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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Margareth Santini de Almeida, Unesp Túlio Batista Franco, UFF Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Eunice Nakamura, Unifesp Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Márcia Thereza Couto Falcão, USP Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Quarentei Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Renata Monteiro Buelau, USP

Capa/Cover/Portada: Foto de Carlos Vilalba, 2012

P ES M FA

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Antonio Fausto Neto, Unisinos António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elen Rose Lodeiro Castanheira, Unesp Eliane Dias de Castro, USP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Jairnilson da Silva Paim, UFBa José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luciana Kind do Nascimento, PUC/MG Luis Behares,Universidad de la Republica Uruguaia Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Mara Regina Lemes de Sordi, Unicamp Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS/OMS, Argentina Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilia Freitas de Campos Tozoni Reis, Unesp Marina Peduzzi, USP Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Nildo Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Passos Nogueira, IPEA, DF Roger Ruiz-Moral, Universidade de Córdoba, Espanha Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Simone Mainieri Paulon, UFRGS Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Vânia Moreno, Unesp PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Mariângela Quarentei, Unesp Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro


ISSN 1807-5762

Juliana Araújo, 2012

SAÚDE DA FAMÍLIA

DO R E D SAÚ LHADO BA TRA

RACISMO

CORPO CULT U E SA RA ÚDE

FORMAÇÃO DOCENTE EM SAÚDE

CAMPO

EDUCAÇÃO NUTRICIONAL

EDUCAÇÃO

EPISTEMOLOGIA

SAÚDE

HABITUS

CURRÍCULO

NÃO -CU IDADO

PESQUISA-AÇÃO

BIOÉTICA

E AD D I AL R G TE N I HOMEOPATIA DE IDA L I B ERA N CUIDADO L VU

FORMAÇÃO INTERPROFISSIONAL

METODOLOGIA QUALITATIVA SEXUALIDADE

VÍNCULO

ATENÇÃO PRIMÁRIA

CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE

SAÚDE MENTAL

COMUNICAÇÃO

BIOSSOCIABILIDADE

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.45, abr./jun. 2013


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, v.17, n.45, abr./jun. 2013 Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

educação

v.17, n.45, abr./jun. 2013 ISSN 1807-5762

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apresentação artigos

263 Interpretação e validação científica em pesquisa qualitativa

393 Tocar: atenção ao vínculo no ambiente hospitalar Maria Martha Duque de Moura; Maria Beatriz Lisbôa Guimarães; Madel Luz

405 “Largada sozinha, mas tudo bem”: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil

Monique França Carneiro; Jorge Alberto Bernstein Iriart; Greice Maria de Souza Menezes

Tiago Correia

275 Ética do cuidado: a brinquedoteca como espaço de atenção a crianças em situação de vulnerabilidade Andrea Perosa Saigh Jurdi; Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian

287 Apoio matricial em saúde mental na atenção primária à saúde: uma análise da produção científica e documental

419 “Armários de vidro” e “corpos-sem-cabeça” na biossociabilidade gay online Luiz Felipe Zago

433 Itinerários terapêuticos de sujeitos com problemáticas decorrentes do uso prejudicial de álcool

Ana Lucia Marinho Marques; Elisabete Ferreira Mângia

Iris Guilherme Bonfim; Evelyne Nunes Ervedosa Bastos; Cezar Wagner de Lima Góis; Luis Fernando Tófoli

301 Pesquisa-ação: proposição metodológica para o planejamento das ações nos serviços de atenção primária no contexto da saúde ambiental e da saúde do trabalhador

Vanira Matos Pessoa; Raquel Maria Rigotto; Carlos André Moura Arruda; Maria de Fátima Antero Sousa Machado; Márcia Maria Tavares Machado; Maria das Graças Viana Bezerra

315 A consulta homeopática: examinando seu efeito em pacientes da atenção básica Sandra Abrahão Chaim Salles; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

327 O trabalho multiprofissional na Estratégia Saúde da Família: estudo sobre modalidades de equipes Renata Cristina Arthou Pereira; Francisco Javier Uribe Rivera; Elizabeth Artmann

341 Identificação racial e a produção da informação em saúde

espaço aberto 445 Um agente na construção do habitus das ciências sociais na saúde coletiva Everardo Duarte Nunes

453 Bioética-Sociobiologia. Neologismos oportunos? Interface da tecnociência com as ciências humanas e sociais William Saad Hossne

463 O acesso de homens a diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis na perspectiva multidimensional e relacional da vulnerabilidade Neide Emy Kurokawa e Silva; Leyla Gomes Sancho

473 Era uma vez... Um olhar sobre o uso dos contos de fada como ferramenta de educação alimentar e nutricional Claudia Ridel Juzwiak

485

livros

489

teses

371 Pensando extensão universitária como campo de formação em saúde: uma experiência na Universidade Federal Fluminense, Brasil

493

cartas

385 Teaching at primary healthcare services within the Brazilian National Health System (SUS) in Brazilian healthcare professionals’ training

497 Habitando uma vitrine-membrana: entre dentro e fora

Andreia Beatriz Silva dos Santos; Thereza Christina Bahia Coelho; Edna Maria de Araújo

357 Experiência, produção de conhecimento e formação em saúde

Angela Aparecida Capozzolo; Jaquelina Maira Imbrizi; Flávia Liberman; Rosilda Mendes

Antonio Fernando Lyra da Silva; Carlos Dimas Martins Ribeiro; Aluísio Gomes da Silva Júnior

Ramona Fernanda Ceriotti Toassi; Alexandre Baumgarten; Cristine Maria Warmling; Eloá Rossoni; Arisson Rocha da Rosa; Sonia Maria Blauth Slavutzky

criação Juliana Araújo Silva; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima


comunicação

saúde

educação

v.17, n.45, abr./jun. 2013 ISSN 1807-5762

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presentation articles

263 Interpretation and scientific validation in qualitative research

393 Touch: attention to the bounds In the hospital setting Maria Martha Duque de Moura; Maria Beatriz Lisbôa Guimarães; Madel Luz

405 “Left alone, but that’s okay”: paradoxes of the experience of women hospitalized due to induced abortion in Salvador, Bahia, Brazil

Monique França Carneiro; Jorge Alberto Bernstein Iriart; Greice Maria de Souza Menezes

Tiago Correia

275 Ethics of care: the toy library as a space for attention to vulnerable children

Andrea Perosa Saigh Jurdi; Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian

287 Matrix support in mental health in primary halth care: a review of scientific papers and official documents

419 “Glass closets” and “headless bodies” in online gay biosociability Luiz Felipe Zago

433 Therapeutic Itineraries of individuals with problems consequent to harmful use of alcohol

Ana Lucia Marinho Marques; Elisabete Ferreira Mângia

Iris Guilherme Bonfim; Evelyne Nunes Ervedosa Bastos; Cezar Wagner de Lima Góis; Luis Fernando Tófoli

301 Action research:methodological proposal for action planning in primary care services in the context of environmental health and occupational health

Vanira Matos Pessoa; Raquel Maria Rigotto; Carlos André Moura Arruda; Maria de Fátima Antero Sousa Machado; Márcia Maria Tavares Machado; Maria das Graças Viana Bezerra

315 Homeopathic consultation: examining its effect among primary care patients Sandra Abrahão Chaim Salles; José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

327 The multidisciplinary work in the family health strategy: a study on ways of teams

Renata Cristina Arthou Pereira; Francisco Javier Uribe Rivera; Elizabeth Artmann

341 Racial identity and the production of health information

Andreia Beatriz Silva dos Santos; Thereza Christina Bahia Coelho; Edna Maria de Araújo

357 Experience, knowledge production and health education

Angela Aparecida Capozzolo; Jaquelina Maira Imbrizi; Flávia Liberman; Rosilda Mendes

371 Thinking of university extension as a health education field: an experience at the Fluminense Federal University, Brazil

Antonio Fernando Lyra da Silva; Carlos Dimas Martins Ribeiro; Aluísio Gomes da Silva Júnior

385 O ensino nos serviços de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) na formação de profissionais de saúde no Brasil

Ramona Fernanda Ceriotti Toassi; Alexandre Baumgarten; Cristine Maria Warmling; Eloá Rossoni; Arisson Rocha da Rosa; Sonia Maria Blauth Slavutzky

open space 445 An agent in the construction of social sciences habitus in collective health Everardo Duarte Nunes

453 Bioethics–Sociobiology. Opportune neologisms? Interfaces between tecnoscience and human and social sciences William Saad Hossne

463 Men’s health care access to diagnosis and treatment of sexually transmitted diseases in a multidimensional and relational concept of vulnerability Neide Emy Kurokawa e Silva; Leyla Gomes Sancho

473 Once upon a time... An insight on the use of fairy tales as a tool for food and nutrition education Claudia Ridel Juzwiak

485

books

489

theses

493

letters creation

497 Inhabiting a glass-membrane: between inside and outside

Juliana Araújo Silva; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima


apresentação A diversidade de temas e abordagens inerentes ao campo da Saúde Coletiva está presente em mais esta edição (45ª) de Interface. Na seção Artigos, sobressai o conjunto de textos que tem como foco a questão do cuidado e que acrescenta novas perspectivas e aprofundamento da temática. Entre eles, um referente à experiência da formação interprofissional discute como intervenções de cuidado possibilitam o exercício crítico no trabalho em saúde. Já sob o prisma da integralidade, outro artigo apresenta a possibilidade de se estabelecer o vínculo a partir do cuidado profissional técnico e afetivo, como “tocar”, e com isso minimizar o estresse do ambiente hospitalar e interferir positivamente no processo terapêutico. Como contraste, o “não-cuidado” está presente no texto que relata a experiência de mulheres ao vivenciarem atitudes de discriminação pelo aborto. Na perspectiva de dar maior visibilidade aos temas raça/cor e sexualidade, discute-se, em um dos artigos, como as informações a respeito da raça/cor da pele das vítimas de morte violenta enviesam as informações sobre a mortalidade da população negra; e, em outro, a biossociabilidade online dos sites de relacionamento gays e os novos contornos que adquire a metáfora do “armário”. Estão presentes, na seção Espaço Aberto, temas inovadores, como o acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis (DST), e a utilização da literatura infantil como estratégia no campo da Educação Alimentar e Nutricional. Também comparece o tema da Bioética, em uma reflexão sobre a interface entre as culturas científica e humanística. Merece destaque o texto do prof. Everardo Duarte Nunes apresentado em seminário realizado em 2006 por ocasião de sua aposentadoria na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, onde exerceu a docência por quase quarenta anos. Tendo como referencial a noção de campo e habitus de Bourdieu, o prof. Everardo situa a sua contribuição para o campo das Ciências Sociais e da Saúde Coletiva. A seção Criação apresenta um conteúdo instigante, textual e com imagens, que coloca o leitor em contato direto com a experiência de vinte anos de oficinas como espaço de experimentação artística. Propulsionado pelo movimento da luta antimanicomial, tornou-se um espaço de produção de arte e de saúde para todos, independentemente das condições sociais ou de saúde de seus participantes. Resenhas, resumo de teses e uma carta completam a edição. Com mais este número, Interface reafirma seu compromisso de proporcionar um espaço de debate e reflexão, e convida a todos para a leitura. Margareth Aparecida Santini de Almeida Editora de Área COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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presentation

The diversity of topics and approaches inherent to the field of public health is once again present in this edition of Interface (nº 45). A set of texts focusing on the issue of care, which add new perspectives and go more deeply into the subject, stands out in the Articles section. Among these, one article relating to experience of interprofessional training discusses the ways in which care interventions enable critical approaches to healthcare work. From the viewpoint of comprehensiveness, another article presents the possibility of establishing links starting from technical and affective professional care, such as “touching”, and through this, to minimize the stress of the hospital environment and positively influence the therapeutic process. In contrast, o “non-care” is present in the text that reports the experiences of women with regard to discriminatory attitudes to abortion. From the perspective of giving greater visibility to the topics of race/color and sexuality, one of the articles discusses how information on the race/skin color of the victims of violent death places skews the information on mortality among the black population. Another article discusses online biosociability on gay relationship websites and the new shapes that the metaphor of the “closet” is acquiring. Innovative topics are present in the Open Space section, such as men’s access to diagnosis and treatment for sexually transmittable diseases (STDs) and the use of children’s literature as a strategy within the field of dietary and nutritional education. The text by prof. Everardo Duarte Nunes that was presented in a seminar held in 2006, on the occasion of his retirement from the Unicamp School of Medical Sciences, where he had been a teacher for almost forty years, deserves to be highlighted. Taking the reference point of Bourdieu’s notion of habitus and field, prof. Everardo positions his contribution to the fields of social sciences and public health. The issue of Bioethics also is presented, in a reflection on the integration between the scientific and humanistic cultures. The Creation section presents provocative material in text and images that put the reader directly into contact with twenty years of workshop experience of artistic experimentation space. Propelled by the movement against mental hospitals, this place has become a space for art production and healthcare for all, regardless of the participants’ social or health conditions. Reviews, thesis abstracts and a letter complete this edition. Once again, through this edition, Interface reaffirms its commitment to provide a space for debate and reflection and invites everyone to read it. Margareth Aparecida Santini de Almeida Area Editor 262

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v.17, n.45, p.

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artigos

Interpretação e validação científica em pesquisa qualitativa*

Tiago Correia1

CORREIA, T. Interpretation and scientific validation in qualitative research. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.263-74, abr./jun. 2013.

This paper focuses on methodological implications linked to comprehensive and phenomenological epistemology and proposes mechanisms for its scientific validation. To seek in individuals the guiding meaning of their actions (“what I do” and “why I do it”), challenges the scientific practice, namely the conditions for knowledge production and the access to and interactions with individuals. Especially regarding intensive-qualitative methodological strategies, not only researchers are observed as they observe, but also need to know how to deconstruct narratives shielded by common ideas. The solution lies in a methodological articulation involving the capability to equate contextual objective conditions with individuals’ production of meaning of action. In these cases, scientific validation closely links to rationalizing about the conditions of access and stay in the empirical field, as well as about individuals’ production of their discourse, for which we propose strategies to better rationalize and deal with the role of interpretation in scientific praxis.

Discutem-se implicações metodológicas da epistemologia compreensiva e fenomenológica e mecanismos para a sua validação científica. Procurar nos indivíduos os sentidos orientadores da ação (‘o que faço´ e ´por que faço´) dá visibilidade a desafios da prática científica, nomeadamente as condições de produção do conhecimento e o acesso e interações com o objeto de estudo. Especialmente no caso de estratégias metodológicas intensivas, não só o investigador transita para uma interação onde a observação recai, também, sobre si, como tem de saber como desconstruir narrativas blindadas por ideias comuns. A solução reside numa articulação metodológica capaz de associar, à produção individual de sentido da ação, as condições objetivas do contexto. Nestes casos, a validação científica está intimamente ligada à racionalização sobre as condições de acesso e permanência no campo empírico e sobre a produção discursiva, apresentando-se estratégias mais racionalizadas e aptas a lidarem com a interpretação.

Keywords: Interpretation. Epistemology. Qualitative Research. Scientific validation.

Palavras-chave: Interpretação. Epistemologia. Pesquisa qualitativa. Validação científica.

Elaborado com base em Correia (2012). 1 Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Av. das Forças Armadas. Lisboa, Portugal. 1649-026. tiago.correia@iscte.pt *

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INTERPRETAÇÃO E VALIDAÇÃO CIENTÍFICA EM PESQUISA...

Introdução Este artigo reflete sobre as implicações para a validação científica no uso de metodologias qualitativas2. No âmbito da epistemologia compreensiva e fenomenológica que assumem a interpretação como inerente às relações sociais, questões de prática científica têm de ser colocadas, nomeadamente ao nível da produção de conhecimento e interações mantidas com o objeto de estudo. Quer isto dizer que um programa científico que submete a produção de conhecimento ao sujeito conoscente – neste caso, em oposição à herança positivista e hegeliana parcialmente encontrada em Durkheim e Marx – terá implicações de fundo sobre a relação observador e observado. O objeto de estudo assume, assim, um estato que ultrapassa a visão de objeto preso à mera passividade e reprodução não consciente de influências sociais, dando corpo às dimensões inerentes a um sujeito. Sumariamente, as implicações metodológicas que serão debatidas prendem-se com a racionalização que o investigador deve operar sobre: 1) a verdade dos factos que documenta e analisa (verdade factual ou verdade processual); 2) as dinâmicas de interação com o seu objecto de estudo. Esta questão assume uma importância incontornável na construção do conhecimento científico, ainda que habitualmente seja omitida ou ignorada. Se, por um lado, a validação científica, tal como foi definida desde os tempos de Kant ou Galileu, depende de critérios de sistematicidade e operacionalidade que a noção da interpretação e do sujeito podem desafiar; por outro, a maturidade do capital científico sobre metodologias qualitativas e do campo da epistemologia permite encontrar soluções para manter intocáveis aqueles princípios que definem a objectividade científica. Como veremos, a discussão apresentada procura explicitar em que medida a interpretação, além de não constituir essa barreira à cientificidade, pode, em certo sentido, enriquecer a produção de conhecimento científico. No fundo, este texto procura servir como uma base de discussão epistemológica sistematizada e operacionável no uso de metodologias qualitativas à semelhança do que é proposto nos mais diversos manuais de metodologias quantitativas. Sem que se defenda uma construção fechada, padronizada ou apriorística das técnicas qualitativas, enumera-se um conjunto de estratégias com potencialidades heurísticas, ou seja, que podem contribuir para um entendimento generalizado e críticos sobre esses procedimentos.

Algumas considerações sobre a epistemologia em sociologia Recuando à epistemologia kantiana de finais do século XVIII, na base da ciência moderna, a operação científica traduz uma rutura com a observação imediata e direta do mundo conduzida pela abstração racionalizada do real. Tratase da construção de uma outra realidade ordenada por representações gerais e abstratas que dão um outro sentido ao mundo observável mas invisível que se denominou por racionalismo científico (para sínteses vd. Javeau, 1997; Silva, 1988; Silva, Pinto, 1986). À parte de modos diversificados como a condição científica evoluiu no tempo e entre as várias disciplinas, e olhando especificamente para o caso da sociologia, a noção de ciência foi sendo compatibilizada tanto com as visões processualistas (noção de construção), como com a coexistência de diferentes bases epistémicas. Não ignorando outras epistemologias centrais no pensamento sociológico, Durkheim (1968) e Weber (1983) sustentam duas correntes ainda hoje fundamentais neste campo de conhecimento. A génese de ambos os autores 264

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Este texto resulta de uma versão revista e aprofundada de uma comunicação apresentada no V Congresso IberoAmericano de Pesquisa Qualitativa em Saúde, decorrida em outubro de 2012, como produto de uma pesquisa de sociologia médica sobre novas experiências de gestão hospitalar e as consequências para a profissão médica. Deixo um agradecimento aos revisores anónimos pela leitura atenta à versão inicial do manuscrito.

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CORREIA, T.

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artigos

encontra um tronco comum na formulação kantiana que Durkheim desenvolve com elementos do positivismo de Augusto Comte, enquanto Weber faz confluir na sua proposta a crítica positivista e hegeliana, ao considerar o papel do indivíduo como condicionante do próprio conhecimento. Silva (1988, p.131) simplifica a distinção entre ambos ao questionar o ponto de partida da pesquisa social: entre a consciência ou a situação. Enquanto Durkheim reiteraria o segundo, decorrente da existência autónoma e prévia dos factos sociais sobre o comportamento humano, o que põe em evidência a racionalização de uma ordem social anterior e exterior à vontade individual; Weber, por seu lado, reiteraria o primeiro, ao evidenciar a racionalização da ação social e das condutas humanas e a importância que essa compreensão assume para o funcionamento da sociedade. Nesse caso, a noção de “causalidade do social” é substituída por “imputação causal” (Javeau, 1997, p.25), precisamente no sentido de superar uma visão que muitos consideram determinista de linearidade causal pelas causas mais prováveis. Contudo, a relação entre estas epistemologias é mais complexa do que aquela formulação aparenta. A sociologia compreensiva não nega a causalidade do social inerente a explicações de tradição durkheimiana, mesmo considerando a produção de subjetividades várias na construção da verdade científica (aqui pensando nas subjectividades dos indivíduos estudados como do próprio investigador). De acordo com Silva (1988), parece possível conceber vertentes de análise em que a consciência e a situação coexistem, dado que: a) ambas legitimam uma visão do conhecimento científico assente em premissas conciliáveis; b) não refutam como princípio a irredutibilidade do social ao individual que está na base da construção das ciências sociais; c) não deixam de considerar o princípio de ruptura epistemológica. Em relação ao ponto a), cabe-nos dizer que qualquer prática assume o estatuto científico quando dotada de provas de validação da verdade por intermédio da sistematicidade (rigor e coerência interna, exaustividade da explicação proposta, presença de possibilidades heurísticas) e da operacionalidade (produção de previsões verificáveis através de modos concretos de construção e interpretação da informação) (Silva, Pinto, 1986). Em relação ao ponto b), cabe-nos dizer que a existência real – exterior e autónoma – de ordens sociais pode constituir o princípio de quem procura a dimensão interpretativa inerente ao conhecimento científico. Falar nos sentidos da ação que tem como pressuposto a construção social da realidade (cf. Berger, Luckmann, 1966), não tem de ser incompatível com a visão de realidade da herança Durkheimiana. Esta afirmação exige algumas precisões sobre a visão construída do mundo. Por um lado, não refuta limites objetivos como os de natureza biológica, onde se incluem a adaptabilidade e inteligibilidade humanas. Por outro, pressupõe ordens sociais preexistentes resultantes da tipificação – ou institucionalização – de relações sociais que, a dado momento, ganham força histórica. Passa a ser objetiva quando preexiste a alguém, embora possa ser construída antes de existir enquanto tal. Neste caso, não é possível ignorar outras ordens sociais preexistentes a essa que condicionaram o seu surgimento. No fundo, trata-se de uma visão contra a reificação do real como objetivo tomado por oposição ao subjetivo (Fasching, 2012). Em relação ao ponto c), a rutura com o senso comum – apropriações imediatas do real não acompanhadas por processos de verificação –, advocada por Gaston Bachelard (vd. Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1973), está presente mesmo na sociologia compreensiva. Refletir cientificamente sobre a interpretação exige semelhantes ruturas em relação àquelas que são operadas no âmbito da epistemologia durkheimiana, assim como um processo de autorreflexividade do investigador sobre o seu trabalho. Tanto é necessário um trabalho de rutura em relação às representações imediatas e às formações ideológico-doutrinárias como em relação às interpretações do investigador sobre os comportamentos dos sujeitos que estuda. Este aspeto, contudo, volta a salientar diferenças entre estas duas tradições. Apesar de veicularmos que a herança weberiana tem condições de partir de uma prática racionalizadora sobre os seus procedimentos, o que habitualmente se considera circunscrito ao pensamento durkheimiano, subsiste como diferença o estatuto da interpretação. Falar na ordem causal dos acontecimentos, como o lugar de classe ou as trajectórias de vida que formam os mecanismos cognitivos da acção (‘habitus’ na terminologia de Bourdieu, 1986, ou ‘disposições’ na terminologia de Lahire, 2005), tende a 265


INTERPRETAÇÃO E VALIDAÇÃO CIENTÍFICA EM PESQUISA...

desconsiderar ou a relegar, para um lugar periférico, a importância dos modos individuais de atribuição de sentido a essa mesma ação. Como Weber (1983) fez notar inicialmente, discutido mais tarde por Boudon (2003), comportamentos semelhantes podem ter, na sua base, motivos diferentes que precisam de ser captados, sob pena de desvios de comportamento não serem corretamente compreendidos3. Para alguns, este processo de construção do real tem ancoragem no indivíduo, o que, de facto, não acontece. A produção do real enquadra-se já por estruturas limitadoras e possibilitadoras da ação, sendo precisamente daí que decorre a diversificação do real4. No mapeamento destas correntes epistémicas, em especial após termos mencionado o trabalho de rutura epistemológica, convém deixar uma última referência à escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, entre outros). Embora a base desse pensamento tenha ancoragem na filosofia do conhecimento reivindicada pela epistemologia compreensiva (Cf. Silva, 1988), há uma diferença imediata que salientamos entre ambos: a relação entre conhecimento científico e senso comum. Como se sabe, a teoria crítica parte da ecologia entre o conhecimento científico e o conhecimento quotidiano. Trata-se da passagem de um monoculturalismo para um multiculturalismo que concebe a prática científica não como um olhar artificial sobre o real envolvendo um processo de distanciamento, rutura e verificação5. Embora um dos pressupostos mais fortes da escola de Frankfurt se prenda com o lugar de destaque conferido aos sujeitos, nisso à semelhança da sociologia compreensiva, o processo de não-rutura com o senso comum conduz a uma diferença fundamental entre ambas: a visão da ciência como ideologia. Neste sentido, embora o racionalismo advogado por Bachelard seja mais facilmente aplicado à tradição durkheimiana, na verdade, procurar o sentido na ação nos sujeitos não tem que anular os processos de vigilância epistemológica. Pelo contrário, tais processos têm mesmo forma de entrar na linha fenomenológica de Husserl (1983), como o exemplo da atitude fenomenológica transcendental, enquanto tradução de uma atitude de consciência que transcende a ação humana como puramente consciente e livre das experiências passadas. Em proximidade ao discutido por Pinto (1994), esse procedimento exige uma rutura com pré-conhecimentos, sobretudo no modo como o investigador deve evitar posicionar a ação do sujeito observado num referencial diferente daquele que esteve na base da sua ação. Está em causa não procurar o que é o real em si, mas o fenómeno, portanto, o sentido orientador do comportamento.

Desafios metodológicos na sociologia interpretativa Apesar de as abordagens qualitativas terem encontrado forte expressão entre a comunidade sociológica, sobretudo a partir das décadas de 1920 e 1930, com a chamada Escola de Chicago, apenas décadas depois encontramos os principais estudos na área da saúde que acabaram por se imortalizar até os dias de hoje (e.g. Steudler, 1974; Glaser, Strauss, 1967; Strauss et al., 1963; Goffman, 1961; Merton, Reader, Kendall, 1957). É de notar que esta tradição tanto anglófona como francófona acaba por se tranpor igualmente para a comunidade científica lusobrasileira (vd. Ferigato, Carvalho, 2011; Antunes, Correia, 2009; Turato, 2005). Qualquer investigador experiente em metodologias qualitativas, em especial as de maior intensidade na recolha da informação (e.g. observações continuadas no tempo ou entrevistas em profundidade), certamente sentiu a presença da interpretação. Referimo-nos à interpretação por parte do ‘objeto de estudo’ que assume o duplo estatuto de observado e observador, como à interpretação do investigador na recolha e tratamento da informação empírica. 266

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Agir ou não agir tanto pode significar querer/ não querer (mesmo tendo poder para isso) como não poder escolher. Mesmo no caso da escolha, podem estar diferentes motivações na sua base que motivam comportamentos significativamente distintos.

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É óbivo que este processo não responde à eterna questão quanto ao ovo e a galinha. Mais do que procurar a resposta sobre o que surgiu primeiro, visamos dar maior clarividência ao argumento de que a existência do real resulta da atribuição de significações. Isso tanto acontece ao indivíduo que reconhece uma ordem externa como válida ou não, como ao cientista socializado numa visão racionalizante do conhecimento científico dotado de instrumentos metodológicos e conceptuais para ler o real invisível.

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Para uma confrontação desse debate no espaço lusófono, convidamos à já clássica referência a Boaventura de Sousa Santos (1999) e José Madureia Pinto (1984).

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Aqui empregamos o termo ‘método’ num sentido amplo, que pressupõe não apenas as metodologias (estratégias) de recolha de informação mas, também, elementos de racionalização e de articulação entre estas e a dimensão teórica do conhecimento (Almeida, Pinto, 1976). Para aqueles que não entendem a presença inerente da interpretação em técnicas quantitativas e padronizadas, como no caso dos inquéritos por questionário, pense-se no modo como o investigador interpreta as técnicas de recolha de dados que melhor respondem aos seus objetivos; o modo como elabora as perguntas a públicos alargados; o modo como o seu objecto de estudo as entende e o modo como o investigador escolhe as técnicas de análise estatística entre as mais variadas opções. 6

artigos

Na verdade, a questão da interpretação deixou de ser aquela que, durante décadas, rotulou as metodologias qualitativas como de menor grau de cientificidade decorrente da forte dependência da subjectividade (entenda-se interpretação) do investigador, por comparação ao carácter momentâneo e de maior distância entre o investigador e o seu objecto de estudo no uso das metodologias quantitativas. Hoje em dia, há já consciência dos efeitos que a interpretação introduz em ambos os métodos, embora em sentidos diferentes6. Mesmo assim, inerente à especificidade dos procedimentos intensivos de recolha de dados, a questão da interpretação tem de ser alvo de racionalização no sentido reivindicado pelas visões do racionalismo científico da ciência kantiana (Pinto, 2007; Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1973). Apesar da corrente fenomenológica, na esteira da sociologia compreensiva, considerar que a procura do sentido (da interpretação) pode ser encontrada ao nível societal, portanto na existência da realidade estável e objectiva partilhada em experiências – intersubjectividades –, colocam-se questões metodológicas acrescidas quando a escala de análise é a produção do sentido individual. Identificamos em, pelo menos, quatro níveis os desafios que a interpretação coloca na prática científica entendida segundo os moldes de cientificidade assentes na operacionalidade e sistematicidade: 1) Os desvios discursivos propositados e conscientes: em que o objeto de estudo mobiliza discursos artificiais em relação à sua prática quotidiana. Quanto maior a condição de outsider do investigador, mais possibilidades existem para esses desvios, embora seja necessário pressupor que qualquer técnica de recolha de dados produz esses efeitos; 2) Os aspetos não refletidos da ação: quando os sujeitos não sabem explicar os motivos para os seus comportamentos traduzindo a inculcação das aprendizagens (e.g. “Olhe, tenho muita dificuldade em responder”, “não percebo a pergunta”, “não sei...”); 3) A necessidade de interpretar o sentido que os sujeitos dão à sua ação. Nesse caso, a sociologia compreensiva de Weber discute que os mesmos comportamentos podem ter diferentes motivos (“não poder fazer” é diferente de “não querer fazer”), ao passo que autores da fenomenologia, como Husserl e Schutz, destacam que mais importante do que procurar uma ordem real, deve-se saber o sentido significante que as pessoas mobilizam para agir ou não agir; 4) A interpretação dos dados empíricos recolhidos sem o grau de aparente sistematicidade por comparação aos métodos quantitativos.

Mecanismos de validação científica e estratégias para lidar com a interpretação

7 Deixa-se, como proposta de leitura, Correia (2012), onde se sintetiza alguma da complexidade em torno dos debates sociológicos sobre a ação envolvendo autores como Pierre Bourdieu, Margaret Archer, Raymond Boudon ou Jaques Hamel.

Reiterando uma vez mais que a base epistémica da sociologia compreensiva ou fenomenológica não anula o primado da observação metódica e sistemática reivindicada pelo racionalismo científico, importa discutir que estratégias podem assegurar a validação científica. Dito de outro modo, a questão está em saber como garantir critérios de cientificidade quando se fala em experiências e ações marcadas pela construção individual do sentido entendido enquanto interiorização de exterioridades e exteriorização de interioridades, sabendo da (I) sedimentação contínua das aprendizagens sociais; (II) do papel da experiência e de vivências nos comportamentos e da inteligibilidade dos indivíduos (dimensão cognitiva dos comportamentos que elaboram e reelaboram estruturas mentais que ditam o ‘fazer’ ou ‘não fazer’, ‘querer’ ou ‘não querer’)7.

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O primeiro mecanismo de validação científica é a racionalização sobre o objeto de estudo como objeto-sujeito. Como foi dito anteriormente, está em causa reconhecer que os sujeitos observados elaboram juízos de valor e percepções sobre o investigador. Isso coloca o desafio de o investigador saber que não apenas lida com contextos de interação que necessita entender o quanto antes, como também suscita a necessidade de procurar a produção de sentido que os sujeitos elaboram sobre o seu real significante. Afinal, não é a sua visão que interessa, mas perceber a visão daqueles que produzem os contextos que o investigador se propõe descortinar. Em certo sentido, é por intermédio desta racionalização que o investigador consegue encontrar, no espaço empírico, o sentido dos conceitos e teorias que procura. Caso contrário, as relações sociais observadas e os discursos captados mostram-se indicifráveis e presos a uma aparente arbitrariedade. Uma vez mais, está presente a construção de Popper e Kuhn sobre o conhecimento científico enquanto abstração do real, e não o real em si mesmo (vd. Silva, 1988). Esta racionalização sobre o objeto de estudo conduz-nos a um outro aspeto do debate. Haverá forma de procurar, nas metodologias qualitativas, paralelo aos inúmeros procedimentos técnicos validados e reconhecidos como regras elementares para o sucesso das pesquisas, como acontece nas metodologias extensivas tendencialmente quantitativas? Acreditamos que a resposta é, simultaneamente, sim e não. Não, porque a padronização intrínseca a técnicas que não dependem diretamente da interação quotidiana para a recolha de dados não tem forma de ser transposta para os desafios que a especificidade que entrevistas em profundidade ou observações continuadas colocam. Sim, porque dizendo respeito a metodologias de base científica, a comunidade académica deverá partilhar um mínimo de procedimentos e condutas que ditem à partida quais as melhores e piores condições de exequibilidade da pesquisa. Além disso, outro paralelo entre metodologias qualitativas e quantitativas é a aprendizagem e a necessidade de treino para a rotinização das competências metodológicas. Do mesmo modo que ninguém poderá saber quais os procedimentos estatísticos apropriados sem um profundo treino académico, a condução de entrevistas ou observações colocam precisamente a mesma necessidade de formação especializada. A diferença está no tipo e natureza de competências a serem adquiridas. No caso das metodologias qualitativas, em concreto as que exigem tempos de contacto alongados entre investigador e objeto de estudo, deverão ser mobilizadas competências relacionais e de interação, além de um conhecimento prévio sobre a unidade de análise (e.g. determinado contexto geográfico ou grupo profissional). Obviamente que a aquisição destas competências não passa pelos princípios da lógica dedutiva introduzidos por Popper (1992) e que servem de base ao raciocínio das relações estatísticas (de modo simples: se A = B e B = C, logo, A = C). Embora possa parecer que estamos a falar de competências que pouco ou nada dizem respeito ao estatuto científico, é essencial que o investigador tenha em consciência a dupla avaliação em jogo (do investigador para os sujeitos e destes para o investigador) orientando, consequentemente, os seus discursos e silêncios (o que dizer ou não dizer), permanências e ausências (estar ou não estar). Obviamente, que não é possível procurar, num manual, o que fazer ou evitar fazer, desde logo porque muitas das regras são específicas e intransponíveis entre diferentes contextos e grupos sociais. A regra elementar que defendemos para a validação científica é, precisamente, a capacidade do investigador para racionalizar sobre seus processos de interação quando da recolha de dados. O segundo mecanismo é a articulação entre a produção discursiva dos sentidos e a compreensão dos contextos de interação. Longe de estar a propor quais as técnicas de recolha de dados para essa articulação, o que, por si só, constituiria a negação da cientificidade qualitativa, a capacidade de associar o que os sujeitos dizem aos seus contextos de interação constitui um passo fundamental para o maior rigor metodológico. Se, por um lado, entrevistas sem a realização prévia de observações deixam o investigador dependente de acreditar que aquilo que é dito constitui as práticas correntes; por outro, a observação sem entrevistas não permite captar, com a sistematicidade necessária, o sentido por detrás dos comportamentos previamente observados. Como referido por Castro (2012) sobre a fenomenologia de Schutz, o investigador não pode pressupor os comportamentos dos sujeitos que observa com base na sua própria visão da realidade quando o seu objetivo é discutir o sentido orientador das ações dos outros. Como disse, pouco importa quais as técnicas que se articulam ou se é necessária essa articulação. Importa é o investigador ter a noção de que falar e fazer são duas dimensões não inteiramente 268

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Remete-se para a leitura da nota 6.

9 O uso da palavra manipulação não diz respeito ao entendimento de manuseamento físico, mas de levar o outro a fazer algo que é nosso objetivo por intermédio do que é dito ou como é dito. Esta ideia de manipulação está muito presente no caso de metodologias qualitativas prolongadas, em que o investigador está na posse de conhecimentos sobre os contextos de interação e sobre os próprios sujeitos, permitindo-lhe introduzir, de forma consciente, desvios em função do que pretende analisar. No fundo, estes desvios devem ser alvos de uma profunda ponderação em função das consequências que podem produzir na relação com os sujeitos.

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coincidentes nas interações sociais. Além disso, se um projeto científico tem como princípio a inerência do sentido na construção do real, metodologicamente não se podem inferir motivos de comportamentos sem se saber quais os motivos efetivos; do mesmo modo que deve ter consciência dos desvios inerentes à construção dos discursos. Não nos referimos, particularmente, aos erros de língua vistos à luz Freudiana como consequências ao nível da psique, mas a toda a construção produzida em contextos de interação com pessoas estranhas, como o caso da entrevista (vd. Goffman, 1969, 1981). Note-se que o nosso argumento não é o maior grau de artificialidade dos discursos por comparação aos comportamentos, mas que o entendimento mais objectivo do que é feito e por que é feito passa pela articulação de técnicas que permitam filtrar essa artificialidade o mais possível. Quanto mais prolongada for a relação do investigador com o seu objeto de estudo, mais condições existem para atingir um nível de confiança sobre a naturalidade dos comportamentos que observa e das conversas a que assiste. O terceiro mecanismo é a racionalização sobre as condições sociais de produção do conhecimento. Em alguns dos incontornáveis e mais importantes trabalhos de reflexão epistemológica sobre o método qualitativo (e.g. Costa, 1986; Burgess, 1982)8, a pesquisa é encarada como um processo social, ou seja, contém um carácter processualista na dependência estrita com o investigador. Afirmar que a pesquisa depende, em larga medida, de quem a produz não nos deve remeter, uma vez mais, para o debate do suposto menor grau de cientificidade do método qualitativo por comparação a técnicas de recolha de dados com carácter pontual e circunscrito. A questão é, precisamente, a oposta: mais a recolha de dados depende do investigador, mais possível se torna afinar seus processos e adaptá-los ao objeto em estudo para, dessa forma, maximizar a recolha de dados indo além da mera descrição de factos e acontecimentos. Nesse processo é essencial que se opere uma racionalização sobre as condições sociais de produção do conhecimento, como, por exemplo: o papel da interferência na pesquisa, as resistências encontradas e as estratégias adotadas para melhor lidar com as especificidades do objeto de estudo. Fazer acompanhar trabalhos de pesquisa qualitativa destes elementos ultrapassa um carácter ritualista e desprovido de importância académica. Essa racionalização permite, não só aos pares, aferir dimensões fundamentais sobre as condições sociais de acesso, recolha e tratamento dos dados empíricos, como conduz o investigador a um estado de vigilância crítica sobre as suas opções. Sabendo que parte significativa dos processos vividos na fase de recolha é intransponível e irrepetível, o investigador deve deixar explícito todos os elementos que ditaram o curso da sua pesquisa, não apenas tendo em vista a possibilidade de validação inter-pares ao nível da coerência dos procedimentos face aos objetivos, como para o próprio investigador ponderar as melhores formas de obter os dados que necessita em função das condicionantes a que está sujeito. Traçados estes três mecanismos fundamentais para a validação científica no âmbito de pesquisas de natureza qualitativa, importa realçar algumas das estratégias para lidar com a interpretação e rentabilizá-la a favor dos objetivos da pesquisa. Afinal, uma das potencialidades de estudos qualitativos é a densidade de dados empíricos, o que inclui a possibilidade de manipulação sobre o objeto de estudo no sentido de maximizar a informação recolhida9. Como afirmado anteriormente, este trabalho insere-se na esteira da epistemologia interpretativa ao nível da inerência da interpretação nas relações sociais e na própria produção de conhecimento científico. Um dos pressupostos a clarificar é como garantir uma prática científica dotada dos devidos controlos 269


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epistemológicos de ruptura e vigilância, ao mesmo tempo em que se retiram do real os elementos interpretativos necessários para melhor compreendê-lo. Insistimos na compatibilização entre a sociologia interpretativa e o primado epistemológico da observação metódica e sistemática reivindicado por Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1983). No caso de pesquisas qualitativas, a questão a saber é como potenciar técnicas de interação social com os critérios de cientificidade preconizados pelo racionalismo científico. A respeito de algumas das estratégias que enunciaremos em seguida, estas resultam de uma experiência específica de investigação (Correia, 2012). Mais do que apresentá-las como fórmulas apriorísticas, constituem formas de racionalização com potencialidades heurísticas sobre a recolha de dados por intermédio de técnicas que exigem um contato próximo entre o investigador e o seu objeto de estudo, como no caso de observações contínuas e entrevistas em profundidade. Ao contrário de centrar o olhar do leitor nas nossas experiências empíricas, o entendimento que temos a respeito destes exemplos é contribuírem para a partilha de reflexões metodológicas epistemologicamente orientadas. A verdade é que a utilização de técnicas de recolha de dados com estas especificidades está muito mais presa à sensibilidade e características individuais dos investigadores do que a uma base de entendimento comum sobre alguns dos pressupostos que devem ser discutidos. Daí procurarmos contribuir para um maior grau de sistematicidade e de operacionalidade à metodologia qualitativa. a) o caso da observação Para efeitos de racionalização sobre a interpretação, sintetizamos quatro estratégias na aplicação de observações continuadas: - Distanciamento: na esteira do argumentado por Lévi-Strauss (1993), a observação de realidades distintas tem condições para assumir critérios de objetividade científica enquadrada nos princípios kantianos atrás descritos. A análise do novo, do inesperado e do surpreendente desperta uma curiosidade sobre a diferença (cultural, política, ou outra), que leva à procura não apenas da descrição dos fenómenos, como também da sua explicação. O argumento-base é que choques culturais ou meros acontecimentos que fogem ao esperado permitem elaborar uma racionalização capaz de decifrar até as causas sociais além do sentido orientador da conduta humana. O desafio coloca-se nos contextos de observação que não despertam tanta estranheza e em que a ilusão da transparência e familiaridade do social acaba por dificultar esse distanciamento. - Rotinização: associada à transparência, permite controlar, em simultâneo, a interpretação dos sujeitos em estudo e do próprio investigador. No caso dos primeiros, quanto mais o investigador se dá a conhecer e a conhecer os motivos da sua presença, maior a confiança se deposita em si e no seu trabalho. Barreiras inicialmente intransponíveis vão-se superando à medida que o investigador for sendo capaz de naturalizar a sua presença, mostrando que o seu objetivo não é avaliar, julgar ou maldizer. O processo de aprendizagem mútuo que envolve o observador e o observado tem o benefício de esbater preconceitos e desconfianças que introduzem artificialidade nos atos e nos discursos. No caso do investigador, a rotinização permite encontrar as ordens sociais dos processos que observa. O que inicialmente se vislumbra como incerto, arbitrário e sem sentido, pela rotinização torna-se ordenado e dotado de sentido. - Transparência: relacionado com a estratégia anterior, o sentimento de transparência é fundamental para quem está sendo observado. O investigador deve, o quanto antes, ter uma postura explícita sobre o seu objetivo e o seu papel de não avaliar nem tomar partido por grupos ou contextos. Enquadrado na epistemologia fenomenológica (para sínteses, ver Casto, 2012 ou Fasching, 2012), mais do que procurar uma suposta verdade ou as normatividades do real, o investigador deve se concentrar no sentido orientador das práticas que constroem aquele real. Inerente a esta questão enumera-se ainda a equidistância, em que o investigador nunca pode dizer, legitimar ou sancionar as práticas e comportamentos que observa. Tão grave como constranger os comportamentos é incentivá-los. O propósito deve ser apenas registar o curso da ação. Falar em transparência não deve, contudo, ser confundido com explicitar os reais objetivos da pesquisa, precisamente por isso poder vir a introduzir

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desvios às interações habituais. Neste aspeto não haverá mesmo forma de predizer qual a melhor estratégia dependendo do caso. No curso da nossa pesquisa optámos por filtrar muito da informação verdadeira sobre o objeto de estudo até o momento em que sentimos que isso estaria a introduzir barreiras intransponíveis nos contatos diários. Depois de cerca de seis) meses de observação, a opção foi transmitir elementos sobre as questões do estudo garantindo, em qualquer caso, que não havia, da nossa parte, qualquer preferência ou juízo de valor sobre o que observávamos. - Avaliação contínua do ‘jogo’: aplicamos a palavra ‘jogo’ no sentido definido por Crozier e Friedberg (1977), em que deve haver uma ponderação constante entre o fazer e não fazer em função das regras e dinâmicas de cada contexto. A observação nem sempre é passiva e invisível, tendo o investigador de tomar certas iniciativas caso considere necessário. No caso da nossa experiência, e perante portas que estavam sucessivamente fechadas, remetendo a observação por dias intermináveis para os corredores, certo dia, a opção foi bater à porta e entrar numa das salas. É óbvio que a escolha do momento e das pessoas que estavam presentes não foi fortuita e constituiu o primeiro passo para que outras portas se abrissem depois disso. Outras avaliações dizem respeito às pessoas com quem procuramos estar, no sentido de facilitar a permanência nesses contextos; outras, ainda, ao modo como nos direcionamos às pessoas; a atenção e interesse manifestado no que nos é transmitido, entre outros. Pelas mesmas razões, pode haver a necessidade de não estar presente ou de não falar, por considerarmos que isso pode comprometer os critérios de transparência e equidistância atrás referidos. b) o caso das entrevistas em profundidade No caso das entrevistas em profundidade, deparamo-nos com três estratégias fundamentais para a racionalização sobre a interpretação: - Transparência: pelos mesmos motivos que nas observações. No caso de as entrevistas serem aplicadas sem a complementaridade de outras técnicas, acresce, ainda, a necessidade de se condensarem, nos momentos prévios à entrevista, todas as estratégias que permitam diminuir o efeito de desconfiança e de julgamento que o entrevistado possa sentir da parte do entrevistador. Igualmente importante de evitar é que o entrevistado manifeste opiniões por insistência do entrevistador em querer obter uma resposta. “Não sei” pode ser tão conclusivo como qualquer outra resposta, pelo que o objetivo será procurar os motivos para essa ausência de resposta. - Hipóteses contrafactuais: de acordo com Venesson (2008), são hipóteses que visam assegurar um conhecimento mais rigoroso das hipóteses que efectivamente estão a ser testadas, e cuja existência permite ir descartando possibilidades que podem estar a confundir as relações em presença. Por exemplo, um procedimento habitual aplicado nas entrevistas e nas conversas informais foi perguntar, não só o porquê de alguma coisa acontecer, mas, também, o porquê disso não acontecer. O raciocínio pela negação muitas vezes obriga a um exercício mental que rompe com o esperado e inculcado. No fundo, são estratégias para a autorracionalização da ação por parte dos sujeitos perante respostas como: “olhe, tenho muita dificuldade em responder”, “não percebo a pergunta”, “não sei...” - Avaliação contínua do ‘jogo’: o conhecimento das condições objetivas de ação (contexto) e das condições de trajetória dos sujeitos (causas sociais dos comportamentos) necessita que se conheça a produção do sentido por parte dos próprios sujeitos (o que eles fazem, por que o fazem, e o que esperam) . No entanto, e perante inúmeros casos em que discursos permaneciam blindados ou remetiam apenas para lugares comuns, os pré-testes das entrevistas deram-nos a convicção da necessidade de conhecer previamente os contextos de interação, sob pena de não conseguirmos penetrar em estratégias racionalizadoras de artificialidade do discurso. Além da óbvia confiança que tem de ser garantida entre entrevistador e entrevistado, é também necessário ilustrar determinadas perguntas por referência a pessoas e situações concretas para alcançarmos esse grau de profundidade nas respostas. Neste sentido, a nossa estratégia foi preparar cada entrevista à luz das informações prévias retiradas das notas de campo, para as utilizar em contexto de entrevista quando necessário. Muitas vezes, não estão em causa filtragens conscientes por parte dos entrevistados, mas falhas de memória. Ao trazermos determinados exemplos, conseguimos, assim, recriar certos acontecimentos que facilitam a racionalização sobre determinados comportamentos.

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Conclusão Existem clivagens entre metodologias quantitativas e qualitativas insuperáveis, nomeadamente as que decorrem das suas especificidades epistemológicas e técnicas, enquanto outras podem ser esbatidas, como as assimetrias de debates. É justo dizer que a existência de uma alargada oferta de manuais e textos de reflexão sobre procedimentos estatísticos ou outros contrasta com a menor produção sobre os usos e experiências no âmbito qualitativo. Contudo, e em ambos os casos, explicitar as condições metodológicas revela-se incontornável, sendo essa necessidade mais premente no caso da metodologia qualitativa, por dois motivos. O primeiro, devido à tendencial inexistência de referenciais metodológicos que permitam uma base alargada de procedimentos previamente validados pela comunidade científica. Com isto não nos referimos a fórmulas apriorísticas a serem aplicadas independentemente dos contextos. Muito pelo contrário, essa é uma diferença intransponível entre a lógica dedutiva dos procedimentos matemáticos e as interações sociais inerentes a técnicas de recolha de dados com proximidades – e mesmo intimidades – entre o investigador e o seu objeto de estudo. O segundo motivo decorre da própria natureza do conhecimento produzido por intermédio de metodologias qualitativas. Estas não se circunscrevem ao programa epistémico da sociologia compreensiva ou fenomenológica, embora tais epistemologias encontrem na qualidade melhor tradução sobre o sentido produzido do real do que por intermédio da quantidade. Como afirmamos, a interpretação é inerente ao real, inclusive à ciência, mesmo a de base quantitativa. O que isto traduz é a crescente necessidade de nos debruçarmos, cada vez mais, sobre um debate metodológico epistemologicamente orientado sobre o papel da interpretação na produção de conhecimento científico (interpretação do investigador), como na recolha de dados em interações sociais (interpretação do objeto de estudo). Neste texto procuramos dar um contributo nesse sentido, tendo discutido não só os desafios metodológicos associados à interpretação, como os mecanismos de validação científica no âmbito da interpretação, e, ainda, algumas estratégias resultantes de uma pesquisa recentemente concluída para melhor concretizar tais mecanismos. No fundo, a nossa conclusão é de que a interpretação, além de ser um veículo de conhecimento fundamental sobre o real, quando devidamente controlada por procedimentos científicos, não ameaça os critérios de cientificidade consagrados – sistematicidade e operacionalidade – servindo, pelo contrário, para atingir estádios de saber mais profundos.

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CORREIA, T. Interpretación y validación científica en la investigación cualitativa. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.263-74, abr./jun. 2013. Se discuten implicaciones metodológicas de la epistemología comprensiva y fenomenológica y mecanismos para su validación científica. Buscar en los individuos el sentido de acción (qué hago; por qué lo hago) da visibilidad a desafíos de la práctica científica, principalmente las condiciones de producción de conocimiento y el acceso y las interacciones con el objeto de estudio. Especialmente, en el caso de estrategias metodológicas intensivas, no solo el investigador se dirige hacia una interacción en donde la observación recae sobre sí, como también tiene que saber cómo des-construir narrativas blindadas por ideas comunes. La solución está en una articulación metodológica capaz de asociar la producción individual de sentido de la acción a las condiciones objetivas del contexto. En estos casos, la validación científica está muy vinculada a la racionalización sobre las condiciones de acceso y permanencia en el campo empírico y a la producción discursiva, presentando estrategias más racionales y aptas para enfrentar la interpretación.

Palabras clave: Interpretación. Epistemología. Investigación cualitativa. Validación científica. Recebido em 14/11/12. Aprovado em 18/02/13.

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Ética do cuidado: a brinquedoteca como espaço de atenção a crianças em situação de vulnerabilidade*

Andrea Perosa Saigh Jurdi1 Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian2

JURDI, A.P.S.; AMIRALIAN, M.L.T.M. Ethics of care: the toy library as a space for attention to vulnerable children. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.275-85, abr./jun. 2013. The aim of this paper was to report on a research project that originated at the meeting point between the health and social fields with the theory of maturation as the starting point. The field for this research was a community toy library and the individuals involved in the study were children, adolescents and the toy librarians. The daily work and the intervention work followed the precepts of action research, designed and carried out in association with action on or resolution of a collective problem. In constructing a care program for children focused on social factors, thereby establishing connections with other fields of knowledge, it can be understood that new forms of subjectivation and existence have been established, thus breaking the silences and silencing that pervade practices geared to children. The work that we did produced new possibilities for thinking about the human being and the social exclusion processes.

Keywords: Play and Playthings. Ethics. Vulnerability. Social networks.

O objetivo deste artigo é relatar o percurso de pesquisa que teve sua origem no encontro entre os campos da saúde e do social a partir do referencial da teoria do amadurecimento. O campo para a pesquisa foi a brinquedoteca comunitária, e os indivíduos envolvidos na pesquisa foram crianças, adolescentes e os brinquedistas. O trabalho cotidiano e de intervenção seguiu os preceitos da pesquisaação, concebida e realizada em associação com uma ação ou resolução de um problema coletivo. Ao construirmos uma proposta de atenção a crianças voltada para o social, estabelecendo conexões com outros campos de conhecimento, entende-se que provocamos novas formas de subjetivação e existência, rompendo com os silenciamentos e silêncios que perpassam as práticas voltadas à infância. O trabalho realizado produziu novas possibilidades de pensar acerca do ser humano e dos processos de exclusão social.

Palavras-chave: Jogos e brinquedos. Ética. Vulnerabilidade. Redes sociais.

Elaborado com base em Jurdi (2010). 1 Curso de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista. Departamento de Saúde, Educação e Sociedade. Rua Rua Silva Jardim, 133, Vila Matias. Santos, SP, Brasil. 11.060-000. andreajurdi@gmail.com 2 Curso de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. *

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Introdução A preocupação com o estado em que vivem tantas crianças e adolescentes em nosso país ultrapassa o campo de saber da saúde, porém implica-o, cada vez mais, no sentido de articular ações que viabilizem formas de vida e existência saudáveis. Para a saúde, os princípios da humanização como política pública devem criar espaços de construção e trocas de saberes e serem norteadores de estratégias de interferência no processo de produção de saúde. A efetivação da proposta de humanização toma corpo com a perspectiva da rede descentralizada e corresponsável que está na base do SUS, “uma rede comprometida com a defesa da vida, rede humanizada porque construindo permanente e solidariamente laços de cidadania” (Benevides, Passos, 2005, p.563). Nesse sentido, a ética na saúde implica reconhecer que ninguém pode ser competente no lugar do outro, e recoloca-nos enquanto profissionais, indivíduos, sociedade. Em consonância com esses princípios, compreendemos que produzir saúde é, necessariamente, produzir encontros que visam à conexão das pessoas, não pelas patologias ou diagnósticos, mas pela experimentação da arte, do trabalho e do lazer. A pesquisa a ser relatada foi realizada em uma brinquedoteca comunitária de um bairro da zona oeste do município de São Paulo, a partir de um trabalho realizado com as crianças e adolescentes, e assumiu contornos mais nítidos a partir das práticas cotidianas na brinquedoteca e no contato com o território onde está instalada. A brinquedoteca comunitária teve seu início em 19973 e iniciou uma parceria com o Centro de Convivência Pq. Previdência em 20044. Para a Associação de Moradores, a brinquedoteca era um espaço essencial para todas as crianças do bairro, na medida em que o acesso delas a outros espaços de encontro distantes da comunidade era quase impossível, o que acarretava constante perambulação das crianças pelas ruas, ficando, assim, sujeitas à violência da região. Para o serviço de saúde, esse projeto constituía a possibilidade concreta de efetivar a função da unidade de saúde como dispositivo no território, visto que a vizinhança com a associação atualizava a potência do serviço para instaurar novos modos de funcionamento (Galletti, 2007). Para a composição do trabalho com crianças e adolescentes, partimos do princípio de que as interações promovidas pelo trabalho em saúde, permeadas por uma ética do cuidado, podem ser compreendidas como uma experiência de preocupação com o outro, provocando transformações em trajetos pessoais e trajetórias coletivas, rompendo com histórias de abandono, sofrimento e violência. Os fundamentos da teoria winnicottiana permitiram-nos abordar a complexidade dos indivíduos em seu território com questões sociais urgentes. Isso foi possível porque encontramos, na relação entre psiquismo e cultura, um novo pensamento que permite a existência lúdica, criadora de indivíduos e de mundo, que possibilita discutir o homem no mundo como unidade e como soma de suas experiências culturais (Winnicott, 1975a).

Referencial teórico Pensar em intervenção e pesquisa sob a ética do cuidado pressupõe uma compreensão do significado dado aos termos “ética” e “cuidado”. As questões da ética e da moral sempre foram uma preocupação para os pensadores de diferentes áreas do conhecimento, pois são questões consideradas, por alguns teóricos, como 276

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A esse respeito, consultar Oliver et al., 2004.

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A esse respeito, ver Galletti, 2007.

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representantes da inserção do homem no mundo da cultura. As regras e os valores sociais de determinados grupos são o que os constituem, os organizam e possibilitam a vida em sociedade. A teoria winnicottiana considera que a capacidade para se preocupar tem origem no relacionamento do lactente com a mãe. São com a mãe as primeiras experiências do bebê sobre o que é bom, quando satisfaz suas necessidades, e o que é mau, quando não as atende, levando-o a reagir contra o ambiente. Portanto, é com os cuidados maternos que se apreendem as primeiras noções do bem e do mal. Entretanto, a ética como cuidado para com o outro tem início quando o bebê já é uma unidade e percebe a mãe como uma pessoa total. É no estágio do concernimento que se desenvolve a moralidade. Esse estágio que se segue à constituição do Eu, e que traz grandes enriquecimentos ao indivíduo, é o momento em que o indivíduo começa a perceber atributos pessoais bons e maus. Ao caminhar rumo à independência, o ser humano começa a ter o sentido do outro, a preocupar-se, mostrar-se concernido. Nesse estágio, a criança começa a perceber que é uma única e mesma pessoa, como sua mãe, que cuida dela. Ela começa a se preocupar com sua necessidade de usar a mãe e fica compadecida pelo tipo de relação instintual com ela. Percebe que o uso excitado da mãe pode lhe causar danos e (estamos falando da criança) começa então a avaliar essa atitude. A mãe é alguém de quem ela depende e de quem continuará necessitando. Ela faz o que precisa para continuar a existir, que é o uso destrutivo do outro, mas só poderá usar novamente a mãe, em momentos de excitação, se fizer algo que a compense. A mãe como não-eu é caracterizada como a mãe com quem ela precisa se preocupar. No concernimento, quando o bebê dá valor à mãe e percebe que a destrói, é necessário que esta o ajude a vivenciar esse momento. A ajuda da mãe compreende em estar lá, viva e sempre a mesma. O elemento essencial nesse estágio é a presença contínua da mãe, sua sobrevivência, para que a criança possa integrar a agressividade que faz parte de sua natureza. A tarefa do ambiente é permanecer ali, disponível para reconhecer o gesto restaurador do bebê. O papel do ambiente é de extrema importância nesse estágio: a criança pequena precisa de alguém que não apenas a ame, mas que se disponha a aceitar a potência de seus instintos e sua reparação sem restrições. A criança precisa ter a chance de contribuir, derivada do senso de responsabilidade, para restaurar os danos causados pelas experiências instintuais. É desse modo que se cresce. O bebê desenvolve, então, a capacidade de sentir culpa. Se a mãe não o ajudar, corre-se o risco de desenvolver o ferrenho sentimento de culpa. Para o autor, há ética no amor materno quando a mãe cuida do bebê desde o início do nascimento (Winnicott, 1990). Na teoria do amadurecimento, é assim que se constitui o fundamento da moralidade pessoal, que não é imposta nem ensinada, mas emerge, naturalmente, a partir da aceitação e confiabilidade do ambiente. É assim que emerge o cuidado, a preocupação com o outro e a capacidade de colocar-se em seu lugar. Conviver com a construção e destruição inerentes à natureza humana é o fundamento para o desenvolvimento da capacidade de brincar. A ética, sob esse ponto de vista, está alicerçada no reconhecimento da alteridade, na diminuição da onipotência. Para Safra (2004), a palavra ética refere-se às condições necessárias ao acontecer humano – é o que permite, a cada indivíduo, morar no mundo inserido em uma comunidade. A unidade não é o indivíduo, a unidade é o contexto ambiente-indivíduo. E o centro da gravidade encontra-se na situação global. Com esse pensamento, Winnicott (2000) assinala a importância do contexto na compreensão do ser humano e de seu sofrimento. É na relação fundante com o outro, no pertencimento a um coletivo, no sentir-se parte de uma comunidade, que o indivíduo se torna capaz de construir sua singularidade.

A pesquisa na perspectiva da ética do cuidado Os pressupostos da teoria winnicottiana provocaram transformações teóricas e técnicas que tiveram, como consequência, uma nova forma de compreender o ser humano e uma clínica inovadora. Com sua concepção de que o acontecer humano só pode ocorrer pela presença do outro, a teoria winnicottiana coloca-nos frente a uma posição ética e política como pesquisadores e profissionais. De acordo com o conceito de área intermediária da experiência, área na qual o encontro entre humanos acontece, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.275-85, abr./jun. 2013

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Winnicott oferece-nos suporte para a criação de outras modalidades de atendimento e atenção, no caso, a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Gilberto Safra (2000) diz que o mundo da área intermediária não é só o lugar de encontro com o outro, mas, também, consigo mesmo; e quando se trabalha dentro da área de fenômenos transicionais, é possível servir-se do mundo como campo de jogo. A rua, os elementos do cotidiano, as situações vivenciadas, os objetos da cultura são instrumentos de mobilização do self das pessoas com as quais se trabalha, rompendo o espaço da clínica, ampliando-o para ir além, em direção ao mundo. Nesse sentido, a pesquisa sob os conceitos da teoria do amadurecimento configura-se de forma complexa e estabelece conexões com diferentes campos de saber, além de gerar um estudo que se volta à produção de vida e da saúde do indivíduo no ambiente. Este relato fala de um caminho percorrido que emergiu de situações concretas, questões que surgem menos do porquê das coisas e mais do seu como. Como modificar situações cristalizadas na violência e na miséria? Como provocar novos modos de existência em territórios tão áridos em termos de relações humanas? Como romper com histórias de sofrimento e violência para com as crianças que ali estavam? Como fugir à banalização e naturalização de acontecimentos cotidianos trazidos pelas humilhações sofridas? Na constituição deste trabalho consegue-se entrever sua complexidade; ele não poderia ficar restrito ao campo da saúde. Conexões foram tecidas, as quais ultrapassaram os limites do campo psicanalítico e adentraram pela história, sociologia, sistemas de urbanização, pelos territórios da infância e da importância do ambiente e da criatividade no processo de amadurecimento do indivíduo, evidenciando que esta pesquisa não teve apenas um objeto a ser estudado: ela se construiu ao mesmo tempo em que se fez a intervenção – é ela mesma pesquisa e intervenção. Considerou-se que o ambiente responsável é aquele que cuida do indivíduo. Semelhantemente à mãe suficientemente boa, a brinquedoteca propôs-se a realizar esse papel de acolher e sustentar o outro humano. Assim, seguimos o caminho da infância e seu encontro com o ambiente social, a forma como as crianças compreendem o mundo, as tentativas de serem acolhidas e tornarem-se visíveis em um mundo adulto, muitas vezes hostil às necessidades que o mundo infantil apresenta. A pesquisa estruturou-se a partir de uma leitura do território e do ambiente brinquedoteca, e foi autorizada pela associação dos moradores, assim como as narrativas dos moradores do bairro, de acordo com o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O campo para a pesquisa foi a brinquedoteca comunitária e os indivíduos envolvidos na pesquisa foram crianças e adolescentes que a frequentaram durante o ano de 2007. Além das crianças, a pesquisa contou, como sujeitos complementares, com os brinquedistas e estagiários que trabalhavam na brinquedoteca. O trabalho cotidiano e de intervenção seguiu os preceitos da pesquisa-ação, que é um tipo de pesquisa qualitativa com base empírica, concebida e realizada em associação com uma ação ou resolução de um problema coletivo. Para Thiollent (2003), a pesquisa-ação agrega vários métodos e técnicas de pesquisa social, com as quais estabelece uma estrutura coletiva, participativa e ativa de captação de informação. O pesquisador, como ator participante, utiliza abordagem interativa e torna-se sensível às necessidades dos sujeitos da pesquisa. Nesse contexto, a pesquisa-ação é identificada como uma nova forma de construção de saber, na qual as relações entre teoria e prática, ação e pesquisa são constantes. As teorias e estratégias construídas pelos atores no campo são confrontadas e validadas no próprio campo, provocando mudanças e questionamentos de problemáticas existentes (Morin, 2004). Minayo (2008), ao referir-se à pesquisa qualitativa, ressalta que é importante a compreensão da lógica interna dos grupos, instituições e atores quanto: aos valores culturais e sua história, as relações entre indivíduos, instituições e movimentos sociais, e a implementação de políticas públicas. Nesse sentido, desenvolver uma intervenção que desse voz a seus atores só foi possível após o conhecimento da história da comunidade, do cotidiano de seus moradores, da compreensão de como se inseriam nos serviços ofertados na comunidade, e que uso faziam dos mesmos. Pela leitura do cotidiano, da história dos indivíduos e de sua relação com o ambiente é que se pode pensar na intervenção necessária. No cotidiano e nas práticas cotidianas, encontramos possibilidades de 278

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romper naturalizações e certezas. Nilda Alves (2001) explica que há um modo de fazer e criar conhecimento no cotidiano que difere daquele aprendido na modernidade. A autora considera que aprendemos, nos últimos séculos, que o modo como se cria conhecimento no cotidiano não tem importância ou está errado. O resultado é não fixarmos ou não sabermos como são ou, ainda, não sabermos analisar os processos de sua criação. Talvez por serem esses processos produzidos por nós mesmos em nossas ações cotidianas, essa análise do conhecimento torna-se mais difícil, pois, de acordo com a ciência moderna, é necessário separar, para estudo, o sujeito do objeto. Esses conhecimentos e as formas como são tecidos exigem admitirmos ser preciso mergulhar inteiramente em outras lógicas para apreendê-los e compreendê-los (Alves, 2001). Foi preciso pensar em uma estratégia de pesquisa que contemplasse a complexidade do território e do seu cotidiano. Assim, seguimos alguns passos que começaram a delinear a pesquisa. Iniciamos por conhecer o território – para isso, trilharam-se os caminhos das vielas, ruas e casas, ouvindo, escutando, olhando e conversando com todos. Do ponto de vista documental, procuraram-se informações, artigos, documentos que auxiliassem na composição da história do bairro, das experiências anteriores que nele aconteceram. Foram encontrados artigos científicos, projetos da universidade no território, uma tese de doutorado e documentos que remontam à história da Associação de Moradores. Procuramos, nas narrativas de moradores, o resgate da história do bairro, suas especificidades e a leitura que eles faziam das mudanças ocorridas ao longo do tempo. A intervenção com as crianças e adolescentes na brinquedoteca, a supervisão dos brinquedistas e a composição da rede foram outros passos da pesquisa. A seguir, aprofundamos alguns pontos que merecem destaque nesse processo.

Conhecendo o território Um estudo que se avizinha do campo social pressupõe aceitar o desafio do território: volta-se pretendendo pensá-lo pela sua construção histórica tecida pelas relações políticas, socioeconômicas e culturais. No território coexistem e constroem-se diferentes maneiras de existir, sonhar, viver, trabalhar, realizar trocas sociais. Esse bairro não difere de muitos outros bairros da periferia da cidade de São Paulo: as mesmas necessidades e carências. Porém, no contato com a comunidade local, singularidades, particularidades daquele território foram se fazendo presentes, demonstrando ser o território, ao mesmo tempo, parte e construtor da própria história. A aproximação da realidade do bairro fez-nos conhecer o cotidiano da comunidade: a falta de segurança, o difícil acesso aos serviços de saúde, a precariedade de recursos, a ausência do poder público. A constatação dos problemas e dificuldades leva à compreensão de que eles não estavam à distância, mas próximos, e deveriam ser compreendidos não como problemas “daquelas” pessoas, mas como problemas da cidade e, portanto, de todos nós, e que também nos dizem respeito. As informações chegavam-nos por intermédio das narrativas de líderes comunitários, das crianças e dos adolescentes e, na história resgatada, percebe-se a dificuldade para iniciar a formação do bairro, sem infraestrutura e desassistido pelo poder público. A luta dos moradores era em busca de escolas, postos de saúde, coleta de lixo, transporte coletivo. Apesar das conquistas, eles contam que, ainda hoje, tais serviços são insuficientes para atender à demanda e às necessidades da comunidade. Um dos documentos sobre o bairro, coletado na pesquisa, traça, em algumas linhas, o perfil do bairro e de seus moradores. Aliado a isso, o crescimento populacional acelerado, a ocupação desordenada dos espaços, especialmente pelo adensamento das favelas, e o aumento continuado da violência e da pobreza provocaram mudanças nas formas de sociabilidade dos moradores entre si, e nas relações que estabelecem com o território, como o esvaziamento das atividades coletivas e realizadas em espaços públicos. A inexistência de políticas públicas na área, exceto as clássicas, e a descrença dos moradores no poder público e na ação política geram sentimentos de impotência. (Oliver et al., 2004, p.286)

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Sabe-se que o processo de urbanização que, ao longo da história, foi transformando a cidade de São Paulo caracterizou-se por processos especulativos que expulsaram milhares de famílias de baixa renda para a periferia da cidade. Para Milton Santos (2008), a nova ordem urbana transformou a cidade de São Paulo em valorizada cidade econômica em detrimento da cidade social, fomentando, cada vez mais, a desigualdade entre seus moradores. Na democracia proposta por Winnicott (1975b), a sociedade existe como estrutura ocasionada, mantida e constantemente reconstruída por indivíduos. Não há, portanto, realização pessoal sem a sociedade, assim como é impossível existir sociedade independentemente dos processos coletivos de crescimento dos indivíduos que a compõem. Uma sociedade democrática é uma sociedade bem ajustada aos seus membros saudáveis, e não o contrário. Um meio ambiente sociocultural que integra na justa medida é aquele que impõe as regras e os limites naturais de cada cultura e é capaz de se apresentar como suporte fidedigno, com as características básicas de holding, manejo e continuidade. O ambiente que passa a não mais responder como suficientemente bom relaciona-se diretamente com as contradições culturais impostas ao indivíduo de baixa renda em função da desigualdade, da discriminação, da intolerância, do preconceito. A liberdade para crescer, criar e contribuir, que, na teoria do amadurecimento, é tão importante para o indivíduo, é a mesma essência da tendência democrática, que necessita de um apoio consciente da sociedade (Guimarães, 2001). A confrontação com carências continuadas em função do tempo de exposição a essas situações pode levar a situação de vulnerabilidade subjetiva e ser geradora do não-desenvolvimento de uma atitude de concern – de preocupação consigo mesmo e com o coletivo.

Sustentando um lugar para brincar: para crianças e brinquedistas A intervenção realizada no acompanhamento de quatro grupos de crianças e adolescentes em dois dias da semana foi uma parte importante da pesquisa. Nesses grupos, nos quais tivemos participação ativa, foram se desvelando as sutilezas dos processos criativos, do brincar compartilhado e das modificações que o ambiente humano foi propiciando. A brinquedoteca atendia crianças e adolescentes com uma faixa etária entre quatro e 15 anos de idade. Moradores da região e das favelas próximas, a maioria chegava desacompanhada. Os pais saíam cedo para o trabalho e voltavam no final da tarde. A maioria das crianças era cuidada por avós, tios, vizinhos. Cerca de duzentas crianças e adolescentes participavam das atividades da brinquedoteca e estavam divididos em grupos de 25 crianças. Esses grupos aconteciam de segunda a sexta-feira, no período complementar ao da escola. Na organização dos grupos, crianças e adolescentes puderam escolher dois dias da semana para vir à brinquedoteca e construir as regras coletivas de participação e convivência. Participavam, assim, de grupos de brincadeiras que se reuniam durante a semana, sob supervisão de brinquedistas e estagiários, que acompanhavam as brincadeiras, estruturavam o ambiente para que todos pudessem brincar e planejavam atividades junto às crianças e adolescentes. Filmes, festas, piqueniques, construção de jogos e brinquedos, teatro, contação de histórias, faziam parte das atividades desenvolvidas nos grupos de brincadeira. Encontramos, na brinquedoteca, algumas crianças que lutavam pela própria sanidade, por um espaço de saúde que as acolhesse, que lhes confirmasse a condição do humano, do crescimento, da vida. Desapegadas, com dificuldades de estabelecer vínculos, viviam em estado de tensão e alerta que as impedia de viver outras formas de relação e convívio. A situação dessas crianças chamava a atenção e forçava-nos a olhá-las. A convivência diária com as crianças e os adolescentes mostrava-nos que nem tudo era tranquilo: os conflitos eram diários e corriqueiros, as agressões frequentes eram a forma encontrada por muitos para a resolução dos conflitos. Observava-se que as diferenças não eram aceitas, o princípio era de exclusão, e não de complementaridade. Os jogos se baseavam em quem era o melhor e quem era o pior. O individualismo era sempre pautado na luta pela sobrevivência: quem pode mais leva a melhor. Era preciso estar sempre alerta, ser mais rápido, conseguir vantagens individuais em detrimento do coletivo. Os princípios da teoria do amadurecimento faziam, cada vez mais, sentido na leitura do território e da brinquedoteca. A 280

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falta de continuidade dos serviços oferecidos provocava, nas crianças, a incerteza, a instabilidade e, para muitos, reforçava a descrença no outro humano. A confiabilidade e a fidedignidade tornavam-se necessárias não apenas para as crianças e adolescentes, mas, também, para brinquedistas e estagiários. A provisão ambiental proposta deveria dar sustentação e acolhimento a todos. Para sustentar esse trabalho, foi preciso pensar na organização da equipe, do espaço e dos grupos de crianças e adolescentes. Estabelecemos uma reunião semanal da equipe para organizar o trabalho, discutir e refletir sobre as atividades cotidianas e a elaboração das atividades seguintes, pensar nas intervenções e, sobretudo, conversar e conhecer as crianças que ali vinham brincar. Propunhamo-nos a trabalhar a compreensão dos processos de desenvolvimento a partir dos pressupostos da teoria do amadurecimento e como poderíamos intervir para que o desenvolvimento saudável pudesse ocorrer com crianças que apresentavam dificuldades nesse processo. O cuidado com o brincar era, assim, uma das faces do acolhimento proposto pela brinquedoteca. Começou-se a introduzir uma organização e um olhar específico a cada criança e ao grupo como um todo. Se, na teoria winnicottiana, o brincar é um dos mais importantes sinais de saúde, no ambiente brinquedoteca o cuidado traduzia-se de diversas maneiras, de acordo com a necessidade de cada criança. Desde o acolhimento, o reconhecimento de cada um, o respeito à sua singularidade, sua subjetividade, até a noção de continuidade dada pela certeza de que, amanhã, nos veríamos de novo. Observou-se que uma mudança no brincar estava ocorrendo. Meninos e meninas traziam, para a brinquedoteca, brinquedos com os quais gostavam de brincar. Era a pipa, o pião, a corda, o elástico, as bolinhas de gude, CDs preferidos. Eles apareciam para ser compartilhados. As negociações se tornaram mais frequentes e os conflitos foram, ao longo do ano, sendo resolvidos de outro modo que não o embate corporal. Os grupos eram constituídos pelo interesse e disponibilidade de horário das crianças e adolescentes, que participavam das atividades propostas ou escolhiam suas brincadeiras. Winnicott, com sua simplicidade e profundidade, deixou, ao mundo, uma teoria que afirma a importância do brincar não apenas para as crianças, mas, também, com relação aos adultos, uma vez que esse brincar se dá na superposição de dois espaços de brincar, estando relacionado a duas pessoas que brincam juntas. É por meio da atividade lúdica que o indivíduo se apropria da experiência cultural: como atividade humana, ela abre possibilidades para um campo em que as subjetividades se encontram com elementos da realidade externa, possibilitando uma experiência criativa com o conhecimento. O brincar na teoria winnicottiana ganha um estatuto próprio e abre outra possibilidade de compreensão do indivíduo e sua relação com o ambiente. O brincar winnicottiano é a expressão da criatividade, da possibilidade de o indivíduo criar o mundo por meio de seu gesto espontâneo. Estamos falando de um brincar que tem espaço e lugar para acontecer, tanto na subjetividade de cada um quanto na realidade compartilhada; um brincar que se propõe criativo, pois o entrelaçamento com o ambiente faz com que o indivíduo possa criar e transformar, colocar algo de seu no mundo compartilhado. É no brincar que a criança e o adulto fruem sua liberdade de criação e, assim como a experiência cultural, o brincar pode receber uma localização: o espaço potencial existente entre mãe e bebê. O autor chama a atenção para o fato de que não se pode fazer uma descrição do desenvolvimento apenas em termos do indivíduo, e, sim, considerar que o comportamento do ambiente faz parte do próprio desenvolvimento pessoal do indivíduo e, portanto, tem de ser incluído. No papel de adultos e cuidadores, os brinquedistas acreditavam que sua função se resumia em cuidar do espaço físico, dos brinquedos e da segurança das crianças. Retiravam-se das brincadeiras em muitos momentos, não percebendo a preciosidade da oportunidade de brincar junto. Nesse sentido, a reunião de equipe foi um dispositivo diretamente relacionado ao coletivo institucional, que se refere não apenas ao conjunto de pessoas, mas a um coletivo compreendido no sentido de multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo. A compreensão de atitudes e da responsabilidade como profissional implicava compreender que precisávamos modificar algumas coisas já estabelecidas e criar coisas novas – e, sobretudo, a importância de estarmos presentes nas brincadeiras, compartilhá-las e sustentarmos o brincar quando não havia possibilidade de ele acontecer.

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Tecendo a rede Outro passo da pesquisa baseada nos pressupostos da teoria do amadurecimento possibilitou ampliar o trabalho para além das relações individuais e fortalecer as práticas coletivas. Os cuidados ampliaram-se e provocaram, em outros espaços, novas formas de pensar a atenção à criança. Ficava implícito que não bastava criar condições de humanidade e respeito dentro da brinquedoteca se, ao saírem de lá, crianças e adolescentes continuavam submetidos à barbárie, a um mundo que não as acolhia. No dia seguinte, retornavam à brinquedoteca reagindo de modo muito primitivo frente ao que estavam sofrendo. A concepção de que a atenção à criança se faz por meio da composição de uma rede de cuidados que reduza os danos causados em seu processo de amadurecimento fez com que pudéssemos compor outros tipos de agenciamentos, criando uma política de conectividade, de vizinhança, uma possibilidade de trabalho por meio de uma relação de ressonância estabelecida entre os elementos do território. Para além da brinquedoteca, havia a necessidade de compor o trabalho com as escolas, a instituição de saúde, a associação de moradores e os próprios moradores do bairro. Tecer a rede de responsabilidade compartilhada foi um dos caminhos encontrados para ampliar a rede de cuidados que ia sendo tecida por meio da brinquedoteca. Ao participarmos ativamente das reuniões da rede, compreendemos que, facilmente, poderíamos cair na armadilha da impotência frente aos problemas que a comunidade apresentava. Descrença e desconfiança idênticas percebidas nas crianças percebiam-se, também, na comunidade e seus representantes. A paralisação de projetos sociais e de políticas que começavam e eram interrompidas indicavam a causa de tanta descrença. Os moradores sentiam que a comunidade era abandonada por essas iniciativas frustradas. Essa era a justificativa para não se fortalecerem como coletivo, como autores e protagonistas na própria comunidade. Compreende-se que as carências continuadas e as limitações impostas a uma vida saudável e de qualidade geram sentimentos de banalização do sofrimento, da falta de capacidade de se preocupar, e criam uma dificuldade ou impossibilidade de organização social. Trabalhar com a impotência, com a falta de perspectiva, o descaso, foi, no início, o trabalho mais importante. Construir uma relação baseada na confiabilidade e na fidedignidade permitiu-nos tecer parcerias, nos organizarmos como um coletivo, pensarmos juntos sobre as necessidades e ações necessárias. Nesse sentido, a rede conduziu a questionamentos acerca do fazer de cada um e história do bairro. Esse modo de trabalhar foi provocando indagações nas instituições, convocando-as a pensar o coletivo, tirando-as da individualidade, do fazer solitário, implicando todos em um trabalho compartilhado. Em uma leitura winnicottiana, o trabalho em rede facilita a realimentação e manutenção do campo imaginário compreendido como espaço potencial. Neste estudo, compreendemos que a rede precisa ter uma dinâmica instrumentalizada a partir de atitudes de holding social, manejo social, fidedignidade e limite não invasor, visando à criação de uma atmosfera de suporte, acolhimento e o registro vivencial de uma linha de continuidade de ser entre indivíduos de um coletivo. Realizar esse trabalho foi como tecer fio a fio, nó a nó, cada movimento da rede. Pudemos compreender que, nessa relação de horizontalidade, pessoas e instituições iam mobilizando questões importantes, ações coletivas e, no percurso, sabiam que poderiam contar com alguém para executá-las. O cuidado com cada parceiro, a responsabilidade, o reconhecimento de cada um e sua importância na comunidade criaram laços e permitiram-nos configurar a rede de acordo com as necessidades que iam surgindo. Compreendemos que as diferentes formas de sustentação são formas de cuidado que fornecem segurança e tranquilidade no sentido de continuidade da experiência de existência pessoal.

Resultados finais A pesquisa a partir da ética do cuidado e do encontro aponta-nos novas possibilidades de convívio e de novas formas de existência. Crianças, adolescentes, brinquedistas, comunidade foram os atores na configuração de um trabalho de atenção e cuidado a crianças e adolescentes, e os resultados foram se delineando ao longo do caminho percorrido. O ambiente proposto na brinquedoteca potencializou a 282

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importância do espaço compartilhado, como mediador entre as necessidades e desejos das crianças e os limites e as possibilidades da realidade externa. Nessa intervenção, o papel do adulto foi acolher as diferenças, estar junto quando o brincar não era possível, e fornecer segurança suficiente para que o brincar criativo pudesse fazer parte da vida delas. Em relação às reuniões de equipe, percebíamos que a importância do adulto na relação com a criança foi se solidificando: de um olhar de que estavam ali para cuidar do espaço físico, dos brinquedos e da segurança das crianças, a um cuidado com o brincar, o brincar compartilhado, o brincar da ordem do brincar winnicottiano. No coletivo, a rede de responsabilidade compartilhada criou dispositivos de sustentação à infância e à adolescência na comunidade. O trabalho em rede possibilitou criar condições para que o grupo pudesse articular novos trabalhos, novas propostas, novas formas de organização. As relações que se estabeleceram baseadas na confiabilidade, fidedignidade e constância das ações ofereceram, às crianças, adolescentes e comunidade, a provisão de um ambiente humano que propiciou um modo pessoal de existir, em que puderam ser mais criativos e menos vulneráveis frente aos desafios encontrados. No trânsito entre o individual e o coletivo, as práticas cotidianas produziram resultados importantes: um deles cria o pensamento de que o trabalho construído na atenção à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade social só é possível em rede.

Considerações finais A pesquisa realizada com crianças coloca um desafio: ver o mundo por meio de seus olhos e vivenciá-lo a partir de suas atividades, de seus corpos; compreendê-lo a partir de suas ideias. Para Benjamin (1984), a ideia de infância encontra-se no centro de sua concepção de memória histórica e deve ser tratada de forma coletiva: compreender a criança é fundamental para se compreender a época em que se vive. Ao compreendê-la como criadora de cultura, ela é desnaturalizada e estabelece-se uma relação crítica com a tradição. Assim, a pesquisa estruturou-se a partir de uma leitura do território e do ambiente brinquedoteca. Na tentativa de realizar um trabalho crítico, de desvelamento das crianças e adolescentes, esta narrativa não poderia ser tentada a simplificar, diluir os problemas que se apresentaram ao longo desse percurso. Fazia-se importante que a relação entre indivíduo e ambiente fosse mais bem explicitada, e os entraves passíveis de ocorrerem nessa trama de relações também fossem contemplados. Procurou-se uma teoria e, consequentemente, um método que compreendesse o indivíduo na sua relação com o mundo, que rompesse com as dicotomias existentes entre sujeito e objeto, e pudesse considerar entre eles um espaço, com características próprias. Ao se construir uma proposta de atenção a crianças voltada para o social, provocando conexões com outros campos de conhecimento, entende-se que provocamos novas formas de subjetivação e existência, rompendo com os silenciamentos e silêncios que perpassam as práticas voltadas à infância. A importância e a relevância do brincar na estruturação subjetiva apontam para os riscos e consequências que a falta da possibilidade do brincar pode provocar no desenvolvimento saudável da criança. O trabalho a partir desse modelo é o mesmo que o escape das formas totalizantes, aliando-se a um paradigma ético-estético-político: “Ético no que se refere ao desejo pela diferença, estético por se agenciar no sentido da criação de novos processos de subjetivação e político por estar necessariamente implicado, assumindo compromissos e riscos” (Neves et al., 1993, p.181).

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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ÉTICA DO CUIDADO: A BRINQUEDOTECA COMO ESPAÇO ...

Referências ALVES, N. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, J.B.; ALVES, N. (Orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.561-1, 2005. BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. GALLETTI, M.C. Itinerários de um serviço de saúde mental na cidade de São Paulo: trajetórias de uma saúde poética. 2007. Tese (Doutorado) - Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. 2007. GUIMARÃES, M.A.C. A rede de sustentação: um modelo winnicottiano de intervenção em saúde coletiva. 2001. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2001. JURDI, A.P.S. A ética do cuidado e do encontro: a possibilidade de construir novas formas de existência a partir de uma brinquedoteca comunitária. 2010. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2008. MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropedagogia renovada. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. NEVES, C.A.B. et al. Teoria e práticas psicológicas em instituições públicas: uma abordagem transdisciplinar da clínica. Cad. Subjet., v.1, n.1, p.176-86, 1993. OLIVER, F.C. et al. Participação e exercício de direitos de pessoas com deficiência: análise de um grupo de convivência em uma experiência comunitária. Interface (Botucatu), v.8, n.15, p.275-8, 2004. SAFRA, G. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Ideias & Letras, 2004. ______. Introdução. In: BARRETO, K.D. (Org.). Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco, 2000.p.7-10. SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2008. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2003. WINNICOTT, D.W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. ______. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. São Paulo: Artes Médicas, 1990. ______. A criatividade e suas origens. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975a. p.95-120. ______. A localização da experiência cultural. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975b. p.133-143.

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artigos

JURDI, A.P.S.; AMIRALIAN, M.L.T.M.

JURDI, A.P.S.; AMIRALIAN, M.L.T.M. La ética del cuidado: la ludoteca como un espacio de atención para los niños en situación de vulnerabilidad. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.275-85, abr./jun. 2013. El objetivo de este artículo es presentar el recorrido de la investigación que tuvo origen en el encuentro entre las áreas de la salud y las sociales a partir de la teoría de la maduración. El campo de la investigación fue la ludoteca comunitaria y las personas involucradas fueron los niños, los adolescentes y los profesionales de la ludoteca. El trabajo diario y de intervención observó los preceptos de la investigación-acción, diseñada y llevada a cabo en asociación con una acción o resolución de un problema colectivo. Al construir una propuesta de atención enfocada en lo social, estableciendo conexiones con otras áreas del conocimiento, se entiende que hacemos surgir nuevas formas de subjetividad y existencia, rompiendo con los silenciamientos y silencios que impregnan las prácticas dirigidas a la infancia. El trabajo ha producido nuevas posibilidades de pensar sobre el ser humano y los procesos de exclusión social.

Palabras clave: Juego e implementos de juego. Ética. Vulnerabilidad. Redes sociales.

Recebido em 23/08/12. Aprovado em 05/04/13.

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artigos

Apoio matricial em saúde mental na atenção primária à saúde: uma análise da produção científica e documental Iris Guilherme Bonfim1 Evelyne Nunes Ervedosa Bastos2 Cezar Wagner de Lima Góis3 Luis Fernando Tófoli4

BONFIM, I.G. et al. Matrix support in mental health in primary halth care: a review of scientific papers and official documents. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.287-300, abr./jun. 2013. The challenge of an effective comprehensive care in the Brazilian National Health System sustains a debate about the mMatrix support (MS) for the Family Health Strategy (FHS) while stressing the need for further studies on the subject. This paper aims to critically analyze the matrix support with the aid of scientific papers and documents from the Brazilian Ministry of Health, especially those directed to mental health (MH) matrix support in primary care. The results emphasize the importance of coordination between the MH and primary care, though they also indicate that MS in MH is encompassed within a health care model that is still under construction and that new theoretical-practical contributions and evaluative studies are needed for its improvement.

Keywords: Matrix support. Mental health. Primary health care. Family health strategy.

O desafio da efetivação da integralidade da atenção no Sistema Único de Saúde (SUS) favorece a discussão sobre o apoio matricial (AM) para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e evidencia a necessidade de mais estudos sobre o tema. Neste artigo analisa-se criticamente o apoio matricial por meio de publicações em periódicos e documentos do Ministério da Saúde, especialmente aqueles focados no apoio matricial em saúde mental (SM) na atenção primária. O material estudado enfatiza a importância da articulação entre a SM e a atenção primária, embora também indique que o AM em SM faz parte de um modelo de atenção à saúde em construção e novos aportes teórico-práticos e estudos avaliativos são indispensáveis para seu aperfeiçoamento.

Palavras-chave: Apoio matricial. Saúde mental. Atenção primária à saúde. Estratégia Saúde da Família.

Elaborado com base em Bonfim (2009), e em parte da revisão bibliográfica de Bonfim (2012); dissertação com bolsa da Capes. 1 Curso de Psicologia, Universidade de Fortaleza. Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz. Fortaleza, CE, Brasil. 60.811-905. irisbonfimpsi@ yahoo.com.br 2 Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. 3 Mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Ceará. 4 Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. *

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Introdução Apesar de um considerável progresso obtido desde a Declaração de Alma-Ata (Opas, 1978), os sistemas de saúde ainda estão organizados para a atenção às doenças agudas. Assim, continua sendo um desafio empreender cuidados inovadores para dar conta, também, das condições crônicas de saúde – incluindo as doenças mentais. Neste sentido, o Brasil – por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) – vem construindo estratégias possíveis de contribuir para a superação desta limitação. Podemos destacar, entre estas estratégias: o estabelecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixo organizador da Atenção Primária à Saúde (APS); a Política de Saúde Mental com a reversão do modelo centrado no hospital psiquiátrico e com a criação de uma rede de serviços substitutivos a este; a Política Nacional de Humanização e as estratégias de mudança no sistema vinculadas a esta; e a Política Nacional de Educação Permanente. Entretanto, apesar de todo o esforço e dos significativos avanços, estes ainda são modestos diante dos desafios impostos pela realidade sanitária aos profissionais e serviços de saúde e à população (Góis, 2008). Assim, persistem, no SUS, as tradicionais formas de funcionamento dos serviços de saúde, que mantêm processos de trabalho fragmentados, centrados em procedimentos e com foco de atuação no modelo biomédico hegemônico, que dificultam o trabalho em equipe e a integração dos saberes de várias categorias profissionais, que poderiam facilitar a concretização do princípio da integralidade com maior potência para o SUS (Campos, 1999, 1998). Seria, portanto, uma tarefa de o processo reflexivo sobre a saúde coletiva compreender melhor os modelos que estruturam os serviços e sistemas de saúde. Segundo Paim (1994), modelos assistenciais são: [...] combinações tecnológicas utilizadas pela organização dos serviços de saúde em determinados espaços-populações, incluindo ações sobre o ambiente, grupos populacionais, equipamentos comunitários e usuários de diferentes unidades prestadoras de serviços de saúde com distinta complexidade. (Paim, 1994, p.457)

De forma complementar, Campos (1989, p.53) define os modelos assistenciais como “o modo como são produzidas as ações de saúde e a maneira como os serviços de saúde e o Estado se organizam para produzi-las e para distribuí-las”. Posteriormente, o conceito de modelos de atenção veio ampliar e superar a perspectiva técnico-assistencial, incluindo, além de um componente técnico (também chamado de operativo), as vertentes gerencial e organizativa (Teixeira, 2006). Conforme Mendes (2010), as redes de atenção à saúde são compostas por três elementos constituintes: a população, a estrutura operacional e os modelos de atenção. Para Mendes, estes elementos são: Sistemas lógicos que organizam o funcionamento das redes de atenção à saúde, articulando, de forma singular, as relações entre a população e suas subpopulações estratificadas por riscos, os focos das intervenções do sistema de atenção à saúde e os diferentes tipos de intervenções sanitárias, definidos em função da visão prevalecente da saúde, das situações demográfica e epidemiológica e dos determinantes sociais da saúde, vigentes em determinado tempo e em determinada sociedade. (Mendes, 2010, p.2302)

É lícito, pois, a partir deste ponto, lançar a questão sobre quais as formas de organização das redes e modelos de atenção que poderiam mudar uma estrutura de saúde centrada na doença e na figura do médico, com um trabalho frequentemente fragmentado e avesso à colaboração. No intuito de contribuir com a confrontação de um modelo de atenção burocratizado e centrado na doença, Campos (1999, 1998) propõe o Apoio Matricial (AM) como uma estratégia de organização do trabalho em saúde cuja atuação deve ser complementar aos sistemas de referência e contrarreferência e às centrais de regulação da atenção especializada. Desta forma, o AM sugere uma mudança radical na conduta do especialista, indicando que este passe a ter uma postura dialógica e horizontal com os outros profissionais da rede de saúde. 288

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O AM objetiva a oferta de suporte assistencial e técnico-pedagógico, pelo especialista, para equipes interdisciplinares que atuem como equipes de referência e possuam uma clientela adscrita. Essas equipes de referência buscam ampliar a possibilidade de construção de vínculo entre profissionais e usuários e reforçar o poder de gestão da equipe interdisciplinar (Campos, Domitti, 2007). O apoiador matricial é um profissional especializado em alguma área de conhecimento (saúde mental, educação física, nutrição, fisioterapia etc.) que difere da área de conhecimento da equipe de referência, e que pode apoiar esses profissionais com determinadas informações e intervenções voltadas para contribuir na ampliação da resolutividade das ações dessa equipe. Como evidenciado, a proposta do AM tem sido incentivada pelo Ministério da Saúde (MS) nas Políticas Nacionais de Saúde Mental, de Atenção Básica e de Humanização (Campos, Domitti, 2007). Esta pode ser considerada uma estratégia inovadora (OMS, 2003) para atenção às condições crônicas de saúde na APS brasileira (Onocko Campos et al., 2012). Desde 2001, em oficinas de trabalho e congressos, o MS já demonstrava interesse na aproximação entre a saúde mental e a atenção primária (Onocko Campos, Gama, 2008). Em 2003, o MS apontou o apoio matricial como diretriz para a inclusão das ações de saúde mental na atenção primária (Brasil, 2003). No entanto, o incentivo financeiro para a sua realização só aconteceu com a criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Brasil, 2008). Conforme determina a portaria que criou o NASF, os núcleos devem ser constituídos por equipes formadas por profissionais de diferentes áreas do conhecimento, atuando de forma compartilhada e dividindo, com as equipes de saúde da família, a responsabilidade pelas ações de saúde no território onde atuam. Além disso, esses profissionais precisam, segundo a portaria, rever as práticas de encaminhamento baseadas nos processos de referência e contrarreferência. O objetivo do NASF é qualificar as ações da ESF, bem como ampliar a resolutividade e a integralidade da APS e, consequentemente, do SUS. De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2009), o apoio matricial constitui uma das ferramentas necessárias para a organização do processo de trabalho do NASF e evidencia este núcleo como uma das principais estratégias de atenção em saúde mental na atenção primária nos últimos anos (Brasil, 2011) – o que favorece a realização do apoio matricial em saúde mental para a ESF e fortalece a necessidade de mais estudos sobre este. Os autores deste trabalho ancoraram seus questionamentos em busca de maior compreensão do apoio matricial em saúde mental a partir das suas experiências na implantação desta modalidade de atenção na cidade de Fortaleza-CE. Em 2005, Fortaleza iniciou um redirecionamento políticoorganizacional na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) que estabeleceu a saúde mental e a atenção primária entre as áreas prioritárias de investimento. Isto levou a um processo gradual de implantação do AM em SM no município a partir de 2006, intensificado no biênio 2008-2009, mas ainda não totalmente estabelecido até o presente momento. Diante da nossa inquietação no contexto da prática, decidimos investigar de forma sistemática a produção teórico-conceitual a respeito desse arranjo organizacional (Bonfim, 2009). Assim, o objetivo deste artigo é analisar criticamente o apoio matricial por meio das publicações em periódicos científicos e documentos do Ministério da Saúde, enfocando, de modo especial, o apoio matricial em saúde mental na atenção primária.

Metodologia Este artigo consiste em um estudo de natureza qualitativa do tipo exploratório, incluindo um levantamento bibliográfico (Gil, 1999) e uma pesquisa documental (Leopardi, 2002), sobre a construção do conhecimento acerca do apoio matricial. Inicialmente, fizemos um levantamento bibliográfico, na Biblioteca Virtual da Saúde (BVS), dos artigos científicos que apresentavam os termos “apoio matricial”, “apoio matricial em saúde mental” e “matriciamento em saúde mental”, referentes aos anos de 1998 a fevereiro de 2012 (não há descritores específicos para apoio matricial). Os autores selecionaram dois grupos de artigos científicos: 1) aqueles COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.287-300, abr./jun. 2013

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com reflexões teóricas e práticas sobre apoio matricial sem fazer referência específica a uma especialidade de atenção à saúde, e 2) aqueles focados no apoio matricial em saúde mental na APS. Desta forma, foi encontrado, na BVS, um total de 26 artigos científicos que se encaixavam nestes perfis. Entretanto, no decorrer da análise do material bibliográfico, foram incluídos mais sete artigos publicados em periódicos científicos e livros sobre saúde coletiva que se adequavam ao perfil dessa revisão, com vistas a enriquecer a revisão bibliográfica sobre o tema. Foram analisados, ainda, documentos do Ministério da Saúde (Brasil, 2011, 2009, 2008, 2007, 2005, 2004a, 2004b, 2004c, 2003) que abordaram o tema apoio matricial entre 2003 e fevereiro de 2012. A etapa seguinte iniciou-se com a leitura dos artigos e documentos num exercício de compreenderlhes o conteúdo central. Posteriormente, realizamos uma leitura mais detalhada e qualificada para a elaboração de uma análise crítica sobre os artigos e documentos. Depois, fizemos o fichamento destes, organizando e classificando cuidadosamente as principais ideias dos autores e dos documentos. A partir disso, duas grandes categorias emergiram: Diretrizes do Apoio Matricial e Apoio Matricial em Saúde Mental na Atenção Primária, a respeito das quais discorreremos a seguir.

Discussão Com a análise do ano de publicação dos artigos utilizados nesta pesquisa, observamos um grande intervalo de tempo – oito anos – entre a publicação do segundo artigo que define o apoio matricial em saúde (Campos, 1999) e os posteriores. Isso pode ter se dado pelo fato de que não havia financiamento específico para estimular o apoio matricial, limitando sua implantação em municípios onde os gestores fossem sensíveis a essa metodologia. Tal fato também pode justificar a escassa produção científica sobre o tema nesse período. A partir de 2003, vários documentos institucionais do Ministério da Saúde (Brasil, 2007, 2005, 2004a, 2004b, 2004c, 2003) trazem a proposta do apoio matricial. Apesar disso, é somente com a criação do NASF (Brasil, 2008) que o Ministério da Saúde possibilita o financiamento que estimula a ação de apoio matricial na ESF. No Quadro 1, consta a temática central de cada artigo selecionado, o número de itens e a referência dos artigos ligados a cada tema. No Quadro 2, a descrição, a quantificação e as referências dos documentos ministeriais selecionados. Cabe ressaltar: os documentos oficiais que mencionam ou se referem ao apoio matricial foram emitidos somente a partir do ano de 2003. Examinemos, agora, as duas categorias centrais da análise realizada por este artigo.

Diretrizes do apoio matricial Para a organização do trabalho em apoio matricial e equipe de referência, há desafios tanto estruturais quanto organizacionais. Os obstáculos estruturais, decorrentes do excesso de demanda e carência de recursos, são uma evidência do distanciamento entre as diretrizes políticas dos documentos oficiais do Estado brasileiro e a execução e cobertura do SUS na realidade dos municípios. A existência, porém, dos problemas estruturais não exclui a existência de obstáculos de ordem organizacional (Campos, Domitti, 2007), que Campos e Cunha (2011) reconhecem como dependentes, também, dos obstáculos estruturais. Entretanto, na ótica de Campos e Cunha, a superação dos obstáculos organizacionais pode ser, em parte, implementada por gestores e profissionais. Assim, a organização tradicional na forma gerencial hegemônica dos serviços de saúde contribui para gerar uma série de consequências indesejáveis: alienação do trabalhador e limitação do olhar dos profissionais sobre o processo saúde-doença; concentração da atenção apenas na enfermidade e em procedimentos; restrição da clínica à tradicional terapêutica com fármacos (Campos, Rattes, 2008); e desvalorização do saber de outras áreas de conhecimento, fundamentais para uma atenção integral ao usuário. Diante desse contexto, as diretrizes do apoio matricial (Campos, 1999) focam-se em esforços significativos para sua organização, os quais podem contribuir para reduzir a potência de alguns obstáculos organizacionais.

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Nº de Itens

Artigos que se referem à temática apontada

Apoio matricial

5

Apoio matricial em saúde mental na APS

2

Apoio matricial + NASF

1

Campos, 1998, 1999; Campos, Rates, 2008; Oliveira, 2008; Campos, Domitti, 2007. Onocko Campos, Gama, 2008; Figueiredo, Onocko Campos, 2008. Campos, Cunha, 2011.

Temática abordada nos artigos científicos

artigos

Quadro 1. Temática central, quantidade e referências dos artigos analisados por cada temática.

Reflexões teórico-conceituais

Reflexões teórico-conceituais e pesquisas qualitativas sobre saúde mental na APS que enfocam o apoio matricial em saúde mental Pesquisas avaliativas com usuários e profissionais Pesquisa com conselheiros de saúde Pesquisa com profissionais de CAPS Pesquisa com profissionais da ESF

2 1 1 4

Pesquisa com profissionais de CAPS e da ESF Pesquisa com coordenadores de CAPS infantil e unidades de saúde da família Pesquisa com profissionais de SM, da ESF e com gestores

1 1

Onocko Campos et al., 2012, 2011. Conssetin, OlschowsKy, 2011. Bezerra, Dimenstein, 2008. Cavalcante et al., 2011; Milke, Olschowsky, 2010; Dimenstein et al., 2009a, 2009b. Souza et al., 2011. Delfini, Reis, 2012.

1

Figueiredo, Onocko Campos, 2009.

1

Carneiro et al., 2009.

Apoio matricial em saúde mental na APS

5

+ Outras especialidades + NASF + Residência Multiprofissional

1 1 1

Prestes et al., 2011; Delfini et al., 2009; Soares, 2008; Bardan, Oliveira, 2007; Tófoli, Fortes, 2007. Arona, 2009. Bezerra et al., 2010. Meira, Silva, 2011.

2

Böing, Crepald, 2010; Ferreira Neto, 2008.

1

Harada, Soares, 2010.

1

Vieira Filho, Rosa, 2011.

Pesquisa Intervenção Realizada por estudantes de Residência Multiprofissional com agentes comunitários de saúde Relatos de experiência que enfocam apoio matricial em saúde mental na atenção primária à saúde

Ponderações sobre apoio matricial em saúde mental na APS e pesquisas documentais Abordam o profissional de psicologia e sua incursão em políticas públicas de atenção primária e de saúde mental Pesquisa com agentes comunitários de saúde sobre Depressão Apoio matricial em saúde mental apontado como ferramenta determinante para a qualidade do atendimento às pessoas com transtornos mentais na atenção primária Estudo de caso Sobre um usuário acompanhado no apoio matricial em saúde mental em um Centro de Saúde da Família Total de itens

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APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL ...

Quadro 2. Descrição, quantidade e referências dos documentos analisados Documentos oficiais

Nº de Itens

Referência dos documentos

Legislação

1

Brasil, 2008.

Circular Conjunta - Coord. de Saúde Mental e Coord. da Atenção Primária

1

Brasil, 2003.

Documento da Política Nacional de Atenção Primária

1

Brasil, 2009.

Documentos da Política Nacional de Saúde Mental

2

Brasil, 2005, 2004b.

Cartilhas da Política Nacional de Humanização

2

Brasil, 2004a, 2004c.

Relatórios de Gestão da Coordenação Nacional de Saúde Mental

2

Brasil, 2007, 2011.

Total de itens

9

A primeira delas é a diretriz de gestão colegiada, que aponta para a necessidade da existência de espaços coletivos para a discussão e reflexão sobre os processos de trabalho (Figueiredo, Onocko Campos, 2009, 2008; Oliveira, 2008). Ela demonstra, assim, a importância da gestão compartilhada entre trabalhadores e gestores, com algum grau de democracia institucional. Desta forma, a organização do processo de trabalho em apoio matricial e equipe de referência depende da efetivação de projetos coletivos pactuados entre a gestão e os profissionais (Arona, 2009; Dimenstein et al., 2009a), exigindo-lhes autonomia e compromisso para a efetivação dos processos de trabalho pactuados coletivamente. A segunda diretriz, vínculo terapêutico, apontada por Campos (1999), sobretudo, a partir da equipe de referência, tem o objetivo de realizar um acompanhamento mais próximo dos usuários sob seus cuidados. Contribui, assim, para a avaliação das necessidades de saúde dos usuários e para o estímulo de uma relação de confiança e de vínculo terapêutico entre profissionais e usuários, mesmo que estes estejam sendo atendidos também em outros serviços. Entretanto, conforme demonstra a análise de outras produções que abordam o apoio matricial (Delfini, Reis, 2012; Mielke, Olchowshy, 2010; Brasil, 2009; Carneiro et al., 2009), a construção de vínculo deve ser estimulada não somente na relação entre profissionais e usuários, mas, também, entre os próprios profissionais. Isto favorece a integração da equipe, facilita a troca de informações e de afetos entre eles, possibilita um ambiente mais prazeroso para profissionais e usuários, e mais rico em conhecimentos e em sentimentos positivos. A terceira diretriz é a de interdisciplinaridade das práticas e dos saberes. Para um esclarecimento mais detalhado dessa diretriz, fundamental para a efetivação do apoio matricial, Campos e Cunha (2011) afirmam a necessidade de trabalhar com uma ferramenta conceitual que contribui para promover uma mudança epistêmica de flexibilização das rígidas fronteiras entre as profissões de saúde. Tal ferramenta corresponde aos conceitos de núcleo e campo de conhecimento. O núcleo corresponde ao tradicional conjunto de conhecimentos e ações que são específicos de determinada categoria profissional. Por sua vez, o conceito de campo representa uma abertura da identidade profissional cristalizada para uma atuação voltada à interdisciplinaridade e à interprofissionalidade. Desta forma, o conceito de campo corresponde ao conhecimento a ser apropriado por profissionais que atuam em um mesmo contexto, com vistas a conseguirem imprimir eficácia e eficiência ao trabalho (Campos, Cunha, 2011). Sendo assim, conforme a diretriz de interdisciplinaridade das práticas e dos saberes, a organização dos arranjos apoio matricial e equipe de referência colabora para a troca de saberes, favorece a comunicação ativa e o estabelecimento de relações horizontais entre profissionais de distintos núcleos de conhecimentos (Oliveira, 2008). Ajuda, também, na transformação do modelo biomédico hegemônico por meio da ampliação da clínica (Brasil, 2004a, 2004c). A um apoiador matricial, impõem-se determinados desafios. Entre estes, a interação com outros profissionais de saúde e a realidade complexa da maioria dos usuários que são atendidos no SUS. O 292

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BONFIM, I.G. et al.

artigos

saber de cada núcleo profissional jamais dará conta totalmente da complexidade do processo saúdedoença. Frequentemente, o apoiador será interpelado por esta complexidade e pela interação entre as profissões nesta estratégia de organização do trabalho em saúde. Para a garantia da integralidade da atenção, bem como para a ampliação da resolutividade do SUS, faz-se indispensável a construção interdisciplinar. Desta forma, a proposta desses dois arranjos exige mudanças não só na estrutura organizacional dos serviços, mas, também, nas atitudes e práticas de profissionais e de gestores, buscando uma renovação cultural dos serviços e dos profissionais e gestores da saúde (Oliveira, 2008). Na implementação do apoio matricial, inúmeros desafios são colocados para gestores e profissionais da ESF e do NASF pelo país. Em relação aos gestores, enquanto muitos reconhecem a necessidade desse arranjo, outros o implementam, exclusivamente, pelo estímulo do financiamento do NASF. Contudo, esse mesmo reconhecimento parece ser raro no que se refere ao estímulo à reorganização das ações de saúde, a partir das diretrizes sugeridas pelo Ministério e pelas publicações sobre o tema.

Apoio Matricial em Saúde Mental na Atenção Primária Os artigos analisados trazem várias discussões relacionadas ao apoio matricial em saúde mental na APS em diferentes cidades do Brasil: Campinas-SP, São Paulo-SP, Fortaleza-CE, Camaragibe-PE, SalvadorBA, Belo Horizonte-MG, Sobral-CE, São José do Rio Preto-SP, Capivari-SP, Palmas-TO e Natal-RN. Destacaremos, a seguir, as principais contribuições encontradas no escopo destes artigos e nos documentos do MS, com base em duas subcategorias: Integração entre saúde mental e APS e Desafios e potencialidades do apoio matricial e do NASF na saúde mental.

Integração entre saúde mental e atenção primária à saúde Diversos autores (Prestes et al., 2011; Sousa et al., 2011; Delfini et al., 2009; Dimenstein et al., 2009a, 2009b; Figueiredo, Onocko Campos, 2009, 2008; Bezerra, Dimenstein, 2008) apontam a necessidade de avanços na Reforma Psiquiátrica brasileira, destacando a necessidade de interligação entre redes assistenciais de saúde mental e de APS para favorecer um cuidado integral ao usuário. Houve, de forma paralela, avanços nas redes de atenção primária à saúde, consolidada através da ESF, e da saúde mental, com a criação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, sobretudo dos serviços tipo CAPS. Contudo, ainda há pouca integração entre as redes de cuidados de saúde mental e da APS. Esta limitação traz sérias consequências, tanto para o SUS, como um sistema unificado e integral, quanto para a APS e para a saúde mental (Onocko Campos et al., 2012, 2011; Figueiredo, Onocko Campos, 2008). Desta forma, evidenciam-se vários motivos para a relevância da integração da saúde mental na APS: a alta prevalência de transtornos mentais; a ampliação do acesso aos cuidados de saúde mental; a ampliação da integralidade na saúde, reconhecendo a indissociabilidade entre os problemas de saúde mental e os “físicos”; o aumento da qualidade das ações e dos serviços de saúde (Brasil, 2009); entre outros. Ademais, a ESF pode ser considerada um recurso estratégico para trabalhar com pessoas em sofrimento psíquico, em virtude da proximidade e do vínculo que possui com as famílias e comunidades (Delfini, Reis, 2012; Figueiredo, Onocko Campos, 2008), pois isto pode facilitar as intervenções do ponto de vista terapêutico. Nem sempre, porém, os profissionais da ESF possuem tecnologia para a resolução de algumas situações em saúde mental (Harada, Soares, 2010) e habilidade de comunicação para lidar com pessoas com transtornos mentais (Tófoli, Fortes, 2007). Outro importante desafio para a saúde mental e a ESF está relacionado às situações de adoecimento provocadas pela miséria e pelas situações de violência enfrentadas por boa parte da população brasileira, e quanto estes fatores favorecem dificuldades afetivas, emocionais e relacionais (Figueiredo, Onocko Campos, 2008). Deste modo, o apoio matricial em saúde mental é sugerido como uma estratégia para qualificar e ampliar a resolutividade das ações da ESF (Cossetin, Olschowsky, 2011; Brasil, 2003). Tal estratégia COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.287-300, abr./jun. 2013

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possibilita aos profissionais da saúde mental trocarem conhecimentos e práticas da área “psi” com os profissionais das equipes da ESF, dando-lhes suporte para poderem compreender, intervir e acolher melhor as pessoas em sofrimento, bem como incluir, na sua prática, a dimensão subjetiva e social do ser humano, mediante uma escuta qualificada e sensível, facilitando a ampliação da clínica (Figueiredo, Onocko Campos, 2008). Neste prisma, o MS propõe a saúde mental como uma das áreas de atuação do NASF, e o apoio matricial como uma estratégia importante na ação dessas equipes multiprofissionais de apoio à ESF (Brasil, 2009). Conforme revelam estudos de avaliação, o apoio matricial, quando adequadamente implantado, ajuda na articulação da rede de serviços de saúde e na integração entre as equipes de saúde mental e da ESF (Onocko Campos et al., 2012, 2011). Entretanto, o apoio matricial não pode ser considerado o único modelo a trazer efetividade aos cuidados de saúde mental na atenção primária (Mielke, Olschowshy, 2010). Portanto, outras estratégias, de acordo com as particularidades de cada território, devem ser desenvolvidas. No tocante à produção bibliográfica recente sobre o tema, vale, ainda, destacar – apesar de não ser um documento oficial do Ministério da Saúde e nem um artigo científico – o “Guia prático de matriciamento em saúde mental” (Chiaverini et al., 2011), o qual foi financiado pelo Ministério da Saúde, mas redigido por um grupo independente de autores com experiência teórico-prática neste campo. Embora com ênfase no apoio matricial em saúde mental como estratégia de atuação da saúde mental na atenção primária, o guia abrange um conjunto de orientações bem mais amplas e com informações significativas para subsidiar os profissionais na troca de conhecimentos e na construção de estratégias de ação em saúde mental, com base na realidade dos usuários e do seu território de atuação.

Desafios e potencialidades do apoio matricial e do NASF na saúde mental Vários artigos sobre saúde mental na APS destacaram obstáculos estruturais. Entre os principais pontos, constataram: sobrecarga dos profissionais e superlotação dos serviços, pela baixa cobertura de serviços de saúde mental e da ESF; carência e alta rotatividade dos profissionais na APS, que, possivelmente, podem ser atribuídas às condições de trabalho, à falta de perfil profissional e à forma de contratação; rigidez na agenda dos profissionais e cobrança por produtividade, faltando espaço para a reflexão sobre o processo de trabalho e o trabalho conjunto; e as mudanças nos modelos de organização dos serviços de uma gestão para outra (Delfini, Reis, 2012; Onocko Campos et al., 2011). Vale ressaltar que tais aspectos foram destacados em estudos que aconteceram em grandes centros urbanos. Em relação à formação acadêmica dos profissionais da saúde mental e da ESF, existem limitações que comprometem a atuação destes na conjuntura da APS. As discussões e problematizações sobre o contexto social e subjetivo do processo saúde-doença requerem uma análise mais profunda, que vai além da técnica, e que, muitas vezes, passa à margem dos cursos de graduação da saúde (Onocko Campos, Gama, 2008). Tal fato é confirmado em vários estudos (Onocko Campos et al., 2012, 2011; Cavalcante et al., 2011; Dimenstein et al., 2009b; Figueiredo, Onocko Campos, 2009), nos quais a formação dos profissionais da ESF é apontada como uma limitação para o atendimento dos usuários com sofrimento psíquico e a medicação é entendida, por vários profissionais, como a única possibilidade de ajuda para esses usuários ou como paliativo para o sofrimento provocado por questões sociais. O apoio matricial em saúde mental configura-se como uma possibilidade para favorecer a ampliação da clínica na ESF. Entretanto, de acordo com a compreensão sobre o processo saúde-doença, do profissional da saúde mental responsável pela ação de apoio, a ampliação pode não acontecer e podese, inclusive, reforçar a lógica que se pretende superar (Dimenstein et al., 2009b). Historicamente, os “clássicos” profissionais da saúde mental, psicólogos e psiquiatras, também na sua formação tradicional, com raras exceções, exercem uma clínica de amplitude limitada. Os profissionais da psicologia trazem forte influência da clínica tradicional e elitizada, com pouca ênfase nas questões sociais e de promoção da saúde e com privilégio dos aspectos individuais (Meira, Silva, 2011; 294

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A Portaria 3.124, de 28 de dezembro de 2012, diminui o número de equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) que são apoiadas pelo NASF para o número máximo de nove. Tal redução amplia a possibilidade de vinculação entre essas equipes e entre elas e os usuários. As reflexões sobre esta Portaria não foram contempladas neste artigo, porque a data de sua publicação extrapola o limite do recorte de tempo da pesquisa. Contudo, vale ressaltar que a organização tradicional do processo de trabalho e os desafios estruturais ainda se configuram como obstáculos significativos para o planejamento e a execução de ações interdisciplinares como o apoio matricial.

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artigos

Ferreira Neto, 2008). Já a psiquiatria contemporânea possui forte ênfase no aspecto biológico e nas medicações como forma exclusiva de tratamento (Onocko Campos, Gama, 2008). Como aponta o MS (Brasil, 2009, p.12), “o conceito de apoio matricial tem uma dimensão sinérgica ao conceito de educação permanente”. Esta ideia é corroborada em vários artigos (Meira, Silva, 2011; Bezerra et al., 2010; Bardan, Oliveira, 2007; Tófoli, Fortes, 2007), a sugerir os processos de educação permanente como uma estratégia para superação das limitações da graduação na saúde no enfrentamento da realidade cotidiana dos serviços. Estes processos de educação permanente estão ligados não somente aos processos educativos formais (residências, especializações, capacitações), mas, também, a processos de aprendizagem desenvolvidos no cotidiano no trabalho, mediante contato e troca de experiências com outros profissionais e usuários do SUS. Na nossa ótica, a educação permanente se articula fortemente com os desafios na formação do trabalhador em saúde. Evidentemente, há dificuldades para se atuar em apoio matricial de maneira formativa, num cenário no qual a própria formação dos profissionais de saúde é ainda pouco dialógica e centrada dentro dos muros do próprio núcleo da sua categoria. Conforme apontam Onocko Campos et al. (2012), a dificuldade de atuação do apoiador matricial parece estar atrelada à sensação de impotência, solidão e desamparo dos profissionais da atenção primária para lidarem com a complexidade da saúde mental. Diversos artigos (Bezerra, Dimenstein, 2008; Soares, 2008; Bardan, Oliveira, 2007) mencionam a importância de o apoiador matricial em saúde mental deter alguns conhecimentos e habilidades para o bom desempenho dessa função, como por exemplo: dispor de habilidades de comunicação e de relacionamento interpessoal para lidar com as equipes da ESF e os usuários; ter disponibilidade para troca de conhecimento e experiência com outros profissionais; compreender a integralidade das redes assistenciais, dos serviços de saúde e a importância da atenção primária; exercer a visão ampliada do processo saúde-doença; e apresentar capacidade de estimular ações multidisciplinares de promoção e prevenção, considerando a complexidade dos transtornos mentais. Diante dessa realidade, as discussões futuras, portanto, sobre a formação para o AM em saúde mental e a atuação neste tipo de organização do trabalho em saúde, necessitam obrigatoriamente enfatizar e aperfeiçoar este conjunto de competências. No referente ao NASF5 (Brasil, 2009), este representa um avanço para as ações de saúde mental na ESF (Bezerra et al., 2010). Contudo, em face do grande número de equipes da ESF que um profissional de NASF deve apoiar – de oito a vinte –, corre-se o risco de reforçar a saúde mental como especialidade, praticamente inviabilizando o trabalho de prevenção e promoção em saúde mental (Böing, Crepaldi, 2010). Além disso, o número excessivo de equipes dificultaria as ações interdisciplinares, que exigem uma presença e um contato marcantes da equipe do NASF no cotidiano de trabalho das equipes da ESF e na comunidade. Ou seja, apesar de o MS (Brasil, 2009) reconhecer a importância do vínculo entre as equipes para o trabalho do NASF e da ESF, esse vínculo é comprometido pela própria organização do processo de trabalho conforme determinado na portaria que cria os NASF (Brasil, 2008). Com isso, amplia-se o risco de as equipes do NASF se dedicarem, basicamente, à atenção curativa, reforçando o modelo de enfoque na doença e no sintoma (Böing, Crepaldi, 2010).

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Alguns dos artigos analisados e publicações do MS trazem orientações e sugestões sobre as práticas de apoio matricial em saúde mental. Estas configuram um conjunto de dispositivos e ferramentas, entre os quais podemos destacar: elaboração de projeto terapêutico singular; consulta e visita domiciliar conjunta; uso de recurso de comunicação pessoal (celular, e-mail) entre profissionais, para facilitar o contato em situações de urgência. Foge ao escopo deste trabalho detalhar esses itens, mas, inegavelmente, eles complementam as habilidades e conhecimentos relativos ao AM em SM descritos anteriormente. Por fim, vale acrescentar que o papel dos agentes comunitários de saúde foi reconhecido como extremamente importante nas ações de apoio matricial (Onocko Campos et al., 2011). Por conta da sua aproximação e vinculação maior com a realidade social e a população atendida, os ACS trazem grande potencialidade às ações de saúde mental. Seu papel no AM em SM, entretanto, ainda precisa ser melhor explorado em estudos futuros.

Considerações finais Segundo demonstram os artigos científicos e os documentos analisados, a lógica de organização do trabalho em saúde a partir das diretrizes do apoio matricial requer a valorização das relações verificadas no cotidiano do trabalho em saúde e dos vínculos afetivos entre profissionais e usuários, entre os próprios profissionais, e entre estes e os gestores. Entretanto, como reforça a produção analisada, para isso acontecer, o dia a dia dos serviços de saúde deve ser permeado por espaços de reflexão sobre as práticas e os saberes desenvolvidos pelos profissionais, a partir do contato com a realidade da população do seu território de abrangência. Este arranjo exige, de profissionais e gestores, algo além da competência técnica. Ele enfatiza a necessidade de uma competência relacional, de uma atitude de abertura para o diálogo e para o saber construído coletivamente, sem, no entanto, descartar o conhecimento nuclear de cada categoria profissional. Neste âmbito, os processos de cogestão e de educação permanente foram apontados como facilitadores dessa mudança organizacional. Para o conceito de apoio matricial se transformar em realidade, ele deve ser fruto de um trabalho coletivo de pessoas que se unem na perspectiva de transformar a fragmentação e alienação existente no processo de trabalho em saúde, com vistas a ampliar a resolutividade e a qualidade dos serviços oferecidos à população brasileira e compor, de forma harmônica, um novo modelo de atenção à saúde em nosso país. Porém, a lógica hierárquica, burocrática e centrada em procedimentos coexiste com as diretrizes do apoio matricial. Estas diretrizes impõem que os sujeitos envolvidos neste processo passem a conviver com a estranheza e a complexidade presentes nessas formas distintas de organização do trabalho em saúde. Nesse sentido, o NASF foi apontado como um avanço importante na implantação do apoio matricial em saúde mental na atenção primária. Contudo, parece que, nele, as contradições dessas lógicas distintas tornam-se ainda mais evidentes, sobretudo pelo número6 de equipes da ESF que cada NASF tem sob sua responsabilidade (Böing, Crepaldi, 2010). Ademais, as ações de saúde mental na ESF não devem ficar circunscritas ao modelo do apoio matricial. As diferentes experiências de apoio matricial em saúde mental na ESF trazem muitos pontos relevantes passíveis de contribuir com outros municípios que estejam avançando na integralidade das ações da ESF. Entre estes, podemos destacar: o imperativo de qualificar os profissionais da ESF para lidar com o 296

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6 É importante destacar que, na data de aprovação deste artigo pelos avaliadores da revista, o NASF ainda era regido pela portaria da sua criação (Brasil, 2008).


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artigos

sofrimento humano; a necessidade de maior interlocução entre as várias categorias profissionais para ampliar a resolutividade das ações; a urgência de abertura para o diálogo e para a troca de experiências entre profissionais e entre estes e os gestores; a relevância dos vínculos afetivos entre os profissionais, para facilitar essa abertura; e a necessidade de o apoiador matricial ter uma compreensão integral da rede de saúde e da complexidade dos transtornos mentais, além do desenvolvimento de um conjunto de competências voltadas para o apoio matricial em saúde mental que ainda estão em construção. A ideia de construção, aliás, é premente ao analisarmos estes documentos e artigos. Evidentemente, este é um processo dinâmico, inédito e aberto à cooperação futura. É essencial, assim, compreendermos que uma delimitação mais clara desse campo ainda está por vir, embora seus contornos possam ser – como esta revisão indica – cada vez mais distintos. Portanto, novos aportes teórico-práticos e estudos avaliativos são necessários e bem-vindos para o aperfeiçoamento do apoio matricial em saúde mental na atenção primária, como componente do modelo de atenção à saúde.

Colaboradores Íris Guilherme Bonfim responsabilizou-se pela elaboração do artigo, com apoio na discussão teórico-conceitual sob a responsabilidade de Cezar Wagner de Lima Góis; Evelyne Nunes Ervedosa Bastos e Luis Fernando Tófoli responsabilizaram-se pela revisão crítica do manuscrito. Referências ARONA, E.C. Implantação do matriciamento nos serviços de saúde de Capivari. Saude Soc., v.18, n.1, p.26-36, 2009. BARBAN, E.G.; OLIVEIRA, A.A. O modelo de assistência da equipe matricial de saúde mental no programa saúde da família do município de São José do Rio Preto (Capacitação e educação permanente aos profissionais de saúde na atenção básica). Arq. Cienc. Saude, v.14, n.1, p.52-63, 2007. BEZERRA, E.; DIMENSTEIN, M. Os CAPS e o trabalho em rede: tecendo o apoio matricial na atenção básica. Psicol. Cienc. Prof., v.28, n.3, p.632-45, 2008. BEZERRA, R.S.S. et al. Arranjo matricial e o desafio da interdisciplinaridade na atenção básica: a experiência do NASF em Camaragibe/PE. Divulg. Saude Debate, n.46, p.51-59, 2010. BÖING, E.; CREPALDI, M.A. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicol. Cienc. Prof., v.30, n.3, p.634-49, 2010. BONFIM, I.G. Apoio Matricial em Saúde Mental na Estratégia de Saúde da Família em Fortaleza: ouro que não boia. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012. ______. Apoio Matricial em Saúde Mental na Atenção Básica: uma análise da produção científica e das experiências. 2009. Monografia (Especialização) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. 2009. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPES. Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental no SUS: as novas fronteiras da Reforma Psiquiátrica. Brasília: MS, 2011.

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Palabras clave: Apoyo matricial. Salud mental. Atención primaria. Estrategia de salud familiar.

Recebido em 22/08/12. Aprovado em 10/03/13.

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v.17, n.45, p.287-300, abr./jun. 2013


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Pesquisa-ação: proposição metodológica para o planejamento das ações nos serviços de atenção primária no contexto da saúde ambiental e da saúde do trabalhador Vanira Matos Pessoa¹ Raquel Maria Rigotto² Carlos André Moura Arruda³ Maria de Fátima Antero Sousa Machado4 Márcia Maria Tavares Machado5 Maria das Graças Viana Bezerra6

PESSOA, V. M. et al. Action research:methodological proposal for action planning in primary care services in the context of environmental health and occupational health. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.301-14, abr./jun. 2013. The Brazilian health system proposes actions to operationalize environmental health and worker, in order to address the complexity of the disease process in the territories. The objective is to present the action research as a methodological approach, facilitating the analysis of complex webs of economic development and the implications on labor, environment and health in communities in Brazilian Northeast. Action research is designed with a group of 14 subjects and was conducted in the form of workshops. In making the research and development of linkages flowed propositions from the theory-reflectionaction subjects. The method has a potential to denude complex problems related to environmental health and worker, it favors human interaction built the place in which he lives.

O Sistema Único de Saúde no Brasil propõe a operacionalização de ações de saúde ambiental e do trabalhador, com vistas a abordar a complexidade do processo saúde-doença nos territórios. Objetiva-se apresentar a pesquisa-ação como um percurso metodológico, facilitador da análise das complexas tramas do desenvolvimento econômico e as implicações no trabalho, ambiente e saúde, em comunidades do Nordeste brasileiro. A pesquisa-ação foi concebida com um grupo de 14 sujeitos e foi conduzida no formato de oficinas. Na feitura da pesquisa fluíram vínculos e elaboração de proposições, a partir da reflexão-teorização-ação dos sujeitos. Destaca-se que o método apresenta um potencial para desnudar problemas complexos relacionados à saúde ambiental e do trabalhador, pois favorece a interação humana integrada ao lugar em que vive.

Keywords: Action research. Environmental health. Occupational health. Primary health care.

Palavras–chave: Pesquisa-ação. Saúde ambiental. Saúde do trabalhador. Atenção primária à saúde.

Elaborado com base em Pessoa (2010); pesquisa financiada pelo CNPq/ Ministério da Saúde: ¹ Fundação Oswaldo Cruz Ceará. Avenida Santos Dumont, n.5753, Torre Saúde, sala 1303, Bairro Papicu. Fortaleza, CE, Brasil. 60.180-900. vanirapessoa@gmail.com ² Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará (UFC). ³ Faculdade de Ensino e Cultura do Ceará. 4 Universidade Regional do Cariri. 5 Pró-Reitora de Extensão Universitária, UFC. 6 Secretaria Municipal de Saúde de Eusébio. *

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Introdução As transformações nos territórios locais decorrentes dos processos produtivos ensejam mudanças no modo de viver das comunidades, sobretudo dos trabalhadores. Alguns estudos, dentre eles, o de Rigotto e Augusto (2007), destacam que já são reconhecidas as relações sistêmicas entre as políticas econômicas em curso e os efeitos socioambientais observados, como o aumento expressivo da morbimortalidade por causas externas decorrentes da violência, dos processos produtivos e da pressão promovida para adoção de novos padrões de consumo. A reestruturação produtiva precisa ser compreendida pelos trabalhadores, moradores e profissionais de saúde nos territórios, tendo em vista que este enfoque possibilita a delimitação e caracterização da população e de seus problemas de saúde na Atenção Primária à Saúde (APS), com vistas ao desenvolvimento de ações e o fortalecimento do acesso a estes serviços (Dias et al., 2009). Dessa forma, torna-se essencial a compreensão sistêmica dos processos que reorganizam os territórios e a vida das pessoas sob a responsabilidade sanitária da APS, nos moldes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Cabe, atualmente, à ESF efetivar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da coordenação do cuidado na rede de serviços, constituindo relações de vínculos e responsabilização com a população do território, promovendo a integração das ações programáticas e demanda espontânea, articuladas às ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação (Brasil, 2011). Além disso, a ESF deve estimular a participação popular e o controle social, pois se acredita que a articulação das ações de forma transdisciplinar e intersetorial pode garantir o acesso e a organização dos serviços de saúde, a continuidade das ações e a longitudinalidade do cuidado aos moradores do território local. Nessa perspectiva, o reconhecimento das necessidades de saúde e o planejamento de ações para o território local são fundamentais na ESF (Brasil, 2006). O reconhecimento dos processos produtivos está em consonância com as ações da ESF e contribui para o desenvolvimento da atuação crítica e autônoma dos profissionais de saúde no território, com base nas necessidades de saúde locais, visando à melhoria da qualidade de vida, potencializando a cidadania e a sustentabilidade. Para tal, é imprescindível o entendimento dos pressupostos da saúde ambiental e do trabalhador na APS, que estão embasados na compreensão apontada por Santos e Câmara (2002) de que, no ambiente, os processos produtivos de desenvolvimento social e econômico interferem nas relações que se desenvolvem nos ecossistemas. Isto porque determinam e contribuem para a existência de condições ou situações de risco, que influenciam o padrão de saúde das populações que sofrem alterações no seu perfil de morbimortalidade, a partir de diferentes fontes e modalidades de poluição (acumulação dos elementos abióticos causadores de agravos), de contaminação (presença de agentes biológicos de doenças), e das formas de constituição de dinâmicas ambientais que possibilitem a liberação descontrolada de formas específicas de energia. A conjuntura em que se insere o sistema de saúde brasileiro está submetida à política econômica numa perspectiva desenvolvimentista, que fortalece a implantação de novos empreendimentos, a exemplo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Isto requer do SUS estar atento às novas necessidades de saúde para garantir o acesso e atuar com resolubilidade diante das expectativas da população brasileira. Estes empreendimentos estão centrados na lógica do crescimento econômico como substrato para promover mudanças sociais apostando na geração de emprego e renda, sem, contudo, estarem articulados à implantação de políticas públicas que respondam às novas necessidades que são produzidas. Nesse contexto, o Nordeste brasileiro é a macrorregião com maior proporção de pessoas pobres do País. Ou seja, o percentual da população com renda familiar per capita de até meio salário-mínimo corresponde a 52%, apresentando uma diferença de dez pontos percentuais da região norte, que é a segunda colocada, enquanto a média nacional é de 31%. Em relação ao estado do Ceará, local onde realizamos este estudo, a proporção de pobres é de 51%, evidenciando a situação de desigualdade social, iniquidade social e de saúde visível na América Latina (Brasil, 2012).

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Assim, para se minimizarem tais desigualdades, tem sido intensificado o investimento estatal, tanto por meio de subsídios e capital político, na intencionalidade de ser um polo de atração da indústria e se inserir no contexto nacional e internacional capitalista. A perspectiva da geração de emprego e renda constitui uma estratégia para realçar o desenvolvimento econômico do Estado, onde se destaca o agronegócio, o incentivo ao turismo e a industrialização (Ceará, 2012). Defendemos que as demandas e os impactos à saúde decorrentes deste processo desenvolvimentista não estão explicitados e não são avaliados sistematicamente no âmbito do SUS, sobretudo da APS, para que haja adaptações e iniciativas, visando a capacidade de prover e garantir, aos cidadãos, respostas efetivas às necessidades de saúde vinculadas à relação capital-trabalho. Do exposto, acreditamos que a pesquisa-ação na APS, no contexto da saúde ambiental e do trabalhador, apresenta-se como uma estratégia capaz de elaborar novos instrumentos metodológicos com sensibilidade para captar as informações acerca dos processos produtivos e as implicações à saúde e ao ambiente. E, ainda, propiciar o reconhecimento das necessidades de saúde, garantindo o acesso dos usuários aos serviços por meio de ações planejadas pela equipe de saúde da família no território, com vistas à tomada de decisão. Nestas perspectivas, este manuscrito objetiva apresentar a pesquisa-ação na APS como uma proposição metodológica facilitadora da análise das complexas tramas que envolvem o acesso à saúde na inter-relação com o desenvolvimento econômico e as implicações no trabalho e ambiente em comunidades no Nordeste brasileiro.

Método A pesquisa-ação como caminho para a investigação Este estudo se insere no campo das Ciências Sociais e da Saúde e, portanto, como referem Minayo, Deslandes e Gomes (2010, p.15), tem seu objeto essencialmente qualitativo, em que “a realidade social é a cena e o seio do dinamismo da vida individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante”. A pesquisa-ação foi usada na tessitura de uma dissertação de mestrado, como método para estudar o desenvolvimento econômico e as implicações no trabalho, ambiente e saúde em comunidades na APS no Nordeste brasileiro, com o intuito de elaborar, em parceria com o SUS local, um plano de ação em relação à saúde do trabalhador e saúde ambiental a ser implantado na ESF. A escolha deste caminho metodológico relaciona-se ao fato de este aproximar-se da realidade social visando o conhecimento científico, sem desconsiderar os significados, crenças, simbologias dos envolvidos nos processos da vida cotidiana, que passa por transformações intrinsecamente ligadas ao modo de viver dos moradores e trabalhadores. Concordamos com Bosi (2007) quando afirma que o objetivo deste tipo de pesquisa é compreender e/ou transformar a realidade. Contudo, sabemos que a escolha da metodologia de investigação jamais propiciará uma compreensão totalitária da realidade, pelas limitações e especificidades das diferentes abordagens metodológicas e da complexidade dos processos envolvendo a relação humana com o ambiente, o trabalho e a forma de se compreender saúde. Minayo, Deslandes e Gomes (2010) assinalam a importância de trabalharmos com a complexidade, a especificidade e as diferenciações internas dos objetos que, segundo os autores, precisam ser contextualizados e tratados na sua singularidade. Corroborando esta ideia, consideramos que a pesquisaação favorece o desenvolvimento de um processo de interação entre pesquisadores e os sujeitos participantes da pesquisa. Acreditamos que ela apresenta, como potencialidade, aproximar os pesquisadores com os trabalhadores, profissionais do serviço de saúde e a comunidade, bem como o diálogo entre a ciência e a vida. Destacamos que a pesquisa-ação é entendida, às vezes, como pesquisa participante. Por exemplo, para Haguette (2001), a pesquisa participante envolve um processo de: investigação, educação e ação, consistindo numa pesquisa educacional e orientada para ação. Segundo a autora, nesse tipo de

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pesquisa, realizam-se, concomitantemente, a investigação e a ação, prezando-se pela construção conjunta de pesquisadores e participantes com vistas às mudanças e transformação social. Ao lado disso, Thiollent (2008, p.17) faz uma distinção entre pesquisa participante e pesquisa-ação, explicando que [...] toda pesquisa-ação é participativa, sendo a participação das pessoas implicadas nos problemas investigados absolutamente necessária, enquanto na pesquisa participante a participação é sobretudo participação dos pesquisadores e consiste em aparente identificação com os valores e os comportamentos que são necessários para sua aceitação pelo grupo considerado.

Dessa forma, para o autor, a pesquisa participante nem sempre seria uma pesquisa-ação, sendo esta última assim definida: [...] a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema, estão envolvidos de modo cooperativo e colaborativo. (Thiollent, 2008, p.16)

Para fins metodológicos deste estudo, adotamos a compreensão explicitada por Thiollent (2008), tendo em vista que essas concepções estiveram presentes no decorrer da pesquisa. A pesquisa-ação foi realizada no contexto da modernização agrícola na Chapada do Apodi-Ceará. Este cenário vivencia processos de reestruturação produtiva, centrado no agronegócio, inserindo o Ceará no mundo globalizado com severos impactos à saúde e ao ambiente (Rigotto, 2011). A referida Chapada é uma importante produtora de frutas para exportação, destacando-se a produção de melão de 78 mil toneladas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, 2012). Carneiro, Braga, Pessoa (2010) e Pessoa et al. (2011) referem que a percepção das comunidades quanto ao contexto de risco à saúde evidencia que o crescimento dos monocultivos acontece mediante o uso intensivo de agrotóxicos pela técnica de pulverização aérea, que acontece nas proximidades das comunidades e vilarejos, assinalando que a modernização agrícola tem transformado o modo de vida das comunidades. A escolha deste método relacionou-se à sua sensibilidade para indagar, possibilitando a compreensão da complexidade da problemática da saúde, o papel da sociedade e do Estado, visando à ação transformadora das populações marginalizadas e excluídas. Para tal, constituímos um grupo de sujeitos, com os quais realizamos oficinas. Ressaltamos que a pesquisa foi desenvolvida conforme os parâmetros da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Ceará. Propusemos desenvolver, nesta pesquisa-ação, os seguintes passos: 1 Pesquisa documental: visando apropriar-se de informações relevantes e conhecer o perfil sóciohistórico, as condições sociodemográficas, socioeconômicas e epidemiológicas do município, em especial, no que se refere ao SUS local, aos problemas ambientais e aos processos produtivos. Utilizamos bases de dados secundários em sites oficiais, tais como: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Portal do Governo do Estado do Ceará e da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SESA); e Sistemas de Informação em Saúde tais como: Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), Sistema Nacional de Agravos Notificáveis (SINAN), dentre outros. 2 Visitas exploratórias: a) objetivando conversar com informantes-chave (usuários, profissionais da saúde e gestores do SUS) e realizar observação livre, registrando, em diário de campo, as percepções, a fim de obter mais informações sobre a realidade local, para identificar a equipe de saúde da família que comporia o grupo de pesquisa-ação;

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Para selecionarmos uma equipe de saúde da família que efetivamente atuasse num território com problemas relacionados à questão ambiental e do trabalho, indagávamos aos informantes-chave: qual a região do município que, na atualidade, mais enfrenta problemas socioambientais relacionados ao trabalho, que tem impactos na saúde da população? Além disso, elencamos alguns critérios que observávamos: . Se o território vivenciava transformações advindas de processos produtivos, com mudanças na vida da comunidade que requeriam, de forma mais consistente, a intervenção/atuação da APS em relação à efetivação da saúde ambiental e do trabalhador; . Interesse dos profissionais de saúde, dos movimentos sociais, dos usuários do SUS de efetivarem ações de saúde ambiental e do trabalhador; . Necessidade da APS, de forma emergencial, de responder às necessidades de saúde da população e dos trabalhadores no contexto em transformações socioambientais e culturais; . Incipiência da APS no acolhimento das necessidades de saúde relacionadas ao trabalho, por desconhecimento dos processos produtivos locais, e de que forma impactavam a saúde; . Magnitude dos problemas socioambientais existentes no território. b) Identificar como se estruturava a APS, a vigilância em saúde e o controle social; c) Identificar os equipamentos e agentes sociais, conselho municipal de saúde (CMS) e de meio ambiente, sindicatos, associações de trabalhadores e cooperativas existentes, e convidá-los a participar da pesquisa; d) Realizar reunião com a gestão municipal (secretário de saúde, coordenação da APS e da Vigilância em Saúde), equipes de saúde da família e CMS, para apresentação da pesquisa, e identificar a equipe que participaria do estudo, seguindo os critérios: equipe saúde da família de atuação rural-urbana com disponibilidade para integrar o grupo; e) Realizar reunião para apresentação do projeto de pesquisa no território de atuação da equipe de saúde da família e definição dos sujeitos que participariam do grupo, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Constituição do grupo A constituição do grupo ocorreu em uma reunião com duração de 4 horas, onde contextualizamos o problema e definimos: os objetivos, o método do processo de pesquisa, a relevância da questão para a comunidade e serviço de saúde, e solicitamos, entre os presentes, voluntários, que se dispusessem a participar das atividades grupais, durante 44 horas de encontros presenciais, com cronograma a ser elaborado coletivamente. O grupo formado envolveu 14 sujeitos, denominado ‘grupo de pesquisa’. Foi constituído por profissionais de saúde da APS, representados por uma equipe de saúde da família (médico, enfermeiro, agente comunitário de saúde, auxiliar de enfermagem e auxiliar de serviços gerais da unidade de saúde); representante da educação (uma professora da escola municipal); representante de usuários do SUS (duas pessoas reconhecidamente usuários do serviço local); representante dos trabalhadores (um trabalhador rural do agronegócio e o presidente da associação dos trabalhadores rurais); representante do conselho municipal de saúde (uma conselheira); representante do poder público (um vereador), e dois representantes dos movimentos sociais existentes na comunidade. Após constituído o grupo, pactuamos o cronograma e os critérios de exclusão. Além disso, que o discurso elaborado no grupo seria entendido e analisado coletivamente, e não como sujeitos isolados. A agenda de encontros teve um intervalo médio de 21 dias, sendo que cada encontro do grupo correspondia a oito horas, totalizando uma carga horária de 44 horas, sendo denominados de oficinas. Quanto à exclusão do participante, foi definido não faltar três encontros do grupo.

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Condução das oficinas grupais Pressupostos teóricos Compreendemos que a motivação e o engajamento do grupo relacionam-se a fatores intrínsecos e extrínsecos. Com esse entendimento, consideramos que, no trabalho grupal, precisamos estar envolvidos e comprometidos uns com os outros, e atentos para a relevância das temáticas propostas na transformação do contexto social. Dessa forma, Libânio (2001, p.62) afirma que o grupo consiste no “[...] lugar de se aprender a ser e conviver a partir das experiências de vida”. Tomando como base as ideias do autor e acreditando que o processo desencadeado pela pesquisaação desafiaria a nossa capacidade de assumir e conduzir um processo de pesquisa efetivamente garantindo a participação engajada e promissora, propusemos atividades que fortalecessem a integração do grupo, tendo em vista o que nos ensina Ribeiro (1993, p.390) sobre grupo: “É um campo de força, onde cada um atua sobre o outro e onde um é a miniatura de todos, formando assim a matriz grupal, quando trabalhar um, seria trabalhar todos e trabalhar cada elemento individualmente”. Para a realização das oficinas, utilizamos os ensinamentos de Paulo Freire (1992, p.114), que nos aponta [...] toda compreensão de algo corresponde cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta o homem age. A natureza da ação corresponde a natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação.

Considerando o que pensa Freire (1992) sobre o agir humano, utilizamos, como guia, os seus ensinamentos propostos na condução das oficinas. Evidencia-se que somente um método ativo, dialógico, participante, pode propiciar o debate das situações desafiadoras postas diante de um grupo, o que nos remeteu à problematização ou ação de problematizar. Nesta perspectiva, um estudo empírico realizado por Zanotto e De Rose (2003, p.48) interpreta o que o educador Paulo Freire propõe relativo à problematização. O que está sendo enfatizado é o sujeito práxico: a ação de problematizar acontece a partir da realidade que cerca o sujeito; a busca de explicação e solução visa a transformar aquela realidade, pela ação do próprio sujeito (sua práxis). O sujeito, por sua vez, também se transforma na ação de problematizar e passa a detectar novos problemas na sua realidade e assim sucessivamente.

Desenvolvemos a pesquisa-ação considerando a compreensão Freireana e as sugestões de Thiollent (2008, p.75): [...] quem são os atores ou unidade de intervenção? Como se relacionam os atores e as instituições: convergências, divergências, conflito aberto? Quais são os objetivos e metas tangíveis da ação e os critérios de avaliação? Como dar continuidade à ação, apesar das dificuldades? Como assegurar a participação da população e assegurar suas sugestões? Como controlar o conjunto do processo e avaliar os resultados?

A despeito desses autores, utilizamos, também, a perspectiva construcionista, entendendo tanto o sujeito como o objeto como construções sócio-históricas que precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas, ou seja, implica problematizarmos a realidade (Spink, 1999).

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Etapas operacionalizadas no desenvolvimento das oficinas Considerando os pressupostos teóricos apresentados, empregamos, para a condução das oficinas, três etapas: A etapa a consistiu no ato de se submeterem os aspectos teórico-metodológicos elaborados pela pesquisadora à apreciação crítica dos sujeitos do grupo. Neste momento, o grupo teve a oportunidade de debater e refletir sobre a relevância do tema a ser abordado, ambiente – trabalho no território, as implicações para o processo de trabalho da APS e da comunidade. Além disso, consistiu num momento de reformulação dos objetivos e apropriação dos temas centrais para APS e comunidade em relação à saúde ambiental e do trabalhador, ou seja, a concepção conjunta do objeto de pesquisa. A etapa b objetivou a elaboração de mediadores – mapas representativos da dinâmica social, ambiental e do trabalho no território, e a submissão destes à crítica dos sujeitos do grupo. Outrossim, o grupo foi subdividido em dois subgrupos que, inicialmente, refletiam sobre o tema proposto, e, em seguida, procediam à elaboração de um mapa contendo todos os elementos identificados como interferentes e essenciais para o entendimento dos problemas. Ainda, apresentavam suas elaborações para o outro subgrupo, que complementavam e criticavam. Na etapa c - problematização, solicitamos ao grupo que, partindo da análise dos elementos representados no mapa que caracterizavam o território, refletissem e expressassem suas reflexões acerca das seguintes indagações: Na caracterização do lugar: Quais os marcos históricos vivenciados pela comunidade? Quem foram os primeiros habitantes a chegar? Quais os eventos mais importantes que aconteceram na comunidade? Que aspectos chamam atenção em relação à cultura, saúde, educação na comunidade? O que o grupo observa em relação ao trabalho e a economia na comunidade? Que importância tem a territorialização em saúde (elaboração de mapas) para o trabalho da Equipe Saúde da Família? Na caracterização do trabalho: De que forma os processos produtivos têm relação com os problemas de saúde? Qual instituição (pública ou privada) é mais importante para o desenvolvimento da comunidade? Quais as organizações e grupos ativos na comunidade? Qual a percepção que o grupo tem sobre a atuação dessas instituições? Qual a interação que estas instituições têm entre si? Quais as estratégias de vida adotadas pelas pessoas da comunidade que não têm emprego? Quais os serviços existentes na comunidade? Quais os critérios para se ingressar nesses serviços? Quais os lugares fora da comunidade e a distância para onde as pessoas vão para obterem serviços? O que significa, para o grupo, o acesso a esses serviços? E ao trabalho? Quem são as pessoas que estão neste trabalho (sexo, procedência, idade, escolaridade)? Na caracterização socioambiental e a relação com a saúde: De que forma se dá a relação trabalho-ambiente no território? Quais os riscos à saúde decorrentes do trabalho? Quais os problemas/ agravos à saúde decorrentes do trabalho? Quais os riscos à saúde relacionados ao ambiente? Quais os problemas/agravos à saúde relacionados ao ambiente? De que forma a equipe saúde da família pode intervir nesses riscos relacionados ao trabalho e ao ambiente? Qual o papel dos movimentos sociais, dos usuários do serviço de saúde, do poder público no enfrentamento dos problemas locais? De que forma percebem as políticas de saúde ambiental e saúde do trabalhador na Atenção Primária? Deste processo de análise do território, nasceu o plano de ação que contempla ações a serem desenvolvidas de forma articulada e intersetorial, considerando as dimensões do trabalho e ambiente. As ações planejadas tiveram como base os problemas levantados pelo grupo e que foram considerados centrais à sua abordagem para dar respostas às questões relacionadas ao ambiente-trabalho na APS. A seguir, enumeramos as ações propostas: I Realização de um Seminário sobre saúde ambiental e os efeitos causados pelos agrotóxicos; II Criação de um grupo intersetorial com pessoas identificadas no Seminário; III Criação do Conselho Local intersetorial (saúde, ambiente, cultura, esportes, educação, movimentos sociais, dentre outros); IV Criação de Lei Municipal que regulamente a utilização dos bens naturais (desmatamentos, queimadas...);

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V Realizar visitas e ações educativas nas escolas visando discutir/prevenir o uso de drogas entre os jovens; VI Realizar levantamento/registro dos agravos à saúde relacionados ao trabalho que chegam à UBS; VII Realizar visitas às empresas do agronegócio; VIII Implantar, nas UBS do município, horário noturno semanal para atender os trabalhadores; IX Identificar o fluxo de Atenção à Saúde do Trabalhador existente (município, micro, macrorregião) para encaminhamento adequado; X Realizar seminários com os trabalhadores sobre uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI); XI Realizar visitas aos prostíbulos com intuito de desenvolver ação educativa, com as trabalhadoras do sexo, sobre os riscos à saúde, uso de preservativo e doenças.

Desvelando a realidade por meio da pesquisa-ação: análise do material qualitativo Realizamos um estudo crítico e aprofundado dos discursos gravados e transcritos, considerando os elementos como a sintaxe, semântica, as metáforas, os níveis de percepção e envolvimento dos participantes. Em seguida, submetemos os conteúdos a uma categorização temática, reunindo-os em categorias de análise, organizadas com suporte em um diálogo aproximado com a literatura revisada para a pesquisa. Utilizamos a Análise do Discurso (AD) para promovermos a análise das falas, pois acreditamos que esta consiste na mais adequada das tipologias de análise para o nosso objeto. Orlandi (2000) relata que o discurso pode ser entendido como o efeito de sentidos entre os locutores e a AD seria um estudo que visa extrair sentido dos textos, considerando que a linguagem não é transparente. Então, procura compreender a língua, fazendo sentido enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história (Orlandi, 2000). Dessa forma, a AD vai além da transmissão da informação, pois, para a mesma, não há linearidade na disposição dos elementos da comunicação, como se a mensagem resultasse de um processo. “O discurso tem sua singularidade, tem seu funcionamento que é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao produto” (Orlandi, 2000, p.22). Essa técnica atende o que nos propomos e nos possibilitou a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção das mensagens, nos aproximando dos objetivos do estudo, seguindo os ensinamentos de Orlandi (2000, p.61): “[...] o analista do discurso [...] não interpreta ele trabalha nos limites da interpretação, não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção dos sentidos em suas condições”.

Resultados e discussões Neste estudo de pesquisa-ação, os participantes apresentaram um perfil heterogêneo em relação à idade, escolaridade e ocupação. Quanto ao gênero, eram dez do sexo feminino e quatro masculinos, com idades variando de 18 a 52 anos. A escolaridade variava, desde participantes somente alfabetizados, outros com Ensino Fundamental incompleto, Ensino Médio, Ensino Superior até pósgraduação. Quanto às suas atividades laborais, declararam realizar: em casa, na igreja, na escola, na agricultura, no posto de saúde e na comunidade. É importante destacar nesta sessão que, para fins deste artigo, apresentamos apenas o recorte que o grupo apresenta como elementos motivadores, que influenciaram e contribuíram para a participação nas oficinas, com destaque para: pontualidade, assiduidade, compromisso e dedicação no decorrer da pesquisa-ação. Quanto à assiduidade nas oficinas grupais, os participantes apresentaram uma frequência média de 87%, sendo que as faltas relacionaram-se a problemas de saúde e dificuldade de liberação no trabalho. Na oficina em que houve mais ausências, estas corresponderam a 21%. No entanto, nenhum dos 308

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participantes faltou mais de duas oficinas e não houve nenhuma desistência. Isso demonstra a responsabilidade e o compromisso assumido com a pesquisa e, sobretudo, o compromisso coletivo, no decorrer do estudo. No último encontro pactuado, 85% dos participantes referiram o desejo de continuarem com as oficinas grupais com o ajuste de realizarem atividades presenciais bimensais. Essa iniciativa nos impulsiona a inferir que as pessoas estão disponíveis para participarem ativamente, interagirem e proporem ações coletivas no enfrentamento das questões de saúde-ambiente-trabalho no território.

A participação ativa como elemento motivador da pesquisa-ação Sabemos que a participação, o envolvimento dos sujeitos em processos participativos, que demandam disponibilidade de tempo e reorganização da vida das pessoas, consiste num desafio para estudos científicos, o que nos fez questionar por que estes sujeitos permaneceram de forma tão expressiva nesta pesquisa? Que aspectos podem ter sido desencadeados que colaboraram para o envolvimento dos sujeitos? Acreditamos que a participação garantida, o respeito à diversidade de saberes, e, sobretudo, a valorização como sujeitos de direitos e corresponsáveis pelos processos de reflexão e tomada de decisão diante dos problemas vividos, fortaleceram o grupo. No discurso que segue, podemos perceber a identidade e o sentimento de pertença que contribuíram para o engajamento de todos: “[...] estou gostando mais é da interação do grupo, conhecendo pessoas novas, é a participação! Todo mundo se empenhando para realizar esse trabalho, que vai ser em prol da comunidade como um todo. Então, as 15 pessoas que estão aqui estão trabalhando em prol dos dez mil habitantes daqui. São quinze pessoas que estão trabalhando para beneficiar a todos. Além do conhecimento, o que está sendo mais importante é essa disponibilidade das pessoas em estar tentando solucionar esse problema”.

No relato, percebemos a integração entre os sujeitos pesquisados e pesquisador, quando refere ‘das 15 pessoas trabalhando’, neste caso, inclui a pesquisadora como membro do grupo. Ou seja, concebese uma igualdade e uma responsabilidade coletiva na busca de soluções para os problemas. Se expressa a não-neutralidade científica, que permeia, de forma concreta, a ação da ciência na promoção de uma visão ampliada sobre os processos instituídos nos territórios, aproximando a ciência da vida, sendo parte integrante e consequente da pesquisa-ação. O grupo expõe a importância do conhecimento elaborado e partilhado, afirmando a necessidade de compartilhar esse entendimento com outros, demonstrando o movimento interno e o despertar do ser proativo: “Foi de grande valia o que a gente pôde aprender e contribuir junto, e não só a questão do conhecimento, mas também estar com as pessoas, conhecer outras pessoas e compartilhar esse momento com todo mundo”.

Os significados e sentidos são compreendidos numa perspectiva relacional, de reconhecimento do outro sujeito na história singular do lugar, e atentando para a relação que este sujeito estabelece com o meio social. A pesquisa-ação contribuiu na redescoberta da interação humana como fundamental para transpor diversos aspectos fragmentados, dicotomizados, desarticulados da compreensão da realidade, quando expressam ‘foi uma apropriação mesmo do terreno’ e ‘ foi um momento muito rico de construção junto com a comunidade’: “[...] no PSF tem aquela estória que você tem que está apropriado do seu terreno, então foi uma apropriação mesmo do terreno, de conhecer novas coisas que a gente não sabia. Porque a gente vai para comunidade, às vezes, a gente é tão atribulada de fazer, vou fazer pré-natal, vou fazer planejamento familiar, que você não pára para ver outras coisas que

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estão ao seu redor, embora a gente saiba que a gente tem que ter análise da situação da nossa área, e também, a gente nunca tinha parado para fazer os mapas. Então, foi um momento muito rico de construção junto com a comunidade que a gente fez aqui durante esses dias”.

Destacamos que, em nenhum momento, realizamos exposição oral ou leitura de textos sobre o lugar e os processos de transformação ocorridos no território. Apenas elaboramos perguntas que eram lançadas ao grupo. Então, os sujeitos aprendiam consigo mesmos, e ressignificavam a percepção do território, a partir de uma visão coletiva, na qual se integrava o saber técnico ao saber popular, como foi expresso ‘gostei de estudar o lugar que a gente vive, que é como se fosse um estudo’: “[...] gostei da gente estudar o lugar que a gente vive, que é como se fosse um estudo. Estudar o lugar, a comunidade que você vive. Gostei de conhecer pessoas novas, pessoas tão interessantes. Acho que o mais importante foi essa relação que a gente teve de conhecer novas pessoas”. “[...] discutimos aqui muitas coisas importantes que precisam acontecer e que vai acontecer para que as pessoas se sintam melhores na área da educação, quanto da saúde e com certeza esse trabalho vai trazer muitos resultados para cá”.

As pessoas envolvidas nesse processo relataram que se sentiram motivadas a se engajarem no grupo: pelo compromisso com a comunidade e seus problemas; contribuir com a pesquisa; e a oportunidade de colaborar para a melhoria da situação de saúde local. “[...] a oportunidade de ajudar mais a minha comunidade”. “[...] interesse pela saúde da nossa gente, em especial a saúde dos trabalhadores e saúde ambiental”. “Contribuir para a pesquisa e [...] adquirir conhecimentos para melhorar as condições de vida desta população”.

As pessoas demonstraram, em seus discursos, a preocupação com o processo em curso na comunidade e identificaram a necessidade de assumirem uma postura proativa de contribuição com a qualidade de vida da população. O grupo afirmou que suas expectativas na vivência dessa pesquisa-ação estavam relacionadas ao potencial de contribuição que tinham no desenvolvimento da pesquisa, desde a identificação de sinais e sintomas de agravos à saúde humana relacionados ao trabalho, até contribuírem para a mudança da atual situação de saúde, por meio da construção de conhecimentos e aplicabilidade prática do que fosse aprendido nos encontros. Percebe-se um movimento, um desejo de sair da comodidade e trilhar novos caminhos objetivando ser parte; e, como parte, contribuir para melhorar a saúde dos trabalhadores e da população, bem como propiciar melhoria da qualidade de vida da comunidade. “[...] melhorar a qualidade de vida das pessoas [...] ajudar o meio ambiente, a saúde [...] não moro aqui, mas a partir do momento que eu entro na comunidade eu me preocupo [...] com o bem-estar deles [...] é pensar em harmonia [...]”.

Para alcançar suas expectativas, o grupo pontuou os aspectos em que poderiam contribuir com a construção de uma nova realidade, como podemos observar nas falas dos sujeitos: “[...] contribuir com o que conheço sobre a minha comunidade. Participando das reuniões para aprender [...]”. 310

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“Aconselhar as pessoas sobre este debate [...] orientar os trabalhadores e [...] a comunidade [...] colocando em prática o que for aprendido [...] para melhorar a qualidade de vida da população. Denunciando [...]”.

De indivíduos a grupo: uma elaboração a partir da pesquisa-ação O grupo, numa perspectiva colaborativa e cooperativa, constituiu-se por pessoas entusiasmadas, que demonstraram interesse em participar. Consideramos que a concretude da participação dos sujeitos relacionou-se ao processo de condução das oficinas, que se deu nas etapas: a) revisitar os objetivos e aspectos teórico-metodológicos; b) elaboração e apresentação dos mapas para apreciação crítica pelos sujeitos do grupo: c) problematização conduzida pela pesquisadora. Em relação à etapa a, consideramos que o debate sobre os aspectos teórico-metodológicos foi fundamental para dar sentido à ação, ou seja, vivenciar de forma corresponsável. O pressuposto da participação ativa dos sujeitos embasou toda a pesquisa-ação, e a elaboração coletiva dos significados, percepções e compreensões. Favoreceu o desvelar dessas descobertas, dos sentidos, dos construtos que serviram ao grupo como estruturas de apoio. Portanto, acreditamos que, dentre as etapas da pesquisa-ação, o ato de revisitar os objetivos e os aspectos teórico-metodológicos e interrogá-los, propiciou a aproximação e a percepção dos vínculos existentes entre as proposições e o simbólico, o vivido, o sentido, o percebido no contexto, e foi de fundamental importância na / e para a participação dos sujeitos. Em relação à etapa b, ponderamos que o ato de expressar concretamente, no desenho do mapa, a percepção da realidade social, ambiental e do trabalho no território e submetê-la à análise crítica dos sujeitos do grupo, evidenciava os aspectos a serem complementados e reformulados. A análise crítica dos desenhos dos mapas de forma colaborativa e cooperativa, por todos que vivenciavam o processo, fortaleceu a igualdade e a identificação da complementaridade, e a interdependência de saberes necessária para se proceder a uma leitura complexa dos problemas do território. A etapa c propiciou a reinterpretação da vida no território favorecendo a elaboração da ideia e o debruçar-se sobre os problemas, as potencialidades, as interfaces da vida na comunidade e a formulação de novos sentidos. A formulação de perguntas indutoras da criticidade acerca da realidade dos sujeitos resultou na transformação dos indivíduos e o nascimento do envolvimento do grupo com a questão saúde-ambiente-trabalho, como visto no trecho que se segue: “Estou dentro do grupo e quero fortalecer mais ainda e quero trazer mais colegas vereadores para discutir o que nós já discutimos aqui. [...] vou convidar o secretário de educação, o secretário de obras, de agricultura para que possa discutir e fortalecer para que a gente possa trazer bons resultados para cá, que é o pensamento do grupo. [...] Muito obrigado”.

Essa pesquisa contribuiu, a partir de uma reflexão crítica durante o processo, para a mudança de atitude e a tomada de decisão. Além do respeito, valorização e reconhecimento do saber do grupo pelos sujeitos e pela pesquisadora, estas etapas possibilitavam a interação e o compartilhamento das ideias que fizeram com que a concepção do plano de ação em saúde ambiental e do trabalhador fosse uma necessidade coletiva, assumida sua implantação mesmo finda a pesquisa, conforme ressaltam: “Eu vou continuar no grupo com certeza, me identifiquei muito com o grupo, apesar de ultimamente ter tido muitos afazeres na escola, mas, acho que minha vida, metade da minha vida é isso, fazendo parte desses projetos, dessas coisas para melhorar a minha comunidade, e sem dúvida nenhuma valeu a pena realmente a gente está aqui. Conhecimento a gente teve muito, muitas coisas que a gente não sabia que existia e, que agora já sabe, como o CEREST e outras coisas”.

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“A gente vai vendo mais aprofundado a realidade da nossa cidade, da nossa comunidade, e a partir daí a gente pode mudar as coisas, e quando tem pessoas competentes como todos que estão aqui, e, que, realmente quer mudar é mais fácil você levar adiante esse projeto”.

Considerações finais A partir deste ensaio, compreendemos que a pesquisa-ação constitui um aporte capaz de subsidiar o planejamento conjunto, a elaboração de proposições e ações num diálogo crítico e problematizador das fragilidades, necessidades, mecanismos de superação e adaptação às novas realidades que emergem no contexto de mudanças socioambientais no território local, espaço de atuação da APS. O caráter participativo e a ação podem semear mudanças no contexto local numa perspectiva emancipatória dos sujeitos. Apreendemos que pesquisas socialmente engajadas promovem o fortalecimento e a participação da comunidade, de profissionais de saúde, gestores e trabalhadores, num movimento de produzir ciência na prática da vida comunitária, fortalecendo o modelo de atenção à saúde e, sobretudo, a APS. Esse tipo de abordagem favorece a percepção ecossistêmica dos problemas de saúde e o avanço na proposição de políticas públicas de saúde que efetivem realmente o vínculo, o acolhimento das necessidades de saúde, a responsabilidade sanitária pelo território e a ação transdisciplinar e intersetorial. O envolvimento dos sujeitos com os objetos de pesquisa dos pesquisadores, que são embasados nos problemas reais, apresenta-se como uma atuação científica necessária para a consolidação do SUS. Essa aproximação do acadêmico com o empírico, do teórico com o prático, em processos de pesquisa-ação, são potencialmente transformadores de indivíduos e coletivos. Esse processo está inter-relacionado com a promoção da afetividade e da criticidade, que são estruturais para a formação de novas práticas em saúde. Esse tipo de abordagem propicia aflorar o sentimento de pertença, e, portanto, de compromisso com a mudança, como descrito anteriormente em diversos trechos. Evidencia-se que há um espaço promissor da criatividade, da autonomia e da inter-relação do sujeito que se constitui como objeto de estudo, quando estes não são compreendidos somente como fontes de informação, mas como sujeitos ativos, partícipes do conhecimento produzido, e capazes de apreender a transformar a realidade no curso da pesquisa. Ou seja, o processo de pesquisa em si já promove mudanças na singularidade de cada indivíduo que floresce no grupo. Então, as ações decorrentes da elaboração do plano de ação têm outra matriz de significados, porque são concebidas a partir da apropriação do universo práxico em que estão inseridos os sujeitos. Nessa perspectiva, realizar pesquisa-ação em saúde ambiental e do trabalhador no SUS implicada com a práxis, garantindo um processo dialógico, embasado na problematização, fortalece a relação academia e serviço, contribuindo para a efetivação do direito à saúde, a participação social e a constituição de novas práticas de saúde na APS.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Vanira Matos Pessoa e Carlos André Moura Arruda realizaram a revisão final do manuscrito.

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PESSOA, V. M. et al. Investigación-acción: propuesta metodológica para la planificación de las acciones en los servicios de atención primaria en el contexto de la salud ambiental y ocupacional. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.301-14, abr./jun. 2013. El sistema gubernamental de salud brasileño (SUS) propone la realización de acciones para la salud del medio ambiente y de los trabajadores, con la finalidad de abordar la complejidad del proceso salud-enfermedad en los territorios. El objetivo es presentar la investigación-acción como una jornada metodológica, facilitadora del análisis de las complejas redes de desarrollo económico y las implicaciones para el trabajo, el medio ambiente y la salud en las comunidades de la región nordeste de Brasil. La investigación-acción fue diseñada con un grupo de 14 personas y realizada bajo la forma de talleres. Durante la investigación surgieron vínculos y preparación de propuestas, originadas de la teorización-reflexión-acción de los sujetos. Se subraya que el método tiene potencial para plantear los problemas relacionados con la salud ambiental y del trabajador, ya que favorece la interacción humana integrada al lugar en que vive.

Palabras clave: Investigación-acción. Salud ambiental. Salud laboral. Atención primaria de salud.

Recebido em 18/05/12. Aprovado em 08/02/13.

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artigos

A consulta homeopática: examinando seu efeito em pacientes da atenção básica*

Sandra Abrahão Chaim Salles1 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres2

SALLES, S.A.C.; AYRES, J.R.C.M. Homeopathic consultation: examining its effect among primary care patients. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.315-26, abr./jun. 2013.

This paper analyzes the results from research that investigated the contribution of experimental inclusion of homeopathic care at a teaching healthcare center, focusing on comprehensiveness of care. The effects of the homeopathic consultation on users’ perspectives were examined using data obtained from a group of patients who were followed up for a mean period of 12 months. These participants’ narratives in focus groups and the results obtained through applying a questionnaire developed in Scotland were used to evaluate the effects the medical consultations within primary care. The results suggest that, as a form of care technology, the homeopathic approach used in this study favors comprehensiveness and contains qualities that merit greater attention and a more extensive investigation so that it can be evaluated with regard to its different models for inclusion within public healthcare.

Keywords: Public Health. Primary health care. Homeopathy. Evaluation at primary care.

O artigo analisa resultados de pesquisa que investigou, sob o prisma da integralidade do cuidado, a contribuição da inserção experimental da atenção homeopática em centro de saúde-escola. São examinados os efeitos da consulta homeopática na perspectiva dos usuários, por meio de dados obtidos em grupo de pacientes acompanhados por um período médio de 12 meses. Tomam-se, para análise, as narrativas desses participantes em grupos focais e os resultados obtidos com a aplicação de questionário desenvolvido na Escócia para avaliar o efeito das consultas médicas na atenção primária. Os resultados sugerem que, enquanto tecnologia de cuidado, a abordagem homeopática utilizada neste estudo é favorecedora da integralidade e depositária de qualidades que merecem uma maior atenção e investigação mais ampla para que possa ser avaliada em seus diferentes modelos de inserção na saúde publica.

Palavras-chave: Saúde Pública. Atenção primária à saúde. Homeopatia. Avaliação na atenção primária à saúde.

* Elaborado com base em Salles (2012); pesquisa realizada em estágio de pósdoutoramento com Bolsa CNPQ, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1 Curso Médico, Centro Universitário São Camilo. Av. Nazaré, 1501, Ipiranga. São Paulo, SP, Brasil. 04.263-100 sandrachaim@terra.com.br 2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

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A CONSULTA HOMEOPÁTICA: ...

Introdução A homeopatia é uma especialidade médica reconhecida no Brasil há mais de trinta anos pela Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina. É uma opção de cuidado recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que divulgou documento incentivando a integração dessa e outras Medicinas Tradicionais aos sistemas nacionais de saúde (WHO, 2002). No Brasil tem sido apoiada pelas sucessivas Conferências Nacionais de Saúde desde a VIII, realizada em 1986, e compõe as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) incluídas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), publicada em 2006 como Portaria 971, pelo Ministério da Saúde, com diretrizes para: estruturação e fortalecimento da atenção homeopática; divulgação e informação; qualificação de profissionais; garantia de acesso a medicamentos; incentivo a pesquisa e ações de acompanhamento e avaliação. Apesar dessas recomendações, ainda não se pode observar uma grande ampliação da rede de atenção homeopática no SUS – está presente em apenas 113 do total de 5.560 municípios do país (dados apresentados pela Coordenação Nacional da PNPIC em outubro de 2011), que contam com 631 homeopatas, sobretudo nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul. Embora seja considerada uma especialidade médica, a Homeopatia é uma medicina de caráter generalista, que pode ser utilizada em todas as faixas etárias e em qualquer perfil de paciente, o que explica sua presença na atenção primária e, também, na atenção secundária, em unidades básicas de saúde, compondo equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família e nos centros de práticas integrativas ou de especialidades. Alguns estudos realizados no Brasil, nos últimos anos, exploram as possíveis repercussões da utilização do cuidado homeopático para os usuários da rede pública e para os serviços. São estudos qualitativos que descrevem como a abordagem homeopática é capaz de favorecer princípios e valores do SUS, como: cuidado centrado no paciente, humanização, clínica ampliada, autonomia, promoção à saúde e prevenção, e, também, a integralidade (Santanna, Hennington, Junges, 2008; Salles, Schraiber, 2008; Carneiro, 2008; Tesser, Luz, 2008; Estrela, 2006; Salles, 2006; Lacerda, Valla, 2003; Campello, 2001; Galvão, 1999). A intervenção homeopática é complexa, e inclui: uma consulta que estimula a reflexão e a autoobservação, exame físico, orientações higienodietéticas individualizadas e a prescrição de um medicamento também individualizado. Um parêntesis explicativo: o medicamento individualizado é considerado, neste estudo, um dos princípios fundamentais da prática homeopática, posto que, apenas com base na aplicação da lei dos semelhantes, se justifica a denominação Homeopatia. Na consulta, o médico busca compreender o indivíduo e seu adoecimento através de uma escuta ampliada, que valoriza o relato espontâneo, o que favoreceria uma relação médico-paciente de qualidade. A investigação sobre os elementos ativos do tratamento homeopático tem ajudado a esclarecer essa complexidade, e corrobora a afirmação de que a consulta é componente fundamental dessa tecnologia (Thompson, Weiss, 2006), demandando um tempo adequado para sua realização. É com base nesse entendimento que as diretrizes estabelecidas pela CIPLAN (Brasil, 1988), para a implantação da atenção homeopática na rede pública, propõem agendamentos com duração de uma hora, para um primeiro atendimento, e trinta minutos para o retorno. Neste artigo iremos nos deter na consulta homeopática, procurando compreender melhor esse componente da tecnologia homeopática quando realizado em ambiente de atenção básica. Observaremos esse encontro à luz dos conceitos de integralidade, verificando se seria possível identificar nele traços da boa medicina - aquela que não reduz o paciente a suas queixas e se ocupa em identificar e acolher as suas necessidades, que produz ações de prevenção junto com a assistência e, ao mesmo tempo, faz emergir outras questões relevantes para a qualidade de vida, correspondendo, assim, a um dos sentidos de integralidade propostos por Mattos (2001). Observaremos, ainda, se é possível caracterizar a interação cuidador-usuário na homeopatia como sensível e responsiva aos projetos humanos envolvidos, como nos propõe Ayres (2008), como mais um eixo a ser observado para avaliar a integralidade nas ações da Atenção Primária à Saúde. Para tentarmos responder a essas perguntas, procuramos avaliar e analisar como os pacientes atendidos durante a pesquisa “Homeopatia e Integralidade na Atenção Básica da FMUSP - Centro de Saúde Escola Samuel Pessoa” perceberam os efeitos de um primeiro encontro com o médico 316

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homeopata. Em seguida, discutiremos esses resultados à luz do conjunto de informações obtidas no estudo e de algumas referências teóricas relacionadas ao tema.

Desenvolvimento da pesquisa O projeto foi desenhado como uma pesquisa-ação, pois todo o estudo foi baseado nas observações e avaliações da inserção experimental da Homeopatia em um centro de saúde escola. Sua primeira etapa foi apoiada financeiramente pelo PPSUS- SP 2007, e as etapas seguintes foram realizadas como projeto de pesquisa de estágio de pós-doutoramento (2010 e 2011) – totalizando três anos de atividades. O Centro de Saúde Escola Samuel Pessoa (CSEB) é uma unidade docente assistencial, da Faculdade de Medicina da USP, que integra a rede de atenção primária do município de São Paulo. Localizado na região oeste, nele se desenvolvem atividades de atenção primária, formação e pesquisa em serviço. Após aprovação do projeto pelas Comissões de Ética em Pesquisa do HC-FMUSP e do CSEB, o projeto foi apresentado aos profissionais que trabalham no local, que foram convidados a participar de grupos focais para levantarem indagações, reflexões, críticas, proposições e recomendações. Foram realizados oito grupos focais, com 44 profissionais de nivel Básico, Médio e Superior, que ajudaram, assim, a desenhar o modelo de implantação que seria utilizado na pesquisa, definindo: a faixa etária a ser atendida (maiores de 12 anos), a forma de encaminhamento de pacientes (indicação de profissionais do local e demanda espontânea), o acesso ao medicamento, e as definições de conduta quanto ao atendimento das possíveis intercorrências em participantes da pesquisa. Foram realizadas ações de divulgação junto aos usuários, em conversas em sala de espera, após as quais os interessados se inscreviam para participar dos denominados Grupos de Recepção de Homeopatia. Foram realizados 12 encontros, entre fevereiro e junho de 2010, com participação de sessenta pessoas. Nesses encontros, os participantes eram convidados a falar sobre seu conhecimento e experiências prévias com a Homeopatia, eram esclarecidos sobre o projeto de pesquisa e sobre a Homeopatia, e, aqueles que aderiram à pesquisa, foram convidados a ler e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. Só então foi feito o agendamento para atendimento individual. A totalidade dos participantes destes grupos aderiu à pesquisa – não houve recusa. Um conjunto formado por 63 pacientes adolescentes e adultos foi acompanhado por um período médio de 12 meses, em cerca de cento e noventa atendimentos homeopáticos individuais. Os medicamentos foram obtidos gratuitamente de duas formas: retirados na farmácia do CSEB cerca de dez dias após a prescrição (trazidos da farmácia homeopática do município de São Paulo, por funcionário encarregado pela gerência da unidade), ou obtidos diretamente na farmácia homeopática do município, localizada em outra unidade de saúde, na mesma região oeste de São Paulo. Ao final da pesquisa, os participantes foram convidados a participar de grupos focais que visavam trazer à tona suas percepções a respeito do período de acompanhamento homeopático. Do conjunto de 59 pessoas acompanhadas, compareceram 28, em seis grupos focais. As demais receberam carta, com questionário buscando explorar as mesmas questões abordadas nos grupos focais. Todos os grupos foram conduzidos pela própria pesquisadora e gravados após autorização dos participantes. O material gravado foi transcrito e analisado. Tendo em vista o objetivo principal da pesquisa, avaliar a Homeopatia em relação ao seu potencial favorecedor da integralidade na atenção primaria à saúde, foram escolhidos instrumentos e metodologias avaliativas adequadas a cada fase do desenvolvimento dos trabalhos. Em relação à avaliação do primeiro atendimento individual, nos orientamos pela premissa de que a consulta homeopática, ainda que regida por um modelo de investigação previamente definido, ao valorizar as singularidades e a totalidade sintomática dos indivíduos, humaniza o encontro terapêutico e o transforma em cuidado, assim como o define Ayres (2004). Isso acontece na medida em que o homeopata abre espaço a uma discursividade mais livre, não limitada pela necessidade de buscar elementos necessários a um diagnóstico morfofuncional, favorecendo, de fato, a dimensão dialógica desse encontro. Optamos, então, por buscar caminhos de investigação que nos fornecessem elementos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.315-26, abr./jun. 2013

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A CONSULTA HOMEOPÁTICA: ...

para verificar a potencialidade de esta consulta produzir interações subjetivas emancipadoras entre profissionais e usuários, que poderiam contribuir para a construção de projetos de felicidade humana (Ayres, 2001). Reconhecendo a dificuldade em obter instrumentos capazes de averiguar essa dimensão da prática homeopática, optamos por utilizar duas estratégias de aproximação: grupos focais com pacientes, que nos serviriam como referência segura das percepções dos participantes em relação a sua experiência com a homeopatia e, também, a aplicação de um instrumento de avaliação que fosse sensível às dimensões da consulta homeopática que se desejava observar. A revisão da literatura nos indicou o Patient Enablement Instrument (PEI), instrumento proposto, inicialmente, por Howie, Heaney e Maxwell, 1997, revisado e modificado por Mercer, Reilly e Watt, 2001. Esse instrumento foi validado através de estudo comparativo com outros instrumentos conhecidos de avaliação de satisfação de usuários, em serviços de atenção primária de Edimburgo (Howie et al., 1998). Foi utilizado também em estudos prospectivos em serviços de atenção secundária da Escócia, juntamente com outros instrumentos de avaliação (Reilly et al., 2007; Bikker, Mercer, Reilly, 2005; Mercer, Reilly, Watt, 2002). Foi traduzido e validado para o francês (Hudon et al., 2011) e chinês (Lam et al., 2010). Na Polônia foi utilizado para comparar a atuação de médicos da atenção primária que receberam treinamento específico para uma abordagem mais holística, centrada no paciente, em relação aos que não receberam tal treinamento (Pawlikowska et al., 2002). O PEI foi desenvolvido na Universidade de Edimburgo como uma tentativa de contornar as críticas às medidas de satisfação de usuários que, segundo seu autor e colaboradores, avaliam muito mais quanto as expectativas de cuidado foram atendidas, em lugar de avaliar se houve algum ganho específico em saúde. Essa observação crítica é compartilhada por outros autores que afirmam que aqueles que recebem cuidados de saúde estão mais preocupados com a maneira e métodos envolvidos na realização desses cuidados do que com resultados ou competências do cuidador (Fitzpatrick, Hopkins 1983); e que os resultados de pesquisas de satisfação tendem a ser positivos, pois poucos pacientes expressam insatisfação ou são críticos em relação aos cuidados recebidos (Sitzia, Wood, 1997). O PEI avalia uma dimensão que se relaciona à satisfação do usuário, mas difere dela, pois envolve conceitos como: empoderamento, cuidado centrado no paciente e desenvolvimento de habilidade para compreender e lidar com a saúde e doença. Esta diferença conceitual entre “enablement” e satisfação em geral foi demonstrada, através de análises estatísticas, em um estudo que comparou o PEI a duas escalas de medida de satisfação de usuário já estabelecidas na atenção primária (Howie et al., 1998; Howie et al., 1999). Essa linha conceitual nos aproxima daquelas dimensões que desejamos observar na consulta homeopática, como citado acima, e justifica a nossa opção de utilizá-lo. A utilização deste instrumento nesta pesquisa não teve como objetivo sua validação, portanto não foram cumpridas as etapas necessárias para esse processo. A tradução foi realizada pela pesquisadora a partir da versão original em inglês, e a configuração final foi obtida após alguns testes com pacientes em uma clinica médica privada. A configuração utilizada na pesquisa está expressa na Figura 1. Figura 1. Como resultado da sua visita ao médico homeopata hoje, você sente que está... Muito melhor

Melhor

O mesmo ou menos

Não se aplica

Muito mais

Mais

O mesmo ou menos

Não se aplica

Capaz de lidar com a vida Capaz de compreender sua doença Capaz de lidar com sua doença Capaz de se manter saudável

Confiante a respeito de sua saúde Capaz de ajudar a si mesmo

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artigos

Resultados e discussão O PEI demonstrou ser um instrumento simples, de fácil compreensão pela maior parte dos usuários raramente foram pedidas orientações para o preenchimento e o tempo exigido para a resposta foi pequeno. Foram analisados 61 questionários respondidos imediatamente após o primeiro atendimento. Os pacientes foram orientados a responder o questionário sem identificar-se, dobrá-lo e, em seguida, depositá-lo em caixa fechada que ficava disponível para esse fim, separada do local de atendimento. Os autores do instrumento propõem uma forma específica de calcular os resultados, habitualmente utilizada nos artigos que descrevem pesquisas utilizando o PEI. Eles sugerem avaliar cada questionário respondido, atribuindo: nota 2 a cada resposta MUITO MELHOR/MUITO MAIS marcada, nota 1 a cada resposta MELHOR/MAIS, e zero para as outras respostas (O MESMO OU MENOS e NÃO SE APLICA). Como o questionário é composto por seis perguntas, a máxima pontuação seria 12 e a mínima 0. Utilizando esse critério, a Tabela 1 apresenta nossos resultados.

Tabela 1. Frequência de pontuação de avaliação de primeiro atendimento homeopático. Escores 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Total

Frequência 8 4 5 6 12 9 8 0 7 0 1 0 1 61

%

Soma de escores

13,1 6,55 8,19 9,8 19,6 14,7 13,1 0 11,47 0 1,63 0 1,63 100

96 44 50 54 96 63 48 0 28 0 2 0 0 481

Fonte: Respostas dos pacientes em tratamento homeopático, CSEB, 2010.

A média ou escore de enablement obtida nesta pesquisa foi 7,88, com mediana de 8 e desviopadrão de 2,71. Estes resultados apontam para uma evidente resposta favorável dos pacientes à consulta homeopática realizada, com repercussão em todos os aspectos envolvidos na capacitação dos indivíduos de lidarem com seus adoecimentos. Eles foram bastante superiores aos obtidos em estudos similares realizados em outros países: 3,7 e 4,7 em dois estudos realizados no Hospital Homeopático de Glasgow, na Escócia (Bikker, Mercer, Reilly, 2005; Mercer, Reilly, Watt, 2002); 5,06 na validação da versão francesa do instrumento, quando foi aplicado em cento e dez pacientes de uma clinica de medicina de família (Hudon et al., 2011); 4,65 na validação chinesa (Lam et al., 2010), e 6,6 em estudo realizado na Croácia (Ozvaci et al., 2008). Algumas reflexões sobre esses resultados devem ser feitas. Inicialmente, é importante ressaltar que não se tratou aqui de investigar as ações de um serviço ou um profissional em suas atividades diárias e rotineiras, como aconteceu em quase todos os estudos mencionados, e sim de um grupo de indivíduos que aderiram a uma pesquisa, atendidos por um único profissional responsável por ela. Apesar de terem sido respeitadas as diretrizes estabelecidas para o atendimento homeopático nos serviços de saúde desde 1988, pela Resolução Ciplan 04/88, quanto à sua duração (uma hora para a primeira consulta e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.315-26, abr./jun. 2013

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meia hora para retornos), assim como estarem sendo realizados, esses atendimentos, no ambiente conhecido pelos usuários para os atendimentos rotineiros, essa condição, de participação em uma pesquisa, é sabidamente favorecedora de expectativa positiva de ambos, usuários e profissional. Esse aspecto é amplificado pelo fato de se tratar de uma forma de cuidado normalmente não disponibilizada no serviço. Ainda assim, os dados surpreendem e merecem uma análise mais atenta. Um estudo realizado na Escócia com duzentos pacientes, atendidos por quatro diferentes médicos de um hospital homeopático, unidade de atenção secundária do sistema publico do país, utilizou o PEI paralelamente a outras estratégias de investigação, como: o Euroqol, escala de medida de expectativa, questionário de avaliação de estado geral no primeiro atendimento e questionário de acompanhamento da evolução do tratamento (Mercer, Reilly, Watt, 2002). O perfil dos pacientes é semelhante, em alguns aspectos, ao perfil dos participantes de nosso estudo: média de idade, predominância de mulheres, grande incidência de problemas crônicos e de queixas dolorosas. A duração das consultas de primeira vez também é semelhante (em torno de 55 minutos). As análises estatísticas realizadas no estudo escocês evidenciaram que os índices de PEI se correlacionam positivamente, de forma mais significativa, com: . expectativas dos pacientes antes da consulta; . a percepção que eles têm do nível de empatia do profissional; . melhora da queixa principal e do estado geral desde o primeiro atendimento; . o fato de conhecerem bem o médico; . a confiança do médico na prescrição realizada. No mesmo estudo foi observado, também, que um dos quatro médicos obteve uma média de PEI muito inferior à dos outros três, o que foi associado a características individuais deste profissional: consultas de retorno mais curtas, menor confiança na relação terapêutica e menores escores de empatia. Empatia, que se destaca como fator determinante dos índices de PEI, é um conceito complexo, multidimensional, que envolve habilidades do cuidador para: compreender a situação do paciente, suas perspectivas e seus sentimentos; comunicar este entendimento e verificar sua acurácia, e agir com o paciente na perspectiva deste entendimento de uma forma terapêutica colaborativa (Mercer, Reilly, Watt, 2002). Tem sido apontada como fator determinante da percepção de pacientes em relação à qualidade do cuidado na atenção primária (Mercer, Reynolds, 2002). Quanto à duração da consulta como fator determinante do PEI, os resultados não são esclarecedores, pois o estudo escocês não o confirmou, enquanto outro, realizado em ambiente de atenção primária na Polônia, sugere esta correlação (Pawlikowska et al., 2002). De toda forma, a duração das nossas consultas foi semelhante à do estudo escocês, enquanto os índices de PEI foram bastante diferentes. Para ampliar a análise dos nossos resultados, podemos buscar os outros dados que temos destes pacientes. O grupo participante da pesquisa foi formado a partir de demanda espontânea (25 indivíduos, destes alguns receberam sugestão de familiares que já participavam da pesquisa), indicação de profissionais médicos (17 encaminhamentos) e outros profissionais do próprio serviço (14 encaminhamentos). O grupo também era formado por alguns profissionais do CSEB que desejaram participar da pesquisa (7). Quanto ao perfil dos participantes: a maioria constituída de mulheres (53 mulheres e nove homens), com média de idade de 42,5 anos (máxima de 83 e mínima de 12 anos), nível de escolaridade média de 8,3 anos de estudo. A análise das queixas e diagnósticos apresentados pelos pacientes por ocasião do primeiro atendimento confirma alguns dados observados em outros estudos homeopáticos realizados na atenção primária, como a predominância de queixas do aparelho respiratório (Monteiro, Iriart, 2007; Galvão, 1999); no entanto, estes estudos citam uma alta frequência de “sintomas inespecíficos” ou “mal definidos”, categoria não utilizada em nosso estudo. Considerando o conjunto de 63 indivíduos atendidos em primeira consulta, verifica-se que as principais, em ordem decrescente de frequência, foram:

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§ mentais ou emocionais (depressão, transtorno bipolar, transtorno ansioso e outras) – 39 pessoas; § aparelho respiratório (com predomínio de asma e rinite) – trinta pessoas; § aparelho digestivo (gastrite, Refluxo Gastroesofágico, Constipação intestinal, e outras) – 24 pessoas; § cefaleias (tensional, enxaqueca com ou sem aura) – 18 pessoas; § pele, sobretudo dermatites, mas incluindo furunculoses, urticária, hordéolos etc. – 16 pessoas; § dores articulares, relacionadas a mono ou poliartroses, tenossinovites e outras patologias – 13 pessoas. Diabete mellitus e Hipertensão arterial sistêmica também foram diagnósticos frequentes apresentados pelos pacientes, mas, poucas vezes, estes diagnósticos motivaram a busca pelo tratamento homeopático, como uma opção aos medicamentos utilizados para controle da doença; em geral, os pacientes apenas citavam estes como mais um problema da sua lista. O número médio de queixas e diagnósticos atuais por paciente, na primeira consulta, foi 4. Suas expectativas em relação ao tratamento, que aparecem como temas relevantes nos grupos focais, indicam que, mesmo não conhecendo o que é homeopatia, ela representa uma alternativa, uma esperança, mais uma porta aberta, como dizem os participantes – por ainda não terem encontrado alívio para sofrimentos de longa duração, ou, ainda, para substituir medicamentos que percebem causar-lhes danos à saúde ou sintomas desagradáveis. A seguir, trechos de falas transcritas (sem correção) de diferentes participantes que expressaram, de forma clara, este aspecto: “Muitas vezes as pessoas ficam num tratamento e muitas vezes não dão certo, não melhoram... E depois as pessoas acabam desistindo mesmo. E tendo uma outra linha elas podem tentar, como foi meu caso, o caso da minha amiga, da amiga dela. Então ela pode ir para outra linha, por isso devia ter nos postos de saúde a parte de homeopatia, para as pessoas poderem escolher o melhor para ela. Às vezes o convencional não está funcionando e o homeopático dá certo”. “Eu não conhecia, não sabia que existia esse tratamento, a homeopatia. Vim conhecer aqui...É bom conhecer para ficar sabendo...Foi bom, gostei, com esse tratamento descobri a causa da alergia, me dei muito bem. Eu vim para tratamento da depressão, queria retirar os remédios e a psicóloga me indicou o tratamento com a senhora...”. “Necessidade de melhorar, ter uma porta mais aberta, porque como na parte psiquiátrica a Dra me “deu alta” porque não me adaptava a remédio nenhum de farmácia, ela achou que a homeopatia poderia me ajudar...”. “Foi uma busca, uma esperança a mais, coisa que venho buscando há anos e não estava conseguindo nada, não tive resultado em nada. Só me deixava mais dopada – e quando eu tinha que parar ou modificar o remédio eu via que não tinha dado resultado”.

Essa expectativa positiva, em relação a uma nova opção de cuidado, pode ter sido um dos fatores determinantes dos altos índices do PEI atribuídos pelos pacientes. Esses trechos de algumas falas, obtidos ao final do período de intervenção, aprovando a opção pelo tratamento homeopático, indicam uma expectativa correspondida. É interessante notar que alguns relatam uma espécie de afinidade cultural com aquilo que imaginavam ser o tratamento homeopático, e foi isso que os trouxe. Esse tema nos lembra um dos determinantes do grau de satisfação de usuários, segundo modelo de Fitzpatrick - a expectativa criada socialmente em relação à necessidade do que é familiar (Sitzia, Wood, 1997).

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“Eu sou mais por tradição, pela minha criação que foi de arrancar um galho e fazer um chá... Eu acho muito bom, melhor do que esse de laboratório”. “Quando criança mãe só nos tratava com homeopatia – eu já tinha uma resposta que era ótimo”. “É bem natural, então eu tenho muita fé...”. “Vem de encontro a minha crença - não tenho dúvida que o resultado vem”.

Outros vêm por curiosidade, sem expectativas definidas: “Fiquei curiosa para saber o que é, porque eu nunca tinha ouvido falar”.

Os vários sintomas recorrentes, interferindo no desempenho e na qualidade de vida, foram citados como fatores que motivaram a busca desta opção de tratamento, confirmando, também, os diagnósticos realizados nos atendimentos individuais. Essa dimensão do tratamento, agindo de forma preventiva, evitando adoecimentos recorrentes, foi valorizada pelos pacientes que a destacaram em suas falas: “Eu tomava remédio, melhorava e depois voltava de novo. Diminui ida a Pronto Socorro”. “Eu tinha enxaqueca, sinusite era uma coisa absurda para mim - eu tinha que parar de trabalhar e tinha que ir embora. Então para mim foi um ótimo tratamento e hoje graças a Deus não sinto nada também. Então muitas coisas foram boas, o tratamento melhorou bastante”. “Para mim foi muito bom o tratamento, é bom. Todo mês eu tinha gripe, dor de garganta, agora não, e com o remédio as cólicas menstruais também amenizou”. “Eu tomava esses comprimidos de farmácia, melhora e daí a pouco volta”. “Eu tomava muito Berotec, sabe, Salbutamol? E a diferença dos dois, antes eu sempre tinha crise, cada quatro, seis meses, sempre tinha crise - e tinha que tomar inalação para poder dormir. E com esse remédio eu não tive mais crise, tem um ano que não tenho crise. Fiquei resfriada, mas não senti falta de ar”. “Eu queria dizer que depois que eu fiz esse tratamento de homeopatia, o que me fez foi o seguinte: no inverno do ano passado e desse ano eu não tive aquela dor aguda que dava aqui atrás, das costas, parece que estava fincada uma coisa de trás para frente, das costas para o coração – uma dor muito forte, eu já levantava assim com aquela dor, eu não conseguia nem respirar direito. Ela leva uma semana para sair, ia saindo aos poucos. Não deu ano passado no inverno, nem esse ano”.

Quanto aos aspectos relacionados à confiança na relação com o profissional, também foram identificados nos grupos focais, às vezes de forma independente de resultados obtidos com o tratamento. Aspectos como a percepção do interesse do médico em relação ao paciente ou o tipo de abordagem, que direciona o olhar ao paciente, e não ao caso, sabidamente capazes de influenciar a avaliação da satisfação dos usuários (Sitzia, Wood, 1997), podem ter contribuído para a qualidade desta relação: “Eu não tenho nada para sugerir, mas se fosse para continuar que fosse com a Sra. Porque é diferente, não sei porque, mas foi diferente. Tanto é que quando fiquei resfriada nem tomei 322

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xarope, eu disse a Dra disse para não tomar nada...E nem senti falta de ar!”. “Confio muito na homeopatia, confio muito em você, então para mim foi supergratificante”. “... eu não tive ainda o resultado que eu gostaria, mas eu estou confiante. Eu confio em você, então estou continuando tomando o remédio”.

Além da confiança, resultado de uma relação de qualidade, o tipo de abordagem utilizado pela tecnologia de cuidado em homeopatia merece destaque. As falas de alguns pacientes, nos grupos, indicam que eles entraram em contato com sofrimentos até então não nominados, isto é, que não apareciam como queixa em seus diferentes encontros com profissionais, e que se resolveram durante o tratamento, causando-lhes grande impacto e surpresa. Estes sofrimentos foram destacados nos encontros de avaliação, pois a sua ausência tinha sido percebida. Essa observação nos remete à premissa inicial de que o encontro terapêutico na homeopatia pode ser um verdadeiro ato de Cuidado, quando não restringe ou dirige o relato dos pacientes, permitindo que cada um apresente, no encontro, aquilo que deseja. Essa talvez seja uma das grandes qualidades da abordagem homeopática no que se refere aos elementos que desejávamos observar: oferecer um espaço que não delimita e não dirige a fala do usuário, ao mesmo tempo em que é capaz de desencadear um processo de reequilíbrio que atinge sensações ainda não transformadas em sintomas: “Eu tinha uma raiva, eu ficava calada... Quando eu estava na roça vinha essa raiva eu saia. E o remédio melhorou muito. Não conversava com as pessoas, saia de perto. Não conversava com outras pessoas. Hoje brinco com o menino, melhorou muito”. “Esse tratamento tirou minha angustia, eu nem sabia de onde vinha nem porque e depois que eu comecei esse tratamento acabou! E uma coisa que percebi que sumiu é a dor de cabeça que tinha”. “Pretendo continuar porque resolveu minha vida”. “Eu senti uma melhora de modo geral: menstruação, alergia, deu bastante melhora...”. “Para mim foi muito bom: as consultas, as conversas, a medicação”. “Eu acho que todos os postos de saúde deveriam ter um médico homeopata, porque tem situações, tem problemas de saúde que ou a homeopatia é um complemento ou ela é, realmente, a solução”.

À guisa de conclusão Os relatos dos pacientes nos grupos focais nos ajudam a perceber que os participantes aderiram ao grupo de pesquisa pela possibilidade de receberem uma forma de cuidado de que antes não dispunham, e que eles reconhecem ser diferente daquela que utilizam nos serviços de saúde, o que representa uma nova esperança de resolver situações crônicas, recorrentes, para as quais ainda não haviam encontrado uma resolução que satisfazia suas expectativas. Essa grande esperança depositada em uma nova opção de cuidado certamente diferencia os resultados desse estudo comparativamente aos outros realizados utilizando o mesmo instrumento, que avaliavam serviços oferecidos rotineiramente nos locais pesquisados. Sob vários aspectos, essas falas confirmam a observação de que a consulta homeopática pode ser capaz de favorecer a integralidade na atenção primária, pois produz encontros emancipadores, capazes de favorecer a emergência de relatos livres dos modelos definidos pela racionalidade biomédica. Ainda COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.315-26, abr./jun. 2013

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que não existam elementos comprobatórios, os relatos dos grupos focais sugerem que a abordagem homeopática utilizada pelo profissional nesta pesquisa teve um impacto significativo na avaliação satisfatória dos usuários em relação à empatia, contribuindo para o alto índice no Patient Enablement Instrument (PEI). Os resultados apontam que os pacientes atendidos avaliaram muito bem a capacitação que lhes foi conferida pelo encontro com o homeopata, em consulta, quanto a sua possibilidade de compreender e lidar com seu adoecimento e sua saúde. Ainda que estes resultados possam ter sido favorecidos por alguns fatores já citados, como: terem sido aplicados a uma amostra restrita de indivíduos, atendidos por apenas um profissional, em situação de pesquisa para ambos, usuários e profissional, acreditamos que estes dados indicam que o instrumento pode ser útil para avaliar os diferentes modelos de atendimento oferecidos por profissionais com formações diversas atuando na atenção primária. Uma etapa posterior seria a tradução e validação do questionário para a língua portuguesa, permitindo que outros estudos possam identificar a interferência do aspecto cultural nos resultados encontrados. Acreditamos ainda que os resultados indicam que, enquanto tecnologia de cuidado, a abordagem homeopática utilizada neste estudo é depositária de qualidades sutis, que merecem uma maior atenção e mais ampla investigação para que possa ser avaliada em seus diferentes modelos de inserção na saúde pública, o que contribuiria para que fosse mais bem aproveitada e, ao mesmo tempo, a ajudaria a ultrapassar as dificuldades impostas pelo arranjo tecnológico do modelo atual, que dificulta sua articulação com outros saberes que compõem o rico leque de opções que se apresentam hoje na atenção primária.

Colaboradores Sandra Abrahão Chaim Salles realizou a pesquisa, concebeu e redigiu o artigo. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres supervisionou a pesquisa, revisou e colaborou com a redação do artigo. Referências AYRES, J.R.C.M. (Coord.). Caminhos da integralidade: levantamento e análise de tecnologias de cuidado integral à saúde em Serviços de Atenção Primária em região metropolitana. São Paulo, 2008. [Relatório de Pesquisa PPSUS]. AYRES, J.R.C.M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc., v.13, n.3, p.16-29, 2004. ______. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.6, n.1, p.63-72, 2001. BIKKER, A.P.; MERCER, S.W.; REILLY, D. A pilot prospective study on the consultation and relational empathy, patient enablement and health changes over twelve months in patient going to Glasgow Homeopathic Hospital. J. Altern. Complement. Med., v.11, n.4, p.591-600, 2005. BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social, Secretaria Geral. Resolução Ciplan nº 4, de 8 de março de 1988. Dispõe sobre as diretrizes para o atendimento médico homeopático nos serviços públicos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar. 1988. Seção 1, p.3996-7. CAMPELLO, M.F. Relação médico-paciente na homeopatia. 2001. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2001.

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SALLES, S.A.C.; AYRES, J.R.C.M. La consulta homeopática: el examen de su efecto en los pacientes de atención primaria. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.315-26, abr./jun. 2013. Este artículo analiza los resultados de la investigación que examinó, bajo el prisma de la atención integral, la contribución de la inserción experimental de la atención homeopática en un centro de salud-escuela. Se examinan los efectos de la consulta homeopática, bajo la perspectiva de los usuarios, utilizando datos obtenidos en grupos de pacientes acompañados durante un período promedio de 12 meses. Para análisis se utilizan las narrativas de los participantes en grupos focales y los resultados obtenidos con la aplicación de un cuestionario elaborado en Escocia para evaluar el efecto de las consultas médicas en la atención primaria de salud. Los resultados sugieren que , como tecnología de cuidado, el enfoque homeopático utilizado en este estudio favorece la integralidad y al mismo tiempo es depositario de cualidades que merecen mayor atención y una investigación más amplia para evaluarse en diferentes modelos de integración en la salud pública.

Palabras clave: Salud pública. Atención primaria de salud. Homeopatía. Evaluación en la atención primaria de salud.

Recebido em 02/09/12. Aprovado em 13/04/13.

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artigos

O trabalho multiprofissional na Estratégia Saúde da Família: estudo sobre modalidades de equipes Renata Cristina Arthou Pereira1 Francisco Javier Uribe Rivera2 Elizabeth Artmann3

PEREIRA, R.C.A.; RIVERA, F.J.U.; ARTMANN, E. The multidisciplinary work in the family health strategy: a study on ways of teams. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.327-40, abr./jun. 2013.

This paper presents a case study that examined the multiprofessional teamwork in health based on theory of conversations by Echeverria and in the analysis criteria built by Peduzzi. The field of study was a basic health unit that is part of the Familiy Health Strategy (ESF) in the municipality of Rio de Janeiro, Brasil. It was considered as an analysis unit one family health team, and were performed nine semi-structured interviews and nine sessions of participant observation of the team meetings. Results indicate that the teamwork in the ESF emerges as a possibility for a more communicative and cooperative practice in which professionals recognize the other’s work and share the goals, setting up as a small network of conversations.

Keywords: Patient care team. Primary health care. Family Health Program.

Trata-se de um estudo de caso que analisou o trabalho em equipe multiprofissional em saúde com base no referencial teórico da teoria das conversações de Echeverria e nos critérios de análise construídos por Peduzzi. O campo de estudo foi uma unidade básica de saúde que faz parte da Estratégia Saúde da Família (ESF) no município do Rio de Janeiro, Brasil. Considerou-se como unidade de análise uma equipe de saúde da família, sendo realizadas nove entrevistas semiestruturadas e observação participante de nove reuniões do grupo. Resultados indicam que o trabalho em equipe na ESF emerge como possibilidade para uma prática mais comunicativa e cooperativa na qual os profissionais reconhecem o trabalho do outro e compartilham objetivos, configurando-se como uma pequena rede de conversações.

Palavras-chave: Equipe de assistência ao paciente. Atenção Primária à Saúde. Programa Saúde da Família.

* Elaborado com base em Pereira (2011); pesquisa com apoio financeiro PROEX/CAPES Discente do Programa de Saúde Pública da ENSP. O trabalho seguiu as normas estabelecidas pela Resolução CNS 196/96, tendo o projeto de pesquisa sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e pelo Comitê de Ética em pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro. 1 Divisão Planejamento, Instituto Nacional de Câncer, Ministério da Saúde. Rua do Resende, 128, sala 318, Centro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.231-092. renata.pereira@inca.gov.br 2,3 Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Osvaldo Cruz.

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Introdução A partir de 2000, é significativo o aumento de publicações da comunidade acadêmica voltadas para o trabalho em equipe na saúde. Alguns estudos apontam que essa discussão ganha força, sendo alavancada pela tendência internacional de apresentar este tipo de organização de trabalho como alternativa à necessidade de racionalização da assistência médica e ampliação do acesso da população aos serviços de saúde (Canoletti, 2008). Responde, ao mesmo tempo, à necessidade de “integração das disciplinas e das profissões entendida como imprescindível para o desenvolvimento das práticas de saúde a partir da nova concepção biopsicossocial do processo saúde-doença” (Peduzzi, 2009, p.421). A iminência do trabalho em equipe em saúde está na vanguarda das estratégias para mudanças dos modelos de assistência à saúde frente a um contexto sociocultural e econômico extremamente complexo e, cada vez mais, dinâmico. Percebe-se a tendência da literatura em reconhecer a interdependência e complementaridade das ações de vários profissionais para melhorar a qualidade da assistência, e que o grau de integração entre estes pode estar relacionado a quanto a equipe cuida. A Estratégia Saúde da Família (ESF), neste contexto, configurou-se como uma iniciativa inovadora no campo sanitário internacional. Diferente de outros países que também basearam seus sistemas na atenção primária à Saúde, a ESF pressupõe o trabalho multiprofissional e em equipe (Campos, Cherchiglia, Aguiar, 2002). O trabalho em equipes multiprofissionais na ESF tornou-se um dos principais instrumentos de intervenção, pois as ações e práticas se estruturam a partir da equipe, ao mesmo tempo em que ocorre, neste tipo de trabalho em saúde, a ampliação do objeto de intervenção para além do âmbito individual e clínico. Tal peculiaridade requer mudanças na forma de atuação e na organização do trabalho, bem como demanda alta complexidade de saberes (Silva, Trad, 2005). A articulação dos olhares dos diferentes trabalhadores da equipe da ESF, que possui a singularidade da presença dos agentes comunitários em saúde, possibilita o desenvolvimento de ações que ultrapassam a racionalidade da assistência curativa, centrada na resolução imediata de problemas de saúde individuais – ação que não deve ser ignorada –, mas que tem se mostrado insuficiente para modificar os níveis de saúde da população. Peduzzi (2001), ao explicitar modelos para configurações das equipes de saúde, propõe a classificação das equipes multiprofissionais em agrupamento e interação, baseando-se nos estudos sobre trabalho em saúde e na Teoria do Agir Comunicativo de Habermas. Na modalidade de trabalho em equipe multiprofissional de agrupamento, ocorre a tendência à manutenção da fragmentação das ações e relações de distanciamento dos trabalhadores entre si e com o trabalho que executam. Já na modalidade interação, a propensão se direciona para a integração dos trabalhos especializados e, também, dos profissionais que os executam (Peduzzi, 2001). Diferentes critérios são utilizados para analisar as modalidades de equipe: qualidade da comunicação, especificidades dos trabalhos especializados, questionamento da desigual valoração social dos diferentes trabalhos, flexibilização da divisão do trabalho, autonomia profissional de caráter interdependente, e construção de um projeto assistencial comum (Peduzzi, 2009). O trabalho em equipe é considerado, neste estudo, como uma modalidade de trabalho coletivo que se constitui por meio de uma relação recíproca entre as ações técnicas executadas pelos distintos profissionais e a interação desses atores (Peduzzi, 2007, 2001). Contudo, a comunicação é o veículo que possibilita essa conexão entre os profissionais. Neste sentido, o trabalho em equipe multiprofissional em saúde é abordado por uma perspectiva comunicativa que entende o diálogo como uma realidade intrínseca a este tipo de trabalho coletivo. Desta forma, aproxima-se dos estudos de Echeverria (1997) que consideram as conversações como componentes resultantes das interações linguísticas, as unidades básicas da linguagem. A observação dos processos interativos sob a ótica das conversações permite identificar a equipe de saúde como uma pequena rede de conversações na qual os trabalhadores envolvidos se comprometem intersubjetivamente, através da linguagem, a trabalharem de forma conjunta para atingirem um objetivo de comum interesse. E que se constitui em mais critério de exame dos processos de interação do trabalho em equipe multiprofissional. 328

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O objetivo geral foi analisar o trabalho em equipe multiprofissional de saúde na ESF do município do Rio de Janeiro na perspectiva da tipologia agrupamento/interação de Peduzzi (2001).

Percurso metodológico Com o intuito de atingir os objetivos propostos, optou-se pela realização de uma pesquisa qualitativa do tipo estudo de caso. Os sujeitos envolvidos na pesquisa foram profissionais que compõem uma equipe multiprofissional de saúde da família de uma Unidade Básica de Saúde localizada no município do Rio de Janeiro, Área de Planejamento 3.1 (AP 3.1), uma das dez áreas de planejamento sanitário instituídas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS). O estudo foi desenvolvido em uma unidade de saúde desta área por constituir campo de prática de curso de especialização em Saúde da Família nos moldes de residência, com o enfoque no trabalho multiprofissional e pela facilidade de acesso a informantes-chave. Para escolha da equipe, foram utilizados os critérios: tempo mínimo de um ano trabalhando em conjunto, existência de equipe mínima completa e ampliada – ou seja, com a presença da equipe de saúde bucal –, e o reconhecimento, pelo gestor local, de certa sinergia no trabalho. A produção de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, observação participante das reuniões de equipe e observações diretas da dinâmica da unidade. Ao todo, foram realizadas nove entrevistas com os trabalhadores: médico, dentista, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, auxiliar de consultório dentário e quatro agentes comunitários de saúde. Também foram observadas nove sessões de reuniões de equipe e realizadas em torno de vinte visitas à unidade de saúde. O trabalho de campo ocorreu em um período de três meses. Os instrumentos de produção de dados utilizados foram aplicados com base em um roteiro construído a partir de fundamentação teórica e conceitual. A entrevista abordou, entre outros aspectos, o trabalho de cada um, as possíveis conexões entre as ações dos distintos trabalhadores, e as concepções sobre o trabalho em equipe. Os relatos provenientes das observações das reuniões de equipe foram registrados atentando para preceitos da análise das conversações. Os dados provenientes da observação direta foram registrados em um diário de campo atentando para fluxo de atendimento da unidade, declarações espontâneas de informantes, interações entre os trabalhadores, dentre outros aspectos relevantes. Para a análise dos dados, foram utilizadas ferramentas e concepções advindas da análise do discurso nas tradições anglo-saxônica e francesa. A primeira traz a concepção de que a linguagem pode afetar a realidade social: a linguagem também produz coisas, pois envolve atos de fala que têm uma função geradora. Já a tradição francesa introduziu noções importantes para operacionalização da análise, como a proposta de uma postura hermenêutica através da construção de dispositivos teóricos e analíticos (Iñguinez, 2004). Ao tomar como objeto a linguagem cotidiana, esta vertente de análise qualitativa abandona a noção da linguagem simplesmente como forma de refletir e descrever o mundo, e do analista como mero coletor de dados neutros (Iñguinez, 2004), distanciando-se das análises positivistas das falas e trazendo a tônica da relação entre a linguagem e seu contexto de produção (Minayo, 2007). Assim, realizaram-se as seguintes etapas para uma análise do material empírico: (a) Constituição do corpus: Transcrição de entrevistas, organização e sistematização dos dados da observação participante, dos relatos provenientes do diário de campo e dos documentos coletados durante trabalho de campo. (b) Leitura vertical: Leituras e releituras dos relatos e dos dados da observação participante para identificar as ideias centrais, leitura dos demais materiais com objetivo de fazer as primeiras relações entre os depoimentos e seu contexto. (c) Leitura horizontal: de todo material, buscando-se a constituição de diferentes corpus agrupados por afinidade em núcleos de pensamento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.327-40, abr./jun. 2013

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(d) Leitura transversal e interpretação: considerando os dados produzidos, interpretando-os à luz do referencial teórico que orienta a pesquisa, conforme os critérios de análise do trabalho em equipe multiprofissional segundo Peduzzi (2001), e conceitos da teoria das conversações de Echeverria (1997).

Resultados e discussão Características do trabalho de cada um e a liderança rotativa Quando os profissionais relataram sobre seu trabalho ou sobre o trabalho dos outros membros da equipe, observou-se a existência de situações objetivas de trabalho que se remetem à especificidade das distintas funções e a diferenças técnicas correlatas, características presentes nas duas modalidades de equipe – agrupamento e interação –, bem como a transversalidade de algumas ações. As especificidades dos diferentes trabalhos permitem o aprimoramento do conhecimento e do desempenho técnico em determinada área de atuação. Já a articulação dos diferentes saberes possibilita diversificar os olhares sobre um mesmo objeto, o que amplia as possibilidades de intervenção e cuidado. Ao mesmo tempo, existem saberes comuns que levam a ações comuns e que flexibilizam a divisão do trabalho (Peduzzi, 2001). Os agentes comunitários muitas vezes já trazem as demandas da população assistida de forma parcelar, considerando que existe uma diferença técnica entre os trabalhadores envolvidos na ação de cuidar e, também, uma divisão do trabalho previamente estabelecida, o que pode ser observado nas falas a seguir: “Se a equipe não existir o meu trabalho não anda. Eu dependo do que os outros fazem. Cada caso, eu dependo de alguém. Se chega uma pessoa ferida, eu preciso da técnica de enfermagem para o curativo. Se eu tenho alguém doente, eu preciso da médica para uma consulta. Eu preciso de uma orientação. A mãe vem me perguntar, “a vacina tal dá febre, dá isso?”. Eu não sei. Eu tenho que perguntar para a enfermeira”. (Agente Comunitário de Saúde 3)

Para Almeida e Mishima (2001), os núcleos específicos de competência do médico e do enfermeiro podem ser desenhados da seguinte forma. O do médico é estabelecer o diagnóstico clínico e a instituição do tratamento adequado, o qual pode ser estendido para o dentista considerando a saúde bucal. Já em relação ao enfermeiro, pode-se considerar o seu núcleo de competência centrado em três dimensões: o cuidado de enfermagem, o monitoramento das condições de saúde individual e coletiva, e as ações gerenciais voltadas ao cuidado. Sakata (2009) identifica que as competências e responsabilidades específicas dos agentes comunitários vêm se conformando, ao longo do processo histórico de formação desse trabalho, “em ações de construção de vínculos com a comunidade e entre os outros trabalhadores, adequando a produção de cuidados em saúde às necessidades das pessoas do território de abrangência da unidade de saúde” (Sakata, 2009, p.144). Emerge, nas falas, a questão da liderança dentro da equipe, que se apresenta de forma rotativa, ou seja, dependendo da situação, a liderança se desloca. Esta noção de liderança rotativa é típica de um processo de gestão de redes e guarda estreita relação com o conceito de liderança coletiva: numa rede de serviços de saúde, ou numa minirrede conversacional de uma equipe de saúde, não seria possível reconhecer uma única liderança, mas várias em interação. A este respeito, Contandriopoulos et al. (2005) sustentam que o conceito de liderança coletiva é o mais adequado ao gerenciamento do setor saúde, pois o exercício da liderança supõe a necessidade de articular várias lideranças, situadas em diversas esferas de poder e níveis do sistema. Para Rivera e Artmann (2006), a liderança das organizações sanitárias deveria operar como um fator de negociação do processo de relações interprofissionais, no seio da governança clínica e do

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gerenciamento local dos centros operadores e unidades, fortemente influenciado pelo saber profissional. Esse enfoque está muito mais próximo do conceito de liderança coletiva ou comunicativa, que se desenvolve por meio de rodas de conversação e jogos de linguagem, do que de uma visão de liderança tradicional. McCallin (2003) afirma que, diferente das formas tradicionais de liderança na equipe interdisciplinar, cada pessoa aceita a responsabilidade como membro e líder, o que significa que indivíduos entram e saem do papel de direção principal, orientando os colegas e tomando decisões para clientes em várias situações. A médica e a enfermeira exercem funções de liderança na coordenação de ações, que se manifestam por serem pessoas de referência que se colocam na função “de guia”, de facilitadoras na tomada de decisões coletivas, ou na resolução de situações problemáticas. O exercício de liderança dos agentes comunitários de saúde ocorre dentro do território, na relação com a comunidade, o que, geralmente, já é anterior a sua entrada na ESF e pode ser potencializado ao adquirirem novos conhecimentos e posição social. Situação que pode ser exemplificada no depoimento a seguir: “O grupo de adolescentes foi feito primeiro por mim e a enfermeira. Aí depois é a que a médica chegou [...] Eu falei um pouco sobre a violência na escola. Porque como eu moro perto de três escolas, eu estou sempre me envolvendo assim, separando, tirando criança de briga, avisando a escola. É assim, todo mundo já até me conhece na rua por causa disso”. (Agente Comunitário de Saúde 3)

Observa-se o emprego da sua posição de liderança na comunidade enquanto forma de fomentar discussões em grupo sobre um tema que talvez outro ator não conseguisse identificar como demanda. Ou seja, demonstra a potencialidade de sua ação enquanto líder em criar novas possibilidades de reflexão. A enfermeira tem um papel político e gerencial que, muitas vezes, é reforçado pela gerência da unidade, já que essa profissional é sempre solicitada por ela quando se trata de repassar informações dentro da equipe, assim como para coordenar a realização das ações demandadas pela SMS. De forma semelhante, outros estudos que tratavam sobre o trabalho na ESF constataram que a enfermeira desempenha o papel de mediadora das relações da equipe com a coordenação municipal (Oliveira, Spiri, 2006; Colomé, 2005; Silva, Trad, 2005). A equipe de saúde bucal, composta por dentista e auxiliar de consultório dentário, desenvolve atendimento individual em consultório, domicílio e atividades coletivas por meio de grupos de educação e saúde tanto na unidade quanto em outros espaços. O trabalho da profissional técnica de enfermagem está voltado para a realização de procedimentos técnicos na unidade e no domicílio, como: administração de vacinas, medicamentos e realização de curativos. Também é citada como profissional que tem grande proximidade com os agentes comunitários, já que possui mais disponibilidade de se deslocar com eles dentro da comunidade, exercendo, também, uma forma de liderança quando apoia algumas ações e visitas domiciliares.

Concepções sobre o trabalho em equipe Sobressai, nas falas, a característica do trabalho em equipe, como: cooperação, colaboração e divisão de responsabilidades. E também há a noção de que, no trabalho em equipe, os resultados obtidos são maiores do que a soma dos resultados individuais, aumentando a eficácia e a eficiência do atendimento prestado à população. “Então, um trabalho de equipe é você fazer as suas atividades, mas estar sempre consultando e interagindo com os outros profissionais para o bem-estar da comunidade, da população”. (dentista)

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“Para trabalhar em equipe é necessário ter um objetivo comum, estar disposto a fazer sua parte bem-feita em prol desse objetivo, e um pouco de humildade para reconhecer que você não sabe tudo, que não vai resolver tudo sozinho, gostar de colaborar”. (médica)

Alguns entrevistados destacaram, como característica do trabalho em equipe, a elaboração conjunta de linguagens e objetivos comuns. Silva e Santos (2006), ao descrever a experiência de uma equipe multiprofissional no contexto da assistência em transtornos alimentares, aponta a essencialidade de se construírem condutas comuns. “Poder falar a mesma língua” foi um componente importante para estabelecer parcerias entre as diversas modalidades de assistência – ambulatorial e hospitalar – e os diferentes profissionais envolvidos naquele serviço em especial. Trata-se da perspectiva, conforme afirma Peduzzi (2001), do agir comunicativo no interior da técnica, de uma prática comunicativa que está para além dos projetos específicos dos profissionais e que visa a construção de linguagens e objetivos, ou até de cultura comum: a comunicação intrínseca ao trabalho, que é um dos atributos da equipe integração. Além disso, foi apontada a necessidade de formação voltada para a perspectiva da interdisciplinaridade dentro da formação acadêmica e a potência formativa do trabalho em equipe. “A pessoa já ter esse conhecimento. Essa vontade de estar dividindo de não trazer só para ele. Ou querer usar só o conhecimento dele. É saber da importância de você atuar com os outros setores. Tanto da saúde quanto o de educação, de meio ambiente. Qualquer área que vá refletir na saúde. Então esse primeiro passo do profissional, ter esse entendimento. E saber que é necessário para gerar saúde, você ter esse conjunto de fatores. Não vai ser só a sua atuação aí que vai resolver algum problema do indivíduo e da comunidade. Então eu acho que é a formação. De repente, na própria formação, na grade curricular da faculdade já ir trabalhando a equipe. A importância da equipe. Finalidade, não é? De você estar trabalhando com vários setores. E a pessoa já vir com essa visão. Não do específico como um tempo atrás era”. (dentista)

Campos e Belisário (2001) afirmam que um dos maiores problemas que emergiu com a implantação do PSF é a carência de profissionais em termos quantitativos e qualitativos para atender a esta nova necessidade. Para Ceccim e Feuerwerker (2004), autores que vêm promovendo debate sobre o processo de ensino-aprendizagem dos profissionais de saúde, a integralidade e a multiprofissionalidade devem ser empregadas no processo educacional para criarem condições para o trabalho em conjunto dos profissionais de saúde, atendendo aos novos desafios da contemporaneidade na produção de conhecimentos e na produção das profissões. A educação interprofissional, que envolve situações onde o aprendizado ocorre por meio de interações entre estudantes de diferentes profissões, é reconhecida como instrumento importante para o fortalecimento dos sistemas de saúde frente aos novos desafios do século XXI, ao contribuir com a formação de profissionais mais aptos a desenvolverem práticas colaborativas e de trabalho em equipe, bem como capazes de responderem com mais eficiência e efetividade às necessidades locais da população (Frenk et al., 2010; WHO, 2010). Mendes e Caprara (2012) trazem a experiência da universidade da Bahia, que inova, na graduação, com um bacharelado interdisciplinar em saúde, cuja primeira turma, segundo os autores, tem apresentado boa capacidade crítica sobre saúde e sociedade, e de interlocução com diversas áreas do conhecimento, o que permite uma abordagem ampla do objeto saúde. Contudo, dada a distância entre a formação tradicional dos trabalhadores e as exigências do trabalho em saúde, o próprio serviço pode se tornar espaço privilegiado de formação dos profissionais. Tendo como alternativa tomar a equipe como estratégia de construção de novos saberes em situação de trabalho e coletivamente, o que se faz no investimento na produção de outros modos de subjetivação

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que se efetivam no curso do processo de trabalho mediado pela linguagem, ampliando a capacidade de escuta e a de reconhecimento do outro como possuidor e produtor de saberes (Barros, Barros, 2007).

Articulação das ações e ampliação do acesso e atenção à saúde na ESF A maioria dos entrevistados faz referência a situações nas quais existem complementaridade e interdependência entre os trabalhos, além de articulação entre ações. Os relatos falam da necessidade do trabalho do outro como forma de garantir a continuidade do atendimento, ou seja, existe o reconhecimento do trabalho do outro, assim como, ao mesmo tempo, descrevem as ligações existentes entre os trabalhos com base no processo de divisão de trabalho. A percepção dos entrevistados de que sua atividade de trabalho é coletiva e depende da atuação de cada um dos profissionais envolvidos é muito contundente e pode ser exemplificada na menção da técnica de enfermagem quando questionada sobre o trabalho dos outros profissionais da sua equipe: “As atividades deles eu acho que são tudo a soma de todo” (técnica de enfermagem). Algo que também chama atenção nos depoimentos é a realização conjunta de grupos educativos. Eles são realizados para uma população-alvo e conduzidos por mais de um profissional de saúde. Geralmente, a iniciativa de realizar estes grupos parte de um profissional tendo em vista o seu núcleo de competência. Por exemplo, a auxiliar de consultório dentário vai realizar um grupo com os moradores sobre promoção da saúde bucal, então, outros profissionais são convidados a participar para falar sobre outros temas. Durante a observação das reuniões de equipe, não houve planejamento em conjunto sobre o grupo, apenas o convite à participação dos outros profissionais pelo proponente e especulações sobre eventuais temas que poderiam ser apresentados. No entanto, existe um movimento a favor da cooperação, ou seja, a execução de um trabalho em comum por mais de um agente, o “fazer juntos”, porque houve um convite ou de forma espontânea. Observa-se que, de modo geral, os depoentes também expressam conexões entre os trabalhos ativa e conscientemente colocadas em evidência entre os agentes, ou seja, mostram com clareza situações objetivas de articulação entre as ações. A articulação se dá, entre os profissionais da equipe técnica, muitas vezes dentro do próprio atendimento para o esclarecimento de dúvidas ou pela necessidade de avaliação conjunta de um caso. Assim como também existe um movimento de procura bidirecional entre os agentes de saúde e os profissionais técnicos para troca de informações. Como se verifica entre a enfermeira e a médica no relato a seguir: “O meu contato maior realmente é com a enfermeira. A gente divide bastante as livres demandas. Ela, às vezes, absorve, ela atende, me chama e fazemos interconsulta. Oriento, prescrevo e quando tem um caso que ela pode resolver ela resolve […]. A gente divide o pré-natal. Cada mês é com uma, sendo que no final eu fico atendendo. A gente divide a puericultura, cada uma alterna as consultas”. (médica)

É possível observar que o fluxo de atendimento, tanto para as demandas agendadas quanto para as livres demandas, é compartilhado entre a enfermeira e a médica, e que existe um acordo prévio que estabelece a divisão de tarefas entre as duas profissionais. As consultas agendadas, em sua maioria, são constituídas por ações programáticas, como: atendimento ao pré-natal, puericultura, preventivo, controle da hipertensão, entre outras em que existem protocolos ministeriais que auxiliam a conduta profissional. Isso é de extrema relevância no que diz respeito à autonomia técnica do profissional do enfermeiro, uma vez que estes protocolos legitimam a amplitude da sua ação na consulta de enfermagem. Com relação à consulta de livre demanda, já não ocorre o mesmo, sendo que a dependência, para o profissional médico, para que seja dada continuidade à assistência, é entendida como imediata, e não é possível programar complementaridade entre ações. E a resolução encontrada por esta equipe, neste caso, foi a realização da interconsulta. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.327-40, abr./jun. 2013

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Além disso, a consulta de enfermagem, como descrita no relato, é claramente representada como forma de ampliar a cobertura assistencial à população, uma vez que o médico não teria condições de atender o grande número de famílias sob sua responsabilidade, fato reiterado no depoimento a seguir: “Se tiver alguma necessidade que eu venha precisar do médico estar avaliando, eu faço uma interconsulta com a minha médica. A gente trabalha muito bem assim nesta parceria de interconsulta. Porque ela não tem como absorver todas essas famílias. Se você for contar por baixo são quatro mil e quinhentas famílias. Eu acredito que tenha muito mais. Hoje eu tento abrir minha agenda para algumas crianças, que seria mais o caso de pediatria, mas eu estou atendendo, solicito os exames, faço interconsulta com a médica para todos terem direito e acesso à saúde”. (enfermeira)

Nas duas situações descritas – atendimento a demanda livre e agendada – existe uma divisão de trabalho ou trabalho conjunto que permite aumentar a oferta de determinadas ações de saúde. Situação semelhante é observada no estudo de Marcolino (2004) no que concerne à consulta de enfermagem no planejamento familiar. No entanto, observa-se que, diferentemente do estudo anterior, em que se destaca a justaposição das ações, na realidade estudada, existe um direcionamento para a articulação das ações, uma vez que tanto a interconsulta quanto a definição dos fluxos de atendimento prescindem da troca de informações. Mais do que isso, existe, neste caso, colaboração e cooperação entre os profissionais, e papéis e responsabilidades individuais definidos e entendidos. No que diz respeito às articulações das ações entre os demais profissionais e os agentes comunitários, percebe-se, a partir dos relatos, que existe troca de informação entre eles. Geralmente, o agente comunitário procura os outros profissionais para esclarecer dúvidas em relação a questões relativas a visitas domiciliares. Por sua vez, os agentes comunitários dão informações para os outros profissionais para compreensão dos problemas de saúde das famílias e da dinâmica do território. A troca de informações para articulação das ações entre os profissionais fica explícita no relato da agente comunitária a seguir: “A gente estar podendo, estar articulando junto com a equipe, essa troca. Esse mesmo modo de fazer. A gente faz isso, essa troca com a equipe toda. Ah não tem como marcar consulta? Vamos botar ele no grupo. Pelo menos no grupo, ele já vai ter uma consulta marcada lá para o próximo mês, já vai sair tudo adiantado, vai sair com a medicação. O agente comunitário participa disso. Tanto na formação do grupo, tanto na marcação de consulta. Então quando eu puxo um prontuário meu se a pessoa falar: “Ah eu preciso marcar uma consulta”. Aí eu puxo. Não! Ele teve consulta com a médica, marquei só daqui a dois meses, três meses, dá para botar para enfermeira. Aí eu sento com a enfermeira e converso. O quê que você acha? Na última consulta foi com a médica, dá para passar por você?”. (agente comunitária de saúde 1)

A partir de uma prática colaborativa, que se aproxima da concepção de articulação entre as ações, equipes multiprofissionais de saúde compreendem como otimizar as habilidades de seus membros, compartilham a gestão de casos e proporcionam melhores serviços de saúde aos pacientes e à comunidade (WHO, 2010). Assim sendo, a potencialidade do trabalho em equipe integrado é revelada; percebe-se que, trabalhando em conjunto e de forma articulada, as equipes de saúde ampliam sua capacidade de cuidado e de resolução dos problemas de saúde, uma vez que conseguem tornar os dispositivos de atenção à saúde existentes mais acessíveis, proporcionam uma atenção mais integral e compartilham a responsabilidade pela melhoria da qualidade de saúde e de vida de uma dada população. No entanto, muitas vezes, a consulta de enfermagem ainda enfrenta certa desconfiança por parte da comunidade assistida, como pode ser observado em um dos temas abordados em reunião de equipe. Nesta ocasião, a enfermeira relatou uma situação em que uma mulher que ela estava atendendo, para 334

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realização de um preventivo, a questionou se o enfermeiro poderia realizar tal procedimento, já que ela ouviu dizer que só o médico poderia realizá-lo. Peduzzi (2001) afirma que o projeto assistencial da medicina biomédica coloca o saber não médico como algo periférico, e, junto a isso, a ideologia presente nas práticas sociais acentua esse caráter periférico na medida em que instala uma hierarquia de valores que faz crer o saber periférico como saber desprovido de tecnicidade. Essa dúvida, por parte da população, sobre as práticas dos profissionais não médicos também é salientada por um agente comunitário, ao falar sobre seu trabalho: “Eu chego para a pessoa, falo: Olha a amamentação. Não dá água, não dá chazinho. A criança está com cólica, levanta a blusinha da criança e a sua blusinha, encosta a criança na barriga. E fica. Não precisa chazinho”. A mãe não acredita. Aí vem no médico, o médico passa a mesma orientação, aí eles falam assim “a fulana falou, mas eu não fiz, agora que o doutor falou”. Às vezes não leva muito a sério o que a gente fala. Não sei se é porque a gente mora na comunidade. Tem pessoas que acreditam. Mas tem gente que não acredita muito naquilo que a gente fala. Quer dizer, é aquilo que eu sempre falo, que é um trabalho de formiguinha”. (agente comunitário de saúde 1)

No entanto, Campos (2003), ao refletir sobre atuação da ESF, entende que, com o tempo, a construção do vínculo tende a atenuar a exigência do médico, já que é estabelecida maior confiança das famílias com todos os membros da equipe. Além disso, comenta que, nestes casos, a clínica do enfermeiro pode ser exercida em sua plenitude, tanto porque há maior autonomia técnica deste profissional, tendo em vista os protocolos específicos, quanto pelo próprio trabalho em equipe, o qual inclui o médico. Considerando a totalidade dos depoimentos, pode-se dizer que as ações dos agentes comunitários são as que mais se articulam com o conjunto de profissionais da equipe. Também se destaca a articulação entre os profissionais médico e enfermeiro. As conexões entre os trabalhos da médica e da enfermeira com o dentista e a auxiliar de consultório dentário se dão na realização de grupos educativos e nos encaminhamentos. No que se refere à saúde bucal, os profissionais enfermeiro, médico e auxiliar de enfermagem expressam que há complementaridade e interdependência entre suas ações. No entanto, a troca de informações no que diz respeito à especificidade dos seus trabalhos é restrita. No cotidiano do trabalho, fica mais evidente a justaposição das suas ações, mostrando que algumas ações ainda remetem à equipe agrupamento (Peduzzi, 2001). No trabalho em equipe no contexto das situações objetivas de trabalho, podem ser observadas relações hierárquicas entre médicos e não-médicos; diferentes graus de subordinação; flexibilidade da divisão de trabalho e da autonomia técnica com interdependência. No entanto, há possibilidade de construção da equipe-integração mesmo nas situações nas quais se mantêm relações assimétricas entre os distintos profissionais, desde que se compartilhe um projeto comum. Maior ou menor integração pressupõe compartilhar, além de premissas técnicas, um horizonte ético (Peduzzi, 2001).

A interação entre os profissionais A interação dos diversos profissionais ocorre por meio da mediação simbólica da linguagem, ou seja, da comunicação, e busca o acordo sobre um plano de ação comum aos sujeitos envolvidos (Peduzzi, 2007, 2001). No presente caso, as situações objetivas de construção conjunta de um projeto assistencial comum, sinalizador da integração da equipe, foram observadas, sobretudo, durante as reuniões de equipe nas situações em que, por meio das conversações, os sujeitos envolvidos colocavam-se de acordo acerca de um plano de ação. Além disso, os profissionais se referem à busca de consensos quanto às possibilidades de execução cotidiana do trabalho em equipe. O que pode ser observado nas falas a seguir da médica e da auxiliar de consultório dentário, respectivamente: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.327-40, abr./jun. 2013

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“Eu acho que eles veem meu trabalho na boa. Eventualmente a gente discute, a gente diverge de alguma coisa, mas aceito as críticas, aceito as sugestões, e a gente sempre chega a um acordo”. (médica) “Pelo menos eu já deixei eles bem à vontade para falar sobre isso. Em reuniões de equipe eu falo: gente, se tiver alguma coisa que, assim, eu esteja fazendo, a maneira de eu trabalhar não tiver legal para vocês, não tiver interagindo com vocês, vocês podem falar. A gente pode sentar, discutir e ver como a gente pode resolver isso”. (auxiliar de consultório dentário)

Nos dois relatos destacados, os profissionais se referem a uma prática dialógica na qual ocorre contestação de algum enunciado. Nesta prática, os sujeitos também buscam o entendimento, ao se colocarem de acordo sobre um projeto de ação para solucionar uma situação problemática. E, sendo assim, os sujeitos voltam a uma situação de acordo intersubjetivo. Isto é o que a teoria do agir comunicativo denomina de discurso em que é reivindicada a legitimidade de pretensão de validade do proferimento. E, a partir daí, por meio do diálogo, através da argumentação racional, pode ser estabelecido um novo consenso (Habermas, 2012; Artmann, 2001; Peduzzi, 2001). O espaço das reuniões de equipe é reconhecido pelos profissionais como espaço de troca entre os agentes, onde ocorre planejamento e avaliação das atividades desenvolvidas, discussões relativas à operacionalização do serviço, divulgação de informações, discussão de casos. Por fim, acontecem construções coletivas entre os profissionais e, entre concordâncias e divergências, são traçados projetos, assumidos compromissos e elaborados os acordos possíveis. Geralmente, o fluxo de conversações se origina a partir de uma interrupção no transcorrer normal das atividades, em forma de atos de fala do tipo afirmações, declarações ou promessas. Estas últimas se manifestam a partir de petições e ofertas que podem levar a compromissos (Echeverria, 1997). Por exemplo, as solicitações da SMS, que são caracterizadas por declarações, uma vez que se constituem em ação concreta, geram um fluxo de diálogo, via gerência da unidade à equipe, por intermédio da enfermeira. Essa situação leva a conversações que têm o objetivo de coordenar ações a fim de que sejam viabilizadas as condições necessárias para o alcance de determinada meta, e geram compromissos de ação entre os profissionais. Tais conversações são entremeadas por juízos pessoais dos sujeitos na busca de darem sentido aos acontecimentos. A teoria do agir comunicativo de Habermas (2012) e a teoria das conversações de Echeverria (1997) - ambas baseadas em Austin (1962) e Searle (1976) - partilham um ponto comum: a concepção da linguagem como ação, e não apenas como representação da realidade. Assim, a linguagem como discurso argumentativo vem contribuir para elucidar situações problemáticas, conflitos ou interrupções na fluidez comunicativa caracterizada pelo consenso prévio dos atores, inclusive através de diferentes juízos expressos pelos participantes da interação, e, desta forma, criar novas configurações e realidades no mundo, gerando novos consensos e compromissos no sentido de atos de fala característicos. As interações nas reuniões tinham como característica marcante a discussão sobre a divisão de atividades e socialização de informações. Este tipo de comunicação ocorre, segundo Peduzzi (2001), como recurso de otimização da técnica em que há predominância do agir instrumental. No entanto, mesmo que a interação implique expectativas relativas ao cumprimento de tarefas, existe a possibilidade de tematizar normas consensuais, questionando sua validade com argumentação, e de apresentar outras interpretações e fundamentá-las na busca do entendimento recíproco em que se funda a intersubjetividade da ação (Lima, Rivera 2009). É unânime, entre os profissionais, que uma das maiores dificuldades do trabalho em equipe é a relação interpessoal, a convivência que se dá quarenta horas por semana, todos os dias, em que pesam as diferenças de personalidade, interesses conflitantes e, até mesmo, as distintas concepções do que seja trabalhar em equipe. O que demonstra a importância da dimensão do trabalho enquanto interação social e da comunicação como possibilidade de pactuar e renovar os valores subtendidos nas regras de trabalho, e, também, como forma de enfrentamento do conflito (Carvalho, 2012). Na investigação realizada por Colomé (2005), os problemas de ordem interpessoais são assinalados como um fator que atrapalha a comunicação entre os agentes. Apesar de as divergências serem 336

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inseparáveis da ação coletiva, muitas vezes, elas se tornam um fator de desmotivação no trabalho, sobretudo quando não há espaço para o diálogo e existe pouca escuta, como capacidade de se abrir ao outro, respeitando as diferenças de concepções, personalidades e posturas. Neste sentido, esta mesma autora aborda a importância de que as capacitações para as equipes da ESF não sejam voltadas apenas para as questões técnicas, mas que, nelas, sejam tratados temas referentes ao relacionamento interpessoal e ao trabalho em equipe. Motta (2001) sugere incentivar a reflexão estratégica em conjunto – produção de consensos, compromissos de ação e novos canais de comunicação – como forma planejada de compartilhar expectativas e análises sobre a razão de ser de uma equipe de saúde através do desenvolvimento de atividades coletivas regulares na instituição. Com base nas questões até aqui discutidas, pode-se dizer que há uma aproximação entre as ações técnicas e a interação dos sujeitos que é apresentada pelos profissionais como tendo um caráter dinâmico, processual e conflituoso. Até porque convive, na cultura deste grupo, uma forte influência da razão instrumental na comunicação, ao mesmo tempo em que há a emergência de novos discursos, de novas possibilidades, representadas pela constituição de um espaço de troca e construção de consensos dentro da reunião de equipe, e valores compartilhados, como o reconhecimento da própria precariedade e de que o sentido de determinada situação é fabricado pelo conjunto dos saberes presentes.

Considerações finais Na busca pela integralidade de atenção à saúde, a estruturação do trabalho em equipe multiprofissional transforma este trabalho em unidade produtora de cuidados que precisa de novas formas de mobilização do coletivo que superem o isolamento das práticas dos distintos profissionais e concorram para sua integração. A equipe de saúde investigada possui características mais próximas da equipe interação, em que há articulações das ações e na qual a comunicação é entendida e utilizada como um meio de integração social. As equipes de saúde da família transitam num ideário que busca inovação no modo de se produzir saúde, ao mesmo tempo em que se deparam com contradições provenientes das condições de trabalho e da relação com a coordenação municipal. Somando-se a isso, existe um tensionamento no qual os vários projetos dos atores sociais divergem e convergem, demostrando qual é a possibilidade coletiva de trabalho. Por isso, é essencial promover conjuntura favorável em termos de estrutura: condições dignas de trabalho, acesso a suporte diagnóstico, educação permanente, suporte gerencial e matricial. Assim como é fundamental reconhecer a importância das relações interpessoais e da comunicação para reestruturação das práticas assistenciais, de modo que a lógica que orienta o trabalho em saúde considere a integralidade, a democratização das relações de trabalho, na qual os profissionais reconheçam o trabalho do outro, atuem em um sistema de confiança e busquem, para além da articulação das ações, a interação comunicativa (Peduzzi, 2007). Revela-se aí a necessidade de se explorar, cada vez mais, a observação da dimensão do trabalho enquanto interação social, e das conversações como possibilidade de se compreenderem melhor os processos interativos intrínsecos ao trabalho em equipe.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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PEREIRA, R.C.A.; RIVERA, F.J.U.; ARTMANN, E. El trabajo multi-profesional en la Estrategia de Salud Familiar: un estudio sobre modalidades de equipos. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.327-40, abr./jun. 2013. Se trata de un estudio de caso sobre el trabajo en equipo multi-profesional de salud basado en las referencias teóricas de la teoría de las conversaciones de Echeverria y en los criterios de análisis construidos por Peduzzi. El campo donde se realizó el estudio fue una unidad básica de salud que forma parte de la Estrategia de Salud Familiar (ESF) en el municipio de Río de Janeiro, Brasil. Un grupo de salud de la familia se consideró como unidad de análisis, habiéndose realizado nueve entrevistas semi-estructuradas y observación participativa en nueve reuniones del grupo. Los resultados muestran que el trabajo en grupo en la ESF surge como posibilidad para una práctica más comunicativa y cooperativa en la que los profesionales reconocen el trabajo unos de los otros y comparten objetivos, configurándose así en una pequeña red de conversaciones.

Palabras clave: Grupo de atención al paciente. Atención Primaria. Programa de Salud Familiar. Recebido em 05/07/12. Aprovado em 12/03/13.

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artigos

Identificação racial e a produção da informação em saúde*

Andreia Beatriz Silva dos Santos1 Thereza Christina Bahia Coelho2 Edna Maria de Araújo3

SANTOS, A.B.S.; COELHO, T.C.B.; ARAÚJO, E.M. Racial identity and the production of health information. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.341-55, abr./jun. 2013.

This study aims to analyze the production of information on the race/skin color of individuals submitted to autopsy at the Institute of Forensic Medicine (IFM) of Salvador/Bahia, in 2007. The evidence was obtained through interviews with forensic surgeons (coroners), autopsy assistants and the staff of the Corpse Release Department, as well as observations and documentary sources. The analysis revealed that the process of identifying race/skin color is neglectful, inaccurate and distorts the final information on death certificates. There was an indistinct classification of black and brown individuals as “pardos”, which creates an informational “fog”, while the death of whites coming to the IFM was “accidental.” Murder, in turn, bears the mark of marginal violence, related to drugs, crime, which inscribes the dead in a horizon of culpability, almost justifying the violent death and the discrimination.

Este estudo analisa a produção da informação sobre raça/cor da pele dos indivíduos submetidos à necrópsia no Instituto Médico Legal (IML) de Salvador, Bahia, no ano de 2007. As evidências foram obtidas em entrevistas com médicos legistas, auxiliares de necrópsia e funcionários do Setor de Liberação de Cadáveres, em observação e fontes documentais. A análise revelou que o processo de identificação da raça/cor da pele é omisso, impreciso e distorce a informação final da declaração de óbito. Houve uma indistinta classificação dos pretos e pardos como faiodermas, criando uma “névoa” informacional, enquanto a morte dos brancos que chegam ao IML foi “acidental”. Já o homicídio traz a marca da violência marginal, relacionada com drogas, crime, com aquilo que inscreve o morto em um horizonte de culpabilidade, quase que justificando a morte violenta e a discriminação.

Keywords: Racial identification. Mortality information system. Racism. Race/color.

Palavras-chave: Identificação racial. Sistema de Informação sobre mortalidade (SIM). Racismo. Raça/cor.

Elaborado com base em Santos (2008); pesquisa autorizada pelo IML Nina Rodrigues e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana. Financiado pelo CNPq e Fapesb. 1-3 Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana. Avenida Transnordestina, s/n, Novo Horizonte. Feira de Santana, BA, Brasil. 44.036- 900. andreiasantos72@ hotmail.com *

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Introdução A saúde de uma população sofre influência dos determinantes socioeconômicos e político-culturais, e o não-reconhecimento da sua singularidade racial a exclui e vulnerabiliza (Lopes, 2005). A exclusão decorrente da indiferenciação de grupos, como negros e índios, mantém as barreiras de acesso aos bens e serviços, fartamente documentadas na literatura especializada, sustentadas na negação de que elas, de fato, existam (Silva, 2006; Nascimento, 1989). No caso da população negra - quando comparada aos não negros -, a sociedade que exclui e nega o direito natural de pertencimento determina condições especiais de vulnerabilidade, como: menor acesso a água potável, menor nível de escolaridade e maior taxa de mortalidade infantil (Telles, 2007; Barbosa, 1998). Por isso, é necessário conhecer como se dá o padrão de adoecimento desta população, assim como os fatores associados às diferenças de morbimortalidade, para que se possa disponibilizar, adequadamente, a atenção à sua saúde (Dever, 1988). A alta taxa de mortalidade por causas violentas incidente sobre os negros brasileiros e as evidências de distorção na base dos dados que compõem este vital indicador apontam para a necessidade de se estudar, em profundidade, como os dados que falam sobre a saúde dessa população são gerados e qual o sentido que assumem para os responsáveis pela sua produção: os profissionais de saúde (Araújo et al., 2009; Batista, 2005). De fato, na busca de informações fidedignas sobre o óbito de negras e negros no Brasil, uma questão de extrema inquietação evidencia, no que diz respeito à identificação da raça/cor no exame de necrópsia, a impossibilidade da autodeclaração, prática adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e indicada pelo movimento negro brasileiro por remeter à identidade social do indivíduo (Cardoso, Santos, Coimbra, 2005). Na Declaração de Óbito (DO), documento que alimenta o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), o quesito raça/cor (campo 17) disponibiliza as categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena. O Ministério da Saúde (MS) recomenda que esse campo seja preenchido com um “x” para todos os tipos de óbitos, não havendo possibilidade da alternativa “ignorada”. O médico é o responsável pelas informações contidas na DO e deve ainda verificar se todos os itens de identificação foram corretamente preenchidos (Brasil, 2001). Entretanto, distorções de informações da DO têm sido relatadas por alguns autores, a exemplo de Volochko (2005), tornando-se necessário evitar explicações definitivas e descontextualizadas, como alertam Chor e Lima (2005). Na prática médico-legal, em especial, a omissão e, consequentemente, o sub-registro da raça/cor da pele, tornam-se mais problemáticos pelas implicações jurídicas que a morte violenta traz. Assim, como ocorre esta identificação e seu registro de fato? Ainda que alguns autores prefiram o conceito “etnia”, o termo “raça” tem sido adotado pelo Movimento Social Negro no Brasil. A categoria “negro” inclui “pretos” e “pardos” por se entender que, historicamente, os indivíduos que se autodeclaram pretos e pardos são aqueles que têm sido tratados discriminadamente, encontrando-se, em largas proporções, à margem do processo políticodecisório. Já o termo “etnia” está relacionado diretamente a uma dada população ou grupo, que apresenta certa homogeneidade cultural, ou seja, partilha história e origem, além de traços como: ancestralidade, território, valores, cultura e aparência física, entre outros (Ferreira, 2006). No Brasil, qualquer pessoa, com base nas inúmeras classificações que circulam, tanto oriundas do senso comum quanto do conhecimento transmitido academicamente, reconhece um negro, um branco, um indígena. Cada um carrega uma construção da ideia de raça no seu imaginário (Azevedo, 1990). Por outro lado, a identidade racial branca agrega um conjunto de informações que remetem a privilégios objetivos ou simbólicos, benefícios concretos (branquitude), que direcionam o olhar do branco, evitando identificar o lugar que este grupo racial ocupa na história do país (Bento, 2002). Em se tratando da população negra, o processo de sequestro de suas regiões de origem e dispersão por todo o litoral brasileiro forçou adaptações culturais, que preservaram os laços da origem em uma matriz cultural de base africana enquanto “[...] um instrumento de identidade coletiva” (Reis, 2003, p.310). Muitas e diversas etnias oriundas do continente africano que possuíam línguas e costumes distintos, como os bantos, os iorubás e os nagôs, modificaram suas especificidades de origem e foram 342

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SANTOS, A.B.S.; COELHO, T.C.B.; ARAÚJO, E.M.

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agregados sob uma denominação mais ampla, pois os escravizados eram identificados por porto de embarque. Por exemplo, utilizava-se o termo iorubás para se referir a povos como: os oyó, ijexá, ketu, ijebu, egbá, ifé, oxogbô (Prandi, 2000). Desse modo, o conceito de raça como uma construção social, que se opera por meio da racialização e hierarquização de grupos e pessoas, com base no reconhecimento de variações fenotípicas e históricas, mostra-se mais adequado aos objetivos deste estudo. A racialização é aqui entendida como ação política e ideológica que constrói uma suposta unidade biológica (Cashmore, 2000) e insere a categoria “raça” em um contexto de discriminação. Esta discriminação, quer encontre suporte na ignorância, quer no preconceito, faz com que determinados grupos racializados, a exemplo dos negros, sejam destituídos de direitos legalmente assegurados e não compartilhem com os não negros espaços de poder historicamente assentados e refratários à real participação. Para Figueroa (2004), o uso da denominação “raça negra” possibilita a passagem de um atributo de prognóstico reservado – por conter em si um traço indicativo de uma marca histórica de opressão e discriminação – para um nível de “racialização positiva”. Pretende, com isto, superar o quadro adoecedor e excludente, estruturalmente imposto e conjunturalmente atualizado. Assim, a autora define “raça” como categoria [...] que foi histórica e culturalmente construída e que é constituída de pessoas que são, efetiva ou potencialmente, vítimas de desvantagens sociais por efeitos de preconceito e discriminação relativos à origem étnica ou às marcas visíveis de que são portadoras: a cor ou outras características físicas superficiais. (Figueroa, 2004, p.2)

Tanto para Figueroa (2004) quanto para Osório (2003), a racialização gera a pauperização, e não o contrário – argumento por muito tempo utilizado para explicar as diferenças sociorraciais no Brasil. No que diz respeito às desigualdades, pretos e pardos estão mais próximos em sua vulnerabilidade do que brancos e pardos. A nomenclatura adotada para a identificação da raça/cor da pele, durante o exame de necrópsia nos serviços médico-legais, é baseada em caracteres fenotípicos e foi introduzida por Edgar Roquette-Pinto, em 1933, levando em conta, sobretudo, a cor da pele e alguns dados biométricos, cujas denominações ele teria adaptado do grego: melanoderma (melanodermos) para pretos; leucoderma (leucodermos) para brancos; faioderma (phaiodermos) para pardos; xantoderma (xanthodermos) para amarelos (Ramos, 2003). O termo “eritroderma” foi acrescentado posteriormente para indígenas. Já a DO, que será preenchida com base nos dados do Laudo de Necrópsia (LN), que, por sua vez, adota os termos de Roquette-Pinto, disponibiliza as mesmas opções que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): branco, pardo, amarelo, indígena e preto. Haveria, em princípio, uma correspondência entre essas categorias que permitiria uma tradução não problemática das informações do LN, para a DO, mas, no cotidiano institucional, como se desenvolveria esse processo? Além disso, se, na prática médico-legal, a omissão torna-se mais problemática ainda pelas implicações jurídicas que a morte violenta traz, como se justifica o sub-registro da raça/cor da pele, informação crucial para a identificação das vítimas de morte violenta? Este artigo tem por objetivo analisar o processo de identificação da raça/cor da pele no Instituto Médico Legal (IML) de Salvador, Bahia, no ano de 2007, levando-se em conta os determinantes históricos da formação social e cultural, no que tange às relações raciais no Brasil.

Metodologia A estratégia adotada foi o estudo de caso do tipo descritivo analítico, que pode fornecer respostas sobre como os indivíduos desenvolvem relações consigo mesmos e com os grupos com os quais convivem e constroem sua realidade social, quer de forma conflitante, cooperativa ou indiferente, quer subordinada ou subordinante, instituída ou instituinte. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.341-45, abr./jun. 2013

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IDENTIFICAÇÃO RACIAL E A PRODUÇÃO DA INFORMAÇÃO ...

Os sujeitos do estudo foram profissionais em atividade no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR), de Salvador, Bahia, que estavam, direta ou indiretamente, ligados ao exame de necrópsia ao qual são submetidas as vítimas de mortes violentas: oito médicos legistas, três funcionários do setor de Liberação de Cadáveres (SLC) e dois auxiliares de necrópsia. Uma vez que a responsabilidade do preenchimento da DO, incluindo o quesito raça/cor, é do médico legista, este se constituiu no foco do estudo, inicialmente. Durante a pesquisa de campo, observou-se que outros sujeitos também participavam ativamente do processo de identificação dos corpos, sendo, portanto, incluídos no estudo. A principal técnica de coleta utilizada foi a entrevista semiestruturada. Em seu roteiro, constaram: informações sobre a identificação, formação e trabalho, estrutura e organização do trabalho, processo de trabalho, preenchimento dos campos 49 (causa mortis) e 17 (raça/cor) da DO. As entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2007 e complementadas com dados da pesquisa documental (laudos de necrópsia e declarações de óbito) e da observação. Para melhor compreender as mudanças de raça/cor da pele operadas no trânsito do cadáver pelos setores do IMLNR, procedeu-se, também, à coleta de três tipos de registros identificados – a Guia Policial (GP), o Boletim de Ocorrência (BO) e a DO – de cem indivíduos submetidos à necrópsia em um período de 15 dias, enquanto se estava em campo entrevistando os profissionais, com a finalidade de se comparar e identificar possíveis mudanças na identificação racial. Sem pretensão de constituir amostra representativa do universo das DO do IMLNR, essas informações coletadas almejaram ratificar a hipótese construída, com base em evidências surgidas no próprio campo, de que os corpos “clareavam” ao longo do trajeto. A análise dos dados foi realizada tendo como referência a análise de conteúdo, com inspiração em Minayo (1999), buscando a compreensão das respostas e dos argumentos apresentados pelos entrevistados, de maneira que fossem abarcados os conteúdos, manifestos ou latentes, presentes nas falas, gravadas e transformadas em texto via transcrição. Os textos das entrevistas, ao serem triangulados com a observação da prática, com o material da análise documental e com os dados quantitativos, ganharam novos sentidos e uma aproximação privilegiada dos eventos investigados.

Raça/cor da pele: uma variável de pertencimento e discriminação do “ser negro” A discussão sobre o preenchimento do campo 17 da DO foi marcada pela dificuldade que envolve o processo. Os entrevistados buscaram se justificar, ora sob a forma de um argumento racional, ora por meio de um afeto suscitado. A complexidade da tarefa foi desvelando-se, gradualmente, na fala dos entrevistados e alcançando o status de algo mais. Em um primeiro momento, a identificação apresentou-se como uma medida simples e objetiva, pueril; afinal de contas, só diz respeito a um processo mecânico, manual, “é só preencher”, como de “praxe”. Uma ação quase insignificante. Partia-se do entendimento de que a determinação da raça/cor deveria ocorrer, pelo menos teoricamente, durante a realização do LN, e que, depois desta determinação, uma tradução seria operada da classificação médico-legal para a classificação da DO. Entretanto, ao se questionarem os técnicos envolvidos sobre o modus operandi dessa tradução e qual a função das informações preexistentes na determinação da raça ou cor da pele, as dificuldades apresentaram-se de modo intenso e variado. Observou-se, durante o acompanhamento do procedimento de liberação de cadáveres, que os reclamantes do corpo eram questionados pelo profissional do setor sobre o atributo do campo 17, deixando a resposta aberta, da seguinte forma: “qual a cor da pele do cadáver?” ou “qual a cor da pele do morto?” Apenas quando identificava alguma dificuldade na determinação operada pelo familiar ou reclamante, ele disponibilizava as opções que constam na DO. Percebeu-se que esta prática trazia constrangimento para os funcionários, pois, algumas vezes, os questionados manifestavam dúvidas ou respondiam com outras alternativas, como: “moreninhos”, “moreno claro”, “mulato”. Esse deslocamento obrigava o funcionário a intervir, causando mal-estar quando a pessoa não fornecia um dado preciso, que pudesse ser “encaixado” nas alternativas existentes, do mesmo modo que o fornecimento de uma informação discrepante da percepção do técnico causava inquietação: 344

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“[...] porque aqui tem o item 17, que diz assim: raça e cor. Aí tem o quadradinho. Aí tem escrito branca, preta, amarela, parda, indígena. Na hora em que eu estou fazendo o preenchimento da declaração de óbito, eu pergunto à família qual é a cor da pele do falecido. Muitas vezes, a pessoa diz assim: ‘ah, é branca’. Aí eu coloco branca. Às vezes, ‘é da minha cor’. Às vezes, a pessoa é escura, é da minha cor, aí eu digo: ‘Senhor, eu estou perguntando ao senhor qual é a cor, porque não sou eu que vou dizer a cor da pele da pessoa’. Eu acho que... Não sei se é vergonha de dizer que a cor é preta. Aí diz: “É da minha, da minha cor”. Aí, muitas vezes, diz ‘parda’. Eu não posso botar parda se a cor é escura. Aí eu vou, coloco ‘preta’. Na hora, eu digo: ‘Oh senhor, eu perguntei, o senhor disse que era ‘da minha cor’. Aí eu olhei e vi que a cor do senhor era escura, e aqui tem que ser ‘negra’. Mas, infelizmente, no formulário tem preta, certo? Porque aí pode ter discriminação, né? Às vezes, a pessoa fica assim, meio chateada, mas eu não posso fazer nada, né? A declaração de óbito não foi eu que mandei fazer com a cor da pessoa, né? Porque se eu fosse fazer, eu não botaria preta, botaria negra”. (Ent6/T/L)

Esse depoimento suscita um questionamento: Como se dá esse procedimento, que é de responsabilidade do legista na prática, e que termina sendo feito pelo funcionário do atendimento do Setor de Liberação de Cadáveres (SLC), após uma “negociação” com o reclamante? Vários documentos concorrem para a informação final acerca da raça/cor do corpo, durante o trajeto percorrido pelo cadáver desde fora do IMLNR – tendo como evento deflagrador o óbito – até a chegada ao SLC da instituição: a) Solicitação de Encaminhamento de Remoção para o IML (SER-IML) – quando o atendimento médico é feito em hospitais e existe dúvida se o óbito ocorreu por causa violenta. Esse documento apresenta, como alternativa para a identificação da raça/cor da pele, o espaço “cor da pele”. Quem preenche é o médico que constatou o óbito; b) Boletim de Ocorrência (BO) – quando a polícia é comunicada da ocorrência de morte por causa violenta, é gerado um boletim de ocorrência policial. É um formulário digital com oito opções para identificação da raça/cor da pele: preto, branco, pardo, amarela, indígena, eritroderma, xantoderma, ignorado. Quem preenche é o plantonista da Delegacia de Polícia; c) Guia Policial (GP) – uma vez feito o BO, é emitido este documento, que segue com o corpo e apresenta as seguintes opções: branca, parda, amarela, vermelha, negra, ignorada. Quem preenche é o plantonista da delegacia de Polícia; d) Laudo de Necrópsia (LN) – apresenta uma lacuna para a informação da cor da pele, não fornecendo opções fechadas. É preenchido pelo legista. Esse laudo dará origem ao Laudo Médico Legal (LML), documento final que será encaminhado à Secretaria de Segurança Pública; e) Declaração de Óbito (DO) – contém informações sobre a raça/cor do indivíduo morto, oferecendo as opções raça/cor da pele: branca, preta, parda, indígena, amarela. É preenchida por técnico, no setor de Liberação de Cadáveres do IMLNR, com base no LN ou na declaração do reclamante do corpo. Ao final do trajeto, permanecem a GP e o LML, juntamente com a Declaração de Óbito, que serão arquivados no setor de estatística do IMLNR. A Figura 1 esquematiza os momentos e instrumentos de registro da raça-cor da pele no interior da instituição pesquisada. Percebe-se, na Figura 1, que, embora constem informações acerca da raça/cor da pele das vítimas que serão submetidas à necrópsia no IMLNR nos vários documentos, a forma como estão dispostas as categorias da identidade racial diferem entre si; elas podem variar no trânsito desde o óbito, causando discrepâncias no que tange à raça/cor da pele do indivíduo. Essas diferenças ficam melhor percebidas quando se sai do âmbito particular dos documentos e se analisam as proporções em quantitativos maiores que fornecem uma visão de conjunto. Comparando-se os três tipos de registro de cem indivíduos submetidos à necropsia, 32% tiveram sua identidade racial “parda” definida no início (BO). Após a necrópsia (LN), este quantitativo mais que duplicou, passando para 72% de “pardos” (faiodermas), caindo, por fim, para 68% na Declaração de Óbito (Figura 2).

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Figura 1. Trajetória institucional do corpo morto e documentos onde consta a raça/cor da pele, Salvador - Ba, 2007.

ÓBITO

S

S

S

HOSPITAL

VIA PÚBLICA E OUTROS

RESIDÊNCIA S S

S

Comunicado do óbito à Polícia Civil

S

SER-IML raça/cor preenchido pelo médico

S S

S

Quesito “cor da pele” definido e preenchido por profissional (médico?)

BO - raça/cor definida (ou não) pelo plantonista

Quesito “cor da pele” não preenchido

S

GP - raça/cor definida (ou não) pelo plantonista S

Solicitação de necrópsia com (ou sem) raça/cor S

PERÍCIA LOCAL?

S

ENCAMINHAMENTO AO IML

S

S

S

NECRÓPSIA (LN)

S

S

DO Via 3

SESAB

S

LN emitido pelo médico legista com raça/cor S

DO Via 2 LIBERAÇÃO DO CORPO

S

S

Encaminhamento ao Setor de Liberação de Cadáveres preenchimento da DO (médico?)

Cartório Base da certidão de óbito

S

Fonte: IML Nina Rodrigues. Elaborado pelos autores.

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DO Via 1

S

S

Laudo Médico Legal SSP

IML


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Figura 2. Diferenças nos registros da raça/cor da pele entre documentos emitidos durante o trajeto do corpo morto, em cem óbitos, por causas violentas, nas duas primeiras semanas de maio do ano de 2007, no IML de Salvador/Bahia. Guia policial 40%

Laudos de necrópsia do IML-SSA

38%

72% 17% 5% Não preenchida ou indeterminado

Pardo

Preto

S

Branco 16% 5%

7%

Não Leucoderma preenchida ou indeterminado

Declaração de óbito

Faioderma ou pardo

S

68%

Melanoderma ou negra

Pardo

12%

11%

9%

Preto

Branco

Não preenchida ou indeterminado

Observando-se a população de Salvador que, em 2007, apresentava 54% de pardos, 28% de pretos e 17% de brancos, em um total de 3,647 milhões de habitantes (IBGE, 2012), fica evidente que a proporção de pessoas pardas que morrem por causas externas está acima da sua representação na população de Salvador, e a identidade racial dessas pessoas sofre alterações ao longo do processo que envolve o exame necroscópico. O BO representa, seguramente, a forma como a sociedade – e, em especial, a polícia – identifica a raça-cor dos indivíduos mortos violentamente. Observa-se, então, que mais indivíduos são identificados como “pretos”, embora 40% da informação sejam negligenciados. Deste modo, a definição da raça/cor da pele, ao contrário do que se esperava, ficava rotineiramente a cargo do familiar ou reclamante do corpo. Ainda que o correto preenchimento e a fidedignidade dos dados constantes na DO sejam da responsabilidade do médico que realiza o exame (Brasil, 2001), isto não ocorre como rotina. Constataram-se, ainda, divergências nas falas dos entrevistados sobre a possibilidade de a raça/cor da pele atribuída pelo responsável pela retirada do cadáver concordar ou não com a “realidade” observada pelo técnico, que terminava, em muitos casos, induzindo a resposta: “A declaração que vem pra aqui é a gente que preenche. Como o médico não coloca a cor, a gente que procura saber da família [...] Se ele for negro, como é que eu posso colocar

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branco? Ah, você é da família está dizendo que ele é branco, então eu tenho que colocar branco. A família está dizendo é branco, tem que botar branco”. (Ent 4/T/L)

Este comportamento ambíguo traduz uma indecisão entre a legitimidade “política” fornecida pela autodeclaração e a “verdade técnica” que o profissional tenta, certamente, preservar. Entretanto, dado que a realização das entrevistas buscou não apenas identificar concepções, percepções, mas, também, abrir um espaço de reflexão e interação entre entrevistador-entrevistado, como indivíduos competentes para argumentar e se entender, alguns profissionais, mesmo referindo o caráter “subjetivo” do ato de decidir sobre a raça/cor, questionaram-se sobre qual o fundamento mais adequado ou válido, aquilo que melhor definiria a realidade observada. No processo de problematização forjado pela investigação, uma vez admitida a impossibilidade de a definição da raça/cor configurar-se somente enquanto processo objetivo, os entrevistados remetiam à “subjetividade”, como obstáculo que demandaria uma necessidade de orientação e “educação”. Ou seja, educar e orientar as pessoas, para que o processo de classificação seja fidedigno e elas saibam e reconheçam “quem” são. A questão é: quem deve dizer quem “eles” são? O processo de definição de si e do outro, que leve em conta questões mais próximas do significado da raça/cor da pele para cada um, mas que gera repercussões para muitos outros, necessitaria ganhar espaços mais abertos a uma abordagem sem tabus, sem mitos. Como só o outro pode dizer quem é o indivíduo? É preciso que se permita uma subjetividade orientada em vida, e o seu reconhecimento objetivo em morte. Entretanto, parecem ser grandes os obstáculos percebidos justamente por médicos que deixaram de contribuir com a informação que interessa, especialmente, à população negra: “Um sistema melhor de classificação. Infelizmente, vai ter que ter um critério subjetivo nesses dados, porque ninguém vai dar”(Ent3/M). Curiosamente, certo auxiliar de necrópsia ratificou as inúmeras pesquisas sociodemográficas sobre esse tema no Brasil, dentre elas a de Azevedo (1990), que afirmam que qualquer um sabe nomear um negro, um pardo ou branco, seja usando a terminologia do saber “científico”, seja a do senso comum: “Tem que ter sua identificação, tem que ter seu respeito. Seja em vida e morte, tá me entendendo? E aqui, então, no IML... Eu acredito em que todos os IML do mundo acontece, claro, né? Essa preocupação de descrever aquela coisa que está vendo ali, tá me entendendo? A gente não vai ver assim um negro da nossa raça e dizer: não, ele é um moreno, ele é um branco, tá entendendo? [...] Não, sabendo que descreveu uma coisa que não tinha nada a ver. Então, para isso, nós temos uma visão profissional, que temos que escrever tudo, e essa preocupação nossa é pra que sempre melhore a qualidade do trabalho da gente”. (Ent7/T/A)

Aqui se chega a um momento crucial. Tendo em vista o discutido e observado, como se constitui a produção dos dados? A que se devem a dificuldade, a complexidade e a banalização da informação? A despeito de ter como marcador principal a cor da pele, outras informações, como a característica do cabelo, o formato do nariz e dos lábios, bem como a cor da gengiva, funcionam como marcadores raciais e contribuem para formar uma identidade. Informações, como ângulo facial e protusão da mandíbula, contam, em caso de dúvidas. Chama a atenção o fato de os legistas, embora haja dúvidas do ponto de vista das características físicas, não lançarem mão de outros caracteres que tipifiquem o indivíduo. Ainda que as características da população negra sejam reconhecidas por grande parte dos entrevistados, é consenso que a identificação como faioderma possibilita menor margem de erro. Isto porque identificar uma vítima de morte por causas violentas, como faioderma, permite que o identificado transite, simbolicamente, do branco ao negro, passando por todas as nuances possíveis, ainda que seja “apontado” como melanoderma. Entenda-se que desta possibilidade de trânsito exclui-se o entendimento do pardo e similares como leucoderma. Na verdade, o faioderma refere-se ao não branco. O que resulta, na prática, de uma população bicolor: brancos e não brancos. O mito das três raças dissolve, na pardacidade, a quase totalidade dos cadáveres do IMLNR, porque os leucodermas são, ali, pouco frequentes. 348

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As falas também remetem a um dado político concreto, qual seja, a importância de agregar pardos e pretos na constituição da raça negra. Compreendendo-se que a categoria “negro” inclui os dois grupos, pois estes são aqueles que têm sido tratados discriminadamente, e se encontram à margem do processo político-decisório, por que não assumir a realidade, nua e crua, como ela é (Figueroa, 2004; Osório, 2003)? No processo de identificação que ocorre no IMLNR, isto se mostrou extremamente peculiar. Entre pardos e pretos, todos parecem ser iguais. Durante a observação da prática, não foi percebida qualquer dúvida quanto à identificação dos leucodermas; ou eram faiodermas (não brancos), ou leucodermas (brancos). Se a definição, efetivamente, leva em conta a informação fornecida pelo reclamante, seria esta uma alternativa legítima, como no processo de autodeclaração adotado pelo IBGE, dada a dificuldade que envolve a identificação racial (Cardoso, Santos, Coimbra Jr., 2005)? Este critério utilizado pelo plantonista do IMLNR, embora não seja o oficial, revela, na prática, uma medida que possibilita a relação com o pertencimento, ainda que exista uma mediação, às vezes pouco elucidada ou pouco orientada. Desse modo, admite-se que o ato de definição do atributo raça/cor do morto está, sim, carregado de subjetividade, e, desse modo, por todos os valores que a construção da imagem de ser negro carrega. Não são utilizados critérios técnicos específicos ou procedimentos padronizados, mas critérios subjetivos – com base em experiências individuais e coletivas. A indefinição não pode ser assumida, pois a DO não apresenta o item “indeterminado” ou “ignorado”, mas esta possibilidade emerge repetidamente como uma alternativa nas falas e nos registros. O que remete ao SIM e à presença de óbitos de raça/cor “ignorada”, ainda que o campo 17 não apresente esta alternativa. Por que isto ocorre?

“Irrelevância” da raça/cor da pele Ao refletirem sobre o tema, os entrevistados expressaram sentimentos de espanto ou curiosidade em relação, não à existência do quesito, mas à importância desta informação. A maioria dos profissionais referiu não perceber nenhuma conotação racial no fato de os “afrodescendentes” morrerem mais. Admitir a realidade não é racismo. Não é relevante declarar a cor do morto, porque já “se sabe de antemão” que “os pretos morrem mais”, e morrem mais porque são pobres. São negros e pobres, mas, na opinião dos profissionais, só estavam lá porque eram pobres. A raça ou cor passa como algo acidental. Embora acidental seja a presença de brancos no IMLNR. Entretanto, referem-se exatamente àquele grupo – negros – para se reportar à sua condição econômica, realizando a verdadeira identificação racial que parece tão complexa, tão difícil de tratar e, até mesmo, falar. Por tal motivo, esta forma de negação do outro como identidade diferente, mas positiva, pode ser considerada racismo. Todavia, se a desigualdade é “naturalizada” e o racismo é “oculto” ou “cordial”, como ele opera ideologicamente no âmbito das práticas profissionais de saúde? Uma das formas identificadas pelo estudo deu-se pela negação da importância da cor na identificação dos corpos, exceção feita àqueles com identidade social ignorada. Assim, um dos profissionais médicos defendeu uma suposta “inutilidade” e “irrelevância” da identificação racial no momento em que reconhecia que era por mera formalidade que o fazia, tendência observada entre outros membros da equipe técnica: “Normalmente, seria de praxe que preencha, entendeu? Aí, só é colocar branca, parda, preta, amarela e indeterminado. Isso já vem na ficha daqui, que eu também acho extremamente simplista. Eu acho que, para o cadáver ignorado, deveria ter, pelo menos, outros critérios, entendeu? Acho importante porque é ignorado, mas, a nível estatístico, a nível de alguma coisa, honestamente, eu não vejo nenhuma importância, muito embora toda e qualquer pesquisa que a gente faça na área de medicina legal, a gente coloca pardo etc., Mestiço, parará, parará, se você quiser... Honestamente, eu não vejo nenhuma

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importância, porque, no nosso meio, é de se esperar que a maior parte dos homicídios e das mortes violentas seja de afrodescendentes [...]. Ainda é a parte da população menos favorecida, por questões históricas. Então, é de se esperar [...]. Então, honestamente, eu não percebo nenhuma correlação... nenhuma conotação racial. Eu acho apenas social e econômica, demográfica mesmo”. (Ent3/M)

A contradição expressa nesse trecho da entrevista representa bem o problema. A determinação da cor é um processo “formal”, “normativo”, que se faz por obrigação e sem convicção, por ser algo tão subjetivo, tão ao sabor do gosto pessoal, que o que se deveria fazer, na opinião desse profissional, seria tirar “a foto da pessoa e deixar em anexo, cada um tira as suas consequências”. Pois não existe nenhuma utilidade em se saber a cor de alguém em um “país como o nosso”, ou seja, miscigenado. Todavia, se é um país mestiço e sem cor, como o mesmo profissional sabe que os negros são mais desfavorecidos social e economicamente? Não seria esta imagem de país miscigenado acionada para promover a fuga do debate sobre as desigualdades entre negros e brancos, conforme tem mostrado fartamente a literatura crítica? O argumento leva à crença de que as várias possibilidades de tonalidades de cor invalidam o debate racial no país. Trata-se de um entendimento de que o país que preserva a herança do mito da democracia racial padece apenas das diferenças de classes. Frente a isso, perde relevância o fato de que morram mais pretos em virtude da violência. “Porque, antropologicamente, você não consegue características caucasianas, nem puramente negroides. Você encontra sempre um meio termo. É pela própria característica nossa de miscigenação. E aí, você pega um livro estrangeiro... Isso é muito fácil de fazer, extremamente fácil, não há a menor dúvida de identificar [...]”. (Ent8/M)

Com efeito, a percepção desse profissional conecta-se à do senso comum presente na sociedade brasileira acerca das relações raciais, que nega o debate sobre a existência do racismo, recusando-se, assim, a aceitar a existência de desigualdades dele resultantes. Uma vez que se trata de um tema que não importa ser discutido, para que, então, identificar, se o que será encontrado é o que já se sabe? O que isto mudaria? Para quem mudaria? Pereira (1995) afirma que os dados produzidos pelo SIM abastecem uma base mantida e atualizada periodicamente pelo Estado, possibilitando, por meio de estatísticas, a realização de um diagnóstico de saúde que auxilie a tomada de decisão na gestão. Alguns entrevistados não pareceram reconhecer a relevância e utilidade dos próprios dados que geram. “Realmente, vou ser sincero, não sou eu que preencho esse campo. A gente está muito mais preocupada em fazer o laudo, e pouco, assim... Mas lógico que a causa mortis é a preocupação também”. (Ent11/M)

Em divergência, outros reconheceram essa importância, sobretudo em referência à construção de políticas públicas e, ainda, identificam a discriminação como um empecilho para a identificação racial do periciado. “É uma questão extremamente delicada. Em termos de políticas públicas, você tem que pensar nisso sempre. No ponto de vista pessoal, não tem muito como resolver, é uma questão... digamos assim... a discriminação é mais gritante. Isso aí que tem que resolver. Mas tem um tipo, um grau de discriminação que vem sem discussão. Você tem que contornar, superar e encarar todos os dias, mas é uma questão muito pessoal. Não tem muito como se resolver em grupo”. (Ent5/M)

Constata-se, nas falas, que a herança da democracia racial ainda permeia as concepções, reforçando a incapacidade de definição racial. Seja complexa, irrelevante, ou mesmo relevante, a subjetividade de 350

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quem identifica é um fator constante, enquanto o reconhecimento deste atributo, quando chamado à sua “cientificidade”, ainda se encontra intimamente ligado aos marcadores antropológicos. Todos os impasses no processo de definição do atributo estudado parecem levar a um só caminho: identificar todos os indivíduos como pardos. Os entrevistados reduzem a dificuldade a uma solução simples que, justificada pela polissemia existente em relação aos termos, como já descrito por Figueroa (2004), autorizaria os legistas a procederem à identificação, eximindo-os de maior precisão. Entende-se que está latente, fechada à crítica e à reflexão, a crença da existência de uma raça brasileira, exemplificada na categoria “moreno”, avessa à polaridade negro/branco. Seja moreno, pardo ou faioderma, a categoria não branco é referida como uma solução para todas as dúvidas. Trata-se da promessa de trânsito referida anteriormente, por uma estratégica indefinição de fronteiras: “A identificação como parda, pela facilidade, entre aspas, de que esta cor pode migrar desde o branco, não tão branco, ao negro, não tão negro, esta graduação de cor pode estar muito bem incluída no pardo e que se pode justificar o pardo em qualquer situação”. (Ent8/M)

Dada esta indefinição, será possível, ao profissional, despir-se da responsabilidade legalmente investida de identificar. Livrar-se da possibilidade de erro, da possibilidade de ser questionado. Nesse sentido, a gradação da cor da pele e a impossibilidade de demarcação de uma “fronteira” inquestionável entre os extremos são utilizadas como argumento para justificar a discriminação racial, que se oculta como “in-discriminação” da cor. A miscigenação não eliminou a discriminação, apenas a pluralizou, matizou, modalizou, conforme a presença ou ausência gradual de características “negras”, mas, principalmente, pela tonalidade da cor da pele [...]. A cor da pele apresenta-se como variação intensiva do gradiente de cor (mais ou menos escuro) que desestabiliza a variável “raça” (branco, negro, não branco...). (Sales Júnior, 2006, p.233)

Este fato revela a diferença que se faz injustiça. “Serem todos brasileiros” é uma realidade que dilui e invisibiliza o efetivo limiar que é não ser branco. Ratificam-se, aí, o valor, a necessidade do pertencimento e da construção da identidade negra com base no reconhecimento da diferença. Ser negro não é a mesma coisa que ser pardo, ou preto, ou moreno, ou não branco. Ser negro é uma realidade de opressão que identifica tanto pardos quanto pretos, mesmo os que possuam ancestralidade indígena; isto não importa, pois o marcador é o “não ser” branco e, por este motivo, “não ter”, na prática, os mesmos direitos. Talvez a ideia de “inutilidade” ou “formalidade” concedida a um atributo tão crucial para a “identidade” do sujeito morto violentamente faça com que muitos médicos “resistam” a este procedimento, quer sob a forma de “esquecimento”, quer sob a delegação da ação para outro profissional; ou, ainda, sob a forma de uma negação passiva, ou o que se poderia chamar de “borramento”, que corresponde ao ato de marcar indiscriminadamente “qualquer alternativa” ou “sempre a mesma alternativa”, que é o pardo: “Não tem muito problema. Eu coloco quase todo mundo como faioderma. Às vezes, vem dito como melanoderma, mas é muito difícil você ver um indivíduo realmente melonoderma aqui. A grande maioria é faioderma. É difícil o indivíduo de cor negra. Quando eu tive nos Estados Unidos, você vê um cara que é claramente negro. Aqui você não vê isso com facilidade”. (Ent5/M)

Talvez seja importante entender também que o pardo é um termo muito pouco utilizado pela população que se encontra no espaço intermediário do continuum branco-preto, para se referir a si mesma, encontrando sinonímia com outras denominações como “moreno”, “mulato”, “escuro”; e não COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.341-45, abr./jun. 2013

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guarda relação com nenhum grupo social existente, nenhuma etnia, e nem ao menos é nome de cor (nem ausência de cor). É possível ainda que a “desvalorização” da raça/cor não seja referente só ao atributo, mas ao tributado: o sujeito negro. E se chegue ao absurdo de dizer que a presença de negros no IMLNR é uma raridade, pois a maioria da população é “faioderma” ou “parda”. É desse modo que a evidência (o que todo mundo pode ver) – que os negros, sejam pardos ou pretos, morrem mais – se transforma no contrário (não existem negros no IMLNR, logo, os negros não morrem de morte violenta na Bahia). Ou, quem sabe, nem existam negros no Brasil. Porque, se existem, nem a “ciência” dos médicos pode “ver”. Fica mais fácil entender agora por que a “dificuldade” devida a uma pretensa complexidade transforma-se em omissão. Identifica-se, em alguns casos, a inaceitabilidade do termo “raça” e suas implicações. Implicações que retomam, dentre outras questões, o racismo como prática atuante, presente, ainda que silenciosa, nas ações e na técnica (saber médico), independentemente da aceitabilidade ou não do termo raça, dado que raça é uma categoria social (Munanga, 1996) e a exclusão uma realidade, esta sim, inaceitável. Como reflexo de uma realidade mais ampla, este espaço revela as diversas formas de violência a que estão relegados os negros em outros lugares. A invisibilidade é uma das mais hediondas formas de violência que, por sua vez, leva à sua naturalização. Não é visto, não existe, logo, não é importante. Morrer muito, morrer de forma violenta. Morrer mais de forma violenta por ser parte de um grupo (ainda que muitos não possam se reconhecer nele) marginalizado do processo decisório, alienado dos seus direitos. Estar invisível para o reconhecimento de sua cidadania, de sua identidade, de sua existência. Não existir para o gozo em vida, mas para ser marcado na maca fria da morte. Morrer violentamente, por ser “percebido” de forma violenta – seja por omissão ou negligência dos espaços institucionais. É a retroalimentação do ciclo que naturaliza a violência que vitimiza negras e negros e os segrega tanto na vida como na morte. Morre um, cinco, morrem muitos. São chacinas, mas isto já não chama mais a atenção, pois ficam segregadas nas páginas policiais ou nos programas de TV onde a miséria e a degradação humana são show, não matérias de debate social sério.

Considerações finais Identificar o indivíduo envolve o trato com informações preciosas a respeito de como nascem, crescem, vivem e morrem. Estas informações estão intimamente ligadas à identidade racial. Entende-se que este é um dos aspectos da identidade do indivíduo e se faz, subjetivamente, em razão de o sujeito ter consciência de si mesmo e, objetivamente, por ser ele reconhecido no ambiente pelo outro. Reside aí a verdadeira identidade racial que não desarticula o indivíduo de sua realidade e, por isso, deve ser desvendada. A relação estabelecida entre a raça/cor da pele negra com a morte, a violência e a marginalidade exercem importante influência no processo de determinação da raça ou cor da pele na DO, de tal forma que, diante da naturalização deste fato, a identificação passa a ter pouco valor. Realidade tão luminosa que cega. Os negros morrem mais, de forma indigna, se matam e são mortos em proporções inusitadas. Isto não causa nenhuma estranheza aos profissionais e à instituição. A morte dos brancos que chegam ao IMLNR está relacionada a uma circunstância pontual, sem implicações judiciais. Ao passo que o homicídio, de fato ou presumido, traz a marca da violência marginal, relacionada com drogas, crime, ilegalidade, com aquilo que inscreve o corpo morto em um horizonte de culpabilidade, quase que justificando a morte violenta e, consequentemente, a rejeição social e a discriminação. A morte violenta tem cor. Mesmo que a maioria dos profissionais de saúde reconheça a importância da raça/cor da pele na instituição estudada, isto nem sempre ocorre na prática. Diante deste quadro, a prática do médico legista constitui-se pelo predomínio de duas ações: a primeira, pela omissão; a segunda, consequência da primeira, pela imprecisão. Nem atende inteiramente à dimensão política de permitir, aos familiares do morto, que forneçam sua identidade com base na experiência social, nem é 352

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artigos

fruto de qualquer observação neutra e objetiva que o racionalismo empiricista preconiza para a constituição de um saber científico. Estas ações de omissão e ambiguidade só podem produzir distorções, apontando para estatísticas de raça/cor da pele não confiáveis. Já se sabe de antemão como são produzidas. Nada a ver com o sujeito morto, nem suas qualidades, mas com o processo social que engendra a prática profissional. Enquanto processo histórico, a ideologia do “branqueamento” foi construída com base na ideia de “superioridade branca”, substituta, no Brasil, da ideia anglo-europeia de supremacia branca, e que se encontrava na base da crença de que a miscigenação “embranqueceria” o Brasil. Essa ideia se atualiza, ainda neste século, por ações cotidianas que assimilam os significantes valorizados pela elite branca e sua dinâmica racista (Bento, 2002), e repercutem no reconhecimento da identidade negra. As informações a respeito da raça/cor da pele das vítimas de morte violenta enviesam as informações sobre a mortalidade da população negra. Ora, se esta é a base de dados proposta para fundamentar diagnósticos da situação de saúde que orientam as políticas públicas, o sistema gera um problema, e não uma solução. Cria-se uma “névoa” informacional conveniente, ou melhor, conivente com a ausência de estratégias específicas de combate à violência neste grupo, revelando a ineficácia do Estado. Percebe-se que, para a construção de uma prática que possa transformar este processo negativamente racializado, faz-se necessária a incorporação de novos saberes e práticas, que tornem conscientes os sujeitos envolvidos na geração de informações coerentes com sua relevância social. Quer estes sujeitos sejam gestores, militantes de movimentos sociais ou profissionais, uma sensibilização que exponha esta ferida seria um primeiro passo a ser dado. Por meio de sujeitos mais sensíveis à vulnerabilidade que a identidade sociorracial confere, será possível, à sociedade, adquirir nova compreensão da raça/cor da pele, dando a este constructo social sentidos mais humanos e verdadeiros.

Colaboradores Andreia Beatriz Silva dos Santos foi responsável pela elaboração do projeto, coleta de dados, análise e redação do artigo. Thereza Christina Bahia Coelho trabalhou na elaboração do projeto, análise dos dados e redação do texto; e Edna Maria Araújo contribuiu na análise dos dados e redação do manuscrito. Referências ARAÚJO, E.M. et al. Diferenciais de raça/cor da pele em anos potenciais de vida perdidos por causas externas. Rev. Saude Publica, v.43, n.3, p.405-12, 2009. AZEVEDO, E. Raça: conceito e preconceito. 2.ed. São Paulo: Ática, 1990. BARBOSA, M.I. Racismo e saúde. 1998. Tese (Doutorado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1998. BATISTA, L.E. Masculinidade, raça-cor e saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.1, p.71-80, 2005. BENTO, M.P.S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, I.; BENTO, M.P.S. (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p.25-58. BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Manual de instruções para o preenchimento da declaração de óbito. 3.ed. Brasília: FNS, 2001.

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SANTOS, A.B.S.; COELHO, T.C.B.; ARAÚJO, E.M.

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SANTOS, A.B.S.; COELHO, T.C.B.; ARAÚJO, E.M. Identidad racial y la producción de información en salud. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.341-55, abr./jun. 2013. Ese estudio examina la producción de información sobre raza/color de la piel de los cadáveres sometidos a autopsia en el Instituto de Medicina Legal (IML) de Salvador/ Bahia en 2007. Los datos se obtuvieron por medio de entrevistas con médicos legistas, ayudantes de autopsia y con el personal de la División de Entrega de Cadáveres, en la observación y en fuentes documentales. El análisis reveló que el proceso de identificación de la raza/color de la piel se omite, es impreciso y distorsiona las informaciones finales que constan en los Certificados de Defunción. Hubo una clasificación difusa de negros y mestizos como faiodermas, generando una “niebla” en la información, mientras que la muerte de los blancos fue “accidental”. El asesinato lleva la marca de la violencia marginal, relacionada con drogas y crimen y con todo lo que inscribe al muerto en un horizonte de culpa, casi justificando la muerte violenta y la discriminación.

Palabras clave: Identificación racial. Sistema de Información sobre Mortalidad (SIM). Racismo. Raza/color.

Recebido em 28/02/12. Aprovado em 19/02/13.

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Experiência, produção de conhecimento e formação em saúde* Angela Aparecida Capozzolo1 Jaquelina Maira Imbrizi2 Flávia Liberman3 Rosilda Mendes4

CAPOZZOLO, A.A. et al. Experience, knowledge production and health education. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013.

This paper presents partial research results relating to an experience of interprofessional training for healthcare work implemented at the Baixada Santista campus of UNIFESP, in Santos, SP, Brazil. The teaching strategies for this line of study had the goal of exposing students to continuing healthcare intervention experiences, from the first undergraduate year onwards, thus enabling critical thinking with regard to the dimensions involved in healthcare work. The aims of this study were to systematize, analyze and establish strategies for following up this training. Different data gathering tools were used, such as focus groups and semi-structured interviews, and the analyses were presented to and discussed with the subjects involved. This article addresses issues relating to the topic of experience and knowledge production. The results indicate that the training contributed towards constructing a modus operandi for future professionals that takes into consideration the complexity of the health-illness-care process.

Este artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa sobre a experiência de formação interprofissional no eixo Trabalho em Saúde na Unifesp - campus Baixada Santista, Santos, SP, Brasil. As estratégias de ensino deste eixo têm como perspectiva expor os estudantes, desde o primeiro ano de graduação, a experiências de intervenção de cuidado que possibilitam o exercício crítico das dimensões envolvidas no trabalho em saúde. O objetivo do trabalho foi sistematizar, analisar e estabelecer estratégias de acompanhamento dessa formação. Foram utilizados diferentes instrumentos de coleta de dados, como grupos focais e entrevistas semiestruturadas, e as análises foram apresentadas e discutidas com os sujeitos envolvidos. Este artigo aborda as questões relacionadas à temática da experiência e produção de conhecimento, e os resultados indicam que a formação tem contribuído para a construção de um modo de atuar dos futuros profissionais que considera a complexidade do processo saúde-doença-cuidado.

Keywords: Healthcare Work. Health Education. Interprofessional Education. Experience.

Palavras-chave: Trabalho em saúde. Formação em saúde. Formação interprofissional. Experiência.

* Elaborado com base em Capozzolo et al. (2011); pesquisa financiada pelo CNPq (n.479031/ 2008-8). 1 Departamento de Gestão e Cuidados em Saúde, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Baixada Santista. Rua Silva Jardim, 136, Vila Mathias. Santos, SP, Brasil. 11.015-020. angeruma@uol.com.br 2,3 Departamento de Saúde, Clínica e Instituições, Unifesp, campus Baixada Santista. 4 Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva, Unifesp, Campus Baixada Santista.

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EXPERIÊNCIA, PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E FORMAÇÃO ...

Introdução “[...] Uma contribuição importante deste eixo foi a questão da integralidade [...] de prestar atenção no seu paciente, que ele está inserido num contexto, ele não tem simplesmente uma dor localizada [...]”. (estudante de Fisioterapia) “[...] esse eixo é responsável por despertar no aluno a sensibilidade de observação, de escuta [...], ele tem mais flexibilidade, [...]”. (docente)

Estes relatos explicitam alguns efeitos da formação interprofissional proposta pelo eixo Trabalho em Saúde (TS), um dos eixos curriculares comuns do campus Baixada Santista da Unifesp, em implantação desde 2006, que mescla estudantes dos cursos de Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia e Terapia Ocupacional5. Este eixo perpassa os três primeiros anos de graduação desses cursos e visa possibilitar, aos estudantes, o contato com diferentes grupos populacionais e seus problemas de saúde, bem como com as equipes de diferentes serviços que oferecem ações de cuidado. O trabalho em saúde realiza-se no encontro entre sujeitos, que se afetam e se produzem mutuamente (Merhy, 2002; Passos, Benevides, 2000). Conceber o trabalho dessa forma implica pensar que ele envolve dimensões técnicas, subjetivas, éticas e políticas. Esta proposta de formação aposta na produção de conhecimento a partir de reiteradas experiências que possibilitam um exercício crítico das diversas dimensões do trabalho em saúde e da produção do cuidado. As vivências de situações de trabalho são pontos de partida para a busca de referenciais teóricos. Desde o primeiro ano de graduação, os estudantes são expostos ao “fazer”, incentivados a assumirem responsabilidades e a realizarem intervenções de cuidado que superem a fragmentação dos atos profissionais. Partimos da concepção de que as intervenções de cuidado não se restringem à aplicação de técnicas e procedimentos profissionais num “corpo adoecido”, mas envolvem compreender o contexto, o universo cultural, os modos específicos de viver do usuário, e abrir possibilidades de diálogo com suas concepções, expectativas, prioridades e desejos, reconhecendo-o como sujeito na produção de sua própria saúde. Também demandam articulação de diferentes saberes e práticas e de diferentes serviços. Orientadas por esses referenciais, as atividades de ensino do eixo TS são organizadas em módulos semestrais. Cada módulo enfoca determinados aspectos e estratégias, mas todos estão articulados e trabalham questões transversais: conceito de saúde, políticas públicas, sistema de saúde; organização do processo de trabalho e da rede de serviços; trabalho em equipe; vínculo; escuta; ética; responsabilização e cuidado integral. A perspectiva é a busca do comum das práticas profissionais, por isso, docentes das cinco áreas profissionais e da saúde coletiva integram o eixo TS. Optou-se por priorizar a inserção das atividades de ensino nas áreas de maior vulnerabilidade social do município6 de Santos, onde está situado o campus. Há uma aposta na possibilidade de deslocamento e ampliação dos modos de escutar, olhar, dar sentido e problematizar as complexas situações de saúde relacionadas com os diferentes modos de “andar a vida”. No primeiro módulo, os estudantes realizam visitas, entrevistas e observação para conhecerem os modos de vida nos diferentes territórios do município e suas implicações no processo saúde-doença-cuidado; no segundo, conhecem a 358

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A partir de 2009, o curso de Serviço Social é implantado no Campus e integra, também, o Eixo.

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Essas áreas concentram populações que vivem em condições de habitação precárias: região noroeste, onde cerca de trinta mil famílias moram em palafitas; região centro, onde cerca de 15 mil pessoas vivem em cortiços e áreas de ocupação dos morros.

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organização dos serviços de saúde e das políticas públicas. No terceiro, duplas de estudantes convivem, durante um semestre, com famílias em seus domicílios, com objetivo de construírem suas narrativas de vida e de saúde. No quarto módulo, equipes de estudantes elaboram e implementam ações de promoção à saúde com grupos populacionais. No quinto e sexto módulos, os estudantes se organizam em equipes de referência e matriciais para implementarem projetos terapêuticos singulares. As experiências vivenciadas pelos estudantes são processadas em espaços de supervisão com docentes, na perspectiva de estimularem a capacidade de problematizar as dimensões envolvidas nas práticas de saúde e possibilitar a construção de um pensamento e agir profissional comprometido com a produção da vida que não seja reducionista e que considere a complexidade do processo saúde/ doença/cuidado. Atualmente, as atividades envolvem cerca de oitocentos estudantes por semestre, quarenta docentes e equipes de vários serviços (saúde e demais secretarias). Neste artigo, apresentamos parte da pesquisa realizada no período de 2009 a 2011, que contou com o financiamento do CNPq e teve como objetivo: sistematizar, analisar e estabelecer estratégias de acompanhamento e avaliação desta proposta de formação. O estudo, aprovado pelo comitê de ética sob número 1528-09, foi estruturado em duas fases. Na primeira fase, realizaram-se: grupos focais com estudantes do último ano, docentes e agentes comunitários; entrevistas semiestruturadas com coordenadores de eixos específicos e comuns, diretor acadêmico, gerentes e enfermeiros. Os grupos e entrevistas previam o relato de experiências vivenciadas no eixo e uma reflexão sobre os possíveis efeitos desta proposta, seus problemas e potencialidades. Todas as entrevistas e grupos focais foram gravados e, posteriormente, transcritos. Cada material foi analisado separadamente por, pelo menos, três pesquisadores, com ajuda de uma matriz analítica, em que se identificavam os temas, as posições assumidas pelos participantes e os trechos representativos destas posições. Em seguida, elaborou-se um único quadro de cada material, que foi discutido pelo conjunto dos pesquisadores. Procedeu-se, então, à agregação do material em grandes núcleos temáticos. A segunda fase consistiu em discutir, em seminários, as análises preliminares com os sujeitos da pesquisa e com interlocutores externos. O material produzido nesses encontros integrou a análise, resultando na constituição de uma síntese final. Neste artigo apresentaremos algumas questões que emergiram da investigação relacionadas com a temática: Experiência, produção do conhecimento e formação em saúde.

Algumas considerações sobre a experiência A primeira consideração refere-se ao que entendemos por experiência. Como podemos compreender o sentido e o alcance da experiência? O que significa experienciar? No senso comum, a palavra experiência pode trazer a conotação de uma bagagem de conhecimentos, muitas vezes estática e cristalizada, adquirida no percurso de uma vida. Não nos interessa, para os fins deste texto, esta ideia de que a experiência estaria relacionada a um acúmulo de informações, mas, sim, o experimentar, o provar, o arriscar-se, o atravessar a “fluidez da experiência viva e vivida” (Varela, 2003, p.74). É nesse experimentar que conhecemos, que produzimos um saber “encarnado” que configura “uma forma singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo)” (Bondiá, 2002, p.27). Ninguém pode aprender pela experiência do outro, a não ser que essa experiência seja revivida e tornada própria. É também importante não confundir a experiência com simples exposição à prática. É possível pensar em uma prática à qual não atribuímos nem significado e nem sentido. Como autômatos, podemos fazer aquilo que nos pedem, e isso não necessariamente se configura em uma experiência que cria e inova possibilidades no sujeito e no mundo. Para Bondiá, a experiência é o que “nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” e, portanto, aquilo que nos afeta (Bondiá, 2002, p.21). Em outra vertente, Kastrup (2008, 2005) enfatiza que é no domínio da experiência e das interações que ocorre a aprendizagem. Para essa autora, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013

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[...] aprender é experimentar incessantemente, é fugir ao controle da representação. É também, nesse mesmo sentido, impedir que a aprendizagem forme hábitos cristalizados. Aprender é estar atento às variações contínuas e às rápidas ressonâncias, mas isso implica, ao mesmo tempo, certa desatenção aos esquemas práticos de recognição. (Kastrup, 2008, p.107)

Kastrup (2008, 2005) problematiza, assim, as concepções que restringem a aprendizagem a um processo de solução de problemas preexistentes. A autora diferencia o que seria uma política de recognição do que seria uma política cognitiva da invenção. Na primeira, o processo de aprendizagem atém-se a formas prontas e à aquisição de informações; na segunda, a aprendizagem inclui a experiência de problematização e a invenção de problemas. Aprender é, então, fazer a cognição diferenciar-se permanentemente de si mesmo, engendrando, a partir daí, novos mundos. A política da invenção é, assim, uma política de abertura da atenção às experiências não-recognitivas e ao devir. O desafio da implementação dessa política é conceber práticas que viabilizem o desencadeamento de processos de problematização que não se esgotem ao encontrar uma solução. (Kastrup, 2005, p.8)

Assim, a concepção da aprendizagem inventiva está relacionada com um processo de produção de subjetividade, de invenção de si, que tem, como correlato simultâneo e recíproco, a invenção do próprio mundo. Podemos dizer que, da experiência, não resulta um conhecimento sólido e arrogante, e sim um conhecimento plástico e consciente de seus limites; não um sistema de convicções, e sim um conjunto de referentes provisórios e mutantes, na medida em que ela – a experiência – problematiza não só o registro cognitivo de um sujeito, mas, também, seus sentidos, percepções e afetos. Uma vez que todos são afetados pelo processo de aprendizagem que não é linear, tampouco imediato, ocorre uma série de deslocamentos: da relação sujeito-objeto para a de sujeito-sujeito; da busca de uma verdade única para o convívio com a incerteza, a imprevisibilidade e com o reconhecimento de diferentes perspectivas na compreensão das questões de saúde e nos modos de atuar do profissional. Abrem-se, assim, possibilidades para um agir profissional mais cuidador. Os itens a seguir apresentam alguns dos efeitos identificados nos envolvidos, em especial nos estudantes, a partir do que foi experienciado nesta proposta de formação interprofissional.

O encontro com diferentes modos de viver: a experiência de atuar em áreas de maior vulnerabilidade social “[...] a gente se revolta porque isso mexe muito com a gente, [...] mas ao mesmo tempo é muito gratificante [...] não tem explicação, é uma coisa marcante [...] a gente vê uma realidade que a gente não tem noção”. (estudante de Educação Física)

A fala deste estudante expressa bem os diferentes efeitos da experiência de atuar em territórios de maior vulnerabilidade social onde são realizadas as atividades de ensino do eixo TS. Para os estudantes, provenientes, em geral, de outra classe socioeconômica, a ausência de um referencial “familiar” perturba e, frequentemente, provoca sensações de insegurança que se expressam em questionamentos: “Fazem a gente passar medo, só colocam a gente nas comunidades longe, de alto risco” (estudante de Fisioterapia). Colocar os estudantes, desde o início da graduação, em contato com a população que vive nesses territórios foi considerado precoce por alguns: “[...] eu acho que eles quiseram jogar a gente muito cedo” (estudante de Fisioterapia). Um dos argumentos seria a pouca maturidade para lidar com as complexas histórias de vida e com situações de sofrimento das pessoas que vivem nessas áreas: “[...] o nosso grau de maturidade não está tanto para isso [...]” (estudante de Nutrição). 360

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As tensões decorrentes do trabalho nessas áreas ocuparam parte significativa dos primeiros anos de implantação dessa proposta. Podemos dizer que elas expressam diferentes concepções sobre qual seria o papel da Universidade, e quais perspectivas deveriam orientar a formação dos profissionais, como explicita esta fala: “acho que eu posso trabalhar em saúde, com a classe alta, com a classe média, não só com a população carente, [...] eu nunca entendi, porque só no Morro, na Noroeste e no Centro Velho [...]” (estudante de Educação Física). Produzir mudanças na lógica de formação dos profissionais de saúde, para que possam compreender e responder aos principais problemas de saúde da população, tem sido um dos desafios dos movimentos de mudanças na formação (Feuerwerker, Sena, 2002). Diversas experiências curriculares em curso no país também enfrentam estas mesmas tensões e buscam estratégias para produzir uma maior valorização destas propostas (Pinheiro, Silva Junior, Pontes, 2006). Na formação do eixo, uma aposta importante consiste em possibilitar, aos estudantes, o encontro com as pessoas desses territórios e, também, conviver, por algum tempo, nos espaços onde moram. Estar fora dos equipamentos de saúde, no território do outro, causa incômodo, pode fragilizar: “é que a gente entrava na casa da pessoa; quem era estranho era a gente [...]” (estudante de Nutrição). O contato com as distintas situações de vida, com frequência, pode produzir revolta, angústia: “[...] eu ia na casa de uma senhora que era muito pobre, quase miserável [...] ela não tinha quase nada na casa [...] e naquele dia [...] ela tinha até o que comer, tinha arroz, tinha feijão só que não tinha um gás para cozinhar . E na hora passou o caminhão do gás tocando na rua, e pensei: e agora, o que eu faço? [...] eu queria comprar o gás [...] na época eu fiquei superangustiado, fiquei revoltado [...]”. (estudante de Terapia Ocupacional)

Estar nos domicílios, perceber o lugar, sentir os cheiros, ouvir os barulhos e escutar as histórias afeta de diversas formas, produz inquietações, interrogações, desloca os estudantes de uma área de conforto, e, justamente por isso, tem potencialidade para produzir aberturas para outros modos de pensar e sentir: “[...] e através das supervisões eu entendi [...] mesmo que demorasse um pouco, eu ia atrás dos meios em que ela pudesse adquirir esse recurso, em vez de pegar e simplesmente dar [...] aí caiu a minha ficha [...]”. Este estudante, após refletir e analisar o que aconteceu nessa experiência, conseguiu dar sentido, “entender o porquê daquele trabalho, o porquê de a gente ir na comunidade [...] E aí vieram as outras experiências, os trabalhos em grupos, [...] depois os atendimentos individuais” (estudante de Terapia Ocupacional). Assim, se, por um lado, expressam-se problemas, por outro, o contato com as situações de exclusão social também parece produzir um efeito importante, que é o de considerar que esse estado de coisas deveria ser evitado: “[...] a gente tinha que pensar [...] no que a gente pode mudar, o que a gente pode fazer [...] não só como profissional [...], mas como pessoa também [...] para não ter tantas pessoas com necessidade, com tantas doenças assim” (estudante de Educação Física). Não se trata apenas de reconhecer problemas, mas de pensar, de problematizar, de buscar caminhos para uma ação por fazer. Parece ser na experiência do “fazer” que algo se “transforma”, que algo acontece: “[...] a gente fica aqui falando, falando, mas a hora que você vai lá e faz e põe a mão, você começa a se apaixonar pelo trabalho” (estudante de Educação Física). Os estudantes que, inicialmente, tinham resistência às atividades de ensino propostas pelo eixo acabam sendo tomados pela experiência. Os encontros com diferentes modos de viver, com necessidades de saúde complexas e imbricadas, associados ao desafio de “fazer” intervenções, em especial, de realizar ações de cuidado, parecem ser bastante potentes para mobilizar e implicar os estudantes na produção de conhecimento de um modo diferente do habitual.

A experiência de produzir ações de cuidado As experiências de produzir ações de cuidado com diferentes áreas profissionais destacam-se como significativas nos depoimentos. Podemos dizer que os estudantes experimentaram os limites de uma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013

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atuação que se resume à aplicação de um conhecimento técnico específico: “[...] nas palafitas, a gente percebeu bem essa diferença, [...] não dava para passar algumas orientações porque a pessoa não ia ter condições para seguir [...]” (estudante de Nutrição). Eles percebem que é necessário considerar as condições objetivas de vida, e, também, o que o outro pensa e deseja para si: “[...] a gente estudava algumas coisas, a gente queria aplicar aquilo, e às vezes não só a pessoa não tinha condição, mas às vezes a pessoa [...] não aceitava aquela proposta [...]” (estudante de Nutrição). Não conseguir “aplicar” um determinado conhecimento é vivenciado como frustrante: “[...] é uma decepção muito grande [...] dá um impacto muito grande no aluno que está querendo ajudar [...]” (estudante de Educação Física). Essa situação, de alguma forma, coloca em questão a relação de poder que se estabelece entre o profissional, considerado detentor de um saber técnico-científico, e a pessoa que está sendo acompanhada. Em geral, essa relação é assimétrica e não considera o “outro” como um sujeito que também conhece sua situação de saúde, que tem desejos e projetos. O conhecimento técnico-científico tende a ser valorado como um saber verdadeiro, neutro e objetivo, e as abordagens dos profissionais centradas nesse discurso científico tendem a ser prescritivas e normativas (Ceccim, Capozzolo, 2004; Camargo, 1992). Essa lógica perpassa tanto as práticas do campo da assistência individual quanto, também, o campo da promoção e prevenção (Silva, Sena, 2010; Merhy, Feuerwerker, 2009). As experiências, no entanto, possibilitam perceber insuficiências, imprecisões e equívocos desse conhecimento e dessas práticas. Vivenciar as dificuldades de uma atuação que se resume a aplicar um determinado conhecimento técnico-científico e conseguir analisar os motivos dessas dificuldades são oportunidades para se compreender a necessidade de dialogar com a singularidade de quem está sendo cuidado: “[...] a gente vai começar a dar orientação, [...] não pode fumar, não é saudável. [...] mas ele tem tantos problemas [...] teve tantas perdas já, perdeu a mãe, perdeu os filhos e um dos poucos prazeres que ele tem é fumar, e eu vou tirar aquele cigarro dele?”. (estudante de Terapia Ocupacional)

Os estudantes, ao realizarem as intervenções, perceberam que nem sempre as mais significativas para melhorar a situação de saúde da pessoa demandaram um conhecimento técnico específico: “[...] você acha que a paciente está com depressão e você vai curar a depressão dela [...], eu fiz lá um inventário técnico, descobri a escala de depressão dela, [...] mas não teve nenhum efeito assim. O que mais foi legal foi a gente ter organizado os remédios para ela, [...] e evitou um monte de problemas porque ela tomava os remédios errados [...]”. (estudante de Psicologia)

Não se trata, portanto, de adquirir um conhecimento que deve ser “aplicado”, mas de um conhecimento que se produz em ato, no encontro com o outro – um conhecimento que emerge das interações: “[...] a gente aprende muitas coisas com eles. É realmente uma troca [...] o impacto é muito grande que você causa à pessoa e ela causa em você [...] eu nunca vou me esquecer de vocês, [...] você não espera ouvir isso, sabe? Você foi lá dar uma orientação [...] e a troca acontece mesmo”. (estudante de Nutrição)

Como refere esta docente, essas experiências já fazem parte “[...] do aprendizado da parte clínica deles [...], essa proximidade com as pessoas, [...] ouvir as pessoas, [...] eles aprendem como abordar [...], fazer uma avaliação [...] compor o objetivo e o seu tratamento” (docente de Fisioterapia). As experiências de realizar ações de cuidado com diferentes profissionais são consideradas bastante significativas. O trabalho conjunto permite experimentar intervenções que não seriam possíveis se restritas a uma única área profissional:

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“[...] foi marcante uma experiência com uma senhora analfabeta, que a gente fez a linha da vida com ela, um recurso de psicologia, [...] a gente relatou em figuras, a história de vida dela. Fez um livro e quando ela abria, ela chorava. [...] Se eu tivesse talvez a formação tradicional de nutrição eu nunca pensaria em algo assim, algo tão simples que trouxe tanta felicidade para alguém [...]. Então acho que abre muito o nosso olhar [...], foi significativo e interessante”. (estudante de Nutrição)

Perceber os resultados das intervenções conjuntas no cuidado das pessoas produz sentimentos de satisfação e alegria, como expressa este depoimento: “[...] o paciente não saía de casa fazia seis meses, a gente tirou ele de casa, ele voltou a jogar dominó, que era uma coisa que ele praticava antes. [...] Fiquei muito feliz com isto” (estudante de Terapia Ocupacional). A experiência de trabalho conjunto traz possibilidades de aprender com o outro, de inventar, de criar: “a gente teve a possibilidade de ser bem criativo nas atividades, de explorar, de ter ideias [...]; podia até não funcionar, mas a possibilidade de estar ali inventando, para mim foi muito bom [...] e funcionou [...]” (estudante de Psicologia). Os estudantes experimentam a potência de ações que inventam em comum a partir, justamente, daquilo que é heterogêneo, resultado dos encontros entre estudantes em processos de formação pessoal e profissional singulares, e, portanto, diferentes; mas, também, resultado dos encontros com os sujeitos acompanhados que vivem de modo diverso e singular. Nessas experiências, vai acontecendo a aprendizagem de um modo de agir, de compreender e intervir nos problemas de saúde, de um modo de fazer clínica. Esse processo de formação, no entanto, não é simples. Na investigação realizada, emergiram diversas questões relacionadas com o conhecimento produzido que explicitam dúvidas e desafios desta formação.

Experiência e aprendizagem: o interjogo teoria e prática “[...] uma coisa importante [...] é uma articulação entre teoria e prática, uma ida a campo para observar, para atuar [...]. Também pensar de uma forma ampla, compromissada socialmente”. (docente de Psicologia)

Há uma percepção de que, no eixo TS, o conhecimento é construído de forma diferente de nos demais eixos, estabelecendo-se outro tipo de relação entre teoria e prática: “[...] o eixo [...] consegue fazer uma construção do conhecimento que é um pouco invertida daquilo que a gente tem feito [...] no eixo Biológico [...], a gente consegue muito menos ir para a realidade, depois a partir dela, construir o conhecimento”. (coordenador do eixo comum)

De fato, no campus, convivem diferentes propostas pedagógicas. A forma de construir conhecimento do eixo TS é amplamente reconhecida como um diferencial do Projeto Político Pedagógico, porém, os depoimentos expressam que há dúvidas em relação à validade do conhecimento produzido: “é utilizado mesmo? É no mundo inteiro? [...] é um sistema válido?” (coordenador do eixo comum). Para alguns, há uma ênfase excessiva nas atividades práticas em detrimento da teoria: “[...] a prática acaba tendo um destaque maior que a teoria. [...] Por um lado é positivo, por outro lado [...] em alguns momentos há uma dificuldade nessa parte mais teórica [...], pecase um pouco na teoria por focar demais a prática”. (coordenador de eixo específico)

Muitas vezes, as vivências são consideradas sem embasamento teórico, como refere esta outra coordenadora: “[...] tem conteúdo teórico? Qual? Quem é o autor de referência? Não tem teoria, é só vivência? Ou é uma vivência e aí da vivência busca a teoria?” (coordenador de eixo específico). Parece não ficar claro que as escolhas das estratégias pedagógicas do eixo já carregam diversos referenciais que dizem respeito ao processo saúde-doença, cuidado, educação, promoção e prevenção, entre outros. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013

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Outro aspecto problematizado diz respeito ao fato de a prática antecipar-se à teoria: “[...] ele vai para TS e é exigido do aluno que ele faça uma atuação com paciente, por exemplo, neurológico, com o módulo teórico que ele ainda está tendo, ele ainda não teve [...]” (docente de Fisioterapia). Essa antecipação é percebida, muitas vezes, como inadequada, e não como uma possibilidade de construção de conhecimento, o que revela uma concepção de ensino-aprendizagem na qual a prática deve sempre suceder e confirmar uma teoria. A teoria apresentada previamente, no entanto, não subsidia, necessariamente, as atividades de campo, como aponta este estudante: “[...] a gente começou a ir para a prática, a teoria ficou para trás, e bem na hora que a gente tinha que fazer essa relação, a gente já não lembrava mais a teoria [...]” (estudante de Psicologia). Há, assim, a percepção de certo descompasso entre a teoria e a prática: “[...] você vê muito bonito na teoria, e a hora que está na prática você quer resolver daquele jeito e você quer ver resultado e quando não tem aqueles recursos você fica: poxa!” (estudante de Nutrição). Podemos dizer que a teoria que se antecipa à prática, pode, inadvertidamente, produzir uma expectativa de realidade que não se confirma, gerando uma situação paradoxal de aprendizado. Há, também, a percepção de que é possível aproveitar a prática, nos módulos do eixo TS, não apenas como aplicação de uma teoria, de uma técnica, mas como exercício de pensamento, de raciocínio clínico, e também como oportunidade para a busca de subsídios e referenciais teóricos: “Mas o que você pode fazer? [...] tem que buscar algum recurso [...], porque o caso não é ele chegar lá e fazer a pessoa fazer exercício, fazer movimentação passiva, mas fazer ele pensar” (docente de Fisioterapia). Podemos dizer que o aprendizado das teorias pode funcionar dentro de uma lógica informativa ou como ferramenta de análise, produção de pensamento e ação. No primeiro caso, a teoria não necessariamente se incorpora ao sujeito. Compreender as teorias como uma caixa de ferramentas, como nos diz Deleuze (Foucault; Deleuze,1982), é considerá-las como repertório favorecedor de análise, reflexão e tomada de decisões em cada nova situação que se apresente. Em Os intelectuais e o poder, uma conversa entre Gilles Deleuze e Michel Foucault, Deleuze explicita as relações entre teoria e prática: As relações teoria-prática são muito mais parciais e fragmentárias. [...] A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro. (Foucault, Deleuze, 1982, p.69)

É preciso salientar que, em cada módulo do eixo TS, há uma preparação inicial para as atividades de campo, com discussões teórico-metodológicas que utilizam filmes, textos literários, dramatizações, entre outros, e funcionam como ferramentas para serem utilizadas nas experiências em campo. As situações vivenciadas têm grande densidade e podem ser exploradas de diversas formas. Não se trata apenas de processar as informações, de articular e sistematizar os conhecimentos disponíveis para a resolução de uma determinada situação, mas, também, de dar contorno ao que foi vivenciado, de problematizar os modos de fazer e pensar. As vivências afetam de modo diferente cada um. Neste sentido, têm grande destaque os espaços de supervisão para trabalhar com as sensações, com as perturbações e as inquietações que as experiências produziram, e, ao mesmo tempo, articular conceitos e teorias, dando oportunidade de processar o que foi vivenciado. Num interjogo entre experimentações e teorizações é que o aprendizado se efetua de modo dinâmico e processual. Nesta proposta de formação o docente tem o papel importante de apoiar, dar suporte e sentido à aprendizagem. As experiências não adequadamente trabalhadas são percebidas como algo sem propósito. É importante considerar que o docente que integra o eixo TS também se constitui na experiência. Esta proposta de formação é bastante exigente, pois implica deslocamentos importantes, do docente, do seu núcleo de saber, do seu núcleo profissional específico, além de deslocamentos do espaço tradicional da universidade, com a exposição a situações inesperadas e imprevisíveis. Implica, também, que os docentes interroguem suas práticas de cuidado e de ensino. 364

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É interessante notar, no entanto, que os estudantes reconhecem que, de alguma forma, construíram um conhecimento: “[...] a gente foi descobrindo o que a gente tinha que fazer e como fazer [...]” (estudante de Educação Física). Perceber a possibilidade de buscar e construir o conhecimento com “outros” diminui a insegurança e o receio de não saber: “Eu aprendi muito, [...] a não ter medo de não saber alguma coisa e aprender a construir com outra pessoa [...] hoje em dia o medo é muito menor do ‘não saber’” (estudante de Psicologia). A aprendizagem vai acontecendo, também, em um campo da invisibilidade: na escrita de um diário, nos espaços de supervisão, na leitura de um texto, na elaboração de um relatório, na interlocução com outros estudantes, com outros docentes, com profissionais e com as pessoas acompanhadas. Uma fala, um comentário, uma ação são expressões, pontas que emergem destes processos de aprendizagem que, continuamente, acontecem de modos diferentes para os atores envolvidos.

A constituição de um modo de atuar em saúde “[...] É o Trabalho em Saúde, o eixo fez isso com a gente, [...] só que aproximou de uma forma assim muito, carinhosa, foi bem devagar, foi desde o comecinho, porque trabalhar com saúde, trabalhar com pessoas é uma coisa muito difícil, muito complexa [...]”. (estudante de Nutrição)

Podemos dizer que a grande maioria dos estudantes relatou experiências marcantes, que mobilizaram, perturbaram, produziram pensamentos, inquietações e dúvidas. Para alguns, conhecer os territórios foi a experiência mais marcante; para outros, foi a construção de narrativas, o trabalho com os grupos ou, ainda, a elaboração e implementação de projetos terapêuticos de cuidado. Porém, não se trata de uma única experiência: “para mim assim, todos os momentos que eu vivi em TS, todas as experiências foram significativas” (estudante de Terapia Ocupacional). É no conjunto das experiências “positivas” e “negativas” que vai se realizando a aprendizagem. Para os estudantes, o sentido dessa formação vai se explicitando aos poucos, de forma processual: “[...] aos poucos as coisas foram incorporando na cabeça, não necessariamente de a gente fazendo força, mais por osmose [...]. É um processo [...], não uma única experiência [...]” (estudante de Fisioterapia). O aprendizado acontece assim, por meio de sucessivas aproximações ao mundo do trabalho que permitem adquirir certo traquejo para lidar com as pessoas e com a complexidade envolvida no trabalho em saúde. Para a maioria dos estudantes, no entanto, a formação propiciada pelo eixo só é percebida como valiosa no momento final da formação: “[...] só hoje percebo que [...] a minha formação [sem o eixo TS] teria sido diferente e não tão rica quanto foi” (estudante de Terapia Ocupacional). É no momento em que estão nos estágios, em contato com diversos profissionais e, também, com estudantes de outras universidades, que percebem que tiveram uma prática diferenciada e que já estavam, de certa forma, “estagiando” nas atividades que desenvolviam no eixo. Esses estudantes consideram diferenciada a capacidade que possuem de “[...] ver o contexto em que o paciente está inserido, ver as suas dificuldades, ver as suas limitações. [...] A gente pôde fazer isso na prática pela diversidade de população que a gente atendeu [...]” (estudante de Educação Física). Também consideram diferenciada sua capacidade de escutar e valorizar a história de vida das pessoas: “[...] a gente consegue dar uma atenção maior aos pacientes. [...] No meu grupo de estágio todos os meus pacientes [...] falam: “vocês são diferentes daqueles que me atendiam” – porque a gente está sempre ouvindo [...]. Apesar de a gente não ser da psico a gente conversa com os pacientes [...]”. (estudante de Fisioterapia)

Bastante significativa é a fala desse estudante de fisioterapia ao apontar que, apesar de não ser estudante de psicologia, consegue conversar e ouvir os pacientes. Podemos considerar este um diferencial dessa formação, pois, nas práticas predominantes, os profissionais oferecem pouco espaço para a escuta e suas intervenções são centradas na utilização do que Merhy (2002) denomina de tecnologias duras e leve-duras. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013

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A valorização do contexto e da escuta como importante dimensão para compreender as necessidades de atenção e direcionar a intervenção profissional foi ressaltada pelos estudantes e, também, pelos docentes e coordenadores de cursos: “[...] Eu tenho alguns relatos de alunos [...] de como foi importante ter treinado a escuta, ter percebido que é muito mais complexa a vida do indivíduo [...] que eu tenho que considerar todas as variáveis, todo contexto de vida e tal [...]”. (coordenador de eixo específico)

Eles reconhecem que as diversas experiências nos territórios, nos domicílios, o contato com situações difíceis e com pessoas em sofrimento resultaram num amadurecimento profissional e pessoal. “[...] no quarto ano [...] sinto que eles estão extremamente maduros para essa proximidade, [...] para poder colher a história, para conduzir a entrevista [...] vejo que a TS não contribui só para a formação profissional [...], contribui também para o aspecto pessoal [...]”. (docente de Terapia Ocupacional)

Também os profissionais das equipes destacam que os estudantes chegam aos estágios mais preparados “[...] eles tem muita desenvoltura e não tem medo de conversar com os pacientes [...]”. (enfermeira do PSF) A valorização da formação propiciada pelo eixo, por parte significativa dos docentes, também ocorreu no momento dos estágios, tanto pelo retorno dos próprios estudantes quanto dos preceptores de serviços, que consideravam que os alunos possuíam habilidades diferenciadas: maturidade, sensibilidade, flexibilidade, capacidade de observação e de escuta, responsabilização e reflexão crítica. É interessante destacar que há uma concordância de que o eixo contribui para formar profissionais que consideram o sujeito, seu contexto social, cultural e político; no entanto, essas questões parecem não ser suficientes: “[...] era só esse o objetivo? Com um trabalho humanizado, com um cuidado diferente, uma visão diferente, era essa a proposta? Então tudo bem, então acho que 90% da gente conseguiu. Agora eu não sei se era só isso. Era só isso para aprender?”. (estudante de Fisioterapia)

O docente utilizou também uma expressão muito próxima deste estudante: “Mas será que é só isso que o Eixo TS tem para oferecer? [...], essa experiência que o aluno tem, no momento em que chega para o estágio ele está com muito mais desenvoltura, ele consegue se aproximar de uma forma muito mais tranquila do paciente. [...] – esse é um ponto muito forte da TS em que todos concordam – mas eu fico me questionando se realmente a TS deveria ser só isso [...]”. (docente de Fisioterapia)

Podemos dizer que os questionamentos explicitados nos depoimentos acima expressam uma concepção de que essas dimensões não são consideradas fundamentais para uma prática profissional resolutiva e de qualidade. Seriam, assim, aspectos relacionados com “certa humanização” das práticas, mas não necessariamente integrantes do trabalho em saúde, inerentes à prática profissional. No entanto, possibilitar a incorporação dessas dimensões na formação tem sido uma das grandes questões dos movimentos de mudanças na formação dos profissionais de saúde (Ceccim, Carvalho, 2005; Feuerwerker, 2003). Outros depoimentos indicam que foi incorporado um modo de pensar mais amplo: “um paciente, seja de saúde mental, seja na área física, quando eu olho para ele, não olho para a doença dele, [...] procuro pensar mais amplamente, assim não vamos só trabalhar a

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questão clínica, vamos conversar [...] sobre os desejos dele [...]”. (estudante de Terapia Ocupacional)

Eles destacam, como uma importante contribuição das atividades do eixo, a possibilidade de compreenderem os problemas de saúde de forma mais complexa: “me lembro bastante [...] da discussão sobre o SUS justamente abordando esse aspecto da integralidade [...] de você não considerar [...] só um braço ou uma perna quebrada, e de você perceber ele como um todo, que ele faz parte de um processo, que está inserido numa sociedade e até que ponto [...] está interferindo na relação saúde/doença”. (estudante de Nutrição)

O reconhecimento dessa proposta é expresso de forma bastante significativa por esta estudante: “Eu via o paciente, principalmente em saúde física [...], não me interessava a vida dele dali para fora [...]. O interessante é que eu me percebo como militante do TS, antes eu simplesmente repudiava o TS. Eu comecei a perceber que eu era militante pelo que ele me mostrou, principalmente por ter conhecido uma forma diferenciada, num atendimento [...] para além da visão integral eu vi uma forma de fazer [...]”. (estudante de Terapia Ocupacional)

O repúdio inicial ao eixo transforma-se a ponto de o estudante tornar-se um militante de um modo de fazer que foi aprendido: “E o que eu percebo agora no estágio, que o meu esforço maior às vezes é tentar trazer isso que eu aprendi com o TS, porque é o que a gente não vê aí fora [...]” (estudante de Terapia Ocupacional). Esse modo de fazer que aprenderam tensiona, muitas vezes, com o modo predominante de fazer dos profissionais que estão nos serviços, com a maneira como está organizado o processo de trabalho nas unidades onde estagiam: “[...] no Eixo TS a gente realmente aprende a se interessar pelo outro, se interessar de verdade, [...] colocando importância naquilo que eles estão trazendo para você e na prática você vê [...]: dá um tempo muito pequeno para cada paciente [...] você tem que focar, mas você aprendeu, que tem coisas a perguntar, então é uma coisa bem interessante”. (estudante de Nutrição).

Desta forma, problematizam: “[...] como lidar com um mundo diferente? [...] as pessoas não conseguem identificar isso [...], olham torto para você” (estudante de Fisioterapia). Os depoimentos indicam que a formação do eixo propicia certo protagonismo dos estudantes, que se percebem com a tarefa de problematizar as práticas predominantes, reducionistas, e se percebem como responsáveis por defender uma determinada forma de produzir atenção e cuidado que tanto considere quem é o sujeito acompanhado, seus valores, seus desejos, suas possibilidades, quanto considere a necessidade de um trabalho conjunto com as diversas áreas profissionais: “[...] Acho que a gente tem que estar preparado para tentar, para inovar [...], demonstrar que existe outra proposta de trabalho, que busca escutar, que busca discutir entre todos os profissionais, e a gente inserir isso lá fora, no mercado de trabalho, não chegar e já querer encontrar tudo pronto o que a gente aprendeu, mas a gente construir isso”. (estudante de Nutrição)

Os estudantes sentem-se, assim, responsáveis por militarem, por construírem possibilidades de um trabalho interprofissional:

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“[...] por muitos anos ainda vamos ter que militar muito e quebrar muito a cabeça, [...]. Eu ouço coisas que para um trabalho em equipe, inter, tem que ter um líder, um médico tem que ser o líder, a gente vai ter que trabalhar muito [...] A gente tem que ir plantando essa semente para ver se cresce”. (estudante de Terapia Ocupacional)

Podemos dizer que os diversos depoimentos indicam que foi incorporado um modo de pensar, de compreender as questões de saúde e um modo de agir, abordar e intervir nos problemas que é retomado em outras situações de trabalho: “[...] isso o TS me ajudou bastante, tentar entender para você poder intervir, achar um caminho, você vai quebrando a cabeça [...] aí começa a pensar: qual caminho que eu vou tentar fazer?” (estudante de Educação Física). Ou ainda: “agora na prática dos estágios [...] a gente sempre acaba lembrando do TS [...] Eu já sabia, eu já fiz essa atividade e lá deu certo, ou essa atividade no TS não deu muito certo. Faz de outro jeito”. (estudante de Psicologia). As falas explicitam que as experiências propiciadas pelas estratégias de formação do eixo contribuíram para a constituição do que seria o comum das diversas áreas profissionais: “[...] praticamente tudo assim, [...] a forma como eu me constituí profissionalmente, [...] a forma como eu vou enxergar essa equipe de saúde, os profissionais e a população, a forma de atender, [...] de enxergar o indivíduo, a população [...]”. (estudante de Terapia Ocupacional)

Considerações finais No percurso realizado, pensamos ter apontado quanto esta experiência de formação produziu impactos, deslocamentos e ressonâncias em diferentes graus de intensidade. Observamos uma multiplicidade de vozes que explicitaram a complexidade e os vários efeitos proporcionados por essa formação. A produção da diferença nos modos de pensar, sentir e agir transpareceu nos depoimentos, e essas perturbações produziam, em cada um e no coletivo, respostas singulares atravessadas por toda ordem de elementos: imaginários, aberturas e fechamentos, graus de porosidade, disposições, impedimentos, resistências e potências. A investigação desta experiência, ao ser apresentada e discutida com os diferentes atores envolvidos, contribuiu para ampliar sua sustentabilidade e indicou a necessidade de novos estudos teórico-conceituais relacionados à formação interprofissional na rede de serviços e às tecnologias de ensino e cuidado que temos experienciado. Não podemos deixar de considerar, finalmente, que uma proposta de formação que se produz nos encontros, com diferenças, com movimentos inusitados, visíveis e invisíveis, objetivos e subjetivos, passíveis ou não de captação, possa também sofrer limitações em seu propósito. Essas dificuldades, caracterizadas muitas vezes pela rapidez e fluidez do mundo contemporâneo, fazem-nos pensar quanto um processo de formação que incorpora as reiteradas experiências para promover a aprendizagem carrega, também, consigo a necessidade de incorporar gestos de interrupção para parar, pensar, suspender o automatismo da ação. Fazem-nos pensar, também, que um processo de formação crítico coloca a exigência de se fazerem opções e escolhas entre paradigmas, reconhecendo os riscos implicados nessa ação. A abertura ao desconhecido, ao novo, ao inesperado, ao incontrolável leva os sujeitos da experiência a correrem o risco de não acertarem, de perderem o controle, perderem o poder de saber aonde se chegará. Essa abertura pode significar, contudo, a possibilidade de criar e recriar sentidos e significados acerca de nossas experiências, dar espaços para as incertezas e para novos começos.

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CAPOZZOLO, A.A. et al.

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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BONDÍA, J.L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ. n.19, p.20-8, 2002. Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/ RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2011. CAMARGO JÚNIOR, K.R. (Ir)racionalidade médica: os paradoxos da clínica. Physis, v.2, n.1, p.203-28, 1992. CAPOZZOLO, A. A. et al. Formação para o trabalho em saúde: a experiência em implantação nos cursos de graduação - educação física, fisioterapia, nutrição, psicologia e terapia ocupacional da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. Santos, 2011. (Relatório de Pesquisa). CECCIM, R.B.; CAPOZZOLO, A.A. Educação dos profissionais de saúde: prática clínica como resistência e criação. In: MARINS, J.J.N.; LAMPERT, J.; CORREA, G.A. (Orgs.). Transformação da educação médica. São Paulo: Hucitec, 2004. p.346-90. CECCIM, R.B.; CARVALHO, Y.M. Ensino da saúde como projeto da integralidade: a educação dos profissionais de saúde no SUS. In: PINHEIRO, R.; CECCIM, R.B.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco, 2005. p.69-92. FEUERWERKER, L.C.M. Educação dos profissionais de saúde hoje – problemas, desafios, perspectivas, e as propostas do Ministério da Saúde. Rev. ABENO, v.3, n.1, p.24-7, 2003. FEUERWERKER, L.C.M.; SENA, R.R. Contribuição ao movimento de mudança na formação profissional em saúde: uma avaliação das experiências UNI. Interface (Botucatu), v.6, n.10, p.37-50, 2002. FOUCAULT, M.; DELEUZE, G. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In: FOUCAULT, M. (Org.). Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 9.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p.69-78. KASTRUP, V. A cognição contemporânea e a aprendizagem inventiva. In: KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. (Orgs.). Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 93-112. ______. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educ. Soc., v.26, n.93, p.1273-88, 2005. MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. MERHY, E.E.; FEUERWERKER, L.C.M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: MANDARINO, A.C.S.; GOMBERG, E. (Orgs.). Leituras de novas tecnologias e saúde. São Cristóvão: Editora UFS, 2009. p.29-74. PASSOS, E.; BENEVIDES, R.B. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicol. Teor. Pesqui., v.16, n.1, p.71-9, 2000. PINHEIRO, R.; SILVA JUNIOR, A.; PONTES, A.L.M. Ensino da Saúde e a rede de cuidados nas experiências de ensino e aprendizagem. In: PINHEIRO, R.; CECCIM, R.B.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Ensinar saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área da saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesc, Abrasco, 2006. p.251-74.

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EXPERIÊNCIA, PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E FORMAÇÃO ...

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CAPOZZOLO, A.A. et al. Experiencia, producción de conocimiento y formación en salud. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.357-70, abr./jun. 2013. Este artículo presenta parte de los resultados de una investigación sobre la experiencia de formación interprofesional en el eje de Trabajo en Salud en la Unifesp – Campus Baixada Santista, Santos Brasil. Las estrategias de enseñanza de este eje tienen la perspectiva de exponer a los estudiantes, desde el primer año de la graduación, a experiencias de intervención de cuidado que posibilitan el ejercicio crítico de las dimensiones involucradas en el trabajo en salud. El objetivo del trabajo fue analizar y establecer estrategias de acompañamiento de esa formación. Se utilizaron diferentes instrumentos de colecta de datos, tales como grupos focales y entrevistas semiestructuradas, y los análisis, además de presentarlos a los sujetos involucrados, se discutieron con ellos. Este artículo plantea las cuestiones relacionadas a la temática de la experiencia y producción de conocimiento y sus resultados indican que esta formación ha contribuido para la construcción de un modo de actuar de los futuros profesionales que considera la complejidad del proceso salud-enfermedad-cuidado.

Palabras clave: Trabajo en salud. Educación en salud. Formación interprofesional. Experiencia. Recebido em 10/08/12. Aprovado em 12/03/13.

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Pensando extensão universitária como campo de formação em saúde: uma experiência na Universidade Federal Fluminense, Brasil* Antonio Fernando Lyra da Silva1 Carlos Dimas Martins Ribeiro2 Aluísio Gomes da Silva Júnior3

SILVA, A.F.L.; RIBEIRO, C.D.M.; SILVA JÚNIOR, A.G. Thinking of university extension as a health education field: an experience at the Fluminense Federal University, Brazil. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.371-84, abr./jun. 2013. This paper presents a reflection on extension practices within healthcare through a university extension program developed at the Fluminense Federal University, Brazil. From the words of and observations on teachers, students, health professionals and caregivers, the concepts of extension and training were analyzed. The study was based on comparing these practices during the educational process, with reference, academically, to the guidelines for the university extension program (FORPROEX) along three lines: comprehensive healthcare; the educational process as a dialogical relationship; and the training process as a relationship between theory and practice. The study revealed that there was potential for extension of healthcare training, i.e. for producing comprehensive care, provided that there is academic linkage and that attendance is inseparable from teaching-researchextension. Extension is a space for experiences and for comparing theory with practice within dialogical, multidisciplinary and socially committed dynamics.

Keywords: University extension. Health education. Comprehensive healthcare.

Este trabalho representa uma reflexão sobre práticas extensionistas no campo da saúde em um programa de extensão universitária desenvolvido na Universidade Federal Fluminense, Brasil. A partir das falas/observações de docentes, alunos, profissionais da saúde e cuidadores, foram analisadas as concepções de extensão e formação. O trabalho fundamentou-se no confronto dessas práticas no processo formativo e referenciou-se, academicamente, às diretrizes da extensão universitária/ FORPROEX, a partir de três eixos: cuidado integral em saúde, processo formativo como relação dialógica, e processo formativo como relação práticateoria. O estudo revelou o potencial extensionista na formação em saúde, isto é, produzir cuidado integral, desde que haja articulação acadêmica e se concilie assistência à indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão; extensão é espaço de vivências e confrontos entre teoria e prática numa dinâmica dialógica, multiprofissional e socialmente compromissada.

Palavras-chave: Extensão universitária. Formação em saúde. Cuidado integral em saúde.

Elaborado com base em Silva (2012); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina, Hospital Universitário Antônio Pedro, Universidade Federal Fluminense. 1-3 Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense. Av. Marquês do Paraná, 303, 3° andar (Prédio Anexo ao HUAP), Centro. Niterói, RJ, Brasil. 24.030-210. antoniolyra@id.uff.br

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PENSANDO EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA ...

Introdução Na década de 1980, a Universidade Pública Brasileira reconheceu a sociedade como detentora de saberes, e, em 1987, com a criação do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX), discutiu novo paradigma de relacionamento com a sociedade (Nogueira, 2000). Definiu-se extensão universitária como “[...] processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade” (FORPROEX, 2001, p.29). Propôs-se nova práxis educativa: indissociabilidade ensinopesquisa-extensão e currículo flexível e transformador, apoiado em metodologias de ensinoaprendizagem que problematizam e produzem saberes, nos confrontos com as realidades. Definiram-se diretrizes para a Extensão Universitária: Impacto e Transformação; Interação Dialógica; Interdisciplinaridade e Indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão. Entende-se extensão universitária como ação integrante do processo formativo acadêmico, que ocorre por meio de vivências que provocam trocas e relações numa realidade social. É espaço de reflexão crítica para repensar ações acadêmicas frente às demandas sociais e à formação de profissionais protagonistas de transformações sociais (FORPROEX, 2006). A extensão universitária brasileira reconhece variadas concepções teórico-ideológicas, que refletem modelos de universidades em diferentes contextos históricos. Jezine (2004) as classificou: assistencialista, acadêmica e mercantilista. Nelas alteram-se modos de articulação universidade x sociedade, que influenciam práticas acadêmicas e estruturas curriculares. Ora concede-se à extensão maior ou menor cunho acadêmico, ora é abordada como braço da universidade para atender demandas assistencialistas ou mercantilistas. A concepção assistencialista predominou entre as décadas de 1960 e 1970. A relação universidade x sociedade caracteriza-se por ações que suprem demandas sociais, mas não se articulam com o ensino e a pesquisa, e há transmissão de conhecimentos através de cursos e prestação de serviços (Nogueira, 2001). A concepção acadêmica forjou-se na década de 1980, com as propostas de redemocratização do Brasil, e está presente até hoje. As suas raízes remontam ao Movimento Estudantil do início da década de 1960 e consolidou-se com a criação do FORPROEX em 1987. A prática extensionista passou a integrar o processo formativo: articular-se ao ensino e pesquisa, possibilitar convivências interativas dialógicas entre diferentes sujeitos e confrontar saberes (teoria e prática). A concepção mercantilista aflora na década de 1990 e chega à atualidade, nela não se vislumbram espaços de articulação com ensino e pesquisa. Trata-se de fomentar a prestação de serviços, atender demandas do capital e obter recursos privados para as universidades (Nogueira, 2001). Desde a segunda metade da década de 1980, a Universidade Federal Fluminense (UFF) adota modelo de gestão da extensão, que reconhece a política extensionista, em consonância com a política nacional do FORPROEX, isto é, referenciada à sua concepção acadêmica. O presente estudo motivou-se pelas vivências em campo nas Visitas Técnicas de Extensão, enquanto gestor acadêmico da extensão da UFF, ao se vislumbrar a possibilidade de se detectar quanto, nesta universidade, a prática extensionista tem de natureza acadêmica. Pesquisaram-se ações referenciadas à política extensionista da UFF e às diretrizes do FORPROEX, para observar se elas identificavam-se com a concepção acadêmica extensionista. Delimitou-se o tema pesquisado ao âmbito da formação para o cuidado integral em saúde. Procedeu-se a um levantamento preliminar com base nas informações dos relatórios das ações extensionistas e documentos normativos da PROEX, além dos depoimentos de extensionistas, baseados nas experiências vivenciadas pelo pesquisador, enquanto coordenador do projeto de extensão Visitas Técnicas de Extensão. Assim, selecionou-se, para o estudo, o Programa Enfermagem na Atenção à Saúde do Idoso e seus Cuidadores (EASIC), vinculado à Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa/UFF, para analisá-lo em relação ao desenvolvimento de práticas orientadas para a concepção acadêmica extensionista. A problematização levou o objeto da pesquisa a centralizar-se num programa extensionista, cujas experiências de ensino-aprendizagem no campo da formação em saúde, aparentemente, referenciavam-se academicamente às diretrizes da extensão e, mostravam-se, potencialmente, 372

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produtoras de novos conhecimentos relativos às práticas do cuidado integral. E, ainda, apresentava certo grau de amadurecimento quanto ao relacionamento com a sociedade. Observou-se que, a princípio, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão norteava as atividades do EASIC nas articulações com seus respectivos projetos, e que a participação de diferentes sujeitos nas atividades permitiria analisar se as interações processadas naquele contexto seriam dialógicas. A interdisciplinaridade, explicitada na medida em que o Programa desenvolvia experiências que articulavam diferentes classes profissionais de saúde, permitiria a análise de aspectos interdisciplinares e relações multiprofissionais em práticas de atenção à saúde. Finalmente, evidenciavam-se transformações da realidade e esperava-se identificá-las no âmbito de abrangência do Programa e, então, perceber como ocorriam os impactos e transformações sociais.

Metodologia

4 Para Merhy (2002, p.94), as tecnologias leves encontram-se “implicadas com a produção das relações entre dois sujeitos”.

Nesta investigação, optou-se por lançar mão do estudo de caso como estratégia de pesquisa. Segundo Yin (2005, p.32), ”[...] estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”. Na abordagem metodológica adotada, definiu-se a organização dos dados por categorização temática e a interpretação deles focada em três eixos que nortearam a pesquisa, a partir de vivências nos espaços extensionistas, onde experiências são problematizadas. O primeiro foco da pesquisa relacionou-se ao cuidado integral em saúde, e os outros dois ao processo de formação em saúde, a partir dos quais se definiram os eixos norteadores: (i) práticas de cuidado integral e centrado no usuário como sujeito autônomo; (ii) processo formativo como relação dialógica - comunicação crítica entre sujeitos detentores de diferentes saberes; e (iii) processo formativo como relação entre prática e teoria e produção de conhecimentos. O estudo, ao perpassar os diferentes eixos, fundamentou-se teoricamente em vários autores. Aqueles que referenciam a dimensão acadêmica da extensão sustentaram as discussões no campo extensionista, dentre os quais citamos: Nogueira (2001, 2000), Jezine (2004) e Santos (2010). No campo da formação em saúde, recorreu-se a autores como: Freire (2008a, 2008b, 2005, 1977), Merhy (2002), Barros (2006), Demo (2009a, 2009b, 2008) e Saippa-Oliveira, Koifman e Pontes (2010), que o contextualizam nas relações dialógicas, trocas de saberes e confrontos dialéticos da teoria e prática, marcos diferenciais da formação acadêmica de natureza transformadora. Já as discussões no campo do cuidado integral fundamentaram-se em autores como: Merhy (2002), Barros (2006), Silva Junior, Pontes e Henriques (2006) e Saippa-Oliveira, Koifman e Pontes (2010), que o contextualizam nas relações dialógicas e na centralidade do outro. O primeiro eixo remete-se à questão da subjetividade na produção do cuidado integral, que se pretende comandada pelas tecnologias leves4 (Merhy, 2002), ou seja, centrada nas relações. Espera-se que a autonomia do usuário ocorra pelas condições de sujeito ativo. No segundo, a dialogicidade, como essência da educação libertadora, realiza-se na medida em que o homem “pronuncia” o mundo pela palavra (Freire, 2005). O diálogo é processo dialético-problematizador, logo a relação dialógica entre sujeitos possibilita reconhecer e aceitar diferentes saberes (acadêmico e não formal). Freire (2005) salienta que o diálogo é fator central na comunicação entre COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.371-84, abr./jun. 2013

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os homens, e que a transformação permanente da realidade (mundo) ocorre pelo pensar crítico. Para ele, o processo formativo é mediatizado pelo mundo e ocorre num contexto que constantemente se transforma. Por fim, o terceiro eixo busca perceber, no processo formativo, a reflexão crítica frente à realidade, pelo confronto teoria x prática, e compreender a articulação extensão e pesquisa. Esta, segundo Demo (2009b), enquanto princípio educativo, questiona sistematicamente, de forma crítica e criativa, a realidade. E, enquanto princípio científico, apresenta instrumentos para produzir conhecimentos; tal conjugação se materializa na relação teoria x prática (Demo, 2009b). Para Freire (2008b), na problematização, ensaiam-se os primeiros passos para se produzirem conhecimentos e a elaboração do novo faz-se pela práxis; e, ainda, a práxis ocorre pelo “ato ação-reflexão” (Freire, 2008a, p.30). Considerando a natureza dos pressupostos teóricos e a natureza relacional e dialógica da extensão, a análise do caso baseou-se nos três eixos, porquanto a pesquisa qualitativa mostrou-se ser a modalidade investigativa adequada. A pesquisa integrou diferentes participantes do EASIC: idosos (maioria mulheres acima de 65 anos), respectivos cuidadores (nomeados “C”) e executores (docentes, discentes e profissionais da saúde (PS), nomeados “D”, “E” e “T”, respectivamente), visando obter informações acerca das singularidades nas relações e vivências. Os instrumentos de investigação e coleta de dados utilizados foram: análise documental, diário de campo, onde foram registradas as observações, e entrevistas, que se basearam em questões fundamentadas nos eixos norteadores e referenciadas às categorias temáticas de análise. Realizaram-se 15 entrevistas com representantes das diferentes categorias que integram o EASIC: três docentes enfermeiros da Escola de Enfermagem/UFF, quatro discentes da graduação do curso de enfermagem/ UFF (bolsistas de extensão), quatro profissionais da saúde (enfermeiras/UFF) e quatro cuidadores. O critério para exclusão das entrevistas era ser idoso portador de demência. Entretanto, nenhum idoso foi entrevistado devido às dificuldades de agendamento, considerando as condições de saúde à época. Na análise dos dados, utilizou-se a Análise Temática, que se caracteriza como modalidade de Análise de Conteúdo, na qual a categorização temática ocorre pelos significados das mensagens. O critério de recorte para obtenção dos temas na análise de conteúdo é de ordem semântica, pois esta se fundamenta na compreensão das falas e das significações (Bardin, 2010). As categorias temáticas definidas foram: Extensão Universitária; Cuidado Integral; Formação/Ensino; Pesquisa; Diálogos/Trocas de Saberes; Teoria e Prática; Produção de Conhecimentos.

Discussões e resultados O EASIC é um programa extensionista na área da saúde, que tem os seguintes objetivos: (a) desenvolver práticas de atenção primária em saúde, enfocando a educação em saúde com idosos saudáveis e/ou com doenças crônicas degenerativas; (b) apoiar e orientar cuidadores; (c) dar assistência às comunidades nas quais os idosos estão inseridos, e promover a participação deles e dos cuidadores em ações de promoção à saúde, visando o autocuidado. Quando ingressam no EASIC, os idosos participam de oficinas e consultas de enfermagem. Após a primeira avaliação, são direcionados às consultas específicas, recebem visitas domiciliares ou são encaminhados à rede pública de saúde. As vivências dos discentes (4° período da Enfermagem/UFF) no EASIC são reconhecidas, no currículo, como campo de ensino, além de participarem de pesquisas e elaborações de artigos científicos. Há incentivo à mobilidade dos estudantes entre as ações dos diferentes projetos que compõem o EASIC, visando estabelecer espaços de convivências e relações multiprofissionais harmônicas, condição sine qua non para se produzir cuidado integral. Os resultados e discussões da pesquisa são apresentados considerando os seus eixos norteadores, a partir das categorias analíticas. Contudo, algumas categorias, pela proximidade temática e melhor referenciamento aos eixos, foram agrupadas em virtude da proximidade das falas dos entrevistados. Assim, ocorreu com Diálogos/Trocas de Saberes; Teoria e Prática e Produção de Conhecimentos, bem como com Formação/Ensino e Pesquisa. Este primeiro grupamento de três categorias propiciou 374

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discussões conjuntas nos âmbitos dos segundo e terceiro eixos. O segundo grupamento focou as discussões no âmbito do terceiro eixo. Além disso, tal arranjo metodológico direcionou, notadamente, a discussão da categoria cuidado integral ao primeiro eixo, e da categoria extensão ao segundo eixo.

1° eixo norteador: práticas de cuidado integral e centrado no usuário como sujeito autônomo Os docentes demonstraram visões próximas ao definirem cuidado integral e suas implicações relacionais. Para eles, cuidar não é a simples aplicação de técnicas, mas relacionar-se com o outro e abrir-se ao diálogo, pois envolve compreender e sentir o outro. É ação que suscita sensibilidade, respeito e capacidade perceptiva das necessidades alheias. Comentaram que diálogos e escutas entrelaçam conhecimentos acadêmicos e não acadêmicos, e que os entendimentos dos contextos de vida e das articulações dos diferentes saberes dependem das escutas. Pois estas permitem identificar valores, crenças e o “mundo” do outro. Enfatizaram a conexão entre cuidar, dialogar e produzir conhecimentos no contexto formativo extensionista. D3, quando questionado sobre experiências adquiridas, comentou: “[...] os nossos idosos [...] trazem muitos ensinamentos para a gente. Acho muito significativo”. E sobre cuidado integral e diálogo e a importância para a formação em saúde, disse: “a formação ela não é puramente técnica [...] implica em, é aprender a lidar com o ser humano, né?”. Para os docentes, na prática extensionista, promover cuidado integral estimula a autonomia dos sujeitos. D2 confirmou que, no EASIC, estimula-se o autocuidado, enquanto referencial para autonomia. Embora se perceba que a conexão entre ambos nas ações extensionistas de caráter formativo não seja fácil, acredita-se possível, pois cada sujeito objetiva “a construção livre e solidária de uma vida que se quer feliz” (Ayres, 2004, p.86). Os discentes destacaram a relevância dos diálogos para o autocuidado e autonomia dos sujeitos. Já os cuidadores não incentivam o autocuidado, mas reconhecem a importância dos saberes multiprofissionais e diálogos para se aprender a partir das diferenças. Os docentes aproximam a extensão do ato de cuidar, pois ambos potencializam relações centrais na formação em saúde. Tanto que Merhy (2002, p.49) alerta para se evitar que o trabalhador em saúde seja capturado pela lógica do trabalho morto, aquele “[...] expresso nos equipamentos e nos saberes tecnológicos estruturados [...]”. As ações de assistência à saúde são avaliadas a partir do cuidado integral “[...] como uma categoria analítica para interrogar os modos como são produzidas as ações de saúde [...]” (Silva Junior, Pontes, Henriques, 2006, p.93). Assim, percebeu-se a preocupação em fundamentar-se a prática do cuidado integral em bases relacionais, para suscitar sensibilidade e se evitar passividade, e, ainda, a extensão como assistência à saúde centrada no usuário, por focar-se nas histórias de vidas. Observou-se que as práticas formativas no EASIC focam-se no cuidado integral, e que os discentes possuem visões semelhantes às dos docentes quanto ao cuidar. Este ato envolve: relações, diálogos, sentimentos, conhecimentos técnicos e de contextos de vida, escutas, compreensão do outro, dentre outros. Os discentes reafirmaram que produzir cuidado integral depende dos conhecimentos técnicos, embora envolva subjetividades. E2, questionado se a melhoria da saúde dos idosos vinculava-se ao Programa, afirmou que “[...] a gente vê isso é na felicidade dos idosos e na melhora [...]”, e apontou, como resultado do cuidar na ação extensionista, a “felicidade”. Os discentes indicaram os diálogos multiprofissionais extensionistas como fundamentais na formação em saúde. Precisa-se evitar que dificuldades relacionais sobreponham um profissional a outro, alerta Barros (2006, p.137): “o que temos observado com mais frequência na prática do cuidado em saúde é o aprisionamento dos saberes [...]”. Portanto, se nas práticas de cuidado integral fundamentadas em diálogos o cuidar tem o lado racional (técnicas, teorias) e o sensitivo (emoções, amor), as ações extensionistas na formação em saúde favorecem o entendimento da doença e a compreensão do sujeito. Pois ocorrem questionamentos de práticas e vivências, devido ao confronto teoria x prática, que provocam reflexões acerca de valores, costumes e crenças. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.371-84, abr./jun. 2013

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Os cuidadores estabeleceram conexões entre cuidado integral e momentos de lazer (lanches/ festinhas), pois os idosos estão descontraídos nessas ocasiões, tornando-as propícias ao dialogar e cuidar. Tal não ocorreu com docentes nem discentes. C1 relatou a importância do lazer para a harmonia familiar, e não só para o cuidar: “fico dentro de casa, quase não saia. Então, aqui pra mim tá sendo assim, tipo assim, área de lazer”. Ao identificar o EASIC como “área de lazer”, considerou-o espaço de convivência e integração social. Os PS apresentaram visões semelhantes aos docentes, discentes e cuidadores no tocante a aspectos fundamentais para produzir cuidado integral e compreender o outro: diálogos, subjetividades, conhecimentos técnicos e de contextos de vida, escutas e multidisciplinaridade. T2 comentou que, para cuidar, a equipe multiprofissional precisa ser harmônica e relacionar-se dialogicamente. Paradoxalmente, destacou ocasiões em que o trabalho em saúde é fonte de sofrimento. Ocorre que, se, na extensão, as relações de trabalho forem dialógicas, os estudantes vivenciarão experiências de natureza subjetiva e afetiva, que só as práticas possibilitam. Eles veem o espaço familiar como ímpar para produzir cuidado integral, quando há relações amistosas entre os membros. Docentes e discentes apontaram a consulta de enfermagem como atividade de intensas interações (diálogos). Para D2, é a oportunidade de ouvir e conhecer o contexto de vida do idoso, contrapondo-se ao atendimento na rede pública. E3 comentou que a centralidade das consultas encontra-se nos sujeitos, e não nas doenças. Ao se entender a extensão como espaço relacional e dialógico, vislumbra-se, nessas consultas, importante instrumental para a formação em saúde; tanto que autores como Saippa-Oliveira, Koifman e Pontes (2010, p.144-5) valorizam o diálogo: “[...] não entendido apenas como comportamento verbal, mas em sentido mais abrangente, o de encontro, de comunicação [...] na qual o outro é visto em sua totalidade [...]”. Os PS consideram, tal consulta, importante etapa da produção do cuidado integral, e a valorizam no processo de trabalho em saúde, sobretudo, por facilitar conhecer profundamente o outro. Observou-se que o cuidado integral requer continuidade, pois cria vínculos, e, na extensão, significa compromisso social da universidade. Embora não seja responsabilidade do espaço extensionista, nele ocorre assistência à saúde. Portanto, torna-se desafiante, para a extensão, não permitir a descontinuidade da assistência-cuidado. Os PS destacaram que a assistência à saúde nas práticas extensionistas devem apostar nos diálogos multiprofissionais e envolver familiares, pois reconhecem que, para produzir cuidado integral, não há supremacia técnica, e que “a multiprofissionalidade no cuidado em saúde é, sem dúvida, uma das vias perseguidas para a efetiva prática da integralidade” (Barros, 2006, p.132). O EASIC estimula a formação em saúde focada na cidadania, nos aspectos político-sociais e na valorização do “modelo usuário-centrado” (Saippa-Oliveira, Koifman, Pontes, 2010, p.145), pois incentiva a aprendizagem questionadora, a partir dos diálogos multiprofissionais, decorrente da educação problematizadora, que é mediatizada pelo mundo por intermédio do diálogo (Freire, 2005).

2° eixo norteador: processo formativo como relação dialógica – comunicação crítica entre sujeitos detentores de diferentes saberes A análise das falas, ao destacar o diálogo, evidencia que a comunicação entre os homens ocorre pelos diálogos, e que o cuidado integral necessita ser comunicado, porquanto relação entre sujeitos. Freire (2005, p.91) enfatiza que o diálogo “é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação”, destacando que o diálogo transporta vivências entre os sujeitos. Quando os homens se comunicam, são sujeitos ativos, o que implica reciprocidade, isto é, diálogo (Freire, 1977). O autor defende a prática extensionista como comunicação, porquanto relação dialógica, logo, envolve sujeitos coparticipativos. O diálogo permeia a formação em saúde, pois o trabalho em saúde é essencialmente relacional (Merhy, 2002). Os docentes afirmaram que todos se relacionam dialogicamente: conhecendo e aprendendo com o outro e refletindo criticamente. Dialogar significa movimentar o mundo das pessoas: provocar mudanças, aprender a ouvir, e não só falar, e, ainda, compreender o outro. As implicações 376

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subjetivas nas vivências extensionistas ditam as relações multiprofissionais e determinam a dinâmica da produção de conhecimentos, que se refletem na produção do cuidado integral. O diálogo se inicia com a escuta e consolida-se por pontes, que surgem das convergências advindas nas diferenças, e torna-se instrumento para convivências harmônicas diante das singularidades humanas. O que garante essa convergência é poder-se refletir criticamente acerca de valores comuns e fundamentais. Os docentes apresentaram visões semelhantes acerca da extensão: serviço para atendimento à sociedade; campo formativo que articula ensino e pesquisa; campo formativo como espaço de vivências de diferentes práticas; espaço questionador, reflexões e confrontos teoria x prática; canal articulador entre universidade e sociedade, e exercício do compromisso social da universidade. Predominantemente, reconheceram a extensão como atividade acadêmica integrante do processo formativo; entretanto, ao mencionarem o propalado serviço para atendimento à sociedade, aproximamse da visão extensionista assistencialista. Afirmaram, ainda, que o EASIC, enquanto campo extensionista e formativo, favorece práticas de cuidado integral, a partir das relações dialógicas e escutas. Os docentes, ao comentarem a extensão como “campo de formação para os estudantes, onde se articula com o ensino e a pesquisa”, enfocaram as práticas extensionistas de assistência à saúde como base de integração dos estudantes na formação em saúde. Sendo a extensão, no âmbito universitário público, “espaço de reflexão crítica, que contribui para a oxigenação do pensar e do agir”, deslumbrase a possibilidade de discussão de currículos sob a ótica da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, visando à formação crítica e cidadã (FORPROEX, 2006). Outro ponto apontado pelos docentes como relevante para o diálogo multiprofissional é a articulação dos estudantes da graduação do curso de enfermagem com os integrantes da pós-graduação em enfermagem e com os profissionais da residência multidisciplinar de enfermagem. Os discentes em geral não percebem, nas ações extensionistas, espaços de reflexão e confronto teoria x prática. Mas, vivenciar o dia a dia no EASIC tem possibilitado questionarem e refletirem acerca das diferentes realidades, o que demonstra o potencial para pesquisas e produção de conhecimentos. Os discentes, também como os docentes, apontaram a extensão como “campo de formação, enquanto espaço para se vivenciar diferentes práticas sociais”, e a relataram como “canal de articulação da academia com a sociedade, pelo qual a universidade exercita o seu compromisso social”. Diferentemente dos docentes, os discentes, embora não negarem a presença do ensino e pesquisa nas práticas extensionistas, não demonstraram reconhecer a articulação e indissociabilidade deles com a extensão. De modo geral, os discentes deram duas motivações para participarem da extensão: adquirir novos conhecimentos e vivenciar novas práticas. Observou-se que a participação deles, no atendimento à comunidade (assistência em saúde), possibilita uma “aprendizagem diferente” daquela da sala de aula tradicional. As práticas e vivências extensionistas, ao enfatizarem a proximidade entre sujeitos, possibilitam, aos estudantes, vincularem essas relações dialógicas a questões subjetivas, como afeto e satisfação. Os discentes reconhecem que todos os sujeitos possuem saberes; entretanto, muitas vezes, não reconhecem o protagonismo dos integrantes da comunidade. Concorda-se com Santos (2010, p.74) ao enfatizar que “atividades de extensão devem ter como objetivo prioritário, [...], o apoio solidário na resolução dos problemas da exclusão e da discriminação sociais e de tal modo que nele se dê voz aos grupos excluídos e discriminados”. Para os cuidadores, a extensão relaciona-se à transmissão de conhecimentos e à atuação na área social. Entretanto, se a extensão significar transferências de conhecimentos, afasta-se da dimensão acadêmica e aproxima-se da educação bancária, e não integrará a educação problematizadora (Freire, 2005). A maior aproximação entre as falas de cuidadores e docentes/discentes ocorreu quanto ao canal de articulação da academia com a sociedade, o qual a universidade tem como forma de exercitar seu compromisso social. Constatou-se que a questão do comprometimento social, que emergiu dos cuidadores, relaciona-se aos esclarecimentos dados pelos docentes aos participantes do EASIC. Os docentes informam que ações 377


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extensionistas integram a formação acadêmica e estimulam a universidade a cumprir seu compromisso social. Tanto que busca os fundamentos dos seus compromissos sociais, a partir da extensão, que “constrói problemas a partir da discussão da realidade em que está se inserindo e vivenciando. Extensão como uma busca [...] de respostas àquelas necessidades imediatas de setores da sociedade” (Melo Neto, 2001, p.218). C1, ao ser questionado, enfatizou que, no EASIC, há “vida”, e expressou: “fico dentro de casa, quase não saía. Então, aqui pra mim tá sendo [...] um tratamento, tipo área de lazer”. Ao comentar “[...] o que me agrada, [...] é uma outra forma de cuidar”, C4 correlacionou a prática extensionista com o cuidar e concordou com Acioli (2008, p.117): “há uma potencialidade na extensão enquanto espaço de formação voltada para o cuidado”. Questionados sobre a extensão, os PS usaram expressões como: disseminar conhecimentos, prestar serviços, levar resultados e assistir. Para eles, a extensão está marcada fortemente pelo assistencialismo; nenhum reconheceu o protagonismo da comunidade, embora frisassem que a prática extensionista dirija-se a ela. Na sua maioria, compreendem a extensão como atividade formativa, todavia voltada para práticas assistenciais. Os entrevistados sinalizaram que a característica extensionista mais marcante é o compromisso social. Quando se fala de extensão, percebe-se que, para os docentes, discentes, cuidadores e profissionais da saúde, trata-se da relação universidade e sociedade, que envolve questões sociais. Todos os docentes e PS e, ao menos, metade dos discentes e cuidadores possuem essa visão. A extensão, como “campo de formação para os estudantes, onde se articula com o ensino e a pesquisa”, foi reconhecida relevante pelos docentes e discentes, embora com nuances diferentes. Entre os cuidadores e PS, apenas um de cada categoria a mencionou, mas sem imprimir noção de indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão; apenas mencionaram ensino e pesquisa como vinculados à formação discente. Quanto à extensão, como espaço para questionamentos e reflexões sobre o confronto teoria x prática, verificou-se que só os docentes a reconheceram como campo deste embate acadêmico, estimulador da investigação cientifica. Os PS não demonstraram clareza acerca da questão, e os discentes e cuidadores não a mencionaram. A confiança que idosos e cuidadores depositam na equipe do EASIC demonstra o empenho da universidade para assumir compromissos sociais. Outro aspecto destacado para a formação é a riqueza das histórias de vida, que emergem nas práticas extensionistas. Considerando que os movimentos, nessas práticas, representam relações e diálogos, que estimulam questionamentos, há que se falar em espaço gerador de pesquisas, que deve responder a problemas reais e produzir conhecimentos contextualizados (Santos, 2010). Ao se considerar a extensão como prática acadêmica, notou-se distanciamento conceitual entre docentes e discentes; entretanto, entre ambos e os cuidadores, há distância maior. A extensão universitária para os cuidadores não está vinculada à atividade acadêmica articulada ao ensino e pesquisa. A formação em saúde via extensão possibilita construir novas práticas. Tais conhecimentos potencializam a assistência, que deixa de ser simples prestação de serviço, e qualificam a produção do cuidado integral.

3° eixo norteador: processo formativo como relação entre prática e teoria e produção de conhecimentos O fato do EASIC ser espaço dialógico aponta na direção do reconhecimento de que práticas extensionistas são forjadas a partir da realidade. Os diálogos provocam questionamentos, os sujeitos são impelidos às reflexões que afloram dos confrontos teoria x prática no contexto social; nas relações dialógicas, os conhecimentos do senso comum são externalizados. O senso comum, não sendo cientifico, “não aplica ao conhecimento nele implicado suficiente sistematicidade questionadora” (Demo, 2009a, p.17). Logo, o embate reflexivo-crítico permite rigor científico na geração de novos conhecimentos; e, notadamente, quando decorre de confrontos dialógicos de equipes 378

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multiprofissionais, possibilita maior harmonia na produção do cuidado integral. Tanto que os cuidadores realçaram que os saberes se complementam, provocam a reelaboração de práticas e melhoram a assistência à saúde. Para Freire (2008b), os envolvidos no processo educativo dialógico produzem e detêm saberes, além de trocá-los e confrontá-los. Para o autor, é fundamental que as práticas educativas sejam dialógicas e reconheçam as diferentes experiências para construírem permanentemente o conhecimento. Enquanto exercício histórico concreto, a prática é essencialmente questionadora e retorna à teoria para dar conta das mudanças constantes da realidade. É nesse exercício dinâmico que se produzem novos conhecimentos (Demo, 2009a). Para Barros (2006, p.141), “é exatamente a incerteza que constitui a força e não a fragilidade do processo de conhecimento”. Demo (2008) enfatiza que o saber popular não é desprezível, pois sustenta a vivência do sujeito na sua realidade social, logo, não concorre com o saber cientifico. Afirma que “mais importante é combinar ambos, na devida proporção e lugar, para potencializar as forças disponíveis” na produção do conhecimento (p.126). Segundo Minayo (2010, p.54), “o conhecimento científico se produz pela busca de articulação entre teoria e realidade empírica”. Para os docentes, o espaço extensionista favorece a formação na graduação e, inclusive, na pósgraduação, possibilitando que o discente identifique-se com a pesquisa e favoreça a sua autonomia. Como D3 salientou, o discente “passa a se enxergar como profissional”. Identificou-se estímulo à autonomia nas práticas de cuidado integral no âmbito das consultas de enfermagem e visitas domiciliares, pois os diálogos e articulações multiprofissionais favorecem certa liberdade de ação discente. D2 salientou que a grande mudança que a extensão provoca na formação em saúde é “o entendimento da vida”; e D1 reforçou essa razão realçando a emergência das questões subjetivas e saberes próprios durante o processo relacional. Portanto, a formação em saúde, a partir de convivências e práticas dessa natureza, possibilita ir-se além da teoria. Assim, os docentes afirmaram ser o EASIC campo propício para questionamentos da teoria pela prática e vice-versa, o que induz geração de pesquisas e desenvolvimento de Trabalhos de Conclusão de Curso pelos discentes. Tais manifestações, em articulação com ensino e pesquisa, incentivam uma formação que não seja voltada só para questões técnicas. Os docentes perseguem a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão e aproximam-se da dimensão acadêmica da extensão: “[...] processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável [...]” (FORPROEX, 2001, p.29). Quando a extensão estimula a integração dos discentes ao contexto social, com base na indissociabilidade, oxigena o processo formativo em saúde e espera-se que a disciplina seja “espaço de produção coletiva e de ação crítica” (FORPROEX, 2006, p.46). Os discentes, como os docentes, enfatizaram a extensão enquanto espaço relacional e produtor de cuidado integral, que estimula as pesquisas. C2 complementa dizendo que o interesse discente pelas pesquisas relaciona-se ao “material humano” do Programa. Para os discentes, o cuidado integral depende das relações, diálogos e escutas, pois se precisa compreender o outro. À semelhança dos docentes, destacaram a extensão como campo de vivências, que oportunizam escutas e compreensão do outro. Tais movimentos, caracterizados por confrontos teoria x prática e reflexões críticas, possibilitam emergir práticas singulares. Eles reconhecem que as práticas de saúde não se limitam a procedimentos, e que o mais marcante na extensão é articular o processo formativo à produção de novas práticas de cuidado integral. Os docentes e discentes identificaram o potencial produtor de conhecimentos, ao reconhecerem, no campo extensionista, embates reflexivos e questionamentos críticos nos confrontos dialógicos entre teoria e prática. Especialmente os discentes, salientaram o distanciamento que pode haver entre sala de aula (teoria) e vivências (práticas). O campo extensionista, se de natureza acadêmica, possibilitará que a formação tenha dinâmica de vivências que articule teoria e prática, posto que “a realidade da teoria é muito diferente, quando não divergente, da realidade da prática” (Demo, 2009a, p.29). Os discentes relataram que vivenciar a extensão desenvolve, neles, mais liberdade para transitarem em espaços de relações multiprofissionais com criatividade, responsabilidade e autonomia. Além de favorecer a formação de caráter questionador, transformador e político, visto que o processo educativo 379


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precisa incentivar a conscientização crítica, pois é “condição necessária da cidadania” (Demo, 2008, p.21). Neste sentido, entende-se que a extensão busca contextualizar a pesquisa para defendê-la como produtora de conhecimento politicamente engajado (Demo, 2008). E4 comentou: “sempre que eu penso em extensão, eu penso em pesquisa”. Diferentemente dos docentes e discentes, os cuidadores não priorizaram a questão da qualificação acadêmica a partir da extensão. Entretanto, como os docentes e discentes, identificaram a extensão como campo para aprendizagem do cuidado integral, sobretudo, pelo diálogo. Os cuidadores, ao reconhecerem, na extensão, espaço formativo em saúde, demonstraram uma visão prática. Identificaram questões subjetivas, que confrontadas com teorias produzem novas práticas e questionamentos sobre a realidade. Assim, destacaram momentos nobres da aprendizagem: diálogos, experiências e vivências. Mencionaram uma qualidade indispensável à formação em saúde: “ser atencioso”. A afirmação, aparentemente simples, revela saberes necessários ao processo educativo transformador, pois “a afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade” (Freire, 2008b, p.141). Ao contrário dos docentes e discentes, os cuidadores não destacaram as vivências multiprofissionais, embora tenham enfatizado que estudantes aprendem no confronto com experiências (saberes) deles (cuidadores) e dos idosos. Os cuidadores, quando questionados sobre as pesquisas, disseram que elas realizam-se a partir das discussões e resultam em novas práticas de cuidado integral. Percebeu-se que a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão acarreta confrontos prática x teoria, a partir de vivências (relações e diálogos) e produz novos conhecimentos, pois “[...] pesquisa é o questionamento sistemático crítico e criativo, mais a intervenção competente na realidade, ou o diálogo crítico permanente com a realidade, em sentido teórico e prático” (Demo, 2009a, p.34). Os PS, como os docentes, discentes e cuidadores, destacaram a importância de se vivenciar a extensão na formação em saúde, pois as relações dialógicas favorecem o cuidado integral. Vivenciar é imprimir movimento ao processo formativo mediatizado pelo mundo, que se encontra em constante modificação, em decorrência das reflexões críticas geradas dos diálogos comunicativos (Freire, 2005, 1977). T1 destacou o exercício das escutas nas experiências das consultas de enfermagem. Os PS enfatizaram que articulações entre ações extensionistas favorecem uma formação mais “oxigenada”, pois diferentes vivências potencializam o cuidado integral; e, ainda, reconheceram, na extensão, a importância das relações e das vivências singulares com idosos e cuidadores, pois identificam, nela, questionamentos sobre o agir na produção do cuidado integral. Eles, embora tenham reconhecido a articulação ensino-pesquisa-extensão, não se aprofundaram na direção da indissociabilidade. Apresentaram visões semelhantes à dos docentes e discentes ao abordarem a importância das vivências na formação em saúde. Destacaram a relevância de os estudantes participarem das consultas de enfermagem e visitas domiciliares, para adquirirem não só aprimoramento técnico, mas autonomia. Para T1, “faz parte do crescimento” do discente que “o graduando por vezes ele precisa ficar sozinho, sem ter o professor que está orientando”, para desenvolver autonomia. Portanto, discussões acerca das práticas extensionistas – quando evidenciaram palavras como articulação, indissociabilidade, relação e reflexão –, e do processo formativo, ao enfatizarem vivências, que externalizam movimentos característicos das ações humanas de conotação comunicativa e dialógica, possibilitaram analisar diálogos e trocas de saberes, também, na articulação com teoria e prática e produção de conhecimentos. Posto que, no EASIC, as práticas de saúde se caracterizam como construções coletivas, nas quais todos são protagonistas.

Conclusão O processo formativo em saúde, desenvolvido com base em ações extensionistas, que se articulam com o ensino e a pesquisa, induz a produção de novas práticas de cuidado integral e a formação integral, aquela focada não apenas na aprendizagem técnica, mas na ética, responsabilidade cidadã e compromisso social. Tal mecanismo desenvolve-se a partir das relações dialógicas entre sujeitos detentores de diferentes saberes e nos confrontos dialéticos entre teoria e prática, que se estabelecem 380

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no aprender e fazer nas vivências extensionistas, pois as relações subjetivas afetam a produção do cuidado integral. No EASIC, há preocupação com o incentivo à mobilidade para que estudantes se articulem com ações específicas dos diferentes projetos e estejam inseridos num espaço de convivência harmônica e multiprofissional, condição sine qua non para a produção do cuidado integral. Constatou-se a influência das práticas extensionistas na formação em saúde ao se analisarem as vivências dos sujeitos pelos três eixos norteadores. Na relação extensão e cuidado integral, as práticas, ao se pautarem na concepção acadêmica, favorecem produzir cuidado integral no âmbito da formação em saúde, focado na integralidade e centrado no usuário e na sua autonomia. Observou-se que a possibilidade de interrupção das atividades, como no período de férias (calendário acadêmico), as dificuldades de articulação com a rede pública para a assistência à saúde, e um eventual não-reconhecimento da extensão, como integrante da formação, por parcela dos docentes, podem prejudicar o cuidado integral. Os docentes do EASIC, ao reconhecerem a dimensão acadêmica extensionista como prática formativa, centrada na escuta, nos diálogos e na multiprofissionalidade, empenham-se para que todos os sujeitos se envolvam na produção do cuidado integral. Na relação extensão e processo formativo como espaço de relação dialógica nas práticas extensionistas, a proximidade entre os sujeitos possibilita reconhecimentos e confrontos dos diferentes saberes. O processo de interação dialógica e partilha de vivências provoca questionamentos e reflexões críticas, que resultam na reelaboração e/ou produção de práticas, que respondem às necessidades de determinados contextos. A prática extensionista de dimensão acadêmica pressupõe o aprendizado como processo de construção coletiva, que provoca transformações da realidade que derivam da comunicação, isto é, das interações entre sujeitos. O campo extensionista, na área da saúde, por ser permeado por articulações singulares e diferentes experiências e vivências, pode possibilitar que, nele, a produção do cuidado integral resulte das reflexões críticas, que emergem dos questionamentos entre prática e teoria. Na articulação entre extensão e processo formativo como espaço de relação entre teoria e prática, as interações dialógicas nas práticas extensionistas não impedem que a teoria questione a prática e vice-versa, provocando confrontos dos saberes de natureza teórica com os de natureza prática, que resultam na produção de novos conhecimentos. Justamente, tais movimentos decorrentes das demandas sociais caracterizam a potencialidade extensionista para gerar pesquisas. É importante a interação entre os integrantes dessas práticas para que ninguém se torne fornecedor de informações e dados, pois todos devem protagonizar o processo coletivo de produção de conhecimentos; porquanto, são detentores de saberes singulares. A prática extensionista se coloca como campo de aprendizagem não só dos discentes, mas dos docentes e demais sujeitos, pois, para se aprender, é preciso vivenciar o mundo, e não só ter teorias. Apesar de todos se surpreenderem com os conhecimentos advindos das experiências de vidas e apreensões subjetivas, muitos docentes da universidade ainda não valorizam a extensão, enquanto prática acadêmica. A partir deste estudo, solidifica-se a argumentação de que o processo formativo em saúde, como desenvolvido pelos docentes do EASIC, ao reconhecer a dimensão acadêmica extensionista, a partir das diretrizes do FORPROEX, incentiva a autonomia e responsabilidade dos discentes, tornando-os sujeitos ativos na aprendizagem. Assim, os docentes integrantes do EASIC estimulam práticas extensionistas que não se pautam no assistencialismo; entretanto, a universidade tem expressado o seu comprometimento social por intermédio de ações de extensão, que também desenvolvem atividades no campo da assistência. Portanto, ao se perseguir a articulação da extensão com ensino e pesquisa, para fomentar a indissociabilidade dessas funções da universidade, incentiva-se a flexibilização curricular, posto que esta se associa à formação crítica e cidadã; deste modo, são construídos novos parâmetros para as “salas” de aulas. Notou-se, ainda, que não há negação do protagonismo dos sujeitos nos confrontos entre saberes e práticas; e, embora na área da saúde, comumente, as práticas extensionistas envolvam a assistência na produção do cuidado integral, não foram identificadas atividades focadas no assistencialismo. O que se detectou foram aspectos que incentivam, além do aprendizado técnico, a formação humanista, quais 381


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sejam: comprometimento com a cidadania, a ética e a autonomia. Tais componentes imprimem uma dinâmica ao campo extensionista, que possibilita a universidade desenvolver seu compromisso social e inserir o debate político no processo formativo em saúde. A associação dessas práticas de produção de cuidado integral às consultas de enfermagem imprime, ao processo de formação em saúde, via extensão, uma dinâmica singular. Assim, essa formação cidadã, revestida de caráter sociopolítico, possibilita questionamentos como: as práticas extensionistas poderiam articular-se entre si e com a rede pública de saúde? Acredita-se que futuras investigações poderão focar tais questões.

Colaboradores Antonio Fernando Lyra da Silva elaborou e executou o projeto de pesquisa, realizando o trabalho de campo, a análise dos dados empíricos e a redação do texto. Carlos Dimas Martins Ribeiro e Aluísio Gomes da Silva Júnior participaram da elaboração do projeto de pesquisa, da fase de análise e da redação do manuscrito. Referências ACIOLI, S. A prática educativa como expressão do cuidado em Saúde Pública. Rev. Bras. Enferm.,v.61, n.1, p.117-21, 2008. AYRES, J.R.C.M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface (Botucatu), v.8, n.14, p.73-92, 2004. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2010. BARROS, M.E.B. Desafios ético-políticos para a formação dos profissionais de Saúde: transdisciplinaridade e integralidade. In: PINHEIRO, R.; CECCIM, R.B.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Ensinar Saúde: a integralidade e o SUS nos cursos de graduação na área de saúde. 2.ed. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, Cepesq, Abrasco, 2006. p.131-50. DEMO, P. Pesquisa e construção de conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. 7.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2009a. ______. Pesquisa: princípio científico e educativo. 13.ed. São Paulo: Cortez, 2009b. ______. Pesquisa participante: saber pensar e intervir juntos. 2.ed. Brasília: Líber Livro Editora, 2008. FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS - FORPROEX. Indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão e a flexibilização curricular: uma visão da extensão. Brasília: MEC/SESu, 2006. ______. Plano Nacional de Extensão Universitária. Ilhéus: Editus, 2001. FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3.ed.. São Paulo: Centauro, 2008a. ______. Pedagogia da autonomia - saberes necessários à prática educativa. 37.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008b. ______. Pedagogia do oprimido. 47.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ______. Extensão ou Comunicação? 12.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 382

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SILVA, A.F.L.; RIBEIRO, C.D.M.; SILVA JÚNIOR, A.G. Pensar la extensión universitaria como campo de formación en salud: una experiencia en la Universidad Federal Fluminense, Brasil. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.371-84, abr./jun. 2013. El estudio representa una reflexión sobre las prácticas de extensión universitaria en el área de la salud en un programa desarrollado en la Universidad Federal Fluminense, en Brasil. A partir de las conversaciones/observaciones de profesores, alumnos, profesionales de salud y cuidadores se analizaron las concepciones de extensión y formación. La base del trabajo fue la comparación de esas prácticas en el proceso de formación y su referencia académica fueron las directrices de la extensión universitaria (FORPROEX) en tres ejes: el cuidado integral de la salud, el proceso de formación como relación dialógica y el proceso formativo como relación práctica-teoría. El estudio reveló el potencial de la extensión en la formación en salud, es decir, en la producción del cuidado integral, siempre y cuando haya articulación académica y conciliando la inseparabilidad enseñanza-investigación-extensión; la extensión es el espacio de experiencias y enfrentamientos entre teoría y práctica en un diálogo dinámico, multidisciplinario y comprometido socialmente.

Palabras clave: Extensión universitaria. Educación para la salud. Cuidados integrales de la salud. Recebido em 03/12/12. Aprovado em 06/04/13.

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Teaching at primary healthcare services within the Brazilian National Health System (SUS) in Brazilian healthcare professionals’ training* Ramona Fernanda Ceriotti Toassi1 Alexandre Baumgarten2 Cristine Maria Warmling3 Eloá Rossoni4 Arisson Rocha da Rosa5 Sonia Maria Blauth Slavutzky6

TOASSI, R.F.C. et al. O ensino nos serviços de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) na formação de profissionais de saúde no Brasil. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.385-92, abr./jun. 2013. The aim of this study was to analyze the role of teaching at primary healthcare services within the Brazilian National Health System (SUS) in dentists’ training, at a public university in the south of Brazil. A qualitative methodological approach (case study) was used. Interviews were conducted with 12 dentistry students, six dentists who were preceptors working in public primary healthcare services and three teachers connected with this curricular training. Our findings showed that the curricular training in SUS primary healthcare services had an impact on the dentists’ education through establishment of bonds, autonomy in problem-solving and multiprofessional teamwork. It was seen that they learned about how healthcare services function, about healthcare and about development of cultural competence. There is a need to maintain constant questioning regarding these practices, and to ensure the presence of infrastructure and qualified professionals for teaching at these services.

Keywords: Dentist’ education. Primary healthcare. Health services. Curriculum. Qualitative research.

O objetivo desse estudo foi analisar o papel do ensino nos serviços de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) para a formação do cirurgião-dentista em uma universidade pública no sul do Brasil. A abordagem metodológica foi qualitativa (estudo de caso), realizando-se entrevistas com 12 estudantes de Odontologia, seis preceptores cirurgiões-dentistas com atuação nos serviços públicos de atenção primária e três professores vinculados ao estágio curricular. Os achados mostraram que o estágio curricular nos serviços de atenção primária do SUS impactou na formação do cirurgião-dentista por meio do estabelecimento de vínculos, autonomia na resolução de problemas e trabalho em equipe multiprofissional. Foram evidenciadas aprendizagens sobre funcionamento dos serviços de saúde, cuidado em saúde e desenvolvimento de competência cultural. Há necessidade da problematização permanente sobre as práticas e que se assegure infraestrutura e profissionais qualificados para o ensino nos serviços.

Palavras-chave: Educação em Odontologia. Atenção primária à saúde. Serviços de saúde. Currículo. Pesquisa qualitativa.

Apresenta resultados de Toassi (2011); pesquisa financiada pelo Edital FAPERGS nº 001/ 2010 – Auxílio Recém Doutor (ARD), processo 10/0496-5, com bolsa de iniciação científica CNPq. Projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 1,3,4,6 Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, UFRGS. Rua Ramiro Barcelos, 2492. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-003. ramona.fernanda@ufrgs.br 2 Discente, curso de Odontologia, Faculdade de Odontologia, UFRGS. Bolsista de Iniciação Científica. 5 Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Odontologia, Faculdade de Odontologia, UFRGS. *

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Introduction Dental teaching was established in Brazil in the XIX century, and since its initial phase it was characterized by autonomy in relation to the medical teaching. Another aspect was that the curricula design emphasized dental techniques, but was limited concerning the development of knowledge on social aspects of health and oral diseases. This was a worldwide hegemonic trend at the time. These events greatly shaped the contemporary dental education, as well as the practice developed by the providers (Warmling, Marzola, Botazzo, 2012). During the first decade of the XXI century, however, the curricula of dental undergraduate courses in Brazil are being reformulated to redirect the process of dental education (Toassi et al., 2012). The national curriculum guidelines (Brasil, 2002), adopted since 2002 by dental courses in the country, evidence transformations in dental practice stemming from various directions. These are events that have been manifesting worldwide since at least the 1980s and originated from the social, economic, and political fields, but mainly from the striking changes that occurred in the oral diseases demography and epidemiology. Some assumptions stand out in the shaping of the new education standards for Brazilian dentists. The rate of dental caries has decreased due to the exposure to the preventive effects of fluorides; there have been marking changes in the self-employment working standards of dental providers in the country; and there is a high number of dentists available on the market. On the other hand, there is a significant contingent of vulnerable population groups whose access to dental services is still difficult (Moysés, 2004; Kress Junior, 1995). The challenge for higher dental education institutions in Brazil has been, therefore, to adapt their curricula to the demands of the new professional paradigms. Amongst other aspects, the curricula must develop a professional profile with skills and competencies aimed at the work within the public health system, which currently is a potential employer for dentists (Morita, Haddad, Araújo, 2010). The expansion of the public dental services is gradually enhancing the insertion of dentistry within SUS (Pucca Junior, Lucena, Cawahisa, 2010). In Brazil, as well as in other countries, health care services have been prioritized in the curricula of dental courses as venues for education (Davidson et al., 2011; Hood, 2009; Holbrook et al., 2008; Elkind, 2002). The service-learning is a structured learning experience that combines community service with preparation and reflection (Yoder, 2006) and has become an axis for the change process in the professional education. A nationwide study on the assessment of curricular reform experiences was conducted by the Brazilian Association of Dental Teaching from 2005 to 2006. Workshops were developed in 18 Brazilian dental schools in order to check for curricular changes. Amongst other results, the analysis of the workshops showed a persistent resistance regarding traditional conceptions on how the professional practice model should be (Zilbovicius et al., 2011). Focal studies must be conducted in order to understand how the pedagogical, technical, and political variables are involved in the changes undertaken by the schools. The School of Dentistry of the Federal University of Rio Grande do Sul is a traditional Brazilian dental teaching public institution, being the third one created in the country. The school is over 120 years old, standing out in the national scenario due to the curricular changes that have taken place since 2005. One of the striking features which directed the reorganization of its curriculum was the enhancement of the integration of the academic activities with the world of work at the Brazilian National Health System (SUS). This experience needs to be studied in depth. Such concerns guided this study, aimed to analyze the role played by the service-learning in Unified Health System (SUS) primary health care as a means for the education of dentists in a public university in the south of Brazil.

Methodology The case study under a qualitative analysis perspective (Yin, 2010) was the method used in this research. The methodological choice for the qualitative approach was justified taking into consideration 386

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that its design allows the use of multiple information sources (Minayo, 2007), aiming to ‘create a chain of relevant evidences’ on the role of the service-learning program for the education of dental students, its pedagogical dynamics, and its relationship with the health care system. Since 2005, the Federal University of Rio Grande do Sul/Brazil has progressively implemented, during the senior year (9th and 10th semester), a service-learning program within the practice facilities of SUS. The total workload of the program consists of 930 hours and is regulated by specific federal legislation (Brasil, 2008). The focus of this research is the service-learning program that takes place during the 9th semester of the course, in a total of 465 hours per semester, being developed in Primary Health Care Units. These units are responsible, under the scope of SUS, for providing primary health care in the municipality of Porto Alegre, Brazil. Each facility chosen to offer the service-learning program receives up to two dental students. The preceptor, who is responsible for the follow up and guidance of the students, is also the dentist who works in the health care service. The proposal of the service-learning program is based on the Problem-Based Learning (PBL) pedagogical method (Polyzois, Claffey, Mattheos, 2010). Data for this study was produced by semi-structured interviews. The participants were undergraduate dental students, preceptors who were dentists of SUS, and teachers. All participants signed an informed consent form. The interviews were conducted individually by a single interviewer who followed a pretested script. Guiding questions: education level at the moment of knowing about service-learning/ feedback from others about service-learning; coming to the service/expectations regarding servicelearning; to feel prepared to work in primary care; relationship between the health team and the undergraduate dental student; positive changes of the service-learning to the service itself; servicelearning program and health care; activities carried out in the health service; role of the preceptor, feelings regarding service-learning program/gains with service-learning in the primary care service; impacts of service-learning on the education of dentists; relationship between the service-learning program, the curriculum, and the University. The interviews were recorded by audio equipment and fully transcribed. All transcriptions were returned to the interviewees, who read them to check if they agreed with the presented ideas; if considered necessary, they could add complementary information to the reports. The subjects of this research were selected intentionally, taking into consideration the proposed objective. The students should have concluded the service-learning program in primary care. The criterion for the selection of preceptors and teachers was that they should be working with service-learning programs for at least one year. Saturation was the selected sampling method (Strauss, Corbin, 2008). A total of 21 people were interviewed: 12 senior dental students, six preceptors who were dentists of SUS, and three teachers from the School of Dentistry who were linked to the service-learning program. The content analysis method (Bardin, 2011) was used to interpret the produced data. The study was approved by the Ethics in Research Committee of the University.

Results and discussion Based on the interpretation of the categories, four major thematic blocks were structured with the objective of organizing the discussion and theorization.

Service-learning programs and social representations The beginning of the service-learning period in the primary health care made undergraduate dental students feel apprehensive. Their perceptions regarding the working conditions they would face were marked by the idea of an existing precarious situation in public services. “I used to hear sort of that idea we all had about the service-learning. That public health centers weren´t any good, that they were far, didn´t have the necessary materials, that no

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one liked them, that it was a nuisance to everyone, that no one wanted to have to experience this” […]. (Student 3) This impression was also perceived by preceptors and teachers of the service-learning. “The students arrive highly technically prepared, but all sharing the common idea that everything is horrible there […]”. (Teacher 1) Contradicting all negative expectations before the beginning of the service-learning experiences, the arrival at the services was marked, in general, by surprise when facing the reality they encountered. The students were positively surprised by the physical structure and the work developed in primary care. “[…] I was really surprised, it wasn´t what I expected to find, I had an idea from what I had seen on TV, that there were long lines and lots of people in waiting rooms”. (Student 12)

In another Brazilian study on dental service-learning programs, it was also observed that one of the big surprises of the students was to find, contrary to what they expected, an organized public service that works, serves the population, and has dental supplies and equipments of quality (Santa-Rosa, Vargas, Ferreira, 2007). The social representations theory supported the analysis of the data found. Authors define the social representations as a pragmatic thinking that results from experience, beliefs, and information exchange in the daily lives of human beings. They take form as ‘common sense theories’, indicating how one is interpreting and interacting with the social reality (Jodelet, 2001; Spink, 1993). The reports of the students on their expectations regarding the service-learning program expose the social representations of the population concerning SUS. In a study on the perceptions of the workers of SUS, it was concluded that the creation/transformation of the social representations regarding the system is still taking place, however not in a naturalized fashion, but through multiple tensions (Oliveira et al., 2008). The conflicts produced by the program´s experiences are related to the course´s current technical, pedagogical, and political process, as well as to the health system itself. Students who had been involved in activities in SUS prior to curricular service learning displayed more skills in dealing with the reality of the services. “It was of no surprise when I first arrived at the service-learning program. My first contact was with PET-Saúde, when I was (more or less) in my fifth semester […]” (Student 2). The Education through Work in Health Program (PET-Saúde) is promoted by the Health Ministry as a national strategy to qualify health professionals, seeking to create tutorial apprenticeship teams in strategic fields for the Brazilian National Health System (SUS), this way integrating education, service, and community (Brasil, 2010).

Competencies for health care The students´ initial expectation towards ‘what to do’ in the program was related to the gains in professional technical autonomy and the dental practice focused on the treatment of the users´ oral diseases. “[…] as I arrived I expected a service-learning program where I would work a lot, lots of clinical work…That´s what I wanted. I wanted to catch up with the speed of the work, that was my main objective, that´s what I expected to happen”. (Student 7)

This expectation was also perceived by the preceptors and the teachers who were doing the following them up along the program. “[…] their concern in the beginning is to see the structure of the clinic, to see what it´s like, to see if they will be able to do the dental care there, the time for the treatment, I believe all

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of this causes much concern, […] I see that when they arrive their biggest expectation is to practice”. (Preceptor 6)

The reduction of the individual to the treatment of teeth guides the social history of dentistry, the identity of the dentist, and the working process centered on the dental office. This is still the prevailing model in dental education and in people´s minds (Emmerich, Castiel, 2009). The widening of the concept of oral health and disease has brought along the necessity of understanding the user’s needs in depth. The preceptors´ reports showed that students had difficulty in understanding the users and the determination of oral health and disease not only as a set of signs and symptoms restricted to the mouth. “[…] when they (the students) arrive here, the first thing they want to do is to show that they know, but they try to speak in a very technical language to the patients, they speak in a language that the patients don´t understand, they try to blame the patients for things, they arrive saying: ‘you don´t brush because you don´t want to, you have toothpaste, you have water’…”. (Preceptor 1)

Dental education cannot pertain only to the efficient search for evidences for the diagnosis, treatment, prognosis, etiology, and prophylaxis of diseases and the health hazards. It should, just as well, allow the development of cultural competency and sensitivity towards the health needs of people in the production of care.

The development of bond with the community While practicing in primary health care, interacting with the team and the community, and recognizing themselves as workers of the health system, the students´ initial perceptions were changing. The bond established among the students and the population deconstructed ideas that were presented in the beginning of this experience. “[...] I believe that the simple fact of working and being there adds a new vision in every sense, coexisting with people, with other professionals outside from the university, the reality chock, caused by both the people and the work that is developed there and by all of this confrontation”. (Student 7)

The bond is an instrument that promotes bonding commitments and co-responsibility amongst the professionals and the community (Pinheiro, Oliveira, 2011). This goes beyond the establishment of a simple contact with the population of a specific territory and a registration form. It demands closeness and commitment of the professional to the user´s genuine needs. “[...] you see a woman in early pregnancy and later you watch the baby grow and you follow up him, I feel it is much more gratifying. You can observe this relationship, get to know the families, visit their homes, I find this delightful, it´s a way of working that provides more positive feedback”. (Student 12)

The humanization of dental health care Learning about the act of care was emphasized by the students when they referred to their participation in group activities and in a multiprofessional teamwork, and in a special way with community embracing.

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Service-learning produces the necessary subjectivity for the culture of care. The relational field is prioritized in this manner of working. Fostering the encounter with the users is encouraged (Franco, Merhy, 2011). “In the university, we spend a whole semester without understanding why a patient doesn´t collaborate, when we say something it seems as if he has understood, and when he returns it´s all back to the same. The treatment does not progress because we don´t know much about life”. (Student 12)

Care is built through permanent reflection upon the relationship between the social meaning of diseases and the available technologies and services to overcome them (Ayres, 2004). This perception regarding care is neither immediate nor easy for the students. It´s a difficult and complex process for the students as well as for the preceptors and teachers. It means to break through the structured ways of working and find the world as it is, that is, with its setbacks e potentialities in the uniqueness in which they come to being.

Final considerations Experiences of dental education in health services outside teaching institutions have been described in the literature (Eriksen et al., 2011; Piskorowski et al., 2011). The findings of this study have shown that service-learning in primary care services of SUS has impacted on the education of dentists, enhancing their competency in understanding and intervening with the reality faced by them. Learning about the way that health services work, the multiprofessional teamwork, and the development of competencies for autonomy in problem solving were evidenced. The study demonstrated that service-learning represents a strategic pedagogical venue for education in health. However, the need for permanent questioning about the practices and the ensuring of qualified infrastructure and professionals for in health services was also noticed. One of the major issues that the study found, concerning the impacts on dental education while experiencing community health services, was the establishment of bonds, autonomy in problem solving and multiprofessional teamwork. Learning how the health services work, about health care, and the development of cultural competence was evidenced. The professional education accomplished by means of the experiences with communities in health services, such as the experience studied, should not be perceived as an ‘additional’ asset to the curricula, but much more as an integrating component of the contemporary dental curriculum. The students´ opinions and perceptions must be taken into consideration in order to make this experience a successful one.

Collaborators Ramona Fernanda Ceriotti Toassi led the research, taking responsibility for data collection and wrote all parts of the article. Alexandre Baumgarten held transcribing the interviews, collaborated in the interpretation of the categories and wrote the results/ discussion sections. Eloá Rossoni and Arisson Rocha da Rosa collaborated on the interpretation of categories and wrote the results/discussion sections. Cristine Maria Warmling and Sonia Blauth Slavutzky were responsible for the revision of the text and participated in the elaboration of the article. 390

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artigos

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Palabras clave: Estudiantes de odontología. Servicios de salud. Atención primaria de salud. Currículo. Investigación cualitativa. Recebido em 03/10/12. Aprovado em 29/04/13.

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artigos

Tocar: atenção ao vínculo no ambiente hospitalar

Maria Martha Duque de Moura1 Maria Beatriz Lisbôa Guimarães2 Madel Luz3

MOURA, M. M. D.; GUIMARÃES, M. B. L.; LUZ, M. Touch: attention to the bounds in the hospital setting. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.393-404, abr./jun. 2013.

The links between patients and health professionals in a public hospital specialized in high cliff fetal pregnancy and high complexity diseases were investigated, aiming to found the actions that could positively contribute to the therapeutic process in the mental health field, concerning the links between patients and health professionals that include professional and affective care, warm atmosphere and communication spaces the hospital setting. The research used qualitative methodology (participant observation and speech analysis), focusing the attendance routines in this maternity. The investigation subjects were mothers, families and professionals. Results indicate the importance of the attention and the link between health professionals and pregnant women, and could contribute to the construction of a possible link between parents and babies in adverse situations.

Keywords: Bound. Therapeutic touch. Physician-patient relation. Perinatal care.

Foram investigados vínculos entre profissionais de saúde e pacientes em hospital materno-infantil terciário e público, especializado em gravidez de alto risco fetal e doenças de alta complexidade na infância e adolescência, visando verificar se intervenções que “tocam” (mães/bebês) poderiam minimizar o estresse do ambiente hospitalar e interferir positivamente no processo terapêutico. Referimo-nos às ações que contribuem para os vínculos entre profissional de saúde, paciente e bebê, que incluem cuidado profissional técnico e afetivo, conforto ambiental, espaços para expressão dos sentimentos e comunicação. A pesquisa, de natureza empírico-operativa, utilizou metodologia qualitativa (observação participante e análise de discurso), tendo como sujeitos mães, familiares e profissionais. Resultados indicam a importância do acolhimento e vínculo entre profissionais de saúde e gestantes que vivem gravidez de alto risco fetal no ambiente hospitalar investigado, podendo favorecer a construção do vínculo possível entre pais e bebês em situações adversas.

Palavras-chave: Vínculo. Toque terapêutico. Relação médico-paciente. Cuidado perinatal.

Elaborado com base em Moura (2001); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto Fernandes Figueira. 1 Serviço de Psicologia Médica, Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFFFiocruz). Av. Rui Barbosa, 716, Flamengo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.250-020. martha@iff.fiocruz.br 2 Departamento de Medicina Social, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco. 3 Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva, Instituto de Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense.

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TOCAR: ATENÇÃO AO VÍNCULO NO AMBIENTE HOSPITALAR

Introdução O cenário da pesquisa é a maternidade do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) - unidade materno-infantil terciária da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)/Ministério da Saúde, sendo os sujeitos as mães (grávidas e puérperas, antes e após o nascimento de seus filhos), seus familiares (sobretudo pais e avós) e os profissionais que trabalham na maternidade. Num hospital materno-infantil público como este, lidamos com gravidez de alto-risco para o feto, e com crianças que, frequentemente, necessitam de longas e repetidas internações em Unidades de Tratamento Intensivo ou em enfermarias. Tais crianças convivem com malformações, doenças crônicas, graves, muitas vezes incuráveis, e serão, em muitos casos, dependentes de tecnologia para sobreviver. Tarefa difícil para a família, sobretudo a mãe, mas, também, para sua rede social, bem como para nós, profissionais de saúde, que convivemos diariamente com esta realidade. Os profissionais deste Instituto convivem diariamente com mulheres e suas famílias em momento de grande sofrimento. Gerar um bebê com alto risco de vida (gravidezes de alto risco fetal), muitas vezes incompatível com a vida extrauterina, é missão quase impossível. Essas crianças são cotidianamente submetidas, no hospital, ao contato físico doloroso durante procedimentos que, eventualmente, são mutilantes. Trata-se de um cuidado que dói. Sua forma corporal pode ser alterada por cirurgias, procedimentos ou pela própria doença, antes mesmo que possa construir uma imagem corporal própria. Em situação de risco pela doença e pelo afastamento de sua família, essas crianças são, muitas vezes, pouco investidas afetivamente. É mais fácil gostar, se vincular e acariciar uma criança bonita, não prematura, perfeita e desejada. É difícil o estabelecimento de vínculo mãe-filho quando a criança é “feia”, malformada ou deformada, muito pequena, doente, vivenciando internações repetidas ou prolongadas. Trata-se da distância entre o bebê ideal e o bebê real (Klaus, 1993). Estas crianças não são muito tocadas corporalmente (afeto) e são muito manipuladas por procedimentos invasivos (punções para coleta de exames, por exemplo). Pensamos que o sentido do “afeto” no toque já deve ser esclarecido: as crianças são muito tocadas, sim, mas no sentido contrário ao do afeto, ou seja, manipuladas tecnicamente. O toque com finalidade de acolhimento do bebê estabelece uma comunicação, e o toque “profissional” ou técnico pode estabelecer uma “distância” entre o pequeno ser e o mundo humano, justamente pelo contraste entre a vida intrauterina cálida e esta “exterior” e “fria”. O termo “tocar” se define, neste trabalho, enquanto contato físico - o tocar com as mãos -, mas, também, o “tocar” que envolve o outro, a atenção com a ambiência (visual, sonora, vocalizações, luminosidade etc.) que afeta a qualidade da relação e contribui para o vínculo, para os encontros que se estabelecem no processo terapêutico (Brasil, 2010a). Algumas questões estiveram presentes ao longo de todo o trabalho e os resultados apontam para o desdobramento delas: o toque assegurador, o olho no olho, o diálogo, o conforto ambiental poderiam minimizar o estresse das diversas intervenções médicas no cotidiano do ambiente hospitalar? Nossos profissionais de saúde estão suficientemente sensibilizados para a importância da atenção ao vínculo no seu trabalho cotidiano? É possível resgatar o toque bom, afetivo, mesmo em situações tão adversas? Cabe prescrever colo em nossas evoluções médicas? Em síntese: O sistema terapêutico pode ter mais eficácia se “tocar”? Ressaltamos o papel fundamental do cuidador no processo terapêutico do paciente internado, na medida em que os cuidados do dia a dia, oferecidos tanto pelos familiares quanto pelos profissionais de saúde, constituem preciosos momentos para proporcionar conforto, acolhimento e fortalecimento do vínculo entre a criança, os pais e os profissionais de saúde (Winnicott, 1978). O objetivo do presente artigo é apresentar alguns resultados da pesquisa que procurou investigar acerca do vínculo assegurador no ambiente hospitalar para a qualidade de vida do bebê e de suas famílias.

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MOURA, M. M. D.; GUIMARÃES, M. B. L.; LUZ, M.

artigos

O estudo se insere na linha de pesquisa “Análise de recursos terapêuticos a partir da doença crônica”, coordenada pela primeira autora, e está registrada no Departamento de Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, tendo sido aprovada pelo comitê de ética da instituição.

Metodologia Esta pesquisa se apoia na experiência clínica da primeira autora, ao longo de doze anos, no serviço de psicologia médica na assistência perinatal. Esse Instituto recebe gestantes encaminhadas de diferentes unidades de saúde do município do Rio de Janeiro, de fora dele, e, até mesmo, de outros estados. A assistência oferecida pela Psicologia Médica deste hospital é constituída pelas seguintes atividades: a) atendimento individual de grávidas acompanhadas no IFF por demanda própria ou de profissionais do pré-natal, b) grupo operativo semanal na enfermaria de gestantes internadas, c) atendimento psicoterápico focal individual a partir da triagem no grupo – fruto da demanda da própria paciente ou de algum profissional, d) oficina semanal de arteterapia, também na enfermaria de gestantes, e e) assistência de psicologia no alojamento conjunto, onde as mães ficam com os seus bebês. Durante a pesquisa, oferecemos, semanalmente, música de ninar nas enfermarias. No cotidiano de seu trabalho na maternidade, a psicologia médica realiza, ainda, atividades de interconsulta com os demais profissionais de saúde e participa de sessões clínicas semanais de perinatologia (clube do feto). Algumas dessas mulheres são ainda acompanhadas ambulatorialmente após a alta. A presente pesquisa visa aprimorar a assistência dessas pacientes, uma vez que a internação constitui um momento traumático para a gestante e sua família, acrescido do sentimento de abandono, pois estas pacientes ficam longe de suas referências, e a visitação nem sempre é frequente, devido a dificuldades financeiras e pouca disponibilidade de tempo dos familiares (muitas pacientes moram longe, em outros municípios). A coleta de dados da pesquisa se deu a partir da observação decorrente da prática clínica da primeira autora, tanto como coordenadora de grupos operativos com gestantes quanto por meio de contatos informais com os profissionais da maternidade. Foram realizadas anotações em diário de campo e registro de depoimentos. O presente artigo tem como foco a análise dos grupos operativos e os atendimentos individuais focais, no período de agosto de 2005 a fevereiro de 2009. Foram analisados 62 grupos operativos com 493 participantes, sendo 454 pacientes internadas na enfermaria de gestantes e 39 acompanhantes, sobretudo pais e avós. O grupo operativo consiste em reunião focando tarefas específicas, no caso, como lidar com uma gravidez de alto risco fetal ou a internação hospitalar, por exemplo (Rivière, 1988). Esse grupo é coordenado pela primeira autora e realizado semanalmente com as gestantes internadas na enfermaria – e os familiares que as estiverem acompanhando no momento . Considera-se sempre oportuna a participação de algum membro da equipe de saúde da enfermaria. Além da triagem de pacientes para atendimento individual, esse grupo pretende contribuir para o maior acesso das pacientes à informação, para o acolhimento das questões emocionais, bem como para o estímulo e valorização do suporte mútuo (Moura, Carneiro, 2010). Neste estudo empregou-se metodologia qualitativa, com emprego de observação participante e análise dos dados apoiada nas pesquisas desenvolvidas por Spink (1999). Com base em uma perspectiva construcionista, buscou-se analisar a produção de sentidos a partir de práticas discursivas dos sujeitos da pesquisa, por meio do levantamento e seleção de temas recorrentes expressos (Spink, 1999). Consideramos como sujeitos da pesquisa: o Sistema Terapêutico, constituído pela criança, sua família (gestante, puérpera e, sobretudo, o pai ) e profissionais de saúde das enfermarias de gestantes e alojamento conjunto do IFF.

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Além de uma tomada dos temas recorrentes nos grupos, analisamos a trajetória de uma gestante que foi acompanhada em psicoterapia durante dois anos, pois esteve internada com gravidez de feto tido como inviável, teve sua filha que permaneceu internada neste hospital ao longo dos seis meses de sua vida.

Contextualização teórica O vínculo mãe-bebê e sua importância para o desenvolvimento afetivo do ser humano é objeto de pesquisa, sobretudo, a partir dos anos 1950. Bowlby (1984), psiquiatra inglês, apoiado em método observacional etológico, apresenta a hipótese de que a necessidade de apego é, também, primária (ou seja, não derivada de nenhuma outra), e fundamental para o desenvolvimento da personalidade. No final da década de 1960, os relatórios de Mary Ainsworth sobre suas observações em Uganda e seu Baltimore Longitudinal Study estabelecem o caminho dos estudos sobre o apego na tradição BowlbyAinsworth para algumas gerações de pesquisadores (Grossmann, Grossmann, Waters, 2008). Para Bowlby (1984), o bebê nasce com uma vasta gama de potencial de ação pronta para ser ativada (sucção, acompanhamento ocular, preensão, choro, dito de outra forma, os reflexos arcaicos), e que tais ações se endereçam progressivamente a uma figura cada vez mais discriminada, que, na nossa sociedade, é representada pela figura da mãe, uma vez que é ela quem, frequentemente, assume os cuidados do bebê. À medida que a criança cresce, sua gama de comportamentos de apego se enriquecem: sorriso, chamado, tentativa de contato, locomoção, que têm como meta a procura de proximidade com a figura de apego. A pulsão de apego se opera entre os homens pela busca de um contato – no duplo sentido corporal e social do termo – que garante uma dupla proteção contra os perigos exteriores e o estado psíquico interno de desamparo. Ela torna possível as mudanças de sinais em uma comunicação recíproca, onde cada parceiro se sente reconhecido pelo outro (Bowlby,1984). Para que o papel de socialização seja positivo, é necessário que a criança tenha a certeza de retomar o contato com sua mãe se ela desejar e no momento em que desejar; ela se torna, então, capaz de explorar seu ambiente (lugares estranhos e pessoas desconhecidas). Os estudos exploram, então, os efeitos da privação da figura de apego para o desenvolvimento afetivo do ser humano (Bowlby, 2006). Winnicott, em 1956, descreveu a preocupação materna primária – um estado que sensibiliza a mãe ao longo da gravidez – para perceber as necessidades do seu bebê. A competência do bebê como interlocutor ativo neste diálogo é, a cada dia, mais documentada e ressaltada (Golse, 2008; Brazelton, 1982; Stern, 1981). Os trabalhos de Montagu (1971) e Didier Anzieu (1989) evidenciam a influência precoce e prolongada das estimulações táteis sobre o funcionamento e desenvolvimento do indivíduo. A busca do contato corporal entre mãe e bebê é um fator essencial para o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social deste último. A pele é o primeiro instrumento e lugar de troca com o outro. Ela ocupa uma superfície muito maior do que qualquer outro órgão dos sentidos e aparece no embrião antes dos outros sistemas sensoriais (em torno do segundo mês de gestação), comportando uma grande densidade de receptores (Anzieu, 1989). Anzieu fala deste “envelope” tátil, mas, também, do sonoro, olfativo e visual. Na teoria de Winnicott (1978), a integração do Eu no tempo e espaço depende da maneira da mãe “segurar” (holding e handling) o recém-nascido. Este conceito foi ampliado para círculo maternante (Anzieu, 1989) e envelope de maternagem (Brazelton, 1988), o que nos permite pensar na importância de todos os demais contatos estabelecidos com a criança. O círculo materno é assim chamado porque ele “circunda” o bebê com um envelope externo feito de mensagens (Anzieu,1989). Frédérick Leboyer, obstetra francês, em seu livro “Shantala, A Arte Tradicional Indiana de Massagens para Bebês” (1976), fotografou a sequência de uma técnica milenar empregada por uma jovem mãe indiana paralítica que massageava seu filho em uma rua. Neste caso, a massagem se torna uma mensagem.

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Utilizamos, neste trabalho, o termo bebê nos referindo tanto ao feto como ao recém-nascido. Nossa escolha pelo termo bebê foi intencional no sentido de ressaltar a subjetividade, a afetividade. A observação de bebês ainda no útero se tornou possível com as tecnologias, sobretudo a ultrassonografia, ampliando nossa atenção para a vida afetiva fetal (Canault, 2001). Nesta perspectiva, a “conversa” com o bebê ainda em útero amplia e confirma o vínculo entre pais e filhos, a parentalidade. Evocamos os conhecimentos da haptonomia, criada por Frans Veldman (1989) após a segunda guerra mundial. O termo haptonomia vem do grego clássico “hapsis” e “hapteme”, que designam o tato, o sentido e o sentimento. A haptonomia se define como uma ciência humana empírica que acredita que o tocar pode confirmar afetivamente o outro dentro de sua existência para estabelecer um estado de segurança de base. A haptonomia perinatal se desenvolveu muito nos últimos vinte anos na França. No hospital, os cuidados das gestantes, do recém-nascido ou de crianças que necessitam uma maior permanência nesta instituição acontecem no banho, na troca de roupas, na arrumação da cama destes pacientes, no momento das refeições, durante o exame físico ou nos procedimentos invasivos realizados pelos profissionais de saúde. Os diferentes momentos, se valorizados devidamente, podem significar oportunidades de contato assegurador, fazendo uma enorme diferença para os pacientes (Brasil, 2011). A maneira como os cuidadores – pais, familiares ou profissionais de saúde – seguram o corpo da criança, como a carregam, a segurança que passam quando a sustentam são essenciais. O contato epidérmico pode ser total e terno, os cuidados rotineiros podem ser executados com ou sem calor afetivo, podem ou não trazer conforto e acolhimento. Entendemos que os cuidados podem ser técnicos e afetivos. O bebê recebe os gestos deste círculo maternante como uma estimulação, mas, também, como uma comunicação. Da perspectiva do profissional de saúde, em termos mais amplos, podemos constatar que a Medicina Ocidental Contemporânea, fundamentada na física clássica, estruturou-se com base no pensamento racional e nos procedimentos técnicos (Luz, 2004), buscando um elevado grau de determinação e objetividade. Deixou de lado, em contrapartida, a arte de curar, que implica criatividade, pois exige do terapeuta mais do que assimilação de conhecimento, exige sensibilidade e intuição para lidar com o novo, o contingente e o desconhecido (Guimarães, 2005). Lilia Schraiber refere-se ao trabalho médico moderno como uma “estrutura instável”, uma vez que a prática clínica possui um lado técnico, auxiliada pelo desenvolvimento das ciências e das tecnologias, mas possui, também, outra dimensão que recai, segundo a autora, “na singularização do ato, nas especificidades de cada intervenção em particular, para o que é preciso uma técnica mais criativa, em que seu agente seja capaz de inovar” (Schraiber, 1997, p.175). Nessa instância, a prática clínica aproxima-se da arte, pois requer do profissional de saúde uma sensibilidade às especificidades de cada situação, sendo a intervenção fruto e origem da experiência individual, e duplamente particularizada, pois incide sobre cada indivíduo, a cada encontro. Nesse sentido, ressaltamos a importância e a singularidade do encontro terapêutico, que se constitui não somente enquanto aspectos técnicos, mas é permeado por afetos, que, segundo Espinosa (1973), não têm o sentido de emoções, mas simplesmente daquilo que afeta, atinge, modifica, aumentando ou diminuindo a potência do indivíduo. Pois, para esse autor, nossos corpos são constituídos por relações internas entre os órgãos, por relações externas com outros corpos e por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se destruir. “Deixar-se afetar” é parte importante do encontro terapêutico e da construção conjunta de um processo terapêutico, e isto implica uma disponibilidade para o encontro por parte do profissional de saúde, um deixar-se fluir junto ao tempo, ao “aqui e agora”. Tom Andersen (2002) define a intuição como um estado de se estar aberto às respostas que vêm de “dentro” quando se é tocado pelo que vem de “fora”. O autor pontua que os toques que vêm ‘de fora’ chegam até os olhos, ouvidos e pele. “Se estou aberto e recolho esses toques, terei ‘respostas’ ‘dentro’ de mim que me dirão como reagir aos toques” (2002, p.151). Para o filósofo francês Henri Bergson (1974), a intuição se dá a partir dos sentidos e da sensibilidade, que se expressam quando o sujeito está aberto e em sintonia com o momento presente, pulsando junto 397


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com o outro e com tudo aquilo que os circunda. Além disso, o autor assinala que é necessário que haja também uma percepção de si mesmo, ou seja, uma percepção duplicada, onde o sujeito se vê a partir da situação presente, de forma que todos os seus sentidos estejam presentes naquele momento. A singularidade do Método Intuitivo, proposto por Bergson, recai, sobretudo, em uma atitude de despojamento diante das ideias preconcebidas e, portanto, fixas e imutáveis, em função de um deixarse fluir, junto ao tempo, para que, a partir dessa vivência harmônica na ‘duração’, possam emergir os signos e sinais capazes de dar as chaves para a compreensão do sofrimento do outro. A partir dessa vivência compartilhada, permeada por afetos, sensações, ideias e percepções sensíveis, o profissional de saúde torna-se mais apto a intuir, através de sua sensibilidade, aquilo que pode estar afligindo o seu paciente. A intuição apresenta-se sempre como uma totalidade, sob a forma de síntese, mas, logo em seguida, vem o pensamento racional para elaborar, comparar e analisar aquilo que foi intuído, recorrendo ao conhecimento que o profissional já possuía anteriormente. Bergson pretende, com este método, substituir os conceitos eternos pela contínua novidade, através da ideia de criação; almeja alcançar isto com a participação consciente dos sujeitos nesta criação (Guimarães, 2005).

Discussão Ambiência O período perinatal implica um processo de mudança para as famílias. Aqui, parto, partir, deixar partir, se despedir do bebê ideal e fazer vínculo com o bebê real também não é simples. É admirável a criatividade, a coragem dessas famílias ao enfrentarem as dificuldades de cada momento. É traumática para os pais a vivência de uma gravidez de alto risco fetal. O fato de gerar uma criança malformada representa um golpe importante para a qualidade do vínculo pais-bebê. Observamos ambivalência, especialmente intensa, nestas situações, narradas nos depoimentos: “Eu não sei se vou conseguir ser uma boa mãe para esta criança, não sei se vou conseguir cuidar dele”. “Eu estou aqui internada faz muito tempo, mas quando eu desanimo, eu penso nele, no quanto ele precisa de mim”. “O pai, assim que soube dos problemas com nosso bebê desapareceu”. “Tem um ditado que diz que filho feio não tem pai”. “Se eu pudesse, eu (grávida internada) também sumia, deixava a barriga aqui no hospital e ia dar uma volta para arejar, descansar do assunto... mas não dá, né?”

Muitos homens, ao saberem dos problemas com o bebê, não suportam a intensidade dos sentimentos e se separam destas mães que, quando podem, recorrem às suas famílias de origem. Mais uma razão para que o ambiente neste hospital seja especialmente acolhedor e protetor do binômio mãe-filho. Também é ambivalente o sentimento do profissional que lida cotidianamente com essa realidade. Em muitos momentos, ele se pergunta se deve ou não investir naquela gravidez, naquele bebê. Suportar essas ambivalências é tarefa difícil para todo o sistema terapêutico. É traumático para estas grávidas, fragilizadas pela gravidez de alto risco, permanecerem internadas, longe de suas referências familiares, ambientais e sociais. Queixam-se da falta de acompanhante durante a internação ou da restrição de horários de visitas: “Ficar longe do meu marido, da minha casa, do meu banheiro e até dos meus problemas é muito difícil”; “Moramos muito longe, meu marido trabalha, só pode vir me visitar fora do horário de visitas, isso quando pode me visitar porque gasta muito tempo e dinheiro de passagem para vir aqui”. Vale a pena ressaltar como o telefone celular contribuiu para a comunicação dessas pacientes com seus familiares nos últimos dez anos. Hoje, a maioria tem um celular para se comunicar nas emergências (clínicas e emocionais). Antes dispunham de um telefone público no andar da maternidade ou os familiares podiam ligar para a maternidade para falar com os profissionais e ter notícias.

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O ambiente hospitalar muitas vezes intensifica o isolamento social dessas pacientes: “Daqui não sei se é dia ou noite porque as luzes ficam acesas direto, se o tempo tá bom ou vai chover não dá prá ver, nem sei direito que dia é hoje, aqui a gente perde a noção do tempo”. Os ruídos no hospital também contribuem para o isolamento – alarmes de equipamentos que disparam todo o tempo, o choro ou o grito de outras pacientes –, assim como o cheiro da UTI. O trabalho realizado no IFF segue alguns conceitos preconizados pela Política Nacional de Humanização (PNH) vigente no Ministério da Saúde. Um desses conceitos refere-se à “ambiência” do espaço hospitalar, que diz respeito a três eixos fundamentais: em sentido físico, em relação ao potencial de possibilitar a produção de subjetividades, e como ferramenta facilitadora do processo de trabalho (Brasil, 2006). A ambiência física nos espaços do IFF valoriza elementos do ambiente que interagem de forma positiva, na medida do possível, com as pessoas, tais como: som ambiente com músicas de ninar, cor e enfeites (desenhos, dobraduras etc.) utilizados como decoração nas paredes, iluminação, cheiro etc. –, de forma a propiciar conforto e acolhimento. Profissionais e pacientes referem bastante satisfação quando, nas sextas-feiras, oferecemos música ambiente (cantigas de ninar brasileiras) no alojamento conjunto: “Me lembrei da minha infância”, “meu filho que estava chorando, acabou dormindo”, “hoje vocês demoraram a chegar”. Tais músicas os conectam com suas próprias infâncias, suas histórias familiares de cuidados de crianças. Percebemos que a maternidade em geral é um ambiente essencialmente feminino, frequentado pelas mães e cuidadoras, na sua maioria mulheres. Atualmente, procuramos incentivar a frequência do pai nos cuidados da criança desde o evento gravidez, parto e puerpério. A presença do pai no acompanhamento da gravidez, no parto e nos cuidados das crianças fortalece seu vínculo afetivo com a criança e sua família. Culturalmente, percebemos o homem, o pai, como aquele que envolve e protege o binômio mãe-filho. Muitas vezes, utilizamos músicas de ninar cantadas por homem com o intuito de valorizar sua presença. Quanto ao potencial de possibilitar a produção de subjetividades, as gestantes estão especialmente sensíveis à qualidade dos vínculos no ambiente hospitalar devido à gravidez, ao alto risco fetal e ao afastamento de seu apoio social habitual. Elas elegem naturalmente alguns profissionais para buscarem apoio emocional e, mesmo, informações durante a internação; percebem, à sua maneira, a qualidade do vínculo: “não tem jeito, o meu santo cruza com algumas pessoas aqui, com outras não”. Por outro lado, diversas vezes, os profissionais buscam apoio da psicologia se queixando que aquela paciente está com implicância com eles e que questiona sua competência técnica. Trata-se, muitas vezes, de um mecanismo de defesa denominado projeção, em que a paciente projeta, nos profissionais, o seu sentimento de incompetência, a culpa pela situação ora vivida. Alguns profissionais reconhecem que, por excesso de trabalho ou questões pessoais, por vezes, executam suas atividades de forma mecânica (“estava no automático”). Entretanto, já podemos considerar um avanço nas relações da equipe multiprofissional o fato de esses profissionais terem esta percepção. Talvez alguns estejam sendo estimulados a refletir sobre suas ações a partir da sua participação nos grupos ou nos contatos com profissionais da psicologia. Muitos ainda não percebem o excesso de estímulos visuais e sonoros, outros desconhecem os protocolos para lidar com a dor nos recém-nascidos. As gestantes se queixam muito da forma com que as más notícias são dadas pelos profissionais. Os termos técnicos, a frieza do profissional, sua distância, a falta de preparo para acolher o paciente nessa hora são recorrentes: “O médico foi falando logo que o meu bebê tinha problema, não tinha jeito, não ia sobreviver. Eu tava sozinha, fiquei duas horas no ponto de ônibus sem conseguir sair dali”. Com relação às questões abordadas acima, um importante instrumento que pode auxiliar no processo de trabalho é o protocolo SPIKES (Brasil, 2010a), que, ao discutir a atenção ao vínculo nas situações de notícias difíceis, se refere ao S (setting), considerando que tais notícias não devem ser dadas no corredor, e que os celulares dos profissionais devem ser desligados, por exemplo. Que, inicialmente, P (perception), a percepção do paciente quanto a sua situação, deve ser escutada. Em seguida I (invitation), o paciente deve ser convidado a saber o que o profissional tem a lhe dizer. O

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conhecimento K (Knowledge) da má noticia é então fornecido ao paciente, seguido de E (empaty) empatia, para, então, se construir conjuntamente a S (strategy), ou seja, o projeto terapêutico. A empatia, o colocar-se no lugar do outro, ajuda os profissionais a se aproximarem do paciente para atenderem suas necessidades. Porém cabe lembrar que, por vezes, o que é ruim ou bom para os profissionais, talvez não o seja para o paciente. Apesar de muitas vezes sensibilizados para a importância desse contato assegurador, nós profissionais necessitamos estar atentos às questões culturais e individuais do paciente (sobretudo a criança maior ou a mulher), que, por vezes, não nos autoriza a tocá-lo, não suporta este contato. Esta autorização pode ser verbalizada ou não, mas diz respeito ao foro íntimo de cada um. Percebemos claramente a relatividade das vivências para cada ser humano ao analisar a trajetória de uma paciente que foi acompanhada em psicoterapia, durante dois anos. Durante a gravidez, essa paciente recebeu o diagnóstico de uma síndrome genética em seu feto, tido como incompatível com a vida extrauterina. Deu à luz uma menina que sobreviveu e permaneceu internada neste hospital durante os seis meses de sua vida. Para essa mãe, sua gravidez e o acompanhamento dedicado e afetivo ao seu bebê foi a “grande obra” de sua vida. Durante os anos que se seguiram à morte da criança e, mesmo nos contatos posteriores de follow up, essa mulher se refere de forma orgulhosa à experiência vivida, como tendo sido preciosa, edificante e transformadora de sua personalidade. Talvez sua religiosidade (ela era espírita) tenha contribuído para sua visão positiva da experiência, que, para muitos de nós, seria insuportável. Os grupos operativos realizados no hospital se apresentam como outra ferramenta que contribui para a melhoria do processo de trabalho. São realizados por meio de encontros entre os sujeitos e que possibilitam a expressão das subjetividades; são espaços que propiciam reflexões sobre os processos – tanto afetivos quanto de trabalho – vivenciados pelas gestantes, mães, familiares e profissionais. O grupo amplia o apoio social e contribui na construção de redes no ambiente hospitalar. Por fim, tais grupos se constituem em espaços que favorecem a otimização de recursos, o atendimento humanizado, acolhedor e resolutivo (Brasil, 2006). As gestantes de alto risco internadas neste hospital, em geral, percebem, de forma positiva, a participação nesses grupos, devido à oportunidade de falarem de seus sentimentos ambivalentes em relação àquela gravidez, de seus medos e recursos internos para lidarem com a adversidade. Muitas vezes, quando chegamos para o grupo semanal, elas já estão sentadas em roda nos esperando.

Acolhimento O “acolhimento” é outra diretriz preconizada pela PNH, e que se constitui como um modo ou ferramenta de produção da saúde. Nessa concepção, parte-se do princípio de que a vida não se passa apenas em cada um dos sujeitos, mas, sobretudo, se passa entre os sujeitos, nos vínculos que são construídos por meio das relações interpessoais. Pode-se dizer que o acolhimento se constitui numa tecnologia do encontro, que se insere no contexto de afetar e ser afetado mediante os encontros. Isto tem como consequências: o reconhecimento do usuário como sujeito e participante ativo no processo de produção da saúde; a valorização e a abertura para o encontro entre o profissional de saúde, o usuário e sua rede social; uma reorganização do atendimento em saúde a partir da problematização dos processos de trabalho, de modo a incluir toda a equipe multiprofissional; a elaboração de projetos terapêuticos junto aos usuários com base em suas demandas; a operacionalização de uma clínica ampliada que implica a abordagem do usuário para além da doença e suas queixas, bem como a construção de vínculo terapêutico para fortalecer e potencializar o processo de produção de saúde (Brasil, 2010b). Nesse sentido, podemos constatar que todas essas ferramentas de produção de saúde estão presentes no trabalho realizado nos grupos operativos e nos atendimentos individuais do IFF. Muitos cuidadores (especialmente a mãe) percebem e valorizam as oportunidades de oferecer conforto à criança, a partir do que Anzieu chama de envelopes tátil, sonoro, olfativo e visual. Assim, se sentem valorizados e importantes no processo terapêutico da criança, e o vínculo é fortalecido.

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O tocar pode ser adaptado às especificidades da criança hospitalizada e doente. Como exemplo, nos referimos ao fato de que o bebê prematuro é extremamente excitável e, por vezes, recorremos à colocação das mãos sobre sua cabeça ou corpo, sem nenhum movimento. Neste ambiente é necessário programar as diversas intervenções junto ao bebê internado a fim de racionalizar as frequentes ações, muitas vezes invasivas, a que a criança hospitalizada é submetida no seu dia a dia, reavaliando cotidianamente o protocolo de dor vigente no hospital pediátrico (Moreira, Braga, Morsch, 2003). Por vezes, envolvemos a criança doente com nossa voz, com outro conforto ambiental até que o contato físico seja possível. Apoiados ainda nos trabalhos de Anzieu, consideramos as vocalizações dos pais com o recém-nascido importante recurso na constituição, ampliação e, mesmo, recuperação do vínculo afetivo pais-bebê. As vocalizações pais-bebês, assim como as músicas de ninar, constituem tecnologia de baixo custo e grande impacto. Estes recursos representam a possibilidade de retomar ou preservar o compromisso dos pais com seus filhos, as funções parentais.

Considerações finais: implicações para a prática e para a pesquisa A atenção aos vínculos interpessoais precoces na atenção integral à primeira infância (zero a seis anos) se faz necessária. Como exemplos de formulações teóricas e de articulações intersetoriais de políticas públicas neste sentido, podemos citar a estratégia “Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis” do Ministério da Saúde (Brasil, 2010b), e a pesquisa avaliativa de sua implantação (Mendes, 2012). Essa estratégia preconiza o fortalecimento de vínculos, o investimento nas relações que favoreçam os laços entre a criança e seus cuidadores, assim como entre os distintos profissionais envolvidos nas práticas de gestão do cuidado. O foco está, portanto, nas dimensões relacionais entre a criança e seus cuidadores, proporcionando a constituição e o fortalecimento de vínculos entre os profissionais e destes com os usuários e a comunidade. Na clínica ampliada, referida anteriormente e que se constitui em uma das estratégias de acolhimento da PNH, os espaços concretos de diálogo, entre diferentes profissionais, em torno do atendimento prestado ao paciente – como as sessões clínicas – possibilitam uma assistência mais integral e efetiva. A coconstrução (profissionais e pacientes) de práticas humanizadas e integralizadas de atendimento valoriza a autonomia do paciente e seu protagonismo na construção de um processo terapêutico singular (Gomes, Pinheiro, 2005). No modelo de gestão compartilhada, o protagonismo das famílias na produção de cuidado de crianças de zero a seis anos é ampliado. Esse protagonismo se refere, também, ao profissional de saúde que, apesar de estar apoiado em protocolos – desejáveis e necessários –, deve ter autonomia de, no ato do cuidado, construir, junto ao paciente, seu desenho terapêutico. Vale a pena lembrar que, muitas vezes, desenvolvemos nossa competência técnica e nos esquecemos da competência afetiva, necessária para o trabalho diário com pessoas que sofrem. Corremos, assim, o risco de construírmos uma relação mecânica, automática e não criativa com o nosso trabalho (Moura, 2001). Num hospital, com a complexidade do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, a especial atenção ao vínculo pode contribuir de forma importante no fortalecimento da relação dos pais com seus filhos, ampliando as possibilidades do sistema terapêutico. A tarefa de lidar com as repercussões de vivências traumáticas para a criança e sua família pode, então, ser compartilhada. É assim que o investimento no sentido de ampliar os recursos de relacionamento dos profissionais de saúde e seus pacientes se faz necessário (Maldonado, Canella, 2003). No esforço de “medir” o vínculo no período perinatal, ressaltamos as escalas de vínculo (de Crawly, 1981, e Taylor et al., 2005, por exemplo) que visam contribuir para a observação do vínculo mãe-bebê durante a gravidez e o pós-parto. Ainda que limitadas, tais escalas apontam para o diagnóstico relacional. Hoje, a consciência da importância do pai amplia nosso olhar para a tríade pai-mãe-bebê. Variáveis como suporte social e resiliência atestam a complexidade da questão e aumentam as possibilidades de intervenção. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.393-404, abr./jun. 2013

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Importantes estudos longitudinais sobre apego, na tradição Bowlby-Ainsworth, demonstram a importância do vínculo pais-bebê e suas repercussões para o futuro afetivo do ser humano e para a sua capacidade de estabelecer e preservar laços. Inúmeras escalas avaliam os vínculos entre pais e filhos na gravidez, na primeira infância, entre seis e dez anos, na adolescência e no jovem adulto. A influência do apego seguro ou inseguro na qualidade da exploração e na resposta diante de situações estranhas ou novas é ressaltada (Grossmann, Grossmann, Waters, 2008). A psicopatologia do bebê em torno, sobretudo, dos transtornos alimentares, de sono, de choro ou cólicas do primeiro ano de vida evidencia disfunções nas primeiras interações (Alvarez, Golse, 2008; Mazet, Stoleru, 1990). Hoje, se fala em depressão do bebê e de sua repercussão na vida afetiva do ser humano (Braconnier, Golse, 2010). A terapêutica aponta para intervenções precoces com abordagem relacional de atenção aos vínculos. O que se discute hoje é quão precoce essas intervenções podem ser. Entendemos que a parentalidade – o processo de tornar-se pai e mãe – começa com o desejo de ter a criança, se desenvolve durante a gravidez e continua após o nascimento da criança. As intervenções precoces e consultas terapêuticas visam qualificar esses pais, no sentido de compreendê-los e ajudá-los criando espaços de reflexão e expressão (Solis-Ponton, 2004). Essa pesquisa ressaltou a especial importância do acolhimento e do vínculo entre profissionais de saúde e gestantes que vivem gravidezes de alto risco fetal. A atenção aos vínculos neste ambiente hospitalar pode favorecer a construção do vínculo possível entre pais e bebês em situações adversas. Trata-se de alta tecnologia de baixo custo com importantes repercussões para o desenvolvimento emocional destas crianças e de suas famílias.

Colaboradores Maria Martha Duque de Moura responsabilizou-se pela pesquisa de campo, pela análise dos dados e pela redação do artigo. Maria Beatriz Lisbôa Guimarães colaborou na análise dos dados e na redação do artigo. Madel Luz colaborou na redação do manuscrito. Referências ALVAREZ, L.; GOLSE, B. La psychiatrie du bébé. Paris: Puf Ed., 2008. ANDERSEN,T. Processos reflexivos. 2.ed. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2002. ANZIEU, D. O eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989. BERGSON, H. Introdução à metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores). BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______. Apego e perda. São Paulo: Martins Fontes, 1984. BRACONNIER, A.; GOLSE, B. Dépression su bébé, depression de l´adolescent. Toulouse: Ed. Érès, 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Ambiência. 2.ed. Brasília: MS, 2006. ______. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Comunicação de noticias difíceis: compartilhando desafios na atenção à saúde. Rio de Janeiro: Inca, 2010a.

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TOCAR: ATENÇÃO AO VÍNCULO NO AMBIENTE HOSPITALAR

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Palabras clave: Apego a objetos. Tacto terapéutico. Relaciones médico-paciente. Atención perinatal.

Recebido em 31/08/12. Aprovado em 10/03/13.

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artigos

“Largada sozinha, mas tudo bem”: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil *

Monique França Carneiro1 Jorge Alberto Bernstein Iriart2 Greice Maria de Souza Menezes3

CARNEIRO, M.F.; IRIART, J.A.B.; MENEZES, G.M.S. “Left alone, but that’s okay”: paradoxes of the experience of women hospitalized due to induced abortion in Salvador, Bahia, Brazil. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013. This study sought to understand the experiences of women hospitalized due to induced abortion, at three public hospitals in Salvador, Bahia, from the path followed and interactions established with professionals and other users. Semistructured interviews were conducted with 19 women, regarding their experiences at different times of hospitalization and their evaluations of attention received. These women’s previous abortions and deliveries, or those of acquaintances, influenced their expectations regarding attention received. Their experiences were marked by negative feelings and physical and emotional pain, but also by relief regarding the ending of pregnancy and the risk of death. Additional distress was caused by perceptions of being “uncared for” and attitudes of discrimination because of having aborted, thus going against current technical rules. Paradoxically, most of the women evaluated the attention positively, although with criticisms. Efforts need to be made towards humanizing care in abortion cases, taking into account these women’s experiences.

Keywords: Induced abortion. Hospitalization. Humanization of assistance.

O trabalho buscou compreender a experiência de mulheres internadas por abortamento provocado em três hospitais públicos de Salvador, Bahia, a partir do percurso e das interações que estabelecem com profissionais e outras usuárias. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 19 mulheres sobre a experiência nos distintos momentos da internação e a avaliação da atenção recebida. Abortos e partos anteriores, próprios ou de conhecidas suas, conformam expectativas sobre a atenção recebida. A experiência das mulheres foi marcada por sentimentos negativos, pela dor física e emocional, mas, também, pelo alívio com o fim da gravidez e do risco de morte. Sofrimento adicional foi condicionado pela percepção de um “não-cuidado” e atitudes de discriminação pelo aborto, contrariando as atuais normas técnicas. Paradoxalmente, a maioria avaliou positivamente a atenção, embora com críticas. Esforços devem ser feitos para humanizar a assistência ao abortamento, considerando as experiências das mulheres.

Palavras-chave: Abortamento induzido. Hospitalização. Humanização da assistência.

Elaborado com base em Carneiro (2012); estudo integrante de Menezes, Reis e Olschewski (2010); pesquisa realizada com financiamento e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva. 1-3 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário Canela. Salvador, BA, Brasil. 40.110-040. monifcm@gmail.com *

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“LARGADA SOZINHA, MAS TUDO BEM”: PARADOXOS...

Introdução O presente trabalho parte do pressuposto de que a experiência das mulheres na internação por abortamento se relaciona intimamente com a atenção recebida nas maternidades, sendo significada por elementos prévios à hospitalização – mas, também, por aqueles que se constituem no decorrer da assistência, incluindo a sua interação com os demais sujeitos que participam deste momento. Devido à criminalização do aborto no Brasil, parcela importante das mulheres recorre a métodos inseguros para realizá-lo (Adesse, Monteiro, Levin, 2008). Apesar da proibição, o abortamento é amplamente praticado no país, fazendo parte da vida reprodutiva das mulheres. Ao completar quarenta anos, uma em cada cinco mulheres residentes na zona urbana e alfabetizadas já fez aborto, com metade afirmando tê-lo induzido com medicamentos, particularmente o misoprostol ou Cytotec® (Diniz, Medeiros, 2010). Se, por um lado, a disseminação do uso do misoprostol no Brasil – adquirido clandestinamente – levou à maior autonomia e segurança das mulheres durante o abortamento (Barbosa, Arilha, 1993), por outro, as obrigou a completar o processo de abortamento nas maternidades públicas, devido a efeitos como dor e sangramento. A curetagem pós-aborto é o procedimento cirúrgico mais realizado na rede pública: aproximadamente 3,1 milhões entre 1995 e 2007, representando 238 mil internações por ano no país (Yu, 2010). A clandestinidade e a condenação social fazem do abortamento um evento muitas vezes vivido de maneira sofrida e solitária. Para uma parcela importante das mulheres que abortam, o hospital se configura como a última etapa de um processo que pode ter se iniciado dias, semanas ou até meses antes. No entanto, as maternidades ainda não estão preparadas para cuidar das mulheres que abortam. Sua cultura institucional – que tem, nos nascimentos, a sua “razão de ser”– dificulta ou, mesmo, impossibilita o atendimento humanizado, com práticas pouco atentas às demandas das mulheres que abortam, consideradas, pelos profissionais de saúde, menos legítimas do que das parturientes e de seus bebês (McCallum, Reis, Menezes, 2006). Esta forma de lidar com as mulheres em abortamento, para além da condenação moral, também tem suas raízes na concepção médico-curativa que orienta o modelo de atenção à saúde. Ayres (2006) critica este modelo, argumentando que o avanço das tecnologias assistenciais não resultou na humanização das práticas em saúde, que, progressivamente, têm se tornado distantes e insensíveis à satisfação das necessidades das pessoas. Em 2005, o Ministério da Saúde lançou o documento “Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica”, que já conta com uma segunda edição revisada e ampliada (Brasil, 2011). Com base nos pressupostos do cuidado humanizado, a Norma Técnica enfatiza a garantia de direitos e a promoção de novos “padrões culturais de atenção com base nas necessidades das mulheres” no âmbito do SUS (Brasil, 2005, p.5). Este documento, ao preconizar a qualificação da atenção e a articulação entre os componentes técnico e relacional da assistência, reconhece as mulheres como objeto das técnicas de saúde, mas, também, sujeitos autônomos e aspirantes ao bem-estar (Ayres, 2000). Entretanto, os valores negativos associados ao aborto e a hegemonia da concepção médico-curativa que orienta as práticas de saúde e a formação quase que estritamente biomédica ainda comprometem estas iniciativas de mudança. Em revisão sobre a produção científica brasileira, a respeito do aborto nos últimos vinte anos, constatou-se a insuficiência de trabalhos sobre a atenção prestada às mulheres (Brasil, 2008). Neste trabalho, procurou-se abordar a experiência das mulheres a partir do seu percurso e das interações que estabelecem com profissionais e outras mulheres nas diferentes etapas da atenção nas maternidades. Dinsdale et al. (2000) reconhecem que a experiência dos usuários nos serviços públicos é mediada pela conjunção de diversos fatores, individuais e sociais. Para os autores, esta experiência é influenciada por características individuais, pelas próprias percepções sobre os serviços e profissionais que os atendem, e pelas expectativas constituídas a partir de informações prévias sobre os serviços, das necessidades pessoais que desejam ter satisfeitas e das vivências concretas (passadas e presentes) nesses serviços. A experiência da internação das mulheres que abortam se reveste de particularidades, uma vez que a assistência oferecida também é influenciada pelo estigma social em torno do aborto, com posturas 406

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discriminatórias pelos profissionais. Segundo Farfán (2006), a prática do abortamento conta com uma criminalização moral, além de jurídica, que é internalizada pelas mulheres, causando-lhes sentimentos negativos como: vergonha, desonra e medo de exclusão social – e, consequentemente, restrição de direitos. O presente trabalho teve por objetivo compreender os significados e as experiências das mulheres na internação por abortamento, visando subsidiar a elaboração de políticas públicas para a melhoria da atenção prestada pelos serviços públicos de saúde.

Metodologia

4 Os dados desta pesquisa, desenvolvida entre 2008 e 2010, foram utilizados para a produção de Carneiro (2012) e deste artigo. A pesquisa original, mais ampla, não foi publicada.

Este trabalho integra a pesquisa mais ampla “Percepções e experiências de usuárias do Sistema Único de Saúde, de profissionais e de gestores da saúde sobre o aborto induzido em Salvador, Bahia”, desenvolvida pelo Programa Integrado em Gênero e Saúde-MUSA, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), e apoiada pelo Edital MCT/CNPq/MS SCTIE DCIT/CT Saúde da Mulher/Edital 22/2007 – Saúde da Mulher, Linha de Apoio 1.2.1 (Menezes, Reis, Olschewski, 2010)4. Essa pesquisa teve por objetivo compreender, de maneira comparativa, as experiências, práticas e opiniões sobre o abortamento induzido de usuárias do SUS, de profissionais diretamente ligados à atenção ao abortamento e de gestores de saúde, na cidade de Salvador, Bahia. A pesquisa foi realizada em três maternidades públicas (um hospital geral de médio porte com unidade obstétrica, situado na periferia da cidade; uma maternidade de grande porte; e uma terceira unidade onde eram desenvolvidas atividades de formação profissional na área da saúde), combinando entrevistas semiestruturadas e observação participante, durante nove meses entre 2008 e 2009. Para a análise apresentada no presente artigo, foram utilizados os dados de 19 das 69 entrevistas realizadas com mulheres maiores de 18 anos, que declararam abortamento provocado ou relataram sua indução até três anos antes, tendo sido internadas por este motivo. As entrevistas foram realizadas por três antropólogas e uma assistente de pesquisa, ainda nas maternidades ou após a alta, em local de escolha das entrevistadas. O roteiro de entrevista abordou, de modo aprofundado: a experiência e os significados associados ao aborto, em cada fase de internação hospitalar, sua visão sobre a assistência recebida e sobre a interação com profissionais de saúde e outras pacientes. Para Rabelo e Alves (2004), a experiência não remete apenas à repetição de fatos similares, mas se relaciona com a forma de ser-no-mundo dos sujeitos. Ela pressupõe a pertença dos sujeitos a uma tradição, que lhes fornece conceitos prévios pelos quais significam aquilo que é vivido; ao mesmo tempo, se fundamenta nas formas como os sujeitos são envolvidos pelas situações que se apresentam segundo o seu contexto cultural, informando-lhes suas possibilidades de ação. Assim, a experiência das mulheres é construída intersubjetivamente a partir da corporeidade e da apropriação de elementos do contexto sociocultural em que elas estão inseridas. As entrevistas foram gravadas e tiveram tempo médio de uma hora, sendo posteriormente transcritas. Estas foram selecionadas levando-se em consideração as características socioeconômicas, reprodutivas e clínicas das mulheres, visando constituir um corpus que expressasse a heterogeneidade do universo pesquisado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013

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“LARGADA SOZINHA, MAS TUDO BEM”: PARADOXOS...

As informantes que originaram os 19 relatos selecionados tinham idade entre 18 e 39 anos. A maioria (17) se autodeclarou negra (parda ou preta). Sete entrevistadas haviam cursado até o Fundamental incompleto, metade possuía Ensino Médio (cinco, completo, e três, incompleto) e apenas uma tinha nível Superior incompleto. A maioria havia sido criada na religião católica e, atualmente, a maior parte professava este mesmo credo ou outro; sete informaram não ter mais religião. Treze mulheres exerciam alguma atividade remunerada – trabalhadora doméstica, auxiliares de serviços gerais, vendedoras; seis não trabalhavam, sendo que quatro ainda moravam com os pais. Quase todas haviam engravidado dos seus maridos, namorados ou ex-companheiros; em apenas dois casos, a gravidez resultou de uma relação ocasional. Para cinco delas, aquela era a primeira gravidez e 14 já possuíam filhos, sendo que oito tinham apenas um; 12 nunca haviam abortado antes e, para seis outras, aquele era o segundo aborto. Aproximadamente um terço nunca havia sido internada anteriormente. A partir do roteiro semiestruturado, foram utilizados os fragmentos de entrevistas referentes aos blocos I (atendimento), V (o aborto dos outros e reflexão sobre a própria experiência), VII (avaliação da experiência), à pergunta final “Fala livre sobre experiência” e, ocasionalmente, a outros trechos cujos dados relacionavam-se aos objetivos desta pesquisa. Os dados obtidos foram submetidos à análise de conteúdo temática (Bardin, 2006), sendo identificadas categorias prévias referentes aos objetivos do trabalho (Gaskell, 2003), e também criadas novas categorias a partir de unidades de significação destacadas do texto. Foram estas: O aborto na maternidade: experiências das mulheres com a assistência, que aborda os elementos mais significativos da vivência das mulheres em cada etapa da assistência, além da relação com os sujeitos com quem interagem; e Mulheres e sua percepção sobre a assistência: desvendando um paradoxo, que dialoga com os sentidos mais gerais a respeito da internação, explorando percepções e a avaliação das mulheres quanto ao atendimento recebido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do ISC/UFBA e realizada mediante a aceitação do Termo de Consentimento Informado pelas participantes, em conformidade com a Resolução 96/196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Foram conferidos nomes fictícios para as entrevistadas para preservar-lhes o anonimato.

O aborto na maternidade: experiências das mulheres com a assistência Para abortar, 17 das 19 mulheres referiram o Cytotec® como o principal método, utilizado isoladamente ou combinado com chás, confirmando a ampla disseminação do uso do misoprostol na indução de abortos. Praticamente todas elas procuraram o hospital pelos sinais e sintomas decorrentes do aborto, sobretudo dor e sangramento. Entretanto, o percurso entre o aparecimento destes até a obtenção da assistência nas maternidades não foi direto para muitas delas, durando dias ou semanas. Várias razões foram citadas para o retardo na procura por estes serviços, sobretudo o medo de ser maltratada, contribuindo para o agravamento do estado de saúde de algumas mulheres – o que será aprofundado em estudo futuro. Na sua relação com os serviços, as mulheres antecipam uma possível discriminação, caracterizando o que alguns autores denominam de estigma sentido ou felt stigma (Corrigan, Lundin, 2001), mediante a percepção de ser portador de alguma característica socialmente desvalorizada, o que favorece sentimentos como culpa, vergonha, ansiedade e medo. Quase sempre elas informaram expectativas negativas quanto ao atendimento que receberiam nas maternidades. Baseadas nas experiências de internação por abortamento delas próprias e, sobretudo, de conhecidas suas, as mulheres esperavam sofrer discriminação e maus-tratos como punição dos profissionais por terem abortado, expressando o medo de serem julgadas.

Recepção, triagem e admissão A recepção é a primeira etapa da internação hospitalar, exceto quando as mulheres vêm reguladas de outras unidades ou em condições graves de saúde. As entrevistadas chegaram quase sempre com outras mulheres, que acompanharam parte ou todo o processo abortivo. Já na recepção, relataram ter havido questionamentos indevidos, por parte do pessoal administrativo, sobre o tipo de abortamento. 408

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Sobretudo pelos sintomas agudos apresentados, mas, também, para evitar estas perguntas, muitas mulheres delegaram o preenchimento da ficha às acompanhantes. Este foi o setor onde elas menos referem interação com profissionais da maternidade. Mesmo para aquelas que foram prontamente atendidas, o preenchimento da ficha cumprira apenas uma etapa formal e obrigatória antes da triagem. Metade das entrevistadas disse ter esperado pouco até a triagem, referindo a gravidade dos sintomas ou a ausência de filas como os motivos para a celeridade. O atendimento ágil e facilitado foi pontuado como um elemento positivo da atenção recebida, consoante com a Norma Técnica (Brasil, 2011). A consulta de triagem com médico(a) demarca a primeira etapa de um processo de transformação das mulheres em pacientes, que se completará com os procedimentos da internação. Em geral, as mulheres referiram ter entrado sozinhas no consultório, permanecendo quase sempre dessa forma até o final da internação. A Norma Técnica (Brasil, 2011) não trata sobre acompanhantes para mulheres que abortaram; assim como ocorre na atenção às parturientes, as maternidades não reconhecem a presença dos acompanhantes como um benefício, mas como um problema a ser administrado (Dias, 2006). Parte das mulheres referiu ter sido bem tratada pelos profissionais, sendo tranquilizadas sobre sua saúde e cuidados recebidos. A ausência de maus-tratos e a atenção às demandas emocionais, já apontadas em pesquisas anteriores (Bertolani, Oliveira, 2010; Motta, 2005), foram citadas como elementos que positivaram a percepção de algumas mulheres sobre a assistência. Entretanto, o relato mais frequente foi de um tratamento distanciado e mediado pela execução de procedimentos técnicos, não sendo raros os relatos de discriminação, julgamentos e, por vezes, maus-tratos, como em outros trabalhos (Bertolani, Oliveira, 2010; Mariutti, Almeida, Panobianco, 2007). A maioria das entrevistadas declara ter falado “a verdade” sobre o abortamento, relatando que o fizeram para evitar indisposições com a equipe caso o aborto fosse descoberto, atentas a possíveis punições pelo duplo delito de terem abortado e mentido sobre isso. Outras, temendo ter seus sintomas agravados ou não terem acesso ao tratamento adequado, mencionaram também terem se sentido compelidas a falar a verdade ao médico – profissional para quem “não se deve mentir”: “[Falei a verdade] porque ou ele ia descobrir, ou então poderia até me prejudicar. Porque uma amiga minha [...] falou que tinha tomado uma queda [...]. Aí [o médico] virou pra ela e falou assim: ’Se você não quiser me falar a verdade, eu não posso te ajudar. Você mentiu’. [...] Aí foi que ela voltou atrás [...] Disse que o médico disse pra ela: ‘Tem tanta mãe aí querendo botar filho no mundo e você podendo, faz uma injustiça dessa’, não sei o quê, ‘Vocês têm que morrer’. Falou um monte de coisa horrível pra ela”. (Sônia, idade desconhecida)

A revelação do tipo do aborto provoca distintas reações nos profissionais. Alguns médicos simplesmente prosseguiam com a consulta, no máximo aconselhando-as a buscarem o planejamento familiar. Muitas referiram terem sido alertadas sobre os riscos que correram e, sentindo-se bem cuidadas, tenderam a concordar com a postura destes profissionais, considerando seus conselhos algo “para o seu bem”. Outras disseram ter sido quase imediatamente repreendidas após a confirmação do tipo de abortamento, sendo inclusive agredidas verbalmente: “Ele ficou falando um bocado de coisa, eu nem lembro. Tudo com a maior ignorância! Me tratando mal... [...] o médico foi super grosso! Eu até discuti com ele e disse que ele era muito ignorante. Aí ele disse que eu ia ficar lá esperando um dia... Ele disse: ’Agora você vai ficar curtindo sua dor a noite inteira. Porque a gente só vai fazer sua curetagem amanhã [...]’”. (Flávia, 18)

A maioria não reagiu ou ficou indiferente aos maus-tratos, permanecendo silenciosa, como estratégia para evitar possíveis punições. Alguns autores apontam que a não-reação é comum em várias situações de vida das usuárias de baixa renda, pelo medo de retaliações e de perder o acesso aos serviços dos quais necessitam (McCallum, Reis, Menezes, 2006; Vaitsman, Andrade, 2005). No caso das entrevistadas, isso evidencia o estigma social e o medo de exclusão social, com a consequente privação de direitos, pelo fato de terem abortado (Farfán, 2006). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013

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Para muitas mulheres, aquele era o primeiro aborto ou, mesmo, a primeira experiência de hospitalização. Dessa forma, desconheciam o ambiente, as etapas do atendimento e os procedimentos aos quais se submeteriam, apresentando ansiedade e medo. Os cuidados admissionais são de responsabilidade da equipe de Enfermagem, que preparava as mulheres para a internação – como etapas de um “ritual” de passagem, consolidando a sua transformação em pacientes da maternidade. Primeiro, as mulheres receberam as roupas do hospital, abandonando suas vestes e adereços pessoais, mesmo as peças íntimas, que foram colocadas em sacos e, quando possível, entregues aos acompanhantes. Neste momento, muitos destes foram informados sobre a internação, sendo orientados a irem embora. Algumas eram, ainda, levadas ao banho. Finalizou esta etapa a instalação do acesso venoso, por meio do qual as mulheres ficaram presas ao leito ou com restrições de mobilidade devido ao suporte de metal que fixava o soro e as medicações recebidas. Finalmente, muitas foram colocadas em cadeiras de rodas ou macas e levadas a outros setores da maternidade, deixando de locomover-se por conta própria e intensificando, assim, a perda de autonomia. O processo admissional marca uma espécie de transformação das mulheres, deslocando-as do seu meio social, padronizando e apagando dos seus corpos os vestígios do “mundo lá fora” e limitando sua liberdade. Ao final do processo, as mulheres deixaram de ser Amandas, Déboras, Priscilas, e tornaramse, enfim, pacientes, as “curetas” do leito 1, 2, 3...

Pré-parto (PP) As mulheres admitidas sem complicações aparentes aguardaram no PP até alcançarem as condições requeridas para o esvaziamento uterino. Em algumas maternidades, a depender da demanda, este espaço é dividido com parturientes, o que nem sempre foi avaliado positivamente pelas mulheres. Apesar da recomendação da Norma Técnica (Brasil, 2011) quanto à garantia de privacidade e confidencialidade das informações, a falta de privacidade e o pouco respeito ao pudor e ao sigilo das informações foram relatados pelas mulheres, quer na pouca atenção dada ao fechamento das portas, quer na obrigatoriedade do uso das roupas hospitalares que não cobriam adequadamente seus corpos, o que contribuiu para que se sentissem expostas. As falas indicam a precária interação com os profissionais no setor, que pouco se dirigiam a elas, exceto quando estes necessitavam executar cuidados. Somados à longa espera, as informações escassas e o pequeno número de procedimentos recebidos causaram, em algumas entrevistadas, a impressão de que foram pouco assistidas ou até abandonadas. O convívio com a dor foi um dos elementos mais marcantes da experiência das mulheres no PP. Para boa parte destas, a dor foi prolongada até a realização da curetagem, sem que lhes fossem oferecidos medicamentos ou apoio verbal que as tranquilizassem. Ainda que haja o reconhecimento da dor como fenômeno fisiológico, este é também emocional e cultural, influenciado pelo “medo da mulher em relação ao procedimento proposto e sua compreensão em relação ao abortamento” (Brasil, 2011, p.38). “Ah, eu me sentia muito mal, porque ela atendia, né, mas era mais uma coisa de deixar você num canto, não iam conversar, não procuravam saber nada. [...] Entrevistadora: E era uma dor muito grande? Muito grande! Muito, muito. Muito dolorido. [...] aqui eu comi muita dor e esperei bastante! Fiquei de sete da manhã às cinco da tarde”. (Sonia, idade desconhecida)

Sofrimento adicional foi condicionado ao perceberem situações de discriminação no atendimento pelo fato de terem abortado. Em alguns casos, elas comentaram que se sentiram preteridas na assistência em relação às parturientes e àquelas com abortamento espontâneo, denunciando uma punição velada que se materializa através de um cuidado postergado e da falta de orientações: “Entrou outras pessoas e perguntavam se era curetagem e não davam muita importância. Estava todo mundo mais voltado para a moça que ia ter neném e estava correndo riscos 410

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porque estava com pressão alta. [...] Teve uma hora que meu soro saiu da veia e eu tive que chamar alguém pra colocar e olha que a sala estava cheia de enfermeiras [...]. Não davam muita importância pra mim e pra gente [que fez aborto] não”. (Sara, 27)

Diante do sofrimento físico e emocional, poucas palavras de apoio eram dirigidas pelos profissionais às mulheres. Aquelas que abortaram se sentiam relativamente invisíveis na maternidade: suas vozes não eram escutadas e, suas demandas, negadas. Para McCallum, Reis e Menezes (2006), aspectos organizacionais das maternidades privilegiam a atenção ao parto e aos nascimentos, e reproduzem, por meio de seus agentes (os profissionais de saúde), práticas que discriminam as mulheres que abortaram. Segundo as autoras, esta noção é internalizada pelas mulheres que abortam, as quais passam a considerar as demandas das parturientes mais importantes que as suas, como expressaram algumas entrevistadas no presente estudo. Em geral, as mulheres argumentaram que, em face da postura dos profissionais, não devem reagir com “ignorância”, pois “vai ser pior”. Elas avaliavam que devem se “controlar”, sem emitir expressões de insatisfação ou gritos de dor, para evitar “perversidade”, “pirraças”, punições, enfim. No PP, as mulheres continuaram a reelaborar suas percepções e sentimentos com relação ao aborto, sendo comum culpa, desespero e arrependimento pelo aborto realizado. Além de sentimentos negativos, a reflexão sobre a experiência vivenciada até ali possibilitou, também, a emergência de sentimentos positivos, relacionados ao desejo de ter a saúde recuperada, de rever os filhos e de retornar ao seu cotidiano – motivações que as fizeram suportar a internação e quererem “ficar boas”.

Sala de procedimentos O centro cirúrgico ou sala de curetagem se destaca das demais pela presença de equipamentos diferenciados e mais sofisticados. Esta aparelhagem, necessária à realização do esvaziamento uterino e ao suporte às possíveis complicações, de certa forma surpreende as mulheres e lhes fornece outra percepção sobre os riscos aos quais se submeteram ao provocarem o aborto. O temor das mulheres foi agravado pela ausência de informações sobre o procedimento. Muitas consideravam a curetagem um procedimento arriscado e desconhecido, referindo medo de morrer e ansiedade, sobretudo aquelas que o realizavam pela primeira vez. Apesar da obrigatoriedade do uso de anestésicos para o controle da dor causada pelo procedimento (Brasil, 2011), o conhecimento prévio de casos de mulheres que passaram pela curetagem sem anestesia gerava a expectativa de um procedimento bastante doloroso. Todas foram submetidas à anestesia, mas não receberam informações esclarecedoras sobre o procedimento. Quase todas as entrevistadas realizaram curetagem para esvaziamento uterino, a despeito da indicação da Aspiração Manual Intrauterina (AMIU) como método preferencial para gestações até 12 semanas (Brasil, 2011), pela sua maior eficácia, além de menores custos, incômodos físicos e complicações posteriores. Das entrevistadas, somente Vanessa (26 anos, universitária) foi submetida à AMIU, seguindo indicação de sua ginecologista. Esta foi a única com quem a equipe compartilhou a decisão sobre as técnicas disponíveis e que recebeu informações completas sobre o procedimento. No presente trabalho, a maioria das entrevistadas não foi informada adequadamente sobre o procedimento de esvaziamento uterino e nem participou da escolha do método, contrariando a Norma Técnica (Brasil, 2011). A partir das informações de conhecidas ou do que puderam visualizar do procedimento de outras mulheres enquanto ainda acordadas, grande parte acreditava que a “coletagem”, como muitas denominaram, consistia em “pôr o útero para fora” e “raspá-lo” para retirar “restos de parto” ou de Cytotec e, às vezes, “queimá-lo” com substâncias curativas: “Olhe, é assim: quando eu fui entrando lá na sala, eu vi uma menina lá aberta, um negócio vermelho pro lado de fora... Eu achei que fosse o útero. Mas como eu já estava meio vacilando, eu já estava até sentindo febre, então eu creio que foi coisa da minha cabeça. [...] depois eu perguntei a enfermeira e ela disse que achava que era mais ou menos isso. Então eu acredito que bota o útero para o lado de fora e faz uma raspagem pra depois queimar”. (Priscila, 27)

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Entrevistadora: “E o que é que você acha que o médico fez? Assim, qual a idéia que você tem de como é o procedimento da curetagem? “Como os outros me falam, né, que eu não vi, eles tiram meu útero fora, limpa e depois põem lá de novo. É o que me falaram. [...] Um bocado de gente mais velhas assim que eu procurei me informar”. (Amanda, 20)

As mulheres compararam a curetagem a uma “limpeza”, apropriando-se de uma metáfora comumente utilizada pelos profissionais de saúde para falar sobre o objetivo da técnica: uma “limpeza” simbólica, que remove a “sujeira” ou desordem causada pelo aborto realizado, que recuperava seus corpos. O procedimento é de execução rápida, o que surpreendeu as mulheres. A sua efetividade e rapidez contribuíram para uma percepção positiva acerca da atenção recebida: “[Sentia] Que eu tava boa. Boa para o que eu estava né, porque o doutor disse que eu estava em risco de perder o útero, né, então...” (Milene, 23). Ao contrário, a permanência dos sintomas após a curetagem foi fator para que considerassem o atendimento ruim. A maior parte das mulheres, por não apresentar condições graves após a curetagem, seguiu até a enfermaria para receber os últimos cuidados e aguardar a alta.

Enfermaria e alta Apesar da diferença estrutural das maternidades, as rotinas comuns às enfermarias incluem: o banho, as visitas dos médicos no turno matutino, os horários específicos para refeições, medicamentos e coleta de material para exames, e a alta hospitalar ao final da manhã. As mulheres comentaram ter recebido poucas visitas, permanecendo sozinhas ou com outras mulheres, sendo algumas puérperas com seus recém-nascidos. A despeito da omissão da Norma Técnica (Brasil, 2011) quanto ao alojamento, a convivência com os bebês levou algumas mulheres a se imaginarem no lugar das parturientes e a pensarem num futuro que poderia ter se concretizado. Este convívio, em termos simbólicos, evidencia a lógica da organização das maternidades na assistência às mulheres que abortam e, por conseguinte, colabora para uma experiência mais sofrida: “Muita mulher com bebezinho. Tanto que eu nem queria dormir aqui por isso. [...] Eu vejo tanto nenê e isso me dá um peso na consciência. [...] Quando eu olho pros outros nenês assim, eu fico com uma dor no coração danada! Porque eu poderia ter passado por esse processo de gestação, parto, mas eu não vou poder sentir nada disso...”. (Valdete, 21)

As entrevistadas do presente trabalho relataram situações nas quais eram perguntadas sobre seus bebês, sentindo-se veladamente julgadas. Algumas delas manifestaram claramente o desejo de compartilhar o espaço apenas com outras mulheres que abortaram, revelando preocupação com a influência do ambiente no seu bem-estar. Entretanto, a precária interação social com os profissionais e as escassas visitas tornaram, muitas vezes, a convivência com as puérperas a única forma de fugir da solidão e superar o isolamento social. O diálogo com as outras mulheres foi considerado bastante positivo pelas entrevistadas, tendo importância, sobretudo, para aquelas que nunca abortaram ou foram internadas antes. Algumas vezes, as conversas foram momentos preciosos nos quais buscavam apoio e compreensão para enfrentar a experiência da internação e do próprio aborto. Também lhes permitiu pensar sobre seus relacionamentos, suas vidas, enfim, o que lhes havia acontecido, ajudando-as a elaborar as primeiras narrativas sobre o vivido, além de reflexões sobre a moralidade do aborto e em que condições a sua realização seria justificável. Algumas mulheres disseram ter reforçado a concepção prévia de que o abortamento, sobretudo em determinadas circunstâncias, era um ato moralmente condenável. Outras admitiram mudanças nas posições anteriormente contrárias, uma vez que a experiência pessoal com o aborto lhes havia fornecido outro ponto de vista. Segundo Ardaillon (1997), na experiência com o aborto, as mulheres permanecem numa constante mediação entre ideologias, sua realidade social e seus desejos, em que fica evidente a 412

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disjunção entre crenças e comportamentos. Para a autora, suas consciências são, portanto, construídas na práxis, na experiência com a situação concreta do abortamento, segundo o que Petchesky (1986 apud Ardaillon, 1997) chamou de moralidade da situação – permitindo às mulheres realizarem o abortamento e considerá-lo correto sob aquelas circunstâncias, mesmo que, posteriormente, continue sendo considerado errado. Essa relação de cuidado, ajuda e solidariedade mútua entre as mulheres que abortaram, preenchendo lacunas deixadas pela falta de apoio dos profissionais, entretanto, não foi suficiente para evitar a impressão quase habitual de abandono e a sensação de que foram “largadas sozinhas”. O tratamento distanciado e meramente técnico de muitos profissionais, os poucos procedimentos e a constante falta de informação evidenciava-lhes descaso, além de punição por terem abortado: “Deve ser por que foi um aborto, né? Uma coisa que é discriminada, né, o aborto, quase ninguém aceita, então deve ter sido por isso [...]. Eu tô sozinha largada aqui, ninguém vem me ver. [...] Na mente deles isso é um crime. [...] Se fosse um caso pior, acho que estaria na mesma situação. Estaria aqui largada sozinha”. (Miralva, 24)

A situação pareceu se inverter, entretanto, nos casos em que se descompensaram clínica e, sobretudo, emocionalmente. Nestes, as mulheres passaram a ser objeto de maior atenção, inclusive de outros profissionais, como assistentes sociais e psicólogos – cuja presença, recomendada desde as primeiras etapas da assistência, pela Norma Técnica (Brasil, 2011), foi raramente mencionada. Via de regra, estes profissionais só eram requisitados em situações específicas, diante de demandas que não podiam ser resolvidas com os cuidados técnicos costumeiros: “Porque teve um momento que eu me desesperei lá, sai chorando pelos corredores pra falar com minha mãe. Porque eu lembrei do que eu fiz, e aí fiquei desesperada e liguei pra minha mãe dizendo que queria meu filho. Aí pronto, todo mundo do hospital veio, a assistente social veio conversar comigo, veio a médica também”. (Flávia, 18)

Após o fim dos sintomas físicos, muitas eram informadas de que já poderiam ter alta, mas ainda permaneceram horas sem avaliação médica, aguardando o resultado de exames ou apenas a formalização da alta. Para estas, a espera cumpria uma “burocracia” sem sentido, imposta pelas maternidades e, até mesmo, uma forma de castigo por terem abortado: “Só acho que me deixaram lá esperando por eu ter feito aquilo, né, por eu ter feito isso [aborto]. Aí mainha também achou a mesma coisa. Mainha disse: “Não tá tomando soro, não tá tomando medicação nenhuma, tão lhe prendendo aqui”. [...] Se eu não tava tomando medicação mais nenhuma, não tava sentindo nada, eles estavam me prendendo lá não sei pra quê!”. (Milene, 23)

Na alta, deveriam ser repassadas orientações sobre sinais de recuperação ou de alerta em caso de complicações, mas também sobre autocuidado e, sobretudo, contracepção pós-aborto (Brasil, 2011). Entretanto, as mulheres mencionaram poucas informações recebidas ainda na maternidade, sendo raras aquelas sobre o resguardo, retorno à atividade sexual, consulta de revisão e, especialmente, métodos contraceptivos. Contrariamente ao que recomenda a Norma Técnica (Brasil, 2011), não houve oferta da contracepção pós-aborto. Muitas foram aconselhadas a procurar o planejamento familiar por conta própria, revelando a ausência de uma relação formalizada entre as unidades de atenção à saúde da mulher, preconizada pela Norma Técnica na perspectiva da integralidade (Brasil, 2011). As poucas que saíram com receita de contraceptivo, sempre hormonal, geralmente mencionavam não ter participado desta escolha, e nenhuma das mulheres referiu orientação sobre o uso de preservativos. Além do reforço à medicalização do corpo por via da anticoncepção (Vieira, 1999), estas práticas reforçam a responsabilidade da contracepção sobre as mulheres (Moreira, Araújo, 2004) e focalizam a prevenção COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013

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apenas para a gravidez – expondo-as ao risco de contraírem doenças sexualmente transmissíveis, ao não promoverem a ação educativa e a dupla proteção com preservativo. A alta hospitalar representou o fim da experiência da internação. A volta para casa, ao permitir o retorno ao seu cotidiano e o contato com seus filhos e com as pessoas do seu meio social, propiciou a retomada das suas identidades. Com a alta, muitas esperavam ter encerrada a trajetória de sofrimento, que marcou a maior parte da experiência do abortamento e da internação, mesmo que nem sempre esperassem o fim do sofrimento emocional: “Olhe, na realidade, eu tava mais aflita de vir pra casa ver meus filhos. Eu não queria e eu estava me sentindo tão suja pelo que fiz e eu queria sair daquela situação porque eu via muitas pessoas chegando lá pelo mesmo motivo. Então eu começava a me sentir mal com aquilo...”. (Priscila, 27)

Mulheres e sua percepção sobre a assistência: um aparente paradoxo A percepção das entrevistadas sobre o atendimento recebido foi, sobretudo, positiva, com estas tendendo a valorizar mais os elementos positivos da experiência do que os negativos – mesmo quando reconheceram deficiências na atenção, tal como identificaram outros estudos (Bazotti, Stumm, Kirchner, 2009; Mariutti, Almeida, Panobianco, 2007; Nery et al., 2006; Motta, 2005). Isto confirma a argumentação de Andrade, Vaitsman e Farias (2010) sobre a tendência dos usuários de menor renda e escolaridade a terem baixas expectativas quanto aos serviços públicos de saúde, propiciando, consequentemente, maior satisfação com o atendimento, ainda que de baixa qualidade assistencial. Nos relatos, ficou claro que alguns elementos provocaram uma aparente discrepância entre a baixa qualidade do atendimento recebido e a avaliação positiva das mulheres: terem conseguido vaga na unidade, quando esperavam peregrinar pelas maternidades; a rapidez no atendimento, sobretudo na recepção e durante a curetagem; a regularidade na execução das rotinas e procedimentos técnicos além do atendimento às suas solicitações, diferindo da expectativa de negligência; a surpresa com um SUS que funciona, contrariando o senso comum sobre a precariedade dos serviços públicos; o alívio dos sintomas físicos, que afasta o medo da morte e oferece um parâmetro sobre a efetividade do cuidado; e não ter se sentido maltratada, julgada ou discriminada pelos profissionais de saúde, em oposição a uma expectativa prévia negativa. A despeito da avaliação positiva, a análise per si de cada uma das etapas da internação permitiu identificar críticas e insatisfações das mulheres sobre aspectos do atendimento que receberam. No entanto, parte das queixas das mulheres foi pontual e feita com ressalvas. O tratamento ríspido ou impessoal a elas dirigido, muitas vezes, foi considerado uma característica individual de certos membros da equipe ou típico de uma categoria profissional (geralmente médicos), ou, mesmo, uma prática que só ocorre em alguns plantões. Para elas, isto não está necessariamente ligado aos valores dos profissionais e, muito menos, aos aspectos culturais que orientam a organização da assistência ao aborto nas maternidades (McCallum, Reis, Menezes, 2006). Ainda, o preconceito dos profissionais com relação ao aborto nem sempre é percebido pelas mulheres na prática assistencial (Rebouças, 2010), lembrando que os esforços para a humanização dos serviços públicos de saúde podem estar contribuindo para reduzir as práticas consideradas negativas pelas mulheres e a percepção de problemas da atenção por parte destas. Ao mesmo tempo, algumas opinaram que o atendimento seria melhor se houvesse profissionais ou serviços de saúde específicos para atender mulheres que abortam. Isto porque a discriminação e os maus-tratos pela suspeição de terem provocado o abortamento se constituíram nas queixas mais importantes das mulheres, expressos na rispidez como alguns profissionais as trataram ou naquilo que foi mais comumente relatado por elas: o abandono que experimentaram durante a internação. Estes aspectos colaboraram fortemente para uma percepção negativa da assistência recebida. À luz da Norma Técnica (Brasil, 2011), foi flagrante a falta de informações das mulheres acerca dos cuidados recebidos no hospital e, sobretudo, de orientações no momento da alta – situação que se mostrou comum na atenção ao abortamento. Entretanto, isto muitas vezes passou despercebido pelas 414

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mulheres, e poucas entrevistadas perceberam espontaneamente como uma deficiência do atendimento, mas, sim, como expressão do padrão impessoal de relação com os profissionais de saúde na rede pública, característica do modelo de atenção vigente: “Nada, ninguém me disse nada! Na verdade [...] eles tratam bem, agora assim, informação, eles negam muito. [...] Eles tratam bem a pessoa, dão medicamento, dá o medicamento na hora certa, mas não dá satisfação nenhuma, nenhuma. Eles fazem o trabalho dele, mas eu não sei nem explicar. É como se a gente fosse uma coisa, um trabalho e não um ser humano que precisa de informação, que precisa saber o que está acontecendo com ele”. (Sara, 27)

Para além da percepção da qualidade da atenção recebida, ao final, as mulheres consideraram que esta experiência foi a mais difícil que vivenciaram. A despeito disso, ela se constituiu numa oportunidade para reavaliarem aspectos das suas vidas. Muitas mencionaram terem adquirido mais maturidade, responsabilidade e independência emocional, além de um senso de valorização pessoal que também reflete na postura frente aos parceiros e o desejo de retomar antigos sonhos e projetos de vida.

Considerações finais A experiência das mulheres na internação foi marcada, sobretudo, pelo sofrimento físico e emocional por terem abortado. Sentimentos negativos moldaram essa vivência, especialmente medo (da morte, do desconhecido, de ser maltratada), culpa e arrependimento, mas, também, alívio por não correrem mais risco de vida e terem conseguido finalizar aquela gravidez. Os relatos sobre o atendimento apontam na direção de um não-cuidado, distanciado da proposta de humanização preconizada para a atenção ao aborto (Brasil, 2011). Este não-cuidado pode estar sendo a forma pela qual a discriminação às mulheres que abortam ocorre nas maternidades públicas. O desrespeito ao pudor e à privacidade das mulheres, o abandono e o isolamento aos quais muitas estão submetidas, o não-manejo adequado da dor física e, sobretudo – aquilo que mais se sobressaiu nas falas das entrevistadas –, a falta de informações e de apoio emocional compõem este quadro. Verificou-se que as mulheres foram submetidas a uma desassistência, com o não-cumprimento do preconizado pela Norma Técnica (Brasil, 2011), com privação dos seus direitos, o que nem sempre foi percebido na prática por elas – que tenderam a avaliar positivamente a atenção recebida. Em face dos poucos estudos sobre a atenção ao aborto, futuras pesquisas abordando satisfação e responsividade destes serviços deveriam ser empreendidas, colaborando para a efetivação de um cuidado humanizado, de modo a embasar propostas de melhoria da assistência às mulheres, à luz das diretrizes consensuadas em documentos, como a Norma Técnica (Brasil, 2011), e das orientações técnicas e políticas preconizadas pela OMS (World Health Organization, 2012). Elementos estruturais da organização da assistência nas maternidades e a forma com que os profissionais lidam com o aborto causaram, nas mulheres, um sofrimento adicional e desnecessário. O valor moral negativo relacionado ao aborto, e o paradigma biomédico, que orienta as práticas de saúde e, também, a formação dos profissionais, constituem importantes barreiras para a mudança das práticas de saúde. Os profissionais envolvidos na atenção às mulheres que abortam deveriam estar expostos a informações e reflexões sobre: aspectos epidemiológicos, clínicos, jurídicos, sociais, culturais e políticos do abortamento, com grupos de discussão permanentes nos serviços. Por sua vez, gestores devem estar sensibilizados e estimulados para garantir o cumprimento das políticas e normas referentes à humanização da assistência hospitalar e ao abortamento, corresponsáveis pela sua efetivação. Por fim, nenhum passo na direção da humanização pode ser completo sem a revisão das leis que criminalizam o abortamento, compromisso internacionalmente assumido pelo Brasil (Brasil, 2011). Promover o aborto seguro e gratuito nos hospitais públicos é uma forma de reduzir o impacto das iniquidades sociais que condicionam diferentes desfechos do abortamento para mulheres de distintas classes sociais, além de garantir-lhes avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013

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Colaboradores Monique França Carneiro realizou a revisão bibliográfica, análise e interpretação dos dados e a redação do artigo. Jorge Alberto Bernstein Iriart e Greice Maria de Souza Menezes orientaram a produção do artigo, participaram da discussão do trabalho e da revisão do manuscrito. Agradecimentos Às pesquisadoras Ana Paula dos Reis, Luisa Elvira Belaúnde Olschewski, Clara Lourido, Jurema Machado e Fábia Santos, pela participação na produção dos dados da pesquisa que originou o presente trabalho. Ao CNPq e à CAPES, pelo financiamento. A Cecilia McCallum, Maria Teresa Alves e Estela Aquino, pelas sugestões. Referências ADESSE, L.; MONTEIRO, M.F.G.; LEVIN, J. Panorama do aborto no Brasil - grave problema de saúde pública e de justiça social. Radis, n.66, p.10-5, 2008. ANDRADE, G.R.B.; VAITSMAN, J.; FARIAS, L.O. Metodologia de elaboração do Índice de Responsividade do Serviço (IRS). Cad. Saude Publica, v.26, n.3, p.523-34, 2010. ARDAILLON, D. O lugar do íntimo na cidadania de corpo inteiro. Rev. Estud. Fem., v.5, n.2, p.376-88, 1997. AYRES, J.R.C.M. Cuidado e humanização das práticas de saúde. In: DESLANDES, S.F. (Org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.49-83. ______. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface (Botucatu),v.4, n.6, p.117-20, 2000. BARBOSA, R.M.; ARILHA, M. A experiência brasileira com o Cytotec. Rev. Estud. Fem., v.1, n.2, p.408-17, 1993. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006. BAZOTTI, K.D.V.; STUMM, E.M.F.; KIRCHNER, R.M. Ser cuidada por profissionais da saúde: percepção e sentimentos de mulheres que sofreram abortamento. Texto Contexto Enferm., v.18, n.1, p.147-54, 2009. BERTOLANI, G.B.M.; OLIVEIRA, E.M. Mulheres em situação de abortamento: estudo de caso. Saude Soc., v.19, n.2, p.286-301, 2010. BRASIL. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. 2.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ______. Aborto e Saúde Pública: 20 anos de pesquisa no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. ______. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. CARNEIRO. M.F. ”Largada sozinha, mas tudo bem”: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil. 2012. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2012. CORRIGAN, P.; LUNDIN, R. Dont’n call me nuts: coping with the stigma of mental illness. Illinois: Abana Press, 2001. DIAS, M.A.B. Humanização da assistência ao parto: conceitos, lógicas e práticas no cotidiano de uma maternidade pública. 2006. Tese (Doutorado) - Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006. 416

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CARNEIRO, M.F.; IRIART, J.A.B.; MENEZES, G.M.S. “Me dejaron sola, pero fue bien”: paradojas de la experiencia de mujeres durante la hospitalización por aborto inducido en Salvador, Bahía, Brasil. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.405-18, abr./jun. 2013. El objetivo del trabajo fue comprender la experiencia de mujeres internadas por aborto inducido en tres hospitales públicos de Salvador, Bahia, considerando el recorrido y las interacciones establecidas con profesionales y otras mujeres. Se realizaron entrevistas semi-estructuradas con 19 mujeres, indagando sobre su experiencia durante la internación hospitalaria y sobre la atención recibida. Abortos y partos anteriores, suyos o de conocidas, conforman expectativas sobre la atención recibida. La experiencia relatada por las mujeres estuvo marcada por sentimientos negativos, por el dolor físico y emocional, pero también por el alivio del fin del embarazo y del riesgo de muerte. El sufrimiento adicional fue condicionado por la percepción de un “no cuidado” y de actitudes de discriminación sobre el aborto, contradiciendo las normas técnicas actuales. Paradójicamente, la mayoría evaluó positivamente la atención, aunque hizo críticas. Considerando las experiencias de las mujeres, es necesario realizar esfuerzos para humanizar la asistencia al aborto.

Palabras clave: Aborto inducido. Hospitalización. Humanización de la atención.

Recebido em 11/07/12. Aprovado em 13/04/13.

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artigos

“Armários de vidro” e “corpos-sem-cabeça” na biossociabilidade gay online* Luiz Felipe Zago1

ZAGO, L.F. “Glass closets” and “headless bodies” in online gay biosociability. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.419-31, abr./jun. 2013.

This paper comprises a theoretical analysis that links the concepts of body, sexuality and closet to reflect on gay biosociability on the internet. Based on data produced through participant observation on two Brazilian cruising websites focusing on gay men on the Internet, a conceptual approach that proposes to characterize online sociability as biosociability is constructed, in which the body is the central character. In this biosociability, in which there is a demand for intense visibility, the metaphor of the closet gains new outlines: situations of intense visibility and body exposure, and at the same time, insidious surveillance regarding the discreetness of gay sexuality, are created in this context. The importance of marking and showing the body’s sex (“male”) and gender (“masculinity”) is discussed and correlated with coming out of the closet or remaining closeted, and with the ways of online body exposure.

Keywords: Internet. Sexuality. Body. Biosociability.

O artigo é uma análise teórica que articula os conceitos de corpo, sexualidade e armário para pensar a biossociabilidade gay na internet. A partir de dados produzidos por meio da observação participante em dois sites de relacionamento brasileiros voltados para homens gays na internet, constrói-se uma argumentação conceitual propondo caracterizar essa sociabilidade online como uma biossociabilidade, em que o corpo é o personagem central. Nesta biossociabilidade, em que há demanda por intensa visibilidade, a metáfora do armário adquire novos contornos: criam-se situações de intensa visibilidade e exposição dos corpos e, ao mesmo tempo, de insidiosa vigilância acerca da discrição da sexualidade gay neste contexto. Reflete-se sobre a importância da marcação e exposição do sexo (macho) e do gênero (masculinidade) nos corpos dos indivíduos, relacionando-as ao assumir-se (fora do armário), ao manter-se discreto (dentro do armário) e às formas de exposição dos corpos online.

Palavras-chave: Internet. Sexualidade. Corpo. Biossociabilidade.

Elaborado com base em Zago (2013a); pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 1 Grupo de Pesquisa Educação e Ensino da Saúde – EducaSaúde, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Avenida Paulo Gama, nº 110, prédio 12.201, sala 409. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.046-900. felipe.zago@ufrgs.br *

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Introdução: Cadastre-se O presente artigo propõe uma análise teórica sobre a dinâmica de biossociabilidade entre homens gays2 usuários de dois sites de relacionamento na internet3 – ou sociabilidade gay online, que será caracterizada como biossociabilidade (Ortega, 2005; Rabinow, 1999). Apoiando-se nos conceitos de armário para Eve Kosofsky Sedgwick (2007, 1990), sexualidade e corpo em Michel Foucault (2006a, 2006b, 2006c, 2003, 1984), são analisadas as novas correlações que se estabelecem entre as posições estar dentro do armário (não assumir sexualidades não heterossexuais) e estar fora do armário (assumir sexualidades não heterossexuais), e no que tais correlações implicam para essa biossociabilidade. Por um lado, dada a exortação à visibilidade presente em ambos os sites (indicada no título desta Introdução através do imperativo Cadastre-se e nos títulos das duas seções que seguem), que estimula os usuários a exporem seus corpos com o objetivo de se sociabilizarem uns com os outros; e, por outro lado, dada a exigência de discrição e sigilo em relação às sexualidades não heterossexuais, demandada pelos próprios usuários, cabem as perguntas: qual é o estatuto do armário para a biossociabilidade gay online? Como os usuários se posicionam frente ao estímulo à exposição de seus corpos e, ao mesmo tempo, frente à exigência de discrição sobre suas sexualidades? Quais as correlações entre a exposição dos corpos online e a metáfora político-espacial do armário para homens gays? Portanto, este texto é um exercício conceitual, fruto de minha observação participante em ambos os sites, tendo como dados elementos imagéticos e textuais publicados em perfis online criados pelos usuários dos sites.

Atualize seu perfil e ganhe mais destaque!: o corpo entra em cena, o corpo faz a cena Através dos sites de relacionamento disponíveis na internet, os usuários podem criar perfis online que, por sua vez, serão publicados e ficarão visíveis para outros usuários, podendo haver a possibilidade de troca de mensagens entre eles. Nos seus perfis online, esses homens publicam suas características (medidas de seus corpos, como: peso, altura, cor dos olhos, cabelo, raça/etnia, entre outras) e seus textos (em que podem oferecer uma autodescrição sobre seus desejos, disponibilidades, personalidades, temperamentos etc.). Há a exigência de atualização constante dessas informações, conforme mostra o título desta seção – que é frase tirada de um dos sites aqui utilizados. Além disso, fotografias também podem ser publicadas nos perfis. A figura central das características, dos textos e das fotografias publicadas nos perfis online é o corpo, que é descrito, fotografado e publicado como se estivesse submetido a uma espécie de “totalitarismo fotogênico” (Sant’Anna, 2005, p.66). Ambos os sites de relacionamento estimulam os usuários a criarem e publicarem seus perfis através de chamadas nas suas páginas principais, nas quais se lê: Cadastre-se grátis e encontre mais de 12.375 homens online! Os homens mais bonitos disponíveis para você!, e 56.747 membros online agora! Navegar. Chat. Conectar. Os números não são apenas um chamariz para o cadastramento, para a conexão, para a sociabilização; também apontam para a abrangência dos serviços disponibilizados por ambos os sites e para a importância da internet como espaço de biossociabilidade entre homens gays. As chamadas que interpelam os usuários a se cadastrarem e a se exporem podem ser classificadas como meras chamadas publicitárias que pretendem divulgar os serviços dos sites de relacionamento. Por outro lado, podemos também 420

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Apesar de ser politicamente perigoso supor que todos os usuários dos sites se identifiquem como gays, opto por usar essa terminologia porque os próprios sites de relacionamento se intitulam como sendo gays, tendo, inclusive, participação ativa nas maiores Paradas Gays do Brasil. 2

São eles: Disponível.com (www.disponivel.com) e Manhunt (www.manhunt.net). 3


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supor que tais chamadas interpelativas dizem da história dos corpos no nosso presente. É preciso considerar que esses corpos de homens gays publicados online, assim como todos os outros, são história. Mais que dizer que os corpos têm e são história, é preciso mostrar que eles carregam história ao mesmo tempo em que escrevem outras ainda por vir: “o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo” (Foucault, 1984, p.22). É possível perseguir, na superfície de suas peles, as condições que os fazem chegar até aqui da maneira com que chegam, não só com suas marcas vistas a olho nu, mas com o volume denso com que ocupam o campo de visão e com as palavras que lhes servem de legenda. Pensamos em todo o caso que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia, e que ele escapa à história. Novo erro; ele é formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos – alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências. [...] nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. (Foucault, 1984, p.27)

O corpo não é matéria inerte, passiva, esperando ser marcado: o corpo presentifica a marca; o corpo é a própria marca em carne. “Não há corpo que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura, descrito, nomeado e reconhecido na linguagem”, e, nesse sentido, construído “através dos signos, dos dispositivos, das convenções e das tecnologias” (Louro, 2004, p.81): daí que se torna tão valioso explorar esses dispositivos, essas linguagens e essas tecnologias que constituem os corpos do presente. Podemos, igualmente, pensar nos corpos como sendo constantemente atravessados por relações de força que os constrangem a se mostrar, a se ativar, a se expor, a produzir mais vitalidade e mais energia. Isso significa que podemos estar sujeitos não mais a uma relação de controle-repressão do corpo, já que não é mais apenas suficiente que o corpo seja dócil – “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 2006a, p.118), ainda que a docilidade do corpo seja uma condição para o seu controle –, mas que, talvez, agora subsista uma relação de “controle-estimulação do corpo” (Foucault, 1984, p.147), muito mais insidiosa e contínua, muito mais positiva e produtiva. Essa relação de estímulo, incitação e controle dos corpos acontece em um contexto biopolítico de atuação do biopoder, nos termos foucaultianos (Foucault, 2004, 2003, 1984). Para que o corpo seja passível de exposição, ele precisa passar integralmente por um processo de investimento pelo biopoder, que não apenas produz os corpos, mas que, sobretudo, os faz circular dentro da “paisagem biopolítica” (Hardt, Negri, 2006, p.43). Ou seja, os modos com que os usuários usam seus corpos na dinâmica social dos sites de relacionamento gays, e as maneiras com que eles se apropriam das possibilidades técnicas da internet como ferramentas para conhecer outros indivíduos, podem caracterizar uma biossociabilidade (Ortega, 2005; Rabinow, 1999): “uma biossociabilidade [...] constituída por grupos de interesses privados [...] segundo critérios de saúde, performances corporais [...]” (Ortega, 2005, p.153-4). Criam-se novos critérios de mérito e de reconhecimento, novos valores com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo, criação de modelos ideais de sujeito baseados no desempenho físico. As ações individuais passam a ser dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude etc. (Ortega, 2005, p.153-4)

Porém, o corpo em circulação na biossociabilidade online não será mostrado nos perfis em sua integralidade. Apenas partes relevantes dos corpos serão expostas; apenas partes que importam e partes que pesam para a biossociabilidade online serão visibilizadas. É recorrente, nos perfis a publicação de fotografias de peitorais, abdominais, braços, glúteos e pênis. Em muitos desses perfis, as faces e as cabeças dos usuários não são tão intensamente expostas como outras partes – são recorrentes os perfis nos quais as faces são dissimuladas através de programas de edição de imagens e as cabeças dos corpos são simplesmente cortadas das imagens graças à angulação da câmera fotográfica. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.419-31, abr./jun. 2013

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Determinadas partes dos corpos podem atender mais adequadamente às exigências da biossociabilidade, com seus imperativos de fitness e forma física (Costa, 2005; Ortega, 2005), como a exposição do abdome, por exemplo. Supostamente, não haveria nada de mais material e visível que um abdome sarado (no sentido de estar curado), sem gordura localizada e definido, na afirmação de seu pertencimento à biossociabilidade. Para descrever seus corpos, muitos usuários dos sites de relacionamento usam palavras como: atlético, esportivo, sarado, malhado; ou mencionam o cuidado com o corpo, os exercícios diários como formas de atestar seu compromisso com a saúde e com a aparência saudável. Segundo Costa (2005, p.194), há os valores ligados à moralização das práticas corporais que, no nosso tempo presente, participam de um renovado esforço de depuração entre os indivíduos considerados normais e os demais, considerados desviantes. Publicar fotografias em que aparecem somente abdominal, peitoral e braços trabalhados em exercícios de musculação, em que a cabeça é cortada do corpo, é uma operação que visa traduzir, na carne, as informações pertinentes sobre o corpo. É fazer do corpo, ou de partes do corpo, a tradução máxima e clara daquilo que é mais importante nos indivíduos; partes do corpo trabalhadas através de “práticas destinadas a demonstrar uma integração às normas corporais em vigor, a fornecer um testemunho da comunhão com a cultura do corpo. O músculo é um modo de vida” (Courtine, 2005, p.85). O corpo torna-se a grade de saberes mais relevantes sobre aquilo que somos: o corpo é currículo (Louro, 2004; Silva, 1999). Também parece necessária a criação de uma pastoral da carne rija ou de uma “pastoral do suor” (Courtine, 2005, p.92) para a produção desse corpo-currículo, pois há sinais de formação de um rebanho para compor as massas seguidoras das práticas de biossociabilidade.

Mostre a cabeça! Perfis com fotos de cabeça têm 15 vezes mais chances de receberem mensagens: corpos visíveis, porém não tão visíveis A frase acima está publicada em um dos sites de relacionamento utilizados durante a observação participante. Essa frase indica, em primeiro lugar, que é comum que cabeças não sejam mostradas nos perfis e, em segundo lugar, é indício da interpelação à exposição do corpo nesta biossociabilidade online. É curioso que, no regime intenso de visibilidade dos corpos na biossociabilidade gay online, os rostos e as cabeças dos usuários estejam recortados, separados de seus corpos; é curioso que as faces dos indivíduos caiam fora de seus corpos nas imagens produzidas e publicadas através dos perfis online; é curioso que esses corpos-sem-cabeça possam encarnar, com tanta força, as normas de seu tempo a ponto de se tornarem corpos-currículo (Zago, 2013b). As faces e as cabeças, muitas vezes, não estão ali publicadas, pelo menos não tão reincidentemente quanto estão publicados abdomens e pênis. As faces podem se insinuar nas fotografias, podem prometer suas presenças ao deixarem seus rastros em sorrisos ou em partes de olhos, mas elas não aparecem de modo tão central e integral quanto os pênis, que são publicados em centenas de fotografias de perfis online. O que significa, então: a) que os corpos sejam produzidos com tanto afinco, em um contexto de controle e estímulo; b) que os corpos sejam chamados a se mostrar e a se expor na mesma medida em que se esforçam para aderir à renovada moral das práticas corporais; e c) que nesses regimes de visibilidade a face seja suprimida, recortada, subtraída dos corpos? Pois, por mais que a filosofia e a ciência modernas tenham atacado a separação cartesiana entre mente e corpo, não foi nem um pouco afetada a convicção de nossa cultura referente à separação entre rosto e corpo, que influencia todos os aspectos dos costumes, modas, apreciação sexual, sensibilidade estética – praticamente todos os nossos conceitos do que é correto. (Sontag, 2007, p.108-9)

No contexto dos sites de relacionamento voltados para homens gays, é como se a face (a parte da frente da cabeça) contaminasse o corpo com a identidade: por isso que o Rosto, com letra maiúscula, é um lugar de captura que não se resume à face: “o Rosto é um mapa” (Deleuze, Guattari, 1996, p.35) que dá as direções de como chegar ao corpo. A face fica impregnada em todo o corpo, parecendo ser capaz de atribuir ao corpo uma identidade e de suturar, no corpo, essa identidade. Nesse sentido, é 422

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preciso sublinhar que não é qualquer identidade que é atribuída e suturada mediante a exposição da face dos homens usuários dos sites de relacionamento aqui estudados: essa identidade é aquela produzida pelo dispositivo de sexualidade, conforme Foucault (2003) formulou. Uma identidade captura os indivíduos e os marca de forma indelével, tornando-os completamente assujeitados a seus próprios desejos. A exposição das faces nas imagens dos perfis online talvez equivalha à sutura identitária do homossexual para aqueles homens que mostram as suas cabeças. Na cultura ocidental, a face talvez seja o espaço mais público do corpo, e talvez, justamente por isso, ela esteja ausente em grande parte das fotografias dos perfis online de homens gays – algo que se constitui em uma estratégia de adiamento da sutura identitária que os assujeite a seu desejo homossexual. Por outro lado, as partes íntimas dos corpos dos usuários – os pênis – são publicadas com insistência, desde vários ângulos, mostradas através de muitas fotografias. Em certo aspecto, a face dos corpos se mantém em oposição às partes íntimas dos corpos, na medida em que uma é pública (deve ser pública) e as outras são íntimas (devem ser escondidas). Contudo, a face dos corpos também se mantém em relação estreita com as partes íntimas dos corpos: uma face deve corresponder às partes íntimas, sendo face de homem ou de mulher, de modo que as partes íntimas de macho são précondição para a existência e reconhecimento da face de homem. Ao olharmos para a face de alguém, na rua, no trabalho, no trânsito etc., já supomos seu sexo. E isso acontece, talvez, justamente porque a face do corpo supõe o sexo do corpo – a face precisa, necessariamente, corresponder e confirmar o sexo do corpo. É em relação à potência que a face tem de dizer quem é aquele corpo – potência de determinar sua história, seu nome e, para o caso dos sites analisados, sua identidade sexual –, que se devem problematizar as condições que fazem com que as faces estejam ausentes nos regimes de visibilidade dos corpos que operam biossociabilidade gay online. Concomitantemente, é preciso entender que, para alguns usuários, a ausência da face – que determinaria, de uma vez por todas, quem é aquele indivíduo – pode estar a serviço de um regulador da vida de indivíduos não heterossexuais, que se chama armário (Sedgwick, 2007, 1990).

A metáfora do armário: nunca totalmente fora e nunca dentro para sempre “O frescor de cada revelação gay (especialmente involuntária) parece algo ainda mais acentuado em surpresa e prazer”, escreve Eve K. Sedgwick, “pela atmosfera cada vez mais intensa das articulações públicas do (e sobre o) amor que é famoso por não ousar dizer seu nome” (Sedgwick, 2007, p.21). Ora, dar a face às vistas nas imagens dos perfis online dos sites de relacionamento gay equivaleria a dizer o próprio nome, equivaleria ao se assumir gay, equivaleria à saída do armário. Sedgwick sugere que, talvez, o armário seja algo importante para pessoas gays, não heterossexuais, no sentido de que “para muitas delas, [o armário] ainda é a característica fundamental da vida social” (Sedgwick, 2007, p.21); de modo que estar dentro do armário (não se assumir) ou fora dele (assumir-se) acabam sendo posições cujas condições de habitá-las estão sendo a todo tempo contabilizadas, medidas e pesadas pelos indivíduos. É nesse sentido que “há poucas pessoas gays [...] em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora” (Sedgwick, 2007, p.21). Tal proposição implica considerar o processo de sair do armário, ou a decisão de permanecer dentro dele, como elementos constituidores das subjetividades de pessoas não heterossexuais. Apoiando-me nas argumentações de Foucault, sugiro que essa função central do armário funciona precisamente em relação à atuação do dispositivo de sexualidade que, sem seu emaranhado de poder-saber constituinte da scientia sexualis, outrora categorizou o “homossexual como uma espécie” (Foucault, 2003, p.44) – e, igualmente, como um anormal (Foucault, 2002). É nessa direção, no bojo da atuação do dispositivo de sexualidade, que se deve entender a metáfora do armário como algo decisivo para a experiência das sexualidades não heterossexuais, em que o processo de saída do armário se articula a atravessamentos morais e políticos que estão em jogo no assumir-se homem gay, por exemplo. Sedgwick (2007, p.21) sugere que “o armário não é uma característica somente de pessoas gays”, pois, segundo a autora, o armário está ligado a um conjunto de binômios que organiza (e opõe) verdadeiro/falso, segredo/revelação, mostrar/esconder. Assim, o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.419-31, abr./jun. 2013

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armário não seria algo estritamente vinculado à decisão de assumir uma sexualidade não heterossexual. Articulando o conceito de armário com as proposições acerca do dispositivo de sexualidade, podemos pensar que, em primeiro lugar, podem existir vários armários para muitas pessoas (inclusive pessoas heterossexuais), e que, em segundo lugar, o armário funcione de modo distinto para pessoas não heterossexuais. A esse respeito, sublinhe-se a inusitada possibilidade de uma pessoa sair do armário enquanto heterossexual, posto que a heterossexualidade, na nossa sociedade, é tida como compulsória (Butler, 1999). Por outro lado, é decisiva a saída do armário para um homem gay ou uma mulher lésbica, precisamente porque tal saída é tida como uma revelação de algo que era escondido e oculto – provavelmente porque é algo considerado, ainda, anormal. É nesse sentido que as categorias discreto e discrição emergem em vários perfis online como expressões que contemplam, em alguma medida, o lado de dentro do armário: exigências de posturas de homem, de sigilo e de aparência de normalidade são comuns nos textos publicados online. Embora não seja possível associar tão diretamente as reivindicações de virilidade recorrentes nos textos dos perfis online ao lado de dentro do armário – posto que muitos usuários se dizem assumidos e, apesar de assumidos, se dizem ainda másculos –, aqui é fulcral explorar as correlações entre essas posições mutuamente excludentes, de estar dentro ou fora do armário, com as afirmações de virilidade e masculinidade. Pois existe a suposição de que, uma vez fora do armário, um homem gay perde sua masculinidade; ao passo que, se continuar dentro do armário, sua virilidade ainda estará resguardada. Associando essa formulação aos modos de exibição dos corpos na biossociabilidade online, é como se existisse a suposição de que a face dos usuários, recortadas da integralidade dos seus corpos, estaria resguardada do reconhecimento público, como se suas faces estivessem, assim, dentro do armário: faces discretas, anônimas. Por outro lado, mostrando a cabeça nas imagens dos perfis online, colocando a face para fora do armário, revelando o segredo de ser gay, ganhar-se-ia um rosto público, uma identidade: o rosto do homossexual. O sujeito homossexual e as práticas homoeróticas adentram o século XX, sendo patologizados pela scientia sexualis que buscava explicá-los: “o sodomita era um reincidente; agora o homossexual é uma espécie” (Foucault, 2003, p.44). “Categorizado e nomeado como desvio da norma” o destino dos/as homossexuais “só poderia ser o segredo ou a segregação – um lugar incômodo para permanecer” (Louro, 2004, p.29). Na política de afirmação de identidades sexuais, em que “SILENCE=DEATH” – o silêncio de estar dentro do armário significa a morte política dos indivíduos –, “o dilema de ‘assumir-se’ ou ‘permanecer enrustido’ (no armário – closet) passa a ser considerado um divisor fundamental e um elemento indispensável” para pessoas não heterossexuais (Louro, 2004, p.32). É nesse sentido que, entre os vários armários que podem existir, o armário gay se relaciona com uma história de afirmação política das identidades sexuais, de modo que, “para fazer parte da comunidade homossexual, seria indispensável, antes de tudo, que o indivíduo se ‘assumisse’, isto é, revelasse seu ‘segredo’, tornando pública sua condição” (Louro, 2004, p.32). É como se não houvesse nuance entre o dentro e o fora do armário; é como se a linha divisória fosse clara e para sempre definida: uma vez dentro do armário, a única possibilidade de vida seria a saída dele; uma vez fora do armário, para sempre se estaria fora dele. O armário gay, como metáfora de visibilidade político-espacial, é profundamente ambíguo: estar dentro ou fora do armário, assumir-se enquanto gay ou permanecer enrustido, nunca são movimentos únicos, unilaterais, politicamente isolados ou culturalmente individuais. “Assumir-se não acaba com a relação de ninguém com o armário, inclusive, de maneira turbulenta, com o armário do outro” (Sedgwick, 2007, p.40). Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo e de exposição. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não. É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, considerariam a informação importante. [...] tampouco é inexplicável que alguém [...] possa escolher deliberadamente entre ficar ou voltar para o armário em algum ou em todos os segmentos de sua vida. (Sedwick, 2007, p.22) 424

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O armário gay nos leva a pensar “se a homossexualidade [...] não deve ser considerada questão de interesse público” ou se “tampouco ela subsiste sob o manto do privado” (Sedgwick, 2007, p.25). Porque, ao que parece, permanecer no armário, ou sair dele, denota o reforço das categorias de público e privado: assumir-se seria o mesmo que bradar a sexualidade publicamente – ou o mesmo que publicar uma fotografia da face em site de relacionamento gay –, ao passo que ficar dentro do armário seria relegar a sexualidade aos confins da privacidade – ou o mesmo que recortar a cabeça das imagens de corpo publicadas em perfis online. Entretanto, o armário é alçado à ferramenta analítica que tem a potência de pôr em xeque as próprias definições de público e de privado, tomando, como perspectiva, as sexualidades não heterossexuais. É por isso que se pode sugerir que grande parte da energia de atenção e demarcação que girou em torno de questões relativas à homossexualidade desde o final do século XIX na Europa e nos EUA foi impulsionada pela relação distintivamente indicativa entre homossexualidade e mapeamentos mais amplos do segredo e da revelação, do privado e do público, que eram e são criticamente problemáticos para as estruturas econômicas, sexuais e de gênero da cultura heterossexista como um todo: mapeamentos cuja incoerência capacitadora, mas perigosa, foi condensada de maneira opressiva e duradoura em certas figuras da homossexualidade. O armário e a “saída do armário”, ou “assumir-se”, agora expressões quase comuns para o potente cruzamento e recruzamento de quase todas as linhas de representação politicamente carregadas, têm sido as mais magnéticas e ameaçadoras dessas figuras. (Sedgwick, 2007, p.26)

Só é possível falarmos em armário enquanto falarmos “de uma sexualidade particular, distintivamente constituída como segredo” (Sedgwick, 2007, p.30), ou como desvio da norma. E dessa sexualidade, constituída como segredo ou como desvio, da qual derivam as condições que fazem com que as faces dos corpos de homens gays estejam ausentes das imagens de seus perfis online: a face supostamente nunca pode estar dentro do armário, já que é a parte mais pública dos corpos. A face nunca é segredo, posto que a face supostamente desvela qualquer segredo. Da mesma forma, também o armário, e suas complexas relações de revelação e segredo, só são inteligíveis para aquilo que pode ou deve ser dissimulado. Pois “a imagem do armário é indicativa da homofobia de uma maneira que não pode ser para outras opressões” (Sedgwick, 2007, p.32). A relação entre o armário e os princípios de estímulo e superexposição da biossociabilidade online deslizam: todos são chamados a se expor nos sites de relacionamento, e se expõem, mas muitos o fazem permanecendo dentro do armário. É um movimento de se mostrar exacerbadamente, através de textos sobre si e fotografias de si, mesmo estando dentro do armário, preservando um anonimato facial. É sujeitar-se ao princípio da publicação integral de informações sobre si sem, no entanto, dar todas as informações sobre si: é um selecionar cuidadoso do que mostrar e como mostrar. “As relações iniciadas online misturam reaprisionamentos e liberações relativas, podendo gerar resistências ao velho dilema do armário e seu dualismo identitário” (Miskolci, 2009, p.188-9), posto que alguns homens gays estão superexpostos na mesma medida em que estão dentro do armário. É como se a internet e a biossociabilidade online construíssem, para homens gays, um armário de vidro habitado por corpos-sem-cabeça – ou por corpos-sem-face. Por armário de vidro e por corpossem-cabeça se entendem as metáforas visuais que articulam o princípio de discrição das sexualidades não heterossexuais à exortação à visibilidade dos corpos, articulação essa que organiza politicamente a biossociabilidade online. Como já foi dito, os usuários dos sites são chamados a se expor, e se expõem; entretanto, o fazem segundo uma política de exposição que é bastante singular: mostram seus corpos através de fotografias e textos, mas mostram partes específicas de seus corpos. São mostrados, muitas vezes, corpos-sem-cabeça, corpos-nus-sem-cabeça: fotos de pênis que são superexpostos na biossociabilidade online. Ora, um corpo de homem jamais está totalmente nu se é seu pênis que é mostrado: esse corpo está completamente vestido com seu sexo. Um corpo de homem jamais está sem rosto se sua face desaparece e dá lugar ao seu pênis: ele tem o rosto de seu sexo.

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Quem tem medo do dispositivo de sexualidade? Muitos usuários escrevem em seus perfis online que procuram por outros homens que mantêm a postura de um hetero normal ou que têm comportamentos hetero. Não é coincidência que esses usuários são, frequentemente, aqueles que não mostram a face em suas fotos, sob alegação de discrição e sigilo. Esse é o traço mais comum e abreviado de um processo de adequação à norma heterossexual pelo qual passam os indivíduos, sobretudo quando se trata de suas sexualidades. O processo de adequação à norma heterossexual de pessoas não heterossexuais, no sentido de fazer com que aparentem ser normais, como tudo mundo, pode ser analisado aqui como um elemento privilegiado de regulação, que diz respeito à manutenção da coerência fictícia de sexo-gênerosexualidade (Butler, 1999, 1993). Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se fazem não apenas os corpos que se conforma às regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem. [...] Certa premissa, bastante consagrada, costuma afirmar que determinado sexo (entendido, neste caso, como características biológicas) indica determinado gênero e este gênero, por sua vez, indica o desejo e induz a ele. Essa sequência supõe e institui uma coerência e uma continuidade entre sexo-gênero-sexualidade. Ela supõe e institui uma consequência, ela afirma e repete uma norma, apostando numa lógica binária pela qual o corpo, identificado como macho ou como fêmea, determina o gênero (um de dois gêneros possíveis: masculino ou feminino) e leva a uma forma de desejo (especificamente, o desejo dirigido ao sexo/gênero oposto). (Louro, 2004, p.17, 80)

Tal matriz heterossexual também pode ser entendida como uma norma de sexo-gênero-sexualidade, ou como um processo continuamente atuante de heteronormalização: de tornar normais os indivíduos não heterossexuais graças à adoção de posturas, atitudes, comportamentos, conformações corpóreas atribuídas social e culturalmente às pessoas heterossexuais, expressas, sobretudo, na reivindicação de pertencimento ao sexo macho como estratégia de anulação, apagamento ou discrição da sexualidade não heterossexual. Aqui, o sentido forte da expressão macho só é possível porque está ligado à norma heterossexual instituída, tomada como “o destino inexorável, a forma compulsória de sexualidade” (Louro, 2004, p.82) – ou, como sugere Butler (1999), o sexo macho mostra-se, desde sempre, englobado e definido por uma matriz de gênero compulsoriamente heterossexual.Aqui, a sexualidade é formulada como um dispositivo, como já foi mencionado. Retomando esse conceito, é possível dizer que o dispositivo de sexualidade engloba um feixe heterogêneo de tecnologias políticas. Nas palavras de Foucault (2003, p.100): A sexualidade é o nome que se pode dar à grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder.

Como dispositivo, a sexualidade institui e constitui jogos de verdade, realidades, corpos e subjetividades: os produtos mais reais do dispositivo de sexualidade são os próprios sexos que julgamos tão orgânicos e biológicos (no sentido de darem lógica à vida). Como dispositivo, ao invés de proibir e negar, a sexualidade incita discursos, estimula produções de corpos, gera vida. Nosso contexto histórico, político e cultural é aquele que “introduz, organiza [a partir da sexualidade] todo um dispositivo complexo no qual se trata da constituição da individualidade, da subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós mesmos” (Foucault, 2006b, p.76).

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É nesse contexto no qual o dispositivo de sexualidade institui a realidade biopolítica dos corpos enquanto ferramenta e instrumento do biopoder regulatório e produtivo (Foucault, 2003). “No fundo do sexo, a verdade” (Foucault, 2006b, p.85). Esse sexo genital, porção do corpo, está, nessa perspectiva, centrado no vórtice de uma rede de significações históricas, construídas, transformado assim em categoria, expandindo seu alcance para muito além de amplexos e carícias. O sexo, dessa forma, é um significado social, o sexo-significação [...] que se institui em pedagogias sociais, na confluência de tecnologias políticas de incitação e proliferação da sexualidade. De fato, não seria o sexo um ponto biológico sobre o qual se apoiariam as diferentes práticas sexuais, mas um agregado constituído pelo dispositivo de sexualidade, que produz e induz ao desejo do sexo. (Swain, 2008, p.394)

Os sexos, macho ou fêmea, são produtos do dispositivo de sexualidade, e é nesse sentido que, ao se historicizar o sexo, sugere-se que ele não foi sempre e constantemente a fonte da verdade sobre nós (Laqueur, 2001). “Esse escândalo particularmente moderno sugere pela primeira vez que o sexo não é um aspecto contingente e arbitrário da identidade”; pelo contrário, isso indica que “não pode haver uma identidade sem o sexo” (Butler, 2008, p.91). Isto é, supostamente não pode haver vida em corpos sem que o sexo (ou macho ou fêmea) seja neles produzido, inscrito e reproduzido performativamente para sempre, de modo que “é precisamente através de sermos sexuados que nos tornamos inteligíveis como seres humanos” (Butler, 2008, p.91). Butler diz: “O escândalo histórico mais impressionante é que nem sempre fomos um sexo” (Butler, 2008, p.91, grifo da autora). A inversão proposta pelo dispositivo de sexualidade sugere que o vetor normalmente aceito e invocado para explicar a sexualidade – em que “o ‘sexo’ é entendido lógica e temporalmente como precedendo a sexualidade e funcionando, se não como sua causa primária, então, pelo menos, como sua necessária pré-condição” (Butler, 2008, p.98) – precisa ser posto ao contrário: é possível sugerir que a sexualidade, enquanto rede de saberes, poderes e jogos de verdade, “toma os corpos como seu instrumento e objeto, o lugar em que ela consolida, enreda e estende seu poder” (Butler, 2008, p.98). Daí que as supostas realidades de macho ou fêmea, e os modos de viver adequadamente como homem ou mulher, são algo instituído pelo dispositivo de sexualidade. Como regime regulador, a sexualidade opera primeiramente investindo os corpos com a categoria do sexo, isto é, fabricando corpo como os suportes de um princípio de identidade. Afirmar que os corpos são de um ou de outro sexo parece a princípio ser uma afirmação puramente descritiva. [...] no entanto, essa afirmação é, em si mesma uma legislação e uma produção de corpos, uma demanda discursiva, por assim dizer, de que os corpos se tornem produzidos de acordo com princípios de coerência e integridade heterossexualizante, inequivocamente como macho ou fêmea. Onde o sexo é tomado como um princípio de identidade, ele é sempre posicionado num campo de duas identidades mutuamente exclusivas e completamente exaustivas; é-se macho ou fêmea, nunca os dois ao mesmo tempo, e nunca nenhum dos dois. (Butler, 2008, p.98-9)

É somente em relação a essa formulação que podemos “entender o terror e a ansiedade que algumas pessoas sofrem ao ‘tornarem-se gays’”, posto que “o medo de perder o seu lugar de gênero ou não saber quem se é se dormir com alguém ostensivamente do ‘mesmo’ gênero” só existe de acordo com a “ideia de que a prática sexual tem o poder de desestabilizar o gênero” (Butler, 1999, p.xi). Se é no fundo do nosso sexo, macho ou fêmea, que reside nossa verdade enquanto sujeitos, não é estranho que: a) pênis sejam fotografados e publicados exaustivamente em perfis online, já que essa porção orgânica do corpo seria supostamente aquela que carrega a prova mais material do sexo macho; e b) faces sejam excluídas ou dissimuladas de fotografias de corpos publicadas em perfis de sites de relacionamento gays, posto que a sexualidade não heterossexual desestabiliza a inteligibilidade que o

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dispositivo de sexualidade pretende produzir nos corpos e para os corpos. As faces estariam confinadas ao lado de dentro do armário – faces não assumidas, faces enrustidas –, ao passo que os pênis necessitariam ser colocados, metaforicamente falando, para o lado de fora do armário – pois sendo o núcleo dos sexos de macho, eles precisam ser assumidos e exibidos o máximo possível.

Considerações finais: apagamento do feminino na Terra de Marlboro O armário, e toda a gama complexa de relações que ele faz cintilar, é uma ferramenta para problematizarmos a política de exposição dos corpos nas redes de biossociabilidade online habitadas por homens gays, pois “a era da internet parece tê-los libertado da maioria das restrições do armário” (Miskolci, 2009, p.172). Apenas parece. O que se verifica é um refinamento do controle sobre seus corpos atuando através da incitação à exposição. A internet pode ser um armário ampliado (Miskolci, 2009), e um armário para muitos: pode ser, igualmente, um armário de vidro para os corpos-semcabeça que se equilibram na corda-bamba entre demandas de visibilidade fotogênicas e as exigências de adequação à norma heterossexual, estas últimas expressas concisa e claramente na pergunta: “somente os viris e discretos serão amados?” (Carrara, 2005). Verifica-se que os corpos-sem-cabeça não são apenas encontrados em sites de relacionamento para homens gays: há vários sites online voltados para pessoas heterossexuais em que a mesma prática de ocultação imagética das faces dos corpos é também empregada. Nesse sentido, é preciso assinalar que há um tipo de armário heterossexual que também se articula aos modos de expor os corpos de homens e mulheres heterossexuais. Tal armário heterossexual pode estar a serviço de um simples desejo de anonimato, de preservação pessoal, de proteção da privacidade (assim como, também, pode estar o armário gay). Ainda, a dissimulação da face dos corpos em imagens de perfis online de sites de relacionamento que promovem a troca de casais, por exemplo, indica que subsiste uma forte política de moralização das práticas sexuais: aquelas que escapam do objetivo reprodutivo e monogâmico do casal malthusiano, instituído pelo dispositivo de sexualidade, mesmo sendo práticas heterossexuais, ainda são alvo de reprovação e censura. Entretanto, é preciso sublinhar que esse armário heterossexual tem implicações distintas, para os indivíduos, daquelas do armário gay: aquele não rompe com a inteligibilidade instituída pela matriz heterossexual, enquanto este a desafia permanentemente. É preciso articular o armário gay à longa história de constituição das políticas identitárias, para as quais a atitude de sair do armário foi fundamental na construção de redes de solidariedade para o enfrentamento da violência e da discriminação (Simões, Facchini, 2009). Quanto mais a matriz heterossexual é perturbada enquanto norma de materialização dos sexos e dos corpos, tanto mais se reivindicará o pertencimento absoluto ao sexo – posto que o sexo é produto da matriz heterossexual, e não o contrário. Se, de acordo com a proposição do dispositivo de sexualidade, é a partir da sexualidade instituída como norma que se produzem os sexos viáveis (macho ou fêmea), é razoável entender que os participantes da biossociabilidade aqui analisada busquem se colocar no interior de um sexo inteligível: de homem-macho-másculo-discreto-normal, recusando, veementemente, quaisquer características de fêmea. Contudo, dizer que os homens gays usuários dos sites de relacionamento disputam significações de gênero porque desviam da heterossexualidade compulsória é dizer pouco. Esses sujeitos, escapando da heterossexualidade compulsória, tentam reestabilizar o próprio dispositivo de sexualidade que os produz como desviantes (ou como invertidos, como anormais), ao transformarem seus pênis em seus rostos. Elementos da biossociabilidade gay online apontam para essa disputa de inteligibilidade dos sujeitos que resgata o princípio geral do dispositivo de sexualidade: o de formar corpos adequadamente sexuados de acordo com a norma heterossexual. Pois os homens gays que mostram suas faces nos perfis online são imediatamente colocados para fora do armário; e estando fora do armário, automaticamente sua virilidade será questionada. Uma vez questionados nesse âmbito, alguns desses usuários se veem obrigados a se justificar: sou assumido, mas sou discreto. Isso indica que o problema em estar fora do armário não é exatamente o fato de tornar pública uma sexualidade que, supostamente, pertenceria ao “manto do privado”, nas palavras de Sedgwick (2007, p.25). O que está em jogo é a perigosa 428

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proximidade da efeminação e de quaisquer outras características de feminilidade. É como se o lado de dentro do armário estivesse para a virilidade na mesma medida em que o lado de fora do armário estivesse para a efeminação. Nada mais temível, para um homem gay participante da biossociabilidade online, que a afeminação, que a afetação, que o borramento das fronteiras entre a masculinidade e a feminilidade – já que tal borramento é o sinal da desestabilização da coerência fictícia do dispositivo da sexualidade. Pois se pensa que algumas pessoas [...] insultam a “verdade”: um homem “passivo”, uma mulher “viril, pessoas do mesmo sexo que se amam. Talvez haja a disposição de admitir que isso não é um grave atentado à ordem estabelecida, porém estamos sempre prontos a acreditar que há nelas algum “erro”. Um “erro” entendido no sentido mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que não é adequada à realidade; a irregularidade sexual é percebida, mais ou menos, como pertencendo ao mundo das quimeras. (Foucault, 2006b, p.85)

“O/A invertido/a tradicional recebe esse nome porque a meta de seu desejo saiu dos trilhos da heterossexualidade” (Butler, 2008, p.103). Para afastar o espectro de invertido sexual, muitos participantes da biossociabilidade online dos sites de relacionamento gays acabam por inverter a exposição de seus corpos: escondem suas faces e fazem de seus pênis os seus Rostos. E, nos subterrâneos dessa política de visibilidade dos corpos, e nas condições dessa política deslizante do dentro e do fora do armário para homens gays, subsiste um horror da proximidade a qualquer traço de feminilidade: uma aversão ao feminino, um princípio tácito de apagamento do feminino na constituição de uma Terra de Marlboro asséptica, feita somente para homens, apesar de gays.

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ZAGO, L.F. “Armarios de vidrio” y “cuerpos-sin-cabeza” en la bio-sociabilidad gay online. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.419-31, abr./jun. 2013. El artículo es un análisis teórico que articula los conceptos de cuerpo, sexualidad y “armario” para pensar la bio-sociabilidad gay en Internet. A partir de datos producidos por medio de una observación participativa en dos páginas web brasileñas de relaciones dirigidas a los hombres gay, se construyen algunos argumentos conceptuales para caracterizar esa sociabilidad online como una bio-sociabilidad, en la cual el cuerpo es el personaje central. En esa bio-sociabilidad, en donde hay demanda de una visibilidad intensa, la metáfora del “armario” adquiere nuevas dimensiones: se crean situaciones de intensa visibilidad y exposición de los cuerpos y, al mismo tiempo, de vigilancia insidiosa sobre la discreción de la sexualidad gay en ese contexto. Se reflexiona sobre la importancia de la marca y exposición del sexo (“macho”) y el género (“masculinidad”) en los cuerpos de los individuos, relacionándolas al hecho de asumirse (salir del “armario”) o al de mantenerse discreto (permanecer en el “armario”), y a las formas de exposición de los cuerpos online.

Palabras clave: Internet. Sexualidad. Cuerpo. Bio-sociabilidad. Recebido em 17/08/12. Aprovado em 30/04/13.

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Itinerários terapêuticos de sujeitos com problemáticas decorrentes do uso prejudicial de álcool* Ana Lucia Marinho Marques1 Elisabete Ferreira Mângia2

MARQUES, A.L.M.; MÂNGIA, E.F. Therapeutic Itineraries of individuals with problems consequent to harmful use of alcohol. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.433-44, abr./jun. 2013. This study aimed to ascertain the therapeutic itineraries of individuals with problems consequent to harmful use of alcohol, at a psychosocial care center for users of alcohol and other substances. It was based on qualitative methods and took an ethnomethodological perspective. It used the methodological procedures of bibliographical review, document research, semi-structured interviews, focus groups, participant observation and field diaries. The therapeutic itineraries were configured from the experience constructed, which attributed meanings to experiences relating to alcohol use and the need for help. The importance of social networks in which people share meanings and support was highlighted. The course of this study showed the importance of ascertaining individuals’ knowledge and practices, in proposing care actions with a commitment towards production of health and life.

Keywords: Therapeutic itineraries. Substance-related disorders. Alcoholism. Community mental health services.

Este estudo visou conhecer itinerários terapêuticos de sujeitos com problemáticas decorrentes do uso prejudicial de álcool em um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas - CAPSad. A pesquisa, de caráter qualitativo, adotou a perspectiva etnometodológica e empregou os seguintes procedimentos metodológicos: revisão bibliográfica, pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas, grupo focal, observação participante e diário de campo. Os itinerários terapêuticos se configuram a partir da experiência construída, que dota de significados as vivências relacionadas ao uso de álcool e a necessidade de ajuda. Destaca-se a importância das redes sociorrelacionais, no contexto das quais são compartilhados sentidos, significados e suporte. O percurso da pesquisa mostrou a importância de se conhecerem os saberes e práticas dos sujeitos na proposição de práticas de cuidado comprometidas com produção de saúde e de vida.

Palavras-chave: Itinerários terapêuticos. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Alcoolismo. Serviços comunitários de saúde mental.

Elaborado com base em Marques (2010); pesquisa aprovada pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). 1,2 Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Rua Cipotânea, 51, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05.360-160. almmarques@usp.br *

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Introdução De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, cerca de dois bilhões de pessoas em todo o mundo consomem bebidas alcoólicas – o que corresponde a, aproximadamente, 40% da população mundial acima de 15 anos – e cerca de 76,3 milhões apresentam problemáticas decorrentes do uso dessa substância. Em muitos países, é alta a carga global relacionada ao consumo de álcool, tanto em termos de morbidade quanto de mortalidade. O consumo de álcool pode trazer consequências diversas, e está relacionado a mais de sessenta tipos de doenças ou lesões, além de episódios de violência, homicídios e acidentes; está associado a 3,2% de todas as mortes no mundo (sendo, aproximadamente, 6% de todas as mortes entre homens, e 1% entre as mulheres) e 4% do total de anos de vida comprometidos por alguma incapacidade (Anthony, 2009; World Health Organization - WHO, 2004, 2002). No Brasil, pesquisas consideram que 12% da população apresentam problemas decorrentes do uso de álcool, associados ao uso nocivo e à dependência. Para o campo da saúde pública, este índice é especialmente significativo, pois uma parte substancial dessas pessoas necessita de alguma forma de tratamento ou apresenta algum quadro clínico que requer ações do sistema de saúde (Laranjeira et al., 2007). Nos últimos anos, o Ministério da Saúde tem formulado diretrizes e construído propostas de atenção para abordar essa problemática, no contexto do Sistema Único de Saúde, que consideram: a relevância epidemiológica do problema; a necessidade de incluir os usuários/dependentes de álcool e outras drogas em uma rede ampliada de cuidados; a consciência da urgência de adaptar-se a legislação vigente sobre álcool e outras drogas aos objetivos da saúde pública e de acordo com uma perspectiva que não seja baseada na punição; a compreensão das estratégias de redução de danos como alternativas eficazes no tratamento e na prevenção (Brasil, 2007; 2003). Tal projeto assistencial respeita diretrizes aceitas internacionalmente e situa-se no contexto da construção de serviços de saúde baseados na comunidade que buscam evitar a hospitalização e atender os sujeitos em seus territórios de forma integral, e não focalizada estritamente na doença (OMS, 2001). Nesse contexto, ganham destaque os Centros de Atenção Psicossocial para atendimento de indivíduos com transtornos causados pelo uso prejudicial e/ou dependência de álcool e outras drogas (CAPSad). Instituídos a partir da Portaria nº 336/GM (Brasil, 2003; 2002), esses serviços devem oferecer atenção diária e obedecer à lógica de oferta de cuidados baseados na atenção integral, com práticas terapêuticas, preventivas, de promoção de saúde, educativas e de reabilitação psicossocial. Também devem responsabilizar-se pela articulação da rede de atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas, composta por serviços situados nos diversos níveis assistenciais (Brasil, 2004a; 2004b). O acompanhamento contínuo e cotidiano favorece a ampliação de processos de trocas e de oportunidades de inclusão social. Os CAPSad são espaços privilegiados para a construção de projetos terapêuticos cuidadores, centrados nas reais e singulares necessidades, desejos e potencialidades dos sujeitos, e na corresponsabilidade entre usuários, técnicos e outros atores envolvidos (Brasil, 2004b; Franco, Magalhães Junior, 2004; Saraceno, 1998).

A construção de itinerários terapêuticos Os indivíduos desenvolvem maneiras peculiares de estarem no mundo e de vivenciarem seus sofrimentos, alegrias, frustrações, vitórias e inseguranças. Da mesma maneira, estabelecem relações com suas experiências de enfermidade e desenvolvem trajetórias para resolver seus problemas de saúde que são singulares e sustentadas em determinado campo relacional (Alves, 2006; Alves, Souza, 1999). Assim como os demais processos de decisão que ocorrem cotidianamente, os processos de escolha por determinada prática terapêutica são criados e compartilhados no contexto das redes sociorrelacionais e se constituem a partir do sentido e dos significados que os indivíduos atribuem a essas vivências. Diante da situação de enfermidade, os indivíduos tendem a iniciar uma trajetória em busca de respostas para seus problemas. Tal trajetória ou “itinerário terapêutico” pode ser definida como “um conjunto de

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planos, estratégias e projetos voltados para um objeto preconcebido: o tratamento da aflição” (Alves, Souza, 1999, p.133). Os estudos sobre itinerários terapêuticos objetivam conhecer os processos pelos quais os indivíduos “escolhem, avaliam e aderem (ou não) a determinados tipos de tratamento” (Alves, Souza, 1999, p.125). Consideram que esses processos são ações humanas, singulares e contextualizadas, que mesclam múltiplas formas de conhecimento e de práticas, de maneira que não é possível formular uma teoria explicativa única para compreender tais processos (Alves, Souza, 1999). Por meio de narrativas, pode-se perceber que os indivíduos se engajam em determinado sistema terapêutico ou recorrem, simultaneamente, a vários tratamentos, orientados por experiências anteriores e pelo conhecimento produzido na interação com as outras pessoas (Alves, Souza, 1999; Alves, 1993). Embora os indivíduos atuem e se desenvolvam em contextos socioculturais específicos, suas ações não são fixadas pelas estruturas sociais que, ao contrário, permitem a criação de modos singulares de existência. Sem perder de vista o contorno oferecido pelos macroprocessos históricos e socioculturais, os estudos sobre itinerários terapêuticos buscam conhecer: os microfundamentos da experiência de enfermidade e de busca de tratamento, as ações que os sujeitos realizam cotidianamente e os procedimentos utilizados, as trajetórias e projetos singularmente elaborados e intersubjetivamente legitimados (Alves, Souza, 1999). Este estudo visou conhecer os itinerários terapêuticos de sujeitos com problemáticas decorrentes do uso prejudicial de álcool, em um centro de atenção psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad). Especificamente, buscou: identificar aspectos que levam os sujeitos a reconhecerem o uso de álcool como um problema; descrever suas estratégias de busca de respostas para seu problema, e conhecer suas opiniões sobre as experiências de tratamento e cuidado.

Procedimentos metodológicos Neste estudo, a construção do trabalho de campo buscou inspiração na perspectiva etnometodológica e caracterizou-se pela pesquisa dos procedimentos que os sujeitos utilizam para construir, manter e transformar o mundo em que vivem. A compreensão de suas experiências se deu a partir dos objetos, situações e símbolos que os cercam, articuladas, compartilhadas e sustentadas em seus contextos relacionais (Angrosino, 2009; Denzin, Lincoln, 2006; Coulon, 1995). A inspiração etnometodológica propiciou a formulação da postura utilizada no desenvolvimento do trabalho de campo, realizado no CAPSad “Travessia”, situado no município de Santana de Parnaíba/SP, no período de janeiro a março de 2009. Utilizou-se de técnicas e métodos do campo da pesquisa qualitativa, e empreenderam-se os seguintes procedimentos metodológicos: revisão bibliográfica, pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas, grupo focal, observação participante e construção de um diário de campo. É importante considerar que os questionamentos e reflexões que impulsionaram a realização da pesquisa são fruto de um processo anterior de imersão no campo, pois a pesquisadora já fazia parte da equipe do serviço havia dois anos e meio, desempenhando atividades como terapeuta ocupacional. Tal situação exigiu o exercício constante de deslocamento do lugar de terapeuta para o de pesquisadora, discutido e sustentado pelo grupo de profissionais e de usuários participantes. Primeiramente, foram discutidos, com a diretoria técnica-administrativa do serviço, os objetivos da pesquisa e os procedimentos metodológicos que se pretendia utilizar. Em seguida, em uma reunião técnica, foi possível discutir e avaliar o projeto com a equipe, que contribuiu com sugestões, alterações e na elaboração do cronograma de realização. Na sequência, foi realizado contato com os usuários que foram eleitos pela equipe para participarem da pesquisa. Com cada um deles, foi agendado um encontro para fazer o convite à participação e apresentar, detalhadamente, os objetivos e procedimentos da pesquisa, além de prestar esclarecimentos sobre sua participação e solicitar sugestões. Nesse momento, também, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foi assinado por todos.

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As relações anteriormente estabelecidas contribuíram para que se criasse um clima confortável na realização dos grupos e das entrevistas, em que os participantes conseguiram expor livremente suas ideias. Além disso, foi possível realizar o processo de observação participante sem que a presença da pesquisadora fosse questionada, como pode acontecer quando o observador é externo ao grupo. Criaram-se, espontaneamente, alguns momentos de interação informal com os participantes, em que foi possível colher informações que não apareceram nas entrevistas e que, também, possibilitavam rever algumas estratégias da pesquisa. Participaram da pesquisa oito usuários do serviço, selecionados pela equipe técnica a partir de um processo de discussão, e de acordo com os seguintes critérios definidos pelo pesquisador: serem usuários de álcool, estarem em atendimento nos três meses que antecederam o início da coleta de dados, de ambos os sexos, com idade entre trinta e sessenta anos. Para realizar a escolha, a equipe foi orientada acerca de que o objetivo era o de constituir um grupo heterogêneo e representativo do serviço, que pudesse contribuir na captação da maior variedade de opiniões e no conhecimento de diferentes histórias de vida, distintos processos de busca de auxílio e tipos de vínculos estabelecidos com o serviço. Foram realizados dois encontros de grupo focal, com duração de 1h30min cada, e uma entrevista individual para a qual todos os participantes foram convidados, com a utilização de um roteiro que combinou questões abertas e fechadas. Tanto as discussões em grupo quanto as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas pelo próprio pesquisador. O processo de observação participante buscou conhecer a forma como os usuários participantes da pesquisa utilizam o serviço, priorizando a observação dos momentos informais de contato destes com outros usuários e com os profissionais. Nesse processo, também criaram-se, espontaneamente, momentos de interação informal com os participantes, em que foi possível colher informações que não apareceram nas entrevistas e que também possibilitavam rever algumas estratégias da pesquisa. No diário de campo, foram descritas situações consideradas importantes para o estudo, o processo de realização das entrevistas e discussões em grupo, bem como as impressões e reflexões elaboradas pelo pesquisador durante a realização das observações. O uso de estratégias mistas possibilitou comparar discursos e práticas dos sujeitos, maior aproximação com a experiência estudada e a apreensão ampla do fenômeno em questão (Denzin, Lincoln, 2006; Coulon, 1995). Todos os participantes aceitaram e confirmaram sua participação por meio de assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa obteve consentimento da Diretoria TécnicoAdministrativa do CAPSad “Travessia”. De acordo com as normas para pesquisa prescritas pelo Conselho Nacional de Saúde, o projeto e os Termos de Consentimento foram apresentados para apreciação da Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), e aprovados. Para o processo de análise dos dados obtidos, optou-se pela combinação das estratégias propostas pelas técnicas de análise de enunciação e análise temática. Tal escolha se deu tendo como pressuposto a concepção de que os discursos são elaborados em processos dinâmicos e expressam: opiniões, contradições, reações afetivas e incertezas existentes no momento de sua produção e em dado contexto de realização. Desta forma, foram analisados tanto os conteúdos expressos pelos depoentes quanto o contexto e o processo de produção da narrativa (Silvermann, 2009; Minayo, 1993). Ao final da coleta de dados, reuniu-se todo o material produzido, e os temas identificados como mais relevantes foram agregados em categorias elaboradas a partir dos objetivos do estudo, e relacionadas aos referenciais teóricos assumidos (Gibbs, 2009; Minayo, 1993). Tais categorias serão explicitadas na apresentação dos resultados.

Caracterização do campo da pesquisa As estratégias de cuidado com a saúde são construídas e compartilhadas intersubjetivamente, e as especificidades de cada contexto onde são realizadas podem ser agentes disparadores de determinadas escolhas, especialmente no que tange à oferta e acesso aos serviços e recursos existentes. Dessa forma, para a compreensão dos itinerários terapêuticos dos sujeitos, é importante observar o contexto onde as ações empreendidas se realizam (Gerhardt, 2006; Alves, Souza, 1999). 436

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Como já apontado, o trabalho de campo foi realizado no CAPSad “Travessia”, localizado em Santana de Parnaíba/SP. O município tem, de acordo com estimativas do IBGE, população de 110.730 habitantes e sustenta o 23º melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH-M) do País, sendo o 2° melhor da Região Metropolitana de São Paulo. Todavia, de acordo com o índice de Gini, o município ocupa 1º lugar no ranking de desigualdade do Estado de São Paulo e 35º lugar entre os municípios de todo o País. Em 2000, de acordo com o Censo, os 10% mais ricos do município ganhavam 66 vezes mais que os 40% mais pobres (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2008; Santana de Parnaíba, 2006; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, 2003). A análise do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) também mostra dados importantes para a caracterização do município. Entre outros aspectos, chama a atenção o fato de que 70% da população apresentam algum grau de vulnerabilidade. Apesar de possuir bons índices de desenvolvimento, trata-se de um município no qual convivem disparidades populacionais e regionais, com áreas que demandam maior atenção na formulação e execução das políticas públicas municipais (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados- SEADE, 2009). Com relação à atenção comunitária em saúde mental, o município de Santana de Parnaíba dispõe de uma rede de serviços que, no momento de realização do trabalho de campo, era composta por: um CAPS II, um CAPSad (Álcool e Drogas), um CAPS Infantil, um Ambulatório de Saúde Mental e Adolescência, e equipes básicas de Saúde Mental lotadas em todas as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nas denominadas Unidades de Saúde Avançada (USA). Desta rede, destacou-se o CAPSad “Travessia”, serviço em funcionamento desde dezembro de 2004, e que tem por objetivo ser referência, para o município, na prevenção, tratamento e reabilitação psicossocial dos sujeitos com transtornos decorrentes do uso prejudicial ou dependência de álcool, tabaco e outras drogas.

Participantes do estudo O grupo de oito participantes do estudo foi formado por sujeitos com idade entre trinta e sessenta anos, de ambos os sexos (sendo duas mulheres e seis homens), e que apresentavam transtornos decorrentes do uso de álcool. No momento de realização da pesquisa, quatro estavam trabalhando, sendo que nenhum estava inserido no mercado formal de trabalho. A maioria morava com familiares, com exceção de dois participantes, que moravam sozinhos. Em um primeiro momento, os oito participantes frequentaram o CAPSad intensivamente e essa frequência foi gradativamente diminuída. Dependendo da demanda apresentada, foram estabelecidos projetos terapêuticos diferenciados, com a possibilidade de momentos de intensificação do cuidado ao longo do trajeto. No momento de realização da pesquisa, cada participante utilizava o serviço de forma diferenciada, participando de determinados grupos e oficinas de acordo com suas necessidades e afinidades.

Resultados e discussão No processo de análise dos dados colhidos, após a identificação de temas que se configuraram como relevantes, foram estabelecidos os códigos analíticos abaixo apresentados (Gibbs, 2009), alinhados aos objetivos do estudo. Para preservar a identidade dos participantes, eles foram identificados pelas letras de A a H.

