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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa. EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Margareth Santini de Almeida, Unesp Túlio Batista Franco, UFF Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Eunice Nakamura, Unifesp Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Márcia Thereza Couto Falcão, USP Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ EDITORAS DE CRIAÇÃO /CREATION EDITORS/EDITORAS DE CREACIÓN Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Mariângela Quarentei Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Renata Monteiro Buelau, USP

P ES M FA

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE Antonio Fausto Neto, Unisinos António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elen Rose Lodeiro Castanheira, Unesp Eliane Dias de Castro, USP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Jairnilson da Silva Paim, UFBa José Carlos Libâneo, UCG José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Luis Behares,Universidad de la Republica Uruguaia Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Mara Regina Lemes de Sordi, Unicamp Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Marilia Freitas de Campos Tozoni Reis, Unesp Marina Peduzzi, USP Miguel Montagner, UnB Marli Elisa Dalmaso Afonso D’André, PUCSP Nildo Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Fabrino Mendonça, UFMG Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Passos Nogueira, IPEA, DF Roger Ruiz-Moral, Universidade de Córdoba, Espanha Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Vânia Moreno, Unesp PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Mariângela Quarentei, Unesp Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro Capa/Cover/Portada: Isabela Umbuzeiro Valent, Berlim, 2011 (foto frente); Rio de Janeiro, 2012 (foto verso)


COMUNICAÇÃO

AUTISM O

SAÚDE

PAISAGENS

CUID ADO

BEBÊ

LITERATURA

PRODUTIVIDADE BIOÉTICA

POVO INDÍGENA

EXPERIÊNCIA

PARTO

DIÁRIOS

E AD D I OS I LIG RE

DE IDA L A MIN TER SAÚDE DA FAMÍLIA DIÁLOGO

INTERFACE

EDUCAÇÃO

GENOGRAMA

ALIMENTAÇÃO

ISSN 1414-3283

IDENTIDADES SOMÁTICAS

JUVENTUDE

GRODDECK

SEXUALIDADE COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, jan./mar. 2013


Interface - comunicação, saúde, educação/ UNESP, v.17, n.44, jan./mar. 2013 Botucatu, SP: UNESP Trimestral ISSN 1414-3283 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I UNESP Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

educação

v.17, n.44, jan./mar. 2013 ISSN 1414-3283

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apresentação artigos

9 A originalidade da obra de Georg Groddeck e algumas de suas contribuições para o campo da saúde

145 No rastro do que transtorna o corpo e desregra o comer: os sentidos do descontrole de si e das “compulsões alimentares”

Mônica de Oliveira Nunes; Liliane de Jesus Bittencourt

159 Atuação profissional no âmbito da segurança alimentar e nutricional na perspectiva de coordenadores de cursos de graduação em Nutrição Viviane Laudelino Vieira; Natália Utikava; Ana Maria Cervato-Mancuso

Lucas Nápoli dos Santos; André Martins

23 Ortotanásia: uma decisão frente à terminalidade

Kilda Mara Sanchez y Sanches; Eliane Maria Fleury Seidl

35 Por uma clínica infinitamente minúscula: o que pode o corpo em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal

Luciana Rodriguez Barone; Tania Mara Galli Fonseca

49 Dilemas antropológicos de uma agenda de saúde pública: Programa Rede Cegonha, pessoalidade e pluralidade

171 A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o Laboratório de Humanidades da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo

Yuri Bittar; Maria Sharmila Alina de Sousa; Dante Marcello Claramonte Gallian

187 A formação médica em debate: perspectivas a partir do encontro entre instituição de ensino e rede pública de saúde

Bruno Mariani de Souza Azevedo; Sabrina Ferigato; Tadeu de Paula Souza; Sergio Resende Carvalho

Rosamaria Giatti Carneiro

61 A visita domiciliar na Estratégia de Saúde da Família: os desafios de se mover no território Marcela Silva da Cunha; Marilene de Castilho Sá

75 Estratégia Saúde da Família e Saúde do Trabalhador: um diálogo possível?

espaço aberto 201 A experiência dos diários reflexivos no processo formativo de uma Residência Multiprofissonal em Saúde da Família

Filipe Guterres Venancio Costa de Oliveira; Maria Alice Pessanha de Carvalho; Margareth Rose Gomes Garcia; Simone Santos Oliveira

Francisco Antonio de Castro Lacaz; Andrea Trapé; Cássia Baldini Soares; Ana Paula Lopes dos Santos

89 Análise da comunicação acerca da sexualidade, estabelecida pelas enfermeiras, com pacientes no contexto assistencial do câncer de mama

Lilian Cláudia Ulian Junqueira; Elisabeth Meloni Vieira; Alain Giami; Manoel Antônio dos Santos

103 Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a promoção da saúde e de direitos sexuais Cristiane Gonçalves da Silva; Vera Paiva; Richard Parker

119 A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira

Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli; Lilian Kozslowski Meierhoffer; Celita Almeida Rosário; Clarissa Freitas de Almeida; Bárbara Fonseca da Costa Caldeira de Andrada; Beatriz da Silva Chagas; Clara Feldman

133 Adolescentes como sujeitos de pesquisa: a utilização do genograma como apoio para a história de vida Mariana Gomes Cardim; Martha Cristina Nunes Moreira

211 Uma reflexão sobre os múltiplos sentidos da docência em saúde Gilson Saippa Oliveira; Lilian Koifman

219 Educação popular em saúde com o povo indígena Xukuru do Ororubá

Juliana Santos Siebra Brito; Paulette Cavalcanti de Albuquerque; Edson Hely Silva

229

livros

233

teses criação

235 Assim é, se lhe parece: “em-cena-ação” científica num país fictício em tempos de publicar ou perecer... mas bem que poderia ser no Brasil

Murilo Mariano Vilaça; Isabella Lopes Pederneira

243 SIGHTSEEING - paisagens arquivadas Isabela Umbuzeiro Valent


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presentation articles

9 The originality of Georg Groddeck’s works and some of his contributions to the field of healthcare Lucas Nápoli dos Santos; André Martins

145 Tracking what troubles the body and upsets eating: the meanings of loss of self-control and “eating compulsions” Mônica de Oliveira Nunes; Liliane de Jesus Bittencourt

159 Professional practice relating to food and nutritional security from the perspective of coordinators of undergraduate nutrition courses Viviane Laudelino Vieira; Natália Utikava; Ana Maria Cervato-Mancuso

23 Orthothanasia: a decision upon facing terminality

Kilda Mara Sanchez y Sanches; Eliane Maria Fleury Seidl

35 Towards clinical care for infinitely tiny babies: what the body is capable of in a Neonatal Intensive Care Unit

171 Esthetic experiencing of literature as a means for humanization of healthcare: the Humanities Laboratory at São Paulo Medical School, Federal University of São Paulo Yuri Bittar; Maria Sharmila Alina de Sousa; Dante Marcello Claramonte Gallian

Luciana Rodriguez Barone; Tania Mara Galli Fonseca

49 Anthropological dilemmas of a public health agenda: Rede Cegonha program, individuality and plurality Rosamaria Giatti Carneiro

187 Medical education under debate: perspectives from the intersection of teaching institutions and the public healthcare system

Bruno Mariani de Souza Azevedo; Sabrina Ferigato; Tadeu de Paula Souza; Sergio Resende Carvalho

61 Home visits within the Family Health Strategy (Estratégia de Saúde da Familia - ESF): the challenges of moving into the territory

Marcela Silva da Cunha; Marilene de Castilho Sá

open space

75 Family Health Strategy and Workers’ Health: is a dialogue possible?

201 The experience of reflective diaries in the training process of Multiprofessional Residence in Family Healthcare

89 Analysis on nurses’ communication relating to sexuality to patients in the context of breast cancer care

211 A reflection on the multiple senses of healthcare teaching

Francisco Antonio de Castro Lacaz; Andrea Trapé; Cássia Baldini Soares; Ana Paula Lopes dos Santos

Lilian Cláudia Ulian Junqueira; Elisabeth Meloni Vieira; Alain Giami; Manoel Antônio dos Santos

103 Religious youth and homosexuality: challenges for promotion of health and sexual rights

Filipe Guterres Venancio Costa de Oliveira; Maria Alice Pessanha de Carvalho; Margareth Rose Gomes Garcia; Simone Santos Oliveira

Gilson Saippa Oliveira; Lilian Koifman

219 Popular health education with the Xukuru do Ororubá indigenous people

Juliana Santos Siebra Brito; Paulette Cavalcanti de Albuquerque; Edson Hely Silva

Cristiane Gonçalves da Silva; Vera Paiva; Richard Parker

119 The construction of the diagnosis of autism in a Brazilian virtual community

Francisco Ortega; Rafaela Zorzanelli; Lilian Kozslowski Meierhoffer; Celita Almeida Rosário; Clarissa Freitas de Almeida; Bárbara Fonseca da Costa Caldeira de Andrada; Beatriz da Silva Chagas; Clara Feldman

133 Adolescents as research subjects: use of genograms as support for life history

Mariana Gomes Cardim; Martha Cristina Nunes Moreira

229

books

233

theses creation

235 It is like this, it may seem to you: scientific scenario in a fictitious country in times of “publish or perish”... But it could well be in Brazil Murilo Mariano Vilaça; Isabella Lopes Pederneira

243 SIGHTSEEING - stored landscapes Isabela Umbuzeiro Valent


apresentação Interface: um projeto em movimento Iniciamos 2013 fazendo um balanço parcial do que anunciávamos, há um ano, como metas deste periódico para o biênio 2012-2013. O novo sítio da Interface na web já “está no ar” <www.interface.org.br>, permitindo acesso à versão fac-símile à impressa de cada fascículo publicado, que pode ser folheada na tela ou lida no tablet. Nossa página está também integrada às redes sociais – Facebook, Twitter e Blog – recém-criadas para implementar a comunicação da revista com leitores e colaboradores. É possível, ainda, navegar em algumas seções da Interface - Dossiê, Debates, Entrevistas e Criação – explorando o que foi publicado ao longo destes 16 anos. O novo design é a expressão do esforço da equipe editorial de Interface, desde seu projeto original, de abrir espaço para outras formas de expressão com maior liberdade formal e diálogo com as artes de um modo geral. Outra mudança implementada refere-se ao uso, desde o início deste ano, de um novo sistema de gerenciamento editorial online o ScholarOne, da Thomson Reuters, mediante parceria oferecida pela Biblioteca SciELO Brasil, como parte de seus relevantes esforços de qualificação do processo editorial dos periódicos brasileiros. Nele, a submissão de manuscritos e os procedimentos para avaliação de mérito científico são bem mais simples e esperamos reduzir o tempo requerido de nossos colaboradores e tornar mais ágil o gerenciamento online dos editores. Atualmente, um dos maiores desafios dos editores de periódicos científicos brasileiros (depois do financiamento) é receber, do avaliador ad hoc, um parecer de qualidade e em tempo hábil. Com o ScholarOne os editores terão ferramentas para buscarem revisores entre os autores ativos, prática muito utilizada por periódicos internacionais, bem como para a produção de relatórios para a análise das diferentes etapas do processo de avaliação do mérito científico. O uso do sistema SciELO Submission para novas submissões foi encerrado em novembro de 2012 e será utilizado pela revista até a conclusão dos processos em andamento. Por fim, mas não menos importante, decidimos encerrar a publicação da Interface em sua versão impressa em papel, a partir deste fascículo, disponibilizando em seu lugar, a mesma versão em formato digital, com opção de download para leitura em tablet. Esta deliberação, fruto de debate interno e do reconhecimento da tendência atual dos periódicos científicos pela adoção de

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versão eletrônica, visa reduzir custos que serão aplicados em outra de nossas metas para este biênio: a ampliação do número de artigos publicados em língua inglesa. Com isto esperamos alcançar maior difusão internacional do que é publicado na Interface, contribuindo com o esforço de nossa comunidade científica de ampliar o debate sobre nossa produção. Com muitas mudanças anunciadas para 2013, convidamos nossos colaboradores a participarem dos suplementos temáticos propostos: “A educação popular em saúde no Sistema Único de Saúde” (parceria com a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde - SGEP/MS) e “Apoio Institucional” (parceria com a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no Sistema Único de Saúde do Ministério da Saúde -PNH/MS). As submissões estão abertas até 30 de abril. Mais informações em nosso Blog: <http://revistainterface.blogspot.com.br/ 2013/02/suplemento-educacao-popular-em-saude-no.html> e http://revistainterface.blogspot.com.br/2013/02/suplemento-apoioinstitucional.html.

Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Foresti Editores

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editorial Interface: a project moving ahead We begin 2013 by making a partial review of what we announced a year ago as the targets for this periodical for the two-year period 2012-2013. The new website for Interface has now gone “live”, at <www.interface.org.br>, and allows access to a facsimile version of each printed published issue, which can be browed on the screen and read on a tablet. Our web page is also integrated with the social networks (Facebook, Twitter e Blog), and this has been recently created in order to implement communication between the journal and its readers and collaborators. It is also possible to navigate through some sections of Interface (Dossier, Debates, Interviews and Creation) and to explore what has been published over these 16 years. The new design expresses the efforts of the editorial team of Interface, since its original project, to open up space for other forms of expression, with greater formal freedom for dialogue with the arts in a general manner. Another change that has been implemented relates to our use, since the beginning of this year, of a new online editorial management system: ScholarOne, provided by Thomson Reuters through a partnership that was made available through the Brazilian SciELO Library, as part of this important efforts to qualify the editorial process of Brazilian journals. In this, manuscript submission and the procedures for assessing the scientific merit are much simpler. We expect to reduce the time required by our collaborators and to make the editors’ online management speedier. Currently, one of the biggest challenges for editors of Brazilian scientific periodicals (after funding) is to be able to receive timely quality reports from their ad hoc reviewers. Through ScholarOne, the editors will have tools to look for reviewers from among active authors, a practice that is much used by international periodicals, as well as for producing reports in order to analyze the different stages of the process of assessing scientific merit. Use of the SciELO submission system for new submissions was terminated in November 2012 and will now only be used by this journal until all the processes in program have been concluded. Lastly, but no less important, we have decided to terminate publication of Interface in its version printed on paper, starting with this issue. In its place, we are making the same version available in digital format, with the option of downloading it to be read on a tablet. This decision, which has emerged from

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internal debate and from recognition of the current trend for scientific periodicals to start using electronic versions, has the aim of reducing costs so that funds can be applied to another of our targets for this two-year period: expansion of the number of articles published in the English language. Through this, we hope to achieve greater international dissemination of what is published in Interface, thereby contributing towards the efforts of our scientific community to broaden the debate about our production. With many changes announced for 2013, we invite our collaborators to participate in the thematic supplements that we are proposing: “Popular health education within the Brazilian National Health System” (in partnership with the Department of Strategic and Participative Management of the Ministry of Health, SGEP/MS) and “Institutional Support” (in partnership with the National Policy for Humanization of Care and Management within the Brazilian National Health System, of the Ministry of Health, PNH/MS). Submissions can be made up to April 30, 2013. Further information in our blog: <http://revistainterface.blogspot.com.br/2013/02/suplemento-educacao-popular-em-saude-no.html> and <http://revistainterface.blogspot.com.br/2013/02/suplemento-apoio-institucional.html>.

Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Foresti Editors

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artigos

A originalidade da obra de Georg Groddeck e algumas de suas contribuições para o campo da saúde* Lucas Nápoli dos Santos1 André Martins2

SANTOS, L.N.; MARTINS, A. The originality of Georg Groddeck’s works and some of his contributions to the field of healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.9-21, jan./mar. 2013. This article aimed to present some ideas about medicine, disease, health and healing extracted from the works of the physician and psychoanalyst Georg Groddeck (1866-1934). The hypothesis that guided this study was that these propositions could actively contribute towards the contemporary discussion about the limits of biomedicine and the need to reformulate the Western healthcare model. First, we analyzed the historical and philosophical origins of biomedicine and some of the dilemmas faced by users and healthcare professionals caused by the predominance of biomedical rationality. Then, some light is shed on Groddeck’s life and work, culminating with presentation of four important contributions from this author, assessed in the light of the biomedical limits.

Keywords: Georg Groddeck. Disease. Health. Biomedicine.

Este artigo tem o objetivo de apresentar algumas ideias sobre medicina, doença, saúde e cura extraídas da obra do médico e psicanalista Georg Groddeck (18661934). A hipótese que norteia o trabalho é de que tais proposições podem contribuir ativamente para a discussão contemporânea sobre os limites da biomedicina e a necessidade de reformulação do modelo de cuidado em saúde ocidental. Primeiramente, são analisadas as origens históricas e filosóficas da biomedicina e alguns dos impasses enfrentados por usuários e profissionais de saúde em função do predomínio da racionalidade biomédica. Em seguida, são tecidas algumas considerações sobre a vida e a obra de Groddeck, culminando na apresentação de quatro importantes contribuições do autor avaliadas à luz dos limites biomédicos.

Palavras-chave: Georg Groddeck. Doença. Saúde. Biomedicina.

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Elaborado com base em Santos (2012). 1 Faculdade Pitágoras de Governador Valadares. Avenida Minas Gerais, 700, sala 711, Centro. Governador Valadares, MG, Brasil. 35.010-151. lucas.napoli@ig.com.br 2 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. *

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A ORIGINALIDADE DA OBRA DE GEORG GRODDECK ...

Introdução Recentemente, tem sido possível encontrar um número expressivo de trabalhos na literatura do campo da saúde que se dedicam a apontar as limitações do que tem sido chamado de biomedicina ou modelo biomédico. Uma amostra ilustrativa dessa produção bibliográfica é constituída por: Queiroz (1986), Camargo Júnior (1997), Bonet (1999), Caprara e Franco (1999), Martins (2004; 1999), Ayres (2001), Barros (2002), Caprara e Rodrigues (2004), Wade e Halligan (2004), Guedes, Nogueira e Camargo Júnior (2009, 2008, 2006) e Tesser (2009; 2007; 2006a; 2006b). É possível notar, nesses trabalhos, certo consenso de que o modelo biomédico precisa ser modificado, na medida em que as ações de assistência à saúde que dele decorrem têm provocado muito mais efeitos deletérios do que vantajosos tanto para os usuários dos serviços de saúde quanto para os próprios profissionais. Podemos caracterizar como biomedicina o conjunto de diretrizes teóricas e práticas que orientam a formação médica moderna no ocidente e que, por conseguinte, guiam a prática não só dos médicos, mas, também, da maior parte dos profissionais de saúde. No que concerne às origens históricas e conceituais da biomedicina, pode-se dizer que ela foi gestada a partir dos princípios teórico-metodológicos que fundamentaram a chamada racionalidade científica moderna (Martins, 1999; Luz, 1988; Camargo Júnior, 1997). É precisamente a tese de que há uma separação radical entre homem e natureza, e seus postulados correlatos, que estão no fundamento da racionalidade científica moderna e, por conseguinte, também da biomedicina. Essa separação é feita no plano conceitual a fim de sustentar ideologicamente a legitimidade de um objetivo de ordem prática: o controle absoluto da natureza. Em outras palavras, só é possível pensar como viável e lícito o desejo de estabelecer domínio sobre a natureza negando-se deliberadamente o fato de que o homem está essencialmente inserido nela (Martins 1999; 2009). A racionalidade científica moderna está calcada, portanto, no pressuposto de que não apenas é desejável como, também, possível controlar absolutamente a natureza. Possível na medida em que a razão humana, pela via da ciência, seria capaz de refletir a verdade da natureza. Os métodos e conceitos utilizados pela ciência não seriam apenas suportes capazes de auxiliar-nos a alcançar o conhecimento da realidade, mas verdadeiros espelhos da natureza. Trata-se, como hoje nos parece evidente, de uma concepção reducionista que advoga que toda a complexidade existente na natureza é passível de ser reduzida aos modelos de compreensão elaborados pela ciência (Martins, 2009; 1999). O reducionismo que, é bom que se diga, não é um atributo da ciência, mas do cientificismo, isto é, de uma ideologia científica destinada a justificar a pretensão de controle absoluto da natureza (Martins, 2009), é um traço que se encontra presente com bastante força na biomedicina. Afinal, uma característica marcante dessa racionalidade médica é o repúdio a outros tipos de abordagem dos processos saúde-doença, por considerá-los falsos na medida em que não estão fundamentados em pesquisas com o uso dos métodos tradicionais da ciência positivista. Outra característica da biomedicina que demonstra quanto a ideologia cientificista se faz presente nessa racionalidade é a sustentação da tese de que a medicina, para ser considerada uma prática legítima, deve, necessariamente, ser concebida como uma ciência, e não como uma arte ou uma práxis. Afinal, para a racionalidade científica moderna, o único conhecimento válido é o saber do universal, e não do particular; as únicas conclusões verdadeiras seriam as que pudessem ser generalizadas para todos os elementos de um mesmo universo (Martins, 1999). Quando essa ideia é levada para o campo da saúde, ela coloca em jogo sérios impasses, pois conquanto seja possível estabelecer, no plano da teoria, uma ciência das doenças, concebendo as enfermidades como entidades patológicas organizadas em famílias e gêneros, na dimensão prática essa sistematização se revela absolutamente estéril. Não obstante, ainda que nem sempre isso ocorra na prática, a pretensão da biomedicina é justamente essa: estabelecer protocolos padrões para o tratamento de cada tipo de enfermidade. Como mencionamos anteriormente, na biomedicina, as doenças não são consideradas como processos ou experiências, mas, sim, como entidades patológicas (Camargo Júnior, 1997). Ao conceber a patologia dessa forma, a biomedicina acaba promovendo uma separação entre a doença e a história de

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SANTOS, L.N.; MARTINS, A.

artigos

vida do paciente. Privilegia-se a chamada história natural da doença, a qual é justamente uma tentativa de estabelecer um conhecimento universal sobre a enfermidade. A história natural da doença consiste em um modelo teórico proposto por Leavell e Clark, que pretende dar conta de todos os processos que se manifestam ao longo da trajetória de uma doença, indo desde as condições ambientais responsáveis pelo surgimento da patologia, passando pelos períodos de agravamento e convalescença, e desembocando nos destinos finais do processo de adoecimento que, de acordo com o modelo, podem ser: a recuperação, a cronificação da doença, a invalidez ou a morte (Leavell, Clark, 1976). Essa concepção, que vê a doença como entidade dissociada da biografia individual, está intimamente associada com outro aspecto da biomedicina, que é a exclusão da subjetividade na análise dos processos saúde-doença (Guedes, Nogueira, Camargo Júnior, 2006). Com o termo “subjetividade” não estamos fazendo referência apenas aos chamados fenômenos psicológicos ou variáveis emocionais. Aqui, entendemos subjetividade como o conjunto de processos afetivos, psicológicos, sociais, históricos, políticos que interagem entre si tendo um ponto comum: uma pessoa, um sujeito que, embora seja propriamente constituído por tais processos, é capaz de reagir a eles, dar-lhes sentido e organizá-los na forma de uma história de vida. É toda essa complexidade que é sistematicamente escamoteada pelo modelo biomédico, na medida em que o adoecimento é pensado como um evento apenas orgânico ou, no máximo, como uma disfunção corporal influenciada por fatores “emocionais”, os quais, em última instância, podem ser reduzidos a variáveis orgânicas. Essa ênfase nos índices e sinais orgânicos da doença caracteriza o que nos autorizamos a assinalar como o reducionismo por excelência da biomedicina: o reducionismo organicista. Trata-se de um ponto de vista sobre a doença profundamente influenciado pela criação, em meados do século XIX, da disciplina anatomia patológica, que se distinguia por estudos comparativos entre a evolução e os sintomas das enfermidades e lesões encontradas no corpo do doente. O advento da anatomia patológica operou uma transformação radical na compreensão da doença. Se anteriormente a medicina das espécies destacava os sintomas como os signos suficientes para determinar qual entidade patológica estava em jogo e a qual família e gênero ela estaria vinculada, com a entrada em cena dos dados anatômicos, o corpo passa a ser tomado como a sede onde se encontra a verdade da doença (Foucault, 2008). Posteriormente, com a invenção dos diversos métodos de exame por imagem, o sentido da visão ganharia ainda mais prestígio no campo da saúde. Por conta disso, o discurso do doente passaria a ter um valor bastante reduzido no modelo biomédico. O que geralmente se leva em conta como fundamento para a elaboração do diagnóstico é aquilo que os exames são capazes de evidenciar. Nesse sentido, os dados anatomofisiológicos acabam funcionando como os únicos critérios definitivos para determinar não apenas o diagnóstico, mas, até mesmo, se o indivíduo está de fato doente. Diante desse panorama de problemas, impasses e limitações do paradigma biomédico, consideramos que não é suficiente apenas indicar e defender a necessidade de transformação. É preciso, efetivamente, apontar possíveis soluções ou, no mínimo, propostas que sejam capazes de contribuir para a elaboração de um novo paradigma para o cuidado em saúde. Nossa hipótese aqui é a de que, na obra do médico e psicanalista Georg Groddeck (1866-1934), é possível encontrar contribuições dessa natureza. Contudo, antes de analisarmos quais seriam tais proposições, falemos um pouco acerca do autor.

Quem foi Georg Groddeck? Georg Walther Groddeck nasceu em 13 de outubro de 1866, na cidade alemã de Bad Kösen. Por influência do pai, que também era médico, e por contingências de sua vida infantil, Groddeck seguiria a carreira médica, especializando-se no tratamento de doenças crônicas. Em 1900, funda um sanatório na cidade de Baden-Baden, onde trabalharia até o fim da vida. Groddeck fica relativamente conhecido no meio médico e psicanalítico a partir do final da década de 1910, quando inicia sua correspondência com Sigmund Freud e adere ao movimento psicanalítico. Quatro anos antes de escrever sua primeira carta a Freud, Groddeck havia publicado o livro

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“NASAMECU”, título formado a partir das sílabas iniciais do ditado latino “Natura sanat medicus curat” (“A natureza cura, o médico trata”), adágio defendido como princípio de prática médica por seu mestre em medicina, Ernst Schweninger. Nesse livro, que é uma espécie de tratado geral sobre medicina para uso leigo, Groddeck tece agudas críticas à psicanálise sem verdadeiramente, no entanto, ter lido os textos de Freud. Reconhecendo tal injustiça, na primeira carta ao pai da psicanálise, Groddeck relata as descobertas a que teve acesso no tratamento de pacientes com doenças orgânicas, achados que são bastante semelhantes aos que o próprio Freud obtivera a partir do tratamento da neurose. Com efeito, Groddeck notara que os sintomas de seus pacientes podiam ser lidos e interpretados como símbolos de uma dinâmica subjetiva. Ora, Freud tivera contato com experiência análoga. A diferença estava no fato de que os pacientes que Groddeck atendia sofriam de patologias somáticas, e não psíquicas como a histeria, a fobia e a neurose obsessiva – quadros clínicos mais frequentes na clínica freudiana (Groddeck, 1994). A novidade trazida por Groddeck a Freud era, portanto, a extensão da psicanálise para outros territórios além da neurose. De fato, como atestam os inúmeros exemplos relatados por Groddeck em suas cartas a Freud e em seus artigos, o médico de Baden-Baden obtinha êxito no tratamento de seus pacientes utilizando o método psicanalítico. Freud manifestara-se explicitamente entusiasmado com as pesquisas de Groddeck e lhe autorizara a considerar-se psicanalista, criticando apenas o ponto de vista filosófico de Groddeck a respeito das relações entre corpo e mente. Com efeito, Groddeck afirmara, na primeira carta, que não considerava que haveria uma separação entre corpo e psiquismo, mas que ambos seriam facetas de um mesmo todo. Freud considerara tal concepção um tanto quanto carregada de misticismo (Groddeck, 1994). Ao propor a aplicação da psicanálise no tratamento de doenças orgânicas e o entendimento simbólico dos sintomas somáticos, Groddeck passou a ser considerado como um dos fundadores da chamada “medicina psicossomática”, embora o próprio autor tenha se esquivado de tal epíteto argumentando que, do seu ponto de vista, não haveria “psicogênese”, ou seja, não se trataria de pensar a doença orgânica como sendo causada por elementos de ordem psicológica. Para Groddeck, não haveria a ação de uma instância sobre a outra. Ambos, psiquismo e corpo se enfermariam ao mesmo tempo, e é essa condição que permitiria que o adoecimento pudesse ser lido simbolicamente: o fato de que qualquer doença estaria inevitavelmente conectada à vida como um todo. Outro ponto que levou Groddeck a adquirir algum destaque no campo psicanalítico foi o fato de ter sido o criador do conceito de Isso (em alemão: das Es), que Freud passaria a utilizar a partir do início da década de 1920 em sua segunda tópica. Embora o próprio Freud tivesse indicado brevemente, em “O Ego e o Id”, obra em que introduz os elementos da segunda tópica, que passara a utilizar o conceito por influência de Groddeck, ainda há muitos analistas que ignoram a precedência do médico de Baden-Baden quanto ao uso do termo3. Apesar de Freud ter sido influenciado por Groddeck na adoção do termo “das Es”, o “id” freudiano é essencialmente distinto do “Isso” groddeckiano. Enquanto Freud caracteriza o primeiro como a parte mais primitiva do aparelho psíquico, sede das pulsões, o conceito de Isso em Groddeck recebe uma caracterização muito mais ampla. Groddeck utiliza o termo “Isso” como um conceito capaz de abarcar tanto a força impessoal, que não conhece fronteiras espaço-temporais e que produz o indivíduo, quanto o próprio indivíduo em sua constituição psicossomática. Atualmente, não são muitos os artigos que se dedicam a explorar exclusivamente o pensamento groddeckiano, sobretudo no Brasil. Em 1995, Elida 12

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3 O termo “das Es” designa, na língua alemã, um pronome impessoal. A “Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud” traduziu o termo pelo vocábulo latino equivalente: “id”. Não obstante, em todas as traduções dos textos de Groddeck publicadas no Brasil, utiliza-se o termo Isso em vez de id. Do nosso ponto de vista, tal opção é a mais adequada, pois, além de ser uma tradução direta do alemão para o português, as associações semânticas do termo Isso tendem a levar às ideias de algo indiferenciado, enigmático, desconhecido, justamente alguns dos atributos com os quais Groddeck caracteriza o conceito.


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artigos

Singelmann cotejou os pensamentos de Groddeck e Freud, demonstrando as divergências epistemológicas entre os dois autores e apontando a maior proximidade das ideias de Groddeck em relação ao modelo contemporâneo de ciência, marcado, segundo a autora, pela teoria da complexidade (Singelmann, 1995). Entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, Lazslo Antônio Ávila publicou uma série de trabalhos que abordavam especificamente a obra de Georg Groddeck. Em tais escritos, Ávila comentou a obra-prima do autor, “O Livro dIsso” (Ávila, 1998); fez uma comparação entre o conceito de Isso em Groddeck e a noção de inconsciente em Freud (Ávila, 1999); demonstrou a relevância dos pontos de vista do autor para a psicossomática psicanalítica (Ávila, 2002); e fez uma espécie de “vida e obra” do autor em um artigo escrito em língua inglesa (Ávila 2003). Recentemente, em 2011, Ávila publicou um novo artigo em língua inglesa em que avalia os resultados de algumas intervenções no campo da saúde baseadas nas ideias de Groddeck (Ávila, 2011). Nesse trabalho, Ávila analisa a eficácia de uma abordagem groddeckiana em dois casos clínicos de pacientes com padecimentos orgânicos. Em ambos os casos, Ávila demonstra a necessária articulação entre os sintomas orgânicos e aspectos da subjetividade e, em decorrência, a insuficiência de uma terapêutica estritamente centrada na fisiopatologia e que não contempla fatores como a transferência na relação médico-paciente, bem como o significado e os usos que o paciente pode vir a fazer da doença em sua história de vida. Podemos considerar que, nesse artigo, Ávila fornece sustentação empírica para os postulados groddeckianos que serão objeto de discussão neste trabalho. É possível, também, encontrar trabalhos que, embora não tenham a obra de Groddeck como temática central, fazem algumas referências mais ou menos detalhadas ao pensamento do autor. Souza (1997) utilizou o ponto de vista de Groddeck em relação às doenças para sustentar sua tese de que o aparelho psíquico freudiano seria, de fato, um aparelho psicossomático. Birman (2003), em um artigo em que discutiu a frequência com que sintomas corporais têm-se feito presentes na clínica contemporânea, reconheceu o pioneirismo de Groddeck na aplicação da psicanálise às doenças orgânicas. Casetto (2006), ao traçar uma visão em perspectiva da psicossomática psicanalítica, abordou de maneira sucinta as ideias de Groddeck, comparando-as com o ponto de vista de outros autores. Já Castro, Andrade e Müller (2006) mencionaram o nome de Groddeck em alguns momentos de um trabalho dedicado à análise da evolução histórica dos conceitos de saúde/doença e da dicotomia mente/corpo. Cruz e Pereira Júnior (2011), em uma revisão das principais abordagens teóricas em Psicossomática, fizeram referência à concepção de Groddeck acerca das doenças, fornecendo, contudo, uma caracterização um tanto esquemática e superficial dos pontos de vista do autor. É possível observar, a partir desse breve apanhado da literatura, que o pensamento groddeckiano tem sido utilizado crescentemente na composição de trabalhos cujo foco central recai sobre temas como psicossomática, clínica contemporânea e relação mente-corpo. Constata-se, contudo, que ainda há muito o que desenvolver a respeito dos estudos groddeckianos, seus conceitos e sua relevância para a área da saúde contemporânea. Já a pouca atenção dada à obra do autor por parte dos meios médico e psicanalítico pode estar associada ao fato de Groddeck não ter efetivamente feito parte da comunidade psicanalítica. A originalidade e o desejo do autor de se diferenciar fizeram com que ele não se preocupasse em seguir a ortodoxia psicanalítica. Para Groddeck, a psicanálise era apenas mais um recurso a ser agregado a seu material terapêutico. Renunciando, portanto, ao destaque no interior do território psicanalítico, o médico se contentava em publicar a maior parte de seus artigos no periódico “Die Arche” (A Arca), que circulava apenas entre seus pacientes no sanatório.

O doente, e não a doença, é o verdadeiro objeto do tratamento médico Fizemos referência, anteriormente, ao fato de que, no paradigma biomédico, a medicina é vista como ciência e, por conta disso, a doença adquire preeminência em relação ao doente ao olhar do profissional de saúde. Afinal, se se trata de uma atividade científica, tal como a concebe a racionalidade científica moderna, é preciso reduzir a complexidade da experiência do doente à forma límpida da classificação nosológica: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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[...] a pessoa doente, traduzida no modo de pensar científico, metamorfoseia-se na doença. Há aí um sutil e importante processo, ao mesmo tempo epistemológico e de crucial importância ética: a tradução científica da pessoa doente a transforma em alguém portador de uma doença, para, em seguida, começar a desfocar da primeira (a pessoa) para focalizar na segunda (a doença), que cresce em importância e ameaça monopolizar a atenção, como objeto do trabalho médico. (Tesser, 2007, p.468)

Mesmo antes de conhecer a psicanálise, quando ainda escrevia apenas sobre medicina, Groddeck já se posicionava veementemente contra a tendência, que já era possível ser encontrada entre seus colegas de profissão, de ênfase na doença, e não no doente. Groddeck argumenta, seguindo as consequências dessa asserção, que a tendência a valorizar o que o paciente tem, e não como o paciente está, faz do profissional de saúde um especialista na descrição de sintomatologias e quadros clínicos, mas não alguém que, de fato, é capaz de ajudar a restauração da força do enfermo – a verdadeira função da atividade médica para o autor. Numa carta escrita a um professor de medicina de Berlim, por volta de 1895, Groddeck localiza esse problema como tendo origem na formação médica: A ciência que lá [na Universidade] se ensina não conhece doentes, somente grupos de doenças. Não conhece o indivíduo, conhece apenas casos. Não sabe nada de diagnóstico pessoal, ensina o diagnóstico em palavras, nomes de doenças. Nada suspeita de tratamento individualizador do ser humano, mas ensina o remédio contra as doenças. Ela ensina erudição, mas nenhum saber-fazer. (Groddeck, 1994, p.98)

Note-se que Groddeck está fazendo referência, nessa citação, à formação médica de sua época (final do século XIX), quando a medicina ainda não contava com todo o aparato tecnológico que, hoje, está disponível. Hoje, essa situação se intensificou, na medida em que, atualmente, se pode contar com métodos mais eficazes de investigação de agentes patológicos e da própria expressão da doença no corpo. Para Groddeck, a única forma de dirimir os problemas oriundos da supervalorização da doença em detrimento do doente é a inversão dos polos: é preciso que o conhecimento da doença e o diagnóstico se tornem procedimentos meramente complementares à tarefa primordial do profissional de saúde, que é a de ajudar. Trata-se, em última instância, de repensar a legitimidade de se considerar a medicina como uma ciência das doenças, e não como uma arte de curar.

Por um diagnóstico do ser humano Frequentemente, na prática, a elaboração correta do diagnóstico constitui-se na atividade central do médico, de tal modo que, frente a quadros clínicos de difícil ou impossível classificação, o profissional de saúde, simplesmente, não sabe o que fazer. Isso ocorre porque os protocolos terapêuticos estão diretamente associados às classificações nosológicas, fazendo com que o médico só saiba o que fazer caso consiga encaixar as manifestações do doente numa categoria patológica específica. Groddeck, por seu turno, considera o diagnóstico um procedimento não apenas dispensável em alguns casos, como, também, amiúde, danoso para o doente e para o tratamento. Seu argumento repousa na tese de que, tendo em vista as pretensões, daquele que elabora o diagnóstico, de identificar a doença, trata-se, nesse processo, de uma espécie de violação da realidade. Ao primar pela identificação da entidade patológica da qual o indivíduo padeceria, aquele que diagnostica é forçado a excluir do seu campo de visão toda a complexidade do real da qual a patologia é apenas um fragmento: Não é possível estabelecer um diagnóstico completo, que esgote todos os aspectos, e só o desejo de fazê-lo já implica o maior risco que o médico corre, o de superestimar sua capacidade. Insistimos em dizer que o diagnóstico sempre deve ser questionado pelo médico, que este nunca deve se esquecer de que muitas vezes o diagnóstico é insuficiente ou errado, e que ao estabelecê-lo corre o risco de considerar a doença como uma situação, quando na verdade ela é um processo. (Groddeck, 1992, p.247) 14

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Groddeck, portanto, não nega a relevância ou a utilidade do diagnóstico; só diz que o diagnóstico cujo foco é exclusivamente o reconhecimento da doença consiste num procedimento assaz equivocado, na medida em que não contempla aspectos de suma importância para o tratamento, como, por exemplo: o modo como doente e médico se relacionam, a forma como o paciente formula sua demanda de cura, entender a função da doença para aquele paciente etc. Nesse sentido, considerando que é impossível tratar um paciente sem algum tipo de diagnóstico, Groddeck irá propor que, em vez do diagnóstico tradicional da medicina, isto é, o diagnóstico que visa à classificação do sofrimento do paciente em alguma categoria nosológica, se faça um diagnóstico do ser humano. Trata-se de um diagnóstico que não contém dados relativos apenas a sinais e sintomas, mas, o máximo possível, de variáveis sobre o paciente, como aspectos psicológicos, sociais e relativos a sua história de vida. O diagnóstico do ser humano também está fundamentado na tese groddeckiana de que o médico deve tratar o ser humano, e não o doente. Ao se concentrar no fato de que aquele que o procura está doente, os médicos automaticamente reduzem ainda mais sua percepção para se dirigirem apenas àquilo que, no discurso do indivíduo, tem relação imediata com a doença. Assim, o profissional exclui do seu campo de observação toda a imensidão de fatores que está por trás do estar doente e dos quais esse estado é a expressão. Groddeck propõe, então, que o médico deva fornecer ajuda ao ser humano que a ele recorre, e não ao estado doentio em que ele se encontra. Se entendermos a doença na perspectiva groddeckiana, isto é, como uma expressão do Isso, quando se elimina somente o estar doente e deixa-se intacto o ser humano, o indivíduo perde, justamente, o único modo possível que havia encontrado até então para se expressar. Em decorrência, na falta daquele, talvez passe a se expressar através de outro até mais grave... Para diagnosticar o ser humano, segundo Groddeck, para além do estar doente, em primeiro lugar, o médico não deve limitar seu olhar ao corpo; deve realizar um estudo completo do indivíduo, atentando para o que ele tem de comum em relação a outros e o que lhe é singular. O profissional deve examinar “sua figura e a forma dos seus órgãos e partes, internos e externos, suas funções desde respirar, dormir, movimentar-se, digerir, pulsar o coração até falar, pensar, sentir” (Groddeck, 1994, p.258). Em segundo lugar, o médico deve considerar tudo o que o indivíduo sente e faz, voluntária ou involuntariamente, como sintomas. Do ponto de vista de Groddeck, sintomas não significam apenas indícios da existência de uma doença, mas, sim, linguagens que o Isso utiliza para se expressar: [...] no conceito de sintoma não estão incluídos apenas a temperatura, a pulsação e os diversos sinais de doença, mas tudo o que o isso do doente mostra e o que o isso do médico é capaz de perceber, da forma do queixo às comoções profundamente secretas, das presentes situações ao passado mais longínquo. (Groddeck, 1994, p.228)

Para Groddeck, saúde e doença não são estados individuais completamente distintos, pois ambos são formas de expressão do indivíduo, do Isso. A questão mais importante, portanto, para o profissional de saúde, não é a eliminação da doença, mas, sim, a compreensão acerca das razões pelas quais o indivíduo está se expressando de modo patológico. Para esse discernimento, não é suficiente um diagnóstico que tenha como foco os caracteres particulares da doença que se supõe habitar o corpo do doente. Será preciso considerar toda e qualquer manifestação do indivíduo como um índice para o entendimento de sua condição. Tudo aquilo que ele faz será visto como sintoma não da doença, mas do ser humano, do indivíduo que ele é e que, naquele momento específico, está se expressando pela via da doença. No texto “Da visão, do mundo dos olhos e da visão sem os olhos”, no qual Groddeck faz uma longa interpretação do significado simbólico dos órgãos visuais, o autor aborda a importância do diagnóstico amplo do ser humano como ferramenta essencial para o êxito do tratamento: Para o juízo médico e humano é muito significativo se a pessoa que sofre de algum mal da visão é um homem, uma mulher, uma criança ou um ancião, como também é importante saber quais são as condições de vida do paciente, quais são seus desejos e necessidades, como é o seu caráter, suas características pessoais, como é a sua constituição, e tudo que se possa descobrir sobre sua pessoa, seu consciente e seu inconsciente, para tratá-lo de forma

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adequada. Uma parte dos enfermos que oferece resistência a um tratamento baseado num diagnóstico anatômico irá melhorar ao se ampliar a maneira de diagnosticar. (Groddeck, 1992, p.249)

Compreensão, e não combate à doença Herdeiro da racionalidade científica moderna, o modelo biomédico concebeu as relações entre a medicina e a doença analogamente àquelas estabelecidas entre razão e natureza. As doenças passaram, então, a ser pensadas como seres provenientes da perigosa natureza, e que deveriam, portanto, ser combatidos e extirpados. As doenças, legitimadas e objetivadas pela construção científica das entidades nosológicas (e dos riscos), converteram-se em inimigos naturais e, como se tivessem vida própria, parecem estar, a cada paciente, sintoma e/ou exame, prestes a atacar (Tesser, 2009, p.279). A ideia de que a doença seria um mal proveniente da natureza, que, por colocar a frágil saúde humana em risco, precisaria ser eliminado, deu ensejo, na biomedicina, ao que Tesser chama de “obsessão pelo controle” (Tesser, 2009, p.278). Trata-se da tendência de considerar o cuidado em saúde não apenas como salvador do homem já invadido pela patologia, mas, também, como o protetor dos indivíduos, que os impediria de ficarem doentes. Tesser (2009) mostra que o controle é também um traço que a biomedicina herdou da racionalidade científica moderna. Com efeito, a ciência moderna se concebe como destinada a controlar e prever fenômenos. Assim, a medicina teria a função não apenas de combater e eliminar as doenças já manifestas, mas de controlar determinados aspectos do indivíduo de modo a impedir o aparecimento da doença. A noção de “fator de risco” como condição que estatisticamente está associada a determinado tipo de doença contribui para que a obsessão pelo controle seja assumida como postura não só pela medicina, como, também, pelos próprios usuários dos serviços de saúde. Assim, em nome de se evitarem riscos supostos, a medicina preconizará intervenções cirúrgicas ou medicamentosas, mesmo que estas provoquem reações adversas e efeitos colaterais por vezes incapacitantes, tornando-se, nestes casos, iatrogênica, causando novas enfermidades no paciente em prol do combate a supostas complicações futuras. Qual alternativa Groddeck propõe como contraponto à postura beligerante da biomedicina? Trata-se de sua concepção da doença como um fenômeno de expressão do indivíduo, tal como o caminhar, o comer, o beber, o pensar etc. Não obstante, a enfermidade é um tipo de expressão que o organismo só utiliza quando as vias saudáveis através das quais poderia se manifestar encontram-se indisponíveis. Em outras palavras, a doença é o último recurso empregado pelo Isso para se expressar. Ela é sempre um estado de exceção. Nesse sentido, se o profissional de saúde guia sua atuação clínica a partir da tese de que a doença é apenas um mal que faz o indivíduo sofrer e que deve, portanto, ser extirpada para dar lugar à saúde, do ponto de vista groddeckiano ele estaria prejudicando ainda mais o paciente, pois estaria eliminando a única via que esse encontrara até então para se revelar. A retirada forçada de uma lesão que acompanha determinado doente há 40 anos não significará simplesmente a remoção de um sintoma que debilitava o sujeito. A intervenção incidirá no nível da própria identidade do sujeito, que fora organizada, ao longo daqueles quarenta anos, tendo a lesão como um elemento constante e fixo. A atitude beligerante não leva em conta, por conseguinte, a função que a enfermidade exerce na vida do doente: [...] acredito que seria bem melhor abandonar de vez a ideia do combate e convencer-se de que é mais aconselhável para o doente, o médico e as pessoas da nossa cultura, conceber a doença como uma providência necessária do Isso, oportunamente introduzida com finalidades determinadas e que decerto pode ser nociva para o ser humano como um todo. (Groddeck, 1992, p.136)

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Groddeck propõe, então, que a doença não seja propriamente combatida, mas compreendida. Se o Isso só recorre à linguagem da doença quando a da saúde está inviabilizada, logo é preciso compreender por que essa situação está acontecendo. Em outras palavras, as principais questões que o médico deve se fazer perante o doente são: por que esse indivíduo está precisando dessa doença? O que o impede de se expressar por vias não dolorosas, saudáveis? Groddeck acredita que, espontaneamente, o indivíduo tenda a se expressar por vias salutares, de modo que a doença pode ser vista como a consequência de um bloqueio dessa espontaneidade em função de alguma contingência: “Portanto, pode-se admitir que o Isso não recorra de bom grado ao recurso excepcional da doença, procurando retornar o mais breve possível às suas formas habituais de expressão na vida saudável” (Groddeck, 1992, p.103). O médico deve, portanto, buscar discernir as razões que levaram o indivíduo a recorrer à doença, um procedimento que Groddeck costumava chamar de “interrogar o Isso” (Groddeck, 2008, p.97) e que, na prática, diz respeito à observação criteriosa e a uma escuta atenta e acolhedora que não fique restrita àquilo que o paciente relata acerca do que vem sentindo corporalmente, mas que o convoque a falar de si da maneira mais abrangente possível. Compreender e ajudar o paciente a discernir os obstáculos que o impediam de se manifestar por vias saudáveis, obrigando-o a recorrer às veredas dolorosas da doença, é o que cabe ao médico, não buscar a eliminação da doença a qualquer custo. Para Groddeck, uma extirpação pura e simples da enfermidade pode resultar, de fato, no seu desaparecimento. Não obstante, não se pode considerar que o doente tenha sido verdadeiramente tratado, pois não se tocou na função que a doença desempenhava, ou seja, a ação de saúde não interveio sobre a gênese do problema, mas apenas sobre sua superfície: É claro que, na maioria das vezes, o caminho mais curto e mais fácil para ajudar é atacar a sua doença, mas não deve ser dessa forma; pois a doença é apenas uma forma de expressão do isso sofredor, que acentua em voz alta a sua doença, a fim de ocultar melhor ainda o seu segredo mais profundo. (Groddeck, 1994, p.258)

Depois de “interrogar o Isso” e descobrir as motivações que o levaram a se refugiar na doença, trata-se, agora, de estabelecer um processo de convencimento do Isso. É preciso convencê-lo de que os perigos aos quais se julgara exposto e que estavam impedindo-o de falar a linguagem da saúde, ao serem compreendidos, perderam a sua força destrutiva, de modo que a doença pode ser abandonada: “Cabe primeiramente provar ao Isso doente e teimoso que ele pode sair-se bem novamente, recorrendo às suas formas salutares de expressão” (Groddeck, 1992, p.104).

Corpo e psiquismo como dialetos do Isso Um dos traços mais marcantes da racionalidade científica moderna é a enunciação de uma série de dicotomias, como natureza/cultura, indivíduo/sociedade, e a que mais nos interessa nesse momento: corpo/mente, separação que, embora já estivesse presente no pensamento dos filósofos gregos posteriores a Sócrates, e tivesse atravessado toda a filosofia medieval, encontrou, no pensamento do filósofo francês René Descartes, sua versão mais explícita, e, por ser elaborada nos moldes da modernidade nascente, mais próxima de sua influência sobre a medicina científica moderna e sobre as práticas de saúde contemporâneas. Com efeito, o pensador francês concebeu corpo e mente como duas substâncias ou, em outros termos, como duas coisas absolutamente distintas e que representavam a manifestação de dois mundos separados: o mundo das coisas extensas, materiais, e o mundo do pensamento ou das coisas imateriais (Descartes, 1996). O modelo biomédico, na medida em que é erigido nas bases dessa racionalidade, tomará a separação entre corpo e mente quase como um dado, uma premissa, um postulado. Dessa dicotomia

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nascerá um processo de especialização e diferenciação entre dois campos: as doenças orgânicas e as doenças mentais4. Entre esses dois grandes grupos de patologias, existiria a psicossomática, um terreno nebuloso, prenhe de incoerências e contradições. Tradicionalmente, as doenças que se localizam nesse grupo compreendem enfermidades cuja forma de manifestação é orgânica, mas cuja etiologia estaria relacionada, predominantemente, a elementos psicológicos. Como vimos anteriormente, Groddeck negara-se a ser reconhecido como um dos pioneiros do campo psicossomático. São justamente as razões que o levaram a negar-se a carregar essa alcunha, as contribuições que o autor traz para as discussões sobre os impasses produzidos pela dicotomia corpo/mente no paradigma biomédico. Para Groddeck, O corpo é algo morto, portanto não pode adoecer; nós já nos esquecemos que nossos antepassados, em vez da palavra corpo (Körper), usavam a expressão cadáver (Lichnam), como os holandeses ainda utilizam, assim como os ingleses só usam a palavra corps no sentido de cadáver. Não sei se existe uma alma, uma psique independente e imaterial, ainda não travei conhecimento com um ser dessa natureza. Mas nem todos os que estão convencidos da existência de um mundo dos espíritos são loucos. Talvez haja algo semelhante. Mas com toda a certeza esses espíritos, se existirem, não podem ficar doentes no nosso sentido humano, pois para tanto é preciso o corpo. (Groddeck, 1992, p.125-126, grifos do autor)

Eis a crítica de Groddeck ao pensamento dualista, crítica que evidencia que o autor jamais concebeu as enfermidades com as quais trabalhava como afecções psicossomáticas. Partindo do argumento exposto pelo autor nessa citação, a divisão entre doenças somáticas e doenças mentais é absolutamente equivocada. Só se poderia falar de doenças exclusivamente somáticas caso fosse possível conceber um corpo sem psique que fosse capaz de adoecer. Nesse caso hipotético, sim, poder-se-ia dizer que ocorreu um adoecimento sem a participação de qualquer elemento psicológico. Não obstante, sabe-se que só um corpo vivo, ou seja, em que há a presença de uma realidade psíquica, pode, de fato, adoecer. Nesse sentido, em toda doença, haveria a participação de fatores referentes à dimensão orgânica e à dimensão psíquica do indivíduo, “[...] logo se deduz que não há ‘organismo’ e ‘psiquismo’, nem doenças físicas ou psíquicas e sim que são sempre os dois a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias” (Groddeck, 1992, p.125). Trata-se efetivamente, no pensamento de Groddeck, de conceber corpo e psiquismo como dimensões de uma realidade única e indivisível, duas formas de abordar o Isso ou dois modos diferentes de se referir à totalidade individual. “São apenas denominações cômodas para melhor entender certas singularidades da vida; no fundo, ambas são uma mesma coisa” (Groddeck, 2008, p.111). Logo na primeira carta que envia a Freud, Groddeck já deixa claro seu posicionamento acerca dessa questão: [...] formara-se em mim a convicção de que a distinção entre corpo e alma é apenas uma diferença de nome e não de essência; que o corpo e a alma são alguma coisa de comum, que neles habita um Isso, uma força pela qual somos vividos, enquanto nós acreditamos viver. (Groddeck, 1994, p.5)

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É forçoso assinalar que, na atualidade, sobretudo em virtude da pesquisa neurocientífica, tem crescido a tendência, por parte de alguns pesquisadores, de reduzirem as doenças mentais ao campo das doenças orgânicas, a partir da hipótese de que o psiquismo seria apenas um epifenômeno do funcionamento cerebral. Trata-se, portanto, de uma aparente superação do dualismo, mas pela via de sua conversão a um monismo fisicalista que denega a existência da especificidade do pensamento e do psiquismo na unidade mente-corpo.

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A grande contribuição de Groddeck ao propor que corpo e psiquismo sejam vistos como duas modalidades de apresentação do Isso, e não como duas essências separadas, é a eliminação da separação estéril entre doenças orgânicas e doenças mentais: “Em outras palavras, recusei de antemão separar doenças do corpo e doenças da alma; tentei tratar o ser individual em si, o isso que existe nele; procurei um caminho que levasse ao impenetrado, ao impenetrável” (Groddeck, 1994, p.5). Além disso, a substituição do dualismo pelo monismo levaria à extinção do campo psicossomático, na medida em que ele seria extenso a ponto de englobar toda e qualquer patologia. Em decorrência, todo profissional da saúde seria levado a tomar um ponto de vista integral sobre o doente, uma perspectiva que contemplasse a dimensão orgânica e, ao mesmo tempo, fosse capaz de uma leitura psicológica do adoecimento. De fato, é precisamente isso o que Groddeck preconiza: que todo profissional de saúde seja capaz de utilizar um método de leitura simbólica dos sintomas do doente, o que não consiste em um procedimento demorado, tampouco caro. Basta que o profissional se disponha a ouvir e a acolher o doente em sua totalidade, estando atento para perceber as vinculações entre suas queixas e sua história subjetiva.

Considerações finais Queremos frisar que nossa proposta, aqui, não é a de que a medicina deva – para superar os impasses que vivencia em função do paradigma biomédico – adotar integralmente as teses de Georg Groddeck acerca da doença e do tratamento. Nosso interesse é o de demonstrar que as indicações desse autor fornecem aportes teóricos férteis para se pensar em possíveis soluções para aqueles problemas. Neste trabalho, apresentamos, pelo menos, quatro importantes contribuições extraídas da obra groddeckiana para um novo paradigma de cuidado em saúde: (1) Estabelecimento do doente, e não da doença, como verdadeiro objeto das intervenções em saúde; (2) Concepção do diagnóstico como um processo amplo de conhecimento do doente, abordando inúmeros aspectos que estão para além dos sinais e sintomas; (3) Em vez do combate e controle da doença, a compreensão da enfermidade como linguagem, modo de manifestação que exerce uma função na história de vida do paciente; (4) Eliminação da dicotomia entre corpo e mente e as categorias que decorrem dessa separação, a saber: doenças orgânicas, doenças mentais e doenças psicossomáticas; concepção das dimensões orgânica e psíquica como formas de expressão individual, e não como duas substâncias.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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A ORIGINALIDADE DA OBRA DE GEORG GRODDECK ...

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SANTOS, L.N.; MARTINS, A.. La originalidad de la obra de Georg Groddeck y algunas de sus contribuciones al campo de la salud . Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.9-21, jan./mar. 2013. Este artículo tiene como objetivo presentar algunas ideas sobre la medicina, la enfermedad, la salud y la curación extraídas de la obra del médico y psicoanalista Georg Groddeck (1866-1934). La hipótesis que guía el trabajo es que tales propuestas pueden contribuir activamente a la discusión contemporánea acerca de los límites de la biomedicina y la necesidad de reformular el modelo de atención de la salud occidental. Primero, se analizan los orígenes históricos y filosóficos de la bio-medicina y algunos de los dilemas que enfrentan los usuarios y profesionales de la salud debido al predominio de la racionalidad bio-médica. A continuación se hacen algunas consideraciones sobre la vida y obra de Groddeck, culminando en la presentación de cuatro importantes contribuciones del autor evaluadas a la luz de los límites bio-médicos.

Palabras clave: Georg Groddeck. Enfermedad. Salud. Bio-medicina. Recebido em 04/05/12. Aprovado em 26/12/12.

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artigos

Ortotanásia: uma decisão frente à terminalidade

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Kilda Mara Sanchez y Sanches¹< Eliane Maria Fleury Seidl²

SANCHEZ Y SANCHES, K.M.; SEIDL, E.M.F. Orthothanasia: a decision upon facing terminality. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.23-34, jan./mar. 2013.

Orthothanasia is regulated in Brazil through Resolution 1805/2006. This study aimed to reflect on and discuss the practices of limitation or withdrawal of life support in situations of terminality, using contributions from bioethics. Ten oncologists working in the Federal District’s public health service participated. A semi-structured interview framework directed the themes to be investigated. The data were assessed by means of content analysis. Almost all of the participants had a conception of orthothanasia and euthanasia compatible with the literature. Seven doctors knew the FCM Resolution and three mentioned the legal weakness of a regulation originating from a professional body. Eight doctors said that the regulation of the issue would not greatly affect their daily practice. Bioethical principles like autonomy, beneficence, non-harmfulness and justice may contribute towards elucidation of dilemmas regarding removal or limitation of life.

Keywords: Death. Terminality. Orthothanasia. Life support. Bioethics.

A ortotanásia está regulamentada no Brasil pela Resolução 1805/2006. A pesquisa objetivou refletir e discutir, com contribuições da bioética, sobre práticas de limitação ou retirada de suporte vital em situações de terminalidade. Participaram dez médicos oncologistas de serviços públicos de saúde do Distrito Federal. Um roteiro de entrevista semiestruturada norteou os eixos temáticos investigados. Os dados foram analisados por meio de análise de conteúdo. A quase totalidade dos participantes tinha uma concepção de ortotanásia e de eutanásia compatível com a literatura. Sete médicos conheciam a resolução do CFM e três mencionaram a fragilidade legal de uma regulamentação proveniente de uma entidade de classe. Oito médicos afirmaram que essa regulamentação não afetará sobremaneira a prática cotidiana. Princípios bioéticos, como autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, podem contribuir para a elucidação de dilemas sobre a retirada ou limitação de suporte vital.

Palavras-chave: Morte. Terminalidade. Ortotanásia. Suporte vital. Bioética.

Elaborado com base em Sanchez y Sanches (2012); projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB e o Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal. ¹ Programa de PósGraduação em Bioética, Universidade de Brasília. < in memorian ² Instituto de Psicologia e Cátedra Unesco de Bioética, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Brasília, DF, Brasil. 70.910-900. seidl@unb.br *

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ORTOTANÁSIA: UMA DECISÃO FRENTE À TERMINALIDADE

Introdução No mundo moderno, o homem vem se empenhando em encontrar, por meio da ciência e da tecnologia, formas de vencer ou adiar a morte (Pessini, 2004). De fato, o prolongamento da vida tem se tornado cada dia mais sofisticado e tecnológico (Pelizzolli, 2007; Gracia, 1999). Em vista disso, a morte tem se transformado em um momento muitas vezes solitário e embaraçoso, quando a pessoa em condição de terminalidade, que precisa de cuidados médico-hospitalares, é retirada de seu convívio familiar e afastada das relações interpessoais, o que costuma ser bem frequente já que estar no hospital pode representar a obtenção de todos os cuidados necessários (Siqueira, Zoboli, Kipper, 2008; Pessini, 2004). Um paciente sob cuidados paliativos é aquele cujos recursos conhecidos para a cura da doença esgotaram-se (Silva, Hortale, 2006; Girond, Waterkempe, 2006; Pessini, Bertachini, 2004). O direito de morrer com dignidade significa que as pessoas podem viver os últimos dias de suas vidas cercadas de amor e carinho e que não estão desamparadas nessa fase de transição entre a vida e a morte. Os cuidados paliativos devem garantir que essas pessoas possam decidir sobre o seu tratamento, incluindo o direito de escolher onde morrer e como morrer, o alívio da dor e do sofrimento inútil. Ou seja, é dar ao paciente incurável a possibilidade de morrer com nobreza e integridade, com respeito por sua autonomia e dignidade (Migliore et al., 2010). Ortotanásia é o não-investimento de ações obstinadas, e mesmo fúteis, que visam postergar a morte de um indivíduo cuja doença de base insiste em avançar acarretando a falência progressiva das funções vitais. Na medida em que recursos terapêuticos não conseguem mais restaurar a saúde, as tentativas técnicas tornam-se uma futilidade ao intensificarem esforços para manter a vida. Trata-se, portanto, de um conceito relacionado aos cuidados paliativos (Reiriz et al., 2006; Pessini, Bertachini, 2004), ou seja, cuidados dispensados à pessoa cuja doença não tem possibilidades de cura. Já o ato cometido ou omitido para provocar ou acelerar a morte de alguém é denominado eutanásia. Existem algumas especificidades que caracterizam os dois tipos de eutanásia. A eutanásia ativa consiste na realização de algum procedimento que culmine na morte. Na eutanásia passiva, a omissão de algum procedimento provoca o óbito. É importante ressaltar, também, a diferença entre ortotanásia e eutanásia passiva, conceitos que são frequentemente confundidos. Na ortotanásia, é a doença de base a responsável pela morte; na eutanásia passiva, a moléstia não é fatal, ou ainda não chegou ao ponto da terminalidade, da reta final da vida. A eutanásia passiva abrevia a vida e a ortotanásia permite a morte (Menezes, Selli, Alves, 2009). Distanásia é aquela tentativa de combater a morte a qualquer custo, prolongando um sofrimento e agonia desnecessários. A distanásia nega o princípio da não-maleficência, por isso pode-se dizer que é uma deformidade da conduta médica. O tratamento fútil deveria dar lugar aos cuidados paliativos que se pautam na humanização e na qualidade de vida e de morte (Menezes, Selli, Alves, 2009). Para auxiliar os médicos quanto a decisões a serem tomadas em face de doenças crônicas incuráveis, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução 1.805/06 (Conselho Federal de Medicina, 2006) que autoriza médicos a limitarem ou suspenderem procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Esse documento deverá ter repercussões relevantes nas práticas profissionais em contextos de terminalidade e do fim da vida. A Resolução 1.805 chegou a ser suspensa pois, segundo o Ministério Público (MP), o CFM não tem competência para legislar sobre matéria do Código Penal. No entendimento do MP, a suspensão ou limitação de tratamento seria um abreviamento da vida, característico da eutanásia passiva. Em 2010, o impedimento do MP em relação à prática da ortotanásia foi considerado improcedente pela 14ª Vara Federal, ao argumentar que o CFM tem competência para editar uma norma com esse teor, que não versa sobre direito penal, mas, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares. Há iniciativas, no entanto, visando dar a essa regulamentação força de lei. Com o texto substitutivo aprovado, um projeto de lei que regulamenta a ortotanásia já tramita no Congresso Nacional, sob o número 6.715/09, pretendendo remover, do Código Penal, a proibição quanto à limitação de tratamento para pacientes sem possibilidades de cura. 24

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artigos

Esses temas têm sido objeto de pesquisas empíricas, com o propósito de investigá-los a partir da ótica de profissionais de saúde. Vasconcelos, Imamura e Villar (2011) investigaram o impacto da Resolução 1.805/06 do CFM sobre 83 médicos que lidavam regularmente com a morte. Os autores observaram que, entre os conceitos de ortotanásia, distanásia e eutanásia, o de ortotanásia gerou maior confusão conceitual. Pouco mais da metade dos participantes (55,4%) se mostrou favorável à prática da eutanásia, e 80,7% foram contrários à distanásia. Por outro lado, 56% deles, que afirmaram desconhecer a Resolução 1.805 do CFM, admitiram praticá-la no cotidiano, após tomarem conhecimento do seu conteúdo no contexto da pesquisa. A conclusão do estudo apontou que o conhecimento da Resolução afetou positivamente a rotina dos entrevistados, que referiram atuar com base em valores mais humanitários. Outro estudo que investigou efeitos da Resolução 1.805/06 (Vane, Posso, 2011) sobre cem médicos que trabalhavam em UTIs em São Paulo constatou que 49% deles desconheciam a Resolução. Foi elevado o consenso, entre os entrevistados, acerca de que o médico tem a obrigação de esclarecer o paciente ou seu representante legal sobre as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação; e que o paciente deverá receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, sendo assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive o direito da alta hospitalar, para morrer junto a seus familiares. Uma pesquisa realizada em Curitiba (Urban et al., 2008) com 31 oncologistas verificou que 74,2% deles eram favoráveis à participação dos pacientes nas decisões envolvendo o final da vida, e 80,6% manifestaram-se contra o direito da família de decidir sobre a abreviação da vida do paciente. A conclusão dos autores foi que temas dessa natureza continuam sendo objeto de intensos debates bioéticos, e a humanização dos cuidados no final da vida deve ser priorizada na formação médica. Em estudo feito no Distrito Federal (Batista, Seidl, 2011), que contou com a participação de quinze médicos intensivistas procedentes do estado de Goiás e do Distrito Federal, constatou-se que 60% dos participantes conheciam a Resolução 1.805/06. Também foi observada confusão entre os termos eutanásia e ortotanásia, o que levou a autora a alertar para a necessidade de se difundirem esses conceitos para aqueles que lidam com a morte em seu cotidiano profissional. Os relatos indicaram ainda que a irreversibilidade do quadro clínico e o prognóstico da doença foram os fatores que mais nortearam a decisão quanto à limitação ou retirada de suporte vital para os médicos que participaram do estudo. A importância do papel da família no processo decisório também foi enfatizado pelos participantes. Médicos, enfermeiros, outros profissionais de saúde e bioeticistas estão interligados por um propósito ético e moral comum, e precisam ser norteados por uma fonte compartilhada de moralidade, com regras fundamentais, princípios e virtudes que definirão uma vida moral consistente com os propósitos das ciências da saúde (Marino Junior, 2009). Torna-se imprescindível discutir mais, e detalhadamente, os princípios éticos, pois neles se devem basear as decisões a tomar. Assim, a autonomia deve ser suscitada, protegida, reforçada e respeitada, devendo ser evitada qualquer pressão ou imposição sobre o paciente e familiares. A beneficência é um ato de bondade ou gentileza, uma atuação benevolente, segundo o interesse maior do paciente. Neste sentido, a ortotanásia pode ser considerada como gesto regido pela beneficência. A não-maleficência atua no sentido da prevenção e remoção de situações prejudiciais, o que pode ser perfeitamente associado à ortotanásia. A justiça dá a cada um o que necessita e tem direito. Nessa perspectiva, o paciente em condição de terminalidade tem direito a cuidados paliativos que incluem, na sua essência, a busca intensiva pela melhoria da qualidade de vida e promoção de conforto, conseguido através do alívio da dor em sua totalidade (Moritz, 2009). O objetivo geral da presente pesquisa foi refletir e discutir, com contribuições da bioética, sobre práticas de limitação ou retirada de suporte vital em situação de terminalidade, a partir de relatos de médicos oncologistas. Os objetivos específicos foram: conhecer as concepções dos participantes sobre ortotanásia e eutanásia; identificar as influências que norteiam a tomada de decisão quanto à limitação ou retirada de suporte vital em situações de terminalidade, bem como fatores que interferem nessa decisão; investigar o conhecimento da Resolução 1.805/06 do CFM e seus efeitos sobre a prática médica em contextos de fim da vida, na percepção de médicos oncologistas. Os oncologistas são profissionais da saúde que lidam frequentemente com o fim da vida, motivo pelo qual optou-se por incluí-los no estudo. A pesquisa se justifica pois as enfermidades crônicas 25


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crescem em prevalência, em especial o câncer, devido, sobretudo, aos avanços tecnológicos e à busca pelo prolongamento da vida. Assim, práticas como a da ortotanásia tendem a ser cada vez mais frequentes no enfrentamento de situações de terminalidade.

Método Participantes Dez médicos oncologistas de dois hospitais públicos do DF, sendo seis homens, com tempo de formação de nove anos em média. Os dez referiram realização de residência em oncologia clínica e um deles tinha curso de mestrado. Os entrevistados foram denominados de E1 a E10.

Instrumento e procedimento de coleta de dados Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada com questões que permitiram a obtenção de relatos acerca de oito eixos temáticos de interesse: (1) concepção de ortotanásia e eutanásia; (2) influências na decisão acerca da limitação ou retirada de suporte vital em condição de terminalidade; (3) relação médico-paciente; (4) enfrentamento de conflitos entre profissionais e familiares em situações do fim da vida; (5) aplicação de limitação de suporte vital: quem toma a iniciativa de conversar sobre o assunto e decide fazer?; (6) contribuição da formação e da experiência profissional nas práticas de retirada ou limitação de suporte vital; (7) conhecimento da Resolução 1.805/2006 do CFM; (8) efeitos da Resolução 1.805/2006 na prática atual dos profissionais de medicina. Após análise e aprovação do projeto por Comitê de Ética em Pesquisa, o estudo teve início. A pesquisadora principal entrevistou os médicos que aceitaram participar e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Nenhuma recusa ocorreu entre os que foram convidados. A entrevista teve duração média de trinta minutos e foi realizada no local de trabalho de cada profissional, em condição de privacidade e conforto satisfatórios. As entrevistas foram gravadas em áudio para posterior transcrição e análise.

Análise de dados Inicialmente, as entrevistas foram transcritas na íntegra; procedeu-se, então, a uma leitura flutuante do corpus. Os relatos verbais referentes aos oito eixos temáticos foram categorizados a partir de seu conteúdo (Bardin, 2009) por dois pesquisadores de modo independente (a pesquisadora e a orientadora), visando concordância igual ou superior a 70% para a identificação, nomeação e frequência das categorias. Efetuou-se, ainda, a seleção de trechos de relatos dos participantes como ilustração das categorias identificadas.

Resultados Quanto à concepção de ortotanásia, a análise dos relatos permitiu compor três categorias: deixar a vida seguir seu curso; não realizar esforços fúteis; prover conforto e cuidados paliativos até o desfecho. Um participante não soube definir ortotanásia, tampouco eutanásia. Trechos das falas dos participantes contribuíram para delinear o conceito de ortotanásia, inseridos nas diferentes categorias identificadas. Assim, cada participante, em seu relato, aportou mais de um aspecto da conceituação de ortotanásia. A categoria deixar a vida seguir seu curso teve cinco menções, sendo bem exemplificada pelo relato de E2: “ortotanásia é deixar a vida seguir o seu curso, só que ele (o paciente) tem qualidade e dignidade”. A categoria não realizar esforços fúteis teve seis menções, e o relato de E8 fez uma boa explicitação:

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“Na prática se constitui em uma parada de investimento em cima do paciente, entende? Não fazer nada milagroso. É diferente da eutanásia que interrompe a vida do paciente. A ortotanásia é deixar de fazer investimentos milagrosos no processo”.

A categoria prover conforto e cuidados paliativos até o desfecho teve contribuições de cinco participantes, com trechos que a exemplificaram, como o relato de E4: “resta a gente dar cuidados paliativos, os cuidados básicos para que esse paciente viva sem sofrimento enquanto vida ele tiver”. O relato de E9 também é um exemplo dessa categoria: “[...] É uma estratégia do médico que provê a capacidade de dar conforto e perceber que os instrumentos que ele tem não são mais eficazes para salvar aquela vida. Então não tentamos brigar com a morte, mas ficar a favor da vida”.

Vale mencionar que um participante, E10, apontou a relação entre concepção de ortotanásia e valores pessoais: “[...] depende de uma série de coisas. De crença pessoal, de crença em Deus. Acompanhar a morte de uma pessoa sem induzi-la, eu acho que é o ideal”. Quanto à conceituação de eutanásia, três categorias foram identificadas: interrupção da vida; intervenção ativa do médico; indução da morte. A categoria interrupção da vida, com a contribuição de três relatos, pode ser ilustrada pela fala de E1: “Com a eutanásia você estaria mudando o curso da vida do paciente, interrompendo a vida dele. Com a ortotanásia, não”. No que tange à categoria intervenção ativa do médico, com quatro menções, esta pode ser exemplificada pelo relato de E6: “A eutanásia, eu entendo que é aquela forma de morrer que a medicina e o médico intervêm facilitando ou agilizando o processo de morte ou até programando a morte do paciente”. A terceira categoria, indução da morte, teve três menções, sendo ilustrada pela fala de E4: “você estaria fazendo com que uma situação acontecesse, você estaria induzindo o paciente ao óbito na eutanásia, seja por que motivo for, no caso seria o motivo de aliviar o sofrimento da pessoa”. Outra fala que ilustra essa categoria é a de E9: “A eutanásia é quando você apressa a morte. Na ortotanásia você deixa morrer, é uma evolução natural [...]”. Concluiu-se que as categorias identificadas descrevem as concepções de ambos os conceitos e foram complementares no sentido de se obter uma definição pertinente e compatível com a literatura sobre ortotanásia e eutanásia. No que tange às influências no processo de tomada de decisão para introdução ou não de suporte vital, os relatos permitiram identificar cinco categorias, indicando a diversidade de posição entre os participantes sobre essa questão: decisão é de todos; decisão é do médico; decisão é da família e do médico; decisão é do paciente e da família; decisão é da família. Dois entrevistados defenderam que a decisão é de todos, envolvendo médico, paciente e família, o que pode ser ilustrado pelo relato de E1: “Acho que é uma decisão sempre muito difícil, tanto pra família quanto pro paciente e pro profissional de saúde [...] Mas o que eu vejo é que essa decisão tem que ser tomada em conjunto, principalmente quando o paciente está entendendo o que está acontecendo. E é uma decisão conjunta, não consigo ver isso de forma isolada”.

Um profissional (E9) defendeu que a decisão é do médico, justificando que: “Eu acho que é o aspecto do conhecimento técnico do profissional em relação àquela patologia. Quando você conhece a patologia e as várias opções terapêuticas, você sabe quando não tem mais nenhum recurso para utilizar. Os jovens têm mais dificuldade nesse aspecto, exige experiência”.

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Outro participante (E4) ressaltou que a decisão envolve a família e o médico, conforme seu relato: “[...] esse tipo de decisão não é só do médico. Essa decisão, de até onde ir, também tem que ser decidida com a família do paciente [...], as coisas devem ser muito bem conversadas, minha experiência pessoal é conversar e fazer o que puder fazer, mas quando eu perceber que eu estou passando do limite, eu sento e converso com a família”.

Um profissional (E6) opinou que paciente e família norteiam essa decisão: “Eu acho que a primeira situação é obedecer o paciente, ele tem que ser considerado. A segunda opção que também interfere muito, e acaba sendo a primeira, porque o paciente já não tem muita opção, é a questão da família [...] às vezes a gente tem que fazer uma intervenção mais agressiva e fazer algum procedimento a mais, e muitas vezes a gente faz por conta da família que é muito insegura, não entende, mesmo sendo explicado, tem dificuldade de aceitar que a gente não deve fazer mais coisas para o paciente e a gente é obrigado a fazer um procedimento de dar mais suporte de risco”.

Um entrevistado (E7) afirmou que a posição da família tem influência predominante nessa decisão: “Hoje em dia fazer ortotanásia no país ainda é algo ilegal, não temos respaldo legal pra isso. Então pra gente poder praticar a ortotanásia é necessária a anuência familiar. É preciso que a família compreenda o que está acontecendo e em que momento da doença está o paciente. O apoio familiar, a benção familiar, é fundamental para as atitudes que serão tomadas dali pra frente”.

Quanto à influência da relação médico-paciente nas decisões do fim de vida, três participantes afirmaram que a relação deste binômio não só influencia como também auxilia a tomada de decisão. O relato de E5 exemplifica a categoria: “Influencia muito porque se não for uma relação bem estabelecida, fica extremamente difícil de traçarmos estratégia nesse sentido, não dá pra você tentar orientar nada nesse sentido, se você não tiver uma relação médico-paciente estruturada e bem estabelecida”.

Três entrevistados referiram que a influência exercida é mais da relação do médico com a família, sendo salientada que a anuência familiar é um aspecto relevante, conforme discurso de E5: “A participação da família é fundamental. Porque em determinado momento onde verdadeiramente a ortotanásia vai ser aplicada, o paciente não tem condições de tomar decisões por si só e nesse momento a família passa a ter um peso muito importante, ela tem que participar de todos os processos, todas as etapas da ortotanásia”.

Outros três participantes salientaram a existência de um trinômio relacional formado por médico, paciente e família, elucidado por trecho da fala de E4: “Chega-se a uma decisão ou com o paciente ou com a família. Temos uma cultura que não permite que se diga para o paciente toda a situação em que ele está, porque algumas pessoas pensam que o paciente que está terminal é aquele que está confuso ou em coma. Às vezes um paciente que está caminhando para um estado terminal está lúcido e ele tem condição de decidir alguma situação [...] temos uma dificuldade de chegar para o paciente terminal e realmente colocar a situação do jeito que ela é, e pedir até que ele decida também junto conosco o que é melhor para ele”.

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Um participante, E8, rejeitou a ideia de influência dessas relações sobre a tomada de decisão, justificando que “[...] se influenciasse nunca faríamos isso. Nos apegamos muito aos pacientes, tomar uma decisão dessas é muito difícil tanto para a família quanto para o médico”. No que concerne à atitude do profissional em situações nas quais o paciente aceita a terminalidade e a família não, a maioria (seis participantes) afirmou que o desejo do paciente deve prevalecer, o que foi bem elucidado na resposta fornecida por E1: “Eu costumo pedir pro paciente deixar por escrito o que ele deseja ou não. Mas a minha opinião pessoal é que a gente deve seguir o desejo do paciente. Na maioria das vezes a gente tenta ponderar com a família que o desejo do paciente é esse e tenta fazer com que a família de alguma forma aceite aquilo, mas sempre visando o desejo do paciente. Mas eu peço para que ele deixe por escrito até para me proteger do ponto de vista legal. Não é raro o paciente desejar uma situação, a família participar dessa decisão, mas no momento em que o paciente efetivamente tem uma insuficiência respiratória, ou alguma coisa que pode levar ao óbito iminente, a família voltar atrás e querer forçar o plantonista do hospital a realizar manobras mais invasivas”.

Um entrevistado, E6, apontou que o desejo da família deve prevalecer, conforme trecho transcrito: “Tentamos conversar com a família e com o paciente, o problema é que depois lidamos mais é com a família [...] depende do esclarecimento da família [...] porque é a família que fica com o paciente no final [...] Ficamos reféns da família.”

Segundo oito participantes, as iniciativas no sentido de iniciar conversas sobre a aplicação de procedimentos de limitação ou retirada de suporte vital, de modo geral, partem do médico, mas, muitas vezes, com participação ou anuência do paciente. O relato de E7 é um bom exemplo dessa afirmativa: “Acho que as coisas caminham muito juntas, fica difícil separar. Acho que todo mundo acaba pensando ao mesmo tempo, mas falta a coragem pra tomar a iniciativa. Normalmente a iniciativa é do médico. Mas a impressão que eu tenho é que toda vez que você conversa isso com o paciente e com a família eles acabam dizendo que já estavam percebendo que a coisa caminhava para esse rumo. Pode ser inclusive pelo fato de que a família não tem muito conhecimento a respeito disso, por medo de ser mal interpretada. Alguns têm receio de que, ao sugerir uma coisa dessas, pareça que não gostem do paciente. Então pra família isso é mais complexo. O paciente já tende a perceber mais a necessidade do procedimento, até por que é ele que está vivenciando a doença, sofrendo os sintomas [...]. Então acho que isso parte de vários locais, mas normalmente quem toma a iniciativa é o médico ou o paciente”.

Um dos entrevistados afirmou que a iniciativa tende a partir da família do paciente, tal como na fala de E4: “O que eu observo é que na maioria das vezes a própria família chega e começa a conversar sobre quando parar, então parte deles a iniciativa de falar”. E1 apontou que o pedido costuma partir do próprio paciente, como o trecho a seguir ilustra: “[...] é ele que está vivenciando. Ele sabe que a partir de determinado momento as coisas não vão caminhar bem, não vão ser boas pra ele. Mas a família tem mais dificuldade de entender isso, essa relação com os familiares é sempre um pouco mais difícil do que com o paciente”.

Quanto a quem deve se envolver efetivamente na tomada de decisão sobre a ortotanásia, E9 afirmou que apenas o médico, conforme seu relato:

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“Prioritariamente o médico. O próprio nome já diz, paciente. Se o médico disser que ele vai fazer quimioterapia até a hora da morte ele não tem como discutir, não tem conhecimento técnico. Então a decisão é do médico, mas com base no desejo do paciente”.

A metade dos entrevistados afirmou que todos devem se envolver nessa decisão, ilustrada pelo discurso de E1: “Acho que o paciente, os familiares e médico. Tem que ser uma decisão tomada em conjunto, mas o poder de decisão é sempre do paciente, ninguém tem mais voz do que ele”. Com respeito à contribuição do curso de graduação em medicina para a consolidação de atitudes frente à retirada ou limitação de suporte vital, sete médicos afirmaram que a formação foi deficiente nesse aspecto, sendo que os demais não explicitaram bem suas posições nesse tema. A fala de E7 exemplifica essa afirmativa, destacando a ênfase na teoria e a ausência de prática nos cursos: “No currículo da faculdade de medicina em si não temos muita discussão sobre isso. Então não existe, por exemplo, uma disciplina que trate especificamente dessa questão da terminalidade. A gente acaba discutindo isso quando tem a oportunidade de ver pacientes de médicos que já tenham mais experiência nesse sentido, mas não há nada na nossa grade curricular que trate disso. Você acaba discutindo com colegas, lendo a respeito, indo a algum congresso que tenha algo específico dessa área”.

Seis entrevistados disseram que tal contribuição surgiu efetivamente a partir das experiências profissionais desenvolvidas na residência médica. E2 afirmou que: “a formação que eu tive na residência, tinha um hospital que era só de cuidados paliativos, então eu tive muito contato com essa coisa de suporte”. Ao serem indagados sobre o conhecimento da Resolução 1.805/2006 do CFM, sete participantes responderam afirmativamente. O entrevistado E5 expressou as vantagens dessa regulamentação ao afirmar que: “cria um suporte legal pra indicação de um procedimento médico que é histórico dentro da medicina, mas que a gente não tinha um suporte legal para essa indicação”. Mas, dentre os sete médicos que responderam que conheciam o documento, três se mostraram preocupados com a fragilidade legal de uma regulamentação proveniente de uma entidade de classe. O relato de E7 foi o que melhor expressou tal situação: “A proposta dela seria que nós, médicos, tivéssemos respaldo jurídico pra esse tipo de procedimento... Só que essa resolução foi cancelada sob a afirmação de que o CFM não tem poder de legislar a respeito de algo que é tido como crime. Então a resolução foi feita pra dar esse respaldo jurídico, mas não cumpria sua função. Ela é uma resolução bastante interessante [...]”.

Três médicos afirmaram desconhecer a Resolução. Ainda nesse eixo temático, alguns entrevistados fizeram menção ao Código de Ética Médica no decorrer de suas falas, destacando que este não é suficiente para dar respaldo a decisões relativas ao fim da vida. Entre os sujeitos da pesquisa, oito afirmaram que a regulamentação da questão não deverá afetar sobremaneira a rotina atual, pois conceitos morais e éticos tendem a nortear essas práticas. Um discurso foi selecionado para elucidar essa categoria: “As leis vêm pra normatizar coisas que a sociedade já realiza. Se a sociedade vai contra a lei há algo de errado. Ou essa lei está muito severa ou ela não traduz corretamente o que a sociedade está pensando. [...]. Então, claro, tendo uma lei que ampara é muito mais fácil. Você não vira alvo de reclamações posteriores e isso abre espaço pra que as pessoas discutam mais. Vai haver mais abertura e facilidade pra discutir isso com o paciente e com os familiares.” (E7)

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Uma pessoa, E2, não soube prever esses efeitos, e outra, E5, apontou que a rotina seria afetada já que o médico terá maior respaldo e segurança para atuar.

Discussão Sobre a compreensão dos conceitos de ortotanásia e eutanásia, esperava-se que tais termos fossem bem conhecidos por médicos experientes e qualificados, como os que participaram do presente estudo, e que lidam diuturnamente com questões sobre morte e terminalidade. Os resultados mostraram, de fato, que o conceito de ortotanásia era bem conhecido, pois a literatura revela que a ortotanásia é a morte no tempo correto, sem o uso de esforços abusivos que prolonguem o sofrimento. Os relatos mostraram que os participantes associaram o dar conforto à não-realização de medidas invasivas ou extraordinárias. A ortotanásia seria o não fazer alguma coisa ou ‘deixar a vida seguir seu curso’, sendo que alguns relatos salientaram que a minimização do sofrimento é uma característica necessária no processo da ortotanásia (Vane, Posso, 2011; Marta, Hanna, Silva, 2010). Quanto à eutanásia, este conceito também era de conhecimento dos participantes, tendo sido ressaltado que trata-se de uma intervenção ativa, que facilita/agiliza/induz o óbito. Apesar de não ter sido observada no presente estudo, vale destacar que outras pesquisas identificaram confusão conceitual entre esses termos, mas que o de eutanásia é mais conhecido (Vane, Posso, 2011; Vasconcelos, Imamura, Villar, 2011). Essas questões remetem para a importância de estratégias de difusão e de esclarecimentos acerca desses conceitos, partindo de diferentes instituições envolvidas com o tema, incluindo: universidades, conselhos profissionais, entidades científicas e associações de usuários de serviços de saúde. Quanto às influências no processo de tomada de decisão em relação à introdução ou não de suporte vital, foi possível concluir que critérios técnicos são relevantes para embasar as decisões dos entrevistados, embora vários deles tenham enfatizado razões de ordem relacional e alguns afirmado que motivos subjetivos seriam preponderantes para tais raciocínios. Os relatos chamaram a atenção pela diversidade nesse eixo temático, pois permitiram a identificação de cinco categorias diferentes, indicando que questões de foro íntimo parecem prevalecer. A menção à influência de todos no processo de tomada de decisão merece destaque como uma postura que vai ao encontro de preceitos bioéticos, ao valorizar os atores cruciais nesse processo. Isso porque valorizar de forma contundente o papel da família e do médico, por exemplo, pode levar à infração da autonomia do paciente. Em sua maioria, os participantes ressaltaram a influência da relação médico-paciente sobre a tomada de decisão no final da vida, destacando, ainda, a relevância da participação da família desde a descoberta da doença, seu tratamento e os momentos finais. De fato, nessa relação, a família deve ser percebida como uma extensão do paciente, ainda mais em contextos de grande vulnerabilidade, quando este não tem condições de decidir e opinar sobre os procedimentos e processos de cuidado. No entanto, a ênfase na anuência familiar parece considerar que ter a família como aliada garante apoio e legitimidade à ação do médico. No entanto, pode-se problematizar que posturas profissionais excessivamente dependentes de atitudes e desejos da família - amplificados por eventuais sentimentos de culpa e medo da perda presentes no contexto familiar - correm o risco de infringir direitos do paciente, e, mesmo, irem de encontro a preceitos éticos que deveriam ser assumidos pelo profissional. Assim, é possível afirmar que ações maleficentes em relação ao paciente podem ter origem na busca incessante da anuência da família. A iniciativa quanto a conversar sobre limitação ou retirada de suporte vital costuma partir do médico, dadas sua competência e responsabilidade técnicas. Foi enfatizado pelos participantes que se o assunto é discutido ao longo do processo de atenção e cuidado com o paciente e sua família, todos terão, por consequência, a chance de fazer escolhas mais ponderadas e conscientes, calcadas na realidade dos fatos, o que valoriza a importância do diálogo e da comunicação desde o início do tratamento.

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Foi salientado que o diálogo entre os envolvidos - profissionais de saúde, pacientes, familiares deve ser estimulado para que se alcance coesão entre o que se pensa e coerência no modo de agir. Todavia esse dado é o inverso do que a literatura tem indicado (Trigueiro et al., 2010; Souza, Souza, Souza, 2005). Quase todos os participantes queixaram-se de suas formações, afirmando que a terminalidade e temas correlatos não são abordados de forma suficiente na graduação. Tendo em vista que o curso de medicina se propõe a habilitar profissionais que terão contato com a morte em diferentes momentos de sua prática, defende-se que temas sobre morte, terminalidade, cuidados paliativos e bioética sejam abordados desde a graduação (Siqueira, 2007). Na verdade, as políticas de humanização e educação permanente devem nortear todo esse processo de capacitação, pois esta se dá de modo contínuo no percurso da vida profissional. Os cursos de medicina precisam, por outro lado, prover melhor qualificação desde a graduação, não somente com respeito às questões biomédicas relativas à terminalidade, mas também quanto aos aspectos psicossociais, à comunicação e ao relacionamento com as pessoas que necessitam de atenção e cuidados. Considera-se, assim, a necessidade de se formarem vínculos, fazerem alianças e, assim, buscar a garantia de um tratamento digno até o momento do óbito e do pós-óbito. Dois terços dos participantes do estudo conheciam a Resolução 1.805/06 do CFM. Outros estudos com objetivos semelhantes encontraram percentuais mais elevados de desconhecimento desse documento (Batista, Seidl, 2011; Vane, Posso, 2011), ainda que tenham sido realizados em período no qual a mesma não estava em vigência. Cabe destacar ainda que alguns participantes enfatizaram que a Resolução é frágil em termos de suporte jurídico, defendendo a necessidade de uma lei com respaldo do congresso nacional. O retorno da vigência da Resolução é recente, o que reforça a necessidade de sua divulgação e ampla discussão junto à categoria, mediante estratégias diversas, incluindo: a promoção de debates, fóruns e palestras em congressos científicos e eventos da área de saúde, com destaque para os de bioética. Em sua maioria, os participantes consideraram que a regulamentação da ortotanásia não afetará a prática médica atual, uma vez que esse procedimento tem relação com valores pessoais, éticos e morais. Alguns estudos vão ao encontro dessa posição ao destacarem que a ortotanásia já é uma prática comum (Vane, Posso, 2011; Vasconcelos, Imamura, Villar, 2009), independente de regulamentações específicas. Na verdade, segundo um dos entrevistados que discordou dessa posição e opinou afirmativamente pelo impacto da Resolução, este deverá ocorrer, pois o profissional de medicina sentirá mais segurança e respaldo para agir em seu cotidiano diante dessas situações. Recomenda-se que estudos futuros avaliem os efeitos da Resolução na prática profissional de médicos em contextos de terminalidade e processos correlatos. Pode-se concluir que questões e dilemas relativos ao fim da vida se beneficiam grandemente dos princípios bioéticos. Apesar das críticas à insuficiência do principialismo, percebe-se que este pode respaldar ações humanizadas e éticas no fim da vida. Assim, cabe refletir sobre a justiça contida na utilização da ortotanásia, no sentido de prover, a cada indivíduo, o tratamento mais adequado a sua necessidade. A beneficência representa o fazer o bem e remover o mal, mantendo o paciente sob cuidados na tentativa de minimizar os danos. A não-maleficência, por sua vez, trata de não produzir um mal maior do que o característico da doença, e, por fim, a autonomia que confere ao paciente poder decisório superior ao do médico no tocante a sua própria saúde (Moritz, 2009). A proposta da ortotanásia não é apressar a morte, mas humanizá-la. Humanização como o lado mais humano do cuidado é recolocar a pessoa no centro do processo, favorecendo a autonomia de suas escolhas, envolvendo, portanto, solidariedade, compaixão, aproximação e respeito (Siqueira, Zoboli, Kipper, 2008). O diálogo deve ser facilitado pelo médico, e não imposto (Deslandes, 2004). Quando o sofrimento de uma doença acomete alguém, é essa pessoa que deveria ter a possibilidade de definir o tipo de tratamento a ser seguido ou não, e, também, o tipo de morte e suas consequências (Braga et al., 2010; Martin, 2010; Pessini, 2007; Schramm, Siqueira-Batista, 2004). Como limitação do estudo, ainda que o número de participantes tenha sido pequeno, cabe assinalar que essa é uma propriedade de pesquisas qualitativas. De qualquer forma, estudos futuros com número maior de participantes e com uso de metodologias quantitativas poderão aportar outras contribuições ao tema. Uma limitação que se destaca é o fato de os participantes serem apenas de duas 32

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instituições do DF e provenientes de uma área de atuação: a oncologia. O roteiro de entrevista poderia ter incluído, ainda, uma pergunta referente à aceitação da prática da eutanásia e a percepção sobre sua legalização pelos participantes, considerando sua relevância como tema emergente na bioética.

Colaboradores Kilda Mara Sanchez y Sanches idealizou o estudo, responsabilizou-se pela revisão da literatura, coleta e análise de dados, e redação do artigo. Eliane Maria Fleury Seidl foi orientadora do trabalho, auxiliou na análise de dados e na redação final do manuscrito. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. BATISTA, K.T.; SEIDL, E.F.S. Estudo acerca de decisões éticas na terminalidade da vida em unidade de terapia intensiva. Com. Cienc. Saude, v.22, n.1, p.51-60, 2011. BRAGA, E.M. et al. Cuidados paliativos: a enfermagem e o doente terminal. Investigação, v.10, n.1, p.26-31, 2010. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução 1.805/2006. Dispõe que na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2006. Seção 1, p.169. DESLANDES, S.F. Análise do discurso oficial sobre humanização da assistência hospitalar. Cienc. Saude Colet., v.9, n.1, p.7-14, 2004. GIROND, J.B.R.; WATERKEMPE, R. Sedação, eutanásia e o processo de morrer do paciente com câncer em cuidados paliativos: compreendendo conceitos e interrelações. Cogitare Enferm., v.11, n.3, p.258-63, 2006. GRACIA, D. Ética de los confines de la vida. Colômbia: Editorial El Búho, 1999. MARINO JÚNIOR, R. Em busca de uma bioética global. São Paulo: Hagnos, 2009. MARTA, G.N.; HANNA, A.S.; SILVA, J.L.F. Cuidados paliativos e ortotanásia. Diagn. Trat., v.5, n.2, p.58-60, 2010. MARTIN, B. Techniques to pass on technology and euthanasia. Bol. Sci. Technol Soc., v.30, n.1, p.54-9, 2010. MENEZES, M.B.; SELLI, L.; ALVES, J.S. Distanásia: percepção dos profissionais da enfermagem. Rev. Latinoam. Enferm., v.17, n.4, p.443-8, 2009. MIGLIORE, A.D.B. et al. Dignidade da vida humana. São Paulo: LTR, 2010. MORITZ, R.D. A equidade e a não maleficência no cuidado de pacientes críticos terminais. Rev. Bras. Ter. Intensiva, v.21, n.4, p.341-2, 2009. PELIZZOLI, M. Bioética como um novo paradigma. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. PESSINI, L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2007. ______. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2004. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.23-34, jan./mar. 2013

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ORTOTANÁSIA: UMA DECISÃO FRENTE À TERMINALIDADE

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SANCHEZ Y SANCHES, K.M.; SEIDL, E.M.F. Ortotanasia: una decisión frente a la terminación. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.23-34, jan./mar. 2013. La ortotanasia está regulada en Brasil a través de la Resolución 1805/2006. Esta investigación tiene como objetivo reflexionar y debatir sobre las medidas de limitación o retirada del soporte vital en situaciones terminales. Participaron diez médicos oncólogos de servicios públicos de salud del Distrito Federal, Brasil. Un guía de entrevista semi-estructurada orientó la investigación. Los datos se analizaron mediante el análisis del contenido. Casi todos los participantes tenían una concepción de la ortotanasia y la eutanasia en consonancia con la literatura. Siete médicos conocían la resolución del CFM y tres mencionaron la debilidad legal de una reglamentación proveniente de una entidad de clase. Ocho médicos dijeron que esta reglamentación no afectará en gran medida la práctica diaria. Principios de la bioética pueden contribuir al esclarecimiento de los dilemas sobre la retirada o la limitación del soporte vital.

Palabras clave: Muerte. Terminalidad. Ortotanasia. Soporte vital. Bioética. Prevación de tratamiento.

Recebido em 28/03/12. Aprovado em 28/09/12.

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artigos

Por uma clínica infinitamente minúscula: o que pode o corpo em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal *

Luciana Rodriguez Barone1 Tania Mara Galli Fonseca2

BARONE, L.R.; FONSECA, T.M.G. Towards clinical care for infinitely tiny babies: what the body is capable of in a Neonatal Intensive Care Unit. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.35-47, jan./mar. 2013. The aim of this study was to raise questions regarding clinical care and the body in hospital, and specifically in a neonatal intensive care unit, based on the author’s experience as a psychologist in this context. Using cartographic methodology that retrieved the plane of sensitivities, which are often cleansed in hospitals, we explored the singularities of clinical encounters, with the intermediation of hospital and family institutions. Through this, we showed the homogenizing and patient-forming characteristics of encounters with premature babies present there. However, we also could see lines of flight from these dominant ways, which might open new care possibilities. In ask ourselves about the power of the body and clinical care, we went on exploring, with affirmation of clinical care for tiny babies, built through singular encounters, which brings in another intensive ethical paradigm for life.

O objetivo deste trabalho é problematizar a clínica e o corpo no hospital, especificamente em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal, a partir da experiência da autora como psicóloga nesse contexto. Utilizando uma metodologia cartográfica que resgata um plano de sensibilidades, frequentemente higienizadas no hospital, percorremos as singularidades dos encontros clínicos, atravessados pelos agenciamentos das instituições hospital e família. Com isso, evidenciamos as marcas homogeneizantes e apacientadoras dos encontros com o bebê prematuro que ali se encontra, mas também percebemos linhas de fuga a esses modos dominantes que abrem novas possibilidades de cuidar. Ao nos interrogarmos sobre a potência do corpo e da clínica, fomos percorrendo e afirmando uma clínica minúscula, que se compõe nos encontros singulares e coloca em cena outra ética intensiva da vida.

Keywords: Premature baby. Hospital. Body-thought. Cartography. Clinical care for tiny babies.

Palavras-chave: Prematuro. Unidades de Terapia Intensiva Neonatal. Corpo-pensamento. Cartografia. Clínica minúscula.

* Elaborado com base em Barone (2011). 1 Grupo Hospitalar Conceição, Serviço de Saúde Comunitária. Av. Francisco Trein, 596, Bairro Cristo Redentor. Porto Alegre, RS, Brasil. 91.350-200. lucianarbarone@ yahoo.com.br 2 Programa de PósGraduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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POR UMA CLÍNICA INFINITAMENTE MINÚSCULA ...

Introdução: partindo do corpo Este artigo faz parte de uma dissertação de mestrado, cuja pesquisa teve o objetivo de problematizar a clínica e o corpo no hospital, especificamente na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. A partir da experiência clínica como psicóloga em um hospital da mulher de Porto Alegre, fomos percorrendo as instituições e afetos presentes nesse espaço. Fazemos aqui um recorte clínico, parte da análise da pesquisa, a fim de percorrermos cartograficamente as instituições e saberes presentes no hospital, em suas configurações moderna e contemporânea, enquanto tecnologia de cura guiada pela medicina e permeada pela organização disciplinar. Primeiramente, adentraremos a UTI Neonatal, convidando o leitor a percorrer o corpo e o cenário característicos desse espaço. Posteriormente, iniciaremos uma aproximação com a clínica neste contexto, trazendo as questões surgidas ao longo da pesquisa e nos debruçando sobre o problema de pesquisa emergente: o que podem o corpo e a clínica na UTI Neonatal. A partir das análises produzidas, afirmaremos a possibilidade de construirmos uma clínica infinitamente minúscula, inspirada nas leituras de Spinoza, que afirma as partículas infinitamente minúsculas constitutivas dos corpos, e de Deleuze e Guattari (1997), preocupados com a micropolítica e com a produção de línguas menores na linearidade da língua maior. E, por fim, pensaremos uma ética da clínica coincidente com uma intensiva da vida, valorizando outros modos de existência. Para tanto, afirmamos uma metodologia que toma o corpo e seus afetos como impulsionadores da produção de conhecimento. Corpo e pensamento se juntam para construir uma cartografia dos processos clínicos na UTI Neonatal, resgatando a sensibilidade e o plano expressivo da produção de sentidos, higienizados pela racionalidade. Aproveitamos a potencialidade da experiência como trabalhadora para pesquisar, tentando diminuir a dissociação entre pesquisa e clínica, observação e produção de conhecimento, objeto de pesquisa e pesquisador, fazendo-nos também objetos de pesquisa. Diante do desafio de ser pesquisadora e trabalhadora concomitantemente, podíamos nos conectar mais intensamente com o campo, aproveitando a experiência e imersão tão essenciais à cartografia, mas, também, corríamos o risco de sucumbir aos modos predominantes, perdidos em meio a tantas formações molares. Assim, optamos por assumir nossas fragilidades e limites, o que possibilitou nos conectarmos com as fraquezas e dificuldades dos trabalhadores e pacientes, construindo um campo de desterritorialização comum. Com base no critério de abertura do corpo, do princípio de expansão da vida e da regra de habitar o limiar possível de desterritorialização (Rolnik, 2006), construímos o rigor metodológico necessário, utilizando o procedimento da escrita como ferramenta, inspirado na narrativa intensiva do caso clínico (Barros, Passos, 2009). Realizamos a escrita de diários de campo, de fragmentos e de lembranças dos diferentes espaços ocupados (atendimentos, grupos, reuniões, discussões de casos), buscando expressar as experimentações vividas no campo e selecionar os afetos e as brechas possíveis de potencialização. Trazemos aqui fragmentos desses diários, tentando acompanhar e criar linhas de diferenciação.

Adentrando a UTI Neonatal Cuidadosamente, a mão atravessava a abertura da incubadora e encostava seu dedo indicador no pezinho minúsculo cor acinzentada coberto por um medidor de saturação. O pé, enroladinho com esparadrapo e coberto pelo medidor, levemente se mexia, quase imperceptível. A ouvido nu se escutava… pi, pi, pi… sinal que dizia de algum signo capturado pela máquina acoplada a esse corpo ainda não totalmente formado. No mínimo, três corpos, ou partes deles, se encontravam ali: mão grande, pé pequeno, máquina barulhenta. Todos no mesmo plano de existência, o dos modos extensivos3. Corpos estendidos no tempo do relógio e no espaço da UTI Neonatal, cadenciados pelo ritmo compassado do saturômetro. Coleção infinita de corpos infinitamente pequenos4 se encontrando e se compondo para fazer viver cada um desses indivíduos da cena. Sim, corpos menores que o menor corpo, que o menor bebê que pudéssemos ver à nossa volta.

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BARONE, L.R.; FONSECA, T.M.G.

4 Enquanto seres individuados e finitos, somos compostos por partículas simples, infinitamente pequenas, sempre agrupadas em conjuntos infinitos. Composições extensivas fazem-se e se desfazem a todo momento, marcadas por seus movimentos e repousos, lentidões e velocidades. Infinidades de possibilidades de composições se efetuam, configurando, ao mesmo tempo, a finitude dos modos e a infinitude de arranjos possíveis (Spinoza, 2008).

Já tínhamos alguns indícios do encontro iniciado. Íamos, de algum modo, percebendo os efeitos desse toque aparentemente tão sutil… sutileza que, num corpo minúsculo, produzia estrondos. Percorrendo o dedo pelo corpinho, vinte e poucos centímetros rapidamente mapeáveis, sentíamos um tubo saindo de sua boca, acoplando um pulmão artificial. Tubo colado com esparadrapo, buscando evitar o menor movimento e deslocamento possíveis. Na cabeça, onde o cabelo raspado abria um clarão, outro tubo quase permanente, como porta de entrada para exames de sangue constantes. De barriga para cima, o movimento mais aparente e perceptível era o desta, que afundava e se levantava, a cada esforço de respirar, impulsionado pela máquina. Seiscentas leves gramas acopladas a máquinas pesadas e ruidosas, em contraste e sintonia, simultaneamente. Aglomerados de partes iam se compondo e decompondo, efetuando modos de existir naquele espaço e tempo. Mão grande e pé pequeno-máquina barulhenta. Corpo-máquina… Corpo orgânico e máquina mecânica se agenciavam de modo curioso. Ter uma incubadora ou um respirador artificial não fazia, simplesmente, com que uma vida, igualmente antes existente, pudesse ser salva. Mas sim, com que outra forma de vida, antes impossível, agora existisse e fosse afirmada. Máquinas-força, ativas nessa composição. Agenciavam-se corpos extensos, técnicas e signos, compondo um conjunto mecânico e linguístico único (Teixeira, 2001). Olhando atentamente, nos diziam de um só corpo já individuado. Respiram juntos, se alimentam juntos, um traduz as necessidades do outro. A máquina que - na suposta ou experimentada impossibilidade de um corpo humano se manifestar funcionalmente - produz significados e decodificações, criando um ambiente de comunicação possível a um determinado leitor ou interlocutor: no caso, a mão(e). Individuações integrantes de outras individuações macroscópicas; e assim, sucessivamente, formando novos indivíduos, aos olhos humanos, aparentavam unir naturezas diferentes. Na verdade, uma só Natureza, marcada por esse modo de um único atributo extensivo, que nos une às máquinas pelo simples fato, também, de nos estendermos no espaço e no tempo segundo relações, encontros, de velocidades e lentidões de corpos mais simples. Bebê-máquina: essência efetuada expressando um modo particular de vida contemporânea.

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Para Spinoza (2008), nós, seres humanos, conhecemos somente dois atributos da substância infinita e imanente da qual fazemos parte (Deus ou Natureza): extensão e pensamento. Não há hierarquias entre os corpos e entre esses atributos, sendo a alma um modo do pensamento, e o corpo, da extensão.

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Uma pretensão de clinicar Ao lado da mão(e) que o tocava, eu também sem nada compreender... Entrara naquele encontro, um quarto indivíduo e certa pretensão de clinicar. O tu! tu! tu! fez a mãe pular na cadeira. Dei um salto silencioso, tentando conter minha preocupação, mas meu coração acelerava-se, sensível e assustado a qualquer sinal que pudesse emitir aquele acoplamento bebê-tecnologia. O que nos dizia aquele sinal? Mesmo sem saber, eu antecipava: será que fiz algo de errado? Voltava-se para mim um olhar arrependido e uma culpa antecipada, apesar de tantos ditos de que mães devem tocar seus bebês na UTI Neonatal. A prescrição de uma clínica dita humanizada, que receita o toque como uma importante ferramenta na interação da díade mãe-bebê, não nos dava garantia de termos feito algo certo (Junqueira et al., 2006). Na brecha de dúvida, resultante do encontro de olhares, restava a impossibilidade de significar, de compreender aquele código. Desviamos nosso olhar para os lados, buscando outros sinais que pudessem nos ajudar. A técnica de enfermagem manipulava outro corpo aparentemente indiferente ao ocorrido, o que imediatamente era traduzido por nós como está tudo bem, se é que pode estar tudo bem. Ao menos não está pior, penso silenciosamente. Precisávamos de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.35-47, jan./mar. 2013

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um mínimo de território seguro, ou ainda estávamos atravessados pelas instituições saúde e hospital, que buscam, com todas suas forças, distanciar-se da morte orgânica5. Ufa! Ao menos não se produzira naquele instante um sinal de alerta generalizado. Alerta, assim nos sentíamos mãe e eu ao redor daquela caixa transparente que se dizia acalentadora e simuladora do calor de um útero, mas pouco lembrava o aconchego familiar de mãe. Encontro de quatro, três, ou infinitos corpos, na beira, no risco de uma possível dissolução. Paradoxo dos encontros que, ao mesmo tempo, dizem-se constitutivos e formadores dos sujeitos, e essenciais para o desenvolvimento de um bebê, de uma maternidade e de um fazer clínico; mas ocupam uma borda que não pode ser ultrapassada se ainda quisermos preservar a efetuação da essência singular de cada um daqueles corpos ali6. Aqui, a borda e nosso estado de alerta talvez não expressassem somente uma ânsia de evitação da morte diante dos encontros terríficos, para assim seguirmos com nossos territórios, nossas existências durando. Mas também um temor diante da (im)possibilidade de efetuar uma essência tão singular em existência, de fazer viver uma vida recémchegada, por vir e já ameaçada, ocupando esse limiar do tempo que não sabemos se vai durar. Extremamente afectados7 um pelo outro, experimentávamos uma dúvida sobre a potência ou destruição que poderiam advir dos encontros de nossas composições tão fragilizadas naquele momento. A mãe, curiosa e assustada, olhava aquele ser, buscando algo que se assemelhasse com uma imagem-bebê. Um sorriso, um choro, uma testa a se enrugar… algo que lhe dissesse da semelhança desse rosto consigo ou com o pai. Cabelo escasso, cabeça raspada para facilitar os procedimentos. Os olhos não se viam, constantemente fechados, com raras aberturas sutis, o que talvez lhe conviesse diante de tanta luminosidade à sua volta. Formatos de rosto, dedos, pés e mãos dificilmente identificáveis, já que sua forma raquítica não dizia somente de um tamanho, mas de algo que se pressupõe ainda não formado. Queria agarrar alguma semelhança humana, traço que fizesse percebê-lo como produção daquele agenciamento família, sexualidade, infância. O que se apresentava, entretanto, era um resto de rosto, um resto de significações, tão tênues... borrão, mistura entre o cinza e o bege. A inquietação nos tomava: onde está o bebê? Mantinha-se ali um resquício de criança que nos fazia seguir naquele encontro, sem nos lançar no vazio absoluto de um território totalmente devastado e sem esperanças de criação (Schérer, 2005).

O que pode o corpo no hospital? Não mais percebíamos somente corpos estendidos no leito, ocupando um tempo e um espaço determinados, frequentemente evidenciados no hospital. Não nos sentíamos apenas corpos-extensão, marcados pela materialidade asséptica do hospital. Um poder de ser afetado por aquela situação nos preenchia de forma muito particular… intensidades passando por entre nossas significações desmanchadas produziam outros ruídos antes não experimentados. Encontros com o hospital intensivo (dita Unidade de Terapia Intensiva), com a biotecnologia, nos lançavam para agenciamentos não tão evidentes ao nascer de um bebê. Encontravam-se ali, também, corpos intensivos, potências não tão palpáveis nem visíveis, mesmo com os microscópios científicos. Ar sem vento, luz sem sol, silêncio cheio de ruídos… os ruídos, estes, sim, se faziam perceber nitidamente. Barulho mais do que ruídos naquele instante, máquinas, apitos, conversas… menos choros. A luz intensa também estava ali, sem sabermos a hora, se dia ou noite. O dito paciente parecia estar tão rodeado 38

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Da Idade Média até início do século XVIII, o hospital configurava-se como um espaço para os excluídos, pobres e desassistidos que iam ocupá-lo para morrer. Não havia preocupação em curar ou evitar a morte, sendo um espaço de grandes contaminações, mais asilar. Com a industrialização, foi se construindo a necessidade de organizá-lo e torná-lo uma técnica de cura, incorporada à medicina, de controle de doenças e evitação da morte orgânica. Garantir a vida biológica passou a ser sua função e preocupação central da sociedade (Foucault, 1979).

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Essência tem a ver com uma potência de agir e de pensar que se efetua em cada corpo. Cada corpo tem sua forma singular de agrupamento de partículas que o caracterizam como tal, dando-lhe consistência e existência. Assim, esse encontro adquire uma existência e atualiza uma potência. Entretanto, deixa de durar extensivamente (morre) quando perde esse modo de relação que o caracteriza (Spinoza, 2008).

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Efeito de um corpo sobre outro no encontro de corpos, sendo o modo como conhecemos e de onde o conhecimento pode partir para que ampliemos nossa potência e existência.

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“Estar com” para Aragon diz de um acompanhar que implica riscos, pois há um perder-se de si e um lançar-se na loucura de partir. Lugar no qual morre o eu narcísico, impessoal, mas inclui as pessoas em cena. Trata-se de um sair da identidade de clínico que torna possível a clínica. 8

9 Utilizamos este termo para dizer da prática tradicional das diversas profissões da saúde de adotar uma postura prescritiva, de saber e dizer das necessidades e condutas do outro, dito paciente, sem buscar conhecer e conectar-se com seus desejos, necessidades, realidade e singularidade.

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de pessoas… uma técnica que, a cada trinta minutos, o observava, media os sinais vitais, mas, mesmo assim, a vida tradicionalmente conhecida por nós parecia muito distante daquelas medidas. Batimentos cardíacos, temperatura, saturação de oxigênio e tantos outros. Tantos procedimentos, tanta medição de vida, mas nos perguntávamos: que vida estava sendo medida ali? Por que aquele encontro nos estranhava tanto? Naquela presença abarrotada de sinais, transbordavam códigos, vazando por entre os pequenos dedos daquele bebê, contrastando com nossas grandes mãos que tentavam tocá-lo sem desmanchar. Encharcamento nos lançava num vazio de encontrar um bebê que não procurávamos. Encontro e não busca. Não achar o bebê esperado colocava-me diante de uma cena sem uma mãe prevista também. Poderia chamá-la de mãe, mesmo sem a certeza de que tivesse gerado exatamente um bebê? Um bebê prematuro impunha a necessidade de uma mãe prematura, não completamente formada aos olhos da ciência. Sentia-me também não muito psicóloga… não sabia bem o que fazer com uma dupla quase mãe-bebê. Sentíamonos, também, quase-bebês, desterritorializados das formas da infância e de família modernas tão conhecidas. O amor maternal e sentimento familial – que colocam o afeto pelo bebê angelical em primeiro plano –, o ato de amamentar e cuidar num lar intimista e privado estavam atravessados por outras sensações e ruídos (Ariès, 1981). Forças imperceptíveis rastejavam pelos porões do imenso hospital, contagiando e infectando-nos. Pouco sabíamos daqueles códigos, nada parecíamos conhecer daquele pequeno corpo. Num primeiro movimento de desterritorialização, mãe e eu, não habituadas a esse universo da UTI, simplesmente estávamos com8 (Aragon, 2000). Aos poucos, íamos também nos deixando contagiar pelos códigos médicos e passávamos a habitar aquele espaço de forma menos tensa, mesmo que isso não estivesse ligado à mudança no dito estado de saúde do bebê. Apesar de certa desacomodação que sempre nos acompanhava, os prognósticos clínicos nos forçavam a um pouco de adaptação para podermos permanecer ali. Tempo prolongado e espaço delimitado davam as coordenadas dos modos possíveis de existência. Habituadas ao ritual, entrávamos por portas distintas. Pacientes e trabalhadores separavam-se já no início. Lavagem de mãos com dez passos, avental cor-de-rosa e aí, sim, podíamos adentrar as próximas portas. Como de praxe com alguém que se diz paciente, ela e o dito bebê esperavam que alguém, inclusive eu, se aproximasse do leito. Mesmo enquanto profissional prestando consultoria à UTI Neonatal, ainda me sentia um pouco visita. Não sei se pelo trânsito em diversas unidades, se pela estrangeirice dos códigos, se pela distância produzida entre nós cuidadores e aquele que receberia nosso cuidado. Ao nos contagiarmos por esses códigos, começávamos a nos situar nesse universo da terapia dita intensiva. O que poderia eu orientar ali? O que fazia a equipe convocar-me? Até onde sabia, era importante que uma mãe amamentasse, pegasse seu bebê no colo, o tocasse, falasse com ele, assim como sabemos, de longa data, em psicologia que o aconchego desses primeiros tempos é essencial para a formação de um sujeito, de uma subjetividade dita normal e para a construção de um indivíduo inserido na linguagem. Neste caso, impunha-se a urgência de uma prescrição psicológica9 que se afirmava poder salvar esse indivíduo, mas não parecia suficiente. Mãe e eu compartilhávamos dessa mesma dúvida, já que muito do que lhe vinha prescrito, devia, neste encontro, ser desacatado em certa medida. Algumas referências de um cuidado humanizado, no qual a voz, o toque, o olhar, o contato, um vínculo adequado entre pacientes e equipe, e um modo de atendimento ao sujeito integral (em todas as suas necessidades e demandas de saúde), deviam ser contempladas. Mas por que 39


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humanizar? Quem queríamos tornar mais humanos? Os profissionais, os pacientes? Não eram exatamente os homens que teriam construído todos esses aparatos de cuidado em saúde e inventado essas noções de clínica, saúde, trabalho e sujeito? Aqui, os profissionais se incomodavam com a exigência de humanizar. Além de mais uma tarefa a atrapalhar a organização prescrita do trabalho irrealizável, diziam que não éramos humanos! Como assim? Um novo humanismo se impunha, no qual nos perguntávamos o que queríamos salvar, que tipo de homem estaria a surgir diante do nosso cuidado, e que tipo de trabalhador queríamos nos tornar diante das relações estabelecidas na UTI (Fuganti, 2009). Ordem desordenada e certo humanismo desacatado. Tentava eu dizer: “fale com ele, mesmo sem responder ele lhe escuta, converse sobre o que se passa, divida suas dúvidas e angústias com ele. Na impossibilidade de tocar, fale, sua voz é confortante, tente acamá-lo”. Sabia da importância das minhas palavras, diante da impossibilidade em que aquela mãe se via, como se nada pudesse fazer diante de tantas coisas que a separavam do bebê imaginado, ou do bebê que fora tentando esperar após tanto tempo de internação hospitalar. Mas algo nos fazia desconfiar de minhas próprias prescrições psicológicas. A mãe não falava e não parecia estar aberta e em condição de confortá-lo naquele momento. Quieta e presente, trazia perceptível, nas palavras mudas e nos pequenos gestos arriscados, uma desacomodação que não lhe permitia acolher incondicionalmente em aconchego esse outro. Seus olhos indagavam: será que ele escutaria mesmo, se nem os órgãos dos sentidos estão formados totalmente? E, com tanto barulho à nossa volta, se pode falar em conforto? Poderia ela anunciar qualquer tipo de conforto ou promessa de cura diante de tantas dúvidas que também eram nossas? Desacatava também as ordens e não me contentava em facilitar o vínculo mãe-bebê como constantemente solicitado. Rejeitava a dissociação criada, na qual alguns cuidam do corpo orgânico, outros do psíquico. Que vínculo eu poderia favorecer se, entre nós, colegas, as relações viam-se muitas vezes tão distantes e fragmentadas? Na verdade, havia um pedido aparente de dar conta dessas questões, pois algo desconfortante e estrangeiro fazia com que, em determinadas situações, os médicos e enfermeiras me chamassem. Em seu pedido, falaram-me da situação crítica do bebê, entre a vida e a morte. Mas também de si, de certa incapacidade e incompletude num modo de cuidar que deveria ser onipotentemente total. Talvez esperassem que eu fosse a parte que faltava para fazer viver, ou, então, para acompanhar um morrer. Não explicitavam, mas, em pequenas conversas aos corredores, esses rumores faziam-se sentir em meus desconfortos. As demandas da equipe não eram exatamente para aquelas duplas mãe-bebê com dificuldades de vínculos… Enquanto estávamos ali, ao lado do leito, estando com, a tão esperada visita de médico se deu. Por diversas vezes, tinha ido ao leito informar, comunicar. Suas palavras compunham uma melodia com frases curtas e monotônicas, embaladas por conjuntos de letras com significados indecifráveis aos nossos ouvidos. Alcançava escutar assim: “a saturação tem sido X, os ml de leite Y, e o peso segue, tudo segue, estável, mas sem seguir; o tubo seguirá, mas algo não segue. A evolução não evoluiu, mas também não regrediu”. A mãe, roubando as palavras de minha boca, perguntava: “mas como é que ele está Doutor? Está bem, melhorou ou piorou?”. Ria por dentro um pouco constrangida, mas era o mesmo que eu desejaria saber. Embaralhado ou até certo ponto impaciente, o médico diz: “Ah, pois é mãe, é como eu lhe disse, não melhorou… mas não ter piorado também pode ser melhor. Digamos que dentro desta perspectiva melhorou, mas não se empolgue, podia ter melhorado mais”. O lugar do médico, historicamente construído e muito ligado à necessidade de um saber que não pode falhar, de dar resultados e dizer prognósticos, desacomodava-se quando sua linguagem científica se desarmava, pois, de fato, não tinha garantias. Expectativas de um adulto promissor (estas também construídas e consolidadas na modernidade, quando o bebê passa a ser visto como um adulto em potencial, segundo Ceccim e Palombini, 2009), no mínimo, estancadas, suspendendo sonhos de uma quase-mãe que quer se orgulhar de um futuro filho gordo e saudável. O médico, com seu jaleco branco, ar de seriedade cansada, expressa nas rugas e olheiras pós-plantão, não sabia onde colocar os braços. Trazia certo desconforto e constrangimento. Gostaria ele de dizer: “Sim, mãezinha, seu bebê está melhor, conseguimos salvá-lo e ele irá para casa”. Ou então, ao menos, ter a certeza de que, com uma notícia fatal, não precisaria encontrá-la no dia seguinte, novamente, sem prognóstico de melhora, e assim sucessivamente. Algo se sustentava ali, mesmo que nós profissionais nos sentíssemos tão destituídos de nossos lugares. Mãe e bebê também estavam meio deslocados. 40

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Realizar um cuidado humanizado implica inserir o usuário e seus familiares nos cuidados, compartilhando decisões, cuidados e responsabilidades. 10

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Nossa esperança era a técnica de enfermagem ou a enfermeira, que tanto pareciam compreender aquele universo e tão bem controlar todos os fatores à nossa volta. Chegaram cuidadosamente e pediram à mãe que saísse, pois iam fazer um procedimento. O Procedimento, nome-próprio. Tempo cronometrado e organizado que não dizia do tempo de dormir, acordar e mamar do bebê, mas de tudo que deveria ser feito para assegurar os procedimentos clínicos de uma UTI. Estranho aquele pedido de sair. Não seria exatamente nessa hora que uma mãe deveria estar com seu bebê?10. Ou seria, simplesmente, outro saber de psicóloga a entrar em disputa, sustentando um ideal de atendimento dito humanizado? A psicologia estaria reafirmando seu saber como único e exclusivo, quando diz que o mais importante e essencial do cuidado é o vínculo da díade mãe-bebê, buscando preservar um único modo de família? Talvez por medo, preocupação, precaução, prevenção… enfim, algo que bloqueasse a intensidade dos afectos de uma quase-mãe ver seu quase-filho ser invadido, manipulado, perfurado. No mínimo, algo não muito agradável, não que as demais cenas ali o fossem. Muita prudência. Seria essa a prudência da qual nos falam Spinoza e Deleuze (Deleuze, 2008)? Esta se faz necessária quando queremos ampliar nossas potências de vida, pois, antes de nos encontrarmos com o outro, nada conhecemos; e temos a possibilidade de resultados alegres e tristes deste encontro, quase ao acaso. A não ser que já façamos um movimento de nos fortalecer, buscando selecionar as paixões alegres, que podem ampliar nossa existência. Isso implica construir noções comuns, conhecimento comum, compartilhado do modo como se dão esses encontros. Que tipo de relação estabelecia-se ali, entre nós da equipe e os pacientes, que permitia dizer que o profissional sabia qual era o nível de prudência necessário? Eu indicaria que a mãe ficasse, a enfermeira, que ela saísse. A posição: a mesma. Distanciamento e submissão do outro às paixões, tristes ou alegres, mas sempre paixões, já que a potência de afetar está desconectada da potência de agir, e o corpo está desapropriado daquilo que o amplia ou o diminui, sem construir conjuntamente aquela decisão. Talvez a mãe se alegrasse em sair, se entristecesse ao ficar junto ao bebê durante o Procedimento. Mas, de qualquer forma, seriam paixões, ideias inadequadas, pois em nada faziam parte de uma produção de conhecimento comum. O bebê… teria ele possibilidade de apropriação, de conhecimento, se nem ao certo sabíamos de sua potência de se afetar com todo o meio à sua volta? Seríamos capazes de nos afetar e conhecer seus modos de expressão nesse momento? Talvez a prudência dissesse de uma sensibilidade aguçada e sutil em perguntar se gostaríamos de ficar ali. Mesmo assim, talvez ainda estivéssemos no nível das ideias inadequadas. Saberíamos o que poderia se passar ali? Saberíamos antecipar, ou já teríamos possibilidade ou vivência de selecionar aqueles afetos? Seriam tristes ou alegres? A construção de uma noção comum, do que nos conecta com outro, implica selecionar aqueles afetos que ampliam nossa potência para, assim, podermos, cada vez mais, afirmar aquilo que, no encontro com o outro, expande ou diminui a vida (Deleuze, 2008). Sutilezas no olhar indicavam temor e curiosidade, vontade estranha de participar, de cuidar também, já que diziam que esses eram efetivamente os cuidados mais necessários. Talvez uma pergunta nova aparecesse ou fosse necessário colocar: o que seria feito nesse tal procedimento? E como proceder no procedimento enquanto procedido? Mas aí, já perderíamos a hora e outros procedimentos que não podiam esperar. Melhor pedir pra sair, ou talvez arriscar e ficar. Teríamos condições de correr esse risco? E o correríamos sozinhas? Seria um risco também para a enfermeira, que não conhecia o território dos procedimentos acompanhados por mães e psicólogas sem lugares designados. 41


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Tais indagações atravessavam como em instantes condensados no menor tempo possível de ser vivido. E com esses desarranjos em trânsito, alguns lugares e estabilidades pareciam conseguir se manter, nada em desespero, apesar de o desespero ser uma casa bastante possível de habitarmos nesse aparente horror do hospital. Desespero ou acomodação ocupam polos, aqui, de um mesmo possível: estar tomado pelas paixões de forma passiva. Rumores adentravam nossos encontros, perambulando pelos leitos e salas da UTI (Preciosa, 2010). Discretos, não eram notados facilmente. Surgiam por composições microscópicas, que se arranjavam e desarranjavam, nos colocando num desconforto duvidoso. Um bebê com outras formas nos convocava a buscar forças outras para podermos encontrá-lo em suas minúsculas dimensões. Olhar distante da mãe, buscando referências desencontradas. Fala silenciosa da psicóloga muda, cansada de suas próprias palavras. Mãos soltas de um médico que, nos bolsos do jaleco, não mais cabiam… e controle descontrolado da enfermagem, ao qual escapavam não só agulhas, mas, também, forças. Linhas de fuga iam se traçando, abrindo possibilidades de não mais ficarmos somente no plano das formas instituídas, da extensão ou da passividade (Deleuze, 1997). Aberturas para nos conectarmos com as potências de agir, singulares, de cada um e, ao mesmo tempo, de um comum nessa cena clínica. Spinoza (2008) afirma constantemente que conhecemos a partir das afecções, elas são o motor que impulsiona o conhecimento e uma vida ativa. No contemporâneo, após muitos anos da produção de um homem racional, individualizado e distanciado da força das paixões, tal afirmação sobre a potência dos encontros de corpos em nada carrega obviedade. Num ímpeto comum, iríamos simplesmente tudo antecipar. Tudo saber de antemão, tudo conhecer, seja um saber médico, psicológico ou maternal que afirma conhecer seu bebê mesmo em condições tão inesperadas, simplesmente adequando referências imaginárias aos novos encontros. Não deixar advir das afecções a oportunidade de nos conhecermos é calcar toda a construção de uma vida em ideias inadequadas. Evitar e aceitar certa passividade daquilo que já está dado era um território muito provável, sabido por nós no hospital. Tecnologia que buscou, ao longo da história, concretizar esse grande saber, que já aparece antes mesmo de nos encontrarmos com os corpos, construiu-se como possibilidade, sim, de conhecimento, a partir de encontros e desencontros de uma época. Mas sua generalização como modo único de produzir saúde colocou-nos diante de um caminho aparentemente sem invenção. A busca excessiva de controle, o domínio de uma ciência, dos modos de viver contemporâneos, dos modos de fazer família modernos, entretanto, nunca conseguiram dar conta de um fazer clínico cotidiano que, nas brechas, sempre teve de se reinventar. Deste modo, afirmar e sustentar um desfazimento diante de todas as formas dadas na cena clínica não era pouco. Significava, ao menos, a possibilidade de abrir espaço para as noções comuns, para a construção de outro saber mais ligado às nossas singularidades a se expressarem ali.

Por uma clínica infinitamente minúscula Certa vez, entramos com as mãos sujas… acho que esquecemos algum dos dez passos. Deixamos a janela entreaberta quase por descuido. Vimo-nos invadidos pelos microscópicos e imperceptíveis que pulsavam ali. O médico mostrava-se preocupado, pois, em nada, suas previsões se confirmavam e tampouco se contrariavam. Um choro silencioso expressava a angústia de não poder centralizar o saber tão comumente atribuído a ele no hospital. Simplesmente não sabia mais. A enfermagem controlava somente seus próprios equipamentos de controle, pois, de fato, nada estava sob controle, já que, no encontro com aquele bebê, não mais podíamos prognosticar sua dita evolução e, tampouco, nossas tradicionais práticas clínicas. A psicologia, por sua vez, cansava-se de somente reforçar a necessidade de humanizar o bebê, o médico, o cuidado. Excesso de humanidade. Ele não se deixava nomear, nem diagnosticar, tampouco se deixava acalentar nos braços calorosos e carinhosos de uma mãe. Esta, por sua vez, simplesmente olhava e nos dizia muito com aquele olhar discreto. Estávamos desacomodados, já que nossos atendimentos rotineiros mostravam-se insuficientes. Não que não tivessem sua importância, mas não davam conta de fazer passar os rumores imperceptíveis que nos incomodavam naquele dito caso. O bebê não continha em si nada de extraordinário. Provavelmente, para ele, essas nem fossem as questões, tão marcadamente adultas. Em sua anomalia, ou diferenciação da forma bebê, colocava-nos 42

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Spinoza (2008) afirma que os seres são constituídos pela mesma substância infinita e imanente, o que resgata a inumanidade presente no ser humano e o coloca num mesmo nível ontológico que qualquer outro ser existente. Esta intensidade impessoal e pré-individual faz-se presente quando abrimos espaço para outros modos de conhecer e experimentar não tão marcados pela racionalidade. 11

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numa condição de anômalos também, construindo uma noção comum. Poderia ser mais um caso ao acaso, cotidiano e rotineiro, se, com nossas forças, bloqueássemos as intensidades, se, de modo rápido e eficaz, construíssemos novos territórios calcados na ciência, na religião, ou em crenças sobrenaturais. Mas algo daquela inumanidade, daquela vida ainda não vivida a ser tão investida, nos inquietava11. Havia algo de comum nas nossas composições que, apesar dos desarranjos, nos faziam querer viver aquele encontro de alguma forma. Deveríamos estar fazendo tantos esforços por este bebê? O que nos movia? O que restava desse encontro clínico senão um bebê falho que não respira, não mama e não chora como os demais? Com o que estávamos nos encontrando naquele instante (já que sentíamos que não era somente com esse Bebê, com B maiúsculo)? Suspensão de saberes, de formas, de subjetividades arredondadas, lançadas à intensidade do encontro de mãos sujas e sutilmente desprotegidas. A ausência de fala, mas, também, de uma linguagem codificada, como o choro, o riso e o balbucio, nos lançavam num universo sem palavras, sem significados. Toque perigoso nos fazia experimentar um paradoxo: o toque pode salvar ou matar? Tamanha sensibilidade e miniaturização nos exigiam uma sutileza, inclusive, do toque sem mãos, com a pontinha dos dedos, quando até este poderia ser mortífero para o bebê. O cansaço da grandeza tão presente nas práticas científicas, hospitalares e acadêmicas, a dificuldade de que nossas práticas formadas nos satisfizessem naquela situação… tudo isso nos forçava a diminuir os ouvidos, mãos e bocas. Diminuíamo-nos, diante de tanta imensidão, para tentarmos nos conectar com algo muito pequeno e intenso a ressoar em nós. Que tarefa é essa de curar pessoas, de formar vidas funcionantes? Por mais debilitado que estivesse aquele bebê e que estivéssemos nós, algo vibrava e tornava necessário outro plano de encontros. Plano discreto, sempre ali, não se contentava em assumir o lugar deste, até então mais conhecido. Queria ficar nas beiradas, nas brechas, queria ser um tanto não doente, não classificável, talvez até não tão saudável… “Possuir um corpo estranhado num espaço, aceitando o jogo de desmantelar-se, exige muito” (Preciosa, 2010, p.25). Em verdade, nada havia de mágico, dramático ou homérico nesses toques e escutas sutis que nos forçamos a fazer. Simplesmente, fomos abrindo brechas, nem mesmo voluntárias, que nos tomaram num certo plano comum de incômodo com aquelas vidas, com nossas vidas e com nossos modos de fazer vidas. Quanto poder! Fazer vidas! Não o tínhamos de fato e talvez, por alguns instantes, não o queríamos. Simplesmente afetar-se, abrir-se para uma escuta que nos dizia que havia alguma vida ali que não nos pertencia, mas na qual estávamos muito imersos. Abertura esta necessária para o cartógrafo que busca conhecer a partir dos encontros de corpos, assim como do clínico que busca afirmar a ampliação de uma vida conectada com os afetos e construções conjuntas. Afirmação de que há algo naquele encontro, que não a falta. Não a vida determinada por um superior, ou simples organismo perdedor a não se adaptar. Uma vida, e corpo que “abriga sons para serem ouvidos. […] cadências para serem experimentadas” (Preciosa, 2010, p.26). Que possibilidades de encontro, de comunicação, de expressão existem neste cenário clínico? O que pode o corpo do bebê, da família e do trabalhador nesse encontro? Potência tão informal e infinitesimal que, ao mesmo tempo em que nos conecta com certa infinitude da vida, custa a ganhar expressão possível, audível e visível. Encontros tão sutis que nos escapam por entre as letras deste texto. Contagiados pelas afecções e pela vida que ali nos tomava em comum, certo dia, nos permitimos quebrar os protocolos e deixamos o irmão mais velho visitá-lo, 43


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tamanha era sua curiosidade em conhecer o bebê que em casa nunca chegava. O menino, mais velho, mas ainda diminuto, subiu em uma cadeira e inclinou-se. Queria ver. Olhava por entre as portinhas da incubadora como se janelas se abrissem. Curioso perguntou-nos, voltando o olhar para sua mãe: “Doutor, por que ele não chora?”. Insistia em encontrar um modo de se comunicar com o irmão, também um pouco despido do horror de vê-lo tão pequenininho (afinal, sempre lhe diziam que ele era bem pequenininho). Mas tampouco familiarizado o suficiente para trazer alguma palavra. Começou a sussurrar alguns sons ao pé de sua orelha. Sons que não queriam construir melodia, mas acessar aquela forma de linguagem tão estranha e diferente. Compunha versos, paradas e sons que nos faziam vibrar e, aos nossos olhos encharcados, chegavam. Contagiados, experimentávamos, naquele instante, algum desvio, algo ganhava expressão para aquém de nossas sábias palavras. Troca de olhares, um vento passou pela janela entreaberta. Vida encontrando outra vida ali. Experimentar encontrar-se com uma vida, suportar a vaziez (Preciosa, 2010). Talvez, aqui, habitar a miudez infinita de uma vida.

Ética da clínica, ética da vida Neste trajeto, expresso por meio desses fragmentos clínicos, percebemos que os encontros com o bebê prematuro, fragilizado e miniaturizado, despertavam, em nós profissionais e familiares, um sentimento de infância singular, resgate do plano de sensibilidade apacientado na forma adulto-homem (Schérer, 2009). Mesmo em situações de risco constante e assepsias necessárias, contagiavam. Assim, abriam-se brechas para o inesperado, apesar dos muitos investimentos de salvá-lo e expectativas de formar um adulto promissor. Tais bebês prematuros apresentavam-se, sim, como corpos em risco de dissolução e marcados pela urgência – fatores presentes no hospital e intensificados na UTI. Mas é justamente a partir deste limite experimentado que nos afetamos e interrogamos sobre a potência do corpo e da clínica. A partir destes afetos, nos conectávamos com nossas próprias fragilidades enquanto clínicos/pesquisadores não sabedores, pais insuficientes ou bebês não funcionais, adentrando um plano comum de composição múltiplo e impessoal e resgatando nossa própria infinitude e coletividade constitutivas. Deixando passar tais intensidades advindas desses encontros fissurados, acompanhamos algumas possibilidades minúsculas de reinvenção e composição de uma clínica que não busca afirmar-se como uma nova identidade e se quer minúscula em contraposição às grandezas do hospital e da ciência. Positivar as diminuições de uma clínica ou o pequeno tamanho de um bebê prematuro internado nada tem a ver com minguarmos as forças ou nos assujeitarmos às grandezas. Sabemos e experimentamos as angústias das cenas clínicas, o sofrimento e a dor dos processos de miniaturização e desterritorialização. Deste modo, desejamos, sim, desmanchar, mas precisamos nos manter num limiar de organicidade do corpo e subjetivação da alma, de modo a podermos acessar as potências das quais falamos. A tarefa e a vontade de manifestar tais forças colocam-se justamente na ocupação desta borda, habitada sempre arriscadamente. O risco é o de estarmos no plano das significações ditas verdadeiras, sem espaços necessários para as criações. Por outro lado, também arriscamos nos mantermos num emaranhado de afecções de corpos sensíveis, sem produzir sentidos e expressão (Spinoza, 2008). Buscamos dar expressão às potências impessoais que nos atravessam e fazem criar modos singulares de existir, de clinicar. A questão não é mais somente a do limite entre vida e morte, mas dos modos de viver e morrer (Aragon, 2007). Como vivemos e morremos na UTI Neonatal? Essa indagação não se conclui, mas abre possibilidades de pensarmos. Para tanto, demos passagem às inquietações que iam deslocando-nos dos lugares habitualmente ocupados como pesquisadores, como clínicos-trabalhadores, como pacientes. A potência da qual falamos aqui não é de posse do bebê prematuro, mas nossa também, já que analisamos a força dos agenciamentos que podem se produzir no encontro com ele e os desmanchamentos institucionais possíveis. Uma vida, e não mais a vida do bebê, contendo infinitas possibilidades de composição. Tal multiplicidade e abertura são, ao mesmo tempo, o que nos coloca em risco e possibilita criar estratégias inventivas de viver. O critério utilizado para conhecer o que define uma potência e a impotência tem a ver com aquele afirmado por Spinoza (2008): a expansão da vida. Liberdade de expansão da existência tem a ver com 44

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resgatar a própria potência de expressão nesse plano comum invisibilizado pelas leis sociais criadas. Está ligada a uma experimentação do corpo para produzir um pensamento adequado para esta ou aquela situação (Ulpiano, 1990). Assim, afirma uma ética imanente, que se faz a cada novo encontro, e que ultrapassa a moral do Bem superior ou do Homem dono de si mesmo. Deste modo, objetivamos abrir espaço para outras formas de vida e de clínica menos assujeitadas, menos reféns de um saber transcendente, exterior e que não pode ser produzido por nós. Obviamente, em situações de risco, facilmente nos apacientamos, entregando nossas vidas a um saber já antecipado. Mas os saberes e escolhas científicas não são naturais, neutros, óbvios e também delimitam ou expandem nossas possibilidades de vida de acordo com a forma como se constroem nas relações. Tal ética da vida e da clínica abre espaço para valorização de uma vida intensiva, e não somente orgânica, a ser preservada, potencializada e expandida. Não propomos então um novo saber, mas pequenas invenções no limite de saberes e poderes na clínica hospitalar. A experiência clínica seria propriamente devolver o sujeito para o plano de produção coletivo, intensivo (Benevides, 2005). É exatamente pelo fato de sermos compostos por partículas infinitamente minúsculas, agrupadas de determinados modos, que temos possibilidade de nos diferenciarmos de nós mesmos. Arranjos singulares, mais autônomos, baseados na experiência, e não somente em valores generalizantes.

Considerações finais A partir desta cartografia, vimos emergir, neste cenário da UTI Neonatal, um corpo orgânico e individualizado, a ser olhado e manipulado, e sentimos os efeitos dos sentimentos de infância e família, no qual o bebê se torna alvo de cuidados, e a família, instrumento de aperfeiçoamento do biopoder. No encontro com as tecnologias avançadas e as políticas de humanização, evidenciamos o paradoxo no ato de produzir padrões de saúde e, concomitantemente, acolher as singularidades em situações de risco. Ao resgatarmos, entretanto, o corpo como produtor de conhecimento e valorizarmos os afectos despertados pelo campo de pesquisa, indagamo-nos acerca da potência do corpo e da clínica de produzir rupturas a esses padrões. Evidenciamos, com isso, estratégias micropolíticas, microscópicas, de escapar e de questionar, sugerindo a construção de uma clínica minúscula, balizada por uma ética de expansão da vida. Mas buscamos seguir, com rigor, o método proposto, e consideramos essencial a afirmação constante de modos singulares de fazer pesquisa e produzir conhecimento.

Colaboradores Luciana Rodriguez Barone desenvolveu o texto durante pesquisa de Mestrado, sendo Tania Mara Galli responsável pela orientação e supervisão deste. Referências ARAGON, L.E.P. O impensável na clínica: virtualidades nos encontros clínicos. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2007. ______. Crian-ça: ensaio sobre a subjetivação. Bol. Form. Psicanal., v.9, n.2, p.23-30, 2000. ARIÈS, P. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981. BARONE, L.R. Por uma clínica infinitamente minúscula: senti(n)do por entre os corpos no hospital. 2011. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2011. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.35-47, jan./mar. 2013

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BARONE, L.R.; FONSECA, T.M.G.

BARONE, L.R.; FONSECA, T.M.G. Por una clínica infinitamente minúscula: lo que puede el cuerpo en una Unidad de Cuidados Intensivos Neo-natal. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.35-47, jan./mar. 2013. El objetivo de ese trabajo es problematizar la clínica y el cuerpo en una Unidad de Cuidados Intensivos Neo-natal, desde la experiencia como psicóloga en este contexto. A través de una metodología cartográfica que rescata un plano de sensibilidades, a menudo higienizadas en el hospital, buscamos recorrer las singularidades de los encuentros clínicos, atravesados por las instituciones hospital y familia. Así, encontramos las marcas homogeneizantes de los encuentros con el bebé prematuro que ahí se encuentra. Pero, pudimos ver las líneas de fuga a esos modos dominantes que van abriendo nuevas posibilidades de cuidar. Cuando nos preguntamos sobre la potencia del cuerpo y de la clínica, fuimos recorriendo y afirmando una clínica minúscula que se compone en los encuentros singulares y pone en escena otra ética intensiva de la vida.

Palabras clave: Bebé prematuro. Hospital. Cuerpo-pensamiento. Cartografía. Clínica minúscula . Recebido em 29/02/12. Aprovado em 12/11/12.

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Dilemas antropológicos de uma agenda de saúde pública: Programa Rede Cegonha, pessoalidade e pluralidade

Rosamaria Giatti Carneiro1

CARNEIRO, R.G. Anthropological dilemmas of a public health agenda: Rede Cegonha program, individuality and plurality. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.49-59, jan./mar. 2013. The Rede Cegonha program, a Brazilian initiative targeting pregnant women and mothers who use the national healthcare system, was recently launched. This proposal seems to provide two possible interpretations. On the one hand, it implies important recognition of citizenship and puts the right to healthcare access into effect. On the other hand, its orientation, effectiveness and limits can be questioned, when and if points arise from theoretical discussions relating to plurality of the women’s category and, especially, relating to criticism of Brazilian obstetric practices by followers of the ideas of humanized childbirth from around the year 2000 onwards. Considering that Brazil is the world record holder for the number of cesarean sections, this program is analyzed in the light of these two sources of discourse and starting from the tensions involved in medicine versus depersonalization and health versus disease, together with the current notions of person, body, experience and singularity.

Foi lançado recentemente, no Brasil, o Programa Rede Cegonha, iniciativa nacional orientada à gestante e à mãe brasileira usuárias do serviço público de saúde. Essa proposta parece colocar-nos diante de duas possibilidades interpretativas. De um lado, implica o importante reconhecimento da cidadania e efetivação do direito de acesso à saúde. De outro, abre espaço para a problematização de sua orientação, eficácia e seus limites, quando e se questionado a partir de discussões teóricas da pluralidade da categoria mulher, e, sobretudo, das críticas à prática obstétrica brasileira pelos adeptos do ideário do parto humanizado a partir dos anos 2000. Dado que o Brasil é o recordista mundial no número de cesáreas, tematiza-se o referido programa, à luz dessas duas matrizes discursivas e a partir de tensões como medicina x despersonalização e saúde x doença, e de noções de pessoa, corpo, experiência e singularidade na contemporaneidade.

Keywords: Health public policy. Right to difference. Women’s health. Individuality.

Palavras-chave: Políticas públicas de saúde. Direito à diferença. Saúde da mulher. Individualidade.

Departamento de Saúde Coletiva, Universidade de Brasília. FCE QNN 14, área Especial, Ceilândia. Brasília, DF, Brasil. 70.220-140. rosagiatti@yahoo.com.br 1

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DILEMAS ANTROPOLÓGICOS DE UMA AGENDA DE SAÚDE PÚBLICA: ...

Programa Rede Cegonha: a universalidade de uma política em um Brasil plural No dia 28 de março de 2011, a Presidente Dilma Rousseff e o Ministro da Saúde Alexandre Padilha lançaram um novo programa de assistência à gestação, parto e maternidade no Brasil. Trata-se do Programa Rede Cegonha, uma iniciativa que procura melhorar o acesso e a qualidade do atendimento ao nascimento na rede pública de saúde, tendo por diretrizes: o teste rápido de gravidez nos postos de saúde; o mínimo de seis consultas de pré-natal durante a gestação, além de uma série de exames clínicos e laboratoriais, inclusive teste de HIV e sífilis; a garantia de leito e de vinculação da gestante a uma determinada maternidade ou hospital público, bem como vale-transporte ou vale-táxi até o local no dia do parto; a qualificação dos profissionais de saúde para uma atenção segura e humanizada; a criação de centros de gestante e do bebê para a assistência à gravidez de alto risco e de casas de parto normal para implementar as demandas do parto humanizado para os casos de baixo risco. Além disso, o programa pretende também incentivar o aleitamento materno; disponibilizar o Samu Cegonha ao recém-nascido que necessite de transporte de emergência, e difundir, nas escolas, um programa de educação que busque controlar a gravidez na adolescência e trabalhe com a noção de direitos sexuais e reprodutivos. O objetivo geral é erradicar os altos índices de mortalidade materna no Brasil, sobretudo na área amazônica e no nordeste do país. A proposta é do governo federal, mas competirá aos estados e municípios a sua aplicação. Para tanto, o governo disponibilizará 9,4 bilhões de reais até 2014, procurando amparar os dois milhões de gestantes atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O programa é ainda bastante recente, mas já tem gerado controvérsias. Para as feministas da Rede Feminista de Saúde, implica um retrocesso de trinta anos na luta das mulheres pela saúde e emancipação feminina. Segundo a cientista política da Rede, Télia Negrão, em entrevista concedida a repórter do Blog Viomundo, em 05 de abril de 2011, esperava-se mais da atuação de uma mulher na presidência do Brasil, mais do que a reafirmação da mulher entrelaçada à maternidade, lida como mulher-hospedeira. Segundo esse grupo de feministas, a iniciativa reitera a noção de que a saúde da mulher e a própria pessoa da mulher estariam orientadas para a maternidade, para a chamada mulhermala, deixando de debater a liberdade de escolha da maternidade, e, assim, também a legalização ou descriminalização do aborto. Segundo Negrão, o discurso de fundo do programa é mistificador, e causa estranheza a presença da CNBB no dia de seu lançamento. Em seu entender, a figura da mulher, que dá à luz, desaparece, assim como os seus direitos sexuais e reprodutivos; dando lugar à cegonha, à concepção de saúde de mulher materno-infantil e ao Estado. Além disso, em sua leitura, não há como não interpretar esse cenário sem considerá-lo como resquícios ou consequências da polêmica campanha eleitoral do ano passado, em que os temas da gestação e do aborto adquiriram notoriedade e tom político pejorativo, envolvendo a atual presidente e o então adversário do PSDB. Por tudo isso, conclui que o Rede Cegonha desumaniza o evento reprodutivo, enquanto, em contrapartida, a Rede de Saúde Feminista solicita que o Ministério da Saúde incumba-se mais de retomar a proposta do Plano Integral de Saúde da Mulher (PAISM), desenvolvido em 1983, mas longe de ter sido efetivamente implementado (Batista, 2000). Esse programa de assistência integral à saúde feminina já teria, na acepção dessa rede de feministas, disposto sobre as necessidades e possibilidades de melhoria da atenção à mulher e de modo não necessariamente conectado à maternidade. De um modo ou de outro, o que vemos parece ser uma reação ao que consideram ser o entendimento do governo de que anatomia volta a ser destino, ou seja, de que as mulheres nasceram para serem mães, retomando, assim, a noção de maternidade-mandato, algo já tão debatido pelos movimentos feministas nas décadas de 1960, 1970 e 1980, no Brasil e no mundo. Contudo, de outro lado, a reflexão bastante diferente de Ceccim e Cavalcanti (2011) reorienta a questão, reconhecendo o valor do programa para um país que, conforme a mídia mais recente, apresenta: problemas de leitos em hospitais, precária assistência hospitalar e médica, altos índices de mortalidade materno-infantil, e uma das mais altas taxas de cesáreas do mundo – na casa de quase 80% na rede privada e 30% na rede pública, números bastante distantes do preconizado pela Organização Mundial de Saúde, que, desde 1985, recomenda o teto de 15% de partos cirúrgicos ao ano. Segundo esse artigo, pela primeira vez na história do país, a maternidade teria deixado de ser bioestatística para

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artigos

tornar-se direito e reconhecimento de cidadania, dando contornos a um parto cidadão. Dessa forma, os autores divergem da Rede Feminista, posicionando-se contrariamente, inclusive, quanto à sonegação do debate do aborto, conforme explicita artigo publicado no Blog Saúde com Dilma, em abril de 2011: Como admitir o aborto sem assegurar condições indiscutíveis de acesso à maternidade? Como proteger a mulher em um evento fisiológico, onde ela está submetida aos (pré) conceitos morais e legais da sobrevida da espécie, justamente em um momento de abalo em sua estrutura física e subjetiva (com a experiência de aflição) representada pelo parto, sem indicar-lhe o alívio de uma rede de proteção pública, independente de valores, crenças e hábitos? O parto não pode pertencer apenas à mulher, ela não pode sofrer e nem entrar em aflição pela falta de políticas públicas que lhe reconheçam o direito de um parto seguro, esteja onde estiver. O país tem de oferecer serviços profissionais de auxílio ao parto, garantias de acesso às maternidades profissionais e garantia de proteção e auxílio ao pósparto e puerpério. O puerpério contém necessidades de saúde relativas aos bebês e às mães, necessidades que são distintas entre os dois e se configuram no espectro de saúde da criança e de saúde da mulher. (Ceccim, Cavalcanti, 2001)

Conforme a leitura desses autores, não se trata de uma imposição moral ou biológica da maternidade, mas de uma política de saúde ter se tornado prioridade de governo, sobretudo porque a gestação acontece de maneira alheia ao Estado, cabendo a ele, entretanto, oferecer acesso à saúde e uma assistência de qualidade. Quanto à denominação da política, Rede Cegonha, também criticada pelas feministas, elas teriam divergido e tentado esclarecer que o termo cegonha vem atrelado à ideia de transporte, e não de gestar e de parir, cabendo, portanto, à mulher parir, mas, à sociedade, viabilizar o seu transporte e suporte. Dessa maneira, esses especialistas em políticas sanitárias parecem deixar claro o apoio à iniciativa governamental, ressaltando a sua importância no Brasil de hoje, bem como a eficácia e a abertura discursiva que a própria política pode vir a adquirir. Quanto ao atual panorama da saúde materno-infantil e paradigma de atenção gravídico-puerperal brasileiro, vale aqui ressaltar a recente difusão da primeira pesquisa a operar com a terminologia “violência no parto”. Trata-se de uma pesquisa amparada pela Fundação Perseu Abramo (2010) e empreendida por um grupo de pesquisadores da USP, cujos resultados foram divulgados no site da própria fomentadora no mês de abril de 2011. Segundo seus resultados, uma entre quatro mulheres brasileiras declararam ter sofrido algum tipo de violência no parto, nas maternidades e hospitais públicos e privados. No leque caracterizador da violência, encontramos desde exames de toques dolorosos, negativa para o alívio da dor, não-explicação dos procedimentos realizados, negativa de atendimento, gritos do profissional ao atendê-las, e até xingamentos ou humilhações vividas no momento do parto. Dessa forma, pela primeira vez, a violência denominada até então de “institucional” é caracterizada de modo mais situado como “violência no parto”, trazendo a público algumas das impressões femininas da atual assistência médico-hospitalar do país. De outro lado, como já mencionado, somos o recordista mundial no número de cesáreas/ano, uma realidade que tem ensejado, desde a década de 1990, reações críticas à prática obstétrica brasileira, e cuja soma terminou por desenhar o que hoje se conhece como ideário do parto humanizado ou movimento pela humanização do nascimento. Questões como essas, relacionadas às debilidades infraestruturais da rede de saúde brasileira, no limite, podem sugerir que a questão do nascimento é uma questão de saúde pública, de agenda política e de plataforma governamental em nossa sociedade. Diante disso, o Rede Cegonha, a despeito das críticas provenientes das feministas e dos movimentos de saúde, aparece como política de saúde universal, ou seja, de âmbito nacional, ainda que desponte, inicialmente, como mais preocupada com as regiões norte e nordeste do país. Dessa forma, como toda política pública, se vê indagada quanto à validade de sua extensão, num país, a um só tempo, carente de políticas de saúde, mas, também, notadamente plural, em termos de costumes, estilos de vida e, sobretudo, composto de mulheres urbanas, rurais, indígenas, negras, pobres, ricas, com distintas orientações religiosas, saberes tradicionais, crenças e modos de existência.

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Dos aportes de outra leitura: parto humanizado, proposta de política pública ou volição de singularidade? Em 1993, nasceu a ReHuNa (Rede de Humanização do Parto e do Nascimento), enquanto rede articuladora de estudos e de propostas críticas do modelo de assistência médica ao nascimento vigente no país. De acordo com estatísticas, a realidade do modelo “tecnocrático-hospitalar” (Davis-Floyd, 2009) não parece ter se transformado muito de lá para cá, porque o país ainda enfrenta o alto número de cesáreas e a polêmica ao redor de um conjunto de procedimentos médicos realizados no momento do parto, já há um certo tempo questionados pela medicina baseada em evidências (Biblioteca Cochrane). Sabemos que, antes da Rede, outros modelos de parto já circulavam e eram praticados em nossa sociedade; os estudos de Salem (2007) e de Tornquist (2004) retomam, nesse sentido, por exemplo, a presença da filosofia francesa da década de 1950, o parto sem dor, de Lamaze e Leboyer, já nos idos de 1980 entre as camadas médias cariocas. O ideário do parto humanizado tem adquirido respeitável notoriedade; pelo menos é o que parece indicar a III Conferência Internacional pela Humanização do Nascimento, realizada na cidade de Brasília, em novembro de 2010, com aproximadamente dois mil e quinhentos participantes; todos preocupados com a preponderância de um modelo cesarista, por eles entendido como intervencionista. Pode-se dizer, em linhas bastante gerais, que o foco do discurso da humanização é a transformação do modo de se nascer no Brasil, de forma a se respeitar o tempo fisiológico das parturientes, a se evitarem procedimentos de rotina tidos como invasivos (como a ocitocina intravenosa e a episiotomia, entre outros), para que sejam ofertados serviços de qualidade, informação ao “casal grávido” (Salem, 2007), e para que exista não somente a possibilidade de escolha do modo de dar à luz, mas também para que sejam respeitadas as crenças e os estilos de vida das gestantes e das parturientes. É certo que, ao se pensar, tecer e implementar uma política de humanização do nascimento, pode-se correr os mesmos riscos de qualquer outro programa que procure ser universal e generalizado. No entanto, nesta oportunidade, gostaríamos de nos deter não ao ideário do parto humanizado de modo abrangente, mas muito mais às impressões, narrativas, anseios e insatisfações que pudemos identificar em recente pesquisa de doutoramento desenvolvida com o que chamamos de adeptas de outros modos de parir (Carneiro, 2011); porque, por ser essa uma palavra situada e feminina quanto à gestação e ao parto, pode aqui ser útil para os propósitos deste artigo e problematização do Rede Cegonha. Quando o objeto de discussão é o parto humanizado, de antemão, tomamos contato com um recorte social, porque a reação ao sistema médico de atenção ao nascimento encontra-se, hoje, muito mais situada entre mulheres atendidas pela rede privada de saúde do que entre as assistidas pela rede pública. Diante disso, poder-se-ia entender pela pouca utilidade da análise ora sugerida, porém, como em nossa leitura pode haver ressonância entre ambos os universos, nos dedicaremos a refletir sobre as contribuições dessas mulheres no que tange ao que vem como uma política pública orientada ao sistema público de saúde. Da etnografia realizada em dois grupos de preparo para o parto humanizado no Estado de São Paulo, pudemos extrair algumas conclusões interessantes ou, no limite, instigantes, para se debaterem modelos alternativos de parto e qualidade dos serviços médicos na sociedade atual. De modo geral, vimos que as adeptas de outros modos de parir são, ao contrário do que se poderia pensar apressadamente, muito diferentes entre si. Nos grupos, encontramos mulheres: urbanas, rurais, artistas, bancárias, advogadas, católicas, umbandistas, espíritas, evangélicas; em sua maioria, brancas, mas, também, negras e indígenas; vegetarianas e come de tudo; na maioria casadas e juntadas, mas, também, separadas ou mães independentes; mais racionais, mais intuitivas e as abraça shiva (as mais espiritualistas, adeptas da onda new age), entre tantas outras caracterizações. Essa constatação trouxe à tona a dificuldade de se caracterizarem as mulheres que hoje têm aderido ao parto mais natural, sem intervenções médicas de rotina, seja em casa ou no hospital, de cócoras, na água ou nas salas de parto. O interessante é que, se o discurso do parto humanizado, veiculado por profissionais da saúde e pela ReHuNa, desponta como uma proposta guarda-chuva, como reação à cesárea de rotina e emprego de enema, tricotomia, aminiotomia, ocitocina intravenosa e episiotomia, bem como enquanto necessidade de um atendimento respeitoso e dedicado por parte da equipe médica, de outro lado, o requerido e esperado pelas mulheres dos grupos de preparo parece adquirir uma outra paisagem. Pudemos perceber, 52

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que muito mais do que o parto mais natural, sem intervenções médicas, grosso modo, buscavam ter “o parto e não mais um parto”, numa tentativa de reação ao esquadrinhamento de seus corpos; procurando recuperar uma pessoalidade que entendiam perdida num processo de despersonalização dentro do âmbito hospitalar e dos demais serviços de saúde (Duarte, 2003). Por essa razão, a cesárea ou alguns procedimentos eram inclusive bem aceitos, desde que fossem informadas e consentissem com sua realização, desde que fossem escutadas em seus anseios, desejos, crenças e trajetórias pessoais. Dessa maneira, tendemos a cogitar uma resistência feminina ao que poderia também vir a ser uma normatização do parto humanizado, eleito e considerado, por alguns, como o modo ideal de parir, a saber, sem nenhuma intervenção e da forma mais natural possível. De outra parte, negar o eco e a influência discursiva do ideário da humanização em suas atitudes também seria uma falácia. Essas outras práticas, nesse sentido, poderiam ser muito mais entendidas como seu resultado, ainda que não se restrinjam e apresentem outras figurações, que não a proposta ideal ventilada pelo movimento da ReHuNa e afins. Tendo a pensar dessa maneira porque, para muitas, incomodava muito mais o tratamento universal dispensado pela equipe de saúde do que um procedimento ou a cirurgia, senão vejamos: “Eu tinha 35 anos, mas sabia do meu corpo. Quando a médica me disse que, por conta da minha idade, só poderia ser cesárea, fiquei muito incomodada. Ela não quis saber quem eu era, o que fazia, como comia e como cuidava de mim. Por isso, decidi trocar de médica”. (notas do caderno de campo, 2009) “Quando fiquei grávida estava com 42 anos e no pré-natal ouvi que o Estado já não tinha mais interesse em me atender no parto normal, porque já tinha passado o tempo”. (notas do caderno de campo, 2009) “Parecia um check-list de carro, sabe? Eles perguntavam, eu respondia e ela ticava e pronto. Não existia acolhimento, respeito e interesse”. (notas do caderno de campo, 2010)

Sheila Kitzinger (1978), antropóloga inglesa bastante lida no seio do ideário da humanização, assim como também Robbie (Davis-Floyd, 2009) nos EUA, escrevem sobre como a padronização do atendimento hospitalar pode contribuir para o desaparecimento da pessoa da mulher que está para parir; como desde a raspagem dos pelos, até o uso da camisola branca e da etiqueta, podem figurar práticas de descaracterização da mulher perante o Estado, por sua vez, personalizado na instituição hospitalar. Pereira (2000), na mesma esteira, chega, por exemplo, à seguinte conclusão: [...] começou a se delinear a despersonalização da parturiente, produzida pelo cerimonial para adentrar ao hospital, no qual ela deve ser isolada de suas relações e mesmo de seus pertences de fora. Esse ritual traduz-se de diversas maneiras e, no local estudado, compõese da colocação de roupa específica do hospital, da retirada de brincos, anéis, alianças ou de qualquer outro adereço, como esmalte e batom, e o encaminhamento para tomar um banho antes de ocupar o leito hospitalar. (Pereira, 2000, p.141)

Para a autora, a sondagem vesical e a lavagem intestinal fariam parte de um ato ritual de limpeza e purificação, mesmo que paciente já tenha tomado banho antes de ir para o hospital; o isolamento da parturiente de sua família indicaria que o nascimento é coisa de mulher; as vestimentas, a nudez da paciente e a posição supina seriam sintomáticas da relação de poder entre a mulher e o médico, assim como o uso da ocitocina para aceleração do trabalho de parto e da técnica da episiotomia – que, hoje, já começa, inclusive, a ser lida como um tipo de “mutilação ritual” pelas adeptas de outros modos de parir –, aliadas aos fármacos para suavização da dor que, na sua leitura, poriam fim à rede de solidariedade antes existente nas cenas de parto entre parteiras e parturientes (Pereira, 2000); ocorrendo, assim, o que denomina de “iatrogênese estrutural”, ou seja, uma perda da saúde pela diminuição da autonomia do sujeito sobre o próprio corpo. Essa é uma interpretação bastante similar à tecida por Davis-Floyd, ao estudar o modelo americano de assistência ao parto, para quem: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.49-59, jan./mar. 2013

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[...] hace que la mujer se vuelva extraña a si misma vistiéndola con una bata de hospital, etiquetándola, con un brazalete de identificación y rasurándola o recortándole la parte inferior de su cuerpo, devolviéndola al estado conceptual de la niñez (En muchas culturas, la sexualidad y el pelo están unidos simbólicamente). El mismo trabajo de parto es doloroso y a menudo se aumenta el dolor mediante la técnica iniciática de la inserción frecuente y muy dolorosa de los dedos de alguien dentro de su vagina para ver hasta qué punto se le ha dilatado el cuello del útero. Esta técnica también funciona como un mecanismo para hacerla sentir extraña a sí misma. Dado que casi todas las enfermeras o los residentes que necesitan practicar pueden examinarle el cuello del útero, las partes más intimas de la parturienta son invertidas simbólicamente y pasan a ser una propiedad institucional. (Davis-Floyd, 2009, p.66)

Par a par com essa sensação de despersonalização, nos relatos de parto coletados nos grupos, vinha também o debate com relação ao que é saúde e doença. Para algumas das mulheres entrevistadas, a medicina vigente vibra na doença e, por isso, o parto saudável seria aquele desprovido de tanto controle e intervenção externa, seria o mais natural, aquele que flui, que acontece de acordo com o tempo psíquico e fisiológico de cada mulher. Nesse sentido, reconhecíamos uma espécie de subversão de imaginários: se, antes, o hospital era considerado o centro da saúde, do monitoramento da vida e da cura, para essas mulheres, o hospital não vinha simbolizado como sinônimo de saúde e de segurança, mas, pelo contrario, como o local em que teriam de enfrentar discussões, fazer valer seus desejos e onde estariam mais expostas ao denominado efeito cascata, essa série de procedimentos médicos de rotina. Por isso, inclusive, muitas das que podiam custear uma cesárea terminavam optando por um parto domiciliar, assistido de parteira urbana ou por médicos adeptos da humanização, por conta de entenderem que a segurança e a acolhida estavam em suas casas. Sendo assim, saúde e doença parecem deixar de pertencer ao fisiológico, ao bom funcionamento da máquina, para passarem a ser um fenômeno multidimensional, onde aspectos psíquicos, espirituais e emocionais têm importância. E mais, a saúde, nesses casos, seria a regra, o não-controle e a confiança, ao contrário de outrora, quando era a exceção e resultante da disciplina dos corpos, como pensado por Foucault (2002) ao escrever sobre o nascimento da biopolítica no século 19. Nessa esteira, quando pensamos sobre os propósitos e principais áreas de atuação do Rede Cegonha, tendemos a refletir também sobre a consideração e reconhecimento de distintas concepções de saúde e doença, bem como de parto, vividas e operantes nas regiões norte e nordeste do Brasil, onde se sabe persistir e haver grande incidência dos conhecimentos das parteiras tradicionais, curandeiras, benzedeiras e aparadeiras; bem como uso de ervas medicinais, rezas e manobras de parto transmitidas de mães para filhas. Em outro sentido, a noção de pessoa ou pessoalidade, operante nos relatos de parto coletados durante a etnografia, parecia vir pautada muito mais pela diferença e por aspectos relacionais do que por noções universalistas e igualitaristas. Por certo que a ideia de autonomia, uma das marcas de uma pessoalidade mais individualista/igualitária, ocupa lugar de destaque, sobretudo quando a pensamos a partir do direito que essas mulheres dizem ter sobre seus corpos. Entretanto, ainda assim, esse componente não parece ter abafado a multidimensionalidade e o aspecto relacional da subjetividade narrada pelas adeptas de outros modos de parir. Essas mulheres vinham influenciadas por suas famílias, relações de gênero, relações conjugais, grupos de preparo para o parto, aspectos transgeracionais, sexuais e espirituais, sobre os quais não teremos tempo de discorrer, mas que acabavam atuando como sinais dessa pessoalidade pautada na diferença, singularidade e numa espécie de autocultivo. Diante disso, se o Rede Cegonha vem como defesa da cidadania, direitos fundamentais consignados na Constituição Federal de 1988, exercício e segurança do parto cidadão; as envolvidas com a crítica do modelo obstétrico vigente na rede privada e, também, pública, por outro lado, trazem à tona a possibilidade da despersonalização das parturientes no sistema de atenção, alertando para os riscos de uma política que se pretende nacional e cujas consequências poderiam ser o privilégio da igualdade com o preço de pouca atenção às diferenças e ao desejo de singularidade.

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E a ideia de mulher no plural, vale para quem? Rede Cegonha e feministas No interior do pensamento feminista, não só brasileiro, mas internacional, é bastante tematizada e valorizada a demanda pelo reconhecimento da diferença e, portanto, a inexistência da categoria universal mulher. A fase diferencialista do movimento feminista, da década de 1970, com as mulheres negras nos EUA e, em seguida, com as indígenas da América Latina, teria sido uma das primeiras iniciativas de questionamento da identidade mulher, para a qual inclusive, ou até mesmo, o movimento feminista da onda igualitarista, dos anos de 1960, teria contribuído. Em razão da crítica à concepção de feminista somente como mulher branca, heterossexual, letrada e classe média, despontaram correntes feministas que demandavam o reconhecimento da pluralidade que atravessava as mulheres feministas, bem como suas peculiaridades; entre elas, estavam as lésbicas, as negras, as campesinas e as indígenas. Esse movimento de pulverização ou pluralização da categoria mulher, com a pressão do pensamento pós-estruturalista, teria reforçado, nos anos de 1990, não somente a diferença, mas a multiplicidade e a subjetividade enquanto temas de agenda política. Da identidade ter-se-ia passado a tematizar mais a ideia de subjetividade, em nome de uma maior fluidez e na tentativa de fuga das identidades fixas, rígidas e estanques, como pontua Rago (2006, 2004) em seus últimos estudos sobre “novos modos de subjetivação femininos e feministas”. Dessa forma, o debate a respeito da pluralidade da categoria mulher traz à tona a importância de políticas e de demandas que procurem respeitar o itinerário de cada mulher, tornando, por vezes, bastante difícil a aplicação de determinados programas universalizantes, como pode ser o caso do Rede Cegonha. No que tange ao debate e configurações da diferença, Avtar Brah (2006) pode ser uma autora bastante interessante para pensarmos em como trabalhar com mulheres no plural, tendo em conta que, em “Diferença, diversidade e diferenciação”, a autora pede a atenção para a necessidade de uma caracterização da mulher que leve em consideração outros marcadores analíticos, que não somente o sexo-corpo, como: a raça, a etnia, a classe social, a orientação religiosa, a orientação sexual, estilo de vida e crenças de quaisquer matrizes. Essa nova orientação quanto à subjetividade, e não mais identidade biológica, torna possível uma subjetividade polissêmica, performatizada e tecida a partir, também, das próprias emoções, ampliando o leque de caracterização do que pode ser uma mulher, tratando-a muito mais em sentido cartográfico e plural. Dessa forma, buscando escapar dos essencialismos da diferença, Brah propõe a interseccionalidade e a necessidade de estarmos atentos à presença de diferentes racismos entre os próprios marcadores analíticos, sublinhando, por isso, a importância de “uma macro-análise que estude as inter-relações das várias formas de diferenciação social, empírica e historicamente, mas sem necessariamente derivar todas elas de uma só instância determinante” (Brah, 2006, p.331). Em sua leitura, [...] é agora axiomático na teoria e prática feministas que “mulher” não é uma categoria unitária. Mas isso não significa que a própria categoria careça de sentido. O signo “mulher” tem sua própria especificidade constituída dentro e através de configurações historicamente específicas de relações de gênero. Seu fluxo semiótico assume significados específicos em discursos de diferentes “feminilidades” onde vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais históricas particulares. Diferença nesse sentido é uma diferença de condições sociais. (Brah, 2006, p.341)

Por isso, em sua interpretação, a diferença poderia ser conceituada de quatro maneiras: como experiência, relação social, subjetividade e identidade. Como experiência, viria como o lugar de formação do sujeito, não como diretriz imediata para a verdade, mas como uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica quanto narrativamente. Viria, portanto, conectada à questão da agência e ao desaparecimento das categorias fixas. Como relação social, a diferença apareceria organizada em relações sistemáticas e através de discursos econômicos, culturais, políticos e práticas institucionais, articulando a variável micro e macro, onde as relações de poder são tecidas e onde as condições históricas para a construção de uma identidade são apresentadas. Diferença como subjetividade seria a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.49-59, jan./mar. 2013

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consequente do debate feminista junto da psicanálise, quando a ideia de identidade fixa e a ser descoberta teria sido criticada, criando margem para que se pensasse na subjetividade enquanto algo a ser explicado, e não suposto, algo a ser construído, e não encontrado. Por último, viria a diferença como identidade, que, segundo Brah, é a “multiplicidade relacional”, com um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um núcleo enunciado como “eu” (Brah, 2006, p.371). Essa última frente da diferença carregaria um tom mais político, seria a articuladora para demandas em nome da diferença e conquistas jurídicas e sociais. Nesse sentido, para essa autora, ideal seria se entendêssemos a diferença a partir dessas quatro frentes interpretativas, sem, contudo, entendê-las de maneiras fixas, haja vista partir do pressuposto de que a diferença nem sempre é um marcador de hierarquia e opressão, e de que não deve ser usada nem mesmo como “essencialismo estratégico” (Brah, 2006, p.375); porque, para ela, importa mais articular marcadores a fim de, então, poder compreender se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou, de outra parte, em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política (Brah, 2006). Se considerarmos essa orientação, passa a ser, no mínimo, polêmica a operacionalização de uma política de caráter nacional, e não somente para o Estado, mas, também, para as feministas que procuram reivindicar acesso à saúde para as mulheres, na medida em que a questão da subjetividade torna-se uma miríade, a saber, um enfeixamento de inúmeros marcadores sociais, a serem ponderados em suas particularidades. Dessa forma, para pensar sobre o direito à saúde seria preciso também ponderar a respeito das crenças, habitat, raça e etnia, e não mais somente do corpo e dos aspectos emocionais. Por isso, em nossa apreensão, o Rede Cegonha orientado às regiões norte e nordeste, pela própria singularidade dos modos de nascer dessas regiões, já deveria, tout a court, tematizar as diferenças culturais que, por ventura, possam ser ali encontradas. Para além disso, há também que se sopesar a pluralidade constitutiva do próprio Brasil, que, há décadas, vem sendo caracterizado como heterogêneo e como encontro de inúmeros modos de vida, desde alimentação, vestuário, clima e de diferentes influências discursivas, que podem ser sentidas nos modos de se falar, comer e de comportar-se. No entanto, por outro lado, se o reconhecimento da diferença é essencial para a nãodescaracterização, o trabalho com a noção de igualdade parece ser notável para a não-inferiorização ou hierarquização entre os diferentes. Esse dilema já é também bastante conhecido no interior das Ciências Sociais e nas teorias feministas e de gênero, e, de fato, parece ser um grande impasse. No entanto, o que temos visto, e cada vez mais, é a constituição de movimentos sociais em nome da valorização das diferenças e da diversidade, construídas historicamente e socialmente, como bem pontua Gregori (2000), em sua resposta ao tão discutido artigo de Pierucci (1999), “Ciladas da diferença”. Segundo Pierucci, se todas as diferenças não são hierarquizantes, a maioria é; sobretudo, quando tratam de diferenças definidoras de coletividades, de categorias sociais e de grupos em relações de forças, a tal ponto que defender as diferenças numa base igualitária torna-se tarefa quase impossível. Para o sociólogo, as diferenças não são inatas, mas frutos do meio, enquanto os seres humanos são todos iguais. Por isso, dever-se-ia trabalhar em nome da igualdade para que a diferença não se torne binária (homens x mulheres), mas, sim, diferenças dentro das diferenças (entre mulheres), no sentido de diferenças múltiplas. Com o intuito de justificar suas linhas, o autor recorre ao famoso caso Sears, nos EUA, no qual, em tese, a demanda pela diferença teria inocentado a empresa de contratar desigualmente homens e mulheres, para funções diferentes; na medida em que teria contribuído para o arrazoado da acusada - que teria lançado mão do mesmo discurso da diferença para justificar uma contratação desigual. Diante dessas explanações, Pierucci teme pela reivindicação das diferenças, preferindo trabalhar em nome da igualdade para escapar das “ciladas” desse tipo de discurso político, “ora antíteses excludentes ora disjuntivas”, denominando-as de verdadeiras armadilhas intelectuais. E, de outra parte, ainda trata de argumentar que esses tipos de demandas teriam origem na direita separatista, racista e sexista de décadas anteriores e, mais recentemente, atualizadas, por exemplo, na França, dos anos de 1980, com relação aos migrantes. Em seu entender, o que vemos hoje seria uma (re) apropiação de um discurso de direita que se tornou de esquerda e que, contemporaneamente, já retoma desenhos conservadores, o que indicaria o efeito de “retorsão” da própria linha argumentativa da diversidade e a possibilidade do 56

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“discurso virar-se contra o feiticeiro” (Pierucci, 1999, p.31). Nesse sentido, o receio do autor parece ser externalizado quando, ao terminar o artigo, pergunta-se: “Quem pode garantir que, em meio a essa pós-moderna celebração das diferenças, as pulsões de rejeição e de agressão não venham a se sentir autorizadas a aflorar, crispadas de vontade de exclusão e profilaxia?” (Pierucci, 1999, p.31). Se essa é uma discussão teórica pouco recente, que apresenta os riscos e dilemas de defesa da igualdade ou da diferença num sentido mais amplo, quando retomamos o foco deste paper e a viabilidade e urgência de políticas de saúde nacionais, a questão parece estar longe de ser pacifica e desprovida de controvérsias. Primeiro, porque o direito à saúde é um direito de todos no Brasil, sem distinções ou restrições. Em segundo lugar, porque, portanto, é obrigação do Estado promover e implementar saúde de qualidade. Trata-se de uma questão de cidadania, de direitos e de igualdade de oportunidades e, por consequência, de algo que parte da igualdade entre todas as brasileiras, e que, em minha leitura, deveria mesmo partir. Entretanto, de outro lado, par a par com a cidadania, vem a necessidade de se reconhecerem as diferenças entre as mulheres, ponto também bastante merecedor de atenção e consideração. E, nesse sentido, parece mesmo ser frutífera a leitura de Brah, ao tematizar a diferença em termos de experiência, subjetividade, relação social, mas, também, como identidade. Porque, caso contrário, à custa da igualdade, mulheres diferentes serão tratadas de modo pasteurizado. Sendo assim, como pensar política aliada à diferença? Como pensar em saúde sem considerar a pluralidade de percepções e de significados de saúde x doença e de pessoa? De outro lado, no entanto, como não pensar numa política extensível a todo o Brasil, quando grande parte das brasileiras não tem nem mesmo acesso ao leito na maternidade, não tem acesso aos hospitais e tem dado à luz em condições precárias? Essas questões parecem circunscrever o que aqui denominamos de dilemas de uma política universalista. Enfim, como conjugá-los?

Considerações finais Dessa maneira, nos encontramos perante a problemática realidade da assistência materno-infantil da rede pública de saúde; de uma tentativa de sua reversão, o Rede Cegonha; das críticas feministas ao referido programa e pedido de atenção para a questão do aborto como tema de saúde pública, e, por fim, das impressões e demandas das mulheres brasileiras envolvidas com o ideário da humanização do nascimento. Esse cenário, longe de nos apresentar respostas, coloca ainda mais questionamentos com relação à eficácia e às consequências de uma política universalista de saúde. Por um lado, temos a urgência da resolução da falta de infraestrutura das instituições hospitalares, dos altos índices de mortalidade materno-infantil e da qualidade da assistência prestada pelas equipes médicas e pelo próprio Estado, todos, pontos importantes. Porém, em contrapartida, temos mulheres pedindo pelo reconhecimento de sua diferença no momento do parto, para que tenham o parto e não mais um parto, para que sejam tratadas como a mulher e não como uma mulher a mais, o que, em nossa opinião, retrata uma volição de singularidade e de reconhecimento da diversidade ligada ao que Brah pensa como experiência, subjetividade, relação social e, também, identidade. Essas mulheres, a despeito disso, também recorrem à noção da igualdade, na medida em que se aliam ao movimento do parto humanizado e geram uma certa identidade – a das criticas ao modelo obstétrico vigente. O que importa é que, para elas, não basta infraestrutura e uniformização, se não houver atenção aos seus itinerários existenciais; ainda que não deixem de reconhecer a importância do acesso à saúde pública e privada e que possam, de outro lado, gerar, com suas posturas, também uma certa normatividade quanto ao melhor modo de parir. De uma forma ou de outra, no limite, poderíamos vislumbrar que a noção de direitos sexuais e reprodutivos pode também ser polissêmica, vindo, por um viés mais igualitarista, como direito e programa público, mas, por outro mais diferencialista, também como o direito de parir como esperado e desejado. À guisa de conclusão, considerando o caráter de urgência de uma política de saúde orientada ao nascimento, poderíamos aventar a hipótese de, no Brasil de hoje, ser primeiro preciso que as mulheres tenham acesso ao SUS, aos leitos e aos exames pré-natais, para que, depois, uma vez lá instaladas, possam e tenham embasamento para demandar o atendimento diferenciado que as atendidas na rede COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.49-59, jan./mar. 2013

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privada já têm questionado. No entanto, quando nos referimos ao Estado, às políticas governamentais e à proteção da liberdade dos sujeitos de direitos, e, nesse caso, ao Rede Cegonha, a questão de como abordar a diferença parece-nos um tema importante a ser tematizado, dado que decisivo, como bem vimos a partir de leituras antropológicas e feministas. E, em última instância, porque há de se pensar que a indagação social pode, em breve, vir a ser: Igualdade e acesso à saúde pública à custa de que particularidades femininas?

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CARNEIRO, R.G. Dilemas antropológicos de una política de salud publica: el programa Rede Cegonha, personalidad y pluralidad . Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.49-59, jan./mar. 2013. Se puso en marcha recientemente en Brasil el Programa “Rede Cegonha”, una iniciativa nacional dirigida a las mujeres embarazadas y madres usuarias de los servicios públicos de salud. La propuesta nos puso en frente a dos posibles interpretaciones. Por un lado, implica el reconocimiento importante de la ciudadanía y garantiza el derecho de acceso a la asistencia sanitaria. Por el otro, deja espacio para el cuestionamiento de su orientación, en especial, frente a las críticas que se han hecho para la práctica obstétrica actual. Teniendo en cuenta que Brasil tiene el récord mundial en el número de cesáreas, se relaciona el referido programa, a la luz de dos matrices discursivas y a partir de tensiones como medicina x despersonalización y salud x enfermedad y de nociones de persona, cuerpo, experiencia y singularidad en la contemporaneidad.

Palabras clave: Política pública de salud. Derecho a la diferencia. Salud de la mujer. Individualidad.

Recebido em 16/08/12. Aprovado em 26/12/12.

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A visita domiciliar na Estratégia de Saúde da Família: os desafios de se mover no território*

Marcela Silva da Cunha1 Marilene de Castilho Sá2

CUNHA, M.S.; SÁ, M.C. Home visits within the Family Health Strategy (Estratégia de Saúde da Familia - ESF): the challenges of moving into the territory. Interface Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.61-73, jan./mar. 2013. This study aimed to analyze the work processes of three family healthcare teams in the municipality of Nova Iguaçu, state of Rio de Janeiro, Brazil, along with healthcare management. Home visits were taken to be the focus of the analysis. The case study methodological approach was chosen, and this was selected within a complex context, with people in situations of fragility, uncertainty and distress. The main results from this study highlight healthcare professionals’ improvisation when faced with precarious working conditions and the daily challenges involved in carrying out home visits and in dealing with demands that emerge from the territory. Although home visits may be presented as powerful tools for planning healthcare actions and for reorientation of practices, major obstacles preventing their consolidation can still be found. This is especially because of the great internal disposition required from healthcare professionals for dealing with diversity and the unexpected.

Keywords: Healthcare. Healthcare work process. Family Health Strategy. Home visits. Primary healthcare.

Foram analisados os processos de trabalho de três equipes da ESF no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, bem como a gerência do cuidado, tomando as visitas domiciliares como foco da análise. Optou-se pelo estudo de caso, selecionado em um contexto complexo, com pessoas em situação de fragilidade, incerteza e sofrimento. Resultados da pesquisa destacam o improviso dos profissionais frente à precariedade das condições de trabalho e aos desafios impostos cotidianamente para a realização das visitas e para lidar com demandas que emergem no território. Embora a visita domiciliar se apresente como instrumento potente para o planejamento das ações de saúde e a reorientação das práticas, ainda encontra importantes entraves para sua consolidação, especialmente por exigir grande disponibilidade interna do profissional de saúde para lidar com o inesperado e o diverso.

Palavras-chave: Cuidado em saúde. Prática profissional. Estratégia Saúde da Família. Visita domiciliar. Atenção primária à saúde.

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Elaborado com base em Cunha (2010); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). 1,2 Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Ensp, Fiocruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Sala 716, Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-210. mcunha@ensp.fiocruz.br *

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Introdução A atenção primária à saúde (APS) vem se afirmando como estratégia de organização do sistema de saúde e forma de resposta às necessidades de saúde da população. Neste contexto, as ações de saúde da família, anteriormente voltadas à cobertura de pequenos municípios, com foco em áreas de maior risco social, passam a adquirir centralidade na agenda do governo federal, a partir de meados da década de noventa, com a criação do Programa de Saúde da Família (PSF). Como estratégia nacional para a atenção básica, denominada, a partir de 2006, Estratégia de Saúde da Família (ESF), suas diretrizes passam a se contrapor ao modelo de atenção vigente, baseado na lógica curativa e medicalizante, propondo uma atenção centrada na família e no território, baseando-se em ações de prevenção das doenças, promoção e assistência à saúde (Brasil, 2012; World Health Organization, 2008). Visando à produção de novos modos de cuidado, a ESF propõe a visita domiciliar (VD) como instrumento central no processo de trabalho das equipes (Borges, D’Oliveira, 2011; Filgueiras, Silva, 2011). Contudo, a ampliação da estratégia tem encontrado limitações para a produção de mudança do modelo assistencial. Em sua formulação, deveria ter caráter substitutivo à rede tradicional de saúde, bem como atuar com base no território, definido de acordo com o planejamento e diagnóstico situacional. Entretanto, encontramos ainda, em muitos municípios, sobretudo nos grandes centros urbanos, a concomitância dos dois modelos (Giovanella et al., 2009; Conill, 2008; Escorel et al., 2007). Em relação à organização do trabalho das equipes, embora a prática esteja direcionada para o exercício da equipe multiprofissional, não foram pensadas estratégias para orientar uma ruptura com a dinâmica médico-centrada. Esta política permanece sem promover mudanças nas práticas cotidianas dos profissionais de modo mais amplo (Franco, Merhy, 1999). De acordo com Merhy e Queiroz (1993), há uma defasagem entre o discurso de mudança que impregna a ESF e as práticas assistenciais que implementa, evidenciando que não tem conseguido se cumprir enquanto promessa. A participação da população sob a forma de controle social ainda se mostra incipiente. Para Abrahão e Lagrange (2007), a ESF prevê a atenção domiciliar à saúde como forma de assistência àqueles que precisam de cuidados contínuos, mas, sobretudo, como instrumento de diagnóstico local e programação das ações a partir da realidade. Vários estudos apontam o importante papel da VD no estabelecimento de vínculos com a população, bem como seu caráter estratégico para integralidade e humanização das ações, pois permite uma maior proximidade e, consequentemente, maior responsabilização dos profissionais com as necessidades de saúde da população, de sua vida social e familiar (Romanholi, Cyrino, 2012; Tesser, Poli Neto, Campos, 2010; Albuquerque, Bosi, 2009; Sakata et al., 2007). A despeito de suas potencialidades, a atividade de VD enfrenta muitos desafios. O contexto de incertezas e surpresas em que se realiza, envolvendo relações complexas entre o público e o espaço privado do domicílio. Além das dificuldades inerentes à própria prática da VD: a mudança de famílias, endereços errados e recusas, entre outras situações adversas (Romanholi, Cyrino, 2012). Borges e D’Oliveira (2011) apontam que os problemas com que os profissionais se deparam nas VDs envolvem não apenas o enfrentamento da doença em si, mas, também, situações relacionadas ao contexto social e cultural em que vive a família, para os quais a medicina tecnológica, em geral, tem pouco para ofertar, sendo necessário reconhecer os limites dos profissionais e admitir que as alternativas e encaminhamentos para os problemas passam, necessariamente, pela participação do usuário e sua família, bem como, por ações intersetoriais e de articulações com a sociedade civil. O excesso de atribuições, associado à inadequação entre o volume populacional da área de abrangência e as equipes, também aparece como limitador para a participação dos profissionais nas atividades domiciliares, comunitárias e de educação em saúde (Trad, Rocha, 2011; Conill, 2008). O presente artigo analisa o processo de trabalho das equipes de uma unidade de saúde da família durante as visitas domiciliares, e discute os desafios para que a VD possa vir a contribuir para a reorientação do trabalho em equipe e para a produção do cuidado em saúde.

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CUNHA, M.S.; SÁ, M.C.

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Desenho do estudo e estratégias metodológicas Este artigo tem origem na dissertação de mestrado “O processo de trabalho em equipe e a produção do cuidado em saúde: desafios para a estratégia de saúde da família em Nova Iguaçu/RJ” (Cunha, 2010). Traz um estudo de caso sobre o processo de trabalho produzido pelas equipes de SF, com foco nas VDs, analisadas a partir da micropolítica das relações e da Psicodidâmica do Trabalho (Dejours, 2008), em uma unidade de saúde situada no município de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. A interlocução com o campo da Gestão das Práticas em Saúde e o debate sobre a especificidade do trabalho em saúde trouxeram importantes contribuições para o desenvolvimento teórico-metodológico desse estudo, destacando-se: a compreensão do trabalho em saúde como um trabalho vivo em ato, centrado em tecnologias leves (Merhy, 2007), a noção de clínica ampliada (Campos, 2007a), a compreensão do caráter intersubjetivo do trabalho em saúde, altamente exigente de trabalho psíquico (Sá, 2005), e centralidade da dimensão relacional do trabalho médico (Schraiber, 1993). A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com os profissionais de saúde e observação participante do cotidiano do trabalho. Ao todo foram realizadas 13 entrevistas, envolvendo médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentistas e agentes comunitários de saúde (ACS) de três equipes. As observações foram realizadas ao longo de três meses e meio, em três turnos semanais, incluindo: o acompanhamento das VDs, a observação do processo de marcação de exames e consultas especializadas em outros serviços de atenção especializada da rede de saúde do município; a observação das consultas médicas e de enfermagem; a observação das reuniões de equipe e da circulação e interação de profissionais e usuários nos espaços coletivos da unidade, tais como sala de espera, farmácia, sala de curativos, sala dos ACS; as atividades da equipe de Saúde Bucal; conversas com a equipe de Saúde Mental; palestras internas; atividades externas, entre outros. As observações foram realizadas livremente, com a perspectiva de apreensão dos processos de trabalho, a partir da interação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. O processo de análise tem como orientação a abordagem clínica psicossociológica de pesquisa (Barus-Michel, 2005). Após sucessivas leituras das entrevistas transcritas e dos registros de campo, identificamos e agrupamos os relatos: das situações concretas de trabalho, das concepções sobre o cuidado, dos modos de enfrentamento das situações e conflitos, bem como o processo de trabalho e o trabalho em equipe. Entre os principais analisadores, estão os sentidos e significados expressos pelos entrevistados, juntamente com o registro das observações diárias do campo. Assim, a análise pressupôs sempre um vaivém entre referências teóricas, prática acumulada, situações concretas e escuta sensível do outro, a partir da análise da própria implicação do pesquisador com os temas/objetos, problemas e sujeitos das pesquisas (Barus-Michel, 2005), num esforço para transitar nas mediações entre o históricosocial e o individual/subjetivo ou entre o institucional/cultural e o afetivo/psíquico, colocando o sujeito em posição de palavra, e o sofrimento e a questão do sentido no centro da análise. Em Nova Iguaçu, a ESF abrange uma população em torno de cento e setenta mil habitantes, que corresponde a 22% da população do município. As unidades de Saúde da Família com equipes de Saúde Bucal abrangem apenas 7% da população (Nova Iguaçu, 2009). A seleção da unidade de saúde pesquisada obedeceu aos seguintes critérios: deveriam ter seus profissionais trabalhando há pelo menos seis meses e estar completas, ou seja, com a equipe mínima preconizada pelo Ministério da Saúde (médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, odontólogo, auxiliar de saúde bucal e ACSs); cada equipe deveria ser responsável por, no máximo, quatro mil habitantes cadastrados; a unidade deveria ser de fácil acesso aos usuários e apresentar características similares às demais unidades de SF existentes no município, quanto ao tipo de oferta de serviços, horários de funcionamento, entre outras características organizacionais. A unidade de saúde escolhida era considerada um modelo pelos profissionais e pela Coordenação da Atenção Básica municipal. Contava com três equipes de Saúde da Família, incluindo Saúde Bucal. Possuía boa estrutura física e havia passado por obras há menos de um ano, para se adequar ao modelo de unidade de saúde preconizado pelo Município. Era uma das unidades mais antigas no município.

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A fim de preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa, convencionamos chamar as três equipes de azul, verde e amarela, nos referimos à unidade pela sigla NO, e utilizamos nomes fictícios para os entrevistados.

As visitas domiciliares: desafios de se mover no território A pesquisa se realizou no contexto de uma rede municipal de saúde desarticulada, com serviços de média e alta complexidade desordenados, resultando em longas filas, com inúmeros obstáculos no acesso da população à marcação de consultas e exames especializados (Nova Iguaçu, 2009). O desabastecimento e a falta de manutenção da estrutura física e de equipamentos eram constantes. Os profissionais que atuavam na rede assistencial, em sua maioria, tinham vínculo empregatício precário, levando à alta rotatividade e à baixa qualificação profissional. Os serviços de saúde funcionavam de forma quase sempre pouco resolutiva. Não havia protocolos assistenciais, nem mecanismos de referência e contrarreferência. Este quadro resultava em muitas barreiras de acesso aos serviços e aos medicamentos básicos, com o agravamento de problemas de saúde da população. Na unidade estudada, a maioria dos profissionais trabalhava há mais de quatro anos e possuía um bom entrosamento e domínio do trabalho. No entanto, observamos baixa frequência de reuniões de equipe, de todo modo pouco focadas na discussão dos processos de trabalho e no planejamento das ações, bem como a ausência de atividades de educação permanente. O contrato de trabalho da equipe era por cooperativa, exceto o dos ACSs, que eram concursados. Os baixos salários eram mencionados como justificativa para o não-cumprimento da carga horária, com a adoção, pelos enfermeiros e técnicos de enfermagem, de um “dia de folga” e a restrição da jornada médica a quatro turnos por semana. Os únicos que não possuíam dias de folga eram os agentes, com a justificativa de que eram concursados. “O salário deve ser melhorado. Ele força um acordo velado de não cumprimento de carga horária estipulada. Essa é uma afirmação honesta. É muito difícil para o profissional. A gente sabe que esse salário não atende à perspectiva de vida” (Médico da equipe amarela). A precariedade das condições de trabalho e do funcionamento dos serviços de saúde do município estudado contribuíam para que o trabalhador vivenciasse situações de impasse e imprevistos no desenvolvimento de sua prática cotidiana, demandando ações não planejadas e impondo muitas exigências, não só físicas, mas cognitivas e psíquicas, para a realização do trabalho. No caso específico do trabalho em saúde, alguns autores (Merhy, 2007; Sá, 2005; Schraiber, 1993) destacam o aspecto relacional da prática em saúde que o diferencia de outros tipos de trabalho, se trata de um “trabalho de intervenção de um homem sobre outro [...] se está diante de uma ‘invasão’, ainda que permitida, do outro: interferência sobre as vidas, as privacidades e as paixões das pessoas” (Schraiber, 1993, p.150). Para Schraiber (1993), o trabalho em saúde é um processo produtivo e interativo, com relações intersubjetivas, reflexões e partilhas de decisões. Este caráter relacional, intersubjetivo e de intervenção na vida, sofrimento e adoecimento do corpo e da alma dos sujeitos, impõe ao trabalhador muitas exigências e sentimentos por vezes contraditórios: ansiedade, desamparo, impotência, angústia, entre outros (Sá, 2009; 2005). Dessa maneira, o trabalhador cria estratégias defensivas individuais ou coletivas para lutar contra o sofrimento gerado por esse confronto (Dejours, 2008), produzindo efeitos para o bem ou para o mal na produção do cuidado em saúde. Especificamente no que se refere à VD, deve-se considerar ainda a complexidade das situações com as quais os profissionais têm de lidar no território, cujos problemas se manifestam em todas as suas dimensões – não apenas biológicas, mas sociais, familiares, humanas etc. – fugindo à governabilidade do setor saúde. Assim, se, por um lado, a realização das VDs seria, em tese, uma oportunidade privilegiada para o desenvolvimento de um trabalho multiprofissional mais integrado, um espaço para ampliar as possibilidades deste trabalho coletivo, bem como do desenvolvimento de uma relação mais horizontal e cooperativa entre trabalhadores de categorias profissionais diversas, por outro lado, observamos uma dificuldade de inserção dos profissionais da equipe nesta atividade, que parece ainda estar concentrada nos ACS. As visitas dos médicos são raras, descontínuas e demandam, em geral, uma mediação das enfermeiras para que ocorram. 64

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As VDs dos profissionais de nível superior – médicos e enfermeiros – eram marcadas de acordo com as agendas de trabalho das equipes. Contudo, a consulta do médico nas residências não era uma prática tão regular. Era feita somente em casos em que o enfermeiro não conseguisse dar encaminhamento, ou precisasse de uma opinião médica, e quando o cadastrado não tinha meios de se locomover até a unidade. Em geral, era marcada VD em uma casa por semana para cada médico. Somente a médica da equipe azul fazia, esporadicamente, um roteiro de visitas às casas de uma região bastante pobre e com muita dificuldade de acesso a recursos médicos, materiais ou transporte para garantia de sua saúde. Nota-se que não havia um turno inteiro reservado para as VDs e, sim, pequenos períodos dentro de um turno semanal. Na equipe verde, as visitas do médico ocorriam todas as segundas-feiras. O ACS identificava a necessidade de visita durante o seu trabalho de campo, agendava e esperava o médico confirmar. O ACS avisava ao usuário que agendou a visita, mas enfatizava que não poderia dar certeza da vinda do médico. Durante as entrevistas, os ACS justificavam esta conduta como forma de evitar que o usuário ficasse ansioso com a perspectiva da visita e se frustrasse com a ausência do médico. Os ACS relatavam ainda que quando não conseguiam a visita do médico, procuravam a enfermeira e pediam sua intervenção, e, geralmente, a enfermeira conseguia agendar a VD. Nota-se aqui a situação de incerteza vivenciada pelo ACS e descontrole sobre o trabalho dos demais profissionais da equipe. Os enfermeiros marcavam um turno da semana para VD, onde a rota era elaborada pelo ACS em conjunto com o enfermeiro da sua área, mas sempre se mostraram muito disponíveis para realizarem visitas não programadas em caso de necessidade. “Se precisar, eu saio com eles à hora que for, se eu não estiver fazendo nenhum agendamento” (enfermeira Maria Ângela). Entre os possíveis condicionantes das dificuldades de se entrar no território, apontamos: os desafios de estar diante de uma demanda não diagnosticada, com necessidades desconhecidas, entrar em contato direto com o imprevisível, com o estranhamento, com um outro que pode ser totalmente diverso, entrar na casa das pessoas, prescrever estilos de vida e invadir intimidades sem a mediação do consultório médico e seus instrumentos tecnológicos. Trata-se de uma tarefa difícil, não apenas pelo desgaste físico, mas, sobretudo, por ser altamente exigente de trabalho psíquico (Sá, 2009, 2005), em função das angústias, fantasias e sentimentos por vezes contraditórios que pode mobilizar nos profissionais. Nesta perspectiva, cabe mencionar o recente trabalho de Romanholi e Cyrino (2012) que, analisando a VD como estratégia pedagógica de formação de médicos, aponta a angústia e o sentimento de impotência e frustração que a VD desencadeia diante de situações que põem em cheque o seu saber, uma realidade adversa que não podem mudar, como a pobreza extrema e a violência que marcam a vida de muitas famílias. Neste contexto, [...] cada VD, por mais orientada que estivesse, poderia levar a uma série de imprevistos que, não controlados ou antevistos no seu planejamento, tornava necessária a permanente sensibilização e capacitação dos professores e dos estudantes para lidarem com o inusitado. (Romanholi, Cyrino, 2012, p.698, grifo nosso)

O trabalho da ESF, e particularmente as VDs, são especialmente tecnologia leve e relação com o outro. O trabalho do ACS, sobretudo, é puramente relação com os outros (Merhy, 2007). O médico desenvolve seu trabalho, relacional, mediado pelo “setting” terapêutico, que é conformado pelo espaço físico, pelos instrumentos tecnológicos para diagnóstico e terapia, pelas regras ou normas que regulam a atividade, bem como pela valorização social de seu papel no imaginário comum, o que lhe confere mais conforto ao realizar o atendimento. O ACS entra sozinho na casa do usuário sem ter ideia do que pode esperar. São muitas situações de contato direto com a diversidade de possibilidades de vida, intensidades, violência, sofrimento, doença, enfim, é uma imersão direta e sem mediação no desconhecido. As VDs demandam exigências maiores de trabalho, pois mobilizam ações de todo o tipo, não só físicas, mas, sobretudo, psíquicas. Desse modo, se o ACS percebe que não está bem para lidar com as pessoas da melhor forma possível, ele se reserva o direito de não ir fazer a VD.

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“Tem dias que eu chego aqui na unidade to muito fraca pra ir à rua fazer visita [...] outro dia que eu não estava me sentindo bem e disse: ‘- Eu não estou apta a sair na casa de ninguém’ Porque às vezes você vai levar uma orientação, uma palavra ou um conforto e você não vai [conseguir] levar. E aí eu prefiro não ir. Fico aqui, organizo meus prontuários, coloco as coisas em ordem, a gente tem ficha pra preencher, ajudo as meninas aqui, lá dentro, mas não vou. Não adianta você oferecer uma coisa que você não tem. Como você vai falar em saúde se você não tá bem?”. (ACS Silvia Regina)

Aqui se destaca a problemática psicanalítica dos processos identificatórios, base para a produção do cuidado com o outro e do vínculo (Sá, 2009; 2005), mas, ao mesmo tempo, podendo representar importantes desafios para o trabalho em saúde. Nesta perspectiva, Jardim e Lancman (2009), ao discutirem o trabalho do ACS, chamam a atenção para os limites e possibilidades que a dupla inserção do ACS na comunidade – como profissional de saúde e membro da comunidade – pode representar, facilitando a criação de vínculos e a compreensão dos problemas, mas, também, produzindo sofrimento pelo envolvimento e identificação com os problemas das famílias.

Agente Comunitário de Saúde: os olhos da equipe no território De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2012), cada ACS deve realizar visitas a cada família, na sua área de abrangência, uma vez por mês. Na unidade estudada, observam-se diferentes critérios adotados pelos ACS para o desenvolvimento de seu trabalho. Uns começam pelos grupos de risco ou prioritários, outros estabelecem uma rua para iniciar e continuam por ela até terminar e passar para outra, outros vão por um lado da rua (casas pares) e, depois, passam para as casas ímpares, e há quem comece pelas áreas que apresentam maior risco social. Para o ACS Marcos, “primeiro hipertensos, depois as crianças e aí partimos pra aquelas doenças que são poucas, como tuberculose, hanseníase. Depois vou pro geral. Costumo fazer por seguimentos, começo na rua do maior pro menor [número da casa] até chegar o final da rua. Tem famílias que nunca têm nada. Mesmo que não tenha, aprendi que tenho que escrever aquilo que me dizem. Essas pessoas eu passo no final de tudo”.

Assim, observa-se que o ACS define seus próprios critérios para organizar as visitas, com isso, alguns estabelecem prioridades em relação aos problemas mais relevantes, outros fazem de maneira a facilitar seu processo de trabalho, sem considerar, necessariamente, os grupos de risco. Tal fato pode demonstrar certa falta de coordenação geral do trabalho dos ACS, levando a produção de diferenças no acesso da população no mesmo território. Dependendo do ACS que faz a cobertura de determinada área, os grupos de risco terão acesso prioritário ou não. A criação de vínculos entre os ACS e o usuário cadastrado pode, do mesmo modo, influenciar o maior tempo despendido entre as VDs e a dedicação de maior atenção a determinadas famílias mais que outras. O desenvolvimento do trabalho se dá de forma isolada, sem se apoiar em uma coordenação geral, talvez necessária para que as iniquidades sejam evitadas e para a garantia da integralidade e do acesso equitativo. Merhy (2007) discute as relações entre o trabalho vivo em ato, trabalho morto e seus processos de captura. Dessa forma, levanta a problemática da tensão entre a autonomia do profissional da saúde versus o controle exercido pelas práticas gerenciais. Contudo, a dimensão relacional, presente no real do trabalho (Dejours, 2008), sempre escapa às estratégias de controle gerencial. O trabalho vivo em ato é apenas parcialmente capturável pelo trabalho morto. Onocko Campos e Campos (2006) afirmam a coconstrução de autonomia como uma das finalidades do trabalho em saúde, com importantes implicações políticas, epistemológicas, organizacionais e para a gestão do trabalho. Desse ponto de vista, a autonomia não é absoluta, e sim será sempre mediada pela relação com os outros. Encontrar um equilíbrio entre a autonomia dos profissionais de saúde e a construção de autonomia dos usuários em seus modos de andar a vida faz-se um desafio cotidiano. 66

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Como foi visto, se, por um lado, os ACS têm baixa capacidade de influenciar o trabalho dos demais profissionais da equipe, por outro lado, é no território, na realização das visitas, que encontram maior espaço de exercício de sua autonomia. Além disso, é também no deslocamento no território que seu trabalho ganha centralidade sobre o trabalho dos demais, ao contrário do trabalho intramuros, concentrado na atuação do médico. Assim, os ACS tornam-se os “olhos” da equipe no território. Há um reconhecimento, por parte das equipes, de que os ACS conhecem melhor a área e a necessidade das pessoas que vivem ali (Abrahão, Lagrange, 2007), por isso, determinam as casas que serão visitadas. “Eu vou sempre com o ACS e o médico vai também sempre com o ACS. Porque a gente nunca sabe andar muito, aqui é muito grande e eles moram aqui, eles são quem sabem” (enfermeira Maria Ângela). Ou ainda, “Porque o ACS conhece a área, eles trabalham aqui há muito mais tempo que a gente. Os meus olhos são os deles” (odontóloga Andréia). Observamos assim que, no território desconhecido para a maioria dos profissionais de nível superior, a dependência entre as categorias profissionais inverte-se. Durante as VDs, ao percorrerem os espaços da comunidade, os ACS tornam-se os atores principais do processo, e não o médico, enfermeiro ou o odontólogo. Esse deslocamento da equipe de saúde até o território, na casa das pessoas, pode representar um dispositivo potente para as práticas de cooperação entre categorias diversas e para o reconhecimento de uma experiência prática construída no trânsito pela comunidade. Traz à tona o debate sobre a formação e a importância do papel do ACS na integração entre território e unidade de saúde (Bornstein, 2007; Morosini, Corbo, Guimarães, 2007).

Rotinas versus prioridades: o lugar da visita domiciliar no planejamento das ações da equipe de saúde da família As VDs permitem conhecer: as condições de vida e habitação das famílias, as relações que estabelecem no ambiente doméstico, as condições de adoecimento daquela família, e, consequentemente, podem facilitar o planejamento e o direcionamento das ações visando a promoção da saúde e o fortalecimento do autocuidado. As enfermeiras realizavam as visitas intercalando uma microárea por semana. No entanto, essa disposição passou a não dar certo, pois, em algumas áreas, havia mais casos graves do que em outras, e o imperativo da realidade passou a determinar um novo tipo de arranjo, não programado: “então a gente agora ficou trabalhando só em cima da demanda, independente de ser um ou outro agente. Assim que a gente tem trabalhado até o momento” (enfermeira Manuela). A enfermeira ainda se lamenta: “[...] queria muito fazer um acompanhamento domiciliar mais planejado, mais programado, mas é um pouco complicado pela demanda que a gente tem aqui na unidade”. As prioridades do atendimento médico realizado nos domicílios são determinadas pelos ACS durante as visitas diárias, mas não foi instituída uma classificação de risco na unidade, ficando a critério de cada ACS e do que eles consideram prioritário. Organização similar ocorre em relação às VDs dos profissionais de nível superior, ou seja, quando algum cadastrado solicita atendimento no posto ou consulta domiciliar, o ACS identifica os casos com maior urgência, agenda as consultas médicas de acordo com a prioridade e seleciona os casos de VD. A enfermeira faz uma visita aos usuários, avalia e define quais serão os usuários que precisam de uma consulta médica domiciliar. O médico da equipe amarela faz uma crítica a essa maneira de organização da unidade: “Essas visitas são feitas conforme o agendamento dos próprios ACSs. Eles que nos levam às visitas. Mas infelizmente o que a gente percebe é que fazemos sempre às mesmas pessoas. Eu não sei, mas creio que a população seja infinitamente maior do que aquilo que a gente conhece”(Dr. Vicente). Este médico queixa-se, assim, da qualidade do olhar do ACS, que apresentaria alguma “cegueira” sobre a realidade da população de sua área de cobertura, mas, ao mesmo tempo, não propõe uma outra rota de visita aos ACS e enfermeiros e, muito menos, reserva mais tempo durante a semana para se dedicar a conhecer as pessoas e as potencialidades do território. Não se propõe a ir ver com seus próprios olhos. As VDs da odontologia são orientadas para a realização de levantamento do perfil epidemiológico, base para identificação das prioridades e agendamento das primeiras consultas. A odontóloga da ESB COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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verde relata que, no início, foi difícil, pois a VD da ESB criava uma grande expectativa no cadastrado. Do mesmo modo que as equipes de SF, cada ESB determina a rota das VDs a seu modo - com a ajuda dos ACSs. Em geral, fazem um rodízio entre os ACS e começam pelas áreas que estão em maior risco social. “Eu peço para o Otávio (ACS) pra ir só nas famílias mais carentes” (Odontóloga Dinorah). O conjunto de normas e regulamentações da ESF formulado pelo Ministério da Saúde tem sido criticado por ser excessivo e por homogeneizar as atividades das ESF em todo o território nacional sem considerar as necessidades e especificidades locais, ainda que alguns padrões se façam necessários. Observamos que o plano de visitas é elaborado apenas pelo ACS, sem o estabelecimento de objetivos pactuados em equipe. Os procedimentos da VD também não são padronizados, ficando a critério de cada profissional. Verificamos a reprodução burocrática das VDs: preenchimento de fichas e atualizações rotineiras que dificultam a construção de novas relações entre os usuários e a equipe. Observamos que a dificuldade das equipes em lidar com a demanda espontânea e a programada também se reflete na organização e decisão entre prioridades das VDs (crônicos ou demandas agudas/ urgentes). O debate sobre a organização dos processos de trabalho nas unidades de SF e a construção de um protocolo de classificação de risco vem se intensificando em muitos municípios do país (Minas Gerais, 2010). Há um reconhecimento da necessária composição de critérios para organização da demanda e programação das ações de saúde com estabelecimento de prioridades (Mendes, 2010).

O caminho das equipes no território: produzindo encontros ou ditando modos de andar a vida? A visita é uma atuação terapêutica em domicílio a pacientes acamados, mas, também, a maneira pela qual a equipe realiza a busca ativa aos faltosos, identificação da demanda reprimida, ações de promoção, prevenção e de educação em saúde de maneira mais singularizada (Abrahão, Lagrange, 2007). A atenção à saúde no domicilio pode construir novas formas de cuidado que considere a realidade de vida das pessoas, suas necessidades e limites, bem como a integração do olhar da equipe multiprofissional, dessa forma, vai na contramão de uma prática puramente médica ou medicalizante hegemônica. Merhy e Feuerwerker (2007, p.2) apontam para uma “tensão constitutiva básica: de um lado, a medicalização, em sentido lato; de um outro, a sua substituição”. Há sempre um processo de disputa pelo cuidado. No dia a dia do serviço de saúde, o profissional, sob várias formas, costuma prescrever estilos de vida, hábitos, alimentação, exercícios, medicamentos que provocam reações diversas. Nem sempre o profissional está preparado para escutar o usuário, seus valores, seus desejos, suas formas de andar a vida, muitas vezes incompatíveis com algumas prescrições. Este processo ainda é mais complexo nos casos de doenças crônicas ou acamados que precisam de múltiplos cuidados. equipes que constroem o plano de cuidado em conjunto com os cuidadores, havendo a possibilidade de singularização do cuidado de acordo com necessidades identificadas e recursos disponibilizados pela família até equipes que procuram simplesmente transferir o hospital para dentro da casa, tentando enquadrar o cuidador como um simples executor de um plano terapêutico construído exclusivamente de acordo com a racionalidade técnico-científica. (Merhy, Feuerwerker, 2007, p.5) A construção compartilhada do projeto terapêutico e a possibilidade de renovar coletivamente a prática dos profissionais que atuam neste processo, transformando suas ações de acordo com a realidade que se apresenta e envolvendo sujeitos em relação, constitui a potencialidade da VD. Possibilita a ampliação da autonomia na produção de sua própria saúde e do autocuidado, caminha no sentido da integralidade e da continuidade da atenção, numa perspectiva mais intercessora do cuidado (Merhy, 2007). Durante uma visita da ESB, fomos à casa de uma senhora com dificuldade de locomoção que havia feito uma extração que inflamou. A casa era muito pobre e a senhora foi atendida no chão. O técnico em SB achou estranho porque ela relatou ter seguido as orientações de não fazer esforço e tomar 68

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corretamente a medicação. Ele insistiu e ela confidenciou que o filho a havia agredido, batendo justamente no curativo em seu rosto. Veio a descobrir que o rapaz era usuário de drogas, mas ela não queria denunciar, nem que o filho saísse da casa dela, numa tentativa desesperada de protegê-lo. A ESB procurou a enfermeira e o ACS, que já haviam tentado contato com assistência social, em vão, pois não havia disponibilidade de tratamento psicológico e acompanhamento social próximo a sua residência. Neste caso, não cabe simplesmente a perspectiva de cura. A complexidade desta problemática exemplifica a dura realidade de se operar sobre esse território vivo e a difícil tarefa de apoiar o usuário na construção de uma forma de administrar melhor o seu próprio sofrimento e sua própria vida. Esse tipo de ação de saúde não se esgota na clínica ou na epidemiologia, mas envolve outros campos de conhecimentos que precisam ser mobilizados, implica processos relacionais com o usuário, escutas qualificadas e, mesmo, a responsabilização e compromisso só possíveis mediante os vínculos sociais que operam. Vale aqui refletir sobre os possíveis condicionantes das práticas das equipes atuando sobre uma demanda para além da saúde, e o que ela pode provocar no profissional que a experimenta (Campos, 2007b). Segundo Bondía (2002), experiência não é aquilo que adquirimos com o tempo, com a informação, algo que acontece fora de nós; pelo contrário, experiência é o que passa em nós e, ao passar, nos transforma. Muitas coisas acontecem, mas experiência deixa algum vestígio e, portanto, necessariamente singular. Esse acontecimento requer uma ruptura, que nos faz desacelerar, refletir e escutar, dando sentido ao que nos atravessa. Nessa perspectiva, a experiência e o saber que dela deriva permitem apropriarmo-nos e agir sobre a nossa própria vida. No caso especial da saúde, acrescentamos que a experiência nos instrumentaliza também a operar na relação com os outros. Fomos à casa de um senhor bastante resistente em aceitar a VD. Perguntava pelos médicos da unidade e disse que só queria a visita médica. O ACS relatou que ele não deixava ninguém aferir sua pressão, incluindo a filha que era técnica de enfermagem. A enfermeira foi, com cuidado, conquistando a confiança do usuário, aferiu sua pressão e, ao final, ele afirmou que gostou muito da nossa presença e garantiu que procuraria a unidade com mais frequência. A VD da médica (equipe azul) foi a um usuário diabético com um dos pés amputado e o outro com sérios problemas de cicatrização. Esta visita foi acompanhada, também, por uma ACS. A consulta foi atenciosa. A médica conversou bastante com o usuário e com sua mulher sobre os cuidados que deveria tomar, indicando alimentos que deveriam ser ingeridos em abundância e outros que deveriam ser evitados, orientando sobre a limpeza e curativos necessários, e prescrevendo alguns medicamentos. Após a saída da casa, a mulher nos acompanhou e a médica conversou com ela sobre a sua saúde, valorizando o trabalho que desempenhava cuidando da casa e do marido e a importância de cuidar de si para dar conta de tarefas tão árduas. Ela exerceu escuta qualificada e muito sensível às questões vivenciadas no cotidiano de cuidado de um membro doente na família. A VD implica certa exposição dos hábitos e rotinas privativas do usuário no espaço domiciliar. Assuntos particulares se tornam visíveis, alvo de avaliação dos profissionais de saúde e do seu saber-poder sanitário, legitimado pela ciência. O vínculo e a confiança se colocam em linha tênue nessa relação de compartilhamento e de encontro com o outro e devem ser protegidos como parte do ato de cuidar.

Considerações finais O adequado atendimento à demanda espontânea é fator preponderante para o estabelecimento da SF como serviço de procura regular para assistência e prevenção. A VD também pode se constituir como dispositivo potente para a criação de vínculos, possibilitando um olhar diferenciado da equipe de saúde para alterações na forma de atuação neste processo. Contudo, acreditamos não ser possível generalizar tal compreensão ou adotar a VD como instrumento aplicável a todos os usuários, ou utilizá-la igualmente para toda a diversidade de situações que se apresentam no cotidiano. Castiel, Sanz-Valero e Vasconcellos-Silva (2011) trazem a discussão sobre a perspectiva contemporânea de hipervalorização de estratégias de controle dos comportamentos, hábitos ou estilos de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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vidas com vistas à prevenção de doenças e diminuição de possíveis riscos. Segundo os autores, o terreno da saúde pública e seu ideário de risco estão modelando a subjetividade atual, propagando discursos morais, de medo, incerteza e culpa que assediam a vida cotidiana. Considerando essa discussão, acreditamos que a presença dos profissionais de saúde na residência e na vida privada das pessoas não pode ser mais um instrumento de controle, hiperprevenção e imposição. Ao contrário, deve poder ser um dispositivo que possibilite ampliar o olhar sobre as necessidades dos sujeitos e coletividades, bem como valorizar as possibilidades de escolha e autonomia dos sujeitos. Este é um dos principais desafios a serem enfrentados na consolidação das VDs como prática estruturante na Saúde da Família. O fato de o cuidado em saúde ser produzido num território não institucional - o domicílio - pode produzir desconforto, angústia, desafios diante de uma demanda ainda não nomeada, não classificada, mas, por outro lado, pode compor alternativas complementares à organização do cuidado, implicando os atores ao se colocarem de outro modo em cena. Estabelecer rotinas diferenciadas de visita conforme risco/estrato social, presença de agravos crônicos etc., e instituir distintas prioridades como forma de aprimorar os serviços prestados pela ESF são instrumentos que podem vir a facilitar a organização das VDs, sem, contudo, se transformarem em regras rígidas que aprisionem esse processo de trabalho vivo em ato. Elo entre o serviço e população, o ACS é ator importante da ação comunitária. É um facilitador para a identificação de problemas e possibilidades de auxílio ao usuário em seus modos de levar a vida. Contudo, Jardim e Lancman (2009) afirmam que é preciso considerar a complexidade e os desafios possivelmente implicados na dupla inserção dos ACS, simultaneamente agente e sujeito. Tal relação cria uma porosidade entre o trabalhar e o viver na comunidade, diminuindo ou eliminando o distanciamento do ato de trabalhar e de morar, visto que ambos acontecem nos mesmos espaços físicos e na relação com a mesma comunidade. O território é base das iniciativas de articulação intersetorial e as equipes atuam na identificação de situações de risco social, potencializam a consolidação das redes locais, de modo que o acesso ao SF facilita o acesso a outros serviços sociais. No entanto, para que tal perspectiva seja efetiva, é preciso que se compreenda o território não só como um espaço geográfico e material/econômico, mas social, cultural, com suas dimensões simbólica e imaginária (Sá, 2009), que condicionam igualmente os problemas de saúde e a possibilidade de enfrentá-los. Nesta perspectiva, a VD tem potencialidade de apreensão da realidade, permitindo expressar condições de vida e trabalho dos sujeitos, subsidiar o planejamento das ações para atender, de forma adequada, às necessidades de saúde da população em sua dimensão singular. São muitos os desafios diante da necessidade de se produzirem novas tecnologias de cuidado; entre eles, está o de estabelecer um novo equilíbrio no encontro entre usuário e profissional de saúde, a construção de um plano de saúde em ato para cada sujeito e sua vida.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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artigos

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artigos

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CUNHA, M.S.; SÁ, M.C. Las visitas a domicilio en la Estrategia de Salud de la Familia (ESF): los desafíos de movimiento en el território. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.61-73, jan./mar. 2013. Este estudio se centró en los procesos de trabajo y la gestión de la atención de tres equipos de ESF en Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, tenendo las visitas domiciliarias como foco de análisis. Un estudio de caso fue elegido en un contexto complejo, con personas en situaciones de fragilidad, incertidumbre y sufrimiento. Los resultados apuntan a la improvisación de los profesionales cuando enfrentan precarias condiciones de trabajo y desafíos cotidianos para llevar a cabo visitas a domicilio y manejar las demandas que surgen en el territorio. Aunque las visitas se presentan como una poderosa herramienta para la planificación y reorientación de las prácticas de salud, todavia enfrentan grandes barreras, sobretodo porque requieren una disponibilidad interna de los profesionales para hacer frente a lo inesperado y a la diversidad.

Palabras clave: Cuidado en salud. Práctica profesional. Estrategia de Salud de la Familia. Visita domiciliaria. Atención primária en salud. Recebido em 19/07/12. Aprovado em 29/01/13.

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artigos

Estratégia Saúde da Família e Saúde do Trabalhador: um diálogo possível?

Francisco Antonio de Castro Lacaz1 Andrea Trapé2 Cássia Baldini Soares3 Ana Paula Lopes dos Santos4

LACAZ, F.A.C. et al. Family Health Strategy and Workers’ Health: is a dialogue possible? Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.75-87, jan./mar. 2013.

This paper reflects on the omission of practices aimed at workers’ healthcare issues within the scope of the Family Health Strategy (FHS) and proposes inclusion of such practices. It takes the view that the changes to the physiciancentered care model require a new approach that incorporates analysis of the elements of production, circulation and consumption of goods. This approach is based on the theory of social determination of the health-illness process and on the categories of work and social reproduction. It proposes that incorporation of the topic of workers’ health in the FHS should be accomplished through putting into operation an instrument that surveys and analyzes variables and indicators of social reproduction; through a matrix support system that integrates workers’ health reference centers with primary healthcare units; and through continuing education for the FHS teams regarding workers’ health issues.

Keywords: Workers’ Health. Family Health Strategy. Primary Health Care. Brazilian Health System.

Reflete-se sobre a omissão de práticas voltadas para a saúde dos trabalhadores no âmbito de atuação da Estratégia Saúde da Família (ESF) e propõe-se a inclusão dessas práticas. Considera-se que a mudança do modelo de atenção médico-centrado exige uma nova abordagem que incorpore a análise de elementos da produção de bens, da circulação e do consumo. Fundamenta-se na teoria da determinação social do processo saúde-doença e nas categorias trabalho e reprodução social. Propõe-se que a incorporação da temática Saúde do Trabalhador (ST) na ESF seja realizada pela operacionalização de: um instrumento que levante e analise variáveis e indicadores de reprodução social; um sistema de apoio matricial que integre os Centros de Referência em ST com as Unidades Básicas de Saúde; educação permanente das equipes da ESF em conteúdos de ST.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Programa Saúde da Família. Estratégia de Saúde da Família. Atenção Primária à Saúde. Sistema Único de Saúde.

1 Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Borges Lagoa, 1341. São Paulo, SP, Brasil. 04.023-062. f.lacaz@unifesp.br 2 Unidade Básica de Saúde Jardim Boa Vista. 3 Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. 4 Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense.

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ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA E SAÚDE DO TRABALHADOR: ...

Introdução: situando o problema Nos últimos anos, surgem análises que colocam em dúvida a pertinência da Estratégia Saúde da Família (ESF) como alternativa para o desenvolvimento de ações ao nível da Atenção Primária em Saúde (APS), conforme Portaria 648 de 28/03/2006 do Ministério da Saúde, que instituiu a ESF em substituição ao anteriormente denominado Programa de Saúde da Família (PSF) (Brasil, 2006a). A mudança de nome deveu-se ao fato de o termo programa remeter a uma atividade com início, desenvolvimento e fim, sendo que a estratégia visa uma reorganização contínua da APS no país, segundo os preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, analisando-se o capítulo II da referida portaria, não se verificam mudanças expressivas em relação ao proposto no PSF (Brasil, 2006a). Em adendo, a Portaria 2.488 de 21/10/2011 (Brasil, 2011), que aprovou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), estabeleceu a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica (AB), da ESF e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Saliente-se que os termos AB e APS apresentam-se na PNAB como equivalentes e são conceituados como conjunto de ações individuais e coletivas de promoção e proteção à saúde, prevenção, diagnóstico, cura, objetivando atenção integral que interfira na saúde e nos determinantes sociais; desenvolvidas por práticas de gestão participativas sob forma de trabalho em equipe voltadas às populações dos territórios pelos quais se assume responsabilidade sanitária (Brasil, 2011). Frise-se que, no processo de territorialização, como parte das ações em APS, é mandatório o levantamento de situações que, no território, possam vir a constituir potencial risco à saúde e que nele se encontram (Monken, Barcelos, 2005) – conforme previa a já referida Portaria 2.488 que, quando trata das atribuições dos membros das equipes de AB, refere que as equipes da ESF devem atuar na territorialização e mapeamento da área de atuação, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos (Brasil, 2011). Embora os estudos e a legislação anteriores à Portaria 648 utilizassem a denominação PSF, neste texto será adotada a denominação Estratégia de SF, reafirmando-se a necessidade da rediscussão de tal estratégia, considerando os gastos realizados, sua capacidade de inovar e os resultados obtidos (Pinotti, 2008; Scherer, Marino, Ramos, 2005). A isso se somam deficiências de diversas ordens: inadequada formação dos médicos; baixa resolutividade; descompromisso com as necessidades de saúde da população; descontinuidade das capacitações (Scherer, Marino, Ramos, 2005). Ademais, um conjunto considerável de estudos evidencia as condições de trabalho das Equipes de SF caracterizadas pela coexistência de salários muito díspares, contratos precários de trabalho, grande rotatividade (Canesqui, Pinelli, 2006); intensa divisão de trabalho, menor satisfação no trabalho das equipes com vínculos trabalhistas precários e maior carga horária (Friedrich, Pierantoni, 2006). Inscrita no processo de ajuste neoliberal, a ESF acaba por fomentar a lógica privada no espaço público, uma vez que: restringe o universo das pessoas a serem atendidas, focaliza a atenção em grupos de risco – bolsões de pobreza – e limita os serviços a ações pré-estipuladas em âmbito central; ocultando as contradições sociais, ao utilizar o conceito de comunidade; substituindo os sujeitos políticos na tomada das decisões da coletividade por sujeitos técnicos, fazendo com que o direito universal e geral à saúde fique reduzido ao atendimento das carências de grupos sociais particulares (Calipo, Soares, 2008). Resulta da implementação verticalizada, mediante incentivo financeiro aos municípios, que, apesar de sua heterogeneidade, aderem a um mesmo pacote, limitado a uma porta de entrada (Soares, 2005). Também apontada como limitação da ESF é sua dificuldade de implementação em grandes centros urbanos e regiões metropolitanas (Caetano, Dain, 2002; Favoreto, Camargo Junior, 2002). Pouco se tem observado, na literatura, no entanto, a discussão de outra grande lacuna na atuação das equipes da ESF, especialmente em cidades industrializadas e de maior porte, ou seja, a articulação da ESF com a temática do campo Saúde do Trabalhador (ST) (Dias, Ribeiro, 2011; Dias et al., 2009). Assim, constituem objetivos deste trabalho: refletir sobre a omissão, no âmbito de atuação da ESF, de práticas voltadas para a saúde dos trabalhadores, sujeitos que se encontram praticamente fora do escopo da atenção básica à saúde, e propor formas de inclusão dessas práticas. Esta reflexão foi desencadeada por vivência de campo, com alunos de graduação, em atividade didática desenvolvida na Atenção Primária em Saúde (APS). Tratava-se de visita à área de abrangência 76

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LACAZ, F.A.C. et al.

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de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), localizada num bairro periférico de importante município industrial do ABCD paulista, “guiada” por agentes comunitários de saúde (ACS) de uma das ESF da referida UBS. A visita objetivava conhecer as ações desenvolvidas pelas equipes no território, como parte das atividades de campo de alunos do 1º ano de Medicina que cursavam Unidade Curricular da Saúde Coletiva. Ao andar pelas ruas do bairro, as ACS demonstravam conhecer, de forma detalhada, quem habitava em cada casa, mas, ao serem perguntadas sobre como agiam junto aos trabalhadores que atuavam em um galpão que abrigava uma indústria, responderam que, pelo fato de não serem moradores locais, tais trabalhadores não eram cadastrados na UBS! Diante da resposta da ACS, que causou estranhamento, ficou reforçada a impressão de que se estava diante de um dos limites estruturais claros, dentre outros, que dificultam sobremaneira a atuação da ESF na promoção e atenção à saúde dos trabalhadores; até porque a ESF é considerada estruturante dos sistemas de saúde municipais (Scherer et al., 2005; Brasil, 2000). A isso se alia a ausência de capacitação técnica das equipes para abordarem as relações trabalho-saúde, outro óbice importante (Scherer, Marino, Ramos, 2005). O que orientou as reflexões aqui contidas partiu dessa constatação empírica aliada às inquietações dos autores sobre a ausência de envolvimento da ESF com a temática do campo Saúde do Trabalhador (ST) (Lacaz, 1996). Isso permitiu, então, articular tais questões com o estudo de Santos (2010) que trata da operacionalização de ações em ST na rede básica a partir da realidade observada em Amparo, SP, utilizando Apoio Matricial como mediador desta articulação. A isso se somaram as reflexões de Trapé (2011), desenvolvidas em estudo que busca operacionalizar, ao nível da APS, a categoria Reprodução Social (Laurell, 1991), mediante adoção do Índice de Reprodução Social (IRS) para estratificar as famílias cadastradas na ESF. A omissão da ESF no que se refere à atenção à saúde dos trabalhadores, além de ser intrigante, é um paradoxo, na medida em que os trabalhadores estão longe de fazerem parte das populações não carentes e mais longe ainda de estarem fora da esfera da criminalização ou da possibilidade de serem acometidos por agravos à saúde relacionados às epidemias e endemias clássicas (Lacaz, 2003). Ademais, a própria implantação da ESF, conforme advoga o Ministério da Saúde (Brasil, 2000), é justificada pela busca da substituição do modelo assistencial – historicamente centrado na doença e na assistência médica individual – por outro, calcado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade; e a clientela passaria a ser assistida no contexto familiar (e social) mediante ações de caráter intersetorial e socialmente adequadas (Scherer, Marino, Ramos, 2005). Cabe indagar que realidade é tão socialmente referenciada e cuja intervenção sanitária intersetorial é mais mandatória do que a realidade do espaço do trabalho? Ressalte-se que a ESF não adota qualquer instrumento específico que permita uma aproximação, mesmo que inicial e de forma simplificada, com as realidades de trabalho de sua clientela, o que acaba por dificultar a possibilidade de reflexão de suas equipes sobre as relações entre trabalho e processo saúde-doença. Como apontam Scherer, Marino, Ramos (2005), o Ministério da Saúde tem enfatizado o papel da ESF na articulação das políticas e dos recursos sociais de maneira a identificar as diversas causas dos problemas que incidem na qualidade de vida da população. Ora, um dos aspectos mais relevantes relacionados com a qualidade de vida é a qualidade do trabalho (Lacaz, 2000). Questões político-ideológicas estão na base da omissão apontada, mas é a partir da reflexão teóricoconceitual que se justifica a inclusão de práticas voltadas à saúde dos trabalhadores nas áreas de abrangência das UBS que adotam a ESF. Além disso, a realidade cada vez mais multifacetada do mundo do trabalho, resultante da reestruturação produtiva (Antunes, 1999), incorpora também o trabalho domiciliar (Navarro, 2009). Isto se torna mais preocupante e desafiador quando se considera que o trabalho domiciliar articula momentos da vida que integram a produção, a circulação e o consumo de mercadorias (Laurell, 1991), o que exigiria um envolvimento real da ESF com esta realidade, tão próxima ao seu aventado escopo (Brasil, 2002b). Outra situação hoje corriqueira, que aponta para limites de atuação da ESF e que se relaciona à problemática da imagem caleidoscópica do trabalho contemporâneo, é a questão do trabalho infantil. Isto 77


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fica evidente na observação de Nobre (2003) quando aborda a ponderação de profissionais de equipes da ESF ao serem questionados sobre como agir quando identificam uma realidade de trabalho infantil em famílias sob sua responsabilidade, já que, nesta situação, entram em jogo preocupações de ordem ética e o risco de quebra de confiança, com o encaminhamento de denúncias. Frise-se que o óbice apontado desconsidera que a denúncia poderia desencadear orientações e medidas que contribuiriam para a prática de ações de combate ao trabalho infantil (Nobre, 2003), hoje uma chaga social associada à flexibilização do trabalho. A propósito, como parte integrante da reestruturação produtiva, a flexibilização do trabalho tem como subprodutos: a precarização de vínculos e direitos trabalhistas, e o desemprego, elementos relevantes para o aumento do trabalho infantil (Kohen, 2008). Com as crescentes taxas de desemprego ou de trabalho precário e de baixa qualidade, o homem desempregado, ou que desistiu de procurar emprego, recolhe-se ao domicílio, e a mulher passa a atuar como chefe da família. Com isso, o núcleo familiar reestrutura-se também, e o trabalho infantil transforma-se numa estratégia de sobrevivência diante dos parcos recursos que são obtidos pela família (Kohen, 2008). Do ponto de vista do envolvimento da rede pública de saúde com as relações trabalho-saúde/ doença, desde as primeiras experiências de atenção à saúde dos trabalhadores, implantadas em meados dos anos 1980 na rede de Centros de Saúde, que compunham os serviços básicos de saúde, estes constituíram o espaço privilegiado para o desenvolvimento de ações através dos Programas de Saúde do Trabalhador (Freitas, Lacaz, Rocha, 1985). Tais ações calcavam-se na compreensão de que os trabalhadores atendidos deveriam ser abordados enquanto produtores de bens e serviços, e não mais como uma clientela de meros consumidores que acorriam aos serviços de saúde para obter uma consulta, uma receita médica ou uma orientação sanitária (Navarro, 1982). Assim, qualquer atuação da rede básica de serviços de saúde na atenção à saúde dos trabalhadores deve, necessariamente, adotar algum tipo de instrumento que coloque, no centro das intervenções em saúde, a abordagem do processo de trabalho vivido no cotidiano, sendo a história de trabalho um valioso exemplo desse instrumento.

Aspectos teórico-conceituais e metodológicos que justificam a atuação da ESF em Saúde do Trabalhador na área das UBS Debate travado por longa data na Saúde Coletiva e Medicina Social, na perspectiva da determinação social do processo saúde-doença, é aquele que diz respeito à categoria central para explicá-la: produção social ou reprodução social (Laurell, 1991; Marx, 1980). Se existe certa concordância entre os autores filiados à Saúde Coletiva e à Medicina Social sobre o maior poder explicativo da categoria reprodução social (Laurell, 1991; Laurell, Noriega, 1989), a dificuldade de sua aplicação reside na apropriação empírico-metodológica, principal obstáculo para a apreensão da sua complexidade no processo investigativo de maneira mais consistente (Laurell, 1991). Laurell (1991, p.254) assim se posiciona a respeito da temática: Un primer terreno de discusión teórica de la medicina social respecto a la relación trabajosalud se refiere a conceptos analíticos centrales. Aquí se inscribe la polémica, […], respecto a dos de ellos,’proceso de trabajo’ e ‘reproducción social’. La discrepancia […] tiene dos planos: uno que se refiere a cuál de los dos es el concepto más general y otro que se refiere a cuál tiene mayor poder explicativo respecto al proceso salud-enfermedad de los distintos grupos sociales. Revisando la primera cuestión en la perspectiva de los conceptos marxistas generales resulta que no hay tal contraposición, dado que, a este nivel de abstracción, el propio Marx los usa indistintamente para significar el proceso de apropiación por parte del hombre de la naturaleza sobre la cual se da la (re)producción de la sociedad.

No que se refere à reprodução social, há necessidade de apontar algumas precisões conceituais, para melhor compreendê-la:

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... si por “reproducción social” se entiende la unidad contradictoria entre producción y consumo obviamente contiene al concepto “momento de la producción” – que en la sociedad capitalista es el proceso de producción – y, en cuanto pretende dar cuenta tanto de este momento como del momento del consumo, tiene um valor explicativo mayor respecto al proceso salud-enfermedad. (Laurell, 1991, p.255)

Considerando a possibilidade de buscar uma abordagem analítico-metodológica destas relações, o ponto de partida deve ser o âmbito da produção, que, nas sociedades capitalistas, organiza as outras esferas da vida na sociedade, inclusive o consumo; daí por que é estratégico pensar-se numa abordagem que dê conta dos dois momentos – produção e consumo – em sua relação com o processo saúde-doença (Laurell, 1991). Queiroz e Salum (1997), baseadas, sobretudo, em Laurell (1991) e Breilh (1991), assumem que as atividades do cotidiano são conformadas pelas formas de produzir e consumir em uma sociedade. Ao produzir, a sociedade estabelece formas específicas de trabalhar, que determinam formas de viver, resultantes do momento de consumo. Tais condições e processos de trabalho e vida caracterizam os perfis de reprodução social e deles derivam potenciais de fortalecimento e de desgaste. Esses potenciais de desgaste e de fortalecimento provenientes do momento da produção (formas de trabalhar) e do momento do consumo (formas de viver) configuram-se como perfis de reprodução social de determinado grupo social e se concretizam nos corpos através de diferentes gradientes saúde/ doença, caracterizando perfis. Os perfis de reprodução social e de saúde-doença constituem perfis epidemiológicos de dada população e, na medida em que a sociedade é composta por diferentes grupos sociais, estes têm diferentes formas de trabalhar e viver e, por isso, adoecem de maneiras diversas (Queiroz, Salum, 1997). Torna-se indispensável, então, “penetrar e explorar a relação trabalho-saúde, para poder compreender como se articula e expressa a saúde-doença enquanto um processo social” (Laurell, Noriega 1989, p.21). Laurell e Noriega (1989) analisam o desgaste proveniente do trabalho por meio das cargas de trabalho físicas, mecânicas, químicas, biológicas e psíquicas. Tais cargas não são consideradas meros fatores de risco, mas resultam da forma de produzir, com sua base técnica, organização e divisão de trabalho, sendo que a existência (ou não) das cargas não é alheia à correlação de forças capital-trabalho no local de trabalho concreto. A retomada de consciência dos trabalhadores com relação a esta situação, por meio da compreensão de que as doenças e os acidentes no trabalho não são provenientes de erros e culpas individuais, mas, sim, das repercussões do trabalho sobre a coletividade, abre espaço para a resistência do trabalhador; para a possibilidade de lutar e conseguir mudanças, adquirindo, assim, uma qualificação coletiva para reivindicar a apropriação do controle sobre o processo de trabalho (Laurell, Noriega, 1989). O trabalho passa, assim, a ser menos permeado por potenciais de desgaste, o que repercute favoravelmente sobre o processo saúde-doença do trabalhador. Nessa perspectiva, e assumindo-se que o trabalho domiciliar propicia exatamente o encontro dos três momentos que configuram a reprodução social – produção, (circulação) e consumo –, advoga-se, aqui, que é justamente a partir da apreensão das relações entre trabalho domiciliar e saúde-doença que se poderia desenvolver um maior conhecimento sobre tal temática, a partir da atuação das equipes da ESF, numa aproximação do que é a reprodução social. Tal atuação exigiria, em um primeiro momento, um mapeamento dos grupos sociais nos territórios, com suas específicas formas de trabalhar e viver, que estão na base de diversos problemas de saúde (Trapé, 2011).

Possibilidades de superação: um instrumento para captar desgastes e fortalecimentos decorrentes do processo de reprodução social Considera-se que qualquer atuação da rede básica de serviços de saúde na atenção à saúde dos trabalhadores deve, necessariamente, adotar algum tipo de instrumento que coloque, no centro das intervenções em saúde, a exploração do processo de trabalho vivido no cotidiano, sendo a história de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.75-87, jan./mar. 2013

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trabalho, por exemplo, um importante exemplo de tal instrumento, como citado anteriormente (Freitas, Lacaz, Rocha, 1985). A Ficha A dos ACS, que abastece o Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) e que contém apenas o campo ocupação, deveria ser qualificada para permitir o monitoramento das formas de trabalhar e de viver dos moradores e trabalhadores do território. Para o mapeamento dos grupos sociais num território, Queiroz e Salum (1997) desenvolveram um conjunto de categorias empíricas para apreender os momentos da produção e do consumo, propiciando uma classificação preliminar das famílias a partir de dados coletados em campo, que podem ser categorizados em variáveis relacionadas às formas de trabalhar e de viver. Instrumentos do inquérito contendo tais variáveis têm sido aplicados em campo por alunos de graduação da Escola de Enfermagem da USP, em disciplinas da Saúde Coletiva, desde 1996 (Salum, Queiroz, Soares, 1998). Tais categorias estão sistematizadas e apresentadas no Quadro 1, em conjunto com variáveis extraídas do trabalho de Wright (1989), isto é, um sistema de classificação de classes sociais baseado em Marx, que tem potência para considerar as velhas e as ‘novas’ formas de trabalhar, como as advindas da precarização de direitos e vínculos trabalhistas, que, hoje, deixam mais de 50% da força de trabalho fora do mercado formal (Ribeiro Neto, 2008).

Quadro 1. Variáveis que possibilitam apreender a reprodução social Grupos sociais homogêneos (Queiroz e Salum)

Eixo norteador

Esquema de Wright

Categorias empíricas

Exploração dentro das relações capitalistas de produção

Processo de reprodução social no momento da produção e no momento do consumo

Relação com os meios de produção (proprietário ou empregado), autonomia, domínio/controle do processo de trabalho

Formas de trabalhar e formas de viver

Donos dos meios de produção (grandes capitalistas, pequenos empregadores e pequena burguesia)

Formas de trabalhar - inserção na produção (número de trabalhadores na família/ local de trabalho/ atividade/ registro em carteira profissional) - dispêndio de energia no trabalho (tempo de locomoção para o trabalho/ dias-horas trabalhados por semana) - direitos e benefícios do trabalho (salário líquido de cada trabalhador/ número e tipo de benefícios recebidos pelos trabalhadores na família).

Variáveis

Qualificação para o trabalho (“experts”, especialistas e nãoespecialistas) Posição de mando (gerentes, supervisores e executores)

Formas de viver - uso do espaço social (tempo de moradia no município/procedência/ tipo de habitação/ propriedade da habitação/número de cômodos para dormir); - infraestrutura de habitação (número de pessoas por cômodo/ localização do banheiro/ uso coletivo ou não do banheiro/ propriedade de eletrodomésticos/ condições de ventilação, umidade, iluminação da habitação/ saneamento básico – procedência da água, destino do esgoto e do lixo); - dinâmica social da vida familiar (riscos percebidos oriundos das formas de viver/ religião/ vida associativa – agregação social)

Fonte: Trapé, 2011

Trapé (2011) analisou o comportamento dessas e outras variáveis de reprodução social quanto à sua capacidade para formar grupos com similares formas de trabalhar e de viver, objetivando contribuir para a construção de instrumentos que possibilitem o mapeamento de tais grupos em determinado território 80

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e propiciem o planejamento de intervenções em saúde. Tal trabalho, que estudou 589 famílias do Município de Santo André, SP, concluiu que as variáveis de condição de atividade (assalariado, desempregado, bico, entre outros), de qualificação para o trabalho e de curso preparatório para o trabalho foram as que mais se destacaram na dimensão das formas de trabalhar; e as variáveis propriedade da residência, pagamento de IPTU, número de cômodos para dormir, recebimento de conta de água e de luz, acesso a serviços de esgoto e ida a cultos como atividade de lazer foram as que melhor definiram a dimensão das formas de viver na diferenciação dos grupos. O trabalho partiu das variáveis potentes para caracterizar os grupos e construiu o Índice de Reprodução Social – IRS – capaz de mostrar as diferenças de reprodução social entre as famílias no microespaço (Rua, setor censitário, bolsões de favela, entre outros) (Trapé 2011). A partir do IRS, busca-se sugerir uma forma de abordagem metodológica para que a ESF apreenda a reprodução social como momento privilegiado, hoje expresso pelo trabalho domiciliar. Espera-se que tal monitoramento constitua as bases para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador nas ESF (Trapé, 2011).

A perspectiva de superação do impasse para a atuação da ESF em ST Após se mapearem as condições de trabalho e vida dos diversos grupos sociais pelo IRS, são necessários instrumentos para que os serviços de saúde da APS possam atuar na saúde dos trabalhadores. Assim, pretende-se empreender uma reflexão de como a ESF poderia incorporar, em sua prática, a abordagem das relações entre trabalho e saúde-doença (Lacaz, Santos, 2010). No âmbito legal, a atenção em ST no SUS é garantida na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica de Saúde (Lei 8.080/90) (Brasil, 1990). Com a publicação da Norma Operacional de Saúde do Trabalhador (NOST) pela Portaria 3.908, de 30/10/98, estão estabelecidos procedimentos para orientar as ações e serviços do SUS (Brasil, 1998). O investimento nos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) foi a estratégia adotada pelo Ministério da Saúde, com a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), pela Portaria 1.679, de 19/09/2002 (Brasil, 2002a). A Renast foi objeto de mais duas Portarias nos anos de 2005 e 2009 (Brasil, 2009, 2005), que buscaram ampliá-la e dar-lhe rumos mais afeitos às ações de promoção e vigilância em ST, ao lado de focar também a formação de quadros mais capacitados para nela atuarem (Santos, Lacaz, 2012). Quanto à atenção à saúde dos trabalhadores na rede básica, houve algumas tentativas de sua incorporação na ESF, dentre elas a publicação do Caderno de Atenção Básica em Saúde do Trabalhador (Brasil, 2002b). Aí eram apontadas as atribuições dos serviços de AB via ESF, considerando a equipe e o papel de cada membro no que tange ao desenvolvimento das ações de ST. Envolvem a identificação e registro da População Economicamente Ativa (PEA), as atividades produtivas existentes no território, para planejamento e execução da vigilância nos locais de trabalho. As situações de trabalho infantil devem ser consideradas como alerta epidemiológico. O Caderno ainda contém dados referentes às doenças relacionadas ao trabalho e aos procedimentos decorrentes da sua notificação. Embora a proposta da Renast tenha apresentado, como atribuição dos Cerest, dar suporte técnico e científico às intervenções em ST em toda rede do SUS, inclusive na AB (Brasil, 2006b), “[…] a rede SUS ainda não incorporou, [...], em suas concepções, paradigmas e ações o lugar que o Trabalho ocupa na vida dos indivíduos e suas relações com o espaço sócio-ambiental” (Dias et al., 2009, p.2064). Por outro lado, autores do campo ST assinalam que a estratégia de implantação dos Cerest vem permitindo avanços setoriais, acúmulo de experiências e conhecimentos técnicos, mas ainda apresenta grande dificuldade de articulação intrasetorial, seja nos níveis básicos de atenção à saúde, seja nos níveis especializados, bem como nas instâncias de vigilância (Dias et al., 2009; Dias, 2008; Lacaz, Machado, Porto, 2002; Lacaz, 1996). Algumas experiências que tratam da reorganização do trabalho em saúde podem colaborar nesse sentido (Campos, Domitti, 2007). Trata-se das Equipes de Referência (ER) e Apoio Especializado Matricial (AM) que foram propostas por Campos (1999), para reorganizar o trabalho em saúde na diretriz do vinculo terapêutico e na perspectiva de estimular a corresponsabilidade pela saúde, tendo como elementos norteadores a gestão do trabalho e a transdisciplinariedade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.75-87, jan./mar. 2013

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No entanto, raras são as experiências de atenção à saúde dos trabalhadores que apontam nessa perspectiva (Dias, Ribeiro, 2011; Santos, 2010; Dias et al., 2009). Assim, propõe-se exemplificar o AM em ST, desenvolvido pelo Cerest de Amparo, considerando pesquisa de doutorado que analisou proposta de apropriação pela ESF de medidas que pudessem aproximá-la das relações Trabalho e Saúde (Santos, 2010). Não se está falando do papel dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), que tem como objetivo ampliar a abrangência, resolubilidade e o escopo das ações da AB, conforme o art. 1º. Portaria 154, de 24/01/2008 (Brasil, 2008), que, numa omissão irreparável, deixa fora de suas atribuições as ações voltadas para a saúde dos trabalhadores. A recém publicada Política Nacional de Saúde do Trabalhador e Trabalhadora (PNST), de conformidade com a Portaria MS 1.823, datada de 23/08/12, define que cabe ao Cerest, no âmbito da Renast, dar apoio matricial para o desenvolvimento das ações de saúde dos trabalhadores na APS, nos serviços especializados e de urgência e emergência, bem como na promoção e vigilância nos diversos pontos de atenção da Rede de Atenção à Saúde (Brasil, 2012). O modelo de AM em ST (Santos, Lacaz, 2012), no município de Amparo/SP, é descrito na perspectiva de que possa ser adaptado e aperfeiçoado para outras realidades municipais. Em Amparo/SP, a rede de APS foi estruturada em UBS do PSF em 1995, depois ESF, sendo composta por 14 Unidades de Saúde da Família, quatro delas situadas em zona rural. Atuam na ESF vinte equipes, e também atuam, nas equipes, dentistas e auxiliares de consultório dentário, além de nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas do NASF. A gestão das ações na APS está sob a coordenação de um grupo multidisciplinar de apoio para a discussão dos problemas e (re) organização do processo de trabalho. O Cerest foi credenciado em 2004, mediante sua habilitação à Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), de conformidade com o que propunha a Portaria 1.679/2002 do Ministério da Saúde (Brasil, 2002a). Santos (2010) mostrou que a atuação em ST na APS estava prevista no Programa de Educação Permanente da Secretaria Municipal de Saúde de Amparo, e o AM em ST foi definido como prioridade no Plano de Saúde 2007-2008. As reuniões de AM em ST, em 2008, ocorreram em todas as UBS, com ampla participação dos profissionais da ESF. Os temas de ST abordados pelos profissionais do Cerest tinham sua discussão ilustrada a partir dos casos atendidos nas UBSs e Cerest. O objetivo do AM é estimular a atenção à saúde do trabalhador, acidentado ou com doença relacionada ao trabalho, na própria UBS, assim como a notificação dos casos de trabalho infantil e domiciliar, além da vigilância dos locais de trabalho onde ocorreram os acidentes. De conformidade com as demandas de cada UBS, foi estimulada a criação de grupos educativos de apoio ou projetos de intervenção, de acordo com a realidade do território. Um exemplo foi a elaboração de projeto, em UBS rural, sobre o uso de agrotóxicos por pequenos produtores rurais, com característica multidisciplinar e interinstitucional. O projeto originou-se numa das UBS rurais do município, por meio de um levantamento territorial feito pelos ACS. Esse levantamento consistiu na coleta de dados sobre as formas de trabalhar dos pequenos produtores rurais: o que produziam e que agrotóxicos utilizavam. Os ACS e os profissionais do Cerest visitavam as propriedades rurais para dialogar com as famílias dos produtores, desenvolvendo um processo educativo sobre o uso dos agrotóxicos, armazenagem e descarte de embalagens. Os trabalhadores com suspeita de intoxicação tinham os exames encaminhados ao setor de toxicologia da Unicamp para avaliar os níveis de intoxicação. Assim, com a retaguarda do serviço de referência, foi possível que os ACS levassem a cabo o mapeamento das atividades produtivas no território, incluindo pequenos estabelecimentos e trabalho domiciliar. As principais potencialidades do contato continuado entre profissionais de ST e SF, através das reuniões de equipe, dos projetos específicos e/ou contato telefônico para esclarecimento de dúvidas dos casos atendidos, residem na construção de um processo de educação permanente em ST na APS e na possibilidade de estreitar vínculos entre os profissionais da rede de saúde (Santos, 2010). Por outro lado, a questão da rotatividade das equipes, com vínculos celetistas, em especial dos médicos e psicólogos, e a frágil relação com o movimento sindical são as principais dificuldades para o desenvolvimento desta ação (Santos, 2010).

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Ademais, como assinala Santos (2010), para os entrevistados, a discussão e o atendimento em conjunto dos casos por profissionais de diferentes profissões produz conhecimento interdisciplinar e possibilita à ESF aprender a reconhecer in loco onde intervir em ST e atuar com maior autonomia. Dessa forma, consideram que houve um aumento do interesse dos profissionais das UBS pelo tema ST e pela história de trabalho das pessoas atendidas, na perspectiva de buscarem a compreensão da relação entre trabalho, saúde e doença, para promoção, proteção, prevenção e assistência à saúde (Santos, Lacaz, 2012). Isso gera mudança no fluxo de encaminhamento dos trabalhadores atendidos na rede de atenção e representa o início da ruptura do modelo médico centrado individualizado e da adoção de uma abordagem pautada na prevenção e promoção da saúde, com forte potencial de atuação intersetorial e com maior protagonismo dos profissionais de saúde (Santos, 2010).

Considerações finais Não por acaso o título do presente ensaio apresenta uma indagação. Trata-se de refletir sobre os parâmetros que devem fundamentar o envolvimento da ESF com o campo ST, marcadamente atentando para o referencial teórico-metodológico, tanto no que diz respeito à teoria social que embasa esta aproximação, a partir da realidade do mundo do trabalho na contemporaneidade; quanto do ponto de vista operacional, da orientação das práticas a serem adotadas na rede de serviços de APS do SUS. Assim, entende-se que há uma enorme lacuna a ser preenchida pela prática da ESF, e que uma possibilidade de relacionamento da ESF com a ST deve ter como mote o trabalho em domicílio e seus desdobramentos, como o trabalho do menor e da mulher. Mas não só, é preciso repensar o monitoramento dos locais de trabalho que fazem parte da vida social na área de abrangência de uma UBS. O que se propõe é que as práticas de ST na ESF sejam planejadas a partir da adoção do referencial teórico-metodológico marxista, na medida em que este prioriza a análise do trabalho para compreender a realidade da acumulação capitalista, dando conta da totalidade do processo de produção, circulação e consumo de bens e serviços. Propõe-se também, neste ensaio, a decomposição da categoria reprodução social em componentes do trabalho e da vida, como a melhor forma de aproximação e monitoramento do modo de andar a vida no bairro por meio da utilização de instrumentos como o IRS desenvolvido por Trapé (2011). Com tal opção, não se quer desvalorizar outras abordagens, tais como as que transitam pela Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2007); pela Ergologia em suas implicações com a subjetividade (Araújo et al., 2004), e pela Ergonomia (Wisner, 1987), mas sua contribuição para a temática aqui discutida fugiu do escopo da análise empreendida neste texto. Faz-se necessário que as equipes da ESF/PSF sejam sensibilizadas e capacitadas continuadamente para desenvolver e assumir tais práticas, o que constitui tanto um desafio como uma superação dos limites de sua atuação, quando esta deixa de lado um grande contingente populacional que trabalha no espaço privilegiado de sua intervenção. Do ponto de vista operacional, o AM para atuar em ST é a estratégia proposta, tomando-se em consideração a experiência desenvolvida no município de Amparo/ SP. Tal estratégia já está sendo colocada em prática pela ESF, com a criação dos Núcleos de Apoio em Saúde da Família (NASF), cuja inserção no cotidiano das equipes já ocorre, apesar de, dentre suas atribuições de apoio, não constarem as ações em Saúde do Trabalhador, como foi referido anteriormente no presente artigo. Ressalte-se que a adoção do AM em ST propiciou o intercâmbio sistematizado de conhecimentos e experiências entre as várias especialidades e profissões, bem como uma experiência concreta de avanço na incorporação da ST na rede do SUS (Santos, 2010). Sabe-se que propostas de envolvimento das equipes do PSF em ST faziam parte da preocupação do Ministério da Saúde quando da edição dos Cadernos de Atenção Básica (Brasil, 2002 b), e, atualmente, com a publicação da PNST pela Portaria 1.823, em 23/08/12 (Brasil, 2012). Na prática, tal atuação não ocorreu de forma institucionalizada, o que pode ser explicado pela ausência de uma formulação teóricometodológica mais clara. Também deve-se considerar a necessidade de formulação de estratégias de

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operacionalização que possam ser incluídas na prática cotidiana das agora denominadas equipes da ESF. Foi justamente a discussão dessas duas questões que se buscou suscitar com o presente texto.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Agradecimento Agradecemos a Mariana Lacaz pela tradução do resumo para o espanhol. Referências ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. ARAÚJO, A. et al. (Orgs.). Cenários do trabalho: subjetividade, movimento e enigma. Rio de Janeiro: DP & A, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 1823, de 23 de agosto de 2012. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União, Brasília, 24 ago. 2012. Seção 1, p.46-51. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos de Atenção Básica. Programa de Saúde da Família. Treinamento introdutório. Caderno 2, Brasília, 2000. ______. Ministério da Saúde. Portaria 1823, de 23 de agosto de 2012. Aprova a Política Nacional de Saúde do Trabalhador. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, 24 ago. 2012; Seção 1, p.46-51. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos de Atenção Básica. Programa de Saúde da Família. Caderno 2, Brasília, 2002 b. ______. Portaria 2488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União, Brasília, 24 out. 2011. Seção 1, p.48-55. _______. Portaria 2728, de 11 de novembro de 2009. Dispõe sobre a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, Renast, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 nov. 2009. Seção 1, n.216, p.77. ______. Portaria 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Diário Oficial da União, Brasília, 25 jan. 2008; Seção 1, n.18, p.47-49. ______. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasilia, 2006b. Série A: Normas e manuais Técnicos. Série Pactos pela Saúde, v.4. ______. Portaria 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, 29 mar. 2006a. Seção 1, n.61, p.71. ______. Portaria 2437, de 07 de dezembro de 2005. Dispõe sobre a ampliação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast). Diário Oficial da União, Brasília, 9 dez. 2005. Seção 1, n.236, p.78.

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LACAZ, F.A.C. et al.

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LACAZ, F.A.C. et al. Estrategia Salud de La Familia y Salud del Trabajador: ¿un dialogo posible? Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.75-87, jan./mar. 2013. Este ensayo tiene por objetivos reflexionar acerca de la omisión de prácticas relacionadas a la salud del trabajador en el ámbito de la actuación de la Estrategia Salud de La Familia (ESF) y proponer la inclusión de tales prácticas. Se fundamenta en la teoría de la determinación social del proceso salud-enfermedad y en las categorías de trabajo y reproducción social. Se propone que la incorporación de la salud del trabajador en la ESF sea realizada por medios operacionales de: un instrumento que recopile y analice variables e indicadores de reproducción social; un sistema de apoyo matricial que integre los Centros de Referencia en Salud del Trabajador (ST) com la Unidad Básica de Salud; la capacitación de los equipos de la ESF en contenidos del área de ST.

Palabras clave: Salud del trabajador. Programa de Salud de la Familia. Estrategia Salud de la Familia. Atención Primaria de la Salud. Sistema Único de Salu Recebido em 04/04/12. Aprovado em 11/11/12.

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Análise da comunicação acerca da sexualidade, estabelecida pelas enfermeiras, com pacientes no contexto assistencial do câncer de mama * Lilian Cláudia Ulian Junqueira1 Elisabeth Meloni Vieira2 Alain Giami3 Manoel Antônio dos Santos4

JUNQUEIRA, L.C.U. et al. Analysis on nurses’ communication relating to sexuality to patients in the context of breast cancer care. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013. This study investigated how nurses develop communication with mastectomized patients in relation to sexuality. This was a qualitative, descriptive-exploratory study. Twenty-eight nurses participated and in-depth interviews were used. The material was subjected to thematic content analysis. There were variations in the nurses’ discourse, which were articulated in four categories: nurses do not communicate regarding sexuality issues; they communicate using evasive discourse and denial of sexuality within healthcare; they use fragmented communication that is typical of the biomedical model; and they use receptive integrated communication with family members and the healthcare team. Nurses’ difficulties in addressing sexuality issues within healthcare production were demonstrated. It is hoped that this study may arouse interest in further knowledge regarding the interface between sexuality and care within nursing education, thus favoring information and capacitation for other professionals in the team.

Keywords: Breast neoplasms. Sexuality. Communication and nursing.

Investigou-se como se desenvolve a comunicação acerca da sexualidade, estabelecida pelas enfermeiras, com as pacientes mastectomizadas. Trata-se de estudo qualitativo, do tipo descritivo-exploratório. Participaram 28 enfermeiras e foram utilizadas entrevistas em profundidade. O material foi submetido à análise de conteúdo temática. Houve variações nos discursos das enfermeiras, articuladas em quatro categorias: a enfermeira não comunica questões de sexualidade; comunica com discurso evasivo e com negação da sexualidade no cuidado; utiliza da comunicação fragmentada, própria do modelo biomédico; e se vale da comunicação acolhedora, integrada, junto a familiares e à equipe de saúde. Evidenciaram-se dificuldades das enfermeiras em contemplarem questões da sexualidade na produção dos cuidados em saúde. Espera-se que este estudo possa suscitar o interesse por novos conhecimentos acerca da interface da sexualidade e dos cuidados na formação em enfermagem, favorecendo a informação e capacitação de outros profissionais da equipe.

Palavras-chave: Neoplasias da mama. Sexualidade. Comunicação e enfermagem.

Derivado de projeto de pesquisa financiado pela Capes (bolsa de Doutorado) e Fapesp (proc. 2009/50319-8). 1 Doutoranda, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de doutorado Capes. Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre. Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14.040-901. lilianjunqueira@usp.br 2 Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP. 3 Centre de Recherche en Épidémiologie et Santé des Populations CESP-U1018, Institut de la Santé et de la Recherche Médicale INSERM, Paris. 4 Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP. Bolsista de produtividade em pesquisa 1C do CNPq. *

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Introdução A descoberta do câncer de mama suscita, na mulher, reações emocionais intensas, que podem desencadear angústias perante a possibilidade de morte e antecipação de múltiplas perdas, associadas à imagem corporal, ao sentimento de feminilidade e ao relacionamento afetivo-sexual (Silva, Santos, 2010, 2008; Fontes, Alvim, 2008; Rossi, Santos, 2003; Penson et al., 2000). Santos et al. (2008) investigaram as influências desencadeadas pelo câncer de mama e seus tratamentos na vida afetiva e sexual de oito mulheres, por meio do método de estudo de caso. Concluíram que a maioria das mulheres percebe que houve diminuição na frequência das relações sexuais, sem comprometimento do relacionamento com o companheiro, havendo casos em que o parceiro se tornou mais atencioso. Inapetência sexual, dor durante as relações sexuais e dificuldades para excitar-se e alcançar o orgasmo foram as principais disfunções relatadas, decorrentes da doença e dos tratamentos. Diante desses achados, pode-se questionar se a temática da sexualidade está sendo contemplada no cenário dos cuidados em saúde, voltados tanto para mulheres como homens. Estudo etnográfico de Pinheiro, Couto e Silva (2011), acerca da abordagem da sexualidade masculina em dois serviços de atenção primária à saúde, buscou compreender como a sexualidade dos homens se apresenta no contexto da assistência e como as demandas são abordadas pelos profissionais de saúde. Foram entrevistados 57 homens, que relataram como principais problemas: as infecções sexualmente transmissíveis, a prevenção do câncer de próstata e os problemas relativos à ereção. Em todos os participantes, observou-se que a abordagem profissional utilizada foi superficial, abreviada e ancorada na medicalização. Embora os usuários acatassem os parâmetros biomédicos, muitos apresentaram sinais de resistência, mostrando como as construções de gênero podem demarcar barreiras na assistência à saúde, como também podem, por outro lado, promover a construção de relações dialógicas entre profissionais e usuários da rede de saúde. Dentre os profissionais de saúde, os membros da equipe de enfermagem são os que mais se fazem presentes no cuidado direto do paciente. Essa proximidade pode favorecer o conhecimento e a escuta sobre o sofrimento da mulher acometida pelo câncer de mama, incluindo seus temores e inquietações em relação ao impacto da doença e do tratamento sobre a sexualidade. Há farta literatura disponível a respeito das repercussões do câncer de mama sobre a sexualidade da mulher, contudo, diversos estudos alertam para a necessidade da melhoria da comunicação que os profissionais de saúde, em particular as enfermeiras, necessitam estabelecer em relação a essa questão nos cuidados à paciente (Lindau et al., 2011; Teixeira et al., 2009; Fontes, Alvim, 2008; Hordern, Street, 2007). Perante as várias facetas dos cuidados de enfermagem, é imperativo circunscrever a comunicação e sua aplicação no processo de cuidado à dimensão da sexualidade do paciente oncológico. A comunicação é uma das ferramentas que propiciam a personalização da assistência em saúde, de acordo com as necessidades do paciente, oferecendo um cuidado competente e humanitário. O enfermeiro vale-se de sua competência em comunicação para estabelecer relacionamento com as pessoas com as quais interage nas várias equipes existentes nas instituições de saúde, assim como com os pacientes e suas famílias (Stefanelli, Carvalho, Arantes, 2005). Partindo do cenário contemporâneo de inovações constantes e transformações radicais nas relações afetivas, Giddens (1993) tratou da sexualidade inserida no contexto das relações humanas pela ótica da transformação da intimidade. Para este autor, as relações humanas são construídas e reorganizadas ao longo da história. A mudança na construção da intimidade é explicada pela transformação do “amor romântico” no “amor puro”, na medida em que o feminino é desvinculado dos aspectos complementares da reprodução e da maternidade. Atualmente, o exercício da sexualidade propicia o desenvolvimento de estilos de vida bastante variados. A sexualidade deixa de ser uma condição natural e reprodutiva, mas atua, na contemporaneidade, como uma dimensão constitutiva da identidade, sendo um ponto de conexão entre o corpo, a autoidentidade e as normas sociais, que vão influenciar e definir as condutas em sociedade. De forma análoga, o conceito de saúde sexual passa por transformações histórico-culturais, influenciando normas e condutas humanas. O processo de modernização da sexualidade estimulou o 90

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otimismo sexual e atravessou toda a metade do século XX buscando uma legitimidade junto ao campo da saúde, circunscrevendo-se à área médica. Nesse enfoque, a saúde sexual é definida pela busca de bem-estar sexual por meio da medicalização e qualidade de vida (Giami, 2007). Desse modo, a sexualidade passa a ser relacionada não somente aos aspectos reprodutivos, mas, também, à obtenção de prazer, à vontade de viver sentimentos de intimidade e à expressão de sentimentos que definem a identidade pessoal. Nesse sentido, a sexualidade sofre influência de aspectos biológicos, culturais e sociais. Assim, a compreensão das condutas sexuais varia dependendo da época, da cultura e do contexto em que a pessoa vive (Macieira, Maluf, 2008). Barthon-Burke e Gustason (2007) abordam a sexualidade como uma integração das dimensões física, psicológica e social dos indivíduos, que envolve mais do que o ato sexual com finalidade reprodutiva, uma vez que engloba: aspectos do ser homem ou ser mulher, do como nos tornamos o que somos, como pensamos sobre esse modo de ser, como nos relacionamos uns com os outros e lidamos com as consequências das interações que estabelecemos. No que diz respeito ao relacionamento entre paciente e profissional de saúde, nas dimensões que envolvem a sexualidade e a intimidade, Hordern e Street (2007) realizaram estudo qualitativo focalizando a perspectiva de pacientes com câncer de mama e de profissionais da equipe de saúde que lhes prestam assistência. Encontraram divergências no tocante à abordagem e comunicação da sexualidade durante a consulta médica. Os pacientes relataram temas como: sobreviver é mais importante do que viver a sexualidade; há necessidade de ter confiança no profissional; os pacientes procuram opções de tratamento com os médicos, mas não recorrem ao profissional para esclarecer dúvidas acerca da sexualidade; ao buscarem esse esclarecimento, preferem se abrir com os amigos íntimos ou pessoas próximas. Ao se examinar o panorama atual do cuidado, nota-se que o paradigma de assistência à saúde baseado no modelo biomédico ainda é prevalente na sociedade contemporânea. Esse paradigma entende o indivíduo como um corpo biológico, constituído por órgãos e sistemas, em uma concepção mecanicista e funcional, segundo a qual a doença é compreendida como uma disfunção a ser corrigida. A função do profissional de saúde seria a de corrigir, restaurar, reparar as peças avariadas da máquina biológica (Capra, 1982). Nesse modelo de assistência, a prática está centrada na utilização da tecnologia, na intervenção técnica e na comunicação dos procedimentos, bem como em prescrição de estilos de vida tidos como saudáveis e padrões de comportamento esperados. Assim, a visão da saúde está totalmente subsumida à questão da doença que precisa ser medicalizada. Nos últimos tempos, vem sendo desenvolvido um novo paradigma de saúde baseado no modelo biopsicossocial, que proporciona uma visão integral do ser e do adoecer, que compreende as dimensões física, psíquica e social. Esse paradigma preconiza que a formação do profissional de saúde deve ir além das habilidades técnico-instrumentais, e que é preciso evoluir no sentido de se assegurar o desenvolvimento das capacidades relacionais, que permitem o estabelecimento do vínculo adequado e uma comunicação efetiva (De Marco, 2006). Nessa direção, o objetivo do presente estudo foi investigar como se desenvolve a comunicação acerca da sexualidade, estabelecida pela enfermeira, no contexto do cuidado em saúde para as mulheres mastectomizadas. Analisar o modo como a enfermeira oferece sua escuta e presta cuidados à mulher com câncer de mama, especialmente acerca de sua sexualidade, pode suscitar novos conhecimentos acerca da interface da sexualidade e dos cuidados em oncologia. Desse modo, o presente estudo poderá contribuir para que se reflita sobre a formação das enfermeiras oncológicas e de outros profissionais da equipe multidisciplinar, fortalecendo a construção de estratégias de intervenção que possam contemplar o acolhimento da dimensão sexual na produção dos cuidados em saúde dispensados à mulher que se encontra em tratamento para o câncer de mama.

Método Estudo descritivo-exploratório, desenvolvido na abordagem de pesquisa qualitativa. Participaram 28 enfermeiras, com idades variando entre 23 e sessenta anos, com um mínimo de dois anos e máximo de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013

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25 anos de experiência profissional no cenário dos serviços que prestam assistência a mulheres com câncer de mama. As participantes atuavam em diferentes instituições e contextos de assistência de um município do nordeste paulista. Essas instituições, de caráter público e privado, incluem serviços como: ambulatórios, enfermarias, centrais de quimioterapia, radioterapia e serviços de atendimento domiciliar. Para o recrutamento das participantes, foi realizado um levantamento de todos os profissionais de enfermagem que assistiam diretamente mulheres acometidas pelo câncer de mama no município. Foram realizadas entrevistas em profundidade, em que a participante foi convidada a falar livremente sobre o tema, sendo que as perguntas da entrevistadora, quando necessárias, eram formuladas no sentido de dar mais relevo e profundidade às respostas obtidas. A entrevista teve como questão disparadora: Como você coloca a sexualidade na sua prática profissional? Seguiu-se um roteiro inspirado no guia de escuta proposto por um dos pesquisadores (Giami, 2007), que realizou estudo similar com enfermeiras francesas. A ordem dos assuntos tratados não obedeceu a uma sequência rígida, mas foi determinada pelas relevâncias e ênfases atribuídas, pelas entrevistadas, ao assunto em pauta (Minayo, 2008). Para a análise do material coletado, foram seguidos os passos metodológicos da análise de conteúdo temática, recomendados pela literatura (Minayo, 2008): (1) Pré-análise: compreende leituras flutuantes e exaustivas, seguidas da organização do material e da sistematização de ideias e eixos estruturantes, que constituirão o corpus de análise; (2) Exploração do material: esse passo compreende a categorização dos dados, utilizando expressões ou palavras significativas em unidades de registros, a partir da similaridade dos conteúdos; e (3) Tratamento dos dados obtidos e Interpretação: essa etapa corresponde à análise dos dados, com interpretação dos significados dos conteúdos temáticos com base no referencial teórico assumido pelo pesquisador, podendo também abrir caminhos para novas dimensões teóricas e interpretativas. Foi assegurada, a todas as participantes, a possibilidade de ler, compreender a proposta da investigação e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que garantia o direito à confidencialidade em relação aos dados fornecidos, em obediência à legislação que regulamenta a pesquisa que envolve seres humanos, de acordo com a Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996).

Resultados e discussão As categorias foram construídas, analisadas e discutidas frente à variedade de respostas obtidas à questão norteadora, permitindo identificar quatro núcleos temáticos, que serão apresentados a seguir.

1 A enfermeira não comunica questões de sexualidade no cuidado à paciente Essa categoria engloba os diferentes motivos apontados para a não-comunicação da sexualidade no cuidado prestado à paciente, que foram identificados nos relatos das enfermeiras, tais como: preocupações apenas com o tratamento e seus efeitos colaterais no corpo físico; a sexualidade não é uma prioridade na consulta de enfermagem, porque a preocupação é com a preservação da vida; o uso da estratégia de delegação do diálogo aos profissionais de outras especialidades; barreiras culturais e falta de tempo como justificativas para a não-comunicação do assunto. “A mulher vai passar por tanta coisa, né? Câncer de mama já é um... Tira a mama dela, ela já fica deprimida, queda de cabelos... Elas ficam deprimidas. Então eu acho que, nesse momento, a sexualidade dela diminui com o marido. Eu acredito, com base no que eu vejo aqui... a quimioterapia, elas ficam, sabe, debilitadas. Elas não se sentem bem. Então eu acredito que, nesse momento, não é o momento em que elas... Elas pegam... Elas voltam mais a vida delas pro tratamento”. (E11, 24 anos, solteira)

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As participantes ressaltam a importância de se priorizarem outros aspectos no cuidado à mulher mastectomizada, tais como: acolhimento no diagnóstico, apoiar o tratamento monitorando sinais e sintomas, informar sobre os efeitos colaterais das medicações. As enfermeiras orientam acerca das questões estéticas, incluindo cuidados com a pele, por meio do oferecimento de recomendações quanto ao uso de protetor solar e os cuidados que elas devem ter em relação à queda dos cabelos. “A gente fala, assim, da pele, para passar o protetor, passar um creme hidratante. Porque está muito sol. Evitar o sol, né? Hidratar-se bastante, porque pode ter diarréia. E aí a gente vai orientando que o cabelo vai cair. Que nem homem que quiser raspar a cabeça, mulher também... Às vezes, a gente até fala pra raspar, porque vai cair bastante”. (E16, 41 anos, casada)

As enfermeiras também pontuam, em seus relatos, a preocupação com a preservação da vida como valor supremo e com a debilitação física que a doença e o tratamento acarretam, além da temida possibilidade da morte, sempre onipresente no horizonte do câncer. Desse modo, privilegiam, em seus discursos, aspectos relacionados à evolução da doença e à busca da cura. Porém, nessa compreensão de que existem outras prioridades mais relevantes com as quais as pacientes devem se preocupar, que não as vivências em relação à sexualidade, as participantes recorrem à questão existencial que dilacera a mulher nesse momento de suas vidas, que é a de ter de lidar com a incerteza quanto a saber se vai sobreviver ou morrer. A questão da sexualidade da mulher ficaria em segundo plano, de maneira que não haveria necessidade de ser abordada pelas profissionais da enfermagem. Essa racionalização reflete a ênfase excessiva na cura, entendida como a total remoção das condições que deflagraram a doença e geraram o sofrimento. Não por acaso essa é uma das características proeminentes do modelo biomédico, que mira a remissão da doença, e não as necessidades da pessoa doente. “[...] pra começar eu acho que elas... a última coisa que elas perguntam é isso. A maioria, pelo menos das que eu atendo, porque elas estão mais preocupadas em saber se vão morrer, se vão curar, se vão passar mal”. (E9, 35 anos, casada)

Essa percepção contrasta com as preocupações observadas nas mulheres mastectomizadas. Estudo qualitativo, desenvolvido com cinquenta pacientes e 32 profissionais da saúde, mostrou que as mulheres consideram que a comunicação sobre sexualidade com o profissional pode ser negociada e que elas tentam conversar, porém os profissionais evitam abordar as questões sexuais durante a consulta. Já os profissionais de saúde de diferentes especialidades relataram que preferem evitar o assunto e que, quando o abordam, recorrem à estratégia do bom humor. Consideram que abordar essas questões pode representar um risco e, para algumas pacientes, não seria apropriado. Sentem-se constrangidos e vivenciam sentimentos de desconforto e incerteza ao abordarem a sexualidade, bem como dificuldades em relação à cultura e à linguagem do paciente. Desse modo, ao discutirem esse assunto no ambiente hospitalar, preferem focalizar no diagnóstico e na medicalização da sexualidade (Hordern, Street, 2007). As enfermeiras que admitem que os temas relativos à sexualidade aparecem em sua comunicação com a paciente, mas que não os comunicam diretamente, costumam delegar essa tarefa aos profissionais de outras especialidades, que elas julgam mais capacitados ou melhor preparados para manejarem essas questões. Esse expediente acaba fragmentando a assistência. Assim, a enfermeira perde preciosas oportunidades de trabalhar essas questões, ao se esquivar da tarefa de lidar com esses temas na sua prática profissional. Por exemplo, na visão das enfermeiras, o psicólogo cuida dos aspectos subjetivos e psicológicos; a assistente social e a terapeuta ocupacional dão respaldo aos aspectos sociais e da reabilitação física, e o médico cuida dos aspectos clínicos e preventivos, assim como das implicações para o organismo da realização do ato sexual, o que reduz o conceito ampliado da sexualidade a uma única dimensão: o ato sexual. As enfermeiras enfatizam, ainda, que não encontram, em sua prática profissional, condições específicas para promoverem a comunicação da sexualidade ou da saúde sexual, dado o seu despreparo pessoal e técnico para abordar a paciente, os familiares ou o casal, em assuntos dessa natureza. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013

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Ausência de capacitação técnica, que sentem que deveria ter sido oportunizada ao longo da formação acadêmica; insuficiência de conhecimento adequado e parco domínio do assunto; falta de tempo, de espaços apropriados e de garantia de privacidade nos serviços de saúde, considerando que a sexualidade ainda é um tema cercado de tabus e que envolve a intimidade psíquica das pessoas; precariedade do vínculo estabelecido com a paciente, em decorrência da organização fragmentada do trabalho no contexto da saúde – essas são condições apontadas como de difícil manejo, na perspectiva das participantes. “Aí eu ia falar para ela: ‘mas, e aí, como foi sua reação?’ Eu não ia falar assim... Eu, particularmente, gostaria de saber como é que eu vou lidar com esse momento, que eu me coloco no lugar dela... Eu estou ali, o parceiro vira e não quer transar, porque olhou e se assustou, como é que é isso? Eu acho que é um choque... O que eu vou fazer com isso?” (E1, 48 anos, casada)

As enfermeiras relataram ainda encontrar outras barreiras em relação à comunicação da sexualidade, como as questões de gênero e a idade da paciente, que promovem o distanciamento do profissional em relação ao assunto, inibindo a possibilidade de abordar a temática mesmo quando atua em equipe multiprofissional. As enfermeiras relataram que sentem vergonha e desconforto pessoal, sentimentos que as impedem de abordar o assunto junto às pacientes. Mencionaram, como barreiras culturais: o baixo nível educacional das pacientes, que exige o uso de linguagem simples; a idade, e as diferenças étnicas, que as fazem manter reservas em relação à comunicação da sexualidade no âmbito social (Pinheiro, Couto, Silva, 2011). Por exemplo, uma das participantes se referiu ao seu ambiente cultural de origem oriental para revelar suas dificuldades de expressão de assuntos relativos à sexualidade. Dessa maneira, é compreensível que priorizem: a manutenção da rotina de cuidados concretos com o corpo, orientações quanto aos efeitos colaterais dos tratamentos, preocupação com o manejo dos sintomas de dor e desconfortos físicos. Muitas vezes, o volume de trabalho e a falta de tempo agem como barreiras para a exploração reflexiva dos problemas relacionados à sexualidade e à saúde sexual. Sem a incorporação, pelos profissionais, da ideia de que a discussão dessa dimensão faz parte do seu trabalho, os pacientes podem sentir que algumas de suas necessidades são negligenciadas ou deixadas de lado pelos profissionais (Dizon et al., 2008). De acordo com Giami (2007), as últimas definições de saúde sexual propostas pela Organização Mundial da Saúde, em 2000, confrontam os profissionais de saúde com a questão dos direitos sexuais e do comportamento sexual responsável, e apresentam a saúde como um valor do mundo contemporâneo, assegurando, assim, uma coerência de valores e princípios morais que devem nortear as ações em saúde.

2 A enfermeira comunica com discurso evasivo, de negação da sexualidade no cuidado Na perspectiva das enfermeiras, as pacientes não relatam nem questionam sobre sexualidade por não desejarem (ou por sentirem vergonha de) abordar essas questões. As profissionais, por sua vez, alegam que também não abordam o tema, pois nunca são questionadas em relação a esse aspecto pelas pacientes e, também, não conversam sobre essa temática com os demais membros da equipe de saúde, por se sentirem constrangidas. Assim, apresentam um discurso evasivo quando questionadas acerca do tema, adotando posturas profissionais marcadas por hesitações e atitudes reservadas, sustentando um discurso reticente, entrecortado por pausas, em que o que se sobressai não é tanto o que se fala, mas a dimensão do que é silenciado. Os silêncios, muitas vezes, são seguidos de risos desencadeados por ansiedade. Assim, as enfermeiras recorrem a mudanças repentinas de assunto durante a conversa, fabulações que preenchem lacunas e tentativas de evasão no discurso. Esses momentos são alternados com outros, nos quais tangenciam o assunto e, por vezes, apresentam um relato esvaziado de significado. Esses 94

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artifícios costumam vir acompanhados de um mecanismo de defesa recorrente, que é a negação desse tipo de demanda das pacientes. Negação que, por vezes, aparece associada a relatos contraditórios que denotam a concepção de cuidado que embasa as práticas de saúde. “Olha, os nossos pacientes aqui, eles não costumam relatar muito não esta... eles são, principalmente, as mulheres... agora muito difícil isso, questionarem a gente ou colocarem... A gente também não questiona muito não, não entra em detalhes com eles. Fica meio que assim... Um ou outro que comenta, que fala que se sente mutilado, mas assim, é muito difícil. Olha, sinceramente, comigo ninguém chegou e me abordou assim”. (E3, 28 anos, solteira)

A sexualidade ainda não está legitimada como dimensão a ser considerada no cuidado pelo profissional de saúde. Para que se possa reverter essa situação, o profissional necessita reconhecer os pacientes como seres sexuais, dotados de necessidades e desejos singulares. Só assim poderão oferecer, às mulheres acometidas pelo câncer de mama, suporte, aconselhamento e orientações quanto ao manejo dos aspectos relativos ao corpo e à sexualidade, rompendo o silêncio que ronda essa importante dimensão da vida humana (Higgins, Barker, Begley, 2006). Os profissionais de saúde, mesmo aqueles que adotam uma filosofia de cuidado baseada em uma abordagem biopsicossocial, mostram-se reticentes em discutir questões sobre sexualidade com seus pacientes, possivelmente devido ao tabu que envolve o tema, mas, também, por questões pessoais relacionadas ao sexo e à sexualidade e pela carência de preparo, conhecimento e habilidades necessárias a essa abordagem (Rice, 2000). “[...] já numa esfera mais privada ou uma consulta psicológica mesmo entre ela e o paciente, mas pra enfermagem isso ainda é um tabu. A sexualidade do paciente ainda é um tabu”. (E12, solteira, 36 anos)

Percebe-se que tratar de questões da sexualidade desperta, nas enfermeiras, sentimentos de constrangimento. Essa reação pode estar relacionada à apropriação que cada uma faz do tema em sua própria história de vida. Ao longo do processo de desenvolvimento psicoafetivo, podem ter incorporado a sexualidade como algo negativo, graças a uma experiência marcada pela falta de exploração franca e aberta do tema no cotidiano (Ressel, Gualda, 2004). Isso decorre também da construção social da sexualidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, é importante destacar que a exposição da sexualidade causa constrangimento, pois é tema identificado ao universo privado. Acrescente-se a isso o fator agravante de que, na perspectiva das enfermeiras, há um entendimento generalizado de que tratar desse tema não é de sua competência profissional. Assim, a abordagem da sexualidade conflituaria com o modelo biomédico hegemônico que regula o funcionamento das profissões da saúde.

3 A enfermeira utiliza comunicação fragmentada própria do modelo biomédico Essa categoria de análise congrega o modo parcial de comunicação, no qual o profissional de enfermagem apresenta o tema ao paciente priorizando aspectos clínicos e cuidados protocolares, com a clara divisão social do trabalho entre os diferentes saberes técnicos que compõem a equipe de saúde. Há segmentação das fontes de informação, configurando uma modalidade fragmentada de comunicação (Capra, 1982), com a priorização dos aspectos clínicos. A comunicação se dá pela oferta de informações que envolvem o ato sexual, atreladas a uma preocupação com o bom funcionamento dos órgãos. Assim, os saberes sobre a sexualidade são reconhecidos como pertencentes ao âmbito de atuação das enfermeiras, mas no nível das orientações sobre aspectos preventivos, englobando: o uso de preservativos e lubrificantes, os riscos envolvidos na promiscuidade, a necessidade de controle do número de parceiros e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Adicionalmente, são oferecidas orientações relativas aos efeitos do tratamento sobre a prática da relação sexual, devido ao COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013

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ressecamento da mucosa vaginal, à perda ou diminuição da libido e às questões estéticas associadas ao desfiguramento corporal e à reconstrução mamária. Nessa modalidade de comunicação, o cuidado é suprido pela aplicação de uma medida protocolar, seguindo um guia de instruções previamente elaborado no serviço, um manual de recomendações práticas ou, mesmo, uma lista de orientações gerais. A comunicação estratificada pode ser expressa também nos relatos nos quais o profissional de enfermagem parece estar disposto a prover assistência, porém oferece apoio caracterizado por opiniões pessoais, utilizando de um discurso de senso comum ou que minimiza o sofrimento sem, de fato, oferecer uma possibilidade de elaboração dos conteúdos emocionais mobilizados pela experiência do câncer de mama. “Então, a gente fala: “ó, é vida normal. Vocês vão seguir em frente, tocar a vida de vocês normal... Se conseguirem, vão trabalhar, vão se alimentar normal”. É óbvio que tem as reações, tem, tem a fraqueza, tem o mal-estar, a queda do estado geral, às vezes a alimentação não vai ser legal, a gente orienta os tipos de alimentação, a libido pode aumentar, pode diminuir, pode manter o nível”. (E3, 28 anos, solteira)

Algumas profissionais relataram que só se dispõem a comunicar sobre sexualidade frente à demanda da paciente, quando esta oferece abertura para tratar do assunto. As enfermeiras consideram que esse é um assunto íntimo e de difícil abordagem, e referem a necessidade de se dispor de um local adequado para abordá-lo. Mostraram-se temerosas de serem invasivas ao abordarem a paciente. “[...] eu sempre espero. Primeiro, que a pessoa me traga... porque, assim... algumas pessoas – aí é o meu receio – eu penso, às vezes, estar sendo... invadindo, sabe? Ou sendo muito invasiva. Então, eu sempre espero a brecha... É claro que eu, enquanto profissional, eu sempre tenho que ter essa preocupação, né?”. (E27, 25 anos, solteira)

Em alguns trechos dos relatos, a dificuldade em abordar o tema da sexualidade, por parte das profissionais, é minimizada com a utilização de outros canais de comunicação, como estratégias de enfrentamento em relação ao embaraço que o assunto produz. Como se a utilização de outros recursos – tais como instrumentos, protocolos, manuais de orientações gerais que incluem a questão da sexualidade, livro institucional, e-mail e oficinas de grupo – pudesse substituir ou atender de maneira satisfatória a demanda da mulher, evitando o árduo, porém indispensável exercício da comunicação direta. “[...] nós temos um protocolo... todo paciente de câncer de primeira vez passa conosco com a enfermeira... com o serviço social e com a psicologia, né?”. (E26, 47 anos, casada)

4 A enfermeira utiliza a comunicação acolhedora e integrada junto aos familiares e à equipe de saúde Essa categoria abrange os relatos das profissionais que indicam que elas se esforçam para desenvolver um diálogo acolhedor em relação à necessidade de comunicação da sexualidade das pacientes com câncer de mama; assim como buscam atender as demandas dos familiares e dos colegas de equipe. Esse movimento consiste em acolher a demanda e entrar em sintonia com a necessidade identificada e, somente a partir dessa experiência, dispor-se a elaborar uma estratégia de cuidado individualizado. Foram encontradas poucas profissionais que assumem para si a responsabilidade de manejar o tema da sexualidade na assistência oferecida; que se mostram dispostas a fazer uma leitura da comunicação não verbal; que priorizam o que as mulheres têm a dizer ao invés de se sentirem obrigadas a emitir automaticamente um cuidado pronto; que demonstram empatia com as necessidades de abordar a sexualidade ou se mostram confortáveis diante da responsabilidade perante seu papel de orientadoras nesse âmbito do cuidado. 96

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“[...] a gente primeiro procura ouvir muito as pacientes. Elas têm uma certa dificuldade de expor, quando uma coloca as outras se encorajam... aí, então, a gente procura ouvir mais... E procura mais ir coordenando a fala; as falas e os pensamentos, do que estar colocando aquilo que a gente pensa a respeito. A gente quer saber como é que elas se sentem a respeito”. (E15, 60 anos, divorciada)

Com relação à comunicação de sexualidade junto às pacientes, as enfermeiras relatam que acolhem a demanda e percebem a manifestação de sentimentos, o humor e afeto presentes nos discursos das mulheres, assim como valorizam a observação dos comportamentos não verbais, como o fato de cobrirem o corpo durante a consulta. Percebem a pessoa como uma totalidade a ser cuidada de forma holística e íntima, e não consideram que tratam somente da doença, desde a etapa do diagnóstico até o desfecho do tratamento. Preocupam-se com a exposição dos corpos no cuidado prestado. “[...] ou até o jeito delas se cobrirem, se você vê que elas sentem incomodadas com a mama ou fazem algum comentário a respeito do marido. Comentário... comentário no geral... da vida... com as pacientes. Aí dá para você perceber se ela está tendo algum problema, ou não”. (E22, 31 anos, casada)

Esse diálogo com a paciente pode ser facilitado quando as profissionais tiveram oportunidade de adquirir conhecimentos mediante cursos e especializações que realizaram, ou mesmo no próprio serviço, o que as leva a assumirem uma atitude proativa. Também percebem consequências subjetivas do adoecer que necessitam ser cuidadas, como os prejuízos na autoestima e nos aspectos estéticos, o que contribui para refinar a sensibilidade para abordar a sexualidade. Buscam conhecer a paciente e suas necessidades de forma individualizada, esclarecem suas dúvidas, preocupam-se com o modo adequado de abordar a mulher na intimidade. “[...] ‘Aí como que vai ser quando eu colocar tal roupa? Como que vai ficar, né?’ E, apesar de ser aquela coisa muito recente que eu vivi, assim, né. Então, acabou de fazer a cirurgia... os dois, três, quatro, cinco primeiros dias... primeira semana, mas ela já se questionava e não só com isso... Questionava também assim... Não só a perda da mama ou de alguma parte, até a perda do cabelo, da imagem, perda da feminilidade, eu acho que era mesmo, né. ‘Como que vai ficar quando eu colocar tal roupa?’ Ou: ‘Ai... eu vou perder o meu cabelo. E aí?’”. (E23, 23 anos, solteira)

Especificamente em relação à sexualidade, para haver uma comunicação acolhedora e proativa do tema, faz-se necessária a legitimação dessa dimensão da vida como um aspecto a ser cuidado pela enfermagem. Muitas vezes, ouvir e responder às demandas, explorar os sentimentos e oferecer informações são medidas suficientes para a maioria das mulheres assistidas se sentirem acolhidas em suas necessidades. Apenas uma pequena parte das pacientes necessitará de atendimento especializado e irá requerer um encaminhamento específico (Higgins, Barker, Begley, 2006). A categoria 4 congregou depoimentos que sugerem que as enfermeiras reconhecem, na paciente e em seus familiares, atores sociais coparticipativos no tratamento. Uma das consequências desse posicionamento é que as decisões são resultantes de reflexões conjuntas e não impostas pelo poder autocrático da autoridade de saúde. Esse posicionamento empodera a paciente, levando-a a assumir corresponsabilidade por seu tratamento e, portanto, por sua recuperação. Fazer do paciente um sujeito reflexivo de suas ações e decisões pode contribuir para aumentar a participação ativa no tratamento. Santos et al. (2008) chamam a atenção para a necessidade de criação de espaços em que o paciente possa articular um discurso que expresse a singularidade de seu desejo. Para tanto, faz-se necessária uma escuta diferenciada pelo profissional, acolhendo a queixa das pacientes em sua particularidade, e não apenas buscar uma normatização da função sexual a qualquer custo. Por fim, é válido ressaltar a importância do papel do parceiro afetivo-sexual como suporte social na reabilitação da mulher mastectomizada. Biffi e Mamede (2004) identificaram que o apoio social COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013

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oferecido pelos parceiros sexuais significou a demonstração de afeto na compreensão da situação vivenciada por suas esposas, mesmo que de forma silenciosa, por meio de incentivos às estratégias de autocuidado e colaborando na realização das atividades domésticas. Os parceiros percebem-se úteis ao oferecerem atenção no manuseio do dreno, na realização dos curativos, no estímulo à realização de exercícios físicos e na manifestação de preocupação com a nova imagem corporal de suas parceiras. No entanto, na esfera da sexualidade apresentam dificuldades em apoiar a parceira e em estabelecer comunicação aberta em relação ao tema, somadas aos sentimentos de impotência e insegurança que vivenciam ao terem de lidar com o diagnóstico de câncer e com a necessidade de reorganizar as atividades do lar. Hautamaki et al. (2007) recomendam que a discussão deve ser iniciada pelos profissionais da equipe de saúde, deixando os pacientes e familiares com a opção de continuarem ou não com a discussão. Afirmam ser particularmente importante fornecer, aos profissionais, qualificação e instruções adequadas em relação a como abrir as discussões em áreas delicadas como a sexualidade. Esse treinamento também é muito importante para que os profissionais possam rever sua própria sexualidade, o que pode facilitar que tratem o assunto com os pacientes de forma natural e apropriada, evitando preconceitos e barreiras na comunicação.

Considerações finais O presente estudo proporcionou o desvelamento das variadas modalidades de comunicação no cotidiano do cuidado às pacientes mastectomizadas, desde não comunicar questões de sexualidade, passando pelo processo de uma comunicação utilizando um discurso evasivo e negação da sexualidade no cuidado, por vezes apresentando, ainda, a comunicação fragmentada, própria do modelo biomédico, até se aproximarem da comunicação acolhedora, integrada, junto a familiares e à equipe de saúde. Essa diversidade reflete o modo como as enfermeiras lidam com a questão da sexualidade em sua prática assistencial. Os achados evidenciaram a dificuldade com que o tema é tratado na prática profissional, seja na forma de comunicar ou nas relações interpessoais estabelecidas com as pacientes e familiares. Foram identificadas posturas evasivas de esquiva, negação, hesitação, silêncios e desvios de assunto quando confrontadas com as demandas das pacientes no campo da sexualidade. As enfermeiras buscam justificar as dificuldades que vivenciam para a implementação de uma comunicação mais aberta e efetiva em sexualidade pela via do excesso de atribuições e sobrecarga de trabalho. Essas racionalizações giram em torno do volume intenso de atividades protocolares, do tempo exíguo de que dispõem para cumprir com seus afazeres profissionais, das questões de gênero relacionadas à sexualidade feminina e das barreiras pessoais e culturais existentes para abordar livremente a temática junto às pacientes. As enfermeiras participantes deste estudo, em sua maioria, apontaram para a necessidade de aperfeiçoamento próprio, assim como dos demais membros da equipe de saúde, visando a facilitar o manejo da sexualidade durante o cuidado. Esse aperfeiçoamento de competências específicas seria proporcionado mediante a implementação de reuniões para discussão de casos e decisões conjuntas, ou por meio do encorajamento de um diálogo mais franco e aberto dentro da própria equipe de enfermagem. Nesse caso, haveria um respeito maior às diferenças, que lhes permitiriam assumir posições perante a diversidade de situações enfrentadas em seu cotidiano. Nessa direção, as profissionais de enfermagem compreendem que a incorporação de outras facetas da pessoa, afora a dimensão biológica, potencializaria os resultados do trabalho da equipe. A formação da enfermeira acompanha os preceitos biomédicos, com o acréscimo de ser uma profissão claramente referenciada ao gênero feminino em sua origem, estando permeada pela incorporação de um ideal de sexualidade asséptica e silenciada. Essa “assexualidade” impõe limites e regula a relação entre cuidador e sujeito cuidado (Ressel, Gualda, 2004). Para que a sexualidade seja cuidada com qualidade e sensibilidade, a enfermeira necessita ter um embasamento sobre o processo

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de desenvolvimento da sexualidade nas diferentes etapas do ciclo vital, assim como necessita conhecer o impacto das consequências advindas do processo do adoecer. Para compreensão das dificuldades pessoais, barreiras e distanciamentos da temática da sexualidade, é preciso retroceder à evolução da sexualidade ao longo da história da humanidade, para melhor entendimento da época contemporânea. O tema, que foi em grande parte desmistificado e desvinculado de concepções morais nos últimos cinquenta anos, adquire ampla visibilidade no momento atual. Segundo Giddens (1993), essa visibilidade está relacionada à transformação social da intimidade e dos laços afetivos entre as pessoas, bem como às redescrições contemporâneas do amor e do erotismo, e às suas articulações com dimensões como poder e gênero. Animar discussões sobre questões relacionadas à saúde sexual, com mulheres que vivenciam o câncer de mama e seus parceiros, é uma capacidade e, também, uma competência a serem desenvolvidas ao longo do tempo. Os achados do presente estudo sugerem que muitas enfermeiras que trabalham em oncologia encontram dificuldades em abordar o tema e tendem a evitar o assunto no cuidado dispensado à mulher mastectomizada, deixando as pacientes com muitas questões sem respostas. Nessa perspectiva, a enfermeira precisa se perceber mais na relação, sendo permeável a ouvir os próprios conceitos e preconceitos arraigados ao longo de sua vida. É preciso compreender quais são os conceitos de sexualidade, de relacionamento e de vínculo amoroso que essas profissionais compartilham e que sustentam suas práticas, ou seja, que crenças, valores e sentimentos constituem suas convicções íntimas. Só assim será possível ampliar seu autoconhecimento, com o objetivo de articulá-lo ao conhecimento resultante da experiência profissional, com o intuito de alargar as possibilidades de cuidado à sexualidade. Outro aspecto relevante que emergiu nas falas foi a falta de confiança pessoal e de capacitação profissional para abordar a temática, entendida como um tabu social de difícil comunicação na área da saúde, seja com as pacientes ou com algum outro membro da equipe. Por esse motivo, essa tarefa é delegada a outro profissional da equipe de saúde, rotulado como mais capacitado, e que pode ser o médico ou o psicólogo. Esse aspecto, que sugere a fragmentação do cuidado, reflete o modo como a sexualidade é considerada pelos profissionais da saúde, seja ela na perspectiva da medicina e da medicalização, ou do ponto de vista da psicologia e dos transtornos mentais, convergindo para um modo de cuidar com forte ênfase em classificações patologizantes e reducionistas. Acredita-se que o presente estudo traz avanços importantes no conhecimento dos diferentes modos de comunicação que se estabelecem no cotidiano das enfermeiras oncológicas, fornecendo subsídios para o planejamento do cuidado em enfermagem à mulher acometida por câncer de mama. Em particular, traz elementos para refletir sobre a necessidade de o profissional estabelecer uma comunicação que consiga identificar recursos potencializadores de qualidade de vida, ao mesmo tempo em que valoriza os aspectos culturais, os modos de existência que se revelam frente aos fatos adversos que ocorrem durante o tratamento do câncer de mama e que são cotidianamente ativados pelos atores socioculturais coexistentes. O cuidado em enfermagem deve incluir o acolhimento de todos os elementos que apresentem relação com a vivência da mulher, inclusive em relação à sua sexualidade.

Colaboradores Os autores trabalharam conjuntamente em todas as etapas de produção do manuscrito.

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Agradecimentos Agradecemos o apoio recebido da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que proporcionaram o fomento para o projeto de pesquisa que gerou o presente artigo. Referências BARTHON-BURKE, M.; GUSTASON, C.J. Sexuality in women with cancer. Nurs. Clin. North Am., v.42, n.4, p.507-704, 2007. BIFFI, R.G.; MAMEDE, M.V. Suporte social na reabilitação da mulher mastectomizada: o papel do parceiro sexual. Rev. Esc. Enferm USP, v.38, n.3, p.262-9, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Resolução n° 196/96. Dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional de Saúde, 1996. CAPRA, F. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982. DE MARCO, M.A. Do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial: um projeto de educação permanente. Rev. Bras. Educ. Med., v.30, n.1, p.60-72, 2006. DIZON, D.S. et al. The sexuality clinic in the breast center: sex as a survivorship issue. Breast Cancer Online, v.11, n.12, p.1-3, 2008. FONTES, C.A.S.; ALVIM, N.A.T. Importância do diálogo da enfermeira com clientes oncológicos diante do impacto do diagnóstico da doença. Cienc. Cuid. Saude, v.7, n.3, p.346-54, 2008. GIAMI, A. A saúde sexual: a medicalização da sexualidade e do bem-estar. Rev. Bras. Sex. Hum., v.18, n.1, p.263-77, 2007. GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Ed. Unesp, 1993. HAUTAMÄKI, K. et al. Opening communication with cancer patients about sexuality-related issues. Cancer Nurs., v.30, n.5, p.399-404, 2007. HIGGINS, A.; BARKER, P.; BEGLEYC, M. Sexuality: the challenge to espoused holistic care. Int. J. Nurs. Pract., v.12, n.6, p.345-51, 2006. HORDERN, A.J.; STREET, A.F. Contructions of sexuality and intimacy after cancer: patient and health professional perspectives. Soc. Sci. Med., v.64, n.8, p.1704-18, 2007. JUNQUEIRA, L.C.U. Investigação da sexualidade na experiência de enfermeiras que cuidam de pacientes com câncer de mama. s/d. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. s/d. (em andamento) LINDAU, S.T. et al. Communication about sexuality and intimacy in couples affected by lung cancer and their clinical-care providers. Psycho-Oncology, v.20, n.2, p.179-85, 2011. MACIEIRA, R.C.; MALUF, M.F. Sexualidade e câncer. In: CARVALHO, V.A. et al. (Orgs.). Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus, 2008. p.303-15. MINAYO, M.C.S. O desafio da pesquisa social. In: MINAYO, M.C.S.; GOMES, R.; DESLANDES, S.F. (Orgs.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p.9-29.

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FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Análisis sobre la comunicación de la sexualidad por las enfermeras a las pacientes en el contexto asistencial del cáncer de mama. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.89-101, jan./mar. 2013. Fue investigado cómo se desarrolla la comunicación sobre sexualidad por enfermeras para pacientes que se sometieron a una mastectomía, en estudio cualitativo, descriptivoexploratorio. Participaron 28 enfermeras y fueron utilizadas entrevistas en profundidad. El material fue sometido al análisis de contenido temático. Se registraron variaciones en los discursos de las enfermeras, que articulan en cuatro categorías: la enfermera no comunica cuestiones de sexualidad; comunica con discurso evasivo y negación de la sexualidad en el cuidado; utiliza comunicación fragmentada, del modelo biomédico; adopta comunicación acojedora, integrada, junto a los familiares y al equipo de salud. Se evidenciaron dificultades de las enfermeras para tratar de cuestiones de sexualidad en la producción de cuidados de salud. Se espera suscitar el interés en nuevos conocimientos acerca de la interfaz entre sexualidad y cuidados en la educación de enfermería, favoreciendo la información y capacitación del equipo.

Palabras clave: Neoplasias de la mama. Sexualidad. Comunicación y enfermería.

Recebido em 02/05/12. Aprovado em 12/11/12.

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artigos

Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a promoção da saúde e de direitos sexuais*

Cristiane Gonçalves da Silva1 Vera Paiva2 Richard Parker3

SILVA, C.G.; PAIVA, V.; PARKER, R. Religious youth and homosexuality: challenges for promotion of health and sexual rights. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.103-17, jan./mar. 2013. This paper describes religious young people’s conceptions of homosexuality, which is important knowledge for informing public policies within health promotion. Based on a constructionism and human rights framework, the study analyzed two focus groups and eighteen interviews with young followers of Afro-Brazilian religions (Umbanda and Candomblé), Catholicism, Anglicanism, Adventist Church of Promise and Assembly of God. Their conceptions about homosexuality took into consideration dogmatic morals and incorporated daily life experiences. Their interpretation of homosexuality therefore placed value on moral guidance from adult religious authorities and other forms of discourse relating to healthcare policies and social movements against sexual discrimination. To differing degrees, each young person reworked the discourse that had been accessed, as religious and sexual subjects. Within these psychosocial dynamics, openness towards health promotion based on human rights was observed, and youth people were seen as protagonists for adaptation of religious codes to singular courses of life and contexts.

Keywords: Youth. Religiosity. Homosexuality. Sexual health. Sexual rights.

Descreve-se como jovens religiosos concebem a homossexualidade, conhecimento relevante para informar políticas públicas no campo da promoção da saúde. Analisaram-se, com base no quadro construcionista e dos direitos humanos, dois grupos focais e 18 entrevistas com jovens de terreiros de Umbanda e Candomblé, em Igrejas Católica, Anglicana, Adventista da Promessa e Assembleia de Deus. As concepções sobre homossexualidade consideram a moral dogmática e incorporam a experiência viva e cotidiana. A interpretação da sexualidade homossexual, portanto, valoriza as orientações morais de autoridades adultas religiosas e outros discursos – os das políticas de saúde e dos movimentos sociais que defendem a não-discriminação sexual. Com intensidades diferentes, cada jovem reelabora os discursos acessados, como sujeito religioso e sexual. Identificou-se, nessa dinâmica psicossocial, abertura para a promoção da saúde baseada em direitos humanos, compreendendo jovens como protagonistas na adaptação de códigos religiosos a cada trajetória e contexto singulares.

Palavras-chave: Juventude. Religiosidade. Homossexualidade. Saúde sexual. Direitos sexuais.

Elaborado com base em Silva (2010); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 1 Departamento Políticas Públicas e Saúde Coletiva, Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista. R. Silva Jardim, 136, Vila Mathias. Santos, SP, Brasil. 11.015-020. cristiane.goncalves.silva@ gmail.com 2 Departamento Psicologia Social e do Trabalho, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 3 Center for Gender, Sexuality and Health, Mailman School of Public Health, Columbia University. *

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Apresentação A religiosidade de usuários e trabalhadores do sistema público de saúde interfere nos cenários das práticas cotidianas deste sistema e nas políticas voltadas à saúde sexual e reprodutiva. Tanto a dinâmica psicossocial da religiosidade como sua expressão política podem determinar o curso das decisões no planejamento de programas de saúde, sustentando seu papel como instância reguladora da sexualidade e da reprodução. No caso dos jovens, a maior parte das iniciativas para a promoção da saúde recomendadas pelo Ministério da Saúde e por organismos internacionais (OMS, UNICEF, UNESCO, UNAIDS) discute que ações educativas devem estimular o protagonismo dos jovens como detentores de autonomia para o exercício da sexualidade, para constituição dos relacionamentos afetivos e para tomar decisões no campo da reprodução. Antes disso, autores defendiam que direitos sexuais e reprodutivos são parte constitutiva dos direitos humanos, compreendidos como necessidade básica e parte dos direitos fundamentais (Ventura, 2003; Petchesky, 2001). O direito ao exercício da sexualidade implica: o direito de estabelecer relações homossexuais, o direito à proteção contra discriminação e de fazer parte de políticas públicas de promoção à saúde. Essa perspectiva dos direitos sexuais enfrenta diferentes moralidades religiosas frente à sexualidade e à reprodução que têm ocupado lugar de destaque nos debates sobre políticas públicas no Brasil. Nas eleições do período 2010-2012, as controvérsias nesse campo estiveram presentes. Diante da maior visibilidade das relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo, legalizadas como família pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, das ações contra a homofobia, houve recorrente posicionamento de lideranças cristãs no debate público eleitoral. Por outro lado, a religiosidade viva tem uma dinâmica bem mais complexa. As religiões, como se sabe, estão entre as instituições que promovem discursos para a socialização, fornecem parâmetros para organização das sociedades e funcionam como orientadoras da vida cotidiana, além de constituírem redes de relações sociais. Alguns estudos (Martins, 2009; Duarte, 2006, 2005) têm indicado, entretanto, que os brasileiros têm grande abertura para negociar com a regulação religiosa dogmática na qual foram socializados ou à qual aderiram, e que suas convicções orientadas pela religião incidem nas decisões no âmbito privado com razoável autonomia. Desde a infância e, especialmente, durante a juventude, cada trajetória biográfica tem de dar conta do pluralismo de discursos oriundos das instituições e redes de pertencimento: família, escola, trabalho, amigos, comunidade religiosa, mídia, redes sociais, programas de saúde. A adesão religiosa marca a socialização, mesmo que isto não signifique, necessariamente, obediência total aos ditames doutrinários. É o ethos privado, também definido a partir do sistema religioso, que engloba a vida afetiva, conjugal, reprodutiva e erótica, que tem sido pano de fundo das negociações dos sujeitos entre linhas de força mais tradicionais e mais modernas (Duarte, 2005). A forma como cada pessoa insere-se nas comunidades religiosas, como vive sua religiosidade, e o modo como constrói sua identidade religiosa no movimento de apropriação dos elementos necessários à satisfação de suas necessidades, assim como no afastamento dos elementos considerados inadequados para sua vida, são processos que a constituem como sujeito religioso. A comunidade religiosa compõe o mosaico de discursos com o qual jovens se deparam e têm de lidar nos momentos em que realizam suas escolhas, lidam com seus desejos, na forma como vivem ou viverão as experimentações afetivosexuais (Silva et al., 2008). A dinâmica da religiosidade e o grau de afastamento de orientações mais ou menos dogmáticas, raramente, são considerados pelas iniciativas no campo da saúde, pelos programas intersetoriais voltados para a promoção de direitos na juventude e pelos movimentos sociais engajados na luta pela garantia dos direitos humanos. Este artigo descreverá e discutirá concepções e posicionamentos de jovens religiosos sobre homossexualidade, considerando-os relevantes para informar políticas públicas para promoção da saúde sexual no quadro dos direitos humanos e apontar a proeminência da heteronormatividade na cultura dominada pela tradição judaico-cristã.

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SILVA, C.G.; PAIVA, V.; PARKER, R.

A discussão deste artigo baseou-se em Silva (2010), tese elaborada com base na análise dos dados dos estudos: a) “Respostas Religiosas ao HIV/AIDS no Brasil”, executado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), sob a coordenação do Professor Doutor Richard Parker, com financiamento do U.S. National Institute of Child Health and Human Development (1 R01 HD05118-01). O conteúdo do trabalho que aqui se apresenta é de inteira responsabilidade da primeira autora, não representando a posição oficial do Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development ou do National Institutes of Health (outras informações sobre o estudo: http:// www.abiaids.org.br/); e b) “Jovens e religião – sexualidade e direitos entre lideranças católicas, evangélicas e afrobrasileiras”, financiado pelo Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (PROSARE/ CCR/CEBRAP), do CNPq. Entre os publicados anteriormente, este é o primeiro artigo que foca a homossexualidade. Ele analisa o conteúdo de algumas das entrevistas feitas durante o trabalho de campo realizado em 2008 e 2009, que contou com a participação de uma equipe de pesquisadores e com a atuação de agentes jovens (moças e rapazes das próprias comunidades religiosas participantes do estudo). Os dois grupos focais e quatro das 18 entrevistas foram procedimentos exclusivos da pesquisa em questão. 4

artigos

Métodos O estudo analisou o conteúdo de 18 entrevistas em profundidade realizadas com jovens de 15 a 25 anos, sendo nove com rapazes (dois católicos, um adventista da promessa, um anglicano, um da Assembleia de Deus, dois umbandistas e dois do Candomblé) e nove com moças (duas católicas, uma adventista da promessa, uma anglicana, uma da Assembleia de Deus, duas umbandistas e duas do Candomblé). Analisou, também, o conteúdo de dois grupos focais, sendo um com a participação de quatro rapazes e nove moças umbandistas, e o outro grupo com a participação de cinco rapazes e quatro moças da Igreja Adventista da Promessa4. Os participantes eram jovens ativos de distintas comunidades religiosas do município de São Paulo e de dois municípios da região metropolitana do ABCD que se encontravam na condição de estudantes, cursando o Ensino Médio. Aqueles com mais de 21 anos encontravam-se inseridos no mercado de trabalho, cursando o Ensino Superior. Os dados de caracterização socioeconômica coletados em campo (escolaridade, renda, moradia) permitem classificar os jovens participantes do estudo como pertencentes à classe média baixa. As comunidades foram selecionadas a partir do envolvimento direto com questões relacionadas à prevenção do HIV/Aids e direitos para a juventude. Foram indicadas por lideranças religiosas e/ou profissionais de saúde envolvidos com o trabalho de prevenção e atenção ao HIV/Aids entre religiosos. Alguns dos jovens foram indicados por suas lideranças adultas, entrevistadas para outros estudos. Os roteiros das 18 entrevistas e dos dois grupos focais abordaram: as carreiras afetivo-sexuais dos jovens, concepções sobre sexualidade, saúde sexual e reprodutiva e direitos, além da narrativa sobre a relação com suas autoridades religiosas em relação aos mesmos temas. Neste artigo, abordaremos apenas o tema da homossexualidade. A análise e discussão levaram em conta o lugar que estes jovens ocupavam na comunidade religiosa de pertencimento e suas trajetórias de vida. Basearam-se na perspectiva construcionista e na sua produção sobre a sexualidade e sobre a dimensão psicossocial de práticas em saúde cuja abordagem está apoiada no quadro dos direitos humanos (Gruski, Tarantola, 2012; Paiva, 2012). No paradigma construcionista, gênero é uma categoria de análise social e a sexualidade é concebida como uma produção da cultura, assim como acontece com a homossexualidade, e têm características específicas em cada momento histórico e contexto intersubjetivo, em oposição ao paradigma sexológico que defende a natureza essencial de dois sexos e noções de um desenvolvimento psicossexual universal (Paiva, 2008). O campo contrucionista, desde os anos 1990 no Brasil, tem concebido adolescência e juventude como um processo socialmente construído, e não como fase natural do desenvolvimento psicológico. Vários autores discutiram que essa é uma fase constituída por diferentes contextos sociais e culturais, que não se reduz ao que os textos clássicos chamam de “a” adolescência ou às características atribuídas universalmente a essa “fase do desenvolvimento” (Paiva, Ayres, França Júnior, 2004; Oliveira, 1999; Paiva, 1999). Essa perspectiva tem ressaltado que esta fase da vida comporta: diferentes experiências socioculturais e subjetivas, práticas sociais, carreiras sexuais e trajetórias pessoais (Heilborn, 2006). Nessa abordagem, a noção de sujeito adotada nas práticas de saúde assume que cada pessoa também é sujeito de direito ao acesso à saúde integral de qualidade, à não-discriminação, à participação nas decisões sobre seu cuidado. Ou seja, a noção de sujeito sexual como categoria de análise (e não como entidade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.103-17, jan./mar. 2013

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substantiva) implica entender cada pessoa como ativa condutora de sua biografia, e não como objeto de instintos, impulsos, ou apenas discursivamente assujeitada. Como sujeito sexual, tem-se que dar conta de diferentes discursos, em cada contexto intersubjetivo, que interpelam o posicionamento sobre vida sexual e reprodutiva. As pessoas abordadas pelo discurso técnico implicado nas práticas de saúde são concebidas como agentes da negociação consciente, e não objetos da pretensiosa manipulação técnica, muito menos, de qualquer moralização. Como sujeito sexual, cada pessoa é considerada portadora de direitos, cidadã que recorta e cola diferentes tradições culturais e discursivas, experiências rituais e normativas no exercício da sua sexualidade. Ao se conceberem as práticas de saúde como um encontro com pessoas que são sujeitos sexuais e de direito, espera-se investir nelas como agentes ativos da sua sexualidade, da prevenção e do autocuidado (Paiva,1999). As narrativas5 compostas pelos jovens foram consideradas como a expressão dinâmica do posicionamento de pessoas interpeladas pelas questões propostas pelo estudo, tomadas como sujeitos plurais: sujeitos sexuais, sujeitos de direitos e sujeitos religiosos. O formato de grupo focal levou à apreensão, como esperado, das visões hegemônicas nos grupos estudados.

Os jovens religiosos e a homossexualidade Muitos dos participantes do estudo não haviam começado a vida sexual e/ou afetiva. Entre aqueles com alguma vivência, três moças umbandistas relataram ter tido experiências homossexuais, enquanto todos os outros jovens religiosos, tendo ou não iniciado a vida afetivo-sexual, negaram ter vivenciado o desejo por alguém do mesmo sexo ou ter tido alguma relação homossexual, e fizeram questão de destacar sua heterossexualidade. Os jovens que concebiam a homossexualidade como normal expressavam preocupação com a não-discriminação das pessoas com base em sua orientação sexual. Mesmo quando colocavam em oposição a “opção” sexual heterossexual e a “opção” homossexual, defendiam a ideia de que “todo mundo é igual” e que a discriminação seria inaceitável. “Todos temos liberdade de escolha, se ela fizer essa opção pra ela. Elas vão ser felizes do jeito que elas escolheram. Só que longe de mim, assim, sabe? [...] Tem gente que não respeita, tem gente que bate. Eu não concordo com isso [...]”. (Ivo, católico, 15 anos)

Alguns participantes afirmaram que suas comunidades religiosas, diante de adeptos assumidamente homossexuais, não reagiriam bem. Nos termos dos católicos, a Igreja reproduziria aquilo que ocorre na sociedade de maneira geral, ou seja, mostraria preconceito. Portanto, lésbicas, gays, bissexuais, travestis ou transexuais (LGBT) seriam discriminados ou, ao menos, objeto de riso, como relatou espontaneamente uma das católicas: “as pessoas iriam rir, mas não iriam discriminar [travesti na missa]”. Por outro lado, os jovens católicos demonstraram, de forma enfática, preocupação com situações de discriminação e violência vividas por homossexuais. Também foram os católicos que mais radicalmente se afastavam da visão oficial das altas autoridades religiosas quando o tema era homossexualidade ou uso do preservativo para prevenção do HIV e gravidez.

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Ao longo do texto, as citações de palavras ou de trechos das narrativas dos jovens são apresentadas entre aspas e em itálico; os nomes são fictícios.

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artigos

“Eu acho assim: cada pessoa tem sua opinião de gostar, de não gostar. Mas não é o meu caso. [...] não vamos discriminar ninguém. Todo mundo é igual a todo mundo. Eu não discrimino”. (Ana, católica, 16 anos) “Eu acho que, pela influência católica é aquela história... o homem foi feito pra viver com a mulher e a mulher foi feita para viver com o homem. Mas eu não vejo problema nenhum [...]”. (Caio, católico, 16 anos)

O conteúdo da narrativa dos jovens anglicanos confirmou que o repertório de significados sobre homossexualidade constitui-se a partir de cada contexto local e intersubjetivo, dinâmica mais complexa do que uma simples análise do dogma permitiria, além de confirmar a impossibilidade de apreender algo que expresse uma religiosidade igual para todos. Sua paróquia era também frequentada por uma rede de homens gays, algo pouco comum nos meios cristãos, colocando-os cotidianamente diante da diversidade sexual. Vivenciavam sua religiosidade, portanto, em um contexto onde a visibilidade e debate sobre homossexualidade havia contribuído para instaurar conflitos e dúvidas. A anglicana expressou preocupação com a não-discriminação e, ao mesmo tempo, explicitou sua dificuldade em conviver com o estilo de vida dos gays na Igreja. Temia que senhoras mais idosas ou novos frequentadores pudessem “dar de cara com casais gays de mãos dadas dentro da Igreja”, e descreveu cenas em que considerou a troca de carícias e beijos entre gays inapropriada para o ambiente da Igreja. Seu namorado, estudante da teologia anglicana e alinhado com uma linha mais conservadora, teria sido alvo de brincadeiras e identificado como integrante de uma “paróquia gay” pelos colegas do curso. Quando descreveu o posicionamento da Igreja sobre homossexualidade, citou a não-aceitação da homossexualidade nos escritos bíblicos, ao mesmo tempo em que ressaltava a liberdade dos fiéis para concordar ou não com estas orientações. Já a narrativa do rapaz anglicano orientava-se pela linha teológica que não aceita a homossexualidade, concebendo-a “contra as leis de Deus e da natureza” e posicionando-se pelo respeito. “Eu não sou a favor, mas eu respeito. São pessoas iguais a mim e eu tenho uma atitude de acolhimento com essas pessoas [...] Porque eu acho que vai contra a questão da própria natureza, a questão também da procriação. [...] [existe] uma ética cristã também, que eu acredito, que é contra nesse sentido. [...] Então, acredito que isso é contra a lei da natureza mesmo e contra a lei de Deus [...]”. (José, anglicano, 23 anos)

O tema homossexualidade provocou reações distintas entre os jovens entrevistados: muitos compreendiam a sexualidade não heterossexual como algo “normal”, outros compreendiam a homossexualidade como “pecado” ou como algo “não natural”. O contraste mais forte foi observado entre posicionamentos dos pentecostais e umbandistas. Ao mesmo tempo, encontramos aproximações entre conteúdos das falas de jovens católicos e do Candomblé, especialmente quando enfatizavam sua identidade pessoal heterossexual ao mesmo tempo em que relatavam aceitação da homossexualidade. As visões de anglicanos e pentecostais expressavam mais fortemente a moralidade cristã tradicional, com as nuances marcadas pelo contexto de cada comunidade. Entre os pentecostais, a concepção sobre homossexualidade constituiu-se fortemente a partir da estrutura sólida e “imutável” da “palavra” escrita na Bíblia, presente na interpretação dos jovens, repetida e reforçada por suas autoridades religiosas. Entendiam a homossexualidade como “pecado” e não demonstraram abertura para aceitar experiências sexuais não heterossexuais nas trajetórias biográficas dos adeptos. Referiram-se às escrituras sagradas para justificar seus posicionamentos e para marcar a diferença em relação à juventude “do mundo” – categoria nativa utilizada em referência aos jovens que não compartilham a crença evangélica. O “mundo de fora” tem valores distintos do “mundo de dentro” constituído por irmãos e irmãs evangélicos para quem as questões como prevenção

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do HIV e de gravidez fora do casamento são consideradas menos importantes quando comparadas à relevância que têm para os jovens “do mundo”. A reprodução de uma interpretação bíblica mais literal implicava a não-aceitação da homossexualidade entre os pentecostais, pois “foge ao propósito da criação”. Mesmo com este significado, os pentecostais “acolhem” e “não condenam” os homossexuais. Entretanto, a atitude de acolhimento apareceu condicionada à mudança da orientação sexual de cada acolhido. “Se você não deixa [a homossexualidade], você já não consegue viver a palavra de Deus. [...] os que não fazem esta renúncia, geralmente, não conseguem ficar na Igreja [...]. Eu conheço, por exemplo, homossexuais que deixaram de ser quando conheceram Jesus, quando aceitaram Jesus. Conheço e eles testemunham que realmente é difícil, mas que eles mesmos reconhecem que este não foi o plano da criação divina. Foi uma opção que eles fizeram antes. [...] Seja aonde quer que vá, a Bíblia, ela é única. Tem muitas traduções, mas a mensagem principal é a mesma. E, diante de Deus, isto não é aceitável6. Então a pessoa que quer, ela busca deixar a vida que outrora vivia. E eles testemunham que continuam sendo felizes, servindo Jesus, sendo héteros”. (Camila, assembleiana, 25 anos)

Para os adventistas da promessa, determinadas visões científicas constitutivas do “mundo de fora”, que definem a homossexualidade como doença, vão ao encontro da visão de sua religião, justificando o papel religioso de curá-la, combatê-la e eliminá-la. Também entre estes jovens foi identificada preocupação com a “não-discriminação”, baseada numa noção particular de “acolhimento” que indicava que aqueles que compartilhavam desta fé “não aceitavam a homossexualidade, mas amavam os homossexuais”. A concepção da homossexualidade como doença incluía relação de causa e efeito entre “abusos” e “traumas”. “Homossexualismo é pecado. É colocado aí, até do lado de fora já foi colocado que é uma doença [...] como a pessoa tem tendências a ser homem, outro tem tendências a ser mulher, outros têm tendência a, como se fosse um meio termo. Mas nós, pela palavra de Deus, nós entendemos que existe o homem e a mulher. A gente acredita que às vezes o homossexualismo é devido a uma formação familiar, é devido, às vezes, a abuso de crianças, na adolescência [...] nós amamos o homossexual, nós não discriminamos ele. É ele entrar dentro da Igreja e será bem-vindo, como todos os outros. Mas o que a gente condena é o homossexualismo. A pessoa, uma vez que ela entra aqui, nós vamos trabalhar, nós vamos conversar, nada de forçar, nós vamos conversar e mostrar e tentar reverter essa situação. Jesus amou o pecador e odiou o pecado”. (Raul, adventista, 18 anos) “[a homossexualidade] não agrada a Deus, é bíblico que os homossexuais não herdarão os céus. Não vai herdar a vida eterna. [...] Deus não aceita. Ele te ama, mas ele não pode te aceitar no reino dele do jeito que você é. Você tem que mudar. [...] Nunca escutei que uma pessoa aceitou Jesus homossexual e continuou homossexual. Porque, se ele veio pra Cristo, a verdade vai libertar ele, porque não é certo”. (Vânia, adventista, 22 anos) 108

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Grifo para ressaltar o caráter “imutável” da palavra bíblica. 6


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artigos

No grupo focal com os adventistas da Promessa, foram citadas escrituras bíblicas, seus ensinamentos sobre a criação divina do homem e mulher e do plano divino para se juntarem e constituírem família, justificando classificar a homossexualidade como “errada” e “pecado”. Um dos jovens pegou, abriu e indicou um trecho da Bíblia que carregava para provar que estavam a falar justamente aquilo que estava nas escrituras sagradas. A afirmação constante de que não se devia “discriminar” os pecadores homossexuais foi elaborada de modos variados. Entre os quais, a comparação entre homossexuais, que “não herdarão o reino do céu”, tal como ocorreria com os “mentirosos e os glutões”. Não há dúvidas de que esta é uma comparação com pecados ‘menores’ que contrasta com outros discursos evangélicos que comparam homossexualidade à pedofilia ou zoofilia. Reconheciam que era muito provável que as pessoas que não queriam ou não podiam deixar a homossexualidade deixariam de frequentar a Igreja. Diante deste dilema, discutiram a possibilidade de o homossexual buscar locais que os aceitam, pois tinham conhecimento da existência de “Igrejas onde todos são homossexuais”, fato que consideraram “uma abominação”. Em direção distinta, entre os jovens das religiões afro-brasileiras entrevistados e umbandistas participantes do grupo focal, houve indicações de aceitação e compreensão da homossexualidade como uma possibilidade de experiência e de escolha. Entretanto, dúvidas ou restrições que impediriam a aceitação, de fato, da diversidade sexual pela tradição religiosa e pelas divindades cultuadas (orixás e guias espirituais) apareceram nas falas dos umbandistas. Foi, sobretudo, a partir de exemplos de vivências de discriminação durante rituais religiosos e da ausência de referências dogmáticas explícitas sobre homossexualidade, que entendiam haver oscilação entre aceitar e reproduzir discriminação. Para os jovens das religiões afro-brasileiras, as pessoas deveriam “ser felizes” do jeito que decidissem viver, homossexual ou não. Os rapazes umbandistas afirmaram que sua religião aceitava a homossexualidade com “certa normalidade” e lidava “com naturalidade” com pessoas LGBT. Um dos entrevistados não percebia, na Umbanda, a presença de um discurso direto sobre homossexualidade. Sua concepção era de que a sua religião “incluía” e “aceitava” muitas coisas, inclusive a homossexualidade. “Eu nunca ouvi nenhuma autoridade lá, falando sobre esse assunto [homossexualidade], mas eu acho que trata com naturalidade. A Umbanda é uma religião que aceita, ela inclui muita gente, as pessoas de diferentes opções sexuais, não tem nenhum preconceito. Acho que ela aceita, assim como todas as outras pessoas”. (Lúcio, umbandista, 22 anos) 7 Na Umbanda e no Candomblé, há filiação entre uma pessoa e divindades ancestrais – os orixás – que podem ser divindades masculinas, femininas ou mistas. Neste sentido, esta explicação nativa está pautada na oposição/ inversão entre o gênero mítico e o gênero da pessoa, entendido e determinado a partir do sexo biológico.

Duas das moças umbandistas que relataram experiências ou desejos homossexuais e vivências com rapazes, compartilharam suas dúvidas em relação à aceitação da homossexualidade por parte da religião e divindades e, ao mesmo tempo, compartilharam uma explicação religiosa para a homossexualidade que costuma circular em “alguns segmentos” da Umbanda. Segundo essa visão, homens filhos de orixás femininos e mulheres filhas de orixás masculinos tenderiam a ser homossexuais7. Para jovens umbandistas e do Candomblé, a aceitação da homossexualidade depende diretamente da autoridade de cada Terreiro e, menos, do dogma e prática religiosos, transmitidos mais pela tradição oral que escrita.

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“[...] nossa religião não condena, mas ela não aceita. Vamos combinar, vamos ser sinceros, ninguém fala mal dos gays, mas ninguém aceita, também, não acha que é uma coisa normal. E eu fico muito confusa. Eu fico pensando, lá na frente, e se eu for homossexual, ou melhor, eu já sou. Não tem pra quem eu pergunte que aceite. Eu já perguntei para os guias, eu falei assim: “Escuta, pai, como que é?” [...] Ninguém me dá uma resposta concreta, sempre me falam que me aceitam. [...] eu continuo com a mesma dúvida”. (Lia, umbandista, 18 anos)

No debate do grupo focal, umbandistas discutiram a capacidade de a religião dar sentido ao ato sexual, seja ele praticado com alguém do sexo oposto ou do mesmo sexo; demonstraram maior abertura para aceitação das relações afetivo-sexuais homossexuais, com sentidos e graus distintos para esta aceitação. Parte do grupo sentia que a Umbanda aceitava a diversidade sexual e outra desconhecia orientação religiosa sobre essa questão. Mas todos aceitavam como legítima a homossexualidade. Os distintos modos de umbandistas lidarem com a homossexualidade se relacionava, segundo eles, com a “linha de cada Terreiro”, vinculada mais à postura de cada autoridade do que com a linhagem religiosa. Alguns destacaram que a religião “aceita na teoria”, mas, na prática, avaliavam que a aceitação ainda era incompleta, algo do tipo “vai-não-vai”. Interpretaram as normas da Umbanda como regras que permitiam aplicações diferentes das que foram previstas “na teoria”. Reconheceram que a Umbanda se caracterizava por sua capacidade de adaptação e flexibilidade e, por outro lado, avaliavam como incompleta e imprecisa, tendo pouca difusão da doutrina entre os adeptos. Os umbandistas reconheceram que muitos “adeptos que se assumiam homossexuais” foram aceitos de “uma forma muito bacana” na comunidade onde frequentavam. Apesar disso, houve relatos de “atitude de discriminação dentro da gira8” quando um adepto referiu-se de maneira irônica e em alto tom de voz sobre a homossexualidade de uma pessoa que havia sido atendida pelos guias espirituais. Concluíram que, embora a religião orientasse para que adeptos aceitassem e “amassem as pessoas como elas são”, ainda reproduzia atitudes discriminatórias que persistem na sociedade. Para os jovens do Candomblé, as concepções sobre homossexualidade estruturavam-se a partir da vivência do cotidiano dos Terreiros que frequentavam e de outros que conheciam. Todos os entrevistados fizeram referência à frequência de homossexuais no Candomblé9 quando trataram do tema. Argumentavam que gostar de alguém do mesmo sexo não é motivo para “discriminar” a pessoa, porque era “normal”, “a pessoa quando nasce, já vem com aquilo”. A percepção de que sua religião era mais aberta e inclusiva apareceu nas narrativas, apesar de reconhecerem a existência de limites para o estilo de vida dentro do Terreiro. “Minha religião, ela é muito aberta. [...] Eu tenho a minha vida lá fora, lá fora eu ando do jeito que eu ando, mas aqui dentro eu tenho muito respeito. [...] minha religião é muito aberta. Se vem gay e ele quer frequentar, lógico que ele pode frequentar. (...) Não tem divisão de classe, se a pessoa é pobre, rico, de cor, também, entendeu? É uma religião, claro, vem dos afro-brasileiros, veio dos negros”. (Régia, candomblecista, 15 anos) “não diz nada [sobre homossexualidade], não tem nada escrito. [...] o Candomblé é muito aberto, ele não tem essa coisa de “não pode fazer isso, pode fazer aquilo, é proibido fazer isso, é proibido fazer aquilo”. [...] o Candomblé tem muito homossexual, tem muito, muito. [...] às vezes o 110

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Gira é a denominação do ritual religioso praticado na Umbanda.

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Esta frequência grande de homossexuais no Candomblé é tema recorrente de estudos. Entre os pesquisadores destacamos Birman (2005, 1995, 1991) e Rios (2004).

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homossexual acaba se identificando mais com a religião, não sei se é exatamente isso... Mas tem muito homossexual na nossa religião”. (Tadeu, candomblecista, 19 anos)

Sujeitos, moralidades e direitos em diálogo

10 Importante ressaltar que, apesar desta maior rigidez, a jovem anglicana oscilou entre a valorização do posicionamento de cada pessoa diante das posturas morais pregadas pela Bíblia e questionamentos sobre o comportamento homossexual.

Nas concepções sobre homossexualidade encontradas entre jovens católicos e das religiões afro-brasileiras, observou-se uma articulação entre valores laicos e religiosos no ethos privado não confessional, indicando a imprecisão das fronteiras entre o religioso e o não-religioso. No conteúdo das entrevistas dos pentecostais, ao contrário, verificou-se uma recorrente demarcação dessas fronteiras e invasão do discurso religioso nas dimensões do ethos privado não vinculadas diretamente à religiosidade. Todos os entrevistados expressavam-se como sujeitos que encontraram, no pertencimento religioso e na adesão pessoal, fórmulas pastorais com as quais concordavam, condições morais adequadas e a intensidade de ethos que consideravam de acordo com o estágio de vida no momento da realização do estudo, como já discutido por Duarte (2006). Rapazes e moças católicos relataram que homossexuais fazem parte de suas redes de amigos(as) e parentes. No caso das comunidades de Candomblé e Umbanda, além das redes pessoais, contaram ter convívio com adeptos(as) ou visitantes LGBT nos rituais. Os anglicanos conheciam e conviviam com gays em sua comunidade, espaço que oferecia possibilidade de as pessoas professarem institucionalmente uma fé, mesmo com uma orientação sexual não heterossexual. Entre os pentecostais, não há relato de experiências diretas com LGBT em suas redes, e referiam-se a cenas vividas por amigos de outras Igrejas e, de acordo com seu repertório, homossexuais haviam se tornado heterossexuais ao “aceitarem Jesus”; e, no caso de persistirem em manter relacionamentos homossexuais, haveria impedimento para alcançar a “salvação, segundo a palavra de Deus”. Tal como discutiu Natividade (2009a), em trabalho realizado com homens gays evangélicos, na Igreja é necessário “deixar o pecado de lado”. A compreensão dos entrevistados sobre o exercício da sexualidade como um direito foi variada. Católicos, umbandistas e candomblecistas valorizaram escolhas pessoais e reconheciam-se como sujeitos da sua sexualidade e de direitos, independentemente do posicionamento de sua religião. Os pentecostais e anglicanos, por outro lado, reproduziram e valorizaram o posicionamento religioso mais conservador para definir e adotar a forma ideal de viver a sexualidade10. Para todos os cristãos, a comunidade religiosa era um território importante de socialização, provedora de conhecimentos, promotora do acesso à informação e instrumental na reivindicação de direitos. Entre os evangélicos pentecostais, identificou-se a existência de um código divino de conduta considerado o primeiro de todos os códigos, a partir do qual construíram seus posicionamentos sobre as questões relacionadas ao exercício da sexualidade e, portanto, sobre homossexualidade. Apesar do conflito existente entre o reconhecimento da legitimidade da não-discriminação das pessoas homossexuais e das orientações de religiosos que julgam-condenam as práticas homossexuais, não se pode deixar de ressaltar constante preocupação dos evangélicos com a não-discriminação, que, certamente, resulta de alguma participação da socialização em outros territórios “do mundo”. Esta preocupação poderia ser apreendida como abertura para o diálogo sobre direitos sexuais e para o diálogo produtivo com gestores de políticas públicas de promoção da saúde sexual da juventude. Mesmo considerando a rigidez derivada de orientações morais que condenam a homossexualidade, reconheceram a possibilidade de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.103-17, jan./mar. 2013

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outras leituras da Bíblia e a existência de outras denominações evangélicas inclusivas que reconhecem a diversidade sexual11 – possibilidade reconhecida, inclusive, pelos adventistas, com posturas mais heteronormativas entre os grupos abordados neste estudo. Os umbandistas apresentaram concepções religiosas que resultaram de reelaborações de vários outros discursos, ou seja, apresentaram uma religiosidade difusa, híbrida, pouco dogmática, mas ainda religiosidade. Diferente dos evangélicos (históricos e penteconstais) e católicos, os umbandistas, aparentemente, não tinham orientações das autoridades religiosas que abordavam diretamente a homossexualidade, refletindo uma característica dessa religião o fato de não possuir diretrizes centralizadas nem mesmo para a prática ritual, como já discutiu Malandrino (2006). A bricolagem que caracteriza a Umbanda também caracterizou a forma como os jovens articularam e reelaboraram os discursos na construção de suas próprias concepções sobre homossexualidade. Os jovens umbandistas tendem a incluir a diversidade sexual entre os direitos dos jovens. Apesar disso, e justamente por causa fragmentação dogmática e da prática religiosa muito vinculada à interpretação de cada autoridade religiosa sobre a doutrina, não se pode afirmar que a Umbanda possua orientações religiosas que preconizam abertamente a aceitação da homossexualidade. Este estudo indicou possibilidades de aproximação entre as experiências e concepções dos jovens religiosos e as concepções nas quais se baseiam os defensores dos discursos que promovem os direitos sexuais para a juventude no campo das políticas públicas de saúde. Moças e rapazes são capazes de conceber o sagrado e a homossexualidade de forma pessoal, expressando experiências socializadoras compartilhadas em sua geração, de acordo com os códigos religiosos em permanente reelaboração/reedição. No caso dos cristãos, cuja hermenêutica do texto escrito é orientação importante das práticas cotidianas, ainda assim há expressão de experiências socializadoras compartilhadas em sua geração. Ou seja, como sujeitos sexuais, os jovens religiosos constituem uma autonomia a partir da esfera da sexualidade organizada socioculturalmente por cenários sexuais específicos daquela comunidade religiosa, mas relacionados a um contexto cultural compartilhado com outros grupos e comunidades (Paiva, 2005). Cada adepto e adepta de uma religião é, ao mesmo tempo, sujeito religioso inserido em um contexto cultural e institucional que, por sua vez, é atualizado pelo domínio do sujeito sexual em interação com os outros para vivência da sexualidade e, de novo, interpelado pela religiosidade (Silva et al., 2008). Os resultados deste estudo qualitativo permitem apenas a compreensão das comunidades pesquisadas, uma limitação deste estudo, e seria inadequado estender sua interpretação a outras, ainda que de mesma denominação. Os adeptos das religiões afro-brasileiras, de todo modo, parecem estar mais próximos do reconhecimento do exercício da sexualidade como um direito respeitado na comunidade religiosa e entendem suas religiões como “inclusivas”. Esta visão parece relacionar-se com o processo histórico constitutivo do Candomblé e da Umbanda. Esta última, caracterizada como uma religião que se constitui da “mistura” da origem negra, indígena, católica, kardecista, e povoada por arquétipos que representam figuras marginais da sociedade brasileira – escravos, mestiços, índios, crianças – como divindades. (Silva, 2005). Já a tradição do Candomblé vê o corpo como mediador da vida, fonte de prazer, e os adeptos vivem a sexualidade como reconciliação dos desejos (Amaral,1992). O acolhimento do homossexual pelos pentecostais condena moralmente a pessoa acolhida, ao conceber a homossexualidade como “pecado”, pois, com isto, delega, para qualquer orientação não heterossexual, o fardo da ilegitimidade. Isto 112

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Por exemplo, a Igreja Cristã Contemporânea, a Igreja da Comunidade Metropolitana e a Comunidade Cristã Nova Esperança, citadas na entrevista com Marcelo Natividade (Natividade, 2009b).

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parece constituir-se como um dos maiores desafios para a implementação de políticas de saúde inclusivas, que devem enfrentar essas resistências para pautarem ações de promoção da saúde orientadas pelo horizonte político e ético dos direitos humanos. Jovens católicos expressam a força da tradição da Teologia da Libertação no Brasil e, mais especialmente, em São Paulo, onde o catolicismo alinha-se fortemente ao quadro dos direitos humanos desde 1960. Os dados deste estudo, portanto, fortalecem o argumento de outros pesquisadores que têm ressaltado a diversidade católica e sua maior abertura a modos variados de ser católico e de relacionar-se com os valores e práticas institucionais (Martins, 2009).

Religião e religiosidade: ampliando o diálogo da saúde com religiosos e religiosas

A preocupação com a não-discriminação aparece de forma significativa entre todos os jovens participantes do estudo e deve ser entendida nas suas nuances, a partir de seus contextos religiosos distintos. 12

Esse trabalho ressaltou a distinção clara entre dogma e religiosidade viva no estudo de diferentes comunidades, assim como a resultante a ser observada na subjetivação e no plano individual, algo a ser considerado nas estratégias, ações e serviços constitutivos das políticas públicas de promoção da saúde. Permitiu reconhecer que o segmento da juventude religiosa se diferencia da juventude não religiosa, e mostrou que, de fato, a religião de escolha fornece uma visão de mundo com categorias próprias, confere motivos para a trajetória e modelos para a vida, como discutido por Geertz (1989). A religião opera categorias que constroem a subjetividade, impulsionam a ação, orientam e qualificam o comportamento externo e atitudes profundas (Sanchis, 2008). Entre os jovens religiosos estudados, observa-se uma vida religiosa ao mesmo tempo idiossincrática e comunitária. A diversificação e o pluralismo reconhecidos na construção da identidade do sujeito sexual-religioso (com suas rupturas, deslizamentos e trajetórias singulares) só são perceptíveis quando se desloca a análise do discurso dogmático das religiões para sua realização implicada na subjetividade do indivíduo (Sanchis, 2001). No caso da promoção da saúde, se desloca, também, para a pessoa que é sujeito do direito à saúde integral, do direito à não-discriminação e ao acesso a informações e serviços de qualidade. No esforço de construir políticas de saúde que entendam amplamente o processo saúde-doença implicado, também, em uma história social e atuem na garantia dos direitos sexuais e autonomia da juventude, é preciso levar em conta que as variações dos arranjos efetivados por jovens dependem do contexto. Este estudo mostrou que moças e rapazes se encaminham para uma ou outra combinação, ora há proeminência do sujeito sexual sobre o dogma, ora há predominância do dogma como saliente num sujeito também religioso. A preocupação em evitar a discriminação12 entre os jovens sinaliza para a possibilidade de encontro com políticas públicas de saúde sexual pautadas nos direitos humanos. Qualquer política para a juventude, por sua vez, não pode reduzir jovens religiosos ao dogma, nem insistir em uma visão universal de juventude que perca de vista o sujeito plural interpelado a cada contexto. Reforçase a necessidade de se refinar o debate referente à religião como pertencimento institucional ou como crença e, mais ainda, enquanto um sistema de valores compartilhados (Rohden, 2005). Entender o jovem a partir da noção de sujeito plural ajuda a compreendê-lo no manejo singular de diferentes discursos. Na perspectiva construcionista, é atributo, do que se nomeia sujeito, recriar, reeditar e reconstruir o sistema de crenças com base em sua própria experiência. Quando buscamos compreender a religiosidade do ponto de vista do sujeito religioso e plural, aumentamos as chances de se ter acesso à religião viva – que, de fato, é a que importa nas práticas de saúde – e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.103-17, jan./mar. 2013

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não apenas aos sistemas de valores propagados pela hierarquia da instituição religiosa que forjam estereótipos, embora reconheça-se que tais aspectos sejam fundamentais para a legitimação e implantação de políticas. Ao se abordar o jovem enquanto sujeito, valoriza-se sua capacidade de negociar mais conscientemente com os discursos oficiais da tradição religiosa e com a experiência de outros discursos presentes em sua vida cotidiana, inclusive com discursos sobre prevenção, sexualidade e direitos sexuais. O jovem também é marcado pelo diferenciador ético-moral dado pelo pertencimento a um grupo. A marca do pertencimento religioso pode existir independentemente da intensidade da adesão às ideias e práticas das instituições religiosas (Scott, Cantarelli, 2004), embora essa intensidade deva ser um elemento central a ser avaliado e respeitado nas abordagens em saúde. O modo brasileiro de fazer política tem acirrado a manifestação aberta de moralidades religiosas que comprometem a efetivação da laicidade do Estado, fortalecem contextos favoráveis à reprodução do estigma, discriminação e vulnerabilidade, e evidenciam a tensão entre a defesa dos valores religiosos e as liberdades individuais quando se trata da sexualidade (Gomes, Natividade, Menezes, 2009). Os resultados apresentados apontam para a potencialidade do diálogo estabelecido com as comunidades religiosas e conduzido sob a inspiração dos direitos humanos combinados aos princípios da laicidade. Este caminho pode ser capaz de superar desafios próprios desse diálogo, aumentando a possibilidade de interlocução. Mesmo quando a homossexualidade é classificada como pecado, como no caso de parte importante das religiões cristãs no Brasil, adeptos leigos (muitos deles trabalhadores da saúde) e autoridades religiosas precisam reconhecer a legitimidade destas experiências e que elas podem existir nas suas comunidades, entre seus adeptos, que devem ser entendidos como sujeitos de direito. O estudo pretendeu compreender como a religiosidade de jovens articulou o debate sobre a homossexualidade, com o interesse em ampliar repertórios para proteção do direito de viverem a sua sexualidade de forma autônoma e informada, acolhida e protegida de estigma, discriminação e violência. Será mais interessante nessa perspectiva, portanto, considerar que, em qualquer circunstância, cada moça e cada rapaz é sujeito pleno e plural, regulador da experiência cotidiana no manejo de sua religiosidade, sujeito capaz de estabelecer diálogos entre o discurso religioso e os diversos discursos sobre sexualidade, inclusive o discurso dos direitos e das políticas públicas de saúde.

Colaboradores Cristiane Gonçalves da Silva responsabilizou-se pela coleta de dados, análise, elaboração da primeira versão do texto e trabalhou na revisão de todas as versões do manuscrito; Vera Paiva responsabilizou-se pela supervisão da coleta de dados, parte da análise e considerações a partir da primeira versão do texto; Richard Parker responsabilizou-se por parte da análise e pelas considerações a partir das versões elaboradas pelas duas outras autoras. 114

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artigos

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SILVA, C.G.; PAIVA, V.; PARKER, R. Los jóvenes religiosos y la homosexualidad: desafíos para la promoción de la salud y de los derechos sexuales. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.103-17, jan./mar. 2013. En ese artículo se describe cómo jóvenes religiosos conciben la homosexualidad, conocimiento relevante para informar políticas públicas en el ámbito de la promoción de la salud. Con base en referencias constructivistas y de los derechos humanos, fueron analizados dos grupos focales y dieciocho entrevistas con jóvenes de Umbanda y Candomblé, Iglesias Católica, Anglicana, Adventista de la Promesa y Asamblea de Dios. Las concepciones sobre homosexualidad consideran la moral dogmática incorporando la experiencia cotidiana. La interpretación de la sexualidad homosexual, por lo tanto, valoriza orientaciones morales de autoridades religiosas y discursos de las políticas de salud y de los movimientos sociales que defienden la no discriminación sexual. Con intensidades diferentes, cada joven reelabora los discursos accedidos, como sujeto religioso y sexual. Se identificó en esa dinámica psico-social, apertura para la promoción de la salud con base en derechos humanos, comprendiendo jóvenes como protagonistas en la adaptación de códigos religiosos a cada trayectoria y contexto singulares.

Palabras clave: Jóvenes. Religiosidad. Homosexualidad. Religión y sexo. Derechos sexuales.

Recebido em 15/05/12. Aprovado em 404/11/12.

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artigos

A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira* Francisco Ortega1 Rafaela Zorzanelli2 Lilian Kozslowski Meierhoffer3 Celita Almeida Rosário4 Clarissa Freitas de Almeida5 Bárbara Fonseca da Costa Caldeira de Andrada6 Beatriz da Silva Chagas7 Clara Feldman8 ORTEGA, F. et al. The construction of the diagnosis of autism in a Brazilian virtual community. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.119-32, jan./mar. 2013.

This article presents preliminary results from ongoing research about autism in Brazilian virtual communities. We investigated public opinion about autism in the virtual communities dedicated to this issue. Public opinion about a medical condition directly influences the sick person’s experience and the experiences of her caregivers and family. The results describe the social representations of the users – mainly parents and caregivers of autistic children – about the supposed causes of autism, the forms of treatment, the forms of activism and the rights of autistics and the ambivalent use of medical knowledge, which is frequently endowed with the capacity of disclosing the disease, but which is also resisted in favor of lay knowledge of parents and caregivers based on their daily experience with the autistic people.

Keywords: Autistic Disorder. Public opinion. Social networking. Psychiatric disorders.

Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa realizada em uma rede social virtual brasileira, com o tema do autismo. Investigou-se a opinião pública sobre o autismo nessa rede, por meio de suas comunidades ligadas ao assunto. A opinião pública sobre determinada condição médica traz consequências diretas sobre a experiência do doente e sobre as pessoas implicadas em cuidar dos pacientes acometidos. Os resultados apontam algumas direções a respeito das representações dos usuários sobre as supostas causas da doença, os métodos de tratamento, as formas de ativismo e de busca de direitos dos portadores, e os usos paradoxais do conhecimento médico, ao qual se atribui a possibilidade de desvendar a doença, e, ao mesmo tempo, é alvo de resistência de pais e cuidadores, que priorizam o conhecimento proveniente de sua experiência cotidiana com os autistas.

Palavras-chave: Transtorno autístico. Opinião pública. Rede social. Transtornos psiquiátricos.

Resultante de pesquisa financiada pela Faperj/ Capes (Bolsa de Apoio ao Pós-doutorado APD-2009 - Rafaela Zorzanelli) e bolsa de produtividade em pesquisa CNPq, bolsa de Cientista de Nosso Estado da Faperj (Francisco Ortega). Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). 1,2 Departamento de Políticas e Instituições de Saúde, IMS/UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar, blocos D e E, e 6º andar, bloco E, Maracanã. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900. fjortega2@gmail.com 3 Graduanda, curso de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 4 Aluna de Pósgraduação Lato Sensu em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. 5 Mestranda, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, UERJ. 6-8 Doutorandas, Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva, IMS/UERJ. *

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A CONSTRUÇÃO DO DIAGNÓSTICO DO AUTISMO EM UMA REDE SOCIAL ...

Introdução A pesquisa sobre o impacto da internet na experiência de portadores de doenças – sobretudo aquelas envoltas em incertezas quanto à etiologia – é assunto em plena expansão no campo do conhecimento sociológico em saúde (Conrad, Stults, 2010; Barker, 2008; Bromm, Tovey, 2008; Miah, Rich, 2008; Schaffer, Kuczynski, Skinner, 2008; Berger, Wagner, Baker, 2005; Broom, 2005; Fox, Ward, o’Rourke, 2005a, 2005b; Seale, 2005; Gandchoff, 2004; Gillet, 2003; Blumenthal, 2002; Hardey, 1999). Certamente, a emergência dessas pesquisas se situa em contexto recente e debitário do surgimento e popularização da internet, ocorrida em meados de 1990. Isso porque o advento da internet, e da possibilidade de interação anônima e virtual entre seus usuários, alterou a experiência da doença para muitos dos pacientes e/ou de seus cuidadores. Fora do mundo virtual, a experiência da doença era tipicamente privada, discutida apenas com o médico e a família, sem a comunicação com outros sofredores da mesma condição. Desde as possibilidades abertas pelo contato virtual, pacientes e os coparticipantes de sua condição clínica têm exercitado a possibilidade de partilhar vivências com outros portadores. O público crescente desses usos da internet é, sobretudo, aquele formado por pessoas que padecem de doenças estigmatizadas – controversas em sua etiologia, e ainda não decifradas pela biomedicina –, condições crônicas e debilitantes (Conrad, Stults, 2010). Fontes disponíveis como blogs, weblogs, páginas pessoais em redes sociais e grupos de apoio virtual produzem conhecimento baseado na experiência vivida de cada paciente, conhecimento esse que é trocado, partilhado, dividido e multiplicado nas formas diversas de contato virtual, criando o que Collins e Evans (2002, p.238) chamaram de especialistas baseados na experiência, cujo conhecimento se estrutura no cotidiano e nas limitações que esse lhes impõe. É gerada uma nova economia das informações sobre as doenças, meios de lidar com ela, contraposições de opiniões dos médicos que acompanham os pacientes/usuários das redes virtuais. Blumenthal (2002) sugere que as interações on line dos pacientes diminuem a autoridade e exclusividade da figura do médico como transmissor de informações sobre doenças. Dessa forma, as modalidades de contato entre pacientes encontradas na internet nos permitem acesso a: informações que compõem o mosaico da opinião pública sobre doenças, os modos como os pacientes/usuários lidam com suas condições de saúde, os usos diversos que as redes virtuais permitem em termos de divulgação de teorias científicas, informações médicas, conhecimento baseado no cotidiano e formas de ativismo em saúde. A popularização das informações científicas e o modo como são recebidas e utilizadas entre os meios leigos – que são, frequentemente, os meios em que se incluem pacientes e cuidadores – podem afetar a própria formulação de políticas públicas. Ou seja, a forma como o conhecimento científico é divulgado e popularizado retroage sobre a formulação de políticas e sobre o próprio modo como aquela doença é socialmente concebida e representada. No limite, a opinião pública acerca de determinadas condições clínicas e o modo como são socialmente percebidas pelos diferentes atores – leigos, indivíduos que não têm contato com o autismo, profissionais de saúde, pais, cuidadores, gestores – trazem consequências diretas sobre a experiência do doente e das pessoas diretamente implicadas em seu cuidado. Além disso, interferem na legitimidade social daquela doença, isto é, em quanto ela é considerada merecedora de cuidado pelos profissionais e pelos pares com quem o doente se relaciona, e, no limite, quanto ela deve ser amparada pelo sistema público de saúde.

Autismo e internet No caso específico do autismo, Ortega (2009) analisa quanto a internet foi um ponto de virada na formação de grupos de pacientes que partilham uma característica corporal ou mental. Um exemplo disso é a primeira lista on line de pais de autistas, considerada uma forma de self-advocacy, ou seja, de campanha em prol de interesses de um grupo – a Autism and Developmental Disabilities List (Autism List), que contribuiu para a promoção da Applied Behavioral Analysis (ABA), como forma de terapia direcionada às crianças autistas. O foco no tratamento e cura do autismo colocado em marcha por essa lista deu origem a um forte movimento de crítica proveniente de adultos autistas que se sentiam ignorados e incompreendidos. O 120

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resultado foi a criação da lista encabeçada por Jim Sinclair e Donna Williams, a Autism Network International (ANI), no ano de 1992. Essa lista foi corroborada por outra, em 1994, a Autism Network International Listserv (ANI-L). Embora pessoas não autistas pudessem aderir a essa última lista, toda decisão deveria ser tomada por autistas (Orsini, Smith, 2010; Orsini, 2009; Chamak, 2008; Silverman, 2008a). A ideia central “by autistics for autistics” (por autistas e para autistas) centralizava o principal valor da ANI, epitomizado no emblema “nothing about us without us” – nada sobre nós sem nossa participação (Charlton, 2000; Shapiro, 1993), obras de relevância na tradição dos Disability studies (estudos sobre deficiência) e do movimento dos portadores de deficiência. Há uma crescente atenção da pesquisa em ciências sociais a respeito dessas questões, sobretudo em se tratando de análises etnográficas (Wilson, Peterson, 2002; Miller, Slater, 2000), sendo a internet um cenário destacado da construção de sentido para o diagnóstico e para a experiência de ser autista ou de ser parente de um autista. A internet vem se tornando um espaço essencial para o desenvolvimento da personalidade de pessoas com autismo (Kenway 2009; Biever, 2007; Blume, 1997), e um número destacado de estudos empíricos tem sido feito sobre o autismo no ciberespaço (Clarke, van Amerom, 2008, 2007; Davidson, 2008; Brownlow, O’Dell, 2006; Jones, Meldal, 2001; Jones, Zahl, Huws, 2001). Dentre as pesquisas qualitativas sendo conduzidas a respeito do autismo, destacam-se: as autobiografias escritas por pessoas com autismo, os depoimentos de pais e familiares, e dos profissionais de saúde (Hacking, 2009; Chamak et al., 2008; Davidson, 2008, 2007; Osteen, 2008; Ariel, Naseef, 2006). Outras pesquisas etnográficas examinam a construção da identidade por indivíduos autistas (Bagatell, 2007; Jurecic, 2007). O rol de assuntos tratados nessas investigações abrange assuntos como: a compreensão de pais e pacientes sobre a condição autista; diferenças perceptuais e suas implicações para o indivíduo autista; expressão e manejo da emoção; particularidades da sexualidade e dos relacionamentos amorosos, bem como o papel da internet e das novas tecnologias de comunicação na interação entre esses indivíduos. As comunidades virtuais que se reúnem em razão do autismo tornaram-se participantes ativos tanto da disseminação de achados de pesquisas quanto do direcionamento do apoio financeiro a algumas delas, interferindo, muitas vezes, na constituição de políticas públicas e lutas por direitos ao doente (Orsini, Smith, 2010; Orsini, 2009; Ortega, 2009; Chamak, 2008; Silverman, 2008a, 2008b). Nossa pesquisa se insere nesse âmbito do estudo da construção do diagnóstico do autismo por meio da opinião de usuários de uma rede social virtual brasileira, levando em consideração informações que nos permitissem avaliar como o diagnóstico de autismo era compreendido, avaliado, manejado e debatido. Um tema que impulsionou a proposição dessa investigação é o fato de o autismo estar envolvido em um debate bastante particular, que é o da chamada “neurodiversidade” – indivíduos diagnosticados com a síndrome de Asperger, um tipo especial de autismo de alto funcionamento, são os principais atores desse movimento. Seus portadores afirmam que sua condição é um resultado de conexões neurológicas diferentes das conexões da maioria das pessoas, mas que, nem por isso, tratar-seia de uma doença a ser curada, mas, sim, de uma diferença humana a ser respeitada, tal como a diversidade sexual ou étnica (Baker, 2011; Eyal et al., 2010; Ortega, 2009; Singer, 1999). Em outras palavras, para eles, o autismo não seria uma doença, mas um modo de funcionamento cerebral diferente, e como tal, mereceria o respeito e a liberdade de existir sem necessidade de tratamento médico. É importante lembrar que esses indivíduos estão situados no extremo mais funcional do espectro do transtorno, o que é uma situação muito diferente da vivida pela maioria das crianças autistas. Se, por um lado, o respeito à diversidade Asperger é defendido por uns, por outro, é considerado uma afronta, já que oferece argumentos para que os órgãos estatais responsáveis pela saúde dos cidadãos se recusem a financiar os tratamentos. Dada a expressividade desses debates fora do Brasil e a velocidade de difusão de informações na internet, fomos movidos por algumas perguntas: a rede social seria, também no Brasil, um ponto de contato para troca de informações, tal como ocorre em outros países? O debate em torno do tema da neurodiversidade, pregnante internacionalmente na atualidade, apareceria nos usuários da rede social brasileira? Que tipo de hipóteses etiológicas apareceriam nos debates virtuais? Haveria avaliações ou preferências dos usuários por determinadas terapias? O tema do “orgulho autista” mobilizaria também os grupos brasileiros? 121


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Por que pesquisar uma rede social virtual? Fontes diversas podem ser usadas para investigar a opinião pública sobre uma doença, tais como: a mídia impressa diária e a mídia televisiva, os profissionais envolvidos na questão, os leigos. A pesquisa em questão teve como alvo os usuários das redes sociais virtuais, e, especificamente, o orkut, que era, no momento de coleta dos dados, a rede social mais popular no Brasil, criada em 2004. As redes sociais virtuais permitem partilhar informações das mais diversas formas – textos, arquivos, imagens, fotos, vídeos, e, sobretudo, pequenos textos postados, chamados scraps, constituindo um material rico para a análise de representações, ideias e opiniões dos usuários. Nessa rede formam-se grupos por afinidades, que são as “comunidades”, dentro das quais criam-se tópicos – temas que disparam debates entre os usuários. Além do papel das mídias on line no ativismo em saúde, a internet oferece condições bastante particulares: ela cria uma sensação de intimidade por meio da condição de anonimato, e, assim, pessoas que possivelmente não se encontrariam, partilham a experiência de ter uma doença específica ou de ser parente ou cuidador de um doente, podendo interferir, pela força do agrupamento virtual, nos rumos das pesquisas sobre doenças, nas políticas públicas criadas, e em outros aspectos. Coletar dados de uma fonte que muda a todo tempo pelo acréscimo e retirada de postagens é uma tarefa desafiadora, e, por isso, foi necessário construir instrumentos que pudessem preservar o mínimo de confiabilidade ao material. Por outro lado, a instabilidade da fonte e o fato de que ela seja cotidianamente permeável à mudança nos dão a possibilidade de verificar a difusão de certas ideias debatidas, nacional e internacionalmente, sobre o autismo praticamente ao mesmo tempo em que elas ocorrem, de observar o modo como adentram os debates brasileiros, e ganham um tom próprio.

Métodos Esse projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da UERJ. A metodologia envolveu a coleta de tópicos e postagens em comunidades do orkut ligadas ao tema do autismo. Foram utilizados instrumentos confeccionados pelo grupo de pesquisa, no qual constam tanto a caracterização das comunidades (moderador, caracterização, número de membros etc.) e o recorte e colagem dos scraps dos tópicos das comunidades relacionados ao tema do autismo (Instrumento 1). Utilizamos um programa de software idealizado por um dos pesquisadores para procedimentos de recorte e colagem dos scraps dos tópicos previamente selecionados como pertinentes à amostra, dentro de cada comunidade também pré-selecionada. Somente os tópicos absolutamente fora da temática (venda de produtos para emagrecer, propagandas de produtos eróticos) foram retirados dessa contabilidade. Posteriormente, realizou-se, pelo método da análise de conteúdo, uma tabulação dos principais temas ocorrentes nas postagens (Instrumento 2). Essa tabulação, inicialmente realizada em formato Word, foi transferida para uma planilha no formato Excel, onde a contabilidade da ocorrência dos temas por comunidade (e por cada um de seus tópicos utilizados) é realizada automaticamente (Instrumento 3). Foram coletadas nove comunidades e, ao todo, cento e noventa tópicos (ou fóruns de discussão), totalizando quinhentos e trinta scraps. As nove comunidades foram escolhidas a partir da palavra de busca “autismo”, dentre as primeiras vinte ocorrências. Os pesquisadores tiveram o cuidado de escolher comunidades com número de usuários em torno de mil ou mais. A coleta das informações ocorreu entre setembro de 2009 e dezembro de 2010. Uma mesma postagem poderia ser classificada em mais de uma categoria de análise, contabilizando menções, por exemplo, à categoria busca de contato (com outros usuários) e estigma, ao mesmo tempo. As categorias de análise totalizaram setenta temas, o que demonstra dois de nossos interesses: 1) registrar os temas ocorrentes, independente de sua frequência, com o objetivo da análise qualitativa; 2) registrar quaisquer tipos de temas ocorrentes e correlacioná-lo(s) posteriormente com sua frequência de ocorrência, no intuito de constituir dados quantitativos. Não se pode dizer que nossa amostra comunidade reflita a dinâmica geral das discussões sobre autismo na rede social pesquisada. Apenas 122

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podemos sugerir que, a partir das comunidades escolhidas, alguns conteúdos temáticos se destacam, e compreendê-los pode ampliar nossa percepção sobre como o diagnóstico de autismo é recebido, manejado, articulado e construído entre aqueles usuários. Como não se poderia saber de antemão quanto um tema seria frequente, todos os que configuravam uma unidade temática, sob a análise coletiva dos pesquisadores, foram transformados em categorias de análise, ainda que algumas delas sirvam apenas para que se conheçam os assuntos, interesses, usos e trocas ocorridos por meio dessa rede virtual. As categorias envolviam temas como: estigma; explicações para o autismo formuladas pelos usuários (genética, cérebro, metais pesados, vacinas, nutrição, dentre outros); terapias como a Applied Behaviour analysis (ABA), Treatment and Education of Autistic and related Communication handicapped Children (Teacch), Picture Exchange Communication System (PECs), Son-Rise; educação especial; avaliação dos pais em relação ao serviço oferecido em escolas inclusivas; convocação à luta pelos direitos dos autistas.

Resultados

Todas as transcrições de postagens têm os nomes dos usuários alterados, mas são mantidas a ortografia utilizada, no que se refere ao uso da língua portuguesa. Quando o usuário utiliza o recurso das fontes maiúsculas, assinalamos esse uso com a observação em parênteses (maiúscula no original), e mantivemos as letras em minúsculas/ maiúsculas, para adequação ao formato do texto acadêmico. Os erros ortográficos ou de uso formal da língua foram mantidos. 9

Diante das análises realizadas, podemos apontar as tendências dos resultados. Como a quantidade de dados foi grande, apresentaremos aqui algumas das temáticas recorrentes. Uma das principais funções dos fóruns de discussão da rede é a busca de contato para troca de informação sobre a doença e para apoio (emocional, profissional e institucional). A troca de informações sobre a doença envolvia a solicitação de contato com outros participantes para disponibilização de informações sobre diagnóstico, formas de lidar com a pessoa autista, indicação de especialistas a serem procurados. Alguns exemplos são apresentados abaixo. Neles, poderemos encontrar algumas postagens que são respostas às perguntas realizadas em postagens anteriores9. Oi. Tenho 4 filhos e a Maria é autista. Ela tem 12 anos gosta de balançar ouvir música e também gosta de ver eu lavar as louças [...] A escola mais próxima é longe e muito cara e não tenho condições de pagar e muito obrigado pela sua atenção. Precisamos nos ajudar. Nessas comunidades temos famílias de todos os Estados e de vários países. Mts se sentem perdidos e gostariam de ter amigos por perto pra trocar experiências, informações e mesmo pra ter alguém a quem recorrer numa hora de aperto, eu sou uma dessas gostaria de conhecer pessoas que tenham filhos autista e que morem perto de mim, para poder nos ajudar, e às vezes desabafar. E quando eles batem nos pais? (maiúscula no original). Peço aos familiares de autistas um conselho: o que é melhor fazer quando eles querem bater ou morder os pais ou irmãos? [...]. Eu sou irmã de um altista... realmente ele bate nos familiares... não sei se com seu filho dá certo...mas não custa tentar... fale pra ele mesmo que ele não entenda... “olhe no meu olho, isso não pode” [...]

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É frequente a presença de postagens com testemunhos dos pais, que relatam a via crucis percorrida para o diagnóstico, partilham possíveis benefícios obtidos tanto em termos de direitos de saúde quanto no que se refere a tratamentos. Ainda nesse contexto, chama a atenção o fato de que são sobretudo os pais e cuidadores, ou seja, não especialistas, que respondem com mais frequência às postagens, divulgando informações médicas, pesquisas e condutas de tratamento com as quais eles tiveram boas ou más experiências. No processo de troca de informações, os principais personagens são os pais e parentes (irmãos ou irmãs, tios ou tias) de autistas. Profissionais de educação também aparecem como fornecedores de informação sobre o autismo. Algumas postagens podem esclarecer essas observações: Querida tudo bem? olha só eu acho que existem varios graus de autismo, o meu sobrinho por exemplo ja foi descoberto aos 5 anos de idade, ele nunca teve problemas ao se enturmar com outras crianças, muito pelo contrario. [...] Oi. Espero poder te ajudar com o pouco de experiência que tenho com autistas. Ano passado tive um aluno autista, não fala e deficiente visual (ele tinha 14 anos). A mãe faleceu em 2004 e por muitas vezes sussurou “mama” e chorava muito. Isso acaba com a gente, É muito triste vc ver isso e não poder fazer nada. O que fiz com ele foi me sentar no chão, tentar colocá-lo entre minhas pernas e fazer um carinho. Claro, que nas 1ªs vezes ele não aceitou o contato físico, me empurrava, me batia mas aos poucos fui ganhando a confiança dele e consegui fazer com que ele deixasse que o acalmasse através do tato. Foi uma experiência muito enriquecedora. [...]

Frequentemente, observaram-se referências a informações sobre o autismo em diferentes mídias, como: matérias impressas publicadas em revistas, menções à filmografia sobre o autismo, a outras comunidades do orkut sobre o tema, matérias veiculadas na televisão, sites e blogs sobre o assunto, vídeos no site Youtube. Os usuários demonstraram manejar e trocar informações sobre matérias veiculadas em diferentes formas de mídia, como nos casos abaixo: Olá pessoal sou mãe de uma criança Autista João, de 5 anos, coloquei um video dele no You Tube, é muito interessante a forma que ele aprende e observa as coisas, serve muito para vocês pais e amigos de pessoas especiais e observarem que o comportamentos é quase parecido um do outro, e observamos também que não estamos só nesta luta diária. Ola tenho filmes que falam sobre autismo, conta a historia de familias lutando para o desenvolvimento de seus filhos..mto bons!!! quem tiver interesse é só entrar em contato pelo msn xxxx@XXX.com.br. bjs Reportagem. Atenção Assista o Datena amanhã às 07:00h da manhã e depois às 17:00h!!! Reportagem da nossa luta com os autistas e os descasos!!! Bjs (maiúscula no original) Reportagem na tv ABCD. sabado 13 de junho as 10:00 h . (Programa de entrevista com 1h de duração Dia do orgulho autista 18 de junho (maiúscula no original) =. Divulgação da A C O R D E M ! Associação de Apoio aos Autistas Correlatos e Deficientes Mentais. Prestigiem os primeiros frutos de nossa luta ! Vamos lá pessoal. Acordem (maiúscula no original)! Janaína Movimento. TVE 08/06. Discussão sobre autistas (maiúscula no original). Amanhã, dia 08.06.2009, a TVE irá apresentar em seu programa Sem Censura, às 16:00hs, uma discussão sobre autistas. Com vários profissionais do assunto.

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Além disso, é notável que, nas comunidades pesquisadas, não há somente divulgação de informações, mas a própria informação é tratada como produto – cursos, manuais, vídeos didáticos e outros materiais são ali comercializados. Curso de formação no TEACCH. Olá amigos. Entre os meses de setembro e dezembro o (nome de instituição) estará oferecendo o II Curso de Formação de Educadores no Programa Teacch (maiúscula no original). Conferência com Joana da Silva - Mãe equatoriana, radicada nos EUA, que recuperou seus dois filhos com autismo utilizando medicina integrativa e homeopatia. Vejam o site dela: www.oiwejraoidjoa.org

No campo dos direitos de saúde, encontramos convocações pela luta por benefícios de saúde, e a oferta de assessoria para elaboração de processos judiciais junto a órgãos públicos para aquisição de benefícios, além da mobilização para participação de movimentos como o orgulho autista (passeatas, encontros reais em diferentes cidades, e outros). A proposição de projetos de lei de proteção à pessoa autista, ainda que pouco expressiva, também aparece. Essa tendência dos dados analisados está em consonância com a literatura internacional que aponta a organização de pacientes em meio virtuais em prol de seus direitos civis, o que configura uma nova modalidade de ativismo em saúde (Barker, 2008; Epstein, 2008; Gillet, 2003; Chamak, 2008). Vitória! (1/2) Para conhecimento de todos: “Não sei se todos aqui sabem mas, ontem de manhã (02/06), o caso do meu irmão João foi julgado em segunda instância aqui no Tribunal de Justiça de SP e graças a Deus e ao advogado do meu irmão, todos os desembargadores foram unânimes em votar a favor do caso do meu irmão. Desde ontem, o Estado voltou a estar obrigado a pagar o tratamento do meu irmão na clínica. Sei que todos aqui estão passando pelo mesmo “perrengue” e muitos lutam por uma vaga em uma clínica decente para seus filhos, netos e irmãos. [...] Benefícios para portadores de autismo. Marta, resido em XX - S.Paulo, XXX. Lutei durante cinco anos e consegui tratamento especializado para meu filho Mário - 25 anos. Aqui no estado de São Paulo existe uma Ação Civil Pública onde beneficia portadores de Autismo para tratamento em clínica especializada e estava engavetada desde 2001. A Ação foi muito bem elaborada pela promotoria pública e caso o estado não cumpra, paga multa diária altíssima. Como no meu município e toda região não existe tratamento especializado gratuito, o estado está custeando todo o tratamento. Acho muito importante que as promotorias lutem pelos direitos de nossos filhos. Se precisar de algo, me escreva. Estou à disposição para ajudar no que for necessário. Um abraço. Ação na justiça para tratamento de autista. Marta tenho um filho autista de 13 anos, que está em uma escola especial, mas não é especializada em autistas [...] eu gostaria de saber como você entrou com esta ação para o governo bancar um tratamento especializado para seu filho, moro no rj e sinto que meu filho está precisando muito de ajuda, por favor me oriente, muito obrigada, um grande abraço, Miriam. Dia Mundial do Autismo. Dia 2 de Abril é o Dia Mundial da Conscientização do autismo (maiúscula no original) Vamos fazer barulho!!!!!!!! A ADEFA – Associação em defesa do autista (maiúscula no original) - junto com o apoio de outras organizações, estará promovendo um encontro com passeata na Praça XV, RJ - em frente as barcas às 10:00hs. Leve toda a família, amigos, avós, titios, padrinhos, terapeutas... Vamos nos mobilizar e chamar atenção para nossas crianças! Vista-se de branco! Vista uma camisa com foto do seu filho! Vista uma camisa sobre autismo, ou da sua ONG, ou da sua instituição! Movimente-

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se!! Se quiser levar faixas, cartazes, balões, fantasias, materiais... Essa é a hora! Espero por vcs lá!!” Deverá ser um grd evento! Conseguimos entrar no site do Autism Speak , na parte onde os países divulgam seus eventos: Brasil está lá (maiúscula no original) !!! http:// www.worldautismawarenessday.org/site/c.egLMI2ODKpF/b.3917085/k.8FDB/ Event_Schedule.htm * Conseguimos um avião para rodar o Rio de Janeiro com uma faixa enorme escrito: Autismo é tratável!!* [Estamos quase conseguindo uma autorização para colocar uma faixa de 20 metros no Cristo Redentor: escrito Tb: Autismo é tratável! * Na passeata estamos levando mais de 1000 balões para serem soltos nos três poderes: legislativos, judiciário e executivo – e em cada conjunto de balões estará levando um cartaz: com várias frases (maiúscula no original)

No campo das terapêuticas ligadas ao autismo, observamos a menção a métodos diversos, como o método TEACCH, Son-Rise, PECs, ABA, integração sensorial. Em menor frequência, aparecem menções a terapêuticas tradicionalmente ligadas aos campos dos transtornos psicológicos, como a psicanálise e a psicologia cognitivo-comportamental. Gostaria muito de saber desse novo método ABA. Meu sobrinho tem 5 anos e também não fala.... me ajude por favor. (maiúscula no original) Programa Son-rise (maiúscula no original). Alguém já participou efetivamente deste programa?? Como aplicador, paciente ou pai?? O que vcs podem me dizer??? é efetivo? TEACCH. Oi, Ana ... Li e respeito muito sua opinião, pois acredito que o método TEACCH tal qual como foi concebido e que ainda por muitas instituições é trabalhado deste modo, torna realmente os educandos uns legitimos robôs, pois tem caráter e segue a linha comportamental. A ideia de que o método teacch robotiza é tão equivocada quanto a ideia de que o autista vive em seu próprio mundo. Quem já não ouviu que o autista é aquele que vive em uma redoma de vidro? Ou que todo autista é aquele que se balança de um lado para o outro? Cognitivo Comportamental X Psicanálise. Gostaria de saber a opinião dos participantes desta comunidade sobre estas abordagens. Vai de acordo com o indivíduo (adaptação)? Alguém conhece alguma pesquisa/ estatística que aponte para algum caminho com maior sucesso?

A análise das postagens nos permitiu inferir uma postura bastante pragmática por partes dos usuários – que, em sua imensa maioria, é composta por pais ou cuidadores: as terapias mais endossadas são aquelas que funcionam com resultados mais imediatos e mais relacionados ao ganho de autonomia (ainda que mínimo) por parte do paciente. Uma terapia que funciona, ao menos no contexto pesquisado, é aquela que amplia o estado de bem-estar físico e comportamental dos portadores, e sua autonomia possível. No que se refere ao tema das explicações da doença, podemos destacar dois eixos de problematização notáveis nos dados: um deles é o debate se o autismo é curável/tratável ou não; o outro é a discussão em torno de possíveis agentes causadores, como: as vacinas, a imunidade, a ingestão de metais pesados. Esses dois eixos que perpassam o debate acerca das possíveis causas do autismo aparecem nos exemplos a seguir:

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vacina x autismo. artigo no Jornal do Brasil de hoje relacionando mercurio contido nas vacinas brasileiras e autismo....http://jbonline.terra.com.br/extra/2008/07/12/ e120714821.html Realmente para o Autismo ainda não existe uma causa específica, há muitos estudos científicos sobre suas causas porém nada comprovado. A única coisa q já foi comprovada é uma pequena “lesão” no cerebelo da criança. Algumas linhas psicológicas como a Psicanálise acreditam q uma das causas é uma falta de desejo pela criança já na barriga e problemas familiares, porém isso apenas é uma das tantas suposições q ouvimos por aí...até pq, se pararmos para pensar, há mtttsss crianças q foram super desejadas, bem tratadas e há outras q não foram desejadas, não vivem numa estrutura saudável, como por ex. crianças q nascerem por um “acidente”, q sofreram tentativas de aborto, vivem na rua....e em nenhum dos dois casos se apresentam com autismo....logo eu tbm não creio nessa divagação. [...] Autismo é tratável (negrito no original). Queridas, muito já esta sendo comprovado sim, como origem do autismo, aqui no Brasil a gente ainda comunga uma escola atrasada, que ensina nas faculdades de psicologia a teoria psicótica de que as mães tem mal maternagem. Pura bobagem, mas que sustenta muito psicanalista...rsrsrsr. Temos já, achados de marcadores genéticos de mutações bem definidas, ligação intestinal (nódulos linf Dr.Wakefield), todos os médicos DAN do mundo sabem que a ligação é do sistema imunológico, com marcadores genéticos, mas com desencadeador ambiental. Vacinas com thimerosal no 3 mundo....[...]. Autismo é tratável sim. Beijos Mariana Ana, desculpe o atraso em te responder, mas vc precisa saber urgentemente o que esta acontecendo em todo mundo. Só agora li sua msg que o autismo não tem cura e que os tratamentos biológicos não são necessários. Vc esta enganada e eu peço até licença pra te falar isso. [...] vc esta redondamente enganada sobre cura e sobre tratamentos biomedicos. Se vcs fizerem uma pesquisa vão encontrar muitos autistas recuperados, principalmente fora do Brasil. Vc conhece o Sonrise? Usamos este método que é maravilhoso além dos tratamentos biomédicos.

Ainda nesse contexto de debate sobre as possíveis causas do autismo e seu caráter tratável ou não, destaca-se o acesso dos pais a informações supostamente relacionadas a pesquisas científicas sobre o autismo. A rede social se transforma em um meio de difusão dos “achados da ciência”. É reconhecido como medicamente tratável. Notícia quentíssima: A Escola Americana de Medicina Genética - ACMG - estabeleceu procedimentos de práticas clínicas, a serem seguidas por geneticistas clínicos, para determinar a etiologia dos casos de ASD tanto para tratamento quanto para diagnóstico. Hj já existem bio-marcadores seguros, rotineiros e eficazes para se tratar o autismo! http://www.xxxx Estudo indica que crianças autistas poderiam aprender através de estereótipos . [...] “Um dos principais problemas das crianças autistas é que são incapazes de entender por que as outras pessoas fazem determinadas coisas: quais são suas motivações ou o que estão pensando ou sentindo”, disse a professora Uta Frith, do University College London (UCL), que desenvolveu a pesquisa. [...] Descoberta enzima que pode combater o autismo. Cientistas americanos conseguiram reverter os sintomas de atraso mental e de autismo em cobaias inibindo uma enzima que afeta as conexões entre as células cerebrais. Em uma série de experiências, os pesquisadores do Massachussets Institute of Technology (MIT) demonstraram que os danos cerebrais da síndrome X-Frágil poderiam ser revertidos inibindo-se uma enzima-chave do cérebro

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chamada PAK, segundo estudo publicado nesta quarta-feira na revista da Academia Nacional de Ciências (PNAS).

Ao mesmo tempo, como um campo aberto às diversas opiniões dos usuários interessados no debate, também se encontram exemplos de contestação dos achados científicos divulgados naquelas comunidades. Os conteúdos das postagens também apontam dúvidas em relação a esses achados. Será? (maiúscula no original) Eu li essa reportagem... e tb achei interessante, apesar de ter uma abordagem unicamente psicofarmacológica, só que uma coisa me chamou muito a atenção... os testes que eles fizeram foi com ratos e até que ponto o psiquismo dos ratos tem relação com o nosso? E qual o critério que eles utilizaram pra diagnosticar autismo em ratos?

Discussão dos dados O orkut se configurou, no caso analisado, como uma estratégia utilizada por pais e/ou cuidadores para dissolver dúvidas e formular hipóteses sobre seus parentes autistas. É interessante notar que, ainda que os usuários tenham consultado especialistas, eles procuram a rede para contato com outras pessoas que partilham a experiência de ser pai ou cuidador de um indivíduo com autismo, o que nos demonstra que o que querem ali não são dados médicos, mas acesso a fontes que lhe ofereçam outro tipo de informação: aquelas que só os que comungam a experiência de ter um parente autista podem dar e compreender. A internet e as práticas nessa rede social parecem criar uma forma própria de relação com a medicina, na qual, ao mesmo tempo em que há respeito e interesse pelas asserções científicas sobre o autismo, há uma preponderância dos temas relativos à experiência pessoal com a doença. As comunidades estão cheias de membros leigos, são geridas sem a hierarquia dos que dominam conhecimentos médicos, mas com outras modalidades hierárquicas, como os velhos membros, ou dos membros mais presentes (aqueles que inserem postagens com maior frequência). Em geral, os que se destacam são os que mais possuem experiência sobre o assunto, e que podem orientar pais mais inexperientes. Alguns pontos que merecem destaque sobre a dinâmica dessas comunidades analisadas: 1) a ausência de uma figura de autoridade médica permite a criação de uma autoridade baseada na experiência. Vemos surgir, entre as postagens, uma figura híbrida, que é a do leigo-especialista – indivíduo que, embora não pertença ao campo da saúde, se encontra tão envolvido com a doença que é capaz de manejar o vocabulário médico, questionar, debater e dialogar com o saber médico10; 2) o conhecimento experienciado e partilhado torna-se uma fonte para a construção de teorias próprias sobre a doença e seus tratamentos mais adequados. Essas teorias e tratamentos, mais do que uma subserviência às possíveis verdades científicas em voga, são aqueles que melhor respondem às preocupações diárias, experiências e visões de mundo daqueles que lidam diretamente com a doença; 3) o poder de ação no grupo pode desembocar em atividades fora dos limites virtuais, como é o caso da convocação para passeatas e para adesão e participação de movimentos em prol do orgulho autista e dos benefícios legais que protegem esses indivíduos. Essas são apenas tendências para aonde apontam os dados, sendo importante lembrar que esse é um campo de investigação ainda inicial no Brasil, o que revela 128

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A esse respeito, dados internacionais corroboram essa tendência encontrada nos dados analisados (Barker, 2008; Bromm, Tovey, 2008; Fox et al., 2005a; Gillet, 2003; Blumenthal, 2002; Hardey, 1999).

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artigos

a necessidade de mais pesquisas que possam contribuir para o conhecimento do papel da internet, por meio específico das redes sociais virtuais: na formação da opinião pública sobre o autismo, na troca de informações sobre a doença, no intercâmbio entre pais e cuidadores em âmbito nacional e internacional, sobre os movimentos de ativismo em andamento e, sobretudo, no que tange às novas formas de relação entre o paciente e/ou seu cuidador e responsável com os profissionais da área da saúde.

Conclusões Muitas questões são derivadas da análise dessa parcela da opinião pública sobre o autismo no orkut, e mais do que respostas, nos conduzem a perguntas: que desafios esses atores colocam às autoridades de especialistas, e que tipo de alianças com os profissionais eles constroem? Que tipos de políticas do corpo esses grupos colocam em prática e como seus corpos são transformados como resultado disso? Quando o ativismo em saúde resulta em uma extensão da compreensão medicalizada da doença e quando ele contesta esses processos de medicalização? Como os grupos de pacientes e as instituições biomédicas intervêm nas relações sociais virtuais, tendo efeitos tanto sobre o mercado quanto sobre o Estado? Que concepções de ciência médica esses grupos de pacientes promovem e contestam, e quais visões eles põem em prática? O que se destaca é uma situação paradoxal no que se refere ao papel da medicina, especificamente: a necessidade de desvendar e tratar a doença conduz a uma vontade de saber e divulgar achados recentes da ciência, e, por isso, há um forte apelo à autoridade médica. Ao mesmo tempo, diante da impossibilidade de chegar a ela – o que é o atual estado da arte a respeito do autismo – a doença passa a não ser decidida somente na esfera da ciência, passando, com isso, a ser alvo de discussão pública, envolvendo ativistas (pais e cuidadores de pacientes autistas), advogados, redes sociais virtuais. Temos aqui um paradoxo que atinge os portadores e familiares de doenças controversas: ao mesmo tempo em que, na biomedicina, é depositada a esperança de que se encontre a suposta verdade da doença, ela passa a não ser o lugar exclusivo onde essa veracidade é negociada, abrindo espaço para a legitimidade do conhecimento baseado na experiência do paciente e de seus cuidadores (Broom, 2005; Hardey, 1999). Os resultados dessa investigação são um exemplo particular de um movimento mais geral, indicativo de novas formas de organização e novos objetos de luta política dos cidadãos, reunidos em função de características físicas e/ou mentais. O crescimento dos grupos de pacientes que se reúnem em torno de uma doença ou característica corporal tem sido documentado nos estudos sociológicos recentes, especialmente aqueles dedicados a compreender movimentos sociais no campo da saúde (Landzelius, 2006; Novas, 2006; Ehrenberg, 2004). Coletividades organizadas em torno de classificações biomédicas ocupam, cada vez mais, espaço real e virtual, podendo reivindicar uma influência maior na tomada de decisões sobre terapias apropriadas para as doenças, a obtenção de fundos para a pesquisa, ou, ainda, a contestação do estatuto nosológico de doenças. Nos grupos aqui analisados, os indivíduos estão continuamente procurando explicações para suas doenças, questionando e/ou aderindo a resultados de pesquisas científicas, e aos argumentos de autoridade por elas oferecidos. Ao mesmo tempo, eles contestam informações médicas e legitimam sua própria vivência, além de ampliarem a capacidade de lidar com seus parentes acometidos pela doença. Observamos, com isso, que se tratam se grupos de biossociabilidade, organizados em torno de características biológicas e doenças específicas, como assinalou o antropólogo americano Paul Rabinow (1996). Como se pode observar a partir dos resultados debatidos – que incluem, mas certamente não se restringem ao caso específico do autismo – as comunidades on line não são produtos passivos na internet, mas exercem posição ativa na construção de diagnósticos de doenças, bem como no modo como essas condições são experienciadas e compreendidas socialmente.

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Colaboradores Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli participaram igualmente de todas as etapas da pesquisa, bem como da supervisão dos pesquisadores que auxiliaram nos processos de coleta, tabulação dos dados, reformulação dos instrumentos-piloto, análise dos dados e confecção do manuscrito. Lilian Meierhoffer, Celita Almeida e Clarissa Almeida participaram do processo de coleta de dados, da confecção e das reformulações dos instrumentos utilizados. Bárbara Costa, Beatriz Chagas e Clara Feldman participaram do processo de conferência dos dados coletados e de sua tabulação. Referências ARIEL, C.N.; NASEEF, R.A. (Orgs.). Voices from the spectrum: parents, grandparents, siblings, people with autism, and professionals share their wisdom. London: Jessica Kingsley, 2006. BAGATELL, N. Orchestrating voices: autism, identity and the power of discourse. Disabil. Soc., v.22, n.4, p.413-26, 2007. BAKER, D.L. The politics of neurodiversity: why public policy matters. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2011. BARKER, K. Electronic support groups, patient-consumers, and medicalization: the case of contested illness. J. Health Soc. Behav., v.49, n.1, p.20-36, 2008. BERGER, M.; WAGNER, T.H.; BAKER, L.C. Internet use and stigmatized illness. Soc. Sci. Med., v.61, n.8, p.1821-7, 2005. BIEVER, C. Let’s meet tomorrow in second life. New Sci., v.194, n.2610, p.26-7, 2007. BLUME, H. Autism and the internet, or, it’s the wiring, stupid. 1997. Disponível em: <http://web.mit.edu/comm-forum/papers/blume.html>. Acesso em: 12 jan. de 2012. BLUMENTHAL, D. Doctors in a wired world: can professionalism survive connectivity? Milbank Q., v.80, n.3, p.525-46, 2002. BROOM, A. ‘Medical specialists’ accounts of the impact of the internet on the doctor/ patient relationship. Health, v.9, n.3, p.319-38, 2005. BROOM, A; TOVEY, P. The role of the internet in cancer patients engagement with complementary and alternative treatments. Health, v.12, n.2, p.139-55, 2008. BROWNLOW, C.; O’DELL, L. Constructing an autistic identity: AS voices online. Ment. Retard., v.44, n.5, p.315-21, 2006. CHAMAK, B. Autism and social movements: French parents’ associations and international autistic individuals’ organizations. Sociol. Health Illn., v.30, n.1, p.76-96, 2008. CHAMAK, B. et al. What can we learn about autism from autistic persons? Psychother. Psychosom., v.77, n.5, p.271-9, 2008. CHARLTON, J. Nothing about us without us: disability oppression and empowerment. Berkeley: University of California Press, 2000. CLARKE, J.; VAN AMEROM, G. “Surplus suffering’: differences between organizational understandings of Asperger’s syndrome and those people who claim the ‘disorder’. Disabil. Soc., v.22, n.7, p.761-776, 2007. ______. Asperger’s syndrome: differences between parents’ understanding and those diagnosed. Soc. Work Health Care, v.46, n.3, p.85-106, 2008. COLLINS, H.M.; EVANS, R. The third wave of science studies: studies of expertise and experience. Soc. Stud. Sci., v.32, n.2, p.235-96, 2002.

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ORTEGA, F. et al. La construcción del diagnóstico de autismo en una red social virtual brasileña. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.119-32, jan./mar. 2013. Este artículo presenta resultados de una investigación realizada en una red social virtual brasileña sobre autismo. Fue investigada la opinión pública sobre el autismo por medio de las comunidades dedicadas al asunto. La opinión pública sobre determinada condición médica tiene consecuencias inmediatas sobre el enfermo y las personas implicadas directamente en cuidar de los pacientes que sufren la enfermedad. Los resultados dan informaciones sobre las representaciones de los usuarios, sobre las supuestas causas de la enfermedad, los métodos de tratamiento, las formas de activismo y de búsqueda de derechos de los portadores, y los usos paradójicos del conocimiento médico, al cual se atribuye en algunas ocasiones la posibilidad de desvelar la enfermedad, y en otras es objeto de resistencia de padres y cuidadores con base en su experiencia cotidiana con los autistas.

Palabras clave: Transtorno Autístico. Opinión pública. Red social. Trastornos psiquiátricos. Recebido em 16/05/12. Aprovado em 16/10/12.

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artigos

Adolescentes como sujeitos de pesquisa: a utilização do genograma como apoio para a história de vida*

Mariana Gomes Cardim1 Martha Cristina Nunes Moreira2

CARDIM, M.G.; MOREIRA, M.C.N. Adolescents as research subjects: use of genograms as support for life history. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.133-43, jan./mar. 2013. Genograms consist of graphical representation of consanguineous families, kinship and/or affective relationships, and provide information on various dimensions of family dynamics. The empirical basis of this paper was reflection about the background of preparation, use and preliminary analysis of the process of using genograms as a research development technique. Thus, the design of this study favored the perspective of thematic histories of the lives of 14 adolescents who were living with HIV/AIDS due to vertical transmission. Genograms were considered to be an important resource for initially approaching the adolescents, through facilitating a closer and more relaxed relationship between the researcher and the subject. They were also considered to be suitable for data gathering, as investigative instruments. Moreover, they were seen to be an important tool for enabling the researcher to understand the life histories reported by the adolescents.

Keywords: Genogram. Adolescents. Life history

O genograma consiste na representação gráfica da família consanguínea, de parentesco e/ou afetividade, trazendo informações sobre várias dimensões da dinâmica familiar. O presente artigo tem como base empírica a reflexão sobre os bastidores da elaboração, utilização e análise preliminar do processo de utilização do genograma como técnica no desenvolvimento de uma pesquisa cujo desenho privilegia a perspectiva da história de vida temática, com 14 adolescentes que vivem com HIV/Aids por transmissão vertical. O genograma foi considerado um importante recurso para a abordagem inicial do adolescente, facilitando a aproximação e descontraindo a relação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa; mostrou-se adequado para a apreensão de dados, como um instrumento de pesquisa; e revelou-se, ainda, uma importante ferramenta para o pesquisador entender a história de vida contada pelos adolescentes.

Palavras-chave: Genograma. Adolescentes. História de vida.

Elaborado com base em Cardim (2012); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). 1 Serviço de Doenças Infecciosas em Pediatria, IFF, Fiocruz. Av. Embaixador Abelardo Bueno, 2510, bloco 1, apto. 1508, Barra da Tijuca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.775-040. maricardim@gmail.com 2 Programa Saúde & Brincar, Departamento de Pediatria, IFF, Fiocruz. *

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ADOLESCENTES COMO SUJEITOS DE PESQUISA: ...

Introdução Investigar o protagonismo de sujeitos cuja autonomia encontra-se referida aos adultos, no caso crianças e adolescentes, significa estudar suas contribuições como agentes transformadores da cultura, e não somente resultados de processos de socialização. Essa afirmação é ponto de partida de uma série de estudos que investem na revisão crítica sobre a representação cultural da posição ocupada por esse segmento como sujeitos passivos frente às normas e instituições (Delgado, Muller, 2005; Mollo-Bouvier, 2005; Plaisance, 2004; Castro, 2001; Montandon, 2001; Sirota, 2001; Groppo, 2000; Mayall, 1998; Pais, 1990). Nesse argumento vale reafirmar a diferença entre realizar estudos sobre as crianças e adolescentes ou com as crianças e adolescentes (Moreira, Macedo, 2009), assumindo, inclusive, as interfaces éticas (Guariglia, Bento, Hardy, 2006) no reconhecimento de uma autonomia que aqui denominamos gerenciada, porque é submetida aos cuidadores responsáveis. Estima-se que quatrocentas e trinta mil novas infecções pelo HIV ocorreram entre crianças menores de 15 anos de idade em 2008. Acredita-se que a maioria desses novos casos seja resultado de transmissão vertical. Porém, este número teve redução de, aproximadamente, 18% em comparação com o ano de 2001 (WHO, 2009). No Brasil, estimou-se, em 2004, que 12.456 recém-nascidos sejam expostos ao HIV anualmente, sendo a taxa estimada de transmissão vertical do HIV de 6,8% (Brasil, 2010). Apesar dos grandes progressos alcançados na prevenção de novas infecções pelo HIV e na redução do número anual de óbitos relacionados à Aids, o número de pessoas que vivem com HIV continua a aumentar. Doenças relacionadas à Aids continuam sendo uma das principais causas de morte no mundo e são projetadas para continuar como uma causa significativa global de mortalidade prematura nas próximas décadas. Diante disso, a Organização Mundial de Saúde continua a considerar a Aids como prioridade de saúde global (WHO, 2009). Os adolescentes que vivem com o HIV/Aids constituem uma população heterogênea no que se refere à forma e a idade em que ocorreu a transmissão (vertical ou horizontal), com consequências diferentes para suas condições clínicas, imunológicas, psicossociais, culturais e histórico de tratamento (Brasil, 2009). Dado isso, faz-se necessário assumir, nas transformações no perfil de morbimortalidade por HIV/Aids, a realidade de uma doença que se revela crônica. De crianças que, tendo nascido com HIV, podem ou não desenvolver a doença, e, por isso mesmo, vivem e convivem com rotinas de medicação, tratamento e visitas frequentes às instituições de saúde, chegando à adolescência e tendo que gerenciar revelações de diagnóstico, rotinas e estigmas / marcas simbólicas da doença (Moreira, Cunha, 2003). Nesse sentido, considerando que a geração de crianças que nasceram e vivem com o HIV/Aids compõe hoje um contingente importante de adolescentes que, um dia, chegarão à idade adulta, vale acessar suas experiências, desvelando seus aprendizados, dificuldades, descobertas e histórias que parecem atravessadas pela condição de gerenciamento. Esse gerenciamento qualifica sua atitude frente a sua história, marcada por: condições de segredo, revelação, mediação de sua autonomia na interface com os estigmas da doença. O presente artigo tem como base empírica a reflexão sobre os bastidores da elaboração, utilização e análise preliminar do genograma em uma pesquisa, ainda em curso, com adolescentes que vivem com HIV/Aids por transmissão vertical, cujo desenho privilegia a perspectiva da história de vida temática, com base teórico-analítica assentada no interacionismo simbólico (Simmel, 2006; Goffman, 1988). A pesquisa foi aprovada pelo CEP/IFF/Fiocruz e obedeceu aos princípios de voluntariedade, confidencialidade e anonimato. E ainda, contou com devolutivas parciais para os sujeitos sobre possíveis apoios que se fizessem necessários para seu tratamento de saúde junto à instituição, sendo compartilhados com os sujeitos logo após o fim das entrevistas, e informados às equipes para garantir o direito à saúde.

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CARDIM, M.G.; MOREIRA, M.C.N.

artigos

Os bastidores da pesquisa com adolescentes que vivem com HIV/Aids por transmissão vertical: teoria e instrumentos Tendo como guia a necessidade de acessar o conhecimento e a história de adolescentes que vivem com HIV/Aids, assumimos como condição ter esse grupo como sujeitos de pesquisa. Ao mesmo tempo, reconhecendo que suas histórias se construíram na interface com as histórias de seus responsáveis, considerados participantes ativos no cuidado a esta clientela, os incluímos como sujeitos também. A coleta de dados se deu por meio da técnica de entrevista de História de Vida, assumindo como foco o tratamento de saúde e seu gerenciamento pelo adolescente e seu cuidador, valorizando personagens e lugares que compõem o cenário de vida de uma pessoa. E, nesse desenho, torna-se possível acessar a compreensão e interpretação das variáveis que influenciam e/ou determinam a construção de determinado itinerário terapêutico pelos adolescentes que vivem com HIV/Aids por transmissão vertical. Reunindo presente, passado e possíveis projeções de futuro, o sujeito reconstrói sua experiência pessoal associada ao contexto dos significados que ele desvela. Segundo Minayo (2010), o recurso à história de vida revela-se um poderoso instrumento para a descoberta, a exploração e a avaliação de trajetórias temporais. Quanto ao significado do termo história de vida, a partir do vocábulo francês “historie”, a língua inglesa dispõe de duas palavras para a tradução – story e history. Segundo Bertaux apud Spindola e Santos (2003), em 1970, o sociólogo americano Denzin propôs a distinção das terminologias life story e life history. Para o pesquisador, life history (ou estudo clínico) compreende o estudo aprofundado da vida de indivíduos ou grupos. Inclui, além da própria narrativa de vida, todos os documentos que possam ser consultados e/ou depoimentos de outras pessoas para comprovação da veracidade do que foi narrado pelo sujeito do estudo. Já a life story (ou narrativas de vida) considera o relato de vida da pessoa, da maneira em que ela vivenciou. Nesse caso, a autenticidade dos fatos não é confirmada pelo pesquisador, pois o essencial é o ponto de vista da pessoa que está narrando. Assim, diante dos adolescentes e de seus cuidadores, valorizamos sua life story compreendendo que, na trajetória de gerenciamento da doença, identificamos, inicialmente, como protagonista da trajetória, o responsável e, posteriormente, o adolescente. Importante destacar que, na área da pesquisa em saúde, a história de vida tem sido trabalhada de maneira mais restrita a um evento ou época da vida, sendo, portanto, denominada de história de vida focal (Bellato, Araujo, Castro; 2008). Diante disso, adotamos este termo por ser pertinente ao nosso propósito, qual seja o de enfocar, através das narrativas, a experiência de adoecimento, o manejo e o impacto da enfermidade e a busca por cuidados às necessidades de saúde. No entanto, a abordagem da pesquisa teve como prerrogativa entrevistar adolescentes separados de suas mães, o que transcorreu sem problemas, com concordância de ambas as partes. Vale ressaltar que, para uma das adolescentes entrevistadas, esse momento separado da mãe foi uma novidade na relação que essa última tinha estabelecido durante a história de tratamento da filha na instituição cenário de pesquisa. Esse retorno foi dado pela equipe logo após o encerramento do processo de entrevista com as duas. Ao aceitarem participar, foram orientados sobre o tema, o objeto, os objetivos da pesquisa, e foi apresentado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para os responsáveis dos adolescentes que compuseram a população do estudo; e, para os adolescentes, elaboramos um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, com vistas a valorizar o adolescente como sujeito de pesquisa. Tal esforço busca demarcar objetivamente as afirmações sobre a particularidade e os desafios de se considerar adolescentes como sujeitos de pesquisa, atores participantes de sua história, e não meros assistentes de um processo (Mello, Moreira, 2010; Guariglia, Bento, Hardy, 2006). Outra base importante, no processo de elaborar o projeto de pesquisa e no seu processo de entrada em campo, foi refletir sobre instrumentos adequados e verdadeiramente adaptados para o respeito à condição de adolescer e adoecer com HIV/Aids. Ou seja, inspirados pela discussão de Simmel (2006) sobre a dimensão lúdica da vida, procuramos assumir que a abordagem dos adolescentes valorizava a experiência deles, e essa era significativa e fundamental, digna de ser acessada e analisada. Assim, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.133-43, jan./mar. 2013

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precisaríamos conquistá-los para o encontro de pesquisa. Daí assumirmos a utilização de uma conversa mediada e antecedida pelo desenho de sua rede familiar de referência, via o recurso ao genograma. O genograma consiste na representação gráfica – através de símbolos e códigos padronizados – da família consanguínea e/ou de parentesco e/ou afetividade, de modo a compreender sua composição transgeracional, a qualidade de seus vínculos e seus núcleos cuidadores, evidenciando as redes para o cuidado em saúde tecidas por pessoas e famílias, de modo a dar-lhes sustentação e apoio na experiência de adoecimento e cuidado (Costa et al., 2009). Esta simbologia foi padronizada por um comitê organizado no início da década de 1980, o Grupo Norte-Americano de Pesquisa em Atenção Primária (North American Primary Care Research Group), que definiu os símbolos práticos a serem utilizados no genograma. Assim, os elementos da família são representados por um quadrado, para as pessoas do sexo masculino, ou por um círculo, para as pessoas do sexo feminino. Os casais são ligados por linha horizontal e, sobre esta, as datas do casamento e, se for o caso, da separação e divórcio, conforme as informações colhidas. Todas as datas de eventos relevantes são registradas para que sejam estabelecidas correlações contextuais na análise posterior. As mortes, doenças e transtornos dos indivíduos são assinalados no próprio genograma, facilitando sua imediata identificação (Muniz, Eisenstein, 2009). Assim, apesar de similar à árvore genealógica, esta ferramenta vai além da representação visual da origem dos indivíduos, uma vez que traz informações sobre dimensões da dinâmica familiar, como: processos de comunicação, relações estabelecidas, equilíbrio/desequilíbrio familiar, eventos importantes na história do indivíduo (como separações, mortes e nascimentos) e laços funcionais (Nascimento, Rocha, Hayes, 2005). O genograma, juntamente com o ecomapa, tem sido valorizado como importante instrumento na compreensão dos processos familiares e no reconhecimento do nível de relação estabelecida com os recursos disponíveis na comunidade. Nessa direção, tem sido muito utilizado na terapia familiar e em estudos no âmbito: da saúde da família, de cuidados com pessoas com doenças crônicas e mentais, idosos, de redes de apoio e de compreensão do contexto familiar no processo saúde e doença (Charepe et al., 2011; Pereira et al., 2009; Bellato, Araújo, Castro, 2008; Pavarine et al., 2008; Nascimento, Rocha, Hayes, 2005; Simpionato, Correia, Rocha, 2005). Para os profissionais de saúde, essa ferramenta tem se tornado uma grande aliada do cuidado, uma vez que o conhecimento do funcionamento da família, de suas características, do contexto social, cultural e econômico no qual está inserida, é de fundamental importância para a realização do planejamento das intervenções de saúde. Este recurso foi utilizado, ainda, como um elemento facilitador para a construção da história com os adolescentes, uma vez que o processo de construção conjunta do genograma traz uma tônica mais informal e descontraída à coleta de dados, facilitando as relações entre o profissional e o adolescente (Nascimento, Rocha, Hayes, 2005). Sua diferença com relação a outras técnicas de coleta de dados de pesquisa, tais como entrevistas, observações, questionários, se situa no âmbito da capacidade de promover uma interação que retoma o lugar do sujeito na sua família, ou, até mesmo, no âmbito das relações que ele atribui como familiares, além de participar ativamente no processo. Ou seja, o genograma, adaptado como técnica de pesquisa, pode contribuir para o estudo do sujeito em relação, e, ainda, para o encontro lúdico – linguagem preferencial de comunicação da criança e do jovem (Santa Rosa, 1993) – já que, no caso da presente pesquisa, buscaram-se personagens na forma de desenho, que contribuíam para um ambiente de prazer e envolvimento.

A técnica do genograma: o caminho percorrido O genograma foi utilizado como um dos instrumentos de coleta de dados durante o desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa de tese de doutorado, que tinha como objetivo a compreensão da experiência de adoecimento e cuidado vivenciada por adolescentes com HIV/Aids por

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transmissão vertical e sua família, trazendo à tona os seus itinerários terapêuticos, os fatores que dificultam e as estratégias que auxiliam o seguimento da terapia. A instituição selecionada para a realização do estudo foi o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), especificamente, no ambulatório de Doenças Infecciosas Pediátricas (DIPe), onde as famílias foram abordadas para a participação no estudo. Este ambulatório tem como foco principal a atenção às crianças e adolescentes que vivem com HIV/ Aids e bebês expostos ao vírus HIV durante a gestação. Os sujeitos do estudo foram adolescentes que vivem com HIV/Aids após transmissão vertical e são acompanhados no ambulatório de DIPe do IFF e seus responsáveis. O critério etário para a participação do adolescente no estudo foi de 12 a 18 anos, período de vida considerado como adolescência pelo ECA. Os critérios de exclusão para participação foram: Adolescentes que ainda não conheciam o seu diagnóstico; Adolescentes que se encontravam em condições de debilidade física e emocional; Adolescentes com agravos neurológicos, que os impediam de expressar suas opiniões; Adolescentes que nunca fizeram uso de medicação antirretroviral; e aqueles em que o próprio e/ou seu responsável não concordassem com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A amostra foi do tipo intencional por conveniência. Convidavam-se, para participar, os adolescentes e seus responsáveis que preenchiam os critérios de inclusão/exclusão e que estavam disponíveis na sala de espera do Ambulatório de DIPe, aguardando consulta de rotina, levando-os para uma sala reservada do próprio ambulatório. Os adolescentes e seus responsáveis foram convidados a participar da pesquisa pessoalmente. Foram deixados à vontade em relação a participarem ou não. Foram orientados de que não haveria qualquer repercussão no atendimento, caso não concordassem em participar, e teriam acesso às entrevistas, se assim o desejassem. Também foram esclarecidos sobre a garantia do resguardo de suas identidades, assim como, do direito de retirarem seus consentimentos em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma, conforme descreve a Resolução 196/96. Para viabilizar o aprofundamento do conhecimento da temática em estudo, a partir da ótica de quem vivencia o problema, da subjetividade do indivíduo em condição crônica, ou seja, os adolescentes que vivem com HIV/Aids e seus responsáveis, optamos por utilizar o método de História de Vida, por considerá-lo o mais apropriado para possibilitar a compreensão e interpretação das variáveis que influenciam e/ou determinam a construção de determinado itinerário terapêutico pelos adolescentes que vivem com HIV/Aids por transmissão vertical. É importante destacar que, com o adolescente, a entrevista de história de vida foi antecedida de um instrumento lúdico, que visa construir um genograma através de um desenho da rede de pessoas e /ou instituições de referência para ele (Charepe et al., 2011). Juntamente com a entrevista, foi realizada uma observação de campo, e, através de um caderno/ diário de campo, foram anotadas: todas as observações, as reações não verbais (pausas, gestos, expressões, comportamentos...), os sentimentos aflorados e as reflexões. Esse material é de grande importância tendo em vista que “a entrevista, quando analisada, precisa incorporar o contexto de sua produção e, sempre que possível, ser acompanhada e complementada por informações provenientes de observação” (Minayo, 2010, p. 263). Além disso, esse material foi extremamente importante para o relato de experiência apresentado neste estudo. A coleta de dados ocorreu entre os meses de fevereiro e março de 2012, e participaram deste estudo 14 adolescentes, com seus respectivos responsáveis, sendo sete adolescentes do sexo masculino e sete do sexo feminino. Os encontros foram gravados, desde o momento da construção do genograma com o adolescente até a entrevista de história de vida, por intermédio de gravador digital (MP3 player), em local tranquilo e reservado, onde os depoentes puderam se sentir à vontade para falar. Não houve tempo preestabelecido para a gravação dos depoimentos. Os adolescentes foram identificados de acordo com a ordem das entrevistas, através de números arábicos, garantindo-lhes seu anonimato.

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Resultados e discussão: a experiência em reflexão A construção do genograma era proposta ao adolescente e ofertados os materiais, compostos por: cartolina, cola, canetas e várias gravuras recortadas com personagens femininos e masculinos. O processo de construção era feito em conjunto com o pesquisador, que o auxiliava na confecção e colagem das gravuras (Figura 1).

Figura 1. Genograma adolescente 6

Esse recurso, inclusive na faixa etária dos adolescentes, não era estranho ao seu repertório, sendo comum a fala de que, na escola e nas aulas de biologia, já tinha sido vista a árvore genealógica, que possui uma estrutura parecida com a do genograma. A dinâmica foi vista por todos os entrevistados como uma atividade divertida, estimulante, interativa e ilustrativa. O processo era sempre mediado por muitos risos e descontração, sobretudo no momento da escolha das gravuras que representassem o seu familiar. “Ah, preciso achar a foto de um gordinho pra representar o meu primo. Achei! Hiii, é o Nhonho! Se ele visse isso ia querer me matar. [risos]” (adolescente 04) “Uma gravura pra minha irmã? Ai, que legal”” (adolescente 12)

O genograma, na coleta de dados, transformou-se em uma atividade lúdica. Assim, além de ser fonte de prazer e descoberta para os participantes, constituiu-se, ainda, em elemento facilitador da relação entre o adolescente e o pesquisador, criando um clima informal e descontraído para a coleta de dados. O elemento lúdico é um facilitador das relações quando os sujeitos em foco são as crianças e os adolescentes, além de possibilitar a eles uma reconstrução simbólica da realidade de uma forma que lhes agrade (Moreira, Cunha, 2003). O brincar, através de sua ação historiciante, permite que a criança e o adolescente deem sentidos as suas experiências e reorganizem a vivência de adoecimento (Santa Rosa, 1993). 138

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A realização dessa atividade revelou a percepção de cada adolescente sobre a sua família e os membros que a constituem, acenando para o fato de que não existem modelos nem tipos de famílias preestabelecidos. Nascimento, Rocha e Hayes (2005, p.281) trazem esta questão ao cerne de suas discussões dizendo ser necessário “repensar a família em termos de processo de interações entre pessoas e como elas constroem a noção de família num contexto múltiplo de raça, idade, gênero, preferência sexual, situação socioeconômica, etnicidade, localidade e historicidade”. Com relação a este assunto, vale destacar que alguns dos adolescentes com histórico de adoção não revelaram esta informação durante a construção do genograma, o que pode demonstrar, por hipótese, a preocupação do adolescente com as relações estabelecidas, e não com a genealogia. Uma das adolescentes fez questão de incluir o seu cachorro como membro de família tendo em vista ser “seu grande companheiro”. Os adolescentes que participaram do estudo só revelaram os componentes da família com quem tinham relações estreitas, as pessoas que eram importantes no momento presente. “Eu acho que tem muitas pessoas que participaram da minha vida. Mas, aí eu pus as que eu tenho mais, sei lá, mais afeto. Ou que, talvez, eu deva colocar. Tem pessoas que são importantes, mas não tão quanto. Sabe?” (adolescente 14)

Essa situação era facilmente visualizada quando os mesmos não escolhiam gravuras de personagens para determinados elementos da família. Geralmente, eram pessoas que precisavam ser identificadas por serem pais, por exemplo, de uma pessoa importante para a sua história (Figura 2). Um dos adolescentes, por exemplo, relatou que seu pai possuía nove irmãos, porém, na estrutura de seu genograma, ele identificou somente duas tias. No momento da entrevista de sua mãe, ao observar o “desenho” projetado do seu filho, comentou que aquelas duas tias identificadas eram as suas “tias do coração”.

Figura 2. Genograma adolescente 4

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A condição crônica gera uma mudança nos hábitos e rotina de vida que se estende a todo o universo familiar, impondo modificações nas relações familiares a partir de suas práticas e comportamentos cotidianos. A rotina da família se altera através das constantes visitas ao médico e outros especialistas, medicações e hospitalizações, e acaba atingindo todas as pessoas convivendo com a criança (Castro, Piccinini, 2002). Essa rotina começa a ser tão determinante, tão parte da vida desses indivíduos, que duas adolescentes, por exemplo, identificaram suas médicas no desenho de seus genogramas familiares. No caso específico dos sujeitos desse estudo – adolescentes que vivem com HIV/Aids – foi possível verificar, posteriormente, durante a narrativa de sua história de vida ou de seus responsáveis, que muitos deles identificavam, no genograma, apenas o seu núcleo familiar (pais, irmãos e pessoas que residem na mesma casa) e os outros membros da família que tinham o conhecimento do seu diagnóstico, como se aquela família fosse formada a partir daquele “segredo do diagnóstico”. A Aids logo se tornou um fenômeno público e coletivo, dado o seu caráter epidêmico, contagioso, incurável e mortal. Em sua história, sua disseminação inicial em grupos específicos associou a infecção pelo HIV às condutas desviantes e, por esse motivo, as pessoas que vivem com a doença eram alvo de julgamento moral e reprovável, gerando estigma e preconceito. Apesar da revisão de paradigma com relação ao “grupo de risco” e a melhora na qualidade de vida a partir dos antirretrovirais (Brasil, 2009), o início da história ainda é soberano e, em função dos aspectos metafóricos criados e do preconceito, as pessoas com HIV/Aids vivenciam, ainda, emoções singulares, permeadas por um conjunto de aspectos, como medo, morte, culpa e segredo. O sofrimento, nesse contexto repleto de significados, fragiliza o indivíduo, que vivencia situações de ameaça à sua integridade física, emocional e social (Almeida, Labronici, 2007). Todo esse contexto de estigma interfere diretamente na vida pública e privada da pessoa que vive com HIV/Aids. Nesse sentido, estigma é definido, por Goffman (1988), como um atributo depreciativo, podendo ser entendido como defeito, fraqueza ou desaprovação. Assim, a sociedade desqualifica a pessoa que possui tal atributo, causando uma discrepância entre a identidade social real da pessoa e sua identidade virtual. Deste modo, quando a pessoa que porta o estigma não tem a diferença aparente fisicamente, há a necessidade de manipulação da informação sobre o defeito para que o mesmo não seja descoberto e discriminado. Diante de todo esse contexto histórico e social da doença Aids, os sujeitos tendem a optar pelo ocultamento da sua sorologia na vida pública/social. Nessa direção, todo o processo de adolescer e, consequentemente, todo o itinerário terapêutico do adolescente que vive com HIV/Aids por transmissão vertical é marcado pelo gerenciamento de um segredo. O pacto de silêncio parece ser tão forte que a questão da doença fica velada dentro da própria unidade familiar. Essa situação é tão acentuada que marca, inclusive, a construção dos genogramas familiares, reduzindo-os, muitas vezes, às pessoas mais próximas e que compartilham desse segredo. De acordo com Cruz (2007, p.380), “o peso da Aids é tamanho que por vezes as crianças são impedidas até de dizer a palavra Aids”. Além de ter demonstrado ser um importante instrumento de coleta de dados, a construção do genograma permitiu, para alguns adolescentes, a visualização da sua estrutura familiar, trazendo reflexões sobre as suas relações com aquelas pessoas e reflexões sobre suas experiências de vida. “Eu achei bem interessante. Isso é muito bom pras outras pessoas. Isso é ótimo. Isso é uma coisa que pode fazer com que as pessoas parem pra entender, parem pra visualizar a vida delas e entender”. (adolescente 01)

Uma limitação da construção do genograma apenas com a presença do adolescente como informante refere-se ao fato de não ser possível a construção fidedigna da estrutura familiar, tendo em vista que os mesmos, muitas vezes, não sabem informar idades, número de filhos ou, mesmo, nomes de tios com quem pouco têm contato. Diante disso, essa construção apenas com os adolescentes pode não ser útil em estudos em que essa formação familiar completa seja estritamente necessária.

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Considerações finais O processo de construção do genograma foi encarado como um facilitador entre os adolescentes, que enfatizaram a importância da sua realização antes da entrevista. O caráter lúdico permitiu a participação dos adolescentes de maneira intensa, descontraída, prazerosa e interativa. Dessa forma, foi considerado um importante recurso para a abordagem inicial do adolescente, facilitando a aproximação e resgatando, durante sua aplicação, a possibilidade de estabelecimento de uma relação positiva entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa. O genograma mostrou-se adequado para a apreensão de dados, como um instrumento de pesquisa, já que atingiu os objetivos propostos com a obtenção de resultados satisfatórios de forma prática e relativamente rápida. O processo de produção do genograma já iniciava, pouco a pouco, a história de vida dos sujeitos e, quando a “pergunta gerativa de narrativa” (Flick, 2009) era desvelada, muito já se havia dito sobre o assunto. Nesse sentido, revelou-se, ainda, uma importante ferramenta para o pesquisador entender a história de vida contada pelos adolescentes que vivem com HIV/Aids. Além disso, por se tratarem de pessoas que viviam com uma doença de transmissão vertical, a história da transmissão e as pessoas envolvidas nesse processo eram muito abordadas durante as narrativas, o que facilitava o acompanhamento, do pesquisador, aos dados revelados pelos sujeitos.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALMEIDA, M.R.C.B.; LABRONICI, L.M. A trajetória silenciosa de pessoas portadoras do HIV contada pela história oral. Cienc. Saude Colet., v.12, n.1, p.263-74, 2007. BELLATO, R.; ARAÚJO, L.F.S.; CASTRO, P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; SILVA JUNIOR, A.G.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Atenção básica e integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, IMS/UERJ, Abrasco, 2008. p.167-87. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Boletim epidemiológico Aids-DST. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Recomendações pra terapia antirretroviral em crianças e adolescentes infectados pelo HIV: manual de bolso. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. CARDIM, M.G. Adoecer e adolescer com HIV/Aids: experiências de trajetórias terapêuticas. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro. 2012. CASTRO, E.K.; PICCININI, C.A. Implicações da doença orgânica crônica na infância para as relações familiares: Algumas questões teóricas. Psicol. Reflex. Crit., v.15, n.3, p.625-35, 2002. CASTRO, L.R. Crianças e jovens na construção da cultura. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2001.

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CARDIM, M.G.; MOREIRA, M.C.N. Adolescentes como sujetos de investigación: el uso genograma como soporte para la historia de vida. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.133-43, jan./mar. 2013. El genograma es una descripción gráfica de la familia consanguínea de parentesco, y/o afecto, proporcionando una amplia gama de información acerca de la dinámica familiar. La propuesta de este trabajo es la reflexión sobre el marco de la creación, utilización y el análisis del proceso de utilización del genograma, como un enfoque para el desarrollo de la investigación. El diseño destaca la perspectiva de una historia temática de la vida de 14 adolescentes con la transmisión vertical de la infección por HIV. El genograma fue considerado como un recurso importante para el manejo inicial de los adolescentes, promoviendo una aproximación y una relación agradable entre el investigador y el sujeto de investigacion. El genograma se señaló también como apropriado para la recolección de datos y como una herramienta importante para & entender la historia de vida reportada por los adolescentes.

Palabras clave: Genograma. Adolescentes. Historia de vida. Recebido em 25/05/12. Aprovado em 30/09/12.

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artigos

No rastro do que transtorna o corpo e desregra o comer: os sentidos do descontrole de si e das “compulsões alimentares” *

Mônica de Oliveira Nunes1 Liliane de Jesus Bittencourt2

NUNES, M.O.; BITTENCOURT, L.J. Tracking what troubles the body and upsets eating: the meanings of loss of self-control and “eating compulsions”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.145-57, jan./mar. 2013. We proposed to examine the phenomenon of somatic identities, understood as new modes of perception and new socially established relationships with the body, and with food and eating, including abnormal ways of eating that do not necessarily constitute pathological conditions. We followed a phenomenological and interpretative theoretical perspective, making use of the corporeity concept that was developed by Thomas Csordas based on MerleauPonty’s body perception concepts, and on the socially informed body originating in Bourdieu’s habitus concept. We focused our analysis on the narratives of women who drew up their paths according to corporal turning points, thereby aiming to elucidate corporified sociocultural and affective dynamics, interpreted in relation to ethnic identity, social class and gender. We discuss the paroxysms of modern individualization, in which, through eating compulsions, the individual body takes upon itself the huge task of expressing, giving meaning to and reversing the group’s ills.

Keywords: Corporeity. Somatic identities. Phenomenology. Racial relationships. Eating compulsion.

Propomos examinar o fenômeno das identidades somáticas, entendidas como novas formas de percepção e novas relações socialmente estabelecidas com o corpo, com o comer e a comida, incluindo modos alterados de alimentar-se que não se configuram necessariamente enquanto patologias. Utilizamos uma perspectiva teórica fenomenológica e interpretativa, valendo-nos do conceito de corporeidade, desenvolvido por Thomas Csordas, construído a partir dos conceitos de percepção corporal de Merleau-Ponty e do corpo socialmente informado, advindo do conceito de habitus de Bourdieu. Centramos a análise em narrativas de mulheres que elaboram suas trajetórias a partir de pontos de virada corporal, buscando elucidar dinâmicas socioculturais e afetivas corporeificadas, significadas a partir de pertencimentos étnicos, de classe social e gênero. Discutimos os paroxismos da individualização moderna, onde, por intermédio das compulsões alimentares, o corpo individual toma a si a enorme tarefa de expressar, significar e reverter os males do grupo.

Palavras-chave: Corporeidade. Identidades somáticas. Fenomenologia. Relações raciais. Compulsão alimentar.

* Elaborado com base em Nunes et al. (2006); pesquisa financiada pelo CNPq (Proc. 409718/ 2006-8, edital MCTCNPq/MS-SCTIE-DECIT n.26/2006) e aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Saúde Coletiva. 1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/nº, Campus Universitário do Canela. Salvador, BA, Brasil. 41.10-140. nunesm@ufba.br 2 Área de Saúde Coletiva, Curso de Nutrição, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

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Introdução Nas últimas duas décadas, encontra-se uma literatura grandemente interessada pelas novas modalidades de comportamento alimentar. Normalmente, ela tende a se focalizar em um recorte que aborda quadros patológicos mais graves, como os transtornos do comportamento alimentar – TCA, ou em aspectos mais genéricos que afetam grupos populacionais mais alargados, situados no que tem sido chamado de identidades somáticas (Ortega, 2003). Estas últimas implicam novas relações socialmente estabelecidas com o corpo, mas, também, com o comer e a comida, incluindo modos alterados de alimentar-se, que não se configuram necessariamente enquanto patologias propriamente ditas. O que propomos neste artigo é examinar esses últimos fenômenos, significados pelas pessoas como formas inadequadas de se relacionarem com o comer, em geral associadas a transformações corporais percebidas como indesejadas. Nossa hipótese é de que essas expressões de um comer desequilibrado/desregrado e de um corpo transtornado podem ser formas privilegiadas de manifestar relações social e afetivamente conflitivas com o mundo e com o outro. Nesse sentido, essas manifestações se situam em um continuum com modos normais de reagir àquilo que produz mal-estar, mas, apesar disso, lançam pistas interessantes sobre fenômenos que produzem uma ruptura com formas habituais de agir e de configurar o corpo, e que, por isso, entram no rol dos quadros patológicos. Como exemplo dessa ruptura dentro de um continuum que incorpora comportamentos de controle consciente sobre o corpo pela via alimentar, Espeitx (2002) chama a atenção para o que cunha de restrição alimentar autoinduzida. Para a autora, esta denominação seria mais abrangente já que pressupõe explicações sociais distintas para um fenômeno presente em diversos momentos históricos, destacando, porém, a importância da pressão sociocultural como desencadeadora, que faz com que qualquer predisposição genética, biológica, ou psíquica, de nível individual para o mesmo se converta em “realidade”. Essa pressão estaria fortemente associada, na atualidade, ao modelo estético da magreza, reinterpretado em termos de sucesso profissional, aceitação afetiva e sexual, valorização moral, entre outros. A centralidade do corpo no mundo contemporâneo se reflete em uma literatura abundante que o toma como objeto e que o analisa nas suas transformações na experiência dos sujeitos modernos (Featherstone, 2010; Coelho, Severiano, 2007; Wainwright, Turner, 2003). Autores da tradição foucaultiana apresentam a relação estreita entre a ação do Estado sobre os corpos e a mediação da biomedicina (Kaufert, 2000). Essa relação se alarga pelo intermédio de uma biopolítica que controla as populações, especialmente pela regulação de fenômenos como o nascimento, o adoecimento e a morte (Fassin, 2000). Mais recentemente, autores, como Rabinow (1992), propõem que estamos em uma sociedade pós-disciplinar, onde grupos se organizam a partir de novas identidades e práticas, tendo interiorizado o controle, exercitando o que ele chama de uma biossocialidade. No bojo dessas mudanças, nascidas da interação entre recursos tecnológicos e midiáticos, com forte influência das biotecnologias, surgem as identidades somáticas. Estas viriam manifestar a externalização das subjetividades, a diluição da alma e da introspecção, e a proeminência do corpo como forma de manifestação de si, em uma fusão do self com o corpo (Ortega, 2003). Ora, se essas abordagens iluminam o entendimento dos efeitos do biopoder acerca da normatização da vida e das representações e ações sobre o corpo no mundo contemporâneo, tais como a preocupação excessiva com a alimentação, elas tendem a se tornar muito generalizadoras, deixando de explorar os múltiplos significados que essas experiências corporais podem produzir em diferentes grupos e pessoas. Perguntamo-nos: em que medida esse idioma corporal forte, entre aqueles que o utilizam, não está servindo para comunicar aspectos diferentes da experiência singular e coletiva? Tomando a preocupação com o peso e com o alimentar-se, que particularidades interpretativas esses fenômenos podem nos indicar? Para explorarmos essas questões, de uma perspectiva fenomenológica, orientada pelo conceito de corporeidade presente no trabalho de Thomas Csordas (2008), lançaremos mão de narrativas produzidas por mulheres escolares jovens, situadas a partir de pertencimentos sociais e étnicos distintos, elucidando dinâmicas socioculturais e afetivas corporeificadas, decodificadas a partir da materialidade percebida do corpo e de mudanças da relação com o comer.

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Perspectiva teórico-metodológica O presente artigo é elaborado a partir de dados produzidos no estudo “O padrão de beleza socialmente construído na gênese de transtornos do comportamento alimentar em mulheres negras de Salvador/Bahia”, onde três jovens de escolas de Ensino Médio e nove jovens universitárias foram entrevistadas a partir de um roteiro que explorou as seguintes temáticas: mudanças corporais como marcos em uma história de vida; ideais e cuidados com o corpo; diferenças raciais e a valorização do corpo; situações de discriminação e rejeição, vivências corporais e a cidade de Salvador. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Para analisar as vivências corporais relatadas pelas jovens, o conceito de corporeidade (embodiment) proposto por Csordas (1993) será utilizado, tal como ele o constrói, a partir de seus dois analisadores fundamentais: os conceitos de percepção, na perspectiva de Merleau-Ponty, e de prática, na concepção de Bourdieu. Há, entre esses dois últimos autores, uma convergência na importância que ambos conferem à ruptura com uma perspectiva racionalista na compreensão do corpo, respectivamente desenvolvida a partir da noção de corpo próprio e do conceito de habitus. No entanto, enquanto o primeiro privilegiaria o aspecto pré-lógico e singular da experiência no mundo, o segundo destacaria a característica inconsciente da incorporação do social pelos indivíduos. Para Merleau-Ponty (1994), a compreensão de corporeidade situa-se no colapso empreendido na dualidade objeto-sujeito. Em uma perspectiva gestáltica, o corpo é entendido por esse autor como um cenário (um fundo) em relação com o mundo, e a consciência é o corpo projetando a si próprio no mundo. Diferentemente de outros objetos, a percepção do corpo próprio é contínua, não estando ele diante de nós, mas ao nosso lado e, até certo ponto, confundido com o próprio ser. Essa mesma qualidade justifica o fato de que temos consciência do mundo através dele, sendo o corpo, para este autor, um “pivô do mundo” (Merleau-Ponty, 1994, p.122). A experiência do corpo no mundo se alicerça no fato de que ajo no mundo através do corpo, vivenciando tempo e espaço em uma perspectiva de não-exterioridade: “não estou no espaço e no tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se e os abarca” (Merleau-Ponty, 1994, p.195). Desse modo, a percepção seria um processo encarnado desde o seu começo, o que quer dizer que os objetos não preexistem à mesma, mas ganham existência a partir da intencionalidade que lhes é dirigida e da relação de materialidade que se estabelece entre corpo e objeto. Assim, a percepção é pré-objetiva, no sentido de que ela não começa nos objetos; no entanto, ela não é pré-cultural, sendo precocemente imersa em um mundo de valores e de símbolos. Ainda, as formas de percepção são transformadas histórica e culturalmente, juntamente com os modos de existência (Benjamin 1935 apud Valverde, 2003). O corpo é, desse modo, habitado pelas transformações dos modos de existência, das formas de sociabilidade, dos valores morais e econômicos, das dinâmicas relacionais, dos ethos culturais e das ecologias ambientais. Se podemos tomar como exemplo, no polo situado no extremo do nosso tema de estudo, as percepções patológicas acerca do corpo, veremos que os aspectos do corpo, que são colocados em evidência nos TCA e na obesidade, em contextos culturais e históricos diferentes (Ferreira, Magalhães, 2005), não são os mesmos, ainda que o fenômeno (nesse caso, o comportamento alimentar) possa se apresentar de forma muito semelhante. Estudos mostram que a questão relacionada à fobia do peso, ou ao pavor da gordura, não está presente em todas as culturas como um sintoma relevante. Mesmo nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, faz-se a hipótese de que a centralidade desse aspecto na definição do padrão dos TCA surge no bojo da tensão entre mudanças culturais que apresentam o corpo magro como ideal de beleza e o aumento da prevalência de obesidade nesses países (Hsu, Lee, 1993). Ora, a percepção do corpo próprio é processada na interface dessa tensão que, incorporada, orienta a experiência de quem apresenta elementos de vulnerabilidade na sua história. Em contextos culturais diferentes, outros desafios estão presentes nas significações encontradas, como, por exemplo, uma estratégia de retardar a maturação sexual observada entre mulheres japonesas e, assim, resistir a demandas sociais ligadas à vida adulta (Crisp, 1980). A tensão produzida, no Japão contemporâneo, entre o valor central atribuído ao casamento e à maternidade e as novas expectativas culturais que levam as mulheres a desejarem outros padrões de relação de casal, mais pautados na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.145-57, jan./mar. 2013

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intimidade e na paixão amorosa, tem sido analisada como fundamental no aumento de casos de TCA nesse país (Pike, Borovoy, 2004). Por fim, para amenizar perspectivas alarmistas, Cáceres (2005), estudando 20 jovens catalães e referindo-se, não aos TCA propriamente ditos, mas a dietas alimentares, indica que essas preocupações entre os jovens podem conviver com preocupações com o prazer e com a saúde, e produzir, ao longo do tempo, hábitos alimentares perfeitamente saudáveis. Destaca, no entanto, a diferença de gênero, no que diz respeito à percepção da imagem corporal e aos recursos dietéticos mobilizados para modificá-la, estando os rapazes praticamente imunes a essas preocupações quando comparados às mulheres. A partir dessas diferenças, pode-se pensar que a corporeidade é expressa por “figurações [que] estruturam o imaginário do corpo tanto quanto elas modulam a substância e a espessura de uma interioridade que são a base da constituição de si da identidade” (Durif-Bruckert, 2003, p.73), mas essas articulações entre dados fisiológicos e vividos somatopsíquicos se revelam em um contexto específico de modelos e de linguagens sociais. Em cada contexto social, o corpo é colocado em cena, inscrito em codificações sociais sobre ideais de beleza e sobre imaginários corporais, para enunciar dinâmicas que colocam em jogo relações afetivas, relações de gênero, relações raciais e relações de poder. No entanto, para avançar na compreensão do modo pelo qual os agentes (sujeitos) incorporam o mundo social, a escolha de Bourdieu (2007), na construção do conceito de corporeidade, é decisiva. Nessa perspectiva, o corpo, informado socialmente, é o “princípio gerador e estruturador das práticas e das representações” (Ortiz, 1983, p.61), sendo a consciência a forma do cálculo estratégico articulado a um sistema de potencialidades objetivas, que constitui o habitus. Pelo habitus, se procederia à incorporação de estruturas sociais sob a forma de estruturas de disposições. O eu, que compreende de forma prática o espaço, seria um sistema de disposições que ocupa uma posição e toma posição. Freitas, Minayo e Fontes (2011) se utilizam, inclusive, desse conceito para a proposta de uma abordagem compreensiva no campo mais vasto da antropologia da alimentação, salientando que “os habitus [alimentares] são textualizáveis como inscrições significativas da cultura e podem ser interpretados” (Bourdieu, 2007, p.34). O conceito de corporeidade, assim constituído, permite uma análise das narrativas sobre o corpo em uma perspectiva experiencial que, ao mesmo tempo, desvela os aspectos sociais encarnados nas transformações corporais percebidas e significadas pelas mulheres estudadas. Para produzir as narrativas que estudamos, concebemos uma técnica que julgamos sensível para esse tipo de estudo, estimulando as mulheres a falarem das percepções do corpo a partir do que chamamos de pontos de virada corporais. Esse conceito nasce inspirado pelo texto de Mishler (2002), onde o autor indica que as narrativas não são construções lineares, sendo tecidas a partir de um jogo temporal caracterizado por frequentes flashbacks, sobre os quais os pontos de virada (PV) no curso de uma biografia incidem como elementos decisivos, conduzindo a ressignificações de uma história pessoal. No caso do nosso interesse, sugerimos que a atenção voltada para o corpo é exacerbada em momentos onde há mudanças mais evidentes do mesmo, interferindo na apreensão do ser no mundo. Essas mudanças podem ocorrer em função do ciclo de vida (puberdade, menopausa, velhice, entre outros), alterações fisiopatológicas (disfunções hormonais), ou padrão alimentar (excesso ou redução na ingesta, ritmo modificado do comer, ou pela natureza e qualidade dos alimentos escolhidos). No entanto, percepções corporais também são produzidas a partir de: transformações normativas, mudança de valores, cursos de histórias de vida, alterações sensoriais, ou cultivo de novas sensibilidades. Com isso, afirmamos que percepções de mudanças corporais e de rotinas alimentares são biopsicossocioculturalmente situadas, uma vez que são geradas a partir: da confluência de biologias locais (Lock, 1993), de atribuições de valores a estéticas corporais (ideais de beleza), de formas de relações sociais, afetivas e políticas, de modos de educação da sensibilidade, de experiências do sensível advindas dos usos do corpo, de significados simbólicos e de manuseios econômicos do corpo. Estudar as percepções corporais a partir dos seus PV é situar as narrativas em uma trajetória biográfica onde os modos somáticos de atenção (Csordas, 1993) e suas transformações são privilegiados. O objetivo de aguçar as sensibilidades para identificar momentos de mudanças corporais julgadas significativas se completa com a busca das cadeias de interpretações atribuídas a essas mudanças. Em seguida, realizamos uma análise de narrativas atenta para as expressões acerca do corpo 148

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(o corpo falado) nas suas metamorfoses (pontos de virada), destacando figuras de linguagem que condensam significados simbólicos atribuídos à corporeidade. Neste artigo, restringimos essa análise a histórias contadas por duas das jovens entrevistadas, com nomes fictícios.

O descontrole da boca (e de si) como regulador/revelador do que excede nas relações sociais Sereia tem 27 anos e se autodefine como negra. Nascida em um bairro popular de Salvador, começou a trabalhar como babá aos 13 anos e, atualmente, é doméstica, cursa o 3º ano do 2º grau e é católica. Foi criada com a mãe, quatro irmãs e um irmão, depois que seus pais se separaram. A sua narrativa constrói um enredo provocado por uma questão que lhe propomos inicialmente: “Se a gente pedisse a você para contar sua história a partir de mudanças que aconteceram no seu corpo, como você contaria?” Sereia enfatiza dois momentos principais da sua história corporal: o primeiro circunscreve uma fase onde era “magrinha, bonitinha”, que ela situa nos seus 15 anos, e do qual fala muito pouco; e um segundo, constituído a partir de um ponto de virada, aos 22 anos, onde ela começou a aumentar exageradamente de peso, sobre o qual ela centra a entrevista. A tessitura das causas ligadas ao aumento de peso toma forma de caleidoscópio etiológico de fatores biológicos, psicológicos e sociais, articulando as causas umas às outras em composições não excludentes. Não se observa linearidade nessa composição, o tempo narrativo sendo desenhado de modo a que frequentes flashbacks ressignifiquem e re-hierarquizem fatores interpretativos, dando densidade à história. Na relação com o seu aumento de peso, a mudança de rotina alimentar é o elemento que primeiro aparece. Sereia indica pistas sobre o seu padrão alimentar, inicialmente imposto por um ritmo de trabalho como empregada doméstica, associado à sua vida escolar: come pela manhã, não almoça e come um acarajé à noite, antes da escola. Em seguida, há um período de maior regularidade alimentar, quando o namorado se dispõe a levar o seu almoço no trabalho. Por fim, o padrão relacionado mais exclusivamente ao trabalho de empregada doméstica: a necessidade de sair cedo de casa, comendo quase nada, a merenda calórica no meio da manhã (chocolate ou suco e dois pães), o almoço tardio (às 15h, um prato cheio de farinha) e, à noite, não come nada. O que, para Sereia, compõe um padrão alimentar “normal” comporta sempre saltar algum horário de alimentação, com duas alimentações principais do dia. O que ela interpreta como sendo “compulsão alimentar” (ela usa essa expressão) é o fato de acrescentar dois horários de alimentação aos anteriores, no caso, ao acordar e à noite. Para lidar com esse comer exagerado (sentir-se “aliviada de desgaste de barriga cheia demais”), ela passa a colocar o dedo na garganta para vomitar, tendo aprendido a fazer isso com uma telenovela que apresentava uma personagem com quadro de bulimia, como forma de discutir o tema na sociedade. Paradoxalmente, no seu caso, isso serviu como modelo de conduta. Foi assistindo outro programa, o Fantástico, que descobriu que esse era um comportamento “patológico”, com risco de morte, razão pela qual decidiu pará-lo: “Então eu preferi parar e ficar do jeito que eu tava, mais saudável do que ficar continuando e pegar uma doença braba”. Como segundo fator causal, relaciona a perda de um bebê desejado, aos 22 anos, fruto do aprofundamento da sua relação amorosa, seguida de novas tentativas, sem sucesso, de engravidar, e da separação do namorado. Esse momento de grande sofrimento produz efeitos na sua vida, fazendo surgir comportamentos inabituais interpretados como inadequados e nocivos. O padrão alimentar é interpretado como desregrado e aparece como sintoma. A “liberação” do comer reflete-se no corpo que excede o peso, que se revela ao olhar alheio, que reduz a autoestima e que provoca outras doenças. Na busca de entendimento dessas mudanças, uma forma mais holística e complexa de se (nos) interrogar se põe em marcha: “Porque assim, eu também já percebi em mim que assim, eu, hoje em dia, já tô tendo atitudes que eu nunca tive antes. [...] Mas assim, às vezes eu como escondido e não tenho necessidade disso [...]. Deixe eu ver, às vezes eu faço coisas que, assim, atitudes minhas também de até responder às pessoas, eu era bem tímida, bem tímida mesmo, que, pra fazer as coisas, vixe Maria, eu pensava dez vezes! Hoje em dia, vou dizendo tudo na lata, se for de falar, eu tô

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falando, se for de responder, eu estou respondendo. Então, assim, eu não sei se ainda tô tendo algum transtorno, por eu tá engordando e tá mexendo com o meu psicológico, ou se é um amadurecimento meu que está fazendo que eu fique assim, mas eu, pelo que eu me lembro bem, eu comecei a ter essa atitude depois que eu perdi esse filho, como eu falei [...]”.

Paradoxalmente, esses comportamentos se associam à liberação da palavra e à mudança da sua forma de ser. A perda do filho parece liberá-la de um modo comedido de ser, perdendo, assim, uma Sereia, tímida e contida, e ganhando uma outra, mais descontrolada, desbocada (no comer e no falar) e corpulenta. Durif-Bruckert (2004), falando do sistema digestivo, afirma que a experiência da corporeidade está ligada à imprevisibilidade do movimento, uma vez que a flexibilidade das suas bordas, daquilo que, no organismo, permite reter ou escorrer, resistir ou escapar, é o que produz a incerteza da sua solidez, ameaçando transbordar o próprio corpo. Podemos pensar que, no caso do sistema reprodutivo, essa imprevisibilidade se transforma em certeza quando um aborto espontâneo advém, o objeto da perda vindo colocar em questão a capacidade do corpo “em prender e em guardar alguma coisa”. Isto aponta para a questão da desmesura, do descontrole e da desordem, esferas de sentido às quais um novo corpo e sua vivência podem abrir o acesso. Para complexificar essas esferas, um terceiro bloco de significados causais surge ligado à relação estabelecida com a sua patroa. O desenvolvimento das temáticas sobre relações inter-raciais e percepção de racismo aprofundou-se quando exposta a relação com a senhora idosa da qual Sereia se ocupa há alguns anos, estando fortemente ligadas a relações de classe que se estabelecem no espaço do trabalho doméstico. Aqui o paradoxo das ambivalências nas relações raciais brasileiras, que envolvem o mito da cordialidade e da tolerância racial (Guimarães, 2005), se reflete na história de Sereia. Atentar para as contradições no discurso da sua patroa, no que tange ao preconceito racial, sensibiliza Sereia para as ambivalências presentes na relação desenvolvida entre elas em uma perspectiva de relação de classe. Esses aspectos relacionais lançam uma pista do que poderia significar o comer no emprego e a razão de esse ser um fator de desregramento do padrão alimentar. “Por exemplo, essa coisa mesmo de até comer escondido, eu acho isso, não tem necessidade de eu comer escondida. Aí às vezes, eu, às vezes, eu tô comendo assim, aí continuo com a... [rindo] como como o quê. Eu também não sei se é porque eu estou escondendo dela, porque ela diz: ‘pode comer o quanto você quiser’. […] Fora o trabalho, mas em casa eu fico à vontade. Ainda tem isso também, comer de barriga cheia, às vezes eu tô sem um pingo de fome, mas eu chego em casa, acho uma coisa gostosa que tá ali, ali eu boto pra dentro, tenho que comer”.

Esse padrão alimentar repete o que se encontra na literatura acerca de comportamentos compulsivos (“comer mesmo sem vontade”) e as estratégias desenvolvidas para escondê-los das outras pessoas. Contextualizando-o, percebe-se que o comportamento de Sereia associa-se a uma relação de desconfiança em relação à palavra da patroa. Essa desconfiança é fruto do que é descrito mais tarde na entrevista e que deixa entrever que a patroa frequentemente diz uma coisa na sua presença, mas pensa, ou faz outra, na sua ausência. A literatura que analisa o trabalho doméstico está cheia de exemplos sobre os aspectos ambivalentes da relação que envolve patroa e trabalhadora de serviços domésticos, informando sobre seus efeitos psicologicamente negativos (Xavier, 2005). Nesse caso, o comer escondido, uma relação perturbada com o comer, pode indicar uma relação conflituosa e um desejo de vingar-se da patroa. O comer à vontade, por sua vez, que faz em sua própria casa, pode indicar a possibilidade de comer em um espaço de maior liberdade e intimidade, ou de liberar-se da opressão (e, portanto, comer mesmo quando não está com vontade). Sereia relata situações cruciais onde flagrou a patroa difamando a sua imagem e a da sua família em telefonemas para próximos, ou soube de a mesma ter falado mal do seu trabalho na casa de uma amiga. A equação lógica, que ela formula a partir da sua relação com a patroa – “eu me comportava bem e, ainda assim, ela falava mal de mim pelas costas” – nos convida a entender que não vale a pena ser assim tão correta com quem não merece, de que é melhor não esconder o sentimento que o outro 150

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provoca em si, e de que é preciso ter coragem de tomar uma decisão no sentido de romper com esse estado de sofrimento: “[...] mas eu já tô vendo já, que acho, desse ano, eu sempre tenho estado, daqui eu não passo, eu já tô vendo na minha cabeça mesmo de sair, porque aqui tá virando muito a minha cabeça, me deixando muito mesmo, atordoada mesmo, porque também tem emprego, tem trabalho que a gente pega que deixa a gente de um jeito que a gente ou pira de vez, e, pra não pirar, tem que sair. Aí, no meu caso, é o que tá pra acontecer”.

Longe de interpretações categóricas para o vivido, na narrativa de Sereia, as metamorfoses do corpo oscilam dentro de referentes culturais disponíveis, dentre os quais o sobrepeso como patologia. O aumento de peso entra no caleidoscópio etiológico que ela compõe como aquilo que pode ser a fonte de perturbação psicológica na origem desse destempero. Em uma linha psicossocial de raciocínio, o comer compulsivo aparece como a liberação de afetos em maturação, condutores de eventos produzidos no interior de relações de poder e de opressão, mas, também, de situações de grande aflição. A “confusão da mente” à qual Sereia recorre como forma de expressão do conflito relacional de classes, frequentemente encoberto pela intimidade e pessoalidade que envolve a relação domésticapatroa (incluindo conflitos raciais e uma diferença geracional), traduz também o transtorno corporal, alimentar e comportamental. As certezas, que pareciam organizar a sua vida, se dissipam e são colocadas entre parênteses em um emaranhado de possibilidades de novas conexões de sentidos. A essa sensação de caos se superpõem sentimentos negativos, mas também positivos, que a orientam na direção de algumas intuições encarnadas (ao modo de Riobaldo: “eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”, em Rosa, 1956, p.16) que podem gerar novas consciências do estar no mundo e novas intencionalidades.

O corpo como restaurador do que está fora de ordem Falamos do desregramento do corpo como marcador do que está fora de ordem no mundo psicossocial. A ideia se situa na experiência da transformação do corpo como termômetro de relações sociais disruptivas e como indicadora de encarnação de sofrimento. Nesse sentido, os sinais do corpo, muitas vezes, se inscrevem em percepções sensitivas e pré-lógicas, difíceis de racionalização na imediatez da experiência, na perspectiva proposta por Merleau-Ponty onde a consciência é a projeção do corpo no mundo. O significado muitas vezes advém das transformações corporais sentidas e situadas em contextos de vida. Essas transformações sentidas, por sua vez, tendem a evidenciar mudanças ou ressignificações do meio social vivido, ou das relações sociais. Como diz Valverde (2003), a partir da leitura de Benjamin, podemos perceber o mundo (e o corpo consequentemente) no sentido cinestésico, associado ao movimento, à mudança de tônus, de posição, ou de angulação, e, segundo o autor, essa percepção normalmente se faz menos pela atenção do que pelo hábito, uma condição ativa e coletiva que se configura em uma pragmática. Ora, podemos pensar que o que acontece nos chamados pontos de virada corporais é que colocamos em suspensão esse sentido habitual e prestamos atenção ao corpo, às suas mudanças, e, como consequência, nos interrogamos sobre as condições geradoras das mesmas. Isso é corroborado na perspectiva de Benjamin, onde as diferentes formas de sensibilidade são diferentes padrões de recepção adquiridos pelos hábitos introduzidos por diversos meios e sustentados em diferentes tecnologias. A recepção “é sustentada pela percepção sensorial, mas não se reduz a ela, uma vez que opera num ambiente discursivo e segundo uma disposição (um pathos), que se traduz em determinados usos e costumes” (Valverde, 2003, p.21). Nessa perspectiva, pensar corporeidade é situar-se no domínio de uma práxis – práticas corporais informadas por discursos sociais. Essa compreensão nos impulsiona a analisar as mudanças corporais descritas por nossas entrevistadas, incluindo aí os seus transtornos, a partir de uma matriz cultural que lhes fornece idiomas corporais compartilhados socialmente, ao mesmo tempo em que lhes permitem significá-los em um contexto singular. Mais um exemplo permite elucidar essa proposta. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.145-57, jan./mar. 2013

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A menina de ouro – o jogo de corpo e a virada do jogo Céu tem 24 anos, nascida em Salvador, se autodefine como branca, pertence à classe média baixa e é estudante de psicologia em uma faculdade privada. Relata que, depois dos nove anos de idade, sempre foi gordinha, embora sempre tenha vivido o “efeito sanfona” (engorda-emagrece). Faz uma retrospectiva das idades e do seu estado corporal. Quando criança era magra, aos nove ficou gordinha, aos treze era esbelta, “bonitona”, entre os 17 e os 18 anos, foi o período crítico em que foi morar em Brasília, com a tia, tendo sofrido pelo fato de não ter amigos, não ter namorado, não estar na sua casa, sentir-se isolada e preterida. Isso gerou muita ansiedade, expressa no desejo compulsivo de comer, que ela define assim: “É, se eu ficar parada, o dia todo na televisão, dá vontade de comer. Se tiver desocupada a mente, aí dá vontade de comer. […] É... Aí vou fazer brigadeiro. E tudo é motivo pra mim comer... se eu tiver estressada, aí eu como. É como se acalmasse alguma coisa, me deixasse tranquila, principalmente, mais nesses dias, ou quando passo alguma raiva”.

Aumentou dez quilos e isso só se regularizou quando voltou para Salvador, onde frequentou academia de ginástica e voltou a ter amigos. No entanto, ainda viveu momentos de sofrimento com o peso, especialmente expresso na dificuldade em arranjar namorado. Esse fator reaparece frequentemente, evocando relações de gênero vividas como difíceis, o que, na sua história, parece ocupar um lugar crucial na definição das suas experiências corporais: “Quando eu saía com minhas amigas, que eram mais magras, o pessoal só olhava pra elas e pra mim não. Eu não tinha nem vontade de ir pra praia, porque eu me sentia apagada. Me chamavam e eu não ia, porque eu sentia que era diferente. Até pra conversar, era como se eu fosse a última opção. [...]”.

Essas cenas a fazem se sentir discriminada, produzindo-lhe um sentimento de invisibilidade que, em revanche, provoca-lhe um comportamento de retraimento, refletido na busca de escolher roupas que disfarçassem o peso, reforçando essa invisibilidade. Efeitos paradoxais se produziam ao comer mais quanto mais era rejeitada (“Ah! Já tô gorda mesmo, vou comer...”). Por outro lado, Céu compreende que o olhar masculino fixado no corpo feminino era exatamente aquilo que, ao objetificar a mulher, rejeitava-a. Essa compreensão parece liberá-la da objetificação do próprio corpo, percebendo-se na totalidade corpo-eu (ou corpo-sujeito): “É que a gente tá bem, mas, quando a gente ouve alguém falar [criticamente], que se olha no espelho, já se vê diferente, mas eu procurei não falar e trabalhar a minha cabeça. Já fui respondendo que quem tem que gostar de mim tem que gostar do que eu sou, não do meu corpo não [...]”.

O grande ponto de virada é atribuído por Céu ao fato de ter entrado para a academia de boxe, mais ou menos aos 22 anos. Nesse período passou a ser valorizada pela sua capacidade de lutar, e não pelo corpo que tinha, passou a ser estimada pelo professor e colegas, era uma das únicas mulheres do grupo, mas, sobretudo, a que lutava melhor, sendo considerada “a menina de ouro”. Tudo isso teve um importante efeito sobre a sua autoestima, afirmando, com ar de surpresa, que até passou a ser considerada bonita. A partir daí, desenvolve a ideia de que é preciso que você esteja bem consigo para atrair as pessoas, embora o oposto pareça ter acontecido primeiro: pessoas em torno passaram a valorizá-la por sua habilidade em lutar e isso parece ter reencantado seu corpo feminino. Seu discurso indica também a importância da socialização entre homens de outra classe social, com outro modelo de beleza física, além de dois efeitos paradoxais produzidos: 1) pela “distinção social” de que era portadora: a “patricinha” que se integrou ao grupo pelo intermédio do valor da luta; 2) pela desfocalização do corpo-objeto feminino, onde o corpo-sujeito assume a liderança, através de uma luta 152

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masculina. Não se pode desconsiderar que o filme “Menina de Ouro” tenha aportado capital simbólico e favorecido a sua inclusão e valorização. O trabalho de Loïc Wacquant (2002) sobre lutadores de boxe oferece o conceito, advindo da teoria de Bourdieu (2008), de capital físico, indicando-o a partir da forma e do estilo do corpo, o estilo do boxeador. Nesse caso, o habitus individual seria modulado pelo habitus institucional. Observadas as ressalvas por não se terem elementos suficientes para falar da transformação do corpo de Céu em um corpo boxeador, sugerimos, no entanto, que ela incorpora a luta como etos, uma luta que implica o sentido profundo de identidade: o amor-próprio, que ela traduz como autoestima. Esta é descrita a partir de mudanças em dimensões distintas da vida: o olhar sobre si mesma, a maior harmonia com o corpo e, consequentemente, as escolhas de roupas que não o desvalorizem, a afirmação de si na definição de qual relacionamento esperava para si (relação de gênero), o olhar sobre o mundo das pessoas de classe popular, que passam a ser seus amigos, e a aquisição de um novo lugar social, permitido pelo boxe, onde é convidada a ser “modelo para os outros”. O estar bem no próprio corpo dialoga com o que é concebido como a exteriorização do feio: “O vestir também passa isso e era como eu gostava de me vestir, assim. Mas acho que antes eu me escondia e, pra não ser notada, eu acho que eu ficava logo folgada, mas agora não. […] Eu não quero nada que eu veja que vai me botar mais pra baixo. A pessoa me vê mais gorda e eu falo: essa não é a roupa que eu tenho que usar não... aí eu vou mudando. Aí eu tô me sentindo bem com as roupas que eu tô vestindo, tô me sentindo bem e é isso”.

A corporeidade se estende para além do corpo físico, envolvendo roupas, tatuagens, movimento, pinturas, enfim, tudo aquilo que constitua uma identidade, que, por sua vez, é mutante e relacional. Assim, Céu fala sobre Salvador, uma cidade onde as pessoas parecem bem entrosadas e à vontade com o corpo. No entanto, faz a ressalva de que, na praia, as mais magrinhas não tiram o short, as mais gordinhas não tiram a blusa. Remete isso a questões psicológicas, de autoestima, e afirma que as pessoas jogam com a aparência, tentando disfarçar o que se passa dentro de si, “porque, querendo ou não, é a aparência que conta”. Por outro lado, a dissonância entre expressão individual e imposição social, sentida sob a forma de um sofrimento pela inadequação com um “padrão ideal de beleza”, e as consequências desse sofrimento só podem existir porque o processo de incorporação desse ideal preexiste. Ou seja, o corpo que se projeta no mundo já é um corpo, como diz Bourdieu (2007), socialmente informado. Mais interessante, entretanto, é que, nessa dicotomia interioridade/ exterioridade, percebe-se um jogo, cuja dinâmica tensiona e colapsa a própria dicotomia, uma vez que, na perspectiva da corporeidade, não podemos distinguir exatamente um dentro e um fora, a não ser como recurso retórico ou como experiência vivida dentro do próprio jogo. As estratégias de jogar com o corpo nos convidam, por sua vez, a decifrar “o que está em jogo” nessas situações. É essa explicitação que permite, inclusive, predizer o grau de sucesso ou fracasso no mesmo, pensados aqui em termos de felicidade ou infelicidade no jogo. Aqui pode-se sugerir que aquilo que algumas jovens descrevem como o “transtorno do corpo” ou o “desregramento alimentar”, expressos sob o termo de “compulsão alimentar”, serve para aclarar, por exemplo, formas de transgressão contra estéticas tiranizadoras, corpos objetificados, relações opressivas. Em outros momentos, esses fenômenos podem indicar a expressão hiperbólica da sociedade de excessos - excesso de consumo, para os sociólogos (Bauman, 1998), ou excesso de gozo, para os psicanalistas (Chemama, 2009). Pode-se antever ainda a tentativa de, metaforicamente, encarnar o caos, ou a desordem na qual estão mergulhadas as relações humanas. Em qualquer dessas expressões, tomadas isoladamente, ou agregadas, não apenas a vivência do transtorno, mas, também, a saída da situação de sofrimento podem ser vislumbradas a partir de táticas corporais, como mostramos no caso de Céu. Ou, então, podemos pensar, como Estrela, uma outra entrevistada, que “brincar com o corpo” quer dizer experimentá-lo nas suas variações possíveis a partir da inclusão de artifícios: as lentes de contato, ou as tranças no cabelo. São coisas que se coloca e se tira, maleáveis. Existem também aquelas coisas mais permanentes, mais valorosas para a pessoa, e que têm uma relação identitária mais profunda, tal como a tatuagem. Não apenas com os signos maleáveis, mas, também, com modificações impressas ao COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.145-57, jan./mar. 2013

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corpo, é possível negociar mensagens, inclusive outras que não aquelas preestabelecidas nos clichês, como, por exemplo, quem usa tatuagem é vagabundo. Para Estrela, essas “brincadeiras com o corpo” falam menos de uma não-aceitação de si, configurando, sobretudo, formas de driblar certas faltas, lidar com jogos identitários com a alteridade, como ela diz: “Brincar de ser diferente um pouquinho, porque todo dia você se olhando do mesmo jeito, enjoa. […] Tudo está aí pra gente usar, pra brincar, né? Se não fosse, não era nem pra existir. O que não é pra ser, não existe”. Poderíamos pensar que o mal-estar ou o transtorno do corpo se instalaria, sobretudo, a partir da incapacidade de realizar essa brincadeira. Mas poderíamos também sugerir que significar o transtorno pode ser um modo de revelar, ou de reabrilo para o seu jogo, ou, quem sabe, para a brincadeira.

A compulsão expressiva dos corpos Diversos autores falam da escalada do processo de individualização do mundo contemporâneo e a sua repercussão no cuidado de si (Foucault, 1984), um cuidado excessivamente centrado na atenção voltada para o corpo (Lipovetsky, 1993). O eu hedonista e autocentrado e o corpo perfeito aparecem como patognomônicos desse modelo. Por sua vez, esse modelo, não sendo do alcance de todos, é, entretanto, vendido como prêt-à-porter em emissões televisivas e em publicidades midiáticas. No outro lado da medalha, as patologias do corpo também são massivamente disponibilizadas para consumo, dentre as quais obesidades, compulsões alimentares e TCAs, tornando-se idiomas culturais de aflição, à mão para serem utilizados. No paroxismo dessa individualização, onde os limites do corpo seriam a expressão material, o que se observa, contudo, é, como diz Ehrenberg (1995, p.19), menos uma exibição narcísica da vida privada e mais a expressão de um “indivíduo incerto”, excessivamente exigido do ponto de vista de uma performance de si. Para esse autor, “nós entramos em uma sociedade da responsabilidade de si: cada um deve imperativamente se achar um projeto e agir por si mesmo para não ser excluído do laço, qualquer que seja a fraqueza de recursos culturais, econômicos e sociais dos quais ele dispõe” (Ehrenberg, 1995, p.14-5, minha tradução). Nesse sentido, quando o peso da construção do mundo é individualizado, onde cada pessoa é responsável pelo seu próprio sucesso e sobrevivência, cada um é deixado a si mesmo, os corpos passam a expressar-se compulsivamente desse lugar atomizado: seja ganhando espaço, tornando-se invasivo, obeso, seja na redução do corpo anoréxico, que reaparece no incômodo causado, seja pelo descontrole de si, revelado por um comer desregrado. Os sentidos relacionais do peso e do comportamento alimentar conduzem a uma tentativa de conter, pelo corpo, um mundo de excessos, a limitar relações opressivas pelo descontrole da boca, a compensar uma escassez relacional pelo excesso alimentar. No entanto, tal como propusemos nesse texto, as identidades somáticas, inegavelmente um processo do mundo moderno, não ganham pleno sentido a não ser através de exames mais detalhados do modo como incidem e dos seus mecanismos de refração nos diversos grupos sociais e em histórias particulares. É desse lugar social, histórica e afetivamente situado, que se constituem as percepções do corpo, as suas experiências e as suas expressões. Menos afeito a rituais onde o corpo coletivo toma a proeminência, o corpo individualizado moderno, idealmente referido a uma tradução do si mesmo, encarna e é encarnado por relações sociais de classe, de raça, de gênero ou afetivas. Menos provido de espaços de experiência e de inversão simbólica, o corpo individual toma a si essa enorme tarefa de expressar, de significar e de reverter os males do grupo.

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NUNES, M.O.; BITTENCOURT, L.J.

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Colaboradores Mônica de Oliveira Nunes participou de todas as etapas da pesquisa e da redação de parte substancial do atual manuscrito. Liliane de Jesus Bittencourt também participou de todas as etapas da pesquisa e contribuiu com acréscimos relevantes ao conteúdo do texto, sobretudo aqueles que se referem às questões de corpo e etnicidade.

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artigos

NUNES, M.O.; BITTENCOURT, L.J.

NUNES, M.O.; BITTENCOURT, L.J. En el sendero de lo que transtorna el cuerpo y desordena el comer: los sentidos del descontrol de sí y de las “compulsiones alimentarias”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.145-57, jan./mar. 2013. Examinamos el fenómeno de las identidades somáticas comprendidas como nuevas formas de percepción y relaciones socialmente establecidas con el cuerpo, incluso modos alterados de alimentarse, no necesariamente patológicos. Utilizamos una perspectiva teórica fenomenológica e interpretativa centrada en el concepto de corporeidad desarrollado por Thomas Csordas, basado en los conceptos de percepción corporal de Merleau-Ponty y de cuerpo socialmente informado, del concepto de habitus en Bourdieu. Centramos el análisis en narrativas de mujeres que elaboran sus historias de vida a partir de puntos de viraje corporal, que indican dinámicas socioculturales y afectivas corporificadas; significadas a partir de cuestiones étnicas, de clase social y género. Discutimos los paroxismos de la individualización moderna donde, por medio de las compulsiones alimentarias, los cuerpos individuales expresan, significan y revierten los males del grupo.

Palabras clave: Corporeidad. Identidades somáticas. Fenomenología. Relaciones raciales. Compulsion alimentaria. Recebido em 02/03/12. Aprovado em 15/10/12.

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artigos

Atuação profissional no âmbito da segurança alimentar e nutricional na perspectiva de coordenadores de cursos de graduação em Nutrição Viviane Laudelino Vieira1 Natália Utikava2 Ana Maria Cervato-Mancuso3

VIEIRA, V.L.; UTIKAVA, N.; CERVATO-MANCUSO, A.M. Professional practice relating to food and nutritional security from the perspective of coordinators of undergraduate nutrition courses. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.157-70, jan./mar. 2013. Facilitating factors for and barriers against nutritionists’ practices relating to food and nutritional security were identified, from the perspective of coordinators of undergraduate nutrition courses in the municipality of São Paulo, Brazil. In this qualitative study, using collective subject discourse, coordinators were asked about factors favoring and limiting professional practice relating to food and nutritional security. Public policies and training were identified positively and negatively. The following central ideas were considered to be facilitators: “existence of public policies and programs” and “adequate training”. The barriers identified were “insufficiency or non-application of these policies”, “little possibility for nutritionists to act within the public sector” and “insufficient or inadequate training”. It was concluded that coordinators placed value on the existence of policies, but the limitations of actions were clear. Although the training was considered adequate by some coordinators, it was criticized regarding its technical nature, fragmentation and disconnection between theory and practice.

Keywords: Food and nutritional security. Healthcare human resources. Higher education. Brazilian Health System. Nutritionist.

Identificaram-se fatores facilitadores e barreiras para a atuação do nutricionista em segurança alimentar e nutricional (SAN) na perspectiva de coordenadores de cursos de graduação em Nutrição do município de São Paulo, Brasil. Em estudo qualitativo, com uso do Discurso do Sujeito Coletivo, questionaram-se os coordenadores sobre aspectos favoráveis e limitadores da prática profissional em SAN. As políticas públicas e a formação foram apontadas positiva e negativamente. Como facilitadoras, verificaram-se as ideias centrais “existência de políticas e programas públicos” e “formação adequada”; como barreiras, a “insuficiência ou não-aplicação dessas políticas”, “pouca possibilidade de atuação do nutricionista no setor público” e “formação insuficiente ou inadequada”. Concluiu-se que coordenadores valorizam a existência de políticas públicas, porém é nítida a limitação de ações. A formação, considerada adequada por alguns, foi criticada quanto à tecnicidade, fragmentação e desarticulação entre teoria e prática.

Palavras-chave: Segurança alimentar e nutricional. Recursos humanos em saúde. Educação Superior. Sistema Único de Saúde. Nutricionista.

1 Centro de Saúde Geraldo de Paula Souza, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (USP). Av. Dr. Arnaldo, 925, São Paulo, SP, Brasil. 01.246-904. vivianevieira@usp.br 2 Faculdade de Saúde Pública, USP. 3 Departamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, USP.

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ATUAÇÃO PROFISSIONAL NO ÂMBITO DA SEGURANÇA ALIMENTAR ...

Introdução O tema da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) emergiu no cenário político brasileiro a partir de 1999, com a divulgação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e, mais recentemente, com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil, 2010a). Tais políticas apontam para o planejamento, desenvolvimento e avaliação de ações de caráter holístico, intersetorial e contínuo, que extrapolam o campo do acesso ao alimento de qualidade, mas também se relacionam com promoção da saúde, sustentabilidade ambiental e econômica e soberania nacional (Brasil, 2006). A implementação de ações e programas na perspectiva da SAN tem consolidado a importância do nutricionista, como profissional da saúde, em vários âmbitos. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Superior para o curso de Nutrição (Brasil, 2001), o nutricionista é um profissional da saúde com formação generalista, humanística e crítica, com atuação visando à segurança alimentar e à atenção dietética. Sua atuação deve estar pautada em princípios éticos, considerando aspectos socioeconômicos, políticos e culturais. Aspectos relacionados à sua formação serão fundamentais para garantir uma atuação competente. O cenário da profissão indica a existência de 312 cursos e um aumento de 150% no número de profissionais inscritos nos Conselhos, chegando a cinquenta mil nutricionistas (Brasil, 2011; Conselho Federal dos Nutricionistas, 2007). Esse aumento pela oferta de cursos de Nutrição está em consonância com a crescente demanda por profissionais da área da saúde (Haddad et al., 2010). Com o panorama nacional de políticas públicas que sustentam o tema de alimentação e nutrição, a demanda de profissionais para atuar nessa área também é elevada, constituindo-se em aspecto fundamental na implementação dos sistemas nacionais de saúde (Haddad et al., 2010). Tendo em vista tal contexto, o presente trabalho visa identificar fatores facilitadores e as barreiras para a atuação do nutricionista no âmbito da segurança alimentar e nutricional na perspectiva de coordenadores de cursos de Nutrição do município de São Paulo.

Metodologia O presente estudo, de natureza qualitativa, foi desenvolvido com coordenadores pedagógicos dos cursos de graduação em Nutrição do município de São Paulo, de março a maio de 2010. A opção da seleção destes profissionais como informantes-chave prende-se ao fato de apresentarem responsabilidades definidas legalmente sobre assuntos ligados ao ensino, além de participarem diretamente da concepção dos currículos dos cursos, tal como apontam Secco e Pereira (2004). Os cursos existentes no município foram identificados no website do Ministério da Educação e, em seguida, contataram-se as instituições para a confirmação da existência do curso. Das 18 instituições de Ensino Superior (IES) listadas, 14 tinham seus cursos ativos, distribuídos em seus diferentes campi, totalizando 24 unidades. Os coordenadores das unidades foram contatados por vias telefônica e/ou eletrônica, sendo explicados a eles os objetivos do estudo e feito convite para a participação voluntária no mesmo. Atenderam, aos convites, 22 coordenadores responsáveis por cursos de 13 IES distintas. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas individuais utilizando roteiro que incluía informações pessoais sobre: sexo, tempo e local de formação universitária em Nutrição, titulação máxima, e tempo em que exerce a função de coordenador na instituição em que trabalha no presente momento. Além disso, os entrevistados foram questionados sobre sua percepção acerca dos aspectos favoráveis e das barreiras para a atuação do nutricionista no âmbito da segurança alimentar e nutricional. Para a análise dos resultados, utilizou-se a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que visa destacar uma dada representação social sob a forma de discurso que expressa o pensamento de uma coletividade, que vendo sendo utilizado pela comunidade científica em diferentes estudos (Kel, Shimizu, 2010; Paula, Palha, Protti, 2004). Para tanto, as respostas foram gravadas e transcritas integralmente e, em seguida, identificaram-se as expressões que representam uma ideia central (IC) e, posteriormente, foram reunidas de modo a constituir um DSC (Lefèvre, Lefèvre, 2006). 160

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VIEIRA, V.L.; UTIKAVA, N.; CERVATO-MANCUSO, A.M.

artigos

Esse estudo foi realizado de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras da Resolução CNS 196/1996, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública.

Resultados e discussão Todos os entrevistados eram nutricionistas do sexo feminino. O tempo de formação universitária mostrou-se bastante variado, de oito a 32 anos, tendo a maioria se graduado no município de São Paulo, o que reflete maior conhecimento e envolvimento com questões sociais locais. Com relação à titulação, quase a totalidade apresentava, pelo menos, o título de Mestre, tal como indicado pelo Ministério da Educação (Brasil, 2010b). Acerca do tempo de coordenação, grande parte ocupava o cargo há pouco tempo, indicando que essas profissionais recém-ingressadas são frutos do aumento do número de cursos no município ou, então, da rotatividade de profissionais no cargo: sete haviam ingressado a menos de um ano; sete tinham de um a cinco anos; três possuíam de seis a dez anos, e outras duas apresentavam mais de dez anos neste cargo. Não havia essa informação de três entrevistadas. Na perspectiva destes coordenadores de curso, vários são os fatores que interferem na atuação do nutricionista no âmbito da SAN, tal como pode ser observado no Quadro 1, que aponta os facilitadores, e no Quadro 2, que indica as barreiras. É interessante perceber que exclusivamente questões relacionadas às políticas públicas e à formação do nutricionista são apontadas positiva e negativamente. Verificou-se que seis dos 22 coordenadores destacaram a situação política atual como aspecto importante que vem contribuindo para a atuação do nutricionista (IC1). A mesma quantidade de indivíduos elegeu a formação como um facilitador (IC2). Por outro lado, sete coordenadores apontaram a mesma formação como sendo uma barreira na atuação (IC9), e ocorreram duas ICs que remetem ao setor público, uma com oito coordenadores compartilhando da mesma ideia, intitulada “insuficiência ou não-aplicação das políticas públicas” (IC8), e outra com cinco, nomeada como “pouca possibilidade de atuação dos nutricionistas no setor público” (IC11). É importante destacar o reconhecimento do panorama nacional de políticas públicas como aspecto favorável à atuação do nutricionista, tal como explicitado na IC1: “[...] Hoje você tem documentos governamentais que tão dando respaldo pra gente ter um trabalho mais efetivo que eu acho que na minha formação, por exemplo, eu não tinha isso, né? Os programas todos que a gente vem observando, eles têm trazido um maior acesso, inclusive, do nutricionista, desde o Fome Zero, enfim, dos restaurantes populares [...] então, isso são oportunidades. (E também) a inserção do nutricionista na rede básica, que já tem em algumas unidades [...], a Política de Segurança Alimentar...”

Quadro 1. ICs sobre os facilitadores da atuação do nutricionista acerca da segurança alimentar e nutricional oriundas de depoimentos de coordenadores pedagógicos de cursos de graduação em nutrição do Município de São Paulo. São Paulo, 2010 Ideia Central

n

IC1 - Existência de políticas e programas públicos

6

IC2 - Formação adequada

6

IC3 - Maior demanda para se ter o nutricionista

6

IC4 - Atuação inerente à profissão

5

IC5 - Habilidades pessoais

2

IC6 - Não vejo facilitadores

2

IC7 - Experiência profissional

1

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ATUAÇÃO PROFISSIONAL NO ÂMBITO DA SEGURANÇA ALIMENTAR ...

Quadro 2. ICs sobre as barreiras para a atuação do nutricionista acerca da segurança alimentar e nutricional oriundas de depoimentos de coordenadores pedagógicos de cursos de graduação em nutrição do Município de São Paulo. São Paulo, 2010 Ideia Central

n

IC8 - Insuficiência ou não-aplicação das políticas públicas

8

IC9 - Formação insuficiente ou inadequada

7

IC10 - Mercado de trabalho inadequado

7

IC11 - Pouca possibilidade de atuação dos nutricionistas no setor público

5

IC12 - Falta de conhecimento do nutricionista sobre a atuação em SAN

4

IC13 - Desvalorização da área por parte do nutricionista

2

IC14 - Pouca informação da sociedade

2

IC15 - Nenhuma

1

Mesmo que a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que regulamenta a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil, 2010a), tenha sido instituída após a realização da coleta de dados para a presente pesquisa, o cenário voltado ao tema vem beneficiando a atuação do nutricionista desde 1999, com a implementação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Essa política apresenta, dentre suas diretrizes, a cooperação e a articulação para a SAN (Brasil, 2012). A SAN foi reafirmada em 2006, com a Política Nacional de Promoção da Saúde, cujo documento descreve, dentre suas ações específicas, a alimentação saudável em prol do DHAA (Brasil, 2006); está contida na Lei 11.947, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar (Brasil, 2009a) e no âmbito das ações de alimentação e nutrição na atenção básica (Brasil, 2009b). Apesar de todos os documentos respaldarem-se na intersetorialidade, é inegável que o nutricionista consiste em profissional com responsabilidade direta de atuação nesse cenário. Ao longo das últimas décadas, a evolução das políticas na área de alimentação e de nutrição vem impactando na atuação do nutricionista (Vasconcelos, 2002). Políticas públicas relacionadas ao tema da SAN estão diretamente ligadas a características sociais do país, que, por sua vez, oferecem ao profissional possibilidades de desenvolvimento de trabalho na área da gestão, da educação e no terceiro setor; potencializa o mercado de trabalho do profissional, ampliando as possibilidades da inserção, no mercado de trabalho, da mão de obra existente, tal como aponta a IC3: “É, eu acho que [...] um pouco mais de compreensão das pessoas [...]. Porque alimentação é um tema que, ultimamente, está sempre em pauta, sempre na mídia... coisa que há pouco tempo atrás a gente não tinha nada. Eu acho que é até uma pressão social, né? A prevalência de obesidade aumentando, prevalência de diabetes, de câncer, de doenças cardiovasculares. E quanto pior esse cenário vai ser pintado, isso vai ser um facilitador para que a atuação do nutricionista seja valorizada... Então, eu acho que, o que ajuda muito a atuação do profissional são as pesquisas que têm demonstrado cada vez mais a importância do profissional na educação, na prevenção de ter uma alimentação adequada”.

Ademais, o padrão de morbimortalidade mundial permite apontar o estilo de vida moderno e ocidental como fator importante na etiologia de grande parte das doenças da atualidade. Estudos epidemiológicos evidenciam: elevada frequência de fatores de risco como tabagismo, consumo excessivo de bebidas alcoólicas, hábitos alimentares inadequados, sedentarismo e estresse, que impulsionam a crescente epidemia de obesidade, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 e dislipidemias (Brasil, 2012; Vieira, Reis, 2010; Organização Mundial da Saúde, 2004). Esse cenário vem demandando a atuação de profissionais da área da saúde. No campo da Nutrição, a graduação, criada 162

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em 1939, vem crescendo de modo representativo, sobretudo no início do século XXI. De 2000 a 2007, houve aumento anual de 11,7% nas taxas médias de inscrições de nutricionistas no Conselho regulamentador federal (CFN, 2007), indicando a necessidade social da existência desse profissional e direcionando, assim, sua formação, tendo em vista que os cursos tendem a se adaptar às necessidades da população e do mercado. Com relação à insuficiência ou não-aplicação das políticas públicas (IC8), o primeiro aspecto (insuficiência) é incoerente com o cenário nacional, porém é importante destacar a dificuldade para a sua concretização. Recine e Vasconcellos (2011) indicam que as características de implementação de uma política revelam seu verdadeiro significado, e, não diferentemente, as de alimentação deparam com desafios para profissionais, pesquisadores e gestores, sendo a organização do processo de trabalho um aspecto a ser superado. Situação que exemplifica tal ideia é a limitação de implantação do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) no estado de São Paulo, acontecendo parcialmente nos municípios (Venâncio et al., 2007). Esta ideia surge no trecho do seguinte DSC: “O que dificulta são as poucas ou a falta de políticas públicas pra que nós tenhamos programas que visam a SAN... Eu acho que o problema tá lá na ponta do iceberg, nos nossos governantes, né? Eu mesma trabalhei na parte da prefeitura, e a gente tinha aquele projeto de educação nutricional e que de repente não era mais favorável à política e simplesmente cancelaram [...]”.

A partir da análise das Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2001), na qual a SAN é vinculada à atuação profissional, independentemente do cenário, público ou privado, atividades em prol do direito humano à alimentação adequada (DHAA) deveriam ser contempladas em sua prática. Foi nítido, porém, o discurso de que ações na SAN são desenvolvidas por profissionais ligados ao governo (IC8), mostrando que talvez esse conceito ainda não esteja efetivamente traduzido em possibilidades de atuação na área da saúde. Isso vai de encontro aos achados de Vieira e Cervato-Mancuso (2009), que mostraram que, dentre 24 nutricionistas atuantes na área de saúde coletiva, somente quatro relacionaram a SAN com direito humano. Ou seja, os profissionais que estariam ligados ao governo ainda associam SAN ao alimento seguro. A percepção da influência negativa com relação ao cenário de políticas públicas constituiu aspecto identificado na fala de parte dos coordenadores, sinalizando para a confusão entre o conceito que remete à organização do Estado para o estabelecimento de princípios e medidas para a resolução de problemas sociais (Benevides, Passos, 2005), e aquele relativo às barreiras ligadas com a governabilidade ou gestão dessas ações. Relevante também é o processo de concepção de tais políticas, especialmente aquelas relacionadas com a SAN, representativas de conquistas de grupos sociais específicos, a partir de cenários da história nacional, que refletem o processo de mudança dos paradigmas de saúde, culminando na proposição da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil, 2010a). Além dos aspectos já elucidados, o mercado de trabalho, sem se especificar se privado ou público, também é apontado como barreira existente para a atuação (IC10). As más condições de trabalho na área também foram apontadas como uma barreira para a atuação, com ênfase na questão salarial. A remuneração salarial tem sido tema de debates entre as entidades de classe. Em 2005, o salário médio de um nutricionista atuante na área da saúde coletiva era de 4,9 salários-mínimos, valor inferior à área de ensino, indústria e nutrição clínica (CNF, 2006). Tal aspecto, entretanto, apresenta-se com possibilidade de intervenção pública limitada, devendo, portanto, ser discutido em conselhos, sindicatos e associações profissionais, a fim de regulamentar as diversas áreas de atuação profissional. O DSC que reflete a ideia relativa à inadequação do mercado de trabalho encontra-se a seguir: “Eu acho que a gente tem formação pra isso, mas não tem campo pra atuar. Ele é um profissional ainda que ele não tem muito espaço em algumas áreas. Os salários ainda são mais baixos do que de outras áreas. (E) o que dificulta é a visão dos nossos empregadores... é a visão de troca financeira, de lucro e não tanto a preocupação com relação à saúde”.

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A limitada inserção do nutricionista no setor público também consistiu em barreira vislumbrada pelos coordenadores (IC11): “Olha, o que atrapalharia, talvez, seria a abertura pro nutricionista poder estar desenvolvendo essas ações, né? Se nós tivéssemos, de fato, esse profissional atuando na saúde pública, na questão preventiva, eu acho que esse seria um grande aliado ao nosso favor. Porque tem profissional, a gente tem formado gente pra isso, mas não tem a vaga”.

O nutricionista iniciou sua participação no setor público mais tardiamente e em menores proporções, comparativamente a outras áreas, como medicina e enfermagem. Em 2006, o Conselho Federal de Nutricionistas verificou que 8,1% encontravam-se atuando na área de saúde coletiva, como na atenção básica em saúde, vigilância sanitária e políticas e programas institucionais. É importante destacar, porém, que o cenário vem se alterando recentemente. No município de São Paulo, existem 123 nutricionistas atuantes em unidades básicas de saúde (UBS), sendo funcionários diretamente ligados à prefeitura e atuantes nesses locais (Cervato-Mancuso et al., 2012). Em 2008, foram criados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), existindo a possibilidade da inserção do nutricionista nas equipes. Os Nasfs são geridos por empresas públicas ou privadas: em 2009, as informações eram de que existiam 51 nutricionistas contratados, com perspectiva de outras vagas a serem ocupadas (Brasil, 2009c). Dessa forma, apesar de nitidamente o número de nutricionistas ser aquém do ideal para a execução das atividades pertinentes ao profissional, o campo de atuação no setor público está sendo estabelecido. A formação adequada (IC2) constituiu outro aspecto relevante para a atuação do nutricionista, destacado pelos coordenadores. “A gente tem disciplinas que trabalham isso, como as Políticas Públicas, a própria Saúde Pública Aplicada à Nutrição, a Saúde Pública, a Epidemiologia, o Saneamento, a Avaliação Nutricional, Educação Nutricional, que a gente acaba trabalhando essa teoria das competências e habilidades a serem desenvolvidas no aluno, né?”.

Essa questão está em consonânca com as Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2001), que representam uma conquista ao considerar que o profissional deve apresentar formação humanística e crítica, voltada para a atenção dietética e para a SAN. Para tanto, os cursos de graduação devem oferecer oportunidades para o desenvolvimento de competências, tais como: atuação em políticas e programas de diversas áreas e na formulação e execução de programas de educação nutricional de vigilância nutricional, indicando a extrapolação do desenvolvimento de ações de prescrição e orientação dietética individual. É importante destacar que não somente as determinações da área da saúde, mas também as educacionais, são de responsabilidade do Estado ao formular políticas públicas relativas ao Ensino Superior. Assim, mudanças existentes nos currículos dos cursos são resultantes, dentre outros fatores, de iniciativas públicas. De modo complementar à formação profissional, outro aspecto, nomeado “atuação inerente à profissão” (IC4), evidencia que, por conta de características próprias do profissional, diferentemente de outros, o nutricionista apresenta facilidade para atuar em relação à SAN: “E o nutricionista é um profissional de referência pra discutir questões de alimentação, porque o alimento é nosso ambiente de trabalho [...] A criatividade e as estratégias são inerentes da profissão, né? Eu acredito que nós temos muito mais instrumentos, ferramentas pra conseguir, então a gente tem toda a parte metodológica, [...] fornecendo conhecimento pro seu público em geral, seja de qual área for”.

A atuação acerca da alimentação adequada confere a esse profissional uma condição peculiar na área da saúde: o perfil de educador para a proposição de mudanças de comportamento perante a sociedade, tal como analisam Banduk, Ruiz-Moreno e Batista (2009), em pesquisa que também envolveu 164

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coordenadores do curso de Nutrição. Dessa forma, ele é capaz de traduzir a ciência da nutrição em informações práticas que subsidiem melhores escolhas alimentares pela população, além de ter habilidades para trabalhar junto às comunidades, visando identificar suas necessidades e facilitar a construção de saberes em prol da defesa da saúde e da ação social. Ademais, dentre a equipe de saúde, o nutricionista é aquele com habilidades e competências, conferidas pela regulamentação profissão, para aconselhar sobre dieta, alimentação e nutrição, apresentando distintas possibilidades de atuação profissional, como em serviços de saúde, atendimento domiciliar, hospitais, unidades de alimentação, esporte e marketing. Tendo em vista a relação entre alimentação e saúde, e que o ato de se alimentar é fundamental para a sobrevivência, além de estar arraigado de valores sociais, históricos, econômicos e culturais, o nutricionista adquire papel efetivo na promoção da saúde (Dietitians of Canada, 2001). A formação também foi considerada insuficiente por parte dos coordenadores (IC9): “Eu acho que há uma preocupação maior com outras áreas de atuação em administração, em clínica, mas não com a segurança nutricional como um todo. Se a gente pensar só na segurança, a questão do controle higiênico-sanitário, eu acho que a gente dá mais conta dessa formação. Até muito recentemente, os cursos valorizavam demais o biológico em detrimento do social e o nutricionista saía com uma visão de que ele era o curador [...] e não aquele profissional que promove, que educa, que incentiva uma alimentação mais saudável. Eu não acho também que o enfoque é SAN... Isso é ministrado de uma forma fragmentada em algumas disciplinas, porque eu acho que não é muito valorizado, né?”.

De modo geral, as profissões relacionadas à saúde vêm sendo alvo de discussão, tendo em vista a necessidade de reorientação das práticas desses profissionais. Junqueira et al. (2010) apontam para a importância da formação de recursos humanos com características de autonomia e para a transformação da realidade. Já Feuerwerker (2001) defende que a mudança na graduação, a concepção ampliada de saúde, a integralidade, as práticas inovadoras e a rede de cuidados se tornarão realidade, efetivamente, dentro das escolas se forem objetivos a serem atingidos em todos os serviços de saúde, e não somente na rede pública, que é a tradução mais frequente de SUS, indicando que a atuação do profissional necessita se estender às diversas áreas que competem a ele. A percepção superficial dos nutricionistas sobre as possibilidades de atuação na SAN, associadas às críticas realizadas pelos coordenadores sobre problemas na formação desse profissional, sustentam indícios de que os projetos político-pedagógicos (PPP) dos cursos ainda não promovem a formação nessa área. As atuais Diretrizes Curriculares para o curso de Nutrição apontam para competências, como o reconhecimento da saúde como direito, com atuação integral acerca dela, enquanto Soares, Aguiar (2011) mostra que os projetos não priorizam a discussão sobre os valores humanos, éticos e culturais e a compreensão da realidade a partir de seu contexto histórico, econômico e político. Apesar de Banduk, Ruiz-Moreno e Batista (2009) enfatizarem que coordenadores do curso de Nutrição apontam para a necessidade de formação comprometida com os processos de transformação social, extrapolando as habilidades técnicas, fica evidente a dificuldade para que isso aconteça, inclusive no âmbito da SAN. Isso é ratificado na pesquisa de Soares e Aguiar (2011) com docentes do curso de Nutrição, ao considerar que as participantes da pesquisa consideraram a graduação frágil, técnica e teórica, e que os PPPs não estariam promovendo a formação na SAN prevista no perfil do egresso. A reflexão quanto à formação na graduação, porém, não deve estar limitada somente à adequação das disciplinas que constituem o currículo. Tendo em vista que SAN perpassa por diversas áreas, entende-se que a abordagem desse tema na graduação deveria ocorrer de modo transversal; e metodologias de ensino e de avaliação em classe e incentivo a atividades extraclasse contribuem para essa formação, por desenvolverem habilidades de comunicação, liderança, tomada de decisões, ética e trabalho em equipe. Distintos aspectos considerados como desfavoráveis à formação também vêm sendo discutidos. Costa (2002) elege como desafios: a reduzida carga horária para atividades de extensão e de pesquisa e o excesso de tempo destinado a temas do currículo do ciclo básico, e a desarticulação entre teoria e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.157-70, jan./mar. 2013

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prática e entre os conteúdos teóricos entre si. Experiências que integram teoria e prática são relevantes, segundo Pedroso e Cunha (2008), por contribuírem para o estabelecimento de relações entre as vivências de estágios e os conhecimentos já presentes na estrutura cognitiva do aluno, propiciando que este seja protagonista na construção de seu conhecimento. A própria formação política constitui aspecto relevante a ser considerado para a atuação do nutricionista, tendo em vista que este deve adquirir habilidades ao longo da graduação para atuar em políticas e programas distintos (Brasil, 2001). Mesmo frente às críticas existentes sobre a formação do nutricionista, por ter enfoque predominante em ciências biológicas em detrimento do campo políticosocial, Padua e Boog (2008) destaca a necessidade de os cursos extrapolarem as discussões ideológicas para contribuírem para a reflexão crítica sobre a realidade social e a prática profissional a partir desta perspectiva. A formação e o preparo dos docentes, apesar de não terem sido elucidados pelos entrevistados, torna-se um tema questionável para Amorim, Moreira e Carraro (2001) e para Costa (2009). É crescente a ênfase que vem sendo dada à necessidade de se gerar um profissional apto a contribuir com a sociedade além das aptidões técnicas inerentes à profissão, mas também nos campos político e social. Entretanto, professores tendem a reproduzir práticas de ensino fundadas na transmissão de conteúdos, o que pode estar relacionado com a própria formação do docente, dado que não há ênfase na área pedagógica para aquele que busca assumir essa função. Além disso, a desvalorização da carreira é outro aspecto que influencia a prática em sala de aula, dado que muitas instituições valorizam a pesquisa científica em detrimento da formação na graduação (Costa, 2002). As condições de muitas salas de aula, com número elevado de alunos e carga horária de trabalho elevada, também limitam o aprofundamento do processo de ensino entre aluno e professor. Percepções contrastantes sobre os mesmos fatores relacionados à atuação do nutricionista na SAN apontam para divergências em relação às políticas públicas na área da alimentação e nutrição e à formação que é oferecida ao estudante de Nutrição. Por outro lado, a menção de ambos os aspectos de modo tão evidente indica a importância da sua consideração para a discussão da atuação em SAN. Em síntese, a atuação na SAN vem sendo discutida com ênfase crescente no Brasil, levando, consequentemente, à reflexão sobre a profissão do nutricionista. O presente trabalho se propôs a elucidar aspectos a serem considerados de modo a contribuir para a incorporação da SAN em suas ações, sendo que emergiram o papel da formação e a complexidade da organização política para abarcar essa atuação. Tendo em vista que o objetivo inicial não vislumbrava a dualidade, posteriormente encontrada entre a formação e as políticas públicas, não foi possível aprofundar a discussão desses temas com os coordenadores investigados. Em contrapartida, as reflexões realizadas neste artigo permitem solidificar as contribuições existentes e perspectivar as lacunas reais para a atuação do nutricionista. Mesmo com a distância ainda existente entre a formação e o poder público, iniciativas têm sido promovidas de modo a superar tal condição. O Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), criado em 2007, visa promover a transformação do ensino em saúde no país, integrando-o à prestação de serviços à população (Brasil, 2007). Em consonância com o PróSaúde, o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) viabiliza programas de aperfeiçoamento e especialização em serviço dos profissionais da saúde e de iniciação ao trabalho aos estudantes da área, de acordo com as necessidades do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2008). Assim, o apoio que vem sendo dado para que alguns cursos de Nutrição no país reestruturem-se – promovendo a incorporação de práticas de atenção básica de saúde na formação dos alunos e o estabelecimento de canais que, mutuamente, incentivem a prática discente e a educação continuada de profissionais da saúde – vem ao encontro de uma das diretrizes da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Brasil, 2012), que estabelece a qualificação da força de trabalho, com foco no Sistema Único de Saúde, visando ao acesso universal ao alimento.

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Conclusões Com a ampliação do conceito da SAN no cenário nacional, relacionando-o com a promoção da saúde e a questões de caráter intersetorial, a atuação do nutricionista necessita estar em consonância com as atuais políticas públicas e com as diretrizes que norteiam a formação deste profissional. Foram distintos os aspectos destacados como barreiras e facilitadores para a atuação do nutricionista visando à SAN na perspectiva dos coordenadores de curso. O reconhecimento tanto das políticas públicas voltadas ao tema quanto da formação profissional está presente nas falas dos coordenadores, porém com percepções contraditórias. Foi nítida a consideração da limitação de ações na instância pública como uma barreira importante da atuação do nutricionista, sinalizando que a instituição parece não reconhecer que o nutricionista deve se apropriar da SAN em qualquer área de atuação. Mesmo existindo políticas relacionadas ao tema, os discursos mostraram que elas não são tidas como adequadas para a atuação vislumbrada pelos coordenadores, evidenciando incompatibilidade entre a expectativa que se constrói no egresso e as necessidades populacionais apontadas pelo Estado. Por outro lado, a formação proporcionada no Ensino Superior, apesar de ter sido destacada como adequada por alguns, ainda é considerada focada em competências técnicas em detrimento das humanísticas, fragmentada e desarticulada quanto às atividades teóricas e práticas, desfavorecendo a atuação do futuro profissional visando ao direito humano à alimentação adequada. Mesmo que em situação de conflito, foi evidente a responsabilidade conferida, pelos coordenadores, aos cursos de graduação e ao Estado para contribuírem para a atuação do nutricionista em SAN. Por outro lado, é importante destacar que estes dois aspectos encontram-se articulados, dado que a formação conferida pelo curso de graduação pode promover uma atuação profissional inserida em contexto políticos, enquanto o Estado pode direcionar o Ensino Superior por meio de políticas públicas. Conclusivamente, a politização do nutricionista consiste em estratégia fundamental para contribuir para a sua atuação na perspectiva da SAN, conferindo a ele visão crítica e ampliada sobre alimentação e nutrição. Ademais, possibilita-se, assim, que este ocupe espaços que vão além da atuação direta com a população, contribuindo que se aproprie de áreas de gestão e administração de políticas e programas em distintos setores.

Colaboradores Viviane Laudelino Vieira participou da concepção e desenvolvimento da pesquisa, análise dos resultados e redação do artigo; Natália Utikava participou do desenvolvimento da pesquisa, análise dos dados e revisão do artigo; Ana Maria Cervato-Mancuso participou da orientação de todo o processo que envolveu a realização da pesquisa e consequente redação do artigo. Agradecimentos Os autores agradecem ao grupo de pesquisa, credenciado ao CNPq, “Segurança alimentar e nutricional: formação e atuação profissional”, pelo apoio, colaboração e parceria.

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RECINE, E.; VASCONCELLOS, A.B. Políticas nacionais e o campo da Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva: cenário atual. Cienc. Saude Colet., v.16, n.1, p.73-9, 2011. doi: 10.1590/S1413-81232011000100011. SECCO, L.G.; PEREIRA, M.L.T. Concepções de qualidade de ensino dos coordenadores de graduação: uma análise dos cursos de odontologia do Estado de São Paulo. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.15, p.313-30, 2004. doi: 10.1590/S141432832004000200010. SOARES, N.T.; AGUIAR, A.C. Diretrizes curriculares nacionais para os cursos de nutrição: avanços, lacunas, ambiguidades e perspectivas. Rev. Nutr., v.23, n.5, p.895-905, 2011. doi: 10.1590/S1415-52732010000500019. VASCONCELOS, F.A.G. O nutricionista no Brasil: uma análise histórica. Rev. Nutr., v.15, n.2, p.127-38, 2002. doi: 10.1590/S1415-52732002000200001. VENÂNCIO, S.I. et al. Sistema de vigilância alimentar e nutricional do Estado de São Paulo, Brasil: experiência da implementação e avaliação do estado nutricional de crianças. Rev. Bras. Saude Mater. Infant., v.7, n.2, p.213-20, 2007. doi: 10.1590/ S1519-38292007000200012. VIEIRA, V.L.; CERVATO-MANCUSO, A.M. Percepções acerca da segurança alimentar e nutricional entre nutricionistas do município de São Paulo, Brasil. In: CONGRESO LATINOAMERICANO DE NUTRICIÓN, 15., 2010, Santiago. Anais... Santiago, 2009. 1 cd-rom. VIEIRA, V.L.; REIS, L.C. The future of human nutrition. In: GUINÉ, R.P. (Ed.). Food, diet and health: past, present and future tendencies. New York: Nova Science, 2009. p.403-41.

VIEIRA, V.L.; UTIKAVA, N.; CERVATO-MANCUSO, A.M. Las actividades profesionales en el ámbito de la seguridad alimentaria y nutricional en la perspectiva de los coordinadores de cursos de graduación en Nutrición. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.159-70, jan./mar. 2013. Se identifican los facilitadores y las barreras para el trabajo del nutricionista relacionados a la seguridad alimentaria y nutricional en la perspectiva de los coordinadores de cursos de Nutrición en São Paulo, Brasil, en un estudio cualitativo por medio de Discurso del Sujeto Colectivo. La política pública y la capacitación fueron mencionados tanto positiva como negativamente. Como facilitadores, fueran identificadas las ideas “existencia de políticas y programas públicos” y “formación adecuada” y como barrera, “la insuficiencia o no aplicación de tales políticas”, “pocas posibilidades de acción de nutricionista en el sector público” y “formación insuficiente o inadecuada”. Los coordinadores indican las políticas como importantes pero las acciones públicas son restrictas. La formación, aunque considerada adecuada por algunos, se ha criticado en cuanto a la complejidad técnica, la fragmentación y la desconexión entre la teoría y la práctica.

Palabras clave: Seguridad alimentaria. Recursos Humanos en Salud. Educación Superior. Sistema Único de Salud. Nutricionista.

Recebido em 10/04/12. Aprovado em 10/12/12.

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artigos

A experiência estética da literatura como meio de humanização em saúde: o Laboratório de Humanidades da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo* Yuri Bittar1 Maria Sharmila Alina de Sousa2 Dante Marcello Claramonte Gallian3

BITTAR, Y.; SOUSA, M.S.A.; GALLIAN, D.M.C. Esthetic experiencing of literature as a means for humanization of healthcare: the Humanities Laboratory at São Paulo Medical School, Federal University of São Paulo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.171-86, jan./mar. 2013. This study focused on the Humanities Laboratory of the Center for History and Philosophy of Health Sciences, Federal University of São Paulo (UNIFESP). Our objective was to analyze how this educational activity, which is grounded on the aesthetic and reflective experience promoted by reading classic literature, act and impacts on healthcare students and professionals, thereby giving rise to humanistic training and humanization within healthcare. Starting from qualitative methodology, based on participant observation and on the participants’ oral life histories, this study sought to assess and understand how an educational activity based on humanities can be proposed as a way towards humanizing healthcare. Our results showed that this was an effective approach, in that the esthetic experience promoted by reading the classics created an effect among the Humanities Laboratory participants, thereby producing reflective momentum that resulted in changes at both professional and personal levels.

Keywords: Humanization. Humanities. Literature. Healthcare education. University.

Este estudo tem como objeto o Laboratório de Humanidades (LabHum) do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da Unifesp. Nosso objetivo foi analisar de que forma esta atividade formativa, fundamentada na experiência estética e reflexiva provocada pela leitura de clássicos da literatura, atua e impacta em estudantes e profissionais da área da saúde, promovendo a formação humanística e a humanização no âmbito da saúde. Partindo de uma metodologia qualitativa, baseada na observação participante e na história oral de vida dos participantes, procurou-se avaliar e compreender como uma atividade formativa baseada nas humanidades pode ser proposta como um caminho de humanização em saúde. Os resultados apontam a eficácia dessa abordagem, na medida em que a experiência estética promovida pela leitura dos clássicos afeta os participantes do LabHum, gerando um movimento de reflexão que redunda em mudanças no âmbito profissional e pessoal.

Palavras-chave: Humanização. Humanidades. Literatura. Ensino em saúde. Universidade.

* Elaborado com base em Bittar (2011); pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética Institucional da Unifesp. 1,3 Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp). Rua Botucatu, 720, Vila Clementino. São Paulo, SP, Brasil. 04.023-900. bittar@unifesp.br 2 Laboratório de Endocrinologia Molecular e Translacional, Departamento de Medicina, EPM/Unifesp.

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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DA LITERATURA COMO MEIO DE HUMANIZAÇÃO ...

Introdução O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa realizada entre os anos de 2009 e 2011 sobre uma atividade universitária denominada Laboratório de Humanidades (LabHum). Esta pesquisa, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Ciências da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo (CEDESS/Unifesp), teve como finalidade verificar o impacto que a experiência do Laboratório de Humanidades teve em seus participantes, e analisar em que medida essa experiência teve um efeito humanizador, de acordo com determinados referenciais teóricos e práticos, que aqui serão apresentados. Complementarmente a este objetivo central, esta pesquisa propõe verificar em que medida esta atividade universitária pode ser implementada como meio de uma formação humanística e de humanização em Saúde. A metodologia utilizada neste estudo foi, sobretudo, a da História Oral de Vida (Gallian, 2008; Holanda, Bom-Meihy, 2007), a qual, através de entrevistas não diretivas com alguns participantes do LabHum, permitiu a composição de narrativas que se constituíram como fontes primordiais para a análise. Conjuntamente a esta abordagem recorreu-se, também, à Observação Participativa (Geertz, 2002; Bogdan, Biklen, 1994) e à Análise Documental (Miller, Crabtree, 2004) dos relatórios produzidos pelos participantes. A análise de toda a documentação recolhida permitiu identificar temas imanentes que se inserem na discussão sobre a problemática da humanização em saúde, tal como vem sendo colocada pela bibliografia específica e pelas diretrizes das políticas públicas nacionais (Brasil, 2010, 2003).

A temática da humanização em saúde e o Laboratório de Humanidades A ideia de realizar uma pesquisa sobre o LabHum surgiu a partir das perplexidades e questionamentos que nos advinham enquanto participantes ativos desta atividade. Atentos, por um lado, aos efeitos transformadores que experimentávamos em nós mesmos e em colegas próximos também participantes e, por outro, interessados em compreender e discutir novas propostas de formação humanística e humanização em saúde, o estabelecimento da experiência do LabHum como objeto de estudo no escopo de um programa de pós-graduação em Ensino em Ciências da Saúde configurou-se como algo extremamente pertinente. Os que atuam profissionalmente na área da Saúde há algum tempo acabam por conhecer, inevitavelmente, os efeitos deletérios da desumanização que se vivencia de forma cotidiana e progressiva neste campo (Martins, 2002). Consequentemente, os últimos anos vêm conhecendo, também de forma cotidiana e progressiva, os programas de humanização, que, propostos por uma Política Nacional de Humanização (PNH), pretendem minorar ou reverter essa dinâmica desumanizadora (Brasil, 2001). A aplicação desta política através dos mais variados programas, ainda que tenha trazido inegáveis avanços na qualidade do atendimento, apresenta, entretanto, uma série de problemas, especialmente no que se refere ao impacto e aceitação por parte dos profissionais aos quais tais programas são destinados (Barros, Passos, 2005). Segundo Gallian e Reginato (2009, p.124): Quase sempre, considera-se como óbvio que o que se entende por humanização seja o desenvolvimento de ações e atitudes que redundem numa melhoria das relações dos profissionais da Saúde entre si e destes com seus pacientes, o que implica em maior respeito, consideração, atenção, enfim, uma maior humanidade. Neste sentido, programas de “treinamento” vêm sendo desenvolvidos, na intenção de promover “habilidades humanísticas” que serão “agregadas” às “competências técnicas” do profissional da Saúde, seja na sua base educacional, seja no exercício de sua prática. Ao se analisar, entretanto, os resultados de tais abordagens ou programas, levando-se em consideração as opiniões e sentimentos dos que estão sendo treinados ou “educados”, percebe-se claramente a sua ineficácia.

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BITTAR, Y.; SOUSA, M.S.A.; GALLIAN, D.M.C.

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artigos

Havendo perdido o élan com os fundamentos filosóficos e culturais humanísticos, essas novas propostas educacionais, nascidas no seio de uma cultura científico-tecnicista, pretendem “ensinar” ou “incutir” humanismo ou humanidade da mesma forma como ensinam e incutem habilidades cognitivas e técnicas. Os educandos ou profissionais, por sua vez, encaram todo esse processo como mais um conjunto de conteúdos e técnicas que precisam ser incorporadas, num pacote de “competências” e “habilidades” já demasiadamente pesado e exigente, que apenas incrementa a angústia e a ansiedade (Gallian, Pondé, Ruiz, 2012). Em suma, havendo descuidado do que é ser humano, a educação contemporânea, no intuito de humanizar, acaba, muitas vezes e paradoxalmente, por contribuir para a desumanização (Nakamoto, 2008). Diante deste impasse que se observa frente à problemática da humanização em Saúde, urge reconsiderar a questão a partir de outros pressupostos teóricos e a partir de outras abordagens educacionais, que se fundamentem nestes pressupostos. De maneira particular, tal como propõe este trabalho, cabe investigar, por exemplo, a validade de uma proposta baseada na experiência estética das humanidades (concretamente da literatura) como meio de formação humanística e de humanização em Saúde. Esta problematização, que justifica e fundamenta teoricamente esta pesquisa, referenciando e norteando seus objetivos, advém de um projeto de pesquisa maior, ao qual este trabalho está vinculado. Trata-se do projeto regular de pesquisa intitulado “As Patologias da Modernidade e os Remédios das Humanidades: investigação e experimentação”, que conta com o financiamento da Fapesp e congrega mais de uma dezena de pesquisadores em nível de iniciação cientifica (dos cursos de Medicina e Enfermagem), mestrado e doutorado dos programas de Saúde Coletiva e Ensino em Ciências da Saúde da EPM/Unifesp. O projeto, iniciado em 2009, desenvolve-se em duas vertentes, uma “teórica” e outra “experimental”. A primeira objetiva uma investigação “arqueológica” dos conceitos de humanidades e humanização, assim como das bases e pressupostos teóricos dos atuais programas e políticas de humanização. A segunda procura avaliar experiências e propostas de humanização a partir do campo das humanidades, enfocando, fundamentalmente, o LabHum e seus desdobramentos em diversos cenários, não apenas acadêmico como, também, profissional e corporativo, tal como em associações, hospitais, entre outros campos da Saúde. A pesquisa que aqui apresentamos insere-se nesta vertente “experimental” de seu projeto mantenedor, e se encontra centrada na análise do núcleo original e referencial das demais experiências: o LabHum da EPM/Unifesp. Por conseguinte, tomando como base a noção de humanização, não como um conjunto específico de competências e habilidades, mas como um processo contínuo de ampliação da esfera do ser, tal como a caracteriza Teixeira Coelho (2001) a partir da obra de Montesquieu, nossa pesquisa objetivou avaliar em que medida e de que forma o LabHum pode ser considerado e proposto como um meio válido e efetivo de formação humanística e de humanização em Saúde. O momento crítico em que nos encontramos, marcado fortemente, por um lado, pelo paradoxo do desenvolvimento científico-tecnológico versus desumanização e, consequentemente, pelo crescente ceticismo em relação às conquistas e realizações das ciências, e, por outro, pela crise dos fundamentos antropológicos da perfectibilidade, apresenta-se como contexto altamente propício para a retomada ou resgate das humanidades (Gallian, Pondé, Ruiz, 2012). Efetivamente, a tecnificação do conhecimento e, consequentemente, da educação, tem fragilizado e comprometido o próprio sistema, o próprio mercado. Num contexto de crescente dinamismo e diversificação, como é hoje, por exemplo, o mercado de trabalho, “uma educação que vise apenas à eficácia técnica especializada, corre o risco de se tornar, paradoxalmente, obsoleta” (Ribeiro, 2001, p.16), contribuindo para o processo de desculturalização do ensino (Teixeira Coelho, 2001). Entendendo a experiência da cultura como meio facilitador da experiência do difuso e do indeterminado e da ampliação da esfera de presença do ser, a educação por meio das humanidades apresenta-se como elemento indispensável para a própria sobrevivência da universidade no século XXI. Na visão de Teixeira Coelho, é através do exercício das humanidades que se desenvolve o cogito prismático, o tipo de pensamento requerido para abordar a realidade humana de uma maneira não idealista, portanto livre das condicionantes da precisão e do significado, tão característicos da perspectiva científica moderna. A visão prismática da realidade – 173


A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DA LITERATURA COMO MEIO DE HUMANIZAÇÃO ...

aquela propiciada pela arte, pela literatura – possibilita transcender uma interpretação do “mundo e da vida de acordo com o metro do preciso e do significado, do certo e do errado, do correto e do falso” (Teixeira Coelho, 2001, p.69).

O Laboratório de Humanidades O Laboratório de Humanidades foi criado no Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde (CeHFi) da EPM/Unifesp em 2003. Primeiramente, como atividade extracurricular livre, depois, como atividade de extensão e, mais recentemente, como disciplina eletiva para os cursos de graduação (medicina, enfermagem, fonoaudiologia e ciências biomédicas) e para os programas de pós-graduação do campus São Paulo/Unifesp. Trata-se de uma atividade que propõe a leitura e discussão de clássicos da literatura universal como meio de despertar a reflexão e contribuir para a formação humanística de estudantes e profissionais da área da Saúde. Nascido de forma espontânea, como relata seu criador e coordenador, um dos entrevistados desta pesquisa (Colaborador 2), o LabHum teve início com um grupo de graduandos do curso médico da EPM/Unifesp que pretendia dar continuidade a uma prática de estudos experimentada durante a disciplina eletiva de História da Medicina. Tal disciplina consistia na leitura e discussões de textos de clássicos da medicina. Destes a dinâmica passou aos clássicos da literatura e, assim, a atividade evoluiu para seu formato característico, hoje batizado Laboratório de Humanidades. Congregando, inicialmente, apenas alunos do curso médico, o LabHum ampliou sua esfera de participantes e passou a englobar não somente alunos de graduação dos cursos de Medicina, Enfermagem, Biomedicina e Fonoaudiologia, mas, também, pós-graduandos de diversos programas do campus São Paulo, além de funcionários e membros da comunidade Unifesp, denominados “Participantes Livres”. Em 2005, o LabHum foi credenciado como atividade de extensão junto à Unifesp e, em 2009, passou a ser oferecido aos programas de pós-graduação como atividade creditada, mediante avaliação de aproveitamento via relatórios e participação presencial. A dinâmica ou metodologia do LabHum, por sua vez, foi delineada ao longo de sua história e, em 2010, assumiu a forma atual. Tal dinâmica, portanto, consta de ciclos semestrais que contemplam leitura e discussão de dois a três livros por semestre, escolhidos pelos coordenadores. Uma vez escolhida a obra, esta deve ser lida previamente por todos que se matriculam no ciclo – o tempo determinado para tanto é de, aproximadamente, um mês, quando se trata do início do ciclo semestral (fevereiro e agosto), e de duas semanas, quando se trata de livros que serão discutidos no meio do ciclo semestral. Os encontros são semanais e têm duração de noventa minutos, sendo que a carga horária de cada ciclo semestral é de 28 horas. Atualmente, o LabHum é composto por duas turmas, nas quais participam, em média, trinta pessoas. É importante esclarecer que, além dos alunos recém-matriculados a cada novo ciclo, existem aqueles que, mesmo já tendo participado do LabHum e obtido, portanto, créditos, rematriculam-se como “Participantes Livres”. Estes últimos, logo, constituem o que se costumou chamar de núcleo duro do LabHum. No primeiro encontro, os coordenadores explicam os objetivos e a metodologia do LabHum, esclarecem os fundamentos teóricos que norteiam a atividade e indicam as relações entre: a) experiência estética provocada pela leitura, b) o processo de reflexão desencadeado pelo compartilhamento dessa experiência, e c) o consequente efeito humanizador que resulta de todo esse processo. Isso pressupõe, conforme informam os coordenadores, uma desconstrução ou requalificação do conceito de humanização, que vem sendo feita, de forma ampla, profunda e sistemática, através do grupo de pesquisadores que participam do projeto “As patologias da modernidade e os remédios das humanidades”. Uma vez feita esta apresentação teórica e metodológica, inicia-se a primeira fase da dinâmica do LabHum: a fase das histórias de leitura. Neste momento, os participantes, posicionados em círculo, são convidados a narrarem, sucintamente, a forma de leitura individual da obra; quais os sentimentos, os afetos, as ideias, as lembranças e os questionamentos que emergiram desta leitura. Como explica um dos coordenadores do LabHum:

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artigos

“[A] História de Leitura não é contar a história do livro, pois essa todo mundo já sabe, já que todo mundo leu, mas trata-se antes de contar a história da “minha leitura”; o que eu vi, o que eu senti ao ler esse livro; se gostei ou não gostei e porquê; quais os sentimentos, afetos que a sua leitura me suscitou... Trata-se de contar de que forma eu li o livro e o livro me leu...”. (Colaborador 2)

Tal abordagem é considerada fundamental, na medida em que toda proposta de humanização que se quer autêntica e efetiva deve partir de uma “concepção tridimensional do ser, ou seja, de uma antropologia que veja o humano enquanto um ser dotado de afeto, inteligência e vontade” (Colaborador 2). Neste sentido, o autêntico processo de humanização só poderá ser desencadeado se partir de uma experiência que é primariamente afetiva; experiência esta que o contato com as artes, neste caso, a literatura, podem proporcionar de maneira íntegra. A partir do compartilhamento e síntese das histórias de leitura, cabe ao coordenador elaborar e propor, para o encontro seguinte, o itinerário de discussão; a segunda fase da dinâmica ou metodologia do Laboratório de Humanidades. “Uma vez mapeados os afetos, sentimentos, ideias e questionamentos trazidos através das histórias de leitura, pode-se esboçar um verdadeiro itinerário de discussão, que já aponta os passos a serem dados nos próximos encontros do LabHum. Trata-se, muitas vezes, de estabelecer um “programa de investigação” sobre determinados personagens do livro, indicando quem vamos ‘investigar’ primeiro e quem virá depois; ou então, de estabelecer uma sequência de temas ou questões que surgiram nas histórias de leitura e que procuraremos enfrentar... Às vezes, pode ser as duas coisas juntas”. (Colaborador 2)

Esta é a fase central, mais extensa e fundamental da dinâmica do LabHum, ocupando, em média, de cinco a sete encontros semanais. É nesta fase que se desenvolvem as discussões mais importantes, girando em torno de personagens, percepções, atitudes, valores. Durante estes encontros, é muito frequente que a análise da obra remeta a situações da vida profissional e pessoal dos participantes, levando-os a refletir criticamente sobre sentimentos, atitudes e comportamentos próprios e alheios. “É neste momento em que se percebe como a experiência estética, suscitando a reflexão, remete para a experiência vivencial, promovendo o exame critico, a revisão de ideias, concepções e crenças. A comunicação entre arte, pensamento e vida se estabelece não apenas de forma intelectual, distante, mas de forma afetiva e efetiva, na medida em que gera um movimento de transformação”. (Colaborador 2)

Fechando o ciclo de uma obra, apresenta-se a última fase da dinâmica da LabHum: a das histórias de convivência. Esta fase coincide com a última reunião do ciclo e é o momento de encerrar o itinerário de discussão. Neste encontro é solicitado que cada participante faça uma análise sobre a experiência que vivenciou nas fases anteriores; experiência advinda da leitura do livro e, também, do compartilhamento de outras leituras, das impressões, opiniões e considerações ouvidas e trabalhadas ao longo do ciclo. “Momento de síntese, o encontro das histórias de convivência é a oportunidade de cada participante se perguntar e dizer: ‘o que aprendi com esta obra? O que aprendi com toda essa experiência humana estética, afetiva e intelectual que vivenciei por causa deste livro nesta últimas semanas?’ Geralmente, o momento das histórias de convivência estão marcados por fortes emoções, sendo muito comum o choro de alguns participantes, seguidos, invariavelmente, por pedidos de desculpas. Eu costumo dizer: será que chegamos a tal ponto de desumanização que precisamos pedir desculpas por sermos seres afetivos, dotados de sentimentos e emoções?”. (Colaborador 2)

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Apesar do clima afetivo e emotivo que algumas reuniões do LabHum podem apresentar, tão incomum no ambiente acadêmico atual, entretanto, é interessante notar que tais situações não se desdobram para o sentimentalismo. O lastro da obra literária e a estruturação da dinâmica determinada por uma metodologia clara e amadurecida, além do papel orientador dos coordenadores e a posição ativa de seus participantes, são elementos que explicam o harmonioso equilíbrio entre descontração, subjetividade e rigor intelectual e acadêmico, que caracterizam os encontros do LabHum.

Método Partindo dos referenciais teóricos acima delineados e considerando as perguntas pertinentes à formação humanística e à humanização em Saúde, ponderamos a necessidade de buscar metodologias que possibilitassem aceder não tanto à dimensão do factual e quantificável, mas do subjetivo e experiencial (Gallian, 2008). Logo, optamos pela complementaridade obtida da união de três metodologias de pesquisa qualitativa que se adequavam para nosso objetivo: a observação participante, a história oral de vida e a análise documental. A observação participante, tal como vem sendo trabalhada no âmbito da pesquisa qualitativa (Bogdan, Biklen, 1994) – na qual a relação entre pesquisador e objeto se estabelece não a partir do princípio da neutralidade, mas, sim, a partir da noção de “explicitação da subjetividade como fundamento da objetividade” (Geertz, 2002, p.21) –, apresentou-se como uma abordagem adequada para descrever e compreender nosso objeto enquanto acontecimento. O emprego de seus referenciais e da perspectiva etnográfica delineada por Geertz (2002), por conseguinte, permitiram registrar e descrever o acontecimento LabHum em sua dinâmica, identificando seus diversos momentos, para observar a forma e a extensão do envolvimento de seus participantes nas diferentes fases acima delimitadas. Além deste método, visando também avaliar o impacto desta experiência pioneira sob uma perspectiva mais individual, subjetiva e amplificada no tempo (Ousanger, Johannessen, 2010), a abordagem da história oral de vida, tal como proposta por Holanda e Bom-Meihy (2007), apresentou-se extremamente pertinente. Tal enfoque possibilitou, por sua vez, uma análise aprofundada das narrativas dos colaboradores, ilustrando a importância desta experiência no contexto das vivências profissionais e pessoais, tendo em vista a forma pela qual se opera o processo de humanização e desumanização no âmbito das Ciências da Saúde. Dos 194 participantes, dez colaboradores foram selecionados, conforme os seguintes critérios: a) ser participante assíduo do LabHum (Quadro 1); b) estudar ou atuar na área da Saúde; c) aceitar o convite para conceder a entrevista, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; e d) “rendimentos decrescentes” (Holanda, Bom-Meihy, 2007, p.43) para encontrar o número ideal de entrevistas, evitando repetição excessiva de perfis (resumidos no Quadro 2). As entrevistas livres e semiestruturadas, conforme preconizado por Bom-Meihy (2005), consistiram em explicitar os objetivos do projeto e, após o aceite do colaborador, pedir que este contasse a própria trajetória de vida, focando no âmbito da sua formação acadêmica e profissional. Ao longo da entrevista, oportunamente, foram feitas as seguintes “perguntas de corte”: de que forma a sua participação no LabHum o impactou? Como esta experiência afetou sua prática profissional? Uma vez gravadas digitalmente, as entrevistas foram transcritas literalmente e, então, transcriadas (Bom-Meihy, 2005), ou seja, adaptadas para a linguagem escrita. Este processo de correção e reorganização do texto visou “transpor” o “acontecimento entrevista num relato literário, fiel ao mesmo tempo à fala do narrador e aos cânones fundamentais do código escrito” (Gallian, 2008, p.25). Em seguida, tais versões transcriadas foram devolvidas aos colaboradores, para revisão, correção e aprovação. Por fim, tomando como referencial a abordagem de interpretação denominada imersão e cristalização, tal como sugerida por Miller e Crabtree (Denzin, Lincoln, 1994), empregamos a análise documental de registros diversos recebidos e armazenados no CeHFi/EPM/Unifesp – tais como: listas de presença, lista de obras lidas (Quadro 3), mensagens virtuais trocadas pelos participantes na lista de 176

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BITTAR, Y.; SOUSA, M.S.A.; GALLIAN, D.M.C.

Classificação 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 ... 60

Formação Historiador Biomédico Médica Médica Biomédico Médica Psicóloga Médica aposentada Filósofa e psicóloga Jornalista Administradora Psicoterapeuta Biólogo Biomédica Bióloga Biomédica Biomédica (não informado) Pedagoga Psicóloga Biomédica Enfermeira Psicólogo Médica (não informado) Assistente social Biomédico (não informado) Médico Médica Médica veterinária Educador físico Enfermagem (não informado) Psicóloga Médico Psicóloga (não informado) Enfermeira Sociólogo

Vínculo Funcionário Estudante CeHFi Ex-aluna Estudante Externo Funcionário Externa CeHFi Funcionário Funcionária Externo Mestrado Graduação Externo Graduação Docente Externo Doutorado Externo Mestrado Graduação Doutorado Graduação Funcionário Externo Graduação Externo Funcionário Graduação Externa (não informado) Graduação (não informado) Pós-Graduação Graduação Especialização (não informado) Graduação Mestrado

Participações 92 87 85 73 71 58 58 55 50 47 43 38 36 36 35 35 34 34 30 30 30 29 29 27 26 26 26 25 25 23 22 21 19 19 19 19 18 17 17 17

Colaborador

Enfermagem

Graduação

12

3

artigos

Quadro 1. Colaboradores em ranking dos quarenta participantes mais ativos

5

10 4 1

8 6

7

9

O colaborador 02 não aparece neste ranking por ser o coordenador do grupo e não assinar a lista de presença.

discussão por e-mail, relatos e testemunhos publicados no Blog do LabHum, relatórios semestrais produzidos com intuito de acreditação da disciplina elegida para fins acadêmicos, além do caderno de campo etnográfico e das próprias narrativas validadas. Deste modo, tal análise documental permitiu a composição de um quadro compreensivo do LabHum para o estabelecimento tanto do número e do perfil de seus participantes (idade, gênero, curso de origem, nível de formação, frequência e associação com a Unifesp), quanto do tom vital das narrativas (Quadro 2) e das categorias temáticas da análise documental. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.171-86, jan./mar. 2013

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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DA LITERATURA COMO MEIO DE HUMANIZAÇÃO ...

Quadro 2. Perfil dos colaboradores

178

Entrevistado

Gênero e ano de nascimento

Profissão / Atividade

1

Feminino, 1961

Psicóloga, funcionária da Unifesp

“Me incomodo muito com a injustiça e, não sei explicar direito, e eu pego pesado mesmo.”

2

Masculino, 1966

Historiador, docente na Unifesp e coordenador do LabHum

“O mais importante é perceber o impacto que a literatura tem na experiência de vida da pessoa, e fomentar isso!”

3

Feminino, 1983

Graduanda de Enfermagem na Unifesp

“Para mim era um mundo diferente e novo, eu não conhecia aquelas discussões, era tudo novidade!”

4

Feminino, 1949

Médica formada pela EPM/ Unifesp

“... a história da minha vida parece ser permeada por essas decisões do coração, que às vezes fala mais alto e mostra um rumo.”

5

Feminino, 1983

Biomédica graduada e mestre pela Unifesp

“A minha experiência inicial com o LabHum foi de total surpresa, eu não entendi nada daquilo, mas achei maravilhoso, e então algo na minha mente se abriu!”

6

Feminino, 1984

Biomédica graduada, Mestranda pela Unifesp

“A ciência te dá muitas informações, mas te consome, te exige uma dedicação quase exclusiva, e há uma supervalorização desse lado técnicocientífico, mas foram as humanidades que me salvaram de um naufrágio. Foi o LabHum que me deu a oportunidade de parar para pensar e ver o que estava dentro de mim mesmo! A experiência do LabHum foi meu ponto de virada.”

7

Feminino, 1955

Veterinária, docente na UFRPE e doutoranda pela USP

“Eu vejo como o LabHum deu respaldo para que eu tivesse essa humanidade, alterou meu fazer, meu ofício de professora, hoje eu não sou apenas professora, sou uma pessoa, e estou professora, e tento melhorar, e é assim que vejo minha vida hoje.”

8

Masculino, 1976

Biólogo e mestrado pela Unifesp

“Eu vim para a Unifesp com o propósito de conhecer novos pontos de vista, ver a realidade de uma universidade, da pós- graduação, encontrar novos pontos de vista, mas foi só o LabHum que me permitiu realizar isso.”

9

Feminino, 1983

Psicóloga e especialista pela Unifesp

“Se eu não olhar para o paciente como uma pessoa, não vou conseguir tratá-lo. Então comecei a perceber que eu estava totalmente fechada naquele mundo, eu precisava sair para poder ter essa visão mais ampla e humana. E acho que uma das melhores formas é através da leitura, através da literatura, porque fala de sentimentos humanos, e ter um espaço onde se possa compartilhar essa experiência, é importante!”

10

Masculino, 1988

Biomédico, graduado e mestrando pela Unifesp

“O LabHum participa mais de mim do que eu do LabHum, porque aquelas discussões continuavam repercutindo na minha vida durante a semana!”

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Tom vital da narrativa


BITTAR, Y.; SOUSA, M.S.A.; GALLIAN, D.M.C.

2006 – 1º semestre O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger História sem fim, de Michael Ende Dom Quixote, de Miguel de Cervantes y Saavedra Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

2009 – 1º semestre O coração disparado, de Adélia Prado Zorba, o grego, de Nikos Kazantzakis Quincas Borba, de Machado de Assis A metamorfose, de Franz Kafka

2006 – 2º semestre Anna Karenina, de Tolstói Anima mundi ou A alma do mundo, de Suzana Tamaro A tempestade, de Shakespeare

2009 – 2º semestre Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector Macbeth, de William Shakespeare O senhor dos anéis, de JRR Tolkien

2007 – 1º semestre O idiota, de Dostoiévski Vá aonde seu coração mandar, de Susanna Tamaro O sentido da vida, de Mitch Albom

2010 – 1º semestre Os demônios, de Dostoiévski Dom Casmurro, de Machado de Assis

2007 – 2º semestre Franny e Zooey - Família Glass, de J.D. Salinger Alice no país das maravilhas, de Lewis Caroll Frankenstein, de Mary Sheley

2010 – 2º semestre A odisséia, de Homero O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

2008 – 1º semestre A morte de Ivan Ilich, de Tolstói Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis Crime e castigo, de Dostoiévski

2011 – 1º semestre A divina comédia. Livro I, “O Inferno”, de Dante Alighieri Alice através do espelho, de Lewis Caroll

2008 – 2º semestre Primeiras estórias, de Guimarães Rosa A morte de Ivan Ilich, de Tolstói Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski

2011 – 2º semestre Admirável mundo novo, de Aldous Huxley Zorba, o grego, de Nikos Kazantzakis

artigos

Quadro 3. Cronograma de obras trabalhadas

Cabe ainda esclarecer que, durante esta etapa de análise documental, o processo de imersão e cristalização das categorias temáticas consistiu na leitura atenta e confronto exaustivo de todos os dados ou elementos que emergiram das fontes documentais supracitadas, em associações combinatórias e repetitivas (Denzin, Lincoln, 1994). Esta metodologia, aliada ao processo de obtenção das narrativas dos colaboradores, garantiram a validade dos achados.

Resultados e discussão Como ponto de partida para nossa análise, investigamos o perfil de seus participantes e verificamos sua assiduidade. Para tal, utilizamos dados das listas de presença dos encontros semanais, com o objetivo de quantificar as inscrições e mapear a participação de cada indivíduo. Para tal, consideramos o período de janeiro de 2006 a dezembro de 2010 (dez semestres), durante o qual foram realizados cento e vinte encontros, em média 12 por semestre. Nestes cento e vinte encontros, 31 obras foram lidas e discutidas (Quadro 3) por um total de 194 participantes presenciais, dos quais 64 são homens (33%) e 130 mulheres (67%); sendo que, entre os quarenta que mais participaram, dez são homens (25%) e trinta mulheres (75%), delineando, portanto, um perfil majoritariamente feminino entre os participantes. Sistematizando os achados desta primeira análise de cunho quantitativo sobre o perfil de participação no LabHum, verificamos que tais participantes constituem três categorias dentro da população dos que frequentam tal atividade: estudantes de graduação e de pós-graduação dos diversos cursos e programas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.171-86, jan./mar. 2013

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oferecidos no campus São Paulo/Unifesp, além dos “participantes livres” (docentes, funcionários, pessoas do entorno geográfico e da comunidade em geral). Cada uma dessas categorias de participantes representa 1/3 da totalidade do grupo, que perfaz, em geral, trinta pessoas por turma, sendo que a maioria (95%) pertence à área da Saúde. Considerando os objetivos de nossa pesquisa, centrados na investigação do impacto que o LabHum pôde produzir em seus participantes, a análise das fontes documentais estabeleceu uma série de categorias temáticas que nos permitiram perceber de que forma a experiência do LabHum impactou seus participantes, contribuindo para a sua formação humanística, ou para o processo de humanização, dentro de um contexto acadêmico em Saúde. Constatamos, portanto, que o impacto da experiência se dá, de acordo com cada participante, em níveis e dimensões distintas, apresentando-se, primariamente, por exemplo, como uma oportunidade de encontro com as humanidades ou, então, de reencontro, reforçando e ampliando uma experiência já vivenciada. Por outro lado, constatamos, também, em que medida a experiência do LabHum despertou ou veio ao encontro da reflexão sobre o olhar para o outro, determinando um espaço de encontro consigo mesmo, um espaço de abertura e ampliação de horizontes e, inclusive, de mudança de vida ou ponto de inflexão.

LabHum: espaço de encontro com as humanidades e a literatura Sete dos dez colaboradores relataram que, apesar de atuarem na área da Saúde, trazem, em sua história de vida, um especial interesse e envolvimento com as humanidades, em especial, com a literatura. Neste sentido, o interesse pelo LabHum se deu por afinidade com a temática e como uma oportunidade de, num contexto acadêmico estritamente técnico e científico, como o de um campus universitário na área da Saúde, encontrar um espaço de reencontro com a literatura e as humanidades. Três colaboradores relataram que, apesar de terem algum contato esporádico e superficial com a literatura, passaram a descobrir o verdadeiro prazer e a real importância desta experiência a partir de sua participação no LabHum. Exemplos: “A literatura já estava na minha vida, mas em pouca quantidade, eu lia dois ou três livros por ano. [...] Mas o LabHum acelerou minha leitura. Hoje, além dos livros do LabHum, eu leio pelo menos mais três a cada semestre. E o importante não é só que estou lendo mais, mas é a qualidade dessa leitura!”. (Colaborador 8) “Mudei muito a minha forma de lidar com os livros e isso foi muito rápido a meu ver. Sempre gostei muito de livros mas não conseguia ter ritmo de leitura. Agora que existe um grupo muito acolhedor, ler e compartilhar traz muita satisfação. Tanto isto é verdade que já estou lendo até outros livros, simultaneamente...”. (Mensagem virtual de L.N.)

LabHum: espaço de encontro consigo mesmo Para outros participantes, o LabHum apresenta-se como um “ponto de encontro consigo mesmo”, um lugar de “ser como se é” (Colaboradores 4 e 8). Relatam reencontros com hábitos perdidos, como o da leitura, ou a satisfação por encontrar um grupo que os acolhesse, tal como se pode perceber nesta mensagem virtual enviada por E.C.H.: “O LabHum é um espaço de inteligência e sensibilidade, que faltava totalmente em minha vida desde minha adolescência”. Neste sentido, o LabHum aparece no relato desses participantes como um espaço de expressão da sensibilidade; um lugar para que se “escute também o coração e não apenas a razão” (Colaboradora 4). A imagem de “espaço de identificação e aceitação” e, mesmo, de “refúgio” das sensibilidades também é recorrente. A colaboradora 4 o traduz poeticamente: “[...] eu acho que é isso que o LabHum me dá: um momento de certo conforto, onde encontro o professor e os colegas com o mesmo olhar e a mesma música”.

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artigos

Portanto, na dinâmica desumanizadora da cultura científica na área da Saúde, a experiência do LabHum, enquanto espaço fomentador das sensibilidades e da reflexão, pode significar, para alguns participantes, uma tábua de salvação humanística: “A ciência te dá muitas informações, mas te consome, te exige uma dedicação quase exclusiva, e há uma supervalorização desse lado técnico-científico, mas foram as humanidades que me salvaram de um naufrágio. Foi o LabHum que me deu a oportunidade de parar para pensar e ver o que estava dentro de mim mesmo!”. (Colaboradora 6)

LabHum: espaço de revisão do olhar para o outro Esta experiência de encontro consigo mesmo, que o LabHum proporciona, se desdobra, no relato de muitos participantes, numa revisão do olhar em relação ao outro, de maneira particular naqueles que, por força do ofício, são obrigados a lidar com pacientes. Configura-se, portanto, como uma chance para a prática da reflexão ética e, consequentemente, para a vivência do ato ético. Desta maneira, relata a colaboradora 4: “Eu estudava [radiologia], eu lia, mas algo não entrava, faltava o paciente. A experiência do LabHum possibilitou perceber o que estava faltando; essa peça chave que é o paciente”. A descoberta da literatura como uma forma de sair de si mesmo e aprender a ver o outro é um dos efeitos mais ressaltados no âmbito da experiência do LabHum. O impacto na mudança da relação entre profissional da Saúde e paciente é um ponto importante a ser evidenciado: “Se eu não olhar para o paciente como uma pessoa, não vou conseguir tratá-lo. Então comecei a perceber que eu estava totalmente fechada naquele mundo, eu precisava sair para poder ter essa visão mais ampla e humana. E acho que uma das melhores formas é através da leitura, através da literatura, porque fala de sentimentos humanos, e ter um espaço onde se possa compartilhar essa experiência é importante!”. (Colaboradora 9)

Ressalta-se, aqui, que mais do que a simples leitura individual, o que os participantes destacam é a importância da vivência e do compartilhamento das leituras no espaço do Laboratório de Humanidades, e o exercício de expressão e escuta que a sua dinâmica proporciona: “Outra coisa que estamos acostumados é não falar que o outro está certo, mesmo que esteja. Treinamos para criticar e nunca ceder, e no LabHum eu treino para ceder, porque todos falam seu ponto de vista, pode ser certo ou não, pode ser e pode não ser. Aceitar opiniões diferentes é um treino e é difícil. As pessoas normalmente não estão tão abertas, às vezes eu vou conversar com minha irmã ou com meu namorado, e tenho que falar com jeito, pois as pessoas se ofendem com facilidade!”. (Colaboradora 5)

LabHum: espaço de ampliação de horizontes Outro aspecto apontado por diversos participantes é o de como a participação no LabHum proporcionou uma ampliação de horizontes em termos de conhecimentos e perspectivas sobre a vida, sobre o homem e sobre si mesmo. Tal experiência é descrita por alguns colaboradores, a princípio, como uma surpreendente novidade: “A minha experiência inicial com o LabHum foi de total surpresa, eu não entendi nada daquilo, mas achei maravilhoso, e então algo na minha mente se abriu!” (Colaboradora 5). Da mesma forma, relata a colaboradora 3: “Para mim era um mundo diferente e novo, eu não conhecia aquelas discussões, era tudo novidade!” Tal sentimento de presenciar algo inusitado, porém atraente, foi se concretizando, segundo muitos relatos, numa percepção de abertura para “novos pontos de vista” que, aos poucos, foi sendo identificada com a própria formação humanística.

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“Eu vim para a Unifesp com o propósito de conhecer novos pontos de vista, ver a realidade de uma universidade, da pós-graduação, encontrar novos pontos de vista, mas foi só o LabHum que me permitiu realizar isso”. (Colaborador 8)

Há, portanto, uma identificação entre a experiência descrita pelos participantes do LabHum e aquela que Teixeira Coelho (2001) qualifica de efetiva experiência de humanização: a da ampliação da esfera do ser. Verificamos, aqui, o movimento caraterístico do processo de humanização que a experiência das humanidades permite desencadear no âmbito das Ciências Naturais modernas, comumente chamadas de ciências duras: “O LabHum participa mais de mim do que eu do LabHum, porque aquelas discussões continuavam repercutindo na minha vida durante a semana! [...] O LabHum me fez crescer durante a graduação, porque foi o espaço em que encontrei como refúgio, permitindo-me respirar e sobreviver. Era o momento de minha semana que conseguia fugir da questão estritamente obrigatória da academia, da pesquisa, e era quando podia fazer algo que eu realmente queria fazer: sentar e discutir literatura com outras pessoas igualmente interessadas. Era como se nós nos reuníamos uma vez por semana, acendêssemos uma fogueira, discutíssemos em torno dela, depois a apagássemos e fossemos embora. Mas a fogueira continuava acesa dentro de cada um”. (Colaborador 10)

A identificação da experiência do LabHum enquanto meio de humanização, promotor de maior humanidade, aparece de forma explícita na fala de um Colaborador que exerce a docência: “Eu vejo como o LabHum deu respaldo para que eu tivesse essa humanidade, alterou meu fazer, meu ofício de professora, hoje eu não sou apenas professora, sou uma pessoa, e estou professora, e tento melhorar, e é assim que vejo minha vida hoje”. (Colaboradora 7)

LabHum: uma experiência de renovação de vida Por fim, em diversos relatos, identificamos o impacto decisivo do LabHum na mudança de rumos nas trajetórias de vida. O LabHum surge, assim, como “ponto de virada” (Colaboradora 6), como descoberta de novas possibilidades de se “renovar a atividade cotidiana” (Colaboradora 3), de “contribuir para a melhoria da vida profissional” (Colaboradoras 5 e 9) e, mesmo, “pessoal” (Colaborador 8). Em muitos casos, o LabHum aparece como impulso para retomada de estudos: “e sabe o que mais: acho que minha última desculpa para ‘adiar’ o mestrado perdeu o sentido. Já estou começando a pensar por onde devo começar [...]” (mensagem virtual de L.N.). A descoberta do humano através das artes – aqui, a literatura – e através do compartilhamento das leituras, sentimentos e reflexões, estabelece um movimento de mudança interior que tende a se expandir na atividade exterior, determinando ações humanizadoras concretas dentro do âmbito das Ciências da Saúde. “A experiência do LabHum foi meu ponto de virada [...] E foi então que eu resolvi fazer algo na área de Bioética, mas que eu pudesse também usar alguma coisa que eu tinha aprendido até então, pois havia aprendido tanta coisa. Pensando nisso, por causa de algumas conversas que eu tive e do LabHum, sobre a questão da humanização, porque se tem tanto essa preocupação no tratamento humanitário dos pacientes, [lembrei d]a questão do médico, que muitas vezes vira paciente, porque não aguenta essa loucura de jornada”. (Colaboradora 6)

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Contextualizando categorias: o LabHum como experiência humanizadora Uma vez descrita a experiência prática vivenciada pelos participantes do LabHum e colaboradores deste estudo, partimos, primeiramente, para uma melhor contextualização das discussões sobre seu impacto humanizador na formação em Saúde. Assim, segundo a visão de López Quintás (2009), um local de encontro e discussão sobre literatura pode ser uma ótima oportunidade para o desenvolvimento e busca do humano pleno, ou seja, podemos dizer, um local de humanização. O “encontro” é uma estratégia humanizadora prevista no PNH (Pasche, 2010 p.65), pois o trabalho em grupo “contribui para a recuperação do prazer de ensinar e aprender e incorpora a provisoriedade e a multiplicidade que permeiam o cotidiano” (Ruiz-Moreno, 2004, p.99). Aprendizagem e formação, objetivos fundamentais da universidade, só são reais e efetivos, entretanto, quando partem das experiências que se apresentam como acontecimento interpelativo e significante. Para Bondia (2002, p.24) [...] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Sabemos que sem o envolvimento integral da pessoa, enquanto ser dotado de sentimento, inteligência e vontade, não pode haver uma efetiva experiência de humanização (Gallian, 2009). Segundo Pasche (2010), o aspecto afetivo da formação é essencial: deixar-se tomar pelos sentimentos é uma forma de causar identificação e abertura, e saber entender e exprimir seus próprios sentimentos é uma forte característica da formação humanista. Em nossa análise sobre a experiência proporcionada pelo Laboratório de Humanidades, verificamos como o deslocamento causado pela leitura de obras marcantes (clássicos literários) e a discussão em grupo favorecem os acontecimentos interpelativos, a sensibilização. “O Laboratório é um lugar que cuida da alma. Representa para mim um momento de deleite, de prazer, de encontro. É um grupo sério sem ser carrancudo; ousado sem ser pretensioso; constituído por pessoas divertidas, emocionadas e emocionantes!” (Mensagem virtual de M.C.)

Para Compagnon (2006, p.38), a literatura, apesar de todo processo de “expropriação determinado pela crítica especializada no último século”, continua sendo um lugar privilegiado da experiência humana mais ampla e aprofundada, pois permite a expressão de sentimentos e ideias latentes. “É a literatura que nos dá palavras para exprimir sentimentos que estão em nós, e nem sequer sabíamos sentir, pois não conhecíamos termos para os definir” (p.38). Pudemos verificar a materialização de tal experiência no espaço do LabHum. Como explicita a colaboradora 5: “Antes do LabHum eu tinha muita dificuldade de expor as minhas opiniões e de colocar meus sentimentos em palavras. Eu sentia, mas não conseguia falar, expor, explicar”. Ora, a capacidade de formular, de encontrar a palavra que expresse os conteúdos afetivos e interiores é, segundo Ortega y Gasset (1999), um dos elementos fundamentais do processo de humanização, na medida em que permite ponderar, estabelecer uma ponte entre conteúdo e forma, entre afeto e conhecimento. Desta forma, a identificação e abertura causadas pela experiência interpelativa acabam por levar a uma construção de conhecimentos. Calvino (1993) e Compagnon (2006) ressaltam a experiência da leitura como essencial para o desenvolvimento pessoal. Destacam ainda como essa pode ser uma experiência impactante e cativante. De fato, percebemos esse impacto em nossos colaboradores, especialmente com a ampliação causada pela discussão com o grupo de emails do LabHum. Tal saída da zona de conforto é oportunidade para a criação e um dos objetivos do emprego das humanidades para COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.171-86, jan./mar. 2013

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uma formação humanística e de humanização em Saúde: “para mim, o Laboratório de Humanidades é um lugar de ‘formação’ de inquietos, um lugar de ‘desadequação’” (mensagem virtual de T.G.B.). Tal movimento de desadequação e inquietação provocado pela experiência da reflexão apresenta-se como objetivo fundamental das humanidades, que deve aportar um impacto criativo e transformador no âmbito das ciências, como bem aponta Ribeiro (2001). Por fim, todo esse processo de interpelação na esfera dos sentimentos, dos afetos, que desencadeia o movimento de reflexão crítica, acaba por desembocar na dimensão da vontade, que se concretiza em decisão, em ação. Neste sentido, observamos, também, a medida em que a experiência concreta do LabHum determinou mudanças de atitude em diversas dimensões. Assim, mudanças e transformações no plano afetivo, intelectivo e volitivo (das atitudes) apontadas pelos testemunhos, mensagens virtuais e relatos produzidos através das entrevistas de história oral de vida parecem, portanto, indicar que a experiência formativa proporcionada pelo LabHum tem um forte impacto humanizador em uma significativa parcela de seus participantes. Verificamos como tal atividade, através de uma abordagem particular da leitura e compartilhamento da leitura de obras clássicas da literatura universal, apresenta-se como oportunidade de ampliação da esfera do ser (Teixeira Coelho, 2001). Ampliação esta, que se identifica com o processo de humanização, na medida em que se apresenta como a construção de uma livre e inclusiva manifestação dos diversos sujeitos no contexto da organização das práticas de atenção à Saúde, promovida por interações sempre mais simétricas, que permitam uma compreensão mútua entre seus participantes e a construção consensual dos seus valores e verdades. (Ayres, 2005, p.9)

Conclusões Mobilizados, portanto, pelo impacto que a participação nesta atividade universitária inserida no contexto das Ciências da Saúde causou, e pelo interesse em nos aprofundarmos na temática das propostas de humanização em Saúde, aqui detalhamos e analisamos a experiência do acontecimento estético e interpelativo: o Laboratório de Humanidades da EPM/Unifesp. Norteados por referenciais teóricos específicos que fundamentam o projeto de pesquisa mais amplo no qual este trabalho se insere, e que buscam discutir criticamente a temática da humanização em Saúde, e instrumentalizados por abordagens metodológicas pertinentes, de viés qualitativo, lançamo-nos nesta investigação que pretendeu não apenas compreender, mas avaliar o LabHum enquanto uma efetiva proposta de humanização em Saúde. Como resultado, verificamos, através dos testemunhos e manifestações de seus participantes, que a experiência propiciada pelo LabHum apresenta efetivo impacto humanizador, na perspectiva da humanização enquanto ampliação da esfera do ser. O LabHum, portanto, ao propor a leitura de obras clássicas da literatura universal e ao propiciar um espaço de compartilhamento das diversas leituras e vivências destas leituras, suscita não apenas a experiência interpelativa no âmbito afetivo, próprio do acontecimento estético, como cria as condições propícias para que estas experiências sejam expressadas e processadas, num contexto que se poderia denominar de educação dos afetos. Estabelecendo, consequentemente, a partir desta experiência estético-afetiva, um itinerário de discussão, o LabHum suscita também o desencadeamento de processo reflexivo que, por sua vez, demanda a participação efetiva da esfera cognitivo-intelectiva do humano. Tais processos propiciaram o desenvolvimento do pensamento crítico, desencadeador de revisões e transformações no âmbito das atitudes, conforme constatado nas narrativas dos colaboradores. Apresentando-se, portanto, como um espaço de encontro com as humanidades, como “recuperador” ou “fomentador” da leitura; como espaço de mergulho ou encontro com a própria interioridade, no âmbito afetivo e intelectivo; como espaço de encontro com o outro, na dimensão do aprendizado da escuta; como espaço de ampliação da esfera do ser e abertura para novas dimensões da 184

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realidade, e, por fim, como espaço determinador de mudanças e transformações de ordem profissional e pessoal, o LabHum responde, efetivamente, às exigências de uma autêntica experiência humanizadora, dentro de um contexto acadêmico em Saúde. Ainda que de forma parcial, já que esta é a primeira pesquisa sistemática introdutória sobre o LabHum da EPM/Unifesp, podemos concluir, entretanto, que o caminho delineado por ele pode perfeitamente servir como modelo e inspiração para outras iniciativas que, no âmbito das propostas das PNH, busquem fomentar a humanização em Saúde não pelo viés técnico do treinamento, mas pelo da experiência estético-reflexiva propiciada pelas humanidades.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.549-60, 2005. BARROS, R.B.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BITTAR, Y. Um laboratório para a humanização em saúde - o Laboratório de Humanidades e a literatura como instrumento de humanização. 2011. Dissertação (Mestrado) - Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. 2011. BOGDAN, R.C.E.; BIKLEN, S.K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. BOM-MEIHY, J.C.S. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005. BONDIA, J.L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ., n.19, p.20-8, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação da área de Saúde. Disponível em: <http:// portal.mec.gov.br/dmdocuments/ces1133.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2010. ______. Ministério da Saúde. Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. CALVINO, Í. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. COMPAGNON, A. Literatura para que?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. DENZIN, N.K.; LINCOLN, Y.S. Handbook of qualitative research. Londres: Sage, 1994. GALLIAN, D.M.C. O que é o Laboratório de Humanidades: sua história, seu “funcionamento” e sua finalidade. Blog do LabHum. 2009. Disponível em <http:// labhum.blogspot.com/2009/10/o-que-e-o-laboratorio-de-humanidades.html>. Acesso em: 05 set. 2011. ______. 75X75 EPM/Unifesp: uma história, 75 vidas. São Paulo: Editora da Unifesp, 2008. GALLIAN, D.M.C.; REGINATO, V. Relação assistencial e sua humanização. In: RAMOS, D.L.P. (Org.). Bioética, pessoa e vida. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2009. p.117-33. GALLIAN, D.M.C.; PONDÉ, L.F.; RUIZ, R. Humanização, humanismos e humanidades: problematizando conceitos e práticas no contexto da saúde no Brasil. Rev. Int. Hum. Med., v.1, n.1, p.5-15, 2012.

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Palavras-clave: Humanización. Humanidades. Literatura. Educación en salud. Universidad. Recebido em 06/06/12. Aprovado em 19/11/12.

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A formação médica em debate: perspectivas a partir do encontro entre instituição de ensino e rede pública de saúde* Bruno Mariani de Souza Azevedo1 Sabrina Ferigato2 Tadeu de Paula Souza3 Sergio Resende Carvalho4

AZEVEDO, B.M.S. et al. Medical education under debate: perspectives from the intersection of teaching institutions and the public healthcare system. Interface Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.187-99, jan./mar. 2013. This study relates to examination of medical education in Brazil and its current challenges at its intersection with the public healthcare system. It is a part of a broader qualitative participatory study entitled “Evaluative research on management of the work process and training of healthcare undergraduates and workers: exploring the boundaries”. We present a historical review of medical education in Brazil in order to explore its present-day ramifications, by analyzing the empirical experience of implementation and monitoring of the discipline of Public Health, which has developed in-service. The results presented are laid out along five axes: i) work process; ii) educational function of the training; iii) clinical practice; iv) influence of the healthcare system on the university; v) curriculum reform.

Keywords: Medical education. Higher education. Public health system

Este trabalho refere-se ao estudo da formação médica no Brasil e seus desafios atuais no encontro com a rede pública de Saúde; recorte do estudo qualitativoparticipativo mais amplo intitulado “Pesquisa avaliativa sobre a gestão do trabalho e a formação de graduandos e trabalhadores de saúde: explorando fronteiras”. Apresentamos uma retrospectiva histórica da formação médica brasileira para, posteriormente, explorarmos seus desdobramentos na atualidade, tendo como analisador a experiência empírica de implementação e acompanhamento de uma disciplina de Saúde Coletiva que se desenvolve em serviço. Os resultados apresentados são dispostos a partir de cinco eixos: i) processo de trabalho; ii) função formadora do estágio, iii) prática clínica; iv) A rede intervindo na Universidade; v) reforma curricular.

Palavras-chave: Educação. Ensino. Saúde Coletiva.

Elaborado com base em Carvalho (2010); pesquisa financiada pela Fapesp e aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. 1-3 Doutorandos em Saúde Coletiva, Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (FCM/ Unicamp). Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, 2º andar, sala 74. Caixa Postal 6111. Cidade Universitária “Zeferino Vaz”. Campinas, SP, Brasil. 13.083-970. marianiazevedo@ gmail.com 4 Departamento de Saúde Coletiva, FCM/ Unicamp. *

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Introdução As transformações históricas das práticas em saúde e da formação médica ensejam a discussão da função das instituições de ensino para com a realidade sociossanitária e com o Sistema de Saúde no Brasil. Isso porque cada concepção político-pedagógica adotada por essas instituições interfere diretamente para a efetividade ou não das políticas de saúde, propiciando, em maior ou menor grau: o desenvolvimento da autonomia do estudante, seu espírito crítico, seu compromisso social com o público, e seu ethos como profissional da saúde comprometido com mudanças. A concepção de saúde e como ela é produzida nas instituições formadoras influem diretamente sobre as práticas de cuidado e sobre o papel do médico na sociedade. Neste sentido, os espaços formativos, sejam eles a universidade ou os serviços, se constituem como um espaço de embates constantes entre as escolhas políticas, éticas e pedagógicas, elevando o grau de importância de todos os atores presentes no processo educativo e na determinação dos possíveis caminhos a serem adotados pela política de saúde e de formação pessoal (Oliveira, Koifman, 2004). Partindo deste cenário complexo, discutiremos aspectos históricos, políticos e institucionais da formação médica tendo como foco os resultados gerados pela pesquisa intitulada: “Pesquisa Avaliativa Sobre a Gestão do Trabalho e a Formação de Graduandos e Trabalhadores de Saúde: explorando fronteiras”, realizada no período de janeiro de 2008 a abril de 2010 – que teve como objetivo geral investigar os desafios da inclusão das temáticas: Saúde Coletiva, Clínica e Gestão, no currículo médico. Dentro deste amplo campo, delimitaram-se, como foco de investigação, os movimentos em torno da construção e operacionalização da disciplina “Saúde Coletiva: Gestão e Planejamento em Saúde” (SC/GP) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (FCM/Unicamp). Ao longo da pesquisa, foi posta em questão uma série de fatores, como: os programas teóricos da universidade, a proposta pedagógica da Saúde Coletiva na graduação da FCM/Unicamp e em outras Universidades, sua coerência metodológica com a grade curricular, e as possibilidades de integração entre os conteúdos da Saúde Coletiva e os ministrados pelas áreas clínicas. Para melhor apresentar o problema da pesquisa, faremos um breve recuo histórico a respeito da formação médica, enfatizando o seu processo de especialização desde a publicação do relatório Flexner até a constituição do atual formato da atenção em saúde e as mudanças nas metodologias de ensino em saúde. Posteriormente, realizaremos articulações com os resultados da pesquisa.

A formação médica: aspectos históricos e políticos Após a reforma do ensino médico americano, a partir do início do século XX, e a publicação do relatório Flexner, o Brasil foi gradativamente transformando seu currículo num progressivo deslocamento do modelo de referência de educação médica francês para o norte-americano sob a influência crescente das concepções marcadamente positivistas (Nunes 2010; Kemp, Edler, 2004). Essa transformação culminou com a reforma Universitária de 1968, na qual o modelo de ensino médico adotado foi, declaradamente, o modelo flexneriano (Machado, 1997), mas que refletia uma tendência expressa nas escolas médicas brasileiras desde a década de 1940 (Azevedo, 2012). Foram então reforçados os estudos dos sistemas e órgãos do corpo humano, a individualização/ biologização do processo de adoecimento, e o ensino por disciplinas segundo especialidades. Além disso, foram criados os Hospitais Universitários como lócus estratégico e privilegiado para o binômio ensino-pesquisa. Esse processo, que foi estimulado pelo complexo médico-industrial, favoreceu uma especialização precoce de estudantes. Estes são submetidos a uma formação médica pautada pelo ensino disciplinar estanque e fragmentado, sob a influência da lógica do mercado de bens e serviços de saúde. Neste cenário, projetos que privilegiam a formação de profissionais com perfil generalista se defrontam com a resistência de setores interessados na conservação deste modelo. As consequências diretas desse processo se manifestam no privilégio de investimentos em ações curativas, hospitalocêntricas, com ênfase desproporcional no uso de tecnologias duras (equipamentos, logística, normatizações etc.) (Merhy, 2000). Associado a isso, observa-se um consequente descuido com práticas integrais e com o trabalho interdisciplinar em rede. Neste cenário, de modo geral, as 188

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escolas médicas passam, cada vez mais, a privilegiar o ensino de técnicas, habilidades e competências que tem como objetivo intervir sobre a saúde do indivíduo, enfatizando, neste, desequilíbrios biológicos e funcionais (Azevedo, 2012; Schraiber, 1989). Potencializa-se, aqui, a entrada em um círculo vicioso que, muitas vezes, não é coerente com práticas que busquem produzir saúde. Recursos técnico-científicos ditos “de ponta” passam a ser, cada vez mais, demandados pelos profissionais com anuência de usuários. O alto custo destas tecnologias onera o sistema público e, indiretamente, constitui um estímulo à expansão do setor suplementar da saúde. Médicos, empresas privadas (e, em muitos casos, do setor estatal) e o complexo industrial consolidam, neste processo, uma aliança que tem um forte impacto sobre a formação e sobre as práticas dos médicos. Estas forças do mercado tensionam o campo de práticas e colocam em questão o compromisso ético com a produção da saúde que, em nível discursivo, constitui um dos pilares da profissão médica (Machado, 1997). Este projeto tecnoassistencial, embora hegemônico, disputa sentidos com outros projetos societários e sanitários. Entre estes, destacamos, no Brasil, o projeto contra-hegemônico da Saúde Coletiva brasileira, que, embora apresente no seu interior distintas posições, é possível apontar, como tendência, a busca de um projeto tecnoassistencial que busca resistir e reinventar as práticas de produção da saúde e o sentido da formação e do fazer médico. A partir de acúmulos históricos e de produções teórico-práticas após os anos 1970, a Saúde Coletiva consolida, em encontros e documentos legais - VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986, a Constituição de 1988 (artigos 196 a 200, Capítulo da Saúde da Constituição Federal de 1988) e nas leis orgânicas da saúde de 1990 (Brasil, 1990, 1988) - os princípios e diretrizes que fundam e orientam o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Esses princípios fazem referência ao que se entende como processo saúde-doença, o objeto de ação e as bases para as políticas de formação de pessoal na área da saúde. Derivam, daqui, dois marcos importantes para o que aqui investigamos: a consolidação do SUS como ordenador da formação de recursos humanos na saúde (Brasil, 1988), e a legitimação dos determinantes sociais para orientar as formulações e práticas de cuidado em saúde. A partir da década de 1990, observamos inúmeros núcleos de investigação, em parceria com serviços de saúde, aprofundando estas diretrizes, buscando enfrentar e oferecer alternativas para os projetos hegemônicos junto às práticas cotidianas nos serviços de saúde. Carvalho (2005) e Silva (1998), entre outros, abordam estas formulações quando discutem alguns dos principais projetos alternativos no interior da Saúde Coletiva: Defesa da Vida, Vigilância à Saúde, Ações Programáticas e de Promoção à Saúde. Projetos que seguem presentes nas práticas cotidianas em novas formulações, convivendo e, paradoxalmente, em alguns casos, incorporando elementos do projeto biomédico-flexneriano. Estas formulações irão, nas décadas posteriores, permear vários dos debates no campo da Saúde no Brasil. Este processo irá se acelerar quando, a partir de 1994, começa a se implementar um programa de expansão da Rede Básica através de projetos como: o Programa de Saúde da Família (Bueno, Merhy, 1996), de Equipes de Referência (Carvalho, Campos, 2000), que propõe um novo formato organizativo para a Atenção Básica em conjunto com outras frentes de ação. Ao mesmo tempo, movimentos como a CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) e entidades como a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), a ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica), a DENEM (Direção Executiva de Estudantes de Medicina) e a Rede Unida influenciam a construção de políticas do Ministério da Saúde, buscando formular uma pauta que contribua para as mudanças no ensino médico. As disputas políticas, tecnoassistenciais e pelos modos de formar os trabalhadores ocorrem neste duplo movimento paralelo. Novas diretrizes curriculares são aprovadas a partir de 2001, com o intuito de produzirem impacto na formação médica. Buscando qualificar a formação e contribuir para a melhoria da assistência prestada aos usuários do SUS, foi elaborada legislação específica (Brasil, 2001b) e implementados programas direcionados ao assunto (Brasil, 2005a, 2005b, 2004, 2002), que buscam responder às necessidades do setor saúde. Além do arcabouço legal do SUS, estas têm como fonte de inspiração a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 2001a), que propõe a substituição do “currículo mínimo” pelas “diretrizes curriculares”, as quais, ao se aterem ao estabelecimento de competências e habilidades, abriram um 189


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leque de possibilidades para iniciativas que buscam responder aos complexos desafios postos pelo cotidiano dos serviços de saúde. A resolução que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Medicina define princípios, fundamentos, condições e procedimentos para a formação dos médicos. Preconiza que cada profissional deva assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, e que seja capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Recomenda, no artigo 3º, que o curso de graduação em Medicina tenha como egresso um médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano (Brasil, 2001a). Partindo-se destes pressupostos, é sugerido o desenvolvimento de programas de Ensino Superior que viabilizem a interação ativa do aluno com a população e com os profissionais de saúde desde o início da graduação, com o objetivo de proporcionar, ao estudante, a oportunidade de trabalhar sobre problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente formulador e prestador de cuidados compatíveis com seu grau de autonomia (Brasil, 2005b). Esta breve síntese sobre as políticas tecnoassistenciais no SUS e sua relação com a temática do ensino reforça a existência de disputas entre a formação médica e os projetos políticos que procuram propor a reorganização do trabalho em saúde com um compromisso com a defesa da vida. Neste campo de disputa, torna-se fundamental, para os setores que apostam na mudança do status quo, redefinir estratégias e processos de formação dos futuros médicos. Conteúdos que abordem a integralidade da saúde de forma efetiva, que contribuam para o desenvolvimento da capacidade de escuta, de acolhimento, de construção de vínculos, de abordagens interdisciplinares e de corresponsabilização, assumem grande importância. É neste cenário que se constituiu a disciplina “Saúde Coletiva: Gestão e Planejamento em Saúde” (SC/GP) na FCM/Unicamp, objeto da presente pesquisa.

Objeto e campo de investigação A disciplina SC/GP teve início em 2004, como um módulo do internato no qual grupos de cinco alunos (24 grupos em um ano letivo) frequentam o estágio durante dez dias úteis, cumprindo um total de quarenta horas-aula. Na maioria das vezes, a disciplina se desenvolve de tal forma que os alunos são encarregados, com apoio dos professores, de elaborarem Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), demandados por uma equipe de saúde, que tenham como objeto indivíduos ou coletivos em situação de vulnerabilidade, buscando aprimorar a intervenção dessa equipe. O estágio ocorre, principalmente, em Unidades Básicas de Saúde do município de Campinas (Carvalho, Campos, Oliveira, 2009). O internato em Gestão e Planejamento se orienta por diretrizes que afirmam que a gestão e a clínica se inserem num mesmo campo problemático, e que a “função docente” é compartilhada com trabalhadores e gestores; que devem contribuir, durante e após o estágio, para a qualificação de processos de trabalho nas unidades de saúde, e que ressaltam uma vivência, por parte dos alunos, da complexa dinâmica da produção de saúde no SUS, valorizando o trabalho em equipe e a produção de linhas de cuidado em rede (Azevedo, 2012). Como explanado na introdução, no curso de Medicina há um forte aporte pedagógico concentrado nas especialidades, e o principal campo de estágio é o hospital. Dessa forma, um dos aspectos que interessava avaliar, na pesquisa citada, foi como vem sendo recebida, pelos alunos, docentes, trabalhadores e gestores da saúde, uma proposta pedagógica voltada para uma abordagem generalista, interdisciplinar e com direção na construção de redes, tomando a Atenção Básica (AB) como sua ordenadora. Para isso, a disciplina trabalhada por tal processo investigativo pareceu-nos interessante por se propor a ter um compromisso com uma forma de ensino que estimula a inserção dos graduandos na AB - estratégia formativa fundamental para orientar os processos de mudança no modelo assistencial em saúde. 190

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Neste cenário, ao escolher como objeto de análise uma disciplina que sintetiza aspectos importantes da formação em serviço, valorizamos uma metodologia de pesquisa qualitativa e participativa em saúde.

Considerações metodológicas: marco teórico-conceitual De acordo com Denzin e Lincoln (2006), a palavra qualitativa implica uma ênfase sobre as qualidades das entidades, sobre os processos e os significados que não são examinados ou medidos experimentalmente em termos de quantidade, intensidade ou frequência. Eles ressaltam que a competência da pesquisa qualitativa é o mundo da experiência vivida, por isso, todo trabalho de pesquisa que se define como qualitativo deve levar em conta a complexidade histórica do campo e o contexto do objeto pesquisado. Desta forma, o desafio de acompanhar, pesquisar e avaliar os encontros entre os diferentes sujeitos envolvidos com a formação em saúde tem a necessidade de um aporte metodológico que inclua suas demandas, valores, desejos e conflitos que se fazem presentes neste processo. Pesquisar esses processos na Saúde Coletiva é investigar o que dá expressão aos modos de produção de cuidado, escutar os seus “ruídos”, seus incômodos, fazer aparecer as coisas que estão ali (Franco, Merhy, 2009). Alguns autores (Contandriopoulos, 2006; Furtado, Onocko Campos, 2005; Furtado, 2001; Silva, Formigli, 1994; Guba, Lincoln, 1989) enfatizam a necessidade de se incluírem diferentes e divergentes pontos de vistas, por meio da participação de representantes dos grupos de interesse no processo da pesquisa, uma vez que a realidade avaliada se constitui de fatores que possuem distintos valores para cada grupo de interesse. Entendem que a inclusão de diferentes grupos possibilita, ao mesmo tempo, pôr em cena objetivos específicos aos grupos envolvidos e traçar pontos problemáticos comuns aos grupos, exigindo a construção de uma superfície de análise transversal aos diferentes atores envolvidos, estabelecendo uma rede de discussão e análise, acionando a reflexão coletiva de pontos problemáticos. A metodologia, constituída em torno do princípio ético da inclusão e da participação, neste trabalho, possibilitou a colocação em análise das relações de poder existentes entre gestores, trabalhadores, docentes, estudantes e pesquisadores, sendo estratégica, portanto, a proposta adotada de se pensar a avaliação como um dispositivo (Furtado, 2001). Tomar a disciplina SC/GP como ponto de partida desta pesquisa permitiu que problematizássemos o processo de formação na relação com a rede de saúde, evocando a participação dos diferentes atores que compõem esta trama de relações: graduandos, docentes, trabalhadores e gestores de saúde. Ao se porem em cena os ruídos do cotidiano, produzem-se, em potência, movimentos inventivos que questionam as posições instituídas, apontando para novas práticas de produção e defesa da vida (Merhy, 1997). Partindo-se deste ideário ético-metodológico, a pesquisa foi organizada em três momentos: coleta de dados e sistematização das informações; validação das informações levantadas, e análise e devolução dos resultados. O processo de coleta de dados ocorreu, sobretudo, através dos grupos focais e dos diários de campo de observadores participantes, dentro de uma perspectiva metodológica de triangulação de métodos (Minayo, 2006). Os grupos focais foram divididos por grupos de interesse específico (trabalhadores, gestores, discentes e professores) e organizados a partir de diferentes eixos norteadores, que buscaram analisar diferentes vetores do processo de formação: Efeitos da construção compartilhada do PTS entre alunos e equipe; Elementos a serem enfatizados no processo ensino-aprendizagem; Utilização de recursos intersetoriais para o estágio e a relação com outros serviços; Necessidade de implementação de recursos na unidade para a inserção da disciplina; Relação entre trabalhadores, alunos e docentes a partir da entrada da disciplina na unidade; o papel dos profissionais na formação de futuros trabalhadores da Saúde Pública. Foram realizados 12 grupos focais. Os diários de campo foram feitos a partir do acompanhamento de três turmas de estágio, dentro de uma perspectiva de observação participante, no qual, ao final de cada turma, foi possível refletir sobre alguns aspectos levantados durante a pesquisa de campo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.187-99, jan./mar. 2013

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As transcrições das gravações dos grupos focais e os diários de campo foram sistematizados, compondo um primeiro material que denominamos de um “primeiro grau de análise”, pois este material, apesar de limitar-se a um exercício de síntese, já se faz a partir de recortes que refletem a priorização do pesquisador segundo suas análises. Foram constituídos quatro “textos-sínteses” (um texto de trabalhadores, um de alunos, um de gestores e um de docentes). A segunda fase foi o momento de validação dos dados sistematizados com os diferentes grupos de interesse, gerando uma rodada de análise coletiva acerca do material produzido. Os textos-sínteses foram apresentados aos trabalhadores em reuniões de equipe das próprias unidades de saúde e, para os gestores, em reuniões do Distrito de Saúde Sudoeste, e os discentes tiverem esse material enviado por e-mail depois que as tentativas de reuni-los não tiveram sucesso. Esta etapa possibilitou discutir e “validar” as narrativas e, ao mesmo tempo, aprofundar alguns pontos controversos. A partir desta estratégia, os grupos puderam fazer apontamentos sobre os aspectos abordados, possibilitando destacar novas abordagens sobre o material produzido. Essa rodada de validação gerou um novo material que buscou articular os pontos transversais aos diferentes grupos, compondo uma única narrativa que não se identificava com nenhum grupo específico, mas que agregava pontos críticos comuns aos diferentes grupos. Neste segundo texto, buscou-se mais uma interferência analítica, fazendo aparecer, de forma mais presente, as percepções do próprio pesquisador, gerando o que denominamos de um “segundo grau de análise”, que já apresentava algumas conclusões acerca dos problemas pesquisados. A terceira etapa da pesquisa se constituiu em torno da metodologia de devolução dos resultados da pesquisa que, seguindo dentro de uma perspectiva participativa, compôs a conclusão da pesquisa a partir da realização de uma oficina. O termo “oficina”, empregado para esta etapa da pesquisa, seguiu uma coerência metodológica, em que sua função pode ser descrita em duas perspectivas: fazer a devolução dos resultados da pesquisa; servir como espaço de construção de proposições frente às questões apontadas. Nesse sentido, “oficina” busca designar uma tarefa de construção de propostas que se abrem para além de funções formais de devolução de resultado estrito senso, mas como uma estratégia importante para ampliar para questões e atores não previstos nos grupos focais, gerando uma zona de passagem entre o fim da pesquisa e a continuidade dos processos avaliados.

Resultados e discussão Os resultados da pesquisa foram organizados segundo âmbitos sistematizados na oficina avaliativa final, e constituem narrativas que expressam as perspectivas dos diferentes grupos de interesse em relação aos seguintes eixos: processo de trabalho das unidades; função formadora do estágio; prática clínica; reforma curricular.

1 A disciplina e o processo de trabalho nas unidades A escolha dos casos clínicos que serão investigados pelos alunos normalmente é feita pela equipe, cujo principal critério de escolha é a dificuldade no manejo e a gestão clínica do caso. Nestes momentos, o estágio se apresenta como uma oferta para os trabalhadores, na medida em que alunos e professores ajudam na elaboração de PTS e de linhas de cuidados. Por outro lado, essa construção exige participação da equipe, o que interfere na dinâmica de trabalho, sendo vista por muitos profissionais como aumento da demanda de trabalho. Esse aspecto é percebido não somente durante o estágio, como, também, na saída dos estudantes da unidade. Os trabalhadores questionam sobre a continuidade do acompanhamento dos casos quando o estágio acaba. Segundo eles, os estagiários oferecem uma atenção “mais intensiva e exclusiva aos casos”, o que gera uma demanda que, muitas vezes, não é possível de ser mantida pelos trabalhadores. Outro ponto sinalizado pelos profissionais de saúde refere-se ao fato de se sentirem mais observados e julgados pelos estagiários no seu trabalho quando questionados por estes. 192

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A inserção dos estudantes na unidade demanda um cuidado das instituições envolvidas. Às vezes, os horários da universidade e serviço de saúde são conflitantes, nestes casos, os trabalhadores declaram: “Não tem como organizar uma reunião de equipe extraordinária porque a Unicamp precisa de um caso!”. Esta dificuldade de negociação dos tempos, em alguns momentos, é percebida pelos alunos como um descuido, como uma falta de organização das equipes para recebê-los. Por outro lado, os trabalhadores, docentes e gestores enfatizam que a troca de conhecimento a partir da relação ensino-serviço gera a possibilidade de o trabalhador se envolver mais com o caso estudado, dando apoio às equipes quando os recursos se esgotam, além de ajudar a pensar em outras ações e estratégias não pensadas anteriormente. Enfatiza-se que os casos acompanhados pelas turmas anteriores são frequentemente lembrados pelos docentes, o que, em alguma medida, força a equipe a manter ou retomar uma assistência prestada, cujo acompanhamento, muitas vezes, não é possível. Os trabalhadores, gestores e docentes avaliam que, quando se discute um caso com os alunos, seria preciso deixar um profissional para que avalie o andamento do PTS, o que não ocorre na maioria dos casos. As equipes declaram que ainda não se apropriaram dessa continuidade. Porém, todos os envolvidos colocam que essa dificuldade de sustentação não é gerada apenas pela disciplina, uma vez que a entrada dos alunos põe em análise a dinâmica de trabalho das unidades.

2 A função formadora do estágio O trabalhador tem uma participação na formação de futuros profissionais, e seu atual protagonismo é bem maior do que em relação a alguns anos, mas essa participação ainda é vista como “pontual”. Dentre os diferentes momentos formativos bastante destacados, podemos apresentar algumas posições dos diferentes atores da pesquisa. Os alunos frisam a importância das visitas domiciliares e o contato com o território, possibilitando conhecer realidades socioculturais antes desconhecidas. Embora eles considerem que o estágio tenha relevância para sua formação profissional, a grande maioria não almeja trabalhar nestas unidades. Para gestores e trabalhadores, o estágio é importante por apresentar o SUS como um campo de trabalho possível para os estudantes de Medicina. Na percepção dos trabalhadores, embora a maioria dos alunos não deseje trabalhar na rede pública, muitos acabam sendo empregados na Atenção Básica, dando importância para a apresentação da rede assistencial e da clínica ali praticada. Neste caso, os profissionais sentem mais facilidade para trabalhar com aqueles que passaram por este estágio do que com aqueles que não passaram. Para gestores e trabalhadores, as equipes não estão instrumentalizadas para contribuírem na formação em saúde; apesar de esta ser uma diretriz do SUS, a construção de espaços para a capacitação de formadores/tutores para essa atividade é recente e ainda necessita de maiores investimentos e precisa ser mais bem construída organizacionalmente. Os distintos atores concordam que o encontro entre estagiários, docentes e trabalhadores se constitui como um espaço de construção de parceria, uma troca onde ambos são formados na vivência da técnica e na teoria. Muitas vezes, há um tensionamento entre os diferentes grupos de interesse, que se evidencia ora por meio de certa “desqualificação” do aluno em relação ao trabalho da equipe local, uma postura acadêmica distante, ora por uma postura dos trabalhadores de evidenciarem desconforto pela presença dos estagiários.

3 O estágio e a prática clínica Para os alunos, um dos principais pontos da disciplina são as atividades “extra consultório” e as atividades práticas junto à equipe do Centro de Saúde. Destacam a visita domiciliar como um exemplo de prática que contribui para a construção de uma visão mais ampliada do modo de vida do paciente. Os trabalhadores e gestores enfatizam que é importante, para o médico, conhecer o território. Levanta-se, também, a importância de se constituir um vínculo mais duradouro com o usuário. Pode-se acompanhar a pessoa em vários aspectos: no caso de uma pessoa acamada, os alunos veem “o lado COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.187-99, jan./mar. 2013

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dela, como ela passa a noite, como ela é acompanhada, como ela é tratada em seus vários aspectos, incluindo o uso de remédios e para além deles”. Alguns grupos de profissionais destacam a função clínico-pedagógica do caminhar com os alunos pela comunidade como um momento de trocas, no entanto, percebe-se uma dificuldade de incluir o médico neste processo. Isso gera uma cena contraditória em que os estudantes de medicina se veem diante de estratégias clínicas importantes que raramente têm a participação dos médicos. Os docentes falam da importância e das dificuldades de se trabalhar com PTS, pois aparece como um “estorvo” no curso, pois exige um olhar mais cuidadoso com o que está sendo trabalhado, diferenciando-se da lógica da necessidade de “conduta imediata” presente na medicina, enfatizando a construção de um olhar problematizador para os casos junto com a equipe, avaliando e construindo os instrumentos que estão sendo utilizados a partir da prática com os casos. É demarcada uma diferença entre discutir uma demanda da equipe ou uma demanda gerencial. Às vezes, não se sabe se deve ser discutida a clínica dos casos ou uma demanda mais ampla e generalizada, como uma questão da rede ou de evento sentinela. O PTS e a ênfase na constituição do cuidado em rede procura aproximar clínica e gestão, mas os docentes destacam que é difícil fazer a composição entre alunos, professores e trabalhadores, pois os interesses são diversos e o tempo é curto. Também os angustia saber do caso um dia antes do início da disciplina, com falta de programação e de recursos. “Interagir com a equipe, aplicar o PTS e fazer isso correndo é uma dificuldade metodológica, mas também dá um ‘barato’”.

4 A interferência da rede de saúde no cenário pedagógico e acadêmico Pelos grupos de interesse, é muito enfatizado que o tempo que os estagiários ficam na unidade é insuficiente e, muitas vezes, eles saem do estágio sem entender o funcionamento do serviço. Mas, apesar de curta, é uma passagem intensa, em função desta dedicação exclusiva para poucos casos. Os trabalhadores e gestores não participam da discussão do currículo em geral e seus conteúdos, e pouco da construção de suas metodologias. Ainda é necessário melhorar a participação dos gestores na avaliação dos alunos, sendo que alguns apontam que isso é importante tanto para o gestor quanto para o trabalhador. Outro aspecto pontuado por trabalhadores e gestores é que a experiência de quem está trabalhando na unidade “bate de frente” com algumas proposições teóricas, que ficam distantes da realidade, e que, muitas vezes, demanda um tempo de adaptação: “os alunos saem do sonho e veem o mundo real!”. Para eles, o trabalho em equipe também funciona como um espaço de formação, pois “ninguém consegue trabalhar sozinho”. O trabalho dos médicos é visto como um processo que “está muito mecanizado”. Os trabalhadores ressaltam a descoberta de que são importantes para a formação dos alunos e do valor de não serem “um guia turístico”. Os alunos enfatizam que também têm pouco tempo para avaliar o que estão fazendo e que o momento dos grupos focais da pesquisa foi muito importante, pois puderam participar da avaliação da disciplina emitindo suas opiniões livremente. Percebemos que os estágios permitem colocar em análise o processo de trabalho nas unidades, porém é um pouco mais difícil para as equipes colocarem em análise a instituição formadora. Existe uma maior interferência da universidade sobre instituição saúde do que o contrário.

5 O estágio dentro do cenário curricular Os alunos veem pouca relação entre as disciplinas de Saúde Coletiva nos diferentes anos da graduação (1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos). Apesar de ser “boa”, a disciplina fica “jogada”, “dispersa”, não há comunicação entre os módulos, havendo quebra na continuidade do currículo. Destacam, ainda, que existe uma separação entre os estágios de gestão e clínica: o primeiro está mais ligado ao discurso “preventivista” e o segundo é mais focado em patologia, tratamento, diagnóstico e cirurgia; mas entendem que, no quinto ano, este estágio consegue articular estes dois aspectos. Percebem um avanço neste estágio pesquisado em termos de metodologia de ensino e conteúdo proposto. 194

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Considerações finais A complexidade de uma transição curricular em instituições de ensino se deve ao peso da tradição e, igualmente, de uma complexa rede de relações de poder que se fazem presentes nessas instituições. Em nossa pesquisa, chegamos a resultados que se aproximam das análises expressas por Feuerwerker (2004) de que os currículos expressam justamente essas relações dentro das universidades, e que os processos de mudança apresentam propostas híbridas, que combinam tendências mais conservadoras com propostas reformistas. Se, por um lado, isso compõe as diferenças inerentes aos grupos humanos, também abre margem para contradições institucionais geradoras de antagonismos para o processo de ensino-aprendizagem, que perde em potência. Esses antagonismos se atualizam nas relações alunosdocentes; trabalhadores-alunos; docentes-trabalhadores etc. Nesse sentido concordamos com a concepção de que a potência intercessora do encontro entre universidade e rede pública de saúde se define pela oportunidade de gerar trocas entre trabalhadores, docentes, gestores, alunos e usuários, ainda que de posições diferentes e com diferentes relações de poder (Garcia, 2009). Metodologias de ensino que trabalhem com análises coletivas de casos clínicos, construção conjunta de projetos terapêuticos e elaboração de diagnósticos multiprofissionais são oportunidade de se colocarem em debate as relações de poder que atravessam e compõem a relação ensino-serviço e possibilitam problematizar os antagonismos que criam falsas dicotomias, como: especialista-generalista; clínica-saúde coletiva; indivíduo-sociedade. Nesse sentido, faz toda a diferença os discentes e docentes estarem na rede enquanto parceiros de trabalhadores e gestores. A ideia aqui é a de que essa relação supere um formato de “franquia” da universidade no serviço, de forma que aquilo que os serviços de saúde produzam possa invadir a instituição de ensino, que escapa de sua lógica hegemônica de reprodução de seu modo de fazer, para além dos muros acadêmicos. Seguimos com a avaliação de que esse encontro entre instituições de ensino e a rede de saúde é uma grande oportunidade para os discentes perceberem um modelo assistencial distinto do curativo, individual e hospitalocêntrico, tão tradicionalmente ressaltado no ensino em ambiente hospitalar (Albuquerque et al., 2008). Neste cenário, os alunos podem reconhecer a construção de outro modelo de atenção na integração de práticas em saúde. Nessa vivência também questionam os múltiplos avanços e insuficiências do SUS, possibilitando um aprendizado desde a organização do sistema até as práticas clínicas (Pinto, Formigli, Rego, 2007). Atuando diretamente nos espaços de saúde, os discentes têm a oportunidade de perceber como são dinâmicas as relações de cuidado e de poder; conseguem desenvolver uma interpretação crítica do sistema de saúde, incomodar-se com ele e nele atuar mais implicadamente (Carvalho, Ceccim, 2006). Convém ressaltar a importância do ensino em múltiplos espaços do sistema. Não pretendemos advogar que o sentido de formação que vamos propondo aqui seja apenas para a Atenção Básica, mas que isso também contamine outros serviços do sistema, provocando outra forma de ensino e serviço se relacionarem e produzirem a formação dos trabalhadores. Todos os nós da rede de saúde também podem ser espaços de cuidado produtores de vida e de formação ética. No entanto, entendemos que exercício da prática médica na Rede Básica de saúde implica, potencialmente, o encontro com territórios de grandes dificuldades sociais e com a vida cotidiana que se opõe a cenários idealizados que muitos alunos constituem para si e para o exercício de sua profissão. A inserção em cenários reais e contraditórios não busca mascarar as dificuldades da rede pública, mas incluí-la como plano de problematização que ativa um questionamento do papel do médico frente a este cenário adverso. Apesar desta avaliação, que aponta para reformas curriculares inovadoras, muitas vezes, verificamos que as mudanças ainda estão circunscritas à grade dos quatro primeiros anos da graduação. No internato, a grade curricular ainda é, quase totalmente, preenchida por disciplinas “clínicas” especializadas que têm como cenário prioritário o hospital. Por isso, julgamos que os temas trabalhados na disciplina estudada e sua estratégia metodológica não podem ficar restritos a ela, sendo necessário ampliar a sua proposta dentro do curso, tanto nas disciplinas da Saúde Coletiva quanto nas ministradas pelos demais departamentos. Defendemos que temáticas como: gestão da clínica/cuidado, clínica ampliada, projeto terapêutico singular, território e formação de redes e de linhas de cuidados, venham a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.187-99, jan./mar. 2013

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A FORMAÇÃO MÉDICA EM DEBATE: ...

constituir um dos eixos do currículo de graduação de profissionais em saúde, por tratarem de núcleos específicos de saber, abordarem metodologias de articulação entre os diferentes saberes e suas especialidades. Isso vai muito além da mera redistribuição de carga horária ou da invenção de novas disciplinas. Implica a mudança de conceitos, dos processos de ensino-aprendizagem, mudança nas relações de poder institucionais e na forma como as universidades entendem seu papel na contemporaneidade. Trata-se de um salto qualitativo, onde a formação deve passar a ser gerenciada coletivamente, e a ser orientada pelas reais necessidades de saúde do nosso país. Para isso, é necessário desenvolver novas sensibilidades e operar com a participação de um corpo maior de docentes de distintas áreas de saber, em diálogo com a pluralidade de conhecimentos dentro e fora do universo acadêmico. Sustentamos que uma das melhores formas de desenvolver esses conteúdos e práticas é a articulação efetiva entre instituição de ensino e rede de saúde. Essa perspectiva pedagógica inclui a participação de atores externos à universidade e à classe médica como elemento essencial na construção do processo formativo. Isso pode se dar a partir da criação de espaços para representantes dos serviços públicos e da população na universidade, ou a partir da inserção de graduandos, estagiários e docentes na rede por meio de contratos construídos de forma participativa, na construção conjunta dos sentidos que se quer produzir com esse encontro – mecanismos de gestão partilhada do processo de ensino-aprendizagem que aumentem o grau de interferência mútua entre universidade e serviços de saúde.

Colaboradores Todos os autores trabalharam na construção do artigo, em suas etapas de formulação, redação e revisão. Referências ALBUQUERQUE, V.S. et al. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais de saúde. Rev. Bras. Educ. Med., v.32, n.3, p.356-62, 2008. AZEVEDO, B.M.S. O ensino da gestão no curso de graduação de Medicina da FCM/Unicamp: possíveis encontros entre universidade e serviços de saúde. 2012. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2012. BRASIL. Portaria Interministerial nº 2101, de 3 de novembro de 2005: Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde Pró-Saúde. Brasília: Ministério da Educação, Ministério da Saúde, 2005a. ______. Pró-saúde: Programa nacional de reorientação da formação profissional em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Educação, 2005b. ______. AprenderSUS: o SUS e os cursos de graduação da área da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, 2004. 196

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artigos

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AZEVEDO, B.M.S. et al. La formación médica en debate: perspectivas a partir de la relación entre institución de enseñanza y la red de salud pública. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.187-99, jan./mar. 2013. Este trabajo se refiere al estudio de la formación ,médica en Brasil e sus desafíos actuales en su relación con la red de salud pública, segmento de salud pública, segmento del estudio cualitativo – participativo más amplio titulado “Investigación evaluadora de la gestión del trabajo y la formación de graduandos y trabajadores de salud: Explorando Fronteras”. Presentamos una retrospectiva histórica de la formación médica brasileña para explorar posteriormente sus desdoblamientos actuales, teniendo como analizador la experiencia empírica de implementación y acompañamiento de una disciplina de Salud Colectiva que se desarrolla en servicio. Los resultados se disponen a partir de cinco ejes: i) proceso de trabajo; ii) función formadora del periodo preparatorio; iii) práctica clínica; iv) la intervención de la red en la Universidad; v) reforma curricular.

Palabras clave: Educación. Enseñanza. Salud Colectiva. Recebido em 26/03/12. Aprovado em 04/09/12.

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A experiência dos diários reflexivos no processo formativo de uma Residência Multiprofissonal em Saúde da Família Filipe Guterres Venancio Costa de Oliveira1 Maria Alice Pessanha de Carvalho2 Margareth Rose Gomes Garcia3 Simone Santos Oliveira4

Introdução A Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) adota, como um de seus instrumentos metodológicos, o diário reflexivo. Neste artigo, buscaremos compreender melhor esse instrumento, baseados na experiência de acompanhamento de um grupo de residentes no decorrer de dois anos, tempo de duração do curso. Em 2003, a escola desenvolveu uma reforma curricular denominada ENSP em Movimento, pautada na construção de programas de formação baseados em competências profissionais identificadas com as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Objetivava construir um novo modelo político pedagógico, repensando as estratégias de ensino e incorporando o mundo do trabalho como eixo fundamental na produção do conhecimento e na definição de demandas educacionais. Em 2005, o curso se chamava Especialização em Saúde da Família nos moldes da Residência, com parcerias da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro - como cenário de aprendizagem, a sua rede de Atenção Primária de Saúde, especificamente as estruturas da Estratégia de Saúde da Família/ESF denominadas de módulos -, e do Núcleo Regional do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro (NERJ) - mediante financiamento das bolsas de residência. O curso foi fundamentado: na metodologia de construção curricular baseada em competência, na concepção do profissional reflexivo e na articulação trabalho e formação. Este currículo, em vigor, apresenta três áreas: Organização do Processo de Trabalho; Cuidado à Saúde: individual, coletivo e familiar; e Educação e Formação em Saúde. Articula os seguintes princípios orientadores da residência multiprofissional: integralidade e interdisciplinaridade; conceito ampliado de saúde; multiprofissionalidade; noção de rede de cuidados/cadeia do cuidado e educação permanente em saúde (Carvalho, Garcia, Seidl, 2006). A política pública da Estratégia da Saúde da Família (ESF) aposta na transformação da atual realidade do sistema de saúde, através da ação da equipe multiprofissional, com destacado envolvimento da comunidade. Pode-se, dessa forma, oferecer uma assistência individual de qualidade, junto a uma assistência COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-210. simone@ensp.fiocruz.br 2 Departamento de Ciências Sociais, Ensp, Fiocruz. 3 Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, Ensp, Fiocruz. 1,4

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A EXPERIÊNCIA DOS DIÁRIOS REFLEXIVOS NO PROCESSO FORMATIVO ...

clínica resolutiva, baseadas nos parâmetros da promoção da saúde. Estas ações, que buscam favorecer a atenção e o cuidado coletivo, pretendem colaborar com a transformação da realidade local, para superar desigualdades e iniquidades sociais. Em seus documentos de referência, a ESF aponta como seus objetivos: a) humanização das práticas de saúde por meio do estabelecimento de um vínculo entre os profissionais e a população; b) a democratização do conhecimento do processo saúde-doença e da produção social da saúde; c) o desenvolvimento da cidadania, levando a população a reconhecer a saúde como direito; d) a estimulação da organização da comunidade para o efetivo exercício do controle social (Brasil, 2006). A análise que empreendemos aqui se baseia, sobretudo, no uso do Diário Reflexivo, tendo como referência sua origem no diário de campo da antropologia e no portfólio reflexivo da educação. Na antropologia, o diário de campo se configura como um “instrumento depositário de notas, impressões, observações, primeiras teorizações, mapas, esboços, desabafos, entrevistas e garatujas de informantes” (Magnani, 1997, p.8). Auxilia na formulação de hipóteses, direciona a pesquisa, permite visualizar retrospectivamente as lacunas, e é motivador do diálogo e de resgate do vivido. Já o portifólio reflexivo é definido como uma narrativa de caráter biográfico. Segundo Sá-Chaves (2005), o portifólio permite o acesso, não só aos conhecimentos vivenciados, mas, também, aos significados atribuídos, pelo autor, às circunstâncias em que ocorreram, e ao modo como os significados reconstroem as práticas. Como ressaltam Caprara e Landim (2008), nos últimos anos, houve um interesse grande pelos métodos qualitativos na pesquisa em saúde. Muito disso se deve a novos paradigmas que se estabeleceram dentro dessa área de conhecimento, na qual passaram a figurar preocupações com o sujeito como um todo – lembrando que a saúde não é algo que se possa cuidar isoladamente, ao se entender que ela está ligada a todos os aspectos da vida. A Residência está de acordo com essa perspectiva na medida em que seu processo de ensino-aprendizagem se orienta pelo sentido da promoção da saúde, que considera a saúde como um conjunto de aspectos, e não apenas como ausência de doença. A formação do residente busca criar condições para que ele seja capaz de diagnosticar, planejar, intervir e avaliar as questões de saúde que acometem sujeitos, famílias e comunidades. Sendo assim, esta formação deve apontar para a compreensão da realidade de saúde da comunidade, o que exige que se interaja com as complexas tramas sociais, econômicas e culturais inerentes aos grupos (Santos, 2010). Para tanto, são necessários enfoques menos fragmentados, abertos à diversidade e à complexidade do cotidiano, em que a interdisciplinaridade é uma exigência imprescindível para se abordarem as questões relativas à saúde das populações e dos indivíduos. Compreender que cada pessoa está inserida em redes, estruturas, formas de pensamento coletivas, que marcam e orientam seu comportamento, é fundamental para se encontrarem soluções para as causas do sofrimento, uma vez que elas estão para além do corpo biológico (Raynaut, 2006).

A etnografia O estudo realizado pelos residentes nas comunidades é um trabalho de campo com características da etnografia. No campo da antropologia, a figura do diário de campo surgiu com o antropólogo Bronislaw Malinowski que, na introdução de seu clássico estudo “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922), marcou a história da antropologia moderna ao propor uma nova forma de etnografia, envolvendo detalhada e atenta observação participante, apesar de o próprio nunca ter utilizado o termo. Na introdução de seu livro, o autor chama a atenção para o fato de que, nas ciências físicas e químicas, sempre há um registro exato das experiências que realizou, dos instrumentos utilizados, das observações, e como elas foram conduzidas, do seu número e da quantidade de tempo que lhes foi dedicado. Em ciências não exatas, isto não pode ser feito de forma tão rigorosa; relata-se o melhor possível para informar ao leitor sobre as observações e experiências. Segundo Malinowski (1997, p.30): Lamentavelmente, na Etnografia, onde a apresentação desinteressada dessa informação se torna talvez ainda mais necessária, isto nem sempre tem sido devidamente explicitado e muitos autores limitam-se a apresentar os dados adquiridos, fazendo-os emergir, perante 202

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nós, a partir da mais completa obscuridade, sem qualquer referência aos processos para a sua aquisição.

A partir dessa percepção, o autor iniciou sua preocupação em estabelecer regras para dar à etnografia a consolidação necessária para se transformar em um método. As primeiras etnografias eram feitas baseadas em questionários; os antropólogos não iam ao campo, apenas mandavam os questionários que, em geral, eram aplicados por missionários, os quais, na maioria das vezes, sabiam a língua nativa. Era comum ainda que os etnógrafos anteriores a Malinowski, quando iam a campo, se mantivessem numa postura distante do grupo. Mas ele ressalta a importância da participação nas atividades diárias, bem como o aprendizado da língua e o isolamento. A figura do diário de campo, importante instrumento de registro do etnógrafo, ganha destaque justamente a partir desses novos princípios. Uma parte expressiva do ofício do etnógrafo reside na construção do diário de campo. “Esse é um instrumento que o pesquisador se dedica a produzir, dia após dia, ao longo de toda a experiência etnográfica” (Weber, 2009, p.158). Nele deverão estar contidos todos os elementos que, posteriormente, serão usados pelo etnógrafo para construir/consolidar suas reflexões. Por isso, é importante, segundo Florence Weber, registrar os eventos observados ou compartilhados, os discursos e as posições dos entrevistados, bem como as relações que se criaram entre o pesquisador e os pesquisados. Mas o que nos interessa efetivamente no trabalho desta autora é a distinção que ela faz entre os diários que são confeccionados durante uma pesquisa de campo. São três os tipos de diário: um diário de campo específico da etnografia, aquele que já apresentamos anteriormente; um diário de pesquisa, o qual não se destinaria necessariamente a etnografias; e um diário “íntimo”, no qual estariam contidos os relatos de cunho pessoal do pesquisador, como podemos ler em Weber (2009, p.158-9): [...] três tipos de diários: um diário de campo específico da etnografia; um diário de pesquisa, tal como poderia desenvolver um historiador ou um filósofo; e um “diário íntimo”. Nesse último caso, conforme o modelo dos diários autobiográficos em que são depositados os humores e as emoções de seu autor. É no diário de campo que se exerce plenamente a “disciplina” etnográfica: deve-se aí relacionar os eventos observados ou compartilhados e acumular assim os materiais para analisar as práticas, os discursos e as posições dos entrevistados, e também para colocar em dia as relações que foram nutridas entre o etnógrafo e os pesquisados e para objetivar a posição de observador. É, pois, o diário de pesquisa de campo que permitirá não somente descrever e analisar os fenômenos estudados, mas também compreender os lugares que serão relacionados pelos observados ao observador e esclarecer a atitude deste nas interações com aqueles.

Torna-se pertinente perguntar se o recente e crescente uso da etnografia na pesquisa em saúde não se caracterizaria quase como uma distorção de suas premissas originais, configurando-se no que se poderia chamar de observação de “tipo” etnográfico (Caprara, Landim, 2008). Sem dúvida, o estudo empregado pelos residentes é do “tipo” etnográfico, como dizem as autoras, e o que os aproxima é a forma como se dá sua inserção nesse campo. As equipes de residentes multiprofissionais (enfermeiro, cirurgião dentista, nutricionista, psicólogo e assistente social) são inseridas no campo através de cooperação com os módulos da Estratégia de Saúde da Família. Assim, seu dia a dia no campo é composto pela vivência da rotina desses profissionais, seja nas visitas domiciliares, onde têm a oportunidade de conhecer melhor o território adstrito, os moradores, os hábitos da comunidade, seja nos atendimentos no módulo, em que cada um auxilia de acordo com a sua formação. Isso nos leva a acreditar que, se esse estudo é de um tipo etnográfico, é justamente por essa observação aplicada pelos residentes durante o tempo em que atuam no módulo e na comunidade, que, pelas suas características, é um trabalho de campo. Não há, contudo, como em etnografias tradicionais, a figura de um informante, nem mesmo a preocupação em se entender certos códigos e costumes que perpassam aquela comunidade. Pode-se dizer, de maneira simples, que tudo o que é observado e considerado relevante é aquilo que, de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A EXPERIÊNCIA DOS DIÁRIOS REFLEXIVOS NO PROCESSO FORMATIVO ...

alguma forma, pode afetar a saúde do sujeito. Sabemos também que muitos são os aspectos que interferem na saúde de uma pessoa, e, pensando assim, é cabível imaginar que tudo deve ser observado para que se tenha uma compreensão ampla, a mais completa e próxima possível daquela comunidade. Mas o que queremos ressaltar é que, ao se tratar de um olhar voltado para a saúde, muitos pontos indispensáveis para uma etnografia poderão ser deixados de fora nesse trabalho. Esse campo estudado pelos residentes está de acordo com a maioria dos trabalhos de campo realizados hoje em dia. Já não se fazem mais etnografias exclusivamente sobre as chamadas comunidades primitivas, como, em geral, faziam os antigos antropólogos. Hoje, o campo está muito mais próximo, e cada vez mais se opta por realizar estudos de objetos familiares, o que cria dificuldades, pois, nesses casos, normalmente, é preciso desnaturalizá-los para, então, conseguir torná-los familiar.

Observação participante e o diário reflexivo Dessa forma, a observação participante empreendida pelos residentes, no trabalho de campo, é acompanhada de registros nos diários reflexivos. Os residentes devem apresentar mensalmente o diário, relatando seu cotidiano nos cenários de aprendizagem. É um relato espontâneo das observações, sentimentos, impressões, dificuldades, possibilidades, potencialidades que o aluno observa e registra durante o seu processo desenvolvido no território. O residente dialoga consigo mesmo, com o processo de trabalho e com sua aprendizagem. Esse instrumento tem três funções pedagógicas principais. A primeira é armazenar todas as informações possíveis relacionadas à comunidade e seu território, possibilitando a reflexão posterior acerca do que foi observado, e permitindo também que a coordenação e os docentes tenham uma fonte de informações acerca das necessidades da aprendizagem. A segunda é servir como um espaço para os alunos registrarem mais cuidadosamente sua própria prática e da equipe, com os vários aspectos que a permeiam, buscando, na orientação, a articulação entre teoria e prática. A terceira é promover a competência narrativa: conjunto de habilidades requeridas para reconhecer, absorver, interpretar a serem mobilizadas pelas histórias que se ouve ou lê (Dolores, Peixinho, 2006). A concepção construtivista de uma nova filosofia de formação, definida por Freire (1999, p.77) como “capacidade de aprender, não apenas para nos adaptarmos a realidade, mas, sobretudo, para transformar, para nela intervir, recriando-a”, está nas bases teóricas da Residência. Assim, essa formação necessita de instrumentos apropriados para alcançar seus objetivos, e o diário reflexivo se torna fundamental nesse processo. O diário também é baseado na experiência do portfólio reflexivo, que já é adotado em várias áreas de formação profissional, cumprindo um papel importante como estratégia que potencializa a construção do conhecimento de forma reflexiva, com vista a uma progressiva emancipação dos sujeitos em formação. Silva e Sá-Chaves (2008, p.723) apontam que: “a utilização da estratégia portfólio reflexivo responde, em grande medida, a esta ‘nova’ filosofia de formação”. Seu uso permite, a quem o elabora, uma reflexão continuada acerca das múltiplas dimensões da prática, é um espaço de questionamento sistemático sobre a prática em situações de trabalho. Considera-se ainda que “a apropriação dos saberes não pode se distanciar dos valores e afetos que tornam significativa a experiência” (Sordi, Silva, 2010, p.948), reforçando o espírito de colaboração entre os residentes. Na Residência, contudo, essa ferramenta ganha novas formas na apropriação pelos residentes. O diário reflexivo se encaixa nesse trabalho também como um diário de campo, pois há necessidade de observação das características do espaço geográfico para melhor se compreenderem as condições, situações e estilos de vida. Os residentes devem realizar esse processo de maneira minuciosa e, nesse ponto, o registro torna-se um importante auxílio, pois, como fazem os etnógrafos, a qualquer momento, eles podem retornar e refletir sobre uma determinada questão. Dessa forma, o trabalho empreendido por eles nos territórios, além do caráter profissional, é também um trabalho de campo que envolve entender as dinâmicas de funcionamento daquele local, bem como conhecer as pessoas que fazem parte daquele todo. Portanto, a maior diferença entre os dois está no seu conteúdo. O diário, como já dito, segue características muito próximas às de um diário etnográfico, com contornos mais detalhados da 204

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observação feita em campo. O portfólio, por sua vez, se direciona mais a registrar as etapas de um processo. No caso da Residência, esse diário exerce, para os orientadores, o mesmo papel que uma etnografia exerce para o seu leitor. Transmite a ele a sensação de estar no local, vivenciando tudo aquilo que está ali descrito. Por isso mesmo, podemos concluir que o diário reflexivo deve ser confeccionado com os mesmos cuidados que um diário de campo tradicional. Quanto mais detalhes da observação estiverem ali presentes, mais material os alunos terão para suas reflexões durante as orientações; oportuniza debater as questões que venham a surgir do embate permanente entre o que aprendem na teoria e o que vivenciam na prática, ou, mesmo, para a confecção do trabalho de conclusão de curso.

A experiência Acompanhamos, ao longo do decorrer de uma Residência, período em torno de dois anos, uma equipe multiprofissional (enfermeira, dentista e psicólogo) de três residentes atuantes em um módulo de ESF, inseridos em comunidade pertencente ao conjunto de favelas conhecido como Complexo do Alemão, no subúrbio do Rio de Janeiro. Na análise dos diários, utilizaremos as letras A, B, C para distinção dos três relatos. Nosso ponto de partida foram às reuniões de orientação que ocorriam semanalmente (exceto na primeira semana do mês, devido à reunião de turma). A reunião de orientação é um espaço no qual os residentes se encontram com seu orientador acadêmico/docente/tutor, para exporem seus questionamentos diante da complexa relação teoria-prática. As aflições do trabalho em campo e ideias que pretendem pôr em prática junto à equipe do módulo são alguns dos elementos que permeiam esse momento. Esse espaço é aberto à discussão e, por isso, não há recomendação para que siga um roteiro, de forma que esse irá se constituindo de acordo com as necessidades e demandas que apareçam. O diário reflexivo era o principal suporte para reuniões de orientação. A partir da análise dos diários reflexivos, identificamos como esses são elaborados de maneiras diferentes, deixando claro que cada residente apresentou necessidades particulares e únicas no seu processo de formação. Em um primeiro momento, os diários foram parecidos, contendo relatos de casos da comunidade e descrições detalhadas das atividades em campo. Especialmente por se tratar do primeiro contato com a comunidade, os primeiros diários traziam uma riqueza de detalhes, do olhar aguçado dos residentes em busca de melhor apreender a comunidade e o módulo em que estavam inseridos. Posteriormente, foi possível perceber as peculiaridades de cada residente. As características de cada um se estenderam por todos os diários escritos ao longo dos dois anos. No segundo mês, começaram a aparecer as expectativas e preocupações com o trabalho no Módulo, além das primeiras impressões vindas do relacionamento mais prolongado com a equipe. Apareceu, também, uma mudança na forma de organização do diário do residente C, que optou por dividi-lo em temas, e não mais por dias ou semanas, como vinha sendo feito. Essa nova organização fez com que o diário perdesse um pouco em detalhes no relato de casos, mas, em compensação, os anseios pessoais do residente ganharam destaque. A partir do terceiro mês, surgiram duas características comuns entre eles: as angústias do processo de trabalho e a redução no tamanho dos diários, variando, agora, entre quatro e seis páginas (anteriormente, a média era de dez páginas). Porém, apesar dessas características comuns, foi também a partir desse momento que cada residente começou a ter um estilo mais definido de organização de seu diário, o que se refletiu na maneira como os temas são abordados. O residente A apresentou seus relatos normalmente seguidos por um questionamento ou reflexão, questionamentos sobre a relação entre a teoria e a prática; o residente B foi mais pessoal, demonstrando suas emoções e impressões, e o residente C, com o diário dividido por tópicos, foi um meio-termo entre os dois primeiros, mesclou reflexão teórica com suas impressões pessoais. Essas características, demonstradas já nos primeiros meses, se prolongaram durante todo o decorrer da Residência, não só nos diários, como também nas reuniões de orientação, quando as discussões muitas vezes seguiam um padrão bem semelhante ao que estava escrito, com cada um dos residentes expondo, em suas falas, as mesmas características. As reuniões de orientação do grupo de residentes mencionados neste artigo sempre contaram com a ampla participação dos conteúdos dos diários. A COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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orientadora lia os diários antes, de forma que, ao encontrar os residentes, ela já estava ciente das questões por eles relatadas. As discussões não ficavam restritas ao conteúdo escrito, muitos fatos novos surgiam no processo de orientação. Mas era a partir dos relatos que as discussões eram balizadas e muitas questões suscitadas e trazidas para as reuniões. Diante de um curso que adota, como referência de aprendizagem, a concepção construtivista, que identifica o aluno como construtor de conhecimento, o Diário atua justamente como parte dessa construção, já que é uma ferramenta que auxilia na intervenção da realidade. O grupo de residentes aqui estudados deixou clara a importância do diário no processo de formação, uma vez que as reuniões de orientação se baseavam nos relatos. As discussões a respeito de fatos ocorridos no cotidiano ganhavam elementos novos a partir das anotações, pois, muitas vezes, a própria memória dos residentes apagava aspectos importantes de serem levantados. Além disso, em muitos momentos, foi possível retornar a determinados pontos do trabalho em campo graças a releituras de todo o material. A partir dessas reflexões, os residentes, além de aprenderem com sua própria prática de trabalho, enfrentando os conflitos e problemas, buscam construir saídas (Sordi, Silva, 2010). Percebeu-se que, quando um determinado assunto era relevante, este aparecia nos três diários. Alguns casos exemplificam bem isso. Um que chama bastante atenção é o de uma moradora da comunidade que tem problemas mentais e com a qual a equipe do módulo nunca conseguiu um bom relacionamento, ocasionando dificuldades no seu tratamento. A equipe de residentes começou então a dar uma atenção especial a ela e sua família. No começo, os relatos sobre este caso eram tímidos, mais no sentido de contarem um pouco da história da paciente e de como eles chegaram até ela. Mas logo, com o desenrolar da história, começaram a aparecer questionamentos a respeito da sua conduta. Um deles ressalta, inclusive, se o que estavam fazendo era assistência ou paternalismo. Os relatos indicavam, ainda, os problemas com a preceptoria de território. Se a princípio eram simples comentários, logo se tornaram contundentes reclamações a esse respeito, o que foi, por inúmeras vezes, alvo de longas discussões durante as orientações. Os relatos das dificuldades do dia a dia davam força e veracidade à fala dos alunos, deixando claro que aquele era um problema que realmente os estava afligindo e que precisava ser resolvido para não prejudicar a continuidade do trabalho. E, sempre quando necessário, a docente comparecia às reuniões da equipe da ESF como elemento dinamizador do processo de educação permanente desta equipe. Também surgiam as considerações a respeito das atividades que vinham sendo desenvolvidas, como os grupos organizados por eles. Interessante, nesse caso, é perceber como os relatos vinham acompanhados de questionamentos teóricos, dificuldades práticas e, mesmo, das reações diante do que ia acontecendo. Ao fim do curso, mais uma vez, o diário foi uma peça-chave, agora como ponto de apoio e matériaprima da construção do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O grupo de residentes voltou aos seus relatos para construir seu trabalho final. Esse retorno às descrições e reflexões se deu pela necessidade de reverem os momentos de imersão no campo, refletindo agora, a partir de um outro lugar, o da academia, sobre situações e enfrentamentos que viveram ao longo da Residência.

Considerações finais O diário reflexivo mostrou-se uma ferramenta eficaz que possibilita acompanhar as atividades práticas e a atuação das equipes. Fornece subsídios para avaliação dos estudantes como recurso à reformulação da prática e, sobretudo, propicia o desenvolvimento dos princípios éticos e da relação com os indivíduos e comunidades. Também consiste em um valioso instrumento da gestão educacional da formação em saúde. Propicia ao gestor avaliar o desenvolvimento de competências que extrapolem o cognitivo (saber/ conhecimento e habilidades intelectuais) e o psicomotor (habilidades motoras e manuais), e que incorporem as afetivas (valores e atitudes); possibilita à coordenação do curso ter uma visão ampla das experiências, avaliar o desempenho das equipes de alunos e a construção do aprendizado do residente. No momento em que os alunos se viram diante do desafio de enfrentar a realidade, o dia a dia da comunidade e do módulo da ESF, seus modos de ver e sentir o cotidiano, ficou clara a importância do 206

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diário. A dificuldade de se estabelecer harmonia entre ‘o como se aprende’ e ‘o como se faz’ valoriza a iniciativa de se pensar um instrumento que, por um lado, está referenciado na antropologia, com seus dados de caráter etnográfico, e, por outro, na educação, como portfólio reflexivo. Apontamos para a relevância de caminhos pedagógicos que viabilizem uma formação mais ancorada na prática reflexiva baseada em uma postura crítica. No entanto, há a necessidade de aperfeiçoamento dessas experiências e, por isso, a importância do compartilhamento das mesmas, na perspectiva de seu desenvolvimento enquanto processo de conhecimento. Por fim, cabe ressaltar que o método etnográfico não se reduz a uma técnica. Antes de tudo, como lembra Magnani (2009), é um modo de aproximação e apreensão da realidade, mais do que um conjunto de procedimentos, que oferece a possibilidade para um novo entendimento dessa mesma realidade. Na Saúde, este método vem fortalecer a apreensão de novas experiências de construção compartilhada do conhecimento.

Colaboradores Filipe Guterres e Simone Oliveira foram responsáveis pelo trabalho de campo, análise e redação do artigo. Maria Alice Pessanha de Carvalho e Margareth Rose Garcia contribuíram na revisão da versão final do manuscrito.

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O diário reflexivo foi adotado na Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Durante dois anos acompanhamos uma equipe multiprofissional de três residentes em um módulo da Estratégia de Saúde da Família (ESF), buscando compreender as origens do instrumento no diário de campo da antropologia e no portfólio reflexivo da educação. O instrumento mostrou-se eficaz, possibilitando acompanhar as atividades práticas e a atuação das equipes e fornecendo subsídios para avaliação dos estudantes como recurso para a reformulação da prática; também propicia o desenvolvimento dos princípios éticos e da relação para com os indivíduos e comunidade. No momento em que os alunos se viram diante do desafio de enfrentar a realidade, o dia a dia da comunidade, ficou clara a importância do Diário.

Palavras-chave: Saúde da Família. Diário reflexivo. Trabalho pedagógico em saúde. Antropologia cultural. Portfólio reflexivo. The experience of reflective diaries in the training process of Multiprofessional Residence in Family Healthcare Reflective diaries were brought into use for Multiprofessional Residence in Family Health at the National School of Public Health, Oswaldo Cruz Foundation, Rio de Janeiro, Brazil. Over a two-year period, we monitored a multiprofessional team of three residents at a Family Health Strategy module, seeking to understand the origins of this tool in anthropological field diaries and in reflective portfolios within education. The tool was shown to be effective tool and made it possible to monitor the practical activities and operations of teams. It provided support for assessing the students as a resource for reformulation of practice, and for developing ethical principles and relationships with individuals and the community. At the time when the students were faced with the challenge of dealing with reality, i.e. the daily life of the community, the importance of the diary became clear.

Keywords: Family Healthcare. Reflective diary. Pedagogical healthcare work. Anthropology cultural. Reflective portfolio. La experiencia de los diarios reflexivos en el proceso de formación de una Residencia Multi-profesional en Salud de la Familia Presentamos el diario reflexivo adoptado en la Residencia Multi-profesional en Salud de la Familia de la Escuela Nacional de Salud Pública, Fundación Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Durante dos años seguimos un equipo multi-profesional de tres residentes en un módulo de la Estrategia de Salud de la Familia (ESF), buscando comprender sus orígenes en el diario de campo de la antropología y en el portafolio reflexivo de la educación. La herramienta se mostró eficaz en lo seguimiento de las actividades prácticas y la forma de actuar de los equipos. Provee subsidios para la evaluación de los estudiantes como recurso para la re-formulación de la práctica y de la relación para con los individuos y la comunidad. En el momento en que los alumnos se vieron ante el desafío de afrontar la realidad, el día a día de la comunidad, se quedó clara la importancia del diario.

Palabras clave: Salud de la Familia. Diario reflexivo. Trabajo pedagógico en salud. Antropología cultural. Portafolio reflexivo. Recebido em 11/04/11. Aprovado em 07/10/12.

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Uma reflexão sobre os múltiplos sentidos da docência em saúde* Gilson Saippa Oliveira1 Lilian Koifman2

Introdução Os desafios da formação dos profissionais de saúde, que sejam capazes de responder, em suas ações cotidianas, aos desafios ético-políticos do SUS, têm orientado os debates e formulações de políticas públicas, arranjos tecnoperacionais, e encontram materialização: nos balizamentos normativos presentes nos Relatórios da Xª, XIª e da XIIª Conferências Nacionais de Saúde, na Norma Operacional de Recursos Humanos para o SUS (NOB/RH-SUS), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos universitários da área da saúde (DCN‘s), e nas diferentes políticas do Ministério da Saúde que tratam do tema (Brasil, 2004b; 2001). Os princípios legais e normativos ganham materialidade no formato de arranjos e dispositivos indutivos de políticas de formação nas estratégias conjuntas ou isoladas do Ministério da Saúde (MS) e da Educação (MEC). Dentre elas, destacam-se: o Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares para as Escolas Médicas (PROMED), o Programa de Educação Permanente (Polos de Educação Permanente) e, mais recentemente, o Programa Nacional de Reorientação do profissional em Saúde (Pró-Saúde) (Brasil, 2007; 2005; 2004a; 2003; 2002). Explicita-se de maneira bastante clara, em tais relatórios e dispositivos institucionais, a necessidade de uma política de Recursos Humanos para o SUS, pois a sua inexistência propicia um modelo de formação, tanto de profissionais de nível Superior quanto de Médio, centrado no uso intensivo de tecnologias e especialização. Alerta-se que esse processo deve concentrar-se na formação de profissionais que tenham clareza de sua inserção e desempenho no processo de trabalho em saúde, conscientes do compromisso com a humanização e compreensão da diversidade sociocultural da sociedade brasileira, bem como dos aspectos éticos do SUS (Ceccim, 2005). A partir de uma concepção ampla de saúde, as políticas propõem mudanças de modelos metodológicos, abandonando a ênfase nos conteúdos para adotar movimentos que estimulam a aprendizagem ativa. Como proposta, busca-se, assim, superar a dicotomia entre teoria e prática, valorizando o trabalho articulado aos serviços, com identificação da capacidade de desenvolvimento da atenção, centrada na prevenção, promoção, proteção e reabilitação, em nível individual e coletivo. O modelo adotado propõe: valorizar a tomada de decisões, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Elaborado com base em Oliveira (2010); pesquisa aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. 1 Departamento de Formação Específica em Fonoaudiologia, Polo Universitário de Nova Friburgo, Universidade Federal Fluminense (UFF). Rua Américo Blaudt, casa 8, São Pedro da Serra, Nova Friburgo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 28.616-155. gilsonsaippa@id.uff.br 2 Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde da Comunidade, UFF.

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comunicação, liderança, administração e o gerenciamento dos processos de trabalho, produção de informação e planejamento de ações, habilitando o profissional para o trabalho em equipe e a produção da atenção integral (Haddad, Ristoff, Passarela, 2006; Batista, 2004). Tais balizamentos e orientações normativas são apropriados e interpretados pelos docentes universitários, no cotidiano dos processos de formação, de formas diversas. Tal apropriação revela que esses espaços se apresentam como lugares de produção, onde se misturam e (re) produzem sentidos que podem provir de fontes diversas e contraditórias. A compreensão desse processo de (re) apropriação e (re) afirmação ou negação de sentidos tem exigido das diferentes comunidades interpretativas - sejam elas pesquisadores do campo, operadores das políticas públicas ou gestores das escolas - a produção de um deslocamento operacional, conceitual e epistêmico que se afasta das perspectivas prescritivas de comportamento e que se encerra nas desejáveis qualidades da docência. Essas perspectivas ganham formato nos processos internos e externos às instituições de ensino a partir de projetos de sensibilização, capacitação e profissionalização da docência em saúde (Nóvoa, 2007; 1997; Moita, 2007; Cunha, 2006; Brandt Ribeiro, 1999; Therrien, 1997). Segundo Faria e Casagrande (2004), verifica-se que, no centro dos debates e discussões sobre os rumos da educação, encontramos o docente: sua formação, desempenho e o desenvolvimento profissional. Nos tempos atuais, a docência universitária deve propiciar a formação do profissional cidadão, devendo se alterarem os projetos pedagógicos que privilegiam a formação de técnicos profissionais. Ainda segundo os autores, apesar dessa constatação, pouca atenção tem sido voltada à formação e desenvolvimento de docentes de nível superior no Brasil. Em estudo recente, Araujo, Batista e Gerab (2011) analisam artigos publicados em periódicos nacionais que abordam a formação docente em saúde. Das 76 publicações levantadas, a análise “evidencia as necessidades dos pesquisadores de compreensão do processo de mudança na área, permitindo delinear diretrizes para a elaboração de um projeto de desenvolvimento docente” (Araujo, Batista e Gerab, 2011, p.486). O trabalho das autoras possibilitou delinear quatro eixos para um processo de formação docente em saúde: compreensão histórica e política da educação superior em saúde; discussão e análise dos modelos hegemônicos e de modelos considerados inovadores no campo da graduação em saúde; estudo crítico das Diretrizes Curriculares Nacionais; análise crítica do papel do professor da área da saúde e da importância da reflexão sobre a prática.

A docência e seus múltiplos sentidos O exercício da docência revela um conjunto de saberes que compõem o universo de significação e sentidos que se revelam, (re) produzem de acordo com as mediações e as coordenadas políticoadministrativas que regulam o sistema de ensino, não necessariamente ligados ao exercício imediato da docência (Moreira, 2007; Otero Ribeiro, 2004; Morosini, 2000). O trabalho docente se apoia em conhecimentos díspares que se revelam no seu exercício, como experiência de identidade e alteridade, onde se misturam aspectos pessoais, sentimentos do docente que se descobrem e se constroem no próprio trabalho e se orientam pelos posicionamentos desses agentes no interior do campo científico e acadêmico (Tardif, 2005; Tardif, Lessard, 2005; Borges, 2004). Nesse complexo campo de interações, as inserções ocorrem a partir de quatro diferentes formas: profissionais de várias áreas de formação que exercem a docência em tempo integral; os que atuam nas suas profissões de origem e se dedicam ao magistério apenas algumas horas por semana; docentes das áreas específicas de pedagogia e licenciaturas que atuam, simultaneamente, nas graduações dos cursos de licenciatura e, também, no Ensino Fundamental e Médio e, por último, os profissionais da área de educação que desenvolvem suas atividades em tempo integral na universidade (Behrens, 2000). Cada trajetória, nos diversos espaços relacionais, assume contornos diversificados na construção da identidade e na atuação, que podem ser, por sua vez, tipificadas por fases que exprimem tendências gerais do ciclo da vida dos professores como um processo específico que comporta uma sequência não linear de acordo com o tempo de carreira. Nas diferentes formas de vinculação, trajetórias e fases, cada docente se apropria de saberes a partir de um modo de conhecer dinâmico, menos sistematizado ou 212

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rigoroso, articulado a diferentes formas de fazer, não se prendendo a normas rígidas de validação (Fiorentini et al., 2007; Huberman, 2007). O confronto entre a dupla exigência de aprender e, ao mesmo tempo, ser reconhecido pelos outros, faz com que cada docente construa sua identidade em negociação permanente com o processo de comunicação ou de socialização, de pertencimento e de relação, que são capazes de produzir efeitos simultaneamente estáveis e provisórios, biográficos e estruturais, que dependem tanto dos julgamentos dos outros como das suas próprias orientações e autodefinições (Dubar, 2005). A articulação entre as duas transações internas (subjetivas) e externas (objetivas) constitui a chave da relação entre as identidades herdadas, aceitas ou recusadas e as identidades visadas, em continuidade ou em ruptura com as precedentes. As diferentes articulações entre condições objetivas, quando confrontadas com as estruturas subjetivas, ocorrem através de duas formas de construção: a identidade para si e a identidade para o outro, como resultado, a um só tempo, estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural (Dubar, 2005). A trajetória da docência imprime, em quem a exerce, uma espécie de saber-fazer hologramático, que se revela pela associação entre pensamento e ação, entre fazer e saber, entre saber e ser, que pode produzir práticas diferentes das existentes e constitui certa epistéme cotidiana implícita nas ações dos agentes, sendo, portanto, definido como um saber incoerente (contraditório) de suas determinações relacionais e assume a conformação do costume, conservadorismo e continuidade, mas, ao mesmo tempo, tem a capacidade de produzir outras práticas (Morin, 1998). Cada docente vivencia e incorpora estoques de comportamento a partir de movimentos múltiplos de relação e reconhecimento perante os grupos (família, escola, associação, igreja etc.), e podem ser simultaneamente aluno (a), filho (a), colega ou amante, colega de trabalho ou trabalhador, membro atuante de uma associação, fiel de uma igreja (Elias, 1994). Na produção de sentidos, acúmulos e rupturas que ocorrem no microcosmo do campo universitário, cada docente busca a construção de monopólios, distinções e, sobretudo, ocupação de espaços mais prestigiosos que funcionam como se fossem bancos de crédito simbólicos. Seu valor, na maior parte dos campos de conhecimento, baseia-se numa mescla entre a participação nas atividades de pesquisa, incluindo as publicações e participações em eventos qualificados, e na legitimidade que constrói no exercício profissional (Sousa Santos, 1996; Bourdieu, 1988; 1968). Para Costa (2010), a partir de pesquisa realizada com professores de um curso de Medicina no Brasil, fica claro que os professores estudados aprenderam a sê-lo mediante um processo de socialização, em parte, intuitiva, autodidata, ou seguindo o modelo daqueles que foram considerados bons professores. Na mesma pesquisa, a autora salienta que, a partir das falas dos entrevistados, os saberes adquiridos através da experiência profissional fundamentam a competência docente. Outro ponto é a pouca valorização dada pela instituição à formação pedagógica do professor de medicina. Isso pode ser atribuído ao desmerecimento da atividade de ensino nas universidades, onde os estímulos para a atuação e os critérios de progressão na carreira têm se fundamentado mais na produção científica que no exercício da docência (Costa, 2010). Neste universo de significações e disputas, espera-se que cada docente tenha domínio do campo científico de sua área de formação profissional que legitime esse saber na prática. A formação pedagógica representa valor menor frente aos diferentes desenhos contratuais e relacionais que produzem vínculos diferenciados com o ensino, a pesquisa e a extensão, e definem a dedicação exclusiva ou não à universidade (Cortesão, 2002; Lucarelli, 2000). Um bom exemplo desse universo pode ser visto nos sistemas de avaliação docente, maciçamente implantados no Brasil, que valorizam a produção através de artigos publicados em revistas indexadas. A carga horária dispensada em aulas, na graduação e/ou pós-graduação, é computada de forma numérica, quantitativa. Não existem instrumentos de avaliação da qualidade das aulas, sejam as mesmas proferidas em campo (e/ou práticas - típica situação que ocorre na área de saúde) ou em salas de aula (teóricas). Por outro lado, no modelo de valorização simbólica, cada docente é medido pelo tamanho de seu gabinete, número proporcional de contratos de pesquisa obtidos e quantidade de instrumentos e equipamentos de pesquisa disponíveis que definem não só o perfil de acesso e sua permanência nas instituições, mas, fundamentalmente, a sua carreira (Japiassú, 1997). 213


UMA REFLEXÃO SOBRE OS MÚLTIPLOS SENTIDOS ...

O acúmulo de créditos favorece a obtenção de poderes administrativos e políticos. A conversão de um tipo de capital em outro ocorre entre aqueles que ocupam posições de prestígio junto à estrutura acadêmica, além da participação em associações científicas de expressão nacional e internacional, assumindo a forma do prestígio pessoal, segundo os diferentes campos de conhecimento e instituições, e manifesta-se na maneira como cada agente é reconhecido nos chamados “colégios de invisíveis” (Bourdieu, 2004). Na composição do capital de cada docente, no interior do campo universitário, constitui-se a partir de duas formas: a primeira delas se revela pela participação em pesquisas, publicações, comissões de avaliação, comitês organizadores de congressos científicos, especialmente os mais relevantes de cada campo e subcampo do conhecimento. A segunda é composta, sobretudo, pelas estratégias políticas específicas, como: orientação de dissertações e teses, participação em bancas de concursos e de teses, realização de consultorias e ocupação de cargos na administração universitária que agregam valor e aumentam a composição total de capitais no interior do universo acadêmico (Bourdieu, 2004). Na busca de produção de monopólios da competência, os docentes utilizam um conjunto de manobras estratégicas que não só garantam, mas, fundamentalmente, aumentem o seu reconhecimento entre os pares. Essas manobras ocorrem num campo saturado de linhas de força produzidas por diversos outros competidores que também objetivam reconhecimento, através de outro conjunto de manobras (Bourdieu, Wacquant, 2008). As citadas manobras possibilitam a instauração de novas linhas de força, demonstrando que o sentido do jogo produzido e valorizado pelo conjunto de agentes ocorre num universo de temporalidades diacrônicas, que asseguram a conformação de maneiras de se perceber, julgar, valorizar o mundo, e servem como conformadores do modo de agir de cada agente, estruturando suas ações (Bourdieu, 2005; 2001). Esse jogo de posicionamentos torna-se público nas práticas institucionais com seu conjunto de normas, rotinas e processos decisórios, portanto é impossível identificar tais saberes sem relacioná-los ao habitus incorporado, na trajetória pessoal e no cotidiano do seu trabalho (Ronzani, 2007; Pimenta, Anastasiou, 2005). Neste processo relacional e de disputa, se produzem diferentes formas de se recriar o passado através de uma temporalidade que materializa o pedagógico, pressupondo conhecimentos técnicos, sensibilidade e posicionamento valorativo sobre os objetivos. Configuram-se como potencialmente favoráveis à criação de dispositivos pedagógicos diferenciados nos contextos onde exercem a sua atividade e, por extensão, forjam sua própria identidade (Saippa-Oliveira, Koifman, 2011; Cortesão, 2002).

Considerações Ao considerarmos a complexidade e caráter inacabado que a docência universitária apresenta, acreditamos que formuladores e agentes do campo devem se aproximar dos estudos e olhares que busquem a produção de informações sobre a composição dos saberes que potencializam a geração de seus esquemas de percepção. Esses esquemas de percepção revelam sua capacidade de reinterpretação de saberes, que ganham contorno e tonalidades distintas, dependendo da formação identitária, que ocorrem por intermédio de diversos ritos de passagem (na família, escola, religião, serviço militar, esportes, grupos e espaços de relação, profissão, trabalho etc.). Dessa forma, nos parece pertinente que a agenda reformista da formação em saúde considere, no seu cotidiano, as “porosidades” e “fechamentos” que tais processos assumem frente à construção da identidade da docência e do sentir-se docente (Lahire, 2002). Valorizar a complexidade das apropriações realizadas pelos docentes no interior do campo educacional e as movimentações dialógicas que nele subsistem, nos parece um potente dispositivo para revelar as possíveis implicações entre os desejos presentes na agenda reformista (SUS e Formação de Profissionais de Saúde ligados aos seus atributos ético-políticos) e a maneira como cada agente, a partir de sua trajetória de vida, se apropria de tais desejos e os transforma no cotidiano de seus fazeres pedagógicos (Saippa-Oliveira, Koifman, 2004). 214

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Esse reconhecimento pressupõe a busca da construção de uma nova cultura no interior das escolas, e, também, a necessidade de que os formuladores e “operacionalizadores” das agendas reformistas assumam a importância relativa dos saberes que têm potencial para transformarem em práticas e a maneira como estas produzem mediações frente às relações institucionais e normativas, presentes nas discussões do campo da saúde, que dão contornos aos processos pedagógicos nas escolas. Compreender este jogo de posicionamentos e a complexidade da composição dos saberes e das práticas docentes, no interior do campo universitário, percebendo-as como expressão de tensões que se revelam nas contradições e as resistências presentes na diversidade de experiências que hoje ocorrem na formação em saúde em tempos de Sistema Único de Saúde (SUS), amplia, sobremaneira, a potência explicativa e de transformação dos processos de reestruturação dos processos formativos voltada a tais preceitos.

Colaboradores Gilson Saippa Oliveira trabalhou na concepção, no delineamento e na redação do artigo. Lilian Koifman trabalhou na revisão crítica, construindo e elaborando a versão apresentada. Referências ARAUJO, E.C.; BATISTA, S.H.; GERAB, I.F. A produção científica sobre docência em saúde: um estudo em periódicos nacionais. Rev. Bras. Educ. Méd., v.35, n.4, p.486-92, 2011. BATISTA, S.H. Aprendizagem, ensino e formação em saúde In: BATISTA, N.A.; BATISTA, S.H. (Orgs.). Docência em saúde: temas e experiências. São Paulo: Editora Senac, 2004. p.57-74. BEHRENS, M.A. A formação pedagógica e os desafios do mundo moderno. In: MASSETO, M. (Org.). Docência na universidade. São Paulo: Papirus, 2000. p.57-68. BORGES, C.M.F. O professor da educação básica e seus saberes profissionais. Araraquara: JM Editores, 2004. BOURDIEU, P. Razões práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2005. ______. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004. ______. O conhecimento pelo corpo. In: ______. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2001. p.157-98. ______. Homo academicus. Califórnia: Stanford University Press, 1988. ______. Campo intelectual e projeto criador. In: POUILLON,J (Org.). Coletânea de artigos da Revista Les Temps Modernes, Paris, França, n.246. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p.105-46. BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociología reflexiva. 2.ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008. BRANDT RIBEIRO, V.M. Uma pequena conversa sobre currículo, prática docente e teoria da ação comunicativa. Physis, v.9, n.2, p.99-116, 1999.

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O trabalho se propõe analisar as relações dos saberes que criam a identidade dos docentes da área da saúde e valorizar o entendimento das relações e posicionamentos sociais que imprimem marcas, no exercício da docência, como elementos que contribuem ou não para a efetivação das propostas de transformação dos processos de formação em saúde em curso, a partir dos condicionantes éticos e políticos do Sistema Único de Saúde (SUS). O reconhecimento de tais relações pressupõe a busca na construção de uma nova cultura no interior dos cursos de graduação em saúde, imprimindo importância aos saberes identitários docentes que, por inúmeras vezes, dão contornos aos processos pedagógicos universitários.

Palavras-chave: Formação em saúde. Sistema Único de Saúde. Campo científico. Saberes docentes. Processos pedagógicos universitários. A reflection on the multiple senses of healthcare teaching The aims of this study were to analyze the relationships among the fields of knowledge that create healthcare teachers’ identity, and to place value on understanding the social relations and positions that mark out teaching practices as elements that may or may not contribute towards implementation of the current proposals for transforming the healthcare training processes, starting from the ethical and political parameters of the Brazilian National Health System (SUS). Recognition of such relationships makes the presupposition of seeking to construct a new culture within undergraduate healthcare courses, thereby placing importance on the knowledge that identifies teachers who, on very many occasions, give shape to university pedagogical processes.

Keywords: Healthcare training. National Health System. Scientific field. Teachers’ knowledge. University pedagogical processes. Una reflexión sobre los múltiples sentidos de la docencia en salud Este trabajo se propone analizar las relaciones de los saberes que crean la identidad de los profesores del área de salud, valorar la comprensión de las relaciones y posiciones sociales que imprimen huellas en el ejercicio de la docencia como elementos que contribuyen o no en hacer efectivas las propuestas de transformaciones de los procesos de formación en salud en curso, a partir de los condicionantes éticos y políticos del Sistema Único de Salud Brasileño. El reconocimiento de tales relaciones presupone la búsqueda de la construcción de una nueva cultura en el interior de los cursos de grado en salud, imprimiendo importancia a los saberes que generan identidades docentes que, repetidas veces, dan forma a los procesos pedagógicos universitarios.

Palabras clave: Formación en salud. Sistema Único de Salud. Campo científico. Saberes docentes. Procesos pedagógicos universitarios. Recebido em 23/12/11. Aprovado em 07/08/12.

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Educação popular em saúde com o povo indígena Xukuru do Ororubá* Juliana Santos Siebra Brito1 Paulette Cavalcanti de Albuquerque2 Edson Hely Silva3

Por que fazer educação popular em saúde (EPS) com o povo Xukuru do Ororubá? A história e o desenvolvimento dos Xukuru do Ororubá foram motivo de várias pesquisas, tanto das Ciências Sociais como da Saúde, e, a partir de alguns estudos realizados com o povo, pelos pesquisadores do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM), instituição da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco, observou-se a necessidade de uma qualificação no trabalho educativo dos agentes indígenas de saúde (AIS) e agentes indígenas de saneamento (AISAN). Com isto, desenvolveu-se uma proposta fundamentada em ofertar formas alternativas de fazer educação e em sugerir a reflexão das estruturas de produção de cuidado em saúde e de conhecimento, inclusive buscando uma análise do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na estrutura do Subsistema de Saúde Indígena. O desenvolvimento do aspecto educativo do trabalho dos AIS e AISAN seria diferenciado na medida em que estimulasse a coprodução de sujeitos autônomos, partindo de um fazer/ser solidário, baseado na metodologia da Educação Popular.

Um breve relato sobre a história dos guerreiros do Ororubá e a organização sociopolítica e de saúde do povo Em 1654, com a autorização da distribuição de sesmarias, no agreste pernambucano, aos senhores de engenho, os indígenas Xukuru, da Serra do Ororubá, foram obrigados a trabalhar nas fazendas, plantações e, posteriormente, nas indústrias que foram abertas. Em pequenas porções de terra, moravam e plantavam o que podiam para seu próprio consumo (Silva, 2007). Segundo relato de um dos indígenas: “a gente trabalhava na terra deles, mas tinha a nossa roça, que a gente plantava milho pra comer, quando estava perto de colher, os fazendeiros soltavam o gado pra comer o nosso milho”. A atitude opressora em relação aos Xukuru pode ser evidenciada em um relatório oficial escrito em 1944, por um sertanista do Serviço de Proteção ao Índio, ao falar sobre o incômodo dos fazendeiros da região com as práticas culturais do povo, culminando com uma denúncia à polícia local e a proibição de rituais religiosos e de curas tradicionais (Silva, 2007).

* Elaborado com base em Brito( 2010); e na sistematização das informações e experiências promovidas pela pesquisa “Educação popular em saúde com o povo indígena Xukuru do Ororubá”, financiada pela FACEPE, aprovada pelo CONEP/CNS/MS, com registro no CAAE e no CEP/CPqAM/FIOCRUZ. 1-2 Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Professor Moraes Rego, s/n, Campus da Universidade Federal de Pernambuco, Cidade Universitária. Recife, PE, Brasil. 50.670-420. julianasiebra@hotmail.com. 3 Colégio de Aplicação, Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco.

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A luta pela retomada do território pode ser observada em vários episódios da história do povo, mas foi, no final da década de 1980, caracterizada pelo início da redemocratização, que as lutas pela terra tornaram-se mais acirradas entre diversos povos indígenas e fazendeiros. As garantias legais, baseadas na Constituição de 1988, e o empenho do cacique Francisco de Assis Araújo, o Xicão, nas mobilizações da Assembleia Nacional Constituinte, foram fatos que fortaleceram a luta indígena Xukuru. Sob sua liderança, iniciou o processo de mobilizações pela demarcação territorial, provocando fúria em muitos fazendeiros. Em 1998, o cacique foi assassinado, tendo a Polícia Federal comprovado que a motivação para o crime foi a tentativa de enfraquecer o movimento pela retomada das terras indígenas. Posteriormente, outras lideranças, como “Xico Quelé”, também foram mortas, entretanto, tais violências não impediram a conquista da demarcação da terra indígena Xukuru, em 2001. Como resultado da organização política construída no período de Xicão, tem-se a constituição dos Conselhos de Lideranças, de professores(as) Xukuru e o de Saúde (Piani, 2009). O momento de grande encontro e tomada de decisões ocorre anualmente, na Assembleia do Povo Xukuru, que reúne, ao menos, dez representantes das 24 aldeias. Constituindo a rede de saúde, os territórios indígenas contam com os polos-base como instância de atendimento pela equipe multidisciplinar. A população Xukuru é coberta com um polo-base, que atende a grande maioria dos Xukuru, havendo postos de saúde para suporte das equipes multiprofissionais, distribuídos no território. Neste âmbito, o agente indígena de saúde, profissional obrigatoriamente de origem indígena local, compõe a equipe do polo-base, sendo um personagem-chave para a compreensão das práticas tradicionais do povo pelos trabalhadores não indígenas, o que aproximaria a atuação técnica padronizada do que faz e pensa o povo em relação à sua saúde.

A prática do agente indígena de saúde: educativa ou prescritiva (e técnico-burocrática)? Os AIS devem ser indígenas contratados através de um processo seletivo, que considere critérios como: ser residente na aldeia de atuação, ter aptidão para o trabalho em saúde e bom relacionamento com a comunidade. Algumas atribuições do AIS também foram definidas pela Funasa e, entre trabalhos técnicos e burocráticos, são descritas também funções políticas, com a atuação frente a problemas ambientais e sociais (Fundação Nacional de Saúde, 2004). As competências do AIS não divergem muito das do agente comunitário de saúde (ACS). Entretanto, apesar da semelhança de atribuições, os AIS Xukuru parecem não se identificar, enquanto profissionais, com os ACS de Pesqueira, município que compõe o território indígena – o que influencia na falta de participação daqueles em movimentos reivindicatórios de classe, como os realizados por sindicatos e associações. Ao basear seu trabalho na promoção da saúde, o agente indígena de saúde necessita de autonomia e capacidade de compreender a influência do meio sociopolítico na saúde das pessoas. Ao exercer seu papel político, deve desenvolver uma dimensão do saber, dentro de sua competência profissional, que seria o “saber-ser”, reconhecido como uma produção de si mesmo que se expressa pela capacidade de crítica, reflexão e mudança ativa de sua subjetividade e práticas (Brasil, 2010). Entretanto, apesar do acúmulo do poder político, os AIS acabam priorizando o papel técnico e burocrático. Habermas, em referência à Teoria do Agir Comunicativo, enfatiza a necessidade de, através de relações dialógicas, produzirem-se cenários políticos que favoreçam a emancipação humana, inclusive na vida do trabalho (Cardoso, 2004). O agir comunicativo do AIS, muitas vezes, é degradado, sendo um espelho da prática vivenciada pelas equipes de saúde da família. A clínica destes profissionais distorcese quando reduzida à prescrição de condutas e medicamentos, sendo que esse modo de trabalho não dialoga com as práticas tradicionais indígenas.

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Educação popular em saúde: as referências teóricas e a prática para projeto com o povo Xukuru Em janeiro de 1982, Paulo Freire, reunido num círculo de cultura, em São Paulo, proferiu um pensamento mencionando que a superação da postura “de querer libertar dominando” acontecerá quando entendermos que “não estamos sozinhos no mundo”, e que o processo de libertação não é uma obra de uma só pessoa ou grupo, mas “de todos nós”. De acordo com Paulo Freire, cinco princípios são fundamentais para nos assumirmos como autores, e não reféns da história: “saber ouvir, desmontar a visão mágica dos poderes instituídos, aprender/estar com o outro, reconhecer a ingenuidade dos educandos (as) e viver pacientemente impaciente” (Ceccim, 2007, p.35). Vasconcelos (2007) revela uma compreensão das origens da educação popular com ponto de partida em movimentos de pensadores latino-americanos, constituídos na década de 1950, em busca de uma aproximação com o mundo popular, onde Paulo Freire foi o primeiro a sistematizar teoricamente as experiências acumuladas, no livro “Pedagogia do Oprimido”, escrito em 1966. Ainda refere que o conhecimento adquirido mediante relações sociais é a matéria-prima da educação popular. Entretanto, estes saberes, fazendo-se analogia à arte, não devem ser trabalhados individualmente pelos educadores, como uma obra de arte nas mãos do artesão solitário, acreditando-se que o pensamento e vontade populares estão totalmente vulneráveis às opiniões do educador, mas, antes, devem ser uma obra onde todos contribuem, todos colocam as mãos e dão o seu toque pessoal. A valorização do diálogo – significando este o saber ouvir e poder falar, assim como o respeito pelo conhecimento, emoções e experiências do povo – é uma diretriz básica da educação popular. O sentimento que a orienta talvez seja a busca da solução dos problemas da sociedade, mas ultrapassa a questão ética, abrangendo o desejo, a personalidade humana, a constituição de cada ser. Na verdade, a compaixão, a solidariedade e o respeito pelo outro seriam os sentimentos que direcionariam todas as ações. De acordo com Albuquerque (2003), a Educação Popular em Saúde teve sua origem na década de 1970, com as experiências de profissionais de saúde, que, através das Comunidades Eclesiais de Base, atuavam no meio popular, no contexto da retomada dos movimentos sociais de luta contra a ditadura. Em Recife, no ano de 2001, a Coordenação de Educação em Saúde, vinculada à Secretaria Municipal de Saúde, definiu a educação popular como eixo direcionador teórico e metodológico das ações educativas (Recife, 2001b apud Albuquerque, 2003). Entretanto, houve dificuldade em reconstruir as práticas de saúde na atenção primária com profissionais que não tinham a educação popular como opção política. Paulo Freire afirmava que “a neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso” (Freire, 2001, p.19). Segundo o pedagogo, não existe neutralidade, porque quem se diz neutro, na verdade, assume uma postura de compromisso com o poder vigente, com seus interesses e com os do grupo ao qual pertence. A experiência de implantação da educação popular em saúde na atenção primária do Recife serviu como referência prática para o projeto com o povo Xukuru. Ambas as experiências se iniciaram com a identificação de problemas e potencialidades das comunidades e com o planejamento das ações educativas necessárias, assim como tiveram, na figura do agente de saúde, uma peça importante para o estímulo ao envolvimento popular na promoção de saúde. O ACS ou AIS, nestes casos, era estimulado a conduzir grupos em sua comunidade para discussão de problemas sociais e de saúde, constituindo-se um personagem essencial na orientação política e educativa da população.

As práticas de educação popular em saúde com o povo Xukuru O projeto de educação popular, atuando a partir da inevitável participação e envolvimento dos pesquisadores com os demais participantes, deve buscar metodologias de pesquisa que combinem com

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esta forma de pensar. Assim sendo, o projeto de educação popular com os Xukuru recorreu à pesquisaação, como instrumento metodológico, por esta ser realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo, havendo o envolvimento dos pesquisadores, de modo cooperativo ou participativo. Ainda, objetiva proporcionar, aos participantes do estudo, a possibilidade de discutirem um problema real e formularem soluções conjuntamente, partindo-se de um diagnóstico situacional, onde pesquisador e participante têm direito à expressão (Thiollent, 1998). A prática da EPS com o povo Xukuru aconteceu a partir de espaços de diálogo e criação. A sistematização deu-se por meio de relatórios das atividades, diário de campo e registros das falas, escritos a partir das rodas de conversa e oficinas. Os encontros eram realizados nas sextas-feiras e sábados, uma ou duas vezes por mês, na escola indígena “Natureza Sagrada”. Os interessados identificados na fase exploratória foram: algumas lideranças Xukuru, AIS/AISAN e os pesquisadores do CPqAM. Após acordo, com líderes do povo, das ações que seriam realizadas, prosseguiu-se com o diagnóstico participativo e com o planejamento das atividades.

Seminário para diagnóstico inicial e planejamento das ações Em dezembro de 2008, na Aldeia de São José, ocorreu a primeira oficina, com pesquisadores e participantes voluntários do projeto. Estavam presentes: AIS, AISAN, lideranças do povo, estudantes e pesquisadores do CPqAM. Por meio de um diagnóstico participativo, foram elencados os principais problemas observados pelos participantes, que poderiam ser trabalhados em ação e diálogo sob o olhar da educação popular. De acordo com Stotz, David e Bornstein (2007), o diagnóstico participativo não serve apenas para identificar problemas, mas, também, para estabelecer prioridades de ação e pactuar estratégias coletivas de intervenção sobre a realidade. Dentre as dificuldades enfatizadas pelos Xukuru, nesta roda de conversa, estavam: a) A entrega de cestas básicas, como um benefício prestado a famílias com crianças abaixo do peso ideal e desnutridas. De acordo com relatos, alguns pais chegavam a subnutrir a criança para manterem o recebimento da cesta. Segundo um indígena: “Nós temos terra, água e não queremos cesta básica. Devemos conscientizar a mãe desse problema”; b) O excessivo consumo de álcool pela população, que foi expresso em falas como: “O álcool atrapalha a vida das pessoas”, “O álcool é um problema, acho que um dos maiores dentro da nossa comunidade” e “Perguntei um dia pra uma criança o que ela queria ser quando crescer, e ela disse: ‘Eu quero beber cachaça’”; c) A fragilidade do perfil educativo dos AIS, com rotina estabelecida de entrega de medicamentos e de marcação de consultas; d) A falta de reconhecimento legal dos AIS como classe profissional, fato que contribuiu para a exclusão destes trabalhadores do processo de efetivação, que contemplou apenas os agentes comunitários de saúde vinculados à Prefeitura de Pesqueira. Neste momento, foram propostas estratégias de avanço, com a constituição de grupos pelos ciclos da vida nas aldeias, orientados por duplas de AIS/AISAN. Reforçou-se a importância de o próprio agente escolher o ciclo da vida que despertasse o seu interesse, iniciando o projeto nas aldeias onde as pessoas demonstrassem disponibilidade. Assim, com o planejamento, foram definidos: os AIS/AISAN participantes, as aldeias, as redes de ajuda e o público-alvo. Os agentes identificaram adolescentes e jovens como a faixa etária com maior aceitação e disponibilidade para trabalhar com os problemas elencados. Desta forma, sugeriu-se que o processo educativo tivesse início com esta população, com o objetivo de prepará-la para a educação em saúde. Este seminário foi encerrado com a definição de tarefas a serem realizadas pelos participantes Xukuru: identificar adolescentes e jovens voluntários, selecionar os temas a serem discutidos e realizar um encontro entre AIS e AISAN, para compartilhar dificuldades e potencialidades relacionadas ao desenvolvimento do projeto.

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Encontros para Educação Popular em Saúde Os encontros realizados tinham como objetivo formar AIS/AISAN para a constituição de grupos de adolescentes e jovens educadores em saúde. Por meio de oficinas sobre a história das políticas públicas de saúde, desenvolvimento do SUS, cidadania e formação de grupos, buscou-se dar subsídios teóricos para uma melhor compreensão do papel político dos agentes indígenas. No segundo encontro, foi realizada uma oficina com o tema “Como formar grupos”. Este momento caracterizou-se pela descontinuidade da presença de alguns AIS e AISAN e pela dificuldade, relatada, em mobilizar os Xukuru. Os agentes expuseram algumas limitações para o desenvolvimento do projeto, como o descomprometimento de colegas de trabalho e o pouco entendimento sobre os assuntos de saúde. Este momento teve como encaminhamento duas reuniões: uma entre AIS e AISAN, para formular a programação dos grupos locais, e outra entre os agentes indígenas, adolescentes e jovens que comporiam os grupos nas aldeias. No terceiro encontro do projeto, a proposta incluía o diálogo, entre pesquisadores e demais participantes, sobre cidadania. Entretanto, no primeiro dia deste momento, vários AIS/AISAN estavam ausentes – falta justificada, por um dos agentes, pela dificuldade em constituir os grupos nas aldeias, sendo que a maioria não conseguiu alcançar os objetivos definidos anteriormente. Outros tensionamentos, expostos pelos AIS/AISAN, foram: a sensação de estar só; a falta de interesse de alguns colegas de trabalho, adolescentes e jovens; além do próprio momento político que estavam vivenciando, marcado pela preparação para a Assembleia do Povo Xukuru e pelo movimento “Abril Indígena”, que contou com a participação, em Brasília, dos jovens Xukuru mais ativos politicamente. Assim, a partir da necessidade de uma ação mobilizadora, diante do esvaziamento do grupo e de adequação da proposta à especificidade do contexto, iniciou-se o planejamento de uma Mostra de Saúde, a ser exposta na Assembleia, na qual AIS, AISAN e jovens indígenas desenvolveriam temas de interesse do povo. Um dos objetivos da Mostra de Saúde seria estimular a formação dos grupos de adolescentes e jovens educadores em saúde. Após pactuação com integrantes do Conselho de Saúde e o de Lideranças, prosseguiu-se com o planejamento da divisão dos temas a serem desenvolvidos e a escolha da forma de apresentação (oficinas, barracas temáticas, exposição de vídeos). Alimentação saudável e reciclagem foram uns dos assuntos escolhidos para a exposição, sendo estes temas trabalhados com os agentes indígenas em um encontro antes da Mostra. Na quarta reunião, foram realizadas: a oficina de reciclagem, que se constituiu num estímulo à produção de objetos com materiais normalmente não reutilizados, como plástico e papel; e a de alimentação saudável, onde AIS e AISAN elaboraram receitas à base de sementes, farinhas, folhas e partes de frutas e vegetais geralmente desprezadas. Diante da empolgação de alguns com o preparo diferenciado dos alimentos, foram escutadas frases como: “vou ter que comer isso mesmo?”. Esta oficina tornou evidente que a cultura alimentar deste povo mostra-se semelhante à das populações não indígenas próximas, embora não se possa afirmar que seja inadequada ou menos saudável do que as preparações apresentadas. No momento seguinte, deu-se a realização da Mostra de Saúde Xukuru, na Assembleia do Povo, realizada na aldeia Capim de Planta, em Pesqueira. O tema da assembleia problematizava a repercussão da criminalização das lideranças Xukuru, perseguidas e acusadas sem provas contundentes, o que centralizou esforços de articulação, especialmente na área jurídica, havendo grande concentração de gastos de recursos financeiros em pagamento de advogados. Desta forma, outras áreas de organização do povo, diante destes problemas, foram postas em outro nível de prioridade. Ao todo, cinco temas foram desenvolvidos por adolescentes, jovens, AIS e AISAN, provenientes de nove aldeias. Os assuntos abordados foram: alimentação saudável, uso de plantas medicinais na cura tradicional, reciclagem, saúde bucal e história do povo. Aproximadamente quarenta adolescentes engajaram-se neste processo, preparando, eles mesmos, os produtos e materiais que seriam expostos

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em suas bancas. O objetivo principal da Mostra era fortalecer o trabalho de formação dos grupos de agentes indígenas junto aos adolescentes e jovens, de forma a reconstruírem o papel e a imagem de educadores em saúde. Acordou-se, anteriormente à Mostra, que a exposição dos trabalhos seria feita nos intervalos da Assembleia, de forma a não promover um evento paralelo. No final de cada dia da Mostra, uma roda de conversa com os adolescentes, AIS/AISAN e pesquisadores serviu como espaço de avaliação e criação de propostas para reformulação do trabalho para o dia seguinte. Ressaltou-se a importância de não apenas se apresentarem os materiais produzidos e vendê-los, nos casos das bancas de alimentação saudável e reciclagem, mas, também, provocar os visitantes à mudança de pequenos hábitos diários através de explicações e conversas. Neste momento, adolescentes e jovens Xukuru exerceram seu perfil de liderança, ocupando um papel político nas discussões sobre saúde, sendo este um espaço até então vazio, com pouca intervenção tanto social quanto governamental. Por meio do estímulo à compreensão de responsabilidades mútuas dos jovens, AIS/AISAN e Funasa, buscou-se promover uma atuação transformadora do meio social a que estão integrados, fortalecendo a história e a identidade Xukuru.

O momento pós-assembleia: ruídos de comunicação e pensamentos Após a assembleia, o cacique decidiu que a próxima oficina só aconteceria após uma reunião entre ele e os pesquisadores. Assim, por um período de quatro meses, aguardou-se a disponibilidade do líder. Entretanto, um encontro anterior foi solicitado por esta liderança com alguns AIS e pesquisadores de outros projetos do CPqAM. Por meio da análise do relatório desta reunião, observou-se que este momento foi conformado para levantamento de problemas do projeto de EPS, em especial, de fatos ocorridos na Mostra de Saúde. Parte das críticas do cacique concentrou-se no fato de os produtos da oficina de reciclagem não terem passado pela sua avaliação. Para o líder, os produtos reciclados não estavam de acordo com o que ele concordava como produção de cultura Xukuru. Segundo o cacique, a introdução de técnicas de reciclagem foi uma ação cheia de boa vontade, mas falhou porque não considerou as reflexões do povo sobre a questão do lixo, assim como o processo de retomada das tradições e costumes. Quanto ao artesanato, o líder acredita que a produção de objetos com materiais recicláveis pode influenciar na perda do referencial cultural e étnico dos Xukuru. A problemática da produção de objetos com materiais recicláveis traz, por um lado, uma preocupação legítima em relação à reinvenção da cultura do povo e permanência das tradições que, de acordo com as características indígenas, trazem elementos da natureza para a produção artesanal. Deste modo, a mercadoria cultural pode servir para fortalecer a expressão semiótica característica de uma sociedade, contribuindo com o fortalecimento da identidade Xukuru. Críticas levantadas à gestão e assistência de saúde prestada pela Funasa também foram motivo de conflito com o cacique. Segundo ele, criou-se a impressão de que os Xukuru “são coniventes com os problemas e que não criticam o Subsistema”. De fato, a Funasa assumia a atenção primária com limitações, em nível local, quanto ao quadro de profissionais para composição das equipes de saúde, à estrutura física dos postos e polos-base e à capacitação dos AIS/AISAN. Além disto, a articulação com os níveis de atenção à saúde secundária e terciária do SUS ocorria precariamente. Apesar destas dificuldades, na visão de alguns indígenas, os serviços de atenção primária geridos por este órgão sugerem uma condição especial, um status diferenciado ao atendimento. De acordo com relatório da reunião citada anteriormente, em uma das falas, um AIS, voluntário do projeto de EPS, também membro do Conselho de Saúde Xukuru, procurou destacar que, desde a apresentação inicial da proposta, havia a preocupação de não se entrar em choque com as equipes de saúde nem com a organização e tradições do povo Xukuru. Segundo o AIS, a ideia do projeto era formar para a reflexão sobre a saúde e suas políticas e, para isto, a oficina de reciclagem foi pensada como uma estratégia para atrair os jovens. Ainda segundo o AIS, os Xukuru já exerciam uma reflexão crítica sobre o modelo de atenção curativo que a Funasa coordenava, mas, ao mesmo tempo, acreditavam que algumas questões precisavam ser mais bem aprofundadas. Em sua fala, também

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ressaltou a importância da continuidade do grupo de Educação Popular, mas expôs a necessidade de que os Xukuru tomem a decisão final frente às orientações e caminhos apontados. A abordagem do tema da não-ingerência sobre os Xukurus traz à reflexão o que verdadeiramente foi colocado ou demandado sem acordo com os agentes indígenas e suas lideranças. Além disto, também sugere pensar se havia um fluxo saudável de comunicação entre os pesquisadores e os Xukuru, já que o preconizado pelo projeto de EPS era, justamente, a cocriação de uma maior autonomia daquele grupo. Desta forma, seria possível o questionamento de até onde os agentes sentiam-se à vontade para expor suas opiniões e, não havendo essa facilidade de diálogo, quais seriam os motivos que estariam levando a esta resistência. Apesar das questões levantadas, a iniciativa dos pesquisadores não pretendia impor decisões sobre as instituições governamentais ou sobre o povo, mas estimular uma visão problematizadora acerca do trabalho produzido pelos serviços de saúde, o que acabou sendo entendido como uma ameaça de estímulo à crítica da própria liderança Xukuru.

Seminário final: a construção de um novo caminho para a educação em saúde No seminário final do projeto de educação popular em saúde – no qual estavam presentes lideranças, membros dos conselhos indígenas de saúde e de educação, agentes indígenas e pesquisadores –, o cacique Xukuru reiterou a importância do desenvolvimento das ações de educação em saúde com os AIS/AISAN. O reconhecimento, por parte do cacique, das limitações do papel destes profissionais – com a centralização do trabalho em visitas para marcar consultas e entregar medicamentos, o que, segundo ele, fortalecia apenas a “saúde curativa” – foi acompanhado de uma solicitação de continuidade do projeto de Educação em Saúde, com algumas modificações. Para o líder, a proposta deveria ser reelaborada na forma de um curso de formação política para os agentes, que deveriam participar das reuniões não mais de forma voluntária. Também estabeleceu que houvesse a integração das ações com os professores e membros do Conselho de Educação. O seminário final teve como encaminhamento a formação de um grupo de trabalho para elaborar o Plano de Formação para os AIS e AISAN, integrado com os calendários da Educação, Saúde e Funasa, de forma a evitar choques de atividades, encerrando-se, com este desfecho, a primeira etapa do projeto. O novo curso de formação seria um caminho para promover educação e/em saúde, partindo de uma reflexão mais concreta sobre as políticas públicas e a organização do modelo de saúde do povo, de forma a estimular os agentes indígenas à compreensão do papel e da prática inerentes à sua função, diante das necessidades locais de intervenção, por meio do conhecimento dos processos de produção de saúde integral.

Considerações finais O desenvolvimento da identidade de liderança entre os adolescentes e jovens Xukuru estaria vinculado à construção do protagonismo do AIS/AISAN que coordenaria o grupo local, devendo este estar aberto ao diálogo e à troca de saberes, e ter uma compreensão histórica do processo saúdedoença-saúde, agindo a partir da reflexão e da crítica. Entretanto, a qualidade de liderança de muitos agentes não se tinha desenvolvido, o que era perceptível pelas poucas falas durante as reuniões, pela timidez em colocar suas opiniões na roda, e, até mesmo, pela postura física cabisbaixa, sem coragem para fixar o olhar, ao comunicar-se. A frequência mensal das reuniões entre AIS/AISAN e pesquisadores, para acompanhamento da prática educativa nas aldeias e para a realização das oficinas de formação em educação popular, representou um fator complicador para um coletivo que nunca vivenciou essa experiência, tornando-se insuficiente para a necessidade de apoio e orientação de que precisavam. A operacionalização da metodologia de EPS proposta, baseada na formação de grupos de adolescentes e jovens, foi influenciada pela conjuntura social e pela organização espacial das aldeias, as quais se apresentam muito distantes entre si, sendo que a movimentação no território depende de transporte de carros de lotação ou motos, ainda escassos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.219-27, jan./mar. 2013

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Um ponto bastante positivo a mencionar foi o reconhecimento, por parte das lideranças, da necessidade de formação política dos AIS e AISAN, o que se concretizou através do incentivo à criação de um novo projeto para estes profissionais.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALBUQUERQUE, P.C. A Educação Popular em Saúde no município de Recife-PE: em busca da integralidade. 2003. Tese (Doutorado) - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife. 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Descrição das competências profissionais do Agente Comunitário de Saúde. Brasília: MS, 2010. Disponível em: <http:// portal.saude.gov.br/portal/sgtes/visualizar_texto.cfm?idtxt=23095>. Acesso em: 18 abr. 2010. BRITO, J.S.S. Educação popular em saúde com a comunidade indígena Xukuru do Ororubá, PE. 2010. Monografia (Residência em Saúde Coletiva) - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife. 2010. CARDOSO, E.J. Teoria da ação comunicativa de Habermas e suas implicações no processo educativo. Cesumar – Cienc. Hum. Soc. Aplic., v.9, n.2, p.29-37, 2004. Disponível em: <http://www.cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revcesumar/ article/view/237/932>. Acesso em: 24 ago. 2012. CECCIM, R.B. Pacientes impacientes: Paulo Freire. In: BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: MS, 2007. p.32-45. FREIRE, P. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2001. FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Manual de Atenção à Saúde da Criança Indígena Brasileira. Brasília: FUNASA, 2004. PIANI, P.P.F. A organização sociopolítica do povo Xukuru. Disponível em: <http://www.eaesp.fgvsp.br/subportais/ceapg/Acervo%20Virtual/Cadernos/ Experi%C3%AAncias/2004/018organizacao_sociopolitica_do_povo_ xukuru_do_ororuba.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2009. SILVA, E.H. História, memórias e identidade entre os Xukuru do Ororubá. Rev. Tellus, v.7, n.12, p.89-102, 2007. STOTZ, E.N.; DAVID, H.M.; BORNSTEIN, V.J. Educação Popular em Saúde. In: MARTINS, C.M.; STAUFFER, A.B. (Orgs.). Educação e saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz, 2007. p.35-70. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa ação. 5.ed. São Paulo: Cortez, 1998. VASCONCELOS, E.M. O Paulo da Educação Popular. In: BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília: MS, 2007. p.31. 226

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BRITO, J.S.S.; ALBUQUERQUE, P.C.; SILVA, E.H.

Este texto baseia-se em uma pesquisa-ação que analisa e reorienta as ações educativas em saúde realizadas pelos agentes indígenas de saúde (AIS) e agentes indígenas de saneamento (AISAN), no âmbito da atenção primária do povo Xukuru do Ororubá, no agreste pernambucano, Brasil. Propôs-se um trabalho que envolvesse tanto os agentes quanto a comunidade, para discutir as práticas de saúde, partindo dos referenciais teóricos da educação popular. O desenvolvimento das ações pedagógicas aconteceu por meio de oficinas e rodas de conversa. Estimulou-se a elaboração de atividades de promoção da saúde pelos AIS/AISAN a partir da constituição de grupos de adolescentes e jovens nas aldeias. Oficinas de formação de grupos, cidadania, reciclagem e alimentação saudável culminaram na “I Mostra de Saúde do Povo Xukuru”. Limitações na operacionalização da metodologia proposta aconteceram durante o projeto, sobretudo devido à conjuntura política vivida pelo povo.

Palavras-chave: Educação em saúde. Saúde de populações indígenas. Popular health education with the Xukuru do Ororubá indigenous people This article is based on research that analyzed and reoriented health education actions undertaken by indigenous health agents (IHAs) and indigenous sanitary agents (ISAs) within primary care among the Xukuru do Ororubá people in the Agreste region of Pernambuco. The work proposed involved both the agents and the community, with the aim of discussing healthcare practices, building from theoretical reference points for popular education. Development of pedagogical actions took place through workshops and rounds of talks. The IHAs and ISAs were stimulated to draw up health promotion activities starting from formation of groups of teenagers and young people in the villages. The training workshops for groups, active citizenship, recycling and healthy eating culminated in the “First Healthcare Exhibition of the Xukuru People”. There were some limitations on putting the proposed methodology into operation over the course of the project, mainly due to the political situation experienced by the Xukuru people.

Keywords: Health education. Health of indigenous peoples. Educación popular en salud con el pueblo indígena Xukuru de Ororubá, Brasil Este artículo está basado en una investigación-acción que analiza y re-orienta las acciones de educación en salud realizadas por los agentes de salud indígenas (AIS) y los agentes sanitarios indígenas (AISAN) en el ámbito de atención primaria del pueblo Xukuru de Ororubá en el área rural de Pernambuco Brasil. Se ha propuesto un trabajo que involucró los agentes y la comunidad, con el propósito de discutir las prácticas de salud, partiendo de las referencias teóricas de la educación popular. El desarrollo de acciones pedagógicas se produjo a través y “ruedas de conversación”. Se estimuló el desarrollo de actividades de promoción de la salud por AIS/AISAN con la formación de grupos de adolescentes y jóvenes en las aldeas. Limitaciones en la aplicación práctica de la metodología propuesta fueron observadas durante el proyecto, principalmente debido a la situación política vivida por el pueblo.

Palabras clave: Educación en salud. Salud de poblaciones indígenas.

Recebido em 28/11/11. Aprovado em 14/08/12.

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teses

Recursos e adversidades no ambiente familiar de indivíduos usuários de crack Resources and adversities in crack users’ family environment Recursos y adversidades en el ambiente familiar de usuarios de crack

Considerando que as famílias exercem papel fundamental na iniciação e continuidade ao uso de drogas, o objetivo do estudo foi analisar a influência do ambiente familiar para o uso de crack. Pesquisa transversal, de natureza descritiva, com delineamento em uma série de casos, tendo como referencial teórico a Teoria Geral dos Sistemas, particularmente o uso do Genograma para a identificação de aspectos multigeracionais familiares associados ao uso de drogas de abuso. O estudo foi realizado no município de Maringá-PR, e os casos investigados, independentemente do município de procedência, foram originários de uma Comunidade Terapêutica (CT) da região Noroeste do Paraná. A amostra, constituída por critérios de funcionalidade do uso das drogas, foi de usuários de crack classificados funcionalmente como habituais ou dependentes, do sexo masculino, com idade igual ou superior a 18 anos, em tratamento na CT, e suas respectivas famílias. Os instrumentos de coleta de dados foram roteiros semiestruturados, incluindo espaço para desenho dos Genogramas, questionário de classificação econômica das famílias, e diário de campo. Foram realizadas entrevistas individuais, com foco nos antecedentes do uso de drogas de abuso e nas relações familiares, com posterior construção do Genograma de duas gerações. Os dados quantitativos foram submetidos à estatística descritiva simples; os dados qualitativos foram analisados por meio da análise de conteúdo temática, e os Genogramas foram analisados em

um processo semelhante ao da análise do conteúdo. A maioria dos usuários tinha idade entre vinte e 39 anos, eram solteiros ou separados/ divorciados, com baixa escolaridade e desempregados. O padrão do uso de drogas caracterizou-se pelo uso múltiplo, com início de drogas lícitas e ilícitas na juventude. A trajetória confirmou uma escalada no uso das substâncias psicoativas, iniciando com o tabaco e/ou álcool e finalizando com o uso de crack. Os informantes familiares foram, em sua maioria, mães, com idade entre 19 e 62 anos, com filhos e baixa escolaridade. A maioria das famílias pertencia à classe econômica C ou B, com religião definida, utilizava o SUS, e apontou o almoço familiar como a atividade recreacional mais realizada. Os Genogramas analisados apontaram que as configurações familiares apresentaram-se diversificadas, sendo que a maioria das famílias era nuclear ou monoparental, possuía, pelo menos, um relacionamento harmonioso com um membro familiar, e grande parte tinha relacionamentos distantes com tios e avós maternos e/ou paternos, e relacionamentos conflituosos, sobretudo com nora, irmãos, filho, neto, esposo e ex-esposo. Verificou-se, também, entre as famílias estudadas, a presença de antecedentes do uso de drogas de abuso, especialmente maconha, cocaína e crack. Dentre os fatores determinantes para o uso de drogas, evidenciou-se a deficiência de suporte parental, a cultura familiar do uso de drogas e a presença de conflitos familiares. As COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.17, n.44, p.233-4, jan./mar. 2013

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THESES

influence of cultural aspects, beliefs and family values. Maycon Rogério Seleghim Dissertação (Mestrado), 2012 Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá. Com apoio CNPq/Capes/Ministério da Saúde (Edital 41/2010). mseleghim@usp.br

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Keywords: Illicit drugs. Cocaine crack. Family relationships. Family characteristics. Therapeutic community.

Full text available from: http://nou-rau.uem.br/nou-rau/document/ ?code=vtls000198002

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Recebido em 17/08/12. Aprovado em 04/09/12.


“em-cena-ação” científica num país fictício em tempos de publicar ou perecer... mas bem que poderia ser no Brasil

criação

Assim é, se lhe parece:

Murilo Mariano Vilaça1 Isabella Lopes Pederneira2

1 Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, Centro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.051-070. contatoacademico@ hotmail.com 2 Department of Linguistics, Queen Mary, University of London.

Primeiro ato: A mestranda e a descoberta - “E aí, tem publicado?”, indaga-se a uma mestranda. Sem hesitar, ela responde: - “Não! As revistas não publicam textos de quem não tem doutorado3”. - “Mas e se você convidar a sua orientadora para assinar o artigo4?”, sugere-se a ela. - “Boa ideia!”, ela exclama, como se descobrisse os passos para ascender ao paraíso dantesco.

A título de exemplo, o periódico Veritas (PUCRS) informa que “A revista publica apenas trabalhos de professores doutores ou em coautoria com doutorandos”. Disponível em: <http:// revistaseletronicas.pucrs. br/ojs/index.php/veritas/ about/submissions# authorGuidelines>. Acesso em: 23 jan. 2012.

3

4 Órgãos internacionais e nacionais, como a Swiss National Science Foundation, a Austrian Agency for Scientific Integrity e a Fundação de amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, têm demonstrado preocupação com a má conduta definida como “coautoria indevida ou de fachada”, citando-a em seus códigos de integridade científica.

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CRIAÇÃO

Segundo ato: O doutorando entre a cruz e a espada ou entre a bolsa e a relevância - “E aí, tem publicado?”, pergunta um doutorando a uma doutoranda. - “Não. Estou estudando uma nova teoria. Ainda não tenho nada para publicar sobre ela ... estou trabalhando em novas ideias5”, ela responde. - “Mas você não vai pedir bolsa sanduíche?”, ele questiona, pois sabia que ela desejava fazer um estágio em uma universidade no exterior. A verdade é que apenas introduziu a curiosidade para despistar seu verdadeiro objetivo de sondar as publicações da doutoranda. “Você tem de melhorar o seu currículo”, afirma, estupefato, o ‘realista’ doutorando.

Alceu Ferraro, ex-presidente da ANPEd, afirma que, atualmente, “ninguém mais tem tempo para parar e pensar, escrever um artigo tranqüilamente, produzir alguma coisa nova. Tudo é feito em cima do joelho, correndo [...]” (apud Sousa e Bianchetti, 2007, p.402).

5

- “Ah, eu não vou publicar qualquer coisa apenas para dizer que tenho artigos em revistas”, contesta a ‘idealista’ doutoranda. - “Sim...”, concorda, pensativo, o doutorando, “mas aí você corre o risco de ficar sem a bolsa”, conclui, pragmaticamente. - “Sério? Será que isso é tão determinante assim?”, pergunta, demonstrando ligeira preocupação. - “Acho que não é o único critério, mas um bom currículo ajuda6”, ele responde.

Os editores do PLoS Medicine asseveram que, “em alguns países, o financiamento público de instituições inteiras é dependente do número de publicações em periódicos com altos fatores de impacto” (2006, p.707).

6

- “É um absurdo eu ter de publicar qualquer coisa”, esbraveja a criteriosa doutoranda. “Eu estou começando a estudar uma teoria e não quero nem posso falar qualquer coisa. Preciso de tempo para produzir ideias, ainda que eu pudesse juntar palavras em frases gramaticais e publicá-las”. A doutoranda deixa o doutorando pensativo, mas a reflexão não é páreo para o pragmatismo produtivista.

Terceiro ato: O doutorando ‘produtivo’ e o ‘improdutivo’ - “E aí, tem publicado?”, inicia-se outra conversa entre doutorandos. - “Tenho”, diz, satisfeito, o ‘produtivo’. - “Eu, não. Tenho tido dificuldades”, desabafa o ‘improdutivo’. - “E o pior”, constata, sem saída, o ‘improdutivo’: “lá no meu programa, eu só qualifico se tiver publicado um artigo em revista B2 e só defendo se tiver um em uma revista B17”.

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De acordo com reportagem de Righetti (2011), Programas de Pós-Graduação têm substituído Teses e Dissertações pela defesa de artigos publicados em periódicos de alto fator de impacto.

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criação

Quarto ato: O coordenador preocupado - “E aí, tem publicado?”, pergunta um coordenador de programa de pósgraduação a um dos seus alunos. - “Sim, professor, graças a Deus”, responde, aliviado e orgulhoso. - “Em que revistas?”, desconfia o ‘cioso’ coordenador. - “Na ‘x’, ‘y’ e ‘z’, professor”.

Segundo o modelo de avaliação praticada pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio do sistema Qualis, os periódicos são estratificados (A1 a C), o que determina o seu peso (pontuação) acadêmico (com pequenas variações entre as áreas, A1=100; A2=85; B1=70; B2=55; B3=40; B4=25; B5= 10; C= zero). Cf. Documentos de Área 2009. Disponível em: <http://trienal.capes. gov.br/?page_id=568>. Acesso em: 9 fev. 2012. 8

O coordenador ‘faz as contas’ e diz: - “Bom...continue assim, mas pense em outras revistas, com mais poder de ‘produzir diálogo’, para escoar a sua produção8". O aluno sai, e o ‘cioso’ coordenador volta a ler, ainda mais instigado com os pontos alcançados pelo aluno, o capítulo sobre a construção do 2º moinho na “Revolução dos Bichos”.

Quinto ato: O docente de impacto - “E aí, tem publicado?”, inicia-se um capcioso diálogo entre pesquisadores de um programa de pós-graduação nota 7. - “Minha produção está em dia, indo muito bem”, orgulha-se um deles. - “Que bom. Isso é bom tanto para você quanto para o programa”, comenta o outro. - “É ... aquele artigo que enviei para aquela revista de altíssimo fator de impacto foi aceito”, comemora o professor. - “Qual é mesmo o fator de impacto dela?”. - “23,459!”, responde orgulhoso.

Se X é o número de vezes que os itens citáveis (usualmente, artigos, ensaios, notas, resenhas) de um periódico foram citados em dado período (20102011) em revistas indexadas pelo ISI; e se Y é o número total destes itens publicados no mesmo período; o FI do periódico no ano subsequente (2012) é igual a X/Y. 9

- “Meus parabéns”, congratula-o. “Mas me tire uma dúvida: como esse fator 9 é precisamente definido?”, pergunta. - “hahaha ... não sei bem, mas o que importa é que a revista tem um alto fator de impacto ... e isso rende muitos pontos no currículo”, confessa inescrupulosamente. - “Acho que envolve número de citações e de artigos, algo assim”, tentando ajudar o colega. “Aliás”, completa, “acho isso bem relativo”.

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CRIAÇÃO

- “Como assim?”, surpreende-se o orgulhoso autor, pensando na possibilidade de inveja do colega. - “Não estou desmerecendo a sua ‘conquista’”, defende-se, “só acho que número de citações não garante a qualidade da revista, menos ainda dos textos nela publicados10. Pense comigo, se alguém famoso publica um artigo, provavelmente ele será muito lido e muito citado. Mas um autor pode citar aquele artigo motivado por vários interesses, como ‘agregar o valor’ da revista e daquele autor famoso ao seu texto, mesmo que seja incapaz de avaliar o que foi pesquisado e publicado. Além disso, como se faz nos casos em que artigos publicados em grandes revistas são denunciados e cancelados por fraude11? As citações recebidas são canceladas? O fator de impacto é revisto? Enfim...”. - “É, você pode ter alguma razão”, comenta o não persuadido ‘autor de impacto’.

Críticos, por exemplo, os editores do PLoS Medicine, apontam os limites desse índice de qualidade.

10

Flores (2005), por exemplo, afirma que um artigo produzido em 1997 e citado 227 vezes foi retirado da Science depois que um dos autores foi considerado culpado em casos de fabricação e falsificação de dados. 11

Sexto ato: O docente financiável - “E aí, tem publicado?”, pergunta um pesquisador que quer concorrer a um financiamento de pesquisa com um colega. A sondagem prossegue: “Publicou em alguma A1 internacional, com alto fator de impacto12?”. Antes que o colega respondesse, ele arrematou o convite: “É que vou concorrer a um edital importante e preciso de pesquisadores com ‘bons’ currículos para se associarem à pesquisa”. - “Mas de que se trata a pesquisa? Que edital é esse?”, interroga. - “Ah, sim, desculpe-me. Depois te passo os detalhes. Mas não se preocupe, você não vai ter trabalho”. - “Fiquei curioso quanto à possibilidade ‘inusitada’ de participar de uma pesquisa sem ter trabalho, mas depois a gente conversa melhor”, despede-se o desconfiado colega.

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12

Idem notas 6 e 8.


Dowbor (2011), em um texto de rara franqueza, testemunha: “sou obrigado a publicar, pois sem isso o programa da PUC-SP, onde sou professor, não terá pontos necessários ao seu credenciamento” (p.34). 13

criação

Sétimo ato: O docente à procura do artigo Em um diálogo entre dois docentes renomados que atuam numa pós-graduação ‘de excelência’, ouve-se: - “E aí, tem publicado? Já bateu a meta13?”. O colega responde: - “Sim, acabei de fechar. E você?”. - “Ainda não. Faltam ‘x’ pontos. Você não tem um artigo para o qual eu possa ‘contribuir’?”. - “Não sei, mas se não tiver, pensamos em algo juntos. O editor da revista ‘x’ é meu amigo. Resolveremos isso”. - “Ótimo! É sempre bom escrever contigo”, selam a ‘camaradagem científica’. 14 A redundância, o plágio e o autoplágio são outras más condutas científicas comuns.

- “Ah, e outra: também podemos ‘revisitar’ aquele nosso artigo. Um título novo, novas ‘visadas’ e teremos algo para enviar14", sugere perspicazmente. Um deles parece se recordar da época em que sua mãe falava das cotas que tinha de bater na humilde perfumaria da esquina de um subúrbio, mas não entendeu o porquê. Apenas um ordinário déjà vu...

Oitavo ato: O docente ‘sem perfil’ - “E aí, tem publicado? Seus estudos são interessantes”, pergunta e comenta um docente de pós-graduação a um colega. - “Sim, mas as revistas não estão no Qualis”, salienta o colega. - “Xiiiii...sério? Por que publicou nelas, desperdiçando o texto?”, questiona incrédulo. “Eu só publico em revistas B1 para cima”.

15

Idem nota 13.

- “É, acho que serei descredenciado. Colegas já me alertaram para o destino quase inevitável15”, afirma resignado. - “É, talvez você não tenha o perfil da pós-graduação mesmo. A graduação te dará mais liberdade para desenvolver as suas ideias”, consola o colega.

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CRIAÇÃO

Nono ato: A ciência colonizada pela produtividade - “E aí, tem publicado?”, pergunta uma ciência para outra. - “Sim, e muito”, responde. - “Ah, então muita coisa tem sido descoberta, muitos problemas têm sido resolvidos, novos conceitos formulados nos seus domínios”, conclui aquela. - “É...digamos que sim...mas que nenhuma concorrente nos ouça, vejo muito ‘mais do mesmo’16, muito barulho para pouca novidade, muitas verdades reconfirmadas com outras palavras, algumas falsidades também”. - “É mesmo”, compartilha a ciência amiga. “Mas esse assunto é delicado. Melhor nem tocar nele. Afinal, essa é a regra: produzir é a alma do negócio. E de muita quantidade acaba saindo alguma coisa boa”. - “Quem sabe ... vamos torcer”, afirma ceticamente.

Uma história sem moral A cansativa insistência na questão “E aí, tem publicado?” não é apenas um recurso estilístico ou retórico. No nosso entendimento, ela revela traços da cultura acadêmico-científica contemporânea. Como um modo corriqueiro de iniciar conversas e regular condutas no meio acadêmico, ela exprime uma tendência traduzível por uma série de aforismos (publish or perish – publicar ou perecer – e pressure to publish – pressão para publicar – são os mais famosos) que, neste texto, são representados nos discursos construídos. As cenas têm inspiração pirandelliana, imersas no labirinto das aparências e nas farsas cotidianas. “Assim é, se lhe parece” é a tradução de uma peça de Pirandello: “Così è (se vi pare)”. Nela, a verdade é teatralmente abordada nos contextos da realidade e da aparência. As personas que usamos misturam aparência e realidade acadêmico-científica. Concernem às máscaras da realidade oficialmente instituída, expressando algo que predomina, sem, contudo, excluir outras formas de em-cena-ação. Sem mocinhos ou bandidos, finais felizes ou trágicos, as personagens convergem para um ponto comum. A produtividade parece conjugar interesses; forjar círculos virtuosos ou viciosos; representando um ideal de realidade científica tangível, sobretudo numericamente. “É evidente”, diz-se, “a ciência brasileira avança ... já é a sexta colocada em produtividade no mundo”. Resta, todavia, problematizar a ditadura da constatação numérica, criticando e questionando seus fundamentos e efeitos. O conhecimento deve ser qualificado por onde é publicado? A ditadura do periódico é justa ou correta? O que o publicar ou perecer já gera em termos de más condutas científicas? Quais os efeitos mediatos da cientometria vigente? Cenas do próximo capítulo, esperando novas em-cena-ações no teatro acadêmico-científico. 240

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16

Idem nota 14.


criação “Roteiristas associados” AUSTRIAN AGENCY FOR SCIENTIFIC INTEGRITY. Rules of procedure of the Commission for Research Integrity: guidelines for the investigation of alleged scientific misconduct (Annex I). Disponível em: <http://www.oeawi.at/downloads/ Richtlinien_zur_Untersuchung_von_Vorwuerfen_wissenschaftlichen_Fehlverhaltens_e.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2012. COORDENADORIA DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR CAPES. Avaliação Trienal 2007-2009. Documentos de Área, 2009. Disponível em: <http://trienal.capes.gov.br/?page_id=568>. Acesso em: 9 fev. 2012. DOWBOR, L. O professor e a propriedade intelectual. Disponível em: <http:// dowbor.org/2011/08/o-professor-frente-a-propriedade-intelectual-7.html/>. Acesso em: 05 mar. 2013. FLORES, G. Science retracts highly cited paper. GenomeBiology, v.6, n.6, 2005. Disponível em: <http://genomebiology.com/2005/6/6/spotlight-20050617-01>. Acesso em: 23 jan. 2012. FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO - FAPESP. Código de boas práticas científicas. 2011. Disponível em: <http://www.fapesp.br/ boaspraticas/codigo_fapesp0911.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2012. RIGUETTI, S. A vez dos artigos. Obs. Impr., v.15, n.655. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_vez_dos_artigos>. Acesso em: 9 fev. 2012. SOUSA, S.Z. ; BIANCHETTI, L. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil: o protagonismo da ANPEd. Rev. Bras. Educ., v.12, n.36, p.389-409, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n36/a02v1236.pdf>. Acesso em: 9 fev. 2012. SWISS NATIONAL SCIENCE FOUNDATION. Regulations of the National Research Council on the treatment of scientific misconduct by applicants and grantees. 2009. Disponível em: <http://www.snf.ch/SiteCollectionDocuments/ ueb_org_fehlverh_gesuchstellende_e.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2012. THE PLOS MEDICINE EDITORS. The impact factor game: it is time to find a better way to assess the scientific literature (Editorial). PLoS Medicine, v.3, n.6, p.707-8, 2006. Disponível em: <http://www.plosmedicine.org/article/info:doi/10.1371/ journal.pmed.0030291>. Acesso em: 9 fev. 2012. VERITAS. Revista de Filosofia da PUC-RS. Diretrizes para os autores. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/about/ submissions#authorGuidelines>. Acesso em: 23 jan. 2012.

Recebido em 24/07/12. Aprovado em 04/11/12.

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241



criação

SIGHTSEEING Paisagens arquivadas Isabela Umbuzeiro Valent1

Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem. (Deleuze, 1990, p.32)2

As imagens deste número de Interface são fragmentos de um ensaio fotográfico3 em realização. As fotografias que compõem esse número foram realizadas entre 2010-2012, em locais considerados turísticos em Paris, Berlim e Rio de Janeiro. São os chamados “sightseeing”. A expressão, de origem inglesa, costuma não ser traduzida em outras línguas e é repetida constantemente em guias de viagem e revistas de turismo. Enquanto os turistas, dotados com suas respectivas câmeras, iphones, ipads etc., trabalham intensamente na produção de suas imagens, minha câmera se volta para outros ângulos, produzindo um olhar à espreita. Vistas de elementos do dispositivo fotográfico no contemporâneo. Ao contrário do que imaginava, quase não sou notada pelos turistas ao fotografá-los. Sob o ponto de vista da minha objetiva, a paisagem viva dos seres em trânsito, vindos de toda a parte do planeta, empenhados na fabricação de suas imagens, se movimenta rapidamente. Paisagens que talvez não apareçam nas telas ali presentes. Em poucos minutos, chegam, fotografam e se vão. Curioso o esforço empreendido pelos seres em percorrer o globo, gesto que supõe o encontro com o outro, o estrangeiro, o estranho, quando os gestos e as formas de habitar os espaços parecem apenas se repetir em diferentes cenários.

* Terapeuta ocupacional e fotógrafa. Mestranda em Artes (Museu de Arte Contemporâna da Universidade de São Paulo), onde pesquisa relações entre os dispositivos fotográficos e audiovisuais e processos de subjetivação. Desenvolve oficinas audiovisuais e fotográficas em projetos sociais, de cultura e de saúde. Rua Vespasiano, 1243, Vila Romana. São Paulo, SP, Brasil. 05.044-050. isabelavalent@usp.br

2 DELEUZE, G. [1990]. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.

3 A edição das imagens apresentadas nesse número contou com a colaboração da fotógrafa Val Lima.

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243


CRIAÇÃO

sightseeing sightseeing

visita a lugares turísticos excursão turismo

sight

visão/olhar/vista ponto de vista vislumbre/visão vaga aspecto/espetáculo avistar/mirar a vista, no ato aparência estranha/bizarra/ridícula

seeing

olhar/vista considerado observador verificar entender acompanhar

paisagens arquivadas

244

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.17, n.44, p. , jan./mar. 2013














Cristina Amélia Luzio, Unesp, SP Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS, RS Daniel Groisman, Fiocruz, RJ Danilo Saretta Verissimo, Unesp, SP Débora Cristina Fonseca, Unesp, SP Débora Gusmão Melo, Ufscar, SP Denise Herdy Afonso, UERJ, RJ Denise Maria Guerreiro Vieira da Silva, UFSC, SC Denise Martin, Unisantos, SP Denize Cristina de Oliveira, UERJ, RJ Diana Maul de Carvalho, UFRJ, RJ Diego Schaurich, UFMA, MA Dina Czeresnia, Fiocruz, RJ Edna Aparecida Barbosa de Castro, UFJF, MG Eduardo Henrique Passos Pereira, UFF, RJ Elder Cerqueira-Santos, UFS, SE Eliana Claudia de Otero Ribeiro, Instituto Nacional do Câncer, RJ Eliana Mara Braga, Unesp, SP Eliane Portes Vargas, Fiocruz, RJ Eliane Rolim Holanda, UFPE, PE Elisabeth Dias, UFMG, MG Elisete Casotti, UFF, RJ Eliza Helena Oliveira Echternacht, UFMG, MG Elizabeth Fujimori, USP , SP Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP, SP Eloiza da Silva Gomes de Oliveira, UERJ, RJ Ester de Queirós Costa, UFF, RJ Evelyne Nunes Ervedosa Bastos, Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, CE Fabiana Cristina Frigieri de Vitta, Unesp, SP Fábio Bruno de Carvalho, PUC, SP Fabiola Rohden, UFRJ, RJ Fabiola Stolf Brzozowski, UFC, CE Felipe de Oliveira Lopes Cavalcanti, UERJ, RJ Fermin Roland Schramm, Fiocruz, RJ Fernando Seffner, UFRGS, RS Flávio César de Sá, Unicamp, SP Flávio Chaimowicz, UFMG, MG Florêncio Mariano da Costa Júnior, Universidade do Sagrado Coração, SP Francisco Antonio de Castro Lacaz, Unifesp, SP Gabriela Junqueira Calazans, USP, SP Georgia Bianca Martins Bertolani, IESFAVI, ES Geovani Gurgel Aciole, Ufscar , SP Geraldine Alves dos Santos, Feevale, RS Gisele Damian Antonio, UFSC, SC Glória Inês Beal Gotardo, Fiocruz, RJ Grasiele Nespoli, EPSJV, Fiocruz, RJ Greice Meneses, UFBa , BA

consultores ad hoc 2012

Ada Ávila Assunção, UFMG, MG Adriana Miranda Pimentel, UFPE, PE Adriano Maia dos Santos, UFBa, BA Alberto de Vitta, Universidade do Sagrado Coração, SP Alberto Groisman, UFSC, SC Alcindo Antonio Ferla, UCS, RS Alessandro da Silva Scholze, Univale, SC Alex Branco Fraga, UFRGS, RS Amanda Santos Reinaldo, UFMG, MG Ana Abrahão, UFF, RJ Ana Cláudia Bortolozzi Maia, Unesp, SP Ana Maria Canesqui, Unicamp, SP Ana Paula Serrata Malfitano, Ufscar, SP Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira, Unesp, SP Anderson Martins, Unicamp, SP André Mota, USP, SP Andréa do Amparo Carotta Angeli, UFSM, RS Andrea Fachel Leal, UFRGS, RS Andréa Neiva da Silva, ENSP, Fiocruz, RJ Andrea Ruzzi-Pereira, UFTM, MG Ângela Maria Machado de Lima, USP, SP Aurea Maria Zöllner Ianni, USP, SP Beatriz Francisco Farah, UFJF, MG Benilton Carlos Bezerra Junior, UERJ, RJ Bernardino Geraldo Alves Souto, Ufscar, SP Camila Cardoso Caixeta, UFG, GO Camilla Alexsandra Schneck, USP, SP Carla Cilene Baptista da Silva, Unifesp, SP Carlos Alberto Dias, Univale, MG Carlos Botazzo, USP, SP Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ, RJ Carlos Minayo, Fiocruz, RJ Carlos Roberto Castro e Silva, Universidade Cruzeiro do Sul, SP Carmen Lúcia Albuquerque Santana, UEL, PR Carolina Pereira Lobato, UEL, PR Cássia Marisa Manoel, Unesp, SP Cesar Augusto Orazem Favoreto, UERJ, RJ Cinira Magali Fortuna, USP, SP Clara Silvestre Monteiro de Freitas, UPE, PE Clarice Santos Mota, UFBa-BA Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves, UFF, RJ Claudia Maria Mattos Penna, UFMG, MG Cláudia Osório, UFF, RJ Cláudia Passos Ferreira, UFRJ, RJ Claudia Valença Fontenele, USP, SP Cláudio Bertolli, Unesp, SP Clícia Valim Côrtes Gradim, UNIFAL, MG Corina Bontempo Duca de Freitas, Secretaria de Saúde Pública do Distrito Federal, DF Cristiane Gonçalves da Silva, Unifesp, SP


Guilherme Malafai, UnB, DF Gustavo Diniz Ferreira Gusso, USP, SP Gustavo Henrique Dionisio, Unesp, SP Gustavo Nunes de Oliveira, UFS, SE Gustavo Tenório Cunha, Unicamp, SP Helena Maria Scherlowski Leal David, UERJ, RJ Heleno Correa, UERJ, RJ Henrique Caetano Nardi, UFRGS, RS Henrique Salmazo da Silva, USP, SP Ilara Hämmerli Sozzi de Moraes, Ensp, Fiocruz, RJ Islandia Maria Carvalho Sousa, Fiocruz, RJ Israel Rocha Brandão, UVA, CE Ivia Maksud, UFF, RJ Janaína Marques de Aguiar, USP, SP Jandira Maciel da Silva, UFMG, MG Jaqueline Teresinha Ferreira, Fiocruz, RJ João Eduardo Coin-Carvalho, UNIP, SP João José Batista Campos, UEL, PR João Leite Ferreira Neto, PUC, MG João Luis Almeida da Silva, UESC, SC João Paulo Macedo, UFPI, PI Jorge Alberto Bernstein Iriart, UFBa, BA Jorge Lyra, UFPE, PE José Arimatéa Barros Bezerra, UFC, CE Jose Armando Valente, Unicamp, SP José Glebson Vieira, USP, SP José Marçal Jackson Filho, Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, RJ Jose Roque Junges, Unisinos, RS Jussara Cruz de Brito, Ensp, Fiocruz, RJ Karina Pavão Patrício, Unesp, SP Karla Patricia Cardoso Amorim, UFRN, RN Kátia Cristina Portero Mclellan, Unesp, SP Kátia Suely Queiroz Silva Ribeiro, UFPB, PB Kenneth Rochel de Camargo Júnior, UERJ, RJ Kesia Diego Quintaes, UFOP, MG Laercio Fidelis Dias, Uninove, SP Laerte Idal Sznelwar, USP, SP Laura Maria Tomazi Neves, Ufscar, SP Leo Kriger, PUC, PR Lia Silveira, UECE, CE Lilian Koifman, UFF, RJ Liliana Escóssia Melo, UFS, SE Livi Faro, UERJ, RJ Luciana Fontes Vieira, Unicamp, SP Luciana Kind, PUC, MG Luciana Zaranza Monteiro, USP, SP Luciane Maria Pezzato, PUC, SP Ludgleydson Fernandes de Araújo, UFPI, PI Luis David Castiel, Fiocruz, RJ Luís Eduardo Batista, Instituto de Saúde, Núcleo de Serviços e Sistemas de Saúde, SP Luiz Ernesto Troncon, USP, SP Luiz Gonzaga Chiavegato Filho, UFSJ, MG Luiz Roberto Santos Moraes, UFBa, BA Luzia Aparecida Oliveira, USP, SP Lygia Maria de França Pereira, USP, SP Madel Theresinha Luz, UERJ, RJ Marcelo Domingues Roman, Unifesp, SP Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBA, BA Marcelo Firpo de Souza Porto, ENSP, Fiocruz Marcia Hespanhol Bernardo, PUC, SP

Marcia Maria Tavares Machado, UFC, CE Marcia Pompeo Nogueira, UESC, SC Márcia Portilho, UEM, PR Marcia Reis Longhi, Faculdade Damas da Instituição Cristã, PE Marcos Roberto Godoi, UNEMAT, SP Margarete Knoch Mendonça, UFMS, MS Maria Alice Dias da Silva Lima, UFRGS, RS Maria Angélica Tavares de Medeiros, PUC, SP Maria Antonia Ramos Azevedo, Unesp, SP Maria Cristina Dadalto, UVV, ES Maria Cristina Faber Boog, Unicamp, SP Maria Cristina Paganini, UFPR, PR Maria da Conceição Costa Rivemales, UFRB, BA Maria de La Ó Ramallo Veríssimo, USP, SP Maria do Carmo Castiglioni, USP, SP Maria Fátima de Sousa, UnB, DF Maria Gabriela Hita, UFBa, BA Maria Geralda Aguiar, UEFS, BA Maria Inês Badaró Moreira, Unifesp, SP Maria Inês Britto Brunello, USP, SP Maria Madalena Januário Leite, USP, SP Maria Paula Sibilia, UFF, RJ Maria Ruth dos Santos, ANVISA, RJ Maria Teresa Mazzocca Dourado, Prefeitura Municipal de São José dos Campos, SP Mariana Sanmartino, Grupo de Didáctica de las Ciencias, Argentina Marilia Mastrocolla de Almeida, USP, SP Marines Tambara Leite, UFSM, RS Marion Teodósio de Quadros, UFPE, PE Marisa Palacios, UFRJ, RJ Marisa Sacaloski, FMU, SP Marislei Sanches Panobianco, USP, SP Maristela Ines Osawa Chagas, UVA, CE Marta Inez Machado Verdi, UFSC, SC Marta Júlia Marques Lopes, UFRGS, RS Mauro Guilherme Pinheiro Koury, UFPB, PB Michelle Selma Hahn, Ufscar, SP Miguel Ângelo Montagner, UnB, DF Milena Pereira Pondé, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, BA Milton Raimundo Cidreira de Athayde, UERJ, RJ Mirelle Finkler, UFSC, SC Miriam Struchiner, UFRJ, RJ Miriam Suzete de Oliveira Rosa, UFRGS, RS Moab Duarte Acioli, Universidade Católica de Pernambuco, PE Monica de Assis, UERJ, RJ Monica Fantin, UFSC, SC Nadir da Gloria Haguiara Cervellini, PUC, SP Nair Lumi Yoshino, Unicamp, SP Nalú Pereira da Costa Kerber, FURG, RS Natan Monsores, UnB, DF Neide Emy Kurokawa e Silva, UFRJ, RJ Neusi Berbel, UEL, PR Neuza Maria Guareschi, PUC, RS Nilce Campos Costa, UFG, GO Norma Carapiá Fagundes, UFBa, BA Octavio Domont de Serpa Junior, UFRJ, RJ Patrícia Alvarenga, UFBa, BA Patrícia B. Scherer Bassani, Feevale, RS Patricia Lacerda Bellodi, USP, SP Paula Cerqueira, UFRJ, RJ


Sabrina Helena Ferigato, Unicamp, SP Sandra Lúcia Correia Lima Fortes, UERJ, RJ Sandra Maria Galheigo, USP, SP Sandra Portella Montardo, Feevale, RS Sayuri Tanaka Maeda, USP, SP Sérgio Tavares de Almeida Rego, ENSP, Fiocruz, RJ Shirley Santos Teles Rocha, Faculdade Pio Décimo, SE Silvana Carneiro Maciel, UFPR, PR Silvia Justina Papini-Berto, Unesp, SP Sílvia Maria Agatti Lüdorf, UFRJ, RJ Silvia Matumoto, USP, SP Simone Algeri, UFRGS, RS Simone Gonçalves de Assis, Fiocruz, RJ Simone Mainieri Paulon, UFRGS, RS Sofia Cristina Iost Pavarini, Ufscar, SP Sonia Ayako Tao Maruyama, UFMT, MT Sônia Cristina Stefano Nicoletto, Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, PR Sônia Maria Dantas-Berger, UFRJ, RJ Sonia Nussenzweig Hotimsky, FESPSP, SP Soraya Fleischer, UnB, DF Stella Maris Nicolau, Ufscar, SP Telma Flores Genaro Motti, USP, SP Teresa Cristina Bolzan Quaioti, Universidade Sagrado Coração, SP Teresa Cristina Soares, UFJF, