo. Porém, se há produção deste é porque há desejo de mudança. Podemos afirmar, então, que as resistências são movimentos de participação social, exatamente porque se constituem como fruto de afetações que houve na trajetória das pessoas e emergem no sentido da afirmação de um desejo de que algo seja diferente daquilo que é dado. No contexto dos serviços de saúde, os movimentos de resistência expressam os desejos dos usuários em relação ao que está estabelecido, sendo as resistências uma forma de o usuário participar de sua gestão. Sem dúvida, um modo menos articulado de se expressar sobre o serviço do que aqueles elaborados nas Conferências de Saúde, mas, não menos eficiente, porque pode ter tantas repercussões no modo de funcionamento do serviço quanto as deliberações dos espaços instituídos. Estar atento ao cotidiano, à lógica solta das relações que se dão dentro das instituições significa pensar a política pela ótica da experimentação – política baseada no experimento. A política de participação não é apenas a mobilização da necessidade de estar contra ou a favor (Lazzarato, 2006), há uma necessidade de engajamento, da ação em prol da igualdade subordinada ao acontecimento. Pensar os movimentos de resistência e participação para além do âmbito das conferências ou das ações instituídas representa pensar uma política do devir, uma política concebida como experimentação, o que nos coloca cautelosos para compreendermos que consideramos, como político, tudo aquilo que é relacional, potente por ser instituinte. Às formas de participação que se caracterizam como movimentos de resistência – que criam, inventam, produzem novos modos de existência, novas normas para a vida –, denominamos participação rizomática. Atribuímos-lhes o adjetivo rizomática por serem amorfas, ou melhor, não possuírem uma forma exata para emergirem. Deleuze e Guatarri (1996, p.22) afirmam que “[u]ma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas”. Ou seja, ele não tem começo nem fim determinado, pode ser visto através de diferentes ângulos e está sempre em COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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transformação. De acordo com Deleuze e Guatarri (1996), o rizoma é um sistema não centrado. Equiparar esse modo de participação ao rizoma é atribuir-lhe o adjetivo de ruptura, de descontinuidades difíceis de mapear. É, assim, oposto às arvores, que têm estrutura e raízes, cujo tronco equivale ao centro, e os galhos, às suas repartições. A participação rizomática se caracteriza, então, por não ter uma forma preestabelecida de existência ou ocorrência. Esses movimentos são lutas empreendidas no cotidiano do serviço que emergem das relações entre aqueles que o compõem. Tanto trabalhadores como usuários resistem. Contudo, em nossa pesquisa, privilegiamos o mapeamento dos movimentos que emergem das ações de usuários, para reverberar uma forma que tem sido pouco valorizada e contrapor às ideias de que os usuários são agentes que não participam. Afirmar que a participação do usuário é pequena (Trad, Esperidião, 2009; Escorel, 2008) orienta a solução de que é preciso ensiná-lo sobre a importância de participar dos conselhos ou de que é necessário capacitá-los para agirem como tal. Afirmar que há pouca participação e pouca assiduidade nos espaços consagrados como mecanismos instituídos de participação (conselhos, conferências locais) sugere que o conceito de representação está em crise. Não obstante, é preciso estar atento ao sentido das ausências, que também podem significar um protesto silencioso de resistência contra o sistema representacional que está repleto de descrédito. Essa maneira de conceber os usuários pode estar relacionada com o fato de eles serem vistos apenas como demandantes no serviço de saúde. Trad e Esperidião (2009, p.567) sugerem que “compartilhar com os usuários os problemas enfrentados pelas equipes no dia-a-dia [sic] do seu trabalho e pelo qual são responsáveis contribuiria para tirar o usuário de uma posição de ‘demandante’: alguém que espera pacientemente (ou não) que suas necessidades de saúde sejam atendidas”. Admitir o usuário como demandante reforça a ideia de que, para haver mudanças, é preciso dar voz à população. Entretanto, considerar que os movimentos de resistência são formas de participação social – denominadas participação rizomática –, significa afirmar que a população tem voz, que ela expõe suas necessidades e desejos no cotidiano dos serviços; ocorre que, muitas vezes, essa forma de participação não chega a ser ouvida. Como afirma Foucault, a população não precisa dos especialistas para saber o que fazer, “elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles, e o dizem muito bem. Mas, existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber” (Foucault, 1979, p.71). No dia a dia das Unidades de Saúde, o usuário, com frequência, tem seu saber desconsiderado e suas falas ignoradas. Essa postura acaba por cercear os movimentos de interferência no serviço por parte dos usuários. Entender a política como exercício cotidiano impõe reconhecer, nesses homens e mulheres, sujeitos capazes de diálogo e decisão. Para tanto, deve-se estimular a proliferação de trocas e reflexões entre profissionais, e destes com a comunidade, e, desse modo, construir práticas de saúde a partir da solidariedade, do respeito e do mútuo reconhecimento, pois, dessa forma, se criam condições de estímulo para a invenção de saídas coletivas para os problemas (Dabello-Araújo, 2005). Diante do exposto, propusemo-nos a mapear os movimentos de participação rizomática que emergem das ações dos usuários no cotidiano de seis Unidades de Saúde de uma região do Município de Vitória, ES.

Metodologia Para mapear as manifestações da participação rizomática no cotidiano de Unidades de Saúde, foi preciso acompanhar processos e criar instrumentos que permitissem dar visibilidade a elas. A pesquisa se baseou na abordagem qualitativa, porque esta permite investigar o mundo social por meio das vivências, das experiências e da cotidianidade (Romagnoli, 2009), proporcionando aproximação e intimidade entre o pesquisador e o que está sendo pesquisado.

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Para a realização do campo da pesquisa4, elegemos seis Unidades que fazem parte de uma das Regiões de Saúde do Município de Vitória, Espírito Santo. Vale ressaltar que, em todos os serviços da rede de saúde, é possível mapear a participação rizomática, já que ela não possui um local específico para acontecer. Entretanto, elegemos as Unidades por entendermos que elas propiciam uma relação mais próxima com o usuário, posto que eles frequentam assiduamente esses serviços. Em dezembro de 2010, apresentamos a proposta da pesquisa aos coordenadores das Unidades, e, após conhecimento e consentimento, passamos a frequentá-las diariamente, até junho de 2011. Apresentar a pesquisa aos coordenadores foi importante para que pudessem ser sanadas as dúvidas relativas à metodologia, e pudéssemos assegurar-lhes a não-necessidade de alteração da rotina do serviço. Em relação aos demais profissionais, entendemos não ser necessária a explicitação detalhada dos propósitos da pesquisa, pois o conhecimento sobre a mesma poderia alterar o modo das relações com os usuários. Neste ínterim, participamos da Conferência de Saúde do Município de Vitória. Tal decisão se deu por reconhecermos que a presença nesse local poderia contribuir para verificar como se dá a tessitura da relação entre usuário-profissional em espaços instituídos de participação. Para investigarmos os movimentos cotidianos de participação, mais especificamente, para mapearmos quais formas assumiram os movimentos de participação rizomática, colocamo-nos na postura de cartógrafos. Trata-se de uma postura metodológica e política relativa à maneira como estabelecemos nossas relações, que se coadunam com o modo como entendemos sua produção histórica, a partir dos jogos de poder. De acordo com Romagnoli (2009, p.169), a “cartografia se apresenta como valiosa ferramenta de investigação, exatamente para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação”. Kastrup (2009, 2007) complementa, afirmando que a cartografia sempre investiga um processo de produção, que é um método ad hoc, ou seja, que se constrói caso a caso. A postura cartográfica parte de uma reversão metodológica que desafia o pesquisador a transformar metá-hódos em hódos-metá. Por método (metá-hódos) se entende que a pesquisa possui um caminho predeterminado para alcançar as metas ou objetivos (Passos, Kastrup, Escóssia, 2009). De acordo com Ferigato e Carvalho (2011, p.668), com essa reversão, o que se propõe é o “primado do caminho, e não da meta, [isso] faz com que a pesquisa seja, antes de tudo, uma experimentação, um processo em aberto em que operam séries de dobras e desdobras, de inesgotáveis problemas e descobertas.” A postura cartográfica aposta na experimentação como atitude, isto é, afirma que a pesquisa é tão normativa quanto a vida, logo, está em constante transformação e ressignificação. O pesquisador se lança a experimentar os encontros proporcionados pela pesquisa, com a clareza de que não sabe, ao certo, o que irá encontrar, nem o que resultará desses encontros. A escolha pelo método cartográfico fez-se, nesta pesquisa, por reconhecermos que a participação rizomática surge dos encontros com formas imprevisíveis. Assim, era preciso que o sentir do pesquisador fosse considerado para se tomar conhecimento de como eram os movimentos que emergiam dos encontros cotidianos nas Unidades de Saúde. Isso porque, seria desde como o pesquisador evidenciasse o que emerge dos encontros que poderíamos desenhar quais formas a participação rizomática pode ter. A pesquisa se constituiu em uma caminhada na qual utilizamos várias ferramentas, dentre elas, o diário de ocorrências. As ocorrências cotidianas se fazem no acontecimento, no acaso do encontro, assim como a participação rizomática. O

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4 O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Espírito Santo e pela Secretaria Municipal de Saúde do município de Vitória, ES.

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diário consiste no registro de todas as informações, sensações e percepções obtidas no campo de pesquisa. De acordo com Minayo (2007), é interessante o investigador registrar a maior diversidade possível de pensamento e, também, de emoções. De acordo com Hoffman (2009, p.57), o resultado do percurso feito pelo cartógrafo “é uma experiência expressiva dos encontros que foram se fazendo e das relações singulares que se construíram durante o processo de pesquisar”. Estabelecemos a relação com o campo da pesquisa, levando em conta que somos afetados por ele e, também, o afetamos. Por isso, compreendemos que o conceitoferramenta de análise da implicação, advindo da Análise Institucional, nos permite depreender os jogos de forças que produzem os movimentos de participação rizomática. A análise da implicação põe “em evidência o jogo de interesses e de poder encontrados no campo de investigação” (Paulon, 2005, p.23); dessa forma, é importante analisar a si mesmo e aos outros a todo momento (Lourau, 1993). “Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é [...] admitir que sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias, etc.” (Lourau, 2004b, p.147-8). Lourau (2004a) afirma, também, que a análise visa a evidenciar as relações estabelecidas entre elementos aparentemente independentes, e o processo visa a decompor os movimentos captados, e não interpretá-los. Isto é, “[n]ão se trata de construir um discurso explicativo, mas de trazer à luz os elementos que compõem o conjunto” (Lourau, 2004a, p.70). Esses elementos revelados recebem o nome de analisadores. Com base nessas reflexões, tomamos, como analisadores, os movimentos que registramos no diário de ocorrências. Eles se compuseram pelos questionamentos oriundos dos encontros e afetos produzidos durante o campo da pesquisa. O registro dos incômodos produziu três pontos de análise: os ditos, os mal ditos e os não ditos. O primeiro deles corresponde aos momentos em que vimos a participação rizomática ganhar forma. São movimentos em que os usuários criaram modos de se relacionarem com o serviço nos quais questionavam as relações estabelecidas e os protocolos impostos, ou reafirmavam formas de funcionamento que os agradavam. O encontro com esses movimentos explicitou que as relações construídas nos serviços são permeadas de afeto e de pontos de tensão que são impossíveis de serem previstos e enclausurados em normas e regras. Notamos, também, como é difícil, para o profissional, lidar com o imprevisível. O segundo ponto de análise partiu dos movimentos que se manifestavam como que coartados, momentos que minavam sem constituir um acontecimento. Isso foi percebido quando os usuários se comunicavam entre si, criticando o serviço, ou quando ameaçavam chamar a mídia para resolver os problemas, sem que esse ímpeto se atualizasse em ação. Esses movimentos foram denominados analisadores mal ditos. O terceiro analisador são os chamados de não ditos. Eles surgiram do incômodo produzido no cartógrafo, a começar pela não-ocorrência da participação rizomática. Assim, havia dias em que registrávamos que “nada” aconteceu na Unidade. Neste artigo, explicitamos o que entendemos de cada um deles, sua forma de manifestação, e realizamos uma análise sobre a potência de transformação neles impressa.

Ditos O primeiro analisador que discutimos neste artigo são os ditos, que correspondem aos movimentos de participação rizomática cartografados nas Unidades de Saúde. São compostos por pontos de resistência, movimentos de criação que questionam ou afirmam formas de funcionamento instituídas e quebraram protocolos estabelecidos (Romagnoli et al., 2009; Foucault, 2006; Pelbart, 2003; Deleuze, 1992). Os ditos expressam o desejo do usuário de efetivar mudanças no sistema de saúde, seja na forma como as relações estão construídas ou em seu modo de funcionamento. Durante os seis meses em que frequentamos assiduamente as Unidades, pudemos mapear inúmeras ocorrências desses movimentos, e constatamos que eles se apresentam de diferentes formas. Notamos que os usuários, por vezes, expressam diretamente, ao profissional, uma avaliação daquilo que gostam ou não no serviço. Em outras ocasiões, percebemos que eles procuram diferentes profissionais para 566

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5 O comum aparece como um hábito e não se refere a noções tradicionais de ‘comunidade’ ou ‘público’, mas baseia-se na comunicação entre singularidades. O comum se manifesta através de processos colaborativos de produção. “Manifesta-se como uma carência, mas na realidade está cheio de produção biopolítica” (Negri, Hardt, 2005, p.269).

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resolver um mesmo problema, assim como presenciamos situações em que os usuários solucionaram problemas uns dos outros sem que houvesse a interferência de um profissional. Entretanto, também evidenciamos diversas ocasiões em que manifestaram o que pensam ou o que querem aos gritos. E, como que, numa última tentativa, vimos muitos usuários saírem porta afora, afirmando que iriam buscar outro serviço que lhes resolvesse os problemas. Consideramos esses movimentos como sendo participação rizomática por serem inventivos, imprevisíveis e possuírem formas diversas. Eles questionam o serviço de forma incerta, pois não se sabe em que resultarão, uma vez que se produzem no encontro. É impossível prever seu surgimento, assim como a intensidade de seu reverberar dentro do serviço, visto que são construídos nas relações, e a reverberação dependerá das ressonâncias que conseguirem obter. A imprevisibilidade e a potência questionadora dos movimentos de participação rizomática ficaram evidentes em uma das cenas que presenciamos, na qual uma usuária mobilizou todos que estavam na Unidade, ao dizer, aos gritos, que achava injusta a forma como as senhas de marcação de consultas foram distribuídas. Alegava que um usuário havia recebido mais de uma senha, o que fez com que outros ficassem sem. Essa manifestação teve grande impacto, e vários dos presentes se sentiram livres para opinar e acrescentar suas histórias. Uma delas completou que os agentes insistem para que ela vá à Unidade, mas de que adiantaria ir se não consegue ser atendida? Outra usuária pediu pela presença da coordenação e, para que isso não se realizasse, resolveu-se o impasse, oferecendo senhas aos que reclamaram. Mesmo depois de resolvido o conflito, alguns permaneceram discutindo o assunto entre profissionais e usuários do serviço. As opiniões se diversificavam, alguns concordaram com as reclamações dos usuários, outros afirmavam que havia prazer em tumultuar o serviço. Baseando-nos em nossos exemplos, afirmamos que os movimentos de participação rizomática, produzidos pelos usuários, manifestam-se no momento do encontro com alguma situação que os afeta de forma intensa, por isso, são processos micropolíticos e amorfos, logo, rizomáticos. São movimentos inconscientes e não possuem um planejamento prévio. Lévy (2003, p.25) afirma que o inconsciente é composto de “agenciamentos coletivos de enunciação, os rizomas heterogêneos ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos quais se lançam e se relançam nossas existências”. Quando um usuário produz um movimento de resistência, ele dá forma ao desejo e à vontade de outros usuários. Assim, o modo no qual a participação rizomática emerge resulta de diversos encontros anteriores à própria verbalização. Encontros ocorridos: no corredor da Unidade, no churrasco do fim de semana, na Igreja do domingo, na escola do filho, no ônibus que passa pelo bairro, no café em casa. Aquele que vocaliza não fala apenas por si, mas por todo um coletivo que compõe uma rede de encontros. Entendendo que o coletivo é composto pelas experiências cotidianas e convoca o comum5 que envolve a relação com aquilo que faz parte do mundo, Escóssia (2003, p.186) assevera: “é incluindo o mundo e [é] nos compondo com ele que nos reinventamos e reinventamos o mundo.” Digamos, então, que o usuário que fala é composto por muitos. No caso da participação rizomática, ao afirmarmos que um usuário dá forma ao desejo de outros, estamos falando do coletivo em nós que é construído nos encontros vividos com os vizinhos, os amigos, os parentes e as ocorrências do serviço. A participação rizomática fala de um modo de expressão do desejo e deve ser entendida como uma forma de se repensarem relações. Com isso, afirmamos que ela se apresenta em qualquer espaço e possui diversas formas, podendo ser 567


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observada: no corredor da Unidade, na reunião de equipe, na consulta com o profissional de saúde, na igreja do bairro, na festa de aniversário da vizinha, no centro comunitário. A participação rizomática pressupõe liberdade, invenção e transformação. Tentar normalizá-la está no campo do impossível. Afinal, movimentos de resistência sempre existirão, já que se formam nas tensões entre forças. Essas tensões são produzidas nas relações que se constroem nos serviços: entre usuários, profissionais e as burocracias; enfim, entre tudo e todos que os compõem. A resistência mostra-se quando a tensão que se forma entre as forças produz incômodo. Portanto, entendemos que os movimentos de participação rizomática devem ser tomados como analisadores das relações que estão estabelecidas no serviço de saúde, como atos que propiciem repensar a dinâmica do serviço e rever o que as relações entre atores e instrumentos6 estão produzindo. Entendemos que os ditos são formas de manifestação nas quais os usuários se posicionam em relação ao serviço. Seria fundamental que os profissionais os acolhessem, visto que eles poderiam oferecer inúmeras pistas de soluções aos problemas e gerar mudanças de posturas.

Mal ditos O segundo analisador que discutimos neste artigo são os mal ditos. Se os ditos correspondem à participação rizomática, este analisador relaciona-se à sua imanência. Foram compostos por falas entre usuários nas quais manifestaram alguma opinião ou sugestão sobre o serviço, nenhum outro movimento foi empreendido no sentido de se efetivarem atos que culminassem em mudanças nas Unidades. Os analisadores mal ditos se caracterizaram como movimentos em que a ação não se evidenciava como uma tensão entre usuários e serviço. Vale ressaltar que, na ocorrência dos mal ditos, é possível observar que há um incômodo em relação ao que está estabelecido no serviço, porém, apesar de verbalizado, não se desdobra em ações que coloquem esse incômodo em questão. Podemos nos questionar sobre o porquê de os usuários não transformarem seus incômodos em ação. Em algumas das ocorrências, tivemos a impressão de que havia um movimento de desresponsabilização por parte deles, como se estivessem esperando que alguém tomasse uma atitude, a partir das várias reclamações ali expressas. Todavia, o “verbalizador” não pôde ou não quis fazer nada. A partir disso, construímos três possíveis linhas de análise para esse não agir. Uma delas se refere ao fato de supormos que apenas movimentos sociais organizados – tais como sindicatos e associações – possuam ferramentas suficientes para provocarem mudanças naquilo que está imposto. Outra linha diz respeito ao papel que a mídia tem tomado na denúncia dos problemas e, com isso, consegue a resolução deles. Por último, em uma terceira linha de análise, inferimos se o sistema representacional estaria acarretando essa desresponsabilização, desde que se presuma haver sempre alguém que representa os interesses de seus pares, por isso, não se faz necessário agir. Ressaltamos que, neste artigo, iremos analisar apenas esta última questão, porquanto julgamos que as outras duas derivam, em certa medida, da terceira. O sistema representacional adotado na maioria das instâncias de poder pressupõe que os representantes serão escolhidos por seus pares e, assim, o que possuir um quantitativo maior de votos será aquele com a força para defender melhor os interesses dos demais. Constitui uma premissa do sistema o fato de que alguns representem a vontade de todos ou da maioria. Em função disso, o usuário se coloca numa posição de passividade, já que naturaliza a ideia de que sempre haverá um outro que falará e lutará por ele. Asensi (2010) afirma que, na verdade, a forma de se relacionar com o sistema representacional faz parte da cultura cívica brasileira. Para ele, nossa cultura “é marcada muito mais pela passividade da sociedade civil do que por sua forte atuação na 568

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Por instrumentos. entendemos: as regulamentações das Políticas e Programas ministeriais, o como funciona o fluxo de atendimento da Unidade, a forma como se faz a marcação de consultas, as fichas que precisam se preenchidas, e outros.

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efetivação, construção e garantia de direitos” (Asensi, 2010, p.23). Lattman-Weltman (2008) defende ser simbólica a representação, e que o representante não expõe, efetivamente, a vontade da maioria. Para Guizardi, (2009, p.14), o sistema representacional é tido como uma “prática política por excelência, força maior de expressão dos poderes ‘do cidadão’, cujo exercício político fica, desta forma, confinado num território próprio e distante de seu fazer cotidiano”. Vale afirmar que, geralmente, os usuários não são representados em sua totalidade nas instâncias instituídas pelo sistema representacional, e, como contraponto à ideia da representatividade, propomos pensar que o combate se dá no coletivo. A ideia extravasa a imagem de que cada segmento, grupo ou instituição luta por uma causa diferente, assim sendo, aposentados, mulheres, negros, gays, lésbicas, travestis, estudantes, professores, usuários, bancários possuem, como luta principal, o reconhecimento e a valorização da diferença. Valorizar e reconhecer a diferença é assumir que existem diversos modos de ser e que nenhum deles é melhor ou pior. As pessoas possuem desejos diferentes que as levam a ter prazer em diferentes modos de se relacionarem com as coisas e seres que compõem o mundo, pois, a luta do coletivo é a luta de todos, e não de um grupo específico. Ademais, os mal ditos dizem respeito aos incômodos que os usuários sentem em relação ao serviço, portanto, há uma vontade de mudança que os perpassa. Desse modo, é possível afirmar que há um desejo em comum entre eles, contudo, esse desejo ainda não ganhou forma de maneira que possa ser manifestado e percebido. Sugerimos que profissionais e usuários ressignifiquem os mal ditos para que eles possam se atualizar de modo que consigam efetivar mudanças nas normas estabelecidas.

Não ditos O terceiro analisador que discutimos são os não ditos, e correspondem a um contraponto dos ditos, porquanto são concebidos como os momentos em que sentimos que o nada aconteceu, ou melhor, constatamos a ausência da participação rizomática. Tal analisador se manifesta, para nós, a partir do incômodo sentido com a não-ocorrência dos movimentos. Com isso, colocamos em evidência nossa implicação no campo e na pesquisa, uma vez que a análise de implicação pressupõe que os jogos de força e poder emergem dos encontros ocorridos no campo da pesquisa (Paulon, 2005). É importante ressaltar que, acompanhando o cotidiano das Unidades de Saúde, podem se ouvir ruídos dos ventiladores, dos carros na rua, o som da TV e das vozes de profissionais e usuários. Esse cotidiano é repleto de movimento. Todavia, eles nos pareceram sem vida. Podemos afirmar que algo era dito, porém sua expressão estava tamponada. Questionamos, pois, apesar de haver movimento, nos parecia que nada estava acontecendo. Compreendemos que esses não ditos podem ter sido produzidos historicamente, a partir do silenciamento dos desejos dos usuários. Esse processo se relaciona com a construção da ideia de que, naquele espaço institucional, os profissionais são os únicos detentores de saber. Ao se colocarem nesse lugar, contribuem para o emudecimento dos usuários e para a não-expressão de seus desejos; portanto, para a permanência daquilo que está posto. A manutenção da relação saber-poder é feita por profissionais, pela academia, pelos veículos de comunicação. Com suas práticas e falas, todos eles reafirmam o status do saber acadêmico-científico na sociedade. Assim, se o profissional se coloca no lugar de professor, o usuário assume o papel daquele que nada sabe e precisa aprender. Durante os meses em que acompanhamos o serviço das Unidades, ouvimos, diversas vezes, que o usuário não tem cultura, não tem conhecimento, não tem saber, não sabe o que quer. Discordando, a pesquisa de Trad e Esperidião (2009) afirma que são os profissionais de saúde os que têm dificuldade em valorizar o saber do usuário. Segundo os mesmos autores, os profissionais sabem da importância de se horizontalizarem as relações, recusando posturas hierárquicas, mas, ao mesmo tempo, assumem que seu saber é superior ao do usuário. Não há duvida de que o saber deste é diferente do saber técnicocientífico, entretanto, deve ser valorizado, uma vez que representa as suas vivências e diz do seu querer. Nesse jogo de forças, evidencia-se que os profissionais estão impregnados por um saber que dita o certo e o errado, e desconsidera o que não está nos manuais acadêmicos. Dessa forma, no cotidiano de trabalho, recorre-se ao que foi aprendido nas instituições de ensino e que, geralmente, corresponde a técnicas de disciplinarização dos usuários. Estes, de tanto sentirem seu saber e experiência sendo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ignorados, tornam-se mudos em todos os espaços em que o saber-poder do profissional se faz presente. Trata-se de uma estratégia de despotencialização, ou seja, retiramos deles o desejo de ação; o que produz mortificação das vontades. Afirmamos que produção de saúde é expansão da vida. Nesse raciocínio, sua promoção passa por construir, com o usuário, outras formas de se relacionar com o mundo. Calar os usuários é desconsiderar os movimentos de resistências que eles engendram e reforçar a relação saber-poder que produz adoecimento.

Considerações finais Neste artigo, enunciamos uma nova conceituação de participação social, que nomeamos de participação rizomática. Ela é composta por movimentos cotidianos que emergem na forma de resistências. Resistir é criar, inventar, produzir novos modos de existência, novas normas para a vida. Essa forma de participação reverbera a opinião dos usuários em relação ao serviço de saúde: dar visibilidade a ela é repensar o que está posto como certo ou natural. Para que pudéssemos mapear movimentos de participação rizomática, colocamo-nos na postura de cartógrafos, por entendermos que esta escolha metodológica se coaduna com a postura política relativa ao modo como estabelecemos nossas relações e como estas se constituem historicamente. Para analisar aquilo que foi mapeado, utilizamos a análise de implicação, concepção construída pela Análise Institucional, da qual surgiram analisadores das relações de poder. Durante nosso percurso nas Unidades de Saúde pesquisadas, percebemos quão diversos são os movimentos de participação rizomática que partem dos usuários, e, assim, afirmamos que os usuários, em muitos momentos, vocalizam seus desejos e demonstram o que querem e esperam dos serviços de saúde, apesar de crermos que tais movimentos não são valorizados pelos profissionais; na verdade, na maioria das vezes, foram desconsiderados. Originados na tensão de forças entre usuários e profissionais, emergiram movimentos que foram agrupados como pertencentes a três analisadores, que denominamos de ditos, mal ditos e não ditos. Estes se caracterizaram, respectivamente, pelos movimentos de participação rizomática, pela imanência destes e pela sua ausência. Vale ressaltar que consideramos que a participação social acontece em diversos espaços nos serviços de saúde. Extravasa, pois, a ideia de que esta participação é restrita aos Conselhos e Conferências, e nos propusemos a mapeá-los como as formas de expressão dos desejos dos usuários em relação aos serviços de saúde. Logo, a participação ganha um contorno amórfico, ou melhor, passa a não ter modo nem local exato para ocorrer. Caracteriza-se, também, por questionar e incomodar o que está estabelecido como norma. Concluímos que a participação rizomática é uma das formas que o incômodo ganha no corpo dos usuários. Contudo, ela costuma ser tomada de modo negativo nos serviços de saúde, pois é vista como um movimento que atrapalha e que causa mal-estar. Propomos ressignificar esses movimentos e, ao invés de associá-los a problemas, entendê-los como analisadores das relações instituídas nos serviços. Ou seja, os movimentos de participação rizomática devem ser tomados como atos dos usuários e apontam para questões em relação à Unidade que devem ser repensadas. Ao considerarmos os movimentos de participação rizomática como analisadores, criamos a possibilidade de construir um serviço de saúde mais próximo das necessidades e desejos da população adscrita. Para tanto, por vezes, será preciso questionar as Políticas e os modelos de gestão impostos. Esclarecemos que questionar esses modelos, com base em de movimentos advindos da população, é reafirmar a participação social como diretriz norteadora do Sistema Único de Saúde.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. 570

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QUINTANILHA, B.C.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. Movimientos de resistencia en el Sistema Único de Salud Brasileño (SUS): participación rizomática. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.561-73, jul./set. 2013. La participación social en el Sistema Único de Salud Brasileño (SUS) asegura la importancia de la interferencia del usuario para su construcción. Sin embargo, afirmamos que hay diversas formas de manifestación de la participación además de las ya instituidas que afirmamos son movimientos de resistencia, denominados de participación rizomática. Con el objetivo de mapear su existencia en el cotidiano de las unidades de salud, creamos estrategias e instrumentos inscritos en el abordaje cualitativo en investigación, inspirados en la postura cartográfica y en el análisis de la implicación. Los movimientos percibidos se agruparon en tres tipos de analizadores: los dichos, los mal dichos y los no dichos. Consideramos las condiciones que propiciaron la existencia y los defectos producidos por ellos. Sugerimos que los movimientos de participación rizomática deben entenderse como puntos de análisis de los servicios de salud, puesto que su explicación posibilita repensar las practicas instituidas en el SUS.

Palabras clave: Participación social. Sistema Único de Salud. Centros de Salud.

Recebido em 20/07/12. Aprovado em 06/05/13.

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artigos

Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos

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Heletícia Scabelo Galavote1 Túlio Batista Franco2 Rita de Cássia Duarte Lima3 Antônio Márcio Belizário4

GALAVOTE, H.S. et al. Joy and sadness in the daily activities of community health agents: scenarios of passions and emotions. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.575-86, jul./set. 2013. This study sought to unravel the working process of community health agents based on Espinosa’s emotions theory. Meetings were taken to be the analysis unit, and the aim was to understand them with regard to the dynamics of care production, with analysis on emotions that were expressed through joy and sorrow, and on their effects on the agents’ work. This was an exploratory and descriptive qualitative study, undertaken at the Jardim Catarina Unit, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brazil. Data were gathered through semi-structured interviews with ten community health agents, and ethnographic observation. The study revealed that the agents had multiple facets, with exposure to the emotions of the relationships that they maintained, and variation between recognition of and submission to the logic imposed, thus resulting in joy and sorrow, and respectively increasing or decreasing their power to act.

Keywords: Family health. Community health workers. Subjectivity.

O estudo busca desvendar o processo de trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) com base na teoria das afecções de Espinosa. Considera o encontro como uma unidade de análise, e pretende compreendê-lo na sua dinâmica de produção do cuidado, analisando as afecções que se expressam por alegrias e tristezas e os seus efeitos no trabalho do ACS. Trata-se de estudo exploratóriodescritivo, de caráter qualitativo, realizado na Unidade Jardim Catarina, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. Os dados foram coletados em entrevista com dez ACS’s, por meio de roteiro semiestruturado e observação etnográfica. O estudo revela um ACS múltiplo, exposto às afecções das relações que mantém, variando entre o reconhecimento e a submissão às lógicas instituídas, resultando em alegria e tristeza, aumento e redução da sua potência de agir, respectivamente.

Palavras-chave: Saúde da Família. Agentes comunitários de saúde. Subjetividade.

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Elaborado com base em Galavote (2010); estudo aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1,2 Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense. Av. Marquês de Paraná, 303, anexo, sala 402, Centro. Niterói, RJ, Brasil. 24070-110. heleticiagalavote@ yahoo.com.br 3 Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Espírito Santo. 4 Faculdade de Medicina, UFF. *

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ALEGRIAS E TRISTEZAS NO COTIDIANO DE TRABALHO ...

Introdução A temática da alegria e da tristeza no cenário do trabalho - foco deste estudo - é fundamentada pela leitura feita por Deleuze da teoria das afecções de Espinosa (Deleuze, 2002). Traz algumas categorias da teoria do trabalho, na medida em que se reconhece que há um “espaço de liberdade” no exercício do trabalho em saúde, que autoriza negociações, invenções e modulações que referem ao trabalhador um protagonismo mediado pela sua singular proposta ético-política de cuidado. Quando existe uma “interdição” dos desejos inscritos no campo do trabalho, surge o domínio do sofrimento e da luta do agente comunitário de saúde (ACS) por agenciamentos subjetivos inscritos em determinado território de significações de tudo que o cerca: os usuários, sua equipe, o trabalho e cuidado em saúde. Partimos, também, do pressuposto de que todo trabalhador opera segundo suas intencionalidades e desejos, e, sob este prisma, Rolnik (2006) ressalta que o desejo se constitui em processo de produção de universos psicossociais, é como uma força propulsora que põe o sujeito em movimento na construção do mundo, do lugar social em que vive. No trabalho em saúde, o trabalhador é compelido ao encontro com os outros, trabalhadores e usuários, e, assim, entra em relação o tempo todo. Entre os corpos que se encontram, forma-se um “campo de consistência”, trânsito de intensidades no exercício do poder de afetar e ser afetado, que tem como efeito um estado de alegria ou tristeza, aumento ou redução da potência de agir sobre o mundo. Sobre os afetos no corpo e sua potência para a ação, Deleuze (2002, p.33-4) diz o seguinte: ... quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência desse corpo se opusesse à nossa potência, operando uma subtração, uma fixação: dizemos nesse caso que a nossa potência de agir é diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao contrário, quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se compõe com a nossa, diríamos que sua potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa potência de agir é ampliada ou favorecida.

O corpo sofre os efeitos do encontro aumentando ou reduzindo sua potência de agir, se as paixões forem alegres ou tristes, respectivamente. E isto interessa para este estudo quando discutimos o trabalho em saúde, porque, se temos como pressuposto que o cuidado se produz com base em um encontro, importa verificar que afecções o trabalhador vai apresentar no momento deste encontro, e a variação de sua potência, os efeitos na sua possibilidade de realizar este cuidado quando em relação com o usuário, que, também, é parte ativa do encontro e seus afetos. No complexo cenário do trabalho em saúde, há uma mistura de afetos circulantes nas múltiplas relações, que se incorporam ao contexto de atuação dos trabalhadores, que dispõem de uma subjetividade flexível, experimental e processual, sendo detentores de uma força inata de criação. Isto só é possível porque o trabalho em saúde é centrado no trabalho vivo (Merhy, 2002), que se exerce com relativa liberdade, ou seja, o trabalhador tem a possibilidade de governar seu próprio processo de trabalho, possibilitando a invenção e criação. Associamos a esta ideia a de que a subjetividade tem força operatória e se expressa no trabalho em saúde, tendo como energia propulsora o desejo, apoiado nas redes que se formam no exercício do seu trabalho. A articulação entre o desejo como força propulsora do trabalho, as redes no plano da micropolítica, e o trabalho vivo como plataforma por onde operam os processos produtivos na saúde caracterizam a produção subjetiva do cuidado (Franco, Merhy, 2011). A subjetividade, na concepção de Deleuze (2002) e Guattari e Rolnik (2005), é inerente à ideia de “outro”, indivíduo como processo e produto, um campo processual de forças moventes e formas que emergem dessas forças. Barros (2008) afirma que o humano é formado por um processo coletivo e em rede, dinâmico, inacabado. Deleuze sugere que todos os componentes de um determinado contexto interpretativo são constituídos e se conformam através de uma multiplicidade de signos que são singulares, únicos para cada matéria ou sujeito, de modo que “a unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre nenhuma verdade, não se 576

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“Um Corpo sem Órgãos é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades”. “O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define com processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, fatal que viria torna-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)”. (Deleuze, 1996, p.13, 15). Este artigo toma este conceito para pensar as relações de trabalho na saúde, já que procura colocar, em análise, o entre no encontro trabalhador e usuário, na relação de produção do cuidado. 5

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aprende nada, se não por decifração e interpretação” (Deleuze, 1987, p.5). Essa discussão da representatividade dos signos que emergem das relações entre os sujeitos, nos leva a pensar na figura da aranha. Mas por que uma aranha? Deleuze (1987) utiliza a figura deste artrópode para exemplificar o que é um corpo sem órgãos5. Assim, a aranha, enquanto um corpo sem órgãos, percebe o meio através das vibrações, seria movida unicamente por signos que atravessam o seu corpo como uma onda e a tornam capaz de saltar em busca da presa, sendo que, sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor deles. Os signos, para a aranha, seriam a sua própria essência, a essência do próprio existir que a impulsiona em múltiplas direções e entre múltiplos sentidos, sendo eles que disparam o ato de tecer com cada fio se movimentando por este ou aquele signo. O corpo sem órgãos pode ser entendido como o corpo afetivo, que se manifesta por intensidades. O trabalho em saúde opera sempre em redes (Franco, 2006), e o ACS é, por excelência, um trabalhador onde isto se encontra fortalecido, operando sempre em fluxos-conectivos que traçam uma cartografia no seu microcosmo, operando com base na micropolítica do seu processo de trabalho. Ele é construtor de sua teia, que é singular para cada sujeito e que se caracteriza por sua tenacidade, resistência e elasticidade, de forma que se estende por diferentes territórios. Essa teia se define, especialmente, pelos encontros e agenciamentos de que o ACS é capaz, na permanente construção de territórios existenciais que conformam campos magnéticos de produção de sentidos e de afetos no seu processo de trabalho. Conformamos, como campo problemático deste estudo, os efeitos produzidos a partir do encontro entre o ACS e o mundo do trabalho em saúde e suas multiplicidades, tendo-o como a “unidade de análise”, ou seja, consideramos que são nos encontros, e com base no seu trabalho, que o ACS realiza o cuidado. Trazer este discurso para o estudo da alegria e da tristeza no trabalho do ACS nos remonta a pensar e buscar apreender o efeito real das relações que são construídas e desconstruídas por ele no encontro com outros, e compreender como são manifestados seus efeitos nos cenários do trabalho.

Aspectos metodológicos Esta investigação constitui um estudo qualitativo que busca caracterizar e analisar o trabalho dos agentes comunitários de saúde em equipes de Saúde da Família, tendo os afetos expressos pela alegria e tristeza no cotidiano de trabalho como analisador do processo de trabalho do ACS e sua potência de agir para o cuidado. A pesquisa foi desenvolvida em Unidade de Saúde da Família de um município na região metropolitana do Rio de Janeiro. O critério para escolha da Unidade foi o de estabilidade da equipe de Saúde da Família, que permanecia no trabalho desde 2001, com baixa rotatividade de trabalhadores e completa, ou seja, composta por: um médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, agentes comunitários de saúde e odontólogo. Foram convidados todos os agentes comunitários de saúde da equipe selecionada que, voluntariamente, aceitaram participar da pesquisa. Os dados são produto da relação intensa entre o pesquisador e suas fontes; se reconhece a singularidade de ambos, e suas implicações neste movimento que caracterizamos como de produção conjunta. A técnica de investigação escolhida para a produção dos dados empíricos foi a entrevista, que teve como base um roteiro semiestruturado que aborda: a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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caracterização dos sujeitos em estudo, processo de trabalho na ESF, concepções acerca do tema, significado do trabalho, satisfação, insatisfação, alegrias e tristezas no agir cotidiano, sugestões e desafios, dentre outros. Foram efetuadas anotações e gravações sobre a aproximação ao campo e aos participantes, e atenta observação, como a das expressões de silêncio e a linguagem corporal. Foi realizada, assim, uma observação direta da realidade e do cotidiano de trabalho do sujeito em estudo, a fim de dar passagem a aspectos algumas vezes ocultos nos discursos dos participantes. Com o objetivo de identificar a dinâmica que se inscreve no trabalho cotidiano do ACS, foi realizada, como um método complementar, uma imersão do pesquisador no trabalho dos agentes, através de uma observação do tipo etnográfica, que foi construída por um período de quatro semanas nos cenários da pesquisa, com posterior registro das nuances deste cotidiano no diário de campo, que teve um caráter complementar na análise dos dados. A análise foi baseada nos significados apreendidos nas entrevistas, das quais foi feita leitura exaustiva, buscando-se os principais elementos que compõem o problema em estudo. Procurou-se uma análise e busca de sentidos para as questões que o estudo se coloca. Aplicou-se a Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde para questões éticas.

Resultados e discussão: o trabalho cotidiano do ACS Situamos o trabalho enquanto um regime de produção de saberes, no qual há a contínua produção dos sujeitos trabalhadores, ao mesmo tempo em que estes produzem o mundo do cuidado. Eles são, em sua essência: desejos, necessidades, interesses em conjugação e conflitos, que transitam por diferentes territórios inventando o mundo e inventando a si mesmos. Reconhecemos que o mundo do trabalho é criação e uso de si, mas também luta e resistência ao trabalhar e a si (Santos, Barros, 2007). O protagonismo do trabalho enquanto criação é regido por singularidades, mediadas pelas tecnologias de trabalho, constitutivas de cada trabalhador, que opera o seu processo de trabalho e recria o trabalho do outro por meio da tríade saber, poder e subjetividade, que estão em permanente implicação. Nesse sentido, a busca da significação do trabalho e o entendimento das relações que são estabelecidas no campo da produção devem se fundamentar no discurso e nos atos de cada trabalhador, o que nos levou a indagar, ao ACS, o que ele entende como reconhecimento da profissão, os agenciamentos de que é capaz e os sistemas abertos de conexões que constituem o seu agir enquanto trabalhador da saúde. A profissão de ACS foi significada como transformação, informação, aproximação e solidariedade, como diz A8: “Eu acho que o papel do agente comunitário é algo extremamente atuante, acaba sendo uma pessoa que tem a missão de transformar, sempre tem a missão de transformar, de mudar e acaba sendo um grande formador de opinião. O papel do agente é estar ajudando a população dentro de suas carências”. (A8)

Há uma ideia corrente que atribui, ao ACS, uma produção social de identidade que o associa a alguém com “pendor” para o cuidado, compaixão para com o outro (Ferreira, 2008) – no entanto, ele é um ser múltiplo, que pode ser isto, ou muitas outras coisas; ele se apresenta como nômade, já que transita por diferentes territórios existenciais, de saberes e práticas, construindo e desconstruindo mundos, em múltiplos encontros. No cenário complexo, eles se reconhecem como um “elo de ligação” entre os usuários e a equipe de saúde, a partir da constatação de que formam partes de uma corrente que mantém interligados os usuários e os profissionais da equipe. “O papel do agente eu acho muito importante dentro da comunidade, porque é você que capta todos os problemas que têm dentro do bairro e traz para a equipe, para o médico que trabalha mais na Unidade do que na comunidade; ele não é tão ativo como o agente comunitário. O agente na comunidade ele é tudo, ele é que é o elo mais forte dentro dessa 578

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corrente, se não tiver o agente comunitário não tem como o médico e a enfermeira trabalhar”. (A5)

A construção social do ACS enquanto profissional da saúde faz com ele se reconheça enquanto “elo de ligação”, como dito anteriormente, o que lhe impõe uma grande responsabilidade em estabelecer e fazer perdurar o vínculo entre os profissionais da equipe e os usuários, o que não depende essencialmente do seu trabalho, pois não é possível, ao ACS, fazer vínculo pelos outros membros da equipe. Silvia e Dalmaso (2002) apontam que o trabalho do ACS pode ser descrito sob dois prismas, já que um dos polos se refere à figura de “mensageiro” e mero canal de comunicação entre o serviço e a comunidade, ou, ao contrário, pode se constituir em um “agente reformador” capaz de operar mudanças na assistência ao usuário. Segundo a autora, oscilam de forma polar as vivências pessoais acumuladas, que seriam imprescindíveis, e, até mesmo, bastariam para a constituição do ACS; e, por outro lado, os domínios técnicos de certos procedimentos em saúde que garantiriam uma reforma nuclear e institucional no campo da saúde. A5 reforça a vertente solidária e relacional do trabalho que exerce, ao compor uma ideia do trabalho do ACS que se fundamenta no atendimento das necessidades de saúde da comunidade e nos encontros que afetam mutuamente os atores envolvidos, ao discursar: “Ser agente comunitário de saúde é estar ali, o dia-a-dia, você estar dentro da casa das pessoas procurando ajudar no que você pode, é amenizar um pouco essa carga de problemas, mostrar o caminho, ensinar os direitos às pessoas”. (A5)

A motivação enquanto desejo de permanecer na profissão foi referenciada, neste estudo, como: a possibilidade de ajudar o outro, a construção de vínculos de amizade, e o reconhecimento de que o trabalho realizado é capaz de disparar processos de autocuidado e ressignificação por parte dos usuários, que se empoderam do seu próprio cuidado e reconhecem, no ACS, um agente de transformação e resolutividade. “O que motiva é a amizade, você acaba se envolvendo com alguns casos e quer ajudar mesmo, quer estar ali dando uma força”. (A1) “O que me dá prazer é ver as pessoas precisando de uma medicação, de uma consulta, uma pessoa carente precisando de um remédio, aí dá força para a gente trabalhar, poder ajudar”. (A2)

O resultado do trabalho constitui, para os agentes, a maior motivação, a partir do entendimento de que o outro se conforma, também, como um ser desejante, com poder para gerir e afetar, apesar dos fracassos interpostos no encontro entre o agente comunitário e os usuários e a comunidade, como nos diz A8: “A motivação não vem dos gestores, não vem do modelo de estrutura adotado por eles, mas sim da população, porque quando você percebe que uma pessoa que você acompanhou, no meu caso são dez anos, e muitas crianças a gente acompanhou desde pequeno, isso para mim acaba sendo uma grande vitória, dá uma satisfação muito grande perceber que as pessoas estão saudáveis, têm qualidade de vida, estão se cuidando”. (A8)

No encontro com os usuários e a comunidade, o ACS reconhece diferentes signos que se conformam de forma verbal ou não verbal; os signos atravessam o ACS pelos afetos que é capaz de provocar, ou seja, resultando na produção de alegrias ou tristezas com base neste encontro, com o aumento ou a diminuição da potência para agir do trabalhador, em processos contínuos de construção e desconstrução nas relações que compõem. A interpretação de alguns signos emitidos pelos usuários, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como, por exemplo, um sorriso de satisfação e gratidão, gera a instância reconhecimento, é como se o ACS, neste encontro, realizasse sua potência como trabalhador da saúde, assim, ele é possuído por afetos cujos efeitos aumentam a sua potência de agir. Nesta relação, ele é capaz de produzir novos signos, que também são emitidos e que, por sua vez, afetam o usuário, e isto produz efeitos sobre o mesmo – como está descrito na ideia de Clínica dos Afetos discutida por Franco e Galavote (2010), que agrega, ao conceito de Foucault (2004) de “clínica do olhar”, anatômica, morfológica, a clínica dos órgãos, a ideia de uma clínica afetiva que compõe e complementa esta, demonstrando que o sensível, que há em nós e no campo de intensidades entre o trabalhador e o usuário, tem força operatória sobre o projeto terapêutico. Assim, um signo gerado no campo de produção do cuidado se conecta à percepção de cada sujeito envolvido e compõe com novos saberes e poderes, sendo o último considerado enquanto desejo de perpetuação do novo, enquanto produção e criação. “A maior satisfação é quando eles reconhecem, porque nem todo mundo reconhece o seu trabalho. Mas, alguns reconhecem muito, a ponto de nos presentear, acho que é mesmo o reconhecimento”. (A1) “A maior satisfação é quando você consegue resolver os problemas deles, ver que estão satisfeitos, ver a gratidão, construir amizades, ver que a comunidade está bem, ver os frutos do trabalho”. (A15)

O ACS capaz de perceber o mundo e suas relações através dos signos, intensidades, ou seja, o “ACS-aranha”, enquanto construtor inato de teias, sobre as quais opera o campo da micropolítica do trabalho, é, então, afetado pelo reconhecimento oriundo do encontro com a comunidade, experienciando um aumento da sua potência, expressa como desejo e paixões alegres, ao mesmo tempo em que emite signos representados pelas atividades com os usuários, buscando resolutividade e satisfação no cuidado. Exerce a sua sensibilidade enquanto “corpo sem órgãos”, vibrátil, que é capaz de apreender os signos gerados pela extremidade do fio de seda que transmite os afetos do usuário e a comunidade, e emitindo novos signos que são reconhecidos pelos usuários e que garantem a coesão da teia, à medida que mantém a circularidade produtiva enquanto território de eclosão de afetos e paixões.

A busca pelo reconhecimento e afecções no trabalho do ACS O ACS busca o reconhecimento do seu trabalho, e este passa a ser visualizado na circularidade produtiva de uma “teia” construída por ele, ou seja, no conjunto das relações que mantém no âmbito do seu trabalho, dentro da Unidade com a equipe ou na comunidade à qual atende. Nesse processo, ele se move, transita pelas extremidades do processo de trabalho da equipe, e, paradoxalmente, tem uma centralidade no cuidado aos usuários. Se vale, fundamentalmente, da coesão e tenacidade dos “fios de seda” da sua rede, completando a metáfora da aranha e sua capacidade de interpretar os signos, mencionada no livro Proust e os Signos (Deleuze, 1987); o ACS se vale do seu conhecimento, e da dimensão afetiva de percepção do mundo, para realizar seu trabalho, e busca pelo reconhecimento. Sob este aspecto, o reconhecimento é expresso, segundo Honneth, citado em Mendonça (2008), como estima social, sendo exercido por meio de valores, como a solidariedade, e estando relacionado à manutenção da estima que determina o seu impacto no encontro estabelecido. O fato de o ACS considerar o reconhecimento como um resultado a ser obtido a partir do cuidado aos usuários, que realiza no seu trabalho, e pode resultar em afecções alegres, não garante que ele seja percebido pelo outro como cuidador, já que a percepção dos afetos produzidos depende do “olhar vibrátil” dos corpos em relação. Na relação de cuidado, nada é previsível, por exemplo, pode haver a imposição de um cuidado dominador e controlador do profissional sobre o usuário, em busca do êxito na mudança dos hábitos de vida do usuário, operando o conhecimento como verdades que o ACS adquire dos demais profissionais da equipe, sem diálogo com o usuário. O ACS pode, então, atuar como um “amolador de facas”, que, segundo Barros (2008), atuam com base em uma ação “complacente, microscópica e cuidadora” e que exercem um cuidado de tutela, no qual, o outro é tido 580

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como fraco e destituído da sua subjetividade. O ACS “amolador de facas” se desvenda nas ações de um cuidado controlador e operante, o que fica nítido na fala de A5 que será apresentada a seguir, ao citar o cuidado que direciona aos usuários hipertensos e diabéticos. Mas, nem sempre o cuidado de tutela é percebido pelo ACS enquanto diminuição da criação coletiva, e o conhecimento que direciona o seu trabalho cotidiano constitui de forma intencional, ou não, um “sistema regional de lutas, uma postura ético-estética-política, cuja assunção delimita certos territórios de embate” (Barros, 2008, p.280-1). “O que me faz feliz na profissão é você pegar um paciente com descontrole da pressão arterial e trazê-lo para a unidade, controlar a sua pressão. O maior desafio é controlar todos os hipertensos e diabéticos, fazer eles entenderem que o que a gente fala deve ser seguido”. (A5)

A cisão da teia produzida pelo ACS no cotidiano origina-se dos processos de captura do seu trabalho, estimulados pelos sentidos atribuídos ao seu trabalho, aos quais se atribui menos valia em relação aos saberes instituídos. A construção social e subjetiva do trabalho na saúde, incorporado pela equipe, o coloca à margem dos processos decisórios desta, e reconhecendo a limitação do seu saber-fazer perante a diversidade com que se depara no trabalho. Este cenário faz com que sua função-nômade seja interditada, e o ACS passa a operar com o imaginário que associa competência para cuidar, com capacidade no manejo de procedimentos. “O trabalho do agente não aparece porque ninguém dá valor ao nosso trabalho, eu prefiro estar na rua, quando você trabalha aqui dentro são pessoas diferentes, pensamentos diferentes. É muito conflito, cada pessoa tem um perfil de trabalho”. (A5)

A3 responsabiliza a organização real do trabalho pela dificuldade em acessar a equipe, reconhecendo que a captura do trabalho vivo pela rigidez de uma gestão centralizadora produz um desarranjo nos encontros com a mesma. “Eu vejo a necessidade de um dia na semana parar e colocar as cartas na mesa, o médico e o enfermeiro não têm muito tempo para se reunir, estar junto, dialogar com a equipe e jogar as cartas na mesa, fazer uma arrumação”. (A3)

A valorização social do trabalho dos outros profissionais, em detrimento do ACS, produz no ACS a experiência do fracasso e insatisfação, e dificulta o acesso aos profissionais da equipe, em especial, ao médico. Em geral, os trabalhadores se isolam no seu núcleo profissional específico, e não reconhecem os saberes inscritos no trabalho do ACS - que se situa no campo mais amplo cuidador (Merhy, 2002; Campos, 2000) - e, sobretudo, sua implicação no ato de cuidar. Franco, Bueno e Merhy (1999) nos apresentam a ideia de que a organização da assistência à saúde se ancorou em um modelo de atenção centrado em procedimentos, estando a produção do cuidado atrelada às tecnologias duras e leve-duras, e tendo a medicalização como o cerne do trabalho que é realizado no cotidiano dos serviços de saúde. “Às vezes o médico dificulta, tem aquela hierarquia, o agente comunitário é o agente comunitário e o médico é o médico. Tem médico que acha que o agente não é nada, eu tenho muita dificuldade em lidar com isso”. (A2) “Ele é assim, tem que ser tudo como ele quer, do jeito dele, o médico sou eu e eu que sei a necessidade, mas somos nós que estamos na rua e sabemos quais são as deficiências e dificuldades”. (A4)

Sob esse aspecto, é proposto o reconhecimento do trabalho realizado pelo outro e com o outro trabalhador, reconhecendo-o como parte constitutiva do trabalho coletivo em saúde. Na verdade, o que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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existe é uma desigual valorização social dos diferentes trabalhos, o que nos remete à desigualdade entre os trabalhos realizados que se traduzem em relações de poder e hierarquia entre os trabalhadores das diversas áreas de atuação. Essa hierarquia está vinculada à gestão, estrutura organizacional, áreas profissionais e diferentes trabalhos, o que é gerador de relações de mando e manutenção do status quo, reproduzindo a divisão técnico-social dos modos de produção (Galavote, 2007). Verifica-se, nas relações de poder inscritas no interior de uma equipe de saúde da família, ou podese verificar, também, em qualquer nível da gestão, que a dominação se dá por redução da potência do outro através de relações coercitivas de gestão do trabalho, ou do não-reconhecimento profissional, ou qualquer outra forma de agir que vai em direção da produção das muitas tristezas vivenciadas cotidianamente no trabalho. A limitação imposta pela gestão e a própria organização do trabalho incide no ACS, levando-o a um estado de tristeza, à diminuição da sua potência de agir, e engessando a criatividade e inventividade desse trabalhador. Barros (2008) caracteriza este processo como uma “amputação do trabalhador de sua iniciativa”, que ocorre a partir do silenciamento dos movimentos de criação.

As tecnologias e o trabalho do ACS “O que dificulta o nosso trabalho é o número reduzido de consultas, a falta de medicação, a falta de infra-estrutura. Eu quero fazer alguma coisa, mas fazer o quê? Não posso fazer nada, não tenho como fazer nada”. (A6)

A afirmativa acima é paradoxal em relação ao que pode um ACS, visto que o processo de trabalho centrado nas tecnologias relacionais não depende exclusivamente dos recursos acima; no entanto, há no imaginário social a ideia de que conhecimento válido é o que se inscreve no núcleo duro das profissões, e práticas que pedem procedimentos, uma subjetividade biomédica que opera e faz do ACS mais um trabalhador queixoso, vitimado pela falta de materiais, equipamentos, especialistas. A diminuição da potência de ação do ACS no encontro com a gestão do trabalho se traduz na destituição do trabalhador do seu saber-fazer específicos, e o impossibilita de realizar algo no âmbito do não-prescrito, o que nos faz pensar na primazia do trabalho morto, que opera por uma razão instrumental, sobre o trabalho vivo, que pode ser trabalho criativo, o que leva à perda da liberdade e criatividade. “O maior desafio é a falta de estrutura que a gente tem com relação a materiais, não tem muito o que proporcionar à pessoa, o que eu mais falo é: ‘eu não posso, eu não tenho, não tem remédio hoje’. Eu acho que a gente tem capacidade para fazer mais coisas, de atender melhor a comunidade, o que a gente faz aqui é marcar consulta”. (A7)

O agente comunitário deveria operar centralmente no campo das tecnologias relacionais, associadas a uma aguda percepção dos afetos, e signos. A2 destaca este aspecto no seu processo de trabalho. “A paciência, o amor a eles, a compreensão. O que eu mais utilizo é o diálogo, a fala, a escuta, a informação, o conhecimento que eu adquiri na minha experiência diária e nas capacitações que recebi”. (A2)

O campo de conhecimentos do ACS se constrói com base nos conhecimentos que ele adquire no convívio com os profissionais da equipe, em programas de educação em serviço, e no conhecimento que traz consigo das experiências de vida. Estas, quando processadas como vivências em que a sua própria existência no mundo esteve em análise, podem produzir também uma subjetividade que, para Deleuze (2001), representa uma dupla potência, à medida que crê e inventa, presume poderes secretos e supõe poderes abstratos, distintos.

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“Eu já fiz vários cursos, me ajudou muito, a lidar com as pessoas, entender o que o médico fala, o que o enfermeiro fala, antigamente a gente não entendia, melhorou muito. Agora eu trabalho com o conhecimento que trago da minha vida e com os novos conhecimentos que adquiri com a comunidade e na Unidade”. (A1)

Na escuta dos ACS’s percebe-se que a produção de saberes no encontro com a equipe de saúde se faz de forma verticalizada, com a mera transmissão de conhecimentos que possam instrumentalizar o seu agir cotidiano, ou seja, ele absorve o discurso do médico e do enfermeiro e o aplica no encontro com a comunidade. Fica claro que o ACS é considerado, pela equipe, como uma “página em branco”, de forma que os conhecimentos que ele traz de suas experiências de vida não encontram lugar em um espaço de supremacia do saber biomédico, e um processo de trabalho centrado no campo das tecnologias duras e leve-duras descritas por Merhy (2002), como equipamentos e saberes bem estruturados. O mesmo autor reforça ainda a ideia de que o trabalho em saúde pode assumir dois escopos, ou seja, de um lado, pode estar centrado em um ato prescritivo que legitima um modelo centrado no saber médico hegemônico, produtor de conhecimentos, e, por outro lado, pode se dar sob a forma de relações intercessoras estabelecidas no trabalho vivo e em ato que produz um cuidado gerador de ganhos de autonomia por parte do usuário. A6 reconhece as falhas no processo de produção de saberes no encontro com os trabalhadores da equipe, e afirma que “é a experiência da rua que faz você aprender”, já que, no encontro com a comunidade, o ACS é capaz de gerir o seu agir e exercitar a criatividade e inventividade do seu saberfazer, ou seja, no espaço da comunidade, ele é livre para produzir o cuidado e estabelecer novos encontros. Sob este aspecto, entendemos que os ACS’s, assim como todos os trabalhadores da saúde que estão implicados com a produção do cuidado, controlam seu microcosmo, o lugar onde especificamente trabalham, em função da liberdade que lhes é atribuída pelo trabalho vivo, na sua atividade cotidiana. Como sugerem Merhy e Franco (2003), isso pressupõe que o modelo assistencial se constitui, sempre, a partir de contratualidades entre todos os que se encontram no plano da produção do cuidado, mesmo que esta pactuação se dê sob forte tensão, a forma de organização da assistência é produto dela. O trabalho do ACS sugere uma imagem triangular e intercessora entre as instâncias tristeza/alegria, trabalho e reconhecimento. Trazemos esta referência para reafirmar que o trabalhador pode experienciar cotidianamente diferentes afetos que determinarão o impacto do trabalho sobre o trabalhador, sobre o produto e o ‘consumidor’. No entanto, é nítido que o ACS, ao compor sua teia de relações, fica exposto ao atravessamento de diferentes signos e afetos, que se conformam de modo circular e contínuo, e não apenas de modo hierarquizado, como na pirâmide. Assim, o estudo do trabalho do ACS revela a cartografia de uma teia com linhas, que se rompem e se recompõem de acordo com a natureza do encontro estabelecido e os afetos que são compostos nesta coesão.

Considerações finais O desvendamento do trabalho cotidiano do ACS, neste estudo, revela um trabalhador híbrido, que permeia territórios distintos da tríade poder, saber e subjetividade. O que existe é uma lacuna entre os muitos sentidos que dão para a profissão de ACS, construídos socialmente, como o que consta na Lei 10.507/2001, que cria a profissão e estabelece, como função, a prevenção de doenças e promoção da saúde. Os próprios agentes e outros trabalhadores criam um elo de ligação entre equipe, comunidade e famílias de usuários, o mesmo citado por Ferreira (2008), segundo a qual os ACS’s “podem em alguns momentos ter mais pendor para ajuda solidária e em outros menos, ou quem sabe até não ter, isto não significa que essa característica seja inerente à subjetividade do agente e a sua presença seja condição para os bons encontros” (Ferreira, 2008, p.44). Percebe-se que a profissão de ACS não se fundamenta em vocação e pendor solidário, nem mesmo no “elo de ligação” ou, exclusivamente, na promoção da saúde; mas ele está inscrito em um território de conflitos, subjetividades, desejos, micropoderes, e que operam, sobretudo, com base em um COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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recorte interessado da realidade; e sua existência no mundo do cuidado o mantém desorganizado, subjetivação em processo permanente, onde as relações no campo social o agenciam, e ele, ao mesmo tempo, produz este campo social, em uma permanente, intensa, produtiva e inconstante dobra. Assim como não há uma identidade que se impõe, não há como definir um perfil para o ACS, já que é um trabalhador que, como outros, inventa e reinventa cotidianamente o seu processo de trabalho. Devemos falar em singularidade como expressão única em um tempo e espaço que também se movem; subjetivações, e não em perfil, já que estamos falando de um trabalhador policênico, que opera o seu próprio processo de trabalho com altos graus de liberdade. O estudo do trabalho do ACS nos revelou a figura da aranha de Deleuze (1987), já que o ACS, assim como os demais trabalhadores da saúde, opera o cuidado no momento dos múltiplos encontros com o usuário e a comunidade, ou seja, o trabalho que realiza é eminentemente relacional, intercessor. Através do seu corpo sem órgãos, expresso enquanto percepção e subjetivação, é capaz de sentir os signos emitidos pelos diferentes atores - e que, quando interpretados, têm a potência de afetá-lo, aumentando ou diminuindo sua potência para agir - e emitir signos que garantem ou não a coesão da teia. No encontro com o usuário e suas necessidades de saúde, o ACS pode operar um cuidado-políticoafetivo, no qual há ganhos de autonomia por parte do usuário, que é visto como coautor no campo da produção do trabalho; ou gerir um cuidado-procedimento-centrado, exercido através do emprego de tecnologias duras e leve-duras que, quando mal empregadas, produzem heteronomia. Surge, então, a imagem do ACS “amolador de facas”, que impõe, ao outro, um cuidado centralizador e dominador, que destitui o sujeito de sua própria inventividade e autonomia. Assim, o ACS não é o trabalhador com um dito “perfil” proposto nas leis, ou sentidos socialmente construídos; e surge uma figura múltipla, protagonista do seu trabalho, o que torna ingênuas as concepções que o consideram enquanto vítima das amarras de um trabalho engessado, que, na verdade, é produzido, também por ele, no seu agir. Em acordo com Silva e Dalmaso (2006), de que a indefinição do papel do ACS dificulta a delimitação do seu desempenho enquanto integrante da instituição equipe de saúde, considero que essa indefinição é, a um só tempo, sua maior dificuldade e sua maior potência. Fica claro que os encontros geradores de tristeza são experimentados, especialmente, na relação com os profissionais da equipe e a própria gestão do trabalho, que acabam por romper a teia que o ACS tece no seu agir cotidiano, e que, uma vez recomposta, acaba por apresentar ranhuras e cicatrizes que redirecionam a natureza do encontro estabelecido. As ranhuras representam as linhas de fuga, servem de dispositivos a diferentes agenciamentos [...] podendo o trabalhador apresentar ou não identidade com a comunidade, ser ou não solidário, servir mais o menos como mediador a depender de como tenha ocorrido, em sua vida, os processos de subjetivação e o quanto permite os afetos passarem, isto é, o limiar de desterritorialização que conseguem suportar. (Ferreira, 2008, p.44)

Como considerações, cabe-nos a confluência de dois conceitos apresentados por Deleuze (2002), o de “bom ou mau”, que caracterizam a polaridade que encontramos no trabalho do ACS e nos encontros que ele estabelece. Para o autor, será dito bom ou forte aquele que é capaz de organizar os encontros, de se unir ao que lhe convém e que é capaz de aumentar a sua potência, já que essa bondade tem a ver com dinamismo, composição de potências. Por outro lado, o mau ou fraco é aquele que vive ao acaso dos encontros, sofrendo passivamente as conseqüências e tendo revelada, continuamente, a sua redução de potência. Desta forma, nos deparamos com um ACS transeunte, que faz trânsito entre o bom e o mau, que permeia diferentes territórios e que é capaz de direcionar os encontros, com gerência do seu processo de trabalho, o que retira-nos a ideia de vitimação desse trabalhador perante a captura do seu trabalho pelos saberes instituídos da equipe ou, mesmo, pela rigidez da organização do trabalho. Podemos considerar, também, a possibilidade de um mesmo ACS reunir estas características divergentes, em momentos diversos, que, a princípio, pareceriam contraditórias, mas expressam o ser múltiplo que é. A diversidade caracteriza em muito o agir cotidiano do ACS, impossibilitando uma análise que generalize a sua conduta, já que deve ser vista como uma variação de possibilidades de práticas de cuidado ao usuário. 584

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A indefinição é uma das vivências mais profundas no cotidiano de trabalho do ACS, não somente porque não lhe seja dado a priori um corpo de conhecimentos bem definidos e, sim, pelo fato de que o seu trabalho se constitui na pluralidade, em encontros os mais diversos e tênues, nos quais, ele afeta e é afetado por diferentes paixões. O trabalho do ACS é em si potência, diversidade, indefinição, busca, rupturas, contratualidades e fugas.