Do uso ocasional à experiência da dependência Foi possível observar que, inicialmente, o consumo de bebidas alcoólicas ocorreu por diversos motivos e em diferentes contextos. Para alguns sujeitos, o álcool fez parte do cotidiano familiar, incitado pelos pais ou outros familiares. Também foi associado a situações de lazer e sociabilidade, estimulado por amigos ou, mesmo, pela mídia. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.433-44, abr./jun. 2013

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Outros o associaram a vivências de situações nas quais buscaram alívio para sentimentos de raiva, medo ou tristeza. Neste caso, o consumo de álcool foi compreendido como fonte de prazer, alívio, desinibição e descontração. Com o aumento do uso, ao longo do tempo, foram percebidos os primeiros prejuízos. Apesar de referirem-se à bebida como “a malvada”, reconhecem que as consequências negativas do uso não estão ligadas exclusivamente à substância psicoativa em si, mas, sim, à relação que estabeleceram com ela. “Mas é que a gente não sabe beber, e enquanto não vê o fundo da garrafa, a gente não sossega. [...] A gente não tem esse controle. Então, esse é que é o problema”. (C)

A percepção de que se está diante de uma questão a ser enfrentada é marcada pela consciência da perda de controle sobre o uso, a impossibilidade de realizar as atividades cotidianas na ausência do álcool, a insuportabilidade da abstinência, e a dificuldade de interromper o consumo a despeito da percepção do problema e de suas consequências. No relato dos participantes, notou-se, também, que, gradativamente, houve aumento do tempo utilizado para o consumo da substância, que provocou o abandono de suas atividades produtivas e de lazer e o estreitamento dos laços e espaços de intercâmbios sociais, com a limitação ao convívio com o núcleo familiar e com os chamados “colegas de bar”. “Quando você vê, já tá dependente [...] Você fica viciado e ela se torna uma doença. Fica dependente da bebida e não consegue mais viver sem […]. É uma de manhã para parar de tremer, é duas pra almoçar, é duas à tarde, é quatro pra jantar... Aí vai. Eu já estava tomando mais de um litro de pinga por dia”. (G)

No contexto sociofamiliar, os sujeitos percebem-se submissos e desvalorizados. Relatam perda de poder contratual nas decisões relativas às questões domésticas e de trabalho. Rotulados como “bêbados”, são vistos apenas como “um copo de bebida”, e invalidados no exercício dos papéis sociais. “A moral da gente também vai pro lixo. [...] O cara alcoolizado não tem razão de nada. Ele, quieto, já tá errado. [...] Já tá incomodando com o cheiro de álcool [...]. O pessoal ia me procurar não porque eu sou um bom profissional, mas porque eu trabalhava a troco de bebida. “Ah, você dá um maço de cigarro e uma garrafa de pinga pro cara lá e ele faz isso aí legal pra você”. E o seu valor, vai pra onde?”. (G)

Compreensão e construção de significados A compreensão sobre a questão vivenciada contempla aspectos de julgamento moral, ligados às noções de força e virtude individual. Apesar de desencadear diversos problemas de saúde, a dependência é compreendida como fraqueza moral. A falta de limites no consumo é difícil de ser admitida pelos sujeitos, pois parece implicar a afirmação da fragilidade e incapacidade de controlar o próprio corpo. O sofrimento corporal não é, geralmente, percebido e legitimado pelo grupo social, que estabelece julgamentos e atua de forma preconceituosa. Embora reconheçam a dificuldade em interromper o uso - “o vício é maior que tudo” (C), “é mais forte que a gente” (C) -, identificam o momento no qual tomaram a decisão de parar, e acreditam que isso é o que falta àqueles que ainda não tiveram “coragem” ou “vontade” suficientes para tentar interromper o consumo ou buscar algum tipo de auxílio. Quando comentam sobre algum usuário que “recaiu” ou abandonou o tratamento, avaliam que a “culpa” é do indivíduo, que não teve a vontade ou determinação necessária. Quando se referem àqueles que já alcançaram a abstinência e a reorganização da vida cotidiana sem o uso de álcool, afirmam a necessidade de estar “em alerta”, como se a “força” adquirida pudesse ser facilmente perdida. 438

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“Uma coisa que eu sempre falo ‘Quando a gente pensa que tá forte, que a gente tá fraco’. A gente tem que sempre tomar cuidado”. (B)

O processo de busca de auxílio e soluções No início, o processo de busca de tratamento e cuidado é constituído por tentativas isoladas e solitárias de interrupção do consumo. Diante da situação de perda de controle, os sujeitos colocam, para si, o desafio de recuperarem a “força” perdida. É só depois de certo tempo e de algumas tentativas, com a vivência de situações que se configuram enquanto “limite” para cada um, que solicitam auxílio para sua rede de relações. O insucesso das tentativas é atribuído à dificuldade de alcançar e manter a abstinência sem ter suporte ou continência de profissionais especializados ou de grupos religiosos. Afirmam que a maior dificuldade para “parar sozinhos” advém das consequências e desconfortos que caracterizam a síndrome de abstinência alcoólica. A internação é a resposta mais conhecida e a primeira a ser procurada. Em alguns casos, a procura por tratamento foi postergada por não aceitarem a internação, embora acreditassem ser essa a única possibilidade. Nas trajetórias descritas, observou-se a passagem por serviços de saúde, em decorrência de algum comprometimento associado ou decorrente do uso crônico de álcool. Foi através da experiência da doença, vivida e corporificada, que a maioria identificou a necessidade de enfrentar a situação. O agravamento do quadro clínico pode levar os sujeitos a situações consideradas “limite”, como: cirrose e outras doenças hepáticas alcoólicas, convulsões, alucinose alcoólica e delirium tremens. No geral, a chegada aos serviços de saúde ocorreu devido aos comprometimentos clínicos severos, e não pela compreensão de que tais serviços poderiam contribuir na resolução da problemática vivenciada. Os sujeitos recorreram, simultaneamente, a outras ofertas de tratamento e ajuda, e chegaram ao CAPSad sem conhecerem sua proposta terapêutica e sem a formulação clara sobre seu próprio problema. Observou-se que a procura pelo serviço de saúde ocorre no contexto de um processo pouco racionalizado. Nele se destaca a importância das redes sociais, orientando e sustentando os processos de busca de ajuda. Os sujeitos relatam não terem recebido ajuda inicialmente, embora tenha sido observado que o suporte das redes sociofamiliares esteve sempre presente ao longo do processo de reconhecimento do problema e busca de ajuda. Por outro lado, os sujeitos reconhecem a importância e nutrem expectativas positivas sobre o apoio que podem receber de suas redes sociais. Notou-se que o envolvimento das redes sociais é complexo e dinâmico e alternam-se momentos de fortalecimento, quando se aproximam para oferecer ajuda, e fragilização de vínculos, quando vivem momentos de impotência diante das dificuldades dos sujeitos. Há mobilização para ajudar na interrupção do uso e ajuda na construção do projeto de tratamento, mesmo quando não há o pedido expresso dos sujeitos.

A construção de projetos terapêuticos no CAPSad As trajetórias empreendidas na busca de estratégias para o enfrentamento das questões decorrentes do uso prejudicial de álcool são diversas e distintas, sendo também diferenciados os momentos de chegada ao CAPSad. De forma geral, a escolha por este serviço não parece associada a um processo racional e de análise sobre vantagens e desvantagens das ofertas existentes. Os participantes afirmam que o CAPSad foi indicado por alguém da sua rede de relacionamentos e resolveram conhecer o serviço. Para alguns, essa escolha também se deu devido à escassez de ofertas terapêuticas: não conheciam lugares no município que pudessem oferecer algum tipo de suporte ou tentaram recorrer à internação, mas não encontraram vagas disponíveis. Também foi relatada a recorrência simultânea a outros espaços de apoio e outras modalidades de tratamento, como: internação em clínicas ou comunidades terapêuticas, grupos de ajuda mútua (Alcoólicos Anônimos) ou grupos religiosos, por exemplo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.433-44, abr./jun. 2013

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Também foram observadas situações em que a percepção e o reconhecimento das problemáticas decorrentes do uso de álcool não se configuraram como processo desenvolvido anteriormente à chegada ao serviço de saúde. Algumas pessoas, apesar de não considerarem que o uso de álcool pudesse trazer algum problema para sua vida, aceitaram ir ao CAPSad apenas para atender a um pedido de um familiar ou de colegas de trabalho. Uma característica do cuidado, oferecida e considerada importante, é a proposta de atendimento que prescinde da internação. Os usuários valorizam a ideia de serem atendidos no território e “aprendendo a conviver” com o álcool. Essa possibilidade de manterem os vínculos no território e o convívio familiar, também é vista como positiva, na medida em que possibilita a reconstrução de laços e a recuperação da “confiança” das pessoas que os cercam: “Eu acho legal essa coisa de ir embora todo dia porque você fica mais fortalecido. Porque, vamos supor, o cara fica internado, bota o cara na rua, e ele vai procurar o bar. [...] E os familiares da gente vão vendo: ‘Olha ele tá saindo, indo e voltando todo dia, e não tô sentindo um cheiro de bebida na boca dele’. Nessas daí, você vai ganhando ponto: ‘Oh, ele tá indo e tá levando a sério’”. (G)

Sobre o processo vivenciado após a entrada no serviço, são identificados resultados positivos em vários aspectos. Dentre estes, são mencionadas transformações significativas no próprio corpo. Além dos ganhos para a saúde, relatam que voltam a dar atenção às ações direcionadas ao autocuidado e aumento da “autoestima”, que possibilitam novas formas de se estabelecerem nos relacionamentos interpessoais. “A aparência influencia muito. Você chega com aquela cara inchada, parecendo o Kiko, magro, com hálito de bebida, quem vai te dar um emprego? [...] Ou você chega em qualquer ambiente e ‘oh o cachaceiro, olha o bêbado aí chegando, nem vamos dar atenção pra esse cara...’. Agora, você chega e conversa de igual pra igual com todo mundo”. (G)

Durante o processo de tratamento e reabilitação, os usuários constroem projetos de vida, de reorganização do cotidiano e de criação de outros espaços de pertencimento. Associam o uso de álcool ao abandono de muitas atividades e deveres e, ao falarem da elaboração desses projetos, associam este processo à ideia de “recuperar o tempo perdido”: “Eu faço [o meu dia a dia] ficar corrido. Porque eu acho que perdi muito tempo quando eu bebia, que não fazia nada. ‘Ah, deixa que amanhã eu faço’. [...] Agora tô tentando colocar tudo em ordem”. (F)

Mesmo após terem atingido a meta da abstinência, consideram importante a continuidade do acompanhamento no serviço, devido à característica de cronicidade dada ao alcoolismo: uma vez que não tem “cura”, requer a manutenção constante dos cuidados. Assim, o acompanhamento permanente e de longa duração, no território, possibilita a continuidade da atenção, a prevenção de recaídas e a reconstrução de diversos aspectos da vida cotidiana. “Existe ex-mulher, ex-marido. Agora, ex-alcoólatra não existe. [...] O cara é alcoólatra, é alcoólatra para vida inteira. Porque, qualquer coisinha, o cara recai”. (F)

O CAPSad é visto como tendo uma função protetiva, que assegura a continência necessária para a continuidade dos cuidados que acreditam que precisam. Dessa forma, os depoentes continuaram frequentando o serviço por determinados períodos, mesmo após a interrupção do consumo de álcool. Na avaliação dos sujeitos sobre as práticas de cuidado desenvolvidas no contexto do serviço, consideram importante o fato de o tratamento ser constituído por uma série de intervenções diferenciadas e articuladas: “Não é só tomando remédio que vai parar. A conversa, o dia a dia daqui que ajuda bem... (C)”. Mas, de forma geral, os nomes dos profissionais com quem estabeleceram vínculo 440

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foram mais mencionados do que os grupos, atividades, ou qualquer outro procedimento em si, o que pode ser um indicativo da importância dada às relações estabelecidas no contexto do serviço. O CAPSad torna-se um espaço importante de encontro e intercâmbio e, para alguns, o único lugar que frequentam e onde podem estabelecer trocas em seu cotidiano além da própria casa. O vínculo com o serviço, com os funcionários e com os demais usuários apareceu de forma recorrente nas entrevistas e nos grupos focais. Houve um consenso sobre o que consideram o aspecto mais importante do cuidado oferecido pelo serviço: a possibilidade de encontro com as pessoas, sejam os profissionais ou os usuários. “O melhor daqui são as pessoas. Todos. Desde o pessoal da faxina, as cozinheiras, os enfermeiros... Todos. Porque todos te tratam bem aqui. Você é tratado como um ser humano aqui. É isso que levanta a autoestima de todos aqui”. (G)

Considerações finais O consumo de bebidas alcoólicas é tolerado nas sociedades ocidentais e incentivado em campanhas publicitárias que as vinculam à imagem de figuras públicas e/ou as associam à juventude, à beleza, e ao sucesso (Acselrad, 2005; Carneiro, 2002). É a substância mais utilizada em momentos de festas e comemorações, sendo, geralmente, nessas situações, junto com familiares e amigos, que os sujeitos experimentam bebidas alcoólicas pela primeira vez (Dias, 2008). Nesse sentido, pode-se afirmar que o uso do álcool é orientado por regras sociais e de acordo com tradições culturais. Se, por um lado, é estimulado, por outro, a embriaguez excessiva e sem ponderação não é tolerada. Particularmente no Brasil, a mensagem socioculturalmente construída e amplamente veiculada é aprecie com moderação (Dias, 2008). O conhecimento sobre esse problema mostra que a tensão entre o que seria o uso controlado, no contexto de determinado grupo social, representa uma questão em torno da qual os sujeitos constroem aspectos da experiência que envolve a identificação e busca de ajuda diante das consequências do uso prejudicial de álcool. Como consequência da dificuldade de estabelecer o controle sobre o uso, entre outras, percebe-se que os sujeitos perdem contratualidade nos processos de trocas sociais. Nos relatos, identificamos que, frequentemente, suas opiniões não são consideradas, e sua força de trabalho é desqualificada nas relações cotidianas. São rotulados como bêbados, e suas identidades invalidadas e reduzidas à substância que consomem (Fiore, 2004). Estamos diante de um campo problemático, no qual convivem muitas formas de se conceber a experiência da dependência e as estratégias de enfrentamento das questões associadas. Usuários, profissionais e familiares estão continuamente negociando significados e concepções acerca dos processos vivenciados e das formulações de tratamento e cuidado. Por meio da construção dos itinerários terapêuticos, foi possível conhecer a forma como os usuários compreendem suas experiências e os elementos que influenciam suas escolhas na busca de cuidado para suas aflições e que adquirem importância no percurso do tratamento. Assim, os itinerários terapêuticos podem ser considerados recursos importantes para compor a construção de projetos terapêuticos cuidadores, centrados nas reais necessidades dos sujeitos, e que considerem e legitimem o conjunto de recursos, experiências e projetos de vida de cada pessoa. Compreendemos, dessa forma, que a preocupação em conhecer os saberes e práticas dos sujeitos envolvidos na construção de seus itinerários terapêuticos deve compor as práticas de cuidado comprometidas com o fortalecimento dos sujeitos individuais e coletivos, com a construção de direitos e cidadania e com a produção de saúde e de vida.

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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ACSELRAD, G. A educação para a autonomia: construindo um discurso democrático sobre as drogas. In: ______. (Org.). Avessos do prazer: drogas, aids e direitos humanos. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p.183-212. ALVES, P.C.B. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócio-antropológicos da doença: breve revisão crítica. Cad. Saude Publica, v.22, n.8, p.1547-54, 2006. ______. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cad. Saude Publica, v.9, n.3, p.263-71, 1993. ALVES, P.C.B.; SOUZA, I.M.A. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: RABELO, M.C.M.; ALVES, P.C.B.; SOUZA, I.M.A. (Orgs.). Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p.125-38. ANGROSINO, M. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed, 2009. ANTHONY, J.C. Consumo nocivo de álcool: dados epidemiológicos mundiais. In: ANDRADE, A.G.; ANTHONY, J.C. (Eds.). Álcool e suas consequências: uma abordagem multiconceitual. Barueri: Manole, 2009. p.1-36. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde/DAPE. Saúde mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: MS, 2007. ______. Ministério da Saúde. Portaria n.2197, 04 de outubro de 2004. Redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 out., 2004a. Seção 1, p.49-50. ______. Ministério da Saúde. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: MS, 2004b. (Série F, Comunicação e Educação em Saúde). ______. Ministério da Saúde. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS, 2003. (Série B, Textos Básicos de Saúde). ______. Ministério da Saúde. Legislação em Saúde Mental, 1990-2002. 4.ed. Brasília: MS, 2002. (Série E, Legislação de Saúde). CARNEIRO, H. A fabricação do vício. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 13., 2002, Mariana. Anais Eletrônicos... Mariana, 2002. p.9-24. Disponível em: <http:// www.neip.info>. Acesso: 15 jun. 2008. COULON, A. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995. DENZIN, N.K.; LINCOLN, Y.S. (Eds.). O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artmed, 2006. DIAS, L.F. Usos e abusos de bebidas alcoólicas segundo os povos indígenas do Uaçá. In: LABATE, B.C. et al. (Orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008. p.199-217. FIORE, M. Tensões entre o biológico e o social nas controvérsias médicas sobre uso de “drogas”. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPOCS, 28., 2004, Caxambu. Anais... Caxambu: 2004. Disponível em: <http://www.neip.info>. Acesso em: 15 jun. 2008.

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ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS ...

MARQUES, A.L.M.; MÂNGIA, E.F. Itinerarios terapéuticos de las personas con problemas derivados del uso perjudicial del alcohol. Interface (Botucatu), v.17, n.45, p.433-44, abr./jun. 2013. Este estudio tuvo como objetivo conocer los itinerarios terapéuticos de sujetos con problemas derivados del uso perjudicial del alcohol en un Centro de Atención Psicosocial para usuarios de alcohol y otras drogas - CAPSad. La investigación, de carácter cualitativo, adoptó la perspectiva etno-metodológica y empleó los procedimientos metodológicos de revisión de literatura, investigación documental, entrevistas semi-estructuradas, grupo focal, observación participante y diario de campo. Los itinerarios terapéuticos se configuran con base en la experiencia acumulada que dota de significados las experiencias relacionadas al uso del alcohol y la necesidad de ayuda. Se destaca la importancia de las redes sociales y de relaciones, en el contexto de las cuales se comparten sentidos, significados y apoyo. El curso del estudio demostró la importancia de conocer los conocimientos y prácticas de los sujetos en la propuesta de las prácticas de atención comprometidas con la producción de la salud y de la vida.

Palabras clave: Itinerarios terapéuticos. Trastornos relacionados con sustancias. Alcoholismo. Servicios comunitarios de salud mental.

Recebido em 01/06/12. Aprovado em 30/04/13.

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Um agente na construção do habitus das ciências sociais na saúde coletiva* Everardo Duarte Nunes1

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. Assim eu acho, assim eu conto. Tem horas antigas que ficaram mais perto da gente do que outras, de recente data. (Rosa, 1984, p.92)

Quase quarenta anos separam o meu ingresso como professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas e a primeira aula que ministrei a estudantes de medicina, do dia de hoje. O tema da aula foi “Cultura: conceito e características: mudança cultural e barreiras na mudança”; local, o auditório Paulistão, no prédio da Santa Casa de Misericórdia, para onde havia se transferido a Faculdade Ciências Médicas; data: 5 de maio de 1967. Cito-a, pois foi a minha primeira aula expositiva ministrada aos alunos da 4a. Turma de Estudantes de Medicina, a 21a. aula teórica do Curso de Ciências Sociais aplicadas à Medicina. Tendo ingressado na Faculdade em março do mesmo ano, já havia participado das diversas atividades desse curso, como discussões em grupos e visitas domiciliares junto ao programa de clínica de família, num bairro da periferia de Campinas. Mas, não se preocupem. Não farei um relato autobiográfico num sentido estrito. Afinal, o quadro de referência deste seminário é de um autor que, ao escrever o seu último trabalho, denominou-o “Esboço de uma autoanálise” (Bourdieu, 2005) e fez questão de dizer que não se tratava de uma autobiografia, pois considerava esse tipo de relato “convencional e ilusório”. E alguns chegaram mesmo a perguntar “E, se não é gênero biográfico, como o título da obra poderia indicar, então o que é?” (Passiani, 2006, p.207). Deixemos de lado esta controvérsia, secundária aos meus propósitos nesta apresentação. Vou reter-me naquilo que me parece um bom encaminhamento dado pelo próprio Bourdieu nesse livro, quando procura explicar-se e compreender-se. E, para isso, radicaliza, dizendo: “Compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez” (Bourdieu, 2005, p.40). Estas duas observações iniciais: a prática pedagógica e a noção de campo servem como uma espécie de guia neste momento. O seminário que hoje se

* Palestra de encerramento do Seminário-homenagem “Ciências Sociais na Saúde Coletiva: um habitus no campo”, realizado em 9 e 10 de novembro de 2006, na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. 1 Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Caixa Postal 6111, Distrito de Barão Geraldo. Campinas, SP, Brasil. 13.083-970. evernunes@uol.com.br

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encerra nasceu sob a égide do companheirismo e da generosidade, e, ao situar-se em redor de um professor, extrapola muito essa dimensão e coloca-se no marco teórico dos seus organizadores – o conceito de campo e a noção de habitus. Sem dúvida, a sociologia do século XXI será devedora das contribuições feitas por Bourdieu na multiplicidade de temas que investigou, mas as suas instigantes colocações sobre o campo intelectual e científico permanecerão como balisadoras de muitas pesquisas. Portanto, assume-se a correção na formulação do quadro teórico adotado nesse seminário, que permite que se transite pela biografia, pela história e pela sociedade, como já havia ensinado, antes do sociólogo francês, o sociólogo americano Charles Wright Mills (1965, p.15). Dessa maneira, o conceito de campo favorece uma leitura além da autobiografia; Bourdieu fala em história social, que torna possível retomar a história pessoal em seus contextos, por exemplo, a que se desenvolveu nos espaços institucionais em seus desdobramentos de aulas, orientações, palestras, escritos, reuniões, planos de trabalho. Mas, continuemos com Bourdieu. O cuidado ao se utilizar a metodologia de Bourdieu é inerente à sua própria forma de investigar, e, como apontado por estudiosos deste autor, “apresenta uma dificuldade radical; o seu método não é suscetível de ser estudado separadamente das pesquisas onde é empregado”, como analisa ThiryCherques (2006, p.28) em elaborado estudo sobre a teoria na prática. Retoma um ponto fundamental de que o seu “estruturalismo genético” ou construtivismo assenta-se na “convicção de que as idéias, não só epistemológicas, mas até mesmo as mais abstratas, como as da filosofia, as da ciência e as da criação artística são tributárias da sua condição de produção”. Para Bourdieu, acreditar que existe um método, uma filosofia pura do conceito ou um trabalho científico descarnado não passa de uma “ilusão escolástica”. De outro lado, uma questão presente em suas concepções é a de que somos agentes de um processo, e não atores. Em realidade, sabe-se que, em sua obra, como analisa Fernández (2003), o conceito de ator não aparece de forma explícita, sendo que o conceito de agente é frequente. Dentro dessa linha, penso que a mais explícita contribuição que eu possa ter trazido ao campo da saúde coletiva foi buscar entendê-la em uma pluralidade temática e teórica, e, nesse sentido, as pesquisas que pude orientar visaram uma intensa relação de teoria e pesquisa de campo. Além disso, as apresentações que me precederam ofereceram uma interessante oportunidade para se pensar as ciências sociais em toda a sua complexidade, e ainda como um vasto território epistêmico, como reza a tradição do filósofo francês Michel Foucault. Retomo os temas das apresentações – primeiramente, dos meus contemporâneos que são militantes nesta área: Cecília Minayo, Madel Luz, Paulete Goldenberg, Amélia Cohn e Regina Marsiglia – como um momento de especial reflexão sobre o campo das ciências sociais. São temas que revelaram, para a área da saúde, a força teórica das ciências sociais; alicerçaram a construção de um conhecimento que deixou de ser vago e impreciso, para adquirir as marcas da cientificidade; e foram justamente essas pessoas que trouxeram maneiras peculiares e originais de leitura do social em saúde e, muitas vezes, não fizeram distinção entre abordagens sociológicas, antropológicas, históricas, políticas, num trabalho interdisciplinar cortado por diferentes tradições teóricas. As leituras de seus textos orientam nossos caminhos (o meu e o dos meus alunos) e se tornam obrigatórias em nossas pós-graduações. Se, hoje, podemos falar em um campo, esses meus contemporâneos que aqui estiveram presentes e outros que fazem parte desse grupo de agentes são, em verdade, os verdadeiros criadores de um habitus próprio de ver as ciências sociais, gerando e organizando práticas e representações, que, como gostava de dizer Bourdieu, são adquiridas e transmitidas mediante a interação social, no sentido de que o habitus é condicionante e condicionador de nossas ações. São exemplos de pesquisadoras que construíram uma verdadeira carreira acadêmica e consolidaram, com seu trabalho, a institucionalização da área. Todas têm uma história social vinculada às ciências sociais e à saúde coletiva, em um cotidiano cheio de atividades de pesquisa, ensino e serviços; lidando com objetos distintos, metodologias e arcabouços teóricos diferentes, canalizaram, para a saúde, as suas imensas capacidades intelectuais. O privilégio de compartilhar desse grupo, que trouxe tanta força e energia para um campo de encontro – a saúde coletiva –, deve ser enfatizado neste momento. Da mesma forma, a prática pedagógica que resultou na produção de excelentes trabalhos no mestrado e doutorado, aqui apresentados, deve-se a um encontro – o do agente que acreditava ser possível formar professores e pesquisadores e de alunos que tomavam a carreira em saúde coletiva 446

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como um projeto; desculpem-me os ortodoxos em Bourdieu, mas eu gosto da ideia da carreira como projeto, na melhor tradição sartriana, quando diz: “o homem define-se pelo seu projeto. Este ser material supera perpetuamente a condição que lhe é dada; revela e determina sua situação, transcendendo-a para objetivar-se, pelo trabalho, pela ação ou pelo gesto” (Sartre, 1978, p.177). Somente como pequena observação, acrescento que os estudiosos do sociólogo francês apontam que A crítica de Bourdieu a Sartre apresenta duas características gerais: de um lado, ela é inseparável da discussão do método fenomenológico, que serviu a este último como suporte epistemológico. De outro lado, ao discutir os pressupostos subjetivistas de Sartre, Bourdieu marca diferenças em relação às inúmeras críticas marxistas a este autor. (Barros Filho, 2002, p.75)

Em diversos momentos, Bourdieu (1980) escreveu sobre Sartre, e, em Esboço de autoanálise, que “Tanto para mim como para todos os que têm alguma relação com a filosofia, é claro que o personagem de Sartre exerceu, quer no âmbito intelectual, quer no domínio da política uma fascinação não destituída de ambivalência” (Bourdieu, 2002, p.44-5). Declara que a dominação de Sartre “nunca se exerceu na íntegra nesse universo”, pela presença de outros intelectuais, como Guéroult e Vuillemin, Bachelard, Canguilhem, Koyré, e critica a imagem do “intelectual total”, atribuída a Sartre. Mas, voltando ao habitus, há necessidade de se acrescentar que ele se desenvolverá ao longo da vida, dentro de uma determinada matriz, que foi dada pela posição social do indivíduo, permitindo-lhe pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas. Adiantando a possível crítica de algo fixado (matriz), em relação ao habitus, recorro a Luc Boltanski, que, em “Usos fracos e usos intensos de habitus”, observa: “Com efeito, uma sociologia centrada no conceito de habitus não pode deixar de fazer uma reflexão que se baseia em sua articulação com outras noções, sobretudo com aquela de situação” (Boltanski, 2005, p.162). Sem dúvida, eu encontrei, na prática pedagógica, a forma de acercar-me do conhecimento, transmiti-lo e reproduzi-lo. Daí, a menção inicial à aula, que percorreu o cotidiano das minhas atividades e que traz as marcas das influências familiares, onde o magistério aparece como uma carreira possível, junto às influências de professores, muitos deles egressos da Universidade de São Paulo e da Escola de Sociologia e Política, alguns com títulos de mestrado e que despertaram o meu interesse pela sociologia. Assim, o contato com os textos de sociólogos como Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Emílio Willems, Gilberto Freyre, e de educadores como Anísio Teixeira, Lourenço Filho na época da Escola Normal, foi decisivo na minha opção pelas ciências sociais. A insistência na questão do ensino faz sentido, não apenas por uma orientação vocacional, mas porque ela mostrou ser a melhor forma de inserção em um ambiente que demandava ingentes esforços para dar visibilidade a um corpo de conhecimentos estranho ao ensino médico. Se, ainda hoje, a identidade das ciências sociais e humanas em saúde necessita ser continuamente refletida, numa demonstração de um corpus organizado e metodologicamente sustentado, em seus primórdios, nos anos 1960, isto era tarefa para desbravadores. Criar e formatar, para usar uma linguagem mais atual, programas de ensino centrados nos conceitos que os clássicos das ciências sociais haviam formulado e adequá-los às questões da saúde e da doença trazia novas exigências. Estas encontravam nas práticas de campo, por meio de pesquisas, uma forma de colocar estudantes em contato com uma realidade que, muitas vezes, lhes era bastante estranha. Nesse sentido, a formação marcadamente teórica, adquirida nas salas de aula da Universidade de São Paulo – com Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes, Paul Hugon, Rui Coelho, Anita Castilho, Egon Schaden, e muitos outros – foi fundamental no momento de enfrentar o ensino em uma situação que demandava adaptações, incluindo o trabalho prático nas comunidades urbanas. Felizmente, as experiências anteriores junto a comunidades rurais (como sociólogo do Serviço Social Rural e da Superintendência de Reforma Agrária) e bairros urbanos de Campinas, e as atividades docentes na graduação na faculdade de Serviço Social nesta cidade e em duas outras cidades do interior do Estado de São Paulo (Araçatuba e São José do Rio Pardo), como professor COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.445-52, abr./jun. 2013

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no curso de ciências sociais, foram úteis nessa nova aventura – conduzir diagnósticos de saúde para instrumentalizar a discussão teórica de temas como estrutura social, classes sociais, relações de poder, extremamente complexos para estudantes de medicina cujo referencial era a biologia. O ensino, no magistério secundário, em sociologia e sociologia educacional, para o qual havia me habilitado desde 1959, em concurso público, também foi marcante quando assumi a docência em uma escola médica. A menção à aula também nos remete novamente àqueles que fizeram de suas vidas acadêmicas uma intensa relação com estudantes e puderam dar expressão a suas brilhantes pesquisas na interação com graduandos e pós-graduandos. De um modo geral, esta foi a carreira dos cientistas sociais, em sua grande maioria. Um ponto que se destaca neste seminário é a retomada dos conteúdos desenvolvidos, nos mestrados e doutorados, com forte conotação das ciências sociais e humanas, e que trouxeram expressiva e fundamental contribuição para o campo da saúde coletiva. Certamente, os cursos de pósgraduação possibilitaram que os cientistas sociais desenvolvessem uma extensa temática sobre a medicina e suas práticas, de um lado, e, de outro, sobre a compreensão do processo saúde-doença. Vendo em retrospecto as teses orientadas, sinto que a liberdade assegurada aos estudantes em suas propostas foi extremamente enriquecedora e possibilitou uma contínua renovação em termos teóricos e metodológicos – estudamos muito, eu e os alunos; divergimos e corrigimos rumos; concordamos muito e deixamos espaços abertos para ouvirmos as bancas de qualificação e de defesa, mas, sobretudo, procuramos compartilhar um momento extremamente tenso, que é o de narrar o que foi investigado. Este não é um problema pessoal ou dos estudantes da saúde coletiva, mas acompanha todos os professores e alunos na pós-graduação. Lembro-me de um livro intitulado A bússola do escrever: desafios e estratégias na orientação de teses e dissertações (Biancheti, Machado, 2002), coletânea que trata dessa complexa atividade de orientar; outra lembrança, neste momento, é a da conferência da antropóloga Miriam Goldenberg (2006), quando recupera autores tão caros às minhas experiências como docente, como Foucault, Elias, Becker, e que, em sua fala, situa as dificuldades na elaboração de uma tese. De Norbert Elias, a conferencista citou as dificuldades que ele teve ao escrever a tese de doutorado. Em sua autobiografia, Elias (2001, p.101-2) registra esse momento: No que diz respeito à pesquisa, dispunha apenas de minha tese de doutorado para provar minha capacidade. E ela representara um trabalho duro. Tinha confiança em minhas capacidades intelectuais, e idéias não me faltavam. Mas o imenso trabalho intelectual que minha tese exigira me parecera dificílimo. Só bem mais tarde fui pouco a pouco compreendendo que noventa por cento dos jovens encontram dificuldades ao redigir seu primeiro trabalho de pesquisa importante; e às vezes, acontece o mesmo com o segundo, o terceiro ou o décimo, quando se consegue chegar aí. Teria agradecido se alguém me dissesse isso na época.

Elias descobre que a grande maioria tem dificuldades, iguais às encontradas por ele, mas, como escreve, foi perseverante e venceu; lembre-se que somente aos 57 anos Elias conseguiu a sua primeira posição estável como professor de sociologia. Voltemos aos temas propriamente ditos. Certamente, o que foi visto neste Seminário não destoa do que se passou na grande maioria dos cursos de mestrado e doutorado, mesmo tomando como centralidade o campo das ciências sociais e humanas. Hoje, diferentemente da fase inicial, a diversidade foi sistematizada (ou arrumada) em linhas de pesquisas e estruturadas a partir dos grupos de pesquisas. Certamente, Bourdieu, avesso ao academicismo e à regulação institucional, discordaria desse critério. Sem dúvida, a criatividade inicial foi benéfica. Em recente trabalho, comparei a Saúde Coletiva a um mosaico, entendida como um conjunto formado por partes separadas, mas que se aproximam quando a compreensão dos problemas ou a proposta de práticas se situam além dos limites de cada “campo disciplinar”, exigindo arranjos interdisciplinares. Acrescento que a sua composição está associada ou àquelas ciências de fronteira, muitas vezes já consolidadas (por ex.: psicologia social), ou às interdisciplinas (por ex.: avaliação de serviços de saúde, planejamento em saúde), ou às interciências (por ex.: ecologia). Como acrescento, “Nesse sentido, entendemos que o campo não é simplesmente 448

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um território opaco, um compósito de conhecimentos, saberes e práticas desarticulados, mas que se compõem de acordo com as necessidades em descrever, explicar e/ou interpretar a realidade de saúde que se deseja estudar, avaliar ou transformar; para isso, fazemos uso dos conceitos, das categorias analíticas, das chaves interpretativas procedentes do núcleo duro das ciências – o corpus teórico – que lançam suas luzes para o entendimento dos objetos e sujeitos investigados pelos pesquisadores. Agora, o mosaico transforma-se em um vitral, no qual os problemas estão filtrados pela teoria” (Nunes, 2006, p.304-5). Em verdade, a questão da teoria continua sendo o ponto central para as ciências sociais, como situa, de forma exemplar, Anthony Giddens, quando afirma que: A teoria social tem a tarefa de fornecer concepções da natureza da atividade social humana e do agente humano que possam ser colocadas a serviço do trabalho empírico. A principal preocupação da teoria social é idêntica à das ciências sociais em geral: a elucidação de processos concretos da vida social. (Giddens, 1989, p.xiv)

Neste encadeamento, antes de situar as temáticas dos mestrados e doutorados, gostaria de considerar o espaço especial que foi aberto para as ciências sociais com a constituição da saúde coletiva como grande área de convergência de práticas teóricas, sociais, técnicas e políticas. Esse espaço, que se torna cada vez mais ampliado, tem como um dos seus pilares as ciências sociais e humanas; estas, por sua vez, renovam-se e recriam seus conceitos e categorias no enfrentamento dos problemas coletivos da saúde. Considero acertada a ordenação dada às teses que orientei neste seminário, que, embora elaboradas em diferentes momentos, guardam relações temáticas, conceituais e metodológicas. Assim, no grupo intitulado “Saúde Mental: da contestação à construção do conhecimento”, encontram-se trabalhos que versaram sobre a construção do conhecimento psiquiátrico e sobre o saber psicanalítico, assim como sobre a psicologia da saúde, incluindo um estudo que abordou a antipsiquiatria e outro que abordou as relações cidade-hospital psiquiátrico-cidade. As teses citadas no grupo “A construção social da ciência e do saber” enquadram-se em uma preocupação que foi a marca das pesquisas que realizei nos últimos anos, com a preocupação de entender o próprio campo das ciências sociais em saúde. Nelas são abordadas: as construções científicas de diversas áreas, como a odontologia, as ciências sociais em saúde, saberes sobre doenças, a interface entre campos como a etnoepidemiologia, o estudo de publicações científicas, como o caso da literatura francesa que trata da saúde na vertente sociológica e relações gênero e ciência. Em “Saúde comunitária e do trabalhador: campo de práticas sociais e políticas”, há dois trabalhos sobre participação em saúde, incluindo-se em um deles detalhado estudo arqueológico do discurso sobre participação e três que tratam das relações saúde e trabalho, tanto na construção do campo da saúde do trabalhador, como de detalhada investigação sobre a trajetória de trabalhadores nos processos de transformação das relações técnicas e sociais do trabalho, e um estudo da construção de uma psicologia do trabalho no contexto do processo de industrialização no Brasil. Finalmente, em “Ensino nas ciências da saúde: medicina, enfermagem e as novas práticas”, são englobados trabalhos que vão da história das primeiras escolas de medicina no Brasil, à história da enfermagem brasileira vista através das revistas que trataram da enfermagem – ensino e prática –, ao estudo da construção do conhecimento da criança pelos pediatras, à analise das transformações do ensino médico no Brasil, as questões éticas das práticas médicas e análises detalhadas das práticas alternativas e complementares. Este é, seguindo a ideia anterior, o mosaico que se formou dos trabalhos, cujas pesquisas empíricas foram iluminadas pelas teorias as mais diversas. Há enfoques marxistas, análises do discurso, seguindo de perto a “arqueologia” de Foucault, reconstituições de campos de saberes, na tradição de Bourdieu, narrativas nas quais memória e história estabelecem diálogo, na tentativa de aproximação com Benjamin, e outros mais, como Habermas, Guatarri etc. As próximas teses não fugirão desta forma de trabalhar as ciências sociais e a saúde coletiva, o que poderia sugerir um aparente ecletismo teórico, mas que buscando um solo comum e que tem muito a ver com a perspectiva de Bourdieu, tão bem exposta por Loïc Wacquant, ao analisar a obra de seu amigo, mestre, colaborador, ao ressaltar: “seu brado por uma ciência social reflexiva, capaz de controlar seus próprios vieses, bem como se manter independente de “ritos de instituições” (Wacquant, 2002, p.95). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.445-52, abr./jun. 2013

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Durante esta exposição, procurei narrar um pouco de uma trajetória e de um trabalho realizados em espaços institucionais e que contou com a presença de muitos amigos do Brasil e da América Latina. Nas Escolas de Saúde Pública, nos Departamentos de Medicina Preventiva, nos Institutos de Saúde Coletiva, tive a oportunidade de participar de bancas examinadoras, aulas e eventos que deram elementos importantes para as minhas atividades docentes e de pesquisa. Ressalto os latino-americanos, que, desde os anos 1970, foram partícipes em acreditar que era possível dar identidade ao campo da medicina social e em usar o instrumental das ciências sociais. Inegavelmente, a figura que dominou este cenário durante vinte e cinco anos foi Juan César García, cuja influência foi decisiva para muitos de nós. Sua perspectiva marxista iria marcar um largo período da medicina social e, mesmo após sua morte, em 1984, a sua obra continua a ser objeto de reflexão. Sobre outros que batalharam e batalham por uma sociedade mais justa e igualitária, mexicanos, colombianos, equatorianos, chilenos, argentinos, peruanos, venezuelanos, cubanos, com os quais tive a honra de trabalhar (não cito os nomes, com medo de omissões), deixo o meu testemunho de quanto foram importantes no meu percurso acadêmico. Muito aprendi sobre temas que não eram parte dos clássicos da sociologia, mas que foram fundamentais para que pudesse estruturar um pensamento mais abrangente sobre as possibilidades das ciências sociais. Todos foram agentes nessa construção. Não é fácil elaborar esta reflexão diante de meus pares e na instituição em que estive (e, em parte, ainda estarei) durante tantos anos, onde apresentei meu doutorado e que me honrou, anos atrás, com o Prêmio que leva o nome do seu fundador – Professor Zeferino Vaz, e que acolheu, num ímpeto de inovação e crença, a mim e a outros cientistas sociais para trabalharem no campo da medicina, em uma época em que somente alguns países do primeiro mundo haviam se aventurado nesse campo. À Faculdade de Ciências Médicas e ao Departamento de Medicina Preventiva e Social (atual Departamento de Saúde Coletiva), rendo as minhas homenagens. Também, agradeço a uma Instituição que tem sido a grande possibilitadora do trabalho científico no Brasil – o CNPq –, da qual sou bolsista produtividade (IA) há algum tempo e com o grupo com o qual eu tenho trabalhado – o Comitê Assessor de Saúde Coletiva e Nutrição. O estímulo recebido e a convivência com colegas de diferentes áreas têm sido de grande importância na minha produção. Por último, uma lembrança muito especial a duas pessoas que me acompanham ao longo desses anos. A Ecilda Maria da Silva Nunes, minha mulher, que leu todos os meus textos e de muitos dos meus alunos e, atentamente, fez as necessárias correções gramaticais, além de proveitosas sugestões; ao meu filho Rodrigo Antonio da Silva Nunes, que me ensinou o que sei de informática a fim de que eu me adaptasse minimamente às inovações tecnológicas, e que tem sido um amigo. A vocês, o meu carinho muito grande. Renovo, ao encerrar estas palavras, um elogio e um agradecimento. Ao Nelson Filice de Barros e a Juliana Luporini do Nascimento (sociólogos, professores do Departamento de Saúde Coletiva, FCM/ Unicamp), que construíram este seminário de maneira impecável. Eu soube desta realização quando já estava tudo pronto. Trazer para a cena as Ciências Sociais pela prática desenvolvida foi um achado primoroso, especialmente no marco de referência de Bourdieu; e ter contado com a presença de muitos daqueles que exercitam essa prática foi um feito de invejável qualidade e que recupera a ideia de que todos somos agentes nesse processo de construção e consolidação de um campo. Sem dúvida, esta forma de reflexão foi exemplar, pois possibilitou, na expressão do sociólogo francês aqui inúmeras vezes citado, “desencadear um processo de auto-análise coletiva”. Para ele, “estamos, hoje, em condições de conceber novas formas de reflexão. Trata-se, para tanto, de mobilizar um coletivo, em torno de interrogações relativamente elaboradas, em condições tais que se possa produzir uma verdade sobre si próprio que, certamente, ele é o único capaz de produzir” (Bourdieu, 2004, p.17-8).

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NUNES, E.D.

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UM AGENTE NA CONSTRUÇÃO DO HABITUS ...

A apresentação reproduz o depoimento feito pelo autor quando do Seminário realizado em sua homenagem, em 2006, por ocasião da sua aposentadoria. Nela o autor relembra alguns fatos da sua carreira como cientista social da saúde, situando-a no quadro de referência do seminário – a noção de campo e habitus. Situa a sua contribuição para o campo das ciências sociais e da saúde coletiva, especialmente relacionada às dissertações e teses que orientou.

Palavras-chave: Campo. Habitus. Ciências Sociais. Saúde Pública. Depoimento. An agent in the construction of social sciences habitus in collective health This presentation reproduces the personal testimony made by the author in the Seminar held in his honor in 2006 on the occasion of his retirement. In it the author recalls some facts of his career as a health social scientist, placing it in the framework of the seminar - the notion of field and habitus. The author highlights their contributions to the field of social sciences and public health, especially related to dissertations and theses that he directed.

Keywords: Field. Habitus. Social Sciences. Public Health. Statement. Un agente en la construcción del habitus de las ciencias sociales en salud colectiva La presentación reproduce el testimonio hecho por el autor en el Seminario celebrado en su honor en 2006, con motivo de su jubilación. En ella, el autor recuerda algunos hechos de su carrera como científico social de la salud, situándolo en el marco del seminario – las nociones del campo y habitus. El autor analiza su contribución en el campo de las ciencias sociales y de la salud colectiva, especialmente en relación con disertaciones y tesis dirigidas.

Palabras clave: Campo. Habitus. Ciencias Sociales. Salud Pública. Testimonio.

Recebido em 24/05/12. Aprovado em 18/08/12.

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Bioética-Sociobiologia. Neologismos oportunos? Interface da tecnociência com as ciências humanas e sociais

William Saad Hossne1

Nos dicionários – Interface? Década de 1.970. Dois neologismos nascem; ambos com o elemento de composição “bios” (vida): Bioética e Sociobiologia. No vocábulo “Bioética”, Bio inicia o neologismo e em Sociobiologia, Bio aparece ao final do neologismo. Ambos levaram alguns anos para serem reconhecidos e recolhidos nos dicionários. O curioso é que dentre mais de uma centena de vocábulos que se iniciam com o elemento “bio”, no dicionário “Aurélio”, o termo bioética não está consignado, na segunda edição de 1986 (aparece na terceira edição de 1999); também não consta o vocábulo Sociobiologia (figura na terceira edição -Ferreira, 1999). Está registrado, porém, o vocábulo Biosociologia: “Biosociologia – estudo das comunidades vivas como sistemas integrados”. No dicionário Houaiss (2001) estão catalogados mais de trezentos vocábulos que se iniciam com “bio”, incluindo Bioética, Biosociologia e Sociobiologia. “Bioética - estudo dos problemas e implicações morais despertadas pelas pesquisas científicas em biologia e medicina. A bioética abrange questões como a utilização de seres vivos em experimentos, a legitimidade moral do aborto ou da eutanásia, as implicações profundas das pesquisas e práticas no campo da genética, etc”. “Sociobiologia - estudo comparativo da organização social dos animais, incluindo a do homem, especialmente em relação à sua base genética e à sua história evolutiva”. “Biosociologia - estudo das bases biológicas do comportamento social dos animais e por extensão, dos seres humanos; sociobiologia”. Verifica-se que bioética estaria vinculada à ética envolvida nas pesquisas científicas em biologia e medicina; trata-se de uma definição voltada às origens da expressão bioética, sim, porém, reducionista, já que bioética não está restrita apenas ao campo da pesquisa. Os dois termos, Bioética e Sociobiologia, evocam, de imediato, a idéia de pluri e interdisciplinaridade e, sobretudo a “interface entre cultura científica [ou tecnocientífica] e cultura humanística”. E este seria o fato auspicioso tão desejado. Com algumas variações de nomenclatura, nos ambientes acadêmico-universitários agrupam-se, genericamente, as várias disciplinas universitárias em ciências exatas

1 Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Coordenador do Curso de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Bioética, Centro Universitário São Camilo. Rua Raul Pompéia, 144, Pompéia. São Paulo, SP , Brasil. 05.025-000. secretariamestrado@ saocamilo-sp.br

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BIOÉTICA-SOCIOBIOLOGIA. NEOLOGISMOS OPORTUNOS? ...

(e tecnológicas), ciências biológicas e ciências humanas e sociais. De acordo com BERNAL (1969, p.1060), na ordenação das ciências, colocam-se as ciências sociais no fim de “uma série que começa com as matemáticas, passa pela física e pela química até a biologia dos animais e depois à dos homens, à psicologia e, por fim, à sociologia.” Ainda assim, costuma-se dividi-las em dois grandes campos, que muitos chamam de “cultura” (e daí para frente seguiremos esta esquematização), a cultura científica (área de tecnociências) de um lado e “cultura humanística” de outro. Ao longo da história milenar da Universidade houve momentos em que as duas culturas estiveram mais ou menos afastadas. Com a revolução científica e com a criação da nova universidade (início do século XIX), tendo como emblema a fundação da Universidade de Berlim, a cultura científica (e no século XX, a tecnociência) foi integrada à universidade,até então voltada para a cultura humanística em sua quase totalidade. As ciências experimentais se desenvolveram fora da universidade durante quase três séculos; seu abrigo foram as Academias e as Sociedades Científicas. Ao final do século XVIII e início do século XIX, a universidade não podia mais voltar as costas para tais atividades; por outro lado, os cientistas buscavam sua inserção na universidade. Daí, seu ingresso na Universidade e a inclusão, nos estatutos da universidade, do dispositivo da indissociabilidade do ensino (vinculado, sobretudo à cultura humanística) e da pesquisa (vinculada â cultura tecnocientífica). Essa indissociabilidade, até hoje, considerada ponto básico estatutário, não significou, porém, integração ampla das duas culturas, apesar das relações entre ciência e sociedade. A propósito, vale referir o que escreve Bernal (1969, p.1286): “As relações entre a ciência e a sociedade são absolutamente recíprocas. Da mesma maneira que os acontecimentos sociais levam às transformações nas ciências, também as transformações sociais são, cada vez mais, provocadas pela ciência”. Apesar disso, a inter-relação entre as duas culturas não foi tão extensa, quanto deveria ser. Houve mais inter-relações entre disciplinas de cada “cultura” do que entre disciplinas das duas culturas. Como referido, pela sua composição, as duas novas expressões (bioética e sociobiologia) evocariam, de imediato, uma relação entre duas esferas (ou arenas) ou duas culturas: a da biologia (sentido amplo) e a das ciências humanas; em Bioética é evocada a relação das ciências biológicas (ciências da vida, da saúde e do meio ambiente) com a filosofia (em particular a ética) e em Sociobiologia, as ciências sociais, com as biológicas. O que levou a criação dos dois neologismos? Qual o significado inicial de cada um? Após o nascimento, qual a evolução de cada um? Como estão aos quarenta anos? Qual o significado e a mensagem que deixaram? O que prometem para o futuro? E, sobretudo, “bioética” e “sociobiologia” conseguiram unir ou integrar, de maneira interdisciplinar a esfera tecnocientífica com a esfera humanística e cultural? Qual delas atingiu tal fim? Neste sentido, na verdade, verificamos que vários outros vocábulos que se iniciam com “bio” abriam também perspectivas ou probabilidades de integração efetiva entre as duas esferas, a tecnocientífica e a humanística. Assim, dos mais de trezentos verbetes com o elemento “bio” (Houaiss, 2001) selecionamos alguns, de profundo significado, mas que não levaram (e talvez nem fosse de se esperar) a tal integração. Assinalemos, à titulo de ilustração, os seguintes vocábulos: Bioastronáutica, Bioastronomia, Biocibernética, Biofísica, Bioquímica, Biomatemática, Biomecânica, Biometeorologia, Biopolítica, Bioeletrônica, Bioengenharia, Bioestatística, Biogeoquímica, Biometria, Biontologia, Biônica. Muitos destes termos caracterizam uma disciplina de fronteira – mas nenhum deles pretendia (talvez) levar à integração das duas esferas já referidas. E Bioética e Sociobiologia, conseguiram? As palavras têm vida própria. Nascem, crescem e adquirem personalidade, algumas delas. Outras nascem e fenecem em pouco tempo. Outras banalizam-se e se transformam em rótulo, uma casca sem conteúdo. Outras há que mudam parcial ou totalmente de sentido, ganhando significado diverso daquele que a gestou. Outras já nascem com significado profundo e, rapidamente aglutinam pessoas e ideias, propiciam abertura de novos caminhos, abrem 454

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novas perspectivas, desencadeiam reformulações e inovações. É o caso da Bioética, podemos adiantar. De qualquer modo, a evolução dos neologismos é repleta de vicissitudes e, na verdade, raramente ocorre de forma linear como esquematizado acima; o mais comum é um zig-zag.

Nas bases de dados – sobrevida dos neologismos Vejamos um pouco tais vicissitudes da Sociobiologia e da Bioética. Para se ter uma ideia de como os dois vocábulos se inseriram na área acadêmica desde o seu nascimento, apresentamos no Quadro 1 o número de publicações (a partir de 1970), por década, em que figura, no título, o neologismo Sociobiologia (Biosociologia) e o neologismo Bioética. Os dados são das bases SPRINGER e MEDLINE.

Quadro 1. Sobrevida dos neologismos nas bases de dados Base MEDLINE

Base SPRINGER Sociobiologia

Biosociologia

Bioética

Sociobiologia

Biosociologia

Bioética

Década de 1970

7

1

-

54

1

53

Década de 1980

22

1

4

51

2

219

Década de 1990

20

1

86

13

-

937

Década de 2000

19

-

298

20

1

1.347

3

-

16

-

-

130

Ano 2010 Ano 2011 Total

A palavra Bioética, no sentido atual, foi proposta por Potter, no início da década de 1970. Sabe se hoje que em 1927, Fritz Jahr também empregou o vocábulo em outro sentido. A expressão Sociobiologia ganhou vida após a publicação de Wilson (também na década de 1970); há citações dando conta de que a expressão também foi empregada por A. Carrel, em 1936, segundo Guillebaud, que traz boa síntese da Sociobiologia. 2

-

-

65

2

-

110

71

3

469

140

4

2.796

Os dados mostram que a expressão Sociobiologia (e/ou biosociologia) figura, no título, em 74 publicações (14%), e Bioética em 469 (86%), na base Springer. Na base MEDLINE, Sociobiologia (e/ou biossociologia) aparece em 144 publicações (5%) e Bioética em 2796 (95%). Quando se analisa o número de publicações por década, nota-se que o número de publicações com o neologismo Sociobiologia (e/ou biosociologia) vai diminuindo, enquanto o o neologismo Bioética vai aumentando de modo bem acentuado. Assim, na base Springer, 70% das publicações em que figura o neologismo Sociobiologia ocorrem entre 1970 e a década 1990, isto é, apenas 30% das publicações mais recentes; no caso da Bioética os dados são 19% até a década de 1990 e 81% mais recentemente. Na base MEDLINE, os dados referentes ao mesmo período, mostram que, no caso da Sociobiologia somente 15% dos artigos foram publicados após a década de 1990, no caso da Bioética, 57%. O que levou Wilson a criar o neologismo Sociobiologia e Potter, o neologismo Bioética?2 COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.453-62, abr./jun. 2013

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De início, pela composição dos termos depreende-se que na Bioética “bios” foi “buscar” a “ética”, ao passo que na Sociobiologia, a sociologia foi buscar o “bios” (isto é, as ciências biológicas). A busca do encontro entre disciplinas diferentes (como é o caso, na bioética e na Sociobiologia) ocorre, em geral, quando surge uma “questão”, um “problema”, um “desafio”, ou uma demanda externa, para a qual uma determinada disciplina não consegue, dentro dos seus próprios parâmetros ou cânones, resolver ou ao menos equacionar, como assinala Fourez (1995). Essa disciplina busca outras e assim se inicia a multidisciplinaridade, que pode ficar aí restrita como pode caminhar para uma relação mais profunda entre as disciplinas, surgindo então, a interdisciplinaridade e a transdiciplinaridade. Em alguns dos casos, resolvida a “demanda”, cada disciplina retorna ao seu berço, com ou sem alguma “incorporação” da(s) outra (s) disciplina (s). Outras vezes a inter-relação das disciplinas é mais profunda chegando a suscitar a ideia do nascimento, pela fusão das disciplinas, de uma “superciência nova”. No geral, isso não prospera. Nesses casos o que pode, de fato acontecer, é o surgimento de uma nova disciplina, ou melhor, uma nova área de conhecimento.

Sociobiologia e Bioética – percurso e significado O neologismo Sociobiologia surgiu no meio acadêmico-universitário com a publicação do livro “Sociobiology – The New Synthesis” (1975), de Edward O. Wilson, considerado o pai da Sociobiologia, e se difundiu com outras publicações (Wilson, 1977, 1978, 2000). O novo termo, desde o nascimento, vem causando controvérsias. (Bock, 1982; Ruse, 1983; Wallace, 1985). De fato, como o próprio autor assinala, houve os defensores e os críticos da Sociobiologia – não cabe aqui, analisar os aspectos doutrinários da Sociobiologia nem a análise dos argumentos de um lado e de outro. Wilson, respeitado entomologista americano, especialista em formigas e estudioso de sistemas sociais de insetos, ao criar o termo teve como objetivo estruturar uma nova disciplina, caracterizada no glossário de seu livro: Sociobiology – the systematic study of the biological basis of all social behavior. Wilson pretendeu dar bases mais concretas (no sentido de ciência) à sociologia humana. Com a expressão: “the new synthesis – aposto à Sociobiology” – o neologismo, ao contrário da Bioética, trouxe “síntese” e não “análise”. Ao que tudo indica, no caso da Sociobiologia a “demanda”, na visão de Wilson, era a busca de estruturação de um arcabouço de sustentação (ou pensamentos) da sociologia (ciências sociais); Wilson foi buscar este arcabouço com base nas ciências biológicas. Isso já transparece na definição por ele dada à Sociobiologia: “estudo sistemático da base biológica de qualquer comportamento social... Uma das funções da Sociobiologia consiste, pois, em reformular os fundamentos das ciências sociais, de modo a permitir sua inclusão na Síntese Moderna”. Para ele, entrariam na “síntese” a genética (em geral), a genética de populações, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e a antropologia. No caso da Sociobiologia não houve uma relação harmônica entre a cultura humanística e a tecnocientífica (no caso, biociências) o que houve não foi uma relação inter-pares, mas sim uma “imposição” dos parâmetros das ciências biológicas nas ciências sociais. Já ao nascimento, colegas de Wilson (da Universidade de Harvard) criticaram a proposta da Sociobiologia, denunciando a concepção reducionista e determinista da Sociobiologia; alguns criticaram o “geneticismo” envolvido: a biologia e, em particular, os genes determinavam e explicavam tudo. Tudo no comportamento já estava determinado pela base biológica, o que foi aproveitado para fins políticos, levando à própria segregação e discriminação racial. Aproveitando-se dessa concepção determinista e reducionista, alguns educadores encontraram argumentos para a segregação racial nas escolas para crianças. Na visão de Guillebaud (2008), a Sociobiologia foi apropriada pela extrema direita para fins políticos, educacionais e econômico-financeiros. Tudo poderia se justificar pelo determinismo genético.

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No caso da Sociobiologia, portanto, foi dada hegemonia, com imposição das ciências biológicas; não se tratava de harmonia entre disciplinas, mas de “sufoco” sem diálogo e sem enriquecimento mútuo. Foi utilizada, instrumentalizada, a serviço de interesses políticos e de ideologias de interesses de grupos.Não houve aproximação e nem mesmo qualquer relacionamento harmônico e frutífero entre as duas esferas já referidas. Não houve aglutinação, houve discórdias. Feneceu, sem frutos? Ao final de 25 anos, por ocasião da publicação comemorativa, reconhece-se que persistem as controvérsias. Já na Bioética, o fenômeno foi outro e o significado para as culturas humanista e tecnocientífica foi completamente oposto. A Revolução Molecular, iniciada na década de 1950, já aos vinte anos de evolução (década de 1970) trouxe profundas repercussões nas biociências e nas biotecnologias, abrindo perspectivas espetaculares para a humanidade, ao mesmo tempo em que gerava apreensões profundas, pela possibilidade, pelo uso inadequado, de destruição da própria humanidade e das “futuras gerações’”. Potter, oncologista norte-americano, de origem europeia, preocupado com o fato, criou o neologismo Bioética; neologismo carregado porém, de profundo significado. Basicamente, Potter, em seu livro “Bioethics- Bridge to the Future” (início da década de 1970) propunha a criação de nova área de conhecimento, marcada pelo encontro entre a cultura humanística e a tecnociência: os fatos da ciência (biociências e biotecnologias) deveriam ser trazidos à consideração da cultura humanística, para a reflexão crítica, pluralista, interdisciplinar, enfatizando a ética (Potter, 1971). A Bioética nascia com a preocupação ética na área das ciências da vida, da saúde e do meioambiente, incluindo a interface entre essa área e as duas culturas. A Bioética não é a ética das áreas biológicas pensada pela sua própria comunidade científica específica. É a ética multi, inter e transdisciplinar, convocando, para reflexão ética, os diversos segmentos da comunidade científica e cultural, bem como os diversos segmentos da própria sociedade. No caso da Bioética foram as ciências biológicas que buscaram as ciências humanísticas e buscaram de modo a estabelecer um relacionamento profundo, equilibrado, harmônico e enriquecedor. Aos quarenta anos de vida, a Bioética está consolidada como área de conhecimento, situada nas fronteiras de interdisciplinaridade. É uma área de conhecimento não só pela abrangência de seu campo de atuação, mas pelas suas próprias características de atuação. O desenvolvimento da Bioética passou pela fase paradigmática e com a implantação da pósgraduação (stricto-sensu) atinge o que Fourez (1995) denomina fase pós-paradigmática, na qual se inicia o processo de formação de sua própria comunidade científico cultural. Pelo exposto, verifica-se que as implicações da Sociobiologia e da Bioética nas esferas científicas e culturais foram diferentes. Na Sociobiologia, pela sua gênese e concepção, não ocorreu a integração, tão desejável, entre as duas culturas. Pelo contrário: imposição, instrumentalização, determinismo, reducionismo e desvirtuamento foram características da trajetória do neologismo.

Bioética – ponte entre “culturas”. Interface. Na Bioética, tanto no campo teórico quanto no prático, se implantou e se consolidou o encontro feliz e produtivo entre as duas culturas. No prefácio do livro “Bioethics-Bridge to the Future”, Potter (1971, p.5) refere “o propósito deste livro é contribuir para o futuro da espécie humana ao promover a formação de nova disciplina, a disciplina de Bioética”. E prossegue: Se há duas culturas que parecem incapazes de falar uma com a outra – ciência e humanidades – e se isto é parte da razão que parece por em dúvida o futuro, então possivelmente, nós possamos construir uma ponte para o futuro, construindo a disciplina Bioética como uma ponte entre estas duas culturas.

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Em 1988, Potter publicou o livro “Global Bioethics”, inserindo já na capa, logo abaixo do título do livro, o seguinte: “Bio-ethics-Biology combined with diverse humanistic knowledge forging a science that sets a system of medical and environmental priorities for acceptable survival”. Do exposto, vale destacar que o vocábulo Bioética, na opinião de Potter, enfatiza os seguintes pontos: - bioética visa integrar as duas culturas; - não se trata apenas de analisar o sistema médico, mas todas as ciências biológicas, incluindo meioambiente (físico e social); - do lado das humanidades, com destaque à ética, inclui-se a participação de todas as áreas das ciências humanas e sociais; - do lado da “cultura da ciência”, inclui-se a participação de todos os ramos da ciência e não apenas as ciências biológicas, pois bios é aqui entendida como vida, em todos os sentidos. Potter insiste em dizer que na Bioética, pluralista e multidisciplinar, é necessário trazer os fatos biológicos à reflexão por parte de todos as demais disciplinas, sobretudo da cultura humanística. Verifica-se, pois que o vocábulo bioética vem carregado de significados ou mensagens. Há que se destacar que Bioética se propõe a ser analítica, interrogando as “duas culturas”. As palavras-chave são: análise e reflexão crítica, integrando e harmonizando as diversas áreas do conhecimento. O que nos interessa é explorar, ainda que superficialmente, a mensagem do neologismo e como isso pode ter interferido na integração entre as “duas culturas”. Bioética e Sociobiologia são dois neologismos nascidos à mesma época (década de 1970) compostos por bio – e uma disciplina da esfera das humanidades (ética no caso da bioética e sociologia, no caso da sociobiologia). Em princípio seria de se esperar (e seria desejável) que a integração ocorresse nos dois casos. Não foi o que ocorreu. Na bioética as duas “culturas” são chamadas para integração, mantendo as disciplinas seus parâmetros, sua autonomia e participando, num movimento de análise; de reflexões críticas. Na proposta de Wilson, a biologia se funde hegemonicamente com a sociologia – não há propriamente uma integração entre as duas culturas. A proposta é de fusão estruturada e baseada nos fenômenos biológicos. Não há o “chamamento” para “análise e reflexão crítica”, como acontece com o neologismo bioética, cujo significado mais relevante é o da interação entre as citadas “duas culturas”. Este fato merece alguns comentários. Entre o final do século VII A.C. e o século V A.C. (e início do século IV A.C) ocorreu na Grécia talvez um dos fenômenos mais marcantes e profundos na história da civilização ocidental. Neste período, há cerca de 25 séculos, nasceram “trigêmeos”, que se desenvolveram e se firmaram no mundo, sempre interagindo entre si: a filosofia, a medicina e a democracia. Nenhum deles teria evoluído como evoluiu, sem a inter-relação com seus “irmãos”. A filosofia, a partir de Tales passa pela fase cosmológica (é a physis) pela antropológica (com a ética e a teoria do conhecimento, com Sócrates) pela fase helenística romana, em interação com a medicina. A medicina surge como tekhne iatrike* (técnica médica) com Hipócrates e com a implantação do raciocínio clínico e a ética de seu juramento, em íntima relação com a filosofia. Sobre essas inter-relações, Jaeger (1986, p.687), com sua autoridade de respeitável helenista diz textualmente: “Pode-se afirmar sem exagero que sem o modelo da Medicina seria inconcebível a ciência ética de Sócrates, a qual ocupa o lugar central nos diálogos de Platão. De todas as ciências humanas então conhecidas, incluindo a Matemática e a Física, é a Medicina a mais afim da ciência ética de Sócrates”. Quanto ao papel e à importância da democracia nesta inter-relação vale lembrar que foi da “assembléia de guerreiros” (Chauí, 1944, p.42) e da palavra diálogo, pública e equalitária (isegoria e isonomia) que nasce a polis e é inventada a política. Para a filosofia e para a medicina, na visão hipocrática (sobretudo na ética da relação médicopaciente), a implantação da democracia, como instituição social e política foi fundamental. Com Clistenes e Péricles, democracia, filosofia e medicina mutuamente se apoiam e se consolidam. 458

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Cabe enfatizar que neste fenômeno dos “trigêmeos”, ciência, técnica e cultura se encontram e se entrelaçam. Esta “junção” não ocorreu quando as ciências (e logo depois, as tecnologias) se desenvolveram, mas quando outro marco importante na história da civilização ocidental – o nascimento das ciências experimentais e do método científico, com Galileu e Leonardo da Vinci, Francis Bacon, Descartes. Com Galileu (1564-1642) nascem as ciências experimentais, berço dos demais ramos das ciências e a ciência se desenvolve rápida e progressivamente, mas o faz sem inter-relação com as ciências humanas. Na verdade, sem relacionamento algum com a grande instituição nascida na Idade Média – a Universidade. De fato, o desenvolvimento das ciências (como hoje as reconhecemos) se deu fora da Universidade, sem outra inter-relação; os cientistas se abrigaram e se encontraram nas Academias de Ciência – fora da Universidade, a qual sequer as considerava merecedoras de maior atenção. Foi nas Academias (como sociedades científicas) dos Lincei (Roma, 1600-30), de Cimento (Florença, 1651-67), na Royal Society (Londres, 1662) e na Academia Royale des Sciences (França, 1666) que a ciência se desenvolveu. (Bernal, 1969, p.449)

Não se pode dizer que não houve relação da área científica em desenvolvimento com a área das humanas e sociais, tanto que Bernal (1969) insere um tópico denominado a “Revolução Humanista nas atitudes e nas ideias”, ao se referir à revolução científica que então ocorreu entre os sécs. XVI e XVIII. É bem verdade que a inter-relação das ciências com as humanidades foi buscada com a elaboração da Enciclopédia Francesa, inclusive com a participação de cientistas e humanistas. Já no final do século XVIII e no início do século XIX, a Universidade, que voltara as costas para as “ciências”, não poderia ignorar a importância e o alcance da revolução científica. Por outro lado, os cientistas da área física, da química, da experimentação, buscavam se inserir na Universidade. Este foi também um momento importante, enfrentado de modo diverso na França, na Inglaterra, em Portugal. Dentro da nossa linha voltada para a inter-relação das ciências com as outras áreas, interessa focalizar o acontecido na Alemanha, com a fundação da Universidade de Berlim (início do século XIX). Essa universidade foi criada pregando a indissociabilidade do ensino e da pesquisa na universidade, procurando receber e abrigar cientistas – um resgate após cerca de 200 e tantos anos. Na nova Universidade procurava-se o pesquisador mais que o clássico professor, mais o laboratório de pesquisa que a sala de aula. Desta forma, a ciência (e a tecnologia) se integram na Universidade e de certa forma com as áreas sociais e humanísticas. Na verdade, esta integração não foi tão profunda. A interdisciplinaridade resultante da integração ocorreu entre disciplinas da própria área científica. Desde então, tem-se procurado a inter-relação das duas esferas (ciências e tecnologia, de um lado, e ciências humanas de outro) numa lembrança do que ocorreu na Grécia clássica. Neste pano de fundo surgem, na década de 1970, os dois neologismos objeto deste artigo, induzindo a inter-relação entre as duas esferas, favorecendo a integração – sempre lembrada e pouco efetivada.

Bioética. Situação ilustrativa. Legado. Com a Bioética estamos vivenciando um momento muito rico que faz lembrar o grande acontecimento referido anteriormente: o tríplice nascimento, os “irmãos gêmeos”, na Grécia, há mais de 25 séculos. Naquela ocasião nasciam a filosofia, a medicina e a democracia. em conjunto e em inter-relação. Esta inter-relação fez uma grande diferença. Hoje, com o advento da Bioética, procura-se a inter-relação não apenas da filosofia com a medicina e com a democracia – o fenômeno oferecido pela Bioética é mais amplo: a inter-relação é com todas as ciências humanas e sociais, não apenas com a medicina, mas com todas as ciências de saúde e da biologia, entre si e com as ciências exatas; não apenas com a isegoria e a isonomia dos guerreiros, mas com toda a sociedade (o sujeito e a coletividade) participando. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.453-62, abr./jun. 2013

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Ilustra bem o fenômeno a experiência brasileira, a partir do final da década de 1990, com as resoluções referentes à ética na pesquisa envolvendo seres humanos. Essas resoluções tiveram origem bioética, para cuja elaboração contribuíram grupos tipicamente interdisciplinares, envolvendo pesquisadores da área da tecnociência e das ciências humanas e sociais; tiveram conceituação bioética, um sistema operacional tipicamente “bioético” e controle (social) também de características bioéticas. Tome-se como ponto de referências os comitês institucionais (CEP) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). São colegiados datados de “múnus público”, de natureza essencialmente bioética. Os comitês institucionais têm a composição interdisciplinar, pois não podem ter mais da metade de seus membros pertencentes à mesma profissão; a outra metade é composta por pessoas de diversas áreas da saúde, das ciências exatas e das ciências humanas e devem contar com, pelo menos, um representante da comunidade de usuários. De acordo com as suas características (e para isso existe liberdade de atuação) a instituição compõe seu comitê, podendo inclusive criar-se mais de um comitê. Assim, em Faculdade de Medicina, o CEP poderá contar com até metade de seus membros médicos; em Faculdade da área de ciências humanas poderá contar com até metade seus membros dessa área. Assegura-se, assim, a interdisciplinaridade, unindo representantes da área tecnocientífica (não apenas biológica) e a humanístico-cultural. Ressaltamos que o convívio com profissionais de diferentes áreas, conjugando a duas culturas – a científica e a humanística - é extremamente importante, enriquecedor e produtivo. E reafirmamos que a Bioética é responsável pelo tríplice renascimento da medicina, filosofia e democracia, em conjunto e em inter-relação. Saibamos aproveitar e usufruir o que a Bioética nos traz e saibamos encontrar o melhor caminho - o caminho da sabedoria; sinalizado pela interface e pela integração da tecnociência com as ciências humanas e sociais.

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HOSSNE, W.S.

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O artigo focaliza a criação dos neologismos Bioética e Sociobiologia, analisando esses vocábulos que, pela sua composição, evocam relações entre ciências biológicas e ciências humanas (ética e sociologia). Destaca que esses dois neologismos já nasceram com profundos significados, mas em sentidos diferentes. Ressalta a importância da bioética na integração das culturas científica e humanística, para além das disposições estatutárias universitárias. Conclui indicando que a Bioética traz uma mensagem sugestiva de como criar mecanismos e condições para enfrentar os desafios que os avanços científicos, inexoráveis, nos lançam.

Palavras-chave: Bioética. Sociobiologia. Cultura científica. Cultura humanística. Bioethics–Sociobiology. Opportune neologisms? Interfaces between tecnoscience and human and social sciences The article focuses on the creation of the neologisms Bioethics and Sociobiology, analyzing these two words which due to their composition evoke relations between biological sciences and human studies (ethics and sociology). Highlights that these two neologisms, in fact, were born already loaded by deep meanings, but in different senses. Emphasizes the importance of bioethics in the integration of scientific and humanistic cultures, beyond university statuary regulations. Concludes that Bioethics conveys also a suggestive message about how to create mechanisms and conditions for facing the challenges which scientific advancements, in their inexorability, present.

Keywords: Bioethics. Sociobiology. Scientific culture. Humanistic culture. Bioética-Sociobiología. Neologismos oportunos? Interfaces entre la tecnociencia y las ciencias humanas y sociales El artículo se centra en la creación de neologismos Bioética y Sociobiología y en el análisis de estas palabras que, gracias a su composición evocan relaciones entre las ciencias biológicas y las humanidades (ética y sociología). Destaca que estos dos neologismos nacen ya cargados de hondos significados, pero en distintos sentidos. Afirma ser la Bioética efectivamente un puente a la junción harmónica de la cultura de la “tecnociencia” y la cultura de los estudios humanísticos e sociales, más allá de las regulaciones estatutarias universitarias. Concluye indicando que la bioética también trasmite un sugestivo mensaje a cerca la manera de crear mecanismos y condiciones como para afrontar los retos que los avanzos científicos, en su inexorabilidad, nos presentan.

Palabras clave: Bioética. Sociobiología. Cultura científica. Cultura humanística.

Recebido em 23/02/12. Aprovado em 07/05/13.

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O acesso de homens a diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis na perspectiva multidimensional e relacional da vulnerabilidade Neide Emy Kurokawa e Silva1 Leyla Gomes Sancho2

Homens e atenção às doenças sexualmente transmissíveis Discute-se o acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis (DST), problematizando as referências clássicas sobre acesso, que tratam a questão sob o binômio demanda e oferta, e propondo compreender o fenômeno por meio do aporte conceitual da vulnerabilidade. De doenças incuráveis e motivo de segregação social no passado, hoje, grande parte das DST são curáveis, com recurso a tratamentos relativamente simples. No entanto, ainda constituem um problema de Saúde Pública, não só no Brasil, mas, também, em todo o mundo. Não obstante as iniciativas para mudar o panorama das DST no país, o Ministério da Saúde reconhece que as diretrizes para diagnóstico e tratamento precoces, incluindo as parcerias sexuais, são pouco conhecidas ou implementadas pelo sistema de saúde. Não existe disponibilidade contínua de medicamentos padronizados para portadores de DST, bem como de preservativos. (Brasil, 2006, p.13)

A despeito da indicação do diagnóstico e tratamento sindrômico, a fim de otimizar a atenção, observa-se uma ênfase no diagnóstico etiológico, e o manejo sindrômico é pouco conhecido pelos profissionais de saúde. Outra situação emblemática é a prevalência de sífilis congênita, não obstante as políticas públicas, as quais incluem um rol de ações diferenciadas de vigilância e prevenção, assistência pré-natal e ao recém-nascido (Victora et al., 2011; Ramos Júnior et al., 2007; Walker, Walker, 2007; Rodrigues, Guimarães, 2004); e, no tocante à melhoria do acesso aos serviços de saúde e ao tratamento, são recomendados desde investimentos no sistema de notificação até a capacitação de profissionais e a qualificação do atendimento (Saraceni et al., 2005). Somando-se ao panorama esboçado, são apontadas distinções entre homens e mulheres no acesso e uso de serviços (Gomes, Nascimento, Araujo, 2007; Figueiredo, 2005), mesmo levando em conta as inflexões no modelo assistencial, como as propostas pelo Sistema Único de Saúde, de atenção integral à saúde ou,

Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Praça Jorge Machado Moreira, s/n, Cidade Universitária, Ilha do Fundão. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.941-598. neks@iesc.ufrj.br 1,2

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mais recentemente, da Política Nacional de Atenção à Saúde do Homem (Brasil, 2009). Isso leva a crer que o modo de buscar o cuidado e a atenção às demandas dos homens, em relação às queixas sugestivas de DST, também guardam especificidades, quando comparadas às das mulheres. Ou seja, os homens não usufruem de chances semelhantes em nenhum momento do seu ciclo de vida, inclusive os parceiros das gestantes com diagnóstico de DST (Araújo et al., 2008). Ainda que, com alguns entraves, as mulheres, ao menos aquelas que realizam o pré-natal, têm acesso ao diagnóstico e tratamento de DST. Se, por um lado, a maior parte das DST nas mulheres é assintomática (o que lhe conferiria maior suscetibilidade a agravos decorrentes dessas doenças), por outro, é obrigatório o oferecimento de exames de sífilis e HIV e o tratamento, quando for o caso, durante o pré-natal, visando reduzir a transmissão vertical. Não dispondo de uma inserção específica nos serviços de saúde, dentre as barreiras programáticas que afetam os homens, são citadas as dificuldades para marcar uma consulta em serviço de saúde, além da restrita oferta de horários e dias de atendimento, compatíveis com as necessidades dos homens. Somada a essas barreiras, na prática, ainda paira certa indefinição quanto às responsabilidades da atenção primária no acolhimento das demandas de DST, que, mormente, são referidas a serviços especializados, independentemente da complexidade do caso (Brasil, 2006; Araújo, Leitão, 2005). Embora prevista nas diretrizes da Atenção Básica, nem sempre esse nível de atenção tem conseguido incorporar as demandas de DST em homens. Vale frisar, ainda, que muitos homens nem chegam a buscar cuidados nos serviços de saúde, seja por estarem assintomáticos, seja por procurarem tratamentos alternativos, com remédios caseiros ou, então, “prescritos” por amigos ou nos balcões das farmácias. Ao lado das consequências mórbidas, deve ser ressaltada a presença de outras dimensões das DST, relativas à construção do imaginário sobre essas doenças, sua manipulação social e desdobramentos psicossociais, como apresentados nos trabalhos de Sontag (1989), acerca da aids e suas metáforas, ou de Carrara (1996), que trata do caráter totêmico das chamadas doenças venéreas e dos complexos processos sociais envolvidos na luta contra a sífilis. Ainda no plano simbólico, mesmo que controverso, há o imaginário de que homem não gosta ou não valoriza o cuidado com sua saúde (Figueiredo, 2005) ou, mesmo, a resistência na utilização do preservativo (Matos, Veiga, Reis, 2009; Galvão et al., 2002). Depreende-se, do exposto, que há um conjunto de investimentos visando o controle das DST, mas que ainda não alcançaram o impacto desejado no quadro epidemiológico, a exemplo da sífilis congênita. Como se explica essa lacuna entre investimentos e resultados? No caso dos homens, em especial, seria pertinente explorar o problema como uma questão de acesso aos serviços? A seguir, discutem-se, brevemente, as principais noções de acesso presentes na literatura, levantando suas limitações para a compreensão das possibilidades e limites no diagnóstico e tratamento de DST na população masculina.

Para além da demanda e da oferta: o acesso em pauta Uma aproximação inicial à noção de acesso pode ser feita a partir dos seus descritores em Ciências da Saúde (DeCS – Terminologia em Saúde) e suas respectivas definições: 1) Acesso aos serviços de saúde: Possibilidade de os indivíduos adentrarem e utilizarem os serviços de atenção à saúde, com vistas à resolução de problemas que afetem a saúde. Dentre os fatores que influem nesta possibilidade, incluem-se considerações geográficas, arquitetônicas, de transporte, financeiras, entre outras. 2) Qualidade, acesso e avaliação da assistência à saúde: Conceito que se preocupa com todos os aspectos da qualidade, acessibilidade e avaliação de cuidados de saúde e entrega de cuidados de saúde. 3) Equidade ao acesso: Possibilidade do sistema de saúde oferecer alternativas para os indivíduos que mais têm dificuldades de adentrarem e se utilizarem dos serviços de saúde oferecidos, numa região territorialmente delimitada. Cada grupo, estrato social ou região apresenta problemas específicos, diferenças no modo de viver, de adoecer, de acessar os serviços de atenção à saúde e satisfazer suas 464

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necessidades de vida. Tais diferenças devem ser consideradas para se oferecer mais a quem mais precisa, diminuindo as desigualdades existentes. Girando em torno dessas definições, a temática sobre o acesso, sobretudo nas áreas de planejamento e avaliação de serviços de saúde, vem sendo explorada privilegiadamente por referência às dimensões da demanda e oferta, da utilização e da capacidade de organização e respostas dos serviços (Travassos, Martins, 2004), tendo como eixo estruturante as ideias de consumo e de consumidores de serviços. Nesses termos, o diagnóstico e tratamento de DST, dos homens, estariam associados a uma questão de “logística” nos serviços de saúde, tais como horários mais flexíveis ou a existência de profissionais para atendê-los. Uma vertente, menos explorada, focaliza as discussões sobre o acesso, sob o prisma do direito à atenção ou dos seus aspectos simbólicos, ressaltando o conceito de representações sociais (Jesus, Assis, 2010; Giovanella, Fleury, 1995), cujo mote é o de que o conhecimento das concepções sobre saúde e doença da população pode subsidiar diferentes modos de intervenções, visando garantir a entrada do usuário no sistema de saúde. Ainda assim, as preocupações práticas e teóricas sobre o acesso concentram-se na formulação de estratégias visando responder, separadamente, à oferta de serviços e às demandas dos usuários – levando a indagar, por exemplo, se a simples ciência do direito de ser atendido garantiria que os homens procurassem os serviços de saúde frente a sinais/sintomas de DST ou, mesmo, sobre o caráter instrumental do “pré-natal” do homem, quando restrito ao controle da sífilis congênita. Ainda que alcançando diferentes perspectivas, as abordagens sobre o acesso à saúde seguem a racionalidade científica moderna de segmentação e naturalização dos fenômenos, ignorando, por vezes, a complexidade da sua produção e de suas interações, no caso, entre demanda e oferta, comum nos estudos oriundos do planejamento em saúde e inspirados nas abordagens teóricas da economia política e neoclássica (Pinheiro et al., 2005). O tratamento isolado dos elementos que compõem o acesso resulta na fragmentação, tanto da identificação dos problemas, quanto das proposições para sua solução: se é tomado como um problema da prática dos profissionais de saúde, a resposta é a proposição de capacitações e treinamentos; se é a incompatibilidade entre o horário do trabalhador e do serviço, a solução é a flexibilização dos horários de funcionamento; se é a captação de parceiros de gestantes com diagnóstico de sífilis, a saída é o prénatal do homem. Sem caber aqui uma crítica aos problemas identificados e às soluções produzidas, o questionamento recai sobre a lógica que informa os modos de apreensão e respostas aos obstáculos que se interpõem à saúde. Mesmo que buscando superar a ideia de “contrário de doença” (Ayres, 2007; Camargo Júnior, 2004), o conceito de saúde que remonta as proposições da Declaração de Alma Ata, tomado como “completo bem estar físico, mental e social”, tem ensejado abordagens compartimentalizadas, por referência às dimensões físicas e mentais e sociais, isoladamente. A “imagem idílica” de que seria possível um ajuste perfeito entre a emergência de um problema, a formulação de uma demanda e as respostas dos serviços de saúde, por prioridades (Camargo Júnior, 2005, p.92), reporta a uma premissa de que os problemas de saúde são “objetos dados, que se oferecem passivamente à observação, bastando serem corretamente identificados pelas técnicas adequadas”. Ocorre que, entre a identificação do problema e a motivação para buscarem algum tipo de atenção; entre as barreiras encontradas pelos homens para acessar os serviços de saúde e as dificuldades no acolhimento de suas demandas; entre as proposições das políticas e protocolos e as possibilidades práticas na sua implementação, perpassa uma complexa e dinâmica rede envolvendo diferentes interações entre atores, protocolos de tratamento, fluxos, políticas, normas culturais e sociais. Para fazer face a essas preocupações, é preciso mais que a escolha de um modelo explicativo para o problema do acesso, posto que este nem capta as especificidades de ser homem nem a dinâmica das relações que estabelece com os diferentes atores em diferentes contextos - familiares, dos serviços de saúde ou das normas culturais e sociais mais amplas.

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Nesse sentido, parece oportuno recorrer a um quadro compreensivo que incorpore e sintetize os diferentes contextos que podem facilitar ou limitar o acesso dos homens aos serviços de saúde, notadamente para o diagnóstico e tratamento de DST.

Das barreiras à vulnerabilidade no acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de DST Como já mencionado, ainda que sugerindo certa articulação entre diferentes dimensões, as abordagens sobre acesso são geralmente traduzidas em termos de barreiras à atenção à saúde. A proposição do adensamento do conceito de acesso aos serviços de saúde considera o deslocamento do sentido de barreira, tomada como uma entidade ou como conjunto de fatores tratados isoladamente, para a construção de sínteses, possível por meio do quadro da vulnerabilidade (Ayres et al., 2009, 2003). É relativamente recente a incorporação do termo vulnerabilidade no campo da saúde, tendo como marco inicial os debates e estudos em torno da epidemia de aids na década de 1980 e da crítica ao conceito epidemiológico de risco, que se mostrava pouco produtivo tanto na compreensão do fenômeno quanto no controle da epidemia. Sem adentrar no detalhamento histórico da apreensão do conceito, a principal crítica residia no fato de que as categorias analíticas que visavam objetivar o fenômeno da aids não conseguiam apreender a complexidade da vida dos sujeitos. O isolamento dos fatores de risco não logrou êxito quanto ao controle da epidemia e, além disso, acabou fomentando a segregação de determinados indivíduos e grupos, suscetibilizando-os a situações de estigma e discriminação, sobretudo quando do trânsito dos fatores de risco para os chamados grupos e comportamentos de risco. Se os estudos sobre o risco seguem uma racionalidade analítica na qual os fenômenos são segmentados, isolados, discriminados, aqueles pautados na vulnerabilidade coadunam-se com uma racionalidade sintética, que privilegia a construção de significados e a agregação de elementos diversos que contribuem para que os diferentes fenômenos em estudo sejam compreendidos como uma totalidade dinâmica e complexa. Estudar o acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de DST sob a perspectiva da vulnerabilidade implica não apenas ater-se à sua dimensão programática, como a oferta, organização e qualidade dos serviços, mas, também, incorporar à atenção aspectos individuais como valores, crenças, atitudes envolvidas, bem como as normas sociais e culturais com as quais interagem. Talvez mais do que ampliar o alcance de questões a serem consideradas em relação ao acesso, o referencial da vulnerabilidade se destaca pelo fato de fomentar um tipo de raciocínio que não busca o estabelecimento de relações de causalidade, mas o exercício de um olhar que se movimenta entre a interpretação e a compreensão dos diversos contextos, a fim de informar a ação. Nesse sentido, a construção da demanda dos homens, frente à suspeita de DST, pode associar-se ao imaginário acerca dessas doenças, motivando-o, ou não, a procurarem um serviço de saúde, atentandose para as distinções simbólicas, entre elas: enquanto a aids tem sido associada à homossexualidade, a sífilis, por exemplo, pode ser um sinal de virilidade para os homens (Carrara, 1994). Por sua vez, referida distinção pode não proceder ou, mesmo, articular-se ao fato de que admitir a suspeita de uma DST pode transparecer ou visibilizar eventual infidelidade conjugal, o que interferiria sobremaneira na busca por atenção ao problema. A atenção primária é a porta de entrada principal e ordenadora dos demais níveis de complexidade para o Sistema Único de Saúde - SUS, tendo como estratégia privilegiada a atenção por meio de equipes de saúde da família. Mas, se a suspeita de DST estiver associada a práticas que merecem ser guardadas em segredo, como compartilhá-la com os agentes comunitários de saúde, geralmente responsáveis por intermediar a marcação de consultas, mas que são pessoas de sua convivência ou conhecidos do seu meio? O Decreto no. 7.508/2011 atenuaria esse impasse ao preconizar outras portas de entrada para o SUS, não restritas à atenção primária: os serviços de urgência e emergência e os especiais de acesso aberto, no caso, os serviços especializados em DST e aids. 466

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Do ponto de vista normativo, o conteúdo do referido Decreto propõe o acolhimento da população em qualquer um dos pontos do sistema de saúde, flexibilizando a ideia de que essa iniciativa caberia apenas à atenção primária. Essa prerrogativa pode ser profícua para o caso dos homens com suspeita de DST, pois ampliaria suas referências de saúde, para além do posto de saúde próximo à sua residência ou, mesmo, os balcões de farmácias. A propósito, as farmácias mereceriam especial atenção das políticas públicas e práticas dos serviços de saúde, no sentido de não apenas coibir ética e tecnicamente as prescrições dos balconistas, mas de explorar suas potencialidades, tanto na prevenção quanto no encaminhamento para um tratamento adequado das DST, como já apontado em estudos como os de Naves et al. (2008) e Rosso Neto e Galato (2011). A possibilidade de acolhimento das demandas em qualquer ponto do sistema de saúde e a abordagem sindrômica das DST poderiam constituir-se em associação bastante fecunda no tratamento dos homens, entretanto, como já apontado, não se trata de uma rotina observada no cotidiano. Muitas vezes, nem mesmo os parceiros de gestantes com diagnóstico de DST são acolhidos pelos próprios médicos que as acompanham no pré-natal. Antes de subsumir esse fato a uma questão de treinamento e capacitação dos profissionais de saúde, caberia também indagar sobre os motivos pelos quais não se conta nem com o acolhimento nem com o tratamento sindrômico. O que pensam os médicos sobre esse tipo de tratamento, comparativamente à abordagem etiológica? Que tipo de resistências os médicos ginecologistas, geralmente responsáveis por acompanhamento de gestantes, podem apresentar no atendimento de homens? Essa resistência se agrava quando se trata de médicas? Será que o tempo disponibilizado para as consultas permite abordar os parceiros? É certo que a não-implementação das recomendações ministeriais, que preconizam o diagnóstico e tratamento sindrômicos, não se restringe aos consultórios de pré-natal. Caberia aprofundar as indagações sobre os motivos dessa resistência, sobre como os serviços e profissionais de saúde apreendem referidas recomendações; sobre os valores, recursos, habilidades, capacidades e limites envolvidos nos diferentes níveis e tipos de atenção, já que não é raro, por exemplo, presenciar situações em que homens com suspeita de DST não são atendidos em prontos-socorros porque suas queixas não se enquadram como emergência/urgência. São muitos os aspectos a serem considerados ao se pretender tomar a questão do acesso na perspectiva da vulnerabilidade, superando as leituras compartimentalizadas acerca do processo de construção da demanda e da atenção nos serviços de saúde. Perante o problema apresentado - do acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de DST -, o conceito de vulnerabilidade visa contribuir para um adensamento da noção de acesso no campo da saúde, tomando-o a partir de diferentes contextos que interfeririam na trajetória dos homens, desde a sua identificação como um problema de saúde até a busca por cuidado e o seu acolhimento pelos serviços de saúde. A compreensão do acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de DST, sob a perspectiva da vulnerabilidade, pode subsidiar ações de planejamento e avaliação de programas e serviços de saúde atinentes ao controle das DST, bem como o desenvolvimento de ações e instrumentos tecnológicos específicos, delineando um quadro que expresse a dinamicidade dos diferentes contextos que modelam desde o imaginário sobre as DST no universo masculino até a construção de políticas e diretrizes para essa atenção. Vale alertar, contudo, que a proposição conceitual da vulnerabilidade não pode confundirse com, ou, mesmo, substituir uma teoria ou método de planejamento e gestão, como lembram Ayres et al. (2003). Mais que apontar questões para a área específica da saúde, o enfoque da vulnerabilidade pode cruzar os seus muros, apreendendo outras instâncias que podem se constituir em barreiras ao acesso dos homens na atenção às DST, evidenciando as articulações interinstitucionais envolvidas no problema, como o investimento em ambulatórios de indústrias e empresas, especialmente aquelas que abrigam majoritariamente trabalhadores do sexo masculino. Outra contribuição que pode ter efeitos práticos, embora não imediatos, diz respeito à identificação de aspectos estruturais e sociais mais amplos que repercutiriam no acesso ao diagnóstico e tratamento 467


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de DST, a exemplo das desigualdades de gênero. Ainda que não surta efeitos a curto prazo, a assunção dessa realidade é fundamental na formulação das políticas e iniciativas visando o controle das DST. No plano do conhecimento, é clara a exigência de investimentos interdisciplinares que façam face à complexidade da Saúde Coletiva – e as análises baseadas na vulnerabilidade podem propiciar esse movimento. Além da oportunidade do “diálogo” entre diferentes disciplinas, o quadro da vulnerabilidade permite, ainda, “resgatar a dignidade epistemológica das relações partes-todo na apreensão teórica dos fenômenos da saúde coletiva” (Ayres et al., 2003, p.137). Ou seja, ao propor a integração entre disciplinas biomédicas e das ciências sociais e humanas, e entre as linguagens abstratas das tecnociências e os chamados conhecimentos leigos, ressaltam-se as dimensões éticas, políticas e relacionais das práticas de saúde (Ayres et al., 2003). Das inúmeras imagens que o quadro da vulnerabilidade pode ancorar, a de “carta de navegação” parece ir ao encontro da proposição de compreender o acesso dos homens ao diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis: Como a carta de navegação, processos de planejamento e avaliação não determinam para onde se vai navegar, não nos dão o controle do que vai acontecer na travessia, nem substituem o ato mesmo de navegar. Mas eles podem nos ajudar a definir em que direção queremos seguir, perceber o que vai acontecendo pelo caminho e o que podemos e queremos fazer diante desses acontecimentos. (Ayres, 2009, p.410)

Colaboradores Neide Emy Kurokawa e Silva foi responsável pela elaboração do artigo, e Leyla Gomes Sancho participou da concepção, da discussão e da revisão do manuscrito. Referências ARAUJO, M.A.L. et al. Análise da qualidade dos registros nos prontuários de gestantes com exame de VDRL reagente. Rev. APS, v.11, n.1, p.4-9, 2008. ARAÚJO, M.A.L.; LEITÃO, G.C.M. Acesso à consulta a portadores de doenças sexualmente transmissíveis: experiências de homens em uma unidade de saúde de Fortaleza, Ceará, Brasil. Cad. Saude Publica, v.21, n.2, p.396-403, 2005. AYRES, J.R.C.M. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis, v.17, n.1, p.43-61, 2007. AYRES, J.R.C.M. et al. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2009. p.375-418. ______. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS C.M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p.117-40.

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KUROKAWA E SILVA, N.E.; SANCHO, L.G.

Discute-se a noção de acesso de homens à atenção à saúde, especificamente para diagnóstico e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis – DST. Considerando que o acesso à saúde está imbricado em uma rede de interações e contextos sociais que ultrapassa o binômio demanda-oferta, postula-se a pertinência de desenvolver o tema sob o conceito multidimensional e dinâmico de vulnerabilidade.

Palavras-chave: Acesso aos serviços de saúde. Identidade de gênero. Homens. Doenças sexualmente transmissíveis. Vulnerabilidade. Men’s health care access to diagnosis and treatment of sexually transmitted diseases in a multidimensional and relational concept of vulnerability This paper discusses the notion of men’s access to health care, specifically for diagnosis and treatment of sexually transmitted diseases – STD. As access to health care is entangled in a network of interactions and social contexts beyond the demand-supply binomial, the paper postulates the relevance of developing this theme under the multidimensional and dynamic concept of vulnerability.

Keywords: Health services accessibility. Gender identity. Men. Sexually transmitted diseases. Vulnerability. El acceso de los hombres para el diagnóstico y tratamiento de enfermedades de transmisión sexual en la perspectiva multidimensional y relacional de la vulnerabilidad Se discute la noción de acceso a los servicios de salud, específicamente para diagnóstico y tratamiento de enfermedades transmitidas sexualmente – ETS, en el caso de hombres. Considerando que el acceso a la salud está imbricado en una red de interacciones y contextos sociales que sobrepasa el binomio demanda-oferta, se postula la pertinencia de desarrollar el tema según el concepto multidimensional y dinámico de vulnerabilidad.

Palabras clave: Accesibilidad a los servicios de salud. Identidad de género. Hombres. Enfermedades transmitidas sexualmente. Vulnerabilidade.

Recebido em 10/02/12. Aprovado em 21/08/12.

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Era uma vez... Um olhar sobre o uso dos contos de fada como ferramenta de educação alimentar e nutricional Claudia Ridel Juzwiak1

Introdução “... com muita fome e sede, Branca de Neve comeu de cada prato um pouco de verduras e pão e bebeu de cada caneca, um gole de vinho...”. (Branca de Neve e os Sete Anões)2

Ao nascer e entrar em contato com o novo mundo que a cerca, a criança está exposta a estímulos de toda natureza. É também nesse momento que entrará em contato com os alimentos e iniciará o processo de estabelecimento de hábitos alimentares que podem perdurar por toda a vida. Inicialmente, a família representa o principal fator de influência sobre o padrão alimentar das crianças. Responsáveis pela oferta de alimentos, a atitude que os pais adotam diante do alimento pode afetar, significativamente, o desenvolvimento desses hábitos. O processo inicia-se no aleitamento, com a formação do vínculo mãe-filho, progride durante a introdução alimentar, e é, posteriormente, afetado, pela disponibilidade de alimentos, o modelo que os pais representam e os mecanismos de controle que adotam em relação às práticas alimentares (autoritário, autoritativo, permissivo, negligente), e que incluem o uso de estímulos positivos ou negativos (Bowne, 2009; Cullen et al., 2001; Birch, 1998). Com o ingresso da criança na escola, o processo passa a sofrer maior influência do meio: a criança realiza refeições fora de casa (alimentação escolar, compra na cantina), o alimento passa a ter outra representação social importante (amigos), e o ambiente escolar torna-se a principal fonte de conhecimento formal sobre nutrição. A escola oferece inúmeras oportunidades para ações de promoção de educação em saúde, pois propicia situações de aprendizagem para um amplo setor da população. Tais ações se iniciam desde a entrada das crianças na escola e perduram por todos os anos acadêmicos, garantindo o tempo e a intensidade necessários para as intervenções. Além disso, as ações na escola ainda permitem a articulação com a família e a comunidade (Peréz-Rodrigo, Aranceta, 2001).

1 Departamento de Ciências do Movimento Humano, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Campus Baixada Santista. Av. Silva Jardim, 136, Vila Mathias. Santos, SP, Brasil. 11.015-020. claudia.juzwiak@unifesp.br

Trecho traduzido de GRIMM, J.K. The household tales by Brothers Grimm. Trad. Margaret Hunt. Londres: London G Bell & Sons, 1910. Disponível em: <http:// www.gutenberg.org/ ebooks/5314>. 2

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Educação Alimentar e Nutricional (EAN) e a escola “E quando houve uma grande carência na terra, nenhum homem conseguia ganhar o suficiente para o pão diário”. (João e Maria)3

Recentemente, a publicação da Portaria Interministerial no 1010 (Brasil, 2006), da Resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE no 38 (Brasil, 2009a), e a sanção da Lei 11.947 (Brasil, 2009b) representaram um marco no processo de fortalecimento das ações de EAN dentro da perspectiva de políticas públicas. Estas iniciativas instituíram diretrizes para a promoção da alimentação saudável nas escolas públicas e privadas, em consonância com a Política de Alimentação e Nutrição, e como parte do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE, prevendo a “incorporação do tema alimentação saudável no projeto político pedagógico da escola, perpassando todas as áreas de estudo e propiciando experiências no cotidiano das atividades escolares” (Brasil, 2006, p.70). Nesses documentos são sugeridas estratégias para a implementação da EAN que incluem: a oferta da alimentação saudável na escola, a implantação e manutenção de hortas escolares pedagógicas, a inserção do tema alimentação saudável no currículo escolar, a realização de oficinas culinárias experimentais, a formação da comunidade escolar, bem como o desenvolvimento de tecnologias sociais que a beneficiem. Observa-se uma tendência em concentrar o tema alimentação e nutrição nas aulas de ciências, privilegiando o enfoque biológico (Soares, Lazzari, Ferdinandi, 2009; Pipitone et al., 2003) e distanciando-se do papel social e cultural do alimento, assim como das situações de vivência. Boog (2008) reforça que o ensino sobre alimentação e nutrição não deve ser restrito a essa disciplina ou a um determinado período do ano letivo, ou trabalhado em projetos específicos, uma vez que alimentar-se constitui prática do cotidiano. Bizzo e Leder (2005) enfatizam pontos essenciais que devem caracterizar a metodologia pedagógica da EAN na escola: além da importância dos temas a serem tratados de forma transversal é fundamental privilegiar o diálogo horizontal, respeitando o conhecimento e a cultura. Outras características ressaltadas por essas autoras dizem respeito à necessidade de as ações propostas terem significado para os estudantes, serem problematizadoras, propositivas e cultivarem a construção da cidadania. O seu sucesso depende do grau de integração de todas as áreas de conhecimento e com o serviço de alimentação, e deve ser reforçada pelas experiências alimentares em casa (Brasil, 2006). Crianças em idade pré e escolar apresentam grande desafio em termos de EAN, pois é necessário que sejam adotados estratégias e materiais que captem seu interesse, estimulem a participação e a aquisição de conhecimento, levando à adoção de comportamentos saudáveis, ao mesmo tempo em que sejam adequados à capacidade cognitiva e fase de desenvolvimento (Baskale et al., 2009). ç Para este grupo é interessante selecionar atividades que enfatizem o aprender fazendo, um dos quatro pilares da educação propostos pela Unesco (Delors et al., 1999). O lúdico tem um papel fundamental, pois permite explorar o “aprender brincando”, ressaltando-se que a brincadeira é um ato natural deste período. A brincadeira estimula o desenvolvimento infantil e facilita a aprendizagem, pois a própria motivação da criança é aproveitada, tornando a tarefa mais atrativa, enquanto o conhecimento vai sendo construído a partir de: estímulo dos sentidos, valorização da cultura, desenvolvimento motor, socialização e interação, exercício da imaginação e criatividade, e sistematização das experiências (Cordazzo, Vieira, 2007; Dallabona, Mendes, 2004). 474

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Trecho traduzido de GRIMM, J.K. The household tales by Brothers Grimm. Trad. Margaret Hunt. Londres: London G Bell & Sons, 1910. Disponível em: <http://www. gutenberg.org/ebooks/ 5314>.

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Dentre as possibilidades de atividades que podem ser desenvolvidas, inclui-se a utilização de histórias infantis, sendo o objetivo deste texto refletir sobre as possibilidades de seu uso, em particular dos contos tradicionais, como instrumento de EAN para pré e escolares.

Histórias infantis 4 Traduzido do inglês rampion. Este tipo de nabo, cujo nome científico é Campanula rapunculus, também é conhecido como Rapunzel em alguns países. As folhas e as raízes são comestíveis.

Trecho traduzido de GRIMM, J.K. The household tales by Brothers Grimm. Trad. Margaret Hunt. Londres: London G Bell & Sons, 1910. Disponível em: <http://www. gutenberg.org/ebooks/ 5314>. 5

“A mulher estava na janela olhando o jardim abaixo, quando viu um canteiro plantado com os nabos4 mais lindos. Pareciam tão frescos e verdes que ela os desejou tanto, que sua maior vontade era comer alguns”. (Rapunzel)5

Aguiar (2001), a partir da definição de vários autores, resume a literatura infantil como um gênero que utiliza vocabulário adequado e deve estar de acordo com a capacidade cognitiva e psíquica da faixa etária, divertindo ao mesmo tempo em que agrega novos aspectos do conhecimento, que satisfaçam a necessidade de experiência e ampliem a imaginação dos leitores. “A literatura infantil [...] é uma porta para a experimentação de um mundo novo por meio da palavra e da imaginação” (Avellar, Couto, 2009, p.31). As histórias permitem o jogo com as palavras e as imagens, e divertem, enquanto a criança assimila a cultura e desenvolve a crítica, reflexão e a familiaridade com a escrita, e, ao serem lidas várias vezes, dão tempo para que os conceitos sejam fixados (Doran, 2005; Rodari, 2004). As histórias podem ser trabalhadas usando-se diversas estratégias, como: dramatização, contador de histórias e músicas, e, a partir de um tema central, muitos outros conteúdos podem ser desenvolvidos. Um dos critérios para a classificação das histórias infantis considera a sua estrutura. Assim, segundo Aguiar (2001), há a lenda, um relato de caráter maravilhoso, poético ou modificado pela imaginação popular. O rico folclore brasileiro apresenta muitas lendas, como o Saci-Pererê, Curupira etc.; o mito, que vem da mitologia e está geralmente ligado à imagem de deuses gregos e outras figuras heroicas. Monteiro Lobato trouxe esses personagens para sua narrativa na aventura da turma do sítio do Pica-Pau Amarelo, na Grécia Antiga, acompanhando o semideus Hércules, na realização dos seus 12 trabalhos. A lenda e o mito foram criados na tentativa de o ser humano explicar fenômenos naturais; a fábula, uma ficção breve e de caráter alegórico, sempre apresenta uma lição moral. Caracteristicamente, os personagens principais são animais. Esopo e La Fontaine são autores clássicos deste tipo de histórias; e o apólogo também é de cunho moralista, mas traz objetos personificados no lugar de animais. Já os contos tradicionais/de fadas apresentam seres, objetos e lugares sobrenaturais, como bruxas, dragões, varinhas mágicas e feitiços. É comum que sejam apresentados com personagens e sentimentos opostos bem definidos, como “bem e mal”, “confiança e traição”. Apresentam mensagens, mas sem o mesmo peso moralista das fábulas. Originários da Europa, estes contos, derivados da tradição oral, vêm atravessando os séculos e fronteiras. Sua forma literária e com fins educativos surgiu no final do século XVII, e, mesmo com as inúmeras adaptações, traduções e reproduções – livros, desenhos animados, filmes, discos/CD –, guardam a essência de suas mensagens (Ayob, 2010). Os contos folclóricos e as fábulas eram originalmente contados por adultos e para adultos. Tinham como objetivo descrever costumes, crenças, hábitos e rituais, tribos e comunidades de um determinado período (Doran, 2005). Mesmo não refletindo a realidade do nosso século, os contos tradicionais são úteis para a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.473-84, abr./jun. 2013

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formação das crianças, pois, a partir da reflexão que provocam, contribuem para que desenvolvam seu censo crítico (Lopes, 2010). Os contos de fada estão suspensos no tempo e no espaço, situação caracterizada pelos tradicionais “era uma vez...” e “em um reino distante...” Apesar do nome, nem sempre há fadas nas histórias, que são substituídas por outros seres maravilhosos. Essas histórias só passaram a ser destinadas ao público infantil a partir do século XIX - Perrault, irmãos Grimm e Andersen publicaram os primeiros livros voltados a este público (Doran, 2005; Déhg, 1979). O uso dos contos de fada na educação não é um consenso. Doran (2005), em revisão sobre o tema, discorre sobre pontos negativos e positivos deste uso a partir da posição de importantes pesquisadores do tema da área da psicologia e educação, como Bettelheim, Elkind e Montessori. Para os que se opõem à ideia, a maior crítica é para: o contato demasiado intenso com a fantasia, o medo que a criança possa desenvolver como resposta a situações comumente apresentadas nas histórias, a redução da imaginação devido à substituição da brincadeira imaginativa por brincadeira de imitação, e a exposição a estereótipos. Esses efeitos podem estar relacionados ao estágio de desenvolvimento da criança, pois, considerando os estágios propostos por Piaget, crianças no estágio préoperacional (cerca dos dois a sete anos) ainda não desenvolveram as estratégias necessárias para distinguir a fantasia da realidade, sendo sua capacidade de processar a informação estruturalmente limitada – é esta percepção irreal nesta fase que pode levar a criança a expressar medos irracionais ou novos, como o do abandono ou do ataque de monstros, ao ouvir os contos de fada cheios de bruxas, ogros e lobos. Por outro lado, Doran (2005) resume pontos positivos: desenvolvimento do id, resolução de elementos arquetípicos do desenvolvimento, fornecimento de modelos de resolução para problemas universais (morte, inveja, envelhecimento etc.), êxito do bem sobre o mal, e transmissão de comportamentos culturais dentro da construção da identidade ética, particularmente para crianças que já passaram para o estágio operacional concreto (Doran, 2005; Déhg, 1979).

Alimentos, comensalidade e outras questões nutricionais nas histórias infantis “Um dia sua mãe disse – Venha Chapeuzinho Vermelho, aqui está um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho. Leve para sua avó, ela está doente e fraca e será bom para ela”. (Chapeuzinho Vermelho)6

No acervo de histórias infantis tradicionais, são encontradas várias situações relacionadas à alimentação que podem ser exploradas no ambiente escolar. A presença do alimento nas histórias é comum, pois representa o cotidiano. Pensando na representação de alimentos e da comensalidade, é possível recordar inúmeras histórias tradicionais – a cesta de piquenique de Chapeuzinho Vermelho; o mingau dos três ursos, apreciado por Cachinhos Dourados; a casa de guloseimas, encontrada por João e Maria, e os banquetes nos finais felizes das princesas (Bunn, 2009). Alguns estudos procuraram identificar a característica da representação dos alimentos nas histórias infantis e seu possível impacto, e sugerem que crianças podem ser influenciadas pelas situações mostradas e descobrem mecanismos de tomada de decisão e solução de problemas, melhorando sua autoestima (Byrne, Nitzke, 2002).

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Trecho traduzido de GRIMM, J.K. The household tales by Brothers Grimm. Trad. Margaret Hunt. Londres: London G Bell & Sons, 1910. Disponível em: <http://www.gutenberg. org/ebooks/5314>.

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Em estudo norte-americano, Byrne e Nitzke (2000) avaliaram 114 livros de histórias infantis apropriados para escolares, com o objetivo de identificarem a presença e o tipo de mensagens sobre alimentos. Os resultados mostraram que 45% dos livros faziam, pelo menos, uma menção sobre alimentos, enquanto 13%, cinco menções ou mais, totalizando 199 tipos de referências. Destas, 152 puderam ser classificadas segundo os grupos de alimentos da pirâmide alimentar, sendo que o mais mencionado foi o grupo dos grãos (21%), seguido das frutas (20%). A proporção de menções para os grupos açúcares simples/gorduras, carnes e lácteos foi de 19%, 16% e 13%, respectivamente. O grupo de hortaliças (11%) foi menos mencionado do que os grãos e frutas (p<0,05). Mensagens positivas, relacionando a alimentação com “divertimento, saúde, sabor e sinal de status econômico”, foram mais frequentes (77%) do que mensagens negativas, tais como “engordam, não gosto, não está fresco, não saudável” (11,5%). Os autores avaliaram o envolvimento de personagens não humanos devido ao potencial efeito na força do modelo que estes seres exercem, e foram encontrados 66% animais e outros seres fantásticos. O tipo de mensagem a que a criança é exposta parece influenciar a resposta ao alimento. Estudo com pré-escolares usou contos adaptados com mensagens sobre o consumo de hortaliças. Foram usadas mensagens positivas (“se você comer hortaliças, ficará saudável”) ou negativas (“se você não comer hortaliças, ficará doente”), e, após a exposição à mensagem positiva, houve maior consumo do lanche oferecido à base de hortaliças no grupo, embora, em ambos os grupos expostos às mensagens, o consumo tenha sido maior do que no grupo controle (não exposto) (Lawatch, 1990). Em uma série de experimentos, Almeida (2009) investigou se o comportamento de crianças de oito a 11 anos, após leitura de histórias, era dependente das contingências apresentadas. Após exposição a histórias sobre um garoto que come os doces da festa antes do seu início, com desfechos distintos (sem consequência vs. consequência aversiva), observou-se que, quando convidadas a preparar uma festa e deixadas em uma situação semelhante à da história, as crianças estudadas apresentaram mais comportamentos direcionados aos doces (olhar, tocar) após a história sem desfecho aversivo, embora em nenhuma situação tenha ocorrido o seu consumo. As ilustrações também são importantes para o processo de aprendizagem, sobretudo no caso de crianças menores. Para crianças de dois a três anos, a interação social com o adulto que faz a leitura da história e que formula perguntas sobre as ilustrações e as rotula, cria oportunidades de aprendizagem. Tare et al. (2010) verificaram que, para crianças de 15 a vinte meses, quanto mais icônica a imagem em um livro (fotografias vs. desenhos), maior a sua posterior capacidade de identificação do objeto real. A frequência a que somos expostos a estímulos, sejam auditivos, visuais, olfativos ou gustativos, pode provocar resposta positiva a um novo fator, por exemplo, a um alimento. Estudos com crianças de dois a cinco anos com neofobia indicam que a exposição de oito a 15 vezes a um mesmo alimento leva à sua aceitação (Birch, 1998). Ao usarem livros criados especificamente para um estudo com crianças de vinte a 27 meses, os quais foram lidos pelos pais, em experimentos com duração de uma a três semanas, Houston-Price et al. (2009) mostraram que a exposição às figuras de hortaliças e frutas afetou positivamente a resposta visual das crianças, quando reapresentadas às figuras a que estavam familiarizadas. Embora não tenha sido objeto do estudo, estes autores inferem, a partir dos seus resultados, que a exposição visual pode influenciar positivamente o futuro contato com o alimento. Embora não esteja claro qual o impacto das mensagens sobre mudanças nos hábitos alimentares (Byrne, Nitzke, 2002), histórias infantis permitem o desenvolvimento de inúmeros conceitos sobre alimentos e nutrição (Evers, 2003).

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Conteúdos relacionados à alimentação em contos de fada tradicionais “Ele pensou ‘Pelo menos semearei os feijões mágicos. Mamãe diz que são apenas feijões vermelhos comuns e nada mais; mas eu posso muito bem semeá-los’”. (João e o Pé de Feijão)7

Alguns aspectos devem ser reforçados ao se trabalharem temas de alimentação e nutrição: é fundamental definir os conteúdos compatíveis com os objetivos que se pretendem alcançar, e a estrutura e desenvolvimento dos conteúdos devem ser adequados à capacidade cognitiva da faixa etária. Considerando os estágios de desenvolvimento propostos por Piaget, quanto mais jovem a criança, maior a dificuldade para compreender conceitos abstratos (ex: risco de doença, nutrientes), várias mensagens simultâneas ou complexas. A capacidade de classificar os alimentos, entender os processos corporais e como a alimentação afeta a saúde vai se solidificando conforme a criança desenvolve o processo mental até alcançar o pensamento adulto (Baskale ç et al., 2009). Para que um currículo em educação em saúde e em nutrição seja eficaz, deve incluir a transmissão de informações essenciais sobre saúde como um dos seus pilares, porém, deve ir além, e incluir a abordagem dos valores pessoais, culturais e crenças que apoiam os comportamentos relativos à saúde e alimentação, assim como das normas que valorizam um estilo de vida/hábito alimentar saudável e aspectos práticos, que envolvem o desenvolvimento de habilidades necessárias para a adoção e manutenção de comportamentos relacionados à saúde (Center for Disease Control and Prevention, 2011; Pérez-Rodrigo, Aranceta, 2001). A Figura 1 mostra como, a partir de um alimento, é possível criar uma rede de conteúdos a serem trabalhados nas disciplinas tradicionais e em atividades extras, permitindo que as questões alimentares e nutricionais sejam desenvolvidas transversalmente, incluindo a participação de todos os atores envolvidos no processo – estudantes, professores, comunidade escolar e família. Os contos de fada tradicionais abrem inúmeras possibilidades. Em Branca de Neve, parte-se da maçã para se discutirem as outras frutas, sob os aspectos sensoriais e nutricionais (ex: nutrientes, recomendação diária). Atividades complementares como visita à feira e a construção de uma horta escolar permitem que se trabalhem as questões de diversidade, desperdício, sustentabilidade. A constante consulta da rainha má ao Espelho Mágico abre a possibilidade de se trabalhar o esquema corporal e a percepção da autoimagem. Barker-Sperry e Grauerholtz (2003) avaliaram a valorização do ideal de beleza nos contos de fada e encontraram informações importantes para que estas questões sejam trabalhadas adequadamente com as crianças. Frequentemente, as características de aparência física são mencionadas, sendo que a beleza feminina, sobretudo de mulheres jovens, é a mais ressaltada – em uma história, as autoras encontraram 114 referências de beleza relacionadas à mulher. Também se relaciona beleza com bondade e feiura com maldade, enquanto a beleza é recompensada e sua ausência punida. Dos 168 contos de Grimm estudados por essas autoras, 17% indicam associação entre a beleza e a inveja, sendo que, em Branca de Neve, a mensagem de rivalidade entre mulheres é clara. Estes achados perpetuam estereótipos e iniquidade entre gêneros, reforçam a exclusão de minorias, e corroboram a mensagem que crianças e adolescentes têm recebido de outras fontes, de que “ser bela” é um fator importante a ser obtido e mantido para se alcançar o sucesso. Ao se utilizarem essas histórias, esses conceitos devem ser desafiados pelos educadores que adotam esses contos como ferramentas, permitindo que sejam reexaminados e reconsiderados. 478

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7 Trecho traduzido de LANG, E. (Ed.). The red fairy book. Londres: Longmans, 1980. Disponível em: http://www. gutenberg.org/ ebooks/540


Juzwiak, C.R.

espaço aberto

Figura 1. Rede de conteúdos sobre alimentação e nutrição.

EDUCAÇÃO FÍSICA Alimentação e desempenho crescimento, percepção corporal, autoimagem

X

COMUNIDADE

X

T

PORTUGUÊS Leitura história/rótulo, mural, jornal, produção de textos

T

X

X

T

ARTES Dramatização, pintura/ desenho, música T

T

T

X

CULINÁRIA Receita, aproveitamento integral do alimento, hábitos regionais T

T

HORTA

T

HISTÓRIA/GEOGRAFIA Origem, usos, importância econômica e cultural, hábitos regionais

ALIMENTO

T

CIÊNCIAS Valor nutritivo, efeitos sobre o organismo/importância para a saúde, meio ambiente origem, recomendações nutricionais (grupos de alimentos, guias)

X

T

T

X

X

FAMÍLIA

X

MATEMÁTICA Pesos e medidas, frações, necessidades nutricionais (percentual, rótulo), valor econômico importânci

Modificado de Gaglianone, Juzwiak e Perruci (2007).

É importante estar atento ao significado que se quer atribuir às histórias para que não exerçam influência negativa (Lopes, 2010). Por exemplo, um aspecto que deve ser considerado é o de que os contos enfatizam a passividade feminina, reproduzindo e legitimando este status ao gênero feminino – em Branca de Neve, isso fica evidente quando os anões passam para ela toda a responsabilidade de cuidar da casa (explicitado, no texto, como: cozinhar, lavar) enquanto os homens estão no trabalho. A descrição do jantar dos anões, ao chegarem cansados da mina, assim como o banquete de casamento, pode ser usada para discutir a etiqueta às refeições e como experiência para se compartilhar uma refeição, reforçando o papel do alimento como fator de integração social. Hortaliças são alimentos que aparecem com menor frequência nas histórias (Byrne, Nitzke, 2002) e, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, na alimentação do brasileiro também: os resultados indicam que 90% da população consomem menos do que os quatrocentos g/dia de hortaliças e frutas recomendados (Brasil, 2010). Em Rapunzel, o conto se inicia com o desejo de sua mãe de consumir os nabos do canteiro da vizinha bruxa, o que, ao ser realizado, resulta na preparação de uma salada, que gera excelente oportunidade para ser compartilhada com os alunos. Este conto é um bom exemplo de como os alimentos se apresentam como elementos estruturais em muitas histórias, servindo para justificar o início da ação (Mendo, 2004). O tema hortaliças nos remete a uma poderosa ferramenta de educação nutricional: a horta. Esta estratégia permite a consolidação da educação integral e por meio do aprendizado coletivo: da criança ao jovem adulto, com a participação de toda a comunidade escolar, é possível promover a alimentação saudável, o cuidado com o meio ambiente, a sustentabilidade e o trabalho em conjunto (Barbosa, 2007). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.473-84, abr./jun. 2013

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Em João e Maria, chama a atenção a situação de carência em que as crianças e seus pais vivem. Por esta razão, a mãe (ou madrasta em algumas versões) convence o pai a deixar as crianças na floresta, aumentando sua chance de sobrevivência. Historicamente, os contos oriundos da tradição medieval oral do povo refletem as inquietações fundamentais do ser humano – medos, frustrações, necessidades – ou seja, podem representar as situações de fome e carência da época a que os camponeses estavam expostos (Mendo, 2004). Certamente, o tema é atual e abre a oportunidade de discussão do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), que representa o direito a estar livre de fome e da má nutrição, além do acesso à alimentação adequada. Em seu significado mais amplo, inclui não só a questão do fornecimento de energia e nutrientes, mas, também, de: sua qualidade, segurança sanitária, diversidade, sustentabilidade de práticas produtivas e respeito aos hábitos alimentares culturais. Trabalhar a Educação Alimentar e Nutricional sob a perspectiva do direito humano amplia seu entendimento e constrói a cidadania (Burity et al., 2010; Santos, 2005). Este é um dos contos mais ricos em referências alimentares, e a casa construída de guloseimas e a fartura à mesa representam a voracidade oral; e está clara a mensagem de que ceder à glutonia leva à punição (Mendo, 2004), o que permite a discussão do equilíbrio na alimentação (frequência, quantidade). A razão da visita de Chapeuzinho à avó é levar alimentos para que fique melhor de sua doença – e oferece uma boa oportunidade para se relacionar a alimentação ao bem-estar e à promoção da saúde; e a caminhada pelo bosque abre a oportunidade de se discutir a importância de um estilo de vida fisicamente ativo. O Quadro 1 sugere, a partir dos grupos de alimentos definidos no Guia Alimentar para a População Brasileira (Brasil, 2005), quais contos de fada podem ser usados como ponto de partida para o desenvolvimento de conteúdos e atividades em Educação Alimentar e Nutricional.

Quadro 1. Grupos de alimentos, contos tradicionais, conteúdos e atividades Grupo de alimentos

Conto tradicional

Principal elemento

Leguminosas

João e o pé de feijãoα

Feijões

Produção de alimentos (horta), sustentabilidade, meio ambiente.

Frutas

Branca de Neve£

Maçã

Oficina culinária, visita à feira livre, aspectos sensoriais, percepção corporal e autoimagem (obesidade, transtornos alimentares, estigma).

Hortaliças

Rapunzel£

Nabo

Oficina culinária, visita à feira livre, aspectos sensoriais.

Leite e derivados

Cachinhos de ouros e os três ursos**

Mingau

Carnes e ovos

O Gato de botas*

Carne de coelho

Gorduras, açúcares e doces

Conteúdos e atividades específicos

Industrialização, aleitamento materno, crescimento, saúde óssea, importância do desjejum. Alimentação onívora x vegetariana, história da alimentação, cadeia alimentar.

João e Maria£ Guloseimas Equilíbrio alimentar (quantidade, frequência do consumo de alimentos “extras”), desnutrição x obesidade, saúde dental, DHAA.

Autoria/versão atribuída a: * Charles Perrault, £ Irmãos Grimm,*α Joseph Jacobs, ** Robert Sothey.

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Conteúdos e atividades comuns Alimentação equilibrada, grupos de alimentos, alimento-fonte, variedade. Aspectos culturais e sociais, hábitos alimentares, crenças, tabus, atitudes, tradições, percepções. Aspectos sensoriais, degustação. Composição dos alimentos, rótulos. Conservação dos alimentos. DHAA. Dramatização. Higiene pessoal e dos alimentos. Mecanismo de digestão, absorção, metabolismo, excreção. Oficina culinária. Produção artística. Produção de alimentos, sustentabilidade, meio ambiente, tecnologia. Produção linguística. Recomendação diária, porções. Segurança alimentar e nutricional.


Juzwiak, C.R.

espaço aberto

Considerações finais [...] a Literatura não é, como tantos supõe, um passatempo. É uma nutrição. (Meireles, 1979, p.28)

Os contos de fada tradicionais são ferramentas simples que permitem que pais, educadores e nutricionistas explorem inúmeros conceitos sobre alimentação e nutrição de forma lúdica e integrando diversas áreas do conhecimento. Para o sucesso da sua utilização, é importante estabelecer objetivos claros do que se pretende alcançar e adequá-los às habilidades e capacidade de compreensão da criança, respeitando-se seu pensamento mágico e seu desenvolvimento cognitivo.

Referências AGUIAR, V.T. (Coord.). Era uma vez... na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001. ALMEIDA, C.G.M. Efeitos de contingências descritas em histórias sobre o comportamento de crianças. 2009. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru. 2009. AVELLAR, G.C.; COUTO, R.C.O. Literatura infantil e a formação do leitor: a utilização dos clássicos adaptados no ensino Fundamental I e II. Dialógica, v.8, n.1, p.27-34, 2009. AYOB, A. The mixed blessings of Disney´s classic fairy tales. Mousaion, v.28, n.2, p.5064, 2010. BARBOSA, N.S.V. A horta escolar dinamizando o currículo da escola. Caderno 1. Projeto TCP/BRA/3003. Brasília: Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) do Ministério da Educação (MEC), 2007. BARKER-SPERRY, L.; GRAUERHOLTZ, L. The pervasiveness and persistence of the feminine beauty ideal in children’s fairy tales. Gender Soc., v.17, n.5, p.711-26, 2003.

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BRASIL. Lei 11.947 de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jun. de 2009a. Seção 1, n.113. ______. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução/CD/FNDE nº 38 de 16 de julho 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da Educação básica no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jul. de 2009b. Seção 1, n.135. ______. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Portaria Interministerial MS/MEC no1010 de 08 de maio 2006. Institui as diretrizes para a Promoção da Alimentação Saudável nas Escolas de Educação Infantil, Fundamental e nível Médio das redes públicas e privadas, em âmbito nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 09 maio 2006. Seção 1, n.87. ______. Ministério da Saúde. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamentos familiares – POF 2008/2009. Análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia, 2010. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual operacional da alimentação saudável nas escolas. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. BUNN, D. Fatiando as idéias: literatura e alimento. Ómnibus n.27, 2009. Disponível em: <http://www.omni-bus.com/n27/index.html>. Acesso em: 6 jan. 2013. BURITY, V. et al. Direito humano à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar e nutricional. Brasília: ABRHANDH, 2010. BYRNE, E.M.; NITZKE, A.S. Preeschool children’s acceptance of a novel vegetable following exposure to messages in story books. J. Nutr. Educ. Behav., v.34, n.4, p.211-4, 2002. ______. Nutrition messages in a sample of children’s picture books. J. Am. Diet. Assoc., v.100, n.31, p.359-62, 2000. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION - CDC. Adolescent and school health. Characteristics of an effective health education curriculum. 2011. Disponível em: <http://www.cdc.gov/healthyyouth/sher/characteristics/index.htm>. Acesso em: 06 jan. 2013. CORDAZZO, S.T.D.; VIEIRA, M.L. A brincadeira e suas implicações no processo de aprendizagem e de desenvolvimento. Estud. Pesqui. Psicol., v.7, n.1, p.89-101, 2007. CULLEN, K.W. et al. Child reported family and peer influences on fruit, juice and vegetable consumption: reliability and validity measures. Health Educ. Res., v.16, n.2, p.187-200, 2001. DALLABONA, S.R.; MENDES, S.M.S. O lúdico na educação infantil: jogar, brincar uma forma de educar. Rev. Divulg. Téc.-Cient. ICPG, v.1, n.4, p.107-12, 2004. DÉGH, L. Grimm´s “Household Tales” and its place in the household: the social relevance of a controversial classic. West. Folk., v.38, n.2, p.83-103, 1979. DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para Unesco, da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez, 1999.

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Juzwiak, C.R.

espaço aberto

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O texto apresenta uma reflexão sobre a importância da incorporação de temas de alimentação e nutrição de forma transversal no currículo escolar, relacionados ao cotidiano da criança e garantindo a integração escola-família. Enfatiza-se a importância da adoção de estratégias adequadas à faixa etária e sugere-se que os contos de fada tradicionais sejam usados como ferramenta para o desenvolvimento de conteúdos e atividades que vão além das questões nutricionais e incluam, também, questões culturais, sociais, ambientais e sensoriais.

Palavras-chave: Educação alimentar e nutricional. Nutrição. Literatura infantil. Leitura. Once upon a time... An insight on the use of fairy tales as a tool for food and nutrition education The text presents a reflection on the importance of incorporating food and nutrition themes transversally in the school curricula, related to the child´s quotidian and guaranteeing the school-family integration. The importance of selecting ageappropriate strategies is emphasized and traditional fairy tales are suggested as a tool for the development of contents and activities that go beyond nutritional issues and include cultural, environmental and sensorial aspects as well.

Keywords: Food and nutrition education. Nutrition. Juvenile literature. Reading. Érase una vez…una mirada sobre el uso de los contos de hada como herramienta para la educación alimentaria y nutricional El texto presenta una reflexión sobre la importancia de la incorporación de los temas de alimentación y nutrición transversalmente en el currículo escolar, relacionados al cotidiano del niño y garantizando la integración escuela-familia. Enfatizase la importancia de seleccionar estrategias adecuadas a la edad de los niños y los contos tradicionales de hadas son sugeridos como herramienta para el desarrollo de contenidos y actividades que ultrapasen las cuestiones biológicas y nutricionales y incluyan además, cuestiones culturales, sociales, ambientales y sensoriales.

Palabras clave: Educación alimentaria y nutricional. Nutrición. Literatura infanto-juvenil. Lectura.

Recebido em 13/03/12. Aprovado em 21/12/12.

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livros

OLIVEIRA, C. et al. Aprendizagem e sofrimento: narrativas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012.

Maria da Conceição Azevedo1

O livro Aprendizagem e sofrimento: narrativas, produzido no quadro do projeto de investigação “Sofrimento, educação e saúde”, e em que participam investigadores portugueses e brasileiros, tem a finalidade de olhar o sofrimento como oportunidade de aprendizagem e crescimento pessoal. Nas palavras de uma das autoras, esta finalidade traduz-se, mais especificamente, no estudo das condições em que “o sofrimento humano se transforma em aprendizagem para quem o vivencia, quer na pessoa que sofre, quer no seu cuidador” (p.23). A obra, com prefácio de Vítor Pordeus, médico e investigador brasileiro, divide-se em três partes, das quais a segunda (Narrando experiências pessoais de sofrimento), constituída por um conjunto de onze narrativas de sujeitos de doença, deficiência ou luto, ou que passaram pela experiência de sofrimento como profissionais de saúde, é a mais fascinante por trazer, ao leitor, o testemunho vivo, narrado na primeira pessoa, da articulação entre os dois conceitos-chave da obra. A primeira parte (Pesquisar complexamente a saúde no sofrimento) dá-nos o quadro teórico em que se situam as investigadoras e, em

particular, este projecto, bem como a metodologia seguida para a elaboração da obra; a terceira parte (Complexificando a aprendizagem do viver) propõe-nos uma análise das narrativas, extraindo delas elementos para uma educação para o sofrimento, ou uma teoria da educação para o sofrimento, a construir. O quadro teórico desta obra é fundamentalmente o dos autores do movimento da auto-organização (entre os quais, Bateson, Maturana, Varela, Atlan, Von Foerster), mas inclui outros que, por lhe serem anteriores ou não sendo filiados nesta orientação, fazem propostas que podem harmonizar-se com ela, mantendo a coerência. É o caso de Aaron Antonovsky e do seu modelo salutogénico. Assim, este livro enquadra-se numa abordagem epistemológica que reconhece o valor da experiência vivida por cada sujeito, incluindo o sofrimento, precisamente no que ela tem de individual e único, como ponto de partida e matéria de investigação científica, o que não significa atribuir, aos autores das histórias de vida, colaboradores imprescindíveis do projeto, a função de investigadores. Coerente com esta perspectiva epistemológica, a metodologia utilizada COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Educação e Psicologia, Universidade de Trás-osMontes e Alto Douro. UTAD. Apartado 1013 5001-601 Vila Real , Portugal. mazevedo@utad.pt

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LIVROS

é explicada nas páginas 40 a 43 e retomada, quanto aos procedimentos de análise, na página 129. Os procedimentos utilizados são adequadamente descritos e constituem garantia de integridade científica, nomeadamente no que se refere aos limites temporais para a recolha das narrativas, ao assegurar as condições para a coerência entre elas, a codificação e análise de conteúdo, assim como o respeito pela dignidade e demais direitos dos colaboradores. As autoras selecionaram um conjunto de sujeitos em quem reconheciam que a experiência direta ou indireta do sofrimento proporcionara aprendizagens e solicitaram-lhes que redigissem um testemunho escrito sobre essa experiência no qual emergisse a resposta às seguintes perguntas: “Qual a experiência da situação de sofrimento em questão?”; “O que mudou na sua vida depois dessa experiência que considere aprendizagem?”; “Qual a sua justificativa para essa alteração?” “Quais os acontecimentos em questão?”; “Como reconfigurou sua vida a partir desse sofrimento?”; “Fez alguma diferença, quanto à sua compreensão, dessa experiência na sua vida, tê-la narrado por escrito?” (p.41)

Para quem, quanto ao processo de construção do conhecimento científico, se situa numa perspectiva tradicional – o paradigma da modernidade –, um tal ponto de partida causa desconfiança e, mesmo, a suspeita de erro lógico: a convicção, por parte das investigadoras, de que os colaboradores realizaram aprendizagem em situação de sofrimento enviesaria a sua análise das narrativas por eles produzidas, e seria, por isso, autoconfirmatória. Uma tal crítica deixaria de lado o essencial deste trabalho. O que as autoras pretendem é perceber o que distingue esse tipo de pessoas, pois, se conseguirmos detectar essa diferença, talvez possamos educar para que consigamos não só resistir ao sofrimento, mas também transformá-lo (olhos nos olhos, sem negação) em fonte de maior sabedoria. (p.24)

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Os seus pressupostos podem resumir-se deste modo: - a aprendizagem é sempre aprendizagem de alguém e enraíza-se na sua experiência vivencial (a sua existência); - estrutura-se quando a pessoa é capaz de observar-se e narrar essa experiência para si mesma e, eventualmente, para outros. O objectivo deste livro não era, portanto, verificar (ou confirmar) a existência de aprendizagem no (ou pelo) sofrimento, mas sim, como dissemos, identificar, nos sujeitos que a realizam, um conjunto de características distintivas, fundamentadoras de uma educação para o sofrimento. A terceira parte do livro, de forma aliás coerente com o exposto na primeira secção, explicita sentidos que o sofrimento pode assumir, indo para além dos significados que, de um ponto de vista estritamente racional ou social, foram identificados por outros investigadores, como Cassell e Le Breton, como as autoras referem. A partir da análise das narrativas produzidas pelos colaboradores, reconhecem que o sentido do sofrimento: - é “pessoalizado”, precisamente por estar imerso na história de vida de cada um; - resulta de um processo, ou seja, . é progressivamente descoberto (não dado por outrem, nem encontrado de forma acabada), . mediante um trabalho de desenvolvimento espiritual que o próprio sofrimento de algum modo induziu, “testemunhando [...] um trabalho interior de flexibilização de seus padrões autoorganizativos, num caminho de espiritualidade crescente, onde o sofrimento não se opõe à vida, mas dela é parte integrante” (p.118). Do ponto de vista do progresso do conhecimento, este livro é relevante na medida em que evidencia a relação entre o sofrimento (tão pouco estudado pelas dificuldades que acarreta) e o sentido interno de coerência (SOC), definido por Aaron Antonovsky, partindo, precisamente, da perspectiva que sobre a aprendizagem têm Bateson e outros autores do movimento da auto-organização. Esse conjunto de narrativas e a análise que as complementa, poderão, em nossa opinião, ser de grande utilidade na formação dos profissionais de saúde e

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livros

das profissões de ajuda, bem como na formação de cuidadores não formais. Se é certo que os capítulos de índole mais teórica usam, sem definição de conceitos, certo jargão próprio da orientação epistemológica das autoras, e não foi feita uma homogeneização de estilo nos capítulos da primeira parte, nem por isso cremos que a leitura saia perturbada. Esperamos que este grupo de investigação possa alargar o seu trabalho mediante a realização de novos estudos, quer de tipo comparativo, quer de natureza monográfica, aprofundando algum dos temas aqui abordados (doença, deficiência, luto ou sofrimento em contexto profissional) e outros que lhe sejam complementares.

Recebido em 22/11/12. Aprovado em 14/12/12.

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Participação de mastectomizadas em um grupo de reabilitação: benefícios e barreiras percebidos Participation in a group of mastectomy rehabilitation: benefits and perceived barriers Participación de mastectomizadas en un grupo de rehabilitación: beneficios y barreras percibidos

Trata-se de estudo qualitativo, que objetivou analisar a percepção de mulheres com câncer de mama acerca da seriedade da doença, de sua suscetibilidade a ela e dos benefícios e barreiras para a participação em grupos de reabilitação. Realizado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão Mulher e Câncer de Mama – MUCAMA, em Alfenas – MG, utilizou como referencial teórico o Modelo de Crenças em Saúde e conceitos da Teoria de Campo de Kurt Lewin. Participaram oito mulheres operadas por câncer de mama, que compareciam regularmente ao serviço, há, no mínimo, três meses até a coleta, entre maio e julho de 2011. Os dados foram coletados por meio de grupos focais e entrevistas, utilizando um roteiro semiestruturado e analisados pela Análise de Conteúdo Temática. Emergiram dos relatos dois temas e respectivas categorias: Mulheres portadoras de câncer de mama: percepções acerca da suscetibilidade e seriedade da doença – crenças sobre a suscetibilidade ao câncer de mama; a visão da seriedade do câncer de mama; os estímulos para a ação: a busca de apoio no grupo de reabilitação – e Benefícios e barreiras percebidos na decisão sobre participar do grupo de reabilitação – o retorno às atividades cotidianas e a reabilitação psicossocial; percepção das dificuldades para participar do grupo e/ou aderir às atividades propostas. A percepção da suscetibilidade ao câncer de mama foi demonstrada quando as mulheres referiram crer que o câncer não pode ser evitado,

independentemente de classe social, raça ou escolaridade. Atribuíram sua ocorrência à repressão de sentimentos e à falta de um comportamento preventivo em saúde. A percepção da seriedade do câncer de mama como uma condição crônica se mostrou ao considerarem a neoplasia estigmatizante. O medo da morte e as consequências dos tratamentos as levaram a promover novos arranjos sociais e familiares. Os estímulos para a ação de procurarem o grupo de reabilitação foram: o desconforto e as limitações físicas e emocionais, assim como encaminhamentos e recomendações dos profissionais de saúde e conselhos de familiares e membros da rede social. Os benefícios percebidos para participação no grupo foram: a melhora física, com possibilidade de retorno às atividades diárias; atendimento gratuito e especializado; vínculo com a equipe multidisciplinar; apoio psicológico; oportunidade de compartilhar experiências, sanar dúvidas e se sentir em meio a “seus iguais”. Já as barreiras percebidas foram: dias e horários de atendimentos limitados; afazeres domésticos; espaço físico restrito; necessidade de demandar tempo e disposição para a adesão às atividades. As percepções individuais das entrevistadas acerca do câncer de mama foram influenciadas por suas crenças sobre suscetibilidade e seriedade ao longo de suas experiências com a doença e tratamentos, o que as levou a um comportamento em saúde de participar do grupo de reabilitação porque viram, no mesmo, um meio para cuidar de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.45, p.489-91, abr./jun. 2013

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sua saúde, identificando maiores benefícios que barreiras. Assim, a assistência efetiva a mulheres com câncer só pode se concretizar em um contexto em que suas concepções e experiências em relação à sua doença sejam consideradas, permitindo-lhes decidir, com o profissional de saúde, sobre a melhor opção para o cuidado de sua saúde. Edilaine Assunção Caetano Dissertação (Mestrado), 2012 (com apoio Capes/Ministério da Saúde). Programa de Pós-Graduação Enfermagem em Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. edilainecaetano@usp.br

Palavras-chave: Enfermagem. Reabilitação. Câncer de mama. Keywords: Nursing. Rehabilitation. Breast cancer. Palabras clave: Enfermería. Rehabilitación. Cáncer de mama.

Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/ tde-06062012-161225/pt-br.php

Recebido em 28/03/13. Aprovado em 03/04/13.

O espaço da formação docente nos programas de pós-graduação em enfermagem: uma revisão sistemática da literatura The area of teacher education in graduate programs in nursing: a systematic review of the literature El área de formación del profesorado en programas de postgrado en enfermería: una revisión sistemática de la literatura

A formação pedagógica para a docência universitária no âmbito da pós-graduação stricto sensu enfrenta desafios. Os espaços para tal formação mostram-se reduzidos na universidade. A prioridade dada à formação para a pesquisa reforça a necessidade de se valorizar a docência, bem como sua formação no âmbito da pós-graduação. Discute-se, centralmente, a importância dos conhecimentos específicos, articulados com os pedagógicos, de modo que estes tragam subsídios para o professor atender mais plenamente às necessidades formativas. O estudo objetivou, então, fazer uma reflexão sobre a percepção do

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pós-graduando acerca da formação docente, considerando os novos paradigmas que se instalam no campo da educação e da saúde. Tratase de uma revisão sistemática da literatura, cujo objetivo foi levantar dados sobre o processo de formação docente na pós-graduação em Enfermagem, considerando a importância de sintetizar, organizar e categorizar os estudos primários, realizados no Brasil no período de 2000 a 2012, sobre o assunto em apreço. A amostra foi constituída por dez estudos, dos quais identificaram-se as situações-limite, através da fala dos pós-graduandos, com relação à formação pedagógica para a docência no Ensino

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de maior ampliação de espaços de reflexão frente às demandas referentes à formação do futuro docente, na certeza de ser importante o envolvimento do aluno de Pós-graduação quanto à construção de sua identidade profissional.

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Superior. Assim, foram evidenciadas cinco importantes categorias que nos remetem à problemática contextualizada nesta investigação: reconhecimento da necessidade de políticas de formação especifica para o exercício da docência; enfoque principal dado à formação para a pesquisa cientifica; formação alicerçada no paradigma tradicional de educação; reconhecimento da necessária ampliação de possibilidades de formação pedagógica durante o PAE; e reconhecimento da necessidade de conhecimentos científicos sobre a dimensão da Educação no Ensino Superior. O estudo empreendido nos revelou que a docência universitária, na percepção dos pós-graduandos de enfermagem, ainda é um campo de conhecimento cuja complexidade e especificidade são pouco conhecidas. Nota-se que os espaços destinados ao ensino na pós-graduação mostram-se incipientes para atender a demanda da formação docente. Contudo, muitos pósgraduandos identificaram, como espaços para a formação pedagógica, a existência de algumas disciplinas que fundamentam as questões do ensino, bem como o Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) como uma oportunidade relevante de aproximação com as questões didático-pedagógicas. Portanto, levando em consideração os achados deste estudo, depreendemos haver necessidade

Marilia Ferranti Marques Scorzoni Mestrado (2013) Programa de Enfermagem Psiquiátrica, Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. mscorzoni@zipmail.com.br

Palavras-chave: Educação de pós-graduação em enfermagem. Docente de enfermagem. Ensino. Keywords: Postgraduate nursing education. Faculty of nursing. Faculty of nursing practice. Palabras chave: Educación de postgrado de enfermería. Profesorado de enfermería. Práctica del profesorado de enfermería.

Recebido em 28/03/13. Aprovado em 03/04/13.

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Sobre algumas (im)precisões de uma crítica fundamental à medicalização

Apostando na rica possibilidade de diálogo acadêmico disponibilizada pela revista, comentamos o artigo de Brant e Carvalho (2012), publicado em Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v.16, n.42, p.623-636. Para nós, ele pode ser considerado como afeto ao pungente e polêmico campo de investigação sobre o melhoramento biomédico, já que aborda os usos não médicos (ou não terapêuticos) do metilfenidato (mais conhecido como Ritalina®), um típico exemplo do chamado melhoramento cognitivo (Buchanan, 2011). Para os autores, tais usos representam uma “[...] busca incessante do homem para superar seus limites e viver bem em sociedade [...]” (p.632), transformando “[...] esse medicamento (em) um gadget, um fetiche capaz de aproximar ainda mais o usuário de sua frágil condição do ser-aí-nomundo” (p.632), expressão que dá, intempestivamente, um cunho heideggeriano ao texto e que, por aparecer apenas uma vez, precisamente na última linha, soa enigmática no seu contexto argumentativo. É indiscutível a atualidade do tema, assim como a pertinência da escolha do objeto e de uma abordagem contextualizadora. Em que pese compartilharmos a preocupação crítica dos autores sobre uma crescente patologização-medicalização da vida humana em diversos aspectos, fazemos comentários, visando à continuidade e ampliação do debate. Nosso foco é sobre a (im)precisão de certos conceitos e/ou distinções que estão explícitos ou implícitos no texto, o que, no nosso entendimento, compromete alguns pontos da abordagem. Dado o limite desta carta, focalizaremos apenas alguns deles. Os objetivos dos autores no artigo são claros: analisar o significado dos usos não médicos do metilfenidato, questioná-los e criticá-los. Se este tipo de uso existe, presume-se que haja um uso médico. Considerando que a adoção de tal distinção torna-se imperiosa, em primeiro lugar, abordamos a (suposta) fronteira entre tratar/cuidar (restrito, para os autores, ao trinômio doença-saúde-cuidado, às ‘anormalidades’) e superar limites/viver bem em sociedade (relacionado à superação de ‘normalidades’, à elevação performativa de certas capacidades ou funcionamentos biológicos), ou seja, entre terapia (uso médico) e melhoramento (uso não médico). Conforme Buchanan (2011, p.5), Se considerarmos a doença como um desvio do funcionamento normal e a terapia como objetivando prevenir ou curar doenças, então o contraste com o melhoramento é claro: melhoramento visa aumentar ou melhorar o funcionamento normal. Nesse sentido, pretende-se ir além da terapia.

Em abstrato, tais distinções parecem pertinentes. Na prática, todavia, há limites? Tomemos o exemplo dado por Buchanan (2011), a fim de tentarmos mostrar um indício de imprecisão da distinção entre cuidar/tratar/prevenir e superar os limites/viver bem em sociedade: Modificar os genes de um embrião humano para prevenir uma doença genética seria a terapia, e não melhoramento. Modificando um embrião para melhorar o sistema

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CARTAS

imunológico normal, a capacidade do sistema para combater as infecções, seria um melhoramento. (p.5)

Se focalizarmos o efeito, e não o procedimento, podemos depreender um problema do exemplo. Métodos terapêuticos consagrados há séculos, como a vacinação, acaso não atuam justamente elevando o nível ‘normal’ da imunidade humana? Assim, vacinar é uma terapia ou um melhoramento, tem um uso médico ou não médico? Embora o metilfenidato possa ser considerado um exemplo paradigmático de desvio de fins terapêuticos para de melhoramento, ele é, contrassenso, um típico exemplo da imprecisão dessa fronteira. Para Fukuyama, um bioconservador que costuma defendê-la, o uso da Ritalina é obscuro. Afirmando que o comportamento que ela visa a tratar não é propriamente uma doença, e partindo de algumas considerações sobre seus usos, ele conclui que “não há, correspondentemente, nenhuma linha clara entre o que se poderia chamar de usos terapêuticos e melhoradores da Ritalina” (Fukuyama, 2002, p.210). Assim, “se já houve um caso [...] em que a distinção entre patologia e saúde no diagnóstico e terapia e melhoramento no tratamento é ambígua, é o da TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e da Ritalina” (p.210). Nesse sentido, propomos um questionamento central, pois, para nós, não ficou clara a posição de Brant e Carvalho. Se existe um uso médico do metilfenidato, depreende-se que há uma doença a ser tratada. Mas, considerando que eles afirmam que a doença foi inventada após o medicamento (p.623, 632), cumpre-se concluir que ela, objetivamente, não existe, pois seria uma invenção. Assim, para esclarecer, perguntamos: o TDAH existe, havendo usos médicos daquela substância, ou não, e todo uso é não médico, sendo um absoluto gadget? Além da dificuldade de distinguir usos médicos de não médicos, outro ponto que merece atenção é a expressão viver bem em sociedade (p.623, 632). Como ela serve para discernir aqueles usos? Nossa questão é trivial: o uso médico de algo não tenciona gerar um viver bem em sociedade? Cuidar, tratar, medicar e afins são milenares iniciativas de melhorar a vida humana, tornando-a, por princípio, mais segura, resistente, longeva e, no limite, feliz (Porter, 2004). Em tese e genericamente falando, as práticas médico-terapêuticas visam justamente a produzi-lo. Em suma, à possibilidade de a expressão não servir para discernir os usos, soma-se o fato de ela não ser desenvolvida no texto, mas apenas citada (no resumo e no último parágrafo), aspectos argumentativos esses dignos de nota. Nosso último ponto refere-se ao conceito de gadget, também central no artigo. Segundo os autores, “[...] grande parte da prescrição e do consumo não terapêutico do metilfenidato [...] o transformam em um autêntico gadget” (p.624). Destarte, infere-se que apenas tal uso constituiria gadget. Mas será que qualquer investimento para contornar aspectos da condição humana, como o são as doenças de fato, não pode, num contexto capitalista, virar “[...] uma mercadoria, um bem de consumo para obtenção de gozo [...]” (p.630)? Supondo que é pertinente, o conceito de gadget não seria aplicável ao uso médico também? Afinal, o medicamento, no estrito uso médico, também não é “[...] um objeto criado pela indústria da tecnologia [...]”, sendo vendido como “[...] um produto que pode proporcionar um ganho real menor do que fora prometido no ato de sua aquisição” (p.630)?

Murilo Mariano Vilaça1 Alexandre Palma2

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Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Largo de São Francisco de Paula, n.1, Centro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.051-070. contatoacademico@hotmail.com 2 Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Escola de Educação Física e Desportos, UFRJ.

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cartas Referências BUCHANAN, A. Better than human: the promise and perils of enhancing ourselves. Oxford: Oxford University Press, 2011. FUKUYAMA, F. Our posthuman future: consequences of the Biotechnology Revolution. New York: Picador, 2002. PORTER, R. Das tripas coração. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Recebido em 11/04/12. Aprovado em 04/01/13.

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criação

Habitando uma vitrine-membrana: entre dentro e fora Juliana Araújo Silva1 Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima2

Quem habita? O Projeto Cidadãos Cantantes existe há vinte anos e é formado por duas oficinas: um coral cênico e uma oficina de dança e expressão corporal. Este projeto, que transita entre os campos da cultura e da saúde, acontece num espaço público de cultura no centro de São Paulo e é aberto a todos que queiram experimentarem-se nestas linguagens. Ele surgiu propulsionado pelo movimento da luta antimanicomial, com a proposta de fomentar espaços de experimentação artísticas para todos, para pessoas quaisquer, independentemente de suas condições sociais ou de saúde. O projeto questiona a possibilidade de as pessoas ocuparem lugares de experimentação e produção de cultura, de modo que suas singularidades, incluindo o sofrimento psíquico, não sejam barreiras para a produção coletiva, mas, sim, um motor, uma matéria potente de trabalho tanto para a arte como para a produção de saúde.

Dentro e fora Fora da sala, a vida urbana. Dentro da sala, mundos possíveis inventados por aqueles que a ocupam, atravessados pelos acontecimentos do lado de fora. Quando dentro, vemos todo um mundo fora: pessoas que passam rapidamente, de um lado para o outro, a todo momento, talvez a trabalho ou a passeio, com carroças, de terno, fazendo barulho, sozinhas, em grupos, fugindo da polícia com suas peças à venda ou utilizando-se da rua para dormir. O centro da cidade em toda a sua complexidade. O que podemos produzir no centro da cidade, quase na esquina da Ipiranga com a Avenida São João? Ocupamos um pedaço do centro, com seus movimentos, multiplicidade, velocidades, violência. Com sua história ligada à produção artística, às vezes esquecida. O que podemos produzir no centro da cidade, quase na esquina da Ipiranga com a Avenida São João?

1 CAPS Infantil II, Brasilândia. Rua Manoel Madruga, 129, Freguesia do Ó. São Paulo, SP, Brasil. 02.960-020. juliana.arsi@gmail.com 2 Curso de Graduação em Terapia Ocupacional, Universidade de São Paulo.

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Juliana Araújo, 2012

CRIAÇÃO

Juliana Araújo, 2012

As ruas do centro da cidade exercem diferentes funções durante as oficinas do Projeto Cidadãos Cantantes. Por elas, chegamos, e, também, nelas, avistamos, através das paredes da vitrine, algum outro participante chegar, vemos o comércio, e todos os movimentos que compõem aquela dinâmica paisagem. De dentro da sala, assistimos, pela vitrine, cenas que disparam reflexões nos participantes acerca do funcionamento da cidade.

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criação

Espanto, diversão, estranhamento..., o que acontece dentro da sala também provoca olhares de fora para dentro, interrompe as passagens apressadas pelo centro. Das paradas mais rápidas, que estabelecem pouco contato, aos encontros mais sutis, delicados e marcantes, a vitrine exerce sua permeabilidade, ela pulsa, produzindo um fluxo que ora conecta mais o dentro com o fora e ora menos. Os ensaios duram, em média, duas horas, em que se alternam momentos nos quais a vitrine fica vazia de olhares, momentos em que vira uma parede de observadores, e momentos em que as trocas acontecem, por meio de falas, aproximações físicas, sorrisos... Certa vez, após muito tempo olhando o ensaio da oficina de dança pela vitrine, uma mulher foi até a porta da galeria para perguntar o que acontecia ali. Quando convidada a entrar, perguntou: “Mas não é para pessoas doentes?” E foi embora. A vitrine funciona de forma similar a uma membrana, como a membrana celular, que separa o ambiente interno da célula do ambiente de fora, mas que permite e controla um fluxo de trocas entre os dois: proteção e permeabilidade; separação e contato. No nosso caso, a vitrine-membrana, com sua parede de vidro, separa, do lado de fora, a cidade, em suas formas majoritárias, fervilhando em movimentações, e, do lado de dentro, espaços de lentificação, povoados de experimentações e de procedimentos de minoração.

A construção de um dentro

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CRIAÇÃO

No caminho em direção à entrada da Oficina de Dança, no corredor da galeria, encontro o que parecia ser uma excursão de jovens, saindo em bando da direção do cinema. No caminho do bando, a sala, com participantes que já estavam há algum tempo a dançar. Percebo os jovens amontoarem-se em frente à entrada da sala, observando, rindo, comentando... Sem olhá-los nos olhos, ou me atentar a algum detalhe do que conversam, entro na sala. Cumprimento algumas pessoas, tiro o sapato, ouço a música e tento limpar a exposição. Fecho os olhos. Não há vontade de abri-los. Caminho a passos lentos, por partes frias e quentes do chão. As quentes são as partes aquecidas pelo sol na vitrine, me localizo. Ainda não há vontade de abrir os olhos, ou será coragem? Com os olhos fechados, percebo nuances de cores, serão efeitos das passagens das pessoas? Experimento a minha mão sob os olhos, escurecendo ainda mais a visão. Girando o corpo lentamente, percebo a direção do vento do ventilador, ouço os passos na sala, algumas corridas que vêm por trás de mim. Estendo os braços, nada. Caminho e estendo novamente, nada. Novamente, e um toque rápido e suado. Minha mão levemente molhada, procura de onde veio, mais um passo à frente. Mas é no outro braço que percebo um toque, que me lembra de um cotovelo. De quem será? Toques de cotovelos, antebraços, dedos, costas. Aos poucos, ainda sem ver, sinto outro corpo, quente e suado, que vai a me guiar. Agora, enroscados, estamos no chão. Pés com pés, depois só um, os dedos se encaixam, os peitos dos pés também. O outro pé está áspero e o corpo treme. Quem será? Por que treme? Encaixamos joelhos, e os movimentos parecem estar tão sintonizados, percebo que o outro corpo vai para debaixo de mim, subo, meus pés sentem a aspereza de uma calça jeans. Será que a pessoa me vê? Será que também está com olhos fechados? Sinto então vontade de abri-los, mas não abro. Vamos juntos subindo, na sala já silenciosa, num longo intervalo entre músicas. Em pé, volto ao chão. Tocamos somente as mãos, elas deslizam uma sobre a outra, os dedos e .... foi. Distanciamo-nos. Não há mais vontade de abrir os olhos. Silêncio por um instante. Pronto. Já é possível abri-los e ver o dentro e o fora da sala.

A construção do dentro exige uma concentração da atenção e da presença das pessoas ligadas entre si, reforçando a vitrine, ou toda a sala como elementos de separação da rua. Não é somente o vidro que expõe o que acontece dentro, mas a porta da sala de ensaio, que fica sempre aberta. Construir um dentro é também fortalecer a vitrine como membrana, em sua função de filtragem do ambiente externo e seleção do que deve e do que não deve passar, possibilitando um contorno para os espaços das Oficinas. No dia da despedida das estagiárias da Oficina do Coral, em meio ao clima intenso, frágil, entrou na sala um homem cujos passos batiam na madeira nos dando um susto. O barulho de seu andar tomou a sala e só foi interrompido pelo som de sua própria voz, que disse: “eu quero saber por que minha amiga está chorando”. Desconcerto geral, ninguém parecia saber do que se tratava e nem o que dizer..., quando alguns começaram a balbuciar umas palavras, ele repetiu: “eu quero saber por que a minha amiga está chorando”..., novamente alguns tentaram começar falas que pareciam tomar a direção de negar que havia uma 500

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amiga chorando, quando então ele se dirigiu a outra parte da sala vitrine, que é em formato de L, onde não podíamos ver. Alguns participantes rapidamente levantaram e foram ver aonde ele ia, quando encontraram uma participante chorando, escondida num canto que não conseguíamos ver. Ele falou com a participante que chorava e se retirou da sala, desculpando-se. Permaneceu entre os participantes um misto de surpresa, espanto e preocupação com quem chorava.

Marina Rissi, 2012

Existe um fora turbulento e borbulhante em acontecimentos. O centro da cidade de São Paulo em suas contradições, precariedade, movimento e força. O Projeto acompanhou, nos últimos anos, semanalmente, os movimentos da região do Largo do Paissandu. Era possível perceber um clima apreensivo ao caminhar pela região, um pouco produzido pelo aumento do policiamento e pela diminuição das pessoas em situação de rua. Como se pudéssemos perceber, a cada dia, o investimento na mudança daquela paisagem.

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Em um dia de ensaio, na Oficina de dança, quando fomos, em muitos, dançar pelo espaço da rua; uma alegria contagiava a maior parte do grupo, sair da vitrine em muitos, produzir vídeos, fotografias das experiências que aconteciam. Turbilhão de ideias, afetações durante o ensaio. Com o seu término, despedimonos e saímos da galeria em direção ao metrô. Tomada de alegria por tudo que acabara de acontecer naquela manhã de oficina, cruzo a São João entre viaturas, homens com walk-talkie, policiais, trabalhadores da Eletropaulo, faixas de isolamento. Naquele quarteirão, dois prédios estavam sendo ocupados há um ano. Nas janelas, os “moradores-ocupantes” olhavam todo aquele ‘exército’ prestes a retirá-los dali. Despejo. Desocupação. Tensões da cidade. Esta cena repetiu-se por mais algumas poucas vezes, até que a retirada, de fato, aconteceu, em um dia outro que não o do ensaio. Os moradores, então, se organizaram na calçada e, por cerca de duas semanas, os acompanhamos: cozinhando, conversando, suando ao sol, armando lonas, banhando seus filhos, tudo a céu aberto, expostos a todos. As pessoas, quando chegavam aos ensaios, comentavam de arrepio pela cena, por admiração do ato de resistência daquelas pessoas, ou por repulsa, por acreditar que o que acontecia bagunçava a cidade. Por alguns ensaios, bem em frente à vitrine, fomos acompanhados por aquelas pessoas, que então desapareceram. Retiradas à forca? Negociações? Não acompanhamos. Numa sexta-feira, eles já não estavam mais lá. Houve boatos de que o prédio, cuja calçada ocuparam, viraria um local de moradia para famílias de artistas sem recursos financeiros. Os participantes que escutaram esse boato revoltaram-se e levantaram a questão deste recorte: por que famílias de artistas? Apesar do sumiço das pessoas, alguém colocou fotografias nas paredes do prédio, provavelmente feitas quando as pessoas estavam ali. Fotografias das crianças brincando naquelas calcadas e ruas, e de jovens, possivelmente de participantes da ocupação.

Diante deste panorama, em um território fervilhando em contradições, convivemos com diferentes concepções sobre o valor da vida, a produção de saúde e de cultura, o uso do espaço público, o direito de ir e vir. No cotidiano apressado da cidade, tecem-se poucas possibilidades de se construírem fendas no tempo para refletir sobre os acontecimentos que envolvem o espaço urbano. Seria já uma ação de resistência manter este projeto aberto a todo e qualquer um que se interesse por um espaço público de cultura e manter uma porta aberta e desejante de novas entradas, em um contexto no qual se repetem, incessantemente, tentativas de segregar, esconder, extinguir ou eliminar certos modos de vida? Criar rupturas em processos que ora parecem ser impossíveis de frear, ou, mesmo, transformar coletivamente. Mesmo que essas intervenções sejam mínimas, sutis, marcam outra forma de convivência, de relação política, de pensar a vida e a existência, de produzir resistência no contexto biopolítico.

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Criar rupturas: uma quase-performance

Carlos Vilalba, 2012

Quase-performance, um fluxo da membrana entre o centro e o fora. Uma outra relação com a vitrine. Um pulso que alimenta tanto os ensaios como o movimento na rua. Diferentemente das interrupções do fora da sala que dificulta a construção de um dentro, a permeabilidade exercida neste fluxo, de alguma forma, constrói outra relação entre o dentro e o fora da sala, abrindo, aos olhos da cidade, o trabalho em gestação que, ao ser exposto, assume uma forma já artística. O que acontece nos ensaios chama a atenção de muitos passantes e chega até a formar um público por um tempo razoável. Certo dia, a proposta do início de ensaio da Oficina do Coral Cênico era que cada um bolasse um movimento Pirex. Pirex é o nome de uma música cantada pelo grupo há alguns anos. Realizamos uma roda e cada um foi mostrando o seu ser pirex: pulos, movimentos amplos com os braços, olhos bem abertos, barulhos agudos, chacoalhões. Em um círculo, observávamos uns aos outros, mas, aos poucos, fomos sendo observados por muitas pessoas do lado de fora da vitrine. Ao continuarmos o exercício, algumas pessoas foram entrando e sentaram-se para assistir ao que acontecia. Assim, o que partilhávamos entre nós ganhou outra dimensão ao chamar a atenção de quem passava no centro...

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Carlos Vilalba, 2012

Esta abertura, para o público, de um trabalho que ainda se encontra em gestação configura-se como uma quase-performance. Quase-performance como um termo que sustenta uma dimensão de tangência, de aproximação com a performance e com elementos que a constituem, sustentada pela palavra quase. Quase: uma palavra que diz de uma aproximação, de algo que está por um triz para acontecer... Para Renato Cohen, a performance é uma expressão cênica e uma função do espaço e do tempo, “algo precisa estar acontecendo naquele instante, naquele local” (Cohen, 2009, p.28). É uma linguagem de experimentação. Para Marina Abramovic (2010), a performance poderia ser descrita de diferentes modos, mas, na experiência de seus trabalhos, ela se torna uma construção física e mental, em frente a um público, que acontece em um determinado espaço e tempo. O instante, em ambos os pensamentos, aparece como essencial na performance: o encontro entre o performer e um público. Cohen (2009) escreve que a performance coloca, em xeque, diversos elementos, entre eles a representação e a realidade. Ele coloca que há uma ambivalência presente na prática da performance relativa ao nível de representação e de realidade que envolve o performer, que é, ao mesmo tempo, ele e um personagem. Ao mesmo tempo somos nós mesmos nos experimentando, no canto e na dança, no contato com o corpo do outro, em nossos próprios movimentos; com os olhares de fora somos também personagens. Para quem olha de fora, somos atores, cantores, bailarinos etc. Há pessoas que olham e voltam a andar, outras já chegaram a bater palmas, outras pessoas apontam e comentam com quem mais está diante da vitrine, e algumas tentam estabelecer contato, como um grupo de homens jovens que, certa vez, parou em frente à vitrine e por lá ficou um tempo, pedindo que cada pessoa do ensaio dançasse, escrevendo notas em um papel e, depois, dançando do lado de fora. Pausar e/ou lentificar o andar dos transeuntes, provocar uma outra cena naquela paisagem, seriam esses os componentes da intervenção dos ensaios?

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Na exposição do trabalho em processo pela vitrine, expomos nossa singularidade de funcionamento, composta, também, por esta exposição, que se torna, assim, um tipo de marca das oficinas. Na performance, para Cohen (2009, p. 103), “o que interessa é uma marca pessoal ou uma marca de grupo, em caso de mais pessoas. É a definição de um estilo, de uma linguagem própria”. A quase-performance que flui entre o dentro e o fora. Habitar a exposição, expondo-se.

Poéticas menores: o que se quer das linguagens e das artes, nessas experiências? Franco Berardi (2011) acredita que o atual campo de batalha político seja a sensibilidade. Em sua concepção, o modo como o capitalismo utiliza-se dos cérebros tem precarizado a vida, fragmentado os salários e a vida social, provocando agressividade, isolamento, e produzindo efeitos devastadores sobre a sensibilidade. Ele diz que a sensibilidade é a capacidade de entender sinais que não são verbais, nem verbalizáveis. É a faculdade de discernir o indiscernível, aquilo que é demasiado sutil para ser digitalizado. Tem sido sempre o fator primário da empatia: a compreensão entre os seres humanos sempre se dá, em primeiro lugar, no nível epidérmico. (Berardi, 2011, s/p)

Neste campo de batalha, o sensível, matéria das artes e das experimentações do Projeto, está implicado nos processos de produção de subjetividade, como instrumento de modelização do sistema capitalista, e, ao mesmo tempo, como ferramenta de resistência que articula o coletivo a processos de singularização. Esta dupla implicação nos exige a produção de uma diferenciação no uso das linguagens: produzir um modo de fazer variar as linguagens de forma que sirva para produzir a diferença e sair da repetição. Deleuze (2008) pergunta: como poderia um povo criar para si e criar-se em meio a abomináveis sofrimentos? Para o filósofo, a arte é o que resiste à morte, à servidão e à vergonha. Esta resistência acontece quando um povo reencontra algo da arte, que o faz criar a si mesmo por seus próprios meios. Pensamos que a Oficina de Coral Cênico e a Oficina de Dança aproximam-se de repertórios da arte o suficiente para produzir com eles poiesis singulares. A palavra grega poiesis é traduzida por fabricação, confecção, produção. Fabricação que culmina em uma forma, criação que engendra e organiza novas realidades. “Criação não no sentido hebraico de fazer algo a partir do nada, mas no sentido grego de gerar e produzir dando forma a partir de uma matéria preexistente e ao mesmo tempo prenhe de potencialidades” (Souza, 2007, p.86). A poiesis efetuada por uma operação de minoração permite que as experiências das oficinas do Projeto aconteçam de formas distintas entre elas. No Coral Cênico, o uso da linguagem musical procura construir um plano de compartilhamento de enunciados comuns e provocar, nos participantes, processos de construção de si dentro do trabalho coletivo, a fim de poder construir este plano. A afinação, elemento importante no trabalho musical, é buscada pelos participantes e pela coordenação, mas não é o essencial, e, nas músicas apresentadas pelo grupo, a desafinação surge. Na Oficina de Dança, a construção de poéticas acontece em um forçamento que se faz da linguagem. Na pouca procura por técnicas de dança e na grande exploração do contato e do movimento que surge pelas sensações, o grupo tensiona os limites da linguagem, fazendo com que as experimentações caibam em uma fragilidade sustentada pelas intensidades que constituem o que se vê. Operar coletivamente um fluxo de criação ao questionar o que pode a dança, ao invés de buscar encaixar a poética/o trabalho em um estilo de dança ou se perguntar se é dança ou não aquilo que é feito. Passos marcados, técnicas reconhecidas, perfis corpóreos, graus de elasticidade, precisão de movimentos..., nada disso importa. Importam, sim, elementos que colaborarem com a fruição da criação do grupo. Acontece que, em determinados momentos, para permitir que o movimento ganhe em expressividade, sente-se a necessidade de conhecer esta ou aquela técnica de suspender outro corpo, por exemplo, e alguém resgata um conhecimento que tem, ou o grupo bola um modo desta

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CRIAÇÃO

suspensão acontecer, ou planeja-se fazer uma oficina de uma técnica específica. Poieses são atos de tecer sentidos e formar poéticas com matérias diversas, com elementos de um campo coletivo. É também um ato político. Ligada à potência criativa dos corpos e da vida acontece uma certa produção de saúde. É um investimento na dimensão de criação do homem, para que ele possa ser – como escreveu Deleuze (2008), a respeito do escritor – um médico de si e do mundo. Nesta aliança, busca-se uma possibilidade de ir além da vida, que se expressa pelo mero fato de viver para que a vida, como o verbo, possa “pegar delírio”, pois, como diz Manoel de Barros, No começo era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. Em poesia que é a voz do poeta, que é a voz de fazer nascimentos – o verbo tem que pegar delírio. (Barros, 1997, p.17)

Aqui, afirmamos que a vida deve ser ultrapassada em sua dimensão de naturalidade, de organicidade, e deve pegar delírio ao embarcar em sua potência de invenção. Deleuze (2006, p.14) indaga “qual saúde bastaria para liberar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior dele?” Pensamos que seria aquela saúde que permita a tudo aquilo que é vivo fabricar e variar conforme os diferentes momentos da vida, que seja a saúde que proporcionaria sustentação aos delírios necessários para viver. Delírios como momentos intensivos, momentos de encontros, momentos de conexão com o mundo, momentos de criação. Esta saúde não visa estabilidades, bem-estar, ausência de doenças, de conflitos, não teme a fragilidade do corpo em sua organicidade, não teme o perecimento do corpo. Talvez esta seja a saúde necessária para o exercício de resistência contemporâneo. Com prudência, interessa a esta produção de saúde que os corpos possam experimentar-se e estar abertos, a cada vez, para os encontros que produzem afetos alegres que os tornam potentes, proporcionando o conhecimento necessário para que possam continuar no exercício de estarem juntos, em comum, em composição, colaborando para a inventividade coletiva. Desta forma, ao buscarmos esta saúde no Projeto, talvez possamos permanecer cantantes e dançantes, contagiando os passantes da cidade, bebendo do ambiente da cidade, tocando uns aos outros e nos olhando. Amizade? Camaradagem? O importante talvez seja buscar uma saúde suficientemente forte, que afirme a fragilidade do corpo e das relações com o mundo, e sustente que não tememos a morte orgânica, e que nos permita compreender o que nos faz viver. Que sustente os encontros delicados e duradouros deste Projeto. Camaradagem de criação, possivelmente, pois afinal criar não é comunicar mas resistir. [...] É a potência de uma vida não orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras. (Deleuze, 2008, p.179)

Então, tratemos de seguir criando para que, eventualmente, possamos experimentar um pouco da liberdade vital. Alguém vem junto?

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criação

Referências ABRAMOVIC, M. The artist is present. New York: The Museum of Modern Arts, 2010. BARROS, M. O livro sobre o nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. BERARDI, F. A sensibilidade é hoje o campo de batalha político. Entrevista ao site Boca do Mangue. Disponível em: <http://bocadomangue.wordpress.com/ 2011/01/30/”a-sensibilidade-e-hoje-o-campo-de-batalha-politico”/>. Acesso em: 15 jan. 2012. COHEN, R. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009. DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008. ______. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2006. SILVA, J.A. Poéticas e marginalidade: experiências no Projeto Cidadãos Cantantes. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis. 2012. SOUZA, J.M.R. As origens da noção de poieses. Hypnos, v.13, n.19, p.85-96, 2007.

Inhabiting a glass-membrane: between inside and outside Habitar en una vitrina membrana: entre el interno y el externo

Palavras-chave: Arte. Cidades. Performance. Saúde. Keywords: Art. Cities. Performance. Health. Palabras clave: Arte. Ciudades. Performance. Salud.

Recebido em 18/11/12. Aprovado em 17/03/13.

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Juliana Araújo, 2012

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INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. FORMA E PREPARAÇÃO DE MANUSCRITOS SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até sete mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até sete mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até sete mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Criação - textos de reflexão com maior liberdade formal, com ênfase em linguagem iconográfica, poética, literária etc. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS SUBMISSÃO DE MANUSCRITOS Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua.

Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Criação, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 25 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé - numeradas, sucintas, usadas somente quando necessário.

CITAÇÕES NO TEXTO No texto, as citações devem subordinar-se à forma Autor (apenas a primeira letra do sobrenome em maiúscula – mesmo quando estiver entre parênteses), data, página. Ex.: “... e criar as condições para a construção de conhecimentos de forma colaborativa (Kenski, 2001, p.31). Casos específicos: a Citações literais de até três linhas: entre aspas, sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado (Autor, data, p.xx sem espaço entre o ponto e o número). Ponto final depois dos parênteses. b Citações literais de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (dois enter antes e dois depois), sem aspas e sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado. Em seguida, entre parênteses: (Sobrenome do autor, data, página). Nota: em citações, os parênteses só aparecem para indicar a autoria. Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Vários autores citados em sequência: do mais recente para o mais antigo, separados por ponto e vírgula: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Textos com dois autores: Almeida e Binder, 2004 (no corpo do texto); Almeida, Binder, 2004 (dentro dos parênteses). e Textos com três autores: Levanthal, Singer e Jones (no corpo do texto); Levanthal, Singer, Jones (dentro dos parênteses). f Textos com mais de três autores: Guérin et al., 2004 (dentro e fora dos parênteses). g Documentos do mesmo autor publicados no mesmo ano: acrescentar letras minúsculas, em ordem alfabética, após a data e sem espaçamento (Campos, 1987a, 1987b). REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem alfabética, segundo normas adaptadas da ABNT (NBR 6023/ 2002). Exemplos:

instruções aos autores

PROJETO E POLÍTICA EDITORIAL


instruções aos autores

LIVROS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. * Título sempre destacado em negrito; sub-título, não. ** Sem indicação do número de páginas. *** A segunda e demais referências de um mesmo autor (ou autores) devem ser substituídas por um traço sublinear (seis espaços) e ponto, sempre da mais recente para a mais antiga. Se mudar de página, é preciso repetir o nome do autor. Se for o mesmo autor, mas com colaboradores, não vale o travessão. Ex: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Dois ou três autores, separar com ponto e vírgula; mais de três autores, indicar o primeiro autor, acrescentando-se a expressão et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) CAPÍTULOS DE LIVRO: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. * Apenas o título do livro é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo citado. Regras específicas 1 Autor do livro igual ao autor do capítulo: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.). Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.19-28. 2 Autor do livro diferente do autor do capítulo: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 Autor é uma entidade: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Séries e coleções: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. (Visão do futuro, v.1). ARTIGOS EM PERIÓDICOS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, após o volume e o número, as páginas em que o artigo foi publicado. Nota: é importante destacar que, no exemplo acima, está indicada a forma correta de citação de artigos publicados na revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação, de acordo com a ABNT: Interface (Botucatu).

TESES E DISSERTAÇÕES: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. RESUMOS EM ANAIS DE EVENTOS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. * Apenas a palavra Anais é destacada, em negrito. ** Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar o endereço eletrônico: Disponível em:<...>. Acesso em (dia, mês, ano). *** Quando o trabalho for consultado em material impresso, colocar página inicial e final. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS: WAGNER, C.D.; PERSSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Disponível em: <http://www.probe.br/science.html>. Acesso em: 20 jun. 1999. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). ILUSTRAÇÕES: Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 200 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, em tons de cinza, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). A publicação do trabalho implica a cessão integral dos direitos autorais à Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Não é permitida a reprodução parcial ou total de artigos e matérias publicadas, sem a prévia autorização dos editores. Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista.


INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system (http://mc04.manuscriptcentral.com/ icse-scielo). All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. FORM AND PREPARATION OF MANUSCRIPTS

Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Creation, Brief notes and Letters). The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 25 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes - numbered, short and to be used only if necessary.

SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to seven thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to seven thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to seven thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. Creation - written reflections emphasizing iconographic, poetic, or literary language, thus allowing formal liberty. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Observation: in case of counting the text words, the title, the abstract and the keywords are excluded.

QUOTATIONS Quotations included in the text must follow the format Author (capital letter only in the first letter of de author’s surname - even when it is in parentheses), date. Specific cases: a Literal quotations of up to three lines: enclosed by quotation marks, with no italics (Author, date, p.xx with no space between the dot and the number). Full stop after the parentheses. b Literal quotations of more than three lines: in a paragraph detached from the text (two enter before and after the quotation), without quotation marks, without italics. Right after, in parentheses: (Author’s surname, date, page). Note: in quotations, the parentheses are used only to indicate authorship. To indicate quotation fragment, use square brackets: […] encontramos algumas falhas no sistema […] quando relemos o manuscrito mas nada podia ser feito […]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Many authors cited in sequence: from the most recent to the oldest, separated by semi-colon: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Texts with two authors: Almeida and Binder, 2004 (in the text body); Almeida, Binder, 2004 (in the parentheses). e Texts with three authors: Levanthal, Singer and Jones (in the text body); Levanthal, Singer, Jones (in the parentheses). f Texts with more than three authors: Guérin et al., 2004 (in or out of the parentheses). g Documents by the same author published in the same year: add small letters, in alphabetical order, after the date, without space (Campos, 1987a, 1987b).

SUBMITING ORIGINALS

BOOKS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. *Only the title should be highlighted in boldface; do not highlilight the subtitle. ** Do not indicate the numbers of pages. *** Two or more references of the same author (they may be a book and an article): if they are on the same page,

INTERFACE - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for publication. Translations of texts published in another language will not be accepted.

REFERENCES All authors quoted in the text must be listed at the end of the text, in alphabetical order and in compliance with adjusted ABNT standards (NBR 6023/2002), as showed in the following examples:

instructions for authors

PROJECT AND EDITORIAL POLICY


instructions for authors

indicate with a dash from the second article/book onwards (six continuous underscores). If they are not on the same page, the author’s name must be repeated. If it is the same author, but with collaborators, do not use the dash. Ex.: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Two or three authors must be separated by semicolons; more than three authors: the first author must be indicated, followed by the expression et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) BOOK CHAPTERS: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. *Only the title of the book should be highlighted in boldface. ** The initial and final pages of the chapter must be indicated at the end of the reference. Specific rules: 1 The book’s author is the same as the chapter’s author: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.) Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997, p.19-28. 2 The book’s author is different from the chapter’s author: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 The author is an entity: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Series and collections: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. 20p. (Visão do Futuro, v.1). ARTICLES FROM JOURNALS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The pages on which the article was published must be indicated after the volume and number. Note: it is necessary to observe the correct citation of papers published by Interface – Comunicação, Saúde, Educação: Interface (Botucatu), as is indicated by the ABNT (Technical Rules Brasilian Association).

THESES AND DISERTATIONS: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. ARTICLES FROM EVENTS PROCEDINGS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. *Only the word Anais should be highlighted in boldface. ** When the work is consulted online, the electronic address must be mentioned: Available from:<...>. Access on (day, month, year). *** When the work is consulted in printed material, the initial and final pages must be mentioned. ELECTRONIC DOCUMENTS: WAGNER, C.D.; PERSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Available from: <http://www. probe.br/science.html>. Access on: Jun 20. 1999. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The authors must verify if the electronic addresses (URL) cited in the text are still active. Note: if the reference includes the DOI, it must be maintained. Only in this case (when the quotation is extracted from SciELO, the DOI is always mentioned; in other cases, not always). ILLUSTRATIONS: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 200 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, in shades of gray, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Submissions must be made online at: http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will be submitted to a preliminary evaluation by the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed by peers (two reviewers at least). It will be returned to the author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). Publication of the article implies that the copyrights are fully transferred to Interface - Communication, Health, Education. The partial or entire reproduction of the published texts is prohibited without prior authorization from the publishers. The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers.





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