v.18 n.49, abr./jun. 2014

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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francini Lube Guizardi, Fiocruz Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Jairnilson da Silva Paim, UFBa Janine Miranda Cardoso, Fiocruz Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa

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Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Antônia Ramos de Azevedo, Unesp Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Marina Peduzzi, USP Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Mònica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Mónica Petracci, UBA, Argentina Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Vânia Moreno, Unesp


ISSN 1807-5762

PROFISSIONAL DA SAÚDE

CONSULTÓ

SAÚDE

RIO NA RU

ESTERIÓTIPO

O CORP

EDUCAÇÃO

A

DIREITOS SEXUAIS E

REPRODUTIVOS

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ÉTICA

SAÚDE MENTA

L

OFICINA DE ATIVIDADES

MACROPOLÍTICA

SUS

O

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IDOSO

TEATRO EDUCAÇÃO SUPERIOR

COMUNICAÇÃO

SAÚDE DA FAMÍLIA

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DROGAS

CUIDADO ÍC RR

TERAPIAS COMPLEMENTARES

MERCADO DE TRABALHO

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REDE DE ATENÇÃO BÁSICA

MEDICINA INTEGRATIVA

EM SAÚDE FORMAÇÃO SAÚDE DO TRABALHA

ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

PRECEPTOR

MICROPOLÍTICA

Intervenção em foto de Claudia Pereira Martins Ribeiro, No mar, 2008

ETNOGRAFIA

SUICÍDIO

TRABALHO

ENSINO COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2014; 18(49)


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, 2014; 18(49) Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

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Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2014; 18(49)

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apresentação artigos

251 Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde

ISSN 1807-5762

363 Midiatização do crack e estigmatização: corpos habitados por histórias e cicatrizes Moises Romanini; Adriane Roso

377 Recepção estética de apresentações teatrais com atores com história de sofrimento psíquico Aline Ernandes Milhomens; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

Mário Francis Petry Londero; Ricardo Burg Ceccim; Luiz Fernando Silva Bilibio

261 Práticas integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço municipal de saúde

educação

389 Circunstâncias que envolvem o suicídio de pessoas idosas Girliani Silva de Sousa; Raimunda Magalhães da Silva; Ana Elisa Bastos Figueiredo; Maria Cecília de Souza Minayo; Luiza Jane Eyre de Souza Vieira

Karla Morais Seabra Vieira Lima; Kênia Lara Silva; Charles Dalcanale Tesser

403 Fábrica de corpos: corpo e poder na Fundição Tupy 273 Saúde do trabalhador na Atenção Primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família

Odilon Castro; Pedro Paulo Gomes Pereira

Thais Lacerda e Silva; Elizabeth Costa Dias; Vanira Matos Pessoa; Luisa da Matta Machado Fernandes; Edinalva Maria Gomes

289 Ética e comprometimento do profissional da saúde pós-reestruturação produtiva numa região metropolitana do sul do Brasil

espaço aberto 415 Olhos de ver, ouvidos de ouvir, mãos de fazer: oficinas de atividades em Terapia Ocupacional como método de coleta de dados

Doris Gomes; Flávia Regina Souza Ramos

301 Profissionais de saúde e o aborto: o dito e o não dito em uma capacitação profissional em saúde

Paulo Estevão Pereira; Ana Paula Serrata Malfitano

423

livros

429

teses

Adriana Lemos; Jane Araújo Russo

313 Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar Ana Lúcia Abrahão; Emerson Elias Merhy

325 Os movimentos macropolíticos e micropolíticos no ensino de graduação em Enfermagem Simone Edi Chaves

337 Interdisciplinaridade no ensino em saúde: o olhar do preceptor na Saúde da Família Emanuella Pinheiro de Farias Bispo; Carlos Henrique Falcão Tavares; Jerzuí Mendes Tôrrez Tomaz

criação 431 Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel: o lugar da materialidade no campo da Terapia Ocupacional Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa

351 Formação em saúde com vivência no Sistema Único de Saúde (SUS): percepções de estudantes do curso de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil Alexandre Favero Bulgarelli; Kellyn Rocca Souza; Alexandre Baumgarten; Juliana Maciel de Souza; Cassiano Kuchenbecker Rosing; Ramona Fernanda Cerioti Toassi


comunicação

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presentation

saúde

educação

2014; 18(49)

ISSN 1807-5762

363 Mediatization of crack and stigmatization: bodies inhabited by stories and scars Moises Romanini; Adriane Roso

articles

377 Esthetic reception of theatrical presentations by actors with histories of psychological distress

251 Consultation office of/in the street: challenge for a healthcare in verse Mário Francis Petry Londero; Ricardo Burg Ceccim; Luiz Fernando Silva Bilibio

Aline Ernandes Milhomens; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima

389 Circumstances surrounding the suicide of elderly people

261 Integrative and complementary practices and the relationship with health promotion: experience of a municipal healthcare service Karla Morais Seabra Vieira Lima; Kênia Lara Silva; Charles Dalcanale Tesser

Girliani Silva de Sousa; Raimunda Magalhães da Silva; Ana Elisa Bastos Figueiredo; Maria Cecília de Souza Minayo; Luiza Jane Eyre de Souza Vieira

403 Body factory: body and power in the Tupy foundry Odilon Castro; Pedro Paulo Gomes Pereira

273 Occupational health in primary care: perceptions and practices in family health teams Thais Lacerda e Silva; Elizabeth Costa Dias; Vanira Matos Pessoa; Luisa da Matta Machado Fernandes; Edinalva Maria Gomes

289 Ethics and healthcare professionals’ commitment subsequent to productive restructuration in a metropolitan region in southern Brazil

open space 415 Eyes to see, ears to hear, hands to do: activity workshops on Therapy Occupacional as a data-gathering method

Doris Gomes; Flávia Regina Souza Ramos

Paulo Estevão Pereira; Ana Paula Serrata Malfitano

301 Healthcare professionals and abortion: what is said and not said in a professional healthcare capacitation Adriana Lemos; Jane Araújo Russo

423

books

429

theses

313 Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices Ana Lúcia Abrahão; Emerson Elias Merhy

325 Macropolitical and micropolitical movements in the undergraduate teaching on nursing Simone Edi Chaves

337 Interdisciplinarity in healthcare education: the preceptor’s view of family health Emanuella Pinheiro de Farias Bispo; Carlos Henrique Falcão Tavares; Jerzuí Mendes Tôrrez Tomaz

creation 431 Paper Mosaic Therapeutic Workshop: the place of materiality in the field of Occupational Therapy Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa

351 Healthcare training with experience in the National Health System: students’ perceptions regarding the dentistry course at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), Brazil Alexandre Favero Bulgarelli; Kellyn Rocca Souza; Alexandre Baumgarten; Juliana Maciel de Souza; Cassiano Kuchenbecker Rosing; Ramona Fernanda Cerioti Toassi


apresentação

DOI: 10.1590/1807-57622014.0362

Com seu espaço aberto para as diferentes formas de expressão, principalmente nas áreas de Comunicação, Saúde e Educação, mas também com um diálogo com as artes, o fascículo 49 da revista Interface apresenta mais um rico conjunto de ideias oriundas da pesquisa e de experiências realizadas nessas áreas, compartilhando com seus leitores uma multiplicidade de reflexões que certamente os influenciarão para outras e ao desejo de ampliá-las ou discuti-las em novos estudos. Em artigo sobre teatro e saúde mental, discute-se a recepção estética de apresentações teatrais com atores com história de sofrimento psíquico. Três artigos tratam da saúde em diferentes perspectivas: um sobre o uso do crack e as cicatrizes no ser humano; outro sobre as relações entre o corpo e o poder no trabalho em uma grande fábrica; e o terceiro, sobre saúde, dinâmica social e o suicídio em idosos. A formação profissional no ensino superior, na área da saúde, coloca o foco na formação em odontologia com vivência no SUS e na formação em Enfermagem e os movimentos macropolíticos e micropolíticos na relação com o SUS. Um outro artigo aproxima-se desta última discussão, trabalhando a formação em saúde e micropolítica. Seis artigos abordam a atuação do profissional da saúde, dois deles relacionados à Saúde da Família, sendo um sobre a atuação de preceptores da Estratégia de Saúde da Família no que concerne à interdisciplinaridade e o outro sobre percepções e práticas de equipes de Saúde da Família na atenção primária da saúde do trabalhador. Um terceiro artigo trata de ética e comprometimento do profissional da saúde, pós reestruturação produtiva, enquanto outro trata de práticas integrativas e terapias complementares na atenção primária e promoção da saúde em serviços de referência. Os dois últimos artigos sobre a atuação do profissional da saúde trazem, respectivamente, a reflexão sobre práticas de cuidado do consultório de/na rua, serviço do SUS junto a pessoas em situação de rua e uma análise da visão de profissionais de saúde em capacitação, diante de temas tais como direitos sexuais e reprodutivos e aborto. Em Espaço Aberto tem-se o destaque para oficinas de atividades de Terapia Ocupacional como método de estudo e de intervenção junto a jovens pobres de periferias urbanas. Resenhas de duas obras ganham espaço neste número, uma delas sobre cultura moral e educação e outra sobre a etnografia na era da informática como método, campo e reflexividade, sendo indicada como referência de amplo espectro para pesquisadores da saúde. Completando o fascículo, na seção Teses apresenta-se o resumo de dissertação de Mestrado que discute o corpo como belo e saudável na relação com o poder, incluindo a percepção de “personal trainers”. E na seção de Criação é apresentada a Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel, para pacientes idosos com ou sem deficiências físicas. Desejamos a todos que se sintam provocados a refletir e que usufruam da leitura dos textos desta edição. Neusi Berbel editora de área

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presentation

DOI: 10.1590/1807-57622014.0337

Not only through open space for different forms of expression, particularly in the fields of communication, health and education, but also through dialogue with the arts, issue 49 of the journal Interface presents another rich set of ideas stemming from research and from experiences conducted in these fields and shares a multiplicity of reflections with its readers. These will certainly influence readers to reflect further and create the desire to expand on them or discuss them in new studies. One paper discusses theater and mental health, describing the esthetic reception of theatrical presentations involving actors with histories of mental distress. Three papers deal with health from different perspectives: one on crack use and the scarring of human beings; another on the relationships between the body and power at work in a large factory; and the third, on health, social dynamics and suicide among the elderly. Professional education in the field of healthcare is the focus of papers on dentistry education with experience in the Brazilian Health System (SUS) and on nursing education and the macropolitical and micropolitical movements in relationships with SUS. Another one approaches this later discussion, through dealing with healthcare education and micropolitics. Six papers address the healthcare professionals’ actions, two of them are related to family healthcare: one on the actions of preceptors of the Family Health Strategy regarding interdisciplinarity and the other on the perceptions and practices of family healthcare teams within occupational primary healthcare. The third one deals with healthcare professionals’ ethics and commitment following restructuring of production. Another paper addresses integrative practices and complementary therapies within primary care and health promotion at referral services. The last two papers bring some reflections on care practices at the consultation office of/on the street, a SUS service among people living on the streets, and an analysis of the healthcare professionals’ view of capacitation relating to topics such as sexual and reproductive rights and abortion. In Open Space, workshops for occupational therapy activities are highlighted as a study and intervention method among poor youths of the urban periphery. This issue also include the reviews on two books: one addressing moral culture and education and the other on ethnography in the information technology era as a method, field and means of reflection. This latter work is indicated as a broad-spectrum reference for healthcare researchers. Lastly, the abstract of a master’s dissertation discusses the beauty and health of the body in relation to power, including the perception of personal trainers. In the Creation section the Mosaic Therapeutic Workshop, an experience on the Ocupational Therapy field, is presented. We hope that all readers find that the texts in this issue are thought-provoking and beneficial. Neusi Berbel Area editor

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0738

Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde

Mário Francis Petry Londero(a) Ricardo Burg Ceccim(b) Luiz Fernando Silva Bilibio(c)

Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultation office of/in the street: challenge for a healthcare in verse. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):251-60.

This paper discusses healthcare practices relating to consultation offices in the street, which are a service delineated within the Brazilian National Health System that is directed towards caring for people living on the streets. The intention was to pose questions regarding healthcare and reception strategies, along with the guidelines or values of this work. These are often discordant with each other, like the programmed actions of tracking and moral authority over people living on the streets and the disruptive actions of the urban model for healthy and safe cities, in relation to strong inclusion of people who, for various reasons, live in such situation. Field diaries written by workers at one these consultation offices, located in Porto Alegre, Brazil, comprise an analysis resource. In these workers’ day-to-day routine, they pass through the streets and health and intersectoral networks with all their difficulties and strengths.

Keywords: Consultation office in the street. Psychosocial care network. Primary care network. Street dwellers.

Este artigo discute práticas de cuidado do Consultório de/na rua, serviço que se delineia no Sistema Único de Saúde, destinado à atenção às pessoas em situação de rua. A intenção é problematizar as estratégias de acolhimento e cuidado em saúde, bem como as diretrizes ou valores desse trabalho, muitas vezes destoantes entre si, como: as ações programadas de rastreamento e autoridade moral sobre pessoas com vida na rua e as ações disruptivas do modelo urbano de cidade saudável e segura, para uma forte inclusão de pessoas que, por variados motivos, levam esse tipo de vida. Como recurso de análise, estão diários de campo escritos pelos trabalhadores de um desses consultórios – localizado em Porto Alegre, Brasil – que, em seu cotidiano, percorrem as ruas e redes de saúde e intersetorial com todas as suas dificuldades e potências.

Palavras-chave: Consultório na rua. Rede de Atenção Psicossocial. Rede de Atenção Básica à Saúde. Moradores de rua.

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(a) Centro Universitário UNIVATES, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Avenida Avelino Talini, 171, Universitário. Lajeado, RS, Brasil. 95900-000. francislonder@hotmail.com (b) Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. burg.ceccim@ufrgs.br (c) Curso de Educação Física, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. fernandobilibio@ uol.com.br

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

Anunciando o campo problemático O presente texto versa sobre um serviço relativamente novo no cenário do Sistema Único de Saúde (SUS), o Consultório de/na Rua (CR). Ele entra em cena diante de um panorama intrincado em termos de assistência à saúde para pessoas em situação de rua, com uso problemático de crack, álcool e outras drogas. A desinstitucionalização, que ganhou efetividade nos anos 1990 no Brasil, enfocando a população segregada em manicômios, pouco aportou sobre os segmentos que não experimentaram a internação manicomial ou portadores de agravos psíquicos sem acesso aos serviços regulares de atenção à saúde mental, sobre quem incide, então, a ação de aparelhagens do Estado, como o judiciário e a polícia. Mesmo em face da desinstitucionalização, não houve, de maneira relevante, uma política social e de saúde que pensasse sobre o sofrimento ou transtorno psíquico e o acolhimento da população em situação de rua, a qual foi crescendo de maneira expressiva nas grandes cidades do país nas últimas décadas, sendo também estigmatizada. Não é difícil constatar que pessoas em situação de rua passaram, no imaginário social, a serem vistas como os “novos desviantes da sociedade”, como perigosas, devido ao seu consumo de crack, álcool e outras drogas, e porque perambulam pelas ruas, pedindo ou roubando para sustentar sua droga-dependência, deixando de ser “sujeitos desejantes para serem meros objetos inertes e irresponsáveis, quanto aos seus próprios atos”1 (p. 9). Varanda e Adorno2 citam uma série de designações no imaginário social, específicas para as pessoas em situação de rua: maloqueiros, mendigos, pedintes, indivíduos em estágio de degradação, sem rumo. O que as une é a noção de pessoas vivendo nas ruas e sem ganho definido, o que as tem traduzido como “descartáveis urbanos”: indivíduos/grupos “vitimizados pelos problemas estruturais”, com uma situação agravada “pela contínua permanência em condições insalubres, sujeitas à violência ou ainda sob a ação contínua de álcool e drogas”, tidos, nas sociedades urbanizadas, como “uma presença inoportuna e ameaçadora”2 (p. 66). Merhy1, quanto aos coletivos formados pelos usuários de drogas, comenta quanto tais ocupantes das ruas e praças, em qualquer cidade, podem ser pensados como os novos anormais à luz do pensamento foucaultiano na atualidade, “quando há um enorme esforço, por parte de setores conservadores, de conduzir à construção de um imaginário social que torne visíveis os usuários de drogas como zumbis, não humanos” (p. 9). Os moradores de rua ou drogados viriam “se tornando um prato cheio para a construção de um medo atávico pelo não controlado”, levando de roldão qualquer tipo de movimento que se alie a uma aposta em uma vida livre, “vítimas da captura-dependência que as substâncias químicas ilícitas provocam” 1 (p. 9). Conforme Romaní3, no campo das drogas, pode-se atuar ou desenvolver intervenções segundo dois grandes modelos: um de abordagem prescritiva e outro de abordagem participativa. No primeiro, uma “sabedoria das instituições”, estatuto legítimo, mas parcial, pois requer condições específicas de produção e gestão (estrutura ou estratégia científica, legal, administrativa, por exemplo). No segundo, a criação de diferentes vias de interlocução entre as instituições e as opiniões e saberes das populações com que se trabalhe. O primeiro é aquele em que “o profissional, legitimado por um saber que lhe confere certo poder social, indica o que há por fazer; ainda que a população saiba, por experiência própria, que aquilo que ontem era do mal, hoje pode ser são e conveniente, e vice-versa” 3 (p. 303). A revista do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul ratifica o primeiro modelo, um tipo de política em saúde que coloca o Consultório de Rua num patamar “paliativo”4, onde “não servem para muita coisa, pois o importante são os leitos psiquiátricos para a internação”, a única forma de tratamento reconhecida. Da mesma forma, é possível notar uma forte campanha de apelo midiático como a do Crack nem Pensar (lançada em 2006 pela principal empresa de comunicação do Rio Grande do Sul), numa prática discursiva de erradicação das drogas. Romaní3 mostra que há uma série de fatores a que os especialistas estão submetidos – desde a lógica das instituições – que não necessariamente correspondem às reais necessidades de intervenção, nem às necessidades da vida cotidiana das pessoas. Ao fim e ao cabo, segundo o primeiro modelo, “a população tem que aceitar aquilo que lhe diz o especialista” (p. 303). O modelo participativo, ao contrário, decorre de propor-se a “incorporar o conjunto de necessidades da população e identificar com a comunidade os problemas e critérios de abordagem” (p. 303). 252

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Diante deste cenário, podem-se observar, de um lado, propostas de internação compulsória e desmantelamento dos lugares de consumo de drogas (“cracolândias”), via ofensiva policial, sem um mínimo de planejamento que inclua tal população em programas de acolhimento de suas necessidades sociais. O que se vê é um movimento de expulsão e maior exposição. Do outro lado, fazem-se presentes ações do Ministério da Saúde (MS) em composição com representantes dos trabalhadores da saúde e da assistência social, e de movimentos ligados à população em situação de rua, as quais oferecem práticas de cuidado a partir da afirmação e criação de serviços em saúde e intersetoriais que venham a dar conta da demanda vinda das ruas. Encontra-se, nessa segunda via, a afirmação de redes de saúde e intersetorial, desde a Política Nacional de Atenção Básica e da instituição da Rede de Atenção Psicossocial (Portaria GM/MS nº 3.088/2011), para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no âmbito do SUS. As estratégias de interação dentro de um ou de outro dos dois modelos mencionados (o prescritivo e o participativo) são bastante distintas, conforme declara Romaní3 em referência ao campo das drogas: de um lado, “o nível das consignas das campanhas publicitárias e os conselhos emitidos pelos entendidos”; de outro, “a discussão grupal, que vai permitindo a definição distinta dos problemas, conforme contextos distintos”. Para o autor, o modelo prescritivo pauta “campanhas globais do tipo ‘não às drogas’ nos grandes meios de comunicação de massa”, enquanto o modelo participativo “delineia objetivos a partir de problemas mais concretos, detectados em setores específicos da população”3 (p. 303). Tais modelos se expressam claramente nas diferentes práticas vigentes na atual conjuntura brasileira. Para Romaní3, ao modelo participativo toca “o conjunto de esforços que uma comunidade põe em marcha para reduzir, de forma razoável, a probabilidade de que, em seu seio, apareçam problemas relacionados com os consumos de drogas”. O autor sublinha: “não se trata aqui de uma perspectiva dicotômica do tipo bom-mau, branco-negro, drogas e não-drogas propiciado pelo proibicionismo”; pretende-se “um enfoque mais realista e profissional, centrado na possibilidade de solucionar alguns aspectos ou de fazer frente aos efeitos mais danosos derivados de certos consumos de drogas”3 (p. 304). Por conseguinte, faz-se relevante a diversificação de critérios, como as políticas de redução de danos que traçam um cuidado correspondente ao desejo daquele que se encontra em sofrimento e solicita/requer cuidado. O aspecto central, para o autor, é projetar uma intervenção coincidente com os diferentes consumos e os diferentes grupos consumidores, desenvolvendo capacidade em assumir certo nível de autocontrole, ao mesmo tempo, alguma normatividade dos grupos de pertencimento sobre o indivíduo e sua relação com o consumo (de drogas e de outras coisas). Para que funcione uma abordagem de redução de danos e de prevenção do consumo e dependência provocados pelo uso de crack, álcool e outras drogas, “é necessário o ponto de partida na cultura e no conhecimento dos mundos locais de significados”3 (p. 304). Haveria mais chances de atenção e cuidado, seja por alcançar os objetivos daquilo que se quer conseguir, evitando os “utopismos fabricados em gabinete, mais que por sábios, por burocratas do controle de drogas”; seja por atuar em conformidade com uma prática que respeite e diga respeito à vida das pessoas3 (p. 304). Na atualidade, a partir desses dois grandes modelos até aqui expostos, há uma crescente demanda sobre como dar conta das necessidades sociais em saúde das populações vivendo na rua, constatando-se ações divergentes no seio da sociedade a partir das posições de cidadãos, do Estado, da mídia, dos serviços de saúde e das organizações coletivas, como o próprio Movimento Nacional da População de Rua, hoje organizado. Na tentativa de produzir uma prática de cuidado abrangente e que possa adequar-se à realidade de cada usuário de saúde e seu contexto social, o MS configurou a Rede de Atenção Psicossocial, que deve encadear serviços especializados de saúde e de assistência social: Centros de Referência Especializada de Assistência Social, Unidade Básica de Saúde (UBS) e Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio em Atenção Básica, CR, Centros de Atenção Psicossocial (para usuários de álcool e outras drogas – Caps-ad e para atendimento à infância e adolescência – Caps-i), Unidades de Acolhimento e Serviços Residenciais Terapêuticos, além das Comunidades Terapêuticas, todos potencialmente matriciados (apoiados colaborativamente) pelos Caps-ad, com equipe profissional mais diversificada e especializada, com funcionamento ininterrupto (Caps-ad III). Dentro desse campo apontado, o CR desponta como um dispositivo criado para produzir cuidado às populações em situação de rua. O CR faz parte das redes de saúde e intersetorial, nas quais insere-se COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

na intenção de produzir uma terapêutica singular para cada pessoa/coletivo em situação de rua. Contudo, diante da fragilidade dessas redes, sempre em movimento e a construir-se, o CR, além de servir como um serviço de atenção aos moradores ou pessoas em situação de rua, torna-se um importante instrumento de problematização dos modos de cuidado que atravessam a assistência em saúde. Com sua prática em trânsito, percorre a rede de saúde e intersetorial, mesclando-se à mesma – não raras vezes, sob tensão –, buscando articulação para o atendimento daqueles que, até então, encontravam-se invisíveis nos/aos cenários do SUS. Num certo sentido, a iniciativa de, efetivamente, configurar uma equipe multiprofissional em trânsito na cidade – nômade e no entre das paisagens socioculturais de cada território (geográfico, cultural, existencial, profissional, disciplinar) –, coloca o sistema de saúde em xeque ao trazer à tona um tipo diverso de população, que problematiza os modos estruturados de produzir saúde e as características de rede utilizadas na organização dos serviços e suas prioridades. O CR, ao interagir em diferentes cenários com a população de rua, presentifica, no cotidiano, um conjunto inusitado de necessidades em saúde para a rede de cuidados. São estranhas as histórias de vida na rua e suas necessidades de saúde também. O CR, ao acolher, em exercício de alteridade, as pessoas em situação de rua e ao levar tais casos à rede de cuidados, produz, cotidianamente, estranhamentos na própria rede. Com o estranhamento, emergem situações observadas e sentidas, para as quais não se têm respostas prontas e pelas quais somos significativamente arrastados para fora de nossa zona de conforto do diagnóstico e recomendações ao autocuidado no domicílio. A rede é tensionada por uma demanda, por ora invisível, de uma população até então inexistente. O CR mostra uma nova cara, um novo ponto de conexão de rede ou de redes, recoloca desafios e interroga a construção de que participamos para um SUS que diga respeito a todos.

Criação do Consultório de/na Rua O primeiro Consultório de Rua surge em 1999, em Salvador, na Bahia. Um projeto-piloto criado em decorrência da problemática de crianças e adolescentes que se encontravam na rua e sob uso problemático de drogas. A experiência foi do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas. Em maio de 2004, um CR foi implantado no primeiro Centro de Atenção Psicossocial para o atendimento em álcool e outras drogas (Caps-ad) de Salvador, estruturando o modelo assistencial dessa unidade. Em 2009, o MS propõe que o CR torne-se uma das estratégias do Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento em Álcool e outras Drogas, sendo incluído, em 2010, no Plano Integrado Nacional de Enfrentamento ao Crack, com o objetivo de ampliar o acesso aos serviços assistenciais e qualificar o atendimento oferecido às pessoas que usam crack, álcool e outras drogas por intermédio de ações de saúde na rua. Para o MS, “a retaguarda do CR” favorecia “o fluxo de encaminhamentos e a inserção na rede” dos usuários de drogas mais comprometidos com esse uso e “em situação de maior vulnerabilidade social”5 (p. 8). Outra experiência brasileira na base dos CR foram os Programas Saúde da Família sem Domicílio – PSF Sem Domicílio, mais tarde Equipe de Saúde da Família para População em Situação de Rua – ESF Pop Rua. Pode-se referir, a partir de 2004, o PSF sem Domicílio, de Porto Alegre, seguido das ESF sem Domicílio de Belo Horizonte e de São Paulo e a ESF Pop Rua do Rio de Janeiro. O PSF Sem Domicílio de Porto Alegre estava voltado para a população em situação de rua, com atendimento de forma itinerante, como parte da rede de Atenção Básica à Saúde e do Programa de Atenção Integral à População Adulta de Rua, da área de assistência social, devendo abordar moradores de rua, identificar as causas da sua situação, acionar os diversos setores que pudessem auxiliar na busca por um vínculo familiar e ocupação, além do atendimento visando à promoção da saúde, com tratamento e exames clínicos. Hoje, as Estratégias de Saúde da Família sem Domicílio para População em Situação de Rua funcionam como “Consultório na Rua”. Um Consultório de/ ou na Rua, hoje, representa a convergência, sob diferentes modalidades, da experiência com a Redução de Danos e com o PSF Sem Domicílio. A passagem do CR, que estava vinculado à Política Nacional de Saúde Mental até 2012 para a Política Nacional de Atenção Básica, não representa apenas uma mudança de nomenclatura (Consultório “de” para Consultório “na” Rua), mas 254

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uma mudança nas diretrizes estratégicas deste dispositivo, atendendo, ainda, à prioridade do Governo do Brasil, de prevenção do consumo e da dependência de crack, álcool e outras drogas. Cabe lembrar a posição contrária à extinção do PSF Sem Domicílio pelo Movimento Nacional da População de Rua, que entende que não é apenas a atenção em relação ao consumo e dependência de crack, álcool e outras drogas que a população em situação de rua necessita. Em 2011, como desdobramento do Decreto Presidencial nº 7.053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, o MS adotou o CR como um serviço estratégico da Atenção Básica, fazendo a composição entre os dispositivos da Saúde Mental e da Saúde da Família ao invés de extinguir um em detrimento do outro. Em 2012, com a interposição do conceito de Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, a rede básica participa com as UBS e os CR. Atualmente, a rede pública de saúde tem mais de cem CR implantados em todo território brasileiro, com uma prática clínica de cuidado que percorre a rede ao promover a atenção e a inclusão da população em situação de rua. Devido à ampla ação que se passa na rua, o CR é um serviço transversal, produzindo tanto uma atenção em relação à especialidade da saúde mental, como a disposição de práticas da Atenção Básica. Pode-se constatar a produção de uma assistência primária, com o “uso de práticas de prevenção de doenças e promoção da saúde”, assim como a “melhora do acesso aos serviços de saúde e a tentativa de proteção da qualidade de vida” 5 (p. 5). Em relação a Porto Alegre, em termos de atenção à saúde existe uma grave situação para se dar conta daqueles que moram/transitam pelas ruas com o consumo de crack, álcool e outras drogas, bem como outras problemáticas que acometem tal população em termos de saúde e inclusão social. Em 2009, a direção do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), acolhendo a necessidade da capital, convida os trabalhadores da “Linha de Cuidado de Saúde Mental” para a elaboração e implantação do projeto de um Centro de Atenção em Álcool e outras Drogas. Tal projeto previa a composição de cinco serviços: Caps-ad III, Caps-i, CR, Unidade de Tratamento em Álcool e outras Drogas para adolescentes e um Centro de Estudos e Pesquisa em Álcool e outras Drogas. A partir de tal projeto, foi implantado, em 2010, o CR “Pintando Saúde” ou CR-GHC. São, sobretudo, as experiências e experimentações de produção do cuidado no Pintando Saúde que alimentam as problematizações presentes neste artigo. O trabalho do Pintando Saúde iniciou-se em agosto de 2010, percorrendo a região norte da cidade, tendo em vista analisar territórios onde existiam/ viviam pessoas em situação de rua. Tal trabalho começou a ser feito junto à rede de saúde e assistência social, com a finalidade de mapear possíveis lugares que seriam estratégicos para a presença do CRGHC. A partir da demanda da rede de saúde e de assistência social da região, foram se materializando os espaços nos quais o CR-GHC iniciaria seu trabalho de assistência em saúde. Com mapeamento devidamente encetado para a região, iniciaram-se, a partir de novembro de 2010, as intervenções propriamente ditas de cuidado em saúde com a população em situação de rua. Logo nas primeiras intervenções, ficou claro que tal população não necessitava de atenção apenas na abordagem quanto ao uso problemático de crack, álcool e outras drogas, precisava de cuidados em saúde de maneira ampliada devido aos agravos decorrentes da situação de rua.

A produção do cuidado O CR-GHC oferta, para seus usuários, um serviço aberto e de demanda espontânea, busca acolher aquilo que pessoas em situação de rua estão necessitando. As ações são construídas de acordo com as particularidades da pessoa e vulnerabilidades. Isso implica o desafio de produzir um cuidado capaz de absorver, em suas intervenções, o inesperado ou o não-programado em termos da atenção prevista. Num certo sentido, este desafio está colocado para todo e qualquer serviço de saúde, porém, estas exigências, na rua, parecem impor-se de forma intensa, persistente e inusitada. A falta de paredes. A não presença da mesa. O encontro em locais moventes. A luz do sol, o vento, o frio, o calor. A sujeira, o forte odor. A conversa sobre saúde em roda de uso de drogas. O medo da polícia e da chuva. Estranhas sensações, intempestivas alegrias. Intervenção no desejo, produção de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desejo. O encontro com histórias de vida em contextos angustiantes no seu próprio desenrolar. Acontecimentos que exigem um exercício de alteridade fortemente marcado pela “transvaloração dos valores”6. O acolhimento ou os projetos de cuidado no CR-GHC acontecem nestas circunstâncias. Há poucas condições prévias para coordenar a assistência de saúde, o caminho está sempre por se fazer junto ao usuário acolhido (no encontro real e a seu tempo), de modo que os ditos lugares identitários de cada profissão são reconfigurados em ato, ou melhor, o profissional é enredado em acontecimentos que oportunizam uma desconstrução do modo disciplinar que até então o delimitava como terapeuta. Um processo de trabalho que convoca a emergência de um cuidador que beira a “anomalia, que foge às abordagens fragmentadas”7 (p. 25). Conforme o MS, “o contexto da rua é dinâmico e a equipe deve ajustar seu trabalho frente ao inesperado”5 (p. 16). Produzir um serviço de saúde que ultrapasse o esperado, o programado, o prescrito, dentro de uma equipe, tornava-se um grande desafio, sobretudo porque um CR não trabalha isoladamente, ele necessita da rede de saúde e intersetorial para abarcar o cuidado integral, universal e igualitário preconizado pelo SUS. Esse modo dinâmico de operar o cuidado no CR pode reverberar nos serviços com que entra em contato, tensionando uma cadeia de cuidados que, muitas vezes, sequer espreita um horizonte mais longínquo que o seu próprio cotidiano de atuação. Olhar para mais longe, suportar a imprevisibilidade e investir em ações de cuidado, abarcando particularidades e engendrando desejo no outro, são práticas difíceis de serem realizadas num cotidiano de atenção em saúde extremamente normatizado, balizado por um atendimento que se pauta por saberes profissionais, com mínima oportunidade de intersecção com os usuários que chegam com seus padecimentos difusos ou confusos. Como investir numa lógica de atenção em saúde que seja porosa à imprevisibilidade? Como provocar trabalhadores e serviços de maneira que a implicação com a prática de cuidado seja aberta à imprevisibilidade, conectada ao desejo e atenta às particularidades? São questões-desafio que perpassam o desenvolvimento desses trabalhadores e o acolhimento dessa população; questões cada vez mais anunciadas à rede de saúde. Para dar qualidade à discussão, é oferecido um “caso-pensamento” ocorrido no processo de cuidado do CR-GHC, envolvendo um usuário em situação de rua. A ferramenta do “caso-pensamento” coloca em composição uma “teia-conceitual”8 (p. 55), apostando numa estratégia de escrita mais encarnada que o simples relatar fidedignamente determinada cena. Destarte, os casos-pensamentos são versões que emergem do plano intensivo da memória da equipe do CR-GHC, ao expressarem um desconforto ou um estranhamento que não cansa de fazer função, de fruir. O caso-pensamento traz à tona um acontecimento no que ele tem de “atual e virtual”9 (p. 51); algo que não cai no absoluto, no exato ou já dado, mas possibilita um vir a ser. Fala-se de mil formas sobre uma mesma situação. As marcas, as sensações, os signos vivenciados e estranhados no acontecimento, são configurados no caso-pensamento como a afirmação da memória de elementos escolhidos-inventados e que pretendem deflagrar uma problematização. Entende-se que os encontros com o usuário acolhido pelo CR-GHC podem ajudar a problematizar a condição ética e os limites que a rede de saúde encontra quando entra em contato com as pessoas em situação de rua. A utilização do caso-pensamento pretende explicitar a intensidade do tema problematizado, a saber, as tensões constitutivas pelas quais a rede de saúde está prestes a passar no desafio do cuidado em saúde junto às populações em situação de rua. Tal ética e limite, aqui expostos, se passam no sentido de oferecer um serviço de saúde no qual, a partir das intervenções, exista um investimento afetivo por parte dos profissionais que, muitas vezes, têm dificuldade em lidar com essa carga relacional, extrapolando ou não a noção de cuidado profissional e humanizado, acolhendo ou não afetos investidos na situação. Por ser um serviço desprovido de uma casa para centralizar suas ações – de ordem itinerante e com uma temporalidade singular em relação à lógica instituída no cuidado –, há um sofrimento pela angústia inerente a tal prática desterritorializada. É claro que investimento afetivo e angústia se processam em qualquer relação profissional em saúde, entretanto, trabalhar com essas populações e com o que elas demandam invoca um investimento “afetivo” que parece peculiar a esse serviço, pois tal trama de cuidado ocorre em lugares inesperados, em tempos ora acelerados e ora vagarosos, com pessoas a quem os serviços não viam. Por que não viam? Este é o afeto (affectio) como um aprender e sentir por “afecção”, não o mesmo que o afeto (affectus) relativo a um possível sentimento de ternura. 256

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Qual foco para sustentar o cuidado? Sepé não sabe há quanto tempo se encontra em situação de rua – há três anos habita os escombros de uma antiga UBS. Seu cotidiano envolve catar latinhas e outros tipos de lixo para poder revender e se sustentar. Vida difícil, sob sol e chuva quando está trabalhando, e com uma escuridão noturna (por falta de luz) no lugar em que reside, onde só percebe as sombras daqueles que por ali passam pela madrugada na intenção de achar um lugar abandonado para o consumo de drogas. Sepé não fuma, somente bebe uma pinga. Por vezes, fica trêmulo se, ao catar o material reciclável, não utiliza um pouco desse energético. Contudo, perto do que se percebe em outros atendimentos, parece que o álcool de todos os dias não é algo que o prejudique de maneira preocupante. Não é um uso “problemático”, mesmo que excessivo. Ao menos não é o foco atualmente. Foco... Essa é uma das problemáticas que se enfrenta no atendimento às pessoas em situação de rua. Como focar a atenção em saúde num sujeito que apresenta diversas necessidades de cuidado? Cuidado em álcool e outras drogas, cuidados básicos em relação a feridas e outras lesões, depressão, agressividade e surtos, e cuidados de ordem social, como confecção de documentos, albergagem/ habitação e renda. O “foco” atual em relação ao Sepé está voltado para os resultados de seus exames de HIV e tuberculose, que deram positivo. Dentre outras ações de cuidado, se está trabalhando para recuperar uma parte de seus direitos civis ao se confeccionar sua certidão de nascimento, bem como o contato com sua família no interior. Há um forte trabalho e tensionamento junto à equipe básica de saúde, alojada ao lado de onde reside, e que, até então, fechava os olhos para o seu acolhimento, assim como para o restante da população de rua que está ao seu redor, nas bordas da cidade e da sociedade. Sociedade que “deixa morrer” nos dias de hoje de maneira muito próxima “ao fazer morrer” da época do poder soberano, como diria Foucault10. Contudo, tal prática, atualmente aprimorada, se passa de maneira discreta, sutil, eliminando quem não está regulamentado, quem está submetido aos vários descasos que perpassam as práticas de cuidado em saúde10. Em defesa da sociedade ainda continuamos a matar quem a ela não se agrega! Voltando ao “foco”, pode-se comentar que a equipe de saúde é tensionada em relação ao investimento “afetivo” de cuidador em relação à pessoa acolhida, experimentando, muitas vezes, angústia e sofrimento. Nas diversas intervenções realizadas pelo CR-GHC, em certos momentos, ultrapassam-se os limites do que e para que cuidar requerido pelo usuário, onde o cuidador acaba transparecendo sentimentos de raiva, frustração e ansiedade na tentativa de resolução. O cuidador sofre com a condição de completo desamparo do usuário em situação de rua, sente necessidade de resolver tal problemática o mais rápido possível, e acaba atropelando o tempo daquele a quem “acolhe”. Os cuidadores, atravessados pela lógica do cuidado prescritivo em saúde, têm ações que prezam pela objetividade e resolutividade. Que resolução seria essa? Resolução daquilo que o usuário requer ou daquilo que os cuidadores, balizados pelo saber da saúde, imaginam ser o correto? Ainda mais em se tratando de pessoas que romperam quase que totalmente com os contratos sociais, vivendo de maneira distante de toda lógica que os cuidadores compartilham em seu mundo. Como acessar esse outro espaço-tempo tão distante da urbanidade de uma “cidade segura e saudável”? Existe a possibilidade de se deixar contaminar por uma lógica outra de sentidos, a do cotidiano dos moradores de rua? Difícil responder... Somente no acolhimento experimentado ao longo das “abordagens” é que se percebem as sutilezas, as impossibilidades de se “conectar” com os usuários e as possíveis aberturas que vão compondo aprendizados ou enunciando o que há por se desenvolver na medida em que o cuidador entrega seu corpo para esse tipo de encontro. É nessa abertura de corpo para o outro que o próprio trabalhador do CR pratica novas formas de cuidado até então não visibilizadas e com as quais passa a processar encontros de maneira inventiva. É num acompanhar afetivo que se torna possível “ressignificar a existência do sujeito, criando modos de subjetivação inéditos”11 (p. 55), ponto de inflexão entre os afetos do cuidador e do sujeito em situação de rua. Contato tomado em apreensão corporal que faz reverberar, um no outro, quantas de potência de vida, emergência de um bom encontro, troca afetiva que ponha os corpos em movimento de composição. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Numa das abordagens com Sepé, essa tensão do desejo transpareceu com a proposta de uma intervenção combinada na equipe do CR-GHC. A intervenção estava pautada em fazer um exame de tuberculose que poderia ser realizado na rua, junto ao locus de Sepé, e que já estava demorando a acontecer. Porém, as coisas não saíram da forma esperada, como conta uma das cuidadoras: “Fomos até sua casa, onde nos recebeu de maneira acolhedora. Fui apresentada pelo colega como a técnica de enfermagem que coletaria o seu escarro para fazer o exame de tuberculose. Explicamos o procedimento, mas ele ficou apreensivo. Pedimos que bebesse água, mas ficou dando desculpas e parecia receoso. Sepé pediu camisinha, pois estava acompanhado e chamou sua companheira para vir até a porta. Como a conhecia, dei um abraço nela e conversamos um pouco. Depois de algum tempo, retomamos a ideia de fazer a coleta com o Sepé, porém não estava convencido. Conversamos sobre o Raio X alterado que precisava da confirmação por via do exame, questionamos se tinha emagrecido nos últimos dias ou se tinha suor noturno. Respondeu que a noite transpirava muito. Informamos que poderiam ser sintomas de tuberculose. Referia não ter tosse nem catarro. Havia almoçado há pouco e tinha medo de vomitar se fizesse o exame. As horas passavam e logo tínhamos que ir embora, assim a pressão por fazer o exame ficava maior. Sepé começou a fazer, ficou agitado, trêmulo e sudorético. Percebi que não conseguiria, pois estava muito ansioso. Tentei tranquilizá-lo, perguntei se queria sentar-se, toquei em seu braço e ele disse que estava bem. Afirmei que não faríamos o exame naquele momento. Senti minha consciência pesar por ter insistido tanto em fazer algo que para mim era simplesmente inspirar, expirar e escarrar no pote, mas que para ele soava como algo apavorante. Estava mais preocupada em confirmar a suspeita de doença do que acolher o medo pronunciado em relação à coleta de escarro. Ficamos conversando por alguns instantes e falei que às vezes precisamos dizer não para o outro quando não queremos fazer algo. Ele, então, nos disse que nem seu pai, que já estava morto, nem sua família, nem ninguém se preocupava como o meu colega que todas as semanas o visitava acompanhando-o nos serviços e percorrendo a rede com ele. Conversamos mais um pouco, ele relaxou, sentindo-se melhor. Depois desse insucesso, ao menos no que diz respeito à coleta de exame, orientamos que se conseguisse coletar o escarro no pote fornecido, poderia entrar em contato com nosso serviço ou com a UBS ao lado de sua casa. Despedimo-nos e fomos embora”. (diário de campo, março de 2012)

Essa intervenção faz pensar a forma impactante como as pessoas dizem não ao que se propõe em termos de cuidado, por vezes, expressando-se agressivamente, outras passando mal. Quanto dessa forma tem a ver com a nossa atitude de propor ou, talvez, de delicadamente impor certo/s cuidado/s? Será que agem assim porque acham que não entendemos o que realmente desejam? Se dissessem o que almejam, os cuidadores entenderiam? Parece necessário desenvolver certa sensibilidade de acolhimento para conectar a subjetividade do usuário, mesmo que sem palavras. É importante estar atento à maneira com a qual é proposta uma oferta de cuidado, de maneira que ela seja compatível para com o usuário, não a escuta para fins de convencimento quanto aos exames, medicamentos e procedimentos que julgamos importantes para o ‘seu’ bem-estar. Outra questão produzida a partir dessa intervenção é que Sepé colocou que não se importava com a doença ou com suas consequências, pois morrer todos morreríamos. Entretanto, Sepé foi capaz de tentar fazer algo que não queria em razão do receio que tinha de opor-se a alguém que demonstrava preocupação por ele (todos morrerão, mas ele ainda não o quer...). Será que os objetivos do CR em oferecer um serviço de cuidado em saúde inclusivo são compatíveis com o querer do usuário (o “seu” não morrer)? E se ele quiser apenas ser importante para alguém (o “seu” estar vivo), ele terá de ficar participando de ações que não quer? Esta é a única maneira de conseguir certa atenção? Até quando?

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E, se não atender as expectativas da equipe de saúde, o usuário será deixado de lado porque não cumpre as combinações sobre o cuidado (então pode/deve morrer)?

Conclusões e confluências das ruas: o sensível do instante! Encontros sensíveis estes ocorridos na rua e que remetem a questionamentos que percorrem o imaginário angustiante de todos que compartilham dessa proposta de cuidado. É importante salientar, no caso-pensamento apresentado, o momento da abordagem ao usuário em que a cuidadora, por um instante, reflete sobre o que estava propondo. Faz pensar quanto os profissionais como um todo deveriam ter mais momentos de pausa em meio às intervenções. Pausa que dá guarida ao outro, pois, nas pausas, produzimos maior proximidade com os usuários – com sua intimidade, com seus significados. Nesses instantes de desaceleração, em que o sensível emerge sob o que se encontrava instituído, parece que os cuidadores se colocam ao lado daqueles que estão a cuidar, numa “composição” de cuidados. Essa seria a perspectiva do cuidado alteridade-centrado, que se passa numa “zona mestiça, capaz de escapar ao limite disciplinar das profissões e de se expor à alteridade com os usuários”, permitindo produções inéditas12 (p. 261). Instantes de coragem que nos autorizam a adentrar em uma lógica caotizada ao invés do lugar habitado pelas normas disciplinares e formações demasiadamente duras de “profissional”. Talvez, na correria das intervenções, na urgência requerida pela lógica prescrita do cuidado que atravessa a ação em saúde, perca-se o senso do acompanhar e do compartilhar questões com aquele em necessidade de atenção e acolhimento. Os momentos de pausa são, justamente, os instantes em que se freia o tempo arraigado na lógica prescrita, oportunizando a produção de outro tipo de escuta. Isso é difícil, a limitação é o sentimento que mais abarca os profissionais, pois não se conseguem respostas imediatas, necessitando-se aguardar para compor com o tempo do outro, o que limita certa intervenção programada em saúde. Cuidado em composição ao invés da lógica costumeira que tenta sempre organizar o tempo dos pacientes a partir dos saberes profissionais. Não à toa, muitos usuários resistem ao acolhimento oferecido – ficam impacientes – e, de certa forma, dentro da lógica em que vivem, têm um ato de saúde ao resistir ao que lhes “invade”, mesmo que seja na melhor das intenções. Infelizmente – e por incrível que pareça –, essa resistência e reação ativa dos usuários aparece como agressão gratuita a ser combatida e contida sem a carga de compreensão para com o contexto de vida ali instalado. Na rua, tanto o CR como a rede de saúde necessitam da exposição, do fora, do outro lado, da surpresa, do estranhamento, do reverso ou do ‘inverso’ ou do ‘em verso’, composição “poiética” do cuidado.

Colaboradores O autor Mário Francis Petry Londero foi o responsável pela pesquisa junto aos trabalhadores do Consultório na Rua, recolhendo e analisando os diários de campo que foram escritos para a produção do artigo. Luiz Fernando Silva Bilibio foi responsável por supervisionar as intervenções e escritas da pesquisa do então residente Mário Francis Petry Londero, onde também colaborou com a escrita. Ricardo Burg Ceccim foi responsável por avaliar o texto resultante da pesquisa para aprovação do então residente Mário Francis Petry Londero em seu TCR, colaborando com o fechamento do artigo, sugerindo e enriquecendo o texto final.

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Referências 1. Merhy EE. Anormais do desejo: os novos não humanos? Os sinais que vêm da vida cotidiana e da rua. In: Conselho Federal de Psicologia. Grupo de Trabalho de Álcool e outras Drogas. Drogas e cidadania: em debate. Brasília, DF: CFP; 2012. p. 9-18. 2. Varanda W, Adorno RCF. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):56-69. 3. Romaní O. Políticas de drogas: prevención, participación y reducción del daño. Salud Colect. 2008; 4(3):301-18. 4. Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. Consultórios de rua: apenas marketing. Vox Med. 2012; 11(60):14-5. 5. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental. Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: EPSJV-Fiocruz; 2010. 6. Bilibio LFS. Por uma alma dos serviços de saúde para além do bem e do mal: implicações micropolíticas à formação em saúde [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2009. 7. Merhy EE. Desafios de desaprendizagens no trabalho em saúde: em busca de anômalos. In: Lobosque AM, organizadora. Cadernos Saúde Mental 3. Belo Horizonte: ESP/MG; 2010. p. 23-36. 8. Siegmann C, Fonseca TMG. Caso-pensamento como estratégia na produção de conhecimento. Interface (Botucatu). 2007; 11(21):53-63. 9. Deleuze G. O atual e o virtual. In: Alliez E, organizador. Deleuze: filosofia virtual. São Paulo: 34; 1996. p. 47-58. 10. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2a ed. São Paulo: WMF, Martins Fontes; 2010. 11. Kupermann D. A libido e o álibi do psicanalista: uma incursão pelo diário clínico de Ferenczi. Pulsional Rev Psicanal. 2003; 16(168):47-57. 12. Ceccim RB. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Abrasco; 2004. p. 259-78.

Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultorio de/en la calle: desafío para el cuidado de la salud en verso. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):251-60. Este articulo discute prácticas de cuidado del “Consultorio de/en la calle”, un servicio delineado en el Sistema Brasilleño de Salud destinado a la atención de las personas que viven en la calle. La intención es problematizar las estrategias de acogida y de cuidado de la salud, así como las directrices o valores de este trabajo que muchas veces no concuerdan entre sí, como las acciones programadas de rastreo y autoridad moral sobre personas que viven en la calle y las acciones disruptivas del modelo urbano de ciudad saludable y segura para una fuerte inclusión de personas que viven en esa situación. Como recursos de análisis están los diarios de campo escritos por los trabajadores de uno de estos consultorios, localizado en Porto Alegre, Brazil, que en su cotidiano recorren las calles y las redes de salud e intersectorial con todas sus dificultades y puntos fortes.

Palabras clave: Consultorio de/en la calle. Red de atención psicosocial. Red de atención básica a la salud. Personas que viven en la calle.

Recebido em 26/08/13. Aprovado em 17/02/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0133

Práticas integrativas e complementares e relação com promoção da saúde: experiência de um serviço municipal de saúde Karla Morais Seabra Vieira Lima(a) Kênia Lara Silva(b) Charles Dalcanale Tesser(c)

Lima KMSV, Silva KL, Tesser CD. Integrative and complementary practices and the relationship with health promotion: experience of a municipal healthcare service. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):261-72.

This study addressed the integrative and complementary practices developed at a reference service in the metropolitan region of Belo Horizonte/MG, Brazil. It analyzed how the practices developed in this service were organized and focused on their relationship with health promotion and how they fitted into the Brazilian National Health System (SUS). The results indicated that these practices could be useful resources for health promotion, especially because they establish new understanding of the health-illness process, in a more holistic and empowering manner. However, to boost them within the fields of health promotion and SUS care, challenges relating to organizing and expanding the services need to be surmounted and professionals within the reference services and specialized support for integrative and complementary practices within primary healthcare need to be brought closer together, so as to construct a common field of care.

Tomam-se como objeto as práticas integrativas e complementares (PIC) desenvolvidas em um serviço de referência na região metropolitana de Belo Horizonte/MG, Brasil. O estudo analisa a organização das práticas desenvolvidas nesse serviço, tendo como foco analítico sua relação com a promoção da saúde e sua inserção no Sistema Único de Saúde (SUS). Os resultados indicam que as práticas podem ser recursos úteis na promoção da saúde, especialmente por estabelecerem uma nova compreensão do processo saúdedoença, de caráter mais holístico e empoderador. Contudo, para potencializá-las no campo da promoção da saúde e do cuidado no SUS, é preciso superar os desafios da sua organização e expansão nos serviços, como aproximar os profissionais dos serviços de referência e de apoio especializados em PIC da Atenção Primária à Saúde (APS), construindo um campo comum de cuidado.

Keywords: Complementary therapies. Integrative Medicine. Health Promotion. Primary Health Care.

Palavras-chave: Terapias complementares. Medicina Integrativa. Promoção da Saúde. Atenção Primária à Saúde.

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(a) Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Alfredo Balena, 190, Santa Efigênia. Belo Horizonte, MG, Brasil. 30130-100. karlaseabra@ yahoo.com.br (b) Departamento de Enfermagem Aplicada, Escola de Enfermagem, UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil. kenialara17@ yahoo.com.br (c) Departamento de Saúde Pública, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. charlestesser@ccs.ufsc.br

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PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES ...

Introdução As medicinas alternativas e complementares são definidas como um grupo de diversos sistemas médicos e de cuidado à saúde, e de práticas que não estão presentes na biomedicina¹. A Organização Mundial de Saúde² utiliza o termo Medicinas Tradicionais/Complementares e Alternativas para definir o conjunto de práticas e ações terapêuticas que não estão presentes na biomedicina. Na literatura, encontram-se diferentes denominações para as práticas terapêuticas, entretanto, no Brasil, usa-se a expressão práticas integrativas e complementares (PIC)3. Essa denominação difundiu-se desde a aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), em 2006, na qual se incluem, em seu escopo: a medicina tradicional chinesa (sobretudo, a acupuntura), homeopática e antroposófica, as plantas medicinais (fitoterapia) e o termalismo social (crenoterapia)³. Pode-se considerar, também, a relação das PIC com a Política Nacional de Promoção da Saúde4, tendo em vista que a promoção da saúde pode ser compreendida como um campo de propostas, ideias e práticas, crescente na saúde pública, que parte de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, e propõe a articulação de saberes técnicos e populares e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, para seu enfrentamento e resolução5. A inserção das práticas integrativas e complementares no SUS configura uma ação de ampliação de acesso e qualificação dos serviços, na tentativa de envolver a integralidade da atenção à saúde da população6. Nesse entendimento, ressalta-se a importância da Atenção Primária para fortalecer práticas de promoção da saúde, em especial, as PIC. Contudo, ainda existem dificuldades para a implantação das práticas no SUS, sobretudo, em decorrência da insuficiência de dados de produção e de pesquisas, das limitações no controle dessas práticas, dentre outras2,4. Assim, o desenvolvimento das práticas integrativas e complementares na rede pública de saúde brasileira está em lento processo de expansão6. Além disso, há pouco saber acumulado sobre as formas de organizar, adaptar e incluir as PIC no SUS, tanto na Atenção Primária à Saúde (APS) quanto em serviços de apoio matricial (Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF) e/ou de referência (atenção secundária, serviços especializados). O objetivo deste artigo é apresentar e discutir resultados de uma pesquisa que analisou a organização das PIC desenvolvidas em um serviço de referência em PIC, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, tendo como foco analítico sua relação com a promoção da saúde e sua inserção no SUS.

Metodologia Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com aporte na abordagem qualitativa cujo referencial é a dialética. A dialética é uma estratégia de conhecimento da realidade, na qual se revela a apreensão e a compreensão da prática social empírica dos indivíduos em sociedade7. O campo empírico foi um serviço municipal de saúde especializado em práticas integrativas e complementares e de promoção da saúde. O serviço localiza-se em um município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, com uma população estimada de 81.162 habitantes8. A coleta de dados se deu por meio de observação e entrevista com roteiro semiestruturado aos profissionais que atuam no Serviço, com o intuito de compreender sua organização. Foram entrevistados todos os profissionais que atuam no serviço, totalizando seis: dois médicos-homeopatas, uma médicaacupunturista, uma terapeuta holística, uma terapeuta ocupacional e a gerente do Serviço. Além disso, foram consultados o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) para complementar a fase de análise, a fim de se obterem as informações sobre o estabelecimento de saúde e a produção ambulatorial de procedimentos do serviço. O CNES é a base cadastral dos sistemas de informação em saúde e registra aspectos do funcionamento dos estabelecimentos de saúde nas esferas federal, estadual e municipal. O SIA oferece instrumentos para o registro do cálculo da produção ambulatorial, dados direcionados para o 262

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gerenciamento da capacidade instalada e produzida etc. Para o presente estudo, foi selecionada, no SIA, a quantidade apresentada de procedimentos no serviço, no período de junho a novembro de 2012. Essas bases (CNES e SIA) foram acessadas entre os dias 1º e 11 de fevereiro de 2013. Para a análise dos dados empíricos, utilizou-se a análise de conteúdo temática, sendo orientada pela proposta de Bardin9 para a organização dos dados. A pesquisa respeitou a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. Os sujeitos foram informados sobre os objetivos e finalidades do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados Características do serviço municipal de práticas integrativas e complementares O serviço municipal de práticas integrativas e complementares foi inaugurado em 2008 como um Centro de Especialidades (referência) de promoção da saúde, e inclui práticas integrativas e complementares. O atendimento é exclusivamente para a clientela do Sistema Único de Saúde e o funcionamento é diurno. O Centro de Especialidades foi registrado no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos (CNES) em 2010, como um serviço de práticas integrativas e complementares, conveniado ao Sistema Único de Saúde, com atendimento em nível ambulatorial na rede pública de saúde, contando com gestão municipal e estadual. Os profissionais entrevistados foram os seis profissionais que atuam no Serviço. Esses profissionais caracterizam-se pelas diferentes profissões e tempo de inserção no serviço, conforme o Quadro 1. Todos os profissionais entrevistados têm curso Superior completo. Dentre esses, cinco entrevistados apresentam formação em alguma especialidade das práticas integrativas e complementares, sendo dois em homeopatia, dois em acupuntura e uma em terapia holística e comunitária. A carga horária dos profissionais é diversificada, sem dedicação exclusiva ao serviço, com exceção da gerente. Todos os profissionais têm vínculo empregatício, entretanto, três são servidores públicos, dois contratados e um exerce cargo comissionado. Os profissionais que atuam no serviço são inscritos no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos, de acordo com suas ocupações, conforme a Classificação Brasileira de Ocupações de profissionais em práticas integrativas e complementares: terapeuta ocupacional; terapeuta holística; médico acupunturista; médico homeopata; e gerente de serviços de saúde.

Práticas ofertadas no serviço de práticas integrativas e complementares A partir da análise dos dados, foi possível identificar cinco práticas ofertadas no serviço: homeopatia, acupuntura, oficina de memória, dança sênior e relaxamento. Ainda foi possível mapear a capacidade de atendimento, o número de pacientes atendidos por mês, conforme demonstrado no Quadro 2. No entanto, os procedimentos realizados no Serviço de práticas integrativas e complementares são registrados na produção ambulatorial de procedimentos, no Sistema de Informação Ambulatorial (SIA), como: sessão de acupuntura com inserção de agulhas; consulta médica em atenção especializada; atividade educativa/orientação em grupo na atenção especializada. Conforme os dados no SIA, no período de julho a novembro de 2012, ocorreram: 356 sessões de acupuntura com inserção de agulhas, 508 consultas médicas em atenção especializada e apenas quatro atividades educativas/orientações, em grupo, na atenção especializada.

Descrição das práticas ofertadas As práticas de homeopatia e acupuntura acontecem em forma de consultas individuais, já a oficina de memória, a dança sênior e o relaxamento são práticas coletivas, realizadas em grupos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nos atendimentos de homeopatia, são realizadas consultas individuais de trinta minutos a uma hora, em que decorrem um processo de escuta do profissional sobre a queixa principal do indivíduo, além de abordagem sobre questões da infância, família, relacionamentos, medo, mágoa, sono, frio e calor, dentre outros, como aspectos a serem investigados na diagnose dessa racionalidade médica10. Posteriormente, o homeopata, no processo de atendimento, busca uma terapêutica à base de medicamento homeopático, geralmente consultando Manual eletrônico (programa de computador). Dessa forma, o homeopata aponta os sintomas e o programa já identifica os medicamentos homeopáticos que se “assemelham” ao indivíduo. A forma de agendamento da primeira consulta de homeopatia deve ser realizada pessoalmente no serviço ou por meio de encaminhamento de um profissional de saúde. A organização da oferta de homeopatia no serviço estudado estabelece, quase sempre, os retornos a cada dois meses, e os participantes podem permanecer em tratamento por período indeterminado, não tendo sido identificados, durante o trabalho de campo, processos de alta terapêutica. Dessa forma, há uma dependência permanente do saber profissional para manter a harmonia ou o equilíbrio restabelecido. Na acupuntura, ocorre, inicialmente, uma consulta individual, quando se realizam a anamnese e a identificação da(s) queixa(s) e características do indivíduo, como parte do processo de diagnose da racionalidade médica que orienta essa prática. Ocorrem, também, orientações das sessões de agulhamento, procedimento terapêutico exclusivo da racionalidade tradicional chinesa no cenário do estudo. Na sequência, são realizadas, semanalmente, as sessões de agulhamento, totalizando um ciclo de doze sessões. O atendimento, nessa prática, é semanal, com tempo médio de vinte minutos, decorrente, exclusivamente, do agulhamento, que perdura por um período, mais ou menos, de três meses até completar as 12 sessões. Tal número de sessões foi estabelecido como umas das regras pelo instrutor da prática, pois menciona que, de oito a dez sessões, a maioria dos participantes apresentará resultados satisfatórios, assim como é necessário oferecer a oportunidade de atendimento a outras pessoas. Há também, como regra, o número máximo de três faltas nas sessões de acupuntura. Esse ordenamento foi instituído com o objetivo de diminuir a fila de espera. A oficina de memória e a dança sênior são práticas realizadas em grupos fechados cujos encontros ocorrem semanalmente, com a duração de sessenta minutos. Como a dinâmica dessas duas práticas prevê grupos fechados, o indivíduo só pode se inserir no início do ciclo da prática. A única restrição para se inserir nas práticas de oficina de memória e dança sênior é que o participante não apresente déficit cognitivo. A oficina de memória é estruturada em dez encontros. Do primeiro ao terceiro encontro, são dadas informações sobre a memória e indicações para estimular a memória no cotidiano. A partir do quarto encontro, são realizadas atividades práticas, tais como: jogo dos sete erros, sequência numérica com número faltoso, leitura de palavras pela instrutora, seguida de anotações pelos participantes. Assim, os participantes permanecem até completarem os dez encontros. O número de participantes limita-se a dez indivíduos por grupo. Na dança sênior, são desenvolvidos aspectos da musicalidade e do ritmo, além da memorização de coreografias. A dança é realizada em grupo e com os participantes em círculo, ora sentados, ora em pé. Durante a atividade, trabalha-se com o corpo por meio de coreografias criadas a partir de músicas instrumentais e movimentos ritmados. Os grupos mudam anualmente e são inseridos até vinte participantes por grupo. Na dança, os participantes precisam memorizar as coreografias e estar sempre atentos ao ritmo musical. O relaxamento é constituído por diferentes momentos: inicia-se com uma roda de conversa, onde são discutidos temas relacionados à experiência de vida, relacionamento, informações sobre saúde e, geralmente, são incluídos temas evocados pelos participantes. Posteriormente, dá-se continuidade com a técnica de relaxamento, o que acontece sempre acompanhado de uma música tranquila e relaxante. Frequentemente, associam-se, nas atividades, exercícios de automassagem e danças para complementar a prática. Observou-se que a fé, independente da religião, está presente na dinâmica dessa prática, seja nos momentos em que o grupo faz orações ou em músicas cantadas pelos participantes e/ou nos agradecimentos no final da prática.

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Os dados empíricos evidenciam que o acesso às práticas ofertadas pelo Serviço ocorre por encaminhamento de outros profissionais da área da saúde ou por procura espontânea, sendo que, apenas na acupuntura, a “entrada” é determinada exclusivamente por encaminhamento médico. Nas demais práticas, homeopatia, oficina de memória, dança sênior e relaxamento, a inserção se dá pelas duas vias de acesso – demanda espontânea ou referenciamento profissional –, sem, contudo, se tornar uma imposição o encaminhamento médico, tal como na acupuntura. Evidencia-se, nos achados, uma alta demanda pelas PIC, sobretudo homeopatia e acupuntura, conforme exemplificado: “[...] você vê que aqui eu sou a única para o município inteiro... Então, assim, existe uma demanda quase sempre, a fila de um ou dois anos de espera. Demanda reprimida grande [...]”. (E3 - médica acupunturista) “Meu encaminhamento para Acupuntura está aqui desde 2010 e fui chamado somente agora”. (conversa com um participante do serviço, diário de campo, 13/03/2012)

Os dois homeopatas, sujeitos da pesquisa, confirmam as considerações da acupunturista ao revelarem o desafio que se lhes apresenta no sentido do atendimento à demanda. Frente a isso, foi necessário estabelecer critérios de acesso às práticas (no caso da acupuntura, acesso somente por encaminhamento médico e doze sessões para cada indivíduo). Nesse entendimento, pode-se inferir que, uma vez exigido o encaminhamento médico, necessariamente, os indivíduos irão apresentar algum sintoma ou patologia de base que justifique tal conduta. Vale ressaltar que o serviço está em processo de descentralização das práticas de oficina de memória, dança sênior e relaxamento para Atenção Primária da Saúde, com enfoque nas Equipes Saúde da Família (ESF) e Programas de Agente Comunitário de Saúde (PACS). Logo, as práticas de homeopatia e acupuntura continuariam centralizadas. Vale destacar que o serviço pretende ampliar a oferta das PIC, incluindo outras atividades, tais como: lian gong, yoga, tai-chi-chuan, shiatsu, tui-ná e fitoterapia.

Práticas integrativas e complementares e a promoção da saúde Os dados empíricos permitiram identificar a imprecisão conceitual que a promoção da saúde assume nos discursos dos profissionais. Ao indagar qual a relação das práticas integrativas e complementares com a promoção da saúde, os profissionais respondem relacionando-a com a prevenção de agravos à saúde, reforçando uma lógica preventivista, típica do paradigma biomédico. Nesse contexto, destacam-se os seguintes termos ditos pelos profissionais: “evitarem”, “preventivas”, “levar informação para os grupos” e “informar”. “[...] primeiro, que a gente trata aqui, não são pessoas que estão doentes, cognitivamente. Então, seria uma maneira delas evitarem um transtorno maior ou até elas saberem esta questão da educação e informação. Por exemplo, na Oficina de Memória, de como ela pode identificar os sintomas de esquecimento e relacionar com uma doença grave ou não”. (E1 - terapeuta ocupacional) “Eu acho que essas práticas integrativas são todas basicamente preventivas, claro que todas elas ajudam a curar doença, mas quando a gente vai falar, por exemplo, de massagem, eu acho que um tratamento igual massagem, Ioga, meditação, Relaxamento, coisas assim, ajuda sim a pessoa naquele momento que... na doença que ela está enfrentando. Mas, eu acho mais importante é a medicina preventiva mesmo”. (E6 - médico homeopata) “No caso específico da minha oficina, eu sempre ouço as pessoas e procuro levar para o grupo informações. Então, quando, tem um assunto que eu não domino, na necessidade de dar um esclarecimento eu sempre procuro outros profissionais que tenham aquele

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conhecimento e repasso. Então, é em todos os sentidos que eu busco informar e trocar informações no grupo [...]“. (E2 - terapeuta holística)

Os dados da entrevista revelam que a promoção da saúde assume, nos discursos dos profissionais, formas de estimular mudança de hábitos de vida ou de comportamento, a saber: “[...] eu sempre ouço as pessoas e procuro levar para o grupo informações. Eu acho também que a gente vive incentivando exercício físico, uma boa alimentação, além do aspecto emocional [...]”. (E2 - terapeuta holística) “A Homeopatia e essas práticas todas ... vão fazer com que a pessoa descubra que não, eu sou o autor da minha vida, eu vou mudar e a partir dai começa a mudar a postura, mudança de comportamento”. (E5 - médico homeopata)

Destacou-se a concepção holística que pode caracterizar uma das contribuições para potencializar as PIC no âmbito da promoção da saúde. Nesse aspecto, os profissionais relatam a importância de se compreender o indivíduo de forma holística, ao buscar o restabelecimento ou ampliação da saúde como sinais do modo de ser e viver: “Eu acho que tem um saldo muito positivo, as pessoas costumam sair daqui mais fortes. Eu falo que elas estão mais fortes, tanto do ponto de vista de dor, de dor melhor, mas, assim, forte psicologicamente. Porque a gente tenta sempre em todo paciente, eu trato a dor que ele estava queixando, mas a gente sempre tenta equilibrar o emocional dele porque tem tudo a ver. Um paciente que está deprimido e tudo, a dor dele é muito maior que o paciente que não está. Então, o que eu noto é que os pacientes saem mais confiantes, mais fortes”. (E3 - médica acupunturista)

Pode-se afirmar, ainda, que as práticas estudadas favorecem o empoderamento do indivíduo, tendo em vista que os profissionais visualizam que os indivíduos passam a se “empoderar”, na direção de um maior controle sobre sua própria vida, melhorando a autoestima e se responsabilizando por sua vida e saúde: “Agora estou mudando a minha postura. Faço aquilo que estou com vontade. Às vezes preciso sair para pensar.... Arrumo meu cabelo e vou [...]”. (Registro da observação em campo no diário do pesquisador, 31/05/2012) “[...] Em primeiro lugar, é mostrar para a pessoa que ela pode se sentir melhor, de que existe uma forma dela se sentir melhor e levar a pessoa a se responsabilizar pelo seu tratamento”. (E2 - terapeuta holística)

No entanto, os achados do estudo são limitados para a compreensão do potencial das práticas estudadas para a intervenção sobre os determinantes sociais, constituindo um desafio para o campo. Foram identificados, nos relatos dos profissionais, elementos que revelam que as práticas repercutem não só no sujeito, mas, também, na família que está em seu entorno. Assim, algumas práticas conseguem envolver a família, na tentativa do equilíbrio familiar: “A gente só não quer que o paciente sofra menos, mas que todo mundo que esteja em torno dele, também sofra menos. Porque há pacientes que infernizam a família por causa da doença. Não é pela doença em si, são pessoas que tem o temperamento difícil e quando estão doentes ficam piores ainda. Então, o que a gente quer é o equilíbrio de toda a família”. (E6 - médico homeopata)

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Porém, ainda se mantêm restritas no ciclo familiar e não avançam para o coletivo e social. Evidenciase que, para se potencializarem os aspectos promotores, existe a necessidade de mudança do social ou, ao menos, de sua tematização crítica. Porém, essa mudança aparece ainda como uma “utopia”, pois o profissional entrevistado vislumbra a tentativa de mudança no modelo de saúde a partir de experiências vivenciadas pelos indivíduos de forma habitual, em seu cotidiano, de maneira que comecem a aprender a lidar com seu novo mundo. “É meu sonho, eu até conversei... quando eu vim para cá, é transformar futuramente, que daqui uns quinhentos anos, que seja. Mas, que o pensamento, essa maneira de pensar, eu vou chamar de homeopático, mas, na verdade é inerente a todas as práticas, seja inserido na escola, no primário. Mudar uma pessoa que está com setenta anos de idade é muito mais difícil, mudar entre aspas, fazer com que ela acorde para uma postura mais ativa. É muito mais fácil você moldar uma pessoa que está com seis anos de idade, dentro desse pensamento, que a doença vem de dentro e como é que eu estou me relacionando com as pessoas. É saber ensinar e expressar os sentimentos sem agredir. Ensinar a ouvir. [...] e faltam só as doenças para gente quebrar esse paradigma. Mas, acho que teria dentro das salas de aula a disciplina saúde, vamos ser saudáveis e ensinar isso. [...] o paradigma está mudando, eu acredito que vai chegar, o pensamento cientifico está mudando [...]”. (E5 - médico homeopata)

Embora a intersetorialidade seja primordial para fazer avançar práticas de promoção da saúde, para o serviço investigado, esse elemento ainda constitui um desafio. Os dados demonstram que o Serviço não tem relação com outros setores do município, tendo apenas uma proposta pontual de parceria com uma ONG. A parceria ou articulação com os profissionais do PACS e da ESF é ainda pontual, uma vez que o profissional se desloca para a área de abrangência dessas unidades de saúde para desenvolver a prática.