Colaboradores Heletícia Scabelo Galavote foi responsável pela elaboração do tema, construção do quadro teórico, produção dos dados, análise e delineamento final do estudo. Túlio Batista Franco colaborou na elaboração do tema, construção do quadro teórico, na análise e revisão final. Rita de Cássia Duarte Lima participou da construção do quadro teórico, análise e revisão final. Referências BARROS, M.E.B. De amoladores de faca a cartógrafos: a atividade do cuidado. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidar do cuidado: responsabilidade com a integralidade das ações de saúde. Rio de Janeiro: LAPPIS, 2008. p.279-95. CAMPOS, G.W.S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc. Saude Colet., v.5, n.2, p.219-30, 2000. DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ______. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Editora 34, 2001. ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. v.3. ______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. FERREIRA, V.S.C. Micropolítica do processo de trabalho do Agente Comunitário de Saúde: território de produção de cuidado e subjetividades. 2008. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FRANCO, T.B. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Gestão em redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: Abrasco, 2006. p.459-74. FRANCO, T.B.; GALAVOTE, H.S. Em busca da clínica dos afetos. In: FRANCO, T.B.; RAMOS, V.C. (Orgs.). Semiótica, afecção e cuidado em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010. p.176-99. FRANCO, T.B.; MERHY, E.E. El reconocimiento de la producción subjetiva del cuidado. Rev. Salud Colect., v.7, n.1, p.9-20, 2011. FRANCO, T.B.; BUENO, W.S.; MERHY, E.E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim (MG). Cad. Saude Publica, v.15, n.2, p.345-53, 1999.

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GALAVOTE, H.S. Alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde: cenários de paixões e afetamentos. 2010, Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2010. ______. Desvendando os processos de trabalho do agente comunitário de saúde nos cenários revelados na Estratégia Saúde da Família no município de Vitória, ES, Brasil. Cienc. Saude Colet., v.16, n.1, p.231-40, 2007. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005. MENDONÇA, P.E.X. (LUTA) Em defesa da vida: tensão e conflito, reconhecimento e desrespeito nas práticas de gestão do Sistema Único de Saúde. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008. MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo em ato. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2002. MERHY, E.E.; FRANCO, T.B. Por uma composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves e no campo relacional. Saude Debate, v.27, n.65, p.316-23, 2003. ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Rio Grande do Sul: Sulina, 2006. SANTOS, S.B.; BARROS, E.B. Trabalhador da Saúde: protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em Saúde. Rio Grande do Sul: Unijul, 2007. SILVA, J.A.; DALMASO, A.S.W. Agente Comunitário de Saúde: o ser, o saber, o fazer. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. SILVA, J.A.; DALMASO, A.S. O agente comunitário de saúde e suas atribuições: os desafios para os processos de formação de recursos humanos em saúde. Interface (Botucatu), v.6, n.10, p.75-83, 2002.

GALAVOTE, H.S. et al. Las alegrías y las penas de trabajo en diario del agente comunitario de salud: escenas de pasiones y afecciones. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.575-86, jul./set. 2013. Este estudio trata de mostrar el proceso de trabajo del agente comunitario de salud (ACS), basado en la teoría de las afecciones de Espinosa. Considera el encuentro como una unidad de análisis, buscando entenderlo en su dinámica de producción del cuidado, analizando las afecciones que se se expresan por alegrías y tristezas y sus efectos en el trabajo del ACS. Se trata de un estudio explorativo-descriptivo, de carácter cualitativo, realizado en la Unidad Jardim Catarina Jardim, São Gonçalo, Río de Janeiro, Brasil. Los datos fueron recolectados con diez ACSs por medio de guión semiestructurado y observación etnográfica. El estudio revela un ACS múltiple, expuesto a las afecciones de las relaciones que mantiene, variando entre el reconocimiento y la sumisión a las lógicas instituidas, resultando en alegría y tristeza, aumento y reducción de su capacidad de acción, respectivamente.

Palabras clave: Salud de la familia. Agentes comunitarios de salud. Subjetividad.

Recebido em 11/07/12. Aprovado em 22/06/13.

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Comunicación para la salud y estilos de vida saludables: aportes para la reflexión desde la salud colectiva*

Soledad Rojas-Rajs1 Edgar Jarillo Soto2

ROJAS-RAJS, SO.; SOTO, E.J. Health communication and healthy lifestyles: contributions towards reflection on collective health. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p. 587-99, jul./set. 2013. This study discusses the need for a complex perspective regarding health communication, in order to go beyond an instrumental view of its conception and implementation. In particular, through analyzing the focus of communication directed towards behavioral change that promotes healthy lifestyles, it was proposed to extend the way in which health communication is conceived, starting from setting the problem. This would integrate some analytical strands that would make it possible to account for the many aspects and contradictions of the health communication process.

Este trabajo plantea la necesidad de una mirada compleja hacia la comunicación para la salud, con el fin de ir más allá de una visión instrumental de su concepción y ejercicio. Analizando en particular los enfoques de comunicación dirigidos al cambio de conducta que promueven la adopción de estilos de vida saludables, propone ampliar desde el momento de la problematización la forma en que se concibe la comunicación para la salud, integrando algunos ejes analíticos que permitan dar cuenta de las múltiples aristas y contradicciones de los procesos de comunicación para la salud.

Keywords: Health communication. Public health. Theoretical object. Problem area.

Palabras clave: Comunicación para la salud. Salud publica. Objeto teórico. Campo problemático.

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* El presente texto es resultado de la reflexión preliminar de la línea de investigación de comunicación y salud, en el contexto de la investigación “Comunicación en salud: hacia una reconstrucción desde la salud colectiva” (RojasRajs, 2013). 1 Doctorante en Ciencias en Salud Colectiva y la Maestría en Medicina Social, Departamento de Atención a la Salud, División de Ciencias Biológicas y de la Salud, Universidad Autónoma Metropolitana Unidad Xochimilco. Calzada Del Hueso 1100, Edif. Central 2° piso, Col. Villa Quietud, Del. Coyoacán, C.P. 04960, México, D.F. saludproblema@ correo.xoc.uam.mx 2 Doctorado en Ciencias en Salud Colectiva y la Maestría en Medicina Social, Departamento de Atención a la Salud, División de Ciencias Biológicas y de la Salud, Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco.

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Introducción En este trabajo se plantean algunos elementos para enriquecer el debate sobre la comunicación para la salud como un objeto teórico. Su objetivo es aportar a su (re) construcción teórica en el marco de la salud colectiva latinoamericana. Nuestro planteamiento es que para este fin es útil concebir la articulación entre comunicación y salud, como campo problemático en el sentido de Zemelman (1987), a fin de ampliar tanto la multiplicidad de problemas derivados de una mirada más compleja, como el entramado conceptual y metodológico con que se abordan la construcción de conocimiento y experiencias concretas de comunicación y salud. Sobre comunicación en salud o para la salud existe un campo disciplinario constituido pero aún en construcción. Como disciplina particular la comunicación en salud es relativamente joven, pues su impulso decisivo se originó a partir de la década de los 80. En los últimos años la validación del campo se ha constituido en el ámbito académico (Silva, 2001; Alcalay, 1999). Cada vez hay un mayor número de áreas, programas de especialización y proyectos de investigación asociados a comunicación y salud en las instituciones educativas y existen diversas publicaciones científicas específicas sobre el tema. No obstante, se puede encontrar cierto consenso sobre la necesidad de profundizar y acrecentar el conocimiento sobre comunicación en salud. Algunos autores señalan que los conocimientos sobre los resultados de las estrategias de comunicación para la salud y sus procesos de evaluación aún son limitados (Martínez Fernández, 2007; Salazar, Vélez, 2004; Silva, 2001; Alcalay, 1999); o que las metodologías y acercamientos al análisis de los fenómenos de comunicación en el campo de la salud (Conde, Pérez Andrés, 1995) son un terreno que requiere más desarrollo. También se ha planteado la necesidad de revisar más ampliamente las experiencias concretas de comunicación para la salud y los distintos problemas asociados tanto al carácter dialógico y participativo; como a la recuperación de las perspectivas y modos de vida de los sujetos destinatarios de la comunicación, aspectos que – idealmente –deberían ser parte de cualquier proceso de comunicación efectivo (Beltrán, 2010; Gumucio-Dagron, 2010; Tufté, 2007). Además de estos planteamientos, la mayoría centrados en el nivel instrumental de las intervenciones, es posible identificar nudos problemáticos ubicados en un nivel más general, en relación con el análisis de los fundamentos teóricos de la comunicación para la salud (Tufté, 2007). La investigación a la que se adscribe este trabajo propone analizar los fundamentos del modelo hegemónico3 en comunicación para la salud: Health Communication estadounidense (HC), tal como la describe Schiavo (2007) o lo que podría llamarse comunicación en salud para el cambio de conducta, que constituye el referente que orienta el ejercicio actual de comunicación institucional sobre estilos de vida saludables en gran parte de los países de América Latina y del mundo. Desde mediados de los 80 y en especial desde la década de los 90 del siglo pasado, se ha destacado el papel de la comunicación para la salud como intervención para propiciar el cambio de “conductas de riesgo”, postulando su efectividad para promover la adopción de estilos de vida saludables (Coe, 1998). Esta propuesta fue impulsada y respaldada por el Banco Mundial (World Bank, 1993), la Organización Pan Americana de la Salud (OPS, 1997, 1996a) y la Organización Mundial de la Salud (OMS, 1998, 1996).

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En el sentido que utiliza Breilh al recuperar esta categoría gramsciana: una forma de dominio que no se ejerce simplemente mediante la fuerza, sino a través de liderazgos morales e intelectuales y que se destaca por conformar alianzas, en las cuales “hegemónicos y subalternos contratan prestaciones recíprocas” (2003, p.173). Así, el dominio no se puede ejemplificar sólo como relaciones verticales, sino que implica intercambios y condicionamientos recíprocos que no son unidireccionales. Breilh apunta que en la acción hegemónica, al cubrirse algunas necesidades de los dominados, estos encuentran en ella algo útil, lo que fortalece su legitimación.

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Este trabajo aborda dos preguntas centrales: ¿cuáles son algunos de los debates sobre HC?; y ¿desde qué categorías teóricas y con qué tipo de enfoque es posible abordar la comunicación para la salud, con miras a plantear su reconstrucción como objeto teórico desde la salud colectiva? El interés por (re) construir el objeto comunicación para la salud en el marco de la salud colectiva, parte del reconocimiento de la comunicación como un campo de conocimiento e intervención (Jarillo, López, 2007) que puede generar transformaciones para mejorar la salud pública, pero que en ausencia de una mirada que recupere la complejidad de los procesos de determinación social, también puede reproducir el estado de las cosas, especialmente las desigualdades en salud, por ejemplo constituyendo una intervención única al considerar que por el simple hecho de poseer información las personas podrán tomar decisiones distintas sobre su salud y forma de vivir. Por lo tanto, se trata de elaborar aproximaciones a la comunicación desde una perspectiva de conocimiento sobre salud que asume su dependencia de procesos de determinación social y de la respuesta social a los problemas de salud, en términos de prácticas y políticas; y que además busca transformaciones y soluciones distintas a las hegemónicas. Por ello, este trabajo se aleja de posiciones de neutralidad, dado que parte de una concepción determinada de la salud, sus procesos de determinación social y su carácter histórico-social; con ello se busca enriquecer el debate sobre qué es hoy y qué debería ser la comunicación para la salud.

Comunicación en salud para el cambio de conducta o health communication: algunos debates Hoy en día la comunicación es un componente de los sistemas de salud y parte de las acciones de prevención y promoción de la salud. La Organización Mundial de la Salud (1998) considera la comunicación como una estrategia clave destinada a informar a la población sobre aspectos concernientes a la salud y a mantener los temas sanitarios importantes en la agenda pública. Como parte de las prácticas de los servicios de salud, es impensable que los sistemas de salud prescindieran de ella (Alcalay, 1999) y los comunicadores consideran que ningún programa de salud dirigido a sectores amplios de la sociedad puede concebirse al margen de la comunicación (Gumucio-Dagron, 2004). Sin embargo, comunicación en salud o comunicación para la salud es un concepto amplio empleado para aludir a múltiples prácticas comunicativas, en distintos niveles sociales y relacionales. Así, puede ser utilizado para dar cuenta tanto del uso de medios masivos de comunicación y otros medios tecnológicos para difundir, proponer y/o promover contenidos e información sobre salud, como de las amplias formas de comunicación en la atención en salud que realizan los trabajadores de la salud, en sus prácticas profesionales o formativas, o la comunicación sobre salud de distintos actores sociales. Hablar de comunicación para la salud implica referirse a un campo que no puede reducirse en su complejidad, porque en él se entrecruzan los temas y problemas de las distintas miradas y posiciones sobre la salud así como los diversos debates problematizados sobre características, funciones y efectos de la comunicación en la vida social, así como sus alcances como intervención. Para delimitar, este trabajo se refiere a la comunicación para la salud que tiene como eje principal el cambio de conducta de los individuos, por el impacto que ha tenido en el conjunto de las prácticas de comunicación en salud. Schiavo (2007) propone utilizar el término “Health Communication”, pues se refiere a una conceptualización de la comunicación y su práctica diferente de la promoción de la salud y de la “comunicación para el cambio social” latinoamericana que emergieron en los años 70, y que recupera el modelo inicialmente llamado de “comunicación social” que promovieron OMS, OPS y otros organismos multinacionales como el Banco Mundial, centrado en producir comunicación para generar efectos en las conductas individuales, con impacto en la salud. Podemos considerar que hoy en día HC constituye un modelo hegemónico de comunicación para la salud con programas e instituciones específicos articulados en los sistemas nacionales de salud de Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, entre otros países. HC es también el fundamento de propuestas sobre comunicación para la salud para América Latina y uno de sus objetivos centrales es la promoción de estilos de vida saludables.

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Si bien no hay una definición única de HC, es posible encontrar gran cantidad de definiciones técnicas e instrumentales4. Desde la OPS, se trata de “un proceso de presentar y evaluar información educativa persuasiva, interesante y atractiva que dé por resultado comportamientos individuales y sociales sanos” (Coe, 1998, p.26). Otros autores la describen como el uso de técnicas y tecnologías de comunicación para informar e influenciar positivamente las decisiones individuales y colectivas que afectan la salud (Mailbach, Holtgrave, 1995). Aunque estas definiciones son amplias e incluyen como “cambio de conducta” acciones tan diversas como el incremento del uso de los servicios de salud, la aceptación y seguimiento de tratamientos (por ejemplo, antirretroviral supervisado) o la participación social en programas de detección precoz (como cáncer cérvico uterino); también se refieren a modificar la forma en la que las personas viven su vida cotidiana, particularmente al integrar el concepto de estilos de vida saludable, cuyo origen se remonta a 1974 con la propuesta del Informe Lalonde en Canadá sobre los cuatro grandes ámbitos de la salud (Lalonde, 1996). Este informe incorporó la noción de estilo de vida como el factor más relevante para preservar o perjudicar la salud humana (por sobre los factores biológicos, el ambiente y la organización de los servicios de salud), afirmando que los estilos de vida están fuera del control de los servicios sanitarios y dependen de las elecciones de las personas. La concepción de que la salud depende mayoritariamente de las decisiones individuales y por tanto, es responsabilidad de los individuos, se convirtió en una idea dominante particularmente desde los años 90, cuando el Banco Mundial (World Bank, 1993), OPS (1997, 1996a, 1996b) y OMS (1998, 1996) respaldaron esta postura. No se puede obviar que este planteamiento es coherente con el proceso de neoliberalización de la vida social, donde los individuos pasan a ocupar el lugar protagónico de los hechos sociales y la responsabilidad de los colectivos o el Estado para generar o encauzar soluciones sociales se diluye (López, Blanco, 2007). El debate crítico sobre estilos de vida saludables cuenta ya con nutridos aportes desde la salud colectiva (ver: Cerda, 2010; Benach, Muntaner, 2008; Carvalho, 2008; Possas y Testa, en Almeida-Filho, 2000; Menéndez, 1998) y los cuestionamientos son múltiples. Por ejemplo, se discute que exista una verdadera capacidad de elección respecto a todo aquello que determina la salud humana. También, que se pasan por alto las circunstancias sociales donde los sujetos se desarrollan, como si todo dependiera de una opción personal y no compelida por eventos culturales y sociales. Igualmente, se ha planteado que estilos de vida saludables constituye una perspectiva limitada de los determinantes sociales de la salud, porque reduce al sujeto a lo individual y unitario (Almeida-Filho, 2000), lo abstrae de su momento histórico y lo considera como independiente de sus condiciones y situaciones de vida. Estas y otras críticas sobre las posibilidades reales de los individuos para tomar decisiones “saludables” no han permeado con gran impacto en la concepción general de la comunicación en salud para insistir en el cambio de conducta como el centro de su acción. Al analizar los términos de algunos de los debates al interior de la perspectiva de la comunicación para la salud se puede identificar que la efectividad de las intervenciones de comunicación es el eje en torno al cual están articuladas las críticas. Por ejemplo, se señala que las condiciones y comportamientos identificados como riesgosos no se modifican únicamente por disponer de información o recibir una indicación atractiva de que hay que cambiar y cómo hacerlo (Martínez Fernández, 2007). Difícilmente se puede observar una relación directa y mensurable entre la disminución de indicadores de enfermedad y las tareas de comunicación dirigidas a promover estilos de vida saludables, 590

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Una gran parte de los textos disponibles sobre HC en bases de datos científicas para diciembre de 2010, son de carácter técnico o instrumental, revisiones de experiencias específicas de comunicación o evaluaciones de acciones de comunicación. En general, hay poco desarrollo teórico explícito, en comparación con la literatura instrumental. (Revisión de publicaciones científicas de diciembre del 2010 en PubMed).

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también la evaluación de resultados es una de las áreas más oscuras de la comunicación para la salud. Otros señalamientos se relacionan con las limitaciones de la comunicación, especialmente cuando plantea cambios imposibles o inviables para los sujetos por las condiciones de vida reales de las personas, por cuestiones culturales o ideológicas (Beltrán, 2010), aunque este autor no profundiza sobre los factores estructurales que generan este tipo de “obstáculos para la comunicación” y más bien ofrece alternativas para sortearlos (como evitar ciertos mensajes, medios o formatos) sin involucrarse con ellos. En la comunicación de estilos de vida saludables por lo menos se podría identificar ambivalencia: la OMS calcula que en el futuro aumentarán los problemas de salud como enfermedades crónicodegenerativas y obesidad, adicciones, VIH-SIDA y enfermedades de transmisión sexual, todo ello con independencia de la conducta de los sujetos y más articulado con el desarrollo social actual, mientras que desde el campo de la investigación y aplicación del cambio de conducta a través de la comunicación para la salud se ubica el comportamiento como un componente crucial en la producción de esas enfermedades. En la década de los 90 del siglo pasado una buena parte de los textos sobre comunicación para la salud destacaban su potencial para detonar cambios conductuales, pero veinte años después no son claros sus resultados positivos. En la última década algunos autores tratan de explicar el “fracaso” de la comunicación de estilos de vida saludables y la permanencia de las conductas no saludables. Incluso, se ha llegado a plantear que la comunicación para la salud es una disciplina en crisis (Tufté, 2007). Sin embargo, aunque diversos autores señalan problemas en la práctica de la comunicación para la salud, sus soluciones no difieren fundamentalmente en la conceptualización, ni de los modelos de comunicación, ni de la salud, sino constituyen miradas más bien instrumentales y engarzadas con la efectividad de las intervenciones y están centradas en qué hacer y qué no, pero no en cómo pensar la comunicación para la salud. Así, continúan interpretando y perpetuando la función definida para la comunicación para la salud: promover cambios conductuales centrados en los individuos. Una gran parte de los debates se mantienen en ese nivel. Por ejemplo, frente al problema de resultados limitados de la comunicación en áreas como la prevención y los estilos de vida, Alcalay (1999) propone que esto se resolvería cuando los profesionales de la salud desarrollen habilidades de comunicación, ya que si bien tienen conocimientos científicos sobre los hábitos y conductas que favorecen la salud, no necesariamente saben cómo comunicar efectivamente esta información, de forma que pueda ser utilizada por la sociedad; es decir, parte de entender la comunicación como información. En este mismo orden de ideas, Martínez Fernández (2007) señala la necesidad de ajustar la comunicación para lograr “mayor impacto” y propone una comunicación más agresiva de los riesgos y daños a la salud, más disuasiva que persuasiva. Ambos autores consideran que el problema está más bien en los métodos, técnicas y formas de comunicación. Silva (2001), al caracterizar las funciones y objetivos de las prácticas de comunicación reduce los problemas a la cobertura y difusión, la transmisión de información, la efectividad técnica de las ejecuciones y la estrategia de segmentación de audiencias o la efectividad de las intervenciones. De esta manera, su interpretación de la comunicación es más estratégica que conceptual, más técnica que teórica y está referida a la instrumentación: mensajes, medios, formatos, canales, estrategias, como si fuesen asuntos independientes de las problematizaciones sobre la salud en su dimensión social. Como rasgo general en los planteamientos de autores como los mencionados, la problematización de los procesos de determinación social de la salud (Breilh, 2003; Almeida-Filho, 2000) o el carácter social de los procesos de salud-enfermedad (Laurell, 1982) están ausentes en el análisis y de las propuestas de mejora de las estrategias de comunicación. Por otro lado, desde la amplia tradición en el desarrollo y conceptualización de modelos alternativos de comunicación de América Latina (Cuberli, 2008), particularmente sobre comunicación participativa, destaca el valor y las contribuciones de múltiples experiencias de aplicaciones concretas de comunicación para la salud, que han generado cambios concretos en la salud de colectivos sociales, como diversos proyectos de base social en Bolivia (Gumucio-Dagron, 2010). En un gran número de experiencias participativas, la comunicación ha logrado convertirse en mediadora de la acción social (Del Valle Rojas, 2007). Desde el desarrollo de la comunicación en el pensamiento latinoamericano hay que señalar las importantes contribuciones teóricas sobre la concepción del carácter dialógico de los procesos de comunicación, el reconocimiento de la capacidad de acción y cambio de los sujetos de la comunicación y 591


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la visión de que existe una relación permanente entre sociedad y comunicación, dado que no se puede existir ni transformarse sin comunicación (cfr. Beltrán, 2010). Esto ha permitido la elaboración de planteamientos más conceptuales relativos al reconocimiento de los sujetos destinatarios de la comunicación y la identificación de problemas en el modelo emisor-mensaje-receptor, un viejo nudo problemático para las teorías de la comunicación. El interés por una mayor y mejor comprensión de la cultura (interculturalidad), identidad, intereses, perspectivas y cuestiones afectivas de los “públicos”, se ha señalado como una vía posible para mejorar la efectividad de la comunicación para la salud. Sin embargo, integrar los conceptos “interculturalidad” y “diálogo” sin superar el enfoque instrumental puede también ser limitado. Por ejemplo, cuando únicamente se busca hablar en el mismo idioma que los destinatarios para ser persuasivos (Tufté, 2007; Martínez Fernández, 2007), sin una reflexión de fondo sobre los múltiples factores sociales que inciden en los problemas de salud. Comunicadores latinoamericanos como Beltrán (2010) o Del Valle Rojas (2007) plantean la necesidad comprender a las audiencias, su psicología y sus condiciones de vida, pero más bien en el sentido de optimizar la persuasión y el convencimiento, no como una formulación crítica de los modelos de comunicación aplicados en el campo de la salud o de las propias condiciones de vida. Por ejemplo, hay escasas críticas hacia modelos como el marketing social, que proponen específicamente que la salud (la conducta saludable) es un producto que hay que vender, con lo que reducen el ejercicio de la comunicación a un conjunto de habilidades persuasivas y técnicas de venta sin revisar siquiera que en la lógica de mercado no existe para la mayoría de la población del mundo la elección libre del consumo5. No es que no exista entre los comunicadores la noción de que la salud es también un asunto social, pero se considera que esta situación no es un tema que esté relacionado con la comunicación, por lo que se tiende a pensar en los determinantes como condiciones inmutables o cuya transformación es independiente del ejercicio de la comunicación para la salud. Pero si estas determinaciones sociales son históricas y por tanto, pueden transformarse, la comunicación para la salud puede jugar un papel en esa transformación. Por ello se considera que abordar la comunicación para la salud como un objeto teórico desde las miradas de la salud colectiva y la medicina social latinoamericanas, contribuye a enriquecer su desarrollo y fortalecimiento.

El objeto Comunicación para la Salud desde la salud colectiva: una propuesta preliminar de ejes problemáticos y categorías analíticas Partir de la concepción de que la salud humana está socialmente determinada, implica reconocer su carácter socio-histórico, es decir, entender lo social y lo histórico como inherente a cualquier concepción de los problemas humanos y de la realidad (Zemelman, 1987). Zemelman plantea que la construcción de un campo problemático, como puede ser la teoría y praxis sobre comunicación para la salud, implica problemas epistemológicos y ontológicos: el punto no es qué pensar sobre un tema particular, sino cómo pensar sobre la realidad donde se ubica ese tema particular. Así, elaborar una propuesta teórica sobre comunicación para la salud desde la salud colectiva requiere un abordaje diferente de las categorías analíticas que fundamentan los debates actuales sobre la HC. Como punto de partida se han identificado cuatro ejes de discusión y algunas categorías, que necesitan mayor discusión o incluso, replantearse: los primeros dos ejes están relacionados con la 592

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Así como se puede cuestionar la capacidad de elección y autonomía de los individuos para adoptar estilos de vida saludables, también es posible cuestionar si la práctica de la comunicación dirigida a los cambios de conducta es un asunto de elección para América Latina y el Caribe. Coe (1998) señala que para la década de los 90 el 80% de los préstamos del Banco Mundial en la esfera sanitaria incluyeron un componente de comunicación para la salud. O, que subvenciones de salud y nutrición otorgadas por la Agencia de los Estados Unidos para el Desarrollo Internacional (USAID) destinaron fondos específicos para comunicación, que para fines de los años 90 se calcularon aproximadamente en 20 millones de dólares para América Latina y el Caribe. Si la comunicación para la salud para el cambio de conducta es un elemento de evaluación para atraer recursos y financiamiento puede considerarse que condiciona el tipo de comunicación de las instituciones de salud, es decir, la respuesta social de atención en salud desde ese ámbito.

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concepción de la salud, el tercero está relacionado con la concepción de la comunicación y el último, aborda la concepción de los sujetos de la comunicación en salud (Cuadro 1).

Cuadro 1. Matriz de análisis para la Comunicación en Salud

Concepción de la Salud

Concepción de la comunicación

Concepción de los destinatarios de la comunicación

Eje problemático

Categorías analíticas

Individual/ Social

Conducta Equidad

Causalidad directa/ Procesos de determinación social

Riesgo Totalidad compleja Necesidades en salud

Funcionalidad causal/ Relaciones de funcionalidad

Función Efectividad Función disciplinaria (normalización, poder)

Perspectiva del sujeto

Individual/Colectivo Clientes y consumidores Receptores pasivos/activos Audiencias y públicos Estilos de vida saludables

El primer eje analítico refiere a la concepción de la salud y los comportamientos “saludables”, en sus dimensiones individual y social. Algunos autores como Schiavo (2007) y Mosquera (2002), que revisan las teorías que han apoyado la conformación de la HC, destacan el aporte, para la definición de la praxis en comunicación, de teorías como la acción razonada, la social cognitiva o del aprendizaje social, los fundamentos de los modelos de mercadotecnia social y difusión de innovaciones, la comunicación persuasiva, las creencias en salud, la teoría de la concepción del mundo y diversas contribuciones desde las ciencias de la conducta, la educación para la salud, la antropología y la sociología. En este grupo teórico que fundamenta la HC se puede identificar que al menos los primeros cinco parten de una concepción de la acción de las personas en la dimensión individual, por encima de lo colectivo y social y destacan la posibilidad de tomar decisiones desde el libre albedrío, como si este fuera una condición natural preexistente en los individuos. En cambio, desde la salud colectiva, lo social es un nivel de análisis con mayor fuerza de explicación de los fenómenos, subordinando la dimensión individual, aunque sin obviarla. En este sentido es que habría que repensar la categoría conducta y su concepción como un resultado individual o social; y también el concepto de equidad, poniendo en duda la noción de libre albedrío de las conductas, puesto que en sociedades inequitativas las decisiones individuales están condicionadas por desiguales grados de libertad de los sujetos (Breilh, 2003). El segundo eje se encuentra en el problema de la causalidad lineal o directa frente a la concepción de multicausalidad y multidimensionalidad de los problemas de salud. En la salud colectiva se propone la perspectiva de los procesos de determinación social de la salud, o lo que podría llamarse una comprensión holística y compleja de estos fenómenos, que se puede abordar a partir de un enfoque COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dialéctico sobre la salud (Samaja, 2004; Minayo, 2003). La primera perspectiva, que nutre los referentes de la HC, está acorde al enfoque biomédico hegemónico6, que identifica causas directas o etiología de la enfermedad desligadas de su dimensión social. Este enfoque se puede reconocer en la actual temática de la comunicación en salud sobre estilos de vida saludables, construida desde la idea de que la salud depende de evitar factores destructores (riesgos) y propiciar factores protectores. Pero si entendemos la salud como un proceso social (Laurell, 1982) producto de complejas interacciones entre lo biológico, lo económico, lo cultural, lo político, lo histórico, la noción de causalidad directa es limitada y el concepto de riesgo necesita pensarse vinculando estas dimensiones7. Ante esto, una alternativa que apunta a la reconstrucción del objeto salud enfermedad, es entender los procesos de comunicación en salud y fundamentar su ejercicio y práctica como intervención, desde una perspectiva más amplia y comprensiva, para lo cual es útil el concepto dialéctico de totalidad compleja discutido por Samaja (2004) al mencionar la importancia de entender los fenómenos y el pensamiento sobre salud en términos de “totalidades complejas con historia” y “sistemas adaptativos complejos”, que no son inmóviles y se transforman. En concordancia, Zemelman (1987), también plantea que desde una problematización de la totalidad, la reconstrucción de los problemas de investigación no parte de objetos completamente teorizados (o preformados, como sucedería desde un enfoque disciplinario dentro del paradigma positivista), sino que se nutre de la problematización de la realidad, siempre más compleja y rica que cualquier teoría. Así, la reconstrucción teórica desde un razonamiento dialéctico permite una relación recíproca entre realidad material y teoría, lo que obliga a la ampliación y la experiencia de la subjetividad del sujeto investigador. Hay que agregar que entender el concepto salud como proceso con carácter histórico y social, significa fundamentalmente basarlo y explicarlo por la realidad que lo determina: esto es, la estructura y dinámica de la sociedad, el grado de desarrollo de sus fuerzas productivas, el tipo de relaciones que establece, el modelo económico, la forma de organización del Estado y sus políticas, las formas de distribución y acceso a los recursos, bienes y servicios. Todos estos niveles estructurales y relacionales pueden ser abordados desde la perspectiva dialéctica de la totalidad8, que se contrapone a la noción cartesiana de imposibilidad de conocimiento del todo y por lo tanto su segmentación sucesiva para conocerlo. Tal fragmentación es compatible y está en la base epistemológica de la noción de riesgo en tanto valor gnoseológico en la concepción de salud y en las estrategias de intervención, como ocurre en la epidemiología. Desde este eje analítico, la categoría necesidades en salud cobra entonces gran importancia, pues la definición de las mismas depende de cómo se conciben los problemas de salud y las estrategias de intervención (Breilh, 2003). El tercer eje problemático se encuentra en el análisis de los modelos de comunicación en salud para el cambio de conducta sobre estilos de vida saludables, lo que implica una determinada concepción de la comunicación. Aunque generalmente es planteada como un asunto técnico, indudablemente tiene implicaciones teóricas. La HC centra el potencial de la comunicación en su función para conseguir efectos, proponiendo que información y persuasión permiten el cambio de conducta. Sobre la función de la comunicación se plantea una amplia gama de problemas de distinto orden y en distintos niveles. Por una parte, desde las diversas teorías de la comunicación, esta visión correspondería más a una concepción lineal de los procesos de comunicación, que en los debates de la segunda mitad del siglo XX ha sido ampliamente superada (Maigret, 2005; Mattelart, Mattelart, 1997) que al reconocimiento de las diversas condiciones socioculturales que en parte determinan la forma en que viven las personas o a 594

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Menéndez (2004) sintetiza las características de su propuesta sobre modelo biomédico hegemónico en las siguientes características: biologicismo, ahistoricidad, individualismo, eficacia pragmática, orientación curativa, relación médico paciente asimétrica y subordinada, exclusión del saber del paciente, tendencia a la medicalización de los problemas y también, identificación ideológica con la racionalidad científica hegemónica.

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Las limitaciones del concepto riesgo, cuenta también con una nutrida discusión desde la salud colectiva, que debate las insuficiencias de su concepción lineal como causa-efecto, entre otros aspectos (Almeida-Filho, Castiel, Ayres, 2009; Almeida-Filho, 2000; Menéndez, 1998).

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El concepto de totalidad no quiere decir que para tener una perspectiva histórica hay estudiar todos los planos de la realidad social y en todos los tiempos, pero sí requiere tener en cuenta esa totalidad, en cualquier estudio particular de sus distintos fragmentos o piezas constitutivas (referentes empíricos y materiales), que para conocerse, comprenderse y explicarse no pueden prescindir del análisis de sus relaciones previas en múltiples dimensiones.

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una concepción de la comunicación como proceso con mediaciones. Por otra parte, desde la salud colectiva, la categoría función cobra un sentido distinto, en tanto puede ser comprendida desde la totalidad y no se limita a estímulos que generan respuestas en una relación causal. Los términos relaciones de funcionalidad o ligadura funcional de Samaja (2004) (de orientación kantiana) describen su forma de concebir las funciones, no como circunstancias aisladas, sino como parte de un todo complejo, que contribuyen a su conservación y reproducción. Desde la dimensión simbólica la categoría función sobre la comunicación en salud y su relación con la efectividad, también requiere una revisión de la función disciplinaria, en el sentido de Foucault (1999), lo que conduce a las categorías de normalización y poder, dado que a través de la comunicación de estilos de vida saludables se construye el imaginario de lo normal y aceptado, al mismo tiempo que se instituye posiciones sobre lo patológico y condenable. En este orden de ideas, de gran importancia en el contexto latinoamericano - aunque fuera de la discusión sobre los modelos de comunicación en salud para el cambio de conducta - esto permite abordar también el uso político de los mensajes sobre salud, tema que amerita incluirse en una reconstrucción de la comunicación en salud, en tanto es parte de una estrategia de intercambio de poderes para sostener posiciones hegemónicas en el campo político y en la esfera de la salud. Por último, un cuarto eje de análisis lo constituye la perspectiva del sujeto que desde el modelo de comunicación en salud hegemónico se construye y que está directamente relacionada con la concepción tanto de la salud, como de la comunicación. En este sentido, la revisión de Del Valle Rojas (2007) plantea que los modelos afines a la comunicación de estilos de vida saludables, como el marketing social y la difusión de innovaciones están fundamentados en las teorías de la modernización, esto es la promoción de cambios de conducta a través de la comunicación, que prometen conducirnos a un estado mejor o a un lugar mejor, por lo que parten de la desvalorización e incluso negación, del modo de vida de los sujetos. Como señala Del Valle Rojas, estos modelos, además de sustentar las lógicas de consumo, mercantilización y tecnologización, implican diseños verticales y jerárquicos reproductores del esquema de un mensaje enviado por un emisor activo quien detenta el patrimonio sobre el deber ser de una conducta a un receptor pasivo carente de nociones acertadas sobre su salud y por tanto implican concepciones reduccionistas sobre los sujetos sociales y el carácter dialógico de la comunicación. Paradójicamente a esta visión crítica de los modelos de comunicación, en años anteriores, Del Valle Rojas (2003) desarrolló un amplio manual sobre “comunicar salud”, desde una mirada instrumental que describe a los sujetos como “clientes” y “consumidores” al señalar que “el consumidor debe ser el centro de cualquier esfuerzo comunicativo”. La construcción de los sujetos receptores de la comunicación en salud como clientes y consumidores está acorde a las propuestas del Banco Mundial (World Bank, 1993) y de la OMS (2000), sobre la orientación al cliente de los servicios de salud y la satisfacción de los primeros como uno de los temas centrales en la evaluación de los segundos. Otra categoría utilizada es la de audiencia o público, que también denota y connota concepciones particulares del sujeto en su relación mercantil en tanto expectante de detalles sobre un producto material o simbólico para consumirlo en relaciones de mercado, pero sobre todo, destaca el poder del emisor. En el análisis de la perspectiva del sujeto se entrecruzan categorías de otros ejes analíticos. Se puede señalar que entender a los sujetos como clientes y/o consumidores, destacar su responsabilidad como individuos, y definirlos como receptores, audiencias o públicos, implica respectivamente, una visión mercantilizada sobre la salud, una concepción de las responsabilidades sociales de atención limitadas a los sujetos y una forma de entender la comunicación como un proceso predominantemente unidireccional. Finalmente y desde este eje, se debe revisar el concepto estilos de vida saludables, tanto en su carácter normalizador, su reducción a lo individual y su desvinculación de las condiciones objetivas de existencia. Para Chapela (2007) la temática invisibiliza la multiplicidad de condiciones de las que depende “la posibilidad de un sujeto saludable”; fragmenta las acciones de salud y refuerza (reproduce) la concepción de la situación de salud como resultado y responsabilidad de la acción de los individuos sin brindar posibilidades reales de cambio y transformación. Cerda (2010) señala que las intervenciones construidas sobre la temática de estilos de vida saludable limitan, cuando no definitivamente excluyen, la capacidad de agencia y cambio social de los sujetos, e ignoran la perspectiva de los derechos sociales, todo lo cual juega en contra de los fundamentos originales de la Promoción de la Salud. 595


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Síntesis Para pensar la comunicación en salud de una forma distinta que supere los límites impuestos por la noción de estilos de vida saludables, es necesario salir del espacio circunscrito que representa el debate técnico e instrumental sobre la comunicación en salud y situarse en un nivel teórico más general, donde lo conceptual marque las pautas de las implicaciones técnicas e instrumentales. Así, el problema no será centralmente qué y cómo se hace, sino la comprensión misma de la comunicación para la salud, de sus posibilidades prácticas en contextos determinados en los que confluyen sujetos, instituciones y distintas fuerzas y poderes que detentan quienes allí participan. Para ello es valiosa la reconstrucción del objeto teórico desde la salud colectiva; por ejemplo, desde los cuatro ejes propuestos que permiten contrastar con categorías conceptualmente diferentes el modelo hegemónico de HC. Ubicar los cuatro ejes analíticos permite establecer una crítica a ese modelo, donde los cuestionamientos apuntan a los aspectos torales para mostrar sus insuficiencias y al mismo tiempo se ofrecen propuestas de solución que sin desplazar o abordar un objeto distinto, dotan de un sentido diferente las categorías teóricas necesarias para transformar el objeto. Queda para el futuro la articulación entre los niveles teórico e instrumental, un paso indispensable pero que no puede realizarse sin problematizar inicialmente nuestra concepción de la salud, de la comunicación y de las personas para quienes se elabora comunicación para la salud.

Colaboración Soledad Rojas-Rajs es responsable de la concepción general del texto y su desarrollo. Edgar C. Jarillo Soto es responsable de la revisión, correcciones y enriquecimiento bibliográfico. Ambos autores participaron en conjunto de la discusión conceptual de este trabajo. Referencias ALCALAY, R. La comunicación para la salud como disciplina en las universidades estadounidenses. Rev. Panam. Salud Publica, v.5, n.3, p.192-6, 1999. Disponible en: <http://dx.doi.org/10.1590/S1020-49891999000300020. Acceso en: 9 oct. 2012. ALMEIDA FILHO, N. La ciencia tímida: ensayos de deconstrucción de la epidemiología. Buenos Aires: Lugar Editorial, Universidad de Lanús, 2000. ALMEIDA FILHO, N.; CASTIEL, L.D.; AYRES, J.R. Riesgo: concepto básico de la epidemiología. Salud Colect., v.5, n.3, p.323-44, 2009. Disponible en: <http:// www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S185182652009000300003&lng=es&nrm=iso>. Acceso en: 8 oct. 2012. BELTRÁN, L. Comunicación para la salud del pueblo: una revisión de conceptos básicos. Estud. Cult. Contemp., v.16, n.31, p.17-65, 2010. BENACH, J.; MUNTANER, C. Desigualdades en salud: una epidemia que podemos evitar. Entrevista por Salvador López Arnal. Rebelión, 31 ago. 2008. Disponible en: <http://www.rebelion.org/noticia.php?id=72000>. Acceso en: 25 mar. 2010.

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Palavras-chave: Comunicação em saúde. Saúde pública. Objeto teórico. Área problemática. Recebido em 25/10/12. Aprovado em 23/06/13.

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Confluindo gênero e educação popular por meio de uma pesquisa-ação para a abordagem do tabagismo feminino em contextos de vulnerabilidade social* Márcia Terezinha Trotta Borges1 Regina Helena Simões Barbosa2

BORGES, M.T.T.; BARBOSA, R.H.S. Converging gender and popular education through action research to address female smoking within contexts of social vulnerability. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.601-14, jul./set. 2013. This paper presents the results from action research that addressed female smoking in community spaces. The proposal originated from dialogue between the conceptual and methodological fields relating to feminism and popular education and aimed to pick out and gain an understanding of subjective and objective issues relating to female smoking, both in the family and in the social community spheres. In this action research, six women who were former smokers and were living in a community in Rio de Janeiro, Brazil, were trained to develop an educational process that reached women, men, adolescents and children in the form of dialogue and participation. The results revealed how to build shared knowledge on health, resulting from integration of academic and popular knowledge through dialogic educational praxis, thereby confirming the potential of this proposal for coping with female smoking in such contexts.

O artigo apresenta resultados gerados por uma pesquisa-ação (PA) que abordou o tabagismo feminino em espaços populares. A proposta originou-se do diálogo entre os campos conceituais e metodológicos oriundos do feminismo e da educação popular, e teve por objetivo captar e compreender questões subjetivas e objetivas do universo feminino relacionadas ao fumar, tanto no âmbito familiar quanto no sociocomunitário. A PA capacitou seis moradoras de uma comunidade do Rio de Janeiro, Brasil, ex-fumantes, para desenvolveram um processo educativo que alcançou, de forma dialogada e participativa, mulheres, homens, jovens e crianças. Os resultados revelam como se constrói, por meio da práxis educativa dialógica, um conhecimento compartilhado sobre a saúde que resulta da integração entre saber acadêmico e saber popular, confirmando o potencial desta proposta de enfrentamento do tabagismo feminino nos contextos populares.

Keywords: Smoking. Gender identity. Popular education. Action research.

Palavras-chave: Hábito de fumar. Identidade de gênero. Educação popular. Pesquisa-ação.

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Elaborado com base em (Barbosa, Borges, 2009-2011); pesquisaação aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC-RJ) e do Instituto Nacional de Câncer (INCA/MS), e registrada no SIGMA/ UFRJ, com chancela financeira da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). 1,2 Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Praça Jorge Machado Moreira, 100, Cidade Universitária. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21941-598. marciatrotta@gmail.com *

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Introdução O artigo apresenta e discute os resultados gerados por uma pesquisa-ação (PA) que abordou o tabagismo feminino em um enfoque crítico de gênero entre mulheres de comunidades populares. A proposta conceitual e metodológica adotada pretendeu estabelecer um diálogo interdisciplinar entre o campo da educação popular em saúde e o tabagismo feminino, visando contribuir para as estratégias de enfrentamento deste complexo e grave problema de saúde pública. Os indicadores epidemiológicos que apontam, em nível global, o crescimento do tabagismo entre a população feminina (Shafey et al., 2009), particularmente a de baixa renda e escolaridade, motivaram a elaboração e implementação desta PA em uma comunidade popular da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo central foi captar e compreender questões subjetivas e objetivas do universo feminino relacionadas ao fumar, tanto no âmbito familiar como sociocomunitário, visando contribuir tanto para a elaboração de um modelo de intervenção educativa construído com e para mulheres que vivem em espaços populares, quanto para a produção de conhecimentos que resultam de um processo dialógico e relacional. Para tal, mulheres ex-fumantes, oriundas de um grupo de tratamento de tabagismo de um Centro Municipal de Saúde localizado na comunidade eleita para o estudo, foram recrutadas e capacitadas, através da metodologia da educação popular e da pedagogia feminista, como multiplicadoras de ações educativas voltadas para a prevenção do tabagismo feminino entre mulheres integrantes de suas redes sociofamiliares e comunitárias. Os referenciais teóricos, que embasaram e sustentaram esta experiência no campo da prevenção do tabagismo, apoiaram-se em: um enfoque crítico de gênero (Giffin, 2002; Simões-Barbosa, 2001a; Brito, 2000; Castro, 2000; Kergoat, 1996; Saffioti, 1992), no modelo educativo oriundo da pedagogia da pergunta – que originou o campo da Educação Popular em Saúde –, e na pedagogia feminista oriunda do movimento de mulheres, tal como consubstanciado no Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) (Simões Barbosa, 2001b; Freire, 1996; Giffin, 1995; Valadares, Sanches, Giffin, 1987). Os resultados gerados neste – e através deste – processo educativo, que estabeleceu um diálogo entre o saber acadêmico e o saber popular, confirmam o potencial desta proposta para o enfrentamento do tabagismo feminino em espaços populares e sua multiplicação em contextos sociocuturais semelhantes.

Cenário do tabagismo no mundo e no Brasil: desafios para a Saúde Pública e a Educação e Saúde Diversos são os fatores que contribuem para o desencadeamento, a manutenção e a permanência de certos hábitos que as sociedades adquirem ao longo de sua história. Longe de ser apenas um ‘hábito’, o fumar está presente de forma direta no cotidiano de mais de um bilhão de pessoas no mundo (Shafey et al., 2009; World Health Organization, 2009), além de um significativo contingente de pessoas que são afetadas de forma indireta, através do fumo passivo. Em função de sua íntima relação com as inúmeras doenças relacionadas ao seu consumo, o cigarro protagoniza uma relação antagônica de prazer e repulsa, sendo um importante fator de risco para seis dentre as oito principais causas de morte no mundo (Shafey et al., 2009). Reconhecido desde 1992 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma dependência3, o fumo é responsável por, aproximadamente, seis milhões de mortes/ano em todo o planeta, sendo que 72% ocorrem nos países em desenvolvimento (Shafey et al., 2009). 602

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O tabagismo foi classificado no grupo dos transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas, na décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS, categoria F17.2.

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Os indicadores epidemiológicos apontam, em nível global, para o crescimento do tabagismo entre a população feminina, particularmente a de baixa renda e escolaridade, sendo que, atualmente, as mulheres e os jovens são o público-alvo preferencial da indústria fumageira (Shafey et al., 2009), o que confirma os processos de juvenilização, pauperização e feminização do tabagismo em curso (Borges, Barbosa, 2009). Como demonstrado em nossas pesquisas, o tabagismo feminino é um problema complexo e que envolve várias dimensões de vida – objetivas e subjetivas – das mulheres, demandando, portanto, uma abordagem de gênero para a compreensão ampliada do fenômeno em suas várias dimensões (Borges, Barbosa, 2009; Borges, Simões-Barbosa, 2008; Borges, 2007). No Brasil, a política para o controle do tabaco vem apresentando resultados positivos e mostrando-se eficiente em função de uma série de medidas tomadas em diferentes setores, como: a proibição das propagandas, as campanhas pontuais e a oferta de tratamento e medicamentos na rede pública, entre outros. Os inquéritos populacionais indicam avanços claros na política de controle do uso do tabaco (Brasil, 2008), mas essas estratégias, a despeito dos excelentes resultados alcançados, esbarraram nos seus limites, o que exige novas propostas inovadoras que alcancem, em especial, as populações feminina e jovem (Wunsch Filho et al., 2010; Borges, Barbosa, 2009; Borges, Simões-Barbosa, 2008; Borges, 2007). Isto nos coloca frente ao desafio de construir e implementar metodologias de intervenção para a prevenção e estímulo à cessação do tabagismo, que abarquem as diversas dimensões de vida dos indivíduos e se direcionem, preferencialmente, para as populações que vivem em contextos de vulnerabilidade social, estimulando a adoção de novas posturas e valores de vida que possam, inclusive, repercutir positivamente sobre a saúde e a qualidade de vida de suas famílias e comunidades. Como amplamente preconizado, as ações de enfrentamento deste complexo problema devem envolver maior mobilização e participação social. Embora no campo da prevenção e promoção da saúde os modelos educativos de cunho participativo já sejam adotados há algumas décadas, principalmente pelo campo da Educação Popular em Saúde (EPS), sua articulação com o tema do tabagismo é recente e, como pretendemos demonstrar, muito promissora.

Educação Popular e Saúde: desafios para a construção compartilhada do conhecimento As premissas epistemológicas, políticas e pedagógicas da educação popular partem do reconhecimento do valor do saber popular na produção de um ‘conhecimento ampliado’, resultante do diálogo entre o saber cientifico e o saber popular, e radicalmente comprometido com uma práxis voltada para a transformação da realidade de vida e saúde da população. De acordo com Carvalho, Acioli e Stotz, essa ‘construção compartilhada do conhecimento’ “[...] implica um processo comunicacional e pedagógico entre sujeitos de saberes diferentes convivendo em situações de integração e cooperação, que envolve o relacionamento entre pessoas ou grupos com experiências diversas, interesses, desejos, motivações coletivas” (Carvalho, Acioli, Stotz, 2001, p.103). Para embasar a discussão da PA, nos apoiaremos nas premissas conceituais e metodológicas da Educação Popular em Saúde (EPS), em diálogo com a proposta educativa oriunda do movimento de mulheres, sendo esses dois referenciais, a nosso ver, imprescindíveis para fundamentar um modelo educativo em saúde transformador, que incorpore a complexidade de questões socioculturais que perpassam o processo saúde-doença e, em especial, o tabagismo. O diálogo entre os serviços de saúde e os movimentos sociais e populares, quando ocorre, tem se revelado muito fecundo. Nesta relação, a EPS vem se afirmando como uma proposta pedagógica e uma práxis educativa que busca construir uma relação horizontal e dialógica entre sujeitos sociais distintos, o que geralmente resulta em ações com grande potencial de transformação. O educador Paulo Freire, através de suas ideias e experiências pioneiras na área de educação, iniciadas no Brasil no início dos anos cinquenta, é o eixo de referência deste enfoque e, correlatamente, desta práxis pedagógica. O ponto de partida deste processo educativo é o diálogo e a troca entre o saber técnico-científico e a cultura popular, o que já sinaliza para uma escolha em se trabalhar com as classes populares, na perspectiva de compromisso com a justiça social. Apesar do movimento liderado por Freire ter recebido, a partir da década de 1970, a adesão de muitos profissionais de saúde, ainda esbarra, nos dias atuais, na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dificuldade de os serviços de saúde superarem as práticas hierarquizadas e verticais que marcam o modelo hegemônico de educação e saúde (Valla, 2011; David, Acioli, 2010; Freire, 2009; Vasconcelos, 2007, 2004, 1998; Freire, 1996; Freire, Faundez, 1985). A articulação do campo da EPS ao tabagismo feminino está calcada em alguns pressupostos de Freire que embasaram a PA e que serão aqui brevemente sinalizados. Em primeiro lugar, destaca-se o papel da ‘conscientização’, um processo que abre caminho para a expressão das insatisfações sociais, permitindo alargar a compreensão dos mecanismos que perpetuam as situações de injustiça e desigualdade, para denunciá-las (Freire, 2009). O trabalho com a unidade dialética da subjetividade/ objetividade gera reflexão problematizadora e ação sobre uma dada realidade, visando transformá-la. Esta pedagogia permite, portanto, a reflexão crítica sobre as situações concretas de vida, levando o sujeito ao engajamento na luta por sua libertação, luta que é forjada com ele, e não para ele (Freire, 2009). Outro ponto importante é a forma como o processo educativo em geral ocorre. Na perspectiva de uma pedagogia emancipadora, educador e educando são ambos sujeitos de conhecimento, ensinam e aprendem e, juntos, vão desvelando o mundo e comprometendo-se com sua transformação através de uma práxis pedagógica transformadora. Neste sentido, relativiza a importância do saber formal, acadêmico, e valoriza os conhecimentos adquiridos nas experiências cotidianas de vida e nas diversidades culturais, o que faz pressupor uma relação de permanente diálogo e a postura do “saber escutar”. O aprendizado cognitivo, apesar de ser fundamental, transforma-se ao agregar as dimensões afetivas, culturais, morais, coletivas e históricas no processo permanente de ensinar-aprender (Freire, 2009). Portanto, o reconhecimento de uma ‘comunidade ampliada’ no processo de produção do conhecimento representa um avanço epistemológico e pedagógico. Os saberes empíricos da população são construídos e elaborados a partir de suas experiências concretas de vida e são diversos das vivências do educador/ facilitador, já que se encontram atravessadas por diferenciais culturais e socioeconômicos; assim, só poderão emergir - e romper ‘muros invisíveis’ - através de uma relação de mútua confiança, em que ambos os sujeitos colocam-se abertos à contribuição do outro (Valla, 2011; Freire, 2009; Freire, Faundes, 1985). Podemos identificar profundas afinidades entre o campo da EPS e a pedagogia gestada pelo/ no movimento de mulheres e, posteriormente, incorporada ao Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), definido como modelo de assistência à saúde das brasileiras desde 1983 (Simões Barbosa, Giffin, 2007; Simões-Barbosa, 2001a; Costa, Aquino, 2000; Osis, 1998; Giffin, 1995; Xavier, Ávila, Correa, 1989; Valadares, Sanches, Giffin, 1987). Esta proposta aponta para uma relação educativa calcada no diálogo e respeito entre profissionais de saúde e usuárias, em que todas compartilham e acolhem as experiências das outras, guardando profundo respeito às diversidades socioculturais. Tal concepção tem, como eixo, a promoção da cidadania feminina, assumindo que as mulheres devem ser sujeitos de sua vida, corpo e saúde. Assim, a perspectiva de gênero e a pedagogia da libertação almejam construir, através das práticas educativas reflexivas e problematizadoras, caminhos para profundas transformações nas relações sociais, o que inclui as relações entre homens e mulheres. Ambas propõem um caminho pedagógico que passa, essencialmente, pelo compromisso com a promoção da justiça e da igualdade em todos os âmbitos (Simões Barbosa, Giffin, 2007; SimõesBarbosa, 2001a; Costa, Aquino, 2000; Osis, 1998; Giffin, 1995; Xavier, Ávila, Correa, 1989; Valadares, Sanches, Giffin, 1987). Partindo desses pressupostos, o projeto de PA propôs-se a conhecer a complexidade do problema do tabagismo feminino, entre mulheres de camadas populares, de forma participativa e dialogada, buscando elaborar, coletiva e solidariamente, estratégias educativas de enfrentamento deste problema. A seguir, apresentaremos os fundamentos conceituais da PA, tal como adotada neste projeto.

Pesquisa-ação: uma estratégia promissora de enfrentamento do tabagismo feminino A pesquisa-ação (PA) como alternativa de construção do conhecimento surgiu nos anos 1960/1970 a partir do compromisso de cientistas sociais e educadores com os setores populares. Reason (1994) identificou várias vertentes de pesquisas participativas, por ele nomeadas como “pesquisa do novo 604

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paradigma”, que incorporam uma visão de mundo em que os seres humanos são “co-criadores da sua realidade”. Apesar da variação nas abordagens, todas apontam as experiências do cotidiano como âmbito de transformação através de um processo reflexivo e problematizador, além da inseparabilidade entre conhecimento e ação. A educação libertadora de Paulo Freire é apontada como uma das fontes pioneiras deste tipo de proposta de construção do conhecimento (Giffin, Simões-Barbosa, 2009; Reason, 1994). Assim, a escolha da PA para produzir conhecimentos inovadores no campo do tabagismo feminino em comunidades populares justificou-se por esta abordagem se apoiar na participação ativa de agentes sociais que buscam alcançar melhores condições de vida e saúde para si, suas famílias e comunidade. Além disso, a PA sela compromissos ético-políticos entre pesquisadores e população, na busca de novas formas de pensar e agir sobre a qualidade de vida e a saúde no plano coletivo, sendo que os conhecimentos construídos a partir dessa experiência têm grande potencial para subsidiar estratégias educativas baseadas nas reais necessidades da população. Sendo o tabagismo um problema de saúde que pressupõe uma “mudança de comportamento”, geralmente preconizada através de práticas educativas verticalizadas e normativas que desconsideram os aspectos subjetivos, culturais e os modos de vida envolvidos na experiência histórica e cotidiana dos atores sociais, os modelos educativos de cunho participativo, que envolvem a população-alvo, na elaboração, implementação e execução das ações educativas, podem ser estratégicos para a prevenção e promoção da saúde, especialmente no caso do tabagismo. Assim, neste projeto, a metodologia da PA buscou diminuir o fosso que separa as ações de profissionais de saúde e população, rompendo com a visão vertical e autoritária do processo de produção e transmissão do conhecimento, permitido novas teorizações a partir da experiência e da ação, duas categorias essenciais neste enfoque metodológico.

Entrando em campo: a formação das multiplicadoras A PA se iniciou com a inserção da equipe em um Centro Municipal de Saúde (CMS), instituição que sediou o processo de pesquisa e intervenção, escolhido por suas características favoráveis ao desenvolvimento da proposta, tais como: ter um programa de tabagismo bem estruturado e ativo, estar conectado a um Programa de Saúde da Família (PSF), e ser local de fácil acesso e mobilidade para a equipe pesquisadora. Baseado em uma metodologia ancorada no processo de reflexão, problematização, conscientização e ação, o projeto foi desenvolvido em duas fases: operacional, de cunho educativo e de trabalho de campo, e outra, de pesquisa acadêmica, ambas ocorrendo simultânea e articuladamente. Apresentaremos, a seguir, uma ‘descrição interpretada’ do processo educativo, que inclui desde o recrutamento e capacitação das multiplicadoras até a elaboração coletiva de um programa de intervenção – naquilo que denominamos ‘construção compartilhada do conhecimento’ (Carvalho, Acioli, Stotz, 2001) – e sua implementação na comunidade. Para a formação do grupo de multiplicadoras, foram recrutadas e selecionadas seis mulheres exfumantes, oriundas do programa de tratamento do tabagismo do referido CMS. O grupo foi constituído por mulheres adultas, com filhos (e, algumas, netos), com baixa escolaridade e qualificação profissional, portadoras de histórias de vida marcadas por privações e perdas, mas, também, por lutas e conquistas. Todas apresentavam histórias de casamentos e separações e sobreviviam, à época do projeto, da renda gerada pelo salário dos maridos; apenas uma delas se sustentava através da renda obtida com seu salão de beleza. No entanto, todas já haviam contribuído com a subsistência familiar em algum momento de suas vidas, trabalhando como diaristas e/ou outras modalidades de trabalho exercido no domicílio. A maioria não tinha projetos de vida para si próprias e não acreditava na possibilidade de se realizarem através do trabalho, como ressalvado por Vaidosa: “Aqui [no local em que vive], passou dos 40 anos, já não tem valor: não serve para trabalhar, estudar...” A fase operacional do projeto desenvolveu-se em três etapas distintas: a capacitação, o (re)conhecimento da própria comunidade e a intervenção educativa propriamente dita. Na primeira etapa, de capacitação das multiplicadoras, a equipe, inicialmente, apresentou e debateu com o grupo a proposta de trabalho, que foi dialogada e remodelada durante todo o percurso. Previstas para durar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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quatro meses, as oficinas de capacitação ocorriam duas vezes por semana, com quatro horas de duração cada. Destacamos aqui a importância de um tempo longo, de quatro horas, para a realização das oficinas, o que se diferencia radicalmente das usuais ‘palestras’, geralmente voltadas para a transmissão vertical de conhecimentos e com pouco espaço para reflexão, debate e, especialmente, elaboração (objetiva e subjetiva) dos novos conhecimentos adquiridos. Na medida em que trabalhávamos questões sensíveis e, por vezes, delicadas, era necessário o tempo para o acolhimento, a reflexão e a busca coletiva de caminhos, respostas e insights. Mas não só para estas questões o tempo se fazia necessário: a reflexão sobre identidades e relações de gênero, remetendo às próprias experiências de vida, sempre perpassadas por emoções, também exige tempo – especialmente entre mulheres que não tinham tido, até então, muitas oportunidades para refletir criticamente sobre suas vidas. Esses temas, como sabemos, são altamente mobilizantes e, em muitos momentos, a equipe precisou ter sensibilidade e solidariedade para acolher e trabalhar as inúmeras experiências e sentimentos que afloravam. Inicialmente, trabalhou-se o processo de grupalização – mediante dinâmicas, jogos e rodas de conversa – quando o grupo identificou, fortaleceu e consolidou os vínculos e valores éticos que norteariam o trabalho: o compromisso, a confiança e o sigilo, entre outros. Também foram sendo estruturados, de forma dialogada e compartilhada, os conteúdos do programa de capacitação em torno dos eixos temáticos gênero e tabagismo, ambos intensamente trabalhados no transcurso das oficinas. Algumas atividades de sensibilização foram realizadas de forma a propiciar um início de reflexão e trocas sobre as vivências da experimentação do fumar. Assim, o programa relacionado ao tema do tabagismo foi sendo elaborado pelas multiplicadoras e equipe a partir das sugestões do grupo e respondendo aos seus interesses. A fala de uma multiplicadora expressa a forma como perceberam a capacitação: “A coordenadora não trouxe livro pra gente estudar, foram as nossas histórias, nossas vidas que construiu tudo o que a gente aprendeu” (Loira4). Quanto aos conteúdos de gênero, trabalhados simultânea e articuladamente ao tema tabagismo, estes gravitavam em torno do eixo ‘o que é ser mulher’, em relação com o corpo e a saúde. A reflexão de gênero tanto se dava em torno das suas próprias vivências e percepções como, também, se ancorava em conhecimentos e informações sobre a situação mais ampla das mulheres no nosso país e no mundo, de forma a alargar a compreensão das multiplicadoras para além de seu cotidiano. Houve certa dificuldade inicial das mulheres em se engajarem nas oficinas de reflexão, possivelmente devido ao ‘estranhamento’ de questões tão naturalizadas na nossa cultura e à falta de familiaridade com a exposição de ‘questões mais íntimas’. Mas, no decorrer das oficinas, as mulheres foram gradativamente compartilhando suas (muitas vezes difíceis) experiências de vida, fortalecendo os vínculos de solidariedade e confiança entre as integrantes do grupo, tanto da equipe quanto das multiplicadoras. As oficinas eram elaboradas de forma a: estimular as participantes a perceberem as experiências comuns, ampliar a compreensão das dificuldades vivenciadas pelas mulheres, aprofundar o nível de comunicação dentro do grupo, possibilitar a expressão de sentimentos represados, ou demonstrar como estereótipos e interpretações subjetivas podem interferir na comunicação e nas percepções sobre outras pessoas. Aos poucos, foram articulando os temas entre si, sendo que cada subtema despertava interesse em aprofundar e buscar outros conhecimentos correlatos. As oficinas que trabalharam o tema da violência fizeram emergir muitas experiências dolorosas, que foram solidariamente acolhidas pelo grupo e equipe. Como relatado por Loira: “Quando meu marido fazia ‘ignorância’ [agressividade], eu me calava e fumava pra não ser 606

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Os nomes ficticios foram escolhidos pelas próprias mulheres, usando adjetivos que tivessem as iniciais de seus nomes.

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dois ignorantes. Me sentia triste”. Como esta fala demonstra, as multiplicadoras foram gradativamente estabelecendo os fios que conectam todas as esferas da vida cotidiana ao tabagismo, superando a tradicional visão que hierarquiza os ‘riscos’ de forma mecânica e sem considerar outros aspectos da vida das pessoas. Tabagismo e gênero foram, assim, gradativamente se conectando e se consolidando como uma maneira de se perceber, considerar e compreender as dimensões de vida que estão associadas ao fumar, em especial, o fumar feminino. Além das oficinas, diversas atividades externas foram programadas, visando corresponder aos anseios de aprendizagem do grupo e à crescente necessidade de ampliar seus horizontes de mundo para além das fronteiras da Maré. A convivência frequente, a confiança mútua fortalecida, os temas mais íntimos compartilhados e debatidos durante as oficinas foram construindo coletivamente o ‘rosto’ e a identidade do grupo, além de ampliar a percepção de que ‘sozinho não se faz nada’. Como percebido por Loira: “Pelo grupo é preciso ceder, mesmo que muitas vezes não seja de seu agrado”. Estas vivências culminaram com o ‘batismo’ do grupo, que elegeu o nome ‘Grupo Multiplicação: Mulheres pela Prevenção’ e, posteriormente, criou um logo representativo para os materiais e camisetas usados por elas quando em atuação. Ao final da primeira etapa, o grupo foi estimulado a pensar sobre como realizar um trabalho de prevenção do tabagismo com as mulheres de sua comunidade. Daí emergiu o modelo educativo para as intervenções que elas viriam a desenvolver na etapa subsequente, de multiplicação.

Entrando em campo: (re)conhecendo o território, legitimando-se como ‘multiplicadoras’ Durante a segunda etapa do projeto, o grupo foi convidado a re-conhecer sua própria comunidade através de um olhar problematizador, que desnaturalizasse o cotidiano. Como protagonistas do processo de aprendizagem, passaram a percorrer a comunidade para melhor conhecerem sua realidade, agora com ‘novos olhos’. Observaram o campo de pesquisa, perguntaram, conversaram, anotaram, descobriram notícias interessantes nos jornais comunitários. Ao retornarem ao grupo com os resultados de suas observações, traziam muitas dúvidas e reflexões. Em grupo, mais uma vez, tudo era discutido, anotado, sistematizado: um breve perfil desta realidade, elaborado coletivamente, começava a se delinear! Atribuíam um grau de importância ao que observavam, em geral dado pela percepção da frequência com que ocorria, chegando, inclusive, a identificarem aspectos até então desconhecidos em sua comunidade, como ‘ninguém sabe o que é fumo passivo’ ou ‘os comerciantes locais vendem cigarros pra qualquer pessoa, até para as crianças’. As multiplicadoras, com o apoio da equipe, elaboraram, então, um diagnóstico situacional do tabagismo feminino na comunidade por meio de um questionário elaborado a partir de suas observações e vivências. Para a aplicação, dividiram-se em duplas, pois, dessa forma, se sentiam mais seguras. Sempre que retornavam à sala, tudo era debatido e as dificuldades, explicitadas. Loira, por exemplo, avaliou seu primeiro questionário como “uma tortura”, pois se sentiu ‘muito mal’. Mas, ao chegar em casa, acalmou-se e disse para si mesma: ‘sou capaz’, descobrindo uma autoconfiança que até então desconhecia. Assim, à medida que foram ganhando experiência e segurança, conseguiram aplicar o questionário entre 215 mulheres tabagistas moradoras de diversos bairros do entorno. Após a aplicação, respondiam às perguntas, dúvidas e ouviam desabafos das mulheres respondentes. Perceberam, então, que a aplicação do questionário propiciava um espaço importante para transmitirem informações e começarem a estabelecer relações com as mulheres da comunidade. Para aproveitarem a oportunidade da abordagem de pesquisa, produziram um panfleto com dez frases significativas sobre o tabagismo, redigidas em uma linguagem simples e direta, que entregavam às pessoas logo após o término do questionário. Serena, ao falar sobre essa atividade, relatou sentir-se muito bem, como exfumante, em poder transmitir conhecimentos tão valiosos para as pessoas de sua vizinhança. Como visto, elas aprenderam a aproveitar toda e qualquer oportunidade do seu cotidiano para abordar a população e levar sua ‘mensagem’ de saúde. Nesta segunda etapa, o grupo também percorreu a comunidade com o objetivo de identificar possíveis parcerias de trabalho. Motivadas pela equipe a organizarem e planejarem o trabalho, estabeleceram contatos preliminares, identificaram lideranças e as características de cada local COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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contactado, como: espaço físico, equipamentos disponíveis, dias e horários para atividades, grupos-alvo. Sempre que retornavam das atividades de exploração do campo, eram incentivadas a refletir sobre os fenômenos observados e suas possíveis causas. A facilitadora sistematizava os relatos e complementava com outras informações necessárias, além de anotar as propostas de intervenção que começavam a emergir do grupo. Desta forma, em um processo de reflexão e troca de conhecimentos, faziam uma leitura de seu mundo e começavam a delinear estratégias que consideravam adequadas para sua realidade. Nesta etapa, foram mantidos os dois encontros semanais com a equipe, que, além de lhes dar apoio logístico para a entrada em campo, infundia-lhes confiança na sua capacidade de realizarem o trabalho proposto. Para legitimar sua atuação enquanto promotoras de saúde na prevenção do tabagismo em sua comunidade e encerrar a etapa de capacitação, a equipe apresentou, ao grupo, a proposta de realização de uma ‘festa de formatura’5. Foi inestimável a importância deste ato simbólico em suas vidas, tão marcadas por dificuldades de acesso ao ensino e à capacitação profissional: seus familiares compareceram em peso à cerimônia – filhos (as) netos (as), companheiros, irmãos (ãs), mães, amigos (as) – e, também muito emocionados, expressaram sua surpresa ao perceberem, naquele momento, a ‘grandeza’ do trabalho para o qual elas haviam sido capacitadas. Agora, já (re)conhecidas na comunidade e legitimadas como ‘as multiplicadoras’, as mulheres prepararam-se, então, para partirem para a ação!

Atuando no campo: enfrentando os desafios e construindo um modelo de intervenção educativa Nesta terceira e última etapa, o grupo retornou às instituições já cadastradas, agora já investidas da nova identidade – “Grupo Multiplicação: Mulheres pela Prevenção” –, trabalhando o fortalecimento dos laços já criados com os espaços de educação, saúde e de atividades culturais e de lazer da comunidade, com o intuito de atuar de forma integrada na prevenção e no estímulo à cessação do tabagismo. Durante as oficinas com a equipe, iniciou-se o movimento de elaborar/ planejar as atividades que desejavam propor às parcerias. Neste momento, surgiram algumas dificuldades, já que muitas questões estavam em jogo: o tempo total de atividade, o local onde seria realizado, os recursos pedagógicos com que poderiam contar, o público-alvo da atividade, os temas correlatos a serem trabalhados, a escolha das dinâmicas e o preparo do material, entre outros. “Eu não consegui completar os quatro (planejamentos das dinâmicas) porque eu tinha dúvidas. Isso aí tá difícil...”, como expressou Jeitosa. Nestes momentos, se fortalecia o clima de colaboração entre o grupo: as dificuldades iam sendo superadas coletivamente, na medida em que cada uma ajudava as outras nos quesitos nos quais tinha melhor domínio. Conquistando gradativamente segurança e autonomia, e com o acompanhamento, estímulo e suporte da equipe, foram se firmando. Dessa forma, neste processo de altos e baixos, e tendo de superar cotidianamente o medo e a insegurança, foram elaborando coletivamente seu próprio modelo de intervenção, adequando-o à realidade de vida local e aprendendo a escolher, com segurança crescente, os conteúdos das atividades de multiplicação e a metodologia que deveria ser adotada em cada situação/ contexto, quer fossem palestras, oficinas, dinâmicas de grupo, exibição de materiais educativos, visitas, reuniões ou exibição de filmes. É, então, a partir desta terceira etapa, que as multiplicadoras organizaram, de forma mais sistemática, diversas atividades coletivas de sensibilização e envolvimento da comunidade na questão do tabagismo, como, por exemplo, a mobilização para as Campanhas do 31 de Maio – Dia Mundial Sem Tabaco – e de 29 de Agosto – Dia 608

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Na formatura, foram entregues diplomas ‘simbólicos’, já que este tipo de capacitação não tem reconhecimento legal pelo Ministério de Educação.

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Nacional de Combate ao Fumo. Além das oficinas nos locais de parceria estabelecidos anteriormente, formaram grupos reflexivos em suas próprias residências, além de fazerem visitas às casas de moradores que sabiam precisar de ajuda e estímulo. As tardes passaram a ser dedicadas a encontros com parentes, vizinhas e amigas, que elas chamavam de ‘Chá da Alegria’, ‘Chá do Futuro’, ‘Chá Maravilhoso’ etc... Como em todo trabalho, encontraram receptividade e reconhecimento, mas esbarraram em dificuldades, que as ensinavam, na prática, a improvisar, a criar, a usar o ‘jogo de cintura’. Mais do que planejar as dinâmicas, as multiplicadoras, agora, percebiam que precisavam exercitar qualidades importantes para lidar com as pessoas com quem atuam, tais como: “ter paciência, ser comunicativa, alegre, saber favorecer o diálogo, respeitar o próximo e colocar-se no lugar do outro, chegar devagar, com jeito, com humildade, para poder conquistar o outro”, como colocado por Loira. Jeitosa completou que “não adianta chegar sem paciência, chegar com panfleto e sem acolhimento”. Já Maravilhosa acrescentou que se devia evitar, logo de início, “falar na doença ou que precisa parar de fumar”. Perceberam, também, o valor do atributo de ouvir e de acolher, como colocado por Amada, antes muito falante: “Achei isso maravilhoso! Ver a história parecida com a minha e ficar calada, associar e ficar quieta”. Maravilhosa também destacou o importante aprendizado de ouvir sem interferir: “Difícil segurar calada, sem perguntar, sem debater”. O grupo começava a se sentir gratificado pelo trabalho desenvolvido. Jeitosa, animada, afirmou esperar que o trabalho “ajude as pessoas saberem que podem mudar”. Já Amada disse esperar que lembrem dela como “a pessoa que levou informações, que ajudou...Isto dá satisfação, alegria.” A duração desta etapa foi de sete meses, com um encontro semanal de quatro horas de supervisão para as atividades que se desenrolavam no campo. Em geral, a intervenção educativa era protagonizada em duplas. As mulheres logo perceberam que as atividades deveriam ser reflexivas e que o cuidado de evitar falar diretamente sobre doenças era fundamental. Ou seja, o modelo educativo freireano baseado na reflexão, diálogo, compartilhamento e busca coletiva de alternativas mais saudáveis de vida foi plenamente compreendido e internalizado por elas. Desta forma, superando a ‘educação bancária’ baseada na transmissão vertical do conhecimento, as mulheres passaram a organizar oficinas inspiradas nas dinâmicas pedagógicas vivenciadas na fase de capacitação, quando o ensinar-aprender-ouvirdialogar foi sendo gradativamente introjetado. Perceberam, também, a importância de desenvolverem atividades educativas com um ‘toque’ lúdico de animação e muito acolhimento para facilitar a aproximação e o interesse das mulheres. Esmeravam-se em preparar os planejamentos das oficinas, embora, no início, esta tenha sido uma atividade difícil, pois o planejamento escrito não faz parte do repertório escolar e cultural da população. Além disso, compreenderam a importância de preparar materiais educativos adequados para cada contexto, quando ‘bolavam’ dinâmicas próprias, sendo que aprenderam rapidamente a mudar as atividades quando percebiam que o trabalho não estava funcionando adequadamente durante uma oficina. Dos primeiros passos, ao implementarem ações consideradas válidas para a problemática do tabagismo na comunidade, emergiram diversas emoções: medo de não estarem preparadas, de terem de se colocar em público, e a percepção de que, por mais que se preparassem, sempre havia imprevistos. De volta à reflexão no grupo, a viabilidade da ação desenvolvida era sempre avaliada por todas. Já sabiam que a avaliação de cada atividade é importante para se aprender com aquilo que não funcionou bem e redirecionar as ações para as próximas etapas. Além do grupo-alvo feminino, foco principal do projeto, as multiplicadoras alargaram o alcance de sua intervenção, alcançando homens, jovens e crianças, na medida em que as parcerias iam incluindo escolas, igrejas, associações, grupos de alcoólicos anônimos (AA), e praças públicas, entre outros. O primeiro trabalho desenvolvido com um grupo de homens foi realizado em uma reunião de Alcoólicos Anônimos (AA), em uma igreja local. Este foi um passo importante, já que, muitas vezes, estas pessoas, lutando contra o álcool, não consideram o cigarro como uma dependência. O primeiro trabalho desenvolvido com jovens de uma escola pública local deixou marcas – frustração e sensação de não serem capazes de realizar o proposto – e um grande aprendizado ‘freireano’, já que é com a avaliação dos erros que se avança. Durante a supervisão desta atividade ‘frustrada’, o grupo acompanhou, com muita atenção e solidariedade, o relato da oficina, debatendo cada aspecto e buscando identificar os problemas ocorridos. Esta experiência serviu de exemplo e ensinamento para 609


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que outras atividades desenvolvidas posteriormente com outros jovens e crianças de diferentes escolas fossem muito mais proveitosas. Outro aporte educativo que se revelou muito proveitoso foi a criação de uma peça teatral que trata com humor e ironia o tabagismo – intitulada Trago a Trago –, criada coletivamente pelas multiplicadoras, com a assessoria de uma educadora teatral, e cujo roteiro foi inspirado em suas vivências pessoais com o tabagismo. Essa peça passou a ser regularmente apresentada nas reuniões de recepção aos novos integrantes dos grupos para o tratamento de cessação, e em outros eventos para os quais eram convidadas, servindo como estratégia de sensibilização. Ao final de um ano de atuação, as multiplicadoras realizaram 88 oficinas, sensibilizando diretamente duas mil, trezentos e sessenta pessoas – de ambos os sexos e diferentes faixas etárias – através de um processo dialógico e relacional. Os ganhos qualitativos e pedagógicos deste rico processo são incomensuráveis, pois demonstram quanto o saber científico se enriquece e se alarga quando dialoga com o saber popular. Essas questões ficaram evidentes quando, por exemplo, as multiplicadoras perceberam que deviam se aproximar das mulheres com uma mensagem de vida e saúde. Ou seja, rapidamente compreenderam que o discurso focado no ‘perigo’ da doença, ao invés de atrair, geralmente afasta as pessoas do trabalho educativo, superando, assim, os tradicionais modelos educativos ‘bancários’, que têm se mostrado tão ineficazes. Nas palavras de Amada e Jeitosa: “Houve uma mudança essencial, que facilitará em 50% da abordagem, que é o fato de termos parado de falar de doença e de tabagismo e começar a falar de ‘Saúde da Mulher’”. (Amada) “Não chegar falando do cigarro, pra não gerar constrangimento”. (Jeitosa)

Considerações finais Como os resultados apresentados evidenciaram, as ações educativas dialógicas, baseadas em metodologias participativas e no reconhecimento e acolhimento das dimensões socioeconômicas, culturais e subjetivas que envolvem o cuidado em saúde, vêm mostrando-se mais eficazes, resolutivas e duradouras do que as tradicionais medidas ‘verticalizadas’, elaboradas com base apenas em saberes técnicos e racionais. Além disso, na perspectiva conceitual e metodológica proposta, o conhecimento que resulta do diálogo entre o saber técnico-profissional e o saber popular pode embasar a produção de materiais educativos relacionados às doenças crônicas que valorizam a participação dos usuários e o diálogo com os saberes das comunidades. Como mostrou a trajetória do feminismo, quando as mulheres se reúnem para refletir, debater e compartilhar suas experiências de vida, fortalecem sua capacidade de compreensão crítica sobre a sociedade em que vivem(os) – ainda perpassada por profundas desigualdades, sociais e de gênero –, o que impulsiona a busca individual e coletiva de estratégias de superação das iniquidades e injustiças que as mulheres ainda enfrentam no seu cotidiano. Assim, não dissociar a abordagem do tabagismo da compreensão dos contextos de vida das mulheres, especialmente as que vivem em situações de vulnerabilidade social e violência, está em acordo com os princípios do PAISM, que preconiza a integralidade na assistência à saúde das mulheres e o fortalecimento de sua autonomia na conquista de seus direitos de cidadania. Outra questão a se destacar foi o reconhecimento do trabalho das multiplicadoras pela comunidade, o que fortaleceu a autonomia/ cidadania dessas mulheres. “Nós somos pioneiras”, orgulhosamente afirmou Loira. Legitimadas na/pela comunidade, pelo importante trabalho educativo desenvolvido, não podem mais sair à rua sem serem procuradas para uma conversa, um pedido de ajuda ou o relato de uma vitória alcançada através de sua intervenção. Esta atuação, capilar e cotidiana, as diferencia dos profissionais de saúde que trabalham na cessação, que não têm a inserção e a convivência no dia a dia da população, o que lhes permite um alcance inestimável.

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BORGES, M.T.T.; BARBOSA, R.H.S.

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No plano individual e subjetivo, a vida das multiplicadoras mudou radicalmente. Algumas delas retomaram antigos planos e sonhos, como voltar a estudar. Com um elevado nível de motivação, aprenderam a refletir, a trabalhar em grupo, a teorizar com base em suas observações e raciocínio, a descobrir a própria criatividade, a se perceberem autônomas na busca de informações e nas ações empreendidas. Todas essas conquistas refletiram-se no fortalecimento de sua autoestima, o que trouxe substanciais mudanças, subjetivas e objetivas, como aponta a fala de Jeitosa: “A gente não tem que se diminuir porque não tem estudo. Eles (os moradores da comunidade) sabem de onde a gente veio e o grau de estudo que a gente tem. Não tem que se sentir envergonhada”. Essa percepção confirma quanto o saber popular, quando reconhecido e valorizado pela própria população, pode representar uma importante contribuição para as estratégias de promoção da saúde. No plano comunitário, os inúmeros convites que passaram a receber de diversos profissionais de saúde e educação, além do explícito reconhecimento da comunidade, evidenciam quanto a pedagogia conscientizadora e dialógica possibilita a realização de um trabalho educativo transformador, confirmando a importância de se considerarem as dimensões culturais e subjetivas na promoção da saúde. Como colocado por Loira, “Eu não tinha noção... eu não tinha noção do que a gente poderia proporcionar pra humanidade... muita coisa... pra grandes (adultos) e pequenos (crianças)!”

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito, desde sua elaboração até a revisão do texto. Referências BARBOSA, R.; BORGES, M. Tabagismo feminino em um enfoque de gênero: construindo um modelo de intervenção para a abordagem do tabagismo em espaço populares. 2009-2011. (Pesquisa-ação). Rio de Janeiro: Instituto de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2009-2011. BORGES, M.T.T. Tabagismo em mulheres: as marcas de gênero no fumar feminino. 2007. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2007. BORGES, M.T.T.; BARBOSA, R.H.S. As marcas de gênero no fumar feminino: uma aproximação sociológica do tabagismo em mulheres. Cienc. Saude Colet., v.14, n.4, p.1129-39, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1413-81232009000400019&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 26 jun. 2012. BORGES, M.T.T.; SIMÕES-BARBOSA, R.H. Cigarro “companheiro”: o tabagismo feminino em uma abordagem crítica de gênero. Cad. Saude Publica, v.24, n.12, p.2834-42, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-311X2008001200012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 26 jun. 2013. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: tabagismo 2008. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/população/ trabalhoerendimento/pnad2008/suplementos/tabagismo/pnad_tabagismo.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2011.

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BORGES, M.T.T.; BARBOSA, R.H.S. Convergencia de género y educación popular por medio de una investigación-acción para el abordaje del tabaquismo femenino en contextos de vulnerabilidad social. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.601-14, jul./set. 2013. Este artículo presenta los resultados de una investigación-acción (IA) sobre el tabaquismo femenino en espacios populares. La propuesta se originó del diálogo entre los campos conceptuales y metodológicos provenientes del feminismo y de la educación popular y su objetivo fue comprender las cuestiones subjetivas y objetivas del universo femenino relacionadas con el acto de fumar, tanto en el ámbito familiar como en el social y comunitario. La IA capacitó a seis mujeres de una comunidad popular de Río de Janeiro, Brasil, ex tabaquistas, para que desarrollaran un proceso educativo que incluyó a mujeres, hombres y niños de una forma dialogada y participativa. Los resultados revelan cómo se construye, a través de la praxis educativa dialógica, un conocimiento compartido sobre la salud, resultante de una integración del conocimiento académico y del saber popular, confirmando el potencial de esta propuesta para combatir el tabaquismo femenino en los contextos populares.

Palabras clave: Hábito de fumar. Identidade de énero. Educación popular. Investigación-acción.

Recebido em 31/10/12. Aprovado em 17/06/13.

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artigos

Contribuições das plantas medicinais para o cuidado e a promoção da saúde na atenção primária Gisele Damian Antonio1 Charles Dalcanale Tesser2 Rodrigo Otávio Moretti-Pires3

ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O. Contributions of medicinal plants to care and health promotion in primary healthcare. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.615-33, jul./set. 2013. Phytotherapy programs and actions within Brazilian primary healthcare were analyzed from the literature. This metastudy included six databases, from 1988 to 2012. Twenty-four published papers were registered. Phytotherapy has been introduced for a variety of reasons: to increase the therapeutic resources, retrieve popular knowledge, preserve biodiversity and promote environmental and popular education, agroecology and social development. There is an ambivalence that on the one hand reinforces self-care, educational activities and intersectoral and community participation, thus constituting a form of care and health promotion; and on the other hand restricts the process to incorporation of compounded or manufactured herbal medicines to pharmacies within primary care services, for strictly professional use. A broad view of phytotherapy that incorporates these two approaches from the perspective of ecology of healthcare knowledge and practices is emphasized.

Keywords: Primary healthcare. Medicinal plants. Phytotherapy.

Analisaram-se programas e ações de fitoterapia na atenção primária à saúde brasileira (APS) a partir da literatura. O metaestudo incluiu seis bases de dados, de 1988 a 2012, sendo registradas 24 publicações. A inserção da fitoterapia acontece a partir de motivações diversas: aumentar os recursos terapêuticos, resgatar saberes populares, preservar a biodiversidade, educação ambiental e popular, agroecologia e desenvolvimento social. Há uma ambivalência que ora pende para o reforço da autoatenção, as ações educativas, intersetoriais e a participação comunitária, constituindo-se em forma de cuidado e promoção da saúde; ora restringe o processo à incorporação de fitoterápicos manipulados ou industrializados à farmácia dos serviços de APS, para uso estritamente profissional. Ressalta-se uma visão ampliada da fitoterapia que incorpore esses dois enfoques, numa perspectiva de uma ecologia de saberes e práticas em saúde.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Plantas medicinais. Fitoterapia.

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1 Doutoranda, Departamento de Saúde Pública, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900. Bolsista Capes (2009-2011). giseledamianantonio@ gmail.com 2 Departamento de Saúde Pública, Programa de Pós-Graduação de Saúde Coletiva, UFSC. Bolsa de produtividade do CNPq. 3 Departamento de Saúde Pública, Programa de Pós-graduação de Saúde Coletiva, UFSC.

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CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS PARA O CUIDADO ...

Introdução As plantas medicinais sempre tiveram grande importância na cultura, na medicina e na alimentação das sociedades no mundo. As populações, por meio de seus curadores e do uso autônomo, acumularam experiências e vasto conhecimento a seu respeito. Todavia, as realizações científicas das últimas décadas e sua ampla socialização incentivaram a monocultura do saber científico nas práticas profissionais de saúde, que descredibilizam, em grande medida, outros saberes e práticas circulantes nas sociedades (Santos, 2007). Quanto à fitoterapia, esses saberes foram considerados apenas como fonte empírica para expansão das verdades e tecnologias científicas, atrelada ao desenvolvimento industrial e à necessidade de mercado para busca de novas patentes (Barreiro, Bolzani, 2009). A cientificidade do cuidado à saúde torna a sociedade cada vez mais dependente de práticas profissionalizadas, dificultando a permeabilidade e a escuta dos profissionais de saúde aos saberes locais na Atenção Primária à Saúde (APS) (Tesser, Barros, 2008). No Brasil, a fitoterapia aparece na APS em cerca de trezentas e cinquenta localidades (Brasil, 2012). Uma parte delas foi estudada (Santos et al., 2011), mas não se dispõe de revisões sobre o tema que sistematizem as experiências registradas. Este artigo propõe analisar a inserção de ações/programas de fitoterapia nos serviços de APS brasileira abordados na literatura científica entre 1988-2012, bem como investigar suas motivações e enfoques, na perspectiva a seguir sintetizada.

Contextualização conceitual e terminológica Há uma heterogeneidade de saberes e práticas relacionados a plantas medicinais circulantes nas sociedades e, assim, em alguma medida, na APS brasileira. É de interesse para a pesquisa um mapeamento dessa diversidade de saberes e práticas, devido ao uso generalizado da expressão Medicinas Alternativas e Complementares (MAC)4 e/ou Medicina Tradicional (MT) na literatura (OMS, 2011). Tal nomenclatura reúne, num único conjunto, tudo o que não é a biomedicina, contribuindo pouco para a compreensão dos diferentes contextos e formas de cuidado envolvendo plantas medicinais, com seus saberes associados. Numa abordagem antropológica, Kleinman (1980) propôs três grandes setores (ou sistemas) de cuidado: profissional, popular e familiar, baseado nas relações sociais entre os curadores e “recebedores” do cuidado. O primeiro setor inclui os curadores profissionalizados em determinada sociedade. Nessa lógica, as MAC profissionalizadas são agrupadas com a biomedicina, apesar das significativas diferenças entre elas. O segundo inclui os curadores populares de vários tipos; e o terceiro refere-se ao cuidado familiar e suas redes de apoio, geralmente solidário e não envolvendo remuneração. Cada setor possui características próprias (em que são utilizadas noções, saberes e práticas diferentes em relação à saúde e à doença), mas são inter-relacionados... Laplantine e Rabeyron (1989), Metcalf, Berger e Negri (2004) e Menéndez (2009) discutem a heterogeneidade das formas de cuidado, das MAC e seus saberes, diferenciando-as da biomedicina e do cuidado familiar e aproximando-as das práticas populares, assim como das MT. Considerando essas diferenças internas ao universo das MAC/MT, deve ser mencionada, ainda, a categoria “racionalidades médicas”, proposta por Madel Luz (Luz, Barros, 2012). Tal categoria questiona a superioridade do saber científico e de seu suposto monopólio sobre a veracidade no cuidado à saúde em relação a outros sistemas médicos complexos. As plantas 616

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Ver: <http:// nccam.nih.gov/health/ whatiscam>.

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ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O.

5 Espécie vegetal in natura (planta fresca) ou seca (droga vegetal utilizada com propósito terapêutico).

6 Medicamento obtido exclusivamente de planta medicinal na íntegra, usado com o propósito de um tratamento médico.

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artigos

medicinais podem ser utilizadas de distintas formas conforme diferentes racionalidades médicas, quando estas estão envolvidas. Neste estudo, construiu-se uma setorização das práticas de cuidado específico para a fitoterapia. Seguiu-se a adaptação realizada por Metcalf et al. (2004) da abordagem de Kleinman (1980), mas se considerou, também, Menéndez (2009) e Luz e Barros (2012), respeitando as significativas diferenças de saberes e contexto social de uso das plantas medicinais, incluindo racionalidades médicas possivelmente envolvidas. Assim, diferenciaram-se as formas de uso das plantas medicinais em: familiar, popular, tradicional, científica e de outras racionalidades médicas. A fitoterapia familiar, que muitas vezes não conta com registro escrito da sua prática, refere-se às práticas autônomas e informais da fitoterapia (remédios caseiros), que se inserem na rede de apoio social do usuário. Diferente da familiar, a fitoterapia popular é a praticada por especialistas populares não profissionalizados. Segundo Menéndez (2009), estas práticas são originárias de diferentes curadores (parteiras, benzedeiras, raizeiros), com teorias, aspectos culturais, sociais e visão de mundo convergente ou divergente entre si. Seus saberes e práticas baseiam-se em uma abordagem holística, herdada de familiares, “dom” ou aprendizado com outro curador. Estes especialistas estabelecem um forte vínculo com o usuário devido ao conhecimento da comunidade e/ou por falta de acesso ao cuidado biomédico. A fitoterapia tradicional ocorre quando o uso de plantas é enraizado na cultura de uma população com identidade e longa tradição próprias, diferente da racionalidade biomédica, caracterizando o que a OMS (2011) designa por MT. Por exemplo, a medicina indígena brasileira não é considerada uma racionalidade médica (talvez devido à ausência de estudos com esse enfoque), mas faz parte de um conjunto de saberes e práticas da MT brasileira que difere, em geral, das práticas familiares e populares (com exceção de contextos específicos como, talvez, certas populações ribeirinhas amazônicas). A fitoterapia científica refere-se ao uso das plantas medicinais5 baseado em evidências científicas, apoiado na racionalidade biomédica, circunscrita por diferentes disciplinas, que abrangem desde a identificação botânica até a produção do medicamento fitoterápico6 (Fernandes, 2004). O uso de plantas pode ainda ser orientado por outra racionalidade médica (chinesa, ayurvédica, por exemplo), o que, aqui no Brasil, não pode ser considerado tradicional, nem popular, nem familiar, sendo geralmente heterônomo. A diferenciação descrita aqui discorda, em parte, da recente classificação proposta pelo Ministério da Saúde brasileiro para as diferentes “fitoterapias” na APS, que a distingue em apenas três vertentes: popular, tradicional e científica ocidental. A primeira vertente refere-se ao uso doméstico e de curadores populares das plantas medicinais; a segunda inclui os saberes tradicionais ou diferentes racionalidades médicas; e a terceira refere-se às evidências científicas de plantas medicinais (Brasil, 2012). Para sintetizar a abordagem aqui proposta, o uso de plantas medicinais no Brasil pode ser autônomo (familiar, podendo ou não ser tradicional) ou heterônomo. Neste último caso, pode ser popular, tradicional, científico ou afiliado a outra racionalidade médica. A fitoterapia, ainda, pode ser vista como um recurso terapêutico (produto) e/ou prática de saúde (ação) vinculada à cultura ou ao saber do usuário e sua família, ou do cuidador que orienta ou prescreve (terapeuta popular, tradicional, da biomedicina ou de outra racionalidade). Por outro lado, existe ainda forte “estado de opinião”, tanto no senso comum como no senso douto, associando o uso familiar, popular e tradicional de plantas medicinais à pobreza e ou falta de desenvolvimento. Para Santos (2000), o que subjaz a esse pensamento é a crença de que há apenas uma forma de 617


CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS PARA O CUIDADO ...

desenvolvimento, atrelado às instituições centrais na modernidade: o estado territorial, o direito estatal territorial e a ciência moderna. O sucesso dessa ideia de desenvolvimento se deve ao fato de que essas formas de poder, de direito e de conhecimento sobrepujaram, com algum êxito, outras formas estabelecidas nos chamados “espaços estruturais” da sociedade moderna: o espaço doméstico, da produção, do mercado, da comunidade, da cidadania e o espaço mundial. Ainda segundo Santos (2007), a sociedade contemporânea se assenta em dois pilares: o da regulação e o da emancipação. O primeiro constitui-se em obrigações envolvendo o Estado, o mercado e a comunidade. A obrigação política do Estado é vertical e se dá entre cidadãos e o Estado. A regulação do mercado é individualista e antagônica entre concorrentes. No princípio da comunidade, essa relação é horizontal, solidária e se processa entre membros da comunidade. O pilar da emancipação é formado pela racionalidade cognitiva e instrumental da ciência, pela estético-expressiva das artes e literatura, e pela moral. Todavia, a ciência e o direito, categorias emancipatórias no início da modernidade, tornaram-se, no seu transcorrer, categorias regulatórias hegemônicas a serviço das forças do mercado e das grandes corporações. A estratégia contra-hegemônica proposta por Boaventura Santos, da qual este estudo se aproxima, envolve a reconstrução do polo da emancipação na contemporaneidade. O espaço da comunidade seria um espaço social fértil para essa reconstrução, que tem sido pouco elaborado pela modernidade e pela ciência (Freitas, Porto, 2011). Nesse sentido, desviando-se do ideário moderno cientificista, este estudo compartilha da perspectiva de que não há somente um único saber válido para o cuidado à saúde e o uso de plantas medicinais e fitoterápicos, especialmente no ambiente da APS. Isso significa considerar a APS como um ambiente favorável ao diálogo respeitoso e mutuamente enriquecedor entre saberes, técnicas, tradições e racionalidades diversas em saúde (leigas e especializadas). Contudo, as forças políticas hegemônicas, a regulação do mercado e as informações de massa, de certa forma, manipulam profissionais e cidadãos, criando falsas necessidades (Marcuse, 1964), fazendo os medicamentos fitoterápicos parecerem o único meio seguro, eficaz e racional de consumo e cuidado com plantas medicinais, o que deságua em restringir a fitoterapia à prescrição profissional na APS. Este pensamento unidirecional cultiva ideias, anseios e objetivos que reduzem o universo de ações de fitoterapia ao campo científico, reforçando uma monocultura biomédica médico-centrada. Neste sentido, quanto mais racional, cientificista, técnica e rígida for a gestão dos serviços e a formação dos profissionais de saúde, tanto mais inimagináveis se tornam ações e meios de se inserir a fitoterapia na APS para além do conhecimento técnico-científico. Diversamente, a inserção da fitoterapia na APS poderia contribuir para a “ecologia de saberes” na APS. Segundo Santos e Meneses (2010), a ecologia de saberes não propõe excluir ou diminuir a credibilidade do saber técnico-científico, mas não o considera como única verdade (monocultura). O saber técnico-científico deve ser entendido como parte de uma ecologia mais ampla de saberes e que possibilita um diálogo qualificado. Isso não significa que tudo vale do mesmo modo, mas que o saber técnico-científico não é o único, pois há outros saberes circulantes na sociedade que podem e devem ser valorizados quanto ao uso de plantas medicinais, particularmente na APS.

Métodos Realizou-se uma revisão de literatura reconhecida como metaestudo (Partenson, 2001), tendo a busca sido direcionada pela pergunta: “Quais ações/programas de fitoterapia na APS foram descritos na literatura no período 1988-2012”? A busca deu-se nas bases de dados: Scielo, Lilacs, PubMED, Scopus, Web of Science e Portal de Teses Capes, no período entre 01/01/1988 a 18/08/2012, utilizando-se Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e palavras-chave. A Figura 1 apresenta a estratégia de busca e uma síntese do processo de obtenção dos artigos selecionados para o metaestudo, mapeando e justificando as exclusões.

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artigos

ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O.

Pesquisas qualitativas sobre ações/programas de fitoterapia na APS brasileira, publicadas entre 1988-2012, selecionadas por descritores e/ou palavras-chave (jul/2011) N = 511 Estratégia de busca: “Plants Medicinal” AND “Primary Health Care”; “Plant Preparations” AND “Primary Health Care”; “Phytotherapy” AND “Primary Health Care”; “Phytotherapeutic Drugs” AND “Primary Health Care”; “Plants Medicinal” AND “Family Health”; “Phytotherapy” AND “Family Health”; “Plant Preparations” AND “Family Health”; “Complementary Therapies” AND “Phytotherapy” AND “Primary Health Care”; “Complementary Therapies” AND “Phytotherapy” AND “Family Health”; “Plants Medicinal” AND “Single Health System”: “Phytotherapy” AND “Single Health System” Scielo n=17

Lilacs n=33

PubMED n=186

Web of Science n=2

T

Estudos excluídos n=118

Scopus n=68

Estudos excluídos após a análise dos títulos n=213

T

Razões . Reunião das seis bases e exclusão de duplicidade

T

Estudos levantados para análise dos títulos n=393

T

Estudos levantados para análise dos resumos n=180

T

T

Estudos levantados para análise completa do texto n=66

T

Nova busca (agosto 2012) n=2

T

Estudos excluídos após a análise do resumo n=114 Razões . Revisão sistemática (n=1), Análises de políticas públicas (n=6), Estudos sobre outras práticas integrativas e complementares que não abordavam a fitoterapia como recurso terapêutico (n=31), Estudo etnobotânico sem menção de serviços de APS (n=76)

Banco de dados da Capes n=205

Razões . Não relatam sobre fitoterapia (n=48), estudos agronômicos (n=7), farmacológicos (n=79), fitoquímicos (n=15), toxicológicos (n=10), clínicos (n=2) sobre espécies vegetais, estudos farmacoepidemiológicos que não relatavam sobre programas/ações de fitoterapia na APS (n=5), análise de política pública (n=6), análise de publicidade (n=2), estudos sobre fitoterapia no âmbito dos serviços fora do Brasil (n=7), estudos etnobotânicos fora do Brasil (n=32).

Estudos excluídos após a análise completa do artigo e tese n=44 Razões . Representação/aceitação do uso de plantas medicinais que não descreveu ações/programas na AOPS (n=22), estudos etnobotânicos realizados em comunidades assistidas por UBS mas que não relatavam sobre ações/programas (n=15), publicações sem desenho metodológico definido (n=7)

T

Estudos incluídos no metaestudo n=24

Figura 1. Síntese do processo de obtenção dos artigos selecionados para o metaestudo

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.46, p.615-33, jul./set. 2013

619


CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS PARA O CUIDADO ...

Foram identificados 511 trabalhos, porém, após a leitura dos títulos, resumos e textos completos, foram selecionadas 24 publicações de acordo com os critérios de inclusão (pesquisas qualitativas sobre ações/programas de fitoterapia nos serviços de APS, publicadas entre 1988-2012) e de exclusão, tais como: editoriais, matérias jornalísticas, protocolos clínicos, resenhas, comentários, revisão, manuais, pesquisas agronômicas, etnobotânicas, fitoquímicas, farmacológicas, toxicológicas, estudos fora do Brasil, pesquisas de percepção, aceitação e/ou representação social que não se referem a uma ação ou programa específico. Os artigos selecionados foram analisados a partir dos pressupostos teóricos (metateoria), abordagem metodológica (metamétodo) e resultados dos estudos (meta-análise dos dados). Por intermédio dessas sínteses parciais, foi elaborada uma síntese final, adiante apresentada (Castellanos et al., 2011; Spadacio et al., 2010).

Resultados Verificou-se uma concentração das publicações entre 2004 a 2008 publicadas em periódicos na área de Saúde Coletiva e Farmácia, com participação de pesquisadores de diferentes áreas (Quadro 1). Este fato pode estar relacionado ao estímulo institucional concretizado pela edição da PNPIC e da PNPMF em 2006.

Quadro 1. Caracterização dos artigos analisados, segundo ano de publicação, revista, tipo de publicação, local da realização, formação do primeiro autor (SC)

620

1º autor

Ano

Revista/Instituição

Formação do primeiro autor

Local das ações/ programas

Araújo

2000

Interface (Botucatu)

Antropóloga

Londrina/PR

Negreiro

2002

Universidade Federal Ceará

Enfermeira

Pereiro/CE

Ogava

2003

Rev. Bras. Farmacogn.

Farmacêutica

Maringá/PR

Teixeira

2003

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Farmacêutico

Juiz de Fora/MG

Graça

2004

Saúde debate

Médica

Curitiba/PR

Reis

2004

Saúde Debate

Médica

Rio de Janeiro/RJ

Moretti-Pires 2004

Saúde Debate

Enfermeira

Ribeirão Preto/SP

Sacramento

2004

Saúde Debate

Médica homeopata

Vitória/ES

Carneiro

2004

Saúde Debate

Farmacêutica

Itapipoca/CE

Michiles

2004

Rev. Bras. Farmacogn.

Farmacêutica-sanitarista

Rio de Janeiro/RJ

Damas

2005

Universidade Federal de Santa Catarina

Médico

Florianópolis/SC

Leite

2005

Saúde Debate

Farmacêutica

Itajaí/SC

Cavalazzi

2006

Universidade Federal de Santa Catarina

Médica

Florianópolis/SC

Diniz

2006

Saúde Debate

Médico de família

Londrina/PR

Silva

2006

Rev. Bras. de Farmacogn.

Farmacêutica

Maracanaú/CE

Matos

2006

Rev. Ciências Agroveterinárias

Farmacêutico

Fortaleza/CE

Guimarães

2006

Saúde Debate

Farmacêutica homeopata

Betim/MG

Oliveira

2006

Rev. Bras. Plantas Med.

Secretária Municipal

São Paulo/SP

Brasil

2008a

Rev. Bras. Saúde da Família

-

Campinas/SP

Brasil

2008b

Rev. Bras. Saúde da Família

-

Amapá/AP

Brasil

2008c

Rev. Bras. Saúde da Família

-

Quatro Varas/CE

Guizardi

2008

Interface (Botucatu)

Psicóloga

Vila Velha/ES

Nagai

2011

Ciência Saúde Coletiva

Enfermeira

Campinas/SP

Santos

2012

Universidade Federal de Santa Catarina

Farmacêutica

Florianópolis/SC

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v.17, n.46, p.615-33, jul./set. 2013

Total estudos por ano 2 2

6

2

6

4

1 1


ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O.

artigos

É interessante o fato de que, no país com a maior biodiversidade do mundo, com extensão continental e grande riqueza cultural e de saberes sobre plantas medicinais, oriunda das suas três matrizes étnicas (indígena, africana e europeia, conforme Ribeiro, 1995), a fitoterapia na APS disponha de apenas 24 experiências analisadas e disponíveis na literatura científica. Algumas hipóteses gerais podem ser levantadas a respeito. Deve haver sub-registro e/ou pouco interesse acadêmico sobre o tema em relação à quantidade e diversidade maior de experiências com fitoterapia na APS no país. Também há pouco ou nenhum apoio governamental e das instituições de fomento para o tema, o que deve ser lamentado frente ao grande potencial de uso, de produção de conhecimento e de tecnologia desperdiçados (Viegas Júnior, Bolzani, Barreiro, 2006; Santos, 2000). O tema das plantas medicinais é persistentemente subvalorizado no Brasil, pois há predomínio de uma visão centrada na quimioterapia (princípios ativos únicos), o que faz o uso das plantas medicinais parecer um resquício de tempos subdesenvolvidos e, portanto, pouco aberto a modos mais complexos de entendimento da ação das plantas sobre o ser humano. Mesmo buscando o isolamento de princípios ativos, que é melhor dirigido pelos usos tradicionais das plantas, esse pioneirismo potencial do país é evidente (Barreiro, Bolzani, 2009; Veiga, Mello, 2008; Villas Boas, Gadelha, 2007). Também deve estar envolvida, nessa escassez de estudos, a ausência de integração de áreas de conhecimentos (química, bioquímica, farmacologia, botânica, tecnologia farmacêutica etc.) necessários para se obter um resultado efetivo na pesquisa e desenvolvimento de novos fitoterápicos (Villas Boas, Gadelha, 2007).

Metateoria Foram identificados dois eixos centrais de motivações e objetivos que impulsionaram diferentes práticas com fitoterapia. O primeiro (coluna da esquerda do Quadro 2) inclui programas com perspectiva educacional, social e ambiental; o segundo (coluna da direita do Quadro 2), programas com ênfase em saberes e práticas científicas. Os principais referenciais teóricos dos programas estudados seguiram a proposta de Farmácia-Viva de Fortaleza/CE, idealizada por Francisco José de Abreu Matos e norteada pela etnofarmacologia e farmacognosia (Matos, 2006), bem como o Projeto Vida Verde de Curitiba/PR (Graça, 2004), baseado na educação ambiental.

Metamétodo A abordagem metodológica utilizada pelas pesquisas é variada. Dos estudos analisados no Quadro 3, destacaram-se os relatos de experiências e os estudos de casos. O estudo de Santos (2012) utilizou o método da pesquisa-ação. Para Santos (2005), a pesquisa-ação consiste na definição, execução e participação de projetos de pesquisa, envolvendo as comunidades e organizações sociais, ligados a um problema, cuja solução pode ser benefício dos resultados da pesquisa. Os interesses sociais são articulados com os científicos e a produção do conhecimento ocorre estreitamente ligada à satisfação de necessidades dos grupos sociais que não têm poder para pôr o conhecimento técnico e especializado a seu serviço pela via mercantil. Poucos estudos declararam a técnica de análise de dados utilizados. Dentre as exceções, mencionou-se a análise de conteúdo (Matos, 2008; Cavalazzi, 2006; Silva, 2006; Damas, 2005; Leite, Schor, 2005). Dentre os estudos que adotaram a análise de conteúdo, destacou-se a influência da representação social, da etnografia, dos estudos de utilização de medicamento e do estudo de caso (Quadro 3).

Meta-análise As práticas de fitoterapia na APS giraram em torno de quatro focos. O primeiro refere-se a aspectos estruturais e políticos da organização das formas de trabalho com a fitoterapia - o segundo trata das plantas medicinais e seus derivados - o terceiro inclui as ações educativas - e o quarto, as ações intersetorais e a participação comunitária. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS PARA O CUIDADO ...

Quadro 2. Objetivos e motivações para implantação de ações/programas de fitoterapia na APS brasileira Síntese esquematizada de motivações, objetivos e práticas das ações/programas de plantas medicinais na APS analisados Ações/programas com diversidade de saberes e práticas, mais voltados a atividades para a comunidade, com perspectiva educacional, social e ecológica (ambiental) Motivações

Objetivos

Identificação botânica

Orientar o uso de plantas aos profissionais e usuários

Desmedicamentalização

Reduzir uso desnecessário de psicotrópicos

Hortas caseiras para prevenir terrenos baldios

Prevenir animais peçonhentos e mosquitos

Solidariedade e qualidade de vida

Promover diálogo entre diferentes saberes e solidariedade

Vínculo, humanização

Estimular troca de experiências, vínculo da equipe de saúde com comunidade

Educação ambiental

Estimular a educação ambiental

Agricultura familiar

Incentivar agricultura familiar como forma de melhorar a qualidade de vida

Interculturalidade

Preservar a diversidade cultural brasileira

Ações/programas com ênfase na prescrição profissional de medicamentos fitoterápicos e plantas medicinais cientificamente padronizadas Motivações

Diversificar opções terapêuticas

Objetivos Dispensar medicamentos fitoterápicos manipulados e industrializados

Políticas públicas

Estabelecer políticas públicas na área de preservação, pesquisa e utilização de plantas medicinais

Educação em saúde cientificista

Orientar o uso “correto” das plantas

Redução de custos

Ofertar à população uma alternativa medicamentosa segura, eficaz e barata

Ações e Práticas na APS Reuniões com a comunidade, horto florestal para preservação de espécies em extinção, hortas (escolas, creches, unidades de saúde, entidades comunitárias em conjunto a ESF, caseira, em terrenos baldios), laboratório de manipulação de fórmulas populares, agricultura familiar, viveiro, adubo orgânico de reciclagem de lixo, orientações aos usuários e estímulo ao uso autônomo

Farmácia de manipulação, palestras educativas, informativos, cartilhas para visitas domiciliares, banco de dados computadorizado, serviço de troca de informações com outros grupos que exerçam atividades afins, curso de noções de fitoterapia, hortos didáticos (identificação botânica para isolamento de compostos)

Gestão municipal, saber técnico-científico e trabalho na APS Os aspectos estruturais da gestão dos serviços de saúde e o predomínio do saber biomédico orientam, muitas vezes, a forma de organizar o trabalho com plantas medicinas e fitoterápicos na APS (Alvim, Cabral, 2001). Pode-se compreender essa situação considerando que esta associação gera uma hegemonia no campo institucional (Brasil, 2008c). Se tal hegemonia é forte, tende a direcionar o processo para a inserção da fitoterapia científica, médico-centrada (esquematizado no quadro da direita na Figura 2). Neste caso, a fitoterapia reduz-se a mais um tipo de medicamento. A expansão da fitoterapia científica pode ser vista aqui como o avanço da indústria farmacêutica para áreas pouco exploradas, por meio da expansão do domínio do saber científico de caráter regulatório atrelado a interesses comerciais. As fitoterapias familiar, popular e tradicional servem, nessa perspectiva, 622

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ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O.

1o autor

Ano

Ação/programa

Método

Técnica de coleta

Araújo

2000

Londrina/PR

Estudo etnográfico

Entrevista, OP

Negreiro

2002

Pereiro/CE

EUM

Questionário

Ogava

2003

Maringá/PR

Relato de experiência

NI

Teixeira

2003

Juiz de Fora/MG

Estudo de caso

Entrevista

Graça

2004

Curitiba/PR

Relato de experiência

NI

Reis

2004

Rio de Janeiro/RJ

Relato de experiência

NI

Moretti-Pires

2004

Ribeirão Preto/SP

Relato de experiência

NI

Sacramento

2004

Vitória/ES

Relato de experiência

NI

Carneiro

2004

Itapipoca/CE

Relato de experiência

NI

Michiles

2004

Rio de Janeiro/RJ

Relato de experiência

NI

Damas

2005

Florianópolis/SC

Estudo transversal

Entrevista

Leite

2005

Itajaí/SC

Estudo de caso

Entrevista, OP

Cavalazzi

2006

Florianópolis/SC

Pesquisa qualitativa observacional

Entrevista

Diniz

2006

Londrina/PR

Relato de experiência

NI

Silva

2006

Maracanaú/CE

EUM

Entrevista

Matos

2006

Fortaleza/CE

Relato de experiência

NI

Guimarães

2006

Betim/MG

Relato de experiência

NI

Oliveira

2006

São Paulo/SP

Pesquisa documental

Entrevistas

Brasil

2008a

Campinas/SP

Relato de experiência

NI

Brasil

2008b

Amapá/AP

Relato de experiência

NI

Brasil

2008c

Quatro Varas/CE

Relato de experiência

NI

Guizardi

2008

Vila Velha/ES

Estudo de caso

Entrevista e questionário

Nagai

2011

Campinas/SP

Representação social

Entrevista

Santos

2012

Florianópolis/SC

Pesquisa-ação

Seminário

artigos

Quadro 3. Caracterização da abordagem metodológica dos artigos revisados

NI = Não identificado; OP = Observação Participante; EUM = Estudo de utilização de medicamento

apenas como indícios para a fitoterapia científica. Mas a situação não se restringe ao lado direito da figura 2. Há, também, espaços institucionais e sociais favoráveis à interação entre saberes e práticas locais com o saber técnico-científico (quadro à esquerda da Figura 2). Verificaram-se, na literatura analisada, diferentes formas de trabalho com plantas medicinais no âmbito dos serviços de APS, que podem ser mais ou menos complementares entre si: 1) Farmácia-viva: atividades sistematizadas que realizam cultivo, coleta, processamento, armazenamento, manipulação e dispensação de plantas medicinais e fitoterápicos manipulados; 2) Farmácia de manipulação de fitoterápicos: área de manipulação dos derivados de matéria-prima vegetal processados conforme legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); 3) Dispensação de planta seca (droga vegetal): refere-se às atividades relacionadas à secagem e dispensação de planta seca em forma de chás industrializados; 4) Dispensação de medicamentos fitoterápicos: o elenco de fitoterápicos faz parte do componente básico da Assistência Farmacêutica da Relação Nacional de Medicamentos; 5) Hortos didáticos: áreas destinadas ao cultivo de plantas in natura, identificação botânica, preservação de espécies em extinção e estudos, ensino sobre plantas; 6) Hortas comunitárias: áreas destinadas ao cultivo orgânico, secagem artesanal, troca ou doação de mudas de espécies vegetais, em grande maioria, sem identificação botânica, mas com base na cultura popular e tradicional; 7) Oficinas de remédios caseiros: áreas e ações destinadas a preparo e distribuição de fórmulas tradicionais fitoterápicas e mudas de plantas por instituições não governamentais (por exemplo, pastoral da saúde); COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTAS MEDICINAIS PARA O CUIDADO ...

8) Grupos de estudo e/ou rodas de conversas sobre plantas medicinais: espaço coletivo, sistematizado e organizado, de interação de saberes, com finalidade educativa para discutir e orientar o uso de plantas medicinais, voltado aos profissionais e à comunidade.

T

Programas/ ações fitoterapia na APS

T

T

Ações educacionais (Educação permanente, Educação popular, Educação ambiental) T

Ações interdisciplinares (reunião de equipe, discussão de casos, projetos terapêuticos, educacionais, educação permanente, interconsulta etc)

T

T

Prescrição e orientação terapêutica, democratização de informação científica e apoio ao uso autônomo

T

Participação comunitária (hortas comunitárias, agricultura familiar urbana e rural, trabalhos com ONGs, instituições sociais)

Farmácia de manipulação de fitoterápicos

T

T

Hipervalorização do saber científico T

Hortos didáticos para preservação de espécies, produção de mudas

Espaços coletivos (valorização do saber popular e tradicional)

Ações terapêuticas e de prescrição baseada em evidências

T

T

T

Farmacopeia (controle de qualidade)

T

Ações intersetoriais (Parcerias com agricultura, assistência social, educação)

Poder administrativo, político, técnico e ideológico

T

Gestão Municipal

T

T

Medicamento fitoterápico industrializado

Hortos didáticos (identificação botânica, estudos farmacológicos e toxicológicos

T

Interação dialogal de saberes e práticas populares e tradicionais com os serviços de APS

Relação Nacional de plantas medicinais de interesse ao SUS

T

Cuidado médico-centrado (monocultura do saber científico)

ECOLOGIA DE SABERES Escuta qualificada, respeito a saberes emergentes, solidariedade, promoção de saúde, sustentabilidade, desenvolvimento local e social, emancipação

Figura 2. Enfoques, características e práticas dos programas e ações de fitoterapia e plantas medicinais na APS brasileira.

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ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O.

artigos

As formas de trabalho 1,2, 3 e 4 acontecem sob supervisão do farmacêutico e possuem legislação específica (Quadro 4). As atividades 1, 5 e 6 podem contar com o apoio técnico de um agrônomo, técnico agrícola e/ou botânico (Brasil, 2012). As atividades 7 e 8 representam iniciativas familiares, populares e tradicionais, baseadas nos seus próprios conhecimentos, que ocorrem com ou sem participação de profissionais de saúde. Tais possibilidades abrem espaço para diversas formas de trabalho que incluem e vão além do uso terapêutico da fitoterapia como remédio prescrito, mas todas elas precisam, de algum modo, administrar, ao menos no ambiente dos serviços públicos de saúde, a questão da segurança, da eficácia e da qualidade.

A planta medicinal e seus derivados

7 Educação Permanente em Saúde (EPS) é tomada com o significado de qualificação do pessoal da saúde estruturado a partir da problematização do seu processo de trabalho e das demandas do mesmo, com objetivo de transformação das práticas e da própria organização do trabalho, tomando como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde (Ceccim, Feuerwerker, 2004).

A Educação Continuada (EC) refere-se às ações educativas pontuais, com enfoque na transmissão de conhecimento técnico-científico de acordo com a necessidades individuais de cada categoria profissional, com ênfase em cursos e treinamentos (Peduzzi et al., 2009). 8

A PNPMF foi elaborada buscando contemplar a diversidade biológica brasileira, aliada ao compromisso de seguir ou propor legislações específicas para o setor, visando a oferta de serviços com segurança, eficácia e qualidade, com o objetivo de garantir, à população brasileira, o acesso seguro, na perspectiva da integralidade da atenção à saúde, considerando o conhecimento tradicional sobre fitoterapia (Brasil, 2006a,b). Contudo, o excesso de exigências científicas para garantir a qualidade, eficácia e segurança de fitoterápicos presentes nas legislações vigentes no Brasil, conforme ilustra o Quadro 4, vem dificultando a inclusão das plantas medicinais na APS, pois não existem grandes centros de distribuição no país que cumprem todos os critérios exigidos para o fornecimento de matéria-prima vegetal aos municípios: laudo de instituto agronômico, ausência de resíduos tóxicos, identificação botânica da planta, alvará de funcionamento da vigilância sanitária do local onde foi cultivada. Todas essas exigências fazem com que poucos produtores orgânicos e/ou agricultores locais consigam participar dos processos licitatórios (Silva et al., 2006). Além disso, pode-se citar a falta de experiência dos profissionais para compra de mudas e sementes e cultivo das espécies vegetais, o que acaba prejudicando o acesso às plantas medicinais nos serviços de APS (Sacramento, 2004). Outro ponto é a dificuldade na padronização das Relações Municipais de Fitoterápicos (REMUMEFITO) e mementos terapêuticos preestabelecidos pelo Ministério da Saúde, pautados no saber técnico-científico, sem levar em conta a coleta de informação local para adequar as listas ao perfil epidemiológico, as necessidades e valorização das plantas medicinais de cada localidade (Matos, 2006; Silva et al., 2006; Carneiro, Pontes 2004; Pires, Borella, Raya, 2004).

Educação em saúde As atividades educativas descritas envolveram tanto a comunidade quanto profissionais da saúde, conforme organização político-administrativa dos serviços de APS (Oliveira, Simões, Sassi, 2006; Araújo, 2000). Voltados à população, foram encontrados: grupos de estudos, rodas de conversas, oficinas de troca de mudas de plantas, agricultura familiar, agroecologia, atividades intersetoriais e extensão universitária, valorizando a fitoterapia familiar, popular, tradicional e científica. Os referenciais utilizados foram: educação popular, permanente e/ou ambiental (Santos, 2012; Diniz, 2006; Carneiro, Pontes, 2004; Pires, Borella, Raya, 2004; Sacramento, 2004). Em ações voltadas aos profissionais, a educação permanente7 (Ceccim, Feuerwerker, 2004) e a continuada8 (Peduzzii et al., 2009) foram estratégias adotadas para minimizar as resistências à inserção da fitoterapia na APS (Santos, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 4. Principais legislações atualizadas sobre plantas medicinais e fitoterápicos, vigentes até 2013 Produtos Plantas medicinais

Droga Vegetal

Fitoterápico manipulado

Medicamento fitoterápico

Documento

Objetivo

Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973

Controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos e correlatos

Decreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006

Política Nacional de Plantas Medicinais

Renisus

Relação Nacional das plantas medicinais de Interesse ao SUS

Resolução RDC nº 10, de 9 de março de 2010

Notificação de droga vegetal na ANVISA

Resolução RDC nº 267, de 22 de setembro de 2005

Regulamento Técnico de Espécies vegetais para o preparo de chás

Resolução RDC nº 219, de 22 de dezembro de 2006

Espécies vegetais e parte(s) de espécies vegetais para o preparo de chás

Resolução RDC nº 17, de 16 de abril de 2010

Boas Práticas de Fabricação de Drogas Vegetais sujeitas à notificação

Resolução RDC nº 67, de 08 de outubro de 2007

Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e Oficinais para Uso Humano em Farmácias

Resolução RDC nº 87, de 21 de novembro de 2008.

Boas Práticas de Manipulação em Farmácias

Resolução RDC nº 48, de 16 de março de 2004

Registro de medicamentos fitoterápicos.

RE nº 90, de 16 de março de 2004

Guia para os estudos de toxicidade de medicamentos fitoterápicos

RE nº 91, de 16 de março de 2004

Guia para realização de alteração, inclusões, notificações e cancelamento pós registro de fitoterápicos

Resolução RDC nº 95, de 11 de dezembro de 2008

Texto de bula de medicamentos fitoterápicos.

Instrução normativa nº 05, de 11 de dezembro de 2008

Lista de medicamentos fitoterápicos de registro simplificado

Instrução normativa nº 05, de 31 de março de 2010

Lista de referências bibliográficas para avaliação de segurança, eficácia de medicamentos fitoterápicos

Resolução RDC nº 14, de 31 de março de 2010

Registro de medicamentos fitoterápicos (atual)

Resolução RDC nº 17, de 16 de abril de 2010

Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos (inclui parte específica de medicamentos fitoterápicos)

Portaria GM/MS nº 533, de 28 de março de 2012 (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais)

Elenco de fitoterápicos na Atenção Básica: alcachofra (Cynara scolymus L.), aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi), babosa (Aloe vera (L.) Burm. F.), cáscara-sagrada (Rhamnus purshiana DC.), espinheira-santa (Maytenus officinalis Mabb.), guaco (Mikania glomerata Spreng.), garra-do-diabo (Harpagophytum procumbens), hortelã (Mentha x piperita L.), isoflavona-de-soja (Glycinemax L.) Merr.), plantago (Plantago ovata Forssk.), salgueiro (Salix alba L.), unha-de-gato (Uncaria tomentosa (Willd. ex Roem. &Schult.))

Serviço de Fitoterapia no SUS

Farmácia Viva

Portaria nº 886, de 20 abril de 2010

Farmácia Viva no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)

Resolução RDC nº 18, de 3 de abril de 2013

Boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterápicos em farmácias vivas no SUS

Fonte: http://portal2.saude.gov.br/saudelegis/leg_norma_pesq_consulta.cfm

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2012). Muitas vezes, isso ocorre porque os profissionais não tiveram, na graduação, disciplinas sobre o tema. A opção adotada em alguns municípios foi o curso introdutório sobre plantas medicinais (Rosa, Câmara, Béria, 2011; Reis et al., 2004; Ogava et al., 2003). Desse modo, a integração ensino-serviço, o momento da consulta, a visita domiciliar e as ações comunitárias foram citados como espaços favoráveis de troca, levando em consideração os saberes locais sobre os aspectos terapêuticos, agronômicos, botânicos, químicos e farmacológicos das plantas medicinais para qualificar tanto o profissional quanto o usuário (Nagai, Queiróz, 2011; Pires, Borella, Raya, 2004; Reis et al., 2004; Araújo, 2000).

Ações intersetoriais e participação comunitária A fitoterapia extrapola o setor da saúde. Neste sentido, a falta de parcerias intersetoriais foi citada como uma dificuldade para avanço da fitoterapia na APS. Foram destacadas parcerias e cooperação técnica com: Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para desenvolver ações com assentamentos rurais (Pires, Borella, Raya, 2004); Secretaria Municipal do Meio Ambiente, para o apoio às hortas caseiras, atividades de educação ambiental (Graça, 2004), sanear terrenos abandonados e controlar procriação de animais peçonhentos (Sacramento, 2004); horto didático para preservar e identificar espécies (Santos, 2012; Pires, Borella, Raya, 2004); de forma a valorizar o aspecto social e cultural da fitoterapia, envolvendo lideranças comunitárias, empresas e pesquisadores (Nagai, Queiróz, 2011; Matos, 2006). Outros espaços, como conselhos locais, assembleias comunitárias, projetos pedagógicos (Campos, 2007), foram citados como estratégias que estimulam a participação comunitária para fortalecer inserção da fitoterapia na APS.

Fitoterapia na APS: interação de saberes e práticas de cuidado A análise da literatura revelou riqueza e diversidade de motivos de inserção da fitoterapia na APS. Dentre tais motivações e práticas sintetizadas no Quadro 2, destaca-se o aspecto social e educativo da fitoterapia. Este aspecto vem semear uma perspectiva de promoção da saúde, cuidado autônomo e solidário, para além do saber científico. Todavia, o último não deve ser menosprezado. O enriquecimento das possibilidades terapêuticas para uso profissional (prescrição) é uma importante conquista da inserção das plantas medicinais na APS. De qualquer forma, há que se tomar cuidado para que essa inserção não se centre no produto, apenas, para uso profissional, restringindo as ações ao universo regulatório científico-institucional (coluna da direita na Figura 2). Esse tipo de ação pode e deve estar associado ao diálogo com outros saberes e práticas sobre plantas medicinais existentes ou possíveis de fomento na comunidade, com outros significados e características (coluna da esquerda da Figura 2). A promoção da saúde por meio da fitoterapia envolve o resgate de valores culturais, ao mesmo tempo em que estimula ações intersetoriais, facilitando: o vínculo equipe-comunidade, a aproximação entre profissionais e usuários, o cuidado autônomo, o desenvolvimento local, a intersetorialidade e a participação comunitária. A inserção da fitoterapia, nesta perspectiva, demanda abordagens educativas que valorizem a criação de espaços que estimulem a valorização de saberes, a prudência e a análise crítica, pelos profissionais e usuários, sobre o uso de plantas medicinais (Carvalho, 2004). Mas, tal perspectiva parece encontrar, no seu percurso, obstáculos constantes interpostos pelo modelo de atenção médico-centrado e cientificista (Luz, 2005). Portanto, não basta a gestão municipal incentivar as ações de fitoterapia na APS ou regulamentar estas práticas por meio de instrumentos legais para garantir a sua oferta com qualidade. Faz-se necessário investimento na educação permanente e popular nos serviços, considerando as necessidades que emergem no cotidiano do processo de trabalho das equipes da APS a partir do vínculo e interação com as comunidades, para inserção de novas estratégias de cuidado que possibilitem, também, uma descentralização do poder-saber científico (Rosa, Câmara, Biéria, 2011; Santos et al., 2011).

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Desse modo, é preciso incentivar ações de fitoterapia na APS que incluam e extrapolem a prescrição. Sua inserção talvez não represente uma diminuição de custos, mas, antes, a aceitação do saber do outro, o respeito por valores culturais e tradições, e a construção de um vínculo solidário com a comunidade, de forma que se rompa com a dicotomia popular versus científico (Rosa, Câmara, Biéria, 2011). Elas propõem práticas mais holísticas, com participação ativa da comunidade e com diversas formas de trabalho com as plantas medicinais para além do saber científico, incluindo-o (Sícoli, Nascimento, 2003). No entanto, tais ambições exigem uma prática educativa centrada no diálogo, na solidariedade, na construção de parcerias, fomentando a corresponsabilidade e a politização individual e coletiva, componente da promoção de saúde que está ligada ao princípio do empoderamento (Sícoli, Nascimento, 2003). Neste sentido, a educação popular pode ser um dispositivo que valoriza o saber de cada sujeito sem considerar o grau de formação escolar (Albuquerque, Stotz, 2004), o que é fundamental para reforçar a ecologia de saberes. A educação popular contribui, assim, para não se produzirem práticas de divulgação de informação com enfoque apenas na transmissão de conhecimento técnico-científico (Peduzzi et al., 2009). Aqui aparece um grande desafio e tensão, uma vez que a formação dos profissionais em saúde fundamenta-se no saber técnico-científico, vinculada, no geral, à perspectiva de conhecimentoregulação, unidirecional e prescritivo. Sua prática, influenciada e dominada pelo poder administrativopolítico e orientada ideologicamente pelo saber biomédico, contribui para a resistência às mudanças. O que se observa, nas universidades e serviços, é que ainda não há um espaço significativo para a discussão sobre a validade do acervo cultural não científico sobre plantas medicinais ou partes dele (Sena, 2007). Bastos e Lopes (2010) discutem a insuficiência da formação dos enfermeiros da APS sobre fitoterapia. A rara inserção do tema das plantas medicinais nos cursos de medicina reflete a postura negativa destes frente aos saberes familiares, populares e tradicionais que circulam na sociedade (Rosa, Câmara, Béria, 2011). A monocultura científica cria um contexto restrito, com pouca abertura a novas possibilidades, e alimenta a insegurança da corporação médica no que diz respeito à prescrição e às orientações. Tais representações fortalecem atitudes negativas ou receosas quanto à intenção da utilização de fitoterápicos na APS. Por isso, reforça-se a importância de a educação permanente para este tema emergir das demandas cotidianas da prática assistencial e da relação profissional-usuário, além de atividades de educação popular para que se estimule a problematização de forma contextualizada, atendendo as singularidades dos lugares e pessoas (Peduzzi, et al., 2009; Ceccim, Feuerwerker, 2004). A difusão do tema “fitoterapia” em atividades de educação permanente com as equipes de saúde nos serviços da APS é uma estratégia a ser adotada pelos gestores municipais (Santos, 2012; Thiago, Tesser, 2011). Também o incentivo às ações educativas com a comunidade ajuda a qualificar o trabalho com fitoterapia, implicando absorção de novos conhecimentos sobre o tema. A educação permanente e a popular em relação à fitoterapia podem proporcionar democratização dos saberes, diálogo, aprendizado, orientação, escuta e enfrentamento criativo dos problemas de saúde presentes no cotidiano dos serviços, com melhoria da qualidade do cuidado. Elas fomentam a construção de práticas críticas, éticas e solidárias, suprindo a deficiência da formação dos cursos que omitem ou consideram a fitoterapia como disciplina optativa. Isso leva muitos acadêmicos a considerarem-na pouco importante, quando é particularmente relevante e pode ser realizada tanto nas práticas profissionais individuais quanto coletivas, com o objetivo de ampliar a autonomia e a capacidade de intervenção das pessoas sobre suas próprias vidas (Campos, 2007). Esta interação entre diferentes saberes parece ser o caminho para o fortalecimento de uma política que “não visa só redução de custo” e validação e certificação de produtos fitoterápicos tecnicamente elaborados, mas, sobretudo, aponta para a promoção da saúde, a escuta qualificada, a solidariedade e a emancipação social. As ações educativas, intersetoriais e com participação ativa da comunidade podem contribuir na articulação de projetos de fitoterapia que reforçam a ecologia de saberes.

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artigos

Considerações finais Numa perspectiva ampla, a fitoterapia pode e deve ser considerada como um campo de interação de saberes e práticas que valoriza: os recursos culturais, práticas e saberes locais, a preservação das riquezas naturais e da biodiversidade, a interação dos usuários com a natureza e com os profissionais da equipe de saúde, além de enriquecer as possibilidades terapêuticas autônomas e heterônomas. Também pode promover a socialização da pesquisa científica e desenvolver visão crítica na população sobre o uso de plantas medicinais na APS e no setor familiar. A diversidade das experiências na APS registradas corroboram essas potencialidades. Esta forma de pensar o tema pode contribuir, ainda, para a geração de empregos e renda e para o fortalecimento da APS, como estratégia visando qualificar a escuta a outros saberes circulantes na comunidade, importantes para a promoção de saúde e o cuidado tanto institucional quanto não institucional. Assim, os saberes leigos, populares e tradicionais podem ser vistos como uma possibilidade de aproximação do profissional da saúde com o usuário. Neste contexto, o princípio que orienta as relações de cuidado deve ser a solidariedade, a reciprocidade, o respeito e a valorização mútua. Esta interação entre comunidade e equipe de saúde pode ocorrer em encontros para compartilhar experiências, tais como: identificação das plantas, o modo como são preparadas e indicadas, e de que forma são usadas pela comunidade. Por seu turno, os profissionais de saúde capacitados apresentam evidências científicas, disponíveis no momento, correlacionando os saberes populares com os estudos de composição química, ação farmacológica e nutricional, toxicidade, interação medicamentosa, contraindicações, posologia, aspectos botânicos e agronômicos de espécies vegetais, além de identificarem as diferentes espécies que podem ser reconhecidas com o mesmo nome popular. As articulações intersetoriais favorecem a introdução da fitoterapia na APS. Com isso, a comunidade e os usuários organizados, com suas tradições, valores e saberes, bem como as instituições acadêmicas, de pesquisa e ensino, com seus critérios científicos, podem contribuir na construção de uma ecologia de saberes sobre plantas medicinais, em diálogos e decisões sobre os usos/orientações/prescrições das plantas medicinais e fitoterápicos na APS e no uso autônomo. Isso certamente contribuirá na construção de um conhecimento-emancipação que contrabalance e compense a forte tendência atual de enfatizar o aspecto de regulação dos saberes/práticas científicos sobre fitoterapia na APS.

Colaboradores Gisele Damian Antonio participou da concepção, planejamento, coleta e seleção dos artigos, análise e interpretação dos dados; Rodrigo Otávio Moretti-Pires contribuiu significativamente na elaboração do rascunho e desenho metodológico; Charles Dalcanale Tesser trabalhou na concepção do estudo, revisão crítica do conteúdo, orientação geral da pesquisa, elaboração e aprovação da versão final do manuscrito. Referências ALBUQUERQUE, P.C.; STOTZ, E.N. A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade. Interface (Botucatu), v.8, n.15, p.259-74, mar/ago 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832004000 200006>. Acesso em: 23 jun. 2013. ALVIM, N.A.L.: CABRAL, I.E. A aplicabilidade das plantas medicinais por enfermeiras no espaço do cuidado institucional. Esc. Anna Nery Rev. Enferm., v.5, n.2, p.201-10, 2001. ARAUJO, M.A.M. Bactrins e quebra-pedras. Inteface (Botucatu), v.4, n.7, p.103-10, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v4n7/08.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2013.

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ANTONIO, G.D.; TESSER, C.D.; MORETTI-PIRES, R.O. Contribuciones de las plantas medicinales para el cuidado y promoción de la salud en la atención primaria. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.615-33, jul./set. 2013. Se analizaron programas y acciones de fitoterapia en la atención primaria a la salud brasileña (APS) a partir de la literatura. El meta-estudio incluyó seis bases de dtos, de 1988 a 2012, siendo registradas 24 publicaciones. la inserción de la fitoterapia se realiza a partir de diversas motivaciones: aumentar los recursos terapéuticos, rescatar el conocimiento popular, preservar la biodiversidad, promover la educación ambiental y popular, agroecología y desarrollo social. Hay una ambivalencia que unas veces tiende para el fortalecimiento del auto-atención, las actividades educativas, intersectoriales y la participación comunitaria, lo que constituye una forma de atención y promoción de la salud; otras veces se limita a la incorporación de fitoterápicos manipulados o procesados a la farmacia de los servicios de APS, para uso estrictamente profesional. Se subraya una visión ampliada de la fitoterapia que incorpore esos dos enfoques, en una perspectiva de ecología de saberes y prácticas en salud.

Palabras clave: Atención primaria de Salud. Plantas medicinales. Fitoterapia.

Recebido em 27/08/12. Aprovado em 11/06/13.

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artigos

Subsídios para a diversificação de moradias destinadas a pessoas com transtorno mental grave no Brasil: uma revisão* Juarez Pereira Furtado1

FURTADO, J.P. Support for diversification of housing for people with severe mental disorders in Brazil: a review. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.635-47, jul./set. 2013.

Because of criticism of so-called mental hospitals, a variety of housing initiatives for people being discharged from psychiatric hospitals have needed to be implemented in different countries. In this paper, from a narrative review, we analyzed the background to and establishment of homes for people with severe mental disorders implemented in Brazil, through the Brazilian National Health System. We found that there had been little discussion about the limits of the residential therapeutic service program, and almost no discussion about alternatives for the housing needs of severely ill patients connected with psychosocial care centers. With support from reflections derived from Canadian experience, we discuss the need for and possible ways of expanding the forms of support for housing for people with severe mental disorders in Brazil, not only quantitatively, but also qualitatively.

Keywords: Public health. Program evaluation. Mental health. Assisted living facilities.

Com as críticas ao chamado manicômio, diversas iniciativas de moradia para egressos de hospitais psiquiátricos precisaram ser implementadas em diferentes países. Neste artigo, a partir de revisão narrativa, analisamos os antecedentes e a constituição de moradias para pessoas com transtorno mental grave implementadas no Brasil, pelo Sistema Único de Saúde. Identificamos pouca discussão sobre os limites do programa de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e a quase inexistência de discussões sobre alternativas para as necessidades de moradia de pacientes graves ligados aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Subsidiados por reflexões oriundas da experiência canadense, discutimos a necessidade e os caminhos possíveis de ampliação não só quantitativa, mas, sobretudo, qualitativa, das formas de apoio às moradias de pessoas com transtorno mental grave no Brasil.

Palavras-chave: Saúde Pública. Avaliação de programas e projetos de saúde. Saúde mental. Moradias assistidas.

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Texto elaborado em contexto de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa, CNPq (Edital 33/2008, processo 575150/2008-4). 1 Departamento Políticas Públicas e Saúde Coletiva, Instituto Saúde e Sociedade, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Baixada Santista. R. Silva Jardim, 136, Vl. Mathias. Santos, SP, Brasil. 11015-020. juarezpfurtado@ hotmail.com *

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SUBSÍDIOS PARA A DIVERSIFICAÇÃO DE MORADIAS ...

Eu e a casa sofremos de uma mesma doença: saudades. (Couto, 2012, p.3)

O problema Urge desospitalizar os milhares de moradores de hospitais psiquiátricos brasileiros e, também, garantir, para outros milhares de pessoas com transtorno mental grave (TMG), acompanhados pelos Caps, suporte às suas necessidades de moradia, garantindo, para essa clientela, o direito de efetivamente continuar inserida no espaço urbano e social de nossas cidades. A discussão da necessidade dessa simultânea ampliação (dos SRTs) e diversificação (para novas clientelas) do suporte às moradias de pessoas com TMG constitui o tema deste estudo. No local de morada convergem muitos e importantes aspectos da constituição do indivíduo, podendo-se encontrar ali respostas, abrigo e contorno para aspectos que vão do mais íntimo e individual ao coletivo e relacional (Morin, Robert, Dorvil, 2001), representando importante determinante social da saúde mental e elemento decisivo na inserção e manutenção de pessoas em meio social e comunitário (Beaulieu, Dorvil, 2004). Acumulam-se importantes estudos, em distintas localidades, reiterando o papel decisivo do equacionamento das necessidades de moradia para pessoas com transtorno mental grave (TMG). Para Tsemberis (2004), o acesso e a permanência em moradias são considerados fatores fundamentais na integração de doentes mentais, sobretudo em grandes meios urbanos, como Nova York. A partir de sua experiência (Tsemberis, 2004), o autor defende modelos de habitação plenamente integrados na comunidade e, mais que flexíveis, transigentes com as muitas questões que atravessam a psicose e o uso abusivo de drogas. No Brasil, há publicação cujo conjunto de artigos discute e/ou apresenta relatos de experiências de êxito na implementação e no acompanhamento de egressos de longas internações psiquiátricas em residências a eles destinadas, salientando a importância das novas moradias para os egressos de longas internações psiquiátricas (Cadernos IPUB, 2006). Estudos de outra natureza – sistemáticos e prospectivos – também têm apontado resultados positivos de moradias no âmbito da desinstitucionalização psiquiátrica. Trieman et al. (1999), acompanhando prospectivamente, por cinco anos, seiscentos e setenta pacientes oriundos de dois hospitais psiquiátricos de Londres, analisaram fatores como: qualidade de moradia, frequência de reinternações em urgências e hospitais psiquiátricos, e situações de desabrigo (homeless), concluindo que – se bem planejados e estruturados – os cuidados às pessoas com TMG em casas inseridas na comunidade são benéficos às mesmas e não trazem riscos para os demais segmentos da sociedade. Ao mesmo tempo, elemento físico e relacional de grande importância para toda e qualquer pessoa, o local e as condições de moradia assumirão particular importância para a pessoa em sofrimento mental grave, em vista dos contornos que a casa pode oferecer e da referência em que pode vir a se constituir. Para a pessoa com TMG, o lar pode oferecer espaço de necessária complacência a eventuais sintomas e constituir ponto de partida para aspectos que ultrapassam o morar, mas que dele dependem, como a rede social e a inserção em atividades de trabalho (Dorvil, 2004). Considerações compartilhadas por Saraceno (1999), para quem a moradia forma, junto com a rede social e o trabalho, a tríade fundamental no processo de reabilitação e inserção social. Para Saraceno (1999), a noção de moradia inclui não só a estrutura física, mas, também, as diferentes maneiras de apropriação do espaço e dos modos de habitá-lo. No entanto, iniciativas desenvolvidas nas últimas décadas no Brasil, voltadas para o suporte e apoio às necessidades de moradia de pessoas com transtorno mental grave, têm ficado restritas aos chamados Serviços Residenciais Terapêuticos. Nosso pressuposto é de que urge refletir e buscar novos modos de prover e apoiar moradias de pessoas com transtorno mental grave, de modo a garantir sua efetiva permanência na comunidade. Para isso, realizamos revisão narrativa sobre o tema (Pereira, 2011), utilizando a expressão “Serviços Residenciais Terapêuticos” como palavra-chave na base Scientific Eletronic Library On Line (Scielo) e na chamada literatura cinzenta, composta de textos não indexados ou não publicados. A partir daí, pudemos: reconstituir alguns antecedentes importantes do que atualmente compreendemos como 636

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moradias para pessoas com doenças mentais; identificar as principais questões que se constituíram objeto nas publicações mais recentes, e discutir saídas à atual iniciativa voltada para equacionar moradia para pessoas com TMG, oferecendo subsídios para a diversificação qualitativa de opções de moradia, de modo a superar os SRTs como alternativa única.

Alguns predecessores: Geel, Juliano Moreira e Franco da Rocha Geel, cidade ao norte da Bélgica, constitui referência obrigatória quando se trata de inventariar o convívio de doentes mentais na comunidade e as diferentes formas de moradia a eles destinadas. Dimphna, jovem degolada aos 18 anos, por recusar casar-se com o próprio pai, um rei celta, foi canonizada pela Igreja católica em 1247, santa e padroeira do que hoje compreendemos como doentes mentais, com base nas curas milagrosas obtidas a partir de relíquias encontradas no local de seu martírio, um oratório em uma floresta em Flandres. Uma legião de pessoas com sofrimento mental peregrinaram, em busca de cura, até a floresta e a pequena capela onde, próximo a Geel, Dimphna foi morta. A crença de que eram necessários nove dias (novena) de permanência na igreja de Santa Dimphna para obtenção da cura, somada ao grande afluxo de pessoas, levou os habitantes locais a receberem os peregrinos em suas próprias casas ou a criarem espaços a eles destinados, em um misto de pragmatismo e solidariedade, constituindo a experiência dessa pequena cidade (hoje belga) o que contemporaneamente identificaríamos como um movimento de convívio social e de provimento de moradias em espaço comunitário para os doentes mentais (Leduc, 1987). O que torna a experiência de Geel particularmente importante é sua duração, uma vez que o peculiar convívio e coabitação entre comunidade e pessoas com TMG atravessou os séculos, chegando aos dias atuais. Ainda que o número de pensionistas esteja em declínio – aproximadamente quinhentos pensionistas em famílias de acolhimento (Goldstein, Godemont, 2003) – a pequena cidade tem servido de referência para profissionais de outros países interessados na desinstitucionalização psiquiátrica, seja por causa das referidas moradias ou por outras iniciativas de atenção e inserção na comunidade (Leduc, 1987). No início do século XX, a experiência de Geel influenciará Juliano Moreira na constituição do modelo assistencial de sua Colônia para psicopatas-homens, sobretudo no que diz respeito à proposta de assistência heterofamiliar, na década de 1910. Nas palavras do próprio Juliano Moreira, [...] deve o governo construir casinhas higiênicas para alugar às famílias dos bons empregados que poderão receber pacientes susceptíveis de serem tratados em domicílio. Far-se-há assim assistência familiar. Se nas redondezas da colônia houver gente idônea a quem confiar alguns doentes, poder-se-há ir estendendo essa assistência hetero-familiar e até tentar a homo-familiar. (Moreira 1910, apud Venâncio, 2011, p.38)

Também no início do século XX, Franco da Rocha, em São Paulo, irá propor a assistência familiar como estratégia para dar vazão aos doentes crônicos, cuja desocupação dos leitos hospitalares permitiria absorver o crescente número de doentes novos provenientes de várias regiões do estado e do país. Nesse momento, então, a ideia de transferência para casas de família prende-se à necessidade de racionalizar os custos gerados pelos pacientes, não estando em questão, propriamente, o hospital psiquiátrico. Segundo Juliano Moreira, nos Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Afins, referindo-se ao êxito alcançado por seu colega Franco da Rocha, em São Paulo, com a assistência familiar: Convido pensar no futuro quando o aumento de doentes fôr tal que comece a ser por demais oneroso ao Estado, terão os poderes publicos de recorrer á assistencia familiar dos insanos susceptiveis della. E então, dadas as nossas condições sociaes, sómente nas proximidades de uma colonia agrícola, já a esse tempo muito bem organizada, será possível effectuar aquele progresso. Tenho enorme satisfação em verificar que o espirito clarividente

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SUBSÍDIOS PARA A DIVERSIFICAÇÃO DE MORADIAS ...

de Franco da Rocha vae demonstrar por meio de uma convincente experiencia que mesmo no Brasil é exequivel a assistencia familiar a alienados. (Moreira, 1906, p.3)

As famílias de acolhimento ou nutrícios, como eram chamados os responsáveis, foram compostas de camponeses pobres e, mais tarde, de pessoal do próprio hospital. Tais pessoas serão responsáveis por alimentação, vestuário e saúde geral dos internos, sendo esses últimos todos do sexo masculino e, preferencialmente, com capacidade de realizar algum tipo de trabalho (Urquiza, 1991). As iniciativas de inserção de internos em casas de família, desencadeadas por Juliano Moreira e Franco da Rocha, serão pontuais e inseridas no modelo centrado nos grandes asilos surgido no Brasil do século XIX (Oda, 2005), configurando-se como complemento, e não alternativa ou crítica ao modelo de assistência em implantação por eles no Brasil. Ainda assim, podem ser consideradas as primeiras experiências em solo pátrio destinadas à retirada de pacientes cronificados do interior dos hospitais e sua inserção em casas na comunidade, prevendo-se, inclusive, algum acompanhamento e/ou supervisão pela instituição de origem. Somente décadas mais tarde, nos primórdios de discussões críticas e questionamento do modelo hospitalar hegemônico em saúde mental, teremos proposições e/ou iniciativas de inserção de egressos de longas internações não mais em casas de família, mas em moradias compostas exclusivamente de pacientes, preconizadas por órgãos federais (Brasil, 1973), e efetivamente desenvolvidas, nos anos 1980, na própria instituição fundada por Franco da Rocha (Palladini, 1987). É na década de 1990 que podemos identificar experiências pioneiras que influenciaram diretamente e ajudaram a conformar uma alternativa concreta de saída para os pacientes internados por longos períodos em hospitais psiquiátricos. Tais iniciativas surgiram não mais para o aperfeiçoamento do modelo centrado nos hospitais psiquiátricos. Pelo contrário, surgiram no contexto de radical mudança da assistência em saúde mental proposta pela reforma psiquiátrica – caracterizada por um novo paradigma voltado ao estabelecimento de nova relação da sociedade com os chamados loucos, à superação do modelo hospitalar, à oferta de serviços na comunidade e à reinserção social de portadores de TMG (Amarante, 2001). Nas cidades de Porto Alegre, Ribeirão Preto (Guimarães, Saeki, 2001) e Campinas (Braga Campos, Guarido, 2006; Furtado, Pacheco, 1998), desenvolveram-se iniciativas de inserção de pessoas com TMG, moradores de asilos psiquiátricos, em espaços residenciais. Em que pesem as diferenças existentes entre essas experiências, provenientes dos distintos contextos, era explícita a intenção de superar o isolamento e, sobretudo, implementar alternativas de moradia para aqueles não mais aceitos pela família ou cujos laços familiares se perderam. Tais experiências foram precursoras diretas do que, a partir da portaria 106/2000 do Ministério da Saúde, passou a ser chamado de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).

A política brasileira de moradias para pessoas com transtorno mental grave As portarias 106/2000 e 1.220/2000 do Ministério da Saúde (Brasil, 2002) oficializaram os SRTs no SUS, estabelecendo sua estrutura básica, modo de operar e financiamento. A partir daí, as pensões protegidas, lares abrigados, vilas terapêuticas, moradias extra-hospitalares e núcleos de convívio – como até então eram chamadas as diversas experiências pioneiras já citadas, destinadas aos egressos de longa internação (Suiyama, Rolin, Colvero, 2007) – passam a ser chamadas de Serviços Residenciais Terapêuticos. Tal nomenclatura foi questionada à época, sobretudo no que concerne aos termos “serviços” e “terapêuticos”, inseridos justamente para justificar e viabilizar sua inserção no SUS. Notemos aí que, ao menos em tese, considerou-se a possibilidade de que tais moradias pudessem ser abrigadas em outros setores, como o de promoção e assistência social. Contudo, a assistência social no Brasil dos anos 1990 deparava-se com a grande tarefa de superar o clientelismo, o paternalismo e a filantropia que lhe eram quase inerentes. A impossibilidade do setor de assistência social para abrigar a iniciativa dos SRTs foi propulsora, no interior da Reforma Psiquiátrica, da ampliação do campo dessa

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última. Assumindo aspectos relativos à moradia dos egressos, em seus mais diversos componentes, a área da saúde mental amplia seus aspectos interdisciplinar e intersetorial. Os SRTs foram concebidos e destinados à população de pacientes moradores em hospitais psiquiátricos públicos e privados (conveniados com o Sistema Único de Saúde) do Brasil. Trata-se de casas inseridas preferencialmente no espaço urbano, destinadas a receber entre um e oito egressos, que deverão ter o suporte clínico e de reabilitação psicossocial garantido pela rede municipal de saúde mental. O financiamento dos SRTs é oriundo dos recursos que até então mantinham os egressos em seus respectivos hospitais – a conhecida guia de autorização de internação hospitalar (AIH). Ou seja, a normatização do Ministério da Saúde prevê que o antigo leito ocupado pelo egresso seja extinto e o recurso a ele atrelado (por meio das AIHs) seja destinado ao município. Desse modo, a cada saída de um paciente morador de hospital em direção ao SRT, extingue-se um leito hospitalar e o recurso vai para a secretaria municipal de saúde que implementou o SRT (de certa forma, podemos entender essa mudança como a substituição de financiamento de “leitos” por “camas”). A partir desses contornos mais gerais de financiamento e estruturação física, cada município estabelece suas próprias características: modelo de assistência e acompanhamento aos residentes, tipo e quantidade de profissionais envolvidos, estabelecimento ou não de convênio com ONGs para responder à flexibilidade requerida na gestão do cotidiano das casas, dentre outras. No entanto, o programa de SRTs, única iniciativa oficial voltada para as questões de moradia de pessoas com TMG, tem beirado a estagnação, mantendo-se, há alguns anos, em restrita expansão (vide Gráfico 1), por razões não totalmente conhecidas e que tentamos identificar em estudo anterior (Furtado, 2006). Dados do Ministério da Saúde, apresentados no II Encontro Nacional de SRTs, em abril de 2010, na cidade de Porto Alegre, demonstram que o número de dois mil e quinhentos moradores nessas casas é tímido se considerados os seis mil e quinhentos moradores potenciais no estado de São Paulo (Barros, Bichaff, 2008) ou os 12 mil representados por “moradores de hospital” ainda internados na totalidade dos estados brasileiros (vide Gráfico 2), situação existente apesar de quase vinte anos de experiência – se considerarmos as iniciativas pioneiras citadas – e do fomento existente à expansão dos SRTs a partir da portaria 106/2000.

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SRT em funcionamento

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Ano Gráfico 1. SRTs em funcionamento no Brasil Fonte: Extraído de Brasil, 2012.

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SRTs necessários

SRTs existentes

Gráfico 2. Número de SRTs necessários para a clientela moradora de hospitais psiquiátricos no Brasil

À atual paralisação na expansão de novas unidades destinadas a retirar internos de longa data em leitos psiquiátricos, vem somar-se a inexistência de programas e iniciativas estatais sistemáticas voltadas para pessoas sem histórico de longas internações psiquiátricas, estabelecendo um gargalo no acesso e garantia de moradia para essa clientela. Ambas as questões evidenciam dificuldades de nossa sociedade no enfrentamento da questão e na garantia de alternativas a um direito humano fundamental – o de moradia – e no estabelecimento, a contento, de alternativas a uma das funções latentes dos hospitais psiquiátricos: a de prover abrigo. Desse modo, por um lado, temos iniciativas ligadas à moradia para clientela dos hospitais e, mesmo assim, apresentando evidentes dificuldades para atingir as metas requeridas. Por outro lado, não contamos ainda com políticas de Estado voltadas para garantir moradias adequadas ao crescente número de pacientes com TMG atendidos na ampla rede nacional de Caps. Estudos nacionais têm enfatizado aspectos intrínsecos aos SRTs, traçando paralelos entre a vida no hospital e na nova moradia (Mângia, Ricci, 2011; Santos Jr. et al., 2009; Vidal, Bandeira, Gontijo, 2008; Cadernos IPUB, 2006), buscando compreender eventuais repercussões na subjetividade dos usuários (Pinheiro, Machado, 2011; Sztajnberg, Cavalcanti, 2010; Wachs et al., 2010; Suiyama, Rolim, Colvero, 2007) e o cotidiano nas casas (Amorin, Dimenstein, 2009), sendo mais raro o questionamento dos limites dos SRTs como resposta às necessidades de moradia (Furtado et al., 2013; Venturini, 2010). Por isso, consideramos que o conhecimento das experiências, concepções e tipos de moradia efetivamente implementadas em outros países pode subsidiar discussão crucial para a reforma psiquiátrica brasileira: a necessidade de ampliarmos os modos de apoio à habitação de pessoas com TMG. A criação de um leque de possibilidades amplo, diverso e flexível o suficiente para garantir o direito a moradias socialmente inseridas à maior quantidade possível de pessoas é imperiosa para a contínua qualificação da reforma psiquiátrica em curso.

Ampliar e diversificar: subsídios para a diversificação de moradias no Brasil Pretendemos contribuir para o debate sobre o tema no Brasil, estabelecendo novas perspectivas para duas grandes e distintas clientelas: 1) os moradores de SRTs, que contariam com um leque de novas possibilidades de moradia, à medida que eles próprios optassem por se mudar de seus SRTs; 2) usuários de Caps que, ainda que não possuam histórico de longos períodos de internação, mas necessitam de um local estável, seguro, privativo e confortável para morar. Países como Canadá e EUA possuem diferentes modalidades de apoio do Estado a diversos tipos de moradia para pessoas com transtorno mental grave e que vêm sendo objeto de pesquisas e avaliações sistemáticas (Nelson, Aubry, Hutchison, 2010). Estudo envolvendo metanálise de várias pesquisas sobre moradias em meio comunitário (Leff et al., 2009) indica que respostas adequadas às necessidades de habitação da clientela aqui enfocada são fatores de proteção preponderantes no que tange a potenciais 640

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reinternações e suicídios, dentre outros fatores. No mesmo estudo, Leff et al. (2009) concluem que a existência de distintos modelos de moradia possibilita diferentes suportes para distintas clientelas, permitindo modelar e adequar o suporte aos diferentes moradores. Mercier (2004), revendo os últimos quarenta anos de políticas públicas voltadas a moradia para pessoas com transtorno mental grave na província de Quebec, no Canadá, identifica três características essenciais que se sucederam nesse período: inicialmente, nos anos 1960, moradias como alojamento, em resposta às necessidades de abrigo aos egressos de hospitais psiquiátricos; nos anos 1970 e 1980, ocorre associação entre a função de alojamento e serviços de reabilitação; e, a partir dos anos 1990, passa-se a conceber as moradias como um direito e meio de acesso à cidadania plena. Naturalmente, essas diferentes concepções redundaram em distintas iniciativas e variadas formas de combinar moradia e suporte por parte das redes de saúde mental locais. Ressalte-se, no entanto, que essa revisão feita por Mercier (2004), tomando como base a província de Quebec, não seria aplicável ao restante do Canadá (Fourchuck et al., 2007). De maneira sintética, poderíamos afirmar que o modelo de habitação para pessoas com TMG, nesses dois países da América do Norte, poderia ser representado por um continuum, havendo, de um lado, moradias altamente estruturadas em termos de rotinas e pessoal de apoio; e, de outro, moradores com maior autonomia para estruturar suas rotinas e o próprio suporte que consideram necessário (Pelletier et al., 2009). Nesse sentido, em interessante trabalho, Nelson et al. (2010) distinguem as moradias em dois grandes grupos: aquelas nas quais seus moradores não contam com processo de reabilitação acoplado, e outras cujos moradores contam com diferentes suportes visando à sua reabilitação psicossocial e ganhos de autonomia (vide Quadro 1).

Quadro 1. Tipos de moradia segundo o suporte oferecido Família original Pensões e abrigos públicos Família de acolhimento Vida na rua (homeless)

Sem reabilitação

Concepções distintas

Tipos de moradia

Suporte

Com reabilitação Supervisionadas in loco (supportive housing)

Lares abrigados, vilas, apartamentos supervisionados

Diuturno, na própria casa

Com apoio comunitário (supported housing)

Casas comuns na comunidade

Modulado, segundo necessidades ou demandas. Normalmente, fora de casa.

A experiência brasileira de famílias de acolhimento restringe-se à assistência heterofamiliar de Juliano Moreira e Franco da Rocha, já citada.

2

Para os autores Nelson, Aubry, Hutchison (2010), o morar com a própria família de origem, as famílias de acolhimento e a vida na rua (homelessness) constituiriam um conjunto de moradias privadas de necessário e acoplado processo de reabilitação. As famílias de acolhimento (foster home em inglês, résidence d’accueil em francês) constituem experiência pioneira de alternativa de moradia a internos de hospitais psiquiátricos nos EUA e no Canadá, datando sua existência de mais de cinquenta anos atrás nesse último e persistindo até os dias atuais2 (Piat, Sabetti, 2010). As casas de acolhimento canadenses e americanas são normalmente estruturadas em torno de um casal que se dispõe a receber um ou vários egressos em sua residência, tornando-se cuidadores. Na maioria das vezes, os cuidadores são donas de casa que podem abrigar até nove residentes, mantendo contato estreito com a equipe do hospital de origem de seus pensionistas e/ou com o profissional de referência do serviço de saúde mental mais próximo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As expectativas colocadas sobre esses cuidadores em relação ao cotidiano – zelar pelo espaço físico, limpeza, saúde orgânica e alimentação dos moradores, promover contínua aquisição de autonomia – mais aquelas de ordem institucional – integrar-se com as equipes de saúde mental – frequentemente entram em conflito com o fato de esses não necessariamente possuírem formação profissional específica e carecerem de mais treinamento (Piat, Sabetti, 2010). Por sua vez, os cuidadores dessas casas de acolhimento referem basear-se no bom senso e na ética da dignidade humana para desenvolverem seus trabalhos junto aos moradores, e queixam-se de sobrecarga, sobretudo por se verem responsáveis o tempo todo, sete dias por semana, pelo que acontece na casa. Torna-se quase inevitável traçar paralelos entre a figura do cuidador nas famílias de acolhimento canadenses e os cuidadores de SRTs brasileiros. Em nossos trabalhos de campo, também identificamos um conjunto não necessariamente harmonioso de expectativas e atribuições relativas aos cuidadores: zelar pela limpeza e adequação do espaço físico, pelas roupas e pela alimentação e, ainda, estimular a contínua aquisição de autonomia pelos residentes, além de administrar conflitos inevitáveis. O que configura evidente sobrecarga, levando em conta tratar-se de pessoas em geral com baixa escolaridade, com fraca inserção nas equipes de saúde mental e recebendo pouco ou nenhum suporte das mesmas (Silva, Vaz, Campos, 2013; Cardoso et al., 2012), a despeito da importância de seu trabalho ressaltada por Sprioli e Costa (2011). Outra convergência é certo distanciamento, por parte dos trabalhadores dos Caps, das questões ligadas às moradias dos usuários, o que talvez seja reflexo de certa desconexão entre a política de desinstitucionalização brasileira e outras voltadas para moradias na comunidade, conforme identificado por Forchuk et al. (2007) em algumas províncias do Canadá. Retomando a proposição de Nelson et al. (2010), temos que as famílias de acolhimento, juntamente com abrigos sociais, pensões e quartos em pequenos hotéis, constituiriam moradias típicas da primeira onda de desinstitucionalização na América do Norte, nos anos 1960, caracterizadas por restringir-se ao fornecimento de alimentação e casa limpa, atividades realizadas por trabalhadores não profissionalizados. Estes últimos enfocariam mais os déficits do que as potencialidades dos moradores, não enfatizando habilidades ou treinando sua independência. O somatório dessas situações traria importante impacto negativo à saúde mental e à qualidade de vida dos moradores (Nelson, Aubry, Hutchison, 2010). Tal carência de promoção de autonomia e restrito acompanhamento poderia ser explicada pelo fato de as chamadas “moradias sem reabilitação”, citadas por Nelson, Aubry, Hutchison (2010), serem anteriores ao surgimento da concepção e das práticas de reabilitação psicossocial. Moradias que contam com reabilitação psicossocial para os seus residentes surgirão apenas a partir dos anos 1970, combinando a ideia de lar com suportes diversos em direção à aquisição de autonomia, tudo isso em um mesmo lugar. As moradias com apoio (supportive housing) e as moradias com suporte na comunidade (supported housing) representariam, no plano operacional, o entrelaçamento entre moradia e reabilitação psicossocial. No entanto, esses dois modos de apoio e suporte apresentam significativas diferenças entre si, como veremos a seguir. Moradias com apoio (supportive housing) caracterizam-se pela ideia de criar um ambiente na residência que permita e estimule aprendizagens diversas pelos residentes. Calcada na ideia de um continuum, a moradia com apoio objetiva a progressiva aquisição de habilidades pelos residentes, que, assim, irão mudar para outras casas, nas quais lhes serão requeridas novas competências, até que se venha a atingir um nível ideal, no qual eles se tornem o mais independentes possível e apresentem menor necessidade dos serviços. Inspiradas fortemente em estratégias voltadas para pessoas com retardo mental (Morin, Robert, Dorvil, 2001), tais moradias apresentam-se sob a forma de lares abrigados, apartamentos supervisionados e “vilas” (grupos de casas), podendo o número de residentes variar de duas a 12 pessoas. Outra característica delas é o fato de os trabalhos de reabilitação serem desenvolvidos, em grande parte, no interior das residências. Em contraste com o modelo anterior (supportive housing), as moradias com suporte na comunidade (supported housing) caracterizam-se por dissociar as funções de alojamento e moradia daquelas de suporte. O americano National Institute of Mental Health (NIMH) define suporte na comunidade (supported housing) como “uma abordagem focada no usuário e em seus objetivos e propósitos, usando processo de reabilitação individualizado e flexível, com forte ênfase na ideia de uma moradia comum, além de inserção no trabalho e constituição de rede social” (Fakhoury et al., 2002, p.309). O suporte é 642

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fornecido por serviços externos, frequentemente distintos das equipes que organizam as moradias. Nessa abordagem, a moradia é concebida como um lugar para os residentes viverem, não devendo ser utilizada como um setting terapêutico. Os apartamentos e casas são autônomos, não agrupados, e seus residentes recebem suporte segundo suas necessidades ou demandas. Dada sua plasticidade e flexibilidade, as moradias com suporte comunitário têm sido especialmente defendidas como alternativa a todos os modelos anteriores (Nelson, Aubry, Hutchison, 2010; Piat, Sabetti, 2010; Morin, Dorvil, 2001). Nesse universo de possibilidades, faz sentido investigar as preferências dos residentes em relação às mesmas. Em amostra constituída por 315 usuários residentes em moradias com intensa supervisão, Piat et al. (2008) constataram que 44% dos entrevistados preferiam viver em seus próprios apartamentos sem suporte e 15% preferiam apartamentos supervisionados. Segundo a autora (Piat et al., 2008), os achados contrastam com as respostas dadas pelos trabalhadores. Quando se trata de apontar modalidades de moradia para seus clientes, 26% dos trabalhadores preferiram apartamentos supervisionados e mais da metade (52%) apontou moradias tradicionais, como famílias de acolhimento. Esses números parecem indicar que os usuários preferem moradias mais autônomas em relação à rede de serviços e aos profissionais de saúde, enquanto esses últimos se mostram mais conservadores, preferindo abordagens graduais ao longo de uma rede de possibilidades de habitações.

À guisa de conclusão Na pesquisa avaliativa desenvolvida sobre inserção social e habitação dessa clientela, notamos significativa diversidade nas condições e maneiras pelas quais usuários de Caps, considerados casos graves pelas equipes, não inseridos em SRTs, estabelecem suas moradas (Furtado, Nakamura, 2013). Nesse estudo qualitativo e multicêntrico, tivemos a oportunidade de acompanhar pessoas que moram na rua, assim como outras que permanecem alojadas em albergues religiosos com centenas de outros indivíduos, convergindo com estudos quantitativos sobre distúrbios mentais entre usuários de albergue realizados por Lovisi et al. (2002), no Rio de Janeiro. Pudemos acompanhar também usuários que, a partir dos benefícios a que têm direito e de renda proveniente de trabalhos informais, se casam ou estabelecem lares com os quais se dizem satisfeitos. Ou seja, no estudo citado (Furtado, Nakamura, 2013), evidenciamos significativas e diversificadas alternativas de os pacientes graves de Caps equacionarem suas necessidades de moradia. No Brasil da atualidade, os SRTs se tornaram sinônimo de moradias para pessoas com TMG. O que traz dois problemas relevantes: um primeiro, de ordem quantitativa, é que essa visão deixa de fora de políticas de moradia boa parte da crescente clientela composta de usuários graves de Caps sem histórico de internações. O segundo, de ordem qualitativa, é a inexistência de outros tipos – e em maior quantidade – de moradias para distintas clientelas, contemplando suporte flexível e modulado às peculiaridades de cada usuário. Ampliar a clientela atendida, por meio da diversificação de opções e modos de acompanhamento, parece ser estratégia fundamental para o atual estágio da reforma psiquiátrica brasileira, superando os SRTs como único e exclusivo paradigma. Não se podem negligenciar os modos como os milhares de usuários atendidos pelos 1.742 Caps existentes (Brasil, 2012) vêm equacionando suas necessidades de moradia, num contexto de inexistência de apoio sistemático e de políticas públicas destinados a essa questão. Estima-se que 30% dos pacientes de Caps possam ser considerados casos graves, o que equivaleria a aproximadamente cento e vinte mil indivíduos, se tomarmos como base extenso trabalho realizado nos três estados do Sul do país por Pinho e Kantorski (2011). São números expressivos, requerendo iniciativas que podem ser decisivas se considerado o contexto de sensível retração de leitos hospitalares – redução de vinte mil leitos entre 2000 e 2011 – e de efetiva expansão do tratamento centrado na comunidade, de 208 Caps no ano 2000 para 1.742 Caps em 2011, conforme últimos números oficialmente divulgados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde (Brasil, 2012). A estruturação do espaço de habitação, privativo por excelência, requer plasticidade aos intentos de seus moradores e flexibilidade no suporte, de modo a garantir um acompanhamento na acepção primeira da palavra: o de ir atrás – no caso, atrás dos indícios levantados pelos usuários. O resgate COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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histórico de algumas iniciativas de transposição de internos para a comunidade e a análise de tipologias existentes em outros países apontam possibilidades a serem exploradas ou resgatadas em solo nacional nesse sentido. As experiências, nas últimas décadas, de moradias para pessoas com TMG parecem apontar para a necessidade de diversidade de opções. Os estudos mais recentes têm dado ênfase à separação entre o lar, lugar de morar, e os settings terapêuticos e demais locais para o desenvolvimento de reabilitação psicossocial. Tal separação é oriunda da nova perspectiva de constituição das moradias para pessoas com TMG como casas de cidadãos, equivalendo aos mesmos direitos dos demais cidadãos. Nesse caso, o suporte não deve ser estruturado a priori, e que o morador possa ter, como companheiros de morada, não necessariamente outras pessoas com transtornos mentais, mas outras pessoas que o mesmo considere, por algum motivo, significativas para ele.

Agradecimento Esse texto é oriundo de pesquisa financiada pelo Cnpq por meio do edital 2008-4, processo n. 575150/2008.

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Palabras clave: Salud Pública. Evaluación de programas y proyectos de salud. Salud mental. Instituciones de vida asistida.

Recebido em 23/07/12. Aprovado em 08/05/13.

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artigos

Impacto de la visita domiciliaria familiar en el aprendizaje de los estudiantes de medicina en el área de Pediatría Social* Leonor Angélica Galindo Cárdenas1 Miglena Kambourova2 Liliana Zuliani Arango3 María Eugenia Villegas Peña4

GALINDO CÁRDENAS, L.A. et al. Impact of family home visits on medical students’ learning in the field of social pediatrics. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.649-60, jul./set. 2013. This article reports the results from a study conducted among medical students at the University of Antioquia. Its aim was to assess the impact of family home visits that favored the processes of comprehensive training through meaningful learning. This was a qualitative-interpretative case study with systematization, using the following instruments: interviews, surveys, focal groups, document analysis and participant observation (2006-2011). The results showed that when medical consultations were complemented with family home visits, students became sensitized, which increased their motivation and activated their willingness to learn meaningfully. Additionally, it was demonstrated that family home visits presented links with an active didactic strategy that when implemented intentionally, had an impact on students’ humanist and social profile as future healthcare professionals. Application of this strategy is important for teaching social pediatrics and general medicine.

Este artículo reporta resultados de una investigación realizada con estudiantes de pregrado de Medicina de la Universidad de Antioquia para evaluar el impacto de la visita domiciliaria familiar la cual favorece los procesos de formación integral a partir de aprendizajes significativos. La investigación fue cualitativa-interpretativa, estudio de caso, de sistematización y con instrumentos: entrevistas, encuestas, grupos focales, análisis de documentos, observación participante (2006-2011). Los hallazgos demostraron que cuando la consulta medica se complementa con la visita domiciliaria familiar, los estudiantes se sensibilizan, se motivan más y se activa su predisposición de aprender significativamente. Además se evidenció que la visita domiciliaria familiar tiene eslabones de estrategia didáctica activa que al trabajarla intencionadamente impacta el perfil humanístico-social de los estudiantes como futuros profesionales del área de salud. Su aplicación es pertinente para la enseñanza de la pediatría social y de la medicina general.

Keywords: Home visits. Meaningful learning. Didactic strategy. Medical education.

Palabras clave: Visita domiciliaria. Aprendizaje significativo. Estrategia didáctica. Educación médica.

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* Los estudiantes se están formando como médicos generales y dentro del plan de estudios se contempla un área de Niñez en el cual se imparten contenidos de Pediatría Social y allí se aplica la estrategia didáctica de Visita Domiciliaria Familiar que se desarrolla dentro del Departamento de Pediatría y Puericultura de la Faculta de Medicina de la Universidad de Antioquia. 1,2 Departamento de Educación Médica, Facultad de Medicina, Universidad de Antioquia. Carrera 51 D Nº 62-29, Bloque 32, Área de la Salud. Medellín, Colombia. 219 60 88. leoangelicag@gmail.com 3,4 Departamento de Pediatría y Puericultura, Facultad de Medicina, Universidad de Antioquia.

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Introducción La salud ha sido trabajada desde diferentes vertientes, la más utilizada es la biológica, centrada en las causas que producen la enfermedad; esto a llevado a una crisis epistemológica, teórica y metodológica en este campo, es quizá una falta de capacidad de captar la complejidad de los fenómenos que constituyen la tríada Salud–Enfermedad–Sociedad. La Universidad de Antioquia declara como parte de sus principios rectores la equidad, la igualdad y la responsabilidad social, aspectos que se materializan en el currículo de la Facultad de Medicina con el abordaje del objeto de estudio salud-enfermedad de manera integral, lo biológico y lo social. En el área de Pediatría Social se ha seguido el enfoque complejo que se aborda desde diversas miradas y conduce al conocimiento de la realidad a partir de los procesos naturales, sociales e históricos. Este sentido cultural, de construcción subjetiva y de validación de las experiencias como referentes que influyen de manera contundente en la calidad de vida de la niñez y su familia, permite articular lo teórico con lo práctico, lo individual con lo colectivo y lo cualitativo con lo cuantitativo (García, 2006; Verneaux, 1999). El currículo de la Facultad de Medicina de la Universidad de Antioquia está inspirado en principios pedagógicos de formación integral y la investigación formativa, que desde lo didáctico se traducen en la aplicación de estrategias activas basadas en la solución de problemas simulados o reales, el estudio de casos, los proyectos de aula, la visita domiciliaria familiar en donde el estudiante debe elaborar hipótesis, consultar fuentes, verificarlas, socializar hallazgos, ser activo en la construcción de su conocimiento en la relación de la teoría con la práctica, lo cual favorece la transferencia de los aprendizajes. Este enfoque educativo se centra en el estudiante con sus intereses y necesidades de formación, que desde la mediación pedagógica se toman como punto de partida para enlazar la nueva información de forma significativa y de esta manera, activar cambios en la estructura cognitiva del sujeto que aprende. (Ausubel, 1980). En la medida en que el estudiante avanza en el plan de estudio y logra transferir los conocimientos a las situaciones problémicas, como son las visitas domiciliarias familiares, se eleva su capacidad de aprender a aprender, se despierta el espíritu investigativo y crítico al comparar teoría con realidad, se desarrollan sus capacidades comunicativas, se sensibiliza con su compromiso social, se crean condiciones para aportar desde la subjetividad a las múltiples miradas de una misma realidad, lo cual favorece la intersubjetividad. De este modo, la visita domiciliaria familiar cobra sentido en la formación médica como uno de los escenarios de aprendizaje significativo y se convierte en una estrategia didáctica para el abordaje de la medicina desde un enfoque biopsicosocial. Esta experiencia que se realiza en el área de Pediatría Social surge como respuesta a la necesidad de analizar el microcontexto en la evaluación de los niños, dado que con el examen físico y el interrogatorio en la consulta no se logra percibir el contexto social del paciente (llamado aquí el ser en crianza) y su familia. De aquí la importancia de acudir a la visita, como un complemento a la historia clínica aproximándose a una intervención integral en el proceso saludenfermedad y a su vez, como una posibilidad de formación del estudiante. La integración de la consulta con la visita domiciliaria familiar crea condiciones para adquirir información adicional sobre el ser en crianza, lo que a su vez permite prestarle una atención más exhaustiva, establecer una relación más cercana entre él y el médico, tener una participación más activa de la familia en la intervención. De esta manera la visita domiciliaria familiar, como estrategia didáctica, posibilita el conocimiento de la realidad en la que vive la familia de los niños que acuden a las consultas y se inscriben voluntariamente al Programa de Comunidad y Atención Integral de la niñez de la Sección de Pediatría Social, del Departamento de Pediatría y Puericultura de la Facultad de Medicina de la Universidad de Antioquia. Las familias que ingresan al programa son de diferentes culturas, etnias y estratos, ellas no son discriminadas por ninguna razón. Los profesores preparan a los estudiantes antes de la visita dialogando con ellos sobre sus imaginarios, se analizan los datos relevantes de la historia clínica, se describe el contexto geográfico, social y cultural del sitio y se define el plan de la visita. Durante la visita domiciliaria familiar los estudiantes son acompañados por un grupo interdisciplinario en el que participan médico pediatra, médico neuropsicólogo, psicólogo, auxiliara de enfermería, 650

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pedagoga especial y trabajadora social con énfasis en familia. El equipo de salud es permanente para el programa de Comunidad y Atención Integral de la niñez. Los estudiantes durante el sexto semestre de la carrera de medicina, al rotar por el área de Pediatría Social participan en la experiencia de la visita domiciliaria familiar, como una vivencia formativa. Aunque cada estudiante visita una sola familia en el semestre, esta estrategia tiene un impacto significativo en su formación porque el tiempo de preparación y retroalimentación de la experiencia se hace durante todo el semestre, buscando el máximo aprovechamiento, pero sin tener una responsabilidad directa con la familia, sino corresponsabilidad como parte del equipo de salud. Al analizar el contexto familiar e identificar las fortalezas y necesidades de la familia frente a la situación de salud-enfermedad del niño, se diseña un plan de intervención que es responsabilidad de cada grupo de estudiantes con su docente, para ser desarrollado por el equipo de salud mediante el seguimiento en las interconsultas. Es de resaltar que la intervención con las familias se focaliza en el apoyo para el niño, por ello no hay posibilidad de hacer un acompañamiento a otros miembros y situaciones de la familia, pero si se ofrece orientación para la búsqueda de ayudas de otras instituciones, si el caso lo amerita. Esta experiencia deja en algunos estudiantes sentimientos y emociones encontradas como frustración, impotencia, ira, satisfacción, motivación, interés, los cuales se expresan y socializan en un espacio de aula con la mediación del docente para conciliarlos con la realidad y buscar el aporte a la transformación social desde su función como ciudadanos y futuros médicos. Esta investigación de corte cualitativo respondió a la pregunta ¿Es la visita domiciliaria familiar una estrategia didáctica que permite comprender los procesos de salud-enfermedad desde un funcionamiento biosicosocial y favorece la formación integral de los estudiantes? Su objetivo principal era evaluar el impacto de la experiencia visita domiciliaria familiar. Con el fin de validar la pertinencia de la investigación y explorar los antecedentes en el objeto de estudio se hizo una revisión de literatura en algunas bases de datos como OVID, OPAC, SCIELO, EBRARY, PUDMED, utilizando variados descriptores y sus combinaciones. De esta búsqueda no se encontraron estudios específicos que muestren que la visita domiciliaria familiar pueda ser una estrategia eficaz para la formación de los estudiantes de medicina en la realización de diagnósticos integrales del niño y su familia. No obstante se hallaron algunas experiencias de visitas domiciliarias con otro enfoque. Una de las investigaciones se relaciona con las visitas domiciliarias a mujeres embarazadas con el fin de prevenir la mortalidad neonatal (Kirkwood et al., 2010). Otros estudios investigativos concluyen que a través de visitas domiciliarias es factible la realización de intervenciones tempranas de promoción de hábitos saludables de alimentación para prevenir la obesidad en niños, así como la evaluación detallada del niño, principalmente entre aquellos que estén en riesgo de abuso o negligencia por parte de sus cuidadores (Wen et al., 2009; Vásquez, Pitta, 2006). Dichas visitas sin embargo, son realizadas por personal voluntario entrenado, o trabajadores del área de la salud sin presencia de estudiantes de medicina en formación. En Colombia se constató un estudio investigativo llevado a cabo en la Facultad de Odontología de la Universidad Santiago de Cali (Pardo, Pardo, 2012), en el cual se explora la vista domiciliaria como una estrategia educativa para identificar y mejorar factores de riesgo capaces de producir enfermedad en la práctica comunitaria. En la Universidad de Antioquia, en la Facultad de Medicina, desde el 2004 se realiza la visita domiciliaria familiar en la enseñanza de la Pediatría Social con estudiantes del pregrado de medicina de sexto semestre, pero a pesar de su evidente valor formativo no se había sistematizado. Otras experiencias realizadas por la Universidad de San Martín, están abordando la visita domiciliaria como aporte a la atención en el cuidado del paciente, pero aún no se ha investigado el impacto de esta estrategia. En síntesis, se puede afirmar que aunque existen investigaciones que demuestran la importancia de la visita domiciliaria familiar para apoyar la prevención, promoción, atención y rehabilitación de los pacientes de manera más integral, no se encontraron estudios que asocien la estrategia como incidencia para el aprendizaje significativo y para la formación integral de los estudiantes de medicina. En este sentido, esta investigación puede aportar al campo de la educación médica al ofrecer una estrategia didáctica activa que genera condiciones para un aprendizaje más significativo, cuyo impacto se refleja 651


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en un perfil humanístico y social de los estudiantes y futuros profesionales del área de la salud. La aplicación de la estrategia didáctica es pertinente no solo para la enseñanza en el área de pediatría social, sino para la enseñanza general de la medicina.

Materiales y métodos La investigación fue cualitativa porque se “centra en la individualidad, como una conquista creativa, discursivamente estructurada, históricamente contextualizada y socialmente producida, reproducida y transmitida” (Galeano, 2004, p.69), donde se evalúa el saber que se construye desde la singularidad, siendo ésta una forma de acercarse y descubrir el conocimiento social. Ésta es tipo estudio de caso el cual fue el grupo de estudiantes de Pediatría Social desde el semestre 2006-II hasta el 2011-II, del pregrado de medicina de la Universidad de Antioquia. Se analizaron las percepciones de los estudiantes y se describió la realidad tal como la experimentan ellos, además permitió construcciones que buscan la mirada holística (Martínez, 2006; Vera, s.f.). Se utilizaron instrumentos de recolección de datos como entrevistas, encuestas, grupos focales de estudiantes, grupo focal de profesores y análisis de los informes de evaluación que la Sección de Pediatría Social hace a los estudiantes participantes y observación participante en algunas de las visitas domiciliarias familiares. Los instrumentos de recolección se sometieron a juicio de expertos y de personas poseedoras de un saber relacionado con el objeto de estudio y con el enfoque investigativo. El proceso de selección de los participantes se hizo en forma aleatoria, teniendo en cuenta que fueran estudiantes del pregrado de medicina y que participaron en la visita domiciliaria familiar en el VI semestre. Para cumplir con los aspectos éticos se les informó acerca de los objetivos y el alcance de la investigación, para lo cual se formalizó el consentimiento informado conforme a la Resolución 008430 de 1993 del Ministerio de Salud. La recolección de la información y el análisis de los datos se fueron dando simultáneamente. Se hizo una codificación preliminar, la cual se construyó con las lecturas de los informes de evaluación de los estudiantes, luego una segunda codificación con las entrevistas, encuestas y grupos focales haciendo una triangulación de la información con las categorías correspondientes. Este análisis se iba haciendo durante todo el proceso de recolección de la información, puesto que “el análisis de los datos es un proceso continuo en la investigación cualitativa, la recolección y el análisis de los datos van de la mano” (Taylor, Bogdan, 1998, p.153). El estudio de caso confirmó la validez mediante la constatación de la información con los participantes, para mostrar códigos, categorías y redes de conexión. A lo largo del estudio se desarrollaron procedimientos como son el muestreo teórico, el análisis, la triangulación y el juicio de expertos. El resultado final de este proceso de categorización de los datos y su análisis posterior, se refleja en la descripción de los hallazgos y en las conclusiones.

Resultados A partir del análisis de los documentos sistematizados, de las entrevistas con los participantes, de los grupos focales y de las observaciones realizadas se pudo encontrar los siguientes resultados: En el análisis de las entrevistas a estudiantes, se puede interpretar que ellos perciben como la visita les permite ir más allá de la institucionalidad de la salud, les amplia la mirada biológica, hacía una más global, corroborando la información que en algunas ocasiones pueden ser comprobadas o confrontados con la realidad, cambiando incluso a veces los diagnósticos, por la aparición de elementos nuevos como los psicosociales, los estilos de vida, la realidad misma de la vida y la cotidianidad de las familias, les da una objetividad mayor y un enfoque diferente, complementario, aclarador y reevaluador para hacer un mejor diagnóstico y orientar la intervención a la realidad social de las familias. Así lo confirman estos estudiantes:

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“reconocer la importancia de que el campo del hacer medico va mas allá de las instituciones de salud”. (encuesta a estudiante) “En la práctica personal mía hubo mucha variación en el momento de la consulta del niño y después en la visita domiciliaria además nos ayuda a planear un manejo más acorde con la realidad”. (entrevista a estudiante) “El paciente no es solo clínico sino también es su contexto, unas condiciones biopsicosociales. Y de saber que hay más estrategias a parte de la misma consulta médica que pueden servir para atender mejor al paciente”. (entrevista a estudiante)

Otro resultado en relación con el aporte de esta bina (consulta-visita domiciliaria familiar) para el aprendizaje significativo, tanto estudiantes como profesores confirman la importancia de trabajar intencionalmente en los dos espacios de intervención médica, la consulta que al ser previa permite un primer acercamiento al paciente y su contexto, y la vista domiciliaria familiar que amplia el diagnóstico, y profundiza en los factores protectores y de riesgo que tienen los niños en consulta, desde su parte médica, así como desde su parte social y familiar. En palabras de los estudiantes y profesores: “…la consulta nos daba una probabilidad de lo que íbamos a buscar y ya con esas ideas confirmar lo que encontrábamos y hacer un diagnóstico de la funcionalidad en ese entorno”. (grupo focal estudiantes) “…Identificación de factores protectores y de riesgo, no evidenciados en la consulta o presentados de otra manera en la consulta. Es una herramienta muy buena para el diagnóstico y para el apoyo más adecuado para el paciente”. (grupo focal estudiantes) “…la consulta previa es necesaria para conocer la familia, la visita para ahondar en todos esos factores de riesgo que tenían los niños, también desde su parte médica, desde su parte social”. (entrevista a estudiante) “La presencia del profesor o docente permite reconocer algunos elementos que salen en la conversación gestual o verbal que a los estudiantes por su poca práctica se les escapa. Permite la retroalimentación y confrontación teoría–práctica” (grupo focal profesores)

Un aspecto relacionado con los saberes previos, creencias, prejuicios y expectativas de los estudiantes se convierte en un elemento esencial a la hora de confrontarlos con la realidad. Los profesores hicieron mención a la importancia de explorar los presaberes y retomarlos en la realimentación para valorarlos en la percepción final y en el impacto para el aprendizaje significativo. En este sentido los profesores afirmaron que: “La experiencia de combinar la consulta con la visita domiciliaria les permite a los estudiantes confrontar su imaginario con la realidad; ampliar la visión de la realidad... De otra parte, se evidencia que los hallazgos de la historia clínica que pueden ser dudosos para el médico, pero la consulta da una idea de lo que se va a buscar y ya con esas ideas confirmar lo que se encuentra y hacer un diagnóstico de la funcionalidad en ese contexto”. (grupo focal profesores)

Y por su parte, los estudiantes afirman que comprueban “…que cuando vamos a la visita domiciliaria descartamos o confirmamos, pero muchas veces no es lo mismo que relatan o encontramos cosas a parte que quizá se les olvidó mencionar”. (grupo focal estudiantes)

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“Esta información me dio la posibilidad de hacerme una idea general de lo que estaba ocurriendo con mi paciente, pero fue realmente la información obtenida durante la visita domiciliaria la que me permitió aclarar el diagnóstico”. (encuesta a estudiante)

Otro aspecto que se observó y analizó en las entrevistas es el cambio de la relación médico-familiaser en crianza que se da luego de la visita domiciliaria familiar. Para los estudiantes la consulta mejora la comunicación y permite hacer más efectiva la visita, pero cuando se llega allá, se observa un cambio en la actitud de las familias, las madres y los seres en crianza con respecto al profesional de la salud, fortaleciendo los lazos con el niño, tranquilizando a la familia, reforzando pautas de crianza y favoreciendo la participación y el trabajo en equipo con la familia. “Cuando asistimos a la visita domiciliaria, el niño se sentía mucho mas rodeado de su ambiente familiar y no se veía como extraño, porque ellos siempre tienden a ser más retraídos y lloran y se ponen mucho más irritables, en cambio en su entorno familiar se sienten mucho más amenos, mucho más confiados, se puede examinar mejor”. (entrevista a estudiante) “La mamá se comportó totalmente distinto en la consulta que en la casa, y en la casa notamos otras cositas que ella estaba tratando de hacer para que el niño progresara”. (entrevista a estudiante)

En relación con la familia del paciente y más específicamente con los padres, se evidenció en las visitas domiciliarias que los comportamientos y las actitudes de estos son más espontáneos y abiertos, tal como lo expresaron los estudiantes: “la naturalidad con que se establece la relación permite que ellos actúen más tranquilos, más en confianza y permiten conocer otros aspectos que no salen en el ambiente hospitalario”. (entrevista a estudiante)

Quizás se pueda deducir que esto se debe a que el ambiente de la casa permite mayor seguridad a la familia para entablar una conversación, allí ellos se sienten en su espacio, en lo propio, mientras que en el consultorio se percibe el espacio frío, y predispone a la tensión de abrirse a la comunicación con alguien extraño, lejano. Dejar que aflore lo íntimo, lo privado denota prevención en los padres y en oportunidades se muestra la situación desdibujada de la realidad como mecanismo de protección para evitar la crítica del profesional médico hacia este padre que puede que no esté haciendo lo correcto en pautas de crianza y esto incida en la salud del paciente. “La visita genera sentimientos de confianza y abre espacios para compartir intimidades. Como que se sentían muy a gusto... se sentían como tan en confianza con nosotros”. (grupo focal estudiantes) “La familia se compenetra con uno y lo hacen como parte del núcleo, es como la más grande satisfacción. Uno aprende a tratar mejor las personas y a sensibilizarse con ellas. También a enfrentar situaciones sociales reales”. (encuesta a estudiante)

Otros padres tienen en su imaginario proteger su fuero, lo hacen pero no con la intención de afectar negativamente a su hijo. Esto se puede dar por falta de un diálogo asertivo del profesional para dar apertura a una comunicación más tranquila y abierta, asumiendo que la mayoría de los padres desean siempre lo mejor para sus hijos y en este caso, se muestra la necesidad de continuar apoyando el aspecto educativo de las familias en pautas de crianzas favorables para un sano desarrollo integral de los niños. Esta situación puede influenciar la historia clínica y la valoración diagnóstica que se levante en la consulta, aspecto que se puede valorar de manera más precisa, al menos indagar más de cerca sobre la 654

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problemática del contexto del paciente mediante la visita domiciliaria familiar. En relación con la comunicación, para los estudiantes de la Facultad de Medicina de la Universidad de Antioquia por su perfil profesional es esencial desarrollar esta competencia y exigir desde la enseñanza la creación de espacios formativos que la potencien; se afirma que el primer momento de la comunicación, el de la comprensión, es de apertura a otras formas de vida; en él se basa la tolerancia y el pluralismo razonable; él constituye el reconocimiento del derecho a la diferencia. Hay que perder el miedo a comprender a otros (Hoyos, 1995). En las familias visitadas para este estudio, se dio una constante en su situación socio económico vulnerable, algunos más que otros carecen de recursos básicos para generar un ambiente integral sano, no obstante a pesar de esta variable se percibe en las familias el deseo de apoyar a su hijo e ir más allá de sus posibilidades. Aquí el estudiante refuerza un aspecto agregado a su función médica, al poder contribuir con orientaciones dirigidas a la búsqueda de mejoramiento con ayuda de las estancias gubernamentales que apoyan por ejemplo en alimentación, en salud, en vivienda y que por desconocimiento de los padres no han acudido a ellas. En muchas ocasiones, el equipo de profesores y estudiantes ofrecen orientación en este sentido, apoyando a las familias y a su vez, favoreciendo la mirada integral de la problemática salud-enfermedad en los procesos de formación integral de los estudiantes: “Primero, es el único momento en la carrera que tienen [los estudiantes] esta oportunidad de vivir esto, la experiencia de la visita domiciliaria les permite ir más allá de las pastillitas que le quitan el dolor o el examen que les hacen. Entonces les hace ver la posibilidad de un diagnóstico integral, ellos tienen que buscar la respuesta social que da el municipio o el departamento a eso, y así amplían esa visión, no se las tienen que saber todas, pero ya entienden que hay unos derechos, que hay unas posibilidades…, que entes institucionales tienen unos programas que no están accediendo y que los están perdiendo y son derechos, entonces el estudiante se obliga el mismo a darles esa respuesta a la familia…”. (grupo focal profesores)

Vale mencionar que todas las familias visitadas han mostrado apertura hacia la visita, la han recibido con agrado y con expectativas por saber hasta dónde se llegaría. Esta aceptación se muestra con gestos de gratitud, de generosidad y aprecio, aspectos que influyen en el establecimiento del vínculo afectivo entre paciente, familia y profesionales médicos. Este vínculo genera por una parte, mayor credibilidad y aceptación a las recomendaciones que pueda hacer el médico a la familia y se refleja en una mejor intervención de éstas alrededor del paciente para lograr su estabilidad y mejora. “Se establece un vínculo de cercanía de otra dimensión, que permite colaboración mutua entre todas las partes”. (grupo focal estudiantes)

Y por otra parte, se mejoran los vínculos del médico con el ser en crianza que está atendiendo y con todos los integrantes de la familia, ya que humaniza al profesional de la salud, lo ve más cercano, más exequible, le permite atenderlo y conocerlo en otro espacio de lugar, además de conocer las redes de apoyo. “Tal vez el mejor momento de la visita fue cuando le explicamos a toda la familia (la mayor parte de ésta no asiste a las consultas) la enfermedad de la paciente, a que se debía, como debían ser sus cuidados y evidenciar que todos estaban muy interesados en saber qué hacer para mejorar la situación tanto médica como social de la niña. Eso demostró lo importante que era para ellos y como todos estaban dispuestos a brindar su apoyo para sacarla adelante”. (encuesta a estudiante)

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Un resultado relacionado con el aprendizaje significativo en la formación de los profesionales de la salud es la relevancia del trabajo en equipo, que se evidencia con la participación de la familia en la elaboración de un plan de intervención que mejore la calidad de vida de ella y del ser en crianza. Después de la consulta y la visita domiciliaria, se valora más el diálogo argumentado de las partes, el análisis integral de la situación, las lecciones aprendidas. Así lo expresaron algunos participantes: “Entre todos dialogábamos y llegábamos a un acuerdo de realmente cómo era la situación, era como el diálogo de todos allá”. (grupo focal estudiantes) “La visita les permite a los estudiantes transcender el libro y la teoría”. (grupo focal profesores)

En relación con las competencias de formación, aquellas genéricas que favorecen una mejor intervención del profesional en el mundo de la vida y en sus escenarios de actuación específicos, se puede constatar en la interpretación de resultados, el aporte de la visita domiciliaria familiar como estrategia didáctica activa que privilegia el desarrollo de valores y actitudes como la responsabilidad, el compromiso social, la ética, el trabajo en equipo, el aprender a aprender y la comunicación. Los profesores participantes afirman que la mirada puericultora les permite a los estudiantes identificar metas del desarrollo de la familia, les despierta sentimientos de empatía de los profesionales de la salud hacia las familias y los seres en crianza, mejora la relación médico paciente y da un nuevo significado a su quehacer como ser humano y como médico integral. “Aprendí la gran responsabilidad que se tiene como médico tratante no solo en tiempo inmediato, sino a futuro”. (encuesta a estudiante) “Las visitas domiciliarias son una vivencia que despierta la sensibilidad humana, que nos permite ver más allá de lo que vemos en un consultorio médico, pues nos proporciona la capacidad de percatarnos, que nuestro paciente es un ser complejo, rodeado de determinadas circunstancias sociales, económicas, familiares, psicológicas, ambientales…”. (encuesta a estudiante) “Me impactó la forma y capacidad de resiliencia familiar, aprendí elementos para ayudar a otras familias a enfrentar situaciones difíciles de la dinámica familiar”. (encuesta a profesor)

Discusión Una vez interpretados los resultados, se aborda la visita domiciliaria familiar desde la perspectiva de una estrategia didáctica activa que potencia aprendizajes significativos y aporta a la formación integral del estudiante y futuro profesional de la medicina. El concepto de aprendizaje significativo desde la perspectiva Ausbelina que es la referencia base de esta investigación, se entiende como aquel en el que la nueva información adquiere significados para el aprendiz, por interacción con alguna información relevante ya existente en su estructura cognoscitiva, con un cierto grado de estabilidad, claridad, organización y diferenciación (Ausubel, 1980). Para Ander-Egg (1995, p.71) la visita domiciliaria es “…aquella visita que realiza el trabajador social a un hogar tratando de tomar contacto directo con la persona y/o su familia, en el lugar donde vive, con fines de investigación o tratamiento, ayuda o asesoramiento”. Por otro lado, el Ministerio de Salud de Chile aborda el concepto como una “atención proporcionada en el hogar de un individuo o familia con el objeto de conocer la realidad socio-económica, ambiental y cultural, complementar el diagnóstico, estimular la participación activa de la familia, realizar intervención social con fines de fomento, protección, recuperación y rehabilitación en salud” (Ministerio de Salud, 1993 citado en Cazorla, Fernández, s.f., p.2). 656

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En la enseñanza de la pediatría social y de otras áreas de formación médica, se hace necesario la búsqueda permanente de la relación entre la teoría y la práctica, así como el puente cognitivo que permita articular el mundo social y cultural con el teórico científico. Es precisamente a través de la estrategia didáctica “visita domiciliaria familiar” que se abre un horizonte de sentido para transformar el aula en el consultorio y en la vivienda de los pacientes, y así desde la valoración de estos dos escenarios se anclen aprendizajes significativos, duraderos y transformadores para la formación integral de los estudiantes y futuros médicos. Aspectos como los conocimientos previos de los que alude Ausubel, que se alcanzan en la consulta médica, se ven validados, complementados o modificados durante la visita domiciliaria familiar. Esta confrontación impulsa a los estudiantes hacia la búsqueda de fuentes teóricas y conversatorios con otros profesores médicos de áreas en las cuáles analizan qué se puede mejorar en las condiciones psicofisiológicas de los pacientes y así ganar en herramientas para completar el diagnóstico, el tratamiento y la rehabilitación del paciente. Se evidencian situaciones familiares que se salen de las manos de los estudiantes y de los profesores que acompañan la visita relacionadas con aspectos económicos, sociales, educativos, culturales. No obstante esta mirada integral inevitable, por cuanto se está viviendo la realidad del paciente y la familia, genera en los estudiantes una sensibilización humana que los lleva a ir más allá de su labor y se logra hacer sinergia, para alcanzar a intervenir de manera colaborativa en la búsqueda de alternativas viables para mejorar las condiciones y calidad de vida de su paciente y su familia. El aprendizaje significativo da una connotación humanista, proponiendo que este subyace a la integración constructiva, positiva, entre pensamientos, sentimientos y acciones que conducen al engrandecimiento humano (Novak, 1997). De otra parte, esta estrategia didáctica complementada a partir de la consulta, favorece la ampliación de la mirada del estudiante en formación para identificar y profundizar no solo en el aspecto biológico del paciente, sino también en el social, el cultural y su incidencia en los estilos de vida. Así se amplía el panorama del proceso salud–enfermedad que “es uno de los retos más importantes en la actualidad para la construcción del nuevo paradigma, puesto que sólo desde esta perspectiva es posible redimensionar el quehacer de los trabajadores de la salud tanto en el tratamiento y rehabilitación de los enfermos, como en la promoción de la salud y la prevención de la enfermedad” (Comité de Currículo, 2000, p.29). En este mismo sentido, la estrategia también potencia la megacompetencia del siglo XXI, aprender a aprender, que implica la capacidad de reflexionar en la forma en que se aprende y actuar en consecuencia, autorregulando el propio proceso de aprendizaje mediante el uso de estrategias flexibles y apropiadas que se transfieren y adaptan a nuevas situaciones (Díaz, Hernández, 1999). Esta competencia se evidencia en la visita domiciliaria, en los procesos de autorregulación, de indagación, de búsqueda planificada de fuentes preparatorias para la visita y posterior a ella al averiguar sobre aquellos aspectos nuevos con los que se enfrenta y poder hacer algo intencionado con dicha información. Así los estudiantes en formación confrontan la realidad. De esta manera ellos acuden al conocimiento que tienen de las políticas públicas de salud existentes en el país para aportar a las familias en la legitimación de sus derechos y por otro lado, declaran su sentimiento de impotencia por las situaciones adversas a la aplicación de dicha política en la realidad que les está tocando evidenciar. Esta confrontación les permite desarrollar una visión más crítica en relación con la salud y movilizar intereses para procurar asegurar la equidad y aportar a la transformación de un sistema de salud más humanizante. Los estudiantes dejan de ser entes pasivos y logran un grado de sensibilidad hacia la participación en la búsqueda de estrategias que mejoren las condiciones de vida de la comunidad. La formación integral, va más allá de la capacitación profesional aunque la incluye, es un enfoque o forma de educar. La educación que brinda la universidad es integral en la medida que oriente al estudiante como una totalidad y no lo considere únicamente en su potencial cognoscitivo o su capacidad para el que hacer técnico o profesional. El ámbito de la formación integral es el de una práctica educativa centrada en la persona y orientada a cualificar su socialización, para que el estudiante pueda desarrollar su capacidad de servirse en forma autónoma del potencial de su espíritu, en el marco de la sociedad en que vive y pueda comprometerse con sentido histórico en su transformación. (Orozco Silva, 1999, s.f.)

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Conclusiones Con esta investigación podemos concluir que para el logro del aprendizaje significativo se hace necesario despertar en los estudiantes la sensibilidad hacia al objeto de estudio a partir de situaciones cercanas o propias del mundo de la vida, como es el caso de la vista domiciliaria familiar. El grado de sensibilidad eleva la motivación y con ella se activa la predisposición de aprender significativamente. Los resultados aquí encontrados sirven de referente a otras investigaciones que se pueden desarrollar en este campo y que aporten a la educación médica, sin embargo es necesario profundizar en la incidencia de la visita domiciliaria en la formación de los estudiantes de medicina. Igualmente se puede concluir que en países como Colombia, con situaciones de violencia y grandes problemas socioeconómicos, la aplicación de estrategias didácticas como la visita domiciliaria familiar es influenciada por variables de poco control externo, como la ubicación geográfica de algunas viviendas de familias por un deficiente desarrollo vías y de transporte público, así como la inseguridad de las zonas y la existencia de barreras invisibles por los grupos violentos. Variables que influyen en el trabajo interdisciplinario del equipo de salud, dado que no permiten llegar con facilidad al hogar del ser en crianza (Zuliani et al., 2012). Dificultades de otro orden se presentan con algunos miembros de las familias visitadas al generarse expectativas diversas frente a la visita, algunos creen que van a recibir ayudas en todo sentido por el grupo de profesionales de salud y otros temen que se les juzgue por la falta de conocimientos para el buen desarrollo del ser en crianza. No obstante, en la medida en que se socializan y se alcanzan los consensos entre las partes las tensiones disminuyen y al finalizar la experiencia, las percepciones y sentimientos pueden modificarse por lo enriquecida que resulta la estrategia formativa para todos los participantes. También el grupo de profesionales informa a las familias acerca de la existencia de instituciones que pueden apoyarles en otros aspectos que contribuyan las condiciones de salubridad de la zona.

Colaboradores Los autores han trabajado juntos en todas las etapas de producción del artículo.

Agradecimientos A los estudiantes, a las familias y a los profesores que participaron con sus aportes y enriquecieron el trabajo. A Dariana Pereira por su apoyo desde la monitoria a la investigación. 658

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IMPACTO DE LA VISITA DOMICILIARIA FAMILIAR ...

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GALINDO CÁRDENAS, L.A. et al. Impacto da visita domiciliar familiar na aprendizagem dos alunos de graduação em Medicina e na área de Pediatria Social. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.649-60, jul./set. 2013. Este artigo relata os resultados de uma pesquisa realizada com alunos de graduação em Medicina da Universidade de Antioquia, para avaliar o impacto da visita domiciliar familiar que favorece os processos de formação integral a partir de aprendizagens significativas. A pesquisa foi qualitativa-interpretativa, estudo de caso, de sistematização. Os instrumentos de coleta de dados foram: entrevistas, enquete, grupos focais, análise documental, observação participante (2006-2011). Os resultados mostraram que, quando a consulta médica é complementada com as visitas domiciliares familiares, o aluno torna-se mais consciente, mais motivado, e se ativa sua predisposição para aprender significativamente. Além disso, se evidenciou que a visita domiciliar familiar tem laços de estratégia didática ativa que, ao ser trabalhada intencionadamente, impacta o perfil humanista-social dos estudantes como futuros profissionais da área da saúde. Sua aplicação é relevante para o ensino de pediatria social e médica em geral.

Palavras-chave: Visita domiciliar. Aprendizagem significativa. Estratégia didática. Educação médica. Recebido em 04/09/12. Aprovado em 26/06/13.

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Marcas no corpo, cansaço e experiência: nuances do envelhecer como professor de Educação Física

Sílvia Maria Agatti Lüdorf1 Francisco Javier Guerrero Ortega2

LÜDORF, S.M.A.; ORTEGA, F.J.G. Marks on the body, fatigue and experience: nuances of aging as a physical education teacher. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.661-75, jul./set. 2013. This study aimed to gain comprehension of and interpret the meanings that physical education teachers attribute to body and aging, and to investigate how these representations could influence their professional practice. This qualitative study was conducted among 43 teachers at schools and gyms with around 30 years of experience since graduating. The data were evaluated using content analysis. The teachers’ aging gave them maturity, experience and confidence in their work. However, the physical body seemed to be separated from the subject, which led to contradictory feelings about aging. In the gyms, there was a certain adjustment to the context of visibility, since the potential of the body and the marks of health imprinted on it are highly valued. Wear and fatigue were particularly felt by the teachers working in schools.

Keywords: Body. Aging. Physical Education. Health. Profession.

Este trabalho objetivou compreender e interpretar os significados que os professores de Educação Física atribuem ao corpo e envelhecimento, e investigar como tais representações influenciariam sua prática profissional. Participaram da investigação, de natureza qualitativa, 43 professores de escolas e academias de ginástica com cerca de trinta anos de formação. Os dados foram tratados mediante análise de conteúdo. O envelhecimento do professor propicia maturidade, experiência e confiança no trabalho, mas o corpo físico parece desprender-se do sujeito, repercutindo em sentimentos contraditórios relacionados ao envelhecimento. Nas academias, há certo ajuste ao contexto da visibilidade, pois são valorizadas as potencialidades e as marcas de saúde impressas no corpo. Já o desgaste e o cansaço são particularmente sentidos pelos professores atuantes em escola.

Palavras-chave: Corpo. Envelhecimento. Educação Física. Saúde. Profissão.

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1 Departamento de Ginástica, Escola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Carlos Chagas Filho, 540, Cidade Universitária. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21941-599. sagatti@ufrj.br 2 Departamento de Ciências Humanas em Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Introdução Os profissionais da área da saúde herdaram os modos de conceber (e lidar com) o corpo próprios do desenvolvimento da medicina moderna. A compreensão do corpo experienciado na terceira pessoa, fragmentado e privado de sua dimensão subjetiva, ainda influencia o campo da intervenção em saúde (Ortega, 2008). Essa concepção de corpo objetificado, em grande medida, permeia também a Educação Física, área que transita entre o campo da educação e o da saúde (Damico, 2011). A título ilustrativo, a compreensão do corpo como uma máquina, ou, ainda, da saúde, restrita ao seu componente biológico, aparecem de modo marcante em cursos de graduação da área (Silva, Silva, Lüdorf, 2011; Hunger et al., 2009; Lüdorf, 2009). Contudo, esta visão de caráter tecnicista desconsidera o imaginário, o simbólico, a história, ou seja, a dimensão cultural e, consequentemente, os diferentes sentidos conferidos ao corpo e à saúde (Le Breton, 2011; Langdon, Wiik, 2010). O professor3 de Educação Física, foco da presente pesquisa, representa o papel de interventor nas/das práticas corporais, com finalidades variadas, dentre as principais: saúde e educação. Além de ter uma atuação diretamente ligada ao corpo e ao movimento, utiliza-se, em função da atividade que desempenhe, de seu próprio corpo como instrumento de mediação destas práticas. Como exemplo, em academias de ginástica, observa-se que o corpo é considerado quase como um “cartão de visitas vivo” (Le Breton, 2006, p.78), uma vez que o professor normalmente é visto como um modelo a ser seguido pelo aluno (Freitas et al., 2011). Além disso, professores de Educação Física demonstram preocupação com aspectos como desempenho e funcionalidade de seu próprio corpo, por relatarem influenciar suas práticas profissionais (Silva, Lüdorf, 2010; Lüdorf, 2009). Uma vez que o trato e os usos do corpo parecem ser caros ao professor de Educação Física, cabe indagar como seria lidar com essas questões ao longo da carreira, ou em decorrência do processo de envelhecimento. É fundamental esclarecer que o processo de envelhecimento implica uma série de transformações no corpo, não apenas de caráter físico-biológico, mas, sobretudo, sociais. Desta forma, as representações de envelhecimento, assim como as de corpo e saúde, são social e culturalmente construídas (Le Breton, 2011; Minayo, Coimbra Jr., 2004), e, sob este prisma, serão aqui analisadas. O envelhecimento deve ser visto, nesse sentido, em uma perspectiva relacional, pois se trata de uma experiência subjetiva e intersubjetiva, que depende do contexto, da época e de vários aspectos, dentre eles, do trabalho (Debert, 2007; Stano, 2001). Em revisão de literatura4 sobre o professor de Educação Física e seu processo de envelhecimento, foram encontrados poucos estudos que abordam a temática. No âmbito das academias de ginástica, Coelho Filho (2000/1) identificou dificuldade de manutenção dos professores à medida que envelhecem, enquanto Palma et al. (2007) detectaram certa ‘aposentadoria precoce’, sobretudo em virtude de elevadas cargas horárias e de esforço físico. Quanto ao ambiente escolar, Faria Júnior e Faria (1999) se referem à perda dos níveis de performance física e desportiva em decorrência da idade, o que poderia ter implicações na elaboração de aulas. Silva e Lüdorf (2010) identificaram que a maturidade gera credibilidade e confiança no trabalho desenvolvido, além de implicações peculiares à profissão, como o desgaste físico, dentre outros fatores. Observa-se que são raras as produções que discutem o envelhecimento do professor de Educação Física sob a ótica do próprio ator social, buscando conhecer os significados do envelhecimento à luz da realidade vivida e do contexto profissional e social no qual está inserido. 662

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Com a regulamentação da profissão de Educação Física, a partir da promulgação da Lei nº 9.696/98, que trata da criação do Conselho Federal e Regional de Educação Física (CONFEF e CREF), passou-se a utilizar o termo “profissional de Educação Física” para os egressos do curso de Bacharelado, formados para atuar nos ambientes considerados não formais (academias, clubes etc). O curso de Licenciatura continuaria a formar os professores que atuariam junto à Educação Básica. Entretanto, neste trabalho, considerandose que a dimensão de intervenção, independente do ambiente, é de natureza pedagógica, optamos por utilizar o termo “professor de Educação Física”.

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A revisão de literatura foi realizada nas bases de dados: LILACs, Scielo, Medline, Eric e Scopus, bem como em periódicos de Educação Física não indexados.

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Desvelar as estratégias, sentimentos e perspectivas em relação ao envelhecer permitiria analisar as particularidades e universalidades referentes a este grupo (Debert, 2007). Espera-se, também, que possa contribuir para ampliar a compreensão e o conhecimento sobre as nuances e especificidades não apenas deste, como, eventualmente, de outros profissionais que atuem nos campos da saúde e da educação. O objetivo deste trabalho, em um primeiro momento, é compreender e interpretar os significados que os professores de Educação Física atribuem ao corpo e ao envelhecimento. Além disso, investigar em que medida tais representações influenciariam sua prática profissional, mais especificamente, os trabalhos desenvolvidos em academias de ginástica e em escolas.

Procedimentos metodológicos

Ainda que alguns dos professores desempenhassem várias atividades, se reconheciam em uma atividade principal ou possuíam maior tempo de atuação em dado âmbito. 5

6 Ver em: www.pesquisanespefe.com.br

As questões estão disponíveis no sítio mencionado na nota anterior, referente ao ambiente virtual do questionário. 7

A presente investigação é de natureza qualitativa, pois visou explorar o espectro de opiniões e os diferentes significados sobre determinado assunto (Gaskell, 2003), bem como fornecer possíveis interpretações. Para Turato (2003), buscar o significado de fatos, sentimentos ou assuntos é tratar de representações que dão molde à vida das pessoas e que são compartilhadas culturalmente por determinado grupo social, neste caso, os professores de Educação Física. A seleção dos sujeitos privilegiou alguns critérios: o professor deveria ter se formado em Educação Física, no mínimo, há 25 anos; estar atuando profissionalmente; ser oriundo de diferentes âmbitos de trabalho, sobretudo, de academias de ginástica e de escola. O primeiro critério foi adotado em função do alerta de Debert (2004) sobre a impropriedade de se categorizarem os sujeitos em função da faixa etária. Professores que atuam há mais de 25 anos na carreira docente estariam em fases chamadas de serenidade e desinvestimento (Huberman, 2007), próximos da aposentadoria, um marco no processo de envelhecimento ligado à legitimação de direitos na sociedade (Debert, 2007). Quanto ao âmbito de atuação5, pretendeu-se compreender a variedade de representações das pessoas no seu mundo vivencial (Bauer, Aarts, 2003). Tendo em vista que a combinação de técnicas visa imprimir rigor, amplitude e profundidade à investigação (Denzin, Lincoln, 2006), foram utilizadas entrevistas qualitativas e questionários para a coleta de dados, aliados a notas em um diário de campo. A entrevista qualitativa, conforme Gaskell (2003), fornece dados para a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. Os relatos das trajetórias profissionais permitiram compreender como as representações expressas nos discursos foram construídas ao longo da vida e se relacionariam com a atuação na profissão. Foi também desenvolvido um questionário, disponibilizado em um ambiente virtual6 e divulgado em listas de discussão ligadas à Educação Física. Com essa estratégia metodológica, buscou-se propiciar privacidade, anonimato e autonomia de resposta (Flicker, Haans, Skinner, 2004). Se, por um lado, as entrevistas possibilitam a riqueza da interação, o aprofundamento de determinadas questões e a observação das reações, comportamentos e contexto do entrevistado (registrados no diário de campo), os questionários permitem respostas diretas, objetivas e, muitas vezes, sem pudores, em virtude de não haver exposição ou identificação de quem o responde. O roteiro de questões7 foi previamente validado por especialistas da área e aplicado em fase exploratória (Silva, Lüdorf, 2010). Além de dados como idade, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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gênero, local(is) de atuação e informações sobre a graduação e eventuais cursos de pós-graduação, as questões versavam basicamente sobre: a) Trajetória como professor de Educação Física; b) Prática pedagógica no início da carreira e na atualidade; c) Envelhecimento e carreira; d) Corpo e envelhecimento. Contudo, nas interações pessoais, em raras ocasiões foi utilizado em sua totalidade. Ao relatarem seu percurso profissional, por vezes, os demais assuntos eram abordados sem, necessariamente, seguir a ordem ou haver necessidade de realizar as perguntas. Para a discussão aqui empreendida, serão utilizados os dados de 43 sujeitos. Destes, 14 foram entrevistados, cujas características centrais são: possuem de 29 a 38 anos de formados; idade variando de cinquenta a sessenta anos; alguns já aposentados em empregos públicos ligados a escolas, mas ainda atuantes na profissão; sete do gênero masculino e sete do feminino. Destaque-se que todos os professores trabalham no Rio de Janeiro. Dos questionários respondidos8, foram selecionados 29 respondentes que se encaixavam no perfil desejado, ou seja, possuíam tempo de formação que variava entre 26 e 39 anos e idade de 51 a 63 anos. Em virtude do alcance da internet – uma das vantagens dessa técnica – o grupo acabou composto por 16 homens e 13 mulheres, provenientes de 16 estados brasileiros9. Os dados foram tratados com base na análise de conteúdo, conforme processo descrito por Turato (2003), que envolve as etapas de leitura flutuante, categorização e subcategorização, segundo critérios de relevância e repetição. Este processo possibilitou destacar dois eixos temáticos: 1) Significados atribuídos ao corpo e ao seu envelhecimento; 2) Envelhecimento, corpo e a prática/carreira de professor de Educação Física. Ainda que inter-relacionados, pretende-se discutir, no primeiro eixo, as concepções de corpo, de envelhecimento e da própria profissão, no intuito de moldar o contexto sociocultural mais amplo. Já no segundo, serão abordadas as singularidades relacionadas aos diferentes âmbitos de atuação. Os professores entrevistados serão referidos por P1, P2 etc. Já os que responderam aos questionários serão apresentados como PQ1, PQ19 etc., conforme o código gerado a partir da ordem de resposta. Serão indicados, também: gênero, âmbito de trabalho (academia de ginástica – acad. ou escola – esc.) e idade, para conhecimento do perfil dos participantes. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Resultados e discussão 1 Significados atribuídos ao corpo e ao seu envelhecimento Os professores participantes desse estudo, em dados momentos, apontaram características que constituíam a identidade do professor de Educação Física, tais como: ativo, sociável, bem-humorado, bem-disposto, criativo, dentre outras: “Todo professor de Educação Física tem por excelência, a alegria natural, a disposição, a liderança nata, a descontração. E, eu, que sempre exercitei todos esses meus lados, faço uso, com muito mais vivência, agora, que estou quase uma terceira idade”. (PQ59, professora esc., 55 anos)

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O questionário foi disponibilizado na Internet, indistintamente, a professores de Educação Física. Por isso, foram totalizados 268 questionários respondidos, entretanto, 29 se enquadraram no perfil estudado nessa oportunidade.

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São eles: RJ, SP, MG, RO, MS, CE, AM, PR, DF, RS, GO, PA e RN.

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Talvez essas características ajudem a compreender os significados que foram atribuídos ao envelhecimento por esse grupo específico, até certo ponto, contraditórios. Ao mesmo tempo em que afirmavam “nunca ter pensado nisso” ou que “não aparentavam a idade”, demonstravam, nas falas, exemplos de que o passar do tempo estava alterando a dinâmica relacional, profissional e determinados comportamentos. Por vezes, essas percepções estavam vinculadas a marcas no corpo: “Começa a aparecer a ruga, o corpo começa a modificar. Tem horas que eu fico um pouco assustada, quando eu olho, eu falo: “caramba, eu não tinha essa barriga, [...]”. Mas eu acho que eu tenho que encontrar a beleza do envelhecimento, “estou assim” e na hora eu fico meio chocada, mas eu falo: “vamos embora, vamos correr atrás”. Vou cuidar para ver se eu estou bem, se eu consigo brincar, dançar, se eu consigo fazer uma caminhada”. (P10, professora esc., 53a) “Eu já to com 55 anos, né? Uma hora você tem que parar, porque é cansativo, né? Você com essa idade, você correndo atrás de criança na quadra com o apito na boca é um pouco complicado, mas eu gosto, é prazeroso, entendeu? Eu acho que é prazeroso [...]. Eu não me sinto com a idade que eu tenho, nunca me senti na minha vida e na verdade nunca me deram a idade que eu tenho, [...] eu não me sinto velha, não sou velha, mas estou caminhando para isso, né? Então, daqui pra frente o tempo de vida vai mudando, vai diminuindo, né? [...] eu sei que estou envelhecendo, mas eu acho que eu tenho uma cabeça boa, entendeu?”. (P9, professora esc., 55a) “Pra mim essa consciência de envelhecimento tá me aparecendo um pouquinho, vamos dizer assim, de uns 3 anos pra cá, que foi quando eu entrei em menopausa. [...] essa coisa da queda hormonal pra mulher é muito significativa. No início você começa a sentir, sabe, uma dificuldade maior em subir num degrau que você vem correndo e sobe, como fazia. Você se sente um pouco mais pesada... é... você passa um pouco, como é que eu vou te dizer... o envelhecimento físico mesmo. Eu não me sinto envelhecida mentalmente. Fisicamente mais, né? O que aconteceu com o meu corpo: eu engordei mais, mais rápido, eu engordei mais rápido”. (P13, professora acad., 54a) “O professor de educação física envelhece no corpo, na mente há sempre uma atividade que ele está disposto a exercer”. (PQ170, professora esc., 55a)

Dois aspectos, interligados, chamam a atenção nos trechos apresentados. O primeiro se refere à dicotomia corpo e mente, que parece se exacerbar nessa fase da vida e, talvez, ainda mais sentida no caso estudado, em virtude das características da profissão. Conforme os professores, a mente continua nova e produtiva, contudo, o corpo, restrito à sua parte física, é que dá sinais de envelhecer. Conforme Le Breton (2011, p.226), o envelhecimento “[...] em termos ocidentais, marca a redução progressiva do corpo, uma espécie de escravização a uma dualidade que opõe o sujeito ao seu corpo e o torna dependente deste último.” O segundo aspecto é a aparente dificuldade em aceitar o fato de estar se sentindo “mais velho”, como pode ser visto na utilização dos adjetivos “assustada”, “chocada”, “estranha”, “angústia”, quando se referem ao envelhecimento. Essas sensações emergiram com mais intensidade nos depoimentos das professoras, o que, de certo modo, corrobora com os juízos construídos socialmente, de que o impacto do envelhecimento é mais sentido pelas mulheres. Para Le Breton (2011, p.234): A velhice marca desigualmente, no juízo social, a mulher e o homem. Vemos aqui, independentemente da idade dos atores, a permanência de uma imagem social oposta do homem e da mulher que faz do primeiro um sujeito ativo, cuja apreciação social repousa menos sobre uma aparência do que sobre certa tonalidade de sua relação com o mundo, e

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da segunda um objeto de encanto, passível de se degradar ao longo do tempo, ao contrário do homem, que permanece sempre um sedutor em potencial.

Em outros casos, os professores relatam eventos ou fatos que fizeram com que se sentissem mais velhos, em oposição a serem mais novos, como se fossem marcos da chegada do envelhecimento: “[...] a vinda da neta, para mostrar que tem muito pela frente. Vontade de estar com ela. Tá sendo super legal porque ai você vai renovando, porque eu pensei: “meu Deus do céu”! Eu nunca pensei... pensei que já tava naquela fase quase na linha de chegada, já é uma outra partida, uma outra linha de chegada lá na frente, então acho que eu fui beneficiado de alguma maneira, e eu acho que a minha profissão de alguma maneira mostrou isso né, me direcionou a isso”. (P1, professor acad., 52a) “Por volta dos 40 anos eu fui...eu fui participar...eu fiz uma atividade no final de semana com os alunos, fui fazer um futebol, mas de repente eu percebi que não era mais, eu não podia correr como 15 anos, então, daí então...eu acho que o envelhecer...eu acho que tem que acompanhar o que ta acontecendo pra você envelhecer bem, né?”. (P8, professor esc., 60a) “Honestamente, às vezes eu me sinto cansado, é eu me sinto, eu me sinto às vezes, e eu já me peguei nesse mês de março reclamando desse mês, foi um mês cheio. Sem paradinhas, não é? Porque [...] a coisa me incomoda assim, então quando vem um mês de trinta e um dias, pleno, cheio, pô, que mês chato, não tem uma brechinha, [...] eu me preocupo e eu acho que isso é uma... um reflexo do envelhecimento, o cansaço, a vontade de, de que eu tivesse um descanso a mais, não é?”. (P5, professor esc., 53a)

Para Corbin (2003), o corpo se manifesta à pessoa através de sensações que, por sua vez, estão ancoradas em significados. Ao desenvolver estudos sobre saúde e doença, o autor argumenta que a linguagem corporal e as sensações são muito importantes, pois as pessoas não falam a linguagem do sintoma, mas de mudanças nas sensações ou na aparência. Esta visão é análoga ao que foi observado nos depoimentos em relação ao processo do envelhecimento. As marcas e marcos corporais estão relacionados às alterações ou dificuldades sentidas no corpo e, também, no cotidiano, como: diminuição de desempenho, chegada da menopausa, descoberta de doença como a hipertensão (P5), mudança de status no próprio local de trabalho, ou, ainda, o cansaço da rotina laboriosa, dentre outros. Nota-se que os professores entrevistados estão vivenciando um momento de transição, talvez pela própria fase em que vivem, com cerca de trinta anos de formados. Possuem características ainda relacionadas ao “ser jovem”, mas sentem, conforme suas falas, certas alterações ligadas ao “ser velho”, o que os leva a transitarem por essas formas de identidade, não sem tensão, em função não apenas do seu olhar, como do olhar escrutinador do outro: “Isso eu falo para os garotos, outro dia tava falando até com o F., que ta dando um bocado de aula [...] ao mesmo tempo que você é um professor de educação física, jovem, boa pinta, tem um monte de gente que cerca ele aqui, um monte de namorada, aquelas coisas todas e progressivamente essas coisas vão diminuindo. Lógico, não dá para ser o cara da hora, agora o cara é outro, eu sempre falo isso, lógico, é normal isso, se você não entender isso, se você não tiver uma cabeça legal, pode ser que te traga problema, em função da sua própria vida mesmo, de você começar a se desmotivar e tal”. (P1, professor acad., 52a) “Eu não consegui concluir (o Mestrado) porque me separei e daí foi uma confusão, parei, fiz algumas matérias lá, [..]. Perdi tudo e agora to... Olha quanto tempo tem, perdi tudo, agora que eu vou fazer o mestrado... Esse mestrado... “Ah, você tá velha pra fazer o mestrado”.

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artigos

Esse mestrado talvez me abra as portas, mas eu não to muito interessada se vai abrir ou não, eu gosto de estudar, eu gosto muito de estudar...”. (P3, professora acad., 53a)

Mesmo que, no contexto contemporâneo, as noções de novo ou velho sejam cada vez mais relativizadas e nuançadas, havendo dificuldades em se demarcá-las, a juventude deixa de ser um estágio na vida para se transformar em valor, “um bem a ser conquistado em qualquer idade” (Debert, 2004, p.21). Talvez devido a esse fato, certa tensão tenha sido particularmente sentida nos discursos analisados, ao manifestarem receio ou temor de se sentirem velhos.

2 Envelhecimento, corpo e a prática/carreira de professor de Educação Física O processo de envelhecimento e o trato ou usos do corpo para professores de academias de ginástica e de escola apresentam nuances dignas de nota, como poderá ser visto. Na academia de ginástica Em uma primeira tentativa, houve dificuldade em localizar professores com cerca de trinta anos de formados, atuantes em academias de ginástica, o que parecia confirmar a suspeita de que este âmbito privilegiava os profissionais mais novos. Entretanto, a partir de indicações, foi possível encontrar professores que trabalham no mercado de academias praticamente desde que se formaram. Isso significa que fizeram parte do processo de criação e proliferação dessas instituições, que recrudesceram significativamente no final da década de 1980 e, principalmente, na década de 1990 (Bertevello, 2005), como pode ser atestado: “Em 80 eu corri atrás de montar uma academia e montei né? Montei pequenininha, com 200 metros quadrados [...] Aí, depois, aumentei pra uma de 250 metros quadrados e depois vim pra cá. Aí eu acabei fechando lá porque a academia deu cria. [...] foi uma das primeiras do bairro, né? Aí começou a abrir, chegou a ter seis academias em volta, né?”. (P4, professor acad., 60a)

Esses professores, cujas atividades ao longo da carreira se centraram nas academias, desenvolveram algumas estratégias de manutenção nesse ambiente. Podem ser proprietários destes estabelecimentos, como o caso de P4 que, aliás, é exemplar do próprio desenvolvimento do mercado das academias. Instalações de pequeno porte, embora numerosas nas décadas de 1980 e início de 1990, foram sucumbindo às maiores, que ganhavam força no cenário do fitness com instalações amplas e aparelhagem moderna. Atualmente, ele é proprietário de outra academia e, conforme observado no próprio local, quando da entrevista, além de dono, P4 era o único professor do horário, sendo, também, o que recepcionava os alunos e fazia avaliação física. Nos dizeres dele: “[...] aqui eu sou meio empresário, meio professor, né? Mas eu acho que é assim que eu consigo sobreviver, né? Se eu tiver que pagar os professores, botar aqui pra ficar em casa, eu não vou conseguir viver. Eu vivo porque eu associo, você vê que eu trabalho na secretaria, dou aula, tá entendendo.. e...e administro, né?”. (P4, professor acad., 60a)

Outra estratégia é possuir alunos de treinamento personalizado (personal trainer), fato que possibilita uma renda muito superior à que normalmente se recebe em academias. Nesses casos, o trato com os alunos torna-se diferenciado, na medida em que o contato é mais próximo e ocorre certa fidelização do mesmo, que acaba acompanhando o professor durante anos. Esse trabalho, contudo, é resultado de muito tempo de investimento pessoal e profissional:

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“Às vezes a pessoa quer ser personal, porque hoje em dia financeiramente é o que dá mais dinheiro mesmo, e às vezes o garoto é novo e ele tá te vendo dar aula todo dia para um monte de aluno e ele acha que isso caiu do céu. Ai você fala “olha, não é assim, as coisas não acontecem assim, as coisas acontecem com muito trabalho, dedicação”. [...] Você vai fazendo grandes amizades [...]”. (P1, professor acad., 52a)

A permanência nas academias pode ocorrer quando o professor assume cargos de coordenação (ou da própria academia, ou de setores específicos, como a musculação, ginástica etc.), ou, ainda, ocupa posição de destaque por ser “detentor” de um saber relacionado a uma determinada modalidade, como no caso da ginástica localizada, aulas específicas ou de dança. Possuir um diferencial de atuação e estar constantemente inovando nas aulas também são estratégias que permitem atrair muitos alunos e, consequentemente, manter-se nas academias. A necessidade frequente de atualização é ressaltada como um aspecto central para se ocupar essa posição de distinção: “Todo mundo tenta estar o mais atualizado possível, eu mais que todo mundo, por conta da minha idade né? Eu não posso ta parada no tempo. Eu tava hoje conversando na cantina com um rapaz, ele falou: “o seu diferencial dos outros da sua época é impressionante! Você tá sempre atual, você ta sempre buscando alguma coisa pra estar dentro do que ta acontecendo”. Ué, eu falei: “ué, senão eu vou morrer né?”. (P3, professora acad., 53a) “Eu tenho um contexto muito mais amplo porque eu trabalho desde uma pessoa com idade até o adolescente, eu trabalho desde lesão até um trabalho estético. Então isso faz com que eu fique estudando o tempo todo, [...] ai você não deixa de estudar”. (P1, professor acad., 52a)

O que se pode observar, nesses casos, é que os professores mais experientes continuam a ser uma opção interessante no mercado das academias, uma vez que fidelizam o aluno em virtude do trabalho satisfatoriamente executado e arregimentam muitos seguidores10. Além disso, conforme as observações de campo, tais professores não aparentam a idade que possuem, além de possuírem estereótipos corporais condizentes com os atributos considerados relevantes não apenas nesse ambiente, mas na sociedade, como esbelteza e boa forma. Esses achados podem ser interpretados à luz da argumentação de Ortega e Zorzanelli (2010) de que, na atualidade, os aspectos-chave da subjetividade são definidos em termos corporais e biomédicos, o que gera uma série de preocupações físicas e estéticas. Tal proposição parece se manifestar, ainda mais, no profissional que lida com as práticas corporais, como o professor de Educação Física. Uma evidência é o destaque, no contexto das academias de ginástica, dado à representação do corpo como outdoor. Trata-se do componente estético ou visível do corpo que, quando adequado aos parâmetros corporais vigentes, funciona como propaganda para os alunos. Representa, assim, o ideal de saúde e de boa forma que, em última instância, é o produto a ser “vendido” nas academias: “Hoje eles ficaram brincando comigo, que eu tinha esquecido a camiseta e eles me emprestaram uma camisa toda apertadinha. Ai a 668

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10 Em alguns casos, os alunos acompanham os professores até mesmo quando trocam de academia. Houve um caso emblemático no Rio de Janeiro em que uma academia de grande porte teve de encerrar suas atividades. Vários dos alunos seguiram seus professores, como visto em reportagem do jornal de maior circulação da cidade (Brisolla, 2012).


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moça (da recepção) falou: “já pensou se você tivesse gordinho, passar com uma camiseta toda apertadinha, gordinho?” Isso é legal porque você vê que você vai envelhecendo, mas o seu corpo vai, praticamente ele envelhece junto, mas ele vai dando o sinal que você vai dando para ele, vai te mostrando o que você vai dando para ele, e é gratificante que você sabe que você ta envelhecendo, mas que você ta envelhecendo bem”. (P1, professor acad., 52a) “No começo eu fiquei mais assustado, pois trabalhava em academia e estava ficando velho, fora do padrão academia, garotão desportista. Depois, comecei a observar que o fato de estar ficando velho e com saúde, fora do padrão sedentário, me dava um ponto a favor. Somos nossos próprios outdoors, então percebi que estar na minha idade e em forma me dava um ponto a favor, sou o exemplo de que podes amadurecer com saúde, agora me sinto bem com isso”. (PQ64, professor acad., 51a)

Nesse âmbito, portanto, aparece naturalizado o fato de ser cobrado do professor um estereótipo corporal que se adeque aos imperativos contemporâneos de beleza e juventude (Lüdorf, 2009). A preocupação, por exemplo, com os cabelos brancos e sua associação com aspectos negativos do envelhecimento, compartilhados pelo senso comum, como poderá ser visto, é ilustrativa desta naturalização: “(o envelhecimento propicia) menos agilidade e espaço na profissão. Hoje em dia cabelos brancos não transmitem experiência, mas sim fraqueza”. (PQ76, professor acad., 63a) “Nossa, não tem noção de como foi, porque eu fiquei fazendo a minha cabeça durante três anos assim: “eu vou cortar, eu vou deixar o meu cabelo branco, eu vou deixar o meu cabelo branco”. Fui fazendo a minha cabeça e fui fazendo a cabeça de quem mais ou menos tava perto de mim. Mesmo assim teve reações adversas até dizer chega, eles ficaram horrorizados. Olha, eu não deixei de ser eu né?”. (P3, professora acad., 53a)

Analogamente ao que argumenta Shilling (2005), o capital corporal, no ambiente das academias de ginástica, poderia ser convertido em capital econômico e social, estando aliado ao capital, poder-se-ia dizer, da experiência. Estes fatores possibilitam que o professor de Educação Física mantenha-se em destaque na profissão e produtivo ao longo da carreira, não sem esforço ou sacrifício. Foi observado que vários destes professores mantêm uma rotina de treinamento, realizando atividade física de modo regular e/ou, por vezes, acompanhando os próprios alunos, como no caso de aulas individualizadas ou, ainda, em grupo onde seja necessária a demonstração. Ao analisarmos os dados dos questionários, foi possível detectar uma tendência que auxilia a compreender a impressão inicial sobre a dificuldade de se achar professores de academias com mais tempo de carreira. Dos 29 respondentes, boa parte já havia trabalhado em academias, porém apenas nos primeiros anos depois de formado. Posteriormente, direcionaram-se a outros trabalhos, como projetos sociais, clubes, e, eventualmente, continuavam ou iam para a escola. A esse respeito, caberia um aprofundamento nesse segmento específico, uma vez que, conforme Coelho Filho (2000/1), há uma tendência de os professores mais velhos perderem espaço nas academias. Por outro lado, não se pode descartar que podem não ter permanecido devido a uma escolha pessoal, ou por se sentirem insatisfeitos com o trabalho, o que mereceria ser elucidado. Na escola Uma das suspeitas iniciais era de que o professor de Educação Física procuraria a escola em momento mais adiantado da carreira, pelo fato de proporcionar, sobretudo no caso de concursos públicos, certa estabilidade profissional. Esse argumento não parece se sustentar, ao menos nos professores investigados. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Dados provenientes dos questionários e entrevistas demonstraram uma tendência de manutenção na escola, embora desenvolvessem outros trabalhos durante a carreira: “Como professor eu dava aula no SESC, e eu era (professor) do município do Rio de Janeiro também [...], fui coordenador de esporte [...], depois eu vim pra cá, no colégio [...]”. (P8, professor esc., 60a) “Sou formado há 32 anos e atuei em academia por 8 anos e escola de ensino privado, até que fui aprovado em concurso público estadual (1982) e municipal (1985). Em 2005 fui aprovado em concurso para o ensino federal”. (PQ46, professor esc., 52a)

O fato de trabalhar por muitos anos na escola pode explicar uma das associações com o envelhecimento que emergiram dos dados: os professores manifestaram satisfação em contribuir para educar. Os longos anos dedicados à profissão permitem acompanhar as diferentes fases de vida dos alunos: “[...] às vezes me chateia, quando um aluno que eu to falando o aluno não ta me ouvindo, mas aqueles que te ouvem, aquilo ali é uma coisa que me dá muito prazer e isso é o que mais se manifesta em mim, um orgulho, da profissão até, é essa questão de transformar pessoas [...] Na sala, manifestando minhas brincadeiras, eu sempre produzindo, passando alguma coisa que servirá na profissão, na carreira profissional desse ex-aluno, enfim, num futuro médico, um futuro professor, engenheiro, a gente sempre encontra né? Isso, isso aí é uma coisa que me dá um prazer muito grande”. (P5, professor esc., 53a) “[..] se amamos o que fazemos, o espírito também não envelhece, lidar com jovens é muito gratificante, saber que fazemos parte do crescimento humano. São muitas vitórias e isso nos engrandece, principalmente na área de educação física”. (PQ170, professora esc., 55a)

Reside, nesse aspecto, uma característica básica da docência, conforme Stano (2001), de preparar-se para ensinar/educar o outro, processo este intrincado ao percurso profissional. O modo de lidar com o aluno também se modifica a partir do amadurecimento e do saber construídos ao longo da trajetória docente, como também detectado em Folle e Nascimento (2011). Neste sentido, a experiência emergiu como um aspecto positivo associado ao envelhecimento e à prática do professor: “As experiências vão se acumulando e você fica mais preparado para responder a demandas profissionais cada vez mais amplas”. (PQ2, professor esc., 58a) “Para mim é um motivo de satisfação, pois a cada ano que passa, mais sou feliz com as experiências que totalizo”. (PQ42, professora esc., 56a) “(o que muda com o envelhecimento) Na melhoria da abordagem dos assuntos, na qualidade da relação com os alunos, na paciência com as dificuldades, na valorização da tentativa em detrimento do sucesso”. (PQ179, professor esc., 50a)

Ainda que se considere o caráter singular das carreiras, construídas com base na história pessoal e profissional, influenciadas por uma série de condições e oportunidades de trabalho, nível de formação e de atualização, sem mencionar os aspectos psicoafetivos e o contexto mais amplo das políticas públicas atreladas à profissão, o tempo é uma variável importante neste processo (Nóvoa, 2007; Tardif, 2002). Em princípio, os professores estudados estariam nas fases finais de carreira (serenidade e desinvestimento), entretanto foram identificados elementos associados à fase de estabilização 670

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(Huberman, 2007), como o sentimento de competência crescente e a acentuação do grau de liberdade de atuação. Tais características foram detectadas também por Folle e Nascimento (2011), o que corrobora a ideia de que as fases de carreira não são estanques. O argumento de Debert (2007) de que é fundamental compreender as representações, práticas, circunstâncias de vida e de trabalho associadas ao envelhecimento, não poderia ser mais pertinente e emblemático no caso do professor de Educação Física atuante em escolas. O ambiente escolar, se proporciona o contato e acompanhamento das crianças e adolescentes, no que se revela algo prazeroso relacionado à profissão, exige muito do docente em relação ao próprio corpo. A importância atribuída ao corpo como instrumento de trabalho para o professor de Educação Física já havia sido apontada (Silva, Lüdorf, 2010), no entanto, ao se aprofundarem os significados atribuídos ao envelhecimento e ao corpo na profissão, emergem duas dimensões do corpo que estão imbricadas: a funcional e a física. Na opinião dos sujeitos, estas dimensões transpareceram de modo recorrente, ao se referirem ao cansaço, diminuição de disposição para realizar atividades laborais, limitação da capacidade (motora e física) de realizar exercícios, elementos esses ligados à natureza do trabalho, como pode ser visualizado nos exemplos: “Cada vez mais tenho que me superar para que os alunos [...] se interessem pelas atividades. Em relação ao aspecto físico também, um acervo motor, muito mais habilidade e técnica, mas ao mesmo tempo uma capacidade física a nível, articular, muscular e resistência física tendo que se superar cada vez mais por questões hormonais”. (PQ106, professora esc., 52a) “Tinha coisas que eu fazia quando eu comecei a trabalhar na rede municipal, eu dava aula em Caxias, morando no Meier, eu não sei se hoje eu teria capacidade física pra fazer que eu fazia naquela época, né?”. (P12, professor esc., 54a) “A gente vai envelhecendo e eu trabalhando com criança, obviamente você no final, você já não tá com pique pra estar acompanhando criança, entendeu?”. (P14, professora esc., 53a) “Na escola, a mesma coisa. Muito mais até. A pessoa de idade na escola, trabalhar com criança, como era o meu caso, “ah, perde o pique...”, você vai chegar e vai deixar rolar uma bola”. (P13, professora esc., 54a)

A preocupação com a funcionalidade foi mencionada por professores em fase intermediária de carreira (Silva, Lüdorf, 2012), porém se tratava de algo ainda abstrato; ao passo que os professores próximos à aposentadoria, aqui estudados, se referem à mesma de modo mais concreto, citando exemplos relacionados à prática profissional. Observa-se que o passar do tempo se manifesta no que, para Le Breton (2011, p.145), seria uma forma de dualidade sentida pelo sujeito, quando se sente “cativo de um corpo que o abandona”. O cansaço pode estar atrelado às condições de atuação profissional do docente (Pecora, Anjos, Paredes, 2010). Contudo, parece sobressair no de Educação Física, uma vez que é normalmente parte de sua rotina: carregar material, expor-se ao sol, demonstrar exercícios, dentre outras características peculiares que “pesam” diante dos muitos anos de trabalho: “Eu não consigo imaginar um profissional desse nessa área dando aula prática sem disponibilidade corporal para estar ali em pé, falando, arrumando material ou corrigindo aluno, isso a própria atividade profissional demanda, disponibilidade física, essa coisa do desgaste energético mesmo. É diferente de um trabalho que você fica mais sentado”. (P2, professora esc., 52a) “[...] cansativa, o sol é um dos maiores problemas e também a paciência, que com o passar dos anos está se esgotando”. (PQ154, professora esc., 51a)

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“Cansado, desgastado... e muito desvalorizado profissionalmente, nas escolas, pelo corpo técnico, financeiramente”. (PQ199, professor esc., 51a) “O fôlego não é o mesmo, embora a vontade de trabalhar e produzir continue em evidência. Muitas vezes o cansaço não ajuda na condução adequada da aula”. (PQ242, professora esc., 54a)

Estudos de caráter ocupacional e sobre a qualidade de vida do professor de Educação Física têm surgido com mais frequência na literatura (Farias et al., 2008; Folle et al., 2008; Lemoyne et al., 2007), e apontam para importantes aspectos a serem discutidos no âmbito profissional e de políticas públicas. Sem desconsiderar tal necessidade, à luz dos dados analisados, o cansaço relativo ao corpo e, em grande medida, relacionado à profissão, constitui-se em elemento marcante. Observa-se, portanto, que o tempo de dedicação e o tipo ou ramo de trabalho revelam-se marcadores interessantes para se avançar nas interpretações sobre como o passar dos anos influencia a carreira – neste caso, a de professor de Educação Física, mas, potencialmente, a dos profissionais de saúde e de educação em geral.

Considerações finais Diante do exposto, pode-se concluir que o processo de envelhecimento, neste caso, do professor de Educação Física, quando analisado em sua dimensão sociocultural, apresenta nuances e contradições que merecem ser consideradas. Em um contexto de alta visibilidade do corpo e de valorização de princípios voltados à saúde e performance, o professor de Educação Física pode ser associado a significados compartilhados culturalmente, que remetem ao dinamismo, modelo de corpo e de práticas corporais ditas saudáveis. Contudo, as evidências empíricas indicam que o olhar deve ser aprofundado e relativizado, sobretudo em se tratando daquele que atua há muitos anos na profissão. Se o processo de envelhecimento do professor, por um lado, propicia a maturidade, experiência e confiança no trabalho desempenhado, que são elementos centrais e valorizados na prática cotidiana, o corpo físico parece desprender-se do sujeito, abandonando-o gradativamente, repercutindo em sentimentos contraditórios relacionados ao envelhecimento. Nas academias de ginástica, há certo ajuste ao contexto da visibilidade, pois se trata de ambiente que valoriza o prolongamento das potencialidades e das marcas de saúde e longevidade impressas no corpo dos professores. Já o desgaste e o cansaço do corpo são particularmente sentidos pelos professores atuantes em escolas. Diante da complexidade que ronda a temática, destaca-se a imperiosa necessidade de se avançar nas investigações sobre envelhecimento tendo em vista as diferentes realidades, tanto do professor de Educação Física, como de outros profissionais que lidam com intervenções em saúde e em educação.

Colaboradores A autora Sílvia Maria Agatti Lüdorf delineou o artigo, no qual apresenta dados derivados de pesquisa orientada por Francisco Javier Guerrero Ortega. Ambos os autores participaram da discussão sobre a estrutura e redação do artigo. O orientador efetuou revisão crítica e fez sugestões à redação do manuscrito.

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artigos

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LÜDORF, S.M.A.; ORTEGA, F.J.G. Marcas en el cuerpo, cansancio y experiencia: matices del envejecer cómo profesor de Educación Física. Interface (Botucatu), v.17, n.46, p.661-75, jul./set. 2013. Los objetivos de la investigación fueron comprender e interpretar los significados que los profesores de Educación Física atribuyen al cuerpo y al envejecimiento e investigar en que medida esas representaciones podrían influenciar su práctica profesional. Esta investigación, de naturaleza cualitativa, fue realizada con 43 profesores de escuelas y gimnasios que tenían más o menos 30 años de profesión. Los datos fueron interpretados por el análisis de contenido. El proceso de envejecimiento del profesor propicia madurez, experiencia y confianza en el trabajo, pero el cuerpo físico parece desprenderse del sujeto, repercutiendo en sentimientos contradictorios relacionados al envejecimiento. En los gimnasios, hay un ajuste al contexto de visibilidad, pues son valorizadas las potencialidades del cuerpo y las marcas de salud impresas en el cuerpo. Ya el desgaste y cansancio son sentidos por los ofesores que actúan en la escuela.

Palabras clave: Cuerpo. Envejecimiento. Educación Física. Salud. Profesión.

Recebido em 12/03/13. Aprovado em 15/05/13.

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espaço aberto

O silêncio dos inocentes: por um estudo narrativo da prática médica

Fabiana Buitor Carelli1 Carlos Eduardo Pompilio2

[...] a narrativa árabe – eu penso em As mil e uma noites – também tinha, como motivação, tema e pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador. A narrativa de Shehrazade é o avesso encarniçado do assassínio, é o esforço de todas as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência. (Foucault, 2009, p.268)

Um radiologista, ao observar uma tomografia, produz um laudo – ou seja, um texto escrito, de cunho eminentemente descritivo. Um clínico, ao observar a mesma imagem tomográfica, pode produzir um diagnóstico – um texto oral, provavelmente (ao comentar o caso com outro médico ou, mesmo, com o paciente), e, posteriormente, um texto escrito (ao escrever, na ficha, os resultados do exame e suas conclusões). Esse texto é também descritivo – mas estruturado segundo relações lógicas baseadas em modelos previamente conhecidos. Se um especialista observa a mesma imagem, também produz um diagnóstico, que, do mesmo modo que o anterior, poderá ser oral e/ou escrito. Apesar de ser também um texto predominantemente descritivo e estruturado segundo uma lógica, os parâmetros do especialista são provavelmente diferentes dos do clínico. Diante de tal quadro, dois questionamentos se impõem. Em primeiro lugar, quais seriam as diferenças entre esses textos? Em segundo: o modo (no sentido amplo: estrutura, gênero, modelos textuais e outros elementos) como esses textos são construídos modifica o(s) possível(is) sentido(s) referencial(is) da própria imagem? De que maneira? Temos, portanto, uma argumentação que se articula em dois eixos principais. O primeiro, que poderíamos chamar de horizontal, trata da investigação de algo que socialmente goza de imenso crédito, que é a verdade médica. Até que ponto várias “verdades” (algumas até mais “verdadeiras” que outras) são constituídas por esses múltiplos discursos, ou na relação entre eles? O segundo, na profundidade, significa questionar a necessidade de verdade implícita em toda prática médica. Médicos, na vida real, não tratam de “seres de ficção”, que é como o crítico Antonio Candido chama as personagens narrativas (Candido et al., 1976, p.55). E, caso a referencialidade primária do discurso médico sobre determinado paciente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP). Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05508-900. fbcarelli@gmail.com 2 Divisão de Clínica Cirúrgica II, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, USP. 1

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se perca nos meandros dessa construção discursiva, que é também operacional, o paciente pode vir a morrer. Ipso facto. A relação entre texto e medicina parece absolutamente pertinente e ainda bem pouco explorada no meio acadêmico brasileiro. Críticos literários e linguistas analisam a relação entre: linguagem verbal e outras artes, linguagem verbal e novas tecnologias, linguagem verbal e linguagem verbal. Se a prática médica deve se basear na linguagem, onde estão os estudos relacionando justamente esses dois campos, o médico e o linguístico? No Reino Unido, no final dos anos 1990, surgiu a Narrative Based Medicine, referendada pela publicação do livro de mesmo título, organizado por Trisha Greenhalgh e Brian Hurwitz (Greenhalgh, Hurwitz, 1998). Tal obra deu origem a uma série de cinco artigos, posteriormente publicados no British Medical Journal (Greenhalgh, 1999; Greenhalgh, Hurwitz, 1999), que tentam responder, entre outras, às seguintes perguntas: por que estudar narrativa em relação à prática médica? De que modo o estudo da significação pode contribuir para o processo clínico de interpretação dos dados e construção de um diagnóstico (e de um prognóstico) médico? Por que os médicos não escutam as histórias de seus pacientes? Quais os limites da objetividade no método clínico? Como relacionar “evidências” e narrativas na constituição de uma diagnose integrada, já que a medicina é – ou deveria ser - por natureza, integral na sua visão do paciente? De modo geral, podemos imaginar que laudos e diagnósticos como os referidos anteriormente, provenientes ou não de leituras de imagens e de cunho eminentemente descritivo, virão, em algum momento do processo clínico, a compor narrativas informadas por eles. De que modo isso ocorre, e que tipos de narrativas são essas? Greenhalgh e Hurwitz (1999, p.48) dão algumas pistas: “O processo de ficar doente, de estar doente, melhorar (ou piorar) e lidar (ou não conseguir lidar) com a doença pode ser pensado como uma narrativa organizada no interior das narrativas (histórias) mais abrangentes de vida das pessoas”, dizem eles (em tradução nossa). E depois, mas não menos importante: “Considerar uma história é um ato interpretativo; a interpretação (discernimento do significado) é central para a análise de narrativas (na crítica literária, por exemplo)” (p.48), já que, explicam os autores, “em comparação com uma lista de medições ou com a descrição dos resultados de um experimento, não há definições autoevidentes do que é relevante ou irrelevante nesta ou naquela narrativa específica. A escolha do que contar e do que omitir cabe inteiramente ao narrador [...]” (Greenhalgh, Hurwitz, 1999, p.48, tradução nossa). Do ponto de vista clínico, portanto, poderíamos supor que a construção de uma narrativa sobre a doença do paciente (ou sobre o paciente doente – a ordem aqui é discricional, pois dela depende a definição de quem é o protagonista da história) acontece segundo o poder de escolha daquele que a conta – no caso, o médico. Ele é quem escolhe o que contar e encadeia os fatos (entre eles, a própria descrição contida em exames e laudos) de acordo com modelos conhecidos e chancelados cientificamente. Ele é quem confere a essa narrativa o seu tom. De suspense? De tragédia? Épico? Edificante? Autoajuda? Do ponto de vista do paciente, há também uma história a ser contada. Se essa história é ou não levada em consideração para a narrativa elaborada pela razão médica, é um outro problema, mas não menos relevante. Todas essas narrativas, obviamente, fazem e farão parte das histórias de vida de cada paciente, antes e, caso haja melhora ou cura, depois do aparecimento da doença. Por fim, podemos dizer, também, que o encadeamento narrativo do processo clínico não se volta apenas para o passado, mas organiza um presente e projeta um desenlace, imaginado sempre como um happy ending, mas que, às vezes, se realiza de modo trágico. O presente organizado e o futuro projetado têm a ver, respectivamente, com as prescrições e os prognósticos: conjuntos de ações programadas para surtirem estes ou aqueles efeitos, o que não deixa de ser narrativo. Todos esses aspectos, em nossa opinião, já justificam a possibilidade e a necessidade de um estudo sério, e teoricamente aparelhado, da prática médica enquanto produtora de narrativas de vida e de morte. Mas há, ainda, uma última questão que incomoda bastante – até por razão de ofício. É que todo discurso é – inalienavelmente, como sabemos – o exercício de um poder. A certa altura, o último artigo da série de cinco publicada no BMJ menciona um aspecto da prática clínica que chama a atenção. Nele, afirma a autora: 678

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A arte de selecionar o aforismo médico mais apropriado para cada decisão clínica específica é largamente adquirida por meio da acumulação de uma “experiência de casos” (histórias ou ‘roteiros de doenças’ dos pacientes e relatos clínicos). (Greenhalgh, 1999, p.323, tradução e grifos nossos)

A referência explícita, no trecho citado, a “aforismos médicos” e a uma experiência de “casos” nos faz recordar que, embora amplamente fundamentada numa literatura, por definição, escrita, a prática médica é também permeada e, por vezes, fundamentada, em processos narrativos orais, que possuem estrutura, fundamento e função próprios. Nesse sentido é que lembramos o capítulo “Lição de escrita”, de Tristes trópicos. Nele, o etnólogo francês Claude Lévi-Strauss narra um episódio extraordinário ocorrido numa de suas expedições entre os índios Nambiquaras: É de imaginar que os Nambiquara não sabem escrever; mas tampouco desenham, com exceção de alguns pontilhados e ziguezagues nas suas cuias. Porém, da mesma maneira como agi com os Cadiueu, distribuí folhas de papel e lápis com os quais, de início, nada fizeram; depois, certo dia vi-os muito atarefados em traçar no papel linhas horizontais onduladas. Que queriam fazer, afinal? Tive de me render à evidência: escreviam, ou, mais exatamente, procuravam dar a seu lápis o mesmo uso que eu, o único que então podiam conceber, pois eu ainda não tentara distraí-los com meus desenhos. Para a maioria, o esforço parava por aí; mas o chefe do bando enxergava mais longe. Era provável que só ele tivesse compreendido a função da escrita. Assim, exige de mim um bloco e nos equipamos da mesma forma quando trabalhamos juntos. Não me comunica verbalmente as informações que lhe peço, mas traça no seu papel linhas sinuosas e me mostra, como se ali eu devesse ler a sua resposta. Ele próprio se deixa tapear um pouco com a sua encenação; toda vez que sua mão termina uma linha, examina-a ansioso como se dela devesse surgir algum significado, e a mesma desilusão se estampa em seu rosto. Mas não a admite [...]. Ora, mal ele reunira todo o seu pessoal, tirou de um cesto um papel coberto de linhas tortuosas que fingiu ler e nas quais procurava, com uma indecisão afetada, a lista dos objetos que eu deveria dar em troca dos presentes oferecidos [...]. Que esperava ele? Enganar a si mesmo, talvez; mais, porém, surpreender seus companheiros, convencê-los de que tinha participado na escolha das mercadorias, que obtivera a aliança com o branco e que partilhava de seus segredos”. (Lévi-Strauss, 1996, p.280)

O chefe, portanto, alimentava, de posse do papel “escrito”, a legitimidade de seu poder de chefe – baseada em vários fatores, obviamente, mas, nesse episódio específico, referendada pela fetichização da escrita. Quando um paciente está diante de um médico, expondo sua história, ele, paciente, é o “iletrado”. Ou seja: ele é quem narra oralmente a história de sua vida, na qual a doença aparece como fator de reviravolta (a peripeteia ou peripécia aristotélica) (Aristóteles, s/d, p.255 e passim). Quem escreve essa história é o médico. Nessa relação, o médico é o detentor do poder da escrita. Por isso, acaba vindo a se apropriar, também, do poder de verdade cuja aura vem do seu saber. Em outras palavras, o médico se coloca como o possuidor de uma (ou de várias) tecnologias, das quais o paciente, em situação de “paciente” (não de agente!), permanence desempoderado. Por este motivo, acreditamos que é preciso não apenas estudar de que maneira os modelos narrativos orais e os escritos (bastante diferentes entre si) operam nas histórias contadas por médicos e por pacientes, mas, também, as diferentes auras de poder que circundam e/ou não circundam oralidade e escrita. No limite, o perigo de não perceber esses fenômenos está na constituição de uma fala poderosa e ininterrupta que cala definitivamente aqueles que se acreditam (ou são creditados como) incapazes dela. Nesse caso, não ouvir o doente na especificidade de suas narrativas pode, sim, levar à morte – “desenlace” que, como menciona Foucault na epígrafe deste texto, cerra para sempre a boca de quem conta. Um silêncio próprio dos “inocentes”.

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Colaboradores Os autores Fabiana Buitor Carelli e Carlos Eduardo Pompilio participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. A versão para a língua inglesa foi elaborada por Carolina Siqueira Muniz Ventura.

Referências ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. (Ditos e Escritos, III) GREENHALGH, T. Narrative based medicine: narrative based medicine in an evidence based world. Br. Med. J., v.318, n.7179, p.323-5, 1999. Disponível em: <http:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1114786/>. Acesso em: 27 dez. 2011. GREENHALGH, T.; HURWITZ, B. Narrative based medicine: why study narrative? Br. Med. J., v.318, n.7175, p.48-50, 1999. Disponível em <http://www.bmj.com.content/ 318/7175/48.1.full>. Acesso em: 27 dez. 2011. ______. (Eds.). Narrative based medicine. London: BMJ, 1998. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. Trad. Rosa Freire de Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Embora absolutamente pertinente, a relação entre texto e medicina ainda é pouco pesquisada no meio acadêmico brasileiro. Não obstante, é fato que toda prática médica é permeada de narrativas, quer sejam as dos pacientes, que contam aos médicos as histórias de suas doenças, quer as dos médicos, que recontam essas histórias de acordo com modelos científicos aprendidos e com sua experiência clínica. Inspirado na NarrativeBased Medicine, campo teórico já consolidado no meio anglófono, e em algumas teorias provenientes dos Estudos Literários e das Ciências Sociais, este artigo busca discutir, introdutoriamente, algumas possibilidades para a consolidação de um estudo interdisciplinar das narrativas relacionadas à área médica no âmbito acadêmico brasileiro.

Palavras-chave: Narrative-Based Medicine. Medicina e narrativa. Medicina e linguagem. Literatura e medicina. The silence of the innocents: for a narrative study of medical practice Although absolutely relevant, the research about the relationship between text and medicine is not well fund within the Brazilian academy yet. Nevertheless, the fact is that the medical practice is permeated with narratives, whether those by patients, who tell the doctors the stories of their diseases, whether those by physicians, who recount these stories according to their consolidated scientific models and to their clinic experience. Inspired by the theoretical field called Narrative-Based Medicine, which is already well established within the Anglophone academic environment, and by some theories from the Literary Studies and the Social Sciences, this article aims to introductorily discuss some possibilities for the consolidation of an interdisciplinary study of the medical narratives in Brazil.

Keywords: Narrative-Based Medicine. Narrative and medicine. Medicine and language. Literature and medicine. El silencio de los inocentes: por un estudio narrativo de la práctica médica Aunque absolutamente relevante, la relación entre texto y medicina es todavía objeto de poca investigación en el medio académico brasileño. Sin embargo, es un hecho que toda la práctica médica tiene sus relatos, ya se trate de pacientes que cuentan las historias clínicas de sus enfermedades a los médicos, o de los médicos, que cuentan estas historias de acuerdo a sus modelos científicos aprendidos y de su experiencia clínica. Inspirado por la Narrative-Based Medicine, campo teórico ya establecido en lengua inglesa, y por algunas teorías que vienen de los Estudios Literarios y de las Ciencias Sociales, este artículo pretende discutir, introductoriamente, algunas posibilidades para la consolidación de un estudio interdisciplinario de las narrativas médicas en el ámbito académico brasileño.

Palabras clave: Narrative-Based Medicine. Narrativa y medicina. Medicina y lenguaje. Literatura y medicina. Recebido em 06/06/12. Aprovado em 15/01/13.

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Comunicação, humanidades e humanização: a educação técnica, ética, estética e emocional do estudante e do profissional de saúde

Mario Alfredo De Marco1 Mariella Vargas Degiovani2 Miriam Sansoni Torossian3 Rudolf Wechsler4 Silvia Mara Herbelha Joppert5 Ana Cecília Lucchese6

Introdução Que é isso, a humanização? Palavra de ordem no campo da saúde, o conceito de humanização, ameaçado pelos perigos do modismo e da banalização, necessita arejamento e discussão crítica. Desgaste e incompreensão ficam patentes nas observações quando da discussão do tema com estudantes e profissionais de saúde. De um lado, há os que tendem à banalização, reduzindo o conceito a algumas noções básicas de cordialidade e educação: “Claro que é importante ser humano com os pacientes!”; “Tem que saber o nome do paciente”; “Tem que ser educado e atencioso”, e por aí vai. De outro, há os que se revoltam: “Humanizar o quê? Por acaso já não somos humanos?” Contrariamente ao apontado nestas declarações, expressão do senso comum, nem nascemos humanizados nem o processo de humanização pode ser considerado tarefa simples. Ele implica a construção do sujeito graças à transmissão de milênios de evolução cultural. Assim como os cromossomos dos pais transmitem características acumuladas ao longo de milhões de anos de evolução, o que a cultura alcançou em sua evolução é transmitido através da relação e comunicação.

Comunicação, padrões vinculares e constituição do sujeito O movimento ontológico-constituidor do humano se abre tanto para a possibilidade de enraizamento quanto alienação (Gomes, Schraiber, 2011), e o processo de constituição do sujeito é essencialmente relacional. Isto é, comunicação e relação, atualizadas em padrões vinculares, determinam extensão e qualidade da construção do mundo psíquico. Vamos ilustrar este processo de internalização das relações e construção de padrões vinculares através de duas variantes de uma cena de interação entre mãe e bebê: o bebê chora e a mãe se prontifica a assisti-lo, tentando decifrar a qualidade do choro e identificar a perturbação/demanda. Começa a confortá-lo, segurando-o no colo e conversando COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento de Psiquiatria, Serviço de Atenção Psicossocial Integrada em Saúde, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Borges Lagoa, 1080, cj 1109. São Paulo, SP, Brasil. 04038-020. mariodemarco@globo.com 3,6 Departamento de Psiquiatria, Unifesp. 1,2,4,5

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com ele naquele dialeto típico (“manhês”), com suas sonoridades peculiares. Pode decifrar imediatamente e atender a necessidade da criança ou, por tentativa e erro, sem muito desespero, buscar soluções, até conseguir confortar a criança que, então, se acalma e interrompe o choro. Numa variante, a mãe, frente ao choro do bebê, entra em desespero e, tomada pela ansiedade, tenta se desembaraçar daquela perturbação oferecendo, sofregamente, opções para atender a demanda da criança. A ansiedade da mãe potencializa a ansiedade da criança, gerando retroalimentação recíproca. Finalmente, após tempo variável de vivência intensamente aflitiva, sobrevém a interrupção do choro da criança. Embora com desfecho semelhante, da perspectiva da experiência e construção dos padrões vinculares, a diferença é crucial. No caso do primeiro bebê, a experiência produzirá os seguintes registros internos (introjeções): existe um “objeto” ameaçador para o qual, evidentemente, o bebê não tem nome, mas existe um “objeto” com capacidade de permanecer em contato com este estado e oferecer continência, conforto e alívio da turbulência. Este padrão relacional vai gradativamente sendo incorporado pela criança, permitindo que ela possa evoluir emocionalmente, discriminando e nomeando progressivamente as demandas associadas às turbulências vivenciadas (dor, fome, sede etc.) e as diferentes nuances emocionais (ódio, tristeza, amor etc.). No caso do segundo bebê, a situação é completamente diferente. Ele incorpora que não existe continência para seu estado de terror-sem-nome (Bion, 1991). Após repetição reiterada dessa experiência, a tendência, tendo em vista sobreviver, será excluir essas emoções da vida mental, que, consequentemente, fica empobrecida. Essas emoções permanecerão em sua configuração primitiva, em estado latente, podendo manifestar-se de forma sintomática ao longo da vida. Os conceitos de continente, contido e rêverie, formulados pelo psicanalista Wilfred Bion (1991), são úteis para compreender esta capacidade mental materna em participar do processo que contribui para a psiquização das vivências da criança. A rêverie materna desempenha, para o bebê, a função de modificar e transformar suas ansiedades e tensões, permitindo que mãe e criança integrem o processo que será protótipo do pensamento da criança e que continuará a se desenvolver através da vida. A rêverie é uma capacidade mental que Bion descreveu, inicialmente, como atributo importante da mãe (rêverie materna), cuja situação paradigmática é a capacidade de a mãe tolerar a identificação projetiva de pânico e terror sem nome, que o bebê efetua, contendo e transformando estas emoções, de forma que a criança sinta que recebe de volta sua temida personalidade, numa forma mais tolerável. Esta capacidade materna é estendida por Bion para a capacidade do analista em seu trabalho e ampliada para as situações da vida em geral; alcançar e manter esse estado é útil em muitas outras tarefas além da análise; é essencial para a eficiência mental apropriada para uma tarefa, seja qual for a tarefa (Bion, 1992). Observações, a partir desta perspectiva, permitem distinguir situações em que o crescimento psíquico ocorre desligado de sua base emocional e, outras, em que vem acompanhado de evolução emocional. Como consequência, teremos uma humanização ancorada numa base real e uma humanização estereotipada. Na humanização “real”, existe contato e evolução através da transformação da base psíquica do ser. Na humanização estereotipada, existe desligamento, que favorece a incorporação de padrões estereotipados de conduta. Padrões ditados (pré-moldados) e não construídos promovem estruturação da personalidade que tem recebido diversas denominações, entre as quais: “falso Self”, proposta por Winniccott (2000), ou identificação com a “persona” proposta por Jung (1987). O tema é relevante, pois as observações apontam que, na atualidade, esta condição é endêmica. Se, no tempo das origens da psicanálise, a histeria ocupava posição central, hoje, é absolutamente periférica. No centro do palco, temos, hoje: distúrbios de identidade nomeados como “falso Self”, personalidades “como se”, identificação com a persona, pseudomaturidade, associados com patologias de gratificação peremptória, todas denominações procurando circunscrever estruturação de identidade superficial, inautêntica, porque desligada de sua base real.

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Natureza e cultura O ser humano é uma das criaturas que, ao nascimento, apresenta maior imaturidade e, como corolário, maior plasticidade, sendo seu desenvolvimento amplamente condicionado pelos estímulos aos quais é exposto. Esta característica o faz amplamente adaptável, permitindo-lhe aventurar-se pelas diferentes regiões do planeta. Graças à imaturidade, veio somar-se, à evolução condicionada pela herança genética, a evolução proporcionada pela herança cultural. Se uma criança nasce, hoje, com características genéticas muito próximas a outra nascida há cinco mil anos, em poucos anos a herança cultural produzirá enorme diferenciação, na medida em que aquisições humanizadoras, construídas culturalmente, lhe serão transmitidas.

Entre emoções e ética As evoluções culturais transmitidas podem ser divididas em quatro categorias básicas: técnicas, éticas, estéticas e emocionais. A educação técnica mobiliza menos situações conflitivas, pois não envolve diretamente questões de valores. A relação entre educação ética e emocional tem sido objeto de reflexões. Segundo Kesselring (2006), por muito tempo as emoções foram negligenciadas pela ética. Ele atribui esta negligência à influência, entre outras, do pensamento de Kant, que postulava que uma ação moralmente boa é racional. Na perspectiva kantiana, a qualidade ética advém do fato de que esta ação deve ser realizada, em contraposição a atos executados para satisfazer prazeres associados a inclinações e que, portanto, não possuem qualidade ética. Em contraposição, o que tem sido demonstrado sem maiores dificuldades é o papel que sentimentos morais e empatia desempenham no desenvolvimento da conduta moral. Esta contraposição entre uma ética ditada racionalmente e outra ancorada em estruturas inatas se insere numa discussão mais ampla entre duas vertentes de respostas à construção da dimensão moral da humanidade (Hoffmann, 2000). De um lado, uma visão de “pecado original” assume que as pessoas nascem egoístas e adquirem um senso moral através da socialização, que controla o egoísmo e que tem paralelismo nos primeiros freudianos e nas teorias de aprendizado social, que sublinham a importância para o desenvolvimento moral da punição e recompensa pelos pais, especialmente dando e retirando afeto. Diametralmente oposta é a doutrina da pureza inata, associada, particularmente, a Rousseau, que via a criança como tendo uma bondade inata (sensível aos outros) sujeita à corrupção pela sociedade. Esta postura tem paralelismo com a teoria de Piaget, não no sentido de que as crianças sejam inatamente puras, mas que o contato com os adultos produz um respeito heterônomo por papéis e autoridade que interfere com o desenvolvimento moral. A semelhança com a “pureza inata” é que, nesta visão, é a interação livre e natural de crianças pré-morais que produz desenvolvimento moral, ao passo que a interação com adultos (socializados) previne este desenvolvimento (De Marco et al., 2012). Uma discussão importante é quanto cada uma destas visões corresponde a uma dimensão da construção do desenvolvimento moral.

As duas dimensões da moralidade A formulação de uma base inata para a construção do desenvolvimento moral tem sido reforçada pelas descobertas da biologia, antropologia e neurociência. A evolução destes conhecimentos coloca em questão, inclusive, a concepção de muitos filósofos e antropólogos quanto a considerar que, entre os atributos que tornam o ser humano único, está a capacidade de agir moralmente. Repetidas e consistentes observações demonstram a existência de comportamentos sociais em animais, associados a empatia e preocupação com o sofrimento dos outros: quando um chimpanzé entra em sofrimento por perder uma luta, cair de uma árvore ou outro evento estressante, os outros COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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prontamente se disponibilizam para proporcionar conforto e reasseguramento. Eles o abraçam, beijam e afagam, tentando acalmá-lo. Estes comportamentos, considerados componentes da evolução da inteligência social, não estão restritos aos primatas, sendo observados em elefantes, cetáceos (golfinhos e baleias) e, mesmo, em pássaros (uma espécie da família dos corvos). Os humanos podem ser únicos no grau de aplicação da ética e moralidade para a tomada racional de decisões, mas, estas observações que demonstram a presença da empatia em animais fornecem importantes pistas quanto a um substrato neurológico destas habilidades (Hunter, 2010). Do campo das neurociências, sistemas cerebrais envolvidos na empatia e na inteligência social têm sido identificados, indicando que nosso complexo mundo social, culturalmente variado e governado por códigos morais escritos e tácitos, que estimulam comportamentos de solidariedade mútua, está ancorado num sistema neural que tem como propriedade central permitir identificação e compreensão das intenções e ações do outro. Denominado sistema neurônios-espelho, parece “espelhar” as ações realizadas, codificando uma correspondência funcional entre ação motora e percepção sensorial desta ação. Evidências de observações e técnicas de neuroimagem indicam que este sistema forma parte da atividade neural que participa do processo de mobilização de preocupação empática, a capacidade de sentir e compreender o estado emocional do outro. Esta base biológica correlacionada à capacidade empática constitui, segundo a visão que estas pesquisas vêm sugerindo, o substrato para o desenvolvimento da nossa sofisticada evolução social e da base moral que a governa (Molnar-Szakacs, 2011). A partir desta perspectiva, podemos avançar a concepção de que, na evolução social, regras de moralidade apoiadas nesta base são elaboradas, determinando a construção de papéis sociais, expectativas e sanções a que o sujeito estará submetido. A construção do sujeito estará, portanto, apoiada em dois níveis de socialização: de um lado, conquistas e construções sociais transmitidas para ativação e evolução das capacidades naturais, e, de outro, imposição pura e simples das expectativas sociais. A imposição é menos trabalhosa, de forma que o perigo de um desvio para esta tendência estará sempre rondando o processo de humanização. Quando isto ocorre, o resultado é uma personalidade estruturada com base nos papéis e expectativas sociais, mas desligada de uma base profunda que permitiria ao indivíduo construir condutas morais a partir da vivência e elaboração dos conflitos entre emoções “egoístas” e emoções socialmente orientadas. A partir do exposto, podemos falar de uma humanização “verdadeira” e uma humanização “implantada”. Na humanização “verdadeira”, os preceitos morais serão incorporados através de uma matriz vivencial, e não como submissão a uma autoridade. Uma leitura destas condições pode ser realizada através de conceituações provenientes das observações psicanalíticas. Jung, conforme já mencionamos, denomina persona a estes papéis desempenhados pelo sujeito, referindo-se este termo latino à máscara utilizada pelo ator na antiguidade. O termo caracteriza nossa disposição inata para a adaptação à coletividade mediante o desempenho de papéis no palco do mundo (Whitmont, 1995). Esta adaptação representa perigo quando a personalidade total se identifica com os papéis, construindo uma identidade apoiada nos mesmos, resultando no que Jung denomina identificação com a persona, construção de um sujeito desligado de sua autenticidade. Da perspectiva da interação, o resultado será um sujeito com uma humanização superficial traduzida em polidez e simulacro de interesse e respeito pelo outro. As consequências da identificação com a persona são importantes do ponto de vista pessoal e social, pois, os aspectos socialmente indesejáveis excluídos encontrarão outras formas de expressão, como, por exemplo, o fenômeno do bode expiatório, no qual esses aspectos são projetados nos outros (os vizinhos, outros povos, etnias etc.). Outro autor que formulou importante contribuição para o tema é Donald Winnicott (2000), através do conceito de concern (traduzido como preocupação). Para ele, a capacidade de se preocupar é inata e, se as condições forem favoráveis, os valores correspondentes serão criados a partir de vivência e maturação. Em condições desfavoráveis, teremos um desligamento da base profunda do ser e a construção de um falso self (De Marco et al., 2012). 686

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Humanidades, humanização e medicina A partir da adesão ao modelo científico fundado na experimentação, a medicina construiu um modelo biomédico que propiciou impulso considerável na ampliação de conhecimentos e práticas. Nesta trajetória, contudo, por não se adaptarem ao modelo experimental, houve desconsideração pelos fenômenos psíquicos, que passaram a constituir um estorvo, uma intromissão indesejada (De Marco, 2003). O objetivo desta medicina tem sido a compreensão da fisiologia e patologia do corpo, como se estas dimensões fossem independentes das vivências e emoções. A formação nas escolas médicas tem seguido preferencialmente este modelo, isolando o físico para facilitar a compreensão dos fenômenos estudados, e desconsiderando as dimensões emocionais e vivenciais que constituem a base essencial do processo de evolução cultural e humanização, e que determinam sentido e qualidade de nossa existência, bem como interferem no processo saúde-doença.

O resgate da dimensão psicossocial e o modelo biopsicossocial Já na primeira metade do século XIX, complementarmente à tendência biologizante, tivemos um movimento preocupado com uma atenção à tarefa médica e formação do profissional não limitada exclusivamente aos aspectos biológicos. No plano da dimensão social, a partir dos anos quarenta do século XIX, criam-se condições para a emergência da medicina social (Nunes, 2006). No plano dos aspectos psicológicos, expoentes importantes do movimento de reintegração foram os médicos vienenses Philipp Carl Hartmann e seu discípulo Ernst Freiherr von Feuchtersleben, este último precursor da necessidade do preparo dos médicos em suas aptidões psicológicas. A perspectiva biopsicossocial, delineada como alternativa ao modelo biomédico, preconiza que a formação do futuro profissional não se restrinja ao campo da biomedicina. Em nosso trabalho de formadores dos profissionais, consideramos essencial uma educação emocional, ética e estética, que demonstre e sensibilize para que, ao lado do preparo para o conhecimento das doenças, ocorra um preparo para o conhecimento das pessoas: que aprender a auscultar as pessoas é tão importante quanto aprender a auscultar um coração; que o ensino de técnicas de comunicação é tão importante quanto o ensino de técnicas cirúrgicas. Nesta perspectiva, as áreas ligadas às humanidades têm uma contribuição fundamental para a aquisição desses conhecimentos.

A formação do profissional Eis alguns pontos que ajudam a evidenciar por que esta formação deve ser considerada essencial para o profissional (Llanes, 2011; Rios, Schraiber, 2011; Grant, 2002; Macnaughton, 2000): - O conhecimento e o reconhecimento das emoções (em si e no outro) e seu manejo apropriado contribuem, decisivamente, para construir um campo emocional favorável ao desempenho da tarefa médica. Quem já tem experiência neste campo reconhece prontamente a enorme diferença para a relação que advém, por exemplo, da capacidade de continência e empatia, bem como pela observação e manejo da dinâmica transferencial-contratransferencial (De Marco et al., 2012). - Os dilemas éticos que acompanham desde sempre o exercício da profissão constituem, atualmente, questão altamente crítica (Schraiber, 1997). Hoje, com as intensas mudanças sociais e tecnológicas, a capacitação do profissional neste campo é muito mais necessária e difícil, pois, o campo está em constante transformação. O panorama revela importante defasagem entre, de um lado, as mudanças sociais (que, com a globalização, vêm sofrendo transformações aceleradas e radicais) e as aquisições tecnológicas (com crescimento e transformações exponenciais); e, de outro, as mudanças ético/morais (que, por sua própria natureza, têm gestação e amadurecimento mais lentos). - Quanto à educação estética, embora à primeira vista possa não parecer tão evidente sua importância para o profissional de saúde, um exame mais atento revela sua grande valia. A arte apresenta, em sua linguagem peculiar, conhecimentos sobre os fatos da vida e das pessoas com profundidade que não pode ser alcançada através de outras linguagens. O contato com a arte COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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proporciona transformação no próprio profissional, em sua visão de mundo e qualidade de vida, ao mobilizar “frequências mentais” que favorecem uma visão ampliada do mundo e uma plasticidade desautomatizadora da percepção. A arte é convite à reorganização e experimentação de novas versões do mundo e de si (Tapajós, 2002). É possível, no curso médico, oferecer o preparo necessário? Certamente não, mas o importante é fornecer referências importantes para que observem, reflitam e para que tenham saídas criativas frente ao inesperado e ao imprevisível, que sempre acontece nos encontros humanos, e deixar claro, parafraseando William Osler (1950), que a educação específica do profissional não é o curso colegial, nem mesmo o curso médico, mas um curso de vida, para o qual o trabalho de poucos anos sob ensino é apenas preparação.

A experiência da Unifesp Em nosso trabalho na Unifesp, um cuidado é evitar transformar esse ensino em mera aquisição de técnicas, utilizadas mecanicamente (Rios, Schraiber, 2011). Entendemos a técnica como recurso útil e necessário a ser incorporado sempre respeitando a equação pessoal e autenticidade. Nesta perspectiva, trabalhamos com diversas técnicas e recursos metodológicos que incluem, no plano formal: trabalhar com pequenos grupos, utilizar diversas técnicas de mobilização psicodramáticas, um laboratório de comunicação no qual utilizamos o recurso de vídeofeedback interativo (De Marco et al., 2010) etc.; e, no plano do conteúdo, o recurso a diferentes fontes de conhecimentos, tanto no campo científico (disciplinas psicológicas, sociológicas, antropológicas etc.) quanto manifestações ligadas à arte, como literatura, teatro e cinema. No contexto deste trabalho, nos limitamos a apresentar, com mais detalhes, apenas a experiência introdutória que ocorre no segundo semestre do primeiro ano da graduação em medicina.

Conhecendo pessoas - uma ciência, uma arte Como introdução a um programa que se estende por todo o curso, utilizamos uma metodologia que incorpora contribuições das ciências e das artes para ampliar o conhecimento do aluno em relação às pessoas e aos dilemas humanos. Textos científicos, contos literários e filmes são estímulos para debates, discussões e planejamento de trabalhos (De Marco et al., 2011; 2009). A intenção é aguçar a auto-observação e a observação das pessoas, instrumentalizando-as para a flexibilidade necessária para enfrentarem situações, reconhecendo os dilemas humanos e identificando e considerando os aspectos relevantes presentes no campo relacional e comunicacional (o que inclui o reconhecimento de seus estados e sentimentos, bem como os de seus pacientes). Procuramos instrumentalizá-los para reconhecerem e evoluírem suas capacidades de observação, empatia e continência. Para uma efetividade real, procuramos imprimir forte cunho experiencial, através de observação, compartilhamento e reflexão das vivências. Pretendemos, também, que a própria relação professor-aluno sirva como modelo de uma relação viva e autêntica, e o manejo das experiências emocionais ocorra de forma que, estendendo o conceito formulado por Bion, seja promovida a “rêverie do papel profissional”, onde as atitudes do professor proporcionem continência, acolhimento e elaboração das vivências, visando favorecer a metabolização de angústias que emergem nas experiências do curso. “Conhecer pessoas” é o mote do curso que pretende aprofundar o contato dos alunos com diferentes áreas que historicamente têm se interessado pelo conhecimento e equacionamento dos dilemas humanos. As aulas, em pequenos grupos (vinte alunos), visam facilitar o contato entre professores e alunos e favorecer ampla participação. Através da discussão das contribuições das diferentes áreas de conhecimento, como mitologia, filosofia, psicologia, sociologia, antropologia, história, bem como, produções ligadas à arte, como literatura, teatro e cinema, procuramos sensibilizá-los para o imenso manancial que estas áreas produziram para o conhecimento das pessoas, seus conflitos e dilemas.

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Por exemplo, através da abordagem da psicologia, acessar conhecimentos do desenvolvimento da personalidade, seus momentos críticos, progressões e regressões, demonstrando a ajuda que estes conhecimentos podem proporcionar na detecção de fatores e situações de risco que contribuem para a saúde e a doença, bem como as reações da pessoa frente ao adoecer. Estes mesmos conhecimentos podem ser muito enriquecidos através de contato com manifestações ligadas à arte. Assim, se queremos um retrato vivo de como se sente e o que se passa com um doente e seu entorno, bem como uma visão crítica dos médicos e da medicina, a leitura de “A morte de Ivan Illitch” (Tolstoi, 1998) pode ser muito enriquecedora. No texto de psicologia, sociologia, antropologia, vamos encontrar mais informação conceitual; na literatura (nos bons escritores), encontraremos uma visão aguçada da “vida como ela é”. Se quisermos conhecer mais sobre o médico, sua personalidade e as vicissitudes do exercício da medicina, podemos estudar textos (psicológicos, sociológicos, antropológicos), mas se, complementarmente, fizermos uma reflexão sobre o mito de Asclépio e seu tutor Chiron (o curadorferido), com certeza, sairemos bastante enriquecidos. Por outro lado, se desejamos saber como se sente um médico quando adoece, a leitura do livro “O médico doente”, de Dráuzio Varela (2007), nos fornece uma amostra instigante. Durante o curso, assistimos e discutimos alguns filmes, entre os quais: Freud Além da Alma, Os Quatro Diamantes e Uma Lição de Vida. O primeiro, desperta interesse dos alunos pela postura investigativa do médico recém-formado Sigmund Freud na busca de entendimento dos quadros histéricos. O filme serve como ilustração para discutir, com os alunos, noções básicas de Psicanálise e sua contribuição para o conhecimento das pessoas. O filme Os Quatro Diamantes, baseado numa história real, mostra a luta de um menino e sua família com uma doença grave (câncer). O menino Christopher, que costuma fantasiar ser cavaleiro da Távola Redonda, é obrigado, em função da descoberta de um câncer, a fazer uma quimioterapia durante suas férias escolares. Ao retornar às aulas, ao invés da tradicional redação “o que fiz nas férias de verão”, é liberado, pelo professor, para escrever uma história de ficção. Envolvendo, em suas fantasias de cavaleiro, médicos e familiares, aborda a luta que trava com sua doença. Este filme sensibiliza muito os alunos, promovendo ampla discussão sobre a comunicação da médica com seu paciente e as diversas reações ao adoecer. O filme uma Lição de Vida mostra a luta de uma professora universitária, que leciona poesia inglesa, e recebe, através de um oncologista/pesquisador famoso, a notícia de que tem câncer de ovário em estágio avançado. A professora, ela própria, mantinha relacionamento frio e distante com seus alunos e, na posição de paciente, vê-se exposta ao mesmo tratamento que dispensava. O tratamento e evolução de sua doença lhe permitem rever sua vida e sua forma de se relacionar. O filme propicia a discussão da relação e comunicação médico-paciente, das fases do adoecer, consentimento informado, autonomia e ética em pesquisa. Na literatura, um texto que temos utilizado é o conto “O Espelho” (1882) de Machado de Assis (Brayner, 1981), autor conhecido pelo olhar minucioso sobre o comportamento humano. Neste conto, o personagem, ao receber um posto militar, é surpreendido pelo respeito e destaque que recebe quando está fardado. Ser visto fardado torna-se necessidade, a ponto de provocar, quando o personagem fica sozinho por breve período, intensa angústia frente a um sentimento de não-existência. O uniforme militar serve como metáfora para se discutir o uso do avental branco, sua interferência nos relacionamentos e o respeito a ele conferido. Numa avaliação do curso, a maioria dos alunos considerou a leitura e discussão deste conto um dos momentos mais marcantes, pela mobilização que produziu para ajudá-los a refletir sobre o papel e as vivências despertadas quando em contato com os pacientes. Outra atividade marcante é o trabalho final cujo tema é “Conhecendo pessoas: uma ciência, uma arte”. O trabalho é proposto no início do curso e os alunos se dividem em grupos (de seis a sete alunos). Eles são estimulados a utilizar recursos tanto da ciência como da arte na formatação do trabalho. A forma e apresentação são muito variadas: montagem de cenas de teatro, produção de filmes,

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entrevistas etc. A experiência promove a aproximação a um campo de conhecimento a partir de uma abordagem pouco habitual para um estudante de medicina, envolvendo importante componente lúdico. Também proporciona oportunidade de exercitar o trabalho em grupo e conhecer melhor seus colegas e a si mesmo. Este modelo de curso tem indicado que a utilização conjunta de recursos das ciências e das artes tem grande potencial para instrumentalizar vivências e reflexões no futuro profissional, contribuindo para um desenvolvimento pessoal e profissional incorporado, e abertura crítica e aberta frente ao imenso desafio do contato com a condição humana.

Considerações finais: questões e inquietações O preparo dos alunos de medicina a partir de conhecimentos que não se enquadram no modelo biomédico pode produzir reações que vão da surpresa à hostilização. As reações podem partir dos próprios estudantes por não entenderem o sentido destes conhecimentos para sua atividade profissional. No plano do ambiente universitário voltado para a área da saúde, trabalhar com este campo coloca o profissional numa situação desprestigiada frente às demandas de valorização e progressão na carreira. Rees (2010) pontua a questão do que considera as humilhações sofridas pelas pessoas interessadas e dedicadas a promoverem a incorporação de conhecimentos vinculados às humanidades no campo da formação em saúde. Entre as humilhações mais correntes, está aquela expressa através de formulações, como: “qual a diferença que faz na prática” e, mais especificamente, “qual o custo-benefício?” Esta questão pode facilmente provocar choque e confusão nos profissionais interessados pelo campo, uma vez que, à primeira vista, parece bastante pertinente, pois, o que é exatamente a medicina senão, de um lado, um conjunto de práticas orientadas para ações voltadas à provisão de serviços considerados benéficos para os receptores, e, de outro, o reembolso desses serviços? Neste contexto, no qual utilidade e eficiência são os déspotas beneficentes para quem todos respondem, nada mais justo que exigir às humanidades médicas justificarem seu custo (Rees, 2010). A resposta a esta exigência tem sido, de uma forma geral, a tentativa, por parte dos professores e pesquisadores da área, de demonstrarem o valor de seu trabalho a partir de indicadores como: aumento de satisfação com a experiência, aumento da aderência a tratamentos, comunicação mais efetiva, melhor manejo de sintomas, redução do estresse associado a diagnósticos difíceis, custo-efetividade e redução de custos. A adesão a estas exigências tem despertado inquietações, expressas em algumas questões, formuladas por Rees (2010), que subscrevemos e deixamos aqui registradas para estimular debate e inquietudes: qual o perigo desta adaptação? Será um alistamento no movimento tecnológico e administrativo para melhorar a eficiência e utilidade da medicina? Uma submissão às agendas da medicina e da ética médica, que trata as humanidades como um refúgio das questões difíceis, ao invés de um cadinho para questões difíceis? Uma contribuição para a progressiva aquisição e refinamento destes fins, e não para provocar questões internas ou que possam ser disruptivas? Ou, finalmente, para melhorar o trabalho dos médicos, e não para questionar esse trabalho e a administração da medicina como uma profissão ética?

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BION, W.R. O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991. ______. Cogitações. Rio de Janeiro: Imago, 1992. BRAYNER, S. (Org.) O conto de Machado de Assis: antologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. DE MARCO, M.A. A face humana da Medicina. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. DE MARCO, M.A. et al. Psicologia médica: abordagem integral do processo saúde-doença. Porto Alegre: Artmed, 2012. ______. Conhecendo pessoas - uma ciência, uma arte: breve relato de uma experiência na Graduação Médica da EPM-UNIFESP. Interface (Botucatu), v.15, n.39, p.1219-22, 2011. ______. Laboratório de comunicação: ampliando as habilidades do estudante de medicina para a prática da entrevista. Interface (Botucatu), v.14, n.32, p.217-27, 2010. ______. Semiologia Integrada - uma experiência de aproximação antecipada e integrada à prática médica. Rev. Bras. Educ. Med., v.33, n.2, p.282-90, 2009. GOMES, R.M.; SCRAIBER, L.B. A dialética humanização-alienação como recurso à compreensão crítica da desumanização das práticas de saúde: alguns elementos conceituais. Interface (Botucatu), v.15, n.37, p.336-50, 2011. GRANT, V.J. Making room for medical humanities. Med. Human., v.28, n.1, p.45-8, 2002. HOFFMAN, M.L. Empathy and moral development: implications for caring and justice. New York: Cambridge University Press, 2000. HUNTER, P. The basis of morality. EMBO Rep., v.11, n.3, p.166-9, 2010. doi:10.1038/ embor.2010.19. JUNG, C.G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987. KESSELRING, T. Ética e emoções morais. Cad. IHU Ideias, v.4, n.52, p.1-15, 2006. LLANES, M.E.M. Ciencias Sociales y Humanísticas en la formación médica. Rev. Hum. Med., v.11, n.1, p.18-44, 2011. MACNAUGHTON, J. The humanities in medical education: context, outcomes and structures. Med. Human., v.26, n.1, p.23-30, 2000. MOLNAR-SZAKACS, I. From actions to empathy and morality: a neural perspective. J. Econ. Behav. Org., v.77, n.1, p.76-85, 2011. NUNES, E. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. Rio de Janeiro: Hucitec, Fiocruz, 2006. p.295-315. OSLER, W. Aphorisms from his bed side teachings and writings. Collected by Robert Bennett Bean; edited by William Bennett Bean. New York: Henry Schuman Inc., 1950. REES, G. The ethical imperative of medical humanities. J. Med. Humanit., v.31, n.4, p.267-77, 2010. RIOS, I.C.; SCHRAIBER, L.B. Uma relação delicada: estudo do encontro professor-aluno. Interface (Botucatu), v.15, n.36, p.39-52, 2011.

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SCHRAIBER, L.B. No encontro da técnica com a ética: o exercício de julgar e decidir no cotidiano do trabalho em medicina. Interface (Botucatu), v.1, n.1, p.123-40, 1997. TAPAJÓS, R. A introdução das artes nos currículos médicos. Interface (Botucatu), v.6, n.10, p.27-36, 2002. TOLSTOI, L. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Publifolha, 1998. VARELLA, D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. WHITMONT, E.C. A busca do símbolo. São Paulo: Cultrix, 1995. WINNICOTT, D.W. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

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Neste artigo discutimos os conceitos de humanização e humanidades, sua relação com a comunicação na constituição do sujeito e sua importância na formação profissional, a partir de uma perspectiva do preparo de profissionais que tenham as competências para um trabalho que contemple a integração e a integralidade das práticas. É apresentada uma revisão do campo, discutindo os papéis historicamente atribuídos à natureza e à cultura na constituição do sujeito, particularmente em sua dimensão emocional e moral. É relatado um trabalho que vem sendo desenvolvido há vários anos no campo da graduação em medicina tendo como referencial conclusões que emergem deste estudo. Finaliza-se com uma reflexão crítica deste trabalho.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Humanidades médicas. Comunicação em saúde. Educação médica. Communication, humanities and humanization: technical, ethical, esthetic and emotional education for students and healthcare professionals In this paper, we discuss the concepts of humanization and humanities, their relationship with communication in constituting the subject and their importance in professional training, from the perspective of preparing professionals who have the skills for work that includes integration and comprehensiveness of practices. A review of the field is presented, with discussion of the roles historically ascribed to nature and culture in constituting the subject, particularly in its moral and emotional dimensions. We report on a study that has been under development for several years within undergraduate medical education, in which the reference points were the conclusions that emerged from this study. This paper ends by providing critical reflection on this work.

Keywords: Humanization of care. Medical humanities. Health communication. Medical education. Comunicación, humanidades y humanización: la educación técnica, ética, estética y emocional del estudiante y del profesional de la salud En este artículo se discute el concepto de humanización y de humanidades, su relación con la comunicación en la constitución del sujeto y su importancia en la formación, desde una perspectiva de la preparación de profesionales con habilidades para un trabajo que incluye la integración y la integralidad de las prácticas .Se presenta una revisión del campo, discutiendo los roles históricamente asignados a la naturaleza y la cultura en la constitución del sujeto, en particular en su dimensión moral y emocional. También se relata un trabajo que se está desarrollando hace varios años en el campo de la educación médica que tiene como factor referencial las conclusiones que se desprenden de este estudio. Termina con una reflexión crítica de este trabajo.

Palabras clave: Humanización de la atención. Humanidades médicas. Comunicación en salud. Educación médica.

Recebido em 18/06/12. Aprovado em 18/01/13.

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Prevención del consumo problemático de drogas en la escuela: estrategia de formación docente en Argentina utilizando TIC*

Ana Clara Camarotti1 Ana Lía Kornblit2 Pablo Francisco Di Leo3

Introducción El presente trabajo tiene por propósito analizar los discursos de docentes participantes del curso virtual sobre Prevención del Consumo Problemático de Drogas, dictado en forma conjunta por el Ministerio de Educación de la Nación Argentina, el Instituto de Investigaciones Gino Germani de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires y UNICEF Argentina. El objetivo general del curso virtual fue desarrollar un programa de capacitación docente, con alcance nacional, que suministre herramientas teóricas y prácticas para la prevención del consumo problemático de drogas en escenarios escolares. El curso se estructuró en base a 6 ejes temáticos, los que conformaron 6 módulos que se dictaron con una frecuencia quincenal a lo largo de 3 meses (2 módulos por mes). Se previó el desarrollo de foros de intercambio a cargo de tutores para compartir dudas y reflexiones de los cursantes en base a las lecturas de los materiales. En los módulos se examinaron las posturas de los autores más relevantes que han trabajado en cada uno de los temas abordados, estimulando en los cursantes el análisis crítico y la capacidad de síntesis. El objetivo del trabajo aquí presentado es identificar los principales tipos de posiciones discursivas presentes en las intervenciones de docentes en los foros de los 6 módulos del curso. Con dicho fin, analizamos las participaciones de alrededor de 3000 docentes que cursaron durante 2010. Para el análisis del corpus seguimos los lineamientos generales de la teoría fundamentada, utilizando como auxiliar el software Atlas.ti. Aplicando los criterios de parsimonia – maximizar la comprensión de un fenómeno con el mínimo de conceptos posible – y de alcance – ampliar el campo de aplicación del análisis sin desligarse de la base empírica –, en diálogo con el estado del arte y el marco conceptual, identificamos las categorías emergentes de los discursos de los docentes en torno a consumos de drogas, jóvenes, adultos y escuela. A continuación, articulando las categorías emergentes, presentamos los dos tipos de posición discursiva identificados, a los que denominamos: Modelo negativizante-unidimensional y Modelo reflexivo-multidimensional.

* Una versión preliminar fue presentada en las IX Jornadas Interdisciplinarias de Salud y Población, organizadas por el Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, en agosto de 2011, sin haber sido publicada. 1-3 Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires/CONICET. Pte J. E. Uriburu 950, 6to (C1114AAD). Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. anaclaracamarotti@ gmail.com

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Resultados Modelo negativizante-unidimensional A partir del análisis de los discursos de los docentes en los foros del curso virtual identificamos cuatro categorías emergentes que caracterizan a este modelo: 1 La droga es un flagelo que castiga a los jóvenes aprovechando sus carencias y vulnerabilidades En esta categoría se observan ideas en torno a concepciones de los consumos de drogas que entienden a los jóvenes como sujetos carentes e incompletos. Entre los discursos de este grupo de docentes encontramos una postura estigmatizante de los jóvenes y en algunos casos también discriminatoria: “los jóvenes que se drogan son peligrosos, no aprecian sus vidas ni las de los otros”, “cada vez más jóvenes se drogan”, “la drogadicción es un paso a la delincuencia”. Desde una visión pesimista, plantean la situación de consumo de drogas como algo que ya está instalado en la sociedad, como un hecho consumado y que poco o nada puede hacerse para erradicarla. Esta posición discursiva puede vincularse con el Modelo de Creencias de Salud (Becker, 1974), que sostiene que si las personas poseen información sobre la severidad de las enfermedades, adoptarán conductas saludables si perciben que las conductas recomendadas son efectivas. Se parte del supuesto de que guiamos nuestras prácticas por aspectos racionales, que si tenemos información adecuada y creíble, adoptaremos las medidas de prevención necesarias. El modelo explica las causas del consumo de drogas con teorías parciales, basadas en factores unidimensionales y específicos al individuo. Determinados rasgos de personalidad, ciertos comportamientos o carencias en la relación entre el individuo y el contexto social, eran algunas de las variables que entendía como determinantes al momento de consumir o no drogas. Para esta corriente, las sustancias no cumplen ninguna función (ni social, ni política, ni económica) en las sociedades, por lo cual le resulta muy difícil explicar por qué los consumos de drogas perduran, se diversifican e incrementan sus niveles. 2 La droga “se filtra” en la escuela contaminando la vida de los jóvenes En estos discursos un aspecto relevante es la homogeneidad del concepto de drogas. El término es utilizado en singular y siempre se piensa que se trata de un consumo problemático. “La droga” aparece como algo ajeno, que se puede evitar y que es posible erradicar. Para ello es fundamental no probarla. Se subjetiviza a la droga (objeto) y se objetiviza y se cosifica al sujeto que consume, se lo persigue, critica, excluye, pero no se proponen alternativas posibles en relación a formas de prevención, a estrategias de contención, a tipos de tratamiento, etc. Los docentes descontextualizan así el consumo, a la vez que no incluyen en sus explicaciones las relaciones que se establecen entre el tipo de sustancia/s que se consumen; la frecuencia de su uso; la trayectoria de la persona en el consumo de drogas; el perfil del consumidor; la edad de inicio en el consumo; el contexto social, cultural, económico en el que se encuentra la persona que está consumiendo. Los discursos docentes que se agrupan en este modelo presentan un tono fatalista, trágico, moralizante. Se basan en ejemplos puntuales que son tan impactantes para ellos que hacen que el resto de los jóvenes, que probablemente tengan otros intereses, se diviertan con sus pares, trabajen, estudien, colaboren en sus casas, estén preocupados pensando en su futuro, pasen a segundo plano. En este modelo se toman en cuenta sólo las denominadas “drogas ilegales”; no se hace mención en cambio al consumo de tabaco ni al de alcohol. Los docentes alertan sobre el vacío institucional en el que viven (salud, educación, familia), fundamentalmente en lo que se refiere a la falta de procedimientos para abordar en la escuela situaciones concretas de jóvenes con problemas de consumos de drogas o adictos. Sin tener en cuenta 696

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que estos casos son poco frecuentes en la escuela, el hecho de no contar con procedimientos claros y estructurados colabora para que los docentes magnifiquen estas situaciones y, como consecuencia, se genera una falta de interés al momento de tener que encarar actividades de prevención, ya que consideran que abrir un espacio de diálogo más horizontal con sus alumnos puede terminar desbordándolos y/o agregándoles más trabajo. Utilizar el término “flagelo” les permite desvincularse y externalizar un problema que los “desborda”. Es en este sentido que entienden su trabajo individual como insuficiente porque frente a una problemática tan grandilocuente se requiere de todo un sistema especializado para atender dicha situación. Terminan entonces esperando recetas mágicas, externas y universales. 3 La escuela debe dar la batalla en contra de la drogadicción Para este grupo de docentes la escuela es vista como la principal institución estatal “civilizatoria”, encargada de encabezar la batalla contra el “flagelo de la droga” en nombre de las familias y de la sociedad en su conjunto. La función central de las instituciones educativas sería asegurar “un futuro a todos los jóvenes del país”, dándoles herramientas para afrontar los riesgos generados por el mercado de las drogas y por las diversas situaciones de vulnerabilidad que viven los adolescentes. En esta categoría encontramos un corrimiento en las interpretaciones que los docentes hacen del modelo más tradicional que caracterizamos en la primera categoría. El proceso de socialización se ubica como esquema explicativo de diferentes tipos de conductas problemáticas. Así, las conductas de las personas dependen de los vínculos que se establezcan con sus entornos de socialización; cuando el individuo adquiera una fuerte vinculación con ámbitos sociales y culturales será una persona integrada; cuando esto no funcione “correctamente” estaremos en presencia de sujetos “problemáticos”, que en el caso de que consuman drogas pueden categorizarse como “desviados”, “enfermos”, “carentes”. Para estos docentes la escuela se ubica como el lugar fundamental para la “detección” y la derivación de los jóvenes que tienen problemas con el consumo de drogas. Si bien la escuela parece ser la protagonista en cuanto a dar soluciones a esta problemática, no termina siendo de este modo. Ella sólo se constituye como una intermediaria entre los jóvenes y las instituciones “especializadas”: centros de prevención de adicciones, comunidades terapéuticas, psicólogos, centros de salud. En ninguna de las posiciones anteriores se entiende a la escuela como una institución que pueda propiciar cambios concretos en estas problemáticas, con perspectivas de trabajo que utilicen e integren lo lúdico, lo expresivo, involucrando a todos los actores escolares (directivos, docentes, preceptores, alumnos) y de la comunidad en acciones de promoción de la salud que pongan en el centro los distintos saberes y experiencias de los sujetos. 4 Los adultos son los principales responsables de formar y orientar a los jóvenes para evitar que caigan en la droga Para este grupo de docentes, los padres son los únicos responsables adultos del consumo de drogas de los jóvenes. Nunca emergen discursos críticos en torno a los modos que tienen docentes y directivos, como parte del colectivo de adultos, de relacionarse con los alumnos, lo que no contribuye hacia una mirada reflexiva acerca de qué cosas podrían modificar desde su práctica concreta para poder contribuir a algún cambio al respecto. De este modo, se externaliza el problema y la escuela sólo puede contribuir con la “detección” de los jóvenes que consumen. Se parte de la idea de que los sujetos adultos lo son porque han alcanzado la madurez necesaria y por tanto nada tienen para aprender. Los jóvenes, en cambio, deben transitar este camino hacia la adultez para poder ser sujetos plenos. En ese recorrido las drogas se encuentran al asecho y los adultos, en el mejor de los casos, sólo pueden estar ahí para alertar a los jóvenes y no permitirles que “caigan” en el consumo. Es decir, el consumo de drogas aparece como una práctica exclusiva del colectivo de jóvenes; los adultos, en cambio, no tienen ningún riesgo ya que permanecen ajenos al mismo. Desde el paradigma moralista – actualmente dominante en los abordajes que articulan educación y salud –, se reproduce una concepción de salud definida y reglada por los discursos biomédicos, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.46, p.695-703, jul./set. 2013

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orientada hacia la enfermedad como un problema individual. Esto bloquea la consideración de las dimensiones socio-políticas y de las condiciones estructurales en las que se enmarcan los problemas de salud, lo que los aleja de las definiciones más complejas, socio-políticas y globales del bienestar individual y colectivo, que fueron surgiendo a partir de las diversas críticas y experiencias desarrolladas desde la medicina social y que fueron parcialmente plasmadas en los documentos de la Organización Mundial de la Salud (OMS, 1998). Desde esta postura las acciones de educación para la salud buscan imponer concepciones racionales del bienestar y de las conductas saludables, sin tener en cuenta las definiciones, experiencias y capacidades de reflexión sobre sí mismos de los sujetos implicados.

Modelo reflexivo-multidimensional A partir del análisis de los discursos de docentes en el foro identificamos las siguientes cuatro categorías emergentes que caracterizan a este modelo: 1 Es necesario realizar una ruptura con las concepciones unidimensionales de los consumos de drogas que parten de la negativización de los jóvenes Retomando las consignas y contenidos del curso, en los foros algunos docentes realizan una crítica a las concepciones estereotipadas en torno a los consumos de drogas. Frente a los discursos del modelo negativizanteunidimensional (identificados principalmente en los medios de comunicación masiva), que homogeneizan el fenómeno a partir de concepciones binarias y naturalizadas, estos docentes señalan su carácter heterogéneo y complejo. Identifican una pluralidad de prácticas de consumo de sustancias, atravesadas por dimensiones culturales, generacionales y/o de género que las van clasificando como legítimas/legales o ilegítimas/ilegales. Desde esta mirada, los docentes critican a las posiciones discursivas de la patología social que, a partir de la homogeneización, establecen relaciones causales lineales entre los términos pobreza, droga, delito y juventud4. Algunos docentes señalan que estos discursos atraviesan la cotidianeidad de sus comunidades educativas, contribuyendo a procesos de estigmatización y/o expulsión de muchos estudiantes y de sus familias. Este tipo de clima social escolar desubjetivante, que Di Leo (2009) analiza e identifica como dominante en escuelas secundarias públicas de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, contribuye a la crisis de sentido de las instituciones educativas y a la reproducción de concepciones reificadas de las subjetividades. La percepción y vinculación de los agentes escolares con los otros – especialmente los jóvenes – se basa en la negación de sus capacidades de agencia y/o reflexividades, tanto desde los discursos naturalistas y/o psicologistas – falta de maduración – como desde su victimización social – objeto pasivo de las transformaciones económico-sociales y culturales. Se negativizan (es decir, se juzgan negativamente) las prácticas de los adolescentes, asociándolas fundamentalmente a las violencias, transgresiones y/o riesgos sociales – consumo de drogas, delito, ITS, VIH/sida, etc. La percepción de una profunda brecha entre el mundo de los adolescentes – visto como no reflexivo, incivilizado, violento – y el de los adultos – visto como reflexivo, civilizado –, genera en la mayoría de los docentes y directivos

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Tal como analiza Mariana Chaves (2005), desde la formación discursiva de la patología social la juventud es definida como el sector de la sociedad que está enfermo o es el más vulnerable para enfermarse. El adolescente es visto como un síntoma, portador de las consecuencias negativas de los cambios sociales (socioeconómicos, familiares, culturales, etc.). Esto constituye una mirada negativa, fuertemente asociada a diversos problemas y/o patologías sociales: alcoholismo, sida, drogas, embarazo adolescente, violencia. Esta formación discursiva está plagada de términos médicos, psicológicos, judiciales y/o sociológicos tanto en torno a los diagnósticos de las diversas patologías – entre las que ocupan un lugar central los consumos de drogas – como a los diversos tipos de estrategias para su tratamiento, prevención, control y/o contención. 4


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sensaciones de una creciente incapacidad para ejercer el rol para el cual fueron formados y, en general, de una crisis de la autoridad y de la institución escolar, las que a su vez profundizan sus sentimientos de malestar y estrés laboral. Las consecuencias de estos fenómenos en la práctica pedagógica – desgano, dificultades para controlar las propias reacciones y establecer una comunicación con estudiantes y pares – retroalimentan en un círculo vicioso los procesos de desubjetivación tanto de sí mismos – objetos de las circunstancias – como de los otros (Di Leo, 2009). 2 Los sujetos y sus contextos grupales, culturales y/o sociales deben ser colocados en el centro de los abordajes de los consumos problemáticos de drogas

5 El modelo de la promoción de la salud parte de la concepción compleja y multidimensional de salud impulsada desde mediados del siglo XX por la Organización Mundial de la Salud (OMS) dirigiéndose a propiciar que los sujetos participen activamente en su crítica y redefinición. A partir del proceso de desnaturalización y reconocimiento reflexivo de las determinantes socioestructurales y sus influencias sobre las prácticas y representaciones individuales, se busca desarrollar las potencialidades de los sujetos para criticar y transformar ambas dimensiones (Kornblit, 2010; Czeresnia, Machado de Freitas, 2006).

Partiendo de la ruptura epistemológica analizada en la categoría anterior, algunos docentes plantean la necesidad de realizar un desplazamiento del centro en los abordajes de los consumos problemáticos de drogas desde las sustancias hacia los sujetos y sus contextos. Critican así las políticas mediáticas y sanitarias que ponen en un lugar predominante a “la droga”, soslayando la multiplicidad de experiencias individuales y de procesos político-económicos en los que se enmarcan los consumos y/o adicciones a sustancias en nuestras sociedades. Desde estas miradas es posible abordar en su complejidad las transformaciones en los niveles de consumo de alcohol de los jóvenes. Según Baigorri Agoiz y Chaves Carrillo (2006), el crecimiento de dichos consumos se enmarca en una tendencia de alcance global, compuesta por el trinomio ocio-mercado-dimisión parental/ estatal. Con el desarrollo de la sociedad industrial, se institucionalizó el tiempo dedicado al descanso. Luego, con los regímenes de Estado de bienestar se profundizó este fenómeno, ya que no había que dedicar todo el tiempo a generar ingresos y a la reproducción familiar; sin embargo, el tiempo de ocio también fue mercantilizado. En la industria del ocio juega un rol central el creciente poder de las multinacionales del alcohol, cuyas inversiones publicitarias y esponsorizaciones se dirigen hacia la población joven. Simultáneamente, se retroalimentan dos formas de dimisión: a) por un lado, el abandono por parte de las familias de algunas de sus tradicionales formas de control; b) la crisis del Estado social, que se viene profundizado en muchos países desde la última década del siglo XX, que ha conducido a la disminución de las políticas dirigidas a la creación de espacios públicos destinados a jóvenes (Camarotti, Di Leo, Adaszko, 2010). Esta perspectiva se articula con las propuestas y estrategias de prevención específica y/o inespecífica de los consumos problemáticos de drogas enmarcadas en el modelo de promoción de la salud5. Desde hace varias décadas los programas de reducción de daños no buscan centrarse en el consumo como tal, sino en los daños individuales y sociales que el mismo trae aparejado. Estas estrategias no consisten solamente en acciones de cambios de jeringas o programas de sustitución de opiáceos, también garantizan el acceso de todos a la información y a la prevención, facilitan el contacto de los usuarios de drogas con las instituciones de salud y/o educativas e intentan evitar los costos sociales e individuales que acompañan a la penalización de los consumos de drogas (Hopenhayn, 2002; Touzé, Rossi, 1993;). Por ejemplo, cuando dichos programas se centran en el segmento poblacional que está utilizando sustancias psicoactivas como el paco, no se limitan a encarar problemas sanitarios, como la prevención de infecciones y de sobredosis, sino que encaran también la marginalización, la exclusión social, la criminalización y la estigmatización (Comité Científico Asesor, 2009).

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3 La escuela puede constituir un espacio público para jóvenes que viven en contextos de pobreza, discriminación, violencias y consumos problemáticos de drogas Algunos docentes señalan a la escuela como el único espacio público en el que pueden participar muchos jóvenes que viven en contextos de vulnerabilidad. En muchas ocasiones, a pesar de habitar en barrios con necesidades básicas insatisfechas, atravesados casi cotidianamente por situaciones de violencias, discriminación y/o consumos problemáticos de drogas, muchos jóvenes siguen asistiendo a la escuela pública, viéndola como un ámbito en el que pueden encontrarse con otros sujetos y otras realidades. Algunos docentes e instituciones educativas llevan adelante acciones de promoción de la salud y/o reducción de daños. Desarrollan proyectos en los que se propicia la participación de los distintos agentes de la comunidad educativa, partiendo de la multiplicidad de experiencias y visiones de los sujetos en torno a los consumos de drogas, construyendo e intercambiando conocimientos y desarrollando estrategias preventivas centradas en el cuidado y el reconocimiento de sí mismo y de los otros. Estas acciones de promoción de la salud en las escuelas propician el despliegue de la autonomía, en el sentido propuesto por Cornelius Castoriadis (2008). En un proceso dialéctico y político nunca cerrado, los sujetos individuales y colectivos van apropiándose reflexivamente de los saberes que necesitan y con ellos van resignificando y/o transformando sus condiciones objetivas y subjetivas de vida. Por ende, este proceso de construcción de la autonomía – horizonte nunca alcanzable totalmente – sólo se va posibilitando a partir de la transformación simultánea de las instituciones que co-constituyen a los individuos en todos los momentos de su vida (Di Leo, 2009). 4 El diálogo entre jóvenes y adultos es fundamental para construir espacios escolares de reconocimiento y transformación Algunos docentes hacen hincapié en la centralidad del diálogo entre jóvenes y adultos como un requisito fundamental para la generación de estrategias de promoción de la salud y/o prevención de los consumos problemáticos de drogas. Como se analizó en torno a las categorías anteriores, estos docentes consideran que sólo a partir del diálogo intergeneracional es posible superar, desde las prácticas pedagógicas cotidianas, las posiciones discursivas negativizante-unidimensional y de la patología social, que centran el problema de los consumos de drogas en los jóvenes (especialmente los pobres), sin escucharlos y negándoles el reconocimiento como sujetos reflexivos. Estas reflexiones y propuestas se articulan con los análisis de Axel Honneth (1997) en torno al lugar que ocupan las luchas por el reconocimiento en los procesos de constitución de las subjetividades. Según este autor, para la adecuada comprensión de los principales modelos de reconocimiento es necesario concretizarlos, abordándolos en relación a las grandes formas de negación de reconocimiento que movilizan a los individuos en los heterogéneos contextos sociales que atraviesan en sus vidas cotidianas. A partir específicamente del reconocimiento ético-social, los sujetos logran el reconocimiento recíproco. Retomando a George Mead (1968), Honneth (1997) señala que a partir de esta modalidad de reconocimiento – a la que también denomina solidaridad –, las normas éticas desde las cuales los sujetos se reconocen recíprocamente en su especificidad individual están abiertas a un proceso de destradicionalización, perdiendo su carácter jerarquizante y prescriptivo. En torno a espacios de diálogo intersubjetivo como los propuestos por algunos docentes, se abren nuevas posibilidades para el despliegue en la escuela del reconocimiento, superando las prácticas discursivas desubjetivantes y/o de la tolerancia, actualmente dominantes en las instituciones educativas. Así, a partir del diálogo entre jóvenes y adultos, se abre la posibilidad de una reconstrucción de la legitimidad de la escuela, constituyéndose en un espacio público, es decir, en un espacio de ejercicio y despliegue de la libertad, autonomía y reflexividades de los sujetos (Di Leo, 2009a).

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Reflexiones finales Los modelos “negativizante-unidimensional” y “reflexivo-multidimensional”, que hemos analizado a lo largo del trabajo, no se presentan de manera pura en las posturas de los docentes. En sus intervenciones en los foros encontramos posturas que representan parcialmente a ambos. En relación con el primer modelo, lo que aparece como menos flexible es la concepción del consumo de drogas en los jóvenes signada por el dramatismo, la espectacularidad y la negación de que puedan existir consumos de drogas que no sean problemáticos. Dichas rigideces están acompañadas de una desconexión de este fenómeno con respecto a las dimensiones históricas, sociales, culturales y generacionales. Esta representación social del fenómeno conduce a la no implicación de los docentes y de la escuela en el abordaje de estos temas en el ámbito educativo. Asimismo, las escasas iniciativas de abordaje de los consumos de drogas realizadas en el marco de este tipo de posiciones se centran únicamente en la transmisión de información como generadora de cambios en las actitudes y prácticas individuales. La limitada correspondencia que tiene la mayoría de dichas acciones con las problemáticas que pretenden afrontar se debe fundamentalmente a que profundizan la distancia entre, por un lado, los saberes y prácticas disciplinarias y moralizadoras hegemónicas en las instituciones educativas; y, por el otro, la pluralidad de experiencias, modalidades de socialización y de construcción identitaria de los jóvenes. Por ello, este tipo de prácticas y discursos, más que abrir espacios de encuentro con los estudiantes, los clausuran, constituyendo barreras para la institucionalización de prácticas de promoción de la salud en la escuela. En contraposición con el anterior, el segundo modelo analizado parte de una desnaturalización de las representaciones en torno a los consumos de drogas y su asociación exclusiva con la juventud. En sus reflexiones los docentes tienen en cuenta las relaciones que se establecen entre los contextos socioculturales y económicos, el perfil de los sujetos y las características de las diversas sustancias. Por otro lado, es destacable la resignificación de la escuela como espacio público en el que es posible la generación de diálogo entre adultos y jóvenes, desde los cuales se construye el conocimiento y el reconocimiento. A medida que se propicien desde las instituciones educativas las acciones de promoción de la salud centradas en este tipo de posición, se abren nuevas posibilidades para la construcción de un diálogo entre los diversos sujetos que participan cotidianamente en las mismas, que se orientará hacia sus horizontes de felicidad, incorporando las dimensiones éticas y estéticas de la existencia (Ayres, 2002). A partir del diálogo entre las diversas experiencias y saberes de jóvenes y adultos, se abren nuevas posibilidades para la reconstrucción de la legitimidad de la escuela, constituyéndose, en términos de Hannah Arendt (1993), en un espacio público, un espacio de ejercicio y despliegue de la libertad de los sujetos. En relación con este modelo hay que tener en cuenta que las categorías que aparecen de él pueden haber estado influidas por los contenidos del curso. Por otra parte, aún cuando no contamos con estudios previos, es posible suponer que las posturas de los docentes se encuentran atravesadas por los debates actuales sobre el tema, que cuestionaron fuertemente las posturas más tradicionales en torno a él. Si bien el modelo está presente en buena parte de los docentes que hicieron el curso, las propuestas que ellos formularon en relación con sus posibilidades de implementación son aún débiles, por lo que podría suponerse que hay barreras que obstaculizan la transformación de los contenidos teóricos incorporados en propuestas de intervención preventivas. Es posible que estas barreras se vinculen con las rigideces de la institución escolar y del habitus docente tradicional, cuya transformación requiere procesos de reflexión y capacitación de largo aliento que comiencen en la formación inicial. En muchos casos estas posiciones llevan al aislamiento de los docentes dispuestos a introducir cambios en las prácticas pedagógicas. Ello conduce a un desgaste personal y a reacciones y resistencias de parte de sus colegas.

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Colaboradores Los autores trabajaran de manera conjunta en todas las etapas de producción del manuscrito. Referencias ARENDT, H. La condición humana. Buenos Aires: Paidós, 1993. AYRES, J.R.C.M. Conceptos y prácticas en salud pública: algunas reflexiones. Rev. Facul. Nac. Salud Publ., v.20, n.2, p.67-82, 2002. BAIGORRI AGOIZ, A.J.; CHAVES CARRILLO, M. Botellón: más que ruido, alcohol y drogas. Anduli: Rev. Andal. Cienc. Soc.,v.1, n.6, p.159-73, 2006. BECKER, M. The health belief model and illness behavior - health education. Monographs, v.2, n.4, p.409-19, 1974. CAMAROTTI, A.; DI LEO, P.; ADASZKO, D. Experiencias juveniles nocturnas, usos y significados en torno al consumo de alcohol en tres ciudades de Argentina. Rev. Cons. Prof.,v.1, n.45, p.14-5, 2010. CASTORIADIS, C. Un mundo fragmentado. La Plata: Terramar, 2008. CHAVES, M. Juventud negada y negativizada: representaciones y formaciones discursivas vigentes en la Argentina contemporánea. Ultima Decada, v.1, n.23, p.9-32, 2005. COMITÉ CIENTÍFICO ASESOR EN MATERIA DE CONTROL DEL TRÁFICO ILÍCITO DE ESTUPEFACIENTES, SUSTANCIAS PSICOTRÓPICAS Y CRIMINALIDAD COMPLEJA SOBRE LOS USUARIOS DE DROGAS Y LAS POLÍTICAS PARA SU ABORDAJE, 2009. Disponible en: <http:// www.jgm.gov.ar/archivos/comisionnacional/DO1usuarios.pdf>. Acceso en: 15 mayo 2012. CZERESNIA, D.; MACHADO DE FREITAS, C. (Orgs.). Promoción de la salud: conceptos, reflexiones y tendencias. Buenos Aires: Lugar, 2006. DI LEO, P.F. La promoción de la salud como política de subjetividad: constitución, límites y potencialidades de su institucionalización en las escuelas. Salud Colect., v.5, n.3, p.377-89, 2009. HONNETH, A. La lucha por el reconocimiento: por una gramática moral de los conflictos sociales. Barcelona: Crítica, 1997. HOPENHAYN, M. (Comp.). Prevenir en drogas: enfoques integrales y contextos culturales para alimentar buenas prácticas. Santiago de Chile: Naciones Unidas, 2002. (CEPAL - Serie Políticas Sociales, 61). KORNBLIT, A.L. La promoción de la salud entre los jóvenes. Acta Psiquiat. Psicol. Am. Lat., v.56, n.3, p.217-26, 2010. MEAD, G. Espíritu, persona y sociedad. Buenos Aires: Paidós, 1968. OMS. Promoción de la Salud. Glosario. Ginebra: OMS, 1998. Disponible en: <http://www.bvs.org.ar/pdf/glosario_sp.pdf>. Acceso en: 7 mar. 2013. TOUZÉ, G.; ROSSI, D. Sida y drogas: ¿abstención o reducción del daño? Buenos Aires: FAT, 1993.

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Desde 2010 nuestro equipo diseña y coordina un curso virtual sobre Prevención del Consumo Problemático de Drogas dictado por el Ministerio de Educación de Argentina. En el momento cuenta con tres ediciones en las que participaron alrededor de 6.000 docentes. En este artículo buscamos: a) analizar los discursos de los participantes para identificar sus posiciones en referencia al consumo de drogas; b) reflexionar sobre las implicaciones de estas posiciones para el desarrollo de estrategias de promoción de la salud en la escuela. Para el análisis del corpus seguimos los lineamientos de la teoría fundamentada, identificando dos grandes posiciones discursivas: modelo negativizanteunidimensional y modelo reflexivo-multidimensional. Mientras que el primero conduce a la no implicación de los generación de espacios escolares de diálogo y de reconocimiento entre adultos y jóvenes.

Palabras clave: Instituciones académicas. Docentes. Adolescente. Educación a distancia. Discursos sobre uso de drogas. Prevenção do consumo problemático de drogas na escola: estratégia de formação de professores na Argentina utilizando TIC Desde 2010 nossa equipe projeta e coordena um curso virtual ditado pelo Ministério Nacional de Educação da Argentina. Até hoje, conta com três edições nas quais participaram cerca de seis mil professores de todo o país. Neste artigo procura-se: a) analisar o discurso dos professores para identificar as suas posições sobre o uso de drogas; b) refletir sobre as implicações dessas posições discursivas para o desenvolvimento de estratégias de promoção da saúde na escola. Para a análise do corpus, seguimos as diretrizes da teoria fundamentada, identificando duas grandes posições discursivas: modelo negativizante-unidimensional e modelo reflexivomultidimensional. Enquanto o primeiro leva ao descompromisso dos professores e da escola na abordagem dessas questões, o segundo propicia a geração de espaços escolares de diálogo e reconhecimento entre adultos e jovens.

Palavras-chave: Instituições acadêmicas. Docentes. Adolescentes. Educação a distância. Discursos sobre uso de drogas. Prevention of problematic drug use in schools: teacher training strategy in Argentina using ICT Starting in 2010, our team has designed and coordinated a virtual course on problematic drug use, for teachers, commissioned by the Ministry of Education in Argentina. So far, the course has been run three times, with participation from around 6.000 teachers across the country. In this article, it was sought: a) to analyze the teachers’ discourse in order to identify their positions relating to drug use; b) to reflect on the implications of these discursive positions for development of health promotion strategies in schools. To analyze the corpus, we followed the guidelines of grounded theory and identified two major discursive positions: a negational single-dimensional model and a reflective multidimensional model. While the former leads to disengagement among teachers and their schools in addressing these issues, the latter aims to generate school spaces for dialogue and recognition between adults and adolescents.

Keywords: Schools. Faculty. Adolescent. Education distance. Speeches about drug use.

Recebido em 01/06/12. Aprovado em 03/01/13.

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O uso de filmes como recurso pedagógico no ensino de neurofarmacologia Setsuko Noro dos Santos1 André Noro2

Introdução Os recursos audiovisuais têm sido frequentemente utilizados como facilitadores no processo-ensino aprendizagem. A produção de documentários, vídeos e animações para uso específico em sala de aula tem se multiplicado e facilitado a utilização de tais recursos, em especial, por se encontrarem disponibilizados de forma gratuita na internet (Maestrelii, Farrari, 2006). Outra forma é a utilização de filmes comerciais como recurso pedagógico. De acordo com Farré et al. (2004, p.1), “ filmes comerciais são aqueles produzidos para serem exibidos em salas comerciais ou canais de TV, não sendo feitos para serem utilizados como ferramenta de ensino”. São baseados em histórias de ficção ou são livres adaptações de uma história ou fato real. A qualidade dos filmes, a boa atuação dos atores e atrizes envolvidos, e a forma como a história é desenvolvida favorecem a confiabilidade dos espectadores e a aceitabilidade entre os jovens, tornando-os muito convenientes para serem utilizados em atividades de ensino (Farré et al., 2004). Muitos desses filmes estão sendo reconhecidos e utilizados para as discussões em assuntos acadêmicos, sociais, éticos, econômicos e políticos (Toman, Rak, 2000; Berger, Pratt, 1998; Conner, 1996; Anderson, 1992). Na área de Ciências Biológicas e da Saúde, os filmes comerciais têm sido utilizados para auxiliar no ensino de temas relacionados à: ética em pesquisa, Genética, Microbiologia, Psicologia, Psiquiatria, Neurologia e Farmacologia (Gallagher et al., 2011; Guilhem, Diniz, Zicker, 2007; Maestrelli, Ferrari, 2006; Bhagar, 2005; Sierles, 2005; Farré et al., 2004; Lepicard, Fridman, 2003; Crellin, Briones, 1995; Koren, 1993). Para o ensino da Neurofarmacologia, a utilização de filmes comerciais tem contribuído para a reflexão e entendimento de situações clínicas (Gallagher et al., 2011; Farré et al., 2004; Koren, 1993); entretanto, para a obtenção de maior aproveitamento, é importante que sejam previamente acompanhados de referencial teórico para subsidiar um debate posterior. Para cada aula acompanhada de filme, um planejamento cuidadoso é necessário, desde a sua escolha, que deve estar relacionada com o tema abordado, como, também, pela disponibilidade em locadoras, livrarias, ou fácil localização em livrarias virtuais.

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1 Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Saúde, Universidade de Brasília (UnB). Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Brasília, DF, Brasil. 70910-900. setsuko@unb.br 2 Mestrando, Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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O USO DE FILMES COMO RECURSOS PEDAGÓGICOS ...

O presente trabalho relata uma experiência com a utilização de filmes como ferramenta pedagógica na disciplina neurofarmacologia ofertada para o curso de enfermagem da Universidade de Brasília (UnB). Entende-se, no entanto, que tal recurso pedagógico poderá ser também aplicado em outros cursos da área da saúde, inclusive, em atividade de pós-graduação. A disciplina está organizada em aulas teóricas, seguidas de apresentação de um caso clínico relacionado ao assunto abordado, com discussão teórica farmacológica para facilitar a assimilação do assunto. Em seguida, um filme é indicado aos alunos, tomando-se o cuidado de escolher aqueles que tratem de determinada patologia, com a terapêutica e cuidados de saúde requeridos. Como a disciplina supramencionada requer um conhecimento prévio de Fisiopatologia, Farmacologia Geral e do conteúdo de doenças psiquiátricas, recomenda-se que seja ofertada para alunos com conhecimentos prévios de tais disciplinas. Trabalhos publicados, relacionados à utilização de filmes como recurso pedagógico, sugerem que os filmes sejam exibidos em sala de aula, seguidos, posteriormente, por um debate sobre o mesmo (Gallagher et al., 2011; Guilhem, Diniz, Zicker, 2007; Maestrelli, Ferrari, 2006; Hyde, Fife, 2005; Farre et al., 2004). No planejamento aqui adotado, os alunos assistem aos filmes como atividade extraclasse, organizados em grupos pequenos (máximo de cinco alunos), de modo que possam registrar aspectos clínicos e os nomes dos fármacos utilizados ou relatados no filme. Assistir aos filmes fora do ambiente da sala de aula possibilita a ação de pausas e retrocessos para anotações necessárias. Ao final de cada filme, cada grupo de estudantes prepara um relatório indicando: a provável patologia, os personagens (pacientes) envolvidos, as manifestações clínicas, os fármacos mencionados; descrevendo os aspectos farmacodinâmicos e farmacocinéticos, além dos prováveis efeitos adversos, e, no caso específico do curso de enfermagem, os processos de enfermagem relacionados àquela patologia. Os relatórios são entregues na aula seguinte, momento em que se dá a discussão sobre o filme assistido. São enfatizados, então, os aspectos clínicos da patologia abordada no filme, relacionando-os aos fármacos citados e seus aspectos farmacológicos. Outros fármacos também utilizados nessa patologia são relembrados durante a discussão, mesmo que não tenham sido citados no filme, analisando-se seus aspectos farmacológicos. Para a utilização pedagógica de filmes no curso de Neurofarmacologia, sugerem-se alguns passos para facilitar o planejamento e a condução das aulas, bem como alguns filmes já utilizados durante o referido curso. E, ainda, o mesmo recurso pedagógico poderá ser adaptado para o curso de Farmacologia Clínica ou outras disciplinas.

Planejamento da aula - Organizar o conteúdo programático do curso, elegendo os temas a serem abordados – entre os temas abordados no curso, tem-se: farmacologia da anestesia geral, fármacos ansiolíticos, antidepressivos, antipsicóticos, fármacos usados no tratamento de doenças neurodegenerativas (como, por exemplo, Parkinson e Alzheimer) e farmacologia da dependência e abuso de drogas. Na condução das aulas, o referencial teórico é um recurso utilizado pelo professor. O conteúdo aborda o conceito da patologia estudada, a fisiopatologia, os aspectos clínicos, mas a ênfase maior recai sobre o tratamento medicamentoso e todos os aspectos relacionados à farmacoterapia, por tratar-se de um curso de Neurofarmacologia. - Definir os objetivos de cada aula – entre os objetivos constam: a definição da situação/doença, fisiopatologia, aspectos clínicos e terapêuticos, abordando a farmacodinâmica, farmacocinética, interação medicamentosa e efeitos adversos. - Selecionar o filme a ser utilizado – optar, sempre que possível, por filmes que apresentem proximidade com a vida real ou com os temas a serem discutidos. - Conhecer o enredo – assistir ao filme antes de indicar aos alunos e verificar sua adequação ao tema que será abordado. - Preparar um roteiro sobre os principais aspectos a serem analisados – no curso de Neurofarmacologia, o roteiro é importante, uma vez que será solicitado um relatório, além da discussão 706

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SANTOS, S.N.; NORO, A.

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em sala de aula. Caso se opte pela discussão após a exibição do filme, pode-se elaborar um roteiro de questões a serem debatidas após o término do filme, ou iniciar a discussão sem definir previamente o roteiro, a partir de questionamentos dos participantes ou do professor.

Indicação do filme Para cada aula, é indicado um filme relacionado com o assunto estudado (ver Quadro 1). Assistir ao filme previamente ao debate compõe a atividade extraclasse. A entrega do relatório e o debate sobre o filme ocorrerão na aula seguinte. Para facilitar a elaboração do relatório, apresenta-se um modelo de roteiro. Roteiro para elaboração do relatório sobre o filme: - Tema da aula - Nome do filme - Ficha técnica: título original, diretor, produtor, elenco principal, país, ano. - Breve resumo sobre o enredo do filme: indicar qual a temática (enredo), provável patologia, personagens envolvidos e manifestações clínicas sugeridas. - Relacionar os fármacos citados no filme: para cada fármaco, deve ser elaborado um resumo do grupo farmacológico a que pertence, descrevendo: seus mecanismos de ação, principais efeitos farmacológicos e efeitos adversos. Se, durante o filme, não houver indicação de uso de fármacos, recomenda-se relacionar os fármacos que poderiam ser utilizados no tratamento da patologia implicada no filme, descrevendo seus aspectos farmacológicos.

Discussão do filme O mesmo roteiro utilizado para elaboração do relatório também tem serventia para o debate sobre o filme na aula seguinte. O debate implica dialogar sobre os temas, permitindo que os alunos se posicionem sobre os assuntos. Nesse sentido, é importante: - Incentivar a participação oral e estimular a participação de todos os alunos: indicar as cenas do filme que apresentam vínculo com o tema da aula pode servir de estratégia para estimular a participação dos alunos; - Estabelecer uma relação entre a narrativa do filme e a patologia em foco, seus aspectos clínicos, e os fármacos utilizados; - Relacionar os fármacos utilizados com a patologia implicada no filme; - Discutir mecanismos de ação dos fármacos, farmacocinética, efeitos farmacológicos e adversos; - Aproveitar para consolidar conceitos sobre a patologia e farmacoterapia; - Abordar outros aspectos da terapêutica: suporte psicológico, procedimentos de Enfermagem e orientações para os pacientes e familiares; - Debater princípios éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos – se o assunto permitir. O debate é finalizado elaborando-se uma síntese dos aspectos mencionados durante a discussão. A avaliação é feita somando-se as notas dos relatórios e a participação individual nos debates. No Quadro 1, tem-se a relação dos conteúdos teóricos e os filmes utilizados durante a disciplina Neurofarmacologia.

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O USO DE FILMES COMO RECURSOS PEDAGÓGICOS ...

Quadro 1. Relação de filmes utilizados no Curso de Neurofarmacologia - FS-UnB Filme

Tema da aula 1 - Farmacologia dos anestésicos gerais

Linha mortal

2 - Fármacos antidepressivos e distúrbio bipolar

Mr. Jones

3 - Fármacos antipsicóticos: esquizofrenia

Uma mente brilhante

4 - Farmacologia de doenças neurodegenerativas

Óleo de Lorenzo

5 - Farmacologia do Parkinson

Tempo de despertar

6 - Farmacologia do Alzheimer

Íris

7 - Farmacologia da dependência e abuso de drogas

28 dias

Neste artigo, serão ilustrados quatro filmes utilizados durante a disciplina, a saber: Linha Mortal, Mr. Jones, Tempo de Despertar e Uma mente Brilhante. Filme 1: Linha mortal Título original: Flatliners Direção: Joel Schumacher Elenco: Kiefer Sutherland, Julia Roberts, Kevin Bacon, William Baldwin, Oliver Platt, Kimberly Scott, Joshua Rudoy Produção: Rick Bieber, Michael Douglas País de Origem: EUA Gênero: Suspense Tempo de duração: 115 minutos Cor: Colorido Ano de lançamento: 1990 Distribuidora: Columbia Home Video Estúdio: Columbia Pictures Sinopse

Linha mortal conta a história de cinco estudantes de Medicina que decidem fazer uma experiência ousada a fim de descobrir se existe vida após a morte. No Hospital-Escola da Faculdade de Medicina, um grupo de estudantes provoca condições que podem levá-los à morte e à sua reversão. A experiência dá-se com um integrante do grupo por vez. Os estudantes se revezam e são induzidos a um estado bastante próximo à morte e, então, são reanimados. Cada um tenta ficar do “outro lado” o maior tempo possível. O mais visionário deles é Nelson. Ele quer provocar uma parada cardíaca em si mesmo e passar clinicamente morto durante um minuto, antes de ser reanimado pelos amigos. Seu desejo é saber se há vida após a morte. Mesmo com medo, eles levam a ideia em frente. Nelson retorna do “limbo” maravilhado com as visões que a morte artificial lhe trouxe. Instigados pelo sucesso, os demais estudantes decidem repetir, um por um, a experiência. Cada integrante do grupo passa um pouco mais de tempo do que o anterior, do “outro lado”, e a linha que separa a vida e a morte começa a diminuir. Além disso, todos os que visitam o “limbo” experimentam visões sinistras. Durante a “experiência”, são utilizados vários fármacos para induzir a “morte” temporária e, posteriormente, para causar a reanimação cardíaca.

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Roteiro para elaboração do resumo e para o debate do filme Linha mortal . Relacionar os fármacos citados no filme: pentotal sódico, óxido nitroso, adrenalina, atropina, bretílio, lidocaína, cloreto de potássio; . Fazer uma análise crítica se os fármacos e os efeitos observados no contexto do filme ou da cena analisada são condizentes com a sua utilização e seus efeitos farmacológicos; . Explorar o modo de ação dos fármacos, farmacocinética e efeitos adversos; . Debater sobre interação medicamentosa; . Debater sobre os períodos e estágios da anestesia geral; . Comentar sobre outros fármacos anestésicos gerais e uso de adjuvantes da anestesia geral ou medicação pré-anestésica; . Neste caso, em especial, o debate pode ser conduzido para os fármacos usados na reanimação cardíaca, antiarrítmicos e equilíbrio hidroeletrolítico. Filme 2: Mr. Jones Título original: Mr. Jones Diretor: Mike Figgis Elenco: Richard Gere, Lena Olin, Anne Bancroft, Tom Irwin, Delroy Lindo Produção: Jerry A. Baerwitz, Richard Gere País de origem: EUA Gênero: Romance Tempo de duração: 114 minutos Cor: Colorido Ano de lançamento: 1993 Estúdio/Distrib.: Columbia Home Video Sinopse Mr. Jones (Richard Gere) é um homem que atrai as pessoas com o seu encanto e a sua energia vital. Entretanto, ele tem um perfil característico das pessoas acometidas por transtorno bipolar. Apresenta alternância de manifestações de comportamentos, às vezes, depressivos e, em outros momentos, de euforia demasiada. Em uma das crises de mania, Mr. Jones chega ao local da construção de um edifício onde, alegando ser marceneiro, pede emprego. Relutante no início, o encarregado termina permitindo que ele faça uma experiência de três dias. Jones é levado até o topo da estrutura, onde um grupo de marceneiros trabalha. Em pouco tempo, vai até a extremidade de uma viga, de onde ameaça voar. Preocupado, o encarregado pede ajuda e Mr. Jones é encaminhado para um Hospital Psiquiátrico, onde a Dra. Elizabeth Bowen o diagnostica como um psicótico maníaco-depressivo, sendo, então, medicado na emergência. No dia seguinte, ao entrar num teatro, onde uma orquestra sinfônica apresenta a 9ª sinfonia de Beethoven, Jones sobe ao palco e passa a interferir no trabalho do maestro, sendo removido, então, pela polícia até o hospital. Lá, é atendido por um médico, mas pede que sua médica, a Dra. Elizabeth, seja chamada. Esta chega e lhe diz que ele está muito doente e que precisa de tratamento e de internação. A sua psiquiatra, a Dra. Elizabeth Bowen, está decidida a ajudá-lo, mas logo estará profundamente ligada a ele. Roteiro para elaboração do resumo e para o debate do filme Mr. Jones

. Relacionar os fármacos citados no filme: haldol e amytal; . Explorar a fisiopatologia e características clínicas dos distúrbios afetivos; . Analisar o modo de ação do haldol e amytal e outros fármacos utilizados no

tratamento de distúrbios afetivos; . Debater a associação com outros fármacos e a importância da interação medicamentosa;

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. Debater sobre a farmacocinética e efeitos adversos dos fármacos utilizados em distúrbios afetivos; . Discutir sobre a importância da orientação do profissional de saúde a respeito dos possíveis efeitos

colaterais e como o paciente deve proceder para minimizar tais manifestações; . Discutir sobre a importância da orientação aos familiares quanto ao acompanhamento do paciente com distúrbios afetivos. Filme 3: Tempo de despertar Título original: Awakenings Diretor: Penny Marshall Elenco: Robert De Niro, Robin Williams, Julie Kavner, Ruth Nelson, John Heard Produção: Elliot Abbott, Elliot Abbott, Lawrence Lasker País de origem: EUA Gênero: Drama Tempo de duração: 120 minutos Cor: Colorido Ano de lançamento: 1990 Estúdio/Distrib.: Columbia Pictures Corporation Sinopse

O Hospital Bainbridge é uma instituição para doentes crônicos localizada no bairro do Bronx, em Nova Iorque, EUA. O ano é 1969. O filme apresenta a história verdadeira do Dr. Malcolm Sayer (Robin Williams), um neurologista muito experiente como pesquisador, mas com pouco prática clínica, que conseguiu emprego na referida instituição hospitalar. Quando começa a trabalhar, o médico encontra vários pacientes que aparentemente estão catatônicos e que se encontram em tal estado desde o final da I Guerra Mundial, em decorrência de um surto da chamada doença do sono – a encefalite letárgica. Sayer observa detalhadamente aqueles pacientes e acredita que estejam apenas “adormecidos” e que poderão “despertar” se tomarem a medicação correta. Assim, o médico pesquisa minuciosamente o assunto e chega à conclusão de que a L-DOPA, uma nova droga que já estava sendo utilizada para pacientes com o mal de Parkinson, poderia ser benéfica em tais pacientes. No entanto, ao levar o assunto para o diretor do hospital e solicitar autorização para realizar o tratamento, consegue permissão para testá-lo em apenas um paciente. Sayer, então, escolhe Leonard Lowe (Robert De Niro) – o mais novo deles –, que há décadas estava “adormecido”. Gradualmente, Lowe se recupera e isto encoraja Sayer a administrar a L-DOPA em outros pacientes, sob sua supervisão. Logo, estes apresentam sinais de melhora e se sentem ansiosos para recuperar o tempo perdido. Mas, infelizmente, Lowe começa a apresentar efeitos colaterais estranhos que não estavam previstos. O filme mostra a perda da eficácia da levodopa (L-DOPA) e o aparecimento dos efeitos adversos, como, por exemplo, a distonia. O tratamento tem de ser suspenso e, gradualmente, os pacientes voltam à sua condição inicial. Roteiro para elaboração do resumo e para o debate do filme Tempo de despertar . Relacionar os fármacos citados no filme: L-DOPA; . Explorar a fisiopatologia de distúrbios neurodegenerativos, como, por exemplo, a doença de Parkinson; . Analisar o modo de ação da L-DOPA ou levodopa e de outros fármacos utilizados no tratamento do Parkinson; . Debater a associação com outros fármacos e a importância da interação medicamentosa; . Debater sobre a farmacocinética e efeitos adversos dos antiparkinsonianos; . Analisar a diferença entre tratamento terapêutico e pesquisa terapêutica; . Debater as pesquisas clínicas e os aspectos éticos envolvidos em tais pesquisas;

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. Discutir sobre a orientação do profissional de saúde sobre os possíveis efeitos colaterais e como o paciente deve proceder para minimizar tais manifestações; . Discutir sobre a importância da orientação aos familiares e cuidadores no acompanhamento do paciente com Parkinson. Filme 4: Uma mente brilhante Título original: A beautiful mind Diretor: Ron Howard Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Ed Harris, Paul Bettany, Scott Fernstrom, Josh Lucas, Ned Stuart Produção: Brian Grazer País de origem: EUA Gênero: Drama Tempo de duração: 134 minutos Cor: Colorido Ano de lançamento: 2001 Estúdio: Universal Pictures/DreamWorks SKG/Imagine Entertainment Sinopse O filme Uma mente brilhante baseia-se na biografia de John Nash, escrita por Sylvia Nasar, e começa com a chegada do jovem Nash à Universidade de Princenton, em 1947. Nash tem dificuldades de participar das atividades básicas da Universidade, como assistir às aulas e conviver com os colegas. O seu objetivo era fazer uma grande descoberta, ter uma “ideia original” e, assim, receber o reconhecimento das pessoas. Para tanto, dedicava todo o seu dia ao estudo e à investigação. Durante a faculdade, seu único amigo era um suposto colega de quarto de nome Charles, que o incentivava a procurar a sua “ideia original”. Nash inspira-se em fontes estranhas, mas será numa conversa de bar que ele encontrará inspiração para a sua “ideia original”: uma teoria revolucionária sobre a economia moderna. O reconhecimento pelo seu trabalho acontece em 1953, após ter realizado alguns trabalhos no Pentágono para decifrar códigos russos. Nash também era professor e, nesse período, que ministra suas aulas, conhece uma aluna chamada Alicia, com quem viria a se casar e a ter um filho. Tudo parecia correr bem com o casal, até que Nash começa a ser perseguido por desconhecidos. Paralelamente, Nash é chamado para executar um serviço misterioso e confidencial. Para Nash, a missão confidencial estava cada vez mais perigosa e as perseguições mais constantes. Um dia, em uma apresentação profissional, ao se ver perseguido, fugiu da sala acometido por um surto. Nash foi levado ao hospital psiquiátrico, onde foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide. Deu-se, então, início a um tratamento, mas sob o efeito dos medicamentos, não conseguia mais ser um bom matemático. Resolveu, assim, parar de tomar os remédios, mas entrou novamente em crise, chegando a colocar a vida da esposa e do filho em risco. Logo, Nash percebe que as alucinações não eram reais e decide lutar contra a doença, mas sem voltar a usar os medicamentos. Nash conviveu com as alucinações e foi aprendendo a lidar com elas. Prosseguiu com seus estudos e as pesquisas, consagrando-se por suas descobertas. O filme termina com o reconhecimento pelo qual Nash tanto ansiava: o Prêmio Nobel de Economia em 1994, por sua contribuição com a Teoria dos Jogos. Roteiro para elaboração do resumo e para o debate do filme Uma mente brilhante

. Relacionar os fármacos citados no filme: thorazine; . Explorar os aspectos clínicos e fisiopatológicos dos distúrbios psicóticos

como, por exemplo, a esquizofrenia; . Analisar o mecanismo de ação dos antipsicóticos e fármacos usados no tratamento da esquizofrenia; . Debater a associação com outros fármacos e a importância da interação medicamentosa;

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O USO DE FILMES COMO RECURSOS PEDAGÓGICOS ...

. Debater sobre a farmacocinética e efeitos adversos dos antipsicóticos; . Discutir a importância de orientar o paciente quanto aos possíveis efeitos

indesejáveis dos antipsicóticos; . Discutir sobre a importância dos familiares e pessoas próximas no trato com o paciente esquizofrênico.

Considerações finais A utilização de filmes como ferramenta do ensino da Neurofarmacologia tem demonstrado que, se bem trabalhadas, as películas podem ser incluídas no plano de aula dos cursos de graduação da área da saúde: Medicina, Enfermagem, Odontologia, Biomedicina, Biologia, Farmácia e Saúde Coletiva. Tal fato demanda que os responsáveis façam um planejamento e, ao escolherem os filmes, tenham o cuidado de relacioná-los aos temas que serão abordados, para que o aprendizado seja complementar e genuinamente significativo (Guilhem, Diniz, Zicker, 2007). O uso deste recurso pedagógico requer um planejamento prévio. O filme pode ser projetado em sala de aula, seguido de debate. Pode-se, também, projetar parte do filme, interromper a projeção para fazer comentários, ou responder algumas dúvidas ou questionamentos dos estudantes. Neste caso, o debate é realizado concomitante à projeção do filme. O filme pode ainda ser utilizado como atividade extraclasse, ou seja, o debate deverá ser realizado em outra oportunidade. No curso aqui analisado, sugere-se a realização dos debates na aula seguinte. O filme, como complemento de um conteúdo pedagógico, tem importância por ser uma forma de sensibilizar o aluno para o tema escolhido (Toman, Rak, 2000; Timm et al., 2004). Durante o curso, observou-se que nem todos os alunos conhecem a metodologia, em especial, quando o foco é a farmacologia, porém, reconhecem a relevância do emprego de filmes para aproximá-los de situações clínicas, servindo como adjuvante no esclarecimento da patologia e da terapêutica. Segundo Timm et al. (2004), a motivação para o direcionamento da atenção do aluno é outro fator importante a ser levado em consideração, contribuindo, desta forma, para o acesso ao conteúdo. Por ser uma atividade lúdica e prazerosa, o filme prende a atenção dos discentes e ajuda no desenvolvimento das relações humanas, uma vez que o aluno pode debater com seus pares e trocar informações para aprofundamento e construção do conhecimento. O professor, por outro lado, deve atuar como um estimulador da discussão, trazer para o debate fatos relevantes do filme, sempre direcionando a discussão para o assunto da aula (Guilhem, Diniz, Zicker, 2007). Embora o enfoque do uso de filmes seja sobre os aspectos clínicos e farmacológicos, é preciso, durante o debate, ter o cuidado da ênfase ao respeito aos pacientes e aos conceitos que cada um traz em seu conteúdo cultural, conduzindo à reflexão de novas possibilidades de pensamento. Tal fato possibilita um olhar ampliado em relação ao paciente, não apenas com base em conhecimento técnico, mas de novos saberes e condutas. De fato, a presente discussão mostra-se relevante, em especial, por se tratarem de assuntos delicados relacionados à farmacologia de distúrbios afetivos, de distúrbios neurodegenerativos, ou a farmacologia da dependência e abuso de drogas, nos quais a atuação do profissional de saúde precisa, muitas vezes, estar não somente focada na terapêutica medicamentosa, mas na humanização e na relação entre profissional e paciente. Pelo fato de os filmes serem utilizados como atividade prévia extraclasse, observou-se que os alunos demonstram, possivelmente, maior disposição para o debate, por possibilitar a pesquisa sobre os aspectos clínicos da doença, tratamento farmacológico e mecanismos de ação dos fármacos, conforme roteiro previamente estabelecido para discussão, permitindo-os, muitas vezes, relacionar com alguns casos clínicos observados em outras disciplinas ou durante os estágios hospitalares. A experiência obtida com a utilização de filmes comerciais no curso de Neurofarmacologia tem apresentado grande motivação dos estudantes para o debate e contribuído para um melhor rendimento nas avaliações da referida disciplina.

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Colaboradores Setsuko Santos responsabilizou-se pela elaboração do artigo; Andre Noro responsabilizou-se pela pesquisa dos filmes e pelos roteiros dos mesmos. Referências ANDERSON, D. Using feature films as tools for analysis in a psychology and law course. Teach. Psycol., v.19, n.3, p.155-8,1992. BERGER, J.; PRATT, C. Teaching business-communication ethics with controversial films. J. Bus. Ethics, v.17, n.16, p.1817-23, 1998. BHAGAR, H.A. Should cinema be used for medical student education in psychiatry? Med. Educ., v.39, n.9, p.972-3, 2005. CONNER, D. From monty Python to total recall: a feature film activity for the cognitive psycology course. Teach. Psycol., v.23, n.1, p.33-5, 1996. CRELLIN, J.K.; BRIONES, A.F. Movies in medical education. Acad. Med., v.70, n.9, p.745, 1995. FARRÉ, M. et al. Putting clinical pharmacology in context: the use of popular movies. J. Clin. Pharmacol., v.44, n.1, p.30-6, 2004. GALLAGHER, P. et al. A pilot study of medical student attitudes to, and use of, commercial movies that address public health issues. BMC Res. Notes, v.4, n.7, p.111, 2011. GUILHEM, D.; DINIZ, D.; ZICKER, F. (Eds.). Pelas lentes do cinema: bioética e ética em pesquisa. Brasília: Letras Livres/EdUnB, 2007. HYDE, N.B.; FIFE, E. Innovative instructional strategy using cinema films in an undergraduate nursing course. ABNF J., v.16, n.5, p.95-7, 2005. KOREN, G. Awakenings: Using a popular movie to teach clinical pharmacology. Clin. Pharmacol. Ther., v.53, n.1, p.3-5, 1993. LEPICARD, E.; FRIDMAN, K. Medicine, cinema and culture: a workshop in medical humanities for clinical years. Med. Educ., v.37, n.11, p.1039-40, 2003. MAESTRELLI, S.R.P.; FERRARI, N. O óleo de Lorenzo: o uso do cinema para contextualizar o ensino de genética e discutir a construção do conhecimento científico. Genet. Esc., v.1, n.2, p.35-9, 2006. Disponível em: <http:// www.geneticanaescola.com.br/ano1vol2/02.pdf>. Acesso em: 7 maio 2012. SIERLES, F.S. Using film as the basis of an american culture course for first-year psychiatry residents. Acad. Psychiatry, v.29, n.1, p.100-4, 2005. TIMM, M.I. et al. Tecnologia educacional: apoio à representação do professor de Ciência e Tecnologia e instrumento de estudo para o aluno. RENOTE Nov. Tecnol. Educ., v.2, n.2, p.1-10, 2004. TOMAN, S.; RAK, C. The use of cinema in the counselor education curriculum: strategies and outcomes. Couns. Educ. Superv., v.40, n.2, p.105-14, 2000.

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Recursos audiovisuais são estratégias utilizadas para facilitar o processo ensino-aprendizagem. Entretanto, o uso de filmes comerciais como recurso pedagógico para o ensino das ciências da saúde, tal como a farmacologia, não é tão comum. O objetivo deste artigo é relatar nossa experiência com o uso de filmes, como: Linha Mortal, Mr. Jones, Tempo de despertar, entre outros, como ferramenta de ensino da disciplina Neurofarmacologia. Embora seja ministrada para o ensino de graduação do curso de Enfermagem da Universidade de Brasília, a metodologia pode ser adotada em outros cursos da área de Ciências da Saúde. A combinação de referencial teórico de Neurofarmacologia e a discussão dos filmes em sala de aula pode ser comparada a um estudo de caso, cuja narrativa permite aproximar os estudantes da realidade, tornando lúdico e fácil de relacionar as situações clínicas com o tratamento farmacológico, além de assimilarem novos conceitos.

Palavras-chave: Cinema como assunto. Recursos audiovisuais. Neurofarmacologia. The use of films as an educational resource on neuropharmacology teaching Audiovisual resources are strategies used to facilitate the process of teaching. However, the use of commercial films as an educational resource for teaching health sciences, such as pharmacology, is not very common. The purpose of this article is to describe our experience with using films, as Flatliners, Mr. Jones, Awakenings, among others, as a teaching tool for the Neuropharmacology course. Although it is used to teach undergraduates at the Nursing course of Brasília University, the methodology can be adopted by other courses in the field of Health Sciences. The combination of the theoretical framework of Neuropharmacology and the classroom discussion of the films can be compared to a case study, whose narrative allows the students to be brought closer to reality, making it entertaining and easier for them to relate to clinical situations, with pharmacotherapy, and to assimilate new concepts.

Keywords: Motion pictures as topic. Audiovisual resource. Neuropharmacology. El uso de películas como recurso pedagógico en la enseñanza de neurofarmacología Los recursos audiovisuales son estrategias para facilitar el proceso de enseñanza-aprendizaje. El uso de películas comerciales como recurso pedagógico para la enseñanza de las ciencias de la salud, tal como la farmacología, no es tan común. El objetivo de este artículo es relatar nuestra experiencia al usar películas, como, Línea Mortal, Mr. Jones, Tiempo de despertar, entre otras, como herramienta de enseñanza de la asignatura de Neurofarmacología. Aunque se utilice para la enseñanza del curso de graduación de Enfermería de la Universidad de Brasilia, la metodología se puede adoptar en otros cursos de las Ciencias de la Salud. La combinación del referencial teórico de Neurofarmacología y la discusión de las películas en clases se puede comparar a un estudio del caso, cuya narrativa permite aproximar los estudiantes a la realidad, volviendo lúdico y más fácil relacionar las situaciones clínicas con el tratamiento farmacológico y assimilar nuevos conceptos.

Palabras clave: Cine como assunto. Medios audiovisuales. Neurofarmacología. Recebido em 19/06/12. Aprovado em 07/11/12.

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entrevista

A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação: entrevista com Yrjö Engeström The Historical-Cultural Activity Theory and its contributions to Education, Health and Communication: interview with Yrjö Engeström La Teoria de la Actividad Histórico-Cultural y sus contribuciones a la Educación, la Salud y la Comunicación: entrevista con Yrjö Engeström

Monica Lemos1 Marco Antonio Pereira-Querol2 Ildeberto Muniz de Almeida3

Center for Research on Activity (CRADLE), Development and Learning, Institute of Behavioral Sciences, University of Helsinki, Finland. Siltavuorenpenger 1A, 3A, 5A. PO Box 9. FI-00014 monica.lemos@gmail.com cradle-news@helsinki.fi 2 Programa de PósGraduação em Políticas Públicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. 3 Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP – Univ Estadual Paulista. Botucatu, SP, Brasil. 1

Na última semana de setembro de 2012, Yrjö Engeström, do Centro de Pesquisa em Atividade, Desenvolvimento e Aprendizagem (CRADLE4), do Instituto de Ciências do Comportamento, Universidade de Helsinki, na Finlândia, nos recebeu para uma conversa, previamente organizada por este pequeno grupo de brasileiros em atividade no CRADLE. Durante os noventa minutos de entrevista-conversa, o Professor Yrjö Engeström discorreu sobre formação e atividades desenvolvidas no CRADLE, e a compreensão de seus integrantes sobre os principais conceitos do enfoque teórico que adota: a “Teoria da Atividade Histórico-Cultural”. Com a contribuição de outros colegas brasileiros, também foram exploradas questões teóricas de maior densidade, como: conceito de agência, o objeto em fuga (“runaway object”) e em vidas-reais complexas (“in the wild”)5. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

CRADLE: acrônimo em inglês. Para mais informações sobre o CRADLE, acesse: http:// www.helsinki.fi/cradle/ 5 Visando facilitar o acesso do leitor aos temas tratados na entrevista, em diversos momentos foram inseridas notas de esclarecimentos e sugestões de leituras complementares. 4

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DESAFIOS À EDUCAÇÃO MÉDICA CONTEMPORÂNEA...

O professor Engeström é reconhecido internacionalmente por aplicar e desenvolver a “Teoria da Atividade Histórico-Cultural” como uma abordagem teórica em estudos sobre o processo de transformação e aprendizado em atividades de trabalho em organizações. Ele é mais conhecido pela teoria de aprendizagem expansiva e a metodologia intervencionista da Pesquisa e Desenvolvimento do Trabalho. Um de seus trabalhos mais recentes é From teams to knots: activity-theoretical studies of collaboration and learning at work6. Atualmente, coordena as atividades do CRADLE - Center for Research on Activity, Development and Learning - em Helsinki, objeto de discussão nesta entrevista. A teoria da atividade foi iniciada por Lev Vygotsky (1978)7 nas décadas de 1920 e 1930, e, em seguida, desenvolvida pelo seu colega e discípulo Alexei Leont’ev8. A teoria da atividade se desenvolveu por meio de três gerações de pesquisa. A primeira, centrada em torno de Vygotsky, criou a ideia de ação mediada por artefatos culturais9. A inserção de artefatos culturais nas ações humanas foi revolucionária, uma vez que a unidade básica de análise passou a superar a separação entre o indivíduo cartesiano e a estrutura social intocável. O indivíduo não podia mais ser entendido sem o seu meio cultural; e a sociedade não podia mais ser entendida sem a agência10 de indivíduos que utilizam e produzem esses artefatos. Os objetos tornaram-se entidades culturais e a ação orientada ao objeto tornou-se a chave para entender a psique humana. A limitação da primeira geração foi que a unidade de análise se manteve focada no indivíduo. Esta limitação foi superada pela segunda geração, centrada em Leont’ev, que explicou a diferença crucial entre uma ação individual e uma atividade coletiva. O conceito de atividade possibilitou um enorme avanço para o paradigma, na medida em que altera o foco para as inter-relações complexas entre o sujeito individual e sua comunidade. Na União Soviética os sistemas de atividades sociais estudados concretamente pelos teóricos estavam em grande parte limitados a jogos e aprendizagem entre as crianças, e as contradições da atividade mantiveram-se como uma questão extremamente delicada. Desde a década de 1970 a tradição foi retomada e recontextualizada no ocidente por pesquisadores radicais. Novos domínios de atividade, incluindo o trabalho, foram abertos para a pesquisa concreta. Uma enorme diversidade de aplicações da teoria da atividade começou a surgir, como manifestado em trabalhos recentes11. A ideia de contradições internas como a força motriz de mudança e desenvolvimento em sistemas de atividade, tão poderosamente conceitualizada por Il’enkov12, começou a ganhar seu devido status como um princípio orientador de pesquisa empírica. Desde o trabalho fundamental de Vygotsky, a abordagem histórico-cultural era muito mais um discurso de desenvolvimento vertical em direção às ‘funções psicológicas superiores’. A pesquisa intercultural de Luria13 permaneceu uma tentativa isolada. Michael Cole, da Universidade da Califórnia, em San Diego, foi um dos primeiros a indicar claramente a profunda insensibilidade da segunda geração da teoria da atividade em relação à diversidade cultural. Quando a teoria da atividade se internacionalizou, questões de diversidade e diálogo entre diferentes tradições ou perspectivas geraram sérios desafios. É com esses desafios que a terceira geração da teoria da atividade tem de lidar. A terceira geração da teoria da atividade precisa desenvolver ferramentas conceituais para compreender o diálogo, as perspectivas múltiplas e redes de interação dos sistemas de atividade.

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6 ENGESTRÖM, Y. From teams to knots: activitytheoretical studies of collaboration and learning at work. Cambridge: Harvard University Press, 2008. 7 VYGOSTKY, L.S. Mind in society: the development of higher psychological processes. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

LEONT’EV, A.N. Activity, consciousness, and personality. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1978. LEONT’EV, A.N. Problems of the development of the mind. Moscow: Progress, 1981.

8

LEMOS, M. A Atividade de reforço na escola pública como espaço para a construção da cidadania. 2005. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. 2005.

9

Refere-se às ações humanas relacionadas às estruturas que, de alguma forma, controlam suas vidas. Engeström enfatiza as ações capazes de transformar a atividade do sujeito.

10

ENGESTRÖM, Y. Activity theory and individual and social transformation. In: ENGESTRÖM, Y. et al. (Eds.). Perspectives on activity theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1999a. cap. 1. p.19-37.

11

12 IL’ENKOV, E. Dialectical logic: essays on its history and theory. Moscow: Progress Publishers, 1977.

LURIA, A.R. Cognitive development: its cultural and social foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1976.

13


LEMOS, M.; PEREIRA-QUEROL, M.A.; ALMEIDA, I.M.

14 O link http:// www.helsinki.fi/cradle/ doctoral_dissertations.html permite acesso às teses defendidas no CRADLE.

15 Nota dos organizadores: entre os trabalhos de Yves Clot já publicados no Brasil, destacamos A função psicológica do trabalho. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007; e Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2012. 16 Nota dos organizadores: ver ENGESTRÖN, Y. Expansive learning at work. Toward an activity theoretical reconceptualization. J. Educ. Work, v.14, n.1, p.133-56, 2001. Disponível em: http:// www.tandfonline.com/ doi/abs/10.1080/ 13639080020028747. Acesso em: 28 jan. 2013. Ver também ENGESTRÖN, Y. Aprendizagem expansiva. São Paulo (tradução de obra do autor com lançamento previsto para o segundo semestre de 2013). 17 Mais informações em http://www.helsinki.fi/ cradle/activitysystem.htm e nas obras já citadas.

entrevista

O CRADLE (Center for Research on Activity, Development and Learning), sua história e organização atual O CRADLE - Centro de Pesquisa da Atividade, Desenvolvimento e Aprendizagem - é um centro de pesquisa dentro do Instituto de Ciências Comportamentais da Universidade de Helsinki. E como um centro de pesquisa, nós temos muitos projetos com financiamento externo. Também dirigimos um programa de mestrado e doutorado que nos permite ser relativamente independentes do departamento do qual fazemos parte. O CRADLE foi fundado em 1994, há quase vinte anos. O nome inicial era Centro da Teoria da Atividade e Pesquisa de Desenvolvimento do Trabalho. Há alguns anos, mudamos o nome, parcialmente, porque nos fundimos a outra unidade de pesquisa em nosso departamento. Esta unidade de pesquisa era conduzida pelo Prof. Kai Hakkarainen, focada no aprendizado em rede, mas com abordagem teórica muito próxima da nossa. Assim, nós nos juntamos, e alguns de nossos pesquisadores bolsistas vêm dessa fusão. E, ainda, o nome original do nosso centro era um pouco difícil e complicado de ser lembrado, CRADLE é mais fácil; o acrônimo é bem apropriado, pois, em inglês, se refere ao local no qual um bebê pode dormir e crescer. Consideramos que nossas ideias e abordagem estão ainda na infância e precisam de muitos nutrientes. Ao mesmo tempo, queríamos que o CRADLE fosse útil para pesquisadores jovens, como a Monica (entrevistadora), e para estudantes que se interessam em trabalhar e estudar conosco. Temos mais de trinta doutores14 que defenderam teses em nosso programa de pós-graduação ao longo dos anos, e isso significa que provavelmente estamos tendo sucesso na educação de jovens pesquisadores que baseiam seus trabalhos na Teoria da Atividade. Principais conceitos da Teoria da Atividade Histórico-Cultural A Teoria da Atividade Histórico-Cultural, nossa base teórica, é uma abordagem ampla com diferentes variações. No Brasil, por exemplo, o trabalho de Yves Clot15 e seus colaboradores de Paris, na França, tem sido bastante influente, e ele é um bom parceiro colaborador. Sua abordagem da Teoria da Atividade é provavelmente diferente. Talvez um pouco mais psicológica. Nós gostamos de enfatizar muito a questão dos aspectos coletivos da organização da atividade. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural como nós vemos não é apenas uma teoria psicológica. Ela é uma abordagem interdisciplinar relevante para todas as ciências sociais e humanas e, em nosso grupo, temos pesquisadores dos mais diversos contextos científicos, partindo da Filosofia, Psicologia e de todas as áreas da Engenharia, Economia e Sociologia, até mesmo da Medicina. Desse modo, esta ampla gama de áreas científicas certifica a utilização e o potencial da Teoria da Atividade em todas as disciplinas. Para conseguir esse tipo de abordagem, interdisciplinar, nós precisamos ter um quadro teórico muito bem fundamentado. Nossa versão da Teoria da Atividade16 é construída, sobretudo, em torno dos conceitos de sistemas de atividade orientados a um objeto, que são coletivos e têm uma duração de longo prazo. Esses sistemas de atividade são geralmente organizados, tomam forma de organizações, naturalmente não somente organizações formais, mas, também, organizações informais, tais como comunidades e famílias, relevantes para nós. Estamos realmente interessados neste processo longitudinal de cadeias e transformações, no desenvolvimento e aprendizado nesses sistemas coletivos de atividade, que podem ser modelados e analisados com a ajuda de modelos básicos, tais como o já consagrado modelo dos triângulos da atividade17, usado por nós.

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Dessa forma, as pessoas nos associam apenas àqueles triângulos, e esta é uma visão muito estreita de nosso trabalho. Eles são modelos úteis, pois são ferramentas [...] conceituais que devem ser usadas, testadas e modificadas. E, como qualquer outra ferramenta, não devem ser do tipo canonizado, fixo, digamos, uma teoria nossa. Eles são ferramentas para desenvolver a teoria e fazer a teoria funcionar também na prática. Ou rígidas, como muitas pessoas veem?... Muitas pessoas as veem como rígidas talvez porque também acham que os diagramas sejam, de alguma forma, estáticos. Bem, claro que eles questionam como usar os diagramas, como fazê-los vivos, como você desenvolve e muda, enche-os de conteúdo e coloca-os em um contexto real particular. Mas eles são importantes para nós, pois este modelo de triângulos é bastante trabalhoso. Os fundadores da Teoria da Atividade - Vygotsky, Leontiev e os outros - nunca fizeram esse tipo de modelo. Eles utilizaram modelos muito simples para indicar a estrutura mediadora da ação, como é sabido - sujeito, objeto e artefato mediador ou signo mediador -, mas o aspecto coletivo da atividade vem do fato de que esta é realizada por comunidades que têm divisão do trabalho e regras. Todos esses elementos devem estar juntos, influenciando uns aos outros, inter-relacionados. Este tipo de modelo tem sido muito importante para nós e, atualmente, trabalhamos muito com o que chamamos terceira geração da Teoria da Atividade; o que implica que nós não estamos olhando apenas para um simples sistema de atividade, mas para a inter-relação entre os múltiplos sistemas de atividade que, de alguma forma, estejam focados parcialmente no mesmo objeto. Por exemplo, no campo de cuidados da saúde, pode haver diferentes fornecedores de cuidados médicos que tratam de alguns pacientes, e precisam, de alguma forma, se encontrar, criar algumas formas de relacionamento colaborativo entre eles, ou estudar a organização da rede e outras muitas combinações de atividades múltiplas. Mas é claro, na terceira geração da Teoria da Atividade, não é a única coisa que fazemos. Nós temos aumentado nosso interesse na dinâmica do sujeito, a subjetividade envolvida em questões da atividade, tais como a agência e formação de motivação. Como as pessoas se tornam engajadas e como elas podem ir além das circunstâncias existentes? O que isso significa para seus processos de experiência nesse sentido? Ao mesmo tempo, temos expandido a unidade de análise que inclui múltiplos sistemas de atividade, procurando ir mais fundo no aspecto do sujeito. Terceira geração da Teoria da Atividade. Relações com a Saúde, Educação e Comunicação É muito interessante que em nosso centro, no CRADLE, especialmente a saúde e educação têm sido linhas de pesquisa muito centrais. No campo das organizações de saúde nós temos uma longa tradição. Na verdade, meu próprio trabalho com organizações da saúde começou antes mesmo que o CRADLE existisse, na década de 1980, e algumas das instituições de saúde aqui na Finlândia, como o Centro de Saúde da Cidade de Helsinki, são parceiros de pesquisa de longa data, com quem desenvolvemos vários projetos e mantemos uma colaboração contínua. Vários especialistas que trabalham nessas organizações tiveram seu título de doutor ou foram formados por nós. No momento, em Helsinki, estamos estudando os cuidados domiciliares a pessoas idosas, que é um assunto bastante importante em nosso país, pois a população está ficando velha mais rapidamente e os cuidados das pessoas que estão doentes, mas não tão doentes [..., pois] não são completamente dependentes do cuidado institucional. Como fornecer formas de cuidado que possam ser mantidas relativamente independentes, relativamente autônomas, e como dar suporte para essa independência são assuntos bastante importantes para o Centro. Nós também temos uma relação com o maior hospital universitário aqui da Finlândia, no Norte. O campo da saúde é muito importante para nós, pois, ao menos na Finlândia, ainda temos basicamente saúde pública, o que significa que não é apenas um simples negócio privado, mas a sociedade, o setor público é o principal organizador do sistema de saúde. E isso nos permite ter mais possibilidades para realizar esforços de análise, intervenção e mudanças; se o sistema fosse apenas regido pelo lucro, seria

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LEMOS, M.; PEREIRA-QUEROL, M.A.; ALMEIDA, I.M.

PISA - Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) é um programa internacional de avaliação comparada. Aplicado a estudantes da 7ª série em diante, faixa de idade em que se espera o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. 18

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mais difícil encontrar espaço para esforços mais sérios de desenvolvimento. Às vezes, simplesmente pela atividade ser ligada a lucros de curto prazo. O similar se aplica à educação. Nós, tradicionalmente, temos um número de organizações educacionais que estudamos e que estamos tentando transformar; desde jardins da infância a universidades. Neste momento, em nosso programa de doutorado, nós temos cinco alunos na turma de 2012, todos estudando processos de mudança na educação em diferentes países. Se há alguma coisa que eu tenha inveja, é isso; pois todos vocês vêm de países diferentes, mas não da Finlândia! E nós precisaríamos de um projeto sobre a mudança da educação na Finlândia! Claro que as pessoas podem dizer que a Finlândia está bem, pois nosso sistema educacional tem tido sucesso nas comparações internacionais do PISA18, mas eu ainda diria que nós estamos enfrentando mudanças significativas na educação. É preciso discutir, por exemplo, como a escola pode se abrir para a sociedade, e como motivar os jovens, ao invés de simplesmente considerar que, no momento, as escolas finlandesas são muito boas em resultados acadêmicos, uma vez que o aspecto motivacional não é tão forte. Mas, de qualquer forma, eu diria que a educação e a saúde são ramos fortes de nossa pesquisa empírica e de nosso trabalho de intervenção, no qual nós facilitamos esforços de mudança nas organizações de saúde e educação. Tais intervenções normalmente ocorrem no nível de organizações locais, assim como em nível regional, como a organização de saúde de Helsinque, e também em nível de instituições nacionais. Um de nossos colegas, o pesquisador sênior Prof. Reijo Miettinen, acabou de escrever um livro no qual discute “por que as escolas finlandesas têm tido sucesso”; e foca muito na educação especial no país, e tenta compreendê-la como uma forma de movimento nacional para ajudar crianças com dificuldade de aprendizagem - e esse tipo de movimento nacional ou de construção institucional é, talvez, outro nível que vai além, até mesmo em redes regionais. E, eu acho que tanto na saúde como na educação nós devemos considerar o local, mas também o regional e o nacional. Transposição de experiências. O sistema educacional da Finlândia... Uma ideia inadequada é a de que devemos imitar aqueles que têm sucesso. Vários profissionais da educação e também pessoas responsáveis pela tomada de decisão no campo educacional vêm para a Finlândia para ver o que pode ser adotado do sistema educacional finlandês. Na minha opinião, tais esforços não são úteis se você simplesmente tenta transplantar algumas soluções que adotamos aqui. As condições culturais de cada país e cultura são tão específicas que, do ponto de vista da Teoria da Atividade, você precisa ir a fundo na história, nas contradições e possibilidades da cultura em questão. E, naturalmente, em algum momento também é útil fazer comparações, e talvez encontrar as melhores práticas em algum lugar, mas isso não quer dizer que você possa transplantá-las diretamente. Por exemplo, o fato de sermos um país protestante significa que temos sido um tanto quanto monoculturais. No campo religioso, são aproximadamente 500 anos relativamente estáveis. A religião Protestante Luterana facilitou a alfabetização, pois a igreja protestante emergiu com a ênfase de que todos deveriam ter uma relação particular com a Bíblia. Para isso, todos deveriam aprender a ler e a escrever. Esse fato histórico, em particular, explica por que a alfabetização tem um nível alto na Finlândia - a Igreja requeria certo conhecimento das pessoas. Portanto, as condições históricas particulares são diferentes em cada país, em cada cultura. Eu acredito que precisamos de comparações multiculturais e talvez hibridismos, mas não apenas importar/exportar práticas e experiências.

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Experiência do CRADLE. Estudos sobre Comunicação Em relação ao campo da comunicação, eu acredito que pode ser considerado de dois pontos de vista: por um lado, temos uma série de estudos de intervenção em organizações que estão no campo da comunicação em massa: jornais19, organizações de rádio, TV e, também, companhias de telecomunicação; por outro, todo o tema de comunicação é, claro, um tipo de questão teórica. Como nós vemos a comunicação como parte da atividade? Qual é a relação entre comunicação e atividade? E há abordagens teóricas que as separam muito radicalmente. Por exemplo, Jürgen Habermas. Sua teoria crítica da ação comunicativa quase coloca a atividade prática e a comunicação uma contra a outra. A teoria diz que o domínio da comunicação é um tipo de domínio onde você pode estar livre de restrições de poder e hierarquia, e realmente encontra trocas, sendo a base da igualdade etc. Então, o domínio da atividade prática é sempre carregado de poder, hierarquia ou tais restrições. Eu acredito que esse tipo de noção dualista esteja completamente errada. Eu acredito que todas as atividades práticas sejam inerentemente atividades comunicativas. Você não pode fazer medicina sem comunicação. Você não pode construir uma casa sem comunicação. E, da mesma forma, você não pode apenas comunicar. Muito de nossa comunicação realmente ocorre mediante atividades práticas. Vejam este exemplo: atualmente, estamos estudando um local muito interessante: um grupo de construtores de barcos de pesca da Baía de Bengala, Índia. Quando eles constroem esses grandes barcos, quase não se falam, eles se comunicam com seus corpos, com ações práticas. Todos estão em sintonia, apenas vendo o barco, e o barco, por si próprio, é um objeto comunicativo, o que é, naturalmente, um produto muito prático. Ele é o objeto que estão construindo, mas ele também medeia a comunicação entre eles, de forma que os construtores podem estar em coordenação sem falar muito ou sem escrever nada. Muitos deles são, de fato, analfabetos. Este exemplo mostra que a comunicação permeia todas as ações práticas e não podem ser separadas. Eu acredito que seja uma idéia fútil separar o domínio da comunicação do domínio da atividade prática. Isso significa, naturalmente, que nós também temos de estudar muito essas formas de variação de curso ao utilizarmos a linguagem nas atividades práticas, mas não podemos reduzir a atividade apenas a esse curso. Você acha que podemos conectá-los ao princípio da multivocalidade?20 Qualquer atividade é fundamentalmente multivocal. Você não pode reduzir uma atividade a uma única perspectiva, a um único sujeito, pois as atividades são formações coletivas, e isso significa que nenhum indivíduo, nenhum participante, nenhum sujeito compartilha exatamente a mesma visão, a mesma perspectiva, os mesmos interesses com os outros. E essa multivocalidade é uma grande fonte com um potencial de inovação, riqueza, e ainda resiliência nos sistemas de atividade; quando olhamos para um sistema de atividade que se tornou muito monótono, ele se torna vulnerável. Assim, é mais difícil para praticantes encontrarem recursos quando há problemas. Por outro lado, se nós temos um sistema de atividade muito diverso, onde os diferentes participantes não se entendem, então temos fragmentações. Dessa forma, uma dimensão é olhar para os sistemas de atividade e suas mudanças, e a outra é olhar para as questões de fragmentação versus unificação total. Você se move nessa dimensão o tempo todo. Muitas pessoas acreditam que a única forma de controlar organizações é torná-las totalmente previsíveis. Muitas pessoas que pensam assim acreditam que a diversidade deva ser eliminada, mas é claro que a 720

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19 Nota dos organizadores: Helle, Merja ja Töyry, Maija (2009). Media concepts as aTool for Analysing Changing Media. Teoksessa P. Oittinen ja H.Saarelma: Print Media. Principles, Processes and Quality. Helsinki: Paper Engineers’ Association/ Paperi ja Puu Oy, 497-530.

20 Multivolcalidade se refere à existência de diferentes perspectivas de sujeitos que participam em uma atividade em relação ao objeto.


LEMOS, M.; PEREIRA-QUEROL, M.A.; ALMEIDA, I.M.

Nota dos organizadores: PEREIRAQUEROL, M.A. et al. Change laboratory: uma proposta metodológica para pesquisa e desenvolvimento da Aprendizagem Organizacional. Adm.: Ens. Pesqu., v.12, n.4, p.609-40, 2011. 21

22 Nota dos organizadores: as obras citadas na nota 9, discutem esse conceito.

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diversidade é algo que, quando administrada, quando as pessoas encontram formas de trabalharem juntas, é uma fonte tremenda de energia e riqueza. Assim, as pessoas estão no centro de nossa pesquisa. Por exemplo, na medicina, vamos pensar nas clínicas onde você encontra vários médicos; e quando falamos com esses médicos e investigamos como veem os pacientes, eles geralmente veem diferentes modelos de pacientes, múltiplas formas de conceitualizar o objeto. Alguns optam por uma visão biomédica mais clássica, alguns optam por uma visão médica mais social, outros optam por uma visão psicoterapêutica, e se isso for colocado junto, de alguma forma, eles ficarão mais fortes. Metodologia intervencionista de pesquisa e desenvolvimento: o Laboratório de Mudança21 Nossa versão da Teoria da Atividade é inerentemente intervencionista. Nós vemos que na história da Teoria da Atividade, já com Vygotsky e seus seguidores Leontiev, Luria, Davidov e outros, eles também estão fazendo intervenções. Suas pesquisas foram baseadas na ideia de que você pode, de fato, encontrar potenciais e possibilidades criando novos desafios e novos contextos nos quais as pessoas possam, de alguma forma, pular para o próximo nível ou zona de desenvolvimento proximal22 em suas atividades. E, para isso, você precisa de intervenções. Eu acredito que as metodologias de intervenção que os colegas soviéticos e russos desenvolveram não foram totalmente articuladas. Eles nunca formularam completamente essas metodologias. Assim, é a tarefa da nossa geração tornar essas metodologias mais explicitamente sistemáticas e também torná-las práticas às necessidades atuais. E há múltiplas metodologias de intervenção que os pesquisadores da Teoria da Atividade estão utilizando. Eu mencionei o Yves Clot e seu grupo de pesquisa. Eles usam o que chamam de Clínica da Atividade, e nós desenvolvemos este método específico de Laboratório de Mudança. O Laboratório de Mudança é a ideia de que um coletivo, digamos uma organização ou unidade de uma organização, ainda uma comunidade, esteja passando por uma importante transformação. Assim, uma mudança que não seja fácil de controlar, que eles precisem de alguma forma criar sua própria visão e sua própria forma de ação para conduzir seu próprio desenvolvimento. Então, trazemos essas pessoas, ou, ao menos, um grupo representativo dessas pessoas para uma série de sessões - geralmente, em torno de dez encontros, às vezes um por semana ou a cada duas semanas, quando nós nos sentamos e começamos apresentando o que chamamos de material espelho, um material gravado em vídeo, ou outras formas de materiais, como estatísticas, entrevistas etc., que demonstrem as coisas que criam problemas, distúrbios e, algumas vezes, até mesmo crises na organização, na atividade. Laboratório de Mudança e participação Geralmente, são nossos pesquisadores que coletam os dados. Quando temos uma parceria de longa data, às vezes podemos confiar nos participantes locais, ou seja, nos participantes da atividade, para coletar esses dados. Mas, se nós entramos em um novo sistema de atividade, geralmente temos de fazer o trabalho. Podemos demorar vários meses para coletar esses dados do contexto e também analisar a fundo a história dessa atividade em particular. Então, nessas sessões do Laboratório de Mudança, nós apresentamos exemplos selecionados desse tipo de dados, de evidências, e pedimos aos participantes para dizerem o que veem, o que está acontecendo e por quê. Isso, às vezes, cria uma situação de dilema, e, talvez, o que nós chamamos de primeiro conflito crítico, em que as pessoas sentem que algo deve ser feito para mudar esse contexto, mas não sabem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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o que. E a partir desse engajamento motivacional forte - o que também é bastante conflituoso, pois as pessoas preferem negá-lo - você deve trabalhar bastante nele de forma que o envolvimento se torne um engajamento sério e um compromisso para a mudança. Então, a partir disso, nos movemos para a história para perguntar: certo, onde esse problema começou? Quando isso aconteceu? Quais são suas fontes? Nesse momento, já começamos a usar os modelos, por exemplo, os triângulos da atividade, e também outras ferramentas, tais como linhas do tempo, para identificar ciclos de mudanças na história da atividade em questão. Então, não é mais um tipo de engajamento emocional com as coisas que estão erradas, mas isso se torna uma análise intelectual, e você deve se mover entre esse engajamento emocional pessoal e um trabalho analítico conceitual. Esse movimento é crucial, pois é por meio da análise histórica que nós fazemos as pessoas resgatarem suas histórias pessoais. Historicamente, que mudanças foram ocorrendo nessa atividade? Que diferenças existem hoje em relação ao que ela era quando a pessoa começou no trabalho? Como ela é agora? E, mediante essa história, eles constroem um tipo de hipótese de quais são as contradições estruturais atrás desses problemas. E isso os leva a esforços para modelar o futuro. E modelar o futuro, geralmente, requer comparações com outras atividades similares em outros lugares para que haja impasses e ideias, ou apenas para jogar com as possibilidades de futuro para um tipo de visão de sua própria “zona de desenvolvimento proximal”. Nós decidimos, juntos com os participantes, se alguns aspectos desse modelo de futuro podem ser implementados agora mesmo. Aqui, agora e nos próximos meses - e vamos ver o que podem fazer com eles. Em outras palavras, eles selecionam um tipo de subprojeto, que testam na prática, e nós acompanhamos isso gradualmente, pois você não pode simplesmente implementar um modelo completamente novo como este da noite para o dia e mudar tudo agora! É preciso construir essa mudança na atividade existente e gradualmente transformá-la; e, naturalmente, essa fase de implementação pode ser muito trabalhosa. Nós tentamos acompanhar e dar suporte aos encontros do Laboratório de Mudança, um processo condensado e intenso de aprendizado expansivo. As sessões podem ser conduzidas em poucos meses (dois ou três meses). Em seguida, há um período de acompanhamento, que deve ser de, pelo menos, um a dois anos, para que possamos ver o que realmente surge na prática. Tudo deve ser cuidadosamente documentado para que possa ser utilizado, de um lado, para análises rigorosas de pesquisa, e, de outro, para que possamos levar para a próxima sessão de Laboratório de Mudança, alguns exemplos da anterior, que ajudem na reflexão: o que nós fizemos no encontro da semana anterior? Como poderíamos terminar em conflito? Ou em um beco sem saída, como nós podemos nos mover além? Sempre há essa reflexão, que requer a gravação de toda a sessão, para que possamos rever alguns segmentos relevantes do vídeo, que serão assistidos pelo grupo no encontro seguinte, também para fornecer uma reflexão contínua sobre o processo. E quem participa dessas sessões? Bem, isso depende da atividade. Por exemplo, se você tem uma organização muito grande, como um grande hospital, você tipicamente tem de decidir qual parte do hospital servirá de unidade-piloto. E mesmo na unidade-piloto pode haver tantos empregados que é importante que você selecione ou faça a seleção em conjunto com um grupo de representantes. Nós tivemos alguns Laboratórios de Mudança com sessenta, setenta pessoas, mas isso é muito difícil. A qualidade da discussão é bem mais difícil de ser monitorada e ter sentido. Dessa forma, nós preferimos ter entre dez e trinta pessoas. Por exemplo, um de nossos doutorandos, Yury Lapshin, está começando um Laboratório de Mudança em uma grande escola, em Moscou, selecionando algo em torno de vinte e cinco professores e administradores, de forma a torná-lo controlável. Esses laboratórios devem ser cuidadosamente selecionados para representar a diversidade na escola ou no sistema de atividade e, de alguma forma, devem ter a tarefa de interagir com os outros colegas, o que é complicado. É muito mais fácil se você tem unidades menores. O nosso primeiro Laboratório de Mudança foi realizado em 1995, nos correios da Finlândia, onde as agências eram pequenas. Dessa forma, todos os carteiros de uma dada agência puderam participar. Isso nos dava 100% de participação. Mas a maioria das organizações não são como essas. A maioria das 722

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organizações é relativamente grande, e é difícil encontrar o tipo de unidade, de forma que possamos selecionar uma equipe. Por exemplo, nós temos Marika Schaupp, que está trabalhando em um Laboratório de Mudança em uma grande companhia finlandesa, e pode identificar uma equipe que serve como unidadepiloto; todos os membros dessa equipe, incluindo o supervisor, são participantes. Assim, se você encontra uma unidade que seja de tamanho apropriado, tudo fica mais fácil. Mas não há uma resposta simples para isso. Nós sabemos que há, na literatura, muitos tipos de intervenção em larga escala, nas quais centenas de pessoas estão envolvidas. Nós não fomos nessa direção porque, às vezes, elas tendem a ser muito superficiais. Superficiais? Bem, como você tem certeza de que quinhentas pessoas estão realmente envolvidas na análise real? E talvez nós não possamos ter certeza das reais transformações? Exatamente. Isso as torna muito mais dirigidas. Assim, quando você faz essas intervenções de larga escala, tipicamente elas se tornam algo em que essas centenas de pessoas estejam lá pra escutar o gerente, o consultor, o pesquisador que dá uma palestra a eles sobre como coisas maravilhosas deveriam ser, e isso se torna um tipo muito tradicional de disseminação, ao invés de uma intervenção real, que é baseada no desenvolvimento da agência dos participantes. Participação de diferentes níveis de hierarquia numa mesma seção Bem, essa é uma questão muito boa também. Nós temos tentado várias formas. Em alguns casos, por exemplo, no Hospital Universitário de Oulu, onde temos trabalhado, tivemos a sorte de contar com o engajamento da alta gerência (top management). Todos os integrantes dessa seção do hospital, dessa unidade cirúrgica, quiseram participar por vontade própria e foram muito ativos no processo do Laboratório de Mudança. Mas ter os diversos níveis de hierarquia trabalhando juntos pode não ser uma boa estratégia. O gerente pode deixar os outros inibidos. Mas isso não é o que sempre ocorre. Por exemplo, em uma grande empresa de telecomunicações onde nós tivemos um Laboratório de Mudança, as equipes da linha de frente, que eram as unidades básicas do Laboratório de Mudança, convidaram o seu gerente para uma sessão para trocar e discutir ideias com eles em apenas uma sessão. A ideia era a de que a hierarquia estivesse envolvida e informada, mas que houvesse espaço para todos desenvolverem suas ideias. Então, o próximo passo seria: essas iniciativas podem ser aceitas pelo gerente? Naturalmente, isso requer negociação e diálogo contínuos. Mas não há uma solução simples para isso. 23

Questão sugerida por Elaine Mateus.

O conceito de agência. Agente versus sujeito. Subjetividade e agência23 É um assunto muito importante. Qual a relação entre apenas ser um sujeito e ser um agente. A pergunta coloca que alguns estudos da Teoria da Atividade tratam a agência humana como qualquer coisa. E então olhar para realidades sociais é nada mais que uma ação humana. Banalização da noção de agência e de sua relevância no sistema de atividade Na literatura mais ampla, a agência, fora da Teoria da Atividade, é muito comum. Qualquer ação que um ser humano faz é considerada uma ação ativa. Até mesmo se você pisca seus olhos, de alguma forma você é agente. E isso leva COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a uma banalização e trivialidade do conceito. Uma raiz importante do conceito de agência vem de Giddens24 e seus trabalhos sobre estrutura versus agência. A ideia é que a todo tempo você pense: certo, há estruturas que os humanos criaram, vários tipos de organizações, instituições, regras etc., que, de certo modo, nos restringem e, então, seres humanos, de forma a encontrar seu próprio caminho e influenciar suas circunstâncias, precisam ter agência, e essa é a dialética entre estrutura e agência. E isso é ainda mais interessante porque significa que nem tudo seja agência. A agência tem de ser vista em relação às estruturas, que, de alguma forma, controlam a nossa vida, agindo ativamente com aquelas estruturas. Em nosso trabalho, realmente queremos ir mais a fundo e gostamos de falar sobre agência transformativa: agência na qual os seres humanos estão ganhando a capacidade em suas atividades coletivas. Então, atualmente, nós acrescentamos a palavra transformativa para indicar que não queremos apenas um sentido banal, qualquer coisa que um ser humano faça, mas particularmente os potenciais dos seres humanos de se tornarem fazedores de história. Ou transformadores de suas próprias atividades. E, naturalmente, fica a questão: o que é a subjetividade? É, então, tudo que os humanos fazem? Eu também acho que não. Eu acredito que o conceito de sujeito, subjetividade, eu gostaria de investigar, vamos dizer,... a forma como os humanos constroem uma relação pessoal com a atividade para resolverem seus conflitos e tensões em relação à atividade coletiva. Eu vejo isso como um assunto de formação de sentido, utilizando as palavras de Leontiev, formar um sentido pessoal e relacioná-lo com os significados sociais da atividade. Assim, o tema da subjetividade é para mim um tema de construção pessoal do significado e identidade, ou seja, identificar a si mesmo em relação à atividade coletiva. E assuntos como agência são para mim assuntos primários da transformação. A agência transformativa deve ser entendida como ações específicas, não cada ação, mas apenas ações muito específicas que têm um potencial de transformação. Por exemplo, resistir e criticar, ou identificar possibilidades ou modelar e visualizar o futuro, ou se comprometer com ações para mudar a situação, ou na verdade realizar essas ações. Nós já identificamos, até o momento, seis tipos de agência transformativa25 em ações tidas discursivamente por pessoas que participam nos Laboratórios de Mudança, e vários outros estudos estão a caminho de investigar em detalhes o discurso nos Laboratórios de Mudança por meio das sessões. Como esses diferentes meios de expressão da agência aparecem em diferentes sessões, ou como eles podem aumentar ou diminuir? E quem realiza essas ações? Como isso é distribuído entre os participantes? De que forma elas se tornam ações coletivas e de que forma elas se mantêm apenas ações individuais? E assim por diante. Eu acredito que essa agência transformativa possa ser analisada bem rigorosamente. E deveria ser analisada. Eu não gosto da ideia de falar superficialmente sobre agência em geral. E o mesmo sobre subjetividade. Eu acredito que, por exemplo, o trabalho de Annalisa Sannino26 sobre experimentar como as pessoas lidam com conflitos críticos, esteja no centro da questão da subjetividade. Ainda, eu gostaria de ver muito mais trabalhos sobre construção pessoal de sentido e como avaliá-lo. Há uma conexão, claro, entre construção pessoal de sentido e agência, mas elas não deveriam ser consideradas a mesma coisa. Então, eu gostaria de ter uma clareza maior sobre esses conceitos. No momento, infelizmente, há uma tendência em se fazer de tudo agência.

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Ver: GIDDENS, A. The constitution of society. Outline of the Theory of Structuration. Los Angeles: University of California Press, 1986.

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25 Nota dos organizadores: HAAPASAARI, A., ENGESTRÖM, Y. The emergence of learners’ agency in a Change Laboratory intervention. (Manuscrito em preparação).

Ver: SANNINO, A. Teachers’ talk of experiencing: conflict, resistance and agency. Teach. Teach. Educ., n.26, p. 838-44, 2010.

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Formação de conceitos, objetos em fuga (“runaway objects”) e em vidas-reais complexas (“object in the wild”)27 Esses conceitos precisam ser explicados. Talvez seja melhor começar com aqueles que se mantêm ainda um tanto misteriosos. Por objeto em fuga nós podemos mencionar o fato de que o objeto é a base da Teoria da Atividade. Como Leontiev diz, não há atividade sem um objeto, e o objeto significa que ele é um tipo de horizonte, de possibilidades de orientação da atividade, mas não é o mesmo que objetivo específico. Ele é mais amplo e mais difícil de ser definido. Por exemplo, o sistema de saúde: a atividade do sistema de saúde é geralmente dirigida pelos objetos de doença, ou seja, qualquer doença. Os profissionais da saúde tentam combater as enfermidades. Eles tentam curar e prevenir doenças. Mas a doença não é um objetivo muito específico, nem algo como tal. É um objeto muito amplo que nunca poderá ser completamente erradicado, [que] não pode ser totalmente controlado. Dessa forma, ela é de alguma forma um objeto, especialmente algumas novas doenças, como as várias pandemias. Elas são de fato objetos em fuga, muito difíceis de serem controlados. Elas parecem surgir inesperadamente e se espalham pelo mundo muito rapidamente. Assim, aquilo que chamamos de objetos em fuga é um novo tipo de objeto que potencialmente tem essa habilidade de ampliar-se e espalhar-se muito rapidamente e ficar fora de controle. Eles podem ser bons, como algumas inovações. O sistema operacional Linux foi feito por alguns hackers, mas, de repente, se tornou uma inovação global. Por outro lado, há coisas graves, como o aquecimento global, mudanças climáticas ou crises financeiras, como a que nós temos na Europa no momento. Isso pode ser chamado de objeto em fuga. Então, eu acho que a Fernanda esteja perguntando sobre esses objetos em fuga e sua relação com os conceitos. Aqui ela também se refere à questão de situações reais complexas. No momento, eu tenho um projeto que é chamado formação de conceito no natural (“in the wild”), dado que a formação de conceitos e a mudança conceitual têm sido tradicionalmente estudadas em ambientes muito controlados, como salas de aula e laboratórios, onde os pesquisadores têm interesse em avaliar se todos os conceitos de ciências naturais ou matemáticos são adquiridos por uma criança em uma sala; geralmente, esses estudos usam conceitos bem definidos, que já são bem conhecidos e entendidos, e analisam como a criança pode entender e se apropriar desses conceitos, os tipos de mudança que isso representa em relação ao pensamento anterior, e assim por diante. Atualmente, eu acredito que, no mundo de hoje, o processo mais interessante de formação de conceitos ocorra fora dos laboratórios e salas de aula, quando as pessoas tem de enfrentar novas dificuldades. Essa é uma tarefa tremenda de formação de conceito. Como você chama isso? Como você o entende? Como você cria um conceito que faria sentido e daria mais coerência a esse fenômeno? Esses são processos que estão bem distribuídos. Pessoas diferentes, em várias partes do mundo, estão brigando pelos mesmos assuntos. Tomemos, por exemplo, como o conceito da AIDS foi formado. Foram muitos anos de debates, disputas entre diferentes pesquisadores, muitos colaboradores, organizações de pacientes, governos, antes de se ter uma estabilização gradual, de forma que você pode, de alguma forma, concordar com o que seja a característica essencial da AIDS. Mas, mesmo assim, há poucos anos, havia chefes de Estado que poderiam negar e dizer “não há uma doença sexualmente transmissível ou algo como tal”, o que parecia uma ideia absurda. E havia também várias teorias da conspiração sobre como isso havia começado e assim por diante. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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entrevista

27 Tema proposto por Fernanda Liberalli, da PUC-SP. “[...] Os conceitos são também objetos em fuga quando nós os tomamos por nossos. Eles fogem da gente e se expandem em novas direções. Considerando o conceito de Cadeia Criativa, sem criar características unificadoras do conceito, características que mantenham marcas do significado prévio que também se abrem para novos significados. Esta tentativa pode ser vista como uma contradição na relação à forma natural de conceitos, formados no natural viajando sem destino para lugares inesperados. Isso pode ser uma forma de se entender que a evolução controle o objeto? Haveria uma contradição entre o conceito de prémovimento e direções deliberadas predefinidas?”

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DESAFIOS À EDUCAÇÃO MÉDICA CONTEMPORÂNEA...

Assim, a formação de conceito nesse nível é algo em que as pessoas comuns de diferentes profissões estão engajadas e interessadas em descobrir formas de entender e de facilitar esse tipo de formação de conceito no natural. Desse modo, as pessoas não estariam totalmente à mercê do que estejam lendo no jornal ou vendo na televisão, mas haveria uma capacidade maior no coletivo para criar conceitos para guiar suas próprias atividades. Isso não precisa ser um conceito global. Eles podem ser conceitos de nível intermediário, como, por exemplo, um conceito para entender o que estamos fazendo em nossa organização. E isso significa que a formação do conceito desafia, enfrenta um novo desafio. Nós ainda estamos no princípio desse tipo de pesquisa. A pergunta da Fernanda é uma ótima questão, mas muito complicada. É muito difícil responder a uma questão sobre até que ponto esses conceitos são eles objetos em fuga ou estão tomando forma livremente. Eu não acredito que a formação de conceitos aconteça completamente sem restrições. Se nós olharmos para exemplos de formação de conceito na história, como no caso da AIDS, era um caso que simplesmente tinha de ser encontrada uma explicação e uma categorização para ele. Nomear e categorizar de forma que as pessoas pudessem começar a entender o tratamento e pudessem fazer uma legislação sobre o assunto. Assim, quando o objeto tem essa pressão, ele nunca é totalmente livre. O objeto requer que as pessoas, de alguma forma, encontrem coerência. Eu acredito que, mesmo quando vemos esses grandes debates sobre mudanças climáticas e aquecimento global, eles têm de convergir. Não há uma unanimidade geral, a multiplicidade de vozes será mantida, mas deve haver algum tipo de estabilidade. O conceito não é um conceito se não tiver um pouco de estabilidade. Desafio de lidar com o objeto em construção Parece que tudo está em um fluxo, e nada é certo. Sim, isso é a absoluta verdade! Há muitas estratégias que precisam ser investigadas. Claro que uma delas é encontrar uma estabilização parcial, digamos, com elementos do conceito que podem ser claramente entendidos e usados como uma mola propulsora para o progresso futuro. Eu acredito que, se olharmos para a história, como no caso da AIDS, você vê essas estabilizações parciais ocorrendo. Não com um consenso imediato, mas com passos que podem ser acordados e que, de alguma forma, juntam um pouco mais de esforços para uma mesma direção. Uma outra coisa é que a sociedade é um verdadeiro fórum, onde as pessoas podem realmente debater e clarear seus conceitos. No momento, nós temos um problema com a mídia, que deveria ser muito mais promotora [do debate]. Pense, por exemplo, em pessoas que estejam lutando contra qualquer conceito complexo, como o de entender a crise financeira. Há muito pouco sobre isso na mídia. Você não consegue encontrar um lugar na web onde possa ver as diferentes tentativas de definir a crise e de trazê-las para um lugar só, para que pudéssemos ter uma visão geral dela. Na minha opinião, nós realmente precisamos de locais onde as pessoas se reúnam, onde a formação de conceitos possa ser observada e as pessoas possam ter uma visão geral de como as pessoas estão entendendo algo. No momento, parece-me que falta esse tipo de ferramenta. Em grande parte porque a mídia nos permite isso, como ter milhões de discussões que não estão conectadas, e esses esforços de construção de sentido em larga escala requereriam um desenvolvimento das mídias sociais, talvez juntamente com a web, o que permitiria às pessoas seguir diferentes linhas de argumentação, como se organizariam e como se posicionariam. Estes são tópicos difíceis. Eu diria que esse tipo de pesquisa está apenas no começo, e é cedo para especular um pouco mais. Balanço. Principais contribuições, lacunas, desafios e perspectivas Nós falamos sobre agência, subjetividade, estas são definitivamente uma área. Um outro tema em expansão é o de como estudar atividades que têm características compartilhadas que não sejam apenas locais, mas também estejam aumentando no mundo, ou, ao menos, interconectadas. Essa interligação e, também, esse efeito potencial da rede mundial de computadores e outras mídias nas atividades e comunidades é uma outra dimensão dos desafios e tarefas. Mas, talvez, o tema mais crucial no nível de pesquisa individual e de grupos seja “como conectar os projetos de pesquisa local às tensões sociais e 726

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possibilidades de desenvolvimento social”. Para que a pesquisa da Teoria da Atividade seja relevante, ela deve almejar realmente influenciar a vida das pessoas e aumentar as formas pelas quais nós devemos ficar engajados e envolvidos em importantes níveis de transformações sociais, analisar o impacto e ver como elas são colocadas fora do contexto local. Em parte esta é a razão de termos colaboração com pesquisadores de outros países, como o Brasil. Talvez aí a sociedade seja mais otimista e mais aberta às mudanças do que em parte da Europa e dos Estados Unidos. Infelizmente, estes últimos estão sentindo o choque de não serem mais o centro do poder e do mundo, o que torna a sociedade um tanto quanto defensiva, o que os faz sentirem-se perdidos. Eles não sabem para onde ir! E isso significa que, cada vez mais, o futuro do mundo está sendo moldado não no oeste, mas no resto do mundo! Para a Teoria da Atividade significa que a pesquisa deva ser feita nesses lugares onde o futuro é construído atualmente. Não onde as pessoas estejam defensivas e completamente perdidas. Eu não estou dizendo que isso seja tão simples. Claro que a maior parte de nosso trabalho é feita aqui na Finlândia, mas, cada vez mais, nós temos de reconhecer que não estamos isolados. E isso é um de nossos desafios. O outro é o de como nós desenvolvemos nossa metodologia intervencionista quando enfrentamos novas condições culturais. Quando enfrentamos situações em que as pessoas estão engajadas também em disputas políticas ou discussões da comunidade além de nossos ambientes de trabalho. Nossa maior experiência vem dos espaços de trabalho, mas isso deve ser ampliado. Eu acredito que nos próximos anos teremos um número de estudos de intervenção, também usando o Laboratório de Mudança, em diferentes países. Nós precisamos colocar todos juntos e fazer comparações, talvez por meio de publicações internacionais onde olhemos para as experiências e visões obtidas ao se implementar algo. Por exemplo, nós temos um colega da África do Sul usando o Laboratório de Mudança na prevenção da AIDS em algumas comunidades locais, nas quais a doença se alastrou, ajudando a construir novas formas de prevenção. Este é um desafio bem diferente do trabalho com um hospital ou uma escola finlandesa! Assim, essas comparações e lições obtidas além dessas fronteiras culturais serão totalmente centrais.

Agradecimentos Ao Professor Engeström, pela abertura em conceder esta entrevista-conversa. À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP - Univ Estadual Paulista, pela concessão de auxílio para estágio no exterior de um dos entrevistadores. Ao apoio de Rodolfo Andrade Gouveia Vilela (FSP-USP), Fernanda Liberali (PUC-SP), Elaine Matheus (UEL-PR) e Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP).

Recebido em 08/05/13. Aprovado em 31/07/13.

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livros

VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011.

Cristiane Batista Andrade1

A finalidade da pesquisa, desenvolvida durante os anos de 2008 a 2010, dividida em quatro capítulos, é a de analisar o trabalho e a qualificação de agentes comunitários de saúde, na perspectiva das relações entre as políticas de educação, saúde e trabalho. Como referenciais teóricos e metodológicos, consideram as mudanças no capitalismo contemporâneo e as políticas de educação e formação profissional no contexto de saúde brasileiro. Nesse sentido, a noção de qualificação, que permeia as produções científicas das autoras, tem em vista a dialética entre o sistema produtivo e as relações de trabalho: a construção social e histórica do processo de qualificação dos agentes comunitários. Para tal, foram realizadas nove entrevistas semiestruturadas com gestores e sujeitos envolvidos com a temática da pesquisa, além de análises de documentos oficiais e legislação, e os relatórios de Conferências do Ministério da Saúde. O primeiro capítulo, intitulado “A reconfiguração gerencial do Estado brasileiro e os trabalhadores da saúde nos anos 1990”, discute as mudanças econômicas e políticas no Brasil na década de 1980, atentando para o contexto do movimento sanitário e a democratização do país. A VII

Conferência de Saúde aponta a falta de proximidade do profissional de saúde com a comunidade, sendo que a qualificação técnica não é enfatizada: no âmbito das políticas de formação profissional em saúde, ainda se mantinha a concepção de que, para as populações mais pobres, bastariam ações de cuidados básicos, prestados por pessoal auxiliar com formação simplificada. (Chinelli, Lacerda, Vieira, 2011, p.38)

Já na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), a formação profissional em saúde passou a ser tratada, também, pelo viés das relações de trabalho e a institucionalização de processos formativos, como a criação dos: Cendrhu, Projeto Larga Escala, Escolas Técnicas do SUS, e os CEFORS. Ambas as conferências suscitaram a inserção dessa temática na Constituição de 1988, em que ratifica a formação de recursos humanos em saúde ao nível de pós-graduação, programas de aperfeiçoamento e incentivo à dedicação exclusiva aos serviços do SUS. Entretanto, a qualidade da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Biblioteca Virtual da Educação Profissional em Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-360. cristianeandrade@fiocruz.br

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formação com embasamentos teóricos e práticos para a complexidade do cuidado em saúde é deixada à deriva. Ainda de maneira crítica, tecem argumentos sobre os anos de 1990 – mudanças advindas com a crise do capital, reorganização do Estado e as políticas neoliberais, influência do Banco Mundial e outras agências de fomento nas políticas educacionais – e as suas implicações na área de saúde. Sendo assim, sinalizam as precárias condições de trabalho e de formação dos trabalhadores em saúde no cenário da política de saúde:

oficiais, bem como os depoimentos dos sujeitos que dela participaram. Sob a influência das discussões da VIII CNS e da Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde (CNRHS), ambas ocorridas em 1986, houve, nesse cenário, o fomento da necessidade da formação para a implementação das políticas de saúde, além de reivindicações por melhores condições de trabalho. Para as autoras, os anos de 1980 e 1990 trouxeram pouco avanço na área. Nos anos 2000, na XII CNS, o “Trabalho em Saúde” ganhou destaque como um dos dez eixos temáticos, e, nos documentos:

privatização de empresas estatais no setor público do país, redução de postos de trabalho, precarização jurídica das relações trabalhistas e intensa terceirização do trabalho e dos serviços. (Chinelli, Lacerda, Vieira, 2011, p.49)

A implementação do SUS serviu para alavancar o mercado de trabalho em saúde, bem como a precarização e a desregulamentação de formas de contratação, suscitadas com as mudanças no mundo do trabalho – acumulação flexível. Há de se considerar as influências das políticas educacionais na formação dos trabalhadores em saúde no que dizem respeito à noção de competências: a responsabilidade do trabalhador em saúde em adquirir a sua própria formação no contexto de produtividade. A origem do ACS esteve relacionada ao contexto de saúde, social e econômico do país, como a diminuição da pobreza e a melhoria das condições de vida da população. Eis aqui a centralidade da discussão: a formação e a precarização do trabalho dos ACS. Com relação aos avanços no reconhecimento desses profissionais, mostram a história da profissão: em 1991, a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde que, três anos mais tarde, integra o Programa Saúde da Família; em 2002, é criada a profissão; e, em 2006, a elaboração do Referencial Curricular para o Curso Técnico de ACS. Entretanto, sinalizam a precarização dos vínculos de trabalho e a formação aligeirada e fragmentada. O capítulo dois, “O trabalho e a educação na saúde: a questão dos recursos humanos”, versa sobre a história da formação e as políticas públicas de saúde, do ponto de vista dos documentos 730

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passam a salientar o entendimento do trabalhador como sujeito e agente transformador de seu ambiente e não apenas um mero recurso humano, realizador de tarefas previamente estabelecidas pela administração local. (Vieira, Chinelli, Lopes, 2011, p.94)

De qualquer modo, a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), nos anos 2000, expressa a centralidade, ao menos em sua proposta, de uma política voltada à educação permanente e à gestão do trabalho em saúde. Há avanços nos documentos oficiais, pois apontam a temática para além da necessidade de se investirem nos recursos humanos na saúde. De acordo com os resultados da pesquisa, percebe-se a tentativa de se romper com a noção de recursos humanos e implementar políticas que visassem o conceito ampliado de trabalho e de gestão. Entretanto chama a atenção para as políticas de educação permanente em saúde e “acaba por enfatizar que a possibilidade de um trabalho autônomo depende, em grande medida, da própria organização dos trabalhadores” (Vieira, Chinelli, Lopes, 2011, p.103). Por outro lado, a criação da SGTES implementou o levantamento: de dados sobre a força de trabalho e das necessidades dos trabalhadores em saúde, políticas de desprecarização do trabalho e viabilização do plano de carreiras, cargos e salários. O capítulo três, “Os agentes comunitários de saúde e o conceito de comunidade na configuração de sua qualificação”, trata da análise da comunidade numa perspectiva crítica das políticas públicas para as camadas populares e suas relações com o trabalho dos ACS:

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É em 1991 que o ACS é inserido como trabalhador do SUS devido à implementação do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS). Somam-se a isso: a construção da profissão pelo viés da precariedade do vínculo de trabalho, os baixos salários, a qualificação simplificada e a exposição às doenças no ambiente de trabalho. Destacam o papel das pastorais da Igreja Católica na origem da profissão, o vínculo com o Programa Comunidade Solidária e a própria construção do sistema de saúde a partir da Reforma Sanitária. Ao final desse capítulo, as autoras sintetizam os fazeres dos ACS, a solidariedade desempenhada por eles num contexto de precarização social, expressa pelas contradições e tensões: Por serem moradores da comunidade e terem uma relação de vizinhança com os usuários do PSF, não conseguem estabelecer um distanciamento em relação aos problemas que os cercam, os quais, ao fim e ao cabo, também os afetam. De mais a mais, são constantemente cobrados pelos usuários para a solução de problemas cuja solução está muitas vezes além da sua possibilidade de atuação. (Durão, Morosini, Carvalho, 2011, p.152)

Eis uma pista para a análise das influências das condições e da organização do trabalho na saúde desses profissionais. O último capítulo, “A disputa sobre os sentidos do trabalho e da formação dos agentes

comunitários de saúde”, tem como objetivo discutir o processo de qualificação: qual a centralidade do trabalho em saúde dos ACS? Esta e outras questões vão sendo respondidas nesse capítulo. Nos documentos oficiais, o papel dos ACS:

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A participação da comunidade era considerada como uma forma de os setores mais pobres aproveitarem seus próprios recursos para a superação da pobreza. Estimulavase a participação da comunidade e priorizava-se a atenção básica, considerando-se que mediante ações simples e preventivas haveria uma triagem no atendimento, com consequente redução de custos. (Durão, Morosini, Carvalho, 2011, p.131)

[...] seria de articulação/tradução/ elo entre a comunidade e os serviços de saúde e/ou Estado. O trabalho dos ACS se valorizaria, portanto, em virtude de seu cunho relacional, construído com base em algumas ações técnicas prescritas nos manuais e na legislação pertinente, tendo como pano de fundo o compartilhamento dos códigos culturais locais. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.169)

É com a lei no. 11.350 de 2006 que há a regulamentação da profissão voltada às ações preventivas, visitas domiciliares e/ou comunitárias, seguindo as diretrizes do SUS com a supervisão dos gestores em saúde. Do ponto de vista do trabalho prescrito, utilizam instrumentos para levantamento de dados para o diagnóstico demográfico e sociocultural; ações de educação para a saúde; registro e controle de nascimentos, óbitos e doenças; ações que permitam a ligação entre o sistema de saúde e a comunidade, e outras. Portanto o trabalho tem, na sua essência, a sua dimensão relacional, já discutida em capítulos anteriores. Considera-se que as imbricações sobre a qualificação dos ACS é tecida pelos aspectos da profissionalização, pela formação e pelo reconhecimento social. Se, por um lado, alguns entrevistados acreditam que a inserção na carreira com vínculos efetivos e a formação técnica não sejam necessárias, há quem as defenda, apontando a “possibilidade de melhora na qualidade dos serviços e de construção de uma carreira no SUS” (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.184). A garantia da formação possibilita a discussão mais ampliada do trabalho em saúde: [...] considera-se que a formação técnica, em um sentido mais amplo, permitirá aos agentes não só um questionamento da própria

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realidade, como também os potencializará para o estabelecimento de uma interação mais crítica com os demais membros da equipe. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.192)

Do ponto de vista da identidade profissional, possibilita o reconhecimento social e a busca coletiva de melhores condições de trabalho. As autoras mostram a dicotomia na formação técnica e os saberes construídos no fazer dos ACS, e, por assim dizer, na divisão do trabalho, ou seja, aos ACS caberia o desenvolvimento de atividades referentes ao elo com a comunidade e aos outros profissionais, aquelas relacionadas aos saberes mais especializados. A pesquisa realizada mostrou que há pouca mobilidade social, que os vínculos trabalhistas são precários e que o fato de serem essencialmente empregados pelo Estado leva a crer que não existem outros espaços para exercerem o trabalho. O mérito deste livro está na organização das análises das autoras. Interessante notar que não há polaridades entre formação, condições de trabalho, políticas públicas e mudanças advindas com o capitalismo nas últimas décadas. Mostram que essas categorias são fundantes para a compreensão histórica e dialética do trabalho dos ACS. Trazê-las ao centro do debate do trabalho em saúde poderá desvelar as contradições dos

fazeres dos diversos profissionais da área, sejam de nível Médio ou Superior. Embora a categoria analítica das relações de gênero e trabalho não seja discutida ao longo do livro, é no último capítulo que as autoras dão pistas para entender que o fato de ser um trabalho majoritariamente exercido por mulheres, a destreza, a minúcia, os “cuidados” desprendidos por essa categoria profissional são valorizados no savoir- faire: [...] nos discursos que enfatizam o pertencimento dos agentes à comunidade, percebe-se a valorização desses atributos, negando-se a possibilidade de uma formação técnica que implique maior crescimento profissional. (Lopes, Durão, Carvalho, 2011, p.188)

Evidentemente, a categoria analítica das relações de gênero poderá, em futuras indagações, “tirar o véu” do trabalho dos ACS, já que é exercido, na maioria, por mulheres. Se partimos da compreensão de que as relações sociais são sexuadas, a organização e as condições de trabalho são influenciadas por se ser mulher ou homem no mercado. Portanto, as qualificações perpassam pelas práticas sociais vinculadas ao exercício do trabalho.

Referências CHINELLI, F.; LACERDA, A.; VIEIRA, M. A reconfiguração gerencial do Estado brasileiro e os trabalhadores da saúde nos anos 1990. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.33-78.

LOPES, M.R.; DURÃO, A.V.; CARVALHO, V. A disputa sobre os sentidos do trabalho e da formação dos agentes comunitários de saúde. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.161-208.

DURÃO, A.V.; MOROSINI, M.V.; CARVALHO, V. Os agentes comunitários de saúde e o conceito de comunidade na configuração de sua qualificação. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.119-60.

VIEIRA, M.; CHINELLI, P.; LOPES, M.R. O trabalho e a educação na saúde: a “questão dos recursos humanos”. In: VIEIRA, M.; DURÃO, A.V.; LOPES, M.R. (Orgs.). Para além da comunidade: trabalho e qualificação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2011. p.79-118. Recebido em 25/10/12. Aprovado em 07/05/13.

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livros

WAGNER, W.; HAYES, N.; PALACIOS, F.F. (Eds.). El discurso de lo cotidiano y el sentido común: la teoría de las representaciones sociales. México: Anthropos, 2011.

Priscila de Vasconcelos Monteiro1 Maria Lúcia Duarte Pereira2

O livro “El discurso de lo cotidiano y el sentido común: la teoría de las representaciones sociales” traz, em seu conteúdo, uma explicação clara e objetiva de diversos elementos utilizados na Teoria das Representações Sociais (TRS). Durante a narrativa, o leitor é levado a apaixonar-se pela teoria, pois, ao aliar a influência de diversas ciências ao conteúdo principal, ela é apresentada de forma simples e atrativa. O texto é rico em referências que se contrastam e dialogam com o conteúdo exposto. Os autores, primeiro, apontam o que não compõe a TRS para só depois defini-la, de forma a demarcar seus limites. Em diversos momentos, interrompem a narração para situar o leitor, fazendo uma ligação entre o que está sendo colocado com o que já foi tratado em capítulos anteriores. Nesta obra, os autores apresentam, de forma objetiva, novas propostas investigativas no campo das representações sociais, com ideias bastante úteis àqueles que desejam desenvolver pesquisas na área. A narrativa tem linguagem acessível e, apesar do conteúdo constituir-se de material denso, fruto de profunda

reflexão de quem tem experiência no assunto, a estrutura é de fácil compreensão. Publicado em língua espanhola e ainda sem tradução para o português, seu texto é bem compreensível, mesmo para os iniciantes no espanhol. O notável crescimento, nas últimas décadas, do estudo da TRS no Brasil é uma das razões que confirmam a relevância deste livro para o público brasileiro. Apesar de nascida da psicologia social, a TRS tem sido cada vez mais utilizada em pesquisas nas áreas da saúde e educação. A obra se constitui em ferramenta importante para pesquisadores que desejam compreender melhor a TRS, aprofundar conhecimentos na área, utilizar novas metodologias de pesquisa ou explorar tópicos como: cotidianidade, diálogo, sujeito coletivo e representações sociais. O primeiro autor, Wolfgang Wagner, é doutor em psicologia social e professor da Universidade de Linz; publicou diversas obras sobre o estudo das representações sociais (RS) e é fundador do periódico Papers on Social Representations. Nicky Hayes é doutora em psicologia social, estuda a temática das RS, identidade social no contexto

Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual do Ceará (UECE). Av. Dedé Brasil, nº 1700, Itaperi. Fortaleza, CE, Brasil. 60.740-000. privmonteiro@gmail.com

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cotidiano e empresarial, e publicou inúmeras obras na área da psicologia. Fátima Flores Palacios é doutora em psicologia social e escreve sobre RS e gênero. O livro é fruto do trabalho que os autores vêm desenvolvendo ao longo de sua trajetória no estudo das RS e da psicologia social. Para tanto, fundamentam-se na TRS de Serge Moscovici e trazem, no texto, os alicerces da construção desta teoria. A obra é dividida em nove capítulos, além de agradecimentos, prefácio e introdução. Os capítulos iniciais fazem um delineamento da psicologia social interessada no homem cotidiano; introduzem o leitor na construção da TRS, e situam-na nos tempos atuais, apresentando termos e conceitos que serão utilizados durante o livro. Os capítulos seguintes são voltados à discussão da TRS, com delimitação do espaço para sua utilização, abordando: conceituação, estruturação, diálogo e discurso, aspectos epistemológicos e metodológicos que orientam o leitor no estudo da teoria através de modelos de pesquisas já realizadas. Cada capítulo é cheio de subdivisões, o que os torna didáticos. No prólogo, Serge Moscovici cita a contribuição da filosofia e da antropologia nos temas tratados pelo livro e classifica a obra como incapaz de passar despercebida, por sua relevância. Flores traça o retrato da psicologia latina, sua história e as influências pelas quais passou para chegar ao que é hoje. Afirma que a obra se propõe a ser uma ferramenta conceitual e metodológica para os interessados na perspectiva social, e que se constituiu num desafio aos autores, que sempre revelam novas incógnitas prontas a pôr sob dúvida o que está estabelecido. No primeiro capítulo, os autores descrevem de que forma o cotidiano tem sido estudado na psicologia social, trazendo conceitos de senso comum e outros processos cognitivos. Para eles, o sentido comum é fundamental para o entendimento do cotidiano, e se define como o oposto do conhecimento complexo e ordenado. No segundo capítulo, os autores criticam o fato de vários conceitos científicos terem sido esquecidos ou abandonados após a morte de seus autores, e o fato de novos estudiosos, ao invés de retomarem de onde os primeiros pararam, sem lhes fazer referência, dão um novo enfoque às teorias. Argumentam que as frequentes mudanças nas teorias sociais são causadas pelo fato de a 734

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sociedade, ao tomar conhecimento de determinada teoria, agir de forma contrária, a fim de contrariá-la. Ao tratar da mentalidade moderna no capítulo três, uma das primeiras colocações é sobre a forma como a ciência se converteu em base de autoridade moral para a sociedade; mas alertam que a prioridade do pensamento científico antes do social pode impulsionar discussões bioéticas, defendendo que as RS devem estar mais relacionadas ao conhecimento pragmático que às teorias científicas. No quarto capítulo, apresentam, a cada explicação estrutural das RS, modelos que as exemplificam através de pesquisas. Definem esquema figurativo como a forma simbólica à qual se podem reduzir as RS, tendo, nas imagens, o poder de resumir conceitos difundidos socialmente. Trazem o uso de imagens e metáforas como forma mais acessível de troca de conhecimento. O quinto capítulo aborda a dinâmica das RS, trazendo a ideia de: anomalias, ancoragem, objetivação e mente socializada, além de outros conceitos tratados anteriormente. Ao final, declaram a inter-relação entre ancoragem e objetivação, afirmando que, ao enfrentarem um fenômeno diferente, as pessoas, naturalmente, o ancoram para, depois, explicá-lo, trazendo o desconhecido a um domínio conhecido. No sexto capítulo, os autores contrapõem a ideia de que grupo social é formado por, no mínimo, quatro pessoas, argumentando que, a partir de duas que compartilham um conjunto de representações com comunicação significativa, tem-se grupo social. Frisam, também, a importância da comparação entre grupos, independente do número de componentes, para validação dos achados em pesquisas. Mencionam a influência dos meios massivos de comunicação: na comunidade, no surgimento de discursos, no entendimento metafórico, na objetivação e na formação de novas RS; e, a partir de então, apontam a lacuna de pesquisas sobre o papel dos meios de comunicação nas RS. Após uma breve introdução sobre os processos individuais de entendimento e interpretação no capítulo sete, os autores trazem inúmeros exemplos de pesquisas e falam da utilização de jogos como formas de explorar a regulação da ação como uma consequência das ideias sociais, contituindo-se no ambiente onde o observador

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No nono capítulo, os autores afirmam que o enfoque mais frequente nas investigações tem a ver com as pessoas e em como estas representam seus objetos. A partir de então, citam métodos como: a experimentação, os questionários, a associação de palavras, a etnografia, os grupos focais e as análises televisivas ou de texto. Por fim, recomendam o relato narrativo e a análise do discurso como complementares à TRS, e o uso das investigações multimétodos pela capacidade que apresentam em validar e reforçar os achados. A associação entre métodos qualitativos e quantitativos também foi apoiada, com o fim de permitir a comparação entre os resultados e a exploração da epidemiologia das RS.

livros

pode manipular os participantes dando-lhes coordenadas falsas ou verdadeiras. Apesar da tentativa dos observadores, os estudos citados mostravam que a ação é sujeita ao controle social, o qual se internaliza em forma de representações. No oitavo capítulo, trazem, de maneira minunciosa, temas e usos da psicologia social nas RS. Discorrem sobre a tarefa das ciências em geral e, em particular, do papel da psicologia, pontuando pré-requisitos para explicar ou formular teorias na construção do conhecimento. Além disso, definem indivíduo como alguém dotado de uma subjetividade que o torna singular, e como um componente elementar de uma unidade maior que inclui outras pessoas.

Recebido em 03/10/12. Aprovado em 26/12/12.

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Modelos de Atenção Primária em Botucatu-SP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde Models of Primary Care in Botucatu-SP: working conditions and the meanings of Integrality presented by workers in basic health units Modelos de Atención Primaria en Botucatu-SP: las condiciones de trabajo y la integridad significados presentada por los trabajadores en las unidades básicas de salud

Este estudo objetiva identificar e analisar os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores da Atenção Primária à Saúde (APS) e suas correlações com as condições de trabalho e gestão nos modelos tecnológicos em que se encontram inseridos: Unidade de Atenção Básica em Saúde da Família e Unidade Saúde da Família (USF). O princípio doutrinário da Integralidade, conforme construído na Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e impresso no Sistema Único de Saúde (SUS), abarca dimensões relativas: à interdependência entre os âmbitos primário, secundário e terciário de cuidado; a articulação de ações preventivas e promocionais em saúde em todas as esferas de atenção, e o olhar ampliado aos determinantes socioeconômicos do processo saúde-doença. A Política Nacional de Atenção Básica, desde 1994 pautada na Estratégia Saúde da Família (ESF), pressupõe a efetivação dos princípios do SUS com a reorganização do trabalho das USF, mediante adscrição da clientela, territorialização, presença de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de profissionais com formação generalista. Esse modelo assistencial coexiste, na realidade do município pesquisado, com tecnologias anteriores, estruturadas a partir das proposições das Ações Programáticas em Saúde. As condições de trabalho e gestão da APS apresentam especificidades relativas ao vínculo com a administração direta ou com fundações estatais de direito privado. No contexto de

Reforma do Aparelho Estado, com prerrogativas neoliberais de um Estado Mínimo e políticas sociais seletivas/focalizadas, identifica-se a reprodução, nos serviços públicos, de modelos gerenciais característicos da organização toyotista ou de acumulação flexível do capital. A metodologia da pesquisa contou com: aplicação de questionário aos trabalhadores de 16 unidades, entrevistas com dois gestores municipais e dois gestores de unidades de Atenção Primária, e a realização de cinco grupos focais com as categorias profissionais ligadas diretamente à assistência. Os dados revelam uma intensificação do trabalho nas Unidades Básicas; além de mecanismos de gestão pautados no controle e na pressão pelo cumprimento de metas, desencadeando maior desgaste físico e mental aos trabalhadores. A análise dos resultados fundamenta-se nas perspectivas teórico-conceituais e práticas do Processo de Trabalho em Saúde e da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentadas no Materialismo Histórico e Dialético. A partir das categorias Trabalho/Atividade, Consciência e Alienação, foi possível identificar diferenças entre a organização de trabalho nos modelos de Atenção Primária, sem, no entanto, apontar-se relevantes distinções entre as concepções de Integralidade apresentadas por seus trabalhadores. Na prática do cotidiano profissional, a efetivação do princípio da Integralidade se vê tolhida por impedimentos estruturais, econômicos e políticos, a partir da baixa integração entre os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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níveis de atenção no SUS e as políticas intersetoriais, conforme as discussões grupais nos revelam. Constatou-se, ainda, relevante divisão entre a classe trabalhadora que atua nos modelos de Atenção Primária. A presença de diferentes gestores na administração do trabalho em Atenção Primária representa a expressão institucionalizada desta fragmentação. Esta constatação apresenta-se como característica da Reforma do Aparelho de Estado, deixando, como legado, maiores empecilhos para a organização de lutas dos trabalhadores por resistência e transformação nas condições de trabalho e da assistência à saúde. Lilian Magda de Macedo Tese (Doutorado), 2013 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP – Univ Estadual Paulista limagda@hotmail.com

Palavras-chave: Trabalho. Atenção Primária em Saúde. Integralidade. Reforma do aparelho de Estado. Saúde do trabalhador. Materialismo histórico e dialético. Keywords: Work. Primary Health Care. Integrality. State apparatus reform. Worker’s health. Historical and dialectical materialism. Palabras clave: Trabajo. Atención Primaria en Salud. Integralidad. Reforma de institucional del Estado. Salud del trabajador. Materialismo histórico y dialéctico.

Texto na íntegra disponível em: <http:// www.pg.fmb.unesp.br/index.php?codPG=9>

Recebido em 27/06/13. Aprovado em 28/06/13.

Pesquisa-ação em ciências da saúde: bibliometria e análise conceitual em teses e dissertações da universidade de São Paulo Action research in health sciences: bibliometric and conceptual analysis in the theses and dissertations at the university of São Paulo Investigación-acción en ciencias de la salud: bibliometría y análisis conceptuales en las tesis y disertaciones de la universidad de São Paulo

A pesquisa-ação, desde a sua origem associada às Ciências Sociais, sofreu diferentes incorporações teóricas, tanto relacionadas ao seu conceito quanto à sua prática, que resultaram em muitas interpretações distintas que, às vezes, podem dificultar o seu emprego em produções acadêmicas da área de Ciências da Saúde. Objetivo: identificar e caracterizar as teses de doutorado e as dissertações de mestrado

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produzidas nos programas de pós-graduação de Ciências da Saúde da Universidade de São Paulo (USP), entre 2000 a julho de 2012, em que foi utilizada a metodologia de pesquisa-ação, além de analisar os conceitos de pesquisa-ação que foram empregados nestes trabalhos. Metodologia: utilizamos o método bibliográfico, a bibliometria e a Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT), através da

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Freire foram os mais citados. Identificamos 356 excertos de citações relacionados ao conceito de pesquisa-ação (média = 8,09 excertos/trabalho). A pesquisa-ação foi conceituada mediante a descrição dos tipos de pesquisas relacionadas a essa metodologia, sua origem, aplicação e princípios básicos. Considerações finais: a aplicação da pesquisa-ação em teses de doutorado indica que esta metodologia apresenta rigor científico adequado às exigências de estudos considerados complexos. A pesquisa-ação foi conceituada, sobretudo, através de fontes específicas sobre o tema em questão, com a utilização de um núcleo principal de fontes e de atores utilizados como referências para conceituar a temática em foco.

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abordagem qualitativa e quantitativa. Usamos, como fonte de dados, a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP (BDTD/USP) e, como instrumento, usamos uma ficha de coleta de dados validada por especialistas. Realizamos a análise dos dados de forma manual. Resultados: a pesquisa-ação foi utilizada em 49 trabalhos (31 de doutorado e 18 de mestrado), de autoria de 45 diferentes alunos/autores que, em sua maioria, tinham formação em Enfermagem (54,17%), atuando na linha de pesquisa de Educação em Saúde e Formação de Recursos Humanos (51,02%), do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica (55,10%), da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) (61,22%), sob a orientação de uma mesma docente (48,98%). Predominaram trabalhos defendidos entre 2007 e 2011 (61,22%), em que o pesquisador atuava, previamente, no campo de aplicação do estudo (59,19%), desenvolvidos sem apoio financeiro de órgãos de fomento (69,39%). Os trabalhos apresentaram abordagem qualitativa, com temáticas sobre pesquisa-ação (5,91%), Enfermagem (5,38%) e Educação em Saúde (3,76%), tendo como foco principal a formação/ prática do profissional de saúde (44,90%). Nestes, prevaleceu o emprego da pesquisa-ação crítica (89,80%), com a realização de todas as etapas da pesquisa-ação indicada por Thiollent. Identificamos 124 citações relacionadas ao conceito de pesquisa-ação (média = 2,82 citações/trabalho), provenientes de 50 referências e 48 autores diferentes. Em sua maioria, eram livros (58,06%), publicados em português, e na década de 2000. O livro Metodologia da pesquisa-ação foi empregado para conceituar a pesquisa-ação por 88,64% dos trabalhos. Em ordem decrescente, os autores Thiollent, Bueno e

Sarah Tarcisia Rebelo Ferreira de Carvalho Tese (Doutorado), 2012 Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. sarahtrfc@hotmail.com Palavras-chave: Pesquisa-ação. Ciências da Saúde. Bibliometria. Análise conceitual. Keywords: Action research. Health Sciences. Bibliometrics. Conceptual analysis. Palabras clave: Investigación-acción. Ciencias de la Salud. Bibliometría. Análisis conceptual.

Texto na íntegra disponível em: <http://www.teses. usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-16012013104848/pt-br.php>

Recebido em 16/03/13. Aprovado em 22/04/13.

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Os grupos na atenção básica à saúde: uma hermenêutica da prática clínica e da formação profissional Groups in primary health care: a hermeneutics of clinical practice and training Grupos en la atención primaria de salud: una hermenéutica de práctica clínica y de formación

Na saúde pública brasileira, constatamos a dificuldade dos profissionais em atuar em contextos coletivos e o escasso desenvolvimento de metodologias voltadas para a intervenção junto aos grupos na atenção básica à saúde. Pretendemos, com esta pesquisa: analisar como são produzidas as práticas de grupo com usuários na atenção básica; compreender os efeitos de um processo de formação em gestão do cuidado, incluindo as possíveis contribuições das estratégias de ensino, para a mudança da prática clínica e de gestão dos profissionais, no trabalho em equipe e no governo de si. Adotamos, como referencial, a pesquisa qualitativa hermenêutica e avaliativa (quarta geração), com métodos participativos de produção de dados (grupos focais, construção de narrativas coletivas e observação de grupos assistenciais com usuários em unidades de saúde). Destacamos as teorias de grupo do campo da psicossociologia, da saúde coletiva, da análise e da psicoterapia institucionais, para a compreensão do movimento dessas práticas na atenção básica e da formação profissional. Constatamos que o dispositivo grupo ainda é visto enquanto atividade de educação, com vistas à prevenção de doenças, promoção e vigilância em saúde. Não se valoriza seu efeito terapêutico na prática clínica, como estratégia de tratamento e como meio de intervenção no acompanhamento dos pacientes em longo prazo. Os grupos na atenção básica se mostraram potentes para o compartilhamento de experiências de adoecimento e como estratégia para a comunicação com a equipe. Consideramos que o uso do grupo como dispositivo formador e a estratégia da discussão de casos possibilitaram o aprendizado sobre manejo de grupos e a aplicação de conceitos e de práticas aprendidos para o cotidiano da atenção básica, tais como: o

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trabalho em equipe, a clínica ampliada e compartilhada. Apresentamos uma proposta de mapas para análise e cogestão dos grupos, como estratégia para a prática clínica e a formação profissional. Concluimos apontando elementos para qualificação dos grupos na atenção básica como coletivos que possam incorporar a discussão dos processos de adoecimento e sofrimento, incluindo a pessoa como participante no processo de coprodução de sua saúde e da reorganização institucional. Paula Giovana Furlan Tese (Doutorado), 2012 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas paulafurlan@unb.br

Palavras-chave: Saúde Coletiva. Pesquisa qualitativa. Processos grupais. Apoio institucional. Educação profissional em Saúde Pública. Keywords: Public Health. Qualitative research. Group process. Institutional support. Education-Public Health professional. Palabras clave: Salud Pública. Investigación cualitativa. Procesos de grupo. Apoio institucional. Educación en Salud Pública profesional.

Texto na íntegra disponível em: <http:// www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/ ?code=000849755&opt=4>

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Recebido em 17/04/13. Aprovado em 11/05/13.


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“Dizem ‘Isso aí não mata’! Mata sim! Mata de tristeza”: representações sociais de pessoas com vitiligo atendidas na Farmácia Universitária da UFRJ “They say ‘That stuff does not kill!’. Yes, it does! It kills with sadness”: social representations of people who have vitiligo, and are assisted at UFRJ drugstore “Ellos dicen ‘Esas cosas no mata’. Mata sí! Mata con la tristeza”: representaciones sociales de las personas que tienen vitiligo, y cuentan con la asistencia de la farmacia a UFRJ

O vitiligo é uma doença crônica, cutânea, sem causa definida pela biomedicina. É caracterizado pelo aparecimento de manchas brancas na pele devido a sua despigmentação, o que, por vezes, provoca uma desfiguração da pessoa. Entre os tratamentos disponíveis, encontra-se a fototerapia com ultravioleta A (UV-A), associada à ingestão do medicamento metoxisaleno cápsulas (PUVA). Esta provoca reações adversas, além de demandar que o doente adote medidas de fotoproteção, sem as quais poderão advir sérios problemas de saúde. Na dispensação do medicamento na Farmácia Universitária (FU/UFRJ), em contato com os doentes, ao informá-los sobre sua utilização e os cuidados necessários para prevenir outros agravos, eles relatavam dificuldades e mal-estares de várias ordens devido à PUVA terapia e à presença do vitiligo em suas vidas. A busca pela compreensão da experiência subjetiva do adoecer e do tratamento, e das diversas facetas da vida das pessoas com vitiligo conduziu este estudo. Adota-se a perspectiva teórico-metodológica da pesquisa qualitativa, socioantropológica, para a apreensão da visão de mundo dos sujeitos abordados. Utilizou-se a entrevista com roteiro semiestruturado. As 16 entrevistas com portadores de vitiligo que adquirem o metoxisaleno cápsulas na FU/UFRJ foram realizadas em espaço reservado, no período de janeiro a outubro de

2012. A partir do diagnóstico da doença, os sujeitos passam a considerar o vitiligo como: “muito ruim”, “feio”, “um sofrimento”, “uma provação”, “um castigo”. Sentem-se alvo da “curiosidade”, de “chacotas”, de “discriminação” e de “preconceito”; são estigmatizados pela diferença que apresentam estampada na pele. A ressignificação imposta pela experiência da doença leva-os a rever seus conceitos de vida, assim, alguns mudam seus objetivos, sua religião e sua forma de encarar a vida, dando a esta um novo significado a partir da doença. Para os entrevistados, sua cultura religiosa perpassa todo o entendimento sobre a doença e funda suas representações sociais. A causa da doença, sua aceitação, a busca por tratamento, sua eficácia, a esperança de cura, o modo de ver a vida e seus projetos futuros, tudo passa a ser mediado pelas crenças religiosas. “Aceitar” sua doença ou tentar conviver com esta nova realidade do vitiligo em seus corpos, em suas vidas, se dá à custa de um sofrimento intenso. As dificuldades que enfrentam são de diversas ordens, como no relacionamento afetivosexual, racial, profissional e social. O fato de o vitiligo não ser considerado, pela biomedicina, uma doença grave, uma vez que não há um comprometimento orgânico crítico por ele causado, segundo tal racionalidade, estabelece-se um não-lugar para o sofrimento, a “dor espiritual” de seus portadores. Na intenção

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de melhorar a saúde e a vida destes sujeitos, impõe-se que sejam considerados os aspectos simbólicos, emocionais e socioculturais que circunscrevem sua doença. Os profissionais de saúde precisam concebê-los para além de suas “manchas”, este é o estatuto que reivindicam. Iolanda Szabo Dissertação (Mestrado), 2013. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. iolandaszabo@globo.com Palavras-chave: Vitiligo. Representações sociais. Antropologia. Metoxisaleno. Atenção farmacêutica. Keywords: Vitiligo. Social representations. Anthropology. Methoxypsoralen. Pharmaceutical care. Palabras clave: Vitiligo. Representaciones sociales. Antropología. Metoxisaleno. Atención farmacéutica.

Texto na íntegra disponível em: <http://fenix2.ufrj.br:8991/F/JV8X5N7XD8DJHVK463 HNBD5GT499VSBUXNVPDAYHTH19S594Q6-58109? func=full-set-set&set_number=823587&set_entry= 000001&format=999>

Recebido em 15/07/13. Aprovado em 16/07/13.

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criação

composições... palavras... imagens... costuras...

Eliane Dias de Castro Nara Mitiru de Tani Isoda Renan Tobias Duarte Sandra Maria Galheigo Eduardo Augusto Alves de Almeida

Curso de Terapia Ocupacional, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05360-000. elidca@usp.br Laboratório de estudos e pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, USP.

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CRIAÇÃO CRIAÇÃO

Este exercício de composição é construído com: textos, tecidos, linhas, alfinetes, tesouras, livros e site de artistas, fotografias, programas de editoração, e uma conexão entre os participantes deste trabalho. Elementos que dão forma ao processo de criação gerado nos encontros para mobilização de desejos e ideias, experimentações e produção de audiovisual para apresentação do texto de fechamento do XV Congress of the World Federation of Occupational Therapists, realizado no ano de 2010, no Chile.

Palavras-chave : Formação crítica. Pensamento crítico. Linguagens. Arte/produção. Recepção estética. Terapia Ocupacional/tendências.

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CO

MP

OSI Ç CO MP CO ÕES.. OSI MP . P CIO OSI AL A NE TIO VRA S .. NS S.. . P ... . IM ALA WO AG BR RD EN AS S .. S.. ... . IM . CO IMÁ AG ST GE ES URA NE ... S .. STI S... . C TCH OST IN UR G .. AS . ...


criação Evento raro ocorreu quando uma terapeuta ocupacional brasileira, professora e colega de trabalho na USP, foi convidada para fazer uma fala de fechamento no Congresso Mundial de Terapia Ocupacional (XV Congress of the World Federation of Occupational Therapists), em maio de 2010, no Chile. Raro porque congressos como esse são, frequentemente, organizados pelas associações mundiais de profissionais e, no contexto da Terapia Ocupacional, como em tantos outros, a América Latina, e em especial o Brasil, configuram uma experiência à margem do pensamento e produção que orienta e afirma o cenário científico. Entretanto, para nossa surpresa, novas forças de composição mobilizaram uma variação e ocuparam um espaço-tempo naquela organização.

A chegada de seu texto e sua vontade de que alguma arte fosse criada para essa apresentação, ativou-nos, terapeutas ocupacionais da interface arte AG e saúde, para um mergulho nessa implicação. Encontros e conversas OU EN foram preparando um plano de sensibilidade, adensado pela C DA B IA leitura: tensões do pensamento e da experiência latinoDE C AST MEN O americana engendraram práticas e reflexões sobre a I IM M DO TO necessidade de constituição de uma forma de se P AG O RE E S S CR compreender e fazer Terapia Ocupacional, EN IÇ ÃO IA S de abrangência crítica e social, ÇÃ preocupada com a construção dos O direitos humanos e com a condição de pobreza da população. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O QUE TEM QUE SER FEITO... CRIAÇÃO

O texto apresentou uma narrativa construída em cinco partes: > A construção de uma perspectiva éticopolítica na Terapia Ocupacional brasileira dos anos 1980; > Os caminhos da Terapia Ocupacional na América Latina; > As epistemologias do Sul: educação em Terapia Ocupacional, alfabetização política, interdisciplinaridade e interprofissionalidade; > A invisibilidade social enquanto estratégia de opressão: diálogos para o acesso a direitos; > Sobre territórios e fronteiras; construção de redes e diálogos na Terapia Ocupacional (Galheigo, 2011)

Esse ‘tônus’ inscreveu a necessidade de uma discussão e responsabilização ética e política dos terapeutas ocupacionais da América Latina, pois, ao problematizarmos a história social e política desse território, confrontamos, nas práticas e no desenvolvimento da formação dos estudantes, as marcas dessa realidade e seu impacto na saúde e na vida da maioria de sua população. Agregar às práticas e à formação profissional a ‘alfabetização política’ e o enfrentamento da invisibilidade deflagra um movimento que tem, na construção da participação social e do poder contratual da população atendida, sua diferença, sua crítica e sua força. O texto aponta, também, a importância da apresentação e costura de experiências que propiciassem a construção de conceitos e estratégias para abrir diálogos, cruzar fronteiras, criar redes e despertar a força dos encontros e das relações de cooperação, agregando resiliência política ao trabalho com as vidas frágeis atendidas.

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criação

Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul. (Santos, 1995, p.508)

Leituras sucessivas, seleção de passagens e pesquisa de artistas foram alinhavando ideias e produzindo uma afinação de camadas sensíveis para observar as principais ressonâncias disparadas pelo acontecimento. O impulso dessa dimensão criativa registra, também, a memória imaterial do corpo, memória física e emocional da sensação do acompanhamento das vidas nos complexos cenários que percorrem os profissionais de Terapia Ocupacional, nos mais variados contextos de sua intervenção. A dimensão ética e política do acontecimento foi desentranhada aos poucos e sutilmente, e, no refazer das formas, deu presença à dimensão poética.

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CRIAÇÃO

Escuta... reflexão crítica... compromisso ético-político... Adotar uma abordagem ética é necessariamente tomar um posicionamento político, na medida em que os saberes e as práticas devem se preocupar com a melhoria da condição humana em uma perspectiva ampliada (Galheigo, 2011)

Repressão política, democratização, cidadania: trilhando caminhos na América Latina Com o fim dos regimes autoritários e a reorganização da sociedade civil, o conceito de cidadania tornou-se o eixo central do processo de mudança social e política. […] Os terapeutas ocupacionais envolvidos nesses processos tiveram que repensar suas práticas, experimentar novas estratégias de ação e se confrontar com novas escolhas éticas e epistemológicas (Galheigo, 2011)

Epistemologias do Sul: alfabetização política, interdisciplinaridade e interprofissionalidade [...] Exemplos do que tem sido feito e pode ser feito para que os estudantes compreendam as complexidades das realidades de seus países e as necessidades da população vulnerável, desafiando visões de mundo associadas à classe social e preconceitos étnicos. Assim, o papel da educação é contribuir para a alfabetização política (Galheigo, 2011) 748

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criação quem enxerga e não vê, quem escuta e não ouve, quem está vivo e não vive, quem quer e não pede, quem gosta e não faz, quem tem e não usa. (Leonilson, 1991, p.70)

Instigados pela necessidade de inscrever a experiência de um fazer precário na apresentação que acompanharia a conferência, efetivado com parcos recursos, e, também, pela vontade de instaurar ressonâncias sensíveis ao trabalho de terapia ocupacional construído no Brasil, selecionamos modos de produção artística que dialogam com o texto e com as maneiras de sentir e agir produzidas nas vivências práticas dos profissionais, estabelecendo linhas de conexão que possibilitassem uma comunicação peculiar. Leonilson (2006) foi o primeiro artista que nos veio à mente pela simplicidade lúdica dos gestos, pelas costuras expostas e pela delicadeza de execução das peças. Sua linguagem intimista, seus diários bordados, imperativos formais conectados às condições éticas da vida contemporânea, operaram como tarefa-síntese da inspiração e conectaram algumas sensações vitais que o trabalho instaurava.

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wh at an I kno df rom w ab ge out …m ne a ral the w a ps inf orm orld bout to in ati from the vent on ov mem way my o erl oa ory, I see wn c d. Th from and f ompl ese im ee ica are pre l ab ted pa ssio out nar int n ing s, fr the w rativ (Pa s of om m orld e ula dis . e Sch tort dia, i er, ons 20 11 . )

CRIAÇÃO

Paula Scher (2010), designer americana, trata do impacto emocional e da dinamização das paisagens urbanas na fusão de uma geografia impressionista, sulcando sensações que brotam do contato com os ambientes que as cidades contemporâneas produzem. Seus mapas operam uma experiência de invenção,cheios de interferências cromáticas que formam texturas e tramas variadas sobre aquilo que ela vê; com irreverência, agem como antídoto artístico para a compreensão das cartografias do presente,e essa tensão expressiva orienta um viés da composição.

list

Na pesquisa que inspirou a produção das imagens, o repertório artístico desses artistas alinhavava uma possível composição entre processos criativos, projetos estéticos instaurados nas vidas construídas no hemisfério sul e algumas situações vivenciadas ao norte, depreendendo, por um instante, a possibilidade de produção de novos modos de sentir e de dar um sentido ativo a conexões raras no contexto dos congressos científicos.

Mobilizados por essas informações, a produção de imagens foi uma aventura percorrida nas diferentes texturas dos tecidos; no trabalho de cortar, juntar, sobrepor, costurar, formar e, por fim, fotografar e selecionar retalhos de imagens-textos. Essas ações conjugaram séries que dialogam com reflexões sobressaltadas no texto, numa combinação plástica que aciona sínteses. Às vezes, um conjunto de palavras, outras vezes, frases ou, ainda, parágrafos inteiros iam direcionando a operação expressiva. Queríamos que as imagens produzidas ligassem os ouvintes às palavras, e que o fluxo de visualidade transmitisse gestos e formações sensíveis, simplificadas e implicadas, reinventando uma linguagem para intensificar o momento em que as narrativas do trabalho vivo do pensamento disparavam memórias, associações, relações, conexões e reflexões. Ao aguçar sensibilidades por meio da escuta da leitura e do acompanhamento das imagens, procurou-se aprofundar aquilo que seria transmitido, intensificando a desestabilização e apresentando a vontade de uma configuração social mais justa.

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Invisibilidade social enquanto estratégia de opressão: diálogos para o acesso a direitos

criação

A produção da invisibilidade social tem sido uma das estratégias políticas de opressão mais bem sucedidas, variando conforme o tempo, o lugar e a cultura. Nos dias de hoje, abordar a questão das necessidades e direitos é considerado improdutivo pela agenda neoliberal. O neoliberalismo se alimenta da invisibilidade social que produz. (Galheigo, 2011, p.64)

Territórios e fronteiras, construção de redes e diálogos na Terapia Ocupacional Diferenças pessoais e regionais, interesses, escolhas epistemológicas, posições políticas e visões de mundo podem nos aproximar ou afastar. Irá depender da nossa habilidade em construir relacionamentos que levem em conta os processos históricos que dão forma tanto às realidades que enfrentamos como às perspectivas que sustentamos. (Galheigo, 2011, p.65)

A trajetória de finalização foi intensa. Horas de um fluxo de produção e acabamento. Numa experimentação precária, criamos uma ambientação que intensificou a vida do texto e a expressão do pensamento. Sem ensaio prévio, a apresentação da conferência foi entremeada pelo potencial inventivo das grandes imagens projetadas no escuro auditório do congresso, formando a ambiência necessária para perturbar experiências, desintoxicar territórios acadêmicos e intensificar trocas e comunicações sensíveis. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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CRIAÇÃO

res ado r o lab Co or rad e a p is oda od ext ara Is m as t u o tro, N uzira igo izo eal e Cas e prod Galhe ida r o m me eig lian dra alh so. E ebera San do Al final. G s e c r a e ua on dr gr tro ção San Con arte c Cas to. Ed itora o e d u x n e a D Elia te de par enan te ns. resen ojeto R e g r ima m o p no p u ra i o z h du abal pro tr

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criação Referências GALHEIGO, S.M. What needs to be done? Occupational therapy responsibilities and challenges regarding human rights. Aust. Occup. Ther. J., v.58, n.2, p.60-6, 2011. LEONILSON, J. Leonilson: use, é lindo, eu garanto. São Paulo: Cosac Naify, 2006. RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Exus Experimental, Ed. 34, 2005. ROLNIK, S. Desentranhando futuros. Rev. Eletr. Jorn. Cient., 2008. Disponível em: <http:// www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=3>. Acesso em: 19 out. 2012. SANTOS, B.S. Toward a new common sense: law, science and politics in the paradigmatic transition. Nova Iorque: Routeledge, 1995. SCHER, P. Maps. Disponível em: <http://www.brainpickings.org/index.php/paula-scher-maps/>. Acesso em: 1 maio 2010.

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CRIAÇÃO

This exercise in composition was constructed using texts, fabric, thread, pins, scissors, books, artists’ websites, photographs, editing software and connections between the participants in this work. These elements gave shape to the creative process that was generated in meetings, in order to mobilize desires, ideas, experimentation and audiovisual production for the presentation of the closing keynote address of the 15th Congress of the World Federation of Occupational Therapists, in Chile in 2010.

Key words: Critical training. Critical thought. Languages. Art/production. Esthetic reception. Occupational Therapy/trends. Este ejercicio de composición se basa en textos, telas, hilos , alfileres , tijeras , libros y páginas web de artistas , fotografías , programas de edición y una conexión entre los participantes en este estudio. Elementos que conforman el proceso de creación generado en los encuentros para movilización de los deseos y las ideas, la experimentación y la producción audiovisual para la presentación del texto de clausura del XV Congreso de la Federación Mundial de Terapeutas Ocupacionales , en Chile en 2010.

Palabras clave: Formación crítica. Pensamiento crítico. Lenguajes. Arte/producción. Recepción estética. Terapia Ocupacional/tendencias.

Recebido em 20/08/13. Aprovado em 25/08/13.

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INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. FORMA E PREPARAÇÃO DE MANUSCRITOS SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS SUBMISSÃO DE MANUSCRITOS Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à

avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema. Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 25 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé - numeradas, sucintas, usadas somente quando necessário. CITAÇÕES NO TEXTO No texto, as citações devem subordinar-se à forma Autor (apenas a primeira letra do sobrenome em maiúscula – mesmo quando estiver entre parênteses), data, página. Ex.: “... e criar as condições para a construção de conhecimentos de forma colaborativa (Kenski, 2001, p.31). Casos específicos: a Citações literais de até três linhas: entre aspas, sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado (Autor, data, p.xx sem espaço entre o ponto e o número). Ponto final depois dos parênteses. b Citações literais de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (dois enter antes e dois depois), sem aspas e sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado. Em seguida, entre parênteses: (Sobrenome do autor, data, página). Nota: em citações, os parênteses só aparecem para indicar a autoria. Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Vários autores citados em sequência: do mais recente para o mais antigo, separados por ponto e vírgula: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Textos com dois autores: Almeida e Binder, 2004 (no corpo do texto); Almeida, Binder, 2004 (dentro dos parênteses). e Textos com três autores: Levanthal, Singer e Jones (no corpo do texto); Levanthal, Singer, Jones (dentro dos parênteses). f Textos com mais de três autores: Guérin et al., 2004 (dentro e fora dos parênteses). g Documentos do mesmo autor publicados no mesmo ano: acrescentar letras minúsculas, em ordem alfabética, após a data e sem espaçamento (Campos, 1987a, 1987b). REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem alfabética, segundo normas adaptadas da ABNT (NBR 6023/ 2002). Exemplos:

instruções aos autores

PROJETO E POLÍTICA EDITORIAL


instruções aos autores

LIVROS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. * Título sempre destacado em negrito; sub-título, não. ** Sem indicação do número de páginas. *** A segunda e demais referências de um mesmo autor (ou autores) devem ser substituídas por um traço sublinear (seis espaços) e ponto, sempre da mais recente para a mais antiga. Se mudar de página, é preciso repetir o nome do autor. Se for o mesmo autor, mas com colaboradores, não vale o travessão. Ex: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Dois ou três autores, separar com ponto e vírgula; mais de três autores, indicar o primeiro autor, acrescentando-se a expressão et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) CAPÍTULOS DE LIVRO: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. * Apenas o título do livro é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo citado. Regras específicas 1 Autor do livro igual ao autor do capítulo: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.). Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.19-28. 2 Autor do livro diferente do autor do capítulo: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 Autor é uma entidade: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Séries e coleções: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. (Visão do futuro, v.1). ARTIGOS EM PERIÓDICOS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, após o volume e o número, as páginas em que o artigo foi publicado. Nota: é importante destacar que, no exemplo acima, está indicada a forma correta de citação de artigos publicados na revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação, de acordo com a ABNT: Interface (Botucatu).

TESES E DISSERTAÇÕES: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. RESUMOS EM ANAIS DE EVENTOS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. * Apenas a palavra Anais é destacada, em negrito. ** Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar o endereço eletrônico: Disponível em:<...>. Acesso em (dia, mês, ano). *** Quando o trabalho for consultado em material impresso, colocar página inicial e final. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS: WAGNER, C.D.; PERSSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Disponível em: <http://www.probe.br/science.html>. Acesso em: 20 jun. 1999. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). ILUSTRAÇÕES: Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 200 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, em tons de cinza, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). Nota: No caso de textos enviados para a Seção de Criação, as imagens devem ser scaneadas em resolução mínima de 200 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm. As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: <http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/>.


INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system (http://mc04.manuscriptcentral.com/ icse-scielo). All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. FORM AND PREPARATION OF MANUSCRIPTS SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Observation: in case of counting the text words, the title, the abstract and the keywords are excluded. SUBMITING ORIGINALS INTERFACE - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for

publication. Translations of texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters). The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 25 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes - numbered, short and to be used only if necessary. QUOTATIONS Quotations included in the text must follow the format Author (capital letter only in the first letter of de author’s surname - even when it is in parentheses), date. Specific cases: a Literal quotations of up to three lines: enclosed by quotation marks, with no italics (Author, date, p.xx with no space between the dot and the number). Full stop after the parentheses. b Literal quotations of more than three lines: in a paragraph detached from the text (two enter before and after the quotation), without quotation marks, without italics. Right after, in parentheses: (Author’s surname, date, page). Note: in quotations, the parentheses are used only to indicate authorship. To indicate quotation fragment, use square brackets: […] encontramos algumas falhas no sistema […] quando relemos o manuscrito mas nada podia ser feito […]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Many authors cited in sequence: from the most recent to the oldest, separated by semi-colon: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Texts with two authors: Almeida and Binder, 2004 (in the text body); Almeida, Binder, 2004 (in the parentheses). e Texts with three authors: Levanthal, Singer and Jones (in the text body); Levanthal, Singer, Jones (in the parentheses). f Texts with more than three authors: Guérin et al., 2004 (in or out of the parentheses). g Documents by the same author published in the same year: add small letters, in alphabetical order, after the date, without space (Campos, 1987a, 1987b). REFERENCES All authors quoted in the text must be listed at the end of the text, in alphabetical order and in compliance with adjusted ABNT standards (NBR 6023/2002), as showed in the following examples: BOOKS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.

instructions for authors

PROJECT AND EDITORIAL POLICY


instructions for authors

*Only the title should be highlighted in boldface; do not highlilight the subtitle. ** Do not indicate the numbers of pages. *** Two or more references of the same author (they may be a book and an article): if they are on the same page, indicate with a dash from the second article/book onwards (six continuous underscores). If they are not on the same page, the author’s name must be repeated. If it is the same author, but with collaborators, do not use the dash. Ex.: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Two or three authors must be separated by semicolons; more than three authors: the first author must be indicated, followed by the expression et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) BOOK CHAPTERS: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. *Only the title of the book should be highlighted in boldface. ** The initial and final pages of the chapter must be indicated at the end of the reference. Specific rules: 1 The book’s author is the same as the chapter’s author: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.) Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997, p.19-28. 2 The book’s author is different from the chapter’s author: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 The author is an entity: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Series and collections: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. 20p. (Visão do Futuro, v.1). ARTICLES FROM JOURNALS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The pages on which the article was published must be indicated after the volume and number.

Note: it is necessary to observe the correct citation of papers published by Interface – Comunicação, Saúde, Educação: Interface (Botucatu), as is indicated by the ABNT (Technical Rules Brasilian Association). THESES AND DISERTATIONS: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. ARTICLES FROM EVENTS PROCEDINGS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. *Only the word Anais should be highlighted in boldface. ** When the work is consulted online, the electronic address must be mentioned: Available from:<...>. Access on (day, month, year). *** When the work is consulted in printed material, the initial and final pages must be mentioned. ELECTRONIC DOCUMENTS: WAGNER, C.D.; PERSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Available from: <http://www. probe.br/science.html>. Access on: Jun 20. 1999. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The authors must verify if the electronic addresses (URL) cited in the text are still active. Note: if the reference includes the DOI, it must be maintained. Only in this case (when the quotation is extracted from SciELO, the DOI is always mentioned; in other cases, not always). ILLUSTRATIONS: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 200 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, in shades of gray, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 200 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will be submitted to a preliminary evaluation by the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed by peers (two reviewers at least). It will be returned to the author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, ís licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in:<http:// creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/>.






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Publicação interdisciplinar dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas.


APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EM

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . Coleção SciELO Brasil/Coleção SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com> TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/ Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) Jaime-Maria Batlhe (Espanhol/Spanish/Español) Web design Tortagade Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Lucas Frederico Arantes

SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br



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