Discussão Os resultados indicam as práticas de oficina de memória e dança sênior como práticas integrativas e complementares, porém a classificação adotada na PNPIC não as especifica, podem ser designadas como recursos terapêuticos11,12. De acordo com a PNPIC, as práticas integrativas e complementares são um campo que contempla tanto sistemas médicos complexos, quanto os recursos terapêuticos3. Nesse entendimento, a indefinição do escopo do que se compreende como PIC dentro da PNPIC caracteriza uma dificuldade e um desafio para a inserção dessas práticas nos Serviços do SUS. A PNPIC favoreceu a visibilidade, nos sistemas de informação em saúde, das práticas que vinham sendo desenvolvidas, porém sem explicitar o que pode ser registrado como PIC. Diversas práticas não constam na PNPIC e não dispõem de códigos nos formulários do CNES e SIA, assim, os profissionais que as realizam fazem o registro em separado13. Vale discutir que, para além dos sistemas médicos complexos (racionalidades médicas), em especial, no contexto contemporâneo, há uma multiplicidade de práticas em saúde que, necessariamente, não se fundamenta por uma racionalidade médica ou outras práticas que atuam de forma complementar à biomedicina. Para tanto, é importante se obter uma definição mais clara sobre esse campo complexo. As práticas ofertadas no estudo são registradas no sistema de informação ambulatorial como atividades especializadas, sessão de acupuntura e atividade educativa/orientação em grupo na atenção especializada. Desse modo, a análise dos dados evidencia que o Sistema de Informação não consegue apreender todas as práticas ofertadas no serviço. Com isso, observa-se um descompasso entre o praticado pelos profissionais no serviço e o registrado no sistema de informação, podendo acarretar, por vezes, uma subnotificação dos dados e, consequentemente, apresentar um impacto no monitoramento e avaliação das práticas e dos serviços especializados em PIC13. Outro elemento de análise refere-se às contribuições das PIC para o campo da promoção da saúde. Cintra e Figueiredo14, bem como Tesser,15 demonstram o potencial das PIC para a promoção da saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Contudo, os achados do estudo evidenciam a imprecisão das concepções sobre promoção da saúde da maioria dos profissionais, pois esses entendem a promoção de saúde como prevenção de doenças, tal como encontrado por outros autores16,17. Para além da prevenção de agravos e da educação em saúde, a promoção da saúde caracteriza-se por ser um conceito amplo que possibilita, ao indivíduo, exercer sua autonomia e alcançar melhores condições de vida. Além disso, as PIC afiliadas a racionalidades médicas vitalistas possuem noções próprias sobre promoção da saúde, que, distintamente do campo conceitual em voga na saúde pública, discutido por Carvalho18, permitem uma integração da promoção com a cura, ou seja, ao promover saúde, inclui em muitas situações o tratamento de adoecimentos (notadamente na área da saúde mental)15,19. Nessa lógica, evidencia a importância da integração do serviço de PIC com a APS, com vistas a potencializar a promoção da saúde, uma vez que essa abarca tanto o cuidado e a prevenção de adoecimentos, quanto a promoção da saúde. Ressalta-se que as práticas de promoção da saúde visam romper a excessiva fragmentação na abordagem do processo saúde-adoecimento, fortalecendo as articulações intersetoriais e promovendo o cuidado integral20. Para tanto, sustentam-se nos princípios da concepção holística, intersetorialidade, empoderamento, participação social, equidade, ações multiestratégicas e sustentabilidade21. Destacou-se, na análise, a concepção holística, cujo elemento está diretamente relacionado à compreensão ampliada e positiva de saúde. A concepção holística, no âmbito das ações de promoção da saúde, permite estimular a saúde física, mental, social e espiritual envolvendo uma concepção ampliada de saúde21. As racionalidades médicas vitalistas e suas práticas estruturam-se e atuam em termos de uma conceituação positiva de saúde. Desse modo, proporcionam técnicas, saberes e ações promotoras da saúde e, por vezes, integram, a elas, cuidados terapêuticos, estimulando potenciais de cura e fortalecendo a saúde15. Podem-se afirmar, ainda, as potencialidades das práticas estudadas em contribuir para o empoderamento do indivíduo, tendo em vista que esse elemento constitui um eixo central da promoção da saúde. O empoderamento “psicológico” tem como objetivo fortalecer a autoestima e a capacidade de adaptação ao meio e o desenvolvimento de mecanismos de autoajuda e solidariedade18. Todavia, notase, nos achados do estudo, pouca menção às abordagens coletivas que apontassem para a participação social e política ou que vislumbrassem o empoderamento comunitário. Entende-se o empoderamento comunitário como uma possibilidade de os indivíduos e coletivos desenvolverem competências que possam ser compartilhadas na vida em sociedade, incluindo habilidade e pensamento reflexivo sobre as políticas públicas18. É importante destacar que a busca pelas práticas se dá por meio da percepção do indivíduo sobre o que está sendo ofertado pelo Serviço. Com isso, a demanda, em sua maior parte, constitui-se a partir da oferta, ou seja, os indivíduos demandam somente as práticas possíveis de serem obtidas no serviço. Logo, a demanda do indivíduo é socialmente construída e está relacionada ao perfil do serviço e à forma como se processa o cuidado22. Nessa compreensão, pode-se inferir que o acesso ao serviço, e, por conseguinte, às PIC, ainda não é universal, uma vez que o serviço tem baixa oferta de práticas, número reduzido de profissionais e pouca capilaridade, dada a sua característica de um serviço com práticas centralizadas. Assim, os achados permitem afirmar que há um descompasso na relação entre a oferta das práticas e as demandas da população, com acesso restrito e determinado pela disponibilidade dos profissionais. Outros autores também evidenciaram que a assistência oferecida pelos profissionais das PIC ainda se apresenta insuficiente em relação à alta demanda, o que exigiria, para sua ampliação, um planejamento operacional23. A alta demanda pelas PIC pode representar avanços no movimento cultural que inclui essas práticas para além de uma forma de tratar o adoecimento. Nesse sentido, elas podem ser buscadas “espontaneamente” pela população, como um direito de cidadania. Esse dado pode sinalizar um avanço na superação da biomedicina ao indicar que há mudanças na representação cultural e simbólica das práticas de saúde que admitem novas formas de tratamento que não as medidas medicamentosas e cirúrgicas, típicas da racionalidade médica ocidental contemporânea.

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Vale enfatizar a possibilidade de se expandirem as PIC para a Atenção Primária à Saúde. A Estratégia Saúde da Família é apontada como eixo estruturante da APS no Sistema Único de Saúde, e constitui uma estratégia para a expansão das PIC, além de um complexo desafio para a sensibilização e a capacitação em PIC24. A APS tem a ímpar especificidade de, além de ser o serviço preferencial para o primeiro contato do cidadão com o cuidado profissional em saúde, ter como missão a integração de ações de cuidado ao adoecimento, prevenção de agravos e de promoção da saúde, sendo o local natural de inserção e desenvolvimento das PIC nos Sistemas de Saúde universais25. Tanto é assim, que, no Brasil, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, 72% das PIC ofertadas no país estavam inseridas na Atenção Básica em Saúde e com intensa participação da ESF26. Outro significativo elemento a ser destacado é a importância da APS para o processo de expansão das PIC e o fortalecimento da promoção da saúde. É aí que os sofrimentos e adoecimentos encontramse, muitas vezes, em fase inicial, momento no qual é possível e desejável que haja ações terapêuticas e de fortalecimento do autocuidado e do potencial de autocura e reequilíbrio das pessoas, o que tem sido reconhecido como ponto forte, especificamente, das PIC e das outras racionalidades médicas27. Nossos achados contribuem para a discussão sobre a ampliação da oferta das PIC no cenário nacional como um aspecto estrutural do fenômeno de expansão dessas práticas na sociedade, e convergem com outros estudos que demonstram o uso de tais práticas, em serviços públicos de saúde, como um elemento de avanço para o campo14,16,23. Todavia, esse avanço, no caso de serviços especializados, tem sido muito restrito, dada a sua escassa abrangência, distância do adoecimento e da situação existencial sociofamiliar das pessoas, as conhecidas longas filas de espera e seu relativamente grande isolamento, que fazem com que esses serviços especializados em PIC (ou esses consultórios de alguma PIC dentro de ambulatórios especializados) sejam limitados a poucas técnicas oferecidas a poucas pessoas, notadamente, pessoas com doenças crônicas que veem as PIC como último recurso. Por mais valiosas que sejam as técnicas envolvidas, essa situação de concentração de profissionais especializados em PIC (profissionais puros, na terminologia de Barros28, já que não praticam biomedicina simultaneamente com PIC) em serviços especializados, sobrepostos aos demais profissionais de saúde já existentes, limita sobremaneira o potencial das PIC de enriquecerem o cabedal de saberes e práticas a serem colocados à disposição da população usuária do SUS. A direção apontada para a superação desse grave limite vem da própria tendência dos novos arranjos institucionais e das práticas de matriciamento, como o NASF, potencialmente enriquecedores das práticas da APS e fomentadores da educação permanente de seus profissionais. Tais arranjos e novas práticas de trabalho conjunto proporcionam maior interdisplinaridade e concretas parcerias entre profissionais de distintos núcleos de competências29 no atendimento, individual e/ ou coletivo, de usuários que necessitam de cuidados mais complexos (do que os possíveis de serem prestados mais facilmente pela ESF “sozinha”). Nesses arranjos e com apoio matricial, pode-se gerar progressiva construção de um campo comum de competências em PIC compartilhado pelos próprios profissionais da APS/ESF (e de outros serviços), de modo que as PIC se transformem em mais um recurso interpretativo e terapêutico (e promotor da saúde) das equipes de Saúde da Família, em grau de profundidade que não esgotará, claro, todas as potencialidades das PIC. Esses profissionais serão, portanto, “híbridos”: praticantes de biomedicina e de PIC. Recente experimento de expansão das PIC para a ESF, utilizando a competência de profissionais já existentes nos serviços (que podem ser da APS ou de serviços especializados ou de NASF) - com apoio e organização da gestão municipal - como instrutores de seus colegas, mostrou-se promissor nesse sentido6. Outro argumento simples e contundente a favor da necessidade de se pensar em estratégias de educação permanente em PIC, para profissionais da APS/ESF (e, mesmo, de outros serviços, hospitais, urgências etc.), é o fato de que não há possibilidade de se oferecerem as PIC massivamente aos usuários do SUS, com profissionais “puros”, seja na APS, seja em serviços de retaguarda especializada. Não é possível, nem recomendável, haver, além do médico-enfermagem da APS, um homeopata, um massagista, um acupunturista para cada cidadão que disso se beneficie, mas os médicos e enfermeiros generalistas serão grandemente enriquecidos em sua prática se aprenderem homeopatia, acupuntura, yoga, relaxamento, massagem, reiki etc.

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O grau de capacitação e profundidade desse aprendizado será variável, conforme as situações e pessoas envolvidas, mas, em princípio, deve ser o maior possível dentro das possibilidades institucionais e interesses pessoais. Inclusive, e obviamente, serão necessários profissionais especializados para possibilitar tal educação permanente e capacitação, e esses profissionais também serão mais demandados em seus núcleos específicos de competência (dentro de suas racionalidades médicas ou técnicas próprias), na medida em que se disseminem as PIC na APS. Assim, o NASF ou os serviços especializados têm seu lugar no SUS, se intimamente vinculados e parceiros de seus colegas que lhes encaminham pacientes, de modo personalizado, e em esquemas de capacitação, supervisão, matriciamento e discussão de casos, de modo a viabilizar a educação permanente e continuada dos profissionais responsáveis, construindo o campo comum de cuidado nas PIC e a coordenação do cuidado pela APS30. De outra forma, os especialistas em PIC em serviços especializados seriam apenas mais alguns dentre a miríade de especialistas pelos quais os usuários constroem seus itinerários terapêuticos dentro do SUS – e fora dele – que não conversam entre si, como, em geral, especialidades médicas e demais profissões da saúde.

Considerações finais O estudo permitiu analisar a organização das PIC desenvolvidas por um Serviço municipal de saúde especializado, bem como sua relação com a promoção da saúde. Apesar do incentivo da PNPIC para a implantação das práticas na rede de serviços do SUS, especialmente a APS/ESF, conclui-se que existe o desafio de se compreender e construir quais práticas de saúde podem se inserir no escopo das PIC. Ressalta-se, ainda, que o Sistema de Informação atual não consegue apreender todas as práticas ofertadas nos serviços. Com isso, há um descompasso entre o que é praticado pelos profissionais no Serviço e o registrado no sistema de informação. Entretanto, as PIC podem ser recursos úteis na promoção da saúde, sobretudo, porque estabelecem uma nova compreensão do processo saúde-doença, em que se destaca a perspectiva holística e o empoderamento individual, com impactos na vida cotidiana dos sujeitos. Contudo, para potencializar as práticas no campo da promoção da saúde e do cuidado no SUS é preciso superar os desafios referentes a uma prática setorializada, essencialmente individualista e tendente a ficar limitada, restrita e de difícil acesso, no caso de serviços e profissionais especializados “puros” como o investigado, contribuindo pouco para a expansão do acesso às PIC e para a construção e qualificação do campo comum do cuidado e da promoção da saúde no SUS e na APS/ESF.

Colaboradores Karla Morais Seabra Vieira e Kênia Lara Silva contribuíram na concepção da pesquisa, elaboração, coleta, análise dos dados empíricos, revisão e redação da versão final do artigo. Charles Dalcanale Tesser colaborou na discussão dos dados, revisão e redação da versão final do artigo.

Referências 1. National Center of Complementary and Alternative Medicine. What is complementary and alternative medicine? [Internet]. Bethesda: NCCAM; 2007 [acessado 2011 Mar 31]. Disponível em: http://nccam.nih.gov/health/whatiscam/#1 2. Organización Mundial de la Salud. Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional 2002-2005. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002.

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PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES ...

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Lima KMSV, Silva KL, Tesser CD. Prácticas integradoras y complementarias y la relación con la promoción de la salud: experiencia de un servicio municipal de salud. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):261-72. Se toman como objeto las prácticas integradoras y complementarias (PIC) en un servicio de referencia en Belo Horizonte, MG, Brazil. Se analiza la organización de las prácticas desarrolladas, teniendo como enfoque analítico su relación con la promoción de la salud y su inserción en el Sistema Único de Salud (SUS). Los resultados indican que las prácticas pueden ser recursos útiles en la promoción de la salud, especialmente porque establecen una nueva comprensión del proceso salud-enfermedad, con un carácter más holístico y empoderado. Para potenciarlas en el campo de la promoción de la salud y del cuidado en el SUS es preciso superar los desafíos de su organización y expansión en los servicios, tales como aproximar a los profesionales de los servicios de referencia y apoyo especializados en PIC de la Atención Primaria de la Salud (APS), construyendo un campo común de cuidado.

Palabras clave: Terapias complementarias. Medicina integral. Promoción de la salud. Atención primaria de la salud.

Recebido em 28/03/13. Aprovado em 27/11/13.

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0227

Saúde do trabalhador na Atenção Primária: percepções e práticas de equipes de Saúde da Família

Thais Lacerda e Silva(a) Elizabeth Costa Dias(b) Vanira Matos Pessoa(c) Luisa da Matta Machado Fernandes(d) Edinalva Maria Gomes(e)

Lacerda e Silva T, Dias EC, Pessoa VM, Fernandes LMM, Gomes EM. Occupational health in primary care: perceptions and practices in family health teams. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):273-87.

This study sought to recognize the perceptions of family health teams regarding work-health-illness relationships, and to identify strategies, facilities and difficulties relating to providing workers with healthcare. Focus groups were conducted among primary care professionals in three Brazilian cities: Palmas (TO), Sobral (CE), and Alpinópolis (MG). The Bardin technique for content analysis was used to organize and analyze the data. The results showed that the healthcare actions provided to workers were unsystematic and out of line with the guidelines and objectives of the Brazilian National Occupational Health Policy. The major problems identified were: work overload; unpreparedness among the teams regarding issues involving work-health-illness relationships; and lack of institutional support, among others. Central organizational support for healthcare teams, provided by occupational health reference centers and other parts of the Brazilian National Health System, was identified as a facilitator of actions.

O estudo buscou conhecer a percepção de equipes de Saúde da Família sobre as relações trabalho-saúde-doença e identificar estratégias, facilidades e dificuldades para prover o cuidado aos trabalhadores. Foram realizados grupos focais com profissionais de unidades básicas em: Palmas (TO), Sobral (CE) e Alpinópolis (MG). Utilizou-se análise de conteúdo de Bardin para sistematização e análise dos dados. Os resultados revelam que as ações de cuidado dos trabalhadores são pontuais e pouco articuladas com as diretrizes e objetivos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Entre as dificuldades estão: sobrecarga de trabalho; despreparo das equipes para as questões que envolvem as relações trabalho-saúde-doença; falta de apoio institucional, entre outros. O apoio matricial às equipes de saúde pelos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador e outras instâncias do SUS foi identificado como facilitador das ações.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Sistema Único de Saúde. Atenção primária à saúde.

Keywords: Occupational health. Unified Health System. Primary health care.

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(a)

Doutoranda em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Avenida Trinta e Um de Março, 1100; apto. 303, Dom Cabral. Belo Horizonte, MG, Brasil. 30535-000. thaislacerda@gmail.com (b) Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. bethdias@ medicina.ufmg.br (c) Fiocruz. Fortaleza, CE, Brasil. vanirapessoa@gmail.com (d) Departamento de Ações Programáticas Eestratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Brasília, DF, Brasil. luisa@mattamachado.org (e) Coordenadoria de Saúde do Trabalhador, Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins. Palmas, TO, Brasil. edinalvagomes25@ gmail.com

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Introdução No modelo de atenção à saúde vigente no Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Primária à Saúde (APS) é considerada ordenadora da rede de atenção à saúde e coordenadora do cuidado integral1,2. Este contexto pode ser interpretado como oportunidade para desenvolver o cuidado diferenciado aos trabalhadores, incorporando a contribuição do trabalho na determinação dos processos saúde-doença, pelo SUS, atribuição constitucional regulamentada pela Lei Orgânica de Saúde e prescrita na Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST)3. A produção do cuidado aos trabalhadores pela APS ganha relevância no contexto das transformações econômicas em curso no país, responsáveis pelo aumento e diversidade da informalidade e da precarização do trabalho; do desemprego; de más condições de trabalho, com exposição a cargas físicas e psicossociais elevadas, além de frágil proteção social, condições que reforçam a vulnerabilidade social dos trabalhadores4,5. Na situação do trabalho informal em domicílio, de modo particular, a APS tem a possibilidade de romper com a invisibilidade das condições de saúde e trabalho desses trabalhadores, abrindo perspectivas inovadoras de intervenção e proteção em saúde6. A PNSST e, em especial, a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNST-SUS) oferecem as bases conceituais, princípios, diretrizes e estratégias para prover a atenção integral à saúde dos trabalhadores. Entre as estratégias propostas pela PNST-SUS que envolvem a APS estão: a estruturação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) no contexto da Rede de Atenção à Saúde e a articulação com a Vigilância em Saúde do Trabalhador, baseada na análise do perfil produtivo e da situação de saúde dos trabalhadores para o desenvolvimento das ações. Outros aspectos destacados são: o fortalecimento e ampliação da articulação intersetorial; o estímulo à participação dos trabalhadores e da comunidade, em geral; a capacitação das equipes de Saúde da Família (SF) e o apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas7. Em que pese a base legal e a justificativa ético-política, a implantação de ações de saúde do trabalhador de forma sistemática na APS pressupõe o envolvimento das equipes, o que impõe a necessidade de se conhecer a organização do trabalho, as principais dificuldades e fatores facilitadores que envolvem a produção do cuidado à população trabalhadora. As dificuldades estruturais da APS são amplamente estudadas e registradas na literatura e devem ser consideradas no processo de incorporação de ações de saúde do trabalhador nas práticas das equipes. Entre elas, destacam-se: a precariedade da rede física; o baixo índice de conectividade e informatização das Unidades Básicas de Saúde (UBS); o modelo de atenção centrado em ações assistenciais; o baixo grau de interação entre os profissionais; a grande demanda espontânea; a falta de preparo técnico e elevada rotatividade dos profissionais; a pouca integração com a rede de atenção e a precarização do trabalho8,9. Entretanto, estudos desenvolvidos no país demonstram que as equipes de SF lidam, em seu cotidiano, com problemas advindos das relações trabalho-saúde-doença, porém com limitada capacidade de resposta, decorrente de lacunas nos processos de formação nos cursos de graduação; ausência de suporte técnico, de apoio institucional e de linhas de cuidado bem estabelecidas na rede de atenção6,10,11. A necessidade de desenvolver metodologias e ferramentas eficazes de apoio técnico e pedagógico às equipes de SF, para prover a atenção à saúde dos trabalhadores, é apontada por diversos autores12-14. Por outro lado, a frágil articulação dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) com os serviços de Atenção Básica foi um dos fatores evidenciados no diagnóstico situacional realizado no estado de Minas Gerais, em 200715. Com base no exposto, este artigo tem como objetivo discutir a percepção de equipes de SF sobre as relações trabalho-saúde-doença; identificar as estratégias desenvolvidas para oferecer o cuidado aos trabalhadores; os fatores potencializadores e limitantes para o cuidado, bem como propor alternativas com vistas à garantia da integralidade da atenção, considerando as complexas relações trabalho-saúde-doença e ambiente que se desenrolam nos territórios onde essas equipes atuam.

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Método Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter descritivo e exploratório, realizada com equipes de SF, nas cidades de Palmas (Tocantins); Sobral (Ceará) e Alpinópolis (Minas Gerais), com vistas a conhecer como se dá o cuidado aos usuários trabalhadores nas práticas desenvolvidas. A escolha dos municípios buscou atender a necessidade de se abordarem realidades distintas no país e seguiu os critérios: cobertura da SF acima de 50% e total de registros de acidentes de trabalho no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), no ano de 2010, sendo o único indicador de Saúde do Trabalhador prescrito para a Atenção Básica. A escolha das UBS que participaram do estudo foi feita com base em entrevistas com coordenadores de Atenção Básica; dos CEREST e gestores municipais e estaduais, considerados informantes-chave. Optou-se por trabalhar com municípios situados na área de abrangência de um CEREST, considerando seu papel de suporte técnico à rede SUS para as ações de saúde do trabalhador. Foram convidados todos os profissionais que compunham as equipes de SF das UBS selecionadas, perfazendo uma média de oito profissionais em cada grupo focal. O número de participantes foi considerado suficiente quando os dados da pesquisa refletiram as múltiplas dimensões do objeto deste estudo e se tornaram repetitivos16. O critério de exclusão foi a não-concordância em participar da pesquisa. Foram realizados grupos focais com integrantes de equipes de SF das três cidades, utilizando as seguintes questões norteadoras: Como vocês lidam com as demandas e problemas de saúde relacionados ao processo trabalho-saúde-doença? Que ações têm sido desenvolvidas para o cuidado de usuários trabalhadores? Quais instrumentos e abordagens têm sido utilizados? Quais os fatores facilitadores e as principais dificuldades para o desenvolvimento dessas ações? Foi incorporada, ainda, no roteiro, questão sobre a articulação entre as UBS e os CEREST. Os grupos foram realizados no período de maio a agosto de 2011, sendo os encontros gravados e, posteriormente, transcritos, possibilitando o registro fidedigno das informações. Os participantes foram identificados com códigos segundo as categorias profissionais: M para médicos; E para enfermeiros; ACS para Agentes Comunitários de Saúde; ACD para auxiliar de consultório dentário, mantendo-se o anonimato. Para a sistematização e análise dos dados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, com abordagem temática, proposta por Bardin17. A sistematização inicial das informações obtidas nos grupos permitiu a identificação dos principais núcleos de sentido emergentes na pesquisa de campo, considerando as regularidades do discurso e os sentidos frequentes e ímpares presentes nas falas. Posteriormente, os dados foram organizados e classificados de acordo com as categorias: a) atributos da Atenção Básica e o cuidado à saúde dos trabalhadores; b) organização do cuidado à saúde dos trabalhadores; e c) recomendações. As categorias empíricas foram confrontadas com as analíticas, buscando-se as relações entre ambas, e subdivididas em componentes menores, as subcategorias. A discussão dos resultados considerou os fundamentos, princípios e diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e as características do processo de trabalho das equipes de SF2. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. Os participantes dos grupos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme normas preconizadas pela Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados e discussão Os resultados do estudo foram consolidados e serão apresentados, considerando-se as categorias e as respectivas subcategorias, destacando-se as especificidades observadas nos municípios estudados.

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Atributos da APS que favorecem o cuidado à saúde dos trabalhadores O acesso, a longitudinalidade e coordenação do cuidado foram mencionados pelas equipes como sendo essenciais para o cuidado dos trabalhadores. Nos termos da Portaria 4279/2010, a APS deve ser organizada segundo os atributos: acesso, longitudinalidade, coordenação, integralidade, centralidade na família, abordagem familiar e orientação comunitária1. O acesso representa o contato preferencial dos usuários com o SUS2. No relato das equipes de SF este atributo aparece nas dimensões relacionadas à barreira temporal, que se refere ao horário de funcionamento da UBS; organizacional, relacionada à característica de adscrição das famílias por domicílios de territórios previamente delimitados, e de gênero, envolvendo a restrição da utilização dos serviços de saúde pelos usuários do sexo masculino, em decorrência, sobretudo, dos horários de trabalho. No município de Alpinópolis-MG, a preocupação sobre a ampliação do acesso resultou na extensão do horário de funcionamento das UBS. O tema cresce em importância nas discussões sobre a implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH)18,19. “A gente tem atendimento noturno para atender essas pessoas (trabalhadores)”. (E)

Entretanto, alguns profissionais destacaram que, mesmo com o horário ampliado, o acesso de usuários trabalhadores do sexo masculino ainda é pequeno. “Homem é muito teimoso. Para eles irem no centro de saúde só se já estiverem com a doença instalada”. (E) “E a gente pode trabalhar noite, feriado, sábado, mas eles (os homens) não vão”. (E)

Nos estudos desenvolvidos por Knauth, Couto, Figueiredo18 e Machin et al.20, o trabalho foi apontado, pelos profissionais da APS, como um dos principais fatores que justificam a ausência ou dificuldade de acesso dos usuários aos serviços de saúde. Knauth, Couto & Figueiredo18 evidenciaram que homens trabalhadores, com idade entre trinta e cinquenta anos, constituem grupo minoritário nos serviços de saúde, em decorrência de fatores como: a inserção no mercado de trabalho formal; o receio de ser penalizado pela ausência no trabalho, e as dificuldades impostas pelas empresas para justificar a ausência ao trabalho mediante atestado médico. É importante destacar que a PNAISH propõe a redução da morbimortalidade dos homens por meio da ampliação e facilitação do acesso às ações e serviços de saúde, o que implica, necessariamente, incluir o trabalho na discussão. Outra dificuldade se refere ao critério adotado de adscrição das famílias às equipes de saúde, utilizando apenas o critério domiciliar, limitando o acesso e o cuidado de usuários que trabalham, mas não residem no território, como relatado pela ACS. “Na minha área tem muita oficina de carro, só que os trabalhadores não moram aqui na quadra. Quando acontece um acidente, eles vão para o Pronto Atendimento ou procuram a UBS deles. Eles não são daqui, só trabalham. [...] não procuram a UBS, por ter medo de não serem atendidos”. (ACS)

A dificuldade de prover a atenção à saúde de trabalhadores, em particular nas cidades “dormitórios” das regiões metropolitanas, foi identificada em avaliação da implementação da estratégia SF em dez grandes centros urbanos, desenvolvida pelo Ministério da Saúde em 2005. Para a solução do problema, o relatório recomenda que se estude a possibilidade de adscrição por local de trabalho ou por meio de inscrição individual em USF próximas aos locais de trabalho21. Vale lembrar que o documento da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em 1978, em Alma Ata, propõe que a atenção à saúde seja oferecida, pela APS, o mais próximo de onde as pessoas vivem e trabalham22. 276

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Entre as estratégias desenvolvidas pelas equipes de SF, observadas no estudo realizado, para que a APS constitua, de fato, o contato preferencial do usuário com o SUS, destacam-se: a ampliação do horário de atendimento; visitas aos locais de trabalho, sendo referidas em apenas uma das unidades estudadas, e a priorização no agendamento de consulta. “quando chega um paciente por conta do trabalho, a gente arruma um horário para eles. Eu agendo sempre os melhores horários, estou sempre remarcando os pacientes por conta do trabalho deles”. (ACD)

As visitas aos ambientes de trabalho instalados no território foram mencionadas pela enfermeira da equipe de SF de Alpinópolis-MG e utilizadas para o desenvolvimento de atividades educativas. Entre os desdobramentos, observou-se o aumento da procura pela UBS. “[...] fomos na indústria de confecção de roupas que tem aqui. Trabalhamos com as mulheres, sobre a hipertensão, diabetes. Trabalhamos questões que a gente até então achava que estava tudo prontinho, mas quando chegamos lá percebemos que elas tinham muitas dúvidas [...] depois elas foram até a unidade, se interessaram em saber mais”. (E)

Entre as dificuldades relacionadas às visitas aos ambientes de trabalho, foi destacada a interferência na rotina de trabalho, particularmente nas situações em que o trabalhador tem sua renda vinculada à produtividade. “Só que a gente chegava lá e é tudo por produtividade. Então como chefe da família ele precisa dessa produtividade. É a outra preocupação dele. Então tinha a nossa preocupação de não atrapalhar a produtividade dele e saber se ele estava aproveitando”. (E)

É importante ressaltar que o atributo acesso não se restringe às dimensões relativas à barreira física, cultural e organizacional, mas inclui a disponibilidade, comodidade e aceitabilidade do serviço pelos usuários, aspectos não mencionados pelas equipes. A continuidade do cuidado foi destacada pelo grupo e pode ser incluída no atributo longitudinalidade: “[...] um paciente que tínhamos, trabalhou por vários anos na pedreira, se aposentou por problema de enfisema e logo a seguir foi diagnosticado com silicose. No início [...] ele começou a fazer uma pneumonia de ápice direita. Eu fiquei preocupada dele ter alguma outra coisa. Ai eu mandei ele para o CEREST onde foi acompanhado e orientado [...]. Não ficou perdido na rede”. (M)

De acordo com Starfield23, a longitudinalidade é derivada da palavra longitudinal, e requer dos profissionais de saúde a capacidade de “lidar” com o crescimento e as mudanças de indivíduos ou grupos no decorrer de um longo período ou ciclos de vida. No relato transcrito, observa-se o acompanhamento do usuário trabalhador ao longo do tempo, pelo profissional de saúde da APS, mesmo após o encaminhamento para o CEREST. Chama atenção a expressão “não ficou perdido” para designar a continuidade do cuidado. Porém, a fragmentação e a descontinuidade do cuidado foram explicitadas por outro profissional: “Eu que tenho mais tempo de serviço, que sou mais velha, passei a vida toda frustrada. Porque você pega um caso, aí vai pra não sei aonde e some [...]”. (M)

Observa-se que os profissionais desenvolvem estratégias para suprir lacunas estruturais do SUS, com vistas à garantia da produção do cuidado. Um estudo de percepção dos trabalhadores da estratégia de SF do Distrito Federal, sobre o processo de trabalho e as repercussões no processo saúde-doença, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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evidenciou que a constante imprevisibilidade impõe ao trabalhador grande exigência cognitiva. Ademais, a carga de trabalho é aumentada pelas tarefas repetitivas, pela cobrança por resultados, pela escassez de pessoal, entre outros fatores24. A coordenação do cuidado aos usuários trabalhadores, outro atributo da APS, emergiu nas discussões, porém foi pouco explorada. Ela requer o compartilhamento das informações, entre a equipe da APS e profissionais de outros pontos de atenção, sobre o atendimento dos usuários e ações desencadeadas, como, por exemplo: os procedimentos, orientações e encaminhamentos realizados. O prontuário clínico eletrônico e os sistemas informatizados são apontados como ferramentas essenciais para a coordenação do cuidado1. No relato apresentado a seguir, o profissional revela conhecer os procedimentos realizados pela equipe técnica do CEREST, porém ele recebe esta informação do usuário trabalhador que procura a UBS. “E o mais interessante que a gente observa que antes mesmo de chegar a contrarreferência (do CEREST) o usuário mesmo tem a liberdade de procurar a unidade. [...] antes mesmo de chegar a contrarreferência a gente já sabe o que está acontecendo com ele”. (E)

Esta questão evidencia o vínculo do usuário com a UBS, um dos princípios da Atenção Básica, e a manutenção de relações verticais, característica de sistemas burocráticos e pouco dinâmicos, em que a comunicação entre especialistas e equipes de SF ocorre por meio de formulários de referência e contrarreferência. Campos e Domitti25 propõem o Apoio Matricial enquanto metodologia de trabalho complementar àquelas adotadas no sistema hierarquizado. Sua utilização potencializa o processo de coordenação do cuidado pelas equipes da APS, na medida em que possibilita o compartilhamento dos diferentes saberes entre equipe de referência e especialistas.

Organização do cuidado à saúde dos trabalhadores A “organização do cuidado aos usuários trabalhadores” abrangeu as subcategorias: reconhecimento dos usuários trabalhadores e mapeamento das atividades produtivas do território; notificação de agravos relacionados ao trabalho; emissão de laudo; apoio matricial e institucional; articulação intra e intersetorial; características do processo de trabalho e participação dos trabalhadores. O reconhecimento dos usuários enquanto trabalhadores tem início no cadastramento das famílias pelos ACS, e continua no acolhimento, consulta clínica, visita domiciliar, nos grupos operativos, entre outros momentos de interação entre os usuários e a equipe. O relato seguinte evidencia a importância de se incluírem, na anamnese, perguntas relativas ao trabalho do usuário, com vistas a relacionar as queixas e problemas trazidos com o trabalho atual e / ou pregresso. “Quando acontece algum problema a gente pergunta se foi acidente de trabalho, em que a pessoa trabalha... na anamnese, no momento da consulta, quando você vai colher a história daquilo que aconteceu com a pessoa. [...] é perguntado qual a atividade laboral dela”. (E) “Quando o usuário trabalhador chega com sua queixa é feito a abordagem em relação a que atividade ele exerce, por quanto tempo, se ele realiza algum esforço, se ele está exposto a algum risco”. (E)

O levantamento de informações sobre as condições de vida e saúde da população que reside na área de abrangência das equipes da APS é essencial para a produção do cuidado em saúde. Os ACS, pelo lugar de elo que ocupam e o fato de residirem no território em que trabalham, desempenham papel fundamental nesse processo. Os trechos evidenciam a afirmativa.

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“Eu acho que o fio da meada quem começa somos nós [...] que conhecemos a população. A primeira coisa é identificação, e é a gente que faz. Na minha área acho que 60% dos homens com mais de 20 anos trabalham na pedreira. E tem muito caso de silicose”. (ACS) “[...] as meninas (ACS) são muito importantes. Elas trazem a problemática de cada local”. (M)

Observou-se que os profissionais de saúde, em sua maioria, reconhecem que o ACS detém informações mais precisas e qualificadas sobre o território em que atuam, como expresso nos relatos. “Em relação à identificação da população trabalhadora e do mapeamento das atividades produtivas, sem dúvida nenhuma, os ACS que estão mais a frente. Eles conhecem como ninguém a área de atuação, os processos produtivos, as principais atividades da comunidade”. (E) “A identificação da população trabalhadora, eu vejo muito como sendo um papel do ACS”. (E)

Embora tenha ficado evidente que os ACS conhecem quem são os trabalhadores e que atividades de trabalho desenvolvem, ao serem questionados sobre o preenchimento do item ocupação na ficha de cadastramento familiar (ficha A), eles revelaram dificuldades para fazê-lo. “Na ficha A que a gente preenche, a gente colocava “Do lar” pra mulher, e para o homem a gente não colocava a profissão. Aí que a gente foi descobrir realmente o que era, que aquilo era importante pra começar esse trabalho”. (ACS)

Os ACS demonstraram que percebiam a importância do preenchimento do campo ocupação, mas o dado não era considerado nas ações planejadas e desenvolvidas pela equipe. Alguns começaram a preenchê-lo adequadamente após terem compreendido como este dado auxilia no processo de cuidado à saúde dos trabalhadores. Este achado é corroborado no estudo de Lacerda e Silva, Dias e Ribeiro14. Reforçando o fato de os ACS preencherem o item ocupação da ficha A, considerando-o apenas uma demanda “burocrática”, uma enfermeira destacou: “Esse mapeamento a gente até tem, porque se faz a digitação do SIAB, onde é exigida a profissão. As ACS têm noção de quem são os trabalhadores em cada microárea, porque pra você digitar e cadastrar a família você precisa disso, mas o dado fica aí. Ele não serve para outra coisa, somente para cadastro do SIAB”. (E)

Para superação desta dificuldade, as equipes devem receber apoio técnico e pedagógico, de modo a se aperfeiçoar o processo de coleta e sistematização dos dados, o delineamento do perfil ocupacional da população e as discussões sobre os possíveis riscos para a saúde dos trabalhadores. Outra questão relevante que apareceu no grupo é o reconhecimento dos trabalhadores informais na área de abrangência das equipes. A necessidade de se organizarem ações de atenção à saúde desses trabalhadores, particularmente daqueles que desenvolvem suas atividades em domicílio, cresce em importância, pela frequência e diversidade. A grande maioria destes trabalhadores está à margem da proteção trabalhista e previdenciária, e necessita da proteção à saúde oferecida pelo SUS, especialmente pelos serviços da APS, que estão mais próximos de onde vivem. “Na minha área tem muitos trabalhadores informais”. (E)

A complexidade dos problemas de saúde decorrentes da exposição a fatores de riscos gerados pelo trabalho e a situação de vulnerabilidade social agregam exigências às equipes, que não estão preparadas para resolver a maioria dessas questões. Para tanto é necessária forte articulação intra e intersetorial.

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As articulações intra e intersetoriais relatadas pelas equipes estão focadas apenas nos CEREST e no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “Eu já encaminhei muita gente para o CEREST, para o INSS e muitas pessoas já para se aposentar”. (ACS) “A gente trabalha muito com a equipe do CEREST”. (E)

Wimmer e Figueiredo26 destacam a intersetorialidade como prática integradora de ações de diferentes setores que se complementam e interagem, para uma abordagem mais complexa dos problemas. Por outro lado, a articulação intrassetorial é essencial para a garantia da continuidade do cuidado e o desenvolvimento das ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador, de forma articulada às Vigilâncias Epidemiológica, Ambiental e/ou Sanitária27. A Referência Técnica Municipal em Saúde do Trabalhador (RTMST), presente apenas em um dos municípios estudados, foi destacada pelos profissionais como fundamental para o fortalecimento das articulações intra-setoriais. “Tudo que chega na UBS, que é doença ocupacional [...] a gente comunica à Referência Técnica, que entra em contato com o CEREST”. (E)

É importante destacar que a RTMST é o profissional de saúde de nível superior responsável por apoiar a implementação da Política de Saúde do Trabalhador, no âmbito municipal28, e foi apontada pela equipe como principal mediadora entre o CEREST e a APS. A articulação com o CEREST para o cuidado aos usuários trabalhadores apareceu, com destaque, nos relatos das equipes, embora os profissionais da estratégia de SF do município de Palmas-TO tenham destacado que sua relação com o CEREST ainda é pontual. “[...] tivemos um contato com o Cerest no dia da palestra da humanização. E agora, recentemente, a equipe foi lá na unidade pra desenvolver um trabalho também [...]”. (E)

A frágil articulação da APS com outros pontos de atenção aponta para a deficiência nos fluxos de referência e contrarreferência e falta de estruturação de linhas de cuidado aos trabalhadores. “A maioria dos casos de acidente de trabalho, como geralmente são urgência, é direcionado para o Pronto Atendimento, onde é feita a notificação, mas não tem uma contrarreferência para a UBS. Às vezes a gente não fica nem ciente [...]”. (M)

Embora diferenças tenham sido observadas entre os municípios estudados, quanto ao grau de articulação intra e intersetorial para a resolução de demandas de Saúde do Trabalhador, o estudo evidenciou a necessidade de se fortalecer a rede de atenção à saúde dos trabalhadores, e, especialmente, as ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador. A notificação de agravos relacionados ao trabalho é outra ação importante na produção do cuidado aos trabalhadores, pois é essencial para ampliar o conhecimento sobre seu perfil de morbimortalidade e permitir que essa questão seja incluída nas agendas técnicas e políticas dos gestores e do controle social do SUS. Os agravos relacionados ao trabalho de notificação no Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) estão dispostos na portaria 104/2011, prioritariamente na lista de notificação compulsória em unidades sentinelas29. As doenças relacionadas ao trabalho devem ser notificadas após confirmação, com exceção das intoxicações exógenas. De acordo com os profissionais, a necessidade de confirmação da relação entre o agravo e o trabalho e a falta de médicos nas UBS são alguns dos fatores que dificultam a notificação.

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“as notificações dos agravos relacionados ao trabalho só são realizadas após o diagnóstico ser fechado, e é feito pelo médico. A gente tem dificuldade de realizar a notificação porque muitas vezes a equipe não conta com médico”. (E)

A falta de médicos nas UBS é um problema identificado e debatido nas três esferas de gestão do SUS. Entre as estratégias desenvolvidas pelo Ministério da Saúde para seu enfrentamento, destacam-se: a flexibilização da carga horária do profissional, anteriormente fixada em quarenta horas semanais, e a criação do Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB), que oferece incentivo aos profissionais que optarem por atuar na SF e outras formas de organização da APS30. A emissão de laudos para justificativa da ausência ao trabalho ou mudança de função foi outra ação demandada pelos usuários trabalhadores, conforme explicita o médico da equipe. “[...] a gente faz laudos [...] mando o laudo de que a gestante não pode subir escadas, por exemplo, e solicito outro tipo de função [...] tudo isso dentro de cada demanda”. (M)

O fornecimento de laudos, pareceres e relatórios de exame médico é obrigação dos médicos que atendem trabalhadores, como dispõe a Resolução 1940/2010, do Conselho Federal de Medicina31. A necessidade de apoio institucional para a organização do cuidado aos trabalhadores aparece com destaque nos grupos. No município em que a Secretaria Municipal de Saúde havia indicado uma Referência Técnica em Saúde do Trabalhador, os profissionais elencaram vantagens de poder contar com uma instância apoiadora para as questões da área. “[...] a Referência Técnica está ciente de todos os problemas que a gente tem, ele procura solucionar, buscar uma resposta, encaminhar”. (E) “Estou dizendo como médica: às vezes o exame ficava em branco, não comprovava. Agora a gente pode procurar a referência técnica [...]. E eles se sentem mais seguros de trazer a queixa”. (M)

O relato do médico expressa que a atuação da referência técnica tem facilitado a concretização da continuidade do cuidado. Por outro lado, a falta do apoio para lidar com as questões da Saúde do Trabalhador é expressa de diferentes formas pelas equipes dos outros municípios. “Não sabemos o que fazer [...] os pacientes são atendidos pela médica, mas a gente não sabe o que fazer com eles [...]”. (ACS) “Para o PSF não tem protocolo estabelecido, nem um direcionamento com relação aos agravos relacionados ao trabalho”. (M)

Ainda sobre a organização do cuidado aos trabalhadores no âmbito da APS, foram ressaltadas pelos profissionais algumas características do processo de trabalho que limitam o desenvolvimento das ações. “a verdade é que foi imposta tanta meta pra gente cumprir que não se consegue visualizar outra forma de trabalho. Você é obrigada a cumprir meta, então se disserem que você vai ter que desenvolver uma ação de Saúde do Trabalhador, a gente de alguma forma vai desenvolver. Não porque tem toda iniciativa e uma vontade de fazer esse trabalho, mas porque a gente foi muito condicionada e a obrigação é de cumprir meta”. (ACS)

Embora a PNAB oriente que a programação e implementação das atividades de atenção à saúde devem ser feitas considerando as necessidades de saúde da população – com a priorização de intervenções clínicas e sanitárias nos problemas de saúde segundo critérios de frequência, risco,

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vulnerabilidade e resiliência – o relato acima expressa uma organização do trabalho voltada para o cumprimento das metas estabelecidas pelos gestores dos diferentes níveis. “Nós desenvolvemos muitas ações, mas são pontuais. A Secretaria de Saúde solicita e aí colocamos no planejamento. Saúde do homem agora nós vamos colocar, aí chega outras ações [...] e assim vai recortando as pessoas”. (E)

Este relato evidencia a fragmentação do cuidado decorrente da organização do trabalho das equipes e, particularmente, a fragmentação das pessoas, contrariando o princípio da integralidade da atenção. A PNAB recomenda a organização da agenda de trabalho de forma compartilhada por todos os profissionais, evitando a utilização tradicional de critérios de problemas de saúde, ciclos de vida e sexo, que dificultam a assimilação da integralidade nas práticas desenvolvidas. O atendimento às exigências impostas no âmbito da gestão associado a outros problemas de implantação da APS no Brasil impõe limites no redirecionamento do modelo de atenção embasado nas reais necessidades de saúde da população local e que possibilite o exercício de importantes funções da APS, como a coordenação do cuidado. Sobre a participação dos trabalhadores, essencial nos processos de formulação, planejamento, acompanhamento e avaliação das intervenções sobre as condições geradoras dos agravos relacionados ao trabalho, a PNAB recomenda que os serviços da APS instituam conselhos/colegiados, constituídos por gestores locais, profissionais de saúde e usuários, de forma a viabilizar a participação social na gestão da UBS2. “Nosso conselho local é bem atuante e foi um ganho em relação ao conselho municipal. Antes, a comunidade não tinha nenhum tipo de direcionamento de controle social, mas agora, por exemplo, estão fazendo um abaixo assinado para conseguir uma área para colocar academia [...] está sendo feita essa mobilização”. (E)

O relato expressa a importância do conselho local para que a comunidade possa se organizar na busca de um propósito comum. Embora a participação da comunidade, nesses espaços, ainda seja incipiente, alguns estudos têm demonstrado a adesão da população local em atividades de mutirão, a exemplo da mobilização contra a dengue; reivindicações a respeito de questões ambientais, como o acúmulo de lixo, contaminação ambiental por processos produtivos instalados nos territórios, entre outros. Nesses processos, os ACS têm sido fundamentais, pelo papel de liderança que, muitas vezes, exercem na comunidade14. Os profissionais de saúde destacaram que o pouco conhecimento dos usuários trabalhadores sobre seus direitos, incluindo a proteção social conferida pelo SUS, limita a participação nas atividades da UBS. “a própria comunidade também desconhece os seus direitos [...] acontece alguma coisa, algum acidente no trabalho, as pessoas não sabem qual é o direito delas e também não nos procuram para informar”. (ACS)

Por outro lado, estudos demonstram que as equipes da APS não se sentem qualificadas para realizar orientações quanto aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários10,13. Segundo Chiavegatto13, apenas 22% dos 358 profissionais da APS que participaram de seu estudo realizam essas orientações, embora 71% considerem-na importante. Este trabalho é desenvolvido pelo assistente social, quando presente na equipe. Na mesma linha, o documento da PNST-SUS destaca a necessidade de se empreenderem esforços para reativar e fortalecer a participação das categorias de trabalhadores formais, e garantir a organização e representação dos trabalhadores informais nas instâncias gestoras do SUS7.

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Recomendações Sobre as recomendações das equipes para a inserção das ações de saúde do trabalhador de forma sistemática na APS, são destacadas: a sensibilização dos profissionais para as questões que envolvem a Saúde do Trabalhador; definição do elenco de ações a serem desenvolvidas; fortalecimento do CEREST enquanto apoiador técnico e pedagógico; incorporação do tema nos processos de Educação Permanente e intercâmbio das experiências bem-sucedidas. A sensibilização das equipes da APS sobre as questões que envolvem o processo trabalho-saúde-doença foi enfatizada, particularmente no que se refere ao reconhecimento do usuário enquanto trabalhador, em suas práticas de trabalho. “O indivíduo não é visto como trabalhador, é visto como uma pessoa que chega com determinada doença, determinado agravo. Isso não é uma unanimidade na equipe, mas a gente sabe que existem integrantes na equipe que não são sensibilizados para determinados assuntos”. (E)

De acordo com a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, as bases definidoras dos processos formativos das equipes devem ser a problematização do processo de trabalho e as necessidades de saúde dos indivíduos e coletividades. Assim, é fundamental que os profissionais incorporem, em suas abordagens, o papel do trabalho na determinação do processo saúde-doença32. A necessidade de se definirem melhor as atribuições das equipes no que se refere a atenção à saúde do trabalhador também foi sugerida por alguns profissionais. “A primeira coisa é a equipe entender quais são as ações que devem ser desenvolvidas com relação à Saúde do Trabalhador. Na verdade, deveria ser apresentado à equipe essas ações e a gente iria identificar se já desenvolvemos alguma. [...] a gente pode até desenvolver sem saber que são ações de Saúde do Trabalhador”. (E) “[...] não dá para sugerir uma ação ou outra se você não sabe bem o que o Ministério da Saúde preconiza em Saúde do Trabalhador, ou o que o estado espera”. (ACS)

Interessante destacar, no relato acima, a necessidade de se trabalhar com protocolos e diretrizes, em especial, preconizados pelo Ministério da Saúde. Conforme anunciado anteriormente, tradicionalmente, as equipes da APS vêm se organizando em função de metas e protocolos preestabelecidos, o que limita, em muito, o reconhecimento do caráter transversal da saúde do trabalhador. Além disso, pode-se dizer que a fragmentação das ações desenvolvidas pelas equipes de SF reflete a fragmentação da Política de Saúde, organizada a partir de diversas áreas técnicas e campos de saberes especializados, e que foge à lógica de responsabilidade sanitária de uma população inserida em territórios e contextos que influenciam e determinam, diferentemente, os processos de saúde e adoecimento dos grupos. O fortalecimento da atuação do CEREST no suporte técnico e pedagógico às equipes é outra recomendação estratégica quando se discute a inserção sistemática de ações de cuidado aos trabalhadores, no SUS. No documento da PNST, o CEREST foi definido como uma das instâncias de Apoio Matricial. “[...] para melhorar essa atividade deve ser estabelecida uma relação mais íntima da equipe com o CEREST, para que seja oferecido esse suporte, esse apoio [...] nós sozinhos também não podemos realizar tudo”. (E)

Neste sentido, a importância do intercâmbio das experiências emergiu dos grupos, como na fala transcrita a seguir:

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“A gente sente também falta de relatos de outras experiências, de saber como trabalhar, como desenvolver as ações de saúde do trabalhador”. (E)

O princípio de aprender com quem está fazendo e o compromisso com a socialização das experiências consideradas bem-sucedidas têm sido assumidos, de modo sistemático, pelo Ministério da Saúde. No âmbito da Saúde do Trabalhador, a criação do Painel de Informações em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador e da RENAST online são algumas dessas iniciativas.

Considerações finais Os resultados evidenciaram que os profissionais das três equipes de SF dos municípios estudados reconhecem, muitas vezes, as repercussões das relações trabalho-saúde-doença em suas práticas cotidianas, mas têm dificuldades para desenvolver ações de intervenção, seja no âmbito da assistência, vigilância ou promoção da saúde. Esta dificuldade possui raízes históricas e reflete a falta de discussão mais direcionada sobre o tema nos cursos de graduação e nos processos de educação permanente. Além disto, é forte o conceito de que as questões de Saúde do Trabalhador são afeitas às especialidades, como, por exemplo, a Medicina do Trabalho e a Engenharia de Segurança, e objeto de atuação do Ministério do Trabalho e Emprego. Esta é uma barreira a ser vencida para se efetivar a organização das ações de saúde do trabalhador no SUS. Constatou-se que o ACS tem mais facilidade para reconhecer o usuário trabalhador em suas práticas e relacionar queixas e doenças referidas, pelos usuários, com a ocupação atual ou pregressa. Entretanto, observou-se que, muitas vezes, seus saberes sobre o território não são incorporados nas práticas da equipe. De forma geral, constatou-se que as atividades existentes e direcionadas aos usuários trabalhadores são pontuais e pouco articuladas com as diretrizes e objetivos propostos pela PNST-SUS. Apenas uma das equipes relatou desenvolver atividades de promoção da saúde e prevenção de doenças relacionadas ao trabalho, envolvendo ações de educação em saúde, a partir de visitas aos locais de trabalho. Em que pese a fragilidade das ações, o estudo permitiu identificar as dificuldades relacionadas à incorporação do cuidado aos trabalhadores na APS e propor recomendações para melhoria do processo, com destaque para o fortalecimento do Apoio Matricial em Saúde do Trabalhador pelos CEREST e outras instâncias do SUS, bem como do Apoio Institucional dos gestores.

Colaboradores Thais Lacerda e Silva responsabilizou-se pela revisão da literatura, participou do delineamento da metodologia e redação e revisão do texto. Elizabeth Costa Dias participou do delineamento da metodologia, da coordenação do estudo de campo e da redação do manuscrito. Vanira Matos Pessoa, Luisa da Matta Machado Fernandes e Edinalva Maria Gomes participaram do delineamento da metodologia, realizaram a pesquisa de campo e a revisão final do texto.

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17. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2007. 18. Knauth DR, Couto MT, Figueiredo WS. A visão dos profissionais sobre a presença e as demandas dos homens nos serviços de saúde: perspectivas para a análise da implantação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2617-26. 19. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2009a. 20. Machin R, Couto MT, Silva GSN, Schraiber LB, Gomes R, Figueiredo WS, et al. Concepções de gênero, masculinidade e cuidados em saúde: estudo com profissionais de saúde da atenção primária. Cienc Saude Colet. 2011; 16(11):4503-12. 21. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Saúde da Família: avaliação da implementação em dez grandes centros urbanos: síntese dos principais resultados. 2a ed. Brasília, DF: MS; 2005. 22. Organización Mundial de la salud. Atención Primaria de Salud. Informe de la Conferencia Internacional sobre Atención Primaria de Salud; 6-12 de Septiembre de 1978; Alma-Ata, URSS. Genebra: OMS; 1978. 23. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco Brasil, Ministério da Saúde; 2002. 24. Shimizu HE, Carvalho Junior DA. O processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e suas repercussões no processo saúde-doença. Cienc Saude Colet. 2012; 17(9):2405-14. 25. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. 26. Wimmer GF, Figueiredo GO. Ação coletiva para qualidade de vida: autonomia, transdisciplinaridade e intersetorialidade. Cienc Saude Colet. 2006; 11(1):145-54. 27. Portaria nº 3.252, de 22 de dezembro de 2009. Aprova as diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios e dá outras providências. Diário Oficial da União, 22 Dez 2009. 28. Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. Construindo ações de saúde do trabalhador no âmbito das Superintendências e Gerências regionais de saúde. Belo Horizonte: SES; 2011. 29. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005, a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União, 25 Jan 2011. 30. Portaria Interministerial nº 2.087, de 1º de setembro de 2011. Institui o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica. Diário Oficial da União, 1º Set 2011. 31. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.940/2010. Altera o inciso III do artigo 10 da Resolução CFM nº 1.488, de 6 de março de 1998, que dispõe sobre normas específicas para médicos que atendam o trabalhador. Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2010. 32. Portaria nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Diário Oficial da União, 20 Ago 2007.

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Lacerda e Silva T, Dias EC, Pessoa VM, Fernandes LMM, Gomes EM. La salud del trabajador en la atención primaria: percepciones y prácticas de equipos de salud de la familia. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):273-87. La intención fue conocer la percepción de equipos de salud de la familia sobre las relaciones trabajo-salud-enfermedad y identificar estrategias, facilidades y dificultades para proporcionarles cuidados a los trabajadores. Se realizaron grupos focales con profesionales de unidades básicas de las ciudades brasileñas de: Palmas (Tocantins); Sobral (Ceará) y Alpinópolis (Minas Gerais). Se utilizó el análisis de contenido de Bardin para el análisis de los datos. Los resultados revelan que las acciones de cuidados a los trabajadores son puntuales y poco articuladas con las directrices de la Política Nacional de Salud del Trabajador. Entre las dificultades están: sobrecarga de trabajo, mala preparación de los equipos para las cuestiones que envuelven las relaciones trabajo-salud-enfermedad, falta de apoyo institucional. Se identificó el apoyo matricial a los equipos de salud de los Centros de Referencia en Salud del Trabajador y otras instancias del SUS como facilitador de las acciones.

Palabras clave: Salud laboral. Sistema Único de Salud. Atención primaria de la salud.

Recebido em 16/09/13. Aprovado em 22/12/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0647

Ética e comprometimento do profissional da saúde pós-reestruturação produtiva numa região metropolitana do sul do Brasil Doris Gomes(a) Flávia Regina Souza Ramos(b)

Gomes D, Ramos FRS. Ethics and healthcare professionals’ commitment subsequent to productive restructuration in a metropolitan region in southern Brazil. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):289-300.

This paper aimed to analyze the relationship between ethics and healthcare professionals’ commitment subsequent to productive restructuration. This was a qualitative exploratorydescriptive study on thirty professionals (nurses, doctors and dentists) in a metropolitan region in southern Brazil. The relationship between ethics and commitment has been revealed to be a centerpiece for current healthcare and is also related to some aspects of contemporary social transformations, with the traditional beneficentpaternalistic commitment of the professions and the different logics in the public-private mix. When professionals are unable to subjectively and collectively deal with situations that compromise work ethics, space for moral distress is opened up. The search for humans who do not see themselves in isolation from the whole picture, but as subjects who think and can build an ethical differential in their “humanized” and committed work, seems significant in relation to building quality and excellence in healthcare.

Este artigo analisa a relação entre ética e comprometimento do profissional da saúde, pós-reestruturação produtiva. Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo exploratório-descritiva com trinta profissionais (médicos, enfermeiros e odontólogos) de uma região metropolitana do sul do Brasil. O debate sobre ética em torno do comprometimento desvelado no discurso profissional parece peça-chave na contemporaneidade e mantém relação com alguns aspectos das transformações contemporâneas, com o tradicional compromisso beneficente-paternalista das profissões e com as diferentes lógicas no mix público-privado. Quando o profissional não consegue lidar subjetiva e coletivamente com situações que comprometem a ética no trabalho, abre-se espaço ao sofrimento moral. A busca por um humano que não se perceba isolado do todo, mas como um sujeito que pensa e que pode construir um diferencial ético no seu trabalho, “gentificado” e comprometido, parece significativa para a construção da qualidade e excelência no serviço em saúde.

Keywords: Ethics. Healthcare professional. Job market.

Palavras-chave: Ética. Profissional da saúde. Mercado de trabalho.

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(a) Soebras/Funorte (Associação Educativa do Brasil/ Faculdades Unidas do Norte de Minas). R. Rafael da Rocha Pires, 3913, Sambaqui. Florianópolis, SC, Brasil. 88051-001. dorisgomes@bol.com.br (b) Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. flaviar@ccs.ufsc.br

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ÉTICA E COMPROMETIMENTO DO PROFISSIONAL DE SAÚDE ...

Introdução A reestruturação produtiva como resposta à crise do welfare state, já em fins da década de 1960, impulsiona uma nova concepção de saúde: as novas técnicas e tecnologias, construídas e incorporadas à fase consumista do ‘ser saudável para produzir mais’, fortalecem o modelo liberal e de mercado na saúde1. Essa intensa incorporação tecnológica da reestruturação significou novos postos, cargas e relações de trabalho, bem como, novos processos de precarização, com forte potencial de acumulação de capital2. Entretanto, em plena débâcle do welfare state, o Sistema Único de Saúde (SUS) é conquistado pela sociedade brasileira como direito de cidadania. A resistência do movimento de saúde coletiva ao chamado complexo médico-industrial possibilita avanços e recuos na construção do SUS e impulsiona mudanças nos paradigmas assistenciais, consolidando lógicas distintas: uma influenciada por mecanismos de mercado, outra pela lógica das necessidades sociais, que mobiliza os profissionais a repensarem o seu papel no cuidado. Uma dualidade que baliza produtividade e qualidade no ritmo de trabalho no mix público-privado e constrói armadilhas éticas ao profissional da saúde, pela sobreposição de interesses privados sobre os públicos, no repasse – direto ou indireto – de verbas e gerenciamento3. Os parâmetros de saúde tecnologicamente expandida pelo mercado são afrontados por uma ideia ampla de ser humano, perfil civilizatório e vida, que desencadeia o debate sobre a necessidade de uma ética aplicada às novas questões do avanço tecnológico e ações em saúde. Na América Latina, esse debate se transforma num novo campo de formulações pautadas nas vulnerabilidades sociais, direitos humanos, poder e justiça4. Este artigo objetiva analisar os problemas éticos no modo como vêm sendo produzidas as ações e serviços em saúde no mix público-privado, focalizando o comprometimento do profissional com a essência do seu trabalho: o ser humano.

Metodologia Pesquisa qualitativa do tipo exploratória descritiva, com entrevista individual semiestruturada, com trinta profissionais enfermeiros, médicos e odontólogos (10 cada) da região metropolitana de Florianópolis, com experiência de trabalho no mix público-privado. Iniciou-se com profissionais do serviço público vinculados a uma Secretaria de saúde da região, e os sujeitos subsequentes foram se definindo pelo método bola de neve: um entrevistado recomenda outro, repetindo-se o processo até atingir a saturação de dados. O projeto foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina. Utilizou-se um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para anuência, que ocorreu de forma voluntária, observando-se a Resolução CNS 196/96. Os sujeitos são reconhecidos pela letra P seguida de numeração. Diversificadas experiências de trabalho foram abrangidas no setor público: oito entrevistados de hospitais públicos, 11 de unidades básicas de saúde, 11 de Centros de especialidades odontológicas ou Unidades de pronto atendimento; e no privado: oito entrevistados de hospitais privados, um de laboratório de análises clínicas e 21 de clínicas ou consultórios. Os resultados foram analisados pela análise textual discursiva5 que preconiza: desmontagem dos textos em unidades de base e estabelecimento de relações entre elas, formando categorias. Organização de um metatexto com combinação de sentidos e ciclo de análise do metatexto, gerando resultados. A categorização foi auxiliada por um software para pesquisas qualitativas, o ATLAS.ti - The Qualitative Data Analysis Software.

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Resultados e discussão Ética e comprometimento na contemporaneidade “uma das coisas que acontece hoje é esta nova geração Y, Z, que não tem comprometimento. Se o Hospital A oferece mais, vai para o A “estou querendo sempre instituições novas e com salários melhores,”, aí independe se é particular ou pública, se não der certo aqui eles não estão ligando. Já vem muito bem informados, daí qualquer coisa é assédio moral... eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas às vezes esquecem um pouco dos deveres, ex. “eu estava cansada, tinha muito paciente (plantão até às 19:00) mas às 18:00 me dei ao direito de sair”, e a pessoa se dá ao direito e sai. Não é comprometido, não é ético, é bem complicado e bem engraçado”. (P29)

O debate sobre ética em torno do comprometimento desvelado no discurso profissional parece peça-chave na contemporaneidade e mantém relação com alguns aspectos das transformações contemporâneas: precariedade nas relações de trabalho; luta pela ascensão profissional a qualquer custo, geradora de uma subjetividade competitiva interpares; egoísmo narcísico acima de possibilidades de comprometimento relacional; enfraquecimento da centralidade do trabalho na garantia de direitos sociais e na possibilidade de transformação societária como perspectiva coletiva; nível de informação de direitos levado ao extremo com relação aos deveres; disposição verbalizada de não ir além do prescrito no “uso de si”; dificuldade de se perceber enquanto parte de um todo social ou coletivo de trabalho, na construção de diferentes alteridades; e subsunção do interesse público ao privado. A responsabilidade para com o outro tem potência para ir em direção ao outro desconhecido, especialmente quando entra, na relação, um terceiro: o social percebido como uma comunidade moral. Nesse sentido, expande-se a necessidade de códigos, leis, jurisdições e instituições que possibilitem o senso moral encarnado como justiça social. Uma realidade sobre a velha contradição da relação moral: a singularidade da relação sub judice do coletivo, desafio ético para o qual todos os seres humanos estão expostos pela própria presença dos outros. Pergunta-se: os interesses sociais são pauta na singularidade da relação profissional/paciente? “o pessoal que acaba vindo para o serviço público, não sei se é falta de treinamento, falta de vontade, mas não quer fazer o serviço que a gente fazia quando entrou, tem aversão, é um profissional incompleto”. (P1)

Há uma percepção de mudança do comprometimento profissional em relação a uma nova geração que entra no serviço. Segundo Bauman6, nas sociedades modernas, os sistemas de regulação normativa tradicionais passam por um processo de crise, e as pessoas parecem buscar, cada vez mais, se “libertar” de condutas humanas previamente padronizadas pelo social, transferindo-as para a esfera das políticas de vida individuais. O privado sobrepõe-se ao público num movimento de anexação: “a grandiosa visão social foi cindida numa multidão de valises individuais e pessoais, muito semelhantes, mas decididamente não complementares. Cada uma feita na medida da felicidade dos consumidores” 6. Seguir o princípio do máximo prazer significa relegar, à realidade social, papel defensivo, uma postura sustentada pela promessa de consumo infinito. Um processo que torna cada um responsável por fixar seus próprios limites, como por instinto reflexivo. Ao mesmo tempo em que o ser humano necessita e deseja viver em sociedade para abrigar-se das incertezas da vida, cada vez mais, os laços inter-humanos tradicionais perdem sua proteção institucional e transformam-se em obstáculo a ser superado na corrida pela liberdade hedonista. Uma contradição que acaba por relativizar a ética em cada momento dado, sob um hedonismo levado ao extremo pelos interesses de mercado, que foge do “dever ser” social e historicamente construído. Uma individualização que não é uma “descoberta” do mundo contemporâneo, mas que aparece como aspectos subjetivo-biográficos da civilização, em especial, na industrialização capitalista.

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“má vontade é assim: eu to aqui para cumprir as minhas 8 horas, tenho uma agenda para cumprir de 12 pacientes e não vou cumprir nada além disso. Alguns são assim: ah, hoje estou de bom humor, então faço tudo. Ah, hoje acordei com dor na unha, então não faço nada, nem olha pra mim”. (P25)

Ao se desonerar das estruturas e vínculos tradicionais, o indivíduo recebe, em troca, as pressões do mercado de trabalho, significando dependência ao mercado, ao consumo de massas atomizado e às padronizações e controles contidos em ambos7. A ciência, cada vez mais, se volta ao avanço tecnológico subsumido ao imperativo da lucratividade, e serve à construção de necessidades ainda mais abstratas8. Uma normalização das vidas que é pautada na ciência e na promessa de consumo eterno. Uma certeza científica que também produz riscos e uma autorreflexividade que a desnuda. O próprio debate bioético como necessidade gerada pelas ameaças do avanço técnico-científico, fabricando uma moral para a ciência, assume seus próprios riscos e limites9. Ao mesmo tempo em que a informação nunca esteve tão presente no cotidiano das pessoas, aproximando, de forma nunca antes vista, mundos, civilizações, crenças, culturas e economias; e possibilitando um cidadão conectado, em rede, coletivo, multicultural; a exacerbação de desejos de consumo nunca satisfeitos, permeados por interesses particularistas naturalizados, constrói processos de desapego emocional e de possíveis conteúdos humanos de verdade. Num mundo comandado pelo dinheiro, as relações de comprometimento que não demandam vínculo puramente financeiro são secundarizadas, como o vínculo afetivo, familiar, socialmente hierárquico, por maturidade ou sabedoria – que, em seu fim último, significam laços sociais e humanos. É ampliado o espaço da ética da competitividade, ou melhor, da antiética naturalizada como essência humana, num relativismo preso ao momento do aqui e agora ou a interesses privatistas. Os novos modelos de produção, ao mesmo tempo em que exigem um trabalhador mais criativo e reflexivo, capturam a subjetividade no trabalho a partir da precarização nas condições e relações. Sentimentos de medo e insegurança, configurados na perda do poder protetor do trabalho, contribuem para despedaçar redes de solidariedade, tão necessárias à reflexão ética. Há um contexto de falta de perspectivas sociais transcendentes à ordem estabelecida, com intensificação do individualismo em detrimento da valorização do sujeito e da identidade de classe, colocando, em xeque, a viabilidade de projetos coletivos na saúde. Surge uma ausência de comprometimento como fato do mundo moderno, efeito e causa de um processo contraditório: o isolamento coercionado dos indivíduos, que dificulta um olhar reflexivo sobre si mesmo, enquanto parte de um todo social e histórico, acontece num mundo construído cada vez mais em redes, em espaços de intercomunicação. A utopia do resgate do “dever ser” em congruência com o próprio “ser” se constitui num movimento essencial no cotidiano de trabalho na saúde, reposicionando a perspectiva do diferente, do revolucionário, do humano para além do dinheiro, como indivíduo solidário e numa relação comprometida.

Comprometimento no mix público-privado “no privado outro dia eu comentei: ah, fulano tu conheces? Conheço. E aí como ele é? Um espetáculo de funcionário. O que? Como assim? Se ele nunca trabalhou uma semana completa, sempre falta, falta com agenda cheia, não avisa, eu ligo e o celular está desligado, daí dois dias ele aparece como se nada tivesse acontecido. Quer dizer, a pessoa tem uma postura no setor privado totalmente diferenciada do público”. (P25)

Alguns profissionais e situações cotidianas são citados como reveladores de comprometimento diferenciado no mix público-privado. No dicionário, o comprometimento aparece descrito como ato de se comprometer, ou seja: responsabilizar-se, envolver-se, empenhar-se10. Como conteúdo do juramento de Hipócrates, significa a promessa de fazer certas coisas e evitar outras, por princípio, seria um vínculo profundo que não pode ser rompido ou que se rompe com suma dificuldade. Mais que um 292

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contrato civil ou mercantil, seria um tratado não borrável como uma aliança. Para Diego Gracia,1 a busca da excelência profissional associada a características morais, como o comprometimento, diferenciou tradicionalmente as profissões de outros papéis ocupacionais. Um tipo de comprometimento ético com justificação moral dos atos no paternalismo beneficente, um paradigma clássico em crise, que segue sentidos diferenciados: 1 de excelência profissional associada à busca por ascensão no mercado de trabalho, ligada à competitividade e conhecimento técnico. Os ofícios, como as profissões, parecem imbuídos da busca pela excelência numa visão empresarial ou liberal de compromisso, que significa um saber-fazer assumido como ascensão e status. Um ideal de sucesso associado a uma superioridade de classe como prática social, identificada com o capital, não com o trabalho11. Um condicionante da ética transformado não somente pelo respeito ao outro como fim em si mesmo, mas, contraditoriamente, pela monetarização da vida, que incorpora o valor de troca nas relações humanas, coisificando-as. No Código de Defesa do Consumidor, ocupação e profissão já não se diferenciam como bom serviço e serviço profissional beneficente, especialmente quando há promessa de resultado. O que, por um lado, protege e, por outro, banaliza: os procedimentos servem igualmente ao consumo; 2 mudanças no conceito de beneficência: beneficiar os outros se impõe como princípio bioético pautado numa prática com sentido de proteção e respeito à autonomia. Para Beauchamp e Childress,12 o princípio da beneficência é compreendido, na atualidade, como cálculo social: refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros, princípio utilitarista criticado, muitas vezes, por parecer permitir que os interesses sociais imperem sobre interesses e direitos individuais. Na bioética latino-americana, esta beneficência incorpora a relação existente entre vulnerabilidades sociais e senso de justiça, seguindo uma compreensão que parte do cuidado e do direito à proteção. A pauta da solidariedade, dos sentimentos e da reflexão incorporada ao debate ético coletivo em saúde, abarca os determinantes e condicionantes das desigualdades sociais e constrange possibilidades de ação que rompem a ética13. Segundo Zizek14, a construção do self só é possível numa relação de pertencimento a uma comunidade, na participação da dimensão universal da esfera pública como indivíduos singulares extraídos de uma identificação comunitária substancial, ou opostos a ela. A construção desta consideração com o outro, percebido como comunitário/social, deve ser resgatada de uma “totalização autonomista” construída para captação da subjetividade dos trabalhadores nos novos modelos de produção. Uma pauta de valorização do coletivo e interesses públicos resgata a construção do indivíduo si, na relação com o outro: solidário e comprometido com as diferentes alteridades, novas identidades de classe e preceitos de justiça social. Assim, problematiza-se o comprometimento na saúde: Na valorização profissional interpares “tive 3 profissionais que trabalhavam comigo, aí você chega na clínica e o teu sócio está atendendo paciente que era teu, isso é péssimo”. (P3) “têm muitos colegas que criticam o trabalho do outro para ganhar dinheiro, para pegar o paciente, isto acontece muito”. (P4) “o resultado não depende só de mim, depende de toda a equipe, da continuidade do trabalho, então, não adianta eu me empenhar o máximo possível e o meu colega não ter o mesmo empenho”. (P22)

A relação de comprometimento com o outro profissional significa que o que eu faço, ou penso, faz diferença não apenas para “mim”. Um mundo sob a égide do mercado e da insegurança no trabalho, adicionado a uma forte relação de risco entre poder e conhecimento subsumidos aos mesmos interesses mercadológicos, fornece solo fértil para configuração de crescente ressentimento interpares. A ética do dever ser perde espaço para relações dificilmente preenchidas por laços fraternos e coletivos, tornando-se presa fácil do hedonismo. Mas, contraditoriamente, há construção de espaços de saber/ COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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fazer alternativos e busca de novos espaços públicos, por novas identidades coletivas. Novos espaços relacionais, interdisciplinares e de autoprodução no trabalho mantêm a ética como utopia de um novo sujeito: que reflita sobre si mesmo na sua relação com o outro e altere positivamente o curso da história do trabalho em saúde. Na singularidade profissional-paciente “às vezes o da rede privada fica indo de profissional em profissional até achar aquele que fala o que ele quer ouvir, que nem sempre é o certo, faz uma maquiagem, inventa coisa para poder ganhar o cliente, faz o exame que a mãe quer, que o pai quer, tem plano, tem dinheiro para pagar, faz, você acaba cedendo para não perder o paciente”. (P17)

Um processo decisório é justo e aceitável, ou seja, ético, em virtude dos princípios que representa e na perspectiva de produzir boa decisão ou bom resultado como consequência. O relacionamento entre profissional e paciente é pautado na confiança, por isso se distingue das práticas comerciais baseadas em contratos e relações mercantis. Assim, o entendimento de reciprocidade parece um entendimento mais acertado, não como retribuição em base a um compromisso pessoal, mas como obrigação de beneficência geral para com os pacientes e a sociedade. O princípio da beneficência incorpora a autonomia do paciente, pois os interesses do paciente têm relação com os deveres para com eles, mas a suplanta, quando agir no seu melhor interesse signifique relevar um desejo irresponsável, mesmo que percebido pelo paciente como necessidade. Segundo Adela Cortina15, nas relações dialógicas da busca pelo consenso, a realidade disforme tem de ser substituída por situações ideais de diálogo, para que a manipulação ou alienação dos participantes não possibilite que interesses particulares sejam acatados como universais. Pergunta-se: isto seria factível num contexto repleto de iniquidades, interesses privatistas e coerção para o consumo? Como manter acordos onde há falta de comprometimento com o outro social? Como haver uma construção dialógica se o comprometimento é condição sine qua non nos possíveis acordos em comum? No comprometimento institucional “no privado não sei se o pessoal é comprometido ou se é porque se não for trabalhar, der muito atestado, é demitido. Não sei qual é a diferença, mas aqui eu vejo que o pessoal tem bem menos compromisso”. (P27) “a ética é um pouquinho complicado porque a ética é basicamente a moral da coisa, então, você pode dizer que não há um estímulo para fazer com que o profissional produza bastante, e ele não produzir muito, não é antiético e também não é ilegal”. (P19)

Estratégias gerenciais individualizantes facilitam incorporações fragmentadas de novas tecnologias, especializações, autonomias herméticas e hierarquias arraigadas, que conduzem a uma descaracterização do valor socializante do trabalho, fazendo se perder sua dimensão altruísta. A quebra dos espaços público/sociais como referência para além do trabalho é transformada em uma cobrança simples e objetiva de produtividade, ou seja, há uma alienação do próprio sentido humano do trabalho. O rompimento dos aparatos coletivo-sociais, com estabelecimento de uma sociabilidade restrita aos interesses particulares da empresa privada, é repassado para o serviço público como sinônimo de modernidade administrativa. Os valores do serviço público estatal de engajamento, lealdade e dedicação, descritos pelos trabalhadores franceses como qualidades de servidores identificados com sua instituição ou missões16, são sistematicamente abalados por essa individualização com referência na excelência profissional voltada ao lucro. Os coletivos perdem a capacidade de compartilhamento de valores ligados a uma experiência comum – sindical, política ou profissional. Uma fragmentação que vulnerabiliza, produzindo uma precariedade subjetiva que relativiza a ética, causa sofrimento no trabalho e tantas doenças da alma. 294

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O profissional acaba por assumir “práticas possíveis” para se manter minimamente ético em realidades que coercionam a tomada de decisões, driblando o sofrimento moral em situações como: imposições gerenciais ou ações ligadas ao clientelismo político – ainda relativamente comum na realidade brasileira. “falando da ética, o que ocorre é essa relação do político, eles acham que estar na coordenação significa ter que fazer as coisas independente da obrigação com a profissão. Mas eu busco uma tática muito simples, quando me pedem qualquer coisa para ser atendida fora dos padrões, eu mando que venha por escrito, a gente já tem muito tempo rodado”. (P12)

Um ethos profissional público sofre historicamente os condicionantes da burocracia patrimonialista – origem do clientelismo, nepotismo e corrupção; dos formatos administrativos autoritários e centralizadores; e, mais modernamente, dos interesses privatistas neoliberais a partir de ações deliberadas de descrédito do público/estatal – construindo códigos invisíveis deletérios quando enraizados na moral comum. Um sentido de compromisso social que sofre os reveses do tempo e constrói, subliminarmente, distorções no sentido positivo da estabilidade e corporativismo, abrindo espaço para a constituição de uma subjetividade de “corpo mole”, baixa produtividade, passividade e falta de comprometimento. “vejo de anti-ético é a falta de vontade de atender e, às vezes, a restrição de atendimento, não por falta de condições materiais, mas por falta de boa vontade”. (P2) “no serviço público tem muito empurra-empurra, eu noto de profissionais que não querem fazer o trabalho, daí encaminham para outro. O profissional diz que não pode fazer, mas é corpo mole”. (P4)

Um ambiente de trabalho coletivamente mais justo, nos espaços macro e micro do fazer saúde, a partir de uma visão inclusiva do profissional e do usuário, com ações conscientes de respeito às alteridades e às necessidades sociais sob o ponto de vista da justiça e da proteção, portanto, na relação do sujeito trabalhador com o coletivo/comunitário/social, se contrapõe a uma resistência deletéria do corporativo ou individual ao comprometimento ético com sentido amplo/social. As avaliações de gestões que consideram o subjetivo e inclusivo no trabalho17 têm como desafio esta dimensão da ação em saúde: o nível do comprometimento construído dialógico e dialeticamente entre sistema, gestores, pacientes/usuários e profissionais da saúde. Na relação com uma causa coletiva, invisível e mobilizadora “é sempre uma preocupação tu estares tratando o paciente sem pensar no lucro, eu acho que a gente sempre fica pensando assim, se tu poderias fazer melhor pelo paciente público, caso tu tivesses acesso, digamos, brigar por mais alguma coisa que tu achas que seria possível. Mas, no geral a gente vai se virando com o que tem, tentando sempre dar o melhor para o paciente, nem sempre dá”. (P13) “o profissional não está escutando o paciente, ele não está dando atenção ao paciente, eu acho que ele se sente mal remunerado, aí ele faz coisas não tão certas”. (P6)

A forte coerção ideológica fragmentadora das grandes causas humanas, das transformações sociais pautadas em conflitos dialéticos de surgimento do novo, da prevalência da verdade construída coletiva e historicamente como dever ser, faz o mercado ser encarado como parte da natureza humana na contemporaneidade18. Projetos ético-políticos de humanização, já inseridos em vários aspectos da formação e atuação profissional, esbarram num certo vazio instituído no setor público. Há uma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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construção insatisfatória de valores pautados na realidade do outro e não amalgamados ao lucro: comprometimento a partir de que estímulo, baixo salário, falta de material, desvios político-clientelistas? Como pensar o indivíduo/si-solidário, se não se concebe o indivíduo socialmente comprometido? A busca por um humano que não se perceba isolado do todo, mas a partir da dimensão do coletivo como possibilidade-potência ao humano singular, passa pela liberdade das amarras socioeconômicas do trabalho alienado19 e atomizado. Um movimento que ultrapasse as barreiras do individual hedonista segue um reposicionamento do coletivo, chamando o profissional da saúde ao comprometimento com as necessidades sociais, desejo do alternativo e possibilidade real de construção do diferente – num horizonte desenhado por várias mãos, não perdido no vazio do eu isolado. Comprometer-se com o outro, posicionar-se no lugar do outro, solidariamente e com valores não restritos à capacidade de pagamento, constrói um caminho diferente da ideologia do mercado que subsume trabalho, vida, relações, racionalidades, à moeda como valor universal.

Comprometimento e sofrimento moral “como eu sei que faço um serviço decente na rede pública eu me acho mais útil, na rede privada eles tem oportunidade de procurar outro e no público às vezes cai para outro que não deixa nem o paciente sentar, não escuta o que tem de queixa, não faz o que tem que ser feito ou por falta de tempo ou porque este profissional, particularmente, tem um atendimento diferente do público para o privado... aí sei que estou fazendo a diferença aqui”. (P17)

A lógica do serviço público segue um sentido ético de justiça social, beneficência e respeito à autonomia, mas, também, sentimento expressado de amor pelo outro, sentido de proteção e intervenção em situações críticas persistentes. Na contemporaneidade brasileira, dada a relação de embricamento público/privado perpassado pela ideologia do mercado, o debate da ética numa construção intersubjetiva, enquanto sujeito relacional com forte base coletivo/social parece central. Não como ode à pobreza ou ao voluntariado, mas como uma inversão da lógica liberal/privatista na saúde coletiva. O componente coletivo e relacional/humano incorpora o comprometimento como valor positivo, não subsumido ao imperativo da lucratividade/produtividade/ganho secundário, mas como coparticipação solidária e construtora de uma ordem diferenciada: a pública. Um comprometimento ético que considera as vulnerabilidades secundárias como significativas e a proteção como um engajamento livre e comprometido na prática, “o que pode torná-la irrevogável moralmente” 20. Um processo que envolve não somente o planejamento e gerenciamento das políticas públicas, que suscitam um debate em torno da relação singular/universal no sentido dos direitos e das conseqüências dos atos – com certo grau de impessoalidade e impunidade no âmbito mais geral da responsabilização. Mas, também, o papel do profissional da saúde enquanto sujeito moral, com diversos graus de comprometimento com a construção e proteção do bem público. Para Cecílio,21 o conceito de trabalhador moral precisa estar além do “homem funcional”, de um ator que pensa e joga nos espaços predefinidos pelos dirigentes. Ao contrário, um projeto que se permita superar uma normalização de fora para dentro, predizendo o que seria o “bom ato de cuidar”, deveria pressupor que o trabalhador, assim como o usuário, não é uma folha em branco, mas que faz uso de seus espaços de autonomia para realizar sua ação, como sujeito com valores e interesses próprios. Assim, uma margem de autonomia no trabalho deve ser apreendida, pela gestão, como possibilidade real de mudança. Observa-se que a solidariedade (não como caridade), a esperança (de uma história como possibilidade) e as práticas possíveis (como sujeito ético que reflete sobre o seu próprio trabalho e faz além do prescrito) conformam um quadro de resistência que, possivelmente, dribla os problemas materiais e relacionais impostos pela realidade, no sentido de um comprometimento ético positivo – que faz frente a uma realidade social desigual que vulnerabiliza o outro desconhecido. O pertencimento ao microespaço das relações de poder, localizado no consultório ou no ambiente de uma unidade/equipe de trabalho, deve ser ultrapassado pelo pertencimento às normas sociais. 296

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Valores que, no público, não parecem ser impostos ou consentidos, mas solicitados, pois são constitutivos de uma sensação de pertencimento à sociedade e considerados fundamentais na construção da subjetividade que se nutre do outro, como finalidade de todo trabalho, ou seja, ser da sociedade. O resgate da dimensão coletiva no trabalho traduz a satisfação do profissional num espaço de formação de si próprio enquanto sujeito, relacionado diretamente à satisfação do usuário e à mediação ética alcançada. A importância da valorização do profissional não passa somente pelo ganho secundário ou salarial atribuído, mas, também, pela construção de resposta relacional entre usuário, gestão, profissional e sociedade. Assim, espaços bioéticos de debate, como parte integrante da formação continuada e da qualidade ética nas relações, podem construir um comprometimento ético positivo, pois, quando não se lida subjetiva e coletivamente com situações que comprometem a ética no trabalho, abrem-se flancos ao sofrimento moral. “na ESF às vezes a gente fica de mãos atadas... é muito difícil, um atendimento que precisa ou emergencial para um paciente é muito sacrifício, a gente passa trabalho e o paciente mais ainda. Um problema ético da... a palavra não seria instituição, mas de como é formado o sistema de saúde que não o respeita como um ser humano”. (P21) “a gente lida muito com a questão da falta: falta de medicamentos, de atendimento médico, de vaga para exames... acho bem frustrante esta questão de estar dizendo sempre não, não, chega no final do dia e acaba se sentindo mal, acaba deixando a gente decepcionada”. (P25)

Um sofrimento desvelado como desafio: no público aparece subsumido a um conjunto de fatores localizados, em especial, onde a relação profissional/paciente é trespassada por determinações sociais como violência estrutural. O profissional, ao fazer uma relação entre direitos do usuário e as possibilidades de tomada de decisão no que ele julga melhor para o paciente, percebe um relativo desrespeito aos direitos cidadãos, em situações que ferem a dignidade humana como: escassos recursos públicos diante de uma grande demanda; problemas gerenciais do bem público; determinantes sociais do processo saúde-doença; pouca autonomia e poder de pressão do usuário; negação ou atraso em procedimentos terapêuticos; e possibilidade de mercantilização na intersecção público/privado. “às vezes acaba saindo um pouco frustrado do serviço público porque tu vê que o paciente precisa de um exame, pode precisar de um tratamento melhor e infelizmente não tem condição de receber ou, às vezes, não tão rapidamente, aí a gente acaba acostumando com a limitação”. (P14)

Constrói-se um sentimento de impotência associado à impunidade como um problema ético traduzido em sofrimento moral. Um sofrimento decorrente de uma incoerência entre as ações das pessoas e suas convicções, que se traduz num desequilíbrio psicológico ocasionado por sentimentos dolorosos. Ocorrem quando o profissional não consegue executar situações moralmente adequadas segundo sua consciência: “reconhecem uma ação pessoal dificultada por barreiras individual, institucional ou social” 22. Os sentimentos de raiva e tristeza são os mais citados como seus efeitos biopsicossociais, e podem levar ao: conformismo, distanciamento dos doentes, aumento de doenças laborais, depressão, insônia, ansiedade e incapacidade de concentração, sentimentos de culpa, solidão profissional, descontentamento, afastamento ou abandono da profissão23. Algumas compensações são construídas coletiva e individualmente por profissionais “comprometidos”. Mas, algumas vezes, o sofrimento acaba se transformando em uma frustração muda, que desvaloriza o trabalho e a ação enquanto sujeito ético. Pode resultar em abandono das convicções sobre os direitos do doente, chegando ao erro ou a uma opção de fuga: assumir serviços com menor comprometimento ou aderir à lógica do privado – contrapartida financeira maior e baixo envolvimento social.

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“muitas vezes a gente faz sabendo que não é o ideal, mas para a situação era o que dava para fazer. É o que acontece aqui, muitas vezes um paciente vem fazer endo de molar, não tem condições de pagar nem a passagem de ônibus, mas depois vai ter que fazer uma coroa em cima e ele já diz que não tem como fazer se não for de graça, aí tu ficas assim... esse dente amanhã vai ser extraído porque ele não vai dar seqüência ao tratamento”. (P10)

O sofrimento moral aparece como uma violência constitutiva: o molar, temporariamente inadequado, impõe suas restrições às possibilidades de respostas dadas na ação profissional, o que reforça o mito do fracasso do serviço público. Como subproduto dessas restrições, um aporte coletivo é necessário para construir uma integridade moral dos envolvidos, a partir de espaços formadores, com debate ético sobre temas variados. Não somente no sentido da punição à determinada ação moral, mas como construção de valores inter e transdisciplinares para além de códigos deontológicos. Para Paulo Freire,24 uma pedagogia do compromisso requer capacitação para intervir, mudar o mundo, transformá-lo, fazê-lo mais belo ou mais feio, nos tornando, assim, seres éticos. A ideologia fatalista de uma realidade imutável segundo a qual não há mais nada a fazer deve ser substituída por uma disposição para mudança nas formas de luta, não para desistência da luta. O sujeito/profissional da saúde como o educador popular, parte de uma posição, de um lugar com perspectiva diferente: deve discutir com o povo, pesquisar seus níveis de saber, como o povo conhece. Um diálogo necessário entre o saber popular e o científico permite uma nova valorização dos sujeitos. Com intercomunicação a partir de troca de saberes e coprodução de uma relação diferenciada: comprometida com a transformação de realidades, com a capacidade de reflexão dos sujeitos e com a dignidade do usuário, do sistema público de saúde e do próprio profissional. Assim, a formação continuada, no sentido da “gentificação”, contrapõe o comprometimento ao fatalismo, e segue o rumo da tomada de consciência do mundo, dos interesses historicamente negados, da presença do político e do libertário, dos sujeitos autônomos como fazedores de história.

Conclusão Uma visão fragmentada da realidade, estimulada pela tríade necessidade/desejo/consumo, complexifica construções contemporâneas de comprometimento. As relações singulares entre si e deste particular com o todo, negado, estabelece o “é o que há” como ideologia, suscitando alguns questionamentos: o que é realmente humano sem estar impregnado da concorrência, do mal-estar, da crise existencial e da solidão coletiva que acompanha o mundo moderno? Como haver comprometimento sem doação de si e confiança? Como haver ética sem comprometimento? O debate em torno da ética, do incremento da qualidade e da excelência na lógica do serviço público parte de uma realidade de trabalho com imbricamento de interesses público-privados, mais visível em regiões com maior incorporação tecnológica, construção de amplo aporte de convênios e seguros privados em saúde, formação de redes de serviços e duplo vínculo trabalhista. Um debate que precisa considerar: valorização do profissional como sujeito dos processos construtivos em saúde; vulnerabilidades sociais e individuais; fortalecimento da satisfação no trabalho; construção de uma excelência do público não subsumido ao imperativo da lucratividade ou ao ideal liberal/privatista; construção de uma intersubjetividade profissional que permita uma percepção de si enquanto parte singular de um coletivo de trabalho e de um todo social; respeito às diferenças; e engajamento às necessidades coletivas. O comprometimento do profissional com o coletivo/social, estabelecido no diálogo entre o saber popular e o científico, pode resgatar um humano que não se perceba isolado do todo, mas como um sujeito que pensa e que pode construir um diferencial ético no seu trabalho. Ao menos enquanto os seres humanos perecerem ao mesmo esquema capitalístico de sociedade – ainda que contemporâneo – , que não possibilita a identificação entre prazer e dever a partir da superação dos seres humanos como mercadorias, em relações subsumidas às distinções de classe. Aponta-se o debate bioético inter e transdisciplinar como necessário ao entendimento das mudanças operadas no trabalho em saúde e na construção de um novo comprometimento profissional: gentificado e referenciado no corpo social. 298

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Gomes D, Ramos FRS

Colaboradores Doris Gomes trabalhou na concepção e redação do artigo. Flávia Regina Souza Ramos foi a responsável pela revisão crítica do manuscrito.

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ÉTICA E COMPROMETIMENTO DO PROFISSIONAL DE SAÚDE ...

21. Cecílio LCO. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):345-51. 22. Barlem ELD, Lunardi VL, Lunardi GL, Dalmolin GL, Tomaschewski JG. Vivência do sofrimento moral na enfermagem: percepção da enfermeira. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(3):681-8. 23. Lunardi VL, Barlem ELD, Bulhosa MS, Santos SSC, Lunardi Filho WD, Silveira RS, et al. Sofrimento moral e a dimensão ética no trabalho da enfermagem. Rev Bras Enferm. 2009; 62(4):599-603. 24. Freire P. Pedagogia do compromisso. São Paulo: Villa das Letras; 2008.

Gomes D, Ramos FRS. Ética y compromiso del profesional de la salud post-reestructuración productiva en una región metropolitana del sur de Brasil. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):289-300. El objetivo de este artículo es analizar la relación entre ética y compromiso del profesional de la salud post-reestructuración productiva. Una encuesta cualitativa del tipo exploratorio-descriptiva realizada con treinta profesionales (médicos, enfermeros y dentistas) de una región metropolitana del sur de Brasil. La relación entre ética y compromiso muestra ser una pieza clave de la salud en la actualidad y se relaciona con algunos aspectos de las transformaciones sociales contemporáneas, con el tradicional compromiso de beneficencia-paternalismo de las profesiones y con las diferentes lógicas en el mix público-privado. Cuando el profesional no consigue enfrentar de forma subjetiva y colectiva situaciones que comprometen la ética en el trabajo, se abre espacio para el sufrimiento moral. La búsqueda por un ser humano que no se perciba totalmente aislado, sino como un sujeto que piensa y que puede construir un factor de diferencia ético en su trabajo, “personalizado” y comprometido, parece significativo para la construcción de la calidad y de la excelencia en el servicio de la salud.

Palabras clave: Ética. Profesional de la salud. Mercado de trabajo.

Recebido em 23/07/13. Aprovado em 25/11/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0754

Profissionais de saúde e o aborto: o dito e o não dito em uma capacitação profissional em saúde

Adriana Lemos(a) Jane Araújo Russo(b)

Lemos A, Russo JA. Healthcare professionals and abortion: what is said and not said in a professional healthcare capacitation. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):301-12.

The aim of this study was to analyze the perspective of professionals regarding abortion and its relationship with professional practice. These professionals participated of a course of The Women’s Comprehensive Healthcare/ Contraception Program. It is a descriptive study with a qualitative and ethnographic approach involved participant observation, application of questionnaires and interviews with 11 healthcare professionals. The issue of abortion was addressed within the course in a problem-raising and dialogical manner, as a public health problem. In general, the predominant discourse during the theoretical module of the course was against the practice of abortion via arguments of a religious nature. Nevertheless, this stance became relative at the time of the interviews. Even if only partially, the course provided the group with a process of reflection on their professional practice, which is an important factor for those involved in the healthcare professionals’ education.

O estudo objetivou analisar a visão de profissionais de saúde sobre aborto e sua relação com a prática profissional. Essas profissionais participaram de um curso do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher/Contracepção. Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa e etnográfica, utilizando observação participante, aplicação de questionários e entrevistas com 11 profissionais de saúde. O tema aborto foi abordado, no curso, de forma problematizadora e dialogal, como um problema de saúde pública. De forma geral, o discurso predominante durante o módulo teórico do curso foi pelo posicionamento contrário à prática do aborto via argumentos de natureza religiosa. Entretanto, este posicionamento se relativizou no momento das entrevistas. Ainda que parcialmente, o curso propiciou ao grupo um processo de reflexão sobre sua prática profissional, fator importante para os que estão envolvidos em capacitação de profissionais da saúde.

Keywords: Induced abortion. Sexual and reproductive rights. Professional education. Healthcare professional.

Palavras-chave: Aborto induzido. Direitos sexuais e reprodutivos. Capacitação profissional. Profissional de saúde.

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(a) Departamento de Enfermagem de Saúde Pública, Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rua Dr. Xavier Sigaud, nº 290. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22290-180. adrianalemos@unirio.br (b) Departamento de Ciências Humanas e Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. jane.russo@gmail.com

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Introdução O movimento feminista e de mulheres, há pelo menos vinte anos, reivindica o enfrentamento da questão do aborto não só como um problema de saúde pública, mas como uma questão de cuidado da saúde e dos direitos humanos, sobretudo nos países onde a interrupção da gravidez é tipificada como crime – caso do Brasil. Este artigo é um recorte atualizado de uma pesquisa de doutorado, que teve como objetivo: descrever o enfoque dado ao tema do aborto durante um treinamento para profissionais da rede básica de saúde do Município do Rio de Janeiro, e analisar a visão das profissionais sobre o aborto e sua relação com a prática profissional. Pesquisas com metodologias variadas reforçam a necessidade de se abordar o aborto como um problema de saúde pública1,2. Nas diretrizes normativas do Ministério da Saúde, o aborto é apresentado como um dos principais temas da agenda internacional no que diz respeito à saúde e aos direitos reprodutivos3. No Brasil, a interrupção da gestação só é permitida nos casos de risco de vida materna ou quando a gestação for resultado de violência sexual (estupro), devendo ser pautada na documentação necessária para garantir a legalidade da assistência – Artigo nº 128, I e II do Código Penal4. Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou uma ampliação do permissivo legal que trata da interrupção da gravidez, incluindo, nos casos permitidos, a anencefalia fetal5. Mulheres que buscam os serviços de saúde por complicações devido à realização de aborto de forma insegura são, muitas vezes, vítimas de preconceito dos profissionais que as atendem6. O atendimento tende a ser punitivo e discriminador, gerando, nas mulheres, sentimentos de insegurança, angústia, culpa e humilhação, num flagrante desrespeito às diretrizes que preconizam o direito de todos a uma assistência humanizada e de qualidade. Não raro, os profissionais de saúde utilizam seus próprios critérios morais em suas práticas assistenciais, e adotam ações punitivas em seu atendimento às mulheres que praticam o aborto, agindo como verdadeiros juízes2. Um estudo realizado em Salvador (Bahia), com profissionais de um hospital que realiza o aborto previsto por Lei, apontou como representações mais recorrentes sobre aborto: a criminalização; o estigma por grupos religiosos; o treinamento e a falta de informações na formação. Demonstrou ainda a interferência das relações de gênero no atendimento nos casos de aborto provocado7,8. Pesquisa realizada em cinco estados brasileiros das regiões Nordeste, Centro-oeste e Sudeste concluiu que a assistência a mulheres que buscam serviços de saúde no caso de aborto provocado é desumanizada, discriminatória e estigmatizada6. Dados de um dossiê sobre aborto inseguro no Estado do Rio de Janeiro destacam que a violência se traduz: no retardo do atendimento, na falta de interesse das equipes em escutar e orientar as mulheres, ou, mesmo, na discriminação explícita, com palavras e atitudes condenatórias e preconceituosas. É importante enfatizar que, em geral, são as mulheres pobres que abortam em condições de total insegurança, sofrendo com as graves consequências daí decorrentes, o que reforça as desigualdades sociais no atendimento em saúde9,10. Essas posturas devem ser compreendidas como parte integrante das relações de gênero tal como se expressam no atendimento dos serviços de saúde, associadas a valores morais e religiosos, resultando na estigmatização da mulher que aborta. Segundo Goffman11, o estigma diz respeito aos atributos considerados indesejados pela sociedade. Dentre os três tipos de estigma apresentados por Goffman11, podemos dizer que o abortamento se inclui naquele que trata dos desvios de caráter, na medida em que as mulheres que desejam interromper ou, de fato, interrompem uma gravidez, negam os ideais de feminilidade12, essenciais para a formação do caráter feminino. É importante enfatizar que o cuidado à mulher que interrompe a gravidez diz respeito à garantia do direito à saúde, que é constitucional. O profissional de saúde, no exercício de sua prática profissional, seja na atenção hospitalar ou na atenção básica, é representante do Estado, e seus valores não deveriam sobrepor-se à Lei. Nessa perspectiva, quando uma mulher que provocou um aborto é mal atendida nos serviços públicos de saúde, seus direitos reprodutivos estão sendo violados. O aborto provocado fora dos limites da lei aponta para uma falha na atenção a esse direito, ou seja, para o caso de uma mulher (ou um casal) que teve pouco ou nenhum acesso à informação e aos meios possíveis de controle reprodutivo.

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O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), implantado no Município do Rio de Janeiro na década de 1990, tinha justamente como objetivo incorporar os direitos reprodutivos ao programa de atenção à saúde da mulher. Sua implantação, nesse momento, deveu-se ao fato de profissionais de saúde ligadas ao movimento feminista estarem à frente da Gerência do Programa da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (GPM-SMS/RJ). Entre as medidas então tomadas, destacou-se a criação de um Centro de Treinamento em Atenção Integral à Saúde da Mulher – Espaço Mulher, que mantinha, entre suas atividades, a realização do curso PAISM/Contracepção, ministrado por uma equipe multiprofissional (enfermeiras, médica, educadora, psicóloga e assistente social), para profissionais de nível Superior (medicina, enfermagem e serviço social), com carga horária de 92 horas, com módulo teórico e prático. Utilizando uma metodologia participativa, o curso buscava enfocar as questões de gênero e a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos.

Percurso metodológico O estudo que apresentamos neste artigo foi conduzido no Espaço Mulher, local de realização do módulo teórico do curso de PAISM/Contracepção. Foi um estudo de cunho descritivo, utilizando uma abordagem qualitativa na perspectiva etnográfica13. No primeiro dia do curso, realizado em meados dos anos 2000, foi aplicado um questionário para os 22 participantes inscritos, sendo que vinte o preencheram (13 enfermeiras, um enfermeiro, cinco assistentes sociais e uma médica). A observação participante ocorreu por dois meses, duas vezes na semana em período integral. Após o término do módulo teórico do curso, foram realizadas entrevistas gravadas por meio de equipamento digital. A seleção das informantes para as entrevistas foi um processo que aconteceu ao longo do trabalho de campo, e se pautou na análise das respostas aos questionários distribuídos no início e nas atitudes observadas ao longo do treinamento, tais como: ambivalência frente a temáticas consideradas centrais nesta pesquisa, além da disponibilidade pessoal para participação. Com o intuito de obter um grupo mais homogêneo, foram excluídos das entrevistas a única médica e o único homem. Foram entrevistadas sete enfermeiras e quatro assistentes sociais. As entrevistas e o material da observação participante foram analisados por meio de análise temática14, na qual, por intermédio de uma matriz de análise, são identificados núcleos de sentido cuja frequência tem significado, na medida em que a presença de determinados temas se relacionam a valores de referência e modelos de comportamento das entrevistadas. Esta pesquisa foi desenvolvida de acordo com a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SMS/RJ. E, dessa forma, as informantes serão apresentadas com nomes fictícios.

Resultados Apresento aqui um breve perfil das vinte participantes do curso, que preencheram o questionário pré-curso, “o espaço coletivo”, perfil este que não se diferenciou significativamente do grupo das 11 informantes que participaram, também, das entrevistas, “o espaço privado”. Das vinte informantes, 12 se autoidentificaram como brancas, cinco como negras, duas como pardas, e uma como parda/negra. Quanto à idade, nove tinham entre 28 e 34 anos, sete entre 41 e 46 anos, e quatro entre 53 e sessenta anos. A orientação religiosa católica foi referida por 12 das informantes, a evangélica por três, e o espiritismo/espiritualista por quatro, e uma não informou. Quanto à situação conjugal, 11 são casadas/ união consensual, cinco solteiras, três divorciadas/separadas, e uma não respondeu. Quanto a filhos, sete afirmaram não terem filhos. A zona norte foi a região citada por 12 das informantes como local de moradia, três citaram a zona oeste, três a zona sul, e duas a Baixada Fluminense. A renda familiar à época variou de cinco salários-mínimos para uma, entre 6,7 e 13 salários-mínimos para 12 das informantes, entre 18 e 29 salários-mínimos para cinco, e duas delas não informaram. Em relação ao

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tempo de formação, uma tem menos de cinco anos, nove têm entre cinco e dez anos, três mais de dez e menos de vinte, e sete têm de vinte a 29 anos de formadas; 17 informantes têm pós-graduação, dez em áreas afins à saúde pública. A seguir, a descrição de dois momentos do trabalho de campo: o módulo teórico considerado como o “espaço coletivo”, momento de observação participante das atividades do curso, e, posteriormente, as entrevistas, constituindo o que designamos como “espaço privado”.

O módulo teórico: espaço coletivo Quanto ao momento de observação participante do módulo teórico, diariamente, por volta das 8h30, algum membro da coordenação do curso iniciava a avaliação do dia anterior, e as treinandas expunham o que consideravam como interessante, importante ou cansativo. A técnica predominante de abordagem dos temas foi o uso de dinâmicas. Em geral, as dinâmicas visavam a discussão da temática por meio da interação entre os participantes, que expunham vivências e opiniões, através da realização de tarefas lúdicas, como recorte e colagem, trabalho corporal, ou, simplesmente, comentário sobre uma frase que remetia ao assunto colocado para debate. Em dois momentos, no período inicial, duas coordenadoras afirmaram que o foco era “fazer pensar e mudar práticas”, e que talvez o curso não incluísse o aprofundamento teórico sobre os temas a serem abordados. Estes foram: (1) PAISM; (2) promoção da saúde; (3) gênero; (4) raça e etnia; (5) doenças sexualmente transmissíveis (DSTs)/abordagem sindrômica das DSTs; (6) protagonismo juvenil; (7) aborto; (8) sexualidade; (9) mulher e aids; (10) violência contra a mulher; (11) métodos contraceptivos; (12) mortalidade materna; (13) serviço de contracepção, e (14) práticas educativas. Certamente, todos os temas estão articulados, mas, em função dos achados do campo e do foco deste artigo, a análise apresentada será sobre o tema aborto, que foi desenvolvido no quarto dia do curso. Uma das coordenadoras distribuiu material para subsidiar a elaboração do seminário sobre os métodos contraceptivos, organizado pelas treinandas, e alguns textos sobre aborto foram disponibilizados por outra coordenadora. E ainda, as treinandas receberam vários textos de apoio sobre outros temas abordados no curso. “Vamos falar sobre o aborto e as coisas relacionadas” foi a frase introdutória, e, rapidamente, foi pedido que se registrasse, por escrito, o que se pensava sobre a seguinte situação: “Minha menstruação atrasou, eu...”. Algumas respostas foram transcritas no quadro, mas optou-se por trocar os papéis e redistribuí-los para leitura pelas treinandas. Seguem algumas das frases que surgiram: “Eu preciso investigar... A menstruação pode ser irregular”. “Se transou sem precaução, toma POSTINOR”. “Fiquei desesperada e fui para a farmácia”. “Estou perdida, fiquei desesperada, pensei em abortar por duas vezes. O que eu faço?”. Diante da indagação da coordenadora sobre “o que fazer com esse desespero”, uma treinanda narrou sua experiência, ao decidir realizar um aborto quando jovem. Todos ouviram silenciosamente e, logo em seguida, houve um burburinho, várias pessoas falando ao mesmo tempo, dirigindo-se ou não a ela. Uma treinanda afirmou ser a decisão pelo abortamento da mulher. Outra relatou ter engravidado em uma circunstância difícil da vida, mas não abortou e não se arrependeu. A primeira treinanda retornou à sua história, quando a coordenadora perguntou se mudou muita coisa dos anos 1970 para cá, época em que a treinanda realizou o aborto. Algumas disseram que sim e outras que não. A coordenadora prosseguiu, questionando sobre: a legislação brasileira, as mudanças na sociedade, e, ainda, a respeito de não se terem alcançado avanços no legislativo em torno da questão da descriminalização do aborto. O seu discurso tinha como pressuposto que avançar significava descriminalizar. Em oposição a essa assertiva, uma treinanda declarou: “Porque as pessoas mudaram não necessariamente se liberaria o aborto”. Enquanto outra assegurou que, sendo o Brasil o segundo maior país católico do mundo, o aborto jamais seria descriminalizado aqui. Mesmo com um discurso subentendido como favorável à descriminalização, a coordenadora não fomentou um debate sobre as diferentes posições das treinandas provocadas por seu comentário.

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Após o intervalo, foi realizada a dinâmica conhecida como “dança das cadeiras”, que objetivava discutir os tabus, conceitos e preconceitos acerca do tema do dia. As treinandas andavam ao redor das cadeiras e, ao sinal da coordenadora para sentar, aquela que não havia conseguido assento lia uma frase que se referia a distintas questões em torno do abortamento. “Abortei e fui denunciada pelo hospital”. Registro aqui um dos comentários de uma treinanda que nos dá a dimensão das contradições colocadas pelo tema: “Como profissional não sei se iria denunciar, mas como mulher fiz, sem saber a consequência”. Para ela, como o aborto provocado é crime, o hospital “estaria certo” em denunciá-la. A coordenadora lembrou o sigilo profissional: “O profissional não poderia/deveria denunciá-la”. Percebem-se aí dois níveis de contradição: interna à própria treinanda (que tem posições diferentes “enquanto mulher” e “enquanto profissional”), e uma outra entre a coordenação e a maioria das treinandas. Esses dois níveis de contradição surgem de novo no episódio que relato a seguir. Uma das treinandas leu a seguinte frase: “Porque é meu direito”. Ao que outra retrucou: “Sou cristã, isso aí não é certo, é crime, um homicídio como qualquer outro, mas não vou julgar, tenho que sempre agir como profissional”. De novo percebemos, aí, uma contradição entre a posição oficiosa da coordenação e a posição contrária da treinanda, e, ao mesmo tempo, na fala da treinanda, a contradição entre sua opinião pessoal (“é crime”) e sua posição enquanto profissional. Neste momento, muitas treinandas reagiram à frase, todas contrárias à ideia de que o aborto é um direito. Uma afirmou que a pessoa que cometeu um aborto cometeu um erro, pois o direito à vida deve ser garantido. Outra defendeu os direitos do feto, e narrou a situação de uma amiga, que recebeu um diagnóstico de que a criança não sobreviveria, mas optou por manter a gestação, e a criança nasceu perfeita. Ela questionou: “Quantas crianças deixaram de nascer e poderiam ter sobrevivido?”. A coordenadora retomou a palavra, afirmando que, em certos momentos históricos, a religião cristã não se opunha ao aborto. Em seguida, apresentou o conceito de aborto e reafirmou a necessidade do respeito ao outro, independente do juízo de valor do profissional. Todas ouviram com atenção, em silêncio, mas à conclusão da explanação houve um alvoroço, todas falando ao mesmo tempo. Após o discurso da coordenadora sobre o atendimento discriminatório, em hospitais, de mulheres que praticam o aborto, uma das treinandas defendeu a qualidade da assistência, contrapondo-se à coordenadora. Esta encerrou a discussão afirmando: “Reconhecemos que a mulher tem direito, em alguns países onde o aborto foi liberalizado, o número diminuiu. No nosso país é crime e há aumento da mortalidade materna em consequência do aborto”. (Coordenadora responsável pela atividade do dia)

Apesar de as treinandas, em sua ampla maioria, afirmarem não reconhecer o direito ao aborto, a coordenadora concluiu a discussão sem levar em conta a opinião da maioria, pautando-se nas perspectivas da saúde pública e do movimento feminista.

As entrevistas: o espaço privado Nos questionários e nas entrevistas realizadas com as 11 informantes, duas se mostraram, direta ou indiretamente, favoráveis ao aborto. No entanto, no momento das atividades em grupo, elas não colocaram suas opiniões, mesmo na presença da coordenadora, que apresentava postura favorável ao aborto. Nas entrevistas, foi indagada a opinião sobre o aborto e se o curso havia proporcionado uma mudança de visão sobre o tema. O discurso predominante foi contrário ao aborto, sob justificativas religiosas. Uma informante declarou-se claramente favorável ao procedimento, enquanto três o consideravam um crime. Amanda foi enfática na sua oposição, com o argumento de defesa da vida e remetendo-se às variadas formas de evitar uma interrupção da gravidez. Curiosamente, ela declarou sentir-se fora de contexto, pelo fato de a maioria das colegas estarem vendo o aborto como natural, um

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direito da mulher, apesar de termos constatado que, ao contrário, a maioria das treinandas do módulo teórico desaprovava o aborto. O acesso aos métodos como meio de evitar o aborto foi referido por Débora; para ela, é preciso separar o que se pensa do que ocorre no cotidiano do serviço. Contudo, o tom de sua narrativa é indicativo de sua dificuldade em efetuar esse tipo de separação, uma vez que sua visão da gravidez não prevista deixa de levar em conta todos os fatores de ordem emocional, familiar e econômica, entre outros, que operam numa gravidez, enfatizando uma avaliação moral da mulher que engravida “por descuido”: “A população tem meios para evitar [...] Não é por isso, pela baixa escolaridade, pela baixa renda que vai engravidar [...] eu acho que isso não é desculpa. O acesso está aí, toda unidade tem planejamento familiar, eu acho que toda, se não tem, uma próxima da área tem [...] Eu acho que é descuido mesmo”. (Débora, grifo meu)

Dentre as informantes contrárias ao aborto, três ponderaram que, em função do risco de efetuar o procedimento em condições precárias, na ilegalidade, seria preciso rever a legislação, de modo a ampliar as situações passíveis de permissão legal. Beatriz, evangélica, contrária ao aborto, possui visões distintas, no que tange aos preceitos pessoais e profissionais, talvez por ter acompanhado um caso de aborto em sua família. Helena também explicitou um posicionamento análogo ao de Beatriz, pautado em sua vivência profissional com adolescentes: “Pela minha religião e por mim mesmo, eu não concordo. Mas o fato de eu não concordar, não quer dizer que não tem casos que possam ser [...] Acho que é um direito da mulher essa escolha. Eu não deixaria, assim... a minha opinião intervir nada [...] eu acho que essa mulher teria o direito”. (Beatriz, grifo meu) “Falando de forma pessoal, eu sou contra o aborto, tenho essa concepção de ser contra. Mas, assim, diante da situação que a mulher faz o aborto de forma clandestina e isso prejudica sua saúde, o útero. Enfim, eu acho que é uma questão que deve ser revista [...] E eu atendo muitas meninas jovens [...] elas usam da forma mais precária possível, usa essa medicação, pensando que vai se livrar daquilo e, pelo contrário, adquire um problema maior”. (Helena, grifo meu)

Isadora e Júlia apresentaram um discurso ambivalente, talvez por estarem em processo de reflexão e mudança de visão sobre a temática. Isadora demorou a conceder as respostas, talvez expressando conflitos entre sua convicção religiosa e sua posição como profissional, capaz de reconhecer o aborto como problema de saúde pública: “Acho que cada pessoa deve decidir em relação a si mesmo, quando tiver que fazer alguma dessas opções. Ao mesmo tempo, acho também controverso qualquer bandeira apoiando ou negando socialmente essas decisões [...]. Pra mim, o... quer dizer, eu, eu, eu sou, eu sou uma pessoa de formação católica [...] É, é eu tenho uma, assim, um sentimento muito grande... É... Religioso. De negação do aborto, ainda que eu entenda que como saúde, em termos de saúde pública a gente precisa ter um olhar diferente, um cuidado com as pessoas que não têm condição de pagar realmente pra fazer um aborto e acabam se submetendo as várias práticas, aí acabam muitas vezes morrendo, né? Mas, quer dizer, pra mim fica difícil”. (Isadora, grifo meu)

Júlia, ainda que se opusesse ao aborto, expressou certos aspectos concernentes à complexa estrutura que cerca uma gravidez não planejada e, por consequência, a decisão pelo aborto. De certo modo, trata-se de um quadro semelhante ao apresentado por Isadora.

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“Fora da questão jurídica, acho o aborto muito arriscado para a mulher e agressivo [...] Eu nunca achei é, eu não discuto aborto, pelo menos aqui, como uma coisa jurídica, entendeu? [...] Eu acho que assim, cada caso é um caso. Entendeu? Às vezes, a pessoa tá num desespero, entendeu? Não teve aquela coisa de se prevenir, ou não teve porque não teve conhecimento ou tempo ou condições e precisou fazer, não queria um filho, não pôde ter aquele filho. Não sou nem a favor nem contra [...] vou tentar dar condições pra que aquela pessoa não faça. Até porque a gente não tem nada legalizado, isso pode tá prejudicando ela”. (Júlia, grifo meu)

Lívia e Elza foram as únicas que revelaram o fato de terem realizado aborto, e estranharam o posicionamento da maioria das treinandas sobre o tema. “Sou a favor do aborto seguro, realizado por profissional médico [...]. É uma coisa que há muito tempo tinha que ser legalizada. A gente ouve falar de tantas moças que acabam morrendo por fazerem escondido, uma coisa tão simples, uma coisa médica que podia ser resolvida, e ainda ter alguém que é um chefe de uma unidade com influência sobre várias pessoas com uma coisa tão preconceituosa. Fiquei estarrecida, não podia acreditar que ainda existia isso”. (Lívia) “[...] quem opta por fazer, só aquela pessoa sabe por que está optando, então, você tem realmente que mostrar os prós e os contras e é aquela pessoa que vai decidir [...] eu vi, os profissionais não tão trabalhados para isso. Como é que essa pessoa consegue dar conta, trabalhar em cima disso com a população, com mulheres, sem conseguir desvencilhar esse preconceito? De repente, eu não tenho, por quê? Porque eu já passei [pelo aborto]”. (Elza)

Discussão A utilização de dinâmicas como principal abordagem pedagógica do curso é uma estratégia que atribui preeminência ao sentir, que valoriza a experiência, o vivenciado, e não a transmissão de conteúdos, característica da pedagogia tradicional. O uso de dinâmicas tem origem nos referenciais teóricos freireanos e no movimento feminista. Neste último caso, referimo-nos às práticas educativas que tiveram origem nas atividades dos ‘grupos autônomos de mulheres’, formados por feministas em serviços de saúde. Tais grupos implementaram propostas de vivências, objetivando a aprendizagem por meio da reflexão sobre a condição feminina, tida como objeto de um dispositivo de controle social. O movimento feminista autônomo deu origem a uma vasta produção de material pedagógico e teórico, elaborado tanto em organizações não-governamentais e grupos autônomos como em instituições governamentais.15 (p. 56)

Era uma pedagogia calcada em metodologias que, surgidas no final dos anos 1970, baseavam-se em um processo de learning by doing (aprendendo através do fazer). Segundo Correa, a formulação das primeiras estratégias e instrumentos pedagógicos tinha como referência os conceitos de emancipação das mulheres/discriminação feminina16,17. Na formulação de tais metodologias, o feminismo incorporou saberes e técnicas de outras áreas, como a psicologia (expressão e consciência corporal entre outros), a psicanálise, o método Paulo Freire, o materialismo histórico. Essa multiplicidade disciplinar não foi devidamente sistematizada e/ou conceituada, e tal conjunto se manteve submerso num suposto saber feminista original16, que parece ter sido incorporado pelas coordenadoras do curso observado, e muito valorizado nos relatos das treinandas. A ênfase nas dinâmicas fez com que os textos oferecidos não fossem utilizados ou citados para subsidiar as polêmicas surgidas, embora seus conteúdos contribuíssem para reflexões sobre o tema.

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Tanto a observação do módulo teórico, quanto a informação obtida mediante questionários e entrevistas demonstraram uma quase total concordância do grupo no posicionamento contrário ao aborto, e no seu reconhecimento como crime. A narrativa das informantes se aproxima das reflexões de Barsted18, acerca da polêmica em torno do aborto nas Conferências do Cairo, em 1994, e de Beijing, em 1995. O foco se centrou no acesso à saúde, e não na perspectiva política do direito e da autonomia. Da mesma forma, quando as informantes julgam ser crime praticar o aborto, não se referem ao sentido penal, mas ao moral e religioso. Os discursos expressaram uma postura contraditória. A narrativa de Isadora sobre o aborto ilustra essa antinomia: “Pra mim, quer dizer, eu, eu, eu sou, eu sou uma pessoa de formação católica [...] É, é eu tenho uma, assim, um sentimento muito grande [silêncio] religioso de negação do aborto, ainda que eu entenda que como saúde, em termos de saúde pública a gente precisa ter um olhar diferente, um cuidado com as pessoas que não têm condição de pagar realmente pra fazer um aborto e acabam se submetendo às várias práticas, aí acabam muitas vezes morrendo, né? Mas, quer dizer, pra mim, fica difícil”. (Isadora, grifo meu)

Duarte19 (p. 141), ao abordar a complexidade do fenômeno da religião nas sociedades modernas, afirma que o seu sentido se estrutura em três dimensões: “A da religião como identidade ou pertencimento; a da religiosidade como adesão, experiência ou crença e a do ethos religioso como uma disposição ética ou comportamental, associada a um universo religioso”. Não foi possível, neste trabalho, investigar as possíveis esferas estruturantes da acepção religiosa das informantes, mas alguns relatos permitem propor uma proximidade entre o posicionamento que emerge de seus discursos e a dimensão do ethos religioso. Por meio do material etnográfico, identificamos, no grupo, uma opinião proeminentemente contrária ao aborto e favorável à sua categorização como crime. Uma diferença se apresenta quando a maioria exprime certo cuidado na abordagem do tema ao buscar demonstrar a necessidade e/ou intenção de separar opinião pessoal de atuação profissional. Ao tratar do tema, as informantes evocavam, inicialmente, suas orientações religiosas como justificativa de seus pontos de vista, de modo a enfatizar a necessidade de respeitar e atender a mulher que aborta sem discriminação – separar “o pecado do pecador”. Essa ética cristã de acolhimento e tolerância está intimamente vinculada ao ethos religioso tal como definido por Duarte19, uma vez que tais verbalizações se apresentaram independentemente das diferentes posições religiosas das informantes. Pode-se colocar como hipótese a ideia de ser possível a articulação entre esse ethos e o discurso dos direitos sexuais e reprodutivos. Em outros termos, embora apresentando uma retórica fundada nos valores cristãos (tolerância, compreensão e acolhimento), sem uma clara posição política pautada nas discussões dos organismos internacionais e acadêmicos, as informantes, de modo geral, apresentam um discurso próximo do respeito aos direitos reprodutivos. Como vimos, os comentários de várias treinandas evidenciaram um posicionamento contrário à prática do aborto, e não contra a pessoa que o faz. A maioria abordou a necessidade do cuidado, do acolhimento e de uma postura de não-discriminação da mulher que aborta, demonstrando receio ao falar sobre o tema, e afirmando a necessidade e/ou a intenção de separar a opinião pessoal da atuação como profissional. Dessa forma, parece ser possível se opor moral e religiosamente ao aborto e, ao mesmo tempo, admiti-lo no âmbito profissional. Nos dois casos – a oposição em tese e o acolhimento na prática – a religião pode ser invocada como justificativa. Ouvir, dar apoio à mulher, não discriminá-la nem julgar as condições de realização do aborto acabou sendo a tônica das declarações. Para a maioria das informantes, a opinião a respeito do aborto se transformou após o curso, não no sentido de tornar-se a favor ou contra, mas, sim, em passar a considerá-lo um problema de saúde pública, em perceber a necessidade de ampliar o debate e mudar a postura ao atender a mulher que aborta. Essa relativização frente ao tema apareceu na distinção entre a posição das informantes assumida coletivamente (no grupo-módulo teórico) e a posição assumida na entrevista.

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Podemos inferir que as treinandas, apesar do seu grau de escolaridade, provavelmente têm um acesso restrito à “modernização social e cultural; os debates internacionais sobre população, desenvolvimento, direitos humanos e das mulheres, etc.”20 (p. 96). A modernização social tem como um dos seus motores o processo de reflexividade. Através desse processo, os indivíduos, coletividades e instituições são submetidos a uma contínua reflexão sobre suas condições de ser e viver, provocando uma revisão das práticas e dos discursos acerca de tais condições, e de suas possíveis consequências. Pode-se dizer que o curso oferecido pelo Espaço Mulher fomentou esse processo de reflexividade, sendo, portanto, essencialmente modernizador. No período de realização desse estudo, ainda não havia sido veiculada, pela mídia, a questão apresentada pelo ministro da Saúde sobre o aborto como problema de saúde pública (em 2007), e nem publicado o levantamento sobre as pesquisas realizadas, nos últimos vinte anos, no Brasil confirmando a tese do aborto como uma questão de saúde pública21. Do mesmo modo, o estudo sobre a magnitude do aborto no Brasil que estimou que 1.054.242 abortos foram induzidos em 20052. Recente publicação analisa as fronteiras entre argumentos morais, religiosos, políticos, e aqueles que dizem respeito aos direitos individuais, e expõe as desigualdades a que as mulheres se expõem em função da negação do direito ao aborto22. Ainda sobre a realização de pesquisas sobre aborto, outra apresenta as características não só de mulheres, mas, também, de homens jovens parceiros de mulheres que fizeram aborto ilegal, bem como seus itinerários e os métodos utilizados23, evidenciando iniquidades e desigualdades de gênero e econômica. As informantes que vivenciaram a experiência de aborto, seja pessoal, como Lívia e Elza, familiar, como Beatriz, e profissional, como Helena, foram as que se mostraram mais abertas à possibilidade de reconhecerem um possível direito ao abortamento. Contudo, quando indagadas sobre direitos sexuais e reprodutivos, não associaram o aborto ao conjunto de direitos e, até mesmo, a uma opção individual.

Considerações finais O tema aborto no curso de PAISM/Contracepção foi abordado de forma problematizadora e dialogal, e com enfoque sobre o aborto como um problema de saúde pública. As coordenadoras do curso estimularam a reflexão, a partir de discussões de casos do cotidiano dos serviços, e verbalizaram a intenção de propiciarem a reflexão e a mudança das práticas profissionais na atenção à mulher, na esfera da sexualidade e da reprodução. Tanto pela formação pautada nos saberes biomédicos quanto pelo suporte das ciências sociais e humanas, as enfermeiras e assistentes sociais, respectivamente, poderiam ter apresentado um discurso diferenciado em relação ao tema tratado neste artigo. No entanto, não houve distinção substancial, seja por categoria profissional, por idade, seja por orientação religiosa. De forma geral, o discurso predominante foi contrário à prática do aborto, via argumentos de natureza religiosa e/ou moral, sobretudo no momento das atividades em grupo. A ambivalência, a relativização, ou, até mesmo, a flexibilidade frente ao tema fizeram-se presentes nos discursos de algumas informantes ao se referirem ao risco a que as mulheres se expõem pela proibição deste procedimento, especialmente no momento das entrevistas individuais. Deduzem ser preciso rever a legislação, para ampliar os casos permitidos por lei, além de reconhecerem tratar-se de um problema de saúde pública. Vale ressaltar que essa relativização em torno do aborto foi expressa, sobretudo, em entrevistas no espaço privado, enquanto no módulo teórico o posicionamento foi mais uniforme. De acordo com os relatos das informantes, a mudança de visão sobre alguns temas, a aquisição de novos conhecimentos e a possibilidade de transformação de suas práticas foram as principais contribuições do curso desenvolvido pelo Espaço Mulher (centro de treinamento). De certa maneira, o curso propiciou ao grupo – ainda que parcialmente – um processo de reflexão sobre sua prática. Vale ressaltar que o Espaço Mulher foi extinto em 2008. Com a expansão da Estratégia Saúde da Família, pela Secretaria de Saúde, por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS), em 2009, as atividades de qualificação dos profissionais relacionadas à Atenção à saúde da mulher foram descentralizadas para as Coordenações de Área Programática e para as próprias OSS. Pode-se inferir que, com a desarticulação

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deste importante espaço de qualificação, a reflexão sobre as práticas de atenção à saúde da mulher deixou de ser prioritária. Isto pode ser melhor esclarecido em pesquisas posteriores. A pesquisa aqui apresentada demonstra que a mera discussão ou a transmissão de conhecimentos não é garantia de um processo de reflexão e de transformação das opiniões e práticas. Essa questão está posta aos gestores da atenção à saúde da mulher e aos órgãos de formação em saúde, sobretudo devido ao surgimento de discursos oficiais conservadores e pautados em fundamentalismos religiosos, como o Estatuto do Nascituro (PL 4782007), na Câmara dos Deputados, e sua “versão” Estadual, o Programa Estadual de Prevenção ao Aborto e Abandono de Incapaz (PL 4162011), que se opõem frontalmente aos direitos sexuais e reprodutivos, em particular no que diz respeito às mulheres. A afirmação de tais direitos é, sem dúvida, o grande desafio a ser enfrentado pelos responsáveis pelas atividades de educação permanente dos profissionais de saúde voltadas para a atenção à saúde da mulher.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

Referências 1. Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica da urna. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl. 1:S959-96. 2. Monteiro MFG, Adesse L. Magnitude do aborto no Brasil: uma análise dos resultados de pesquisa [acesso 2010 Fev 25]. Disponível em: http://www.ccr.org.br/ uploads/eventos/mag_aborto.pdf 3. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2001. 4. Presidência da República. Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, 31 Dez 1940. 5. Pimentel C, Jinkings D. Anencefalia: STF aprova interrupção da gravidez [Internet]. 2012 [acesso 2012 Abr 16]. Disponível em: http://www.agenciabrasil.ebc.com.br/ noticia/2012-04-12/anencefalia-stf-aprova-interrupcao-da-gravidez.htm 6. Soares GS, Galli MB, Viana APAL. Advocacy para o acesso ao aborto legal e seguro: semelhanças no impacto da ilegalidade na saúde das mulheres e nos serviços de saúde em Pernambuco, Bahia, Paraíba, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Recife: Grupo Curumim; 2010. 7. Carneiro MF, Iriart JAB, Menezes GMS. “Largada sozinha, mas tudo bem”: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil. Interface (Botucatu). 2013; 17(45):405-18. 8. Zordo S. Representações e experiências sobre aborto legal e ilegal dos ginecologistas-obstetras trabalhando em dois hospitais maternidade de Salvador da Bahia. Cienc Saude Colet. 2012; 17(7):1745-54.

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9. Galli B, Viana P, Shiraiwa T. Dossiê sobre aborto inseguro para advocacy: o impacto da ilegalidade do abortamento na saúde das mulheres e na qualidade da atenção à saúde reprodutiva no Estado do Rio de Janeiro. Recife: Grupo Curumim; 2010. 10. Gesteira SMA, Diniz NMF, Oliveira EM. Assistência à mulher em processo de abortamento provocado: discurso de profissionais de enfermagem. Acta Paul. Enferm. 2008; 21(3):449-53. 11. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: Editora LTC; 1988. 12. Norris A, Bessett D, Steinberg JR, Kavanaugh ML, Zordo S, Becker D. Abortion stigma: a reconceptualization of constituents, causes, and consequences. Womens Health Issues. 2011; 21 Supl. 3:S49-54. 13. Becker H. Método de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1993. 14. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2006. 15. Carneiro F, Agostini M. Oficinas de reflexão: espaços de liberdade e saúde. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 1994. 16. Corrêa S, Camurça S, Xavier D. Seminário de metodologia de práticas em saúde da mulher: relatório. Olinda: SOS-CORPO; 1988. 17. Corrêa S. Gênero: reflexões conceituais, pedagógicas e estratégicas - relações desiguais de gênero e pobreza. Olinda: SOS-CORPO; 1994. 18. Barsted LL. Conquistas da sexualidade no campo do direito. Sexual Gen Soc. 2005; 1(23-25):9-15. 19. Duarte LFD. Ethos privado e justificação religiosa: negociações da reprodução na sociedade brasileira. In: Heilborn ML, Duarte LFD, Peixoto C, Barros ML, organizadores. Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. p. 137-76. 20. Bonan C. Reflexividade, sexualidade e reprodução: encruzilhadas das modernidades latino-americanas. Iberoamericana. 2005; 5(18):89-107. 21. Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília (DF): MS; 2009. 22. Miguel LF, Biroli F. Apresentação. Rev Bras Cienc Polit. 2012; (7):19-23. 23. Heilborn ML, Cabral CS, Brandão E, Faro L, Cordeiro F, Azize R. Itinerários abortivos em contexto de clandestinidade na cidade do Rio de Janeiro - Brasil. Cienc Saude Colet. 2012; 17(7):1699-708.

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Lemos A, Russo JA. Los profesionales de salud y el aborto: lo dicho y lo no dicho en una capacitación profesional en salud. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):301-12. El objetivo del estudio fue analizar la visión de los profesionales sobre el aborto y su relación con la práctica profesional. Las profesionales aquí analizadas participaron del curso del Programa de Atención Íntegra a la Salud de la Mujer/Contracepción. Estudio descriptivo con abordaje cualitativo y etnográfico. Hubo observación participativa, uso de cuestionario y entrevistas con 11 profesionales de salud. En el curso se abordó la cuestión del aborto de una forma problematizada y dialogada, como un problema de salud pública. En general, el discurso predominante durante el módulo teórico del curso fue el posicionamiento contrario a la práctica del aborto utilizando argumentos de naturaleza religiosa. No obstante, esa posición fue relativizada en el momento de las entrevistas. Aunque de forma parcial, el curso proporcionó al grupo un proceso de reflexión sobre su práctica profesional, un factor importante para las personas envueltas en la capacitación de profesionales de la salud.

Palabras-clave: Aborto inducido. Derechos sexuales y reproductivos. Capacitación profesional. Personal de salud.

Recebido em 04/08/13. Aprovado em 13/03/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0166

Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar

Ana Lúcia Abrahão(a) Emerson Elias Merhy(b)

Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24.

Changes in health education over recent decades have been on the political agenda of the Brazilian government, in the fields of methodology and pedagogy, with projects for curriculum restructuring so as to move closer to healthcare services. Healthcare training is examined in this article starting from some concept tools, with linkage to four tensions present in this area: training as a betterment movement; training as a field of living work; training as experience; and training as creation. The purpose of this study was to examine the tensions presented, starting from theoretical meeting points, aligned with production of conceptual tools with the power to install new practices in healthcare education. The analysis indicates the creative potential that micropolitics has within the training process. As the main element, it expands experience and the capacity to discern other ingredients and other territories within pedagogical action.

Keywords: Teaching. Micropolitics. Healthcare education.

As mudanças na formação em saúde, nas últimas décadas, têm estado na agenda da política do Estado brasileiro, no campo metodológico e pedagógico, com propostas de reestruturação dos currículos e maior aproximação com os serviços. A formação no campo da saúde é trabalhada neste artigo a partir de alguns conceitosferramentas, articulados a quatro tensões presentes neste campo: formação como movimento de produzir-se; formação como território do trabalho vivo; formação como experimentar e formação como criação. O propósito deste estudo consiste em ponderar as tensões apresentadas a partir dos encontros teóricos, alinhados à produção de ferramentas conceituais com potência para instalar novos modos de exercício na formação em saúde. A análise assinala o potencial criativo, exercido no micropolítico no ato da formação. Como elemento principal, amplia a experiência e a capacidade de enxergar outros ingredientes e outros territórios no agir pedagógico.

Palavras-chave: Ensino. Micropolítica. Formação em saúde.

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(a)

Escola de Enfermagem, Universidade Federal Fluminense. Rua Dr. Celestino, 74. Niterói, RJ, Brasil. 24240-660. ana.abrahao@ pesquisador.cnpq.br (b) Faculdade de Medicina, Campus Macaé, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. emerson.merhy@ gmail.com

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Introdução O campo da formação em saúde, ao longo das duas últimas décadas, vem sendo desenhado e recortado por iniciativas de ordem prática, política e pedagógica que traçam diferentes formas e modos de como se ensina e se aprende a ser profissional. Costuma-se pensar e entender a formação por uma dada ciência, técnica e racionalista, que aplica diversas tecnologias pedagógicas aos alunos, sob um ponto de vista que opera a partir de um saber cientificamente comprovado. Um produto pronto para ser consumido e reproduzido. Um aprendizado que estimula muito pouco o exercício de autonomia e de crítica, pois parte do princípio de que expor o aluno ao conteúdo é suficiente para a formação. Uma ciência aplicada que, fracionadamente, vai sendo exposta e é assumida como centro do aprendizado, com pouca margem para outros tipos de conexões existenciais e de produção de conhecimento, durante o processo de formação. Ou seja, uma baixa capacidade de produzir arranjos pedagógicos que apresentem formas diferentes de aprender e que provoquem outras possibilidades na identificação dos distintos modos de existir que há no mundo. Formas de ensinar e aprender que convivem com sujeitos e os seus modos de vida singulares, que demandam uma atenção tão singular, quanto. A formação pode ser reconhecida a partir de outro lugar, sob outra perspectiva, que convida o aluno a experimentar, a criticar, a participar da experiência de ensinar e aprender. “A experiência como aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”1 (p. 22). Há aqui uma diferença entre aquilo que vivenciamos e se torna uma experiência em nós, e o que vivenciamos e não nos afeta de modo a exigir novas significações. Há distinção entre ser algo que encontra sentido e nos toca, como um acontecimento(c), e aquilo que não nos traz para novos campos de sentidos. Estamos pensando em uma prática pedagógica que inclua outras conexões possíveis para a formação, que seja um acontecimento. Ou seja, que produza abalos no campo dos sentidos, na efetuação daquilo que passa e toca no cotidiano da formação, em que os sujeitos (professor-aluno-usuário-profissional) envolvidos busquem novos significados para dar conta do que acontece a eles. “O acontecimento obriga que possibilidades que julgávamos impossíveis, que excediam nosso sentido do provável sejam [possam ser] reconhecidas”2 (p. 5). Pensamos em uma formação que permita a produção centrada na articulação de diferentes saberes, conhecimentos e aprendizados, e no território da vivência/ experiência do aluno, partindo desse como sujeito da problematização da própria formação. Outro modo de produção que inclua outras possibilidades para além da inculcação de um saber científico aplicado. Assim, chegamos diante de, pelo menos, dois aspectos de ensinar e aprender, presentes no campo da formação. Um vinculado à certeza de que, expondo os alunos a um saber cientifico, haverá a formação, o aprender. O segundo relacionado a uma prática pedagógica que promove a emergência de novos saberes e suas articulações, os quais o aluno-professor experimenta durante a ação problematizadora. No campo da formação em saúde, reconhecemos a convivência destes dois movimentos atuando ao mesmo tempo e em disputa. Uma perspectiva que coloca a saúde como resultado do saber científico, da ciência aplicada, com a utilização de estratégias de normatização da vida do outro; e outra que deposita, na prática em saúde, as possibilidades de se alinharem os diferentes modos de produção do 314

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Em Deleuze3, o acontecimento é um conceito paradoxal, não segue o bom senso (que fecha o sentido) e nem o senso comum (que dá identidade fixa). Acontecimento é o local de troca entre o estado de coisas e o improvável, o sujeito neste instante é tomado, buscando produzir algum tipo de sentido na efetuação. É exatamente por não ter sentido em meio àquilo que já existe que o acontecimento obriga o sentido, fazendo com que o sujeito busque novos significados para dar conta do que acontece a ele.


(d) Este estudo compreende o território para além do geográfico, delimitado fisicamente, como o que ultrapassa as linhas, como sinônimo de articulação com outros modos de existência. Não está dado, ao contrário, está em construção. “O território é sinônimo de apropriação e de subjetivação”5 (p. 323).

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viver, singulares, e que constituem as maneiras de andar a vida, nos processos de encontros micropolíticos entre trabalhadores e usuários4. Desenhos que se centram no saber que a prática em saúde é resultado da lógica cientificista, classificatória, protocolar, circunscrita em uma produção única do sofrimento como doença, em que os distintos modos de sofrimento e de existir estão ausentes, juntamente com a produção de territórios(d) identitários do usuário. O ensinar centrado no saber científico, de modo exclusivo, produz processos em que o complexo mundo do usuário e daquilo que ele busca nos serviços de saúde, ganha pouca visibilidade e pertinência. Com muita frequência, reconhecemos os vestígios desta aprendizagem nos serviços, nas produções de barreiras ao acesso dos usuários ao cuidado integral, bem como na centralidade que a doença ocupa neste processo, com a interdição da aparição dos muitos sujeitos que há aí em potência, no plano da vida do usuário. Os vários territórios, tomados como campo de experiência prática, abrem-se para a combinação de diferentes conexões como elemento para a formação. Um processo que, ao articular a prática do trabalho em saúde, remete ao desafio de construção de artifícios pedagógicos que reconheça a possibilidade das várias existências presentes nesse plano de produção, o qual opera no entre alunoprofessor-usuário-profissional de saúde. O desafio se coloca como pergunta: como reconhecer nesse processo de formação, no campo da saúde, ferramentas que, combinadas, transitem pela multiplicidade e extensividade do campo de forças e dos fluxos que interagem nesse plano? Multiplicidade dada a partir do emprego das ferramentas pedagógicas e do cuidado em ato, e que nos convoca, a cada momento, a uma nova ação, principalmente quando nos deparamos com modos de agir completamente diferentes ante o mesmo usuário. E extensividade por esta ação se ampliar e ir em diferentes direções, não havendo via única. Alguns autores, do campo da Educação Permanente em Saúde, vêm demonstrando a potência de transitar na interface e nos limites disciplinares e construir espaços de aprendizado em outra perspectiva. Essa perspectiva reconhece que a formação em saúde transita de forma transversal nos territórios disciplinares, produzindo conhecimento e revelando novas aproximações sobre a realidade. As fronteiras se abrem e permitem a aproximação pelo entre, pelos poros6. Este movimento de constituição transversal para a compreensão do real incorpora diferentes direções em meio às várias disciplinas, que podem vir a promover processos coletivos de produção7. A transversalidade incorpora um intenso movimento entre os territórios das disciplinas. Transversalidade em oposição a uma verticalidade e a uma horizontalidade, que constituem os processos de subjetivação. Processos que mobilizam ações, gestos, afetos e afecções, conhecimentos e verdades que conjugam a nossa existência. Este movimento aporta a potência de mobilizar forças, grupos e sujeitos8. Uma possibilidade de aluno-professor ter acesso diferenciado às áreas de conhecimento, como uma produção singular, que parte da multiplicidade e não obedece à hierarquia das disciplinas. A sua relação com os saberes é oblíqua e o resultado é inesperado. Com este fim, o processo de formação gera a possibilidade de inaugurar vínculos e trabalhar com ações estabelecidas a partir do encontro entre usuários-profissionais-alunos-professores. Reconhecemos a importância da utilização de conceitos-ferramentas – trataremos disso adiante – que possam configurar como elementos que nos levem a pensar e a produzir, em ato, arranjos que ativem a mudança no ensinar, aprender na saúde, a partir do reconhecimento de que a formação encontra-se em um plano poroso de existência. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O debate, escolhido para este trabalho, adota as disputas no campo da formação em saúde e se propõe a operá-las a partir de alguns conceitos-ferramentas, tendo como contexto quatro tensões que reconhecemos estarem presentes neste campo: formação como experimentar; formação como um movimento de produzir-se; formação como território do trabalho vivo em ato; e formação como criação.

Operando nas tensões da formação em saúde a partir de conceito-ferramenta A escolha de trabalhar as tensões da formação – como um movimento de produzir-se; como território do trabalho vivo em ato; como experimentar; e como criação – deu-se pelo fato de identificarmos as tensões constitutivas que se abrem às potências e disputas de modos de ensinar e aprender, que são geradas no campo da formação, e, consequentemente, concentram muitos conceitos. Entendemos que “todo conceito remete a um problema, problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução [...]”9 (p. 27-8). Ao trabalharmos as tensões, estamos agindo sobre os conceitos, sobre o campo de experiência que se coloca como um problema do experimentar na existência. Uma ferramenta que age sobre as verdades da vida, uma ferramenta para viver o conceito, como vida. No sentido de compreender conceito como uma ferramenta, tomaremos o acolhimento, como exemplo. Se olharmos o acolhimento como um conceito de representação da vida, facilmente chegaremos ao consenso de que, na prática, precisamos ter escuta durante o atendimento ao usuário, abrir espaço na agenda dos serviços, construir com a equipe o entendimento de que é preciso “acolher”, não mandar o usuário de volta sem antes ouvir e conduzir a queixa. O conceito acolhimento como representação passa, então, a figurar nos serviços como aquele espaço para o qual o usuário é encaminhado quando chega e não há vaga para ser atendido. Reconhecemos ser uma mudança importante no contexto hegemônico da organização dos serviços, mas que mantém a centralidade na doença. Tomar acolhimento como conceito-ferramenta nos remete a outra ordem de mudança, que opera para dentro da equipe, provoca e desperta alterações no corpo e no enunciado do usuário e profissional de saúde, que representa para além da construção de protocolo de risco; passa a incluir na sua ação o que toca o usuário e o que toca o profissional. O acolhimento adquire a dimensão da nossa própria ação trabalhador-usuário, existe, portanto, como acontecimento, e não como representação. Acolher se transforma em ferramenta e atua sobre a escuta, não mais seletiva e classificatória, mas no que opera no ato do encontro, no entre, podendo agir na direção de um escutar incluindo, como um ir ao ato da escuta. O acolhimento como processo de encontro intercessor passa a ser o local de troca entre o estado de coisas e aquilo de que temos dúvidas, pelo acontecimento micropolítico que aí age. Isso pode implicar a busca da produção de algum outro tipo de sentido na efetuação. Operar acolhimento como ferramenta é fazer uso dos novos significados para dar conta do que acontece. Assim, viver o conceito passa a se revelar como um problema do experimentar, dos e nos acontecimentos vividos, aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Constituindo-se como o local de troca entre o estado de coisas e o improvável, o inusitado que está presente. Entretanto, a produção de sentido para o sujeito da ação, que se coloca no ato do experimentar, é fundamental. Viver o conceito como ferramenta na produção de vida remete à produção de agenciamentos. Agenciamento10 como a composição de elementos que se fazem presentes durante a relação – sejam eles os elementos em que ordem for: objetiva, subjetiva, sentimental, sensorial etc. Elementos heterogêneos entre si, que incorporam a expressão de vários conteúdos. Trabalhar conceito como vida agencia os elementos que se fazem presentes na relação usuário-aluno-professor-profissional, em um movimento que vai alargando as possibilidades do experimentar em diferentes campos de problemas. Os elementos heterogêneos, presentes no agenciamento, trazem para a cena as disputas dos mecanismos de subjetivação, existentes no campo da formação. Nesse cenário, é possível identificar uma produção subjetiva que se cristaliza em processos institucionalizados de ensinar, como aulas 316

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centradas no saber docente, versus outros modos de subjetivação com uma maior margem à entrada de diversos modos de existência, como aulas-experimentos que agreguem outras possibilidades de problematizações e saberes. O agenciamento funciona como um grande plano em que elementos heterogêneos se apresentam e, por isso mesmo, se confunde durante a relação. Quando estamos operando o conceito, seja como ferramenta ou como representação, os agenciamentos estão presentes. O interessante é perceber que ali se encontra cravada a disputa de modos de subjetivação, que adquirem sentido ou não nos problemas da vida. Modos de subjetivação como [...] o espaço de relação que se produz no encontro de “sujeitos”, isto é, nas suas intercessões, e que é um produto que existe para os “dois” em ato, não tendo existência sem este momento em processo, e no qual os “inter” se colocam como instituintes em busca de um processo de instituição muito próprio, deste sujeito coletivo novo que se formou.11 (p. 318)

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Devir, um conceito de Deleuze e Guattari9 que remete ao desejo, a força e a potência presente e que não é imitada e não está enquadrada. Não é generalizável; é, antes de tudo, fenômenos, evolução de mudança.

Intercessão, em ato, no momento da produção usuário-aluno-professorprofissional. Um inter que produz intervenção na arte da formação11. Novos sentidos para o saber, abertos para entrada de outros saberes, para outros regimes de verdade que encontram lugar durante o processo de formação. Nesta ordem de variações, os conceitos-ferramentas, em seu devir(e), se inscrevem como potência de produção de conexões e remetem a outros conceitos, produzindo ecos e ressonâncias. Com esta imagem se desenha uma provocação, operando na construção de uma formação em saúde mais próxima das questões do viver. Produzir, no encontro usuário-profissional de saúde-aluno-professor, intercessões com redimensionamento e alargamento do modo de andar a vida e do cuidar de si12, com o exercício de conceitos-ferramentas no ato da formação.

Formação como experimentação A experiência como elemento dinamizador da formação implica colocar-se à disposição do exercício de apreender com e no mundo do trabalho, enquanto um campo essencialmente micropolítico. A formação nos convoca a experimentar durante o cuidar, durante o ato do trabalho; despertar sensações e afetos produzindo-se no cuidado. O sentido do cuidar implica processos que se tornem imanentes e referentes às múltiplas possibilidades relativas ao encontro. Imanentes, pois têm como ponto de partida o próprio encontro; múltiplos, pelas diferentes possibilidades de, no mesmo encontro, identificarmos uma multidão de encontros, que passa pela troca de olhar, pela construção e produção de conhecimento, pelas afecções em geral, entre outros. Encontros que vamos tendo e fazendo durante a vida; de participar, com o outro e consigo, deste movimento de estar vivo. Um processo que avança na medida em que nos reconhecemos no outro – docente-profissional de saúde-aluno-usuário – em um único processo de produção. Produção do quê? De subjetivação, de vida – produção do cuidado. Um cuidado que implica a produção de encontros, de conexões existenciais em aberto. Cuidado entre vivos, com suas singularidades e multiplicidades, em acontecimento. Passamos a vida em encontros, sendo afetados por eles e afetando os outros. Afecções que nos movimentam para a vida, para a produção de um cuidar próprio com mobilização de elementos vitais e, também, outros processos de afecções que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mobilizam, ao contrário, muito pouco da nossa potência de viver. Encontros que potencializam a vida, no sentido da biopotência, convocando a potência da vida na sua dimensão afetiva, cooperativa, do desejo, da inteligência, em um processo que se atualiza constantemente no contato com o outro. Potência de vida como aquilo que provoca e é provocado pelos encontros13. O cuidado nesta dimensão alarga as possibilidades de escuta, de fala, de gestos, de odores, de observação, de toques, de sabores, de olhares, ou seja, amplia os elementos sensíveis e de pensamento empregados na produção do cuidado. Movimenta e expande, no ato do cuidar, a biopotência do próprio encontro. Permitir que as multiplicidades do plano do cuidado sejam experimentadas e agenciadas pelos múltiplos sujeitos em produção, remete ao entendimento de que cada sujeito é multidão e que nos constituímos na multiplicidade. A cada instante nos produzimos diferentes, com gestos, quereres, gostos, opinião, um ser distinto daquilo que éramos antes. O experimentar como ingrediente da formação nos desafia, sobremaneira, a construir estratégias pedagógicas que sejam capazes de deixar vazar as multiplicidades dos sujeitos em um coletivo múltiplo, com encontros precários. Precários na sua inconcretude e infinitude, na produção de subjetivação, experimentando no acontecimento14. Deixar vazar as multiplicidades remete a experimentar, não interpretando aquilo que nos afeta, mas desabrochando naquilo que nos afeta. Aquilo que nos toca no olhar, na escuta, costumamos traduzir buscando representar as sensações. Desabrochar nos afetos coloca a sensação daquilo que nos toca, nos passa em outro lugar, na construção de outros modos de subjetivação presentes na ação do encontro15. Experimentar supõe um agir, um interagir pelo qual o corpo apreende um conteúdo qualquer, isto é, lhe confere um sentido. Recupera na memória recordações de ações vividas. Um desabrochar nos afetos com o apelo às experiências passadas que se atualizam no ato do produzir-se em formação. [...] para Bergson, o equilíbrio encontra-se no jogo entre os dois extremos da experiência humana: nem viver na pura ação, reagindo imediatamente como os animais inferiores, nem viver como um sonhador, evocando lembranças sem vínculo com a situação atual.16 (p. 30-1)

O jogo do equilíbrio na experiência implica um ato pedagógico que provoque sentido e vínculo sobre a prática do cuidar. Mobiliza afetos e promove novas rotas de agir pedagógico na formação em saúde, a partir da construção de uma caixa de ferramenta(f). Caixa de ferramenta que remete à produção de estratégias e ferramentas pedagógicas que não sejam rígidas demais nem fluidas em demasia. Na formação como experimentar, o exercício de ensinar ganha outra dimensão, seja na enfermaria, ambulatório, em uma visita domiciliar, enfim, qualquer que seja o plano da experiência no encontro com o outro. Adentramos nestes espaços com alguma vivência, o que nos remete de imediato à nossa memória, que, no ato, se atualiza diante do dado real. A partir daí, temos uma série, quase que infinita, de caminhos, como: ficar com aquilo que sabemos, pontuando o nosso rígido saber, com pouca margem para experimentar; ampliar um pouco mais com a escuta, abrindo a caixa, mas fechando em seguida com a prescrição de modos de controlar a doença. Podemos, ainda, partir da nossa vivência, incorporando os acontecimentos 318

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A caixa de ferramentas para Merhy4 é composta dos saberes que o trabalhador dispõe para a produção de cuidado em saúde, que, quando utilizada, “maior será a possibilidade de se compreender o problema de saúde enfrentado e maior a capacidade de enfrentá-lo de modo adequado, tanto para o usuário do serviço quanto para a própria composição dos processos de trabalho” (p. 57).


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presentes na relação que se dá neste ato, desabrochando na incerteza da ação como a única certeza que temos. A formação como experimentação convoca, no ato, aquilo que nos passa, o que nos acontece, que nos toca quando estamos diante de cenário de aprendizado professor-usuário-profissional-aluno. Convoca-nos a buscar nas experiências anteriores, na memória, desabrochando o sentido da situação vivida. Sentido como conhecimento, como produtor de perguntas que nos lance para outras conexões possíveis de serem identificadas e trabalhadas.

Formação como um movimento de produzir-se

(g) Clarice Lispector, no seu livro Água Viva18, nos mostra que, no plano dos afetos, passam “coisas” que não viram linguagem escrita ou falada, mas se inscrevem no corpo. De modo semelhante, pensadores como Deleuze e Guattari9 e Merhy19, de acordo com um certo olhar spinosista, afirmam o mesmo sentido.

Formar é estar em formação, é produção, é produzir-se. Tal afirmação implica processos que se tornem imanentes e referentes às multiplicidades do encontro. Ou seja, a partir do encontro, estamos em produção, produção de diferentes formas de ser no mundo, diferentes formas de cuidar de si e do outro. O ato da formação convoca vários meios, não só o conhecimento racional e lógico. Convida também aquilo que está no entre os sujeitos que participam do processo. Elementos que passam a ser produzidos durante o encontro e que não existam, e incidem no processo pedagógico ou de cuidado e, muitas vezes, não encontram linguagem falada capaz de expressar o seu significado, mas que conferem sentido ao ato(g). Porém, quando se expressam como ideias, adquirem sempre uma dimensão polissêmica, habitadas por sentidos diferentes. É comum ouvir, durante estes encontros, alguém dizer: “Nossa! Nunca havia pensado desta forma. Ah! Agora entendi”. Ou seja, durante o ato, estabeleceu-se um processo único e singular que promoveu a produção de algo que passou a fazer sentido e que não havia antes. Produção de processos de enunciação em disputa por outros modos de formação, com agenciamentos que alargam o formar, agindo na biopotência dos encontros como produção usuário-profissional-professor-aluno. O produzir-se na formação desloca o movimento da dicotomia para a não-dicotomia, nos lança no paradoxo dos encontros e suas variações intensivas, na sua micropolítica. Nessa concepção, a pergunta “o que se produz?” não constitui um produto ao final, mas expande-se em múltiplos processos. Produção que se faz na dobra dos encontros. Dobra como o ato em que torna possível a produção de subjetivações a partir de uma relação intercessora, consigo mesmo e com outro, em uma produção contínua e no mesmo instante da experimentação, em ato17. Nos encontros estamos nos produzindo em movimento de dobra, ou seja, em atos que nos remetem para dentro de nós mesmos, junto e na interação com o outro. Um ato que se estabelece a partir das afecções daquilo que nos passa, o que nos toca, nos impulsiona e nos desloca para dentro e provoca mudanças sobre nossas ações, remetendo-nos a uma produção diferente da que estávamos construindo anteriormente. Produzindo-se em dobras, em instantes e planos de intensa produção subjetiva. Durante o processo de aprender e ensinar, frequentemente, entramos em situações das quais é difícil reproduzir da mesma forma o que aconteceu. Podemos sair com algo a mais, mas isso não é inevitável. Por exemplo, um grupo de usuários que frequenta um determinado serviço, ao buscar resolver seus problemas relacionados a alguma das doenças crônicas não transmissíveis, se encontra diante de uma oferta feita pelo serviço que, com frequência, é um grupo de educação e saúde. A princípio, um dispositivo tradicional, normatizado, mas que pode ser diferente, pode se transformar em um novo mecanismo de agenciamento coletivo de subjetivação. No espaço do inter aluno-usuárioCOMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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professor-profissional, se discute sobre a vida, como estar na vida. Entra-se no exercício das afecções e não somente de produtos, como a redução da glicemia, mas, também, de constituir-se como modos de viver. Normalmente, nos encontramos diante de provocações de diferentes ordens que só têm sentido durante o processo. Dobramos-nos sobre nós mesmos e sobre os outros, o que significa buscar o sentido daquela experiência, daquilo que nos impulsiona para a vida. Produzir-se na singularidade do coletivo, no cuidar do outro. Agimos no entre nós. Produzir-se na formação em dobra constitui a experimentação aluno-profissional-docente-usuário, dobrando-se sobre e entre as potencialidades, subjetividades dos encontros que se estabelecem neste processo de formação. O produzir-se em dobra coloca docentes-alunos-profissionais-usuários como experimentadores de um dentro que dobra e de um fora que desdobra, no interior das relações de poder da vida, em um campo intersubjetivo. Segundo Deleuze20 (p. 56), “a desdobra não é o contrário da dobra, mas segue as dobras até outra dobra [...]”, em um movimento intenso que tece rotas e caminhos capazes de produzir intensidades com potência de redesenhar o cuidado, a partir da desorganização que provoca na formação, abrindo-se para outros processos, lançando-a para outro plano com outras possibilidades de existência, em um contínuo acontecer. O movimento do desdobrar-se seguindo até outra dobra, na formação, remete à produção de intercessões entre os sujeitos e a intensividade subjetiva, durante a experimentação pedagógica do agir. Um movimento subjetivante do trabalho vivo em que pode haver outros processos, centrados nas relações, nos encontros sucessivos entre alunos-professores-usuários-profissionais de saúde, em alternativa aos modos cristalizados na lógica da formação como transmissão de saber, enquanto conhecimento racional sistematizado, modos de subjetivação que se estabelecem sobre dobras sólidas constituídas pelo modelo hegemônico no campo da saúde. No plano da dobra, que desdobra a todo instante, entramos por dentro de processos bem sólidos, como a classificação das doenças que enuncia protocolos e dita formas de como viver. Atravessamos processos que nos passam, nos tocam, nos deslocam e convocam a produção de escuta daquilo que vai além da doença e nos invade com outras formas de produzir saúde e vida. Implicam-nos ética e politicamente. Formas que dão visibilidade aos sujeitos e aos seus modos singulares de estarem e andarem a vida. Isto é, plano da micropolítica, dos eixos de forças intensivas, que atualizam, nas suas relações de poder, como reproduzimos ou não os modos e formas de dominação do outro e de nós mesmos, de processos intensos abertos nos encontros, dobra e desdobra dos quais precisamos nos apropriar. Há, neste processo, a possível produção das novidades que remetem a sistemas de interações complexas entre alunos-professores-usuários-profissionais de saúde que merecem ser exploradas na prática da formação.

Formação como território do trabalho vivo Outro conceito-ferramenta diz respeito à formação na saúde e seu território no mundo do trabalho, pois é exatamente neste plano que os encontros profissional-aluno-docente-usuário são mais micropolíticos e intensos. Sobre território, há estudos no campo do cuidado em saúde que vêm questionando a ideia de que seja algo rígido e geográfico. Na realidade, os usuários que frequentam os serviços de saúde se inserem enquanto território existencial de um modo muito singular no campo das relações sociais, culturais e de vida. Se observarmos com atenção, tomamos, de um lado, o território geográfico socialmente estabelecido como o bairro, a cidade e o que há de equipamentos institucionais como referência: escolas, creches, supermercados, lanchonetes etc., e delimitamos espaço físico entre ruas, avenidas, rios etc. De outro lado, podemos tomá-los como resultado das articulações entre a sociedade, o movimento nos seus múltiplos aspectos: sociais, econômicos, políticos, culturais e outros. A sociedade está sempre em movimento. A mesma paisagem, a mesma configuração territorial nos oferecem, no transcurso histórico, espaços diferentes21. Estes espaços diferentes conformam espacialidades singulares ao território. 320

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Efetivamente, somos um território existencial que articula e atravessa, durante o movimento de viver, os aspectos subjetivo e cultural. Não nos fixamos no geográfico. No movimento do território existencial, vamos atrás de ofertas que nos façam mais sentido, situadas em outros espaços materiais e imateriais que não o bairro ou lugar de trabalho22. Portanto, o mundo do trabalho é um território marcado pela presença de muitos elementos agenciadores de subjetivações, que, como tais, operam em linhas de forças no campo micropolítico das relações intercessoras, que estão presentes no plano da produção da vida e da existência. Dessa forma, o mundo do trabalho em saúde é plenamente aberto aos acontecimentos e, por isso, [...] o ato do trabalho funciona como uma escola, ele mexe com a nossa forma de pensar e de agir no mundo. Formamo-nos, basicamente, no trabalho por ser o lugar de produção do agir em saúde, dos profissionais de saúde e dos saberes que são ali produzidos. Esse exercício cotidiano em si é um ato pedagógico.23 (p. 198)

O trabalho, funcionando como exercício pedagógico, configura a dimensão da ação do produzir-se, no encontro com o outro. A aproximação do aluno, do docente e do usuário, no mundo do trabalho, ao centro do cuidado, do serviço, dos encontros e dos acontecimentos que teimam em colocar o usuário – a vida do outro a dar sentido –, pela sua configuração territorial, no centro de si, nos põem em permanente questionamento do agir sobre o outro, apontando a possibilidade do agir com. Tomemos, como exemplo deste complexo território, o que acontece em uma enfermaria entre o usuário acamado, o aluno em formação e o professor. Esta cena pode se dar com a prescrição de técnicas, procedimentos voltados para a melhoria das condições de saúde do usuário, que, ao mesmo tempo, exige a aplicação de saberes por parte do aluno e sobre o qual o professor, atento, avalia. Aqui reproduzimos o conhecimento aprendido sobre uma única lógica racional centrada nas evidências dos sinais e sintomas. Há pouca margem às outras lógicas de conhecimento, pois o exercício se produz na busca de evidências externas que encontra ressonância na classificação nosológica. Esta cena pode se passar de outra forma, mobilizando outros dispositivos durante a aplicação da técnica dura, as tecnologias leves4 que nos fazem debruçar sobre o usuário, buscando outros sentidos além da doença para que aquela ação possa se estabelecer, ou seja, haver um produzir-se, alunodocente-usuário. A atitude do aluno se coloca para uma escuta problematizadora, o professor estimula a ação de reflexão sobre a questão ao identificar elementos, dispositivos que sirvam para problematizar a situação, que peçam outros saberes além daqueles cientificamente protocolados. Saberes que estão sendo agenciados no coletivo e que podem incorporar o usuário e seu mundo como centro da cena, outros territórios existenciais. O encontro produz-se daquilo que brota, desabrocha do entre e é atravessado pelo externo. Neste movimento, constitui-se um território de intensidades múltiplas e atravessadas pelas necessidades, desejos dos principais atores que circulam no serviço. Disputas de projetos, de planos de cuidados, de planos e atos pedagógicos que passam a instituir novos territórios e a pedir relações cooperativas pela centralidade da vida no centro dos encontros. Multiplicidades constitutivas do território do trabalho em saúde. “A multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e de um, mas, ao contrário, uma organização própria do múltiplo enquanto tal, que não tem necessidade alguma da unidade para formar um sistema”10 (p. 236). Nesta perspectiva de constituição do território como multiplicidade, há a combinação múltipla de elementos que se fazem presentes no agir pedagógico em produção do trabalho vivo. Trabalho vivo4, aquele que, no exato instante da sua ação, interage com normas, máquinas, tecnologias diversas, dobrando e desdobrando-se em fuga, no campo micropolítico. O ato em saúde se dá em meio à existência efetiva do trabalho vivo em ato, e deste modo implica uma imprevisibilidade que impossibilita, fora do encontro, haver ação. Desse modo, operar sobre o território do trabalho vivo é um espaço aberto à exploração de potências nele inscritas. Abre a perspectiva de ampliar ações pedagógicas com dispositivos que produzam desvios na formação. Um agir constitutivo das disputas, formas e modos de produzir-se, de atualizar a potência da vida, na potência da formação. Um desafio interessante a ser enfrentado. Extrapolar territórios, criando novidades a partir da multiplicidade do coletivo que se expressa durante o trabalho vivo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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As disputas no território do trabalho vivo são possíveis de serem evidenciadas quando, por exemplo, os profissionais de saúde (aluno, professor) prescrevem um dado plano de cuidado, com regras bem definidas e pautadas em sinais e sintomas, para o andar da vida do usuário. Com frequência, tais indicações não são cumpridas, sendo atravessadas por outros planos, projetos de vida e cuidado ditados pelos usuários. Logo, o plano ditado não é cumprido. Ora, normalmente, há uma decepção que invade este encontro. O profissional se recente pela sua “inoperância” e o usuário pela incompreensão daquilo que necessita. Projetos e planos, neste território, são questionados a cada instante. O interessante é incorporar a potência de vida, reconhecer o território existencial do usuário e provocar movimento.

Formação como criação A última extremidade da formação que reconhecemos como conceito-ferramenta é a criatividade. Imersos no mundo virtual, a capacidade de imaginar e projetar é tomada ao extremo. Por outro lado, embota a nossa capacidade criativa vinculada ao experimentar. As formas metodológicas de ensinar têm se valido muito pouco do exercício criativo. Na verdade, precisamos inventar um modo diferente de formar que inclua a criatividade. Inventar, criar é da ordem dos encontros intercessores. Criatividade, na formação, implica estar afinado com outro paradigma que não seja somente o cartesiano, um paradigma que reconheça o real em sua infinita capacidade de combinação de modos de ser, ver e experimentar. A habilidade de criar pode ser entendida, fundamentalmente, como autocriação a partir de um processo de reconhecimento do outro. Este processo requer, para sua execução, a espontaneidade do movimento da vida24. Se existe um verdadeiro potencial criativo, podemos esperar encontrá-lo em conjunto com a projeção de detalhes introjetados em todos os esforços produtivos, e devemos reconhecer a criatividade potencial não tanto pela originalidade de sua produção, mas pela sensação individual de realidade da experiência [...].24 (p. 130)

Nessa lógica, a criatividade passa a ser relacionada com o estar vivo com os vários encontros produzidos no ato pedagógico. A formação, em seu fazer cotidiano, relaciona-se com o saber inscrito e tatuado na experiência do trabalho. Neste jogo, no entre, a espontaneidade, o gesto espontâneo durante o ato vivo do produzir-se, revela as formas criativas de ensinar, aprender.

Considerações finais A utilização de conceitos-ferramentas refere-se a colocar, no foco das discussões da formação em saúde, as várias intenções e implicações dos atores envolvidos na micropolítica do ensino e do cuidado. Tomar os conceitos com a finalidade de constituir a matéria-prima para a produção de conversa e redes coletivas de contato entre os trabalhadores, usuários, alunos, professores, é explorar a potência que se desenha no fazer produtivo com os atos pedagógicos. O potencial criativo exercido no trabalho vivo da formação em saúde representa um território que não coloque a doença como ingrediente principal do cuidar, mas amplie a nossa capacidade de construção de outros elementos com potencialidade para invadir outros territórios. Representa o sair em busca de experimentar novos territórios existenciais; experiências de formação que se projetam sobre territórios que mobilizem o contato com outras culturas, com outros modos de existência, a partir do trabalho vivo, como agir pedagógico. É a ferramenta operando com capacidade de provocar rupturas, arranhões nas dobras rígidas e cristalizadas do agir pedagógico que se centra sobre uma única verdade.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos, construindo todas as etapas de produção do texto.

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Abrahão AL, Merhy EE. Formación en salud y micro-política: sobre conceptos-herramientas en la práctica de enseñar. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24. Los cambios en la formación en salud en las últimas décadas han formado parte de la agenda de la política del Estado brasileño en el campo metodológico y pedagógico, con propuestas de reestructuración de los currículos y una mayor aproximación a los servicios. La formación en el campo de la salud se trabaja en este artículo a partir de algunos conceptos-herramientas, articulados con cuatro tensiones presentes en este campo: formación como movimiento de producirse; formación como territorio del trabajo vivo; formación como experimentar y formación como creación. El propósito de este estudio es ponderar las tensiones presentadas a partir de los encuentros teóricos, alineados a la producción de herramientas conceptuales con potencia para instalar nuevos modos de ejercicio en la formación en salud. El análisis señala el potencialcreativo, ejercido en lo micro-político en el acto de la formación. Como elemento principal amplía la experiencia y la capacidad de ver otros ingredientes y otros territorios en la actuación pedagógica.

Palabras clave: Enseñanza. Micro-política. Formación en salud. Recebido em 20/05/13. Aprovado em 21/11/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0715

Os movimentos macropolíticos e micropolíticos no ensino de graduação em Enfermagem Simone Edi Chaves(a)

Chaves SE. Macropolitical and micropolitical movements in the undergraduate teaching on nursing. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):325-36.

This study deals with higher education in the field of nursing in the light of the Brazilian National Curriculum Guidelines, adaptation of professional education to the needs of the Brasilian Health System, and construction of care practices for comprehensive healthcare. This reflection is undertaken within the scope of university pedagogy relating to education for any of the professions regulated in Brazil regarding their orientation towards care. Care is seen as production of comprehensive healthcare; identification with the users of professional healthcare; understanding of the health system as a network response to social health needs; and education as a bold process of subjectivation that challenges autonomy that invents itself and the world.

Keywords: Higher education. University pedagogy. Nursing education. Curriculum guidelines on nursing. Health care.

Este estudo tematiza a Educação Superior em enfermagem, tendo em vista: as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), a adequação da formação profissional às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e a construção de práticas cuidadoras na atenção integral à saúde. A reflexão se dá no âmbito da pedagogia universitária relativa à formação de quaisquer das profissões superiores regulamentadas no Brasil em sua orientação ao cuidado. O cuidado desponta como produção de atenção integral à saúde; identificação com os usuários da atenção profissional de saúde; compreensão do sistema sanitário como resposta em rede às necessidades sociais em saúde, e formação como ousado processo de subjetivação, desafiador de autonomias inventivas de si e do mundo.

Palavras-chave: Educação Superior. Pedagogia universitária. Educação em Enfermagem. Diretrizes Curriculares em Enfermagem. Cuidado em saúde.

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(a) Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Saúde, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Rua Machado de Assis, 855/1304. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.620-260. scmachado@unisinos.br

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OS MOVIMENTOS MACROPOLÍTICOS E MICROPOLÍTICOS ...

Introdução Este ensaio nasce da reflexão acerca da formação em enfermagem. Traz como ponto de partida as forças micropolíticas como potência à mudança na graduação em confronto com as formas macropolíticas que estabelecem “parâmetros” e determinam “caminhos” para se proporem projetos de ensino de graduação com vistas às mudanças das práticas de cuidado em saúde e enfermagem. Este texto é parte de um estudo de doutorado onde buscamos compreender as potências do agenciamento micropolítico, aquilo que vivemos cotidianamente nos encontros promovidos pelos processos educativos. A formação brasileira na área da saúde, ao longo dos tempos, avança no sentido de atender as orientações políticas do setor da saúde, sobretudo se pensarmos as necessidades impostas pela implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, a imposição política, mesmo que advinda de movimentos sociais, que marcaram fortemente o campo das políticas públicas no setor, não garante o movimento de mudanças na formação. Quando propomos um curso de graduação na área da saúde, supomos que sua orientação, desde que obedecidas as regras, normas e protocolos, garanta a formação de profissionais para atuarem frente às necessidades do setor. As formas impostas são sua macropolítica e, em geral, governam as proposições pedagógicas. O fato é que as forças que compõem esta mesma proposição de um curso de graduação em saúde operam numa outra dimensão, contêm forças com outros fluxos e conexões, componentes de micropolíticas que atravessam, cortam, transversalizam a macropolítica.

Fundamentação teórica Macropolítica: o governo das formas No campo das políticas públicas de saúde, o movimento da Reforma Sanitária, que, em meados da década de 1980, realizou a VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), demarcou um importante momento político ao setor, pois conjugava o rompimento com o pensamento de que a saúde das pessoas se afeta pelas relações políticas e sociais com a urgência de entrarmos num outro momento político (democrático) que inaugurasse uma fase participativa e de escuta social. Se, de um lado, a luta pela Reforma Sanitária trazia um componente de mobilização social na ordem estrutural e na economia de Estado, de outro lado, trazia o componente de participação da população nos serviços de saúde e a mudança na lógica de prestação de cuidados aos usuários, lutando pela derrubada da ditadura1. Os movimentos populares e sociais assumiram um protagonismo no campo da saúde que trazia, para o centro do debate, as situações do cotidiano da vida. O cotidiano como algo imanente e singular, nunca antes considerado na proposição das políticas públicas na área da saúde. A implementação do Sistema Único de Saúde, expresso na Constituição Federal de 1988, viria determinar, em seu Art. 200, que compete ao Sistema Único de Saúde ordenar a formação dos recursos humanos da saúde, uma maneira de colocar na agenda trabalho e formação, de modo associado e integrado, dando a este tema a dimensão do cotidiano da vida1. Com a constituição do SUS, o conjunto das políticas públicas do setor passa à necessidade de adequação da formação dos recursos humanos para atendimento das necessidades sociais em saúde, e aos problemas gerenciais do sistema de saúde. Neste sentido, amplia-se a integração ensino-serviço, e as instituições de formação acadêmica para a área da saúde, sobretudo as universidades públicas (pela presença de pós-graduação em saúde coletiva), assumem importante pesquisa e formulação de conceitos sobre as práticas de saúde. De maneira particular no caso da saúde, a educação popular fomenta debates e constrói potência para a ação social de lutas por saúde, e confronta aqueles que, de certa maneira, tinham, nas mãos, a estipulação do cuidado integral à saúde. Agenda política, educação popular e movimento social foram importantes dispositivos para a mudança de orientação da saúde no Brasil. O movimento da Reforma Sanitária e seus desdobramentos impuseram outro modo de pensar a saúde e, consequentemente, de pensar a formação. 326

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(b) Deleuze e Guattari fazem uma incursão pelo conceito de rizoma, imagem da rede, como emaranhado que potencializa as múltiplas conexões possíveis da existência. Este conceito ajuda a compreender as redes rizomáticas como processo de “vida social”, um fluxo e emaranhado que, no setor da saúde, coloca como critério a cidadania3. (c) O conceito da Integralidade ganha destaque por inserir, no âmbito do cuidado em saúde, não apenas o entendimento do indivíduo inteiro – sem fragmentos, mas, também, a dimensão de corpo integral, a dimensão afetiva e o saber relacional. Para Ceccim, resta-nos desenvolver tecnologias de tratamento que respondam pela condição da integralidade, pela resolutividade das práticas assistenciais e pelos problemas de saúde, tal como experimentados em situações de vida4. (d)

Ao consultar Foucault e seus estudos sobre o nascimento da medicina social, numa rápida reflexão, percebemos que a estruturação da medicina ganhou, na Europa do século XVIII, certa posição, por ser gerida como sistema de pensamento. O início da institucionalização da medicina considerou o corpo como instrumento político e social. Foucault demonstra que “foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista”5 (p. 80). (e) A palavra “micropolítica”, conforme Guattari e Rolnik, se refere ao modo como (re)produzimos a subjetividade. Para o autor, a micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade7.

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Vale destacar que, com a Reforma Sanitária, sobretudo nos anos 1980, vários acontecimentos se constituíram de uma maneira rizomática(b) – um emaranhado de possibilidades influenciava os cenários de saúde. No Brasil, a Constituição de 1988 resgatou a saúde como um direito e processo de cidadania, especificando, no seu Artigo 196, que saúde é “direito de todos e dever do Estado”, o que pode parecer óbvio, mas não é assim em muitos países até hoje, não era assim antes e não está consumada vinte anos depois. A Lei Federal nº 8.080/90 detalhou esse conceito e assegurou que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes: a alimentação, a moradia, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais, entre outros1,2. A garantia de saúde para toda a população, estabelecida na Constituição Federal, está diretamente relacionada à implementação do SUS, cujo cumprimento de seus princípios (universalização, descentralização da gestão, participação da população e integralidade da atenção) e de seu objetivo, a equidade no acesso, demanda profissionais com essa apropriação e formadores de trabalhadores com esta direcionalidade. A constituição do SUS também determina a implementação de conselhos e conferências para o debate, avaliação e tomada de decisão junto com a população. Das políticas públicas de saúde devem participar (com poder deliberativo) os usuários, seus movimentos populares e sindicais, mediante a organização da sociedade civil para opinar sobre a saúde que quer. Estas realidades passam a exigir dos trabalhadores em saúde compromisso com a integralidade(c). Não são mais suficientes os recursos de diagnóstico e prescrição, há necessidade de trabalhar em equipe de maneira interdisciplinar, de trabalhar mais próximo das culturas populares, de constituir redes cuidadoras entre os serviços de saúde, de estabelecer relações orgânicas entre estruturas de serviço e estruturas de ensino/formação, entre outras condutas políticas e estratégias técnicas. Neste sentido, o pensamento de Foucault(d) vem à tona de uma maneira micropolítica, “arma” aos movimentos populares e argumento à política. O autor escreve que a medicina no século XIX passa a ser incorporada ao modo como a sociedade se organiza, ou seja, as doenças são problemas políticos e econômicos que devem ser pensados e resolvidos em conjunto. Dos ensinamentos de Foucault, entre outros pensadores, podemos destacar que os atos de saúde não apenas previnem ou tratam, mas influenciam os processos de adoecimento das pessoas e das populações. A saúde compreendida desta forma nos impõe considerar que, por meio da educação dos profissionais de saúde, é possível assumir novos modos de prevenir e tratar (cuidar) e, também, de formar3,5. Sem dúvida, a implantação das políticas de saúde, no SUS, inaugurou um modo singular de pensar os processos e atos que garante a possibilidade de atendimento às necessidades impostas pelo momento. Uma demarcação importante e urgente para a saúde da população emerge dos conceitos e debates científicos que revelam, significativamente, este momento: passamos a falar de integralidade, coletivos organizados, equipes de saúde, rede de cuidados e linha de cuidados, entre outros conceitos. Consequentemente, as definições apontadas com a implementação do SUS, apesar de todas as suas complexas interfaces, determinam um modo de ser frente às situações de adoecimento e de cuidado em saúde. Passa a ser “moda” atuar sob esta (suposta) orientação. Indiscutivelmente necessária, esta orientação não é um jogo de palavras e nem pode ser implementada como um “programa”. Por si só, não basta, ou melhor, não se esgota em regras, normas e protocolos modelares. A implantação de políticas não gera necessariamente mudança micropolítica(e); podemos nos apropriar dos discursos liberadores e disruptores, podemos adotar novas palavras, podemos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“discursar” acerca das novas práticas sem que, com isto, efetivamente, provoquemos, toquemos ou remetamos à produção de novidade na prática do cuidado em saúde. As demarcações políticas no campo da saúde e no campo da educação representam movimentos fundamentais para a vida, para a saúde, para a política e para a educação, não estando em questão os avanços alcançados neste sentido. Trata-se de recuperar quanto nos sujeitamos às modelizações e convertemos agendas, lutas e movimentos em macropolíticas de identidade, anulando potências disruptoras e potências de inovação. Passa-se a falar e a atuar sob as novas diretrizes sem que se inaugurem pensamentos: assujeitamento, sem singularização6-8. Para ajudar nesta reflexão ou provocação, Guattari e Rolnik7 nos falam sobre as máquinas produtivas – que podem vir de uma orientação macropolítica, e diz que se a política está por toda parte, ela não está em parte alguma, ou seja, as políticas de saúde, expressas pela regulamentação do SUS, nos dão margem à liberdade e à oportunidade da criação, já o seu exercício é produção em ato. Foram movimentos políticos e sociais que passaram a orientar as práticas de saúde, com a indicação de que déssemos conta dos inúmeros problemas que analisamos e tivéssemos autonomia para pensar e propor os modos de trabalhar e formar7. Conforme Guattari e Rolnik, em sua obra Micropolítica – cartografias do desejo, as ações micropolíticas ocorrem mesmo frente a um cenário de despolitização, como aquele pelo qual passamos quando tudo é convertido, pelas normas, regulamentos e protocolos, em modelos. A expressão usada por Guattari, Capitalismo Mundial Integrado (CMI)(f), nos provoca a pensar que os movimentos disruptores, teoricamente potencializados por ações políticas, não passam de captura social. Vamos sendo “serializados”, vê-se a tentativa de controle social, por meio da produção de subjetividade em escala planetária7. A reflexão sobre a micropolítica, tendo como referência este autor, nos remete ao reconhecimento de que temos grandes ações políticas que têm a tendência a controlar tudo em nome de uma hegemonia que normatiza nossos atos: os indivíduos são reduzidos a nada mais do que engrenagens concentradas sobre o valor de seus atos, valor que responde ao mercado capitalista e seus equivalentes gerais6-8. Refletimos sobre a ousadia de singularizar, presente nos movimentos políticos, populares e sociais que culminaram na constituição do SUS; entretanto, mesmo com todo o avanço que uma proposta como esta pode significar, ainda não temos uma efetiva mudança nas práticas de cuidado em saúde. Ainda estamos presos ao modelo essencialmente curativo e as práticas cuidadoras continuam as mesmas, mesmo que revestidas por novos indicadores. As grandes ações políticas, por si só, não têm potência de agenciar o micropolítico, entendendo a micropolítica como parte dos processos de singularização. Somente quando fragilizados os territórios constituídos é que temos a potência de “micropolitizar”7. Novamente, com os autores, dizemos de uma maneira de recusar “todos estes modos de codificação preestabelecidos” ou que “os modos de manipulação e de telecomando” devemos recusar a todos, “para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular”7. Neste sentido, ao pensarmos uma proposta de ensino em saúde, em especial na área da enfermagem – arte e ciência do cuidado –, não podemos deixar de refletir sobre quanto os movimentos macropolíticos têm atuado no campo da formação, mas é preciso, para que efetivamente tenhamos alguma novidade no 328

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O Capitalismo Mundial Integrado (CMI), de Félix Guattari e Suley Rolnik, contempla a ideia da apropriação da totalidade dos modos de subjetivação a partir das tendências capitalísticas que atuam no mundo. Em linhas gerais, o CMI serve como um controle social coletivo das subjetividades, não importa se em um mundo capitalista ou socialista burocrático7.


(g)

O devir é potência para aquilo que não está em nós como forma, apenas apelo às sensações. Para Guattari e Deleuze, devir é produção de subjetividade – o que nos permite transgredir, romper: a potência dos processos maquínicos9.

(h) No campo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação em enfermagem, cabe destacar que intensos debates têm pautado os encontros regionais e nacionais, do Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em Enfermagem (Senaden), que, desde 1994, tem como objetivo discutir os processos de ensino em enfermagem e, desde 2002, coloca a necessidade de aprofundamento deste tema para que, de fato, a proposta das DCN não se configure apenas em palavras novas revestindo velhas propostas, mas que contribua no debate pedagógico nas instituições de Educação Superior, promovendo um ensino em enfermagem com ineditismo11.

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campo do ensino em saúde, atentarmos sensivelmente para a esfera micropolítica: possibilidade de perceber o mundo a partir de outras referências. Perceber, por exemplo, que, na esfera do cuidado em saúde, é mais importante pensar num plano terapêutico a partir daquilo que podemos oferecer ao outro, que nada adianta a proximidade ou construção de vínculo se, na realidade, as limitações do campo da saúde não vão atender àquilo que as pessoas necessitam. Para isto, é preciso fragilizar a “identidade profissional” e abrir-se aos devires: devir(g) enfermeiro, psicólogo, porteiro, carteiro, professor, enfim, de alguma forma, atuar, em si mesmo, o processo de cuidado. O campo da saúde normatizado e regulado pelas políticas públicas vem avançando no sentido de garantir processos coletivos e integrais, entretanto compete, ao setor acadêmico, compreender estas imposições regulatórias e traduzir estas políticas em processos pedagógicos que permitam novas práticas cuidadoras. O ensino de graduação em enfermagem tem passado por inúmeras “crises” advindas da “crise” pela qual a profissão tem passado nos últimos tempos. Inicialmente, para se romper com a ênfase essencialmente tecnicista da enfermagem, o ensino de graduação investe fortemente nos processos de gestão e de administração em enfermagem. Elimina-se a prática do cuidado da enfermagem e o contato com os usuários, busca-se, com isto, uma prática profissional voltada para o campo gerencial, a organização geral da assistência, a preservação das condições de possibilidade de cuidado. Processo que terminou na contramão das políticas da área da saúde onde a multiprofissionalidade aposta na constituição de equipes que pensem e atuem na construção de planos de cuidado ou de planos terapêuticos comuns. Há, portanto, uma urgência de se repensar o ensino de graduação na enfermagem, uma mudança no perfil profissional para atender às novas exigências do mundo do trabalho, considerando a importância que a enfermagem ocupa no cuidado em saúde e a necessidade de conquistar papel político no cenário da saúde. No campo da educação, a implementação das DCN também demarcou um importante avanço no modo de pensar a formação acadêmica em saúde. A implementação das DCN impôs um modo diferente de pensar os cursos de graduação. Os processos de formação em saúde passaram a centrar-se nas realidades locorregionais, considerando as diversidades culturais, políticas e sociais (perfis demográfico, epidemiológico e socioeconômico), limitando a autonomia dos currículos à preservação de três eixos orientadores: trabalho em equipe, apropriação do sistema de saúde vigente e integralidade da atenção. Para Ceccim, Pinheiro e Mattos, as DCN(h), na área da saúde, foram passo importante para que se produzissem mudanças no processo de formação. Para os autores, as DCN indicam um caminho: flexibilizando regras e, mais ainda, favorecendo a construção de maiores compromissos das instituições de Educação Superior como o SUS10,11. Estes aspectos são importantes para que possamos demarcar as interlocuções que se fazem nos campos da saúde e da educação a partir de 2000. Saliento esta questão, porque, quando falamos na implementação das DCN e na própria legislação educacional brasileira – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –, reconhecemos importantes considerações que justificam uma análise mais profunda e, certamente, outro estudo acadêmico, não contemplado neste texto11. As mudanças no campo das políticas de educação contribuíram para o (re)desenho nas práticas em saúde e um avanço foi proporcionado pelas DCN para a formação na área. No caso da enfermagem, em especial, contribuindo para que a profissão se autorizasse a assumir outro papel frente às necessidades de saúde da população11. A implantação das DCN precisa ser considerada a partir de vários aspectos. A possibilidade de autonomia e a flexibilização acadêmica, em todos os sentidos e não COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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apenas na organização curricular, aporta a possibilidade de pensar o ensino de graduação para além do currículo planejado pelos cursos, ou seja, que as propostas pedagógicas estejam abertas e que os percursos de formação possam gerar singularidades, desde que professores e estudantes estejam, efetivamente, implicados na complexidade do ensinar e do aprender. Pensar que a legislação educacional se propõe a ser ampla e geradora de autonomia, para muitos estudiosos, está mascarando suas regras e determinações neoliberais. Conforme Ceccim e Feuerwerker, tanto o SUS como as DCN colocam a perspectiva da relevância social às instituições de Educação Superior. Para os autores, há necessidade de que as escolas sejam capazes de formar para a integralidade, formar de acordo com as necessidades de saúde; que as escolas estejam comprometidas com a construção do SUS, capazes de produzir conhecimento relevante para a realidade da saúde em suas diferentes áreas, constituindo-se ativas participantes dos processos de educação permanente12. No ensino de graduação em enfermagem, a partir de 1997, a Associação Brasileira de Enfermagem coordenou o debate da construção das DCN e demarcou as necessidades de mudança no âmbito da formação acadêmica em enfermagem. Fez esse movimento com as Associações de Ensino das demais profissões da área da saúde e com o Conselho Nacional de Saúde, ouvindo as recomendações do Fórum de Entidades Nacionais de Trabalhadores da Área da Saúde (Fentas) e a Comissão Intersetorial de Recursos Humanos da Saúde (Cirh). As DCN foram promulgadas por meio da Portaria CES/CNE nº 1.518, em agosto de 2001. Mais tarde, em novembro do mesmo ano, foi publicada a Resolução CES/CNE nº 03/2001 – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Graduação em Enfermagem. Neste período, uma corrida às mudanças curriculares provocou imenso debate nos cenários acadêmicos da maioria dos cursos de graduação em enfermagem11. Um movimento político da Educação Superior propôs uma autonomia ainda não experimentada no âmbito do ensino de graduação em saúde (via passagem à singularização), mas não veio acompanhado das ações demandadas por um processo de mudança cultural, como o ensejado. Um movimento de ruptura com as orientações anteriores foi dado, assim, uma mudança micropolítica, que aposte no movimento de implicação – desejo e singularização –, pode vir brotar em nós. Mesmo com “movimentos”, poucas novidades apareceram no ensino de graduação em enfermagem; ainda estamos presos a um modo de pensar o ensino universitário e, em especial, o ensino em enfermagem, onde segue vigente o ensino com base nas técnicas, na corporação e no hospital. Cabe salientar que a imposição das DCN de romper a perspectiva medicalizante, biologicista, tecnicista e hospitalocêntrica não está superada, quando as próprias DCN, ao elencarem “competências e habilidades”(i) comuns à área da saúde, pouco inovam. Não há indicação para o desenvolvimento de competências e habilidades que exijam conhecimentos aprofundados no campo da antropologia, filosofia, literatura e arte – ciências humanas e sociais. A proposição da formação generalista indica para a constituição de um “superprofissional”, posto que competente e habilidoso sem aprofundar-se em quaisquer áreas de conhecimento pela escassez de tempo, como, por exemplo, a necessidade de mudança da prática: o estudo sobre integralidade, rede de cuidados progressivos, linhas de cuidado e escuta sensível, entre outras não-competências e habilidades, e o desenvolvimento de modos de gerir o setor da saúde (atenção, gestão, formação e participação) decorrentes do contato vivo e criativo com as culturas locais. A autonomia dada às universidades a partir das DCN não favorece a construção de currículos inovadores, pois há preocupação em garantir uma formação de qualidade e generalista, e, ainda, a 330

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Observamos, nas DCN, em especial na área da saúde, a indicação de competências e habilidades comuns à formação em saúde e competências e habilidades específicas do núcleo profissional que estão centradas no saber técnico de cada profissão. Caberia inverter esta lógica ou apostar apenas nas “macro” competências e habilidades (gerais para a área da saúde), dando, desta forma, possibilidade efetiva às instituições de flexibilizarem suas propostas de ensino a partir do perfil profissional do egresso que desejam formar, inseridas no contexto regional, em que os cursos se instalam ou “acontecem”.


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empregabilidade e o lugar da capacidade superior ao profissional de enfermagem de nível médio, o Técnico em Enfermagem, distinção que recai em procedimentos “hierarquizados”. Neste sentido, as universidades, sobretudo, as privadas, que precisam garantir o acesso e permanência do aluno, mascaram os currículos dando nome diferente aos componentes curriculares ou disciplinas, mas, na prática, reproduzem os velhos modos de ensino. Há dificuldade dos professores na formulação dos planos de ensino das disciplinas, que ainda trabalham com antigos conceitos e antigas práticas. Perante estas situações, temos, por um lado, o campo da educação levando as universidades a se repensarem como o lugar que precisa abrir-se ao compromisso com as diversas realidades e, por isso, o exercício da autonomia e da criatividade deve estar presente. Por outro lado, temos o campo da saúde demonstrando os inúmeros desafios para que o cenário e indicadores do processo saúde-doença sejam mais favoráveis, permitindo à população maior acolhimento em suas necessidades. É neste contexto nacional que o ensino de enfermagem enfrenta um possível desafio: preparar trabalhadores que possam responder às rápidas mudanças tecnológicas, mas, também, políticas do setor da saúde que sejam capazes de penetrar o mundo do trabalho com uma inserção técnico-científica, acima de tudo criativa, crítica e humanista, como ator ativo que constrói lugares sociais e políticos. O setor educacional tem atravessado inúmeras crises, expressas, sobretudo, pelo fato da contraposição entre as concepções hegemônicas, que se apresentam numa pedagogia da transmissão dos conteúdos ou crítico-social dos conteúdos, e as concepções construtivo-interacionistas, sustentadas: na problematização da realidade, na articulação teoria e prática, na interdisciplinaridade, na participação ativa do estudante no processo de ensino e aprendizagem, na valorização da diversidade cultural, na historicidade do indivíduo e na sua inserção no cotidiano da vida. Quando pensamos, portanto, um curso de graduação em enfermagem, resgatamos estes marcos teóricos, históricos e conceituais. São elementos importantes, do ponto de vista político, que nos colocam, sem dúvida, em um novo cenário no campo da formação em saúde, mas que, do mesmo modo, não nos garantem a solução para os inúmeros problemas que ainda temos nas práticas educativas. A inserção de outros modos novamente exige uma disposição e abertura para um “aindanão-saber”, uma proposta de ensino de graduação disposta ao ineditismo. Pensar a proposta de um curso pode dar lugar e possibilidade à formação acadêmica num outro paradigma estético. Como diz Guattari, a possibilidade está implicada numa lógica diferente (campo de virtualidades possíveis). Nesta oportunidade, a lógica das intensidades permite o ineditismo e a novidade num projeto educacional em saúde8. Esta oportunidade, inevitavelmente, está recheada de possibilidades, não apenas para a graduação em enfermagem, mas para a profissão de enfermagem que precisa ser desafiada a assumir um protagonismo importante no seu modo de fazer ciência. A intenção deste texto, contudo, está na revelação de outros modos possíveis de fazer educação em enfermagem, localizando a potência de inéditos, a construção de uma terceira margem e o reconhecimento de que uma mestiçagem é possível entre projetos de si, projetos institucionais e amarras legais. A invenção não está impedida, mesmo quando estamos imbricados com a instituição e as normativas. A invenção não é um projeto subjetivista que resulta em um projeto analítico de si, é a ascensão política, ética e estética para com as práticas do ensinar, gerir a educação e avaliar aprendizagens. Passado o tempo de adequação às DCN e ao SUS, o ensino em enfermagem vive intenso debate na busca de estratégias que possibilitem dar potência na produção de novidade e de capacidade inventiva aos profissionais. Pensar a gestão do ensino em saúde exposta a todas as necessidades do setor da saúde sugere, como necessária, a análise daquilo que tem sido proposto no cenário acadêmico e, também, daquilo que tem sido possível efetivar quanto ao trabalho e à participação social do setor. Quando se trata especificamente do processo de cuidado em saúde, espera-se que aquele em formação aprenda a levar em conta o outro, que o saber científico sirva, sobretudo, para dar conta da singularidade que o momento do encontro cuidador pressupõe (reconhecendo que o ato clínico em saúde reflete uma terapêutica que se efetiva no encontro dos indivíduos). Espera-se a construção de tecnologias apropriadas para dar condição de luta à afirmação à vida. Guattari nos retira de qualquer romantismo quanto à micropolítica: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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[...] as relações de formas mais favoráveis, vão ter, mais cedo ou mais tarde, um encontro marcado com uma experiência de burocratização, como uma experiência de poder. E, inversamente, se os processos de revolução molecular, não forem retomados no nível das relações de força reais (relações de força sociais, econômicas e materiais) pode acontecer de eles começarem a girar em torno de si mesmos como processos de subjetivação em implosão, provocando um desespero, que pode levar até ao suicídio, à loucura ou a algo do gênero.7 (p. 132)

É num contexto de mudança e “movimento” que este texto busca refletir. Trata de mostrar as possibilidades de construção para uma proposta de ensino acadêmico na área da enfermagem, tendo como enfrentamento, com as políticas de ensino e de saúde, a suscetibilidade de atores sociais, a vida nestas políticas e a implicação com propostas, de um lado, normativas e, de outro, disruptoras. Ao longo destes últimos tempos, tempos de vivermos estas rupturas, pouco nos ocupamos em dar conta da preparação dos atores sociais para que pudessem viver este processo. A literatura em questão remete-nos a indicadores, textos, orientações, rotinas, regras, mas pouco nos ensina em como mobilizar a docência, agenciar o ensino-aprendizagem, implicar os atores docentes e discentes, abrirnos ao inédito do “trabalho em ato” do ensino em saúde.

Micropolítica: estrutura curricular e composição das forças Mesmo tendo as DCN significado importante avanço nos processos educativos em saúde, não podemos esquecer que o debate didático-pedagógico ainda é preliminar e não tem sido mobilizado de forma intensa pelas instâncias reguladoras da educação. Na reflexão sobre o pedagógico, vou me dando conta de que a singularidade9(j) é uma categoria importante de ser analisada e, neste texto, é um conceito que tem como referência Guattari e Rolnik. A singularização pode representar a produção de vida, a produção de práticas pedagógicas que fogem da rotina e da repetição. Estamos subordinados às regulações e vamos sendo capturados, mas sempre há possibilidade de singularização, a potencial liberdade de ação que “escorre”, vaza, mesmo em situações burocratizadas de ensino7. Quando nos propomos a pensar os “atos” pedagógicos numa possibilidade de singularização, onde a experiência da formação está na dimensão do sensível, cabe pensar que a experiência é algo que nos passa, ou nos acontece, ou nos toca, como afirma Larrosa. O autor propõe-nos pensar que os atos pedagógicos devem ativar a possibilidade de sentir o que não é visto. Diz o autor que “aquilo que apenas passa, ou o que apenas acontece, ou que apenas toca não gera movimento de singularidade, a singularização é vivência de experiência, experiência de si pelo que acontece, passa ou toca em nós”13 (p. 154). O exercício do pensamento proposto na articulação entre currículo e práticas pedagógicas do currículo trata de atiçar aquilo que não é visto e que está no campo dos sentidos. Tentativa de perceber a educação e, neste caso, o ato pedagógico, numa outra dimensão, que privilegia o que não é formal, regulado e visível. A sensibilidade está em considerar uma educação que permita a experiência por aquilo que nos passa, nos toca ou, melhor dito, aquilo que nos implica/afeta. Com os pensamentos e conceitos de Larrosa, cabe interrogar o que a sociedade espera da escola, neste caso, da universidade: uma proposta pedagógica com intencionalidades, que despeje informações a todo instante,

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Guattari refere que a singularização da subjetividade se faz emprestando, associando, aglomerando dimensões de diferentes espécies. O que o autor quer dizer é que todo o processo de transformação não é uma mudança individual, mas justamente o contrário, há um permanente entrecruzamento7.


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como se a possibilidade da aprendizagem se desse por esta ferramenta tecnológica ou um ciclo integrado de informação-experiência-cognição-aprendizagem? Problematiza Larrosa que [...] depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação do que tínhamos antes sobre alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos passou, que nada nos tocou. Com tudo o que aprendemos, nada nos sucedeu ou nos aconteceu.13 (p. 154)

Justamente a contraposição que este autor nos indica é de quanto o processo educativo precisa reconhecer que aprender é muito mais do que processar informação. Mais ainda: que o aprender, que ele nos indica como sendo a possibilidade da experiência, está naquilo que efetivamente nos toca, nos passa, nos acontece, ou seja, há algo não visto, não enquadrado, não regulado, que perpassa a proposta de formação acadêmica, que tem a potência de produzir uma aprendizagem que transforma os saberes instituídos. A intenção, neste momento, é a de apresentar o contraponto entre o que está explicitamente escrito/proposto e o que não está escrito, é apenas sentido nos processos acadêmicos, como, também, retomar o que está presente no mecanismo regulador da Educação Superior, neste caso, as Diretrizes Curriculares Nacionais, nos propondo a fazer, por este viés, certa reflexão daquilo que, muitas vezes, não está presente de modo visível, mas revela, de modo muito especial, qual proposta educativa assumimos. Para seguirmos a orientação dos instrumentos reguladores, neste caso as DCN, destacamos do documento o que se espera de um profissional da área da enfermagem, iniciando pelo que define a Resolução do CNE/CES nº 03/2001, para o perfil do egresso: [...] enfermeiro, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, caracterizando um profissional qualificado para o exercício de enfermagem, com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios éticos; sendo capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes; com capacidade para atuar, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.11 (p. 1)

Este documento, em seu artigo 4º, apresenta a descrição das competências e habilidades gerais que precisam ser exploradas em todas as propostas de formação na área da saúde e, por conseguinte, na área da enfermagem. O artigo 4º é o mesmo para o conjunto de cursos de graduação das profissões regulamentadas e reunidas pela área de conhecimento das Ciências da Saúde, exceto a Educação Física. Apresento-as na íntegra por retomar mais adiante, ao longo da texto, suas designações. São competências e habilidades gerais do profissional da saúde: I – Atenção à saúde; II – Tomada de decisões; III – Comunicação; IV – Liderança; V – Administração e gerenciamento; VI – Educação permanente11. A descrição das competências gerais no documento das DCN explicita os caminhos que se espera que um curso de graduação na área da saúde percorra para que a formação profissional esteja adequada às necessidades de saúde do país, com vistas ao fortalecimento das políticas públicas11. Cabe destacar que competências gerais indicam um trabalho em saúde que atenda as diversidades sociais e culturais, além de priorizar ações de promoção e prevenção de saúde. Com isto, abre-se a possibilidade e a necessidade de que o percurso de formação acadêmica proporcione, ao estudante, conhecimento das ciências sociais e humanidades, ou seja, uma proposta que permita o ensino da literatura, arte, música, antropologia, sociologia, filosofia.

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No que diz respeito às competências e habilidades específicas, neste caso, então, as competências e habilidades específicas dos profissionais da enfermagem, temos escritas, no artigo 5º das DCN, as referências que devem subsidiar os projetos de formação acadêmica, também com destaque às questões que priorizam o atendimento integral, o trabalho em equipe e o conhecimento do sistema de saúde vigente no país11. Em todo o texto das DCN, percebemos a intenção de formar um profissional que atenda às necessidades do campo da saúde com iniciativa, reflexão, motivação, liderança, e que atue com competência e profissionalismo em todas as áreas do cuidado em saúde. Espera-se que os profissionais estejam aptos a enfrentar a complexidade, as surpresas e as novidades que o mundo real apresenta cotidianamente; desta forma, precisamos apostar em propostas de aprendizagens que extrapolem o treinamento e a formalidade, temos de gerar condições para a Educação Permanente, no trabalho, na formação continuada, na vida de relações, no exercício do cuidado e no comportamento cidadão11. Meyer e Kruse, ao debaterem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação em Enfermagem, indicam que o texto do documento pode suscitar variadas leituras. Por exemplo, destacam a expressão “enfermeiro com formação generalista”. Qual é o significado desta expressão? No que ela se diferencia de formação geral? A expressão “generalista” comporta múltiplas interpretações, o que, por si só, determina a liberdade de indicação sobre o tipo de profissional que se deseja formar. O perfil do egresso assinalado no projeto pedagógico deveria ser pactuado com os estudantes e coletivamente com os cenários de prática14. Precisamos explorar, nos documentos referenciais e reguladores da Educação Superior – e em especial no documento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação –, os espaços ou lacunas que possibilitam propostas pedagógicas inovadoras, ou seja, algo, alguma coisa, que indique que é no estranhamento, no pensamento não disciplinado, que a aprendizagem tem sua maior potência: possibilidade de produção de singularidade no saber e no ato profissional. Não necessariamente um documento regulador precisa ter este caráter, é compreensível que seja normativo; o que propomos como exercício de reflexão é conseguirmos perceber as potências de liberdade que nos permitam fazer emergir algo de inédito, não apenas no plano das formas, mas, sobretudo, nos “modos” de tornar-se profissional11,14.

Conclusão Quando se trata de pensarmos numa proposta de ensino na saúde – o que é possível do ponto de vista da macropolítica e o que produz singularidade, micropolítica –, é preciso reconhecer e perceber que tanto num projeto pedagógico de um curso de graduação como num documento regulador, a política de ensino, há uma possibilidade entre possíveis. A questão está em perceber que existem brechas que, conforme Foucault, são os espaços vazios ou programa vazio, referindo-se à imprevisibilidade e processualidade das relações. Ou seja, um espaço aberto que permite novas formas e criação, onde há uma potência de liberdade que permite tanto aos estudantes como aos docentes pensarem, sentirem e viverem a delicadeza do aprender 5. No confronto entre o macro e o micropolítico, podemos também trazer o pensamento de Larrosa em relação a estas questões, quando este autor nos diz que precisamos preservar o silêncio. Para Larrosa, a falta de silêncio é o que nos impossibilita a experiência. Larrosa fala da “lógica de destruição generalizada da experiência”, dizendo-nos que está “cada vez mais convencido de que os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça” Assim, nesta relação entre micro e macropolítico, precisamos criar possibilidades de permitir a escuta ao silêncio. Dar oportunidade para que se sinta aquilo que se faz, estuda, propõe. De nada adianta um acúmulo de conteúdo, disciplina – garantindo-se as indicações macropolíticas – se não damos tempo, oportunidade ou espaço de silêncio para que possamos pensar, sentir e refletir acerca daquilo que ensinamos e aprendemos, que, conforme Larrosa, é pensar que o “currículo quase sempre se organiza em pacotes, cada vez mais numerosos e mais curtos”. Com o que, também em educação, sempre estamos acelerados e nada nos acontece13 (p. 158). 334

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artigos

Chaves SE

A aceleração constante com que vivemos as atualizações científicas ou tecnológicas necessárias, o papel que se espera da universidade quanto à pesquisa e ao desenvolvimento, e todas as normas que um curso formal nos obriga a cumprir nos levam a uma rotina e velocidade que capturam toda a possibilidade de criação. No cenário de correria e atrapalhação, geralmente somos impedidos de saborear, explorar, rever, deixar percutir... E, assim, detectar potências, acolher possíveis e apropriarmonos dos espaços invisíveis dos processos educativos.

Referências 1. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1988. 2. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. 3. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. 4. Ceccim RB, Feuerwerker LM. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis. 2004; 14(1):41-65. 5. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2000. 6. Guattari F. As três ecologias. Campinas: Papirus; 1999. 7. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes; 1999. 8. Guattari F. Linguagem, consciência e sociedade: SaúdeLoucura. São Paulo: Hucitec; 1990. 9. Guattari F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34; 1992. 10. Ceccim RB, Pinheiro R, Mattos RA. Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005. 11. Resolução CES/CNE n. 3, de 07 de novembro de 2001. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em Enfermagem. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001. 12. Ceccim RB, Feuerwerker LM. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10. 13. Larrosa J. Linguagem e educação depois de Babel. Farina C, tradutor. Belo Horizonte: Autêntica; 2004. 14. Meyer DE, Kruse MHL. Acerca das diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: um início de reflexão. Rev Bras Enf [Internet]. 2003 [acesso 2012 Jun 11]; 56(4):335-9. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/61847

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Chaves SE. Los movimientos macro-políticos y micro-políticos en la enseñanza de graduación en Enfermería. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):325-36. El trabajo tematiza la Educación Superior en enfermería, considerando: las Directrices Curriculares Nacionales (DCN), la adecuación de la formación profesional a las necesidades del Sistema Brasileño de Salud y la construcción de prácticas cuidadoras en la atención integral de la salud. La reflexión se realiza en el ámbito de la pedagogía universitaria relativa a la formación de las profesiones superiores reglamentadas en Brasil en su orientación para el cuidado. El cuidado surge como producción de atención integral de la salud, identificación con los usuarios de la atención profesional de salud, comprensión del sistema sanitario como respuesta en red a las necesidades sociales en salud y formación como un audaz proceso de subjetivación, desafiador de autonomías inventivas de sí y del mundo.

Palabras clave: Educación superior. Pedagogía universitaria. Educación en Enfermería. Directrices Curriculares en Enfermería. Cuidado en salud.

Recebido em 22/08/13. Aprovado em 18/02/14.

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0158

Interdisciplinaridade no ensino em saúde: o olhar do preceptor na Saúde da Família

Emanuella Pinheiro de Farias Bispo(a) Carlos Henrique Falcão Tavares(b) Jerzuí Mendes Tôrrez Tomaz(c)

Bispo EPF, Tavares CHF, Tomaz JMT. Interdisciplinarity in healthcare education: the preceptor’s view of family health. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):337-50.

Evidence of inadequacy regarding family health strategy preceptors’ actions in relation to interdisciplinarity led to a proposal to examine how these professionals are working. This was a descriptive study with a qualitative approach that was developed in the Second Health District of Maceió, Alagoas, Brazil, among a population of nine subjects. Open or in-depth interviews were conducted from the perspective of content analysis. From this analysis, the registry units were: activities developed in day-to-day work within the family health strategy; experience from daily professional practice; meaning of interdisciplinarity; professional/academic education in relation to interdisciplinary practice; benefits of interdisciplinary practice for students’ teaching-learning process. The data pointed towards the need for continuing health education as a powerful strategy for improvement of interdisciplinary practice.

Keywords: Healthcare education. Preceptor. Interdisciplinarity. Family Health Strategy.

Indícios de inadequação na atuação dos preceptores da Estratégia da Saúde da Família (ESF) no que concerne à interdisciplinaridade, levaram à proposta de analisar como esses profissionais estão atuando. Trata-se de estudo descritivo de abordagem qualitativa, desenvolvida no II Distrito Sanitário de Maceió-AL, Brasil, com um universo de nove sujeitos. Utilizou-se a “entrevista aberta ou em profundidade”, sob a perspectiva da análise de conteúdo. Após análise, as unidades de registro foram: atividades que desenvolve no dia a dia de trabalho na ESF; vivência na prática diária profissional; significado de interdisciplinaridade; formação acadêmica/profissional no que se refere à prática interdisciplinar; benefícios das práticas interdisciplinares no processo ensino-aprendizagem dos alunos. Os dados apontam para a necessidade de Educação Permanente em Saúde como estratégia potente para o aperfeiçoamento da prática interdisciplinar.

Palavras-chave: Educação em Saúde. Preceptor. Interdisciplinaridade. Estratégia da Saúde da Família.

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(a) Núcleo de Ciências Humanas e Sociais e de Políticas Públicas, Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas. Rua Jorge de Lima, 113, Trapiche da Barra. Maceió, AL, Brasil. 57010-300. emanuellapinheirofbispo @gmail.com (b,c) Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Alagoas. Maceió, AL, Brasil. carloshenri@ rocketmail.com; jerzuitomaz@hotmail.com

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Introdução O modelo pedagógico tradicional de ensino em saúde incentiva a especialização precoce, com uma formação voltada para uma abordagem biologicista e medicalizante1. A interdisciplinaridade se apresenta, então, como uma possibilidade para uma nova postura, visto que o aprofundamento dos conhecimentos científicos e os avanços técnicos não são suficientes para satisfazer a amplitude de possibilidades que a área da saúde necessita2. Para se entender o sentido de “interdisciplinar”, é preciso saber o que vem a ser “disciplina”. Para este autor, falar de interdisciplinaridade é falar de interação de disciplinas3. Uma disciplina tem o mesmo sentido de “ciência”, de “disciplinaridade”, que se caracteriza pelo domínio dos objetos de estudo dos quais se ocupa, pelas especificidades e pela forma como prevê e explica os fenômenos3. Desse modo, a interdisciplinaridade é o encontro de diferentes disciplinas, seja na perspectiva pedagógica ou epistemológica, para a construção de um novo saber. Este saber, por sua vez, é produzido pela intersecção dos diferentes saberes/disciplinas. Uma visão interdisciplinar deve estar presente tanto no campo da teoria como no da prática, seja essa prática de intervenção social, pedagógica ou de pesquisa4,5. Para a prática da interdisciplinaridade, vale refletir sobre o conceito de “integralidade”, esta que é uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988. O SUS está organizado em torno de três diretrizes: a descentralização; o atendimento integral; e a participação da comunidade. Dessa forma, para a execução da integralidade (atendimento integral) ocorre, de forma efetiva, a necessidade de uma prática interdisciplinar6-8. Na perspectiva do Ensino em Saúde/SUS, as novas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em saúde afirmam que a formação do profissional desta área deve contemplar o sistema de saúde vigente no país, o trabalho em equipe e a atenção integral à saúde, reafirmando a prática de orientação ao SUS9-12. E a universidade, nesta perspectiva do Ensino em Saúde, passa a ser responsável por formar profissionais que estabeleçam uma relação de reciprocidade com a sociedade13-15. No campo do Ensino na Saúde com enfoque no SUS, utilizando como ferramenta a Estratégia de Saúde da Família (ESF), algumas formas específicas de ensinar e aprender devem ser priorizadas. A ESF é fundamental na operacionalização da Política da Atenção Básica16, pois possui um olhar voltado para a família, em que a saúde é vista não apenas como ausência de doença, mas, sim, considerando fatores como: a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais17. A ESF prioriza o trabalho em equipe, a responsabilização compartilhada no planejamento e execução das ações, além da interdisciplinaridade e integralidade que devem estar presentes nestas ações18. No contexto de ensino da ESF, o preceptor é o profissional que não é da academia, e sim do serviço, com formação superior na área de saúde, e tem o papel de estreitar a distância entre a teoria e a prática na formação dos discentes. Este profissional apresenta como funções: orientar, dar suporte, ensinar e compartilhar experiências que melhorem a competência do discente19. Espera-se que a relação entre o preceptor e o discente seja horizontal, que se estimule o ato de pensar e construir hipóteses, e que o aluno descubra, nesta relação, a importância do trabalho coletivo20. O preceptor deve se preocupar, sobretudo, com a competência clínica e com os aspectos de ensinoaprendizagem do desenvolvimento profissional, além de favorecer a aquisição de habilidades e competências para os discentes nos locais de prática em que estes estão inseridos. Cabe, também, ao preceptor criar as condições necessárias para que mudanças sejam implementadas de maneira satisfatória durante o processo de formação dos estudantes19. Nessa perspectiva, o Ensino Superior no Brasil tem, entre seus principais desafios, buscar superar conceitos vinculados apenas ao conhecimento técnico e biológico, o que favorece a evolução para uma prática interdisciplinar e integral dos cuidados21-23. Para tanto, o exercício da interdisciplinaridade possibilita a formação de profissionais que tenham possibilidades mínimas de trabalhar em conjunto e criar condições para um cuidado mais integrado e integrador aos usuários do SUS24. É necessário transformar conceitos e práticas de saúde que orientam o processo de formação acadêmica e profissional em saúde25,26. 338

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Concomitante a uma fragmentação e excessiva especialização do conhecimento, resultado do avanço tecnológico e isolamento das disciplinas, a interdisciplinaridade tem estado no centro das discussões acerca do desenvolvimento da ciência e das práticas sanitárias27. Neste contexto, tornou-se viável realizar a pergunta desta pesquisa: Como os preceptores das unidades de saúde da família do II Distrito Sanitário de Maceió estão atuando quanto à interdisciplinaridade?

Percurso metodológico O presente estudo, desenvolvido no ambiente da área de ensino na saúde, correspondeu a um estudo descritivo de abordagem qualitativa. A pesquisa foi desenvolvida no II Distrito Sanitário (DS) do Município de Maceió-AL que, por sua vez, é dividido, atualmente, em sete DS, áreas geográficas que se organizam sob uma base territorial com características epidemiológicas e sociais semelhantes. Esta pesquisa permitiu uma aproximação com o objeto central de estudo – a interdisciplinaridade – por meio das informações colhidas durante o processo de investigação. Apresentou como objetivo analisar como a interdisciplinaridade é instrumentalizada pelos preceptores nas ações de saúde das ESF do II DS de Maceió. Como também, mais especificamente: conhecer as práticas dos preceptores relacionadas à interdisciplinaridade; compreender a formação acadêmica/profissional dos preceptores quanto à interdisciplinaridade; analisar os benefícios das práticas interdisciplinares no processo ensino-aprendizagem dos discentes; propor sugestões à Instituição de Ensino Superior e à Secretaria Municipal de Saúde quanto à prática interdisciplinar. A escolha do instrumento de coleta de dados foi configurada a partir do aprofundamento teórico do objeto de estudo. Optou-se pelo instrumento de coleta de dados “entrevista aberta ou em profundidade”28, com questões norteadoras, o que permitiu, ao entrevistador, explorar amplamente as questões desejadas. Após a fase de aprofundamento teórico e elaboração do instrumento de coleta de dados, os sujeitos foram recrutados. Para tanto, foram utilizados, como critérios de inclusão: ser profissional preceptor da ESF de umas das unidades que compõem o II DS de Maceió; ser profissional da saúde de formação Superior; estar recebendo discentes de IES durante o período de realização da pesquisa. A inadequação a qualquer dos critérios foi considerada como único critério de exclusão. Desse modo, foram incluídas, neste estudo, quatro das cinco equipes de ESF desse distrito. De acordo com os critérios de inclusão, os sujeitos, em sua totalidade, aceitaram participar desta pesquisa, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram totalizados nove sujeitos, dispostos em quatro ESF do II DS do município de Maceió. O período de execução da pesquisa ocorreu de julho a agosto de 2012. O universo dos sujeitos é apresentado nos quadros 1 e 2, contendo os dados de identificação pessoal (caracterização dos sujeitos da pesquisa) e dados complementares da prática profissional. Como forma de análise dos dados, foi escolhida a Análise Temática que, por sua vez, utiliza o “tema”29 como conceito central e pode ser graficamente apresentado mediante uma mensagem; esta pode ser uma palavra, uma frase ou um resumo28. E, para analisar o conteúdo destas mensagens, foram utilizadas as Unidades de Registro (UR)28. Todas as gravações das entrevistas foram transcritas na íntegra. Sobre esse material realizou-se leitura exaustiva para apropriação do conteúdo, seguindo o modelo para tratamento, redução e análise, conforme preconizado pela literatura28,29. Para a interpretação dos dados, os resultados da pesquisa foram confrontados com o referencial teórico sobre Interdisciplinaridade, ESF, Ensino em Saúde, na busca por conteúdos coerentes, singulares ou contraditórios. Após a análise de conteúdo das respostas descritas pelos participantes, os relatos em comum e a aproximação com o objeto deste estudo, as Unidades de Registro (UR) intituladas foram as seguintes: UR 1. Atividades que desenvolve no dia a dia de trabalho na ESF UR 2. Vivência na prática diária profissional UR 3. Significado de Interdisciplinaridade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Quadro 1. Caracterização dos participantes da pesquisa em relação à idade, gênero e formação acadêmica. Ano de Formação Acadêmica – conclusão Graduação

Formação Complementar

Sujeito

Idade

Gênero

1

45

F

Medicina

1991

Residência em Pediatria; Residência em Clínica Médica

2

41

F

Fisioterapia

1993

Mestrado em Saúde Coletiva

3

44

M

Medicina

1991

Residência em Cirurgia Geral e Urologia; Especialização em Saúde da Família

4

58

M

Medicina

1978

Residência em Clínica médica

5

54

F

Enfermagem

1978

Mestrado em Ciências da Saúde

6

35

F

Serviço Social

2000

Pós-graduação em Gestão e Controle Social das Políticas Públicas

7

54

F

Enfermagem

1979

Especialização em Saúde da Família; Especialização em Urgência-Emergência

8

40

F

Enfermagem

1991

Especialização em Administração Hospitalar; Especialização em Auditoria; Especialização em Urgência-Emergência

9

44

F

Medicina

1995

Especialização em Pediatria

Fonte: Elaborado pelos autores, 2013.

UR 4. Formação acadêmica/profissional no que se refere à prática interdisciplinar UR 5. Benefícios das práticas interdisciplinares no processo ensino-aprendizagem dos discentes UR 6. Sugestões para aperfeiçoar a prática interdisciplinar

Resultados e discussão Na primeira UR (UR1), que diz respeito às Atividades que desenvolve no dia a dia de trabalho na ESF, perceberam-se ações voltadas à assistência curativa, contemplando a maior parte das falas, e nenhum relato tratou do trabalho em equipe, nem destas equipes de saúde com ações de prevenção de agravos e promoção à saúde de forma prioritária. Saliente-se que estas ações educativas de prevenção e promoção, além de serem preconizadas pela ESF, também possibilitam a integração das diferentes categorias profissionais presentes nas equipes de saúde e deveriam contemplar o cotidiano de trabalho destas equipes da ESF. Sujeito 2. “Como a gente tem uma demanda reprimida, é feito também, atendimento domiciliar”. Sujeito 3. “Aqui na ESF, a gente trabalha com as consultas voltadas para a cobertura dos diversos programas que são inseridos na ESF, dentre eles as consultas do hipertenso, do diabético, saúde da mulher [...]”.

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Quadro 2. Caracterização dos participantes da pesquisa em relação aos cursos de capacitação para preceptoria e aos locais de atuação profissional. Participou de alguma capacitação para o cargo de preceptoria (sim/não) / Instituição que ofertou

Característica da capacitação (Teórica, Prática, teórico-prática)

Atua como professor em Instituição de Ensino Superior - IES (sim/não) / Instituição

Outro(s) local(ais) de trabalho

1

Não

—-

Não

—-

2

Não

—-

Sim/ IES Pública

Hospital Particular, IES Pública e IES Particular

3

Não

—-

Não

Hospital Público

4

Não

—-

Sim/IES Pública

Consultório particular

5

Não

—-

Sim/ IES Particular

IES Pública e IES Particular

6

Sim/ SecretariaMunicipal de Saúde de Maceió

Teórica

Não

—-

7

Não

—-

Não

—-

8

Não

—-

Não

—-

9

Sim/ Hospital Sírio Libanês

Teórico-prática

Não

Hospital Público e Consultório particular

Sujeito

Fonte: Elaborado pelos autores, 2013.

Sujeito 6. “No dia a dia a gente faz atendimento individual; nesses atendimentos, eu faço também encaminhamentos”. Sujeito 7. “Eu faço os programas da estratégia, né? Saúde da mulher, pré-natal, crescimento-desenvolvimento, faço as visitas domiciliares”. Sujeito 8. “Realizo atendimento pré-natal, crescimento-desenvolvimento, puericultura, hipertensos, diabéticos, planejamento familiar, citologia, visitas e palestras”.

A interdisciplinaridade é um dos elementos, ou um dos caminhos que possibilita aproximações de uma prática de Atenção Integral em Saúde30. E a integralidade deve estar articulada à necessidade de se modificar uma forma fragmentada e desarticulada de agir em saúde, como visto na UR1. Para modificar esta prática desarticulada e individualista, a ESF surgiu como uma ferramenta de ação do SUS, possivelmente eficaz para operacionalizar a prática em saúde com uma visão interdisciplinar. E estas práticas interdisciplinares, no âmbito do ensino, são fundamentais para a formação em saúde. Observou-se, então, que ações interdisciplinares, seguindo os princípios orientadores do SUS, como a integralidade, apresentam-se como desafios no Ensino em Saúde. Um desses desafios é oferecer uma contrapartida à influência do modelo fragmentado de organização do trabalho, em que cada profissional realiza parcelas do trabalho sem uma integração com as demais áreas envolvidas. Dessa forma, em um estudo, os autores sustentam que, nas Diretrizes Curriculares Nacionais, a saúde é considerada uma área interdisciplinar, pois seu objeto, que seria o processo saúde-doença humano, envolve as relações sociais, a biologia e as expressões emocionais31. Outros autores, por sua

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vez, apontam para a importância das ações coletivas, valorizando o saber do outro32. Entende-se, assim, que o conhecimento é um processo de construção compartilhada, o que proporciona um maior entendimento das ações interdisciplinares em saúde. A UR2 trata da Vivência na prática diária profissional. Os participantes da pesquisa trouxeram dados voltados ao relacionamento interpessoal entre os membros das equipes. Os sujeitos justificaram o fato de não priorizarem as atividades interdisciplinares devido à grande demanda da população pelo atendimento individual, ou seja, pelo atendimento especializado. Os resultados desta UR demonstraram que os profissionais entrevistados não vivenciam as ações interdisciplinares em saúde em suas respectivas equipes de ESF. Sujeito 1. “Eu não tenho problemas com a equipe não”. Sujeito 3.”Toda a situação de trabalho diário que eu tenho quem faz o planejamento sou eu, sou eu que faço o planejamento, dentro das necessidades que a gente encontra no trabalho. [...] o relacionamento com os outros profissionais, técnico de enfermagem, enfermeiros e tudo é dentro do padrão de respeito ao seu espaço. Pronto”. Sujeito 4. “Às vezes eu até me pego fazendo a medicina tradicional, porque a ansiedade da população é a consulta médica, a demanda, e quer que a gente atenda e cada vez mais [...] a gente vem tentando trabalhar a equipe, inclusive vem tentando trabalhar o que seria uma equipe de saúde da família, mas a necessidade é tanta, o sofrimento é tanto!”. Sujeito 7. “Mas acho que eu vivencio as dificuldades no cotidiano do trabalho. Muitas dificuldades, principalmente de convivência com os outros profissionais. A gente se dá bem, mas cada um fazendo o seu, sem invadir o espaço do outro”. Sujeito 9. “E com a minha equipe, eu tenho um relacionamento bom, sabe? Com a enfermeira da minha equipe, com os agentes de saúde, né?”.

Os resultados desta pesquisa demonstraram que, dentro da prática profissional, que valoriza o trabalho em equipe, os profissionais de saúde, sujeitos deste estudo, não priorizam a interação entre as diferentes disciplinas, sobretudo quando esta comunicação é dirigida às práticas interdisciplinares em saúde. Este fato, na maioria das vezes, foi justificado pelos sujeitos como falta de tempo para o diálogo. Esta falta de tempo pode sugerir um obstáculo à interação das disciplinas, visto que elas precisam de uma cooperação mútua para que ações interdisciplinares aconteçam de forma concreta. A comunicação se dá mediante a metodologia interdisciplinar que significa, antes de tudo, “falar de disciplinas operantes e cooperantes”3. Isto remete à importância do diálogo entre as diferentes categorias profissionais para que a prática interdisciplinar aconteça. A valorização dos espaços de reflexão dos atores em saúde é essencial como espaços de troca, de interação e comunicação. Dessa forma, os sujeitos relataram a necessidade de reorganização do trabalho nas ESF para, enfim, existir a possibilidade de interação entre as categorias profissionais em saúde33. Na UR3, que trata do Significado de Interdisciplinaridade, observou- se um desconhecimento do conceito de interdisciplinaridade. Alguns profissionais demonstraram uma confusão com multidisciplinaridade e, ainda, alguns se aproximaram do significado de interdisciplinaridade. Porém, neste caso, a interdisciplinaridade é vista como algo teórico apenas, sem ligação com a prática interdisciplinar. Sujeito 1. “Inter o que? O que você quer saber? [...] trabalhar com outros profissionais? [...] a gente faz um trabalho junto”.

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Sujeito 3. (risos) “Interdisciplinaridade... Eu entendo assim, é... interdisciplinaridade... Deixa eu ver... Eu entendo que interdisciplinaridade seria uma... Uma gama de profissionais, trabalhando em atividades diferentes, mas que se complementam. Nós, médicos [...]. A gente quer o imediatismo da coisa, mas a coisa não funciona no imediatismo. Então a gente sofre bastante nesse processo de interdisciplinaridade”. Sujeito 4. “Mas eu não consegui ainda, talvez pela dinâmica do processo de formação, esse mesmo sentido, de formar os alunos de medicina com essa interdisciplinaridade. Existe a relação entre as categorias, mas eu ainda não consegui unir, fazer com que os alunos de medicina vivenciem isso também na prática, apesar de eles sentirem que a gente faz isso”. Sujeito 6. “É a gente fazer um trabalho único, mas ele fracionado de maneira que o usuário entenda do que estamos falando”. Sujeito 7. “Interdisciplinaridade? Interdisciplinaridade? Eu acredito que seja quando tem um trabalho em equipe não é? Esses conceitos são muito complicados! Cada um que diga que é uma coisa. Mas acho que é quando se consegue fazer um trabalho em conjunto, vários profissionais, né?”. Sujeito 8. “Eu acredito que seja o conjunto de várias profissões... o médico, o enfermeiro, dentista. Todo mundo junto. É isso? Não tenho certeza. [...] aí a gente faz esse trabalho junto”. Sujeito 9. “Você faz a sua parte, mas e aí? Tem coisas que você precisa, né? Do contato com o outro”.

Outro estudo aponta uma grande dificuldade dos sujeitos em conceituar a interdisciplinaridade quando relacionada à prática, com uma tendência à multidisciplinaridade. Nas ações multidisciplinares existem diferentes categorias profissionais que, não necessariamente, dialogam entre si33. Enquanto que, para que a interdisciplinaridade aconteça, é preciso existir a interação das disciplinas em torno de um objetivo em comum, na construção de um novo saber3. Outras questões também surgiram na UR3, como o fato de que a maioria dos profissionais demonstrou saber que trabalhar de forma interdisciplinar é algo essencial na ESF e, como preceptores, presentes na formação dos discentes, reconheceram ser responsáveis por transmitir a prática interdisciplinar na ESF para os discentes. Porém, identificaram as limitações de sua formação acadêmica no que diz respeito à teoria e à prática da Interdisciplinaridade. Outros autores afirmam que a prática dos profissionais na ESF ainda é fundamentada em uma formação superespecializada e em um isolamento das categorias profissionais34. Este isolamento das disciplinas pode ser visualizado nos fragmentos de fala dos sujeitos deste estudo, sobretudo quando se observa uma redução das ações em saúde apenas às práticas curativas e individuais e um distanciamento das ações de promoção à saúde e prevenção de agravos, primordiais na ESF e essenciais para o entendimento da interdisciplinaridade. Percebe-se que as limitações da formação acadêmica do preceptor remetem à capacitação deste. É preciso que este profissional reconheça o seu papel de protagonista das práticas curriculares dos discentes no que tange à Interdisciplinaridade. Para tanto, na medida em que os profissionais e futuros profissionais da saúde aprendem apenas os aspectos técnicos de sua profissão e não compreendem como se articular com outras categorias profissionais, a formação universitária, por si só, não possibilitará a atuação interdisciplinar35. Desse modo, acredita-se que apenas o aprofundamento dos conhecimentos científicos e os avanços técnicos não sejam suficientes para contemplar a área da saúde. Assim, a interdisciplinaridade se apresenta como facilitadora na construção de uma visão mais ampliada, pautada na integração das diferentes categorias profissionais e com o objetivo de elaborar um novo saber. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Na UR4, que tratou da Formação acadêmica/profissional no que se refere à prática interdisciplinar, a maioria dos sujeitos não apresentou, nas suas falas, ter conhecido e vivenciado a interdisciplinaridade durante a formação acadêmica. Já na formação profissional, a busca pelo conhecimento da interdisciplinaridade demonstrou ser de iniciativa individual. Sujeito 1. “Na época nem se falava nisso. Eu venho de uma formação totalmente diferente da formação de hoje”. Sujeito 4. “A minha formação [...] era medicina e medicina pensando em doença. Só medicina. Apesar de o curso dizer uma coisa que era formar o médico generalista e blá-bláblá, na prática não era, não era porque a gente via só disciplinas e as disciplinas falando das doenças de cada disciplina”. Sujeito 5. “Mas na minha formação não teve e a gente não vê essa prática, assim, nem das faculdades, nem no serviço de tentar ajustar, né?!”. Sujeito 7. “Na minha graduação eu não tive nada, não que eu lembre. Era só a enfermagem com a enfermagem. Só e só. Na pós que eu fiz era só teoria, não tive nada prático de equipe, até na especialização que fiz com outras categorias profissionais era cada um fazendo o seu, falando sobre sua área”. Sujeito 8. “Nunca tive nada disso. Nem durante a graduação nem na pós-graduação que fiz. Acho que não sei direito o que é interdisciplinaridade não”.

Estes profissionais relataram atuar em equipe, porém demonstraram dificuldade em executar esta prática dentro da ESF e repassar esta formação interdisciplinar para os discentes. Percebeu-se que os profissionais preceptores desta pesquisa, em sua maioria, desconhecem a teoria/prática da interdisciplinaridade, aproximando-a de outros conceitos, como a multidisciplinaridade e a disciplinaridade. De acordo com os dados de caracterização dos sujeitos da pesquisa (quadros 1 e 2), os mesmos, em sua grande maioria, não tiveram uma formação específica para atuar na Estratégia de Saúde da Família. Considerando dados como idade, ano de graduação e formação complementar, observa-se que os profissionais não estão preparados para uma prática interdisciplinar de caráter integrador, visto a deficiência na formação acadêmica e de pós-graduação. Outros autores sustentam que a sociedade atual exige que a universidade não somente capacite os acadêmicos para futuras habilitações nas especializações tradicionais, mas que tenha em vista a formação destes, para desenvolver suas competências e habilidades em função de novos saberes que se produzem e que exigem um novo tipo de profissional, sem dissociar a teoria da prática36. Estes novos saberes dizem respeito, sobretudo, à capacidade de trabalhar na perspectiva da interdisciplinaridade. O conhecimento de outras profissões proporciona a ampliação do olhar dentro do campo da saúde e, consequentemente, a construção integrada de um novo saber. Saber, por sua vez, elaborado pela intersecção das diferentes categorias profissionais. Esta integração das disciplinas/profissões só pode ser compreendida de forma mais concreta quando a teoria e a prática interdisciplinar estão vinculadas. Desse modo, o cenário de prática, durante a formação acadêmica dos discentes, é o lugar privilegiado para compreender a interdisciplinaridade, especialmente quando este cenário é a ESF, um dos campos de operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS. Portanto, é preciso possibilitar os espaços de interação nos cenários de prática, como, também, é necessário que o profissional preceptor seja conscientizado do seu protagonismo nas práticas curriculares dos discentes no que diz respeito à interdisciplinaridade30. O preceptor, neste espaço de serviço e formação acadêmica, deve tornar-se um dos principais facilitadores da prática interdisciplinar. O que beneficia tanto a população assistida por meio das ações

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integradas em saúde, quanto a formação dos discentes. Além disso, também a formação do aluno deve ser vista de maneira integral pela instituição formadora. Esta formação integral facilita a construção de uma relação de cooperação entre professor/preceptor e discente. O que, por sua vez, acredita-se que proporcione a abertura de caminhos para o reconhecimento da importância da interação com outras áreas de formação acadêmica. “Uma educação só pode ser viável se for uma educação integral do ser humano. Uma educação que se dirige à totalidade aberta do ser humano e não apenas a um de seus componentes”37 (p. 13). Na UR5, que tratou sobre os Benefícios das práticas interdisciplinares no processo ensinoaprendizagem dos discentes, os sujeitos reconheceram que a interdisciplinaridade é importante e pode ser o diferencial na formação dos futuros profissionais para o SUS, mesmo as URs anteriores demonstrando que os próprios sujeitos não praticam e/ou desconhecem a interdisciplinaridade. Sujeito 1. “Tem sim. Cada um tem que ver o valor profissional do outro, né?” Sujeito 3. “Na visão dos colegas que são de outras especialidades, de outras profissões, eles veem a gente como adversários, mas não somos adversários de ninguém, nós estamos apenas querendo é que as coisas sejam cumpridas de acordo com o que deve ser feito. Então, pra mim, não me oponho, desde que a minha competência ela não seja usurpada, ela não seja invadida”. Sujeito 4. “Eu acho que sim, e uma das coisas que eu falo sempre e procuro executar é de que o médico não é senhor todo poderoso de uma equipe e que cada profissional tem a sua importância naquilo que a gente se propõe a fazer”. Sujeito 6. “É muito, muito importante. A gente tem que saber o seguinte: nós somos [...] uma equipe. O ideal é que todo mundo pensasse assim. [...] isso é muito importante para a formação do aluno, que ele também aprenda. Eu acho assim, a medicina muito individualista, né?”. Sujeito 7. “[...] trabalhar em equipe, ver o que o outro faz. Tem a resistência da medicina também. Dos alunos principalmente... Eu acho que deve ser a formação. Aí existem essas barreiras que impedem”. Sujeito 8. “Sim, acredito que devam existir benefícios, né? Trabalhar junto com os agentes, com o dentista, pelo menos fazer as visitas, já deve ser um ganho grande. É um impacto pra eles chegar aqui na comunidade, se comunicar com os outros profissionais”. Sujeito 9. “Os meus alunos de medicina, eles não participam das ações interdisciplinares, infelizmente. Se eles participassem, teriam benefícios, né?”.

Os profissionais parecem demonstrar que o principal benefício da interdisciplinaridade na formação dos discentes está ligado apenas à relação interpessoal. Acredita-se que os benefícios vão além desta relação, pois possibilita a construção integrada das ações em saúde e o reconhecimento das outras categorias profissionais na construção de um novo método/objeto. Dessa forma, a interdisciplinaridade pode se situar como alternativa para a fragmentação excessiva do conhecimento e auxiliar na elaboração de um novo saber5. Outra questão que foi observada nos resultados deste estudo foi a resistência da categoria médica para o possível trabalho interdisciplinar. Este fato foi trazido, sobretudo, pelos profissionais da medicina e da enfermagem. Os próprios profissionais médicos relataram a dificuldade de trabalhar com sua categoria profissional. Estes apontaram algumas questões para justificar esta resistência, como: formação acadêmica/profissional deficitária do que concerne à interdisciplinaridade; o enfoque acadêmico em

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práticas técnico-curativas; e excesso de demanda para os atendimentos ambulatoriais nas unidades de saúde. Em outra pesquisa, os autores concluíram que a centralidade do modelo biomédico, com enfoque em práticas técnicocurativas, dificulta a aproximação entre as diferentes categorias profissionais, mantendo-se a perspectiva de ‘auxílio’ entre os profissionais e a referência ao “preconceito” e à “arrogância”31. A centralidade do modelo biomédico é uma das razões que dificulta a realização de uma ação em saúde mais integrada e de melhor qualidade, tanto na perspectiva daqueles que a realizam como para os que dela usufruem27,35. A ação interdisciplinar pode possibilitar, também, uma alternativa de formação diferenciada, pautada em uma visão ampla das problemáticas na área de saúde e a compreensão de que o conhecimento e ação interdisciplinar não se excluem, mas se intersectam. A última Unidade de Registro (UR6), que tematizou Sugestões para aperfeiçoar a prática interdisciplinar, demonstrou que os profissionais necessitam de capacitação sobre interdisciplinaridade, numa perspectiva teórico-prática. A capacitação foi sugerida pelos preceptores para que sejam de iniciativa da Instituição de Ensino Superior responsável pelos discentes nos cenários de prática e, também, da Secretaria Municipal de Saúde, responsável pelos serviços de saúde, como as ESF. Os preceptores reconheceram suas formações acadêmicas e profissionais deficitárias no que diz respeito à teoria e à prática interdisciplinar. Estes sujeitos revelaram a necessidade que sentem de aperfeiçoar suas ações tanto para a melhoria dos serviços de saúde quanto para colaborar de forma mais eficaz na formação acadêmica dos discentes, no que concerne à interdisciplinaridade. Sujeito 2. “Pronto, uma sugestão: eu acho que o interessante seria uma capacitação para os funcionários, né? Uma capacitação voltada para interdisciplinaridade. Que nunca teve. Como vai poder passar para os alunos? Tem que existir a capacitação. [...] Quem deveria fazer isso seria alguém com experiência, né? Alguém do município ou a universidade, alguém que tivesse a prática”. Sujeito 3. “Algo que fosse da parte da interdisciplinaridade. Eu não sei que ideia eu daria. Eu não conheço quais são as práticas. Eu não entendo. Eu não sei como se faz essa situação, entendeu? Eu acho que, talvez, precisa do olhar da academia e do olhar da secretaria pra capacitar a gente sobre isso e pra receber esses alunos, pra poder ensinar pra eles, né?”. Sujeito 5. “E em relação à prática interdisciplinar, algo para uniformizar as práticas interdisciplinares e de educação em saúde. Pra isso teria que a universidade ofertar algo para os preceptores, uma capacitação sobre isso para uniformizar a gente, pra ajudar na formação dos meninos, né? Algo que fosse comum a todo mundo”. Sujeito 6. “O serviço precisa receber visitas da universidade. A universidade poderia capacitar os preceptores com relação a este trabalho interdisciplinar, mas ela nem sabe o que fazemos no serviço com os alunos dela, né?”. Sujeito 7. “Nunca tivemos nada sobre interdisciplinaridade. A Universidade não poderia capacitar a gente? Levar a gente pra lá? Fazer algo com todo mundo. E a Secretaria municipal de saúde também, só pensa na doença, então ensinamos pros alunos o que aprendemos, né?”. Sujeito 8. “Acho que o que falta é a faculdade aqui com a gente, mais de perto, vendo nosso trabalho, como a secretaria municipal também. Nossa formação não foi pra isso. Como vamos ajudar os alunos nesse sentido? Precisam vir decifrar a questão da interdisciplinaridade. Reunir, discutir e mastigar. Eu posso ter um pensamento que não é o que significa mesmo. Preciso saber, né? E depois de abrir o leque de possibilidades pra gente, posso saber como fazer pra passar para os alunos”.

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As sugestões de capacitação sobre a teoria e a prática interdisciplinar devem ser consideradas. Porém, mesmo sendo uma sugestão em potencial, acredita-se que a capacitação, como caracterizada pelos profissionais, não sanará as problemáticas que envolvem uma prática interdisciplinar efetiva. Talvez, os sujeitos trouxeram a capacitação como ponto principal nesta UR, pelo fato de conhecerem apenas este formato de aprimoramento do trabalho nos serviços de saúde. Acredita-se que uma capacitação descontextualizada e orientada por experiências pontuais e próximas da disciplinaridade ou da multidisciplinaridade não resolverá a distância eminente entre a prática interdisciplinar efetiva e o preparo profissional para esta prática na ESF. Os resultados desta pesquisa apontaram, assim como em outro estudo38, que o convívio entre os integrantes de uma equipe de saúde traz vários questionamentos em relação à postura desses profissionais, sobretudo com relação às ações em comum. Para a efetivação destas ações, torna-se necessária a capacitação dos profissionais envolvidos nas equipes de saúde, no sentido de desenvolver e trabalhar práticas interdisciplinares. Para que o trabalho de capacitação aconteça, é preciso um reconhecimento da sua necessidade por parte dos profissionais envolvidos diretamente nas ações integradas em equipes de saúde, como, também, por parte das instituições formadoras e mantenedoras dos serviços de saúde. É preciso capacitação sobre interdisciplinaridade para o reconhecimento do trabalho interdisciplinar e da importância deste para a formação dos futuros profissionais de saúde para o SUS39. Desse modo, é preciso existir diálogo entre a Instituição de Ensino Superior, a Secretaria Municipal de Saúde e os cenários de prática possibilitadores de formação, como a ESF, representados pelos profissionais preceptores. Estes profissionais precisam ser capacitados permanentemente tanto para a função de preceptoria, já que estão presentes na formação acadêmica dos discentes, quanto para os serviços de saúde, como a ESF. Esta estratégia (ESF) do SUS necessita de profissionais capazes de trabalhar de forma compartilhada, por meio da aceitação de outros saberes. Para que esta prática integrada aconteça, é preciso ir além do conhecimento técnico-científico. Torna-se necessária, além de uma formação acadêmica voltada à interdisciplinaridade, a capacitação dos profissionais que estão atuando no serviço e que já passaram pela academia e não tiveram esta formação ampliada de saúde. Torna-se necessária uma capacitação permanente, que integre as categorias profissionais, sem segregação, em busca da interdisciplinaridade.

Considerações finais Os dados apontaram para o desconhecimento da interdisciplinaridade por parte dos profissionais preceptores deste estudo, tanto na teoria quanto na prática interdisciplinar. Este desconhecimento foi percebido pelo fato de os sujeitos não terem tido uma formação acadêmica voltada para a interdisciplinaridade, como, também, durante as vivências no campo profissional, não tiveram nenhum tipo de capacitação sobre a prática e a teoria interdisciplinar. Os preceptores reconheceram a importância da interdisciplinaridade para a formação dos futuros profissionais, como, também, que não estão preparados para repassar, para os discentes, os conhecimentos dentro de uma ótica interdisciplinar, visto que não foram formados com uma visão ampliada do conceito de saúde. As conclusões às quais se chegou, a partir desta pesquisa, não esgotam o tema em questão. Ao se estudar como a interdisciplinaridade é instrumentalizada pelos preceptores na ESF, pretendeu-se demonstrar a importância da prática e da teoria interdisciplinar nas relações de trabalho e na formação em Saúde para o SUS. Os resultados desta pesquisa apontaram, também, para a necessidade de Educação Permanente em Saúde como prática de ensino-aprendizagem na produção de conhecimentos no cotidiano das instituições de saúde. Dessa maneira, configura-se como uma estratégia em potencial para o aperfeiçoamento da prática profissional interdisciplinar. Ademais, outras influências e outros aspectos podem e devem ser considerados no estudo da interdisciplinaridade. Portanto, esta pesquisa aponta para novos e produtivos estudos.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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17. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 20 Set 1990. Seção 1, p. 18055. 18. Rosa WAG, Labate RC. Programa Saúde da Família: a construção de um novo modelo de assistência. Rev Latino-am Enfermagem. 2005; 13(6):1027-34. 19. Botti S, Rego S. Preceptor, supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis? Rev Bras Educ Med. 2008; 32(3):363-73. 20. Barreto VHL, Monteiro ROS, Magalhães GSG, Almeida RCC, Souza LN. Papel do preceptor da atenção primária em saúde na formação da graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco – um Termo de Referência. Rev Bras Educ Med. 2011; 35(4):578-83. 21. Feuerwerker LC. Educação dos profissionais de saúde hoje: problemas, desafios, perspectivas e as propostas do Ministério da Saúde. Rev ABENO. 2010; 3(1):24-27. 22. Smeke ELM, Oliveira NLS. Educação em saúde e concepções de sujeito. In: Vasconcelos EM. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 115-36. 23. Furtado JP. Arranjos institucionais e gestão da clínica: princípios da interdisciplinaridade e interprofissionalidade. Cad Bras Saude Mental. 2009; 1(1):1-11. 24. Cardoso JP, Vilela ABA, Souza NR, Vasconcelos CCO, Caricchio GMN. Formação Interdisciplinar: efetivando propostas de promoção da saúde no SUS. Rev Bras Prom Saude. 2007; 20(4):252-58. 25. González AD, Almeida MJ. Integralidade da saúde: norteando mudanças na graduação dos novos profissionais. Cienc Saude Colet. 2010; 15(3):757-62. 26. Ceccim RB, Feuerweker LCM. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad Saude Publica. 2004; 20(5):1400-10. 27. Matos E, Pires DEP, Campos GWS. Relações de trabalho em equipes interdisciplinares: contribuições para a constituição de novas formas de organização do trabalho em saúde. Rev Bras Enferm. 2009; 62(6):863. 28. Minayo MCS, Gomes SFD. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30a ed. Petrópolis: Vozes; 2011. 29. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1976. 30. Saupe R, et al. Competência dos profissionais da saúde para o trabalho interdisciplinar. Interface (Botucatu). 2005; 9(18):521-36. 31. Garcia MLA, Souza Pinto ATBC, Odoni APC, Longhi BS, Machado LI, Linek MDS, et al. A interdisciplinaridade necessária à educação médica. Rev Bras Educ Med. 2007; 31(2):147-55. 32. Albuquerque PC, Stotz EN. A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade. Interface (Botucatu). 2004; 8(15):259-74. 33. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: a interface entre trabalho e interação [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 1998. 34. Ronzani TM, Stralen CJV. Dificuldades de Implantação do Programa de Saúde da Família como estratégia de reforma do sistema de saúde brasileiro. Rev APS. 2003; 6(2):99-107. 35. Moretti-Pires RO. Complexidade em Saúde da Família e formação do futuro profissional de saúde. Interface (Botucatu). 2009; 13(30):153-66.

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36. Favarão NRL, Araújo CSA. Importância da interdisciplinaridade no ensino superior. Educere. 2004; 4(2):103-15. 37. Morin EA. Cabeça bem-feita: repensar a reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2001. 38. More C, Crepaldi MA, Queiróz AH, Wendt NC. As representações sociais do psicólogo entre os residentes do programa de saúde da família e a importância da interdisciplinaridade. Rev Psicol Hosp. 2004; 1(1):59-75. 39. Loch-Neckel G, Seemann G, Eidt HB, Rabuske MM, Crepaldi MA. Desafios para a ação interdisciplinar na atenção básica: implicações relativas à composição das equipes de saúde da família. Cienc Saude Colet. 2009; 14(1):1463-72.

Bispo EPF, Tavares CHF, Tomaz JMT. Interdisciplinaridad en la enseñanza en salud: la mirada del preceptor en la Salud de la Familia. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):337-50. Indicios de inadecuación en la actuación de los preceptores de la Estrategia de Salud de la Familia (ESF), en lo que se refiere a la interdisciplinaridad, llevaron a la propuesta de análisis de cómo actúan esos profesionales. Estudio descriptivo de abordaje cualitativo, la encuesta se desarrolló en el II Distrito Sanitario de Maceió, Al, Brazil, con un universo de nueve sujetos. Se utilizó la “entrevista abierta o en profundidad”, bajo la perspectiva del análisis de contenido. Después del análisis las unidades de registro fueron: actividades que desarrolla en el cotidiano de trabajo en la ESF; experiencia en la práctica diaria profesional; significado de la interdisciplinariedad; formación académica/ profesional en lo que se refiere a la práctica interdisciplinaria; beneficios de las prácticas interdisciplinarias en el proceso enseñanza/aprendizaje de los discentes. Los datos mostraron la necesidad de la educación permanente en salud como una fuerte estrategia para el perfeccionamiento de la práctica interdisciplinaria.

Palabras clave: Educación en salud. Preceptor. Educación Permanente en Salud. Interdisciplinaridad. Estrategia de Salud de la Familia.

Recebido em 26/04/13. Aprovado em 22/02/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0583

Formação em saúde com vivência no Sistema Único de Saúde (SUS): percepções de estudantes do curso de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil Alexandre Favero Bulgarelli(a) Kellyn Rocca Souza(b) Alexandre Baumgarten(c) Juliana Maciel de Souza(d) Cassiano Kuchenbecker Rosing(e) Ramona Fernanda Cerioti Toassi(f)

Bulgarelli AF, Souza KR, Baumgarten A, Souza JM, Rosing CK, Toassi RFC. Healthcare training with experience in the National Health System: students’ perceptions regarding the dentistry course at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), Brazil. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):351-62. The teaching-learning process for training dentists are based on guidelines that corroborate training of professionals who are reflective, humanistic and critical. From this perspective, the aim of the present study was to analyze the perceptions of students at a dentistry school regarding supervised curricular internship within the National Health System (SUS). This was a descriptive study developed through qualitative data that were gathered using a self-applied questionnaire among 65 students and analyzed using content analysis. Three structure topics in the following categories were reached: exploring the unknown; beginning the professional career; and experiencing the realities within SUS. The students perceived the different work processes; indicated the importance of teachers’ engagement in supervising the training; and perceived that SUS is a space rich in significant learning for healthcare training.

Keywords: Health education. Primary health care. Curriculum. National Health System.

O processo ensino-aprendizagem para a formação de cirurgiões-dentistas fundamenta-se em diretrizes que corroboram a formação de profissionais reflexivos, humanísticos e críticos. Nessa perspectiva, objetiva-se, com a presente pesquisa, trabalhar as percepções de estudantes de uma faculdade de odontologia em relação à realização de estágios curriculares supervisionados no Sistema Único de Saúde (SUS). Esta é uma pesquisa descritiva, desenvolvida com dados qualitativos, coletados por meio de questionários autoaplicados em 65 estudantes, e trabalhados segundo Análise de Conteúdo. Chegou-se a três temas estruturados nas seguintes categorias: explorando o desconhecido; iniciando a caminhada profissional; vivenciando as realidades no SUS. Os estudantes percebem diferentes processos de trabalho em saúde, apontam a importância do engajamento dos professores na supervisão dos estágios e percebem o SUS como um rico espaço de aprendizagem significativa para a formação em saúde.

Palavras-chave: Educação em saúde. Atenção primária à saúde. Currículo. Sistema Único de Saúde.

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(a,f) Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rua Ramiro Barcelos, 2492. Porto Alegre, RS, Brasil. 90035-003. alexandre.bulgarelli@ ufrgs.br; ramona.fernanda@ufrgs.br (b,c) Discentes, Faculdade de Odontologia, UFRGS. Bolsista Iniciação Científica PiBIC-CNPq e bolsista Iniciação Científica FAPERGS, UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil. k.rocca@hotmail.com; a.baumgarten@ hotmail.com (d) Pedagoga. Faculdade de Odontologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. juli.desouza@ufrgs.br (e) Departamento de Odontologia Conservadora, Faculdade de Odontologia, (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. ckrosing@hotmail.com

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Introdução Tem sido um desafio trabalhar questões que envolvem a nova perspectiva para formação de um cirurgião-dentista frente às demandas de um mundo pós-moderno, bem como as demandas do processo ensino-aprendizagem na atual conformação dos currículos dos cursos de odontologia no Brasil. Um aspecto que associa, simultaneamente, essas duas questões é a inter-relação direta entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a formação do estudante de odontologia. O SUS, dentro de sua estrutura organizacional de atenção universal e compreensão de que saúde é um processo que se constrói socialmente dentro de uma rede de prestação de serviços de saúde humanizados1, oferece espaços de aprendizagem para estudantes de odontologia por meio de vivências cotidianas em diferentes cenários, dentre os quais destacam-se: os cenários da Atenção Primária e os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs). Um modelo pedagógico que proporcione uma formação generalista, humanística, crítica e reflexiva projeta um curso Superior de odontologia com qualidade2. Fundamentada nessa lógica de ensino de qualidade, a Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FO-UFRGS), cenário da presente pesquisa, colocou em andamento uma nova estrutura curricular a partir de 2005, prevendo um ensino mais integrado às demandas sociais e fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em odontologia3. Tais diretrizes proporcionam maior autonomia aos cursos de odontologia, permitido, assim, avanços significativos em várias instituições de ensino brasileiras, com a implantação de projetos pedagógicos contemporâneos, com ênfase na promoção de saúde e na qualidade de vida das populações4. A autonomia atribuída na elaboração da estrutura curricular da FO-UFRGS passou a ofertar, aos seus estudantes, a oportunidade de estagiarem na rede de serviços de saúde pública do município de Porto Alegre/RS e região metropolitana. Em tais estágios, os estudantes realizam novecentas e trinta horas de atividades – nos serviços de Atenção Primária à Saúde, nos serviços de especialidades odontológicas ambulatoriais de média e alta complexidade, e na gestão pública em saúde –, distribuídas ao longo do último ano de formação, sob supervisão de um cirurgião-dentista preceptor. Juntamente com as atividades no serviço, os estudantes participam, semanalmente, de aulas teóricas sobre temáticas envolvendo a Saúde Coletiva. É válido ressaltar que tais campos de estágio referem-se ao espaço ofertado pelo SUS1. É importante ressaltar que, atendendo às recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais, a Faculdade de Odontologia da UFRGS realizou uma profunda reformulação em sua matriz curricular. Os estágios, objeto desta investigação, são efetivamente realizados dentro de sua concepção, não sendo acomodações realizadas em estruturas curriculares anteriores, oportunizando, ao alunado, a vivência efetiva no SUS. Os princípios e diretrizes do SUS e a lógica das diretrizes curriculares convergem para o olhar humanizado ao paciente e o enfrentamento dos problemas de saúde de acordo com as demandas sociais da população brasileira. Isso torna a parceria entre o SUS e o ensino da odontologia fundamental para a formação de um profissional generalista, humanístico e reflexivo. A educação destes profissionais deve ser orientada aos problemas mais relevantes da sociedade, de modo que a seleção dos conteúdos curriculares essenciais deve basear-se em critérios epidemiológicos e nas necessidades da população5. Diante do arcabouço de novas experiências curriculares para a formação, bem como a inserção do ensino da odontologia no SUS, a questão da presente pesquisa estrutura-se como: O que pensam os estudantes de graduação em odontologia sobre os estágios curriculares supervisionados no SUS para sua formação em profissional da saúde? Para tanto, o objetivo da presente pesquisa foi construir e discutir, com a literatura, as percepções de estudantes do último ano do curso de odontologia da FO-UFRGS sobre os estágios curriculares no SUS.

Metodologia Esta é uma pesquisa de desenho metodológico descritivo, desenvolvida com dados qualitativos. Os dados foram coletados por meio de questionários autoaplicados em 65 estudantes do nono e décimo 352

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semestres do curso de odontologia que se encontravam nessas condições no primeiro semestre de 2010. Tais estudantes constituíram o grupo que vivenciou, desde o início de sua graduação, o novo currículo do curso em questão. O instrumento de coleta de dados continha questões disparadoras abordando: o conteúdo teórico trabalhado em sala de aula; as expectativas e sentimentos dos estudantes em relação aos estágios; e o preparo para atividades nos serviços de Atenção Primária. Após a coleta dos dados, os mesmos foram organizados e sistematizados segundo Análise de Conteúdo na proposta da análise temática6. A sistematização aconteceu pelo recorte do conjunto das respostas, por meio de categorias projetadas sobre o conteúdo apreendido com os temas presentes nas respostas dos questionários. As categorias projetadas sobre o conteúdo emergiram a partir da hipótese: as percepções dos estudantes em relação à experiência com os estágios no SUS podem estar relacionadas com sentimentos angustiantes e o reconhecimento do valor do serviço público na sua formação. Norteada pela hipótese, houve o recorte, codificação e organização das falas expressas nos textos provenientes das respostas, o que gerou o agrupamento das falas que constituíram o corpus para análise. Segundo a Análise de Conteúdo, os dados brutos (textos provenientes das respostas escritas) passam por um processo de recorte, enumeração e classificação, sendo assim construídas categorias a serem discutidas. Nessa técnica de análise, as leituras iniciais dos corpus vão se tornando precisas em função de outras hipóteses que emergem em relação ao objetivo e objeto da pesquisa6. No processo de sistematização, buscaram-se unidades de registro para elucidar os conteúdos dentro dos temas. Para tal, foi utilizado o tema como unidade de registro, no entendimento de que um tema é uma significação que emerge, naturalmente, de um texto analisado, sendo um recorte do sentido da fala, e não uma manifestação formal e regulada6. Partindo dessa lógica e por meio da regra da homogeneidade e pertinência, chegou-se a três temas do conteúdo dos dados, sendo que os mesmos estruturam as três categorias de análise que representaram as percepções dos estudantes frente à questão da pesquisa (Figura 1). Entendeu-se o processo de categorização como a etapa da Análise de Conteúdo composta por uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto (unidades de registros), por diferenciação e reagrupamento, que representa a organização em um sistema de categorias6. Este estudo enquadra-se na modalidade de pesquisa de risco mínimo, e, de acordo com a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cabe observar que a liberdade dos sujeitos da pesquisa foi um aspecto imperativo para a participação, e o consentimento dessa participação foi estabelecido com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

T

Leitura flutuante

Unidades de Registro

T Hipótese

T Corpus de análise

VV V

T

T

Agrupamento Homogeneidade e pertinência

TEMAS/CATEGORIAS

Figura 1. Processo de organização da análise temática das percepções de estudantes de odontologia sobre os estágios curriculares supervisionados no SUS. Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, 2013.

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Resultados e discussão As diretrizes para a reestruturação curricular dos cursos de odontologia vêm contribuindo para a formação de cirurgiões-dentistas com um novo perfil de atuação profissional. Sabe-se que esse novo perfil, segundo Fonseca7 e Taichman et al.8, se reflete em profissionais com competências, também, para liderança, gestão do serviço público de saúde, tomada de decisões, administração e gerenciamento. Tal profissional reverbera uma nova maneira de olhar para a pessoa e a comunidade que recebem o cuidado em saúde bucal. Para que essa formação aconteça, é necessária a oportunidade de vivências do estudante para além da sala de aula. A vivência do estudante de odontologia junto ao SUS, o mais próximo possível da realidade, significa a possibilidade de formação de futuros profissionais mais humanos e sensíveis à saúde bucal brasileira7. Tal processo pode favorecer a reorientação do modelo formador de profissionais da saúde bucal9. Nessa proposta, foram pensados os estágios curriculares supervisionados no SUS, do curso de odontologia da UFRGS. Uma análise mais aprofundada da questão de pesquisa colocada no presente estudo seria impossível de ser realizada, com verticalidade, a partir de análise de dados quantitativos. Nesse sentido, a presente pesquisa alicerça-se em análise de dados qualitativos, a partir da Análise de Conteúdo, que tem-se demonstrado adequada para registro de percepções, como as do presente estudo. Para tanto, as categorias construídas com a presente análise emergiram do conteúdo das falas analisadas dos sujeitos da pesquisa. As percepções dos estudantes frente à vivência nos estágios são apresentadas na Figura 2 e discutidas ao longo do texto com exposição de diversos corpus que dialogam entre si, de maneira atemporal, na estruturação dos temas. Os corpus apresentados no texto associam-se ao longo da discussão, pois compreende-se que, apesar da categorização em temas, o conteúdo é um só e os temas dialogam entre si para a estrutura de um entendimento da percepção do estudante sobre os estágios.

Explorando o desconhecido

T

T

T

Medos

Incertezas

Angústia

T

T

A teoria

A sala de aula

T

Iniciando a caminhada profissional

Novo processo de trabalho

T

Reconhecendo o SUS na formação

T

Despertando o interesse

T

Vivenciando as realidades no Sistema Único de Saúde

Adquirindo novas experiências

Figura 2. Esquema ilustrativo das percepções dos estudantes frente à vivência nos estágios curriculares supervisionados no SUS. Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, 2013.

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Explorando o desconhecido: enfrentando novos sentimentos para se tornar um profissional da saúde Vivenciar novas e inexploradas situações, ao longo da vida acadêmica, pode provocar, no estudante em formação, expectativas que geram sentimentos positivos e/ou negativos, ambos construtivos, para este sujeito social que segue enfrentando desafios na sua trajetória. No caso da educação na área da saúde, a própria reestruturação curricular dos cursos de odontologia, em uma visão ampliada da formação do cirurgião-dentista, é desafiadora e também gera expectativas em seus entusiastas, idealizadores e trabalhadores que colocam esse novo currículo em funcionamento dentro de uma instituição educacional, algumas vezes conservadora e arraigada em suas práticas tradicionais. A literatura mostra que estudantes percebem positivamente essa mudança curricular com disciplinas mais integradoras e vivências no sistema de saúde, e essa lógica de ensino problematizador e integrado faz com que os estudantes se sintam mais satisfeitos com o aprendizado10-12. A percepção de satisfação, no presente estudo, foi construída ao longo de uma caminhada acadêmica em que o estudante, no conjunto de vários sentimentos, demonstra medo do incerto antes da participação nos referidos estágios (corpus 1). O incerto, reflexo do que ainda é desconhecido, é vivenciado pelos estudantes ao saírem do ambiente da clínica/ambulatório da Faculdade de Odontologia para estagiarem no SUS: “Boas expectativas, mas estava com medo de não me integrar bem com a equipe... Certo medo de sair do ambiente da faculdade e conviver com novas pessoas e desconhecidas, em um local nunca antes explorado... No começo eu estava bastante inseguro para a realização dos estágios, tinha medo do desconhecido”. (corpus 1)

Apesar do preparo que a referida instituição educacional possibilita, a experiência só se torna concreta quando é vivida e articulada com outros saberes, como o trabalho em equipes multiprofissionais. Observa-se que os estudantes se sentem, muitas vezes, inseguros pela ideia de deixarem o local de ensino, no qual contam com a presença constante de professores sem o desafio de saber “me integrar bem com a equipe” dentro da lógica do processo de trabalho no SUS (corpus 1). Nos estágios curriculares, embora exista toda uma equipe de saúde envolvida, o estudante está em um momento individual e singular para aplicar todos os conhecimentos adquiridos ao longo da graduação. Esse é um momento de insegurança e medo, que podem ser enfrentados como parte do processo de formação. O medo é um sentimento que, na percepção de estudantes de cursos da área da saúde, vem, muitas vezes, associado à ansiedade e expectativas frente ao desconhecido13. O enfrentamento do medo leva o estudante a pensar sobre suas fortalezas e fraquezas no seu processo de aprendizado, e esse fato faz com que os mesmos se posicionem enquanto sujeitos mais reflexivos e críticos em relação a sua formação10. O enfrentamento de situações desconhecidas, que se associa a certa angústia, se transforma em satisfação ao longo do estágio (corpus 2). Ao se deparar com o desconhecido, o estudante verbaliza o fato de que, mesmo não tendo certeza se gostaria ou não da atuação na saúde coletiva, percebe que, no decorrer do estágio, sente-se satisfeito porque foi profissionalmente útil para a população trabalhando em equipes multiprofissionais no contexto da atenção primária. “... angústia e um certo medo do desconhecido... preocupação em saber se eu gostaria... mas daí vem a satisfação por poder levar saúde para as pessoas... Fico muito satisfeita, trabalhei junto com enfermeira, médico, residentes... satisfação de trabalhar com as famílias... foi de grande importância para mim, me sinto mais próxima da vida profissional e bem preparada...”. (corpus 2)

O fato é que o estudante, ao participar dos estágios, passa a conhecer diferentes processos de trabalho e perceber outras oportunidades para direcionar suas escolhas profissionais. Acredita-se que os estágios no SUS são oportunidades que acrescentam experiência profissional e de vida ao estudante de odontologia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A transformação dos sentimentos de medo e angústia em satisfação é perceptível no contato do estudante com a comunidade, visto que o estudante sente-se cidadão ao levar saúde bucal para os usuários do SUS. Para Garanhani e Valle13, o processo de transformação do “ser estudante” para o “ser profissional da saúde” é repleto de diversos sentimentos. Percebe-se que, para o estudante de odontologia, aquilo que provoca o medo é a incerteza do que seria enfrentado no estágio no SUS. Vivenciando o cotidiano e os desafios do mundo do trabalho, o estudante enfrenta as incertezas da vida profissional antes mesmo de se tornar um cirurgião-dentista (corpus 3). Além desses aspectos, o estudante demonstra, também, a incerteza sobre o sentimento de viver um novo processo de trabalho, como o trabalho em unidades de saúde do SUS, simbolizado na figura do “posto de saúde”. “Ouvi só comentários como seriam os estágios nos postos de saúde, mas nada muito aprofundado... precisei ter uma vivência para saber como eu me sentiria no ambiente de serviço público... Insegurança de sair da faculdade e não ter mais o professor do meu lado...”. (corpus 3)

A incerteza não existe só no estudante, mas, também, nos professores. É um desafio diário o trabalho nos estágios devido à dinamicidade dos acontecimentos e da atuação do estudante ao longo do seu caminhar. Pode-se dizer que o estudante sente-se angustiado pelo novo, pelo desconhecido, e os professores encontram incertezas pelo caminho dinâmico e instável do dia a dia da atuação dos estudantes nos campos de estágios14. O sentimento de incerteza, que gera certa angústia no estudante, frente à não-visualização da perspectiva do que vai acontecer ao longo dos estágios, se assemelha aos sentimentos angustiantes de estudantes de cursos de graduação em outra área da saúde apresentados na literatura15. É possível supor que ideias preestabelecidas sobre o SUS podem condicionar as angústias do estudante em formação.

Iniciando a caminhada profissional: o preparo para vivenciar a atenção à saúde bucal brasileira Por meio do aprendizado adquirido nas vivências no espaço de ensino ofertado pela relação entre universidade e SUS, o início da caminhada profissional é visto, pelo estudante, como possibilidade de inserção no serviço público. Tal fato, na óptica do estudante, é perceptível na necessidade de aulas teóricas que os preparem para processos seletivos voltados para atuação no SUS. Para isso, ao longo do curso de odontologia, o estudante desenvolve habilidades teóricas e clínicas, preparando-se para os estágios (corpus 4). A formação do cirurgião-dentista para atuar na atenção primária à saúde perpassa a necessidade de preparo teórico, competências técnicas e construção de habilidades relacionais9. O estágio enriquece a formação do estudante, contribuindo, também, para a construção de competências para atuar no modelo de atenção no SUS, bem como a construção de habilidades relacionais. Na atualidade, a atuação do profissional da odontologia fundamentado na realidade das demandas de saúde das populações é assunto emergente na saúde pública, assim como o acesso à informação para cuidados com a saúde, a mudança no mercado de trabalho e as condutas profissionais éticas. Tais assuntos emergentes, que preocupam a saúde coletiva, norteiam a formação de profissionais que exercem a função de liderança para atuarem no SUS8. Desse processo é importante salientar que o início da caminhada profissional é visto, também, como o momento de transição entre a sala de aula e o trabalho profissional. Tal percepção mostra que o estudante, ao final de sua formação e acompanhado pela supervisão de professores e preceptores, suscita aulas teóricas produtivas para enriquecer seu arcabouço teórico com a compreensão do processo de trabalho no serviço público de saúde. Os preceptores são os cirurgiões-dentistas funcionários do serviço público de saúde que acompanham e supervisionam o estudante nos campos de estágio. “O estágio cumpriu com a proposta, a experiência nos campos de estágio foi muito boa, apliquei o que aprendi na faculdade... Achei uma ótima oportunidade de crescer como

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profissional, relacionamento com as pessoas, na área prática... a teoria, acho que tem conteúdos teóricos que caem em concursos que faltavam abordar mais em aula...”. (corpus 4)

Dos resultados analisados, compreende-se que o estudante, formado na atual organização curricular, mostra-se crítico e reflexivo. Em suas falas, pode-se observar sua percepção sobre aulas teóricas produtivas e que levem o estudante a problematizar sobre questões políticas, pensar sobre tomadas de decisões frente às ações de saúde bucal na comunidade. Os estudantes que vivenciaram saberes da saúde coletiva irão abranger diversas áreas e conhecimentos, e se formarão mais completos e, sobretudo, mais preparados e seguros para o mercado de trabalho2,12. O estudante percebe a aula teórica como instrumento importante para a construção de conhecimento sobre políticas públicas de saúde (corpus 4 e 5). Para Garanhani e Valle13, um curso de formação em saúde deve oportunizar espaços para o autoconhecimento do estudante bem como das relações interpessoais no processo de formação, buscando, desse modo, formação humanizada, com estímulo ao desenvolvimento pessoal e profissional. Nessa lógica de formação reflexiva, por meio de estágios curriculares no SUS, o estudante torna-se mais confiante, também, para a tomada de decisões frente à assistência clínica odontológica em nível coletivo10,16. No curso de odontologia do presente estudo, após passarem pelo aprendizado das diversas áreas clínicas, os estudantes têm a oportunidade de aplicar tais conhecimentos e habilidades em outro processo de trabalho em saúde. Tal processo de trabalho – abrangendo ações de acolhimento, clínica ampliada, trabalho em equipe, visitas domiciliares, territorialização, planejamento e programação em saúde coletiva, dentre outras ações – é vivenciado no SUS. É preciso destacar que o SUS vive em constante evolução, bem como o currículo das faculdades de odontologia. Desse modo, professores bem preparados para essa nova realidade no processo ensino-aprendizagem são fundamentais. Tais aspectos são perceptíveis quando os estudantes relatam: “... ficamos muito tempo debatendo e problematizando as questões... com isso poderemos ter uma atuação mais eficaz ajudando nas questões políticas do país... Vejo uma postura adequada dos professores em sala de aula, porém, alguns lugares do SUS ainda estão se organizando, o que acaba me prejudicando nas discussões e na prática... Obviamente tiveram coisas que não lembrava, mas após fazer uso na prática você não esquece mais... a parte prática na faculdade foi de grande valia para o meu aprendizado no estágio...”. (corpus 5)

Compreende-se que os estudantes percebem a importância destes professores bem preparados no processo do estágio, para que os mesmos norteiem questões problematizadoras para discussões reflexivas em sala de aula (corpus 4 e 5). É possível observar, também, que a relação entre professores, SUS e estágio está em uma caminhada conjunta, pois as três instâncias estão evoluindo permanentemente. As discussões coletivas em sala de aula levam o estudante a vivenciar uma condição singular, ocupando um novo lugar na construção de algo que vá além de discussões em sala de aula, ou seja, pensar nas políticas de saúde do país. Para Garanhani e Valle13, o estudante percebe a relevância da relação professor-estudante, pois o professor é portador de um horizonte de experiências, sendo que sua presença e acolhimento nessa relação são valorizados e percebidos pelos estudantes como uma instância fundamental para sua formação. Para Lazarin et al.17, é importante salientar como é valiosa a participação de um professor bem preparado nessa formação de ideais e da postura que será construída pelo estudante ao longo da sua graduação. Para isso, é primordial que se tenha um corpo docente qualificado e atualizado permanentemente, de forma não fragmentada, mas completa e integrada com outras áreas. Desse modo, o processo de trabalho no SUS e as mudanças curriculares dos cursos de odontologia objetivam a formação de profissionais mais humanísticos, críticos e generalistas, de forma que compreendam a real situação social, econômica e cultural, visando o benefício da sociedade18,19.

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Vivenciando as realidades no sistema público de saúde: a importância do SUS na formação do estudante Na presente pesquisa, o SUS configura-se como meio de aprendizado para a formação de profissionais da saúde e, assim, mostra-se fundamental para a formação de cirurgiões-dentistas com boas habilidades técnicas e clínicas, com autonomia para o enfrentamento das dificuldades da profissão. O significado da vivência no SUS (corpus 6) é reflexo da importância e do reconhecimento dados pelo estudante à parceria entre ensino e serviço, que não era prioritária antes da reestruturação curricular. “Experiência gratificante de sentir como é verdadeiramente a atuação em odontologia no serviço público... é importante para conhecer a realidade prática do SUS. Reconhecer que o SUS também oferece oportunidade para o desenvolvimento da nossa autonomia no atendimento ao paciente... Me deu segurança, boas e novas amizades, aprendizado de como trabalhar em equipe multiprofissional, quebrar alguns preconceitos em relação ao SUS”. (corpus 6)

A percepção dos estudantes mostra a importância em conhecer a realidade do sistema público e a relevância da oportunidade. Existe o reconhecimento do estudante de que, sem a participação do SUS na sua formação, o mesmo não teria construído uma compreensão sólida do funcionamento e dos conceitos do sistema público de saúde para a possibilidade de futura atuação no SUS (corpus 6). É nesse reconhecimento que o estudante de odontologia, nos estágios supervisionados, entra em contato com o processo de trabalho centrado no usuário do SUS e executado por equipes de saúde, e não apenas isolado em seu consultório privado7. Os estágios no SUS, do curso de odontologia estudado, constroem percepções de interesse dos estudantes para uma atuação na saúde coletiva. De certo modo, o despertar desse interesse reflete a futura atuação de cirurgiões-dentistas bem preparados para o trabalho no serviço público de saúde. Acredita-se que a interação entre professores e estudantes dentro da sala de aula, construindo o aprendizado por meio de aulas teóricas, juntamente com a preceptoria na rede de serviços do SUS, vão despertando o interesse pela saúde coletiva: “Acredito que os conteúdos tratados foram importantes para avaliarmos nosso interesse em saúde coletiva. Os professores foram muito empenhados em garantir o interesse e o aprendizado de todos... A atenção de cada professor foi indispensável para o nosso crescimento durante o estágio e para nos direcionar. Através de seus conhecimentos e de sua experiência, nos revelaram a saúde coletiva”. (corpus 7)

A percepção de que o professor, durante o desenvolvimento dos estágios, faz parte do processo de transformação de estudantes em futuros cirurgiões-dentistas reflexivos e humanísticos fica elucidado no corpus 7. O professor, na condição de elo entre teoria, realidade e prática do processo ensinoaprendizagem, corporifica-se como instrumento para a formação de um profissional preocupado com o cuidado em saúde bucal em nível coletivo. A capacitação do corpo docente, desse modo, é parte fundamental dos processos de mudança. As faculdades têm papel fundamental na formação dos seus estudantes, objetivando graduar profissionais que tenham consciência de que seu “vínculo empregatício” firma-se com a sociedade, sendo levado em consideração não apenas a percepção tecnicista da profissão, mas quão importante é o relacionamento criado entre o dentista e o usuário visando um atendimento mais humano, integral e de maior qualidade20. A relação dos estudantes com os cirurgiões-dentistas preceptores, nos campos de estágio do SUS, desperta, nos estudantes, o interesse pelo serviço público de saúde, e, de certo modo, a vivência no estágio foi capaz de mudar paradigmas (corpus 6 e 7). O estudante deixa clara a existência de conceitos negativos que foram superados ao longo da vivência no serviço. Desse modo, os estagiários adquirem experiências e constroem seus interesses para uma possibilidade futura de trabalho no SUS. Nesse processo, todas as etapas do currículo são indispensáveis para que se atinja o sucesso necessário, especialmente em relação à atuação no sistema de saúde em que o curso está inserido. 358

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O interesse pela saúde coletiva vem ao encontro de outros campos de atuação que norteiam o mercado de trabalho nacional. Para Noro e Torquato21, atualmente, diversas mudanças vêm acontecendo no mercado de trabalho, devido a uma crescente migração e vinculação dos profissionais da odontologia ao SUS. Isso se deve ao fato de que o governo federal está investindo, cada vez mais, no setor público de saúde, aperfeiçoando a Estratégia Saúde da Família, fazendo com que os dentistas direcionem sua visão e qualificação, também, para esse modelo de atenção à saúde. Tendo essas considerações em vista, é necessário, também, que ocorram mudanças no interior das faculdades de odontologia, como ocorreu na faculdade do presente estudo, com o objetivo de formar profissionais com perfil para atuarem, também, nesse novo modelo de atenção à saúde. A necessidade do preparo do estudante para o trabalho no SUS faz com que, lentamente, as faculdades de odontologia se preocupem com o ensino da saúde coletiva, incluindo tal área nas suas estruturas curriculares19. As necessidades de saber lidar com diferentes profissionais, adquirir segurança no seu próprio trabalho, frente ao suporte prestado pelo preceptor em diversas relações interpessoais, bem como a dinâmica das relações dos profissionais que compõem uma determinada equipe de saúde, são compreendidas pelas falas a seguir (corpus 8): “... me deu mais segurança nos atendimentos e agilidade... pensar nos nossos erros... mais segurança para atender os pacientes no mercado de trabalho, aprendi a trabalhar em equipe, adorei o contato com os preceptores, através dos quais aprendi bastante não só conhecimentos técnicos, mas como lidar com as situações difíceis da profissão... autoconfiança, agilidade, boa relação com pacientes, aprendi a lidar com dificuldades... e com uma equipe”. (corpus 8)

O reconhecimento da importância de uma vivência com trabalhadores do SUS, aprendendo a lógica do trabalho em equipe multiprofissional, faz com que o estudante vivencie um processo de trabalho que reverbere em espaços para discussões e desenvolvimento de boas relações no cuidado aos usuários. Estudantes de odontologia percebem que é necessário um profissional que saiba trabalhar em equipe com uma ampla visão do conceito de cuidado22. O estudante percebe que ele adquire não somente mais experiências técnicas mas, também, uma experiência para lidar com o contexto social da saúde das populações, e que o torna mais preparado para a vida (corpus 8). Para Sanchez et al.23, o trabalho com a perspectiva social da construção da saúde bucal posiciona o cirurgião-dentista em um contexto onde o mesmo deve enfrentar o trabalho em equipe multidisciplinar, com o envolvimento de outros profissionais abarcando aspectos políticos, econômicos e culturais, os quais deverão ser vistos como desafios futuros para a saúde coletiva. Os cursos de odontologia no Brasil precisam avançar na construção de alianças, aproximações e estratégias de ensino entre universidades e SUS, pois tais parcerias refletem na formação de profissionais da saúde que, de certo modo, irão aperfeiçoar o próprio sistema de saúde16,19,24. Tal aproximação tornase um efetivo instrumento do processo ensino-aprendizagem25. Ao final da caminhada acadêmica, o estudante mostra-se entusiasmado com o que vivenciou no estágio no SUS, como destacado a seguir: “A prática em si foi absolutamente demais! Uma experiência e tanto... Achei bastante válida esta experiência de estágio... Foi uma experiência rica, que abrange muito mais do que a clínica ou a prestação de serviço odontológico...”. (corpus 9)

O estudante projeta a importância do estágio e, até mesmo, a transformação das suas percepções, pois, como no corpus 9, e, também, em outros trechos, fica claro que o sentimento de medo e ansiedade vão se transformando, ao longo do estágio, em sentimentos positivos de reconhecimento, entusiasmo, alegria e novas conquistas. O processo vivenciado pelo curso de odontologia em análise contemplou uma série de avanços em relação à inserção do estudante no SUS. A transformação curricular em uma escola centenária é possível por meio de uma construção coletiva que consiga colocar perspectivas importantes em relação à COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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necessidade de que o profissional contemporâneo seja formado, também, dentro do sistema de saúde vigente no país. Essa formação, conforme as percepções observadas no presente estudo, gera angústias iniciais, mas é positiva e gera avaliações extremamente encorajadoras ao final do processo.

Considerações finais As percepções dos estudantes em relação à experiência com os estágios no SUS estão relacionadas com sentimentos angustiantes e o reconhecimento do valor do serviço público na sua formação. Os estudantes de odontologia apresentam percepções, em relação aos estágios supervisionados no SUS, que envolvem aspectos como a importância do professor preparado, engajado e comprometido com a proposta do estágio, pois o elo entre teoria e prática inicia-se na sala de aula e no ambulatório com o professor, e vai se construindo no dia a dia de sua formação acadêmica e, também, ao longo dos estágios. Existe a percepção de que o SUS é o construto que oferta um espaço rico de aprendizado permanente na formação do estudante de odontologia, bem como possibilita a construção de oportunidades para seu futuro profissional. Para finalizar, considera-se que os sentimentos angustiantes do início do estágio são percebidos como parte do processo de enriquecimento da formação de cirurgiões-dentistas. Tais sentimentos transformam-se ao longo do estágio, dando espaço ao reconhecimento, entusiasmo e valorização do SUS na sua formação.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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Bulgarelli AF, Souza KR, Baumgarten A, Souza JM, Rosing CK, Toassi RFC. Formación en salud con experiencia en el Sistema Único de Salud: percepciones de estudiantes del curso de Odontología de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):351-62. El proceso enseñanza-aprendizaje para la formación de cirujanos-dentistas se basa en directrices que corroboran la formación de profesionales reflexivos, humanísticos y críticos. Dentro de esa perspectiva, el objetivo de la encuesta es trabajar las percepciones de estudiantes de una facultad de odontología en lo que se refiere a la realización de pasantías curriculares supervisadas en el Sistema Único de Salud (SUS). Esta es una encuesta desarrollada con datos cualitativos, recogidos por medio de cuestionarios autoaplicados en 65 estudiantes y trabajados según el análisis de contenido. Se llegó a tres temas estructurados en las categorías siguientes: exploración de lo desconocido; inicio de la trayectoria profesional; experiencia de las realidades del SUS. Los estudiantes perciben diferentes procesos de trabajo en salud, señalan la importancia del compromiso de los profesores en la supervisión de las pasantías y perciben el SUS como un espacio rico de aprendizaje significativo para la formación en salud.

Palabras clave: Educación en salud. Atención primaria a la salud. Currículum. Sistema único de Salud.

Recebido em 01/07/13. Aprovado em 27/11/13.

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0138

Midiatização do crack e estigmatização: corpos habitados por histórias e cicatrizes

Moises Romanini(a) Adriane Roso(b)

Romanini M, Roso A. Mediatization of crack and stigmatization: bodies inhabited by stories and scars. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):363-75.

In this paper, we put forward an analysis on the experiences of crack users in relation to their own bodies, feelings and histories relating to drug use. Based on the methodological presuppositions of deep hermeneutics, participant observation and focus groups were conducted at a psychosocial care center for alcohol and other drugs. The analysis was supported by authors within sociology, social psychology and psychoanalysis. In the discourse of healthcare professionals, crack cocaine users and the mass media, it was confirmed that relationships of domination between men and women were reproduced and maintained. Users’ bodies are a target for social categorizations and end up becoming attached to crack cocaine users’ identities. Another important point observed was that crack cocaine users presented critical thinking against the hegemonic discourse on drugs that is carried in the communication media.

Keywords: Crack cocaine. Human body. Stereotype. Social stigma. Social Psychology.

Neste artigo propomos uma análise das experiências de usuários de crack em relação ao próprio corpo, sensações e histórias relacionadas ao uso da droga. Baseados nas pressuposições metodológicas da Hermenêutica de Profundidade, observação participante e grupos focais foram conduzidos em um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas. A análise foi apoiada por autores da sociologia, psicologia social e psicanálise. Nos discursos dos profissionais da saúde, usuários de crack e da mídia de massa, foi confirmada a reprodução e manutenção das relações de dominação entre homens e mulheres. O corpo do usuário é alvo de categorizações sociais e acaba sendo colado à identidade de usuário de crack. Outro aspecto relevante observado foi que os usuários de crack apresentaram um pensamento crítico contra os discursos hegemônicos sobre drogas veiculados nos meios de comunicação.

Palavras-chave: Cocaína crack. Corpo humano. Estereótipo. Estigma social. Psicologia Social.

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(a) Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua São Francisco, 994/203, Bairro Santana. Porto Alegre, RS, Brasil. 90620-070. moisesromanini@ yahoo.com.br (b) Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, Brasil. adrianeroso@gmail.com

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Introdução Muito tem se falado sobre as drogas e, mais especificamente, sobre o crack nos meios de comunicação, mas o que parece não ser evidenciado nos meios de comunicação de massa é que o uso de drogas é uma prática antiga e universal. As drogas podem ser fonte de interesse, atração, medo, entre outros sentimentos e significados culturais atribuídos pelas sociedades. Assim, dependendo do momento histórico, da cultura predominante de cada época, o uso de drogas pode ser encarado de diversas maneiras, sendo visto, ora como um problema ou doença, ora como uma solução, ou mesmo cura1-6. Com o surgimento do crack na “cultura das drogas”, entretanto, percebemos o que Domanico7 denominou de “pânico moral”, muito em virtude da ampla veiculação da mídia sobre o tema, geralmente de maneira sensacionalista, como faz, por exemplo, ao culpar, exclusivamente, “o crack” pelo aumento dos índices de criminalidade8. O crack pode até representar uma mudança significativa nas formas e, até mesmo, nos contextos de uso, mas será possível tratá-lo como uma substância, encarnada na figura do mal absoluto, tão diferente das demais? Tomando esta questão como ponto de partida para nossas discussões, esse artigo busca compreender e analisar as experiências narradas sobre o próprio corpo e as histórias relacionadas ao uso dessas substâncias para usuários de um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPS AD). Antes de passarmos à descrição do método, faz-se necessário destacar dois conceitos que são fundamentais para a discussão proposta nesse trabalho: a midiação da cultura moderna e a ideologia. A midiação da cultura é concebida como uma característica fundamentalmente constitutiva das sociedades modernas. Consiste no “processo geral através do qual a transmissão das formas simbólicas se tornou sempre mais mediada pelos aparatos técnicos e institucionais das indústrias da mídia”9. Ela provoca mudanças na forma como as pessoas se relacionam, no conteúdo e na maneira como as mensagens são transmitidas pela mídia, fazendo com que o conhecimento que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio social imediato seja derivado da recepção das formas simbólicas (ações e falas, imagens e textos) veiculadas pelos meios de comunicação9,10. O desenvolvimento dos meios de comunicação nas sociedades modernas tornou possível a veiculação maciça de fenômenos ideológicos, transformando-os em fenômenos de massa. Ideologia, nesse sentido, “refere-se às maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”9. Relações de dominação são sempre relações de poder assimétricas e injustas, que geram sofrimento psíquico. Esses conceitos são fundamentais para a dissertação de mestrado, da qual esse artigo se origina, intitulada “Rodas de Conversa sobre a (além da) Campanha ‘Crack nem pensar’: a saga do ‘super-homem moderno’ em tempos de crack”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria(c). O objetivo geral da dissertação foi o de analisar como os usuários de crack, inseridos em um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPS AD), percebem as formas simbólicas veiculadas na campanha televisiva “Crack, nem pensar”(d). Na presente discussão, discorremos sobre as experiências que os usuários tiveram com o próprio corpo, sensações, sentimentos e as histórias relacionadas ao uso da droga. Após delinearmos o método utilizado, iniciaremos a apresentação dos resultados e a discussão a partir de uma cena extraída do diário de campo. A

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(c) As propagandas estão disponíveis em: www.cracknempensar.com.br; http://www.youtube. com/watch?v=Rr0UNMsG3E; e http:// www.youtube.com/ watch?v=hiTUvI7Kpcc& feature=related

(d)

Essa pesquisa se insere em um projeto maior intitulado “Encontros Dialógicos em um CAPS AD: usuários como interlocutores no debate sobre a campanha ‘Crack nem pensar’”, ancorado no Grupo de Pesquisa “Saúde, Minorias Sociais e Comunicação”. Apoio: Bolsa de Mestrado CAPES.


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cena balizará a análise sociodiscursiva. Veremos, no decorrer da análise, que se trata de um corpo estigmatizado que, de uma maneira ou outra, subjetiva-se, também, pelo uso dessas substâncias. Esse corpo marcado, cicatrizado, é alvo de categorizações sociais, que acabam sendo coladas à identidade de “usuário de crack”.

Método O local escolhido para a realização da pesquisa foi um CAPS AD da cidade de Santa Maria/RS (que possui em torno de duzentos e sessenta mil habitantes) em virtude da sua especificidade: o serviço foi criado na cidade no ano de 2009 com intuito de acolher a demanda crescente por tratamento a usuários de crack. Os participantes da pesquisa foram usuários do referido serviço, com idade superior ou inferior a 18 anos, inseridos em um plano terapêutico. Os interlocutores têm idades que variam de 13 a 29 anos, com uma média de 22,75 anos. Se considerarmos que alguns deles fazem uso há algum tempo (um deles refere consumir crack há quase dez anos), a média de idade do início de uso deve ser bem inferior a esta. Conforme as informações contidas nos prontuários, apenas um, dos 16 interlocutores, pode ser considerado de classe média-alta. A maioria deles vive em situação de pobreza, alguns dependendo do albergue municipal para ter um local para dormir e se alimentar. Para colher informações, foram utilizadas diferentes estratégias: observação participante11 das reuniões de equipe e em outras atividades do serviço, registradas em diário de campo12 e grupos focais13-15, aqui denominados “rodas de conversa”, pois esta é uma expressão mais familiar aos usuários do que grupo focal, o que chamaria a atenção dos usuários à participação. Os usuários do serviço foram convidados a participar das “rodas de conversa”, em caráter voluntário. Foram realizadas três “rodas de conversa”: a primeira foi composta por sete interlocutores, a segunda por três e a terceira por seis – finalizando com um total de 16 interlocutores (dois do sexo feminino e 14 do sexo masculino) –, que aconteceram no primeiro semestre de 2011. Como estímulo ao debate nas rodas de conversa, foram exibidas, duas vezes, as propagandas da Campanha “Crack, nem pensar”, veiculadas pelo Grupo Rede Brasil Sul16. As rodas de conversa compuseram as atividades do serviço, sendo registrados, nos prontuários dos usuários, os contatos realizados e a participação nos grupos, para que os profissionais do CAPS pudessem acompanhar a realização dessa atividade. A convite dos pesquisadores, dois profissionais do serviço participaram das rodas, um como comediador e outro como observador, de forma voluntária. O referencial metodológico adotado foi a hermenêutica de profundidade9, que é composto por três fases mutuamente interdependentes e complementares: análise sócio-histórica, análise discursiva e interpretação/reinterpretação. Ao invés de trabalhar com as três fases distintas da hermenêutica de profundidade, optamos por não trabalhar as etapas separadamente. Procedemos a análise sócio-histórica e a análise discursiva em blocos únicos, o que denominamos de análise sociodiscursiva. Como existem várias maneiras de conduzir a análise discursiva, adotamos a análise temática. A análise buscou apoio em autores da sociologia9,17,18, psicologia social19, psicanálise20,21 e antropologia social22. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, e segue as exigências e procedimentos da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,23 que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos.

Resultados e discussão: análise sociodiscursiva Iniciamos a análise sociodiscursiva introduzindo a narração de uma cena extraída do diário de campo. A cena apresentada, que contém aspectos diretamente relacionados às questões teóricas apresentadas neste artigo, será resgatada no corpo de nossa análise:

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“Cheguei hoje no CAPS e estranhei o silêncio. Encontrei apenas duas profissionais dentro da casa. Saí no pátio e fiz a volta na casa. Nos fundos, encontrei dois estagiários do CAPS, numa ‘roda de conversa’ com sete usuários do serviço. Juntei-me à roda. Conversamos durante quase duas horas. [...]. Um momento da conversa que me chamou a atenção foi quando os guris começaram a mostrar suas cicatrizes. Parecia uma disputa de quem tinha mais cicatrizes no corpo. Cada cicatriz mostrada vinha acompanhada de uma história vivida por eles. Eles se comparavam entre si com base na quantidade de cicatrizes e no tempo ou número de vezes que “puxaram cadeia”. Os que têm mais cicatrizes no corpo e mais tempo de cadeia se consideram e são considerados mais fortes, portanto, merecem mais respeito que os outros. Observei que o respeito está associado à obediência ‘cega’ ao ‘mais forte’ e, consequentemente, ao medo. A ‘lei do mais forte’ e do medo, vivenciadas na rua, parecem estar sendo ‘reproduzidas’ dentro do CAPS”.

As cicatrizes, acompanhadas sempre por histórias, revelam, no próprio corpo, a violência sofrida (e também praticada) por esses sujeitos. A quantidade de cicatrizes espalhadas pelo corpo é diretamente proporcional ao quantum de força, pois torna público, visível aos outros, que se trata de alguém que sobreviveu à “lei do mais forte”. Esse corpo e a violência presente no cotidiano são constantes nas narrativas dessas pessoas, o que sinaliza a necessidade de olhar mais atentamente para aquilo que comumente apenas se vê (o corpo). A violência vivida no cotidiano desses jovens é praticada por diferentes “outros”: pelo outro-traficante, outro-policial, outro-usuário, outro-droga. Os discursos desses “outros” são construídos a partir do que Boaventura de Souza Santos24 denominou de “monocultura do saber”. Essa monocultura, pautada no “saber científico” de diversas áreas, transformou o “corpo-pessoa” num corpo “objetificado”, ou melhor, um corpo-objeto de cuidado, consumidor de inúmeros atos profissionais de saúde centrados em tecnologias duras, e que, também, se torna objeto de estratégias disciplinares das profissões clássicas da saúde e da saúde pública. Ou, ainda, como assinala Russo22, num “corpo-objeto”. O primeiro aspecto discutido nos grupos foi a aparência física da pessoa que está “em uso” (sic) de crack. Nas falas dos interlocutores, podemos perceber a relação entre suas representações e as formas simbólicas da reportagem e da propaganda: “[...] mas o cara não se importa, tira a camisa, tá seco, e acha que tá gordo ainda, entendeu? Acha que tá forte... não, tô gordo, mas vai sumindo, sumindo... eu cheguei a 50 e poucos quilos” (I-J)(e); “Entendeu, se for uma pessoa de 15, vai representar uma pessoa de trinta e poucos anos...” (I-R); “E os pulmão né prejudica também né” (I-V); “Passa uma noite inteira fumando, no outro dia tu vai respirar teu pulmão nem abre cara. [...]. Até dá uns dias pra limpar aquilo ali, meu Deus do céu” (I-D). Vemos, através dessas falas, que eles estabelecem uma relação com um “corpo-objeto”, fragmentado, disperso. O corpo-objeto, ou o corpo-drogado, como afirma Lins25, insere-se na “metáfora do narcisismo do sono: dorme o corpo, dorme a dor, dorme o sexo, dorme a vida”. Dorme, não morre. E é essa a principal diferença que os interlocutores estabeleceram entre eles e os “personagens” das propagandas exibidas. No decorrer da discussão sobre a “aparência física” do usuário de crack, um interlocutor diz que ele “parece um morto-vivo. Daquele filme dos morto-vivo. E sabe... até sai umas manchas, mas não que nem aquelas que deixa o cara sem a metade do braço” (I-AN). 366

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As falas são identificadas por uma sigla. A letra “I” significa Interlocutor e é seguida da letra inicial do nome. Os participantes dessa pesquisa foram denominados de interlocutores, de modo a qualificá-los como “parceiros intelectuais dos pesquisadores na compreensão de fenômenos e na elaboração do conhecimento”26.


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Ainda assim, um morto-vivo é um corpo. Um corpo atravessado por tantos “outros” e, por isso, talvez, fragmentado, subjetivado. Carreteiro27 propõe uma reflexão sobre o corpo como uma metáfora da subjetividade, observando quatro modos de viver o corpo nas sociedades contemporâneas: o corpoviril, o corpo-beleza, o corpo do excesso e o corpo-território. Trataremos, agora, desses quatro modos de viver o corpo, abordando o corpo viril e o corpo beleza juntos, pois entendemos que eles são interdependentes e se relacionam com questões de gênero em nossa sociedade.

O corpo-viril e o corpo-beleza O corpo-viril, pensado sob a modalidade da força física, é resultado do esforço de pessoas para se sentirem e se mostrarem fortes diante dos outros, dos outros que convivem e que consideram importantes. O olhar desse outro é fundamental, uma vez que é através dele que o sujeito obterá o reconhecimento de sua ação “pela virilidade que seu corpo é capaz de expressar em público”27. Nesse modo de viver o corpo, homens e mulheres se submetem a um trabalho desenfreado de escultura do próprio corpo. O corpo, aqui, torna-se, ele próprio, mercadoria, exposto aos olhares de admiração de todos que gostariam de ter um corpo igual. Essa noção de corpo-viril nos remete à cena narrada no início deste eixo. A exibição do corpo com cicatrizes revela a força desses jovens. A cicatriz, nesse caso, não deixa de ser uma forma de escultura do corpo, uma vez que ela impõe o respeito ou medo necessário no outro. “Já fui baleado aqui”, “levei uma facada aqui” (sic). O “aqui”, acompanhado do gesto que revela a parte do corpo afetada no ato violento sofrido, mostra, aos presentes, que naquele momento ele estava fraco, vulnerável aos ataques dos outros, mas seu corpo se recuperou e agora está mais forte. A questão da aparência física destacou-se no discurso dos interlocutores durante as rodas de conversa e, também, nas observações realizadas dentro do serviço. A oposição fraco-forte é colocada em ato em várias situações: no levantar a camiseta e mostrar que, agora, “tenho até barriga” (sic), em contraposição à magreza no período crítico de uso; no arregaçar as mangas e mostrar os músculos, geralmente seguido da frase “agora estou forte de novo” (sic). Obviamente, a aparência física e a recuperação do corpo são fundamentais no processo de tratamento desses jovens e são sinais de melhora para o profissional de saúde. Contudo, se olharmos para os sinais corporais isoladamente, continuaremos olhando para o usuário como um “corpo-objeto”. No contexto de vida dessas pessoas, estar forte novamente pode estar repleto de significados que vão além dos sinais percebidos. O “estar forte” pode significar estar pronto para usar a droga mais uma vez, estar preparado para a vida nas ruas. Nesse caso, o “estar forte” significa vida, ou sobrevivência em locais onde a “lei do mais forte” prevalece. O corpo-beleza, por sua vez, é o reflexo da fascinação do mundo contemporâneo pela estética, levando os sujeitos a investirem em seus corpos em busca dos atuais ideais de beleza. Em função disto, a estética corporal tornou-se um dos maiores mercados da sociedade de consumo27. No caso dos rapazes, que observamos no serviço, o par belo-feio está diretamente associado ao par forte-fraco. Para eles, ser forte e viril significa ser belo e atraente aos olhos das mulheres que frequentam o CAPS. Um aspecto que nos chama muito a atenção é que as marcas ou cicatrizes corporais são concebidas de modos distintos para homens e mulheres. As marcas no corpo masculino representam a força e a virilidade do homem. Contudo, as mesmas marcas no corpo feminino representam um “corpo feio” (sic), não atraente, e são usadas como critérios para estabelecer quais mulheres “não pegariam” (sic), como fica evidente numa frase dita por um deles no decorrer da conversa: “cara, aquela ali tá acabada por causa do crack” (sic). Essas observações evidenciam questões de gênero vivenciadas até hoje em nossas sociedades, nas quais “os estereótipos, como resultantes de processo de manipulação simbólica do objeto-mulher, diferem na medida em que se reportam a posições de classe diferenciadas, linguagens e condições sociais e históricas diferentes”28. Os estereótipos de gênero, sempre ideológicos, são veiculados cotidianamente pelos meios de comunicação, através de filmes, novelas e comerciais, criando e mantendo relações de dominação entre homens e mulheres28,29. Podemos especular, então, que o uso de crack não altera as relações de gênero. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nos grupos realizados, entretanto, a noção de gênero não chega a ser problematizada, ao contrário, reproduziram-se, mediante a naturalização9, estereótipos de gênero no que diz respeito ao consumo do crack: “acontece com algumas mulheres, que elas se prostituem pra conseguir crack...” (I-R). Todos os interlocutores aceitaram essa constatação sem questionamentos. Inclusive, os homens que estavam nos grupos logo diziam “nunca me prostituí”, ou “nunca fiz e nunca vou fazer isso” (grifo nosso). Eles não fazem, e se já fizeram, possivelmente não contariam no espaço do grupo, porque isso é “coisa de mulher” (sic). Contudo, mesmo um pouco reticentes, eles contam dos roubos e das brigas em que estiveram envolvidos. Vemos, portanto, que, se olhamos para essas pessoas apenas como dependentes químicos, corremos o risco de, mais uma vez, reduzir o sujeito a um “corpo-objeto”, desperdiçando saberes fundamentais que o sujeito tem de si mesmo, do seu corpo, dos contextos de uso, fornecendo-nos pistas importantes para a condução das terapêuticas. Veremos agora que, apesar de serem tratados separadamente nesse manuscrito, o corpo-viril e o corpo-beleza constituem modos de viver mutuamente interdependentes com o corpo do excesso e, também, com o corpo território.

O corpo do excesso O corpo do excesso ou da compulsão refere-se aos sujeitos que, consciente ou inconscientemente, usam seu corpo para praticar excessos. O excesso aqui não é somente o consumo massivo de alimentos, por exemplo, mas, também, a sua ausência27. Essa forma de viver o corpo apresenta estreita relação com ideais modernos de mercado e consumo, bem como com as práticas que geram ou podem gerar dependência, como o uso de drogas. Para compor essa análise, resgataremos algumas ideias de Freud em “O mal-estar na civilização”21. Para o autor, o uso de drogas seria uma das possíveis saídas para o alívio da angústia, provocadas pelas renúncias a serem realizadas pelos sujeitos em benefício da vida na civilização: “o serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido”21. Ao pensar que, com a ajuda destas substâncias, é possível subtrair-se a qualquer momento da pressão da realidade e refugiar-se em um mundo próprio, Freud reconhece possíveis benefícios no uso de drogas desde que seu uso seja socialmente controlado, e não como uma prática que se opõe ao social. Nessa perspectiva, o uso de drogas ocupava uma posição fixa na economia libidinal nas cerimônias rituais de diversos povos primitivos e, atualmente, em certas formas de consumo de álcool consideradas “sociais”, tais como festas e comemorações em geral, o que constitui um cenário distinto do que ocorre nas adicções. Com efeito, é justamente “essa propriedade dos intoxicantes que determina seu perigo e sua capacidade de causar danos”21. É quando a relação com as drogas passa a ser vivida com total independência, opondo-se ao social de uma forma radical. Na verdade, o que impulsiona a passagem do uso para o abuso de drogas é a condição subjetiva do sujeito, a qual indica, também, um rompimento com o laço social. Segundo Freud21, a intoxicação via drogas é um método interessante, grosseiro e eficaz de evitar a dor, usado contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos. Como uma defesa, a droga serve para manter-se à distância de outras pessoas. Com o auxílio da droga, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio. Em última instância, Freud está abordando a busca do ser humano pela felicidade. A felicidade pode ser encontrada em duas situações – pelo encontro com o prazer e pela evitação do sofrimento. Ou seja, essa busca envolve uma meta positiva e uma meta negativa: a primeira refere-se à experiência de intensas sensações de prazer, enquanto a segunda à sensação de ausência de sofrimento, mal-estar e desprazer21. Com o intuito de ilustrar essa busca pela felicidade analisada por Freud, reproduzimos, aqui, um diálogo ocorrido na nossa primeira “roda de conversa”:

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I-L: “[...] Acho que o crack é a gota d’água, porque se nós tivesse uma vida boa, se tivesse outras coisas, nós não ia tá nessa vida aí. I-J: E quantas pessoas aí que têm a vida boa, até que é rico, tem famoso que usa essas drogas aí... I-L: Ah, mas alguma coisa atrapalha a vida deles, que eles foram querer usar, entendeu? I-J: Mas e o que tem de estragado na vida deles? I-L: Ah não, dinheiro não traz felicidade...”

(f) A “dose” é a cocaína em sua forma injetável, conforme a fala dos interlocutores.

Nesse diálogo, destacamos dois aspectos: a ausência da meta positiva e a presença da meta negativa, descritas por Freud. Vamos ao primeiro aspecto. Não apenas nessa situação, mas em todas as rodas de conversa, a sensação intensa de prazer buscada no uso do crack não é relatada. E isso é um dado importante, uma vez que a mídia veicula, cotidianamente, a informação de que o uso do crack provoca um prazer muito mais “intenso” que outras drogas, porém é mais fugaz, como fica claro na afirmação de um de nossos interlocutores: “a paulada do crack é bem mais light que o da dose(f)” (sic). Consideramos curioso que nossos interlocutores não fazem referência ao prazer proporcionado pelo consumo do crack, como já frisamos. É como se fosse um assunto proibido. Mas o que não é proibido é o relato das sensações de dor provocadas pelo consumo compulsivo do crack. Mas antes de provocar dor, o uso da droga possibilita não sentir a dor “de ver tua mãe chorando”, “a gente não enxerga o outro” (sic). O crack, num primeiro momento, assim como qualquer outra droga, possibilita amortecer as “preocupações” e os “sofrimentos”, como nos disse Freud. E aqui resgatamos o segundo aspecto identificado no diálogo reproduzido anteriormente: a presença da meta negativa. A busca da felicidade pela via da “evitação do sofrimento”, entretanto, não é exclusividade dos nossos interlocutores, ela é uma característica marcante das sociedades “antidepressivas”, que zelam por uma vida sem maiores sobressaltos afetivos, uma vida sem dor, nem que seja à base de medicamentos que entorpecem nossa percepção30. Entretanto, a lógica da “evitação da dor” via consumo do crack é invertida no discurso dos nossos interlocutores: “Às vezes a pessoa não tem coragem de se matar, assim como tu diz, mas pode ir se matando aos poucos. Tu sabe que tá se matando. [...]. É um jeito de se auto-destruir, né” (I-E). O crack, então, é apresentado como uma forma de “se fazer sentir dor”, de “se auto-destruir”. Mas essa dor autoprovocada não está somente relacionada à droga, como podemos observar na seguinte fala: “Quando eu tava com depressão mesmo... aquilo me lembrou, quando a depressão tava bem, bem forte mesmo, assim sabe, eu procuro dor sempre. Daí eu pego um caco de vidro, uma faca e começo a me riscar” (I-J). Outros interlocutores também referem a prática de cortar a própria pele, com o intuito de sentir dor. Talvez resida, nesse fato, uma das explicações para a diferença que eles estabelecem entre os usuários “de verdade” e os personagens das propagandas: os primeiros são “mortos-vivos”, os segundos são/estão “mortos”. Os mortos não sentem dor, eles simplesmente não sentem, não vivem mais. Os mortos-vivos, em contraponto aos segundos, podem até não sentir ou não “enxergar os sentimentos” dos outros, e por mais que o ato de consumir crack e de se cortar seja um ato de “morte em vida”, são atos que provocam dor, que fazem sentir dor. E quando se sente algo, é sinal que ainda há vida. Portanto, a dor, que aparentemente é uma dor física, tem sua interlocução com o psíquico20. O uso da droga como um remédio, só que visto pelo lado avesso. Nessa direção, argumenta Nasio20, quando somos privados da integridade do nosso corpo ou do COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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nosso objeto de apego, produz-se um excesso de investimento afetivo da imagem do local lesado do corpo, quando é a nossa integridade física que está em jogo; ou um excesso de investimento afetivo da imagem do objeto perdido, quando é a presença do outro que está em jogo. Esse excesso compensatório traduz-se em dor. O “superinvestimento do objeto”20, do objeto crack, é traduzido em dor quando da ausência deste, pois é um objeto de amor, de apego. E aqui destacamos outro resultado significativo desta pesquisa. Nossos interlocutores fazem uma diferenciação entre fissura e “saudade”: “[...] Eu tive quatro internação, nessas quatro aí vô tê dizê, a que mais me fez efeito foi a primeira, porque eu realmente aprendi alguma coisa. Porque as outras, as outras foi pra desintoxicar o corpo, o corpo tu desintoxica ali... em um mês sem uso tu desintoxica o corpo, mas a cabeça... a cabeça tu não vai desintoxicar nunca. Nunca porque muitas vez tu não tem nem vontade de usá, te dá saudade do troço, tá ligado, não é vontade, é saudade”. (I-D)

Essa diferenciação, mesmo com a dicotomia “corpo-cabeça” sendo dada como natural9, é fundamental nos debates atuais sobre a internação compulsória, por exemplo. Um dos argumentos favoráveis à internação compulsória é o de que o usuário, na fissura, não tem condições de se autogovernar, pois estão desprovidos de razão. Por isso, argumenta-se em favor da urgência em aumentar o número de leitos para desintoxicação. Porém, como dizem nossos interlocutores: “a fissura dá depois que tu usa” (I-D); [...] “tu é obrigado a usar outro que, tipo assim dá vontade mesmo...” (I-J); o problema é “o desejo” (I-J); [...] “não é só a dependência física, é a psíquica mesmo, o troço é na cabeça...o corpo, o corpo sente falta muitas vez, mas o pior é a cabeça... ah a vontade vem de... daqui ...daí tu se assegura, se assegura, se assegura [...]” (I-D). Essas considerações nos alertam, apesar de usarmos a denominação “corpo do excesso”27, para o perigo de interpretar o “corpo-drogado” apenas em termos de falta ou de excesso, de procura da felicidade ou “reação à infelicidade”, de “dificuldade de comunicação” ou de “desencanto com a sociedade injusta”, de “falta de amor” etc. Este tipo de discurso, quando imbuído duma “consciência infeliz” ou dum ressentimento cristão, elimina o drogado, roubando-lhe, assim, sua própria experiência. O corpo-drogado vive, sobretudo, um experimento marcado radicalmente pelo desejo: para o bem ou para o mal; para além do bem e do mal. Corpodrogado, corpo-do-desejo? Talvez. É preciso atribuir ao desejo sua polissemia infinita, suas linhas de fuga, e a prudência necessária às experimentações desejantes25.

Esse corpo não apenas de excesso ou de falta, mas um corpo desejante, mostra-se em ato como um corpo-território. É o que veremos a seguir.

O corpo-território Na última parte da nossa análise, abordaremos o corpo do usuário como um corpo-território, alvo constante de “invasões”. É um corpo invadido, marcado por uma identidade, estigmas, alvo de discriminação e preconceitos. Para tal análise, recorreremos a Wautier18, Deschamps e Moliner19 e Goffman17 para compreender e interpretar as falas dos interlocutores. Neste modo de pensar o corpo, ele é considerado, ao mesmo tempo, um lugar de expressão da subjetividade e das questões sociais como constituintes da subjetividade, e não separadas dela. O corpo, dessa forma, transmite uma mensagem, constitui-se como um ato. Como já discutimos anteriormente, vemos que as cicatrizes causadas por outros ou por si próprios também podem servir como marcas identificatórias de um grupo social. Além das cicatrizes, a aparência física – pálido, magro, dedos e boca queimados, sujo etc. – também contribui para o reconhecimento social de um dado grupo, nesse caso, de um grupo de usuários de crack, culminando num processo de identidade e de categorização social. 370

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Todo indivíduo é caracterizado, de um lado, por traços de ordem pessoal, atributos mais específicos do indivíduo; e, de outro, por traços de ordem social que indicam sua pertença a grupos ou categorias. Os primeiros traços definem a identidade pessoal que, construída nas trocas, é um sistema de representações que permite ao sujeito projetar-se numa continuidade existencial, construir um horizonte temporal no qual o indivíduo possa se tornar semelhante a si mesmo e diferente dos outros18,19. Quanto aos traços mais sociais, é à identidade social que eles remetem, que pode ser definida como “uma identidade socialmente reconhecida”18. A identidade social é um processo resultante de duas formas de identificações sociais: uma, na qual o indivíduo realiza uma autoatribuição das características do seu grupo, ou seja, torna-se semelhante aos outros da mesma pertença; a outra, realizada pelo meio ou por membros de outros grupos ou categorias, é uma atribuição de características feita pelos outros, ou seja, é a forma pela qual somos identificados, reconhecidos socialmente18,19. Percebe-se que aqui temos uma tensão entre “o nós” – o grupo de pertença do indivíduo – e “o eles” – membros de outros grupos, entre semelhança e diferença. Os traços comuns do grupo de usuários de crack podem, portanto, levar os indivíduos a fazer “um julgamento negativo sobre uma pessoa, não em razão das especificidades desta pessoa ou de sua conduta, mas, simplesmente, em razão de sua pertença a um grupo que é o objeto de um estereótipo negativo”19. Todavia, os estereótipos não cumprem apenas uma função cognitiva, mas, também, avaliativa. O estereótipo desempenha o papel de um filtro que vem alterar a percepção dos outros, sendo o substrato cognitivo dos preconceitos, que designam o “julgamento a priori e geralmente negativo de que são vítimas os membros de certos grupos”19. Isso fica claro quando um interlocutor afirma que as pessoas não “chegam” no usuário para ajudar, e “só sabem dizer aquele lá é um drogado, aquele lá é um ladrão, aquele lá vai morrer... as pessoas não vêm assim passar uma mensagem pra gente, de conforto...” (I-A). No plano comportamental, a categorização social leva à discriminação. A simples classificação de um conjunto de indivíduos em dois grupos distintos levaria os sujeitos a favorecer seu grupo e desfavorecer o outro, ou seja, há um tratamento diferencial entre os grupos e nos grupos19, o que levaria à discriminação. A discriminação, ou preconceito, como foi nomeado nos grupos, vem à tona no discurso de outro interlocutor: “E por essa propaganda assim, como eu tava dizendo, eu tenho amigos que não são usuários, mas que eu convivo no meio, só que eles sabem que eu uso, então fica aquela... bah, perigoso, de repente será que ele vai roubar alguma coisa, não vou deixar ele aqui em casa sabe, fica sempre de olho em cima... Fica aquela impressão sabe, eles não te dizem sabe, mas tu vê pela impressão que dá né, pelos gestos, bah tão sempre cuidando, bah parece que se tu vai num canto, vou pegar uma água, já vai junto sabe”. (I-E)

O estereótipo e a discriminação nos levam à discussão sobre o estigma. Goffman17 distingue os indivíduos em dois grandes grupos: os “normais” e os “estigmatizados”. Para os estigmatizados restam apenas duas situações possíveis: ou eles são “desacreditados” (não há mais o que fazer, eles se tornarão criminosos e o tratamento não funciona) ou eles são “desacreditáveis” (quando a característica principal do estigma ainda não é reconhecida socialmente no indivíduo). O autor considera três tipos de estigma, a saber: 1) as abominações do corpo (ou deformidades físicas); 2) as culpas de caráter individual (dentre tantas outras, a dependência química ou o “vício” no crack); e 3) os estigmas tribais de raça, nação, religião etc. Já encontramos duas características dos usuários de crack veiculadas na mídia – eles são “desacreditados” e carregam consigo um estigma cuja culpa é de caráter individual. Goffman17 apresenta o caráter político da questão ao afirmar que existem dois tipos de discurso que podem ser apresentados para o estigmatizado, um com fraseologia psiquiátrica (pelo exogrupo) e outro com fraseologia predominantemente política (pelo intragrupo). O segundo tipo tem sido inviabilizado na esfera pública devido à forma como o tema vem sendo tratado pela mídia e pela sociedade, apenas pelo viés biomédico e repressivo. Mas consideramos que as rodas de conversa de nossa pesquisa possibilitaram a vivificação de um discurso intragrupo. Em relação ao primeiro tipo, a ciência e a mídia propõem modelos, padrões desejáveis de comportamento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Porém, ao demonizar as drogas e, mais especificamente, o crack, o problema enfrentado é o da droga, e não o do fenômeno da “dependência química”, como querem os “especialistas”. Analisando os discursos dos interlocutores, percebemos que o que parece interessar não é ouvir o parecer dos usuários e dependentes e o confronto com as histórias singulares, mas o “fenômeno droga”, normatizá-lo. Nesse sentido, a demonização do crack e, consequentemente, dos usuários de crack inviabiliza qualquer tentativa de pensar essa questão na perspectiva da identidade do eu, de como esses sujeitos “experimentam sua identidade”, ou, simplesmente, como esses usuários vivem seu corpo e constituem sua subjetividade. Como diz um de nossos interlocutores: “eu acho que é um certo tipo de preconceito que tem contra o usuário, que mostra uma realidade muito forçada sei lá...”. E complementa dizendo que as pessoas passam pelo usuário e “olha daquele jeito, enxerga daquele jeito... que tá morrendo, que esse aí não tem mais jeito, esse aí ta morrendo... esse aí vai me roubar” (I-J). Outro interlocutor complementa a ideia anterior: “Ele precisa de internação...” (I-D). Ou seja, o corpo-território é alvo de “invasões”, classificações, julgamentos e ainda é investido de ações políticas, que pretendem “o seu bem” – como disse o vigia da prefeitura que trabalha no CAPS: eles são “um bando de vagabundos” (sic), tem que “descer o pau” (sic) neles. Portanto, percebemos que os discursos hegemônicos, monopolizadores de saber sobre as drogas, orientam as ações ou intervenções nesse “corpo-drogado” – ou a prisão, ou o tratamento, preferencialmente em leitos hospitalares de desintoxicação, o maior tempo possível. Inúmeras situações relacionadas ao uso de drogas têm nos preocupado e nos remetem à discussão realizada neste manuscrito. Temos presenciado, nos últimos tempos, o “recolhimento” de usuários de crack nas chamadas cracolândias, sobretudo no estado do Rio de Janeiro. No estado do Rio Grande do Sul, o Governo pretende construir um presídio para dependentes químicos em 2013, que foi nomeado de Centro de Referência para Privados de Liberdade Usuários de Álcool e Outras Drogas(g). Uma reportagem em um jornal de grande circulação do mesmo estado anuncia que uma mãe iniciou uma ação judicial para que a filha “viciada” em crack seja esterilizada através da laqueadura tubária – uma “esterilização compulsória”(h). Parece-nos que essas situações são ora sustentadas e/ou movidas por estereótipos, estigmas e preconceitos relacionados aos usuários, ora produtoras e/ ou reforçadoras destes. Em todas as situações narradas, as pessoas que fazem uso de drogas são reduzidas a um corpo-objeto, alvo de intervenções que visam apenas o “bem” deles. A nossa tarefa, enquanto psicólogos e profissionais de saúde, é não apenas olhar para esse corpo, mas escutar as histórias e compreender as cicatrizes, que vão muito além do problema do uso de crack. Caso contrário, correremos o risco de contribuir com práticas higienistas e, até mesmo, eugenistas.

Considerações finais Neste artigo, propomos uma análise sobre a forma como nossos interlocutores vivem, experimentam e narram seus corpos e as cicatrizes/histórias que os acompanham. Para tal, utilizamos a divisão feita por Carreteiro27 das formas de viver o corpo nas sociedades modernas: o corpo-beleza, o corpo-viril, o corpo do excesso e o corpo-território. Constatamos a manutenção e reprodução de relações históricas de dominação entre homens e mulheres – aos homens é “permitido” o crime, às mulheres, a prostituição. Além disso, as cicatrizes, resultantes de brigas e conflitos no cotidiano das ruas, são sinais de virilidade e beleza nos homens, 372

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(g)

Reportagem disponível em: http:// zerohora.clicrbs.com.br/ rs/policia/noticia/2012/ 08/governo-do-estadopretende-construirpresidio-paradependentes-quimicosem-2013-3848106.html

(h)

Reportagem disponível em: http:// zerohora.clicrbs.com.br/ rs/geral/noticia/2012/12/ mae-pede-que-filhaviciada-em-crack-sejaesterilizada-3987556.html


artigos

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enquanto que desclassificam as mulheres no quesito “beleza”. Também, observamos que o corpo do usuário do serviço, marcado, cicatrizado, alvo de categorizações sociais, acaba sendo colado à identidade de “usuário de crack”. Outro aspecto que nos chamou a atenção é a posição discursiva assumida pelos sujeitos: a “consciência” de que a relação existente entre qualquer substância e a pessoa que a usa é única. Corrêa amplia essa análise ao afirmar que “a minha relação com o café é diferente da relação de qualquer outra pessoa. E ninguém mais interessante nesse jogo todo do que eu para pensar o uso que eu mesmo faço, já que o café não pode, né?”31. À guisa de conclusão, gostaríamos de ressaltar que, apesar dos discursos hegemônicos e da veiculação maciça de formas simbólicas que sustentam mitos em relação às drogas, os usuários apresentaram uma postura crítica em relação a vários aspectos discutidos nos grupos. Isso nos mostra que a recepção e apropriação de formas simbólicas são sempre processos ativos e críticos9. Os resultados dessa pesquisa nos indicam a necessidade de refletirmos sobre nossas práticas profissionais, pois, à medida que queremos “o bem” de nossos pacientes, acabamos adotando práticas que os concebem como um corpo-objeto afetado pelo uso da droga, invadindo aquilo que chamamos de corpo-território. Além de refletirmos sobre nossa prática, instigam-nos a pensar sobre nossas concepções de droga, dependência, ser humano e mundo, pois, se entendemos a droga como algo mau por si mesmo e escutamos o sujeito exclusivamente a partir do diagnóstico da dependência química, vamos entender a saudade da droga como “síndrome de abstinência”. Entretanto, parece-nos que saudade indica algo de outra ordem, como apontamos na análise acima. Precisamos de mais encontros dialógicos que proponham debates como esses e que, para além do debate, criem processos de singularização na direção de uma construção de espaços coletivos de elaboração de políticas públicas, livre de estereótipos e preconceitos que estigmatizam corpos marcados pelo crack.

Colaboradores Os autores Moises Romanini e Adriane Roso participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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artigos

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Romanini M, Roso A. Mediatización del crack y estigmatización: cuerpos habitados por historias y cicatrices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):363-75. En este artículo proponemos un análisis de las experiencias de usuarios de crack en relación al propio cuerpo, sensaciones e historias relacionadas con el uso de la droga. Basados en las presuposiciones metodológicas de la Hermenéutica de Profundidad se realizaron grupos focales y observación participante en un Centro de Atención Psicosocial Alcohol y otras Drogas. El análisis fue apoyado por autores de la sociología, psicología social y psicoanálisis. En los discursos de los profesionales de la salud, de los usuarios de crack y de los medios de comunicación de masa se confirmó la reproducción y el mantenimiento de las relaciones de dominación entre hombres y mujeres. El cuerpo del usuario es objeto de categorizaciones sociales y acaba siendo adherido a la identidad del usuario de crack. Otro aspecto relevante observado fue que los usuarios de crack presentaban un pensamiento crítico contra los discursos hegemónicos sobre drogas publicados en los medios de comunicación.

Palabras clave: Cocaína crack. Cuerpo humano. Estereotipo. Estigma social. Psicología Social.

Recebido em 20/04/13. Aprovado em 13/11/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0951

Recepção estética de apresentações teatrais com atores com história de sofrimento psíquico* Aline Ernandes Milhomens(a) Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima(b)

Milhomens AE, Lima EMFA. Esthetic reception of theatrical presentations by actors with histories of psychological distress. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):377-88.

This study was developed among the audiences of theater groups in which the cast included actors with histories of psychological distress. Its aim was to investigate what is produced at the meeting point between art, madness and society, from studying the esthetic reception of these works. Semi-structured interviews were conducted with members of the audience at three theatrical shows with the intention of understand the relationship between the public and these productions, the meaning assigned to such relationships and their potential for cultural transformation surrounding madness. The interviews were analyzed through the collective subject discourse method. The analysis showed the potential that theater has for weaving a connective “thread” between madness and society, and indicated that the experience of the esthetic reception can make a major contribution towards the work of social and cultural transformation of the imaginary surrounding madness.

Keywords: Mental health. Culture. Esthetics. Art.

Esta pesquisa foi realizada com público de grupos teatrais que possuem, em seu elenco, atores com histórico de sofrimento psíquico, visando investigar, a partir do estudo da recepção estética dessas obras, o que o encontro entre arte, loucura e sociedade produz. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com públicos de três espetáculos teatrais, utilizando-se um roteiro de questões a fim de se compreender a relação estabelecida pelo público com essas produções, o sentido atribuído a elas e seu potencial de transformação cultural em torno da loucura. As entrevistas foram analisadas por meio do método do Discurso do Sujeito Coletivo. A análise evidenciou o potencial do teatro de tecer o “fio” de conexão entre loucura e sociedade e indicou que a recepção estética, ao compor uma experiência, pode ser grande aliada no trabalho de transformação cultural e social do imaginário em torno da loucura.

Palavras-chave: Saúde mental. Cultura. Estética. Arte.

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*

Elaborado com base na pesquisa de Iniciação Científica da primeira autora, com orientação da segunda (O teatro e as transformações culturais em torno da loucura: um estudo da recepção estética de apresentações de teatro com atores com história de sofrimento psíquico), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). (a) Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP. Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05360-000. aline.milhomens@usp.br (b) Curso de Terapia Ocupacional, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP. São Paulo, SP, Brasil. beth.lima@usp.br

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RECEPÇÃO ESTÉTICA DE APRESENTAÇÕES TEATRAIS ...

Introdução As mudanças na atenção à saúde mental brasileira, iniciadas pela Reforma Psiquiátrica na década de 1980, proporcionaram a reconfiguração das práticas em saúde mental e a criação de serviços territoriais que oferecem alternativas aos manicômios com ações no campo sociocultural. Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), residências terapêuticas, Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO), entre outros, foram criados a partir do novo modelo de atenção em saúde mental, referenciado na atenção psicossocial. Os tratamentos terapêuticos tradicionais foram repensados com vistas à construção de repertórios pautados na produção de vida em articulação com a arte e a cultura. Essa articulação iniciou-se, nas instituições brasileiras, na primeira metade do século XX, mediante trabalhos desenvolvidos, sobretudo, pelos psiquiatras Osório César em São Paulo e Nise da Silveira, Rio de Janeiro. Estes foram grandes estudiosos das produções plásticas realizadas nos hospitais psiquiátricos que, em associação com artistas plásticos, desenvolveram propostas baseadas na metodologia da livre expressão no trabalho com arte, afirmando e buscando desenvolver o potencial artístico dos pacientes. O interesse por estas produções e a recepção destas pelo público geraram muitas discussões a respeito do valor artístico das obras e da relação com a arte moderna, desdobrando-se em questionamentos sobre o conceito de arte e de artista1. Filósofos, críticos de arte, psiquiatras, psicólogos e artistas passaram a discutir os valores da arte, do fazer artístico, o sentido de expor produções feitas por loucos, assim como os conceitos de recepção e experiência estética, que serão discutidos adiante. A investigação e a recepção de obras produzidas por pessoas com sofrimento psíquico(c), inseridas em instituições psiquiátricas, remetem ao modo como a loucura é vista e pensada no campo social2. Quando apresentadas a um público, este entra em contato com manifestações de pessoas cujo imaginário social as configura como perigosas e marcadas por incapacidades. O foco na arte e naquilo que se produz na relação público-obra se dá pelo caráter disseminador dessa relação. Discutir, ouvir opiniões e comunicar são fatores essencialmente sociais que compõem e caracterizam o campo artístico e que, em articulação com a saúde mental, podem contribuir para que a pessoa em sofrimento psíquico pertença, atue e seja reconhecida em sua produção, linguagem e papel exercido na sociedade. A partir dessa discussão, este trabalho foi pensado de modo a propor uma investigação da recepção de obras produzidas no campo das relações entre arte e loucura. O estudo voltou-se para o público de apresentações de teatro com atores com histórico de sofrimento psíquico, que foram ou são usuários de serviços de saúde mental, visando contribuir para a discussão das formas por meio das quais o teatro pode promover transformações culturais e modificar concepções de saúdedoença. Buscou-se, também, fazer emergir algumas categorias que compõem o pensamento coletivo sobre as relações entre teatro e loucura a partir do discurso dos entrevistados. Desta forma, a pesquisa foi desenvolvida a partir da escuta das expectativas, impressões e opiniões do “público da loucura”, nas palavras de João Frayze1. Para o autor, investigar a recepção estética de obras da loucura é uma forma de estudar “a relação de uma cultura com aquilo mesmo que ela exclui”1 (página da citação). Entendemos, assim, que essa pesquisa pode contribuir para se pensar o potencial dessas obras de atravessar os campos da saúde e da doença, e confrontar 378

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(c)

Vários termos têm sido utilizados para designar pessoas que passam pela experiência da loucura. Alguns, como psicose ou transtorno mental, apontam para um diagnóstico, indicando o entendimento dessa experiência como doença ou transtorno. Outros, como usuários de serviços de saúde mental, referem-se à inserção e inscrição da pessoa em serviços de atenção. Optamos por utilizar a expressão “sofrimento psíquico” como forma de destacar a experiência subjetiva presente na vida dessas pessoas.


artigos

Milhomens AE, Lima EMFA

valores culturais que atribuem desvalor à diversidade, à deficiência, à loucura, à ruptura com as normas3.

Referencial teórico A recepção das obras da loucura

(d)

Destacamos a querela, publicada em jornais, entre os críticos Mario Pedrosa e Quirino Campofiorito. A este respeito, ver os trabalhos de Dionísio7 e Lima5, entre outros.

Os estudos sobre a relação entre arte e loucura começaram a aparecer no final do século XIX. Já o reconhecimento artístico de formas expressivas produzidas por loucos aparecerá algum tempo depois, em duas importantes publicações. A primeira, publicada em 1921, do psiquiatra Walter Morgenthaler, que causou impacto no meio cultural e artístico europeu por referir-se ao paciente nominalmente e considerá-lo um artista. A segunda, de 1922, intitulada “Expressão da loucura” e de autoria de Hans Prinzhorn, adquiriu destaque por empregar um método de investigação sobre os processos de criação artística por meio de teorias da psicologia. Essas publicações estabeleceram uma nova relação entre arte-loucura ao tratarem, como obras de arte, produções plásticas que dão passagem a expressões da loucura4. No Brasil, essa discussão adquiriu intensidade na Semana de Arte Moderna quando intelectuais, artistas e críticos discutiram sobre o conceito de arte, a relação entre arte e técnica, arte e inconsciente e arte e loucura4,5. Nesta mesma década, o médico psiquiatra, músico e crítico de arte, Osório César, realizou uma análise sistemática dos trabalhos de artes plásticas feitos pelos pacientes internados no Hospital do Juquery. Osório publicou textos sobre essa temática e criou a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, cujo principal objetivo era o aprendizado da técnica e a formação em arte para os internos. Realizou, também, exposições na tentativa de inserir esses artistas no meio artístico e de apresentar, aos espectadores, o aspecto social e cultural dos alienados6. Nos anos 1940, a psiquiatra Nise da Silveira iniciou outra experiência no Centro Psiquiátrico Nacional, Rio de Janeiro. Em 1947, realizou a primeira exposição, em um espaço de cultura, das produções feitas no ateliê de pintura do setor de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico. Muitas de suas exposições se seguiram em âmbito nacional e internacional: no MASP, na XVI Bienal de São Paulo, em Paris, Zurique e Roma. Em 1952, Nise inaugurou o Museu de Imagens do Inconsciente, com o objetivo de organizar, conservar e expor as obras. Essas mostras geraram grande interesse nos meios científicos e culturais, e dispararam diversas discussões no campo artístico e da saúde mental sobre a temática arte e loucura(d).

Teatro e loucura Num contexto de transformação de saberes, valores e cultura, o teatro surge como um dos “fios” de conexão entre a loucura e a sociedade. Grupos amadores e profissionais como Cia. Teatral UEINZZ, Pirei na Cenna, Coral Cênico – Cidadãos Cantantes, e experiências com o Teatro do Oprimido, entre outras, estão em ação nos espaços de arte e nos de serviços de saúde. Entre os diversos fazeres artísticos, o teatro é uma linguagem de forte expressão, que configura uma possibilidade de interação entre os atores e o público, podendo também contar com a participação direta deste, como se vê no Teatro do Oprimido. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ao assistir uma peça em que alguns atores são pessoas em sofrimento psíquico, o público entra em contato direto com essas pessoas e se confronta com seus próprios preconceitos e imaginário. Dessa forma, o olhar sobre a loucura é lançado dentro de um território artístico, configurando, simultaneamente, uma nova paisagem no campo do sofrimento psíquico e uma nova relação entre os loucos e “aqueles que se dizem sãos”. Para Peter Pál Pelbart8 (p. 65) O poder de afetação de um acontecimento, para além do deleite que pode propiciar, ou da comoção que produziu e que há de se prolongar, nos força a pensar e a repensar nosso atlas antropológico, obriga-nos a redesenhar nossa geografia mental e certas fronteiras entre saúde e doença, entre a vitalidade e o sofrimento, entre a arte e a inadequação.

Pelbart9 diz que este teatro carrega consigo vidas que experimentam limites e tangenciam estados alterados. Essas vidas, sacudidas por tremores causados por rupturas devastadoras e intensidades que transbordam toda forma ou representação, pedem novas formas de linguagem. A criação dessas linguagens questiona a possibilidade expressiva da linguagem hegemônica, gera acontecimentos inverbalizáveis e reinventa o ver e o ouvir. Hoje, o grande número de produções na interface entre arte-loucura ganhou reconhecimento e ocupou espaço nas políticas públicas de saúde e de cultura. Os Ministérios da Cultura e da Saúde, em um acordo conjunto com a Caixa Econômica Federal, ofereceram, no ano de 2009, um prêmio de incentivo financeiro a projetos culturais realizados por pessoas e grupos em sofrimento psíquico, o prêmio “Loucos pela Diversidade”. O programa objetivou construir políticas públicas culturais aos sujeitos em sofrimento psíquico por meio de um estímulo financeiro aos programas que atuam na interface saúde mental e cultura10. Tal ação demonstrou a importância destes trabalhos como uma produção cultural de qualidade que deve ser incentivada. Na fala do secretário da Identidade e Diversidade do Ministério da Cultura, Sérgio Mamberti11, “A experiência estética da criação pode ser usada como umas das mais importantes formas de expressão dessas pessoas, além de contribuir significativamente para a desconstrução de preconceitos”.

Experiência e recepção estética Neste ponto, faz-se necessário apresentar, inicialmente, a concepção de arte como experiência, proposta pelo filósofo americano John Dewey12, noção fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa. Segundo Dewey12, a experiência faz-se presente continuamente na vida do ser vivo, pois este está em constante interação com as condições ambientais, compondo o próprio processo de viver. Conversas, atitudes e observações despertam pensamentos, sensações e emoções que, quando aprofundados, modificam a experiência de modo a emergir a intenção consciente sobre o que é vivido. Estas experiências se caracterizam por serem marcantes e não se dissiparem, nem serem facilmente esquecidas. Quando não interrompidas, um fluxo subjetivo contínuo de pensamentos e sensações conduz a pessoa a um estado distinto do estado anterior, passando por uma experiência singular12. Nesta perspectiva, a experiência estética nada mais é que o desenvolvimento intensificado da experiência. [...] o estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, seja pelo fluxo ocioso ou pela idealização transcendental, mas é o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente completa.12 (p. 125)

Quando iniciado, esse fluxo se encerrará mediante a consumação da experiência, e não de um cessar, pois, no cessar, a experiência se interrompe, torna-se incompleta, não deixa marcas. Já quando consumida, o fluxo se dá a fim de esgotar o que emerge desse corpo e dessa mente, criando uma nova configuração semiótica que é, também, “produção de território subjetivo a partir das matérias do mundo”13 (p. 188). 380

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Essa experiência, segundo Dewey,12 é decomposta em três fases interdependentes: a fase “prática” indica a interação do corpo com os eventos e objetos que o cercam; a “afetiva” liga todas as partes em um todo único, dando o caráter de totalidade da experiência; e a “intelectual” dá sentido à experiência vivida. Pode-se dizer que, no momento em que essas três dimensões se fazem presentes no campo artístico, a obra é criada, revelando a conexão entre o estético e o artístico, entre a percepção e a criação, compondo a totalidade da experiência da arte14. Em um espetáculo teatral, todo o processo de produção se completa na apresentação do trabalho ao público, aos receptores, de forma que essas três dimensões estão implicadas no processo, produzindo marcas em todos os envolvidos. Este momento configura-se como uma finalização temporal da obra, mas, também, como o início de um processamento e consumação de sentimentos e pensamentos evocados pela apresentação. Segundo Lima13, a experiência estética é essencial para a constituição e apresentação dos sujeitos, pois inaugura a possibilidade de existir frente a um outro. Seguindo a perspectiva da autora, de experiência estética como encontro, quando um sujeito encontra um objeto ou uma pessoa, sensações e pensamentos são movidos, produzindo ressonâncias e despertando o olhar pra si e para o fora. Seja no cotidiano ou numa vivência artística, “as formas mais singulares de expressão são aquelas com maior potência para produzir ressonância”13 (p. 187). A experiência da loucura, ao encontrar uma expressão singular, tem grande potencial provocador, pois rompe com aquilo que é considerado “normal” e aceito socialmente. A recepção é um componente indissociável da arte e fundamental para a configuração de uma experiência estética. Segundo Dionísio15, a recepção estética é [...] um processo que não é de todo harmônico, mas envolve conflitos (Didi-Huberman, 2005), e, assim, faz funcionar em nós zonas intermediárias (Winnicot, 1975) de relação que perfazem por meio do olhar a inscrição de subjetividade de cada um, diante de um sem número de associações que fazemos ao ver uma ou outra obra determinada.15 (p. 37)

(e)

Para Gil17, o estudo de campo focaliza uma comunidade que não é necessariamente geográfica, voltada para uma atividade humana específica. A pesquisa é desenvolvida conjugando-se análise documental e bibliográfica com observação direta das atividades dessa comunidade e entrevistas com informantes16. A seleção dos informantes, neste caso, se deu por acessibilidade.

Essas associações, proporcionadas pelo encontro com o objeto (obra, apresentação, o outro etc.), provocam um pensar sobre questões nunca tocadas ou confrontadas que habitam a mente de quem o especta. Segundo Lima13, há no objeto estético “uma resolução do problemático que o abre [o espectador] para outras paisagens – caminhos que bifurcam; muros que contém e contornam”.

Métodos Essa pesquisa se caracterizou por ser um estudo de campo de caráter exploratório,16 com o objetivo de proporcionar uma aproximação às questões que envolvem a recepção estética de peças de teatro com atores com história de sofrimento psíquico, assunto ainda pouco explorado em pesquisas. Trata-se de um estudo de campo no qual foram solicitadas informações, a uma comunidade que não é geográfica(e) – constituída por espectadores de espetáculos eleitos durante a pesquisa –, acerca da experiência estética vivida por cada um desses durante as apresentações.

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Utilizou-se uma entrevista semiestruturada conduzida a partir de um roteiro composto por sete questões abertas a serem respondidas em duas etapas, antes e depois das apresentações. Na primeira etapa, foram exploradas as motivações, informações prévias e expectativas em relação ao espetáculo. Na segunda, foram abordados os elementos que chamaram atenção, as sensações e interpretações provocadas pelo espetáculo, e a relação entre teatro e saúde mental. Para a realização das entrevistas, seguiram-se quatro etapas: levantamento de grupos teatrais que possuem, em seu elenco, pessoas que são ou foram usuários de serviços de saúde mental; escolha de uma apresentação para a aplicação de um pré-teste das entrevistas, visando desenvolver os processos de aplicação e adequar o vocabulário empregado17; ida a todas as apresentações dos grupos selecionados entre o período de agosto a dezembro de 2011, na cidade de São Paulo, para a realização das entrevistas; por fim, análise das respostas dos entrevistados. A aplicação do pré-teste ocorreu em um espetáculo da Cia. Teatral Ueinzz(f) e, posteriormente, para o desenvolvimento da pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o público de dois espetáculos do Coral Cênico Cidadãos Cantantes(g) e um da Cia. de Saúde Mental de Teatro(h), que realizaram apresentações no período da pesquisa. Optou-se em incluir o Coral Cênico, pois apesar de ser um coral cuja linguagem artística é a música, as linguagens do teatro e da performance fazem-se presentes na construção do trabalho deste grupo. Para encontrar as pessoas que seriam entrevistadas, informantes potenciais para esta pesquisa, mapearam-se os grupos de teatro na cidade de São Paulo e, mediante contato, solicitaram-se informações a respeito da agenda de apresentações no período da pesquisa. Para encontrar os grupos, fez-se uma pesquisa por diversos meios: internet, sites de busca, utilizando, como palavras-chave, “teatro” e “saúde mental”; telefone, contatando todos os CAPS da cidade de São Paulo; agendas culturais on-line; redes sociais; guia cultural de jornais de grande circulação do Estado de São Paulo; por fim, contatando pessoas conhecidas que trabalham na interface arte e clínica. A partir desse levantamento, localizamos três espetáculos com apresentações agendadas para o período de realização da pesquisa. Um espetáculo da Cia de Saúde Mental de Teatro, com apresentação da peça “O Alienista” de Machado de Assis, no gênero comédia, e duas apresentações do mesmo espetáculo do Coral Cênico Cidadãos Cantantes, construído em torno do tema “A Cidade de São Paulo”. O contato com os entrevistados era feito antes da apresentação. Uma vez expresso formalmente o interesse em participar do estudo e autorizada a utilização dos dados para a pesquisa através da assinatura do TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido –, dava-se início à aplicação da primeira parte do roteiro de questões. Explicava-se a divisão do roteiro em duas etapas, sendo que a primeira seria respondida a próprio punho antes da apresentação, e a segunda após. O roteiro ficava em posse dos entrevistados, orientados a entregarem, ao pesquisador, ao final da apresentação, após responderem a segunda etapa. Na primeira apresentação em que os questionários foram aplicados, foi dada, aos entrevistados, a possibilidade de responderem as perguntas da segunda etapa via e-mail, julgando ser interessante respondê-las após um tempo da apresentação. Porém, grande parte dos que optaram por esta abordagem não responderam ao email, trazendo prejuízo para a pesquisa e para a composição dos discursos da segunda etapa. Após esta experiência, nas apresentações subsequentes, não foi dada a opção de resposta via e-mail. Desta forma, foi possível atingir um total de 21 entrevistados nos espetáculos levantados para a pesquisa. 382

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(f)

“A Cia Teatral Ueinzz é composta por pacientes e usuários de serviços de saúde mental, terapeutas, atores profissionais, estagiários de teatro ou performance, compositores e filósofos, diretores de teatro consagrados e vidas por um triz. Fundada em 1997, no interior do Hospital-Dia “A Casa”, em São Paulo, em 2002 se desvinculou por inteiro do contexto hospitalar.” Já participou de diversos festivais de teatro amador e profissional, e fez diversas apresentações, boa parte no Teatro Oficina, e também no exterior18.

(g)

O Coral Cênico Cidadãos Cantantes é um projeto de prática musical em grupo que sustenta uma experimentação entre canto coral, artes e saúde. Sua composição é heterogênea, reunindo usuários de serviços de saúde mental, pessoas em situação de vulnerabilidade social e pessoas da população em geral, interessadas nesta construção artística19.

(h)

A Cia Saúde Mental de Teatro é um grupo formado por pacientes da rede pública da saúde mental de Suzano – SP e profissionais da área da saúde mental e das artes cênicas. Teve início em abril de 2008 com uma oficina. Hoje, a Cia é composta por grupos de três oficinas com mais de trinta pacientes, com diversas apresentações na região de São Paulo20.


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A análise de dados buscou compreender: as concepções presentes no público em relação ao encontro entre loucura, teatro e produção artística e cultural; como se deu a relação do público com as apresentações teatrais; e investigar se as afetações produzidas pelos espetáculos provocaram modificações nas concepções sobre loucura. Como técnica de pesquisa empírica, utilizou-se o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), formulado e desenvolvido por Fernando Lefèvre, como um auxílio no tratamento dos dados presentes nas entrevistas. O DSC consiste em reunir, sob a forma de discursos únicos redigidos na primeira pessoa do singular, conteúdos de diversos depoimentos com sentidos semelhantes21. Para apresentação dos dados, seguem as questões ordenadas conforme o roteiro utilizado e as respectivas categorias compostas a partir da técnica do DSC.

Resultados Questão 1: Como soube da apresentação? O que te motivou a assistir ao espetáculo? Em relação ao modo como o sujeito entrou em contato com a apresentação do espetáculo, foi possível compor três categorias de respostas: conhecimento do grupo ou de integrantes do grupo; convite de amigos e familiares; e programação cultural do evento/cidade/escola. Ao analisá-las, pôde-se observar que a primeira e a segunda categorias representaram grande parte do público, já que um grande número de sujeitos referiu ter vindo assistir ao espetáculo por conhecer o grupo ou algum integrante (50%), ou por convite de parente ou amigo (33%). Apenas 17% do público referiram ter adquirido conhecimento da apresentação pela programação cultural da cidade ou do evento que estava acompanhando. Quanto às motivações para assistir ao espetáculo, 70% dos sujeitos foram movidos pelo interesse pelas artes e 30% afirmaram interesse nas questões de saúde mental. Percebe-se assim que, embora a divulgação dessas apresentações se dê, sacima de tudo, no “boca a boca” do que por divulgação em órgãos da mídia, o interesse por elas pauta-se majoritariamente em um interesse por produções artísticas e culturais.

Questão 2: Possui alguma informação breve sobre o espetáculo? Dois terços dos entrevistados responderam não possuir nenhuma informação sobre o espetáculo, e somente alguns relataram breve conhecimento sobre o grupo ou sobre a apresentação. Com esta pergunta, buscou-se verificar se o público tinha informação relativa à participação no elenco de pessoas com a experiência do sofrimento psíquico. Somente uma pessoa relatou saber que o grupo era “formado por atores que sofrem de alguma faculdade mental”. Isso é interessante, pois, embora, como visto na primeira questão, grande parte do público conheça alguém que faz parte do grupo, a maioria não relatou ter informações sobre o trabalho realizado. Talvez os entrevistados tivessem alguma informação, mas não a consideraram relevante a ponto de mencioná-la em suas respostas.

Questão 3: Quais são as suas expectativas em relação ao espetáculo? A maioria das pessoas (80%) relatou ter boas expectativas, assim como um despertar de sentimentos e aquisição de aprendizado: “Minhas expectativas são as melhores possíveis. Espero que seja bem bonito, legal, divertido, agradável, que traga muita emoção e me faça sentir prazer. Ouvi vários elogios sobre o grupo e assim espero ver coisas novas, diferentes do cotidiano, coisas para mudar e acrescentar. Compreender a mensagem que será passada e poder aprender com esses atores”.

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Apenas 20% dos entrevistados relataram ter como expectativa uma maior aproximação com a deficiência e/ou sofrimento psíquico: “Quero quebrar um pouco mais o conceito de paciente psiquiátrico em mim, conhecer os trabalhos de inclusão social e os potenciais que existem nas pessoas para ajudar a mostrar para a sociedade que eles são “normais”. Saber que tipo de deficiências os componentes do grupo tem ou vão expor durante o espetáculo”.

Questão 4: Quais elementos te chamaram atenção no espetáculo? Para essa questão, três categorias foram compostas: características estéticas do espetáculo; afetos e relação grupal; e diversidade dos integrantes. Dentre as três, a que teve mais destaque entre o público (60%) foi a “características estéticas do espetáculo”: “A diversidade de cores, de pessoas, de vozes, o figurino, a performance, o movimento desordenado, a expressão cultural, a expressão facial, a interação com o público, a organização, os esforços dos atores em interpretar o texto, o texto na ponta da língua, a interpretação cênica e interação com a platéia”.

Percebe-se, neste discurso, que a qualidade estética do espetáculo é o que mais chama atenção. Este dado aponta para a potência de experiência estética e cultural dos espetáculos e seu deslocamento do campo das práticas em saúde. Em um espetáculo com atores com sofrimento psíquico, o que se sobressai são os elementos artísticos, não a loucura ou a problemática de seus integrantes. A segunda categoria “afetos e relação grupal” esteve presente em 30% dos discursos, como será visto e aprofundado na discussão da questão 5.

Questão 5: Cite algumas sensações e/ou interpretações provocadas pelo espetáculo Boas sensações e sentimentos; interação grupo-público; e viver e enfrentar a vida, foram as três categorias decompostas das respostas dos entrevistados. A primeira delas representou 85% das falas dos entrevistados, já as outras compuseram, respectivamente, 10 e 5% dos discursos coletados. Chamou atenção, nos discursos da primeira categoria, a frequência das palavras alegria, felicidade e sorriso, presente em 66% das expressões-chave. Esta alegria referida por grande parte do público pode ter se dado pelo gênero dos trabalhos, uma vez que a Cia. de Saúde Mental apresentou uma comédia e o Coral Cênico apresentou músicas sobre a cidade de São Paulo, que convidavam o público a cantar junto. Entretanto, há outros fatores que se relacionam a esta sensação compartilhada pelo público. Pode-se relacioná-las às vivências de interação grupos-público, de vitalidade e de enfrentamento de dificuldades da vida. Neste sentido, parece importante observar que a alegria pode estar relacionada a uma potência política e clínica dos espetáculos, produzindo aumento da realidade compartilhada e da força de agir e de pensar nos atores e no público a um só tempo. Isto porque a alegria é considerada, aqui, uma potência política e subjetivante22. “Muitas sensações! Sensações muito boas, de inclusão. Difícil descrever... nostalgia, alegria, vontade de sorrir, admiração, bem-estar, felicidade, carisma, relaxamento, entusiasmo, tranquilidade, expressos com liberdade. Me emocionei quando o elenco se reuniu no palco, todos interagiram, cada um do seu jeito, adorei, amei!”.

Se considerarmos a ideia de Dewey12 de que uma obra será verdadeiramente artística quando ocorrer uma recepção prazerosa aos olhos de quem cria e aos olhos de quem recebe, todos os espetáculos considerados para a pesquisa teriam qualidades de experiência estética. Não somente por um poder de 384

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afetação e de despertar emoções como o DSC da questão 5 expressa, mas, também, no aspecto dos elementos estéticos fortemente trazido na questão 4. Outra sensação presente em alguns dos sujeitos entrevistados foi a vontade de participar e se integrar ao espetáculo. Para estes, a recepção estética pareceu ser tão intensa que muitos quiseram fazer parte, compor aquilo que espectavam: “A interação do grupo com o público deixou o clima mais simpático e alegre. Fiquei com vontade de participar do espetáculo. Sensação de se sentir diferente, único, mas ao mesmo tempo integrante do grupo”.

Pouco menos frequente, mas de importância para a análise por relacionar-se à ideia de experiência estética enquanto transformação, foi o sentimento de querer viver e enfrentar a vida com mais intensidade: “Reconhecer os limites e ter a disposição para enfrentar. Vontade de viver a vida com mais intensidade, pois as pessoas que tem problema de saúde mental estavam lá firmes e fortes enquanto nós às vezes ficamos reclamando da vida”.

Essas três categorias, que emergiram das respostas a esta pergunta, podem ser relacionadas com as três fases que compõem, segundo Dewey12, a experiência estética: a fase prática, a intelectual e a afetiva. É possível pensar que cada sujeito entrevistado trouxe, em sua resposta, aspectos compartilhados da experiência de modo singular, tal como vividos em seu corpo. A fase “prática”, que é a interação do corpo com o objeto, no caso, o espetáculo, é demonstrada nos discursos dos sujeitos que expressaram uma vontade de querer compor o grupo e participar da apresentação. A “intelectual”, segundo o autor, é a fase que dá sentido à experiência vivida no encontro com o objeto – estaria forte nos sujeitos que relataram um sentimento de querer viver e enfrentar a vida com mais intensidade. Por fim, a fase afetiva, expressa nas sensações de alegria, leveza, bem-estar etc., demonstrada no primeiro DSC desta questão. Essa fase é a responsável por ligar todas as partes em um único todo e dar o caráter de totalidade à experiência. Assim, é possível afirmar que o processo de produção e consumação de sentimentos e pensamentos evocados pela apresentação foi iniciado e a recepção foi concretizada. O espetáculo configura-se somente como finalização temporal da obra e início de um processamento desses despertares; a afetação na vida da pessoa somente poderá ser significada por ela no decurso do tempo por vir.

Questão 6: Em relação às expectativas, algo te surpreendeu? Essa questão foi a única sobre a qual se formou somente uma categoria de resposta: surpresa pela qualidade do espetáculo e potencialidade dos atores. “SURPREENDENTE!!! O espetáculo inteiro foi fantástico, foi muito bom, se saíram muito bem. Todos estavam envolvidos e preparados, não esperava tanta qualidade na peça. Achei interessante a parte das artes cênicas, me surpreendi pela desenvoltura do grupo, o modo como eles interpretaram, o talento expressivo de alguns participantes, a forma única deles se comportarem no palco, a sincronia, gente que sabe atuar. Por mais que saibamos o contexto do espetáculo e dos atores, criamos um pré-conceito sobre tudo, assistindo a peça esqueci desses “detalhes”, estava ali entregue ao espetáculo. Nunca imaginei que pessoas tão especiais conseguissem passar para nós emoções assim tão sinceras. As expectativas foram ultrapassadas e as diferenças são deixadas de lado”.

Percebeu-se, assim, que essas formas singulares de expressão tiveram a potência de produzir ressonância nos espectadores13. O público dos espetáculos pesquisados foi provocado no sentido de se COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desprender de pré-conceitos e romper com aquilo que é considerado “normal” e aceito socialmente. É importante, ainda, destacar que, se o público ficou tão surpreendido com a qualidade dos espetáculos e com as potencialidades dos atores, isto indica um imaginário anterior de que os trabalhos não teriam estas qualidades. Neste sentido, as apresentações cumprem um papel de transformação cultural em torno da loucura.

Questão 7: Para você, qual a relação entre teatro e saúde mental? Nesta última pergunta, objetivou-se sair do foco do espetáculo em questão para se aproximar da ideia dos entrevistados sobre a relação entre teatro e saúde mental. Três categorias delinearam a opinião do público entrevistado: teatro como uma forma de promoção de saúde e bem-estar; teatro como uma forma de expressão; e teatro como uma forma de inclusão. Dessas categorias, a primeira representou 50% dos entrevistados e a segunda 30%. Pode-se perceber que se assemelham por caracterizarem o teatro como um “canal”, uma saída para o sofrimento ou “liberação das emoções”. Isso demonstra que o público reconhece e valoriza (ao fazer a relação com a saúde e o bem-estar) a importância de outras formas de expressão como parte da vida de uma pessoa e, sobretudo, de pessoas com a experiência do sofrimento psíquico que sofreram e/ou sofrem rupturas e momentos intensos de transbordamento das emoções. Esta relação feita pelo público pode ser relacionada ao pensamento de Augusto Boal de que as artes cênicas não são somente um meio de libertação das prisões psíquicas e físicas, mas, também, um meio de liberação das prisões sociais23. Este último aspecto aparece na terceira categoria: teatro como uma forma de inclusão. “Acredito que o teatro faça com que essas pessoas sejam mais respeitadas, sem sofrerem preconceitos. Numa peça, você não consegue saber quem é a pessoa com deficiência, pois elas trabalham perfeitamente bem como qualquer outra. Qualquer deficiência não impede que as pessoas mostrem suas capacidades, e o teatro abre esse espaço”.

Discussão e conclusões A análise das entrevistas evidenciou o poder de afetação que um espetáculo com atores com a experiência do sofrimento psíquico pode ter sobre seu público, assim como a potência desses espetáculos de se deslocarem do campo das práticas em saúde para o campo das práticas artísticas e culturais. É importante apontar que, durante os seis meses de desenvolvimento da pesquisa de campo, foi possível entrevistar o público de apenas três espetáculos teatrais. O reduzido número de espetáculos que ocorreram durante esse período leva a um interesse em aprofundá-la, podendo investigar a experiência de públicos de outros espetáculos e apresentações de outros grupos. Além disso, percebeu-se que a divulgação desses espetáculos ainda está muito restrita a uma divulgação “boca a boca” de amigos e familiares, evidenciando uma dificuldade de serem incluídos em programações culturais de jornais e revistas de grande circulação. Isso talvez demonstre, ainda, um nãoreconhecimento desses grupos na categoria de arte pelas mídias de divulgação. Em relação à recepção estética, pôde-se visualizar quanto os entrevistados foram atingidos por diversas sensações e pensamentos e quanto estes os mobilizaram subjetivamente sobre um novo olhar da loucura. A partir do momento que o público entrevistado mostrou-se surpreendido pelo espetáculo, é possível afirmar que essa surpresa os fez redesenhar a geografia mental e certas fronteiras entre saúde e doença, entre a vitalidade e o sofrimento, entre a arte e a inadequação8. Essa pesquisa mostrou que o teatro tem o potencial de tecer o “fio” de conexão entre a loucura e sociedade pelas qualidades artísticas, pelos elementos estéticos e afetivos, e pelo caráter admirável. O teatro, incluindo-se atores e espectadores como compositores deste, é um espaço de criação e reprodução de modos de ser e de existir. 386

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Os estudos da experiência e da recepção estética produzem uma nova forma de pensar o toque dos olhos sobre uma produção. Produção esta, artística ou não, que ressoa no corpo e na mente de todos que se disponibilizam ao encontro e se deixam levar pelo fluxo das sensações e emoções que despertam e agem sobre si. A arte, como uma das disparadoras dessa instigação interna, afirma seu poder de afetação sob os sujeitos durante todo seu processo de produção. A pessoa que a produz, a percebe, e a pessoa que a percebe, a reproduz dentro de si. Esse “entremeio” da afetação é o que dá início à experiência. Diante do material levantado e dos aspectos apresentados, pode-se apontar que a recepção estética, ao compor uma experiência, apresenta-se como grande aliada no trabalho de transformação do imaginário sobre a loucura, trazendo-a, também, para o lugar do vivível, do contato, do toque, do encontro e da experiência.

Colaboradores Após a conclusão da pesquisa, as duas autoras trabalharam em conjunto para a elaboração deste artigo.

Referências 1. Frayze-Pereira JA. Olho d’água: arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta; 1995. 2. Lima EMFA. A produção e a recepção dos escritos de Qorpo-Santo: apontando transformações nas relações entre arte e loucura. Interface (Botucatu). 2010; 14(33):437-47. 3. Nicácio MF. O processo de transformação da saúde mental em Santos: Desconstrução de saberes, instituições e cultura [tese]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1994. 4. Ferraz MHCT. Arte e loucura: limites do imprevisível. São Paulo: Lemos Editorial; 1998. 5. Lima EMFA. Arte, clínica e loucura: território em mutação. São Paulo: Summus, Fapesp; 2009. 6. Lima EMFA. Oficinas, laboratórios, ateliês, grupos de atividades: dispositivos para uma clínica atravessada pela criação. In: Costa CM, Figueiredo AC, organizadores. Oficinas terapêuticas em saúde mental – sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; 2004. p. 59-81. 7. Dionísio GH. Museu de imagens do inconsciente: considerações sobre sua história. Psicol Cienc Prof. 2001; 21(3):30-5. 8. Pelbart PP. Teatro nômade. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 1998; 9(2):62-9. 9. Pelbart PP. Ueinzz - viagem a Babel. In: Pelbart PP, organizador. A vertigem por um fio. São Paulo: Iluminuras; 2000. p. 99-108. 10. Ministério da Cultura. Loucos pela diversidade [Internet]. 2009 [acesso 2011 Fev 20]. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2009/11/20/loucos-peladiversidade-7/ 11. Ministério da Cultura. Loucos pela diversidade [Internet]. 2007 [acesso 2011 Fev 20]. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/2007/08/17/loucos-peladiversidade/ COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Milhomens AE, Lima EMFA. Recepción estética de presentaciones teatrales con actores con historia de sufrimiento psíquico. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):377-88. Esta encuesta se realizó con el público de grupos teatrales que tienen en su reparto a actores con historial de sufrimiento psíquico, con el objetivo de investigar a partir del estudio de la recepción estética de esas obras lo que produce el encuentro entre arte, locura y sociedad. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con públicos de tres espectáculos teatrales para comprender la relación establecida por el público con esas producciones, el sentido atribuido a ellas y su potencial de transformación cultural alrededor de la locura. Las entrevistas se analizaron con el método del discurso del sujeto colectivo. El análisis dejó en evidencia el potencial del teatro para tejer el “hilo” de la conexión entre locura y sociedad e indicó que la recepción estética puede ser una gran aliada en el trabajo de transformación cultural y social del imaginario alrededor de la locura.

Palabras clave: Salud mental. Cultura. Estética. Arte.

Recebido em 02/12/13. Aprovado em 23/01/14.

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artigos

DOI: 10.1590/1807-57622013.0241

Circunstâncias que envolvem o suicídio de pessoas idosas

Girliani Silva de Sousa(a) Raimunda Magalhães da Silva(b) Ana Elisa Bastos Figueiredo(c) Maria Cecília de Souza Minayo(d) Luiza Jane Eyre de Souza Vieira(e)

Sousa GS, Silva, RM, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Vieira LJES. Circumstances surrounding the suicide of elderly people. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):389-401.

This text analyses experiences and family relationships that preceded the suicide of an elderly person. This was a qualitative study using the psychosocial autopsy method. The cases of 16 elderly people who committed suicide in three cities in northeastern Brazil between 2006 and 2009 were considered. From content analysis, two categories were elucidated: experiences that came before the suicide and enunciation of the suicide by the elderly person to family members. The prominent factors associated with the suicide were mood swings and expressions of depressive states, family conflicts permeated by financial problems and abusive use of alcohol and suicidal ideation through announcing the wish to finish life early. Wide-ranging viewpoints and reflective listening in relation to these elderly individuals become necessary among social workers, family members, friends and several sectors: specifically, managers and professionals of the healthcare sector who can create significant changes in the dynamics of the service.

Keywords: Elderly person. Suicide. Family dynamics.

O trabalho analisa experiências e relações familiares que antecederam o suicídio de idosos. Trata-se de pesquisa qualitativa, com método de autópsia psicossocial. Contempla casos de 16 idosos que cometeram suicídio entre 2006 a 2009 em três municípios do Nordeste Brasileiro. À luz da Análise de Conteúdo, elucidaram-se as categorias: experiências que antecederam o suicídio de pessoas idosas e enunciação do suicídio pelo idoso aos seus componentes familiares. Destacam-se os fatores associados ao suicídio: alterações de humor e expressões de estados depressivos, conflitos familiares permeados por dificuldades financeiras, e uso abusivo de álcool e ideação suicida por anunciação do desejo de antecipar seu fim. Tornamse necessários o olhar abrangente e o ouvir reflexivo sobre o idoso por parte dos agentes sociais, familiares, amigos e diversos setores, especificamente o setor saúde, gestores e profissionais que provoquem mudanças significativas na dinâmica do serviço.

Palavras-chave: Idoso. Suicídio. Dinâmica familiar.

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(a) Departamento de Enfermagem, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco. Rua Aniceto Varejão, 979, Piedade. Jaboatão dos Guararapes, PE, Brasil. 54420-310. girlianis@gmail.com (b,e) Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza. Fortaleza, CE, Brasil. rmsilva@unifor.br; janeeyre@unifor.br (c,d) Centro LatinoAmericano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. aebfigueiredo@ yahoo.com.br; maminayo@terra.com.br

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Introdução O crescimento da população idosa é um dos fenômenos mais notórios em todo o mundo, trazendo consigo repercussões culturais, sociais e políticas1,2. O Brasil é um país que envelhece velozmente: a cada ano, seiscentos e cinquenta mil novos idosos são incorporados à população brasileira2. As projeções para o ano 2020 estimam 32 milhões, o que situará o Brasil na sexta posição mundial em número de idosos3. Quando alcançam a terceira idade, é importante que as pessoas possam conviver melhor consigo mesmas e com os outros, integrando positivamente as limitações fisiológicas próprias do envelhecimento, as mudanças na sua visão de mundo e os modos de viver os inter-relacionamentos familiares e sociais, conforme preconiza a Organização Mundial de Saúde4. Com efeito, envelhecer é um processo e, nessa organização interna e externa, alguns idosos podem expressar dificuldades que se prolongam, cristalizam e podem evoluir para estados depressivos ou, mesmo, depressão. A depressão, como transtorno mental, e outros agravos afetivos, ocasionam potenciais fragilidades e constituem significativos fatores de risco para o suicídio de idosos1,5,6, uma vez que interferem nos laços sociais e sua ruptura, sobretudo no caso de personalidades rígidas, ansiosas e obsessivas7. O suicídio de idosos é um fenômeno estudado pela literatura internacional8 como grave problema de saúde pública4,8. Pesquisa realizada pelo Multicentre Study of Suicidal Behaviour (WHO/EURO)9, em 13 países europeus, mostra que as taxas médias de morte por autoviolência, entre pessoas de mais de 65 anos nessas sociedades, chega a 29.3/100.000. Nessa direção, novos trabalhos de aprofundamento do tema são necessários, quando contribuem para a elaboração de planos de ação voltados ao cuidado integral com o idoso10,11. A complexidade do tema “suicídio de idosos” demanda uma abordagem qualitativa que possa fazer dialogar dados e informações epidemiológicas, com sociológicas, antropológicas e psicológicas12. Com origem nessa triangulação teórica, pretende-se a aproximação das histórias que os familiares contam sobre os dias anteriores ao suicídio de idosos do Nordeste brasileiro, analisando as histórias relatadas por seus familiares sobre o fato, quanto aos aspectos emocionais, físicos, psíquicos, sociais e culturais. Durkheim13, que estudou o suicídio do ponto de vista da Sociologia, o define como “Todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima que sabia que se produziria esse resultado”. Para isso, elaborou um modelo sociológico que ressalta os padrões e regularidades do fenômeno. Em diálogo com esse autor referencial ou criticando seu marco teórico, estudiosos passaram a ressaltar os aspectos microssociais e subjetivos desse ato existencial14,15. Nessa linha de pensamento, compreende-se o ato suicida como decisão pessoal permeada pela interpretação dos aspectos psicossociais vivenciados pelo indivíduo. Cada sujeito está em interação intensa com os outros membros da família e com a sociedade. Por isso, deve-se considerar a série de fatores que vão se acumulando na biografia da pessoa, tornando seu sofrimento insuportável e culminando no suicídio16. O suicídio é um ato consciente de autoaniquilamento, vivenciado por aquele em situação de vulnerabilidade, que o percebe como a melhor solução para escapar de uma dor psicológica insuportável16. Neste ensejo, o suicídio resulta da intencionalidade do sujeito, mas é influenciado por fatores sociais e microssociais. Desse modo, indaga-se: como estavam as relações familiares que circundavam esse idoso suicida? De que modo esse idoso se mostrava em sua condição física, emocional e psicológica nos dias que antecederam o ato suicida? As pessoas do convívio social desse idoso perceberam indícios de que ele estava desistindo da vida? Nessa direção, este artigo faz uma inflexão específica sobre os momentos anteriores ao suicídio. O termo “momento” aqui é utilizado como uma representação vívida da memória dos familiares, sem necessariamente coincidir com o tempo cronológico. Na interlocução das correntes sociológica e psicológica, que debatem o contexto social, bem como a internalização do sujeito, o texto reúne algumas reflexões diante do fenômeno, que assumem importância, sobremaneira, pelo envelhecimento populacional e o que isso significa para a sociedade.

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artigos

Metodologia A investigação que dá origem a este artigo ocorreu nas cidades de Teresina (PI), Tauá (CE) e Fortaleza (CE), e se insere num projeto de âmbito nacional intitulado: “É possível prevenir a antecipação do fim? Suicídio de Idosos no Brasil e possibilidades de atuação do Setor Saúde”. Entre os nove estados que compõem a região Nordeste do Brasil, em seis, incluindo Piauí e Ceará, em 2009, as taxas de suicídio na população masculina superaram 10/100.000 habitantes, índice considerado relevante na pesquisa nacional e elevado dentro dos parâmetros da OMS17. Embora partisse de uma pesquisa de série histórica e de especificação dos municípios brasileiros17-19, outros estudos12,20 enfatizaram a abordagem qualitativa por meio de autópsias psicossociais – conceito já bastante estudado por Cavalcante e Minayo15. Essa abordagem metodológica faz uma reconstituição narrativa com suporte em um roteiro de referência, para entrevista com os familiares dos idosos sobre: a) caracterização social; b) retrato e modo de vida; c) avaliação da atmosfera do ato de suicídio; d) estado mental que antecedeu o suicídio; e) reflexão da família sobre o ato21. Os procedimentos para localizar os familiares dos idosos que faleceram por suicídio ocorreram por: levantamento no Instituto Médico Legal (IML), contato com a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SESA), com a Secretaria Municipal de Saúde de Tauá, e com a Estratégia Saúde da Família (ESF), que forneceram a listagem com as informações necessárias para localização das residências. A identificação dos casos foi feita segundo recomendações da literatura16, que expressa ser conveniente não estudar casos muito recentes (arbitrados até dois anos do fato ocorrido) e nem muito antigos (arbitraram-se cinco anos), buscando-se respeitar elementos emocionais das histórias, mas de forma o mais possível já elaborada no tempo. Tendo em mãos a listagem dos casos, procedeu-se ao contato com os familiares por telefone, buscando agendar as entrevistas. Dez famílias de idosos que haviam falecido por suicídio não foram localizadas; duas se recusaram a ser entrevistadas, alegando não estarem preparadas emocionalmente para relatar o ocorrido; duas aceitaram participar, mas, no momento em que os pesquisadores compareceram na data e local agendado, recusaram, alegando os mesmos motivos descritos a respeito de outras recusas. As entrevistas ocorreram no período de maio e junho de 2011. Inicialmente, começou-se o trabalho de maneira muito informal, criando-se um clima propício à conversa. Em seguida, foram fornecidas informações sobre a relevância desta pesquisa, bem como lidos os objetivos e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), propiciando, aos interlocutores, um ambiente de empatia, para que relatassem livremente suas recordações, pensamentos e sentimentos. Buscou-se respeitar os momentos fortes de emoção e choro. Em geral, os familiares agradeceram o fato de poderem falar do que havia acontecido sem serem julgados e, ao contrário, dentro de um momento compreensivo e acolhedor. A maioria das entrevistas ocorreu ouvindo-se mais de um membro da família, no entanto, considerou-se que um informante-chave deveria assumir a reconstituição da história de vida do idoso que faleceu por suicídio e que os outros adicionassem elementos importantes para elucidar a compreensão do ato. O acervo das entrevistas compreendeu as histórias de 16 idosos, contadas por 42 familiares (viúva, ex-esposa, irmãos(ãs), filhos(as), sobrinha e netos) em ambiente escolhido por elas (varanda, salas, cozinha, galpão e restaurante). Todos os que aceitaram participar consentiram que a conversa fosse gravada e essas gravações duraram, em média, sessenta minutos. Após a realização das entrevistas, os dados foram compilados e consolidados. Buscou-se organizar a história de cada idoso, em relação aos dias que antecederam o suicídio, e procedeu-se a síntese analítica do conjunto, dentro de alguns núcleos de sentido: mudanças de humor; conflitos familiares; depressão; rejeição de doenças crônicas; verbalização do desejo de morrer, e conformando duas categorias principais: (1) experiências que antecederam o suicídio do idoso, e (2) enunciação do suicídio, pelo idoso, aos seus familiares. O projeto que originou este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, e todos os informantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As recomendações desses instrumentos foram respeitadas. Os membros familiares que expressaram COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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alterações emocionais mais fortes foram encaminhados e recomendados aos serviços de saúde considerados de referência.

Resultados e discussão Após as informações dos familiares para reconstituição dos dias que antecederam o suicídio, julgouse relevante trazer a caracterização dos idosos, cujos casos são aqui analisados (Tabela 1). Tabela 1. Caracterização dos idosos que faleceram por suicídio

Sexo Masculino Feminino Subtotal Estado Civil Solteiro (a) (Re) casado ou em união estável Divorciado ou separado Viúvo (a) Subtotal Escolaridade Analfabeto ou semianalfabeto Curso Fundamental Curso Médio ou técnico Curso Superior Subtotal Religião Católica Evangélica Sem religião Subtotal Local de residência Meio rural Meio urbano Subtotal Local de ocorrência Residência Rua Roçado Empresa Subtotal Método Enforcamento Arma de fogo Envenenamento Queda Queimadura Subtotal Dia da semana da ocorrência Segunda a sexta Finais de semana Subtotal Horário da ocorrência Manhã Tarde Noite Subtotal

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(N = 16)

Teresina N

Tauá N

Fortaleza N

N

%

4 2 6

5 5

5 5

14 2 16

87,5 12,5 100

1 2 2 1 6

5 5

4 1 5

1 11 3 1 16

6,2 68,7 18,7 6,2 100

3 2 1 6

3 1 1 5

5 5

3 9 3 1 16

18,7 56,2 18,7 6,2 100

6 6

5 5

3 1 1 5

14 1 1 16

87,5 6,2 6,2 100

6 6

2 3 5

5 5

2 14 16

12,5 87,5 100

6 6

3 1 1 5

4 1 5

13 1 1 1 16

81,2 6,2 6,2 6,2 100

2 2 1 1 6

2 1 2 5

3 1 1 5

7 4 3 1 1 16

43,7 25 18,7 6,2 6,2 100

5 1 6

4 1 5

5 5

14 2 16

87,5 12,5 100

2 3 1 6

4 1 5

2 2 1 5

8 6 2 16

50 37,5 12,5 100

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artigos

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Entre os idosos que faleceram por suicídio, predominaram homens (87,5%), casados (68,5%), com educação formal Fundamental completa (56,2%), pertencentes à religião católica (87,5%) e residentes na área urbana (87,5%). Identificaram-se idosos com vínculos matrimoniais desfeitos pelo divórcio ou separações (18,7%); um percentual representativo de analfabetos ou analfabetos funcionais (18,7%) e dos que concluíram o Ensino Médio (18,7%). No tocante às diferenças entre os sexos, a literatura5,8,22 aponta que mulheres atentam mais contra suas vidas, e os homens são mais assertivos quanto ao suicídio. Este estudo corrobora a literatura, uma vez que foi encontrada predominância masculina por meio dos dados epidemiológicos e dos casos registrados no Instituto Médico Legal. Quanto aos baixos níveis de escolaridade, a situação dos idosos coaduna-se com a da população do Nordeste. Meneghel et al.20 reforçam a ideia de que os idosos que faleceram por suicídio com melhores níveis foram identificados nas regiões Sul e Sudeste do País. Quanto à questão religiosa, dados atuais do IBGE23 confirmam que, no Brasil, continua a predominar o catolicismo. Não se observou, no entanto, a influência da religião nos casos estudados, embora, do ponto de vista preventivo, Cassorla14 lembre que as crenças religiosas são um dos pilares de resistência para que pessoas em situação de sofrimento suportem com maior serenidade suas dificuldades e não cometam suicídio. Uma questão importante observada no estudo dos idosos vítimas de suicídio no Nordeste é a migração do campo para a cidade. Várias dessas pessoas demonstravam sofrimento pela ruptura de laços sociais, pela perda da cultura e dos vínculos, pela dificuldade de se adaptar aos costumes da vida urbana, o que contribuía, entre outros fatores, para sua situação de vulnerabilidade7,24. No grupo estudado, a maioria dos suicídios ocorreu nas próprias residências (81,2%), com predomínio das mortes nos dias úteis (87,5%), nos períodos da manhã (50%) e tarde (37,5%). Em seu estudo sociológico, Durkheim12 descobriu que a maior parte dos suicídios, nas regiões pesquisadas por ele, ocorreu durante o dia, no momento em que os negócios estavam mais ativos, as relações humanas se cruzavam e entrecruzavam, e a vida social estava mais intensa. Os atos fatais praticados pelos idosos do Ceará e do Piauí foram por enforcamento (43,7%), arma de fogo (25%) e envenenamento (18,7%). Esses dados acompanham a literatura nacional19,25 e internacional26.

Experiências que antecederam o suicídio do idoso Os idosos no contexto social e cultural, em determinadas fases de vida – como aposentadoria, impossibilidade de exercer a profissão por dependências físicas e psicológicas e surgimento de doenças crônicas – se deparam com mudanças negativas e perdas que, frequentemente, lhes causam uma espécie de morte social e subjetiva. Esse sentimento se traduz em isolamento, angústia e dificuldades no relacionamento com seu grupo social. Isso fica muito evidente nas narrativas de vida ouvidas dos seus familiares, como se constata a seguir. “Nos últimos dias, ele estava mais triste, ele estava trocando frases, palavras, às vezes ele trocava até o nome das filhas”. (viúva, sobre homem casado, 61 anos, Fortaleza) “[...] Às vezes, conversava de forma desconexa, esquecendo o que estava falando e mudava de assunto com freqüência”. (sobrinha, sobre mulher solteira, 64 anos, Teresina)

Essas falas demonstram alterações no fluxo do pensamento, aumento da confusão mental e dificuldade de comunicação. Tal comportamento que, no decorrer da narrativa familiar, se provou que era acompanhado de profunda tristeza, não constitui uma característica da pessoa idosa. Ela é circunstancial e provocada por muitos fatores2,25,26. Na realidade, mesmo de forma desconexa, essa fala mostra que o idoso ainda estava ligado à vida, ainda que de forma confusa, o que lhe dificultava ser compreendido por quem o cercava; acredita-se que “o suicídio é um ato de desespero de quem não faz mais questão de viver”13.

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“Ela chorava muito e não falava o que estava sentindo, só chorava e procurava ficar perto das pessoas”. (sobrinha, sobre mulher solteira, 64 anos, Teresina) “[...] ele vivia triste, isolado, era essa tal da depressão, sofria de insônia, demorava demais para dormir, aí vivia em casa, no canto dele”. (irmã, sobre homem casado, 73 anos, Tauá)

Mais uma vez, estão presentes: a tristeza, a insuportabilidade do sofrimento, o isolamento, a falta de diálogo e a enunciação da depressão. Durkheim13 lembra que “o sistema mental de um povo é um sistema de forças definidas que não podem ser desordenadas nem reordenadas por meio de simples injunções. Ele está ligado à maneira pela qual os elementos sociais estão agrupados ou organizados”. Assim, esse isolamento do convívio social vem acompanhado, ao mesmo tempo, nos dois casos citados, pelo afrouxamento das referências identitárias, como se o idoso se sentisse um estranho no mundo, vivendo “em seu canto”. A posteriori, em geral, os familiares se culpam e se arrependem de não terem sido mais atentos aos sinais dessa “morte social”, mesmo dentro de uma família e cercado de gente12-14,16,21. Essa perda de identidade e de sentido da vida, frequentemente passa despercebida das famílias. E ela está ligada a questões relativamente simples do cotidiano: privação de objetos individuais e particulares, troca de casa para morar com os filhos, abrindo mão do seu jeito de levar a vida em favor de outros adultos que passam a dominar a cena familiar, mudança de quartos confortáveis para outros menores e mais restritos (às vezes na própria casa), dando lugar à ocupação de seu antigo espaço pelos filhos casados, ou seja, com perda da autonomia relativa aos seus bens e pouco espaço no ambiente familiar para expressão de suas necessidades5,6,26-29. “Acredito que ele já estava com depressão há muito tempo e o filho, mesmo trabalhando com ele, não percebia”. (ex-esposa, sobre homem, divorciado, 72 anos, Teresina)

Como é possível observar, nesse depoimento, o isolamento social aqui se expressa ainda que no âmbito do convívio com outras pessoas: “o filho não percebia”, embora lhe provesse as necessidades básicas de sobrevivência28. É assim em vários casos: o estado de depressão, que inicialmente aparece como sentimento de tristeza e isolamento, pode desencadear manifestações mais graves, tais como as percebidas pela ex-mulher. A pouca atenção, no entanto, que muitos familiares dedicam aos seus idosos – e essa atenção não pode ser interpretada como cuidado material apenas – é um fator desencadeador potente de pensamentos, tentativas e do suicídio. Assim, os familiares se deparam com o desafio de cuidar de maneira muito mais abrangente e específica e de propiciar, ao idoso, formas de apoio profissional, sobretudo quando estão em jogo estressores psicossociais e alterações psíquicas24,27,28,30. Falta de interesse e de alegria de viver, atitudes negativas, tristeza, distúrbios do sono5-7,10,11,26 são considerados as principais expressões da depressão. Com efeito, o idoso suicida depressivo já não tem apego à existência, porque seus laços subjetivos e sociais se encontram enfraquecidos e distanciados, portanto, da realidade subjetiva e social. Embora Durkheim13 tenha dado ênfase aos aspectos sociais envolvidos no suicídio, ele também ressaltou a importância do sentido da vida para o ser humano, “querendo ele mesmo determina seu próprio fim, arrasta mergulhado em desânimo e tédio, uma existência que lhe parece então desprovida de sentido”. É importante ressaltar que, dentre os transtornos mentais, a depressão é o que está mais fortemente relacionado ao suicídio. Aproximadamente 15% das pessoas diagnosticadas com uma enfermidade depressiva se suicidaram no mundo no ano 2000, segundo a Organização Mundial de Saúde31. A depressão, assim como o suicídio, é determinada por fatores complexos de ordem psíquica, física, social e cultural e ambiental, que precisam ser levados em conta na Política Nacional de Saúde Mental9,11. Não se pode afirmar, no entanto, que todo depressivo é suicida, tampouco que todo idoso que morreu por suicídio seria depressivo. Estudo32 mostra uma relação entre falta de suporte social, ideias suicidas e sintomas de depressão. Considerando esses dois fatores – falta de suporte e ideação suicida – é importante que as propostas de prevenção sejam abrangentes e deem orientações gerais para a 394

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sociedade e específicas para os familiares e amigos, nos casos concretos. Desse modo, compreende-se que tais intervenções relativas a idosos com quadros de depressão devem comportar um trabalho de “repetição de suas histórias, por meio da qual eles produzam deslizamentos ou efeitos de deriva que possibilitem a emergência de novos dizeres sobre eles mesmos”33. O fato de se observarem reflexos de depressão nas falas dos entrevistados não significa, necessariamente, que os idosos aqui estudados tivessem depressão severa; e as falas dos familiares não oferecem o diagnóstico incondicional de depressão. Para tanto, é importante associar outros tipos de fatores, como é o caso de doenças crônicas: “Dias antes de cometer suicídio ele (idoso) se mostrou bastante abalado emocionalmente, em decorrência dos efeitos adversos consequentes do tratamento de câncer”. (filha, sobre homem divorciado, 65 anos, Teresina)

As doenças crônicas fazem parte da realidade de muitos idosos e costumam provocar alterações emocionais. Na vivência desse tipo de enfermidade, o idoso passa de saudável e ativo à condição de doente, mesmo quando sua capacidade funcional não diminui. O confronto com tal situação, no entanto, frequentemente ocorre sem abertura para algum tipo de reorganização da vida e aceitação das novas limitações. No caso dos idosos, o impacto emocional é maior quando se soma a outros tipos de mudanças, como: saída do mundo do trabalho, afastamento dos companheiros de profissão, perda de entes queridos, deixando-o num não-lugar social. Nos casos de doenças graves associadas ao suicídio, pesam muito, para os idosos, a convivência com dores físicas que se intensificam e problemas ligados ao desempenho sexual, que criam uma situação de insuportabilidade13,14,16. Nos relatos das famílias, o câncer surgiu como uma doença ameaçadora, com consequências para o estado mental do idoso e da família. Conforme Duarte e Rego1, a associação entre depressão e doenças crônicas pode ser vista de modo bidirecional: a depressão precipitando doenças crônicas e as doenças crônicas exacerbando sintomas depressivos.

Enunciação do suicídio pelo idoso aos seus componentes familiares As relações familiares são aqui identificadas como os vínculos estabelecidos com os diversos membros da família, por possuírem ligações afetivas, independentemente de conviverem na mesma residência. Entendem-se por ligações afetivas o estabelecimento do vínculo, as relações estabelecidas com o outro, de modo a desencadear reações positivas ou negativas. A comunicação estabelecida pela família é importante para a reconstituição da história dos dias que antecederam o suicídio e, também, como era a dinâmica familiar: “Ele não desabafava nem pedia apoio sobre as brigas, exigências da sua esposa, nem mesmo sobre o problema de dívidas [que tinha contraído], assim as fronteiras entre as pessoas de dentro e fora da família eram delimitadas com rigidez”. (irmã, sobre homem, casado, 73 anos, Teresina)

Neste discurso, o descontrole financeiro possibilitou os conflitos familiares; conflitos que não eram reconhecidos e, possivelmente, para os quais nem se procurava a resolução. Esse idoso tinha brigas constantes com a esposa por causa de dívidas, porque era incapaz de prover as necessidades financeiras da família. O homem sofria muito com isso, pois sua cultura machista lhe dizia que deveria ser capaz, até o fim da vida, de realizar tarefas de liderança, supremacia, e de desempenhar seu papel de provedor19. Quando ocorreram falhas nessa função, ele se sentiu humilhado e não pediu ajuda. Entre os homens, o fator cultural mais relevante associado ao suicídio é a perda de status que o trabalho ou emprego confere – criando uma sensação de ausência de lugar social29. O ocultamento do problema a quem poderia ajudar a solucioná-lo, barreira cultural que o impede de estabelecer uma comunicação sincera com as pessoas próximas, em geral, sufoca o homem machista em sofrimentos insuportáveis. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Autopsia psicossocial realizada em Quebec, com 95 participantes, concluiu que, nos seis meses anteriores ao suicídio, a desordem familiar manifestada por perda de membros da família, separação ou conflitos com familiares ou amigos, e problemas financeiros foram fatores de risco significantes para o suicídio6. Outros estudos20,29 apontam que, quando o homem se encontra em grande dificuldade para realizar seu papel de provedor da família, em decorrência de crises econômicas, passa a considerar o suicídio a alternativa para resolver de vez seus fracassos. Alguns idosos, ao longo de suas vidas, vivenciam perdas significativas, seja física, material, emocional e psicológica. Tais perdas representam um peso muito forte em suas vidas e precipitam a vontade de dar cabo à vida. O relato significativo de um familiar entrevistado aponta para essa situação: “Ela sempre se mostrou inconstante emocionalmente e deixava claro nunca ter se sentido feliz na vida. Os frequentes e intensos conflitos familiares vivenciados pela mesma contribuíram significativamente para o fortalecimento da ideação suicida. Um dos maiores potencializadores desse sofrimento, foi a perda do filho mais novo, tendo em vista que a mesma ocorreu precocemente e de forma traumática”. (filho, sobre mulher separada, 68 anos, Teresina)

O caso citado diz respeito a uma idosa jovem que, com a perda do filho em um acidente, teve grande prejuízo em sua qualidade de vida. O intenso sofrimento a deixou em grande vulnerabilidade, e não ocultava dos familiares o fato de que era uma pessoa infeliz. Tal relato verbal poderia ser interpretado como um pedido de ajuda e uma forma de buscar apoio. A não-escuta dessa situação pode ter precipitado o ato suicida. Mais uma vez, estão presentes: a tristeza, a insuportabilidade do sofrimento, o isolamento, a falta de diálogo e a enunciação da depressão. Durkheim lembra que [...] o sistema mental de um povo é um sistema de forças definidas que não podem ser desordenadas nem reordenadas por meio de simples injunções. Ele está ligado à maneira pela qual os elementos sociais estão agrupados ou organizados.13

A vida, diz-se, só é tolerável quando se percebe nela alguma razão de ser, quando ela tem um objetivo13,14,16. A falta de sentido interfere nas relações interpessoais e pode exacerbar conflitos intrafamiliares, como se pode observar na fala a seguir: “Ele era muito sofrido, tinha uma aparência emagrecida e sempre relatava que não tinha sorte com as mulheres, a tristeza dele era que nenhum casamento tinha dado certo, ele brigava demais com a última esposa, ele ficava muito triste porque ela o desrespeitava, brigavam no meio da rua”. (irmão, sobre homem, casado, 61 anos, Tauá)

No decorrer da sua vida, o citado idoso havia casado três vezes, e todos os casamentos desencadearam o mesmo desfecho: a separação. As buscas por explicações para a frustração matrimonial, todavia, diversificaram-se: do primeiro casamento, restou a traição da esposa, que tentou se matar e terminou grávida de outro homem; o segundo foi marcado por desgostos da esposa relacionados à desassistência do marido em centrar-se no trabalho. Mesmo assim, porém, viveu anos a fio um casamento de aparências; o terceiro foi caracterizado por intensas brigas, por vezes em público, o que causou muita vergonha ao homem. Um problema bastante comum que se associa ao suicídio de homens idosos é a exacerbação do machismo humilhado, quando existem problemas com a sexualidade masculina29. Em sua socialização, o ato de perder o controle sobre seu matrimônio reporta-se à questão de honra e respeito. No relato feito há pouco, as situações conflituosas na relação ameaçavam o processo de identificação desse homem, motivando-lhe sentimentos de tristeza e muito sofrimento. Assim, a perda do controle sobre as esposas ou companheiras, o que, na cultura patriarcal, representa falha no exercício do papel masculino, foi-lhe insuportável e precipitou o desfecho suicida13,29,34. 396

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Entre a diversidade de manifestações e verbalizações dos idosos, a enunciação do desejo de morrer é o primeiro que aflora. Em alguns idosos, a enunciação do suicídio ocorreu com suporte em intensas discussões familiares, cujos vínculos afetivos eram conflituosos, e, em outros, em situação de vulnerabilidade decorrente dos efeitos adversos consequentes de doenças crônicas, das próprias contingências do envelhecimento e da perda da identidade social, ou por motivos morais. As falas a seguir, retratam tais situações: “Meu avô chegou em casa bêbado e começou a discussão, não lembro o motivo, era sempre aquelas discussões. Ela [a mulher] reclamava da bebida, começava assim ‘mas rapaz, tu já está bêbado? Então ele ameaçou que ia se matar, a vizinha ouviu a discussão, foi lá em casa e disse ‘não se preocupa, quem quer se matar, não saí por aí dizendo’ e levou minha avó para a casa dela. Com cinco minutos ela pediu para o neto ir ver o que ele [o avô] estava fazendo porque ele ficou sozinho em casa. Ao chegar lá, o neto encontrou o avô com uma corda no pescoço, morto”. (neto, sobre homem, casado, 61 anos, Teresina)

Este caso acrescenta um elemento importante aos fatores de risco, que é o abuso de álcool. Estudo realizado com a população de Itabira25 apontou que o desencanto com as perspectivas de vida atuais e de projetos de vida e o uso abusivo de álcool são problemas que têm forte impacto na opção pelo suicídio. É bem verdade que esse abuso pode ser uma consequência, e não uma causa das insatisfações que, sobretudo, o homem passa a ter por não suportar determinados tipos de perdas e sofrimentos ou, mesmo, por não aceitar as contingências da velhice. A ruína do mundo interno retrata a fuga da realidade por meio do uso de bebida alcoólica, abalando as interações sociais e os vínculos afetivos, fragilizando o seu lugar no mundo. Durkheim13 discorre sobre como a vida, com frequência, é difícil, muitas vezes decepcionante ou vazia. Esse vazio toma conta do indivíduo a ponto de depositar, na desesperança, o único sentido de morrer. Para compreender essas implicações, reporta-se ao fato de que a sociedade trata, ainda, o suicídio como “tabu”, assunto que não pode ser discutido, devendo ser silenciado. O sentido atribuído a quem fala que quer morrer é o de não querer se matar, mas, simplesmente, despertar atenção dos familiares, amigos e sociedade. O sujeito que anuncia o desejo de praticar o suicídio encontra-se em total fragilidade – perde a força física, mental e crítica, e a condição de reagir diante dos fracassos precisa ser levada a sério. Como bem sinalizado no documento destinado a profissionais da saúde em atenção primária sobre prevenção do suicídio30, quando o idoso narra a sua descrença pela vida e ausência de motivos para continuar a viver, ele quer ser ouvido efetivamente para recuperar a esperança de que os fracassos e fragilidades podem ser superados. As narrativas rejeitadas ou convenientemente não ouvidas pelos familiares e amigos, frequentemente, mostram que o sentido da vida foi dominado pelo senso da morte, como provam os casos a seguir: “Ele havia ingerido álcool e estava muito zangado, estava consciente e decidido a cometer o suicídio, inclusive na hora do acontecido, avisou à mulher e a filha, chamando-as para assistirem, ao que foi desafiado pela esposa, que dizia que ele não tinha coragem por ser fraco”. (irmã, sobre homem, casado, 73 anos, Teresina) “Ele estava com um semblante mudado, quando foi de manhã, se levantou, me abraçou, aí falou ‘foi a última vez que dormi nessa casa’, aquilo era uma coisa que ele sempre falava, fiquei calada e ele disse ‘porque de hoje eu não passo, não’”. (viúva, sobre homem, casado, 68 anos, Tauá)

Esses relatos mostram a ideia, muito corrente entre as famílias, de que o idoso não cometeria suicídio. Primeiro, o idoso sob o efeito do álcool, além de anunciar verbalmente a vontade de se matar, convida a filha e a esposa para assistirem ao ato fatal. Quando se confrontam os maiores temores na vida, desencadeam-se reações psíquicas e emocionais diversas. Quando possuído pela raiva, o idoso, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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atormentado pela impossibilidade de se adaptar às mudanças ocorridas em sua vida, encontra-se diante da fatalidade da morte. Ao chamar familiares para visualizarem o ato suicida, o idoso demonstrou a severidade da desesperança em que se encontrava diante das contradições da sua vida, incluindo a relação com sua esposa e a sua filha. O outro caso também revela a vontade do idoso de antecipar o fim da sua vida. Os dois são similares no que diz respeito às reações dos familiares diante da anunciação do suicídio. Numa situação, além da descrença do ato suicida, houve o desafio; na outra, aconteceu o silêncio. Em nenhum dos casos, o idoso foi ouvido efetivamente. E, neste sentido, pode-se entender que o sentimento de desesperança foi internalizado de forma tão intensa que culminou em desespero, na morte autoinflingida.

Considerações finais As falas dos familiares elucidaram que existe sim, por parte do idoso, o desejo de antecipar seu fim, e isso pode ser confirmado com a enunciação verbal do suicídio. Ressalta-se, portanto, a importância de se dissociar a ideia do senso comum de que as pessoas que almejam o fim da sua vida não manifestam pistas verbais, pois elas falam de suas desesperanças, de busca intensa pelo fim do seu sofrimento, e tais enunciações não podem ser ocultadas, precisam ser compreendidas e explicitadas para que encontrem ajuda necessária. É inegável o fato de que o suicídio traz consequências substanciais para as famílias e a sociedade. Desse modo, compreende-se ser necessário ultrapassar a barreira da discussão do campo teórico e do discurso posterior dos diversos agentes sociais – familiares, amigos e profissionais da saúde – de que poderiam “ter feito mais”. Primeiramente, nunca se pode esquecer de que o suicídio é um ato voluntário. Também é preciso ter consciência, entretanto, de que ele ocorre ante a insuportabilidade do sofrimento. Isso significa que o suporte mútuo – como a mão estendida que se solidariza e o ouvir atento que busca compreender os sentimentos geralmente recalcados nos corações dos idosos – muito pode ajudar. Além disso, existe muito pouco investimento na preparação da aposentadoria que, geralmente, para muitos idosos, significa perda do papel e do lugar social. Nesta realidade, surgem as dificuldades financeiras, o aparecimento ou agravamento de doenças crônicas, os conflitos familiares em torno do uso abusivo do álcool, e o cotidiano se deteriora pelas alterações no humor, isolamento social e manifestações depressivas. Este estudo, como parte de uma pesquisa mais complexa, aponta para um caminho árduo com vistas a identificar e compreender o idoso sob risco de suicídio. Os casos dos idosos que faleceram por suicídio no Nordeste brasileiro dizem respeito à cultura do fechar-se em si mesmo, do isolamento humano e da tensão do sentido de viver. Assim, o conhecimento constituído poderá oferecer subsídios para elaboração de estratégias de prevenção, sobretudo, para a atenção básica. É reconhecido o fato de que o idoso pode estar vulnerável ao surgimento de crises existenciais, sobretudo às relacionadas aos marcadores identitários em que podem ocorrer transtornos mentais, sendo os mais comuns, as mudanças de humor e depressão. Essa é uma situação muitas vezes possível de ser evitada, mas não está tratada de modo suficiente pela Política Nacional de Saúde Mental32. Apenas excepcionalmente os centros de atenção psicossocial (CAPS) estão preparados para realizar uma atenção específica que leve em conta as particularidades dos sofrimentos dos idosos.

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Sousa GS, Silva, RM, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Vieira LJES

Colaboradores Girliani Silva de Sousa, Raimunda Magalhães da Silva e Luiza Jane Eyre de Souza Vieira trabalharam na concepção do projeto, coleta de dados, interpretação dos dados e redação do artigo. Ana Elisa Bastos Figueiredo e Maria Cecília de Souza Minayo participaram na revisão crítica e redação final do texto.

Referências 1. Duarte MB, Rego MA. Comorbidade entre depressão e doenças clínicas em um ambulatório de geriatria. Cad Saude Publica. 2007; 23(3):691-700. 2. Veras R. Envelhecimento populacional contemporâneo: demandas, desafios e inovações. Rev Saude Publica. 2009; 43(3):548-54. 3. Veras R. Em busca de uma assistência adequada à saúde do idoso: revisão de literatura. Cad Saude Publica. 2003; 19(3):705-15. 4. World Health Organization. Active ageing: a policy framework. Genebra: WHO; 2002. 5. Préville M, Hébert R, Boyer R, Bravo G, Seguin M. Physical health and mental disorder in elderly suicide: a case-control study. Agin Mental Health. 2005; 9(6):576-84. 6. Beautrais AL. A case-control study of suicide and attempted suicide in older adults. Suicide Life Threat Behav. 2002; 32(3):1-9. 7. Conwell Y, Duberstein PR, Caine ED. Risk factors for suicide in later life. Biol Psychiatry. 2002; 52(3):193-204. 8. Minayo MCS, Cavalcante FG. Suicídio entre pessoas idosas: revisão da literatura. Rev Saude Publica. 2010; 44(4):750-57. 9. De Leo D, Padoani W, Scocco P, Bille-Grahe U, Arcsnman E, Bjerke T et al. Elderly suicidal behaviour: results from WHO/EURO Multicentre Study on Parasuicide. Int J Geriatr. Psychiatr. 2001; 16(3):300-10. 10. Werneck GL, Hasselmann MH, Phebo LB, Vieira DE, Gomes VLO. Tentativas de suicídio em um hospital geral no Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2006; 22(10):2201-6. 11. Bernardes SS, Turini CC, Matsuo T. Perfil das tentativas de suicídio por sobredose de medicamentos atendidas por um Centro de Controle de Intoxicações do Paraná, Brasil. Cad Saude Publica. 2010; 26(7):1366-272. 12. Figueiredo AEB, Silva RM, Mangas RMN, Vieira LJS, Furtado HMJ, Gutierrez DMD, et al. Suicídio de idosos: impactos na família brasileira. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):1993-2002. 13. Durkheim E. O suicídio: um estudo sociológico. Rio de Janeiro: Zahar; 2011. 14. Cavalcante FG, Minayo MCS. Autópsias psicológicas e psicossociais de idosos que morreram por suicídio no Brasil. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):1943-54. 15. Cassorla RMS. O que é suicídio. 5a ed. São Paulo: Brasiliense; 2005. 16. Shneidman ES. Autopsy of a suicidal mind. Oxford: Oxford University Press; 2004. 17. Pinto LW, Assis SG, Pires TO. Mortalidade por suicídio em pessoas com 60 anos ou mais nos municípios brasileiros no período de 1996 a 2007. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):1963-72. 18. Pinto LW, Assis SG, Silva CMFP, Pires TO. Evolução temporal da mortalidade por suicídio em pessoas com 60 anos ou mais nos estados brasileiros, 1980 a 2009. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):1973-81. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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19. Pinto LW, Silva CMFP, Pires TO, Assis SG. Fatores associados com a mortalidade por suicídio de idosos nos municípios brasileiros no período de 2005-2007. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):2003-9. 20. Meneghel SN, Gutierrez DMD, Silva RM, Grubits S, Hesler LZ, Ceccon RG. Suicídio de idosos sob a perspectiva de gênero. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):1983-92. 21. Cavalcante FG, Minayo MCS, Meneghel SN, Silva RM, Gutierrez DMD, Conte M, et al. Autópsia psicológica e psicossocial sobre suicídio de idosos: abordagem metodológica. Cienc Saude Colet. 2012; 17(8):2039-52. 22. Duberstein PR, Conwell Y, Conner KR, Eberly S, Caine ED. Suicide at 50 years of age and older: perceived physical illness, family discord and financial strain. Psychol Med. 2004; 34(1):137-46. 23. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010 [acesso 2012 Out 9]. Disponível em: www.censo2010.ibge.gov.br 24. Muramato MT, Mângia EF. A sustentabilidade da vida cotidiana: um estudo das redes sociais de usuários de serviço de saúde mental no município de Santo André (SP, Brasil). Cienc Saude Colet. 2011; 16(4):2165-77. 25. Souza ER, Minayo MCS, Cavalcante FG. O impacto do suicídio sobre a morbimortalidade da população de Itabira. Cienc Saude Colet. 2007; 11 Supl:1333-42. 26. Barrero SAP. Factores de riesgo suicida en el anciano. Cienc. Saude Colet. 2012; 17(8):2011-6. 27. Botega NJ, Werlang BSG, Cais CFS, Macedo MMK. Prevenção do comportamento suicida. Psico (Porto Alegre). 2006; 37(3):213-20. 28. Marques AKMC, Landim FLP, Collares PM, Mesquita RB. Apoio social na experiência do familiar cuidador. Cienc Saude Colet. 2011; 16 Supl. 1:945-55. 29. Heisel MJ, Conwell Y, Pisani AR, Duberstein PR. Concordance of self and proxy reported suicide ideation in depressed adults 50 years of age or older. Can J Psychiatry. 2011; 56(4):219-26. 30. Organização Mundial de Saúde. Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em atenção primária. Genebra: OMS; 2000. 31. Organização Mundial de Saúde. Relatório mundial sobre violência e saúde: sumário. Geneve: OMS; 2002. 32. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Mental. Brasília, DF: MS; 2009. 33. Aleixo MRA, Figueiredo AEB. Envelhecimento, identidade e memória. Arq. Bras Psiquiatr Neurol Med Legal. 2005; 99(4):30-5. 34. Minayo MCS, Meneghel SN, Cavalcante FG. Suicídio de homens idosos no Brasil. Cienc Saude Colet. 2012; 17(10):2665-74.

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artigos

Sousa GS, Silva, RM, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Vieira LJES

Sousa GS, Silva, RM, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Vieira LJES. Circunstancias que envolvieron el suicidio de ancianos. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):389-401. El texto analiza experiencias y relaciones familiares que precedieron el suicidio de ancianos. Se trata de un estudio cualitativo, con método de autopsia psicosocial. Incluye 16 casos de ancianos que se suicidaron entre 2006 y 2009 en tres municipios del Nordeste Brasileño. A la luz del análisis de contenido se estudiaron las categorías: experiencias que precedieron el suicidio de ancianos y enunciación del suicidio por parte del anciano a sus familiares. Se destacan tres factores asociados al suicidio: alteraciones de humor y expresiones de estados depresivos, conflictos familiares juntamente con dificultades financieras y uso abusivo de alcohol e ideas suicidas por anunciación del deseo de anticipar el fin. Es necesaria la mirada amplia y la escucha reflexiva sobre el anciano por parte de los agentes sociales, familiares, amigos y diversos sectores, específicamente el sector de la salud, gestores y profesionales que causen cambios significativos en la dinámica del servicio.

Palabras clave: Anciano. Suicidio. Dinámica familiar.

Recebido em 09/05/13. Aprovado em 17/11/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0177

Fábrica de corpos: corpo e poder na Fundição Tupy*

Odilon Castro(a) Pedro Paulo Gomes Pereira(b)

Castro O, Pereira PPG. Body factory: body and power in the Tupy foundry. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):403-13.

The purpose of this paper is to present an ethnographic research that sought to understand how the relationship between body and power was configured in the Tupy Foundry car parts factory, located in Maua, Greater São Paulo, Brazil. The study was conducted throughout the year 2011 with 12 workers as the researcher main interlocutors. They were interviewed on several occasions and through these it was obtained as result two forms of experience with the body: first, the body that breaks; and second, the body that escapes in daily encounters with power.

Keywords: Body. Power. Work. Friendship.

A proposta deste texto é apresentar uma pesquisa etnográfica que buscou compreender como se configuravam as relações entre corpo e poder na fábrica de autopeças Fundição Tupy, localizada no bairro de Capuava, município de Mauá, na Grande São Paulo, Brasil. A pesquisa foi realizada em todo o ano de 2011, mais diretamente com 12 trabalhadores, que se tornaram os principais interlocutores do pesquisador. Esses trabalhadores foram entrevistados em diversas ocasiões, obtendo-se, como resultado, duas formas de experiência com o corpo: a primeira, o corpo que quebra, e a segunda, o corpo que escapa nos encontros diários com o poder.

Palavras-chave: Corpo. Poder. Trabalho. Amizade.

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* Elaborado com base em pesquisa financiada pela Capes1 e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, em 28 de maio de 2010. Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de sua inclusão na amostra. (a,b) Departamento de Medicina Preventiva, Programa de Saúde Coletiva, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Botucatu, nº 740, 4º andar, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. 04023-062. odilonscastro@ yahoo.com.br; pedropaulopereira@ hotmail.com

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FÁBRICA DE CORPOS: ...

Apresentação Este artigo visa apresentar a pesquisa etnográfica: “Fábrica de corpos”, concluída em 2012 no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O estudo teve por objetivo investigar como se configuravam as relações entre corpo e poder na fábrica de autopeças denominada Fundição Tupy1. Todavia, antes de qualquer intenção de investigação acadêmica, no período entre os anos de 1997 e 2000, fui trabalhador operário na Fundição Cofap/Tupy. Durante tal experiência, escrevi minhas impressões sobre o meu trabalho e dos demais operários em um diário que nomeei como “Diário da Fábrica”. Dez anos depois, relendo este diário, percebi que nele eram narradas, em meio ao final da história da Fundição Cofap e o início da história da Fundição Tupy: as angústias dos trabalhadores, suas relações conflituosas dentro e fora da fábrica, e, sobretudo, as modificações nos corpos destes operários. Tal narrativa me interpelou e foi, então, que me envolvi numa pesquisa acadêmica propriamente dita. Reler o diário foi algo muito marcante – trabalho, alimentação, uniformização, lazer, apelidos: tudo parecia girar em torno do corpo e de metáforas corporais. Assim, dez anos após minha permanência na fundição como operário, eu estava novamente nos portões da fábrica, desta vez, como pesquisador, tentando fazer uma ciência social do observado2. Realizei a pesquisa etnográfica durante todo o ano de 2011. Durante o trabalho de campo, me aproximei mais diretamente de 12 trabalhadores, que se tornaram meus principais interlocutores. Entrevistei-os em diversas ocasiões. Como fui impedido pela diretoria da Fundição Tupy de adentrar na empresa, as informações coletadas se deram mediante: observações diárias feitas nos portões da fábrica, anotações no diário de campo e entrevistas gravadas nas residências dos operários, bares e na Sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e Mauá. A opção pela investigação etnográfica foi escolhida por se tratar de um método que possibilita interação direta com os investigados, auxiliando na compreensão de como os trabalhadores, coletivamente, constroem e dinamizam processos sociais, e como as subjetividades se expressam dentro e fora da fábrica3. Durante o processo de escolha do método, atentei-me para as vantagens e desvantagens que propiciaria o método etnográfico. Por meus interlocutores serem, em certa medida, do meu próprio universo, me deparei com o medo da rejeição. Afinal, eu estava afastado do universo fabril e dos amigos operários da Fundição Tupy por dez anos. Como pesquisador, interroguei-me sobre o meu limite em relação à necessidade de me distanciar do próprio universo para constituí-lo em termos sociológicos e culturais4. E atentei-me para o fato de que, também, por conhecer o universo fabril, eu poderia eliminar preocupações para o risco de as pessoas do local informarem somente o que consideram que o pesquisador desejaria ouvir5. Este artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, apresentarei o campo onde foi realizada a pesquisa: a Fundição Tupy; em seguida, muito rapidamente, algo da discussão das ciências sociais sobre corpo, em especial, a contribuição da antropologia. Contudo, por motivos que serão explicitados no decorrer do texto, concentrarei a análise no filósofo francês Michel Foucault, autor fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa. Nesta mesma seção, exibirei, velozmente, dois dos meus principais interlocutores: Zé Barba e Bocão. O texto se deterá nesses personagens pela maior proximidade no decorrer da etnografia realizada, e porque mostram bem os principais contornos da discussão sobre corpo empreendida neste artigo. Seguindo o percurso, o texto se volta para duas formas de percepção do corpo indicadas por meus interlocutores: o corpo que quebra e o corpo que escapa. Essas metáforas (“quebrar” e “escapar”) foram expressões recorrentes que resolvi levar a sério neste texto. Para finalizar, sistematizarei o caminho percorrido neste texto, tecendo algumas considerações que se tornaram visíveis pela pesquisa etnográfica.

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(c)

Fundição é o conjunto que envolve três etapas: a primeira, a da fabricação dos moldes; a segunda, a da fabricação do metal líquido; e a terceira, o acabamento. Na primeira, formam-se os moldes que vão receber o metal; na segunda, faz-se o metal que vai ser vazado dentro desses moldes; na terceira, tiram-se todos os excessos, os canais que alimentaram a peça, e são executadas a limpeza e a pintura, com o acabamento final. Um dos materiais utilizados é a areia, proveniente de jazidas perto do mar, ou em regiões onde, em tempos antigos, existiram lagos ou mar. Outros são os aglomerantes da areia do molde ou dos machos (os formadores das partes ocas); outros, ainda, são componentes metálicos, como: a sucata de ferro, o gusa, os retornos da própria fundição e o ferro-liga para acerto da composição.

artigos

A fábrica de autopeças Fundição Tupy Inaugurada em 1975 por Abraão Kasinski, a Fundição Cofap, localizada na região de Capuava, em Mauá, fora a mais moderna e importante fundição da América Latina nos anos 1980. No entanto, a partir da década de 1990, período em que as empresas do ramo de fundições, de um modo geral, fizeram a transição do estágio manual para o estágio de linhas automatizadas, a Fundição Cofap estava com dez anos de atraso tecnológico em relação às outras fundições existentes no mundo. As adaptações foram impossíveis e, em julho de 1997, a fundição e todo o restante da fábrica deixaram de pertencer ao grupo Cofap, confirmando, assim, o alto nível de competição pelo qual passava a indústria de autopeças brasileira e mundial. Em 1999, a empresa Tupy Fundições assumiu os direitos trabalhistas de, aproximadamente, mil trabalhadores, divididos em três turnos: manhã, tarde e noite. Atualmente, ocupa uma área de 100.000m2 e possui 36.000m2 de área construída, produzindo cento e dez mil toneladas de peças por ano: blocos e cabeçotes de diferentes motores(c). Observando de fora, a fábrica é uma grande estrutura de aço, com portas e telhas velhas, cercada por muros e grades. O pó preto que sai das chaminés cai sobre a fábrica e sobre os carros no estacionamento. As poucas árvores existentes na fábrica também são cobertas pelo pó e pela ferrugem das chaminés. No seu interior, lustres pendurados por todos os lados tentam, em vão, iluminar a escuridão do galpão. O barulho não permite ouvir nada além das máquinas e das ferramentas. O pó preto e o barulho cobrem os operários, com seus uniformes, roupas velhas, enferrujadas, rasgadas, e muitas de numeração incompatíveis com seus corpos, que parecem brigar com a vestimenta. É obrigatório o uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs): capacetes, óculos, protetores auriculares, luvas e botas. Porém, nem todos os operários fazem uso dos EPIs, devido ao incômodo causado pelos equipamentos. O cheiro de tinta, de óleo e de solvente mistura-se com o cheiro de algo queimando. Linhas com esteiras, operários com aventais de couro. Nas mãos, as ferramentas de desbaste: lixadeiras, chicotes, marteletes, marretas e mangueiras de que saem ar. Os corpos, e as peças, percorrem incessantemente as linhas de produção. A fundição é dividida por departamentos: fusão, macharia, soldagem, rebarbação, qualificação e pintura, auditoria e embalagem. As hierarquias são expressas por uniformes, horários, tipos de contratações (operários: horistas; e trabalhadores dos escritórios: mensalistas), e pelos diferentes salários, indicados pelas diferentes cores dos capacetes. Os horários das refeições, assim como louças e talheres, e os alimentos são diferenciados para trabalhadores horistas e mensalistas. Os operários comem no “bandejão” de alumínio. A fundição é um ambiente velho, sujo, escuro, barulhento e protegido. Lugar onde os corpos são uniformizados e obrigados a se protegerem com equipamentos - EPIs - que os sufocam, para, logo em seguida, se armarem de ferramentas de desbaste que os desgastam nas esteiras das linhas de produção. Local dividido por departamentos, onde os nomes designam produção pesada, numa cadência ditada pelo trabalho ininterrupto. Espaço onde os corpos sofrem um tipo de reificação6 que bloqueia sua aparência. Território que insiste em propiciar refeições separatistas7. Ambiente que produz peças e corpos, e, ao mesmo tempo, é produzido por esses corpos-peças. Projeto arquitetônico disciplinador8, onde o corpo torna-se central. Os operários referem-se ao próprio corpo como instrumento, como forma de pensar a realidade que o circunscreve. Ou referem-se aos corpos dos outros operários: as modificações adjacentes do trabalho, as mudanças da linha de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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produção, as doenças adquiridas pelo trabalho pesado e insalubre, como tendinite e bursite, enfim, o corpo ocupa, entre os trabalhadores, lugar de destaque. Tudo gira em torno do corpo e das metáforas corporais: os gestos, os apelidos, as tentativas de comunicação devido ao barulho, a alimentação, os uniformes, as músicas, as roupas de passeio, o uso do álcool. Certa manhã, por exemplo, conversando com Belinha, atendente da Lanchonete do Azulão, localizada ao lado da fábrica, acostumada ela própria a ouvir os operários narrarem sobre seus corpos, ouvi a seguinte assertiva: “O corpo é um carro, tem que estar em movimento. A gasolina do corpo é o trabalho. Cama entrava. Por um lado [...] descansar é bom. Mas não ter movimento, parar de trabalhar faz a pessoa ficar doente, o corpo estaciona, não volta mais”.

Estando o corpo no centro das indagações de meus interlocutores, passei, então, a me voltar para as análises que abordavam o tema, bem como as relações entre corpo e poder (já que os corpos ali eram de trabalhadores operários). Na próxima seção, vou me deter nesses aspectos.

Corpo e poder A antropologia, há muito tempo, tem se debruçado sobre o corpo como objeto de investigação. Pesquisas antropológicas mostram que questões, até então, tratadas como de domínio exclusivo da biologia – como sexualidade, alimentação, saúde e doença, dores, sono e morte – estão igualmente submetidas a fatores culturais, o que explica sua variabilidade tanto em uma mesma sociedade (em função do tempo ou de suas subdivisões) quanto entre sociedades. Esses estudos tiveram papel fundamental para a compreensão do corpo como objeto social, colocando-o, novamente, no mesmo campo da sociedade. Em um famoso texto de 1950, Marcel Mauss9 defende o valor crucial para as ciências do homem de um estudo das técnicas corporais, definidas como as maneiras pelas quais cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo. Isto é, por intermédio da educação, das necessidades e das atividades corporais, a sociedade imprime sua marca nas pessoas. Assim, cada conduta tradicionalmente apreendida e transmitida fundamenta-se em certas sinergias nervosas e musculares que constituem sistemas solidários com todo um contexto sociológico. Já Mary Douglas10 ressaltou que o domínio do corpo social limita as formas de percepção do corpo físico, isto é, limita a experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais, por meio das quais é conhecida. O corpo reflete e produz um tipo específico de sociedade. Há uma troca constante entre os dois tipos de experiências corporais, isto é, entre a percepção sobre o corpo transpassada pela experiência social e pela experiência física, uma reforçando as categorias da outra. Recentemente, Thomas Csordas11 também concentrou sua investigação no significado de nossa existência como seres corpóreos, indicando que a base conceitual da abordagem para a análise da cultura e do sujeito é a noção de corporeidade. Diversos autores12-16 vêm se debruçando sobre o corpo, como se pode observar nos textos que procuram analisar o estado da arte do tema. Loïc Wacquant17, por exemplo, em Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe, revela caminhos e escolhas da vida de boxeador. Segundo o autor, as disposições e lógicas desses atletas são construídas por um referencial: o seu capital-corpo. A prática do corpo do boxeador é sempre calculada para o máximo rendimento no ringue. Em sua etnografia, o autor mostrou como a estrutura social e simbólica da sala de boxe governa a transmissão da técnica da “nobre” arte e a produção da crença coletiva na illusio pugilística. Durante três anos, o pesquisador misturou-se na paisagem local e entrou no jogo. Aprendeu a lutar boxe e participou da preparação do boxeur, até combater no torneio dos Golden Gloves. O pesquisador inverteu a fórmula tradicional da “observação participante”, tornando método a já levantada hipótese de uma “participação observante”. Combinou observação e experimentação, campo e transformação, e tratou do processo de produção não apenas do corpo do boxeador, mas também de seu espírito, de um aparelho sensório-motor modificado por práticas cotidianas minuciosas, invisíveis, contínuas, ao mesmo tempo individuais e coletivas, cujos efeitos são imperceptíveis a olho nu. O corpo, na obra, é alvo de uma progressiva remodelação por via de práticas disciplinares. 406

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Sobre tais práticas que visam a disciplina dos corpos, os trabalhos de Michel Foucault18 se mostraram profícuos, pois nos auxiliam na percepção de que o corpo é um medidor privilegiado das práticas sociais, e que falar do corpo é falar do modo como uma sociedade se organiza cultural, econômica e politicamente. Para Foucault, o corpo é um ente, composto por carne, ossos, órgãos e membros – matéria – literalmente, um lócus físico e concreto. Não obstante, essa matéria física não é inerte, sem vida, mas, sim, uma superfície moldável e transformável, por técnicas disciplinares e de biopolítica. O corpo seria, ao mesmo tempo, uma construção discursiva e não discursiva, objeto infinitamente maleável do poder, território de domesticação e de rebeldia onde os acontecimentos inscritos podem ser vistos e podem resistir. A ideia básica de Foucault18 é mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente pelo campo do direito, nem por violência; nem são basicamente contratuais e nem unicamente repressivas. Suas análises querem mostrar que a dominação capitalista não conseguiria manter-se, se fosse exclusivamente baseada na repressão. O poder produz domínios de objetos e rituais de verdade, produz uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto, para o filósofo, que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. Quando Foucault18 pensa na mecânica do poder, pensa em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o próprio grânulo dos indivíduos, atinge seus corpos, vem inserir-se em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, na sua vida cotidiana. O poder, em Foucault18, não é visto como algo apenas repressor que anula o sujeito, e sim como um jogo de relações que produz o sujeito. Segundo o autor, não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importantes efeitos. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. O indivíduo é um efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa pelo indivíduo que ele constituiu. Como já se disse, a experiência etnográfica me levou à discussão sobre corpo, já que meus interlocutores colocavam-no como central. A pesquisa me foi levando para me concentrar, cada vez mais, nas metáforas corporais, nas narrativas sobre os corpos “quebrados” pelo trabalho, e os corpos que “escapam” em seus itinerários tortos fora da fábrica. Essas metáforas eram formas de os operários dissertarem sobre as relações entre corpo e poder. Na seção seguinte, vou me centrar em dois de meus interlocutores, Zé Barba e Bocão, devendo-se tal procedimento tanto à proximidade estabelecida no trabalho de campo como por suas narrativas insistirem mais diretamente na centralidade do corpo e das experiências corporais.

Operários em (des)construção Zé Barba é um senhor de 49 anos de idade, nascido na cidade de Primavera, Pernambuco. Casado, tem dois filhos homens, um de 23 e outro de vinte anos de idade. No dia de uma das entrevistas (29/ 09/2011), completou 24 anos trabalhando na fundição e me contou que sua história na fábrica começou quando viu a fila na portaria da Fundição Cofap, e na fundição “está até hoje”. Trabalha na rebarbação, setor que realiza o trabalho mais pesado da fábrica – a limpeza das peças com ferramentas de desbaste: lixadeiras, marteletes, esmeril – e onde ocorre a maioria dos acidentes de trabalho. No dia da entrevista, encontrava-se afastado, atingiu a mão com a marreta. Antes da fundição, trabalhou em usina de açúcar e de álcool em Pernambuco por cinco anos. Gosta de trabalhar, e o faz porque tem “esperança de um dia aposentar, sem se acidentar mais”. Garante que mudou muita coisa na sua vida a partir do momento que entrou para trabalhar na fábrica: casou, teve dois filhos, comprou uma “casinha” para morar. Refere-se à sua vida como sendo “boa demais”. Vai para a igreja todas as noites “graças a Deus”, afinal isso é o que fornece “força para permanecer de pé”. Quando se aposentar, não sentirá saudades do trabalho, não irá se apegar ao “serviço”, que descreve como algo muito bruto. Diz que só dará tempo de pagar o advogado e se “mandar” para o interior, mas garante que virá visitar os amigos e o sindicato todos os meses, afinal, “amigos e luta são as coisas mais importantes da vida, depois da família”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Bocão é um senhor de cinquenta anos de idade, natural de Monte Alegre, Paraíba. Casado, têm dois filhos homens, um de 24 anos de idade, outro de 22, e uma filha de 26. Completou 25 anos trabalhando na fábrica. Relata que preencheu uma ficha para o processo de seleção e lá permanece até hoje, “até quando Deus e os ‘homi’ [chefes] permitirem”. Trabalhou na rebarbação, mas, por motivos de doença, foi transferido para a macharia, setor inicial no processo de fabricação das peças (estágio de moldes de areia e ferro). Antes de trabalhar na fundição, trabalhou na construtora Constam e na fábrica de alimentos Adria, em São Caetano do Sul, por quatro anos em cada. Estando fora da fábrica, aproveita a vida com a família e com os amigos. Garante que “mesmo com aquele tipo de serviço duro, o prazer da sua vida é dar risada” – para permanecer dentro da fábrica por tantos anos, “o segredo é brincar com todo mundo”. Quando sair da fábrica, sentirá muita saudade dos amigos, sobretudo nos momentos da troca de turnos e do banho, momento que, para ele, é de pura descontração. As narrativas de Zé Barba e Bocão, em todos os momentos, tecem uma história do corpo. O corpo da rebarbação, mais consumido e adoecido pelo trabalho pesado e repetitivo com as ferramentas de desbaste. O corpo da macharia, sufocado e desidratado, exposto ao calor constante. O corpo da fábrica, dos uniformes sujos. Enfim, ideias sobre corpos que emergem diariamente no encontro com o poder na Fundição Tupy. Na próxima seção, serão apresentadas duas formas de representação do corpo, por eles denominada de: o corpo que “quebra” e o corpo que “escapa”, tentando seguir as formulações de Zé Barba e Bocão.

O corpo que “quebra” Zé Barba estava afastado, em setembro de 2011, por ter quebrado a mão. Contou que o motivo de tal acidente acontecera por conta de a “chefia” não ter parado o trabalho para soldar um apoio no novo carimbo de aço, utilizado para gravar números nas peças. Foi batendo com a marreta para gravar a numeração no bloco de motor, o carimbo foi ficando escorregadio pelo óleo da peça durante o trabalho e, num momento de correria, bateu com tamanha força, que o carimbo escorregou e a marreta o atingiu. A respeito de seu corpo, Zé Barba o comparou a um CD que recebera em seu aniversário. Um disco muito escutado. Segundo Zé Barba, o jovem operário não tem nenhuma marca, “nenhum risco” no corpo; já o velho operário tem o corpo marcado, “riscado, não toca como deveria”. O corpo vai sendo desgastado pelo trabalho, “suas partes” (mãos, coluna, ombros) vão sendo refeitas por cirurgias e afastamentos. Em sua narrativa, há “o antes e o depois”, pois o corpo “muda muito”, transformando-se com o tempo. O corpo se molda às dores advindas do trabalho. Zé Barba insistia na transformação do corpo causada pelo desgaste do trabalho. Com a mão quebrada, descreveu, no espaço, o movimento que é feito ao trabalhar com a lixadeira, e garantiu que após um ano – ou dois, para o caso de trabalhadores “mais fortes” –, o corpo estará “enferrujado”. Foi enfático: “pega ferrugem, não sai dos pelos. Não tem jeito: se trabalhar com a lixadeira, o corpo enferruja e quebra”. O corpo, segundo ele, não resiste ao trabalho: o “corpo quebra”. Já Bocão relatou uma experiência vivida na fábrica que qualificou de “extrema humilhação”. Após quatro anos, afastado de suas atividades devido à necessidade de realização de uma cirurgia no ombro esquerdo (provocada pela carga de trabalho, segundo os médicos e os peritos que concederam o afastamento), ao retornar, contou que fora recebido por um “novo chefe” que lhe indicara um novo posto de trabalho: o “acabamentinho”, cujas atividades lhe exigiriam novamente o trabalho com lixadeiras, chicotes e marteletes, nas linhas da rebarbação. Bocão é um homem simples, e de uma constituição de masculinidade muito colada àquilo que, talvez sem reflexão sobre o assunto, eu não temeria chamar de masculinidade hegemônica19,20 – aquela que diz que “um homem não chora”. Todavia, foi chorando que me disse que, quando se recusou a trabalhar neste posto, fora repreendido pelo “chefe”, que o acusou de não querer trabalhar, e sim apenas ficar num “quartinho” entregando ferramentas, ou furtando para vendê-las fora da fábrica – afirmações estas que Bocão considerou como “nojentas”. Sobre seu afastamento, contou que a “história” começou com fortes dores em seu corpo, a ponto de não conseguir mais lavar os cabelos. “O corpo, parecia que estava contando sua própria história”. Expôs então que as dores iniciaram enquanto trabalhava no jato [máquina] da rebarbação. 408

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A humilhação social é uma modalidade de angústia disparada a partir do enigma da desigualdade de classes. Angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão. Para os pobres, a humilhação ou é uma realidade em ato ou é, frequentemente, sentida como uma realidade iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. O sentimento de não possuírem direitos, de parecerem desprezíveis e repugnantes, torna-selhes compulsivo: movemse e falam, quando falam, como seres que ninguém vê – para saber mais, ver: Gonçalves Filho7.

(e)

Assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, frequente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional – para saber mais, ver Freitas, Heloani e Barreto21.

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Produzindo uma peça, sentiu uma “xuxada” [fisgada] no braço, “parecendo que abriu a carne”, mas continuou trabalhando por muito tempo, mesmo sentindo dores. Quando não suportou mais a dor, foi ao médico e recebeu o diagnóstico de “rompimento dos tendões”. Disse ter muitos “problemas” de saúde, que seu corpo mudou muito, e “mudou pra pior”. Praticamente “80% ‘da’ [sua] saúde acabou” dentro da fábrica. E novamente a metáfora de quebrar surge na sua narrativa: “eles quebraram meu corpo”, afirmou sintetizando sua experiência. Em seu relato, afirmou “que a primeira coisa que vem é a velhice, porque a fundição acaba com o ser humano”. O verbo acabar tem um campo semântico que indica tanto o “perfazer” como o “concluir, terminar, dar cabo”. De forma que a insistência de Bocão com o termo “acabar” indica uma formulação na qual a fábrica, ao mesmo tempo, atua, molda, e “quebra”, “dá cabo” do mesmo corpo que produziu. Sua formulação permitiu-lhe prever o seguinte quadro: em dez anos, um operário recém-contratado estará invariavelmente com tendinite. E, assim como ele, estará: “todo estourado, sem coluna, sem saúde”. E concluiu: “Tamo fabricando peça, peão, doença, corpo, tudo estourado”. “Lá dentro é uma fábrica de corpos”. Os dois operários, Zé Barba e Bocão, apresentam, em suas narrativas, certa indignação. Porém, neste primeiro momento, parece não haver possibilidades de mudanças. Indignados, denunciam, passivos, o que fere, marca e quebra os corpos operários. Trazem, na voz, lágrimas, e, em todo o corpo, a violência da cadência acelerada do trabalho na fundição. Experiências de Humilhação Social(d)6 e de Assédio Moral(e)21 que denunciam as relações de força dentro da fábrica. Relações essas que parecem seguir sempre linhas tênues entre relações de poder e de violência. Narram episódios que metamorfoseiam o corpo em peça de ferro, onde o próprio operário o confunde e o acerta com a marreta no momento de raiva. Ou é levado ao seu limite, enferrujando e quebrando como uma velha peça de ferro produzida pelo trabalho. Uma “fábrica de corpos”, de corpos construídos e moldados pela disciplina, pelos horários, pelas técnicas corporais e pelas experiências com as ferramentas e máquinas; de corpos que quebram, assim como as máquinas. Mas, haveria algo que não disciplinasse e que não controlasse esses corpos? E de que forma formulariam meus interlocutores essa experiência?

O corpo que “escapa” Zé Barba confessou ter dificuldades em dizer as razões que o fazem passar “uma vida dentro da fábrica”, e se imaginou fora dela após a aposentadoria: “só descansar, isso que eu quero, uma vida de sossego seria bom”. Após longo período em silêncio, identificou como principal motivo de sua permanência dentro da fábrica, além do salário, a amizade. Segundo ele, são os laços de amizade e de camaradagem que o fazem permanecer “resistindo, lutando e trabalhando”. Perguntei, então, como se daria essa capacidade de resistir à “quebra”. Ele, então, me narrou uma história diferente da que me havia contado até aquele momento. Ele descreveu, como exemplo, os divertidos almoços, os cafés coletivos e as brincadeiras no vestiário. As amizades atuavam como algo que escapa, pois as astúcias dos camaradas possibilitavam formas de agir que os faziam deslizar sobre a maquinaria da fábrica. O trabalhador revelou, então, uma espécie de “jogo de esconde-esconde”, no qual os trabalhadores “driblam” as regras feitas por “autoridades desconhecidas”. Afirma haver códigos, olhares, que o fazem acelerar a cadência do trabalho antes do almoço, e que o fazem desacelerar a cadência após o almoço. Sobre tais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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olhares, confessa que a partir deles compreende o que o outro operário está “dizendo”. Sabe quando está terminando o turno, mesmo sem estar com relógio no pulso. Faz piadas direcionadas aos chefes, sem que eles possam decifrá-las. Sente quando há cachaça no setor, trazida pelos caminhoneiros que transportam as peças para as montadoras. E revela que este “jogo de esconde-esconde” é conhecido pelo encarregado imediato, pois este, também, um dia, já fora operário. Porém, segundo Zé Barba, engenheiros e gerentes nunca saberão dessas “escapadas”, afinal, este é um dos “segredos operários”. Zé Barba nomeou tais relações de segredo e de escapadas como “resistência”, pois “eles [os chefes] não conseguem tirá-las dos trabalhadores”. De acordo com o operário, o trabalho é ordenado para que seja realizado de uma forma que os trabalhadores não se comprometam com a qualidade das peças, e sim com a quantidade, e ressaltou: “querem que a gente apenas produza e mantenha o sorriso no rosto, seguindo a missão da empresa. Mas nós gostamos de fazer as peças bem feitas, isso nos dá prazer, aumenta nossa responsabilidade”.

Outra forma de resistir é a de ver-se naquilo que é produzido, talvez, fugindo daquilo que, magnificamente, Karl Marx (1975)22 chamou de alienação. Zé Barba garantiu que há “coisas” dentro da fábrica – emoções, conversas, prazeres em fazer a peça “certinha” – que “os chefes” nunca entenderão, porque este sentimento de ter prazer com um trabalho tão duro, só quem é “peão” é que pode sentir. Não foi fácil para Bocão expor seus sentimentos sobre o que mais gostava dentro da fábrica. Em vários momentos durante as entrevistas, o operário se manteve em silêncio quando o tema se referia à questão do prazer no trabalho, parecendo quase não haver razões para trabalhar na fábrica. Em uma ocasião, afirmou que a única coisa que lhe dava prazer dentro da fundição eram os amigos. Para resistir, diante das humilhações relatadas, assumiu “contar até dez” e pedir a Deus para não perder a cabeça, “porque tem hora que [...] quase perde”. Confessou jogar duro, ser combativo na fundição, e que, para isso, buscava forças nos amigos “que são iguais”. Segundo Bocão, tudo parece “jogar” contra os trabalhadores: chefia, sindicato, salários... “até a temperatura acompanhada do barulho que faz lá dentro nos atrapalha”. Entretanto, para Bocão, há estratégias adotadas pelos trabalhadores que “burlam o esquema de opressão”: “A gente esquece o uniforme, hora a gente rasga e até aguardar o novo a gente usa uma camiseta mais leve, entende? Têm momentos que a gente não usa mesmo os EPIs, que são obrigatórios, mas incomodam muito. Obrigam a usar, mas não projetam algo mais decente. A gente sabe que ‘zoa’ a saúde, mas é duro usar. E pra falar com o camarada que está longe? A gente também dá um jeitinho, a gente usa gestos, usa isso aí que você disse, “linguagens corporais”: dois dedos nos ombros, para falar dos chefes. Fingir estar atirando com um revólver, para apontar ‘peão safado’ [traidor]. Levantar o dedo indicador e o mindinho, guardando os outros, para simular traição da esposa. Indicar para a porta da expedição, beber cachaça nas barracas fora da fábrica. Abaixar, empinando o quadril para trás e depois rapidamente forçar para frente, para “rasgar” [fazer] na hora extra. Dar uma volta no ar, com a mão na altura da cintura, para desconsiderar o que o ‘peão’ estava dizendo. Esticar o braço, com a mão aberta, virada com a palma para cima e passar no ar como uma foice, para ameaçar operários de facão [demissão]. Passar os dedos da mão (menos o polegar) no queixo, como uma navalha, para quem ‘mata peças’, para ‘peão cabaço’. Pra dizer a verdade, a gente até força a demissão”.

Bocão admite que, quando se aposentar, sentirá saudades dos camaradas – que o “distraem” na vida –, e endossa que, enquanto a aposentadoria não chegar, continuará brincando com os colegas, posto essa ser sua postura de “resistência”: contar piadas, apelidar os novos operários, tomar cachaça para entrar ou para sair do trabalho, e viver “um dia depois do outro dia”, visto que também acha graça em ver os chefes impondo o ritmo das “vendas” e os operários “ditando o ritmo dos corpos cansados”. 410

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Garante que, na produção, por mais que os “chefes acreditem” serem responsáveis por ela, sempre serão os operários a produzi-la, da melhor maneira que os convém, “dando o seus jeitinhos de escapar”. Se anteriormente os dois operários, Zé Barba e Bocão, trouxeram certa passividade, neste momento os trabalhadores trazem sutilezas para as relações de poder estabelecidas dentro da fábrica. Inventos capazes de alterar o tempo dentro da fábrica, onde um dia depois do outro dia signifique mais do que outro dia de trabalho, mais calma, concentração para buscar prazer durante seu ofício. Prazer este irreconhecível, segundo eles, para quem não é / foi operário. Irreconhecível, também, são os jogos de esconde-esconde dentro da fábrica, onde só os iguais, enquanto posição política – trabalhadores que não concluíram o Ensino Fundamental ou Médio – são capazes de decifrar a resistência operária em relação ao trabalho. Resistência expressa pelo corpo, que se, em alguns momentos, ele quebra, em outros se fortalece e joga o jogo das relações de forma dura, e, ao mesmo tempo, brincalhona e embriagada, pois esses corpos falam criando gírias gestuais. E se alguns bebem álcool como diversão – ou fuga – para enfrentar a rigidez das normas, a grande parte se alimenta de amizade, da camaradagem operária, do que Simone Weil (1996)23 chamou de Fraternidade Humana.

Considerações finais Na etnografia realizada, foi possível verificar que, na Fundição Tupy, a flexibilidade da força do trabalho está relacionada com novas tecnologias menos fechadas, inventadas por meios científicos, mas que continuam apresentando como alvo, mesmo que de maneiras diferentes, o corpo humano. Os corpos dos operários são o núcleo fundamental da experiência social e política, o que significa dizer que o poder sobre eles é físico, que incide sobre a carne, os músculos, os ossos, modulando as intensidades corpóreas, chegando, literalmente, a quebrar estes corpos. Porém, também pude compreender que o envolvimento com o trabalho, e a própria utilização do corpo no trabalho, pode ser também uma forma de resistência. O corpo que quebra em determinados encontros com o poder é também o mesmo corpo que, noutros encontros, escapa, pois, como disse Zé Barba, “meu corpo é meu, eu sei, às vezes esqueço. Ai, lembro, é um exercício resistir, mas temos que fazer isso”.

Colaboradores Todos os autores trabalharam na construção do artigo, em suas etapas de formulação, redação e revisão.

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artigos

Castro O, Pereira PPG

Castro O, Pereira PPG. Fábrica de cuerpos: cuerpo y poder en la Fundição Tupy. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):403-13. La propuesta de este texto es presentar una encuesta etnográfica que trato de comprender la forma en que se configuraban las relaciones entre cuerpo y poder en la fábrica de piezas de automóvil Fundição Tupy. Realicé la encuesta durante todo el año 2011. Durante el trabajo en campo, me aproximé más directamente de 12 trabajadores que se convirtieron en mis principales interlocutores. Los entrevisté en diversas ocasiones y, por medio de esas entrevistas, obtuve como resultado dos maneras de experiencia con el cuerpo: la primera, el cuerpo que se rompe y la segunda, el cuerpo que escapa en los encuentros diarios con el poder.

Palabras clave: Cuerpo. Poder. Trabajo. Amistad. Recebido em 16/04/13. Aprovado em 14/11/13.

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espaço aberto

DOI: 10.1590/1807-57622013.0784

Olhos de ver, ouvidos de ouvir, mãos de fazer: oficinas de atividades em Terapia Ocupacional como método de coleta de dados

Paulo Estevão Pereira(a) Ana Paula Serrata Malfitano(b)

A linguagem da ação é um dos muitos modos de conhecer a si mesmo, de conhecer o outro, o mundo, o espaço e o tempo em que vivemos, e a nossa cultura.1 (p. 47)

Observar, entrevistar, interagir, registrar. Conviver, compartilhar, entender, compreender – e interpretar! Esse é o processo das pesquisas qualitativas, que buscam a singularidade, o próprio e o apropriado pelo sujeito, na medida em que este constrói e é construído pelo contexto em que está inserido. É preciso olhos de ver mais que de olhar. É preciso ouvidos de ouvir mais que de escutar. É preciso que se disponha o pesquisador a despir-se de si mesmo, quanto possível, para vestir-se da experiência do outro, do olhar do outro, do sentir do outro. Depois, então, vestir-se novamente, mas com as impressões recolhidas da experiência alheia, e construir um discurso sobre tudo isso. No entanto, se os olhos nem sempre são de ver e os ouvidos nem sempre de ouvir, as mãos... Ah! As mãos são e serão sempre de fazer! Quando as mãos fazem é que nos reconhecemos, nos revelamos, para nós e para os outros. É quando somos mais nós mesmos, pura e simplesmente. Se os olhos enganam, se os ouvidos tapeiam, as mãos nunca mentem. É através do fazer no mundo que o ser humano constrói a si mesmo. É através do fazer que sentidos se revelam, se tornam fatos (feitos!), visíveis e explicáveis, mesmo que não conscientemente percebidos. No momento da ação, as defesas, as amarras mentais ou comportamentais se afrouxam e o sujeito permite a si mesmo expressar-se. Em terapia ocupacional, o fazer ocupa lugar central. É o elemento organizador e ordenador de toda prática profissional e, pensamos, pode vir a ocupar também um lugar importante na pesquisa. Esse processo, se bem conduzido, associado às outras formas de apreensão, permite, ao pesquisador terapeuta ocupacional, fazer uma leitura do universo daquele que faz de uma forma mais ampla, complementando, corroborando ou contradizendo os dados obtidos por meio da observação (participante ou não), da entrevista ou da ação conjunta.

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(a)

Instituto de Ciências da Saúde, Curso de graduação em Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Av. Getúlio Guaritá, 159. Uberaba, MG, Brasil. 38025-440. estevao.paulo@gmail.com (b) Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, Brasil. anamalfitano@ufscar.br

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Trabalhamos dessa forma em nossa dissertação de mestrado2, junto a jovens moradores da periferia de uma cidade de médio porte do interior paulista, frequentadores de um Centro da Juventude local. Buscamos compreender as formas como esses jovens entendem e explicam, para eles mesmos e para os outros, o fenômeno das drogas em seus cotidianos. A imersão nesse campo de pesquisa se deu por meio de nossa inserção nas ações propostas pelo Projeto METUIA(c), Núcleo UFSCar, junto aos jovens estudados. Os dados foram obtidos por meio de observação participante, entrevistas e oficinas de atividades4, nas quais exploramos as mesmas temáticas da entrevista (identidade, cotidiano e drogas), a partir de atividades expressivas como: colagem, poesia coletiva e teatro. A seguir, reproduzimos o material elaborado por um dos jovens, na oficina de atividades, com a temática “identidade”, a primeira que fizemos. Os participantes desta oficina, em número de três, já haviam sido entrevistados e faziam parte das interações participativas que realizávamos no campo. Nesta oficina, como aquecimento, utilizamos um vídeo sobre identidade. Em seguida, discutimos sobre identidade como sendo aquilo que nos define, nos caracteriza, nos identifica. Então lhes apresentamos uma série de imagens com bandeiras de países e de clubes de futebol e sugerimos que eles construíssem, com colagens de recortes de revistas, a bandeira pessoal de cada um, o que os identifica, o que diz “Eu sou” de cada um. Saulo(d), um jovem de 15 anos, negro, fala contida, corpo franzino, compôs sua “bandeira pessoal” com duas imagens, conforme reproduzido na Figura 1.

(c)

O Projeto METUIA tem se dedicado à realização de estudos e pesquisas, à formação de estudantes de graduação e pós-graduação e à implementação de intervenções no campo social que busquem a inovação por meio da criação de novas metodologias participativas, assim como da discussão sobre o papel social dos técnicos, em especial do terapeuta ocupacional, dedicando-se ao enfrentamento das problemáticas contemporâneas da sociedade brasileira. É formado, atualmente, por professores, estudantes e técnicos da Universidade Federal de São Carlos, da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Paulo3.

(d) Todos os nomes próprios aqui empregados são fictícios.

Figura 1. “Bandeira pessoal” de Saulo

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Figura 2. “Bandeira pessoal” de Saulo (detalhe)

Na imagem, um rapaz branco, trajando uma jaqueta esportiva, posa sorridente para a foto. Ao fundo, um grande número de pessoas observa uma roda de capoeira. No lado direito da folha, Saulo escreve: “O meu esporte é capoeira se eu soubese gingar” (mantida aqui sua própria grafia). Saulo utiliza a imagem de um esporte dinâmico, que requer força, flexibilidade e muita ginga, ou certo “jogo de cintura” para executar de maneira adequada os movimentos. Requer ritmo, percepção do outro, para não ser atingido, e muita criatividade. É assim que ele, na atividade, se identifica. Mas Saulo confessa que não sabe gingar. Ele adota uma imagem para dizer de si, mas que não é para si. Saulo, à época da pesquisa, cursava o oitavo ano (antiga 7ª série) do Ensino Fundamental, tendo repetido um ano. Morava com sua mãe, o irmão e o padrasto. O pai estava preso por tentativa de homicídio. Passava suas tardes no Centro da Juventude no bairro onde mora, jogando futebol, por “não ter nada para fazer”. Em conversa sobre seus sonhos, disse: “Não tenho sonho ainda”. A escolha de Saulo pela imagem da roda de capoeira com um jovem em primeiro plano, que se destaca dos demais elementos da cena, somada à frase escrita e ao que ele disse na oficina, nos fornecem uma visão complementar do universo cotidiano desse garoto, mostrando, ou sugerindo, o entendimento de sua condição de jovem pobre, da periferia, de quem os direitos de participação social e de exercício da cidadania são cerceados o tempo todo. Ele “é” o que ele “não pode ser”. Outra imagem escolhida por Saulo reforça a indefinição, a incerteza quanto ao lugar a ser ocupado por ele no futuro. Na foto em preto e branco, aparece um carro conversível luxuoso no qual, além do motorista, estão dois homens de terno e gravata (trata-se do ex-presidente da República Emílio Garrastazu Médici e do ex-ministro Mário Andreazza). No paralama direito dianteiro do veículo, há uma bandeira do Brasil. Ao fundo, vê-se um policial em uma moto, como que a escoltar ou guarnecer o automóvel. Abaixo da foto, Saulo escreveu: “Meu sonho é ter um carro mas um dia eu vou conseguir trabalhando é que se consegue as coisas”. O fluxo da frase, sem pontuação, sugere uma dinâmica de pensamentos que vão se sobrepondo, quase que se atropelando, onde sonho, realidade e esperança se misturam. Ao sonho de ter um carro, símbolo de poder e liberdade, sobrevém a realidade, logo em seguida contraposta pela esperança (“mas um dia eu vou conseguir”), condicionada ao código social do trabalho e do esforço pessoal.

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Figura 3. “Bandeira Pessoal” de Saulo (detalhe)

De novo, o que o identifica (ou com o que ele se identifica) são coisas alheias à sua experiência cotidiana. Saulo diz não ter sonhos ainda, mas sua “identidade” é toda feita de “sonhos”, no sentido do irreal, do impalpável, do não-existente. Para ele, o que o define é o devir, o vir-a-ser, o vir-a-ter. Seu presente é incerto, instável, inseguro. O dele e de tantos jovens como ele. Outra atividade que realizamos e que cabe destaque aqui foi a oficina sobre a temática “Cotidiano”. Trabalhamos com a técnica de poesia coletiva, na qual, a partir de um tema sugerido pelo grupo, cada um dos participantes, em roda, contribuía com uma palavra ou uma frase sobre o tema. As frases eram anotadas por nós na sequência em que eram ditas. Foram feitas tantas rodadas quantas foram necessárias até que o grupo estivesse satisfeito ou se esgotassem as intervenções. Terminado esse processo, as poesias eram lidas para todos. Foram compostas, no total, nove poesias, das quais destacamos uma. As letras entre parênteses indicam seus autores.

O MEU FUTURO Quero o melhor (T) Ser feliz (H) Família (D) Estar sempre ao lado de quem eu amo (T) Estudar (H) O futuro... Não sei! (D) Crescer profissionalmente (T) Ao lado dos meus amigos (H) O que vou falar? (D) Poder viver (T) Não sei (H) Continuar (D) 418

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Participaram desta oficina três jovens, sendo duas moças, Taís e Helena, e um rapaz, Daniel. A poesia revela perspectivas e expectativas diferentes em relação ao futuro de cada um. Taís tem 15 anos, estuda num colégio particular no centro da cidade, e sonha em seguir a carreira militar na Marinha ou na Aeronáutica. Embora resida na mesma região que os demais participantes da pesquisa, constrói sua rede de relações apenas com os colegas de escola, chegando a ser hostilizada por algumas garotas do bairro durante as atividades de que participa no Centro da Juventude. Helena tem 17 anos, trabalha e estuda, cursando o terceiro ano do Ensino Médio. Planeja continuar seus estudos, ingressando numa faculdade. Ainda não decidiu qual carreira quer seguir, mas planeja seu futuro com essa perspectiva. Já Daniel tem 23 anos, cursou até a 6ª série (atual 7º ano) do Ensino Fundamental. Não trabalha, mora com a mãe e o irmão. Às vezes, consegue alguns “bicos” em trabalhos que exigem pouca qualificação, porém nada fixo. É um jovem bastante perspicaz e inteligente e faz uma leitura bastante apurada de sua realidade cotidiana. Conhece a todos no bairro onde mora, bem como as relações estabelecidas entre os moradores daquela comunidade. Passa os dias no Centro da Juventude jogando bola e participando das atividades do Projeto METUIA. Seu planejamento futuro se resume a um aparentemente eterno “entregar currículo”. Os versos da poesia trazem o contraponto estabelecido pelas perspectivas de Daniel, de um lado, e de Taís e Helena, de outro. Enquanto as garotas, cada uma à sua maneira, expressam uma visão de futuro cheia de planos (“Quero o melhor”, “Ser feliz”, “Estar sempre ao lado de quem ama”, “Estudar”), Daniel traz um futuro incerto pontuado por um presente marcado por limitações e precariedades. Espera para o futuro o mesmo que para o presente: “Continuar!” Seguir seu caminho, passo após passo, sem saber ao certo onde irá chegar. A única certeza, o único ponto de apoio que Daniel parece enxergar nesse mar de dúvidas é a família, sua primeira contribuição para a poesia. É nas relações próximas e solidárias5 que ele encontra algum sentido e, talvez, forças para continuar. As duas atividades que apresentamos aqui demonstram, de maneira complementar aos dados obtidos pelas outras metodologias que utilizamos, a condição social daqueles jovens como moradores das periferias brasileiras. Convivem, na mesma realidade cotidiana, jovens restritos no exercício de sua cidadania e de seus direitos fundamentais, sujeitados a um presente marcado por incertezas, e cujos projetos de futuro, quando não inexistentes, são dominados por perspectivas frouxas. Jovens que, embora também possam sofrer restrições em seus direitos devido à sua classe social, vislumbram horizontes um pouco mais definidos. Se todo amanhã é incerto, para alguns ele é mais incerto que para outros. Destaca-se que a experiência de realização de oficina de atividades, a partir da terapia ocupacional social6, possibilitou não “apenas” a produção de ações com jovens pobres residentes nas periferias urbanas, mas, também, apresentou-se como um importante e potente recurso para a apreensão de suas realidades no âmbito da pesquisa. Considera-se fundamental, para o campo da pesquisa social em geral, e para a pesquisa em terapia ocupacional em particular, a compreensão de que o que é experimentado, produzido e agenciado na prática terapêutico-ocupacional pode ofertar “materiais”, “dados”, “realidades”, “subjetividades” e “objetividades” que contribuam, a partir do fazer, com diferentes maneiras de olhar e ouvir. Tais “dados” podem ser analisados, no âmbito da pesquisa, sob a perspectiva dinâmica da construção do conhecimento.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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Referências 1. Castro ED, Lima EMFA, Brunello MIB. Atividades humanas e terapia ocupacional. In: De Carlo MMRP, Bartalotti CC. Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas. São Paulo: Plexus; 2001. p. 41-59. 2. Pereira PE. “Aí!? Tá me tirando?” – o que dizem jovens pobres de São Carlos sobre si mesmos e a temática das drogas [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2012. 3. Silva CR. Políticas públicas, educação, juventude e violência na escola: quais as dinâmicas entre os atores envolvidos? [dissertação]. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2007. 4. Lopes RE, Borba PLO, Silva CR, Malfitano APS. Terapia ocupacional no campo social no Brasil e na América Latina: panorama, tensões e reflexões a partir de práticas profissionais. Cad Terap Ocup UFSCar. 2012; 20(1):21-32. 5. Castel R. As metamorfoses da questão social. 8a ed. São Paulo: Vozes; 2009. 6. Barros DD, Ghirardi MIG, Lopes RE. Terapia Ocupacional Social. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2002; 13(3):96-103.

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Pereira PE, Malfitano APS

Os métodos de coleta de dados em pesquisa podem ser múltiplos e envolvem diferentes técnicas e abordagens. Partindo da perspectiva teórico-metodológica da Terapia Ocupacional Social, apresenta-se o relato de fragmentos de oficinas de atividades utilizadas como recurso para apreensão da realidade de jovens pobres residentes em periferias urbanas, no desenvolvimento de uma determinada pesquisa. A partir de imagens e poesias produzidas pelos jovens colaboradores, em atividades realizadas em um centro de juventude, conclui-se que as oficinas terapêuticoocupacionais possibilitaram não “apenas” a produção de ações com aqueles jovens, mas também apresentaram-se como um importante e potente recurso para a apreensão de suas realidades no âmbito da pesquisa.

Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Oficina de atividades. Pesquisa. Juventude pobre.

Eyes to see, ears to hear, hands to do: activity workshops on Therapy Occupacional as a data-gathering method Data-gathering methods in research may be multiple and involve many techniques and approaches. Starting from the theoretical and methodological perspective of social occupational therapy, a report on fragments of activity workshops that were used as a resource for understanding the realities of adolescents living in peripheral urban areas, in developing a particular research project is presented. Through images and poetry produced by adolescents participating in activities at a youth center, it is concluded that occupational therapeutic workshops not only enable production of actions among these adolescents, but also are an important and potent resource for comprehending their realities within the scope of research.

Keywords: Occupational therapy. Activity workshop. Research. Poor adolescents.

Ojos de ver, oídos de oír, manos de hacer: talleres de actividades en Terapia Ocupacional como método de colecta de datos Los métodos de colecta de datos en las investigaciones pueden ser múltiplos y envuelven diferentes técnicas y abordajes. Partiendo de la perspectiva teóricometodológica de la Terapia Ocupacional Social se presenta el relato de fragmentos de talleres de actividades utilizados como recurso para la percepción de la realidad de jóvenes pobres residentes en periferias urbanas, en el desarrollo de un estudio determinado. A partir de imágenes y poesías producidas por los jóvenes colaboradores, en actividades realizadas en un centro para la juventud, se concluye que los talleres terapéutico-ocupacionales posibilitaron no “solo” la producción de acciones con esos jóvenes, sino que también se presentaron como un importante y potente recurso para la percepción de sus realidades en el ámbito de la investigación.

Palabras clave: Terapia ocupacional. Taller de actividades. Pesquisa. Juventud pobre.

Recebido em 23/09/13. Aprovado em 25/01/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0272

livros

Guber R. La etnografía, método, campo y reflexividad. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2011.

Pamela Siegel(a) Nelson Filice de Barros(b)

Vale a pena escrever um livro sobre o trabalho etnográfico – uma metodologia artesanal – em plena era da informática? Essa é a provocação que a autora do livro, Rosana Guber, doutora em Antropologia Social, pesquisadora do Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES) e professora de métodos etnográficos em pósgraduação na Universidade Nacional de San Martín, Argentina, lança ao leitor. O livro, que, na realidade, é a 2ª edição, uma versão atualizada da primeira edição do livro publicado pela Editorial Norma de Colombia, em 2001, está dividido em sete capítulos, nos quais a autora conduz o leitor através de uma breve história do trabalho de campo etnográfico, passando por temas como: o trabalho de campo, a observação participante, a entrevista etnográfica, as questões de registro, o papel do investigador no campo e o método etnográfico no texto. Em outras palavras, ela prepara, capacita e estimula o leitor a percorrer a trajetória da pesquisa etnográfica desde a coleta de dados até a elaboração do produto textual. O objetivo da autora é mostrar que a etnografia abarca uma tríplice acepção de enfoque, método e texto. O enfoque busca compreender os fenômenos sociais a partir das perspectivas dos atores; no seu nível

primário, trata daquilo que ocorreu (o quê); no secundário, a explicação lida com o porquê, enquanto, no nível terciário, a descrição trata daquilo que ocorreu a partir da perspectiva dos agentes (como eles percebem a experiência). A etnografia como método abrange todas as técnicas do trabalho de campo, a coleta de dados através de questionários, técnicas não direcionadas, como observação participante, entrevistas não dirigidas e a residência prolongada com os sujeitos do estudo. Essas atividades são empregadas como evidência para a descrição. A terceira acepção do termo etnografia, a descrição textual, comporta a representação, interpretação ou tradução de uma cultura ou de determinados aspectos dela para leitores não familiarizados com a mesma. Dessa maneira, os dados coletados dialogam com a teoria e o campo, constituindo o fio condutor do texto. Assim como Gilberto Velho, que quis estudar a própria sociedade, numa época em que as pesquisas sobre drogas, sexo e a atenção ao trânsito social entre brasileiros eram esparsas1, a autora envereda pelos trabalhos de campo com imigrantes judeus em Buenos Aires, residentes de favelas nas periferias da cidade e protagonistas do conflito anglo-argentino pela posse das

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(a,b) Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde, Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. gfusp@mpc.com.br; nelfel@uol.com.br

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LIVROS

Ilhas Malvinas. Ela situa-se, portanto, na vertente da antropologia urbana, mais especificamente, lida com conflitos de ocupação territorial. A autora revisita o que chama de heróis culturais, como Franz Boas, Bronislav Malinowski, Radcliffe-Brown, Margaret Mead, e dedica um subcapítulo à etnografia antropológica e sociológica dos Estados Unidos, com referências à Universidade de Chicago, situando autores, como Robert E. Park, W.I. Thomas, Robert Redfield, Julien Pitt-Rivers, Egon Vogt e Oscar Lewis, na linha do tempo. No segundo capítulo, intitulado “El trabajo de campo: un marco reflexivo para la interpretación de las técnicas”, a autora discute os paradigmas dominantes da investigação social, o positivismo e o naturalismo. Enquanto, no primeiro, o investigador-observador procura estabelecer leis universais para explicar fatos específicos, o naturalismo propõe a fusão do investigador com os sujeitos do estudo. Depois, a autora introduz o conceito de reflexividade, relação íntima entre a compreensão e a expressão de dita compreensão, citando Pierre Bourdieu quando ele reflete sobre a pretensa autonomia da figura do teórico e intelectual. Conclui a autora que o desafio no trabalho de campo é transitar da reflexividade própria à dos nativos, daí que grande ênfase é dada à importância do exercício da reflexividade constante por parte do investigador, ao longo de todo o trabalho etnográfico. Com relação ao personagem do observador participante, a autora o compara com um espectador de uma obra de teatro que faz anotações, e usa um trocadilho: participar para observar e observar para participar. Ela discute os limites da participação, que pode introduzir obstáculos à objetividade e colocar em perigo o trabalho de campo devido à aproximação excessiva com os informantes. No capítulo em que abrange a entrevista etnográfica, a autora procura convencer o leitor de que a entrevista cabe no marco interpretativo da observação participante, já que seu valor não reside nas informações sobre as coisas, mas sim, no seu caráter performático. Sugere, inclusive, que o não- direcionamento da entrevista se fundamenta na convicção de que não participar com um questionário ou pergunta preestabelecida favorece a expressão de temas, termos e conceitos mais espontâneos e significativos para o entrevistado. 424

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Segundo a autora, o registro é um meio pelo qual se reproduz o campo em forma de anotações, imagens e sons. Daí a importância de apontar as anotações a partir de uma reflexão sobre a experiência de haver “estado ali”, e identificar aquelas que levam o pesquisador a considerar certas questões e descartar outras, pois o registro é a materialização da sua própria perspectiva sobre uma determinada realidade. A autora chega a criar o acrônimo PATE: pessoas – atividades – tempo – espaço, para sintetizar o que deve ser observado e escutado no campo de trabalho. O papel do pesquisador social que, como mediador entre diferentes grupos sociais e culturas, depara com os dilemas dessa mediação, é o tema discutido no sexto capítulo do livro. E a autora denuncia o fato de a lógica acadêmica deixar a paixão, os instintos corporais e a fé de lado, valendo-se da razão como o principal veículo e mecanismo elaborador de conhecimento. Nesta perspectiva, a emoção seria o antimétodo. Contudo, foram as etnógrafas que começaram a questionar o papel do pesquisador como ocidental, individual, adulto, racional, moralmente responsável e masculino. O valor dual da mulher, perigosa e vulnerável, suscitaria reações duais no campo, mas seria mais tolerada no caso de transgredir os limites permitidos. No último capítulo sobre a etnografia como texto, a autora desvenda a lógica interna da etnografia e faz a distinção entre as etnografias realistas e as experimentais. A primeira abordagem se baseia na ilusão empiricista de que a natureza não mediada dos dados obtidos no campo através do ocultamento da presença do autor no texto e do investigador no campo suprime a perspectiva do indivíduo proveniente de uma cultura a favor de um ponto de vista nativo. A segunda advoga a favor da exposição da voz do autor como uma a mais no diálogo com as dos nativos. Desde a década de 1960, as experiências autobiográficas de campo se impuseram como um gênero próprio. Nos anos 1980, começaram a aparecer as autobiografias reflexivas de campo, e o fato de que tanto os sujeitos como os investigadores podem ser coautores fez os antropólogos perderem o status de sujeitos privilegiados e conhecedores. Atualmente, os nativos leem aquilo que se escreve sobre eles e, muitas vezes, questionam as conclusões autorizadas de doutos etnógrafos. A razão para


livros

seguir fazendo etnografia, conclui a autora, respondendo à pergunta inicial do texto, seria submeter nossas elucubrações epistemo-etno-cêntricas ao diálogo com as histórias e vidas dos nativos de qualquer ponto do planeta. Salpicado de experiências pessoais e profissionais da autora, o livro é muito útil para aprofundar os conhecimentos sobre pesquisa e metodologia em ciências sociais. Cuidadosa na escolha das palavras e com grande capacidade de condensar informações úteis num texto relativamente curto, a autora esbanja conhecimentos de um amplo leque e utiliza uma boa didática para ir encadeando os temas. Consideramos o livro um importante complemento ao texto de Minayo, Deslandes e Gomes2, porquanto este último estabelece as bases para a pesquisa social, apresentando um conteúdo sintético e com um fio condutor baseado nas etapas e nos procedimentos. Ainda que Minayo, Deslandes e Gomes mencionem que o pesquisador deva ser um curioso, capaz de

confrontar suas teorias com a realidade empírica, não atribuem tanta ênfase especificamente ao marco reflexivo, tal como Guber o faz, ao longo de todo o processo. Na perspectiva do campo da saúde, o livro é importante como referência para pesquisadores que quiserem incorporar a etnografia em pesquisa nessa área, sempre e quando levarem em consideração os dilemas teórico-metodológicos de lidar com as questões da saúde, quais sejam: os determinantes sociais, o sofrimento, a dor, a doença, o tratamento, a exclusão, a ruptura biográfica e a perda do self, típicas das doenças crônicas, a cura e a morte. Referências 1. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O quanto os jovens devem a Velho. Rev Pesqu Fapesp. 2012; (195):59. 2. Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social, teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2007.

Recebido em 24/06/13. Aprovado em 09/10/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0315

Puig Rovira JM, Doménech I, Gijón M, Martíns X, Rubio L, Trilla J, organizadores. Cultura moral y educación. Barcelona: Editorial Graó; 2012.

Ana María Novella Cámara(a)

A obra se estrutura em três partes que correspondem a diferentes níveis de aproximação à cultura moral. A primeira parte oferece uma revisão do conceito de cultura moral a partir de diferentes perspectivas. Em “Por que falar da cultura moral”? (capítulo 1), situa-se a atualidade e relevância do conceito dentro das instituições educativas; caracteriza-se e define-se como “uma qualidade global das instituições complexas que resulta do seu sistema de práticas educativas e do mundo de valores que criam”1 (p. 34). Isto é, a cultura moral é um sistema de práticas que concretizam um mundo de valores que se traduz em princípios e intencionalidades que levam as crianças a vivenciar práticas concretas que configuram uma experiência formativa. Em “A cultura moral na pedagogia escolar contemporânea” (capítulo 2), procede-se a uma revisão histórica do conceito a partir da análise de quatro pedagogias contemporâneas: a chamada pedagogia tradicional e três pedagogias lideradas por três grandes autores, que fizeram frente à cultura moral dominante até o momento. São eles: Neil, que sublinhou a liberdade individual; Makarenko, que impulsionou a coletividade, e Freinet, que desenvolveu uma pedagogia caracterizada pelo equilíbrio entre 426

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individualização e cooperação. No capítulo 3, “Teorias sobre a cultura moral”, expõe-se a diferenciação entre clima e cultura das organizações, e se apresentam contributos teórico-práticos de autores que já têm se aproximado do conceito da cultura moral aplicado às instituições educativas mas com três enfoques diferentes: Kohlberg, que enfatiza o meio escolar e sua estrutura organizativa como ambientes privilegiados para que seus membros deem sentido aos princípios de justiça e comunidade; Jackson, Boostron e Hasen, que defendem a instituição educativa como agente formativo com valor próprio, enfatizando segmentos de observação microscópicos da prática moral nas aulas a partir da vivência do ambiente e do clima; e Thomas Lickona, que sublinha de que modo a cultura moral de uma escola forma o caráter de seus membros a partir de maneiras de atuar e, por isso, analisa as coisas que acontecem e que se fazem numa escola ou centro educativo. O novo olhar dos autores desta obra quanto à cultura moral, pretende ir mais além do que considerar o conjunto de valores que um grupo compartilha. Procura entrar naquilo que se faz e se vivencia nas instituições, sendo necessário identificar e analisar a complexidade do sistema de práticas educativas que os materializam e

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(a) Departamento de Teoría e Historia de la Educación, Facultad de Pedagogia, Universidad de Barcelona. Passeig de la Vall d’Hebron, 171, Edifici Llevant, 3a planta. 08035 Barcelona, Espanha. anovella@ub.edu


livros

sistematizam, a partir da intencionalidade que as gera e sustenta o mundo de valores que constrói. É no capítulo 4 (“A cultura moral como sistema de práticas e mundo de valores”) que nos adentramos numa das maiores contribuições desta obra. Aí se procura deixar de lado a intuição para configurar um significado ativo da cultura moral. Para se desprender da intuição do que é a cultura moral até a configuração de um significado ativo, os autores nos propõem que tomemos consciência de quatro elementos: O primeiro é a complexidade institucional, que nos submerge em conjuntos de múltiplas propostas formativas quotidianas (disposições, ações pontuais e atividades) idealizadas para ensinar conhecimento e convivência que confirmam valores. Esta complexidade se materializa em um mapa de práticas educativas que se levam a cabo e, portanto, é necessário entender o conceito de prática como unidade de observação do que acontece na vida das instituições e analisar tal universo de práticas a partir de seus diferentes níveis (pessoal, transversal, curricular e institucional), constituindo um conjunto entrelaçado de práticas (sistema). Além disso, entender a configuração do mundo de valores a partir das práticas nos convida a vivenciar e nos ajuda a configurar um sentido e a linha de valor que os conecta com o sentido da instituição impulsionando a comunidade, a democracia. E, por último, a cultura moral na comunidade de práticas é maior que as ideias, a cultura e o clima relacional. Na segunda parte, os autores propõem um sistema de boas práticas que geram um mundo de valores ótimo e desejável. Em concreto, trata-se de quatro níveis de práticas que enchem a instituição de sentido e identidade, práticas que cristalizam dentro de um mundo de valores. “Relação e encontros face a face” (capítulo 5) constitui o nível mais íntimo das relações interpessoais. Estas micropráticas, definidas como células ou átomos da cultura moral, centradas no encontro entre educador e educandos, constituem uma via que exalta o valor de reconhecimento, as demonstrações de afeto e cuidado e a regulação da convivência. O capítulo 6 (“Normas, rotinas e ocasiões”) aborda o nível transversal onde são reguladas as condutas, e acompanha-se a construção de uma forma de convivência e relação. A definição destes mecanismos, sua finalidade e aplicação, bem como sua utilidade, geram um mundo de relações, entre educadores e

estudantes, de alta intensidade para a educação em valores. Em “As tarefas e as turmas” (capítulo 7), apresenta-se o nível curricular que designa tudo aquilo que se articula no processo de ensino e aprendizagem. O grupo-turma como situação de aquisição de conteúdos e valores onde a planificação das tarefas, como unidades básicas, configura cenários curriculares e específicos como a assembleia (de turma ou de escola). O capítulo 8 (“As atividades complexas”) recapitula o nível macro, cuja máxima consiste em favorecer a vida social e escolar do centro que tem a ver com as relações interpessoais, o autoconhecimento, o diálogo, e a cooperação, atividades que configuram o meio educativo e sua cultura. Tomar consciência da sistematização destas práticas e da sua transcendência permite às equipes educativas melhorar e proteger uma cultura moral mais consciente, democrática e participativa. A terceira parte fecha a obra com um avanço para a avaliação e maximização da cultura moral. O capítulo 9 (“Valorização da cultura moral”) apresenta as possibilidades e alguns procedimentos para avaliar a cultura moral a partir da sistematização e representação gráfica da diversidade de práticas morais que confluem numa instituição e os valores que nela estão sedimentados. Esta avaliação traz às equipes de educadores informações muito valiosas, não só quanto ao número de práticas, mas, também, quanto à sua repetição (variedade e redundância), sua complexidade e sequência. Medir a intencionalidade e o valor atribuído às práticas, assim como o grau de satisfação, supõe, para os centros, uma possibilidade de avaliação interna e de inovação educativa. O último capítulo “Como melhorar a cultura moral dos centros educativos?” (capítulo 10) descreve um procedimento para avaliar, otimizar e inovar a cultura moral dos centros educativos, a partir do reconhecimento destes como organização ativa em sua reflexão sobre a prática pedagógica e como reconstruí-la. Grande exercício de investigação realizado a partir da imersão no quotidiano dos centros educativos, esta obra apresenta, como resultado, uma reconstrução conceptual e prática do constructo cultura moral. Mas, sobretudo, supõe um aporte novo para a profissionalização e prática reflexiva no oficio de educar2, a partir de um olhar introspectivo nas práticas quotidianas, a densidade de seu universo de valores e sua otimização para a formação das pessoas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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LIVROS

Referências 1. Puig Rovira JM, Doménech I, Gijón M, Martíns X, Rubio L, Trilla J, organizadores. Cultura moral y educación. Barcelona: Editorial Graó; 2012. 2. Perrenoud P. Développer la pratique réflexive dans le métier d’enseignant. Professionalisation et raison pédagogique. Paris: ESF Éditeur; 2001.

Recebido em 21/06/13. Aprovado em 11/08/13.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0131

Apropriação e decodificação dos sentidos de corpo belo e saudável: a percepção de personal trainers Ownership and decoding of the healthy and beautiful body senses: personal trainers perceptions Propiedad y decodificación de los sentidos del cuerpo hermoso y sano: percepciones de entrenadores personales

Este trabalho é o produto final de uma dissertação de mestrado e versa sobre o corpo como sujeito da percepção, indispensável na experiência de ser, destacando dois aspectos fundamentais para as discussões sobre práticas corporais contemporâneas: beleza e saúde. Parte-se do pressuposto de que o treinamento personalizado encontra-se em ascensão na cultura corporal, atraindo novos profissionais, adeptos e práticas, criando, assim, um novo nicho de mercado visado pela mídia. Apesar da sua efervescência, este campo ainda é pouco discutido entre as publicações nacionais, particularmente raras quando se trata de estabelecer diálogo com as ciências humanas. Considerando como relevantes os pontos citados, este estudo objetiva investigar qual a percepção de corpo belo e saudável dos profissionais formados em Educação Física que atuam como Personal Trainers (PT). Tendo como pano de fundo o corpo próprio, a mídia e os dispositivos biopolíticos, esta pesquisa ambiciona suscitar discussões no intuito de preencher uma lacuna do conhecimento que dificulta o entendimento dos processos sociais que envolvem o corpo e o PT no cenário atual. Esta pesquisa é qualitativa, e o método adotado foi o olhar fenomenológico. O corpus analítico é composto pelas narrativas de 25 sujeitos que atuam como Personais na cidade de João Pessoa – PB. O instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada, cujo

roteiro é proveniente de uma pesquisa exploratória anterior, realizada através de observação participante e notas de campo. O treinamento personalizado foi estudado à luz dos conceitos de corpo vivido (Merleau-Ponty) e habitus (Bourdieu). A partir destes, os discursos foram analisados e contrapostos, resultando em categorias de análise. Observou-se, na ida ao campo, que, para incrementar os treinos – imprimindo-lhes caráter de novidade – e, sobretudo, o marketing pessoal, muitos profissionais utilizam o próprio corpo como uma espécie de “laboratório” de novas vivências e práticas. Como resultado, o PT é marcado pelo uso do seu corpo como principal ferramenta de trabalho, investimento e pesquisa, aumentando a necessidade de autovigilância e cuidado de si. Neste contexto, percebe-se que o corpo vivido representa a forma primeira de interação e expressão do Personal como ser no mundo, mas, também, é lugar de construção da atuação profissional e do habitus Personal Trainer, à medida que reinventa, dia após dia, a sua percepção por meio dos movimentos que executa. Saber é necessário, mas poder – executar os treinos – dá condições para exibição do corpo, que, por sua vez, atrai contratantes. No que tange à saúde, todas as narrativas apontam para a dificuldade de expressar verbalmente e/ou organizar ideias sobre o assunto. Predominaram as reproduções de discursos próximos aos

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normatizados e/ou quantificações de sentidos. No que diz respeito à estética, observou-se que os sujeitos apresentaram semelhante ou igual percepção, apontando para uma interface entre beleza e saúde. Em conclusão, espera-se que as Ciências Humanas e da Saúde se articulem na tentativa de formar e oferecer possibilidades para que os profissionais e alunos elaborem percepções de corpo belo e saudável com base na experiência subjetiva do corpo vivido, e não na reprodução de discursos e normas objetivantes. Isabelle Sena Gomes Dissertação (Mestrado), 2013 Programa Associado de Pós-Graduação em Educação Física, UPE/UFPB isabelleedfufpb@gmail.com

Palavras-chave: Corpo humano. Beleza. Saúde. Percepção. Poder. Keywords: Human body. Beauty. Health. Perceptions. Power. Palabras clave: Cuerpo Humano. Belleza. Salud. Percepciones. Poder.

Recebido em 01/03/14. Aprovado em 06/03/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0336

Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel: o lugar da materialidade no campo da Terapia Ocupacional

Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa(a)*

*

Todas as fotos desta seção são de autoria de Claudia Pereira Martins Ribeiro e Maria Cecilia Martins Ribeiro Corrêa (a) Terapeuta Ocupacional. Vida/Casa de Apoio da Granja Viana, Cotia. Rua Fernando Caldas, 116, Bairro Jardim Rolinópolis. São Paulo, SP, Brasil. 05535- 060. cicecorrea@gmail.com

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Eu perguntei um dia ao neurologista Oliver Sacks o que, do seu ponto de vista, era um homem normal. Ele me respondeu que um homem normal talvez seja aquele que é capaz de contar sua própria história. Ele sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma memória em ordem), sabe onde está (sua identidade) e acredita saber aonde vai (ele tem projetos e a morte no final). Está, portanto, situado no movimento de um relato, ele é uma história e pode dizê-la para si mesmo1.

Envolvida na ideia de contar uma experiência clínica como terapeuta ocupacional, me surpreendeu a visita da palavra ponto... Ponto de partida, ponto de encontro, ponto de apoio, ponto cruz, ponto cardeal, ponto de parada, ponto de vista, ponto final... Ponto, segundo o dicionário2, é “a menor marca; lugar determinado” (p. 699). . Lugar determinado...ou será o “começo do caminhar prá beira de outro lugar”3.

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Ponto de partida Lugar, do ponto de vista de Winnicott4 (p.31), é uma “posição básica a partir da qual a pessoa opera”, é condição para o vir a ser, para o desenvolvimento de um sentimento de ser existente, é ponto de partida. Para falar sobre um trabalho clínico, considero importante clarear a partir de que lugar se opera, isto é, quais são os princípios que o norteiam. Independentemente do contexto - saúde coletiva, consultório particular ou trabalho institucional - minha experiência clínica como terapeuta ocupacional orienta-se no pensamento psicanalítico, mais especificamente no MiddleGroup da psicanálise inglesa, sobretudo no autor Donald D. Winnicott. Partilho de sua concepção sobre o ser humano. Para ele, o ser humano é um ser criativo, em constante amadurecimento e dependente, para efetivação dessa tendência inata, da comunidade em que vive. A respeito do ser criativo, Winnicott nos fala da capacidade e necessidade humanas de criar o mundo, criar sentidos próprios para seu viver a partir da sua apreensão singular do mundo compartilhado, mundo que inclui o real material e os processos inconscientes, afetivos, corporais, imaginários envolvidos nessa experiência. Dessa forma, ser criativo não se refere ao fazer artístico, mas sim ao aparecimento do singular de si mesmo, experiência que envolve coragem e implica os riscos do viver. Ao considerar a criatividade uma das condições fundantes do ser humano, posso dizer que o potencial criativo é fonte de saúde. Assim, saúde passa a se relacionar com modos de ser, com bem estar próprio e completo, implicando uma continuidade e as conexões entre os aspectos biológicos, culturais, sociais, psicológicos e ambientais; deixa de ser “coisa” da doença e passa a ser garantia de vida, de qualidade de vida. Essa visão, que se contrapõe ao ideal de saúde, isto é, à compreensão que define saúde como “ausência de doença” e que concebe o corpo como uma máquina que deve ser consertada, caso dê algum defeito, apresenta a noção que nosso corpo não é uma máquina, um mecanismo, mas um complexo vivo e singular. Assim, podemos estar enfermos – etimologicamente ‘não firmes’ – e ainda assim estarmos capazes, criativos e saudáveis em diversos outros aspectos de nossa vida ou atividade5. Coerente com os pressupostos acima, minha prática clínica norteia-se pelo respeito à singularidade do paciente, pela consideração de suas necessidades. Trata-se de uma relação de cuidado genuína, um encontro interhumano em que o terapeuta relaciona-se de igual para igual com seu paciente, vendo-o como potente, integral, que busca as suas soluções para sua vida, pois ele sabe mais sobre si do que qualquer um. Isso implica na assunção de um compromisso ético diante da pessoa em sofrimento, no estabelecimento e na manutenção de uma situação terapêutica que favoreça a continuidade de ser, a esperança de o paciente se sentir vivo e real; isto é, ir sendo-se no seguimento do tempo e no espaço compartilhado com o outro na sua comunidade.

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Ponto de referência A experiência que relato aqui, ainda em curso, teve início em agosto de 2005, quando fui chamada por uma instituição sem fins lucrativos do terceiro setor para realizar atividades com um grupo de pessoas com deficiência física, adultos que viviam em situação de exclusão e vulnerabilidade social. Na primeira entrevista com os responsáveis da instituição, observei que o pedido era de entretenimento para os pacientes e respondia a uma necessidade institucional de vê-los ocupados durante todo o dia. Tratava-se, portanto, de uma visão que desconsidera necessidades humanas fundamentais, sendo conivente com práticas clínicas objetivantes, o que não é aceitável, nem do ponto de vista da clínica, nem eticamente. Contudo, encontrei espaço institucional para iniciar os encontros de acordo com meus princípios, buscando resgatar nos pacientes a condição de seres humanos criadores. Desde então, essa intervenção, que denomino Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel, acontece em grupo, sendo este aberto(b) e formado no máximo por dez pacientes de ambos os sexos e na faixa etária compreendida entre quarenta e setenta anos. Até 2012, todos os participantes apresentavam deficiências físicas, em sua maioria adquirida e decorrente de diferentes etiologias, como: acidente vascular encefálico, aneurismas ou lesão medular devido a traumas. Atualmente, o enquadre permanece o mesmo, porém o grupo é composto exclusivamente por participantes idosos, com ou sem deficiências físicas. A oficina terapêutica que apresento neste relato, a primeira de uma série que venho realizando na mesma instituição, ocorria uma vez por semana, com uma hora e meia de duração. A atividade que propus foi o mosaico de papel. O principal critério para escolha da atividade foi minha afinidade, experiência e confiança no potencial transformador do material. Penso que, independentemente dos contextos ou objetivos terapêuticos, a escolha inicial por um material e/ou atividade não está só relacionada a uma técnica, pois não existem pacientes iguais ou terapeutas iguais. Envolve, sempre, a apresentação de modos de ser do terapeuta - sua pessoa, sua história, sua vivência com o material e/ou atividade, as teorias que o acompanham, sua atitude de cuidar e a capacidade de considerar as necessidades fundamentais dos pacientes. Os papéis coloridos foram apresentados aos participantes do grupo, junto com um convite para que, a partir de suas histórias de vida, criassem uma figura sobre o suporte - uma folha de papel Kraft de 1,20m X 0,90m com uma linha traçada em seu sentido longitudinal, que denomino linha do horizonte. A imagem com mosaico de papel foi criada e confeccionada coletivamente, com todos os pacientes acomodados ao redor de uma mesa, tendo o papel Kraft ao centro. Cada um contribuiu para construção do painel de mosaico de acordo com sua possibilidade e disponibilidade. Assim, existem alguns pacientes que podem cortar e colar papéis, outros podem pintar ou cortar e há também aqueles que podem narrar o que está sendo construído pelo grupo. O objetivo inicial do atendimento foi propiciar um ambiente favorável à comunicação, ao relacionamento entre as pessoas do grupo e entre estes e a terapeuta, ao acolhimento das diversas formas de expressão, ao alívio do sofrimento e ao desenvolvimento da capacidade de brincar. Posso dizer que a Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel, além de cumprir com os objetivos, surpreendeu-me ao revelar uma qualidade de potencial terapêutico que justifica ser seriamente pensado e recriado em diferentes contextos, pois responde a algumas necessidades que vêm sendo delineadas e encontradas na clínica contemporânea da terapia ocupacional. 434

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(b)

O grupo aberto não tem prazo para término e permite que dele entrem e saiam pessoas a qualquer momento do desenvolvimento da proposta.


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Ponto de encontro Walter Benjamin6, refletindo sobre a narrativa, diz que é uma forma artesanal de comunicação sendo sua matéria prima a experiência. Sendo o vivido sua matéria prima, a narrativa coloca todos nós na posição de donos de um saber originado na própria experiência. A natureza viva das narrativas permite, a cada leitura, a atualização da experiência, pois possibilita a reflexão, o desvelamento de novos sentidos e a construção continuada do conhecimento sobre o vivido narrado. Sendo assim, lanço mão das narrativas para registrar os encontros clínicos. Ao escrever, reflito sobre meu trabalho, o paciente e/ou grupo e as experiências alcançadas. Elas são elaboradas em momento posterior às sessões, com base nas lembranças dos encontros terapêuticos. Nesta experiência, a narrativa foi realizada após a finalização da construção do painel. Trago aqui, então, o relato da construção do primeiro quadro da Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel: Fui chamada para entreter um grupo de pessoas adultas, descrito assim: deficientes físicos, desvitalizados, que passavam o dia “desocupados e entediados”. Atendo o chamado. Vou para a instituição acompanhada da fé no ser humano, de meus princípios, de alguns conceitos e preconceitos e, também, de papéis coloridos e cola. Na minha imaginação, as limitações físicas seriam grandes obstáculos, fato que logo se transformou, pois encontrei pessoas vivas que queriam conversar, contar suas histórias - seu passado, seu presente e, quem sabe, desenhar seu futuro. Queriam atenção, necessitavam de tempo e disponibilidade afetiva. Nesse primeiro encontro, dentro de mim, proponho-me a viver com esse grupo uma experiência no tempo que ele demandasse. Iniciamos nosso primeiro encontro conversando sobre nossas origens: nosso nome, onde nascemos, como éramos chamados, como vivíamos, do que brincávamos, o que cantávamos, “causos” que ouvíamos e tudo mais que viesse à tona. Em meio a um turbilhão de falas e memórias, abriu-se no grupo a possibilidade de apresentação e compartilhamento dos seus diferentes universos e também dos seus pontos em comum, sendo a vivência da roça, do campo, partilhada pela maioria. A partir desse lugar, dessa marca em comum, definimos o tema da paisagem a ser coletivamente construída, usando o mosaico de papel: um campo. O grupo estava desconfiado, porém entusiasmado, e após esclarecimento sobre o que é um mosaico de papel e como seriam nossos encontros, iniciamos o trabalho: picar papéis e colá-los no suporte, um papel Kraft grande, que ocupava praticamente toda a mesa, com uma linha desenhada a qual chamo de linha do horizonte. Durante a construção do céu e do chão, o fundo da nossa paisagem, um grupo esperançoso, embora muito hesitante, emerge e, surpreendido pela experiência brincante, arrisca-se e faz, possibilitando-me vislumbrar seu potencial criador através da dimensão lúdica alcançada. O céu e o chão da nossa paisagem vão aparecendo, e junto com eles a confiança na terapeuta e as dificuldades de realização. Impôs-se, em nossos encontros, a doença, o limite, o corpo impedido e estranho, a vida tragicamente interrompida. Porém, a plasticidade característica do mosaico de papel permite adequar os fazeres com as disponibilidades, possibilidades e limites do grupo, favorecendo as relações, criando um clima de cumplicidade e coesão entre os participantes e garantindo a continuidade da oficina. Concluímos o fundo e junto surgiu a questão: quais figuras vão compor esse fundo? O que habitará essa paisagem? O momento é de pôr vida no lugar, de colar as figuras no fundo.Assim, cada pessoa escolhe um animal para colocar no quadro. Depois dessas escolhas, me dei conta da aproximação existente entre o animal e o paciente que o elegeu. Sendo assim, vou usar os animais escolhidos para representar e apresentar cada paciente do grupo:

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O Cavalo – o paciente viajante. Não pode rasgar, colar e nem se locomover. Imagina e fala com e pelo grupo, há diferenças no seu nível sociocultural, escreve no computador e, além de enriquecer o grupo com suas colocações, “topa” escrever uma narrativa dos nossos encontros, vamos ver... O Pavão – a paciente vaidosa. Fala sem parar, diz que sua mão ficou “boba”(c). Aceita minha ajuda para colar os papéis e acolhe, durante o grupo, minhas interferências em seu monólogo, abre sua fala para um diálogo: olha para o grupo, escuta. O Passarinho – a paciente delicada. Fala muito pouco, não tem autonomia para se locomover. Mostra lindos olhos azuis e um sorriso tímido que me encantam. Tem uma fala mansa, baixinha, difícil de entender, mas, tímida, rasga e cola o papel no suporte com autonomia – marca sua presença naquele espaço à sua maneira: silenciosa, delicada e livre. A Arara – a paciente barulhenta. Lembra-se e fala de sua história, conta “causos” e canta: “Saudades, palavra triste...”. Fala de seu passado: boa filha dedicada, agora solteira e solitária. Revela-se brincalhona, participativa, acolhe as ideias do grupo, rasga e cola os papéis com autonomia. Surpreende-se e encanta-se com a paisagem colorida que vai sendo construída. Ranzinza, afasta-se temporariamente do grupo. A Onça Pintada – o paciente hábil. De nome difícil de lembrar, também tem mão boba. Alegre, pedreiro com muito orgulho, habilidoso e caprichoso “assentador” de papéis. Vejo-o assentando tijolos enquanto cola papéis. O Elefante – a paciente densa. Curiosa, desconfiada, subjetivamente pesada, tem autonomia, mas sem andar. Por necessidade e empatia – creio eu – topou de imediato a experiência, ajuda-me muito com sua atitude colaborativa, com suas conversas. Mineira, olha-me pelo canto dos olhos, a sensação que tenho é de que ela vê tudo; companheira. A Arara também – a paciente viva. Não pode tocar em nada, tudo dói. Conta para o grupo sua história de amor e movimento – esposa de um caminhoneiro, vivia com ele pelas estradas da vida. Surpreendente, denuncia: “um dia acordei assim, com um corpo que não é o meu!” Presença viva e espontânea no grupo – sofre. E eu, passarinho também. Passarinha sutil, zelosa e atenta às necessidades do grupo. Alimenta-o em doses diminutas, acredita no potencial do grupo para alçar voos. Apresentado o grupo, continuo nossa história. Iniciamos pelas árvores. Olhamos nosso trabalho de perto, contemplamos de longe, conversamos sobre nossas árvores preferidas, observamos atentamente um quadro do Monet da parede da nossa sala, falamos sobre a paisagem do campo que estamos construindo e escolhemos o lugar das árvores: as grandes nas pontas e as pequenas no centro. Meu sentimento era de tensão, atravessávamos um momento de risco? A arara, a paciente barulhenta, não quer mais participar. Serão ressonâncias da lucidez a respeito da precariedade da vida? Será o momento – colar figuras no fundo? Será um mal estar geral da convivência em grupo? Não sei. Sentia-me inteiramente comprometida com nossa experiência; juntos, experimentávamos a visita da ansiedade e da angústia. As árvores que fizemos e colamos nesse dia não sobreviveram - não satisfizeram o grupo e foram retiradas do mosaico no encontro seguinte.

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(c) “Mão boba” – termo de senso comum usado no grupo para se referir à sequela física adquirida em um dos membros superiores.


Questiono (comigo mesma) se colar as árvores naquele momento não estava a serviço de remendar o que vivíamos: nossa imersão nas dúvidas quanto à qualidade de nossos vínculos e, consequentemente, quanto à confiança na continuidade da experiência. Sendo assim, como colar a figura? Como aparecer no grupo? Como prosseguir? A partir daqui, o universo de vivências desse grupo passa a ser compartilhado durante as colagens: as dificuldades com escaras, e o paciente que necessitou amputar suas pernas porque não cuidou delas. As infecções urinárias, e a paciente que foi hospitalizada. A dificuldade de enxergar e de ir ao oculista. A raiva e a dor de, um dia, repentinamente, acordar com um corpo que não reconhece como seu e que não responde à sua vontade – acordar sem entrever a liberdade. A minha abertura e disponibilidade verdadeiras para estar com o grupo, somadas à continuidade dos nossos encontros, possibilitaram a explicitação, cada vez mais profunda e intensa, das suas questões: a vida interrompida, a discriminação e exclusão social, a submissão e invasão pelo outro, a falta de sentido para a fatalidade, o potencial precocemente morto, a solidão. Dessa vez, compartilhando as sofridas experiências humanas, encontramos solução para tronco, folhas e flores da nossa paisagem, que agradou a todos. As árvores sobreviveram e nós também! Nesse momento, aparece no grupo a valorização do nosso processo, a surpresa com a paisagem que vem sendo construída e o pedido de fazer a colagem nos dias em que não estou na instituição. Acolho o pedido, deixo os materiais com a enfermagem. Estamos chegando ao fim: as árvores na paisagem estão praticamente prontas, resta colar os animais escolhidos. A arara, a paciente barulhenta, visita o grupo, admira-se e surpreende-se com a paisagem, retoma entusiasmada a atividade. O grupo, paradoxalmente, parece não finalizar, surgem novas ideias. Pergunto-me: estamos adiando o fim? Será um novo projeto? Estamos nos aprontando para irmos embora? Colamos os animais, cada paciente escolhe um lugar para o seu. Reflito e falo para o grupo sobre a importância de enriquecermos nossa paisagem com animais, seres de movimento que inspiram liberdade, e como foi rico imaginar o que tinham para contar do lugar a partir do qual podiam olhar e interagir com a paisagem criada. Solitária, olho para o quadro e lembro-me do artista Milton Dacosta, da sua obra intitulada “Roda”7 . Um paciente brinca, com seu olhar e imaginação, de encontrar pessoinhas e outras figuras nos pedacinhos de papel que compõem nossa paisagem e acaba por lamentar a ausência de pessoas, expressando o desejo de incluí-las no mosaico. Com essa fala, sinto-me autorizada a apresentar para o grupo a “Roda”. Na sessão seguinte, trago a imagem. Todos gostam, brincam, lembram-se de suas cirandas. A figura é recortada e colada, acrescentamos mais dois meninos e, assim, todos do grupo estão lá humanizados – a vida, a brincadeira instala-se em nosso encontro. Último dia, celebramos o fim. Entrego para cada paciente um cartão postal com a imagem do nosso mosaico, o título da nossa obra é colocado – “Um lugar, O Campo”. Chegamos ao fim: “Fazer um fim é fazer um começo”, como disse Elliot8 (p.153), o poeta. As ideias que me animam agora são aberturas para novos projetos com esse grupo.


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Ponto final? “o barro toma a forma que você quiser você nem sabe estar fazendo apenas o que o barro quer”8 (p. 107) De fato, essa experiência abriu novos mundos para a minha experiência – a respeito da clínica, dos sofrimentos e condições existenciais experimentadas pelas pessoas com deficiência - e para o grupo – no alcance de novos fazeres, de novas posições diante do outro, de algum acesso e convívio com a comunidade. Na clínica, uma das situações que se abriu para minha reflexão e aprofundamento foi a apresentação e uso dos materiais. Como contei antes, me apresentei ao grupo com os papéis coloridos e cola, material e terapeuta juntos, à disposição dos pacientes, para acolher e testemunhar seus gestos criativos, seus processos singulares de criação, de retomada do potencial criativo, do processo de ativação da saúde. Safra9 fala sobre a relação profunda entre o ser humano e a materialidade, destacando que os materiais esperam a ação humana, com sua criatividade, para ganhar significado. Nessa condição, estão abertos para receber o gesto e tornarem-se narradores do trabalho para as gerações futuras. Quando o material é reduzido à sua funcionalidade ou à sua estética, ele se torna impessoal, perde seu estatuto, não veicula mensagens, objetifica-se, adoece o ser humano. Sendo assim, na situação clínica, o material que traz a marca do convívio com o terapeuta carrega sentidos e significações, auxilia no cuidado do sofrimento humano. Considerando que o material carrega marcas do terapeuta, destaco a necessidade de refletirmos sobre a importância da constância do material e da atividade, oferecidos pelo terapeuta ao paciente, dentro do enquadre clínico de um processo terapêutico, o que nem sempre observamos nas salas de atendimento da terapia ocupacional. A experiência que abordo aqui usa o mosaico de papel desde seu início, em 2005, sendo que a diversificação e ampliação do uso dos materiais aconteceram, ao longo do tempo, sempre a partir do reconhecimento de uma demanda dos pacientes assentada no desejo de melhorar a expressão plástica da atividade em realização. Conhecido de todos nós, o mosaico de papel ganhou sentido singular para esse grupo. Passou a ser metáfora de sua experiência - tanto os papéis são rasgados e encontram, através do grupo, novas formas quanto essas pessoas foram interrompidas na continuidade de suas vidas e criam/encontram, no uso dos papéis, novas maneiras de ser, de fazer e de estar no mundo. O grupo se deu um nome – Coletivo Mosaico de Nós. Penso que o enquadre terapêutico é composto por aspectos objetivos, tais como o material, a atividade, as características do grupo e, nesse caso, da instituição, como também de aspectos subjetivos representados pela presença autêntica do terapeuta. A constância do enquadre, somada a sustentação, ao longo do tempo, da experiência de encontro inter-humano e de criação é que permite o estabelecimento de um vínculo de confiança, o vislumbre da esperança e da condição da capacidade de brincar. É nessa experiência de confiança e estabilidade que surge um coletivo, que, na sua ação sobre a materialidade, articula as histórias vividas a momentos criativos, descobre modos próprios e diversos de fazer e de comunicar, brincar e imaginar10. Arrisca-se e põe em marcha seu desenvolvimento, sua continuidade de ser.

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criação Winnicott11 diz que brincar é fazer alguma coisa em algum lugar e que isto leva tempo. Estamos nessa brincadeira há nove anos. Na sala de atendimento, tudo é possível e transformável. Mundos são imaginados, criados e construídos, sempre atravessados pela vida além da sala – lembranças, amores, dores, histórias, encontros e desencontros; tudo anima nossas sessões. Fora da sala de atendimento, o mundo compartilhado. Os encontros terapêuticos possibilitaram a construção de um acervo de catorze painéis de mosaico de papel e o blog12: mosaicosdenos.blogspot.com.br. Este acervo imprimiu transformações nas vidas dos participantes, pois abriu condição tanto para geração de renda (através de venda de postais e calendário) como para a participação na vida cultural, a partir das exposições dos painéis construídos em espaços públicos da cidade. Expor seus painéis deu ao grupo visibilidade social, acesso à vida cultural, restaurou a dignidade dos pacientes a partir do fato de poderem mostrar à comunidade produtos de sua capacidade criadora. O Blog permitiu uma conversa entre o coletivo e a comunidade. Instala-se um lugar uma posição a partir da qual se opera. Para finalizar, digo que essa experiência também inaugurou um lugar para esta terapeuta, o trânsito com seus pacientes pelo mundo de dentro e de fora, na interface da Arte e Produção da Saúde, levando seus princípios em qualquer contexto de trabalho.

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CRIAÇÃO

Ponto de apoio 1. Machado R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: Difusão Cultural do Livro; 2004. 2. Larousse Cultural. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural; 1992. 3. Gil G. Lugar comum. Gilberto Gil ao Vivo. [CD] São Paulo: Universal; 1974. 4. Winnicott DW. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes; 1996. 5. Martins A. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde. Interface (Botucatu). 2004; 8(14):21-32. 6. Benjamin W. O narrador: observações sobre a obra de Nikolai Leskow (1936). In: Benjamin W, editor. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense; 1985. p. 197-221. (Obras Escolhidas, v .1) 7. Dacosta M. Roda [óleo sobre tela]. In: Jordão VP, organizador. A imagem da criança na pintura brasileira. Rio de Janeiro: Salamandra Consultoria Editorial S/A; 1979. p. 70-3. 8. Eliot TS. Little gidding. In: Safra G, organizador. A face estática do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco Editora; 1996. p. 153-6. 9. Leminsky,P. Toda poesia. São Paulo: Schwarcz; 2013. 10. Safra G. A Po-Ética na clínica contemporânea. Aparecida: Editora Ideas e Letras; 2004. 11. Castro ED, Lima EMFA. Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):365-76. 12. Winnicott DW. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes; 1996. 13. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975. 14. Corrêa MCMR. Mosaico Mapas de Nós. Mosaico de Nós Blogspot [Internet]; 2012 [acesso 2014 Abr 25]. Disponível em: http://mosaicosdenos.blogspot.com.br/

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criação

Este artigo versa sobre uma experiência clínica denominada Oficina Terapêutica de Mosaico de Papel, concebida para atendimento grupal de pessoas com deficiência física, em situação de exclusão e vulnerabilidade social. Esta intervenção, ainda em curso, ocorre no âmbito da Terapia Ocupacional, orientando-se no pensamento psicanalítico, sobretudo em Winnicott. O artigo discute os temas: escolha e uso dos materiais na terapia ocupacional, análise do potencial terapêutico e alcance deste enquadre clínico. Aproxima-se destas questões por meio da narrativa da construção coletiva do primeiro quadro da oficina. Os encontros abriram novas dimensões da experiência da clínica e das condições existenciais e dos sofrimentos experimentados pelos participantes. A efetividade terapêutica dessa intervenção, que transita na interface entre arte e produção de saúde, mostra-se pela possibilidade de novos fazeres, de novos papéis diante do outro, de participar mais de perto da vida comunitária.

Palavras-chave: Terapia Ocupacional. Oficina Terapêutica. Arte. Produção de Saúde.

Paper Mosaic Therapeutic Workshop: the place of materiality in the field of Occupational Therapy This paper examines a clinical intervention model, Paper Mosaic Therapeutic Workshop, developed to assist people with physical disability and experiencing exclusion and social vulnerability. This ongoing intervention belongs to the field of occupational therapy and is based on psychoanalytical theory, specifically that of Donald Winnicott. The choice and use of materials in occupational therapy and analysis of the therapeutic potential and reach of this intervention are discussed. These topics are approached through a narrative of the collective construction of the first workshop paper mosaic. The group meetings opened new dimensions regarding clinical experience and existential conditions and suffering experienced by the participants. The therapeutic effectiveness of this intervention, operating in the interface between art and health production, was confirmed by the acquisition of new abilities and roles in relation to others, and closer participation in community life.

Keywords: Occupational Therapy. Therapeutic Workshop. Art. Production of health.

Taller Terapéutico de Mosaico de Papel: el lugar de la materialidad en el campo de la Terapia Ocupacional Este artículo versa sobre una experiencia clínica: el Taller Terapéutico de Mosaico de Papel para la atención grupal de personas con discapacidad física en situación de exclusión y vulnerabilidad social. Esta práctica transcurre como Terapia Ocupacional y se orienta según el pensamiento psicoanalítico, basándose en Donald Winnicott. Se abordan estos temas: elección y uso de los materiales en terapia ocupacional, análisis del potencial terapéutico y alcance del encuadre clínico. Se efectúa una aproximación a través del relato de la construcción colectiva del primer cuadro en el taller. Los encuentros abrieron nuevos mundos en la clínica en relación con los sufrimientos de los participantes y sus condiciones existenciales. El alcance de nuevos quehaceres, nuevas posturas frente al otro, un cierto acceso y la convivencia con la comunidad muestra la eficacia terapéutica de esta propuesta situada en la interfaz arte-producción de salud.

Palabras clave: Terapia Ocupacional. Taller terapêutico. Arte. Producción de salud.

Recebido em 12/05/14. Aprovado em 14/05/14.

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INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. FORMA E PREPARAÇÃO DE MANUSCRITOS SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras).

SUBMISSÃO DE MANUSCRITOS Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema. Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 15 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área, indicando o número do processo e a instituição. Em texto com dois autores ou mais também devem ser especificadas as responsabilidades individuais de todos os autores na preparação do mesmo. O autor também deverá responder às seguintes perguntas: 1 No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na literatura nacional e internacional. 2 Caso o seu manuscrito se utilize de dados, que no todo ou em parte subsidiaram outras publicações de artigos e/ou capítulos de livros, liste tais publicações e informe no que o presente texto difere das demais. 3 A seu critério, indique dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho. Caso julgue necessário informe sobre pesquisadores com os quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo. CITAÇÕES E REFERÊNCIAS A partir de 2014, a revista Interface passa a adotar as normas Vancouver como estilo para as citações e referências de seus manuscritos. CITAÇÕES NO TEXTO

Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros e excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS

As citações devem ser numeradas de forma consecutiva, de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas no texto. Devem ser identificadas por números arábicos sobrescritos . Exemplo: Segundo Teixeira1,4,10-15

instruções aos autores

PROJETO E POLÍTICA EDITORIAL


instruções aos autores

Nota importante: as notas de rodapé passam a ser identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Casos específicos de citação: a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da expressão et al. b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original, substituílas pelo apóstrofo ou aspas simples. Exemplo: “Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se, em grande parte, nas normas de estilo da American National Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1 c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo à esquerda. Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. Exemplo: Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors - ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos – Estilo Vancouver 2. REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem numérica, seguindo as normas gerais do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) – http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). As referências são alinhadas somente à margem esquerda e de forma a se identificar o documento, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo. A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser uniforme para todas as referências. EXEMPLOS: LIVRO Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Exemplo: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. * Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Sem indicação do número de páginas. Nota: Autor é uma entidade: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001.

Séries e coleções: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1).

CAPÍTULO DE LIVRO Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s) autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página inicial-final do capítulo Nota: Autor do livro igual ao autor do capítulo: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. Autor do livro diferente do autor do capítulo: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. *

Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo. ARTIGO EM PERIÓDICO Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico abreviado. Ano de publicação; volume (número/ suplemento):página inicial-final do artigo. Exemplos: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. *

até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do artigo. DISSERTAÇÃO E TESE Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho. Exemplos: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em Botucatu-SP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In: editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Página inicial-final.


*

Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico: Disponível em: http://www...... DOCUMENTO LEGAL Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação (cidade e data da publicação). Exemplos: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

DOCUMENTO ELETRÔNICO Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora; data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:” Com paginação: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun 1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/ science.html. Sem paginação: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/ Wawatch.htmArticle *

Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990.

Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre).

*

Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.

Outros exemplos podem ser encontrados em http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html

RESENHA Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es). Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final. Exemplo: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21.

ILUSTRAÇÕES Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw).

ARTIGO EM JORNAL Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data; Seção: página (coluna). Exemplo: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3.

Nota: No caso de textos enviados para a seção de Criação, as imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm.

CARTA AO EDITOR Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal. Exemplo: Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. ENTREVISTA PUBLICADA Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a entrada é sempre pelo entrevistado. Exemplo: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é sempre pelo entrevistador. Exemplo: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27.

As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/

instructions for authors

Exemplo: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out 30]. Disponível em: www.google.com.br


instructions for authors

PROJECT AND EDITORIAL POLICY

SUBMITING ORIGINALS

INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo)

INTERFACE - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for publication. Translations of texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters).

All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below.

FORM AND PREPARATION OF MANUSCRIPTS SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Note: In case of counting the text words, the tables with text are included and the title, the abstract and the keywords are excluded.

The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 15 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes: These should be identified using lower-case superscript letters, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. NOTE: during the submission process the author needs to indicate whether the text is unpublished, whether it was the result of a grant, whether it results from a master’s thesis or doctoral dissertation, whether there are any conflicts of interest involved and, in case of research with humans, whether it was approved by an Ethics Committee in its field, specifying the process number. In articles with two authors or more, the individual contributions to the preparation of the text must be specified. The author also must answer the following questions: 1 What your text adds to what has already been published in the national and international literature. 2 If your manuscript uses data, which have subsidized totally or partially other publications of papers and/or book chapters, please list these publications and inform in what aspect(s) the present text is different from the others. 3 Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider necessary, inform about researchers with whom there may be conflicts of interest concerning your paper. CITATIONS AND REFERENCES Starting in 2014, the journal Interface is changing over to the Vancouver standard as the style to use for citations and references in manuscripts submitted. CITATIONS IN THE TEXT Citations should be numbered consecutively, according to the order in which they are presented in the text. They should be identified using Arabic numerals as superscripts.


Example: According to Teixeira1,4,10-15 Important note: Footnotes will now be identified by means of lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. Specific cases of citations: a) Reference with more than two authors: in the body of the text, only the name of the first author should be cited, followed by the expression “et al.” b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph between quotation marks (“xx”). If the citation already came in quotation marks in the original text, replace them with single quotation marks (‘xx’). Example: “The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely based on the style standards of the American National 1 Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.” c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset from the text (with a one-line space before and after it), with a 4 cm indentation on the left side. Note: To indicate fragmentation of the citation use square brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when we reread the manuscript, but nothing could be done [...]. Example: This meeting has expanded and evolved into the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), and has established the Uniform Requirements for Manuscripts Presented to Biomedical Journals: the Vancouver Style 2. REFERENCES All the authors cited in the text should appear among the references listed at the end of the manuscript, in numerical order, following the general standards of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (http://www.icmje.org). The names of the journals should be abbreviated in accordance with the style used in Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). The references should be aligned only with the left margin and, so as to identify the document, with single spacing and separated from each other by a double space. The punctuation should follow the international standards and should be uniform for all the references. EXAMPLES: BOOK Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of the edition). City of publication: Publishing house; Year of publication. Example: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. * Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** Without indicating the number of pages. Note: If the author is an entity: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. In the case of series and collections: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1).

BOOK CHAPTER Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number). City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page of the chapter. Note: If the author of the book is the same as the author of the chapter: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. If the author of the book is different from the author of the chapter: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. *

Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the chapter, at the end of the reference. ARTICLE IN JOURNAL Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated title of the journal. Date of publication; volume (number/ supplement): first-last page of the article. Examples: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. *

Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the article, at the end of the reference. DISSERTATION AND THESIS Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it was presented; year when study was defended. Examples: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT Author(s) of the study. Title of the study presented. In: editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of the event; city and country of the event. City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page.


Example: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30, 2013]. Available from: www.google.com.br * When the study has been consulted online, mention the data of access (abbreviated month and day followed by comma, year) and the electronic address: Available from: http://www...... LEGAL DOCUMENT Title of the law (or bill of law, or code...), publication data (city and date of publication). Examples: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990.

Example: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. ELECTRONIC DOCUMENT Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing house; date of publication [date of access with the expression “accessed”]. Address of the website with the expression “Available from:” With page numbering: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20, 1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/ science.html Without page numbering: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/ june/Wawatch.htmArticle * The authors should check whether the electronic addresses (URLs) cited in the text are still active.

*

This follows the standards recommended in NBR 6023 of the Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard adapted to the Vancouver Style.

REVIEW Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s). Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page. Example: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTICLE IN NEWSPAPER Author of the article. Title of the article. Name of the newspaper. Date; Section: page (column). Example: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. LETTER TO EDITOR Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page. Example: Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. PUBLISHED INTERVIEW When the interview consists of questions and answers, the entry is always according to the interviewee. Example: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. When the interviewer transcribes the interview, the entry is always according to the interviewer.

Note: If the reference includes the DOI, this should be maintained. Only in this case (when the citation was taken from SciELO, the DOI always comes with it; in other cases, not always). Other examples can be found at http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html ILLUSTRATIONS: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will be submitted to a preliminary evaluation by the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed by peers (two reviewers at least). It will be returned to the author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/


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OS ARQUIVOS FREUD Mikkel Borch Jacobsen e Sonu Shamdasani Uma análise abrangente sobre quem realmente teria sido Freud e sobre a real importância de sua produção intelectual. ŽŶƐĐŝĞŶƚĞŵĞŶƚĞ ĐŽŶƚƌŽǀĞƌƐŽ͕ ŽƐ ĂƵƚŽƌĞƐ ƋƵĞƐƟŽŶĂŵ Ž ƐŝŐŝůŽ dos principais escritos de Freud e acreditam que estes documentos, na verdade, demonstrariam que a psicanálise é indefensável.

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Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br Textos completos em . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

Publicação interdisciplinar dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas.


APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EM

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . Coleção SciELO Brasil/Coleção SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com> TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br


Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.

EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Eunice Nakamura, Unifesp Margareth Santini de Almeida, Unesp Túlio Batista Franco, UFF Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação

PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Cintia Ribas, Enfance Mariângela Quarentei, Unesp Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/ Editoración electrónica Adriana Ribeiro

EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Denise Martin Covielo, Unifesp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Scaglione Quarentei, Unesp Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Cintia Ribas, Enfance Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP

PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/ Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Auxiliar administrativo/Administrative assistant/ Ayudante administrativo Nieli de Lima Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) María Carbajal (Espanhol/Spanish/Español) Web design Tortagade Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Renato Antunes Ribeiro Jornalismo científico/Scientific jornalism/Jornalismo cientifico Felipe Modenese

Capa/Cover/Portada: Na Cidade, foto de Claudia Pereira Martins Ribeiro, 2009



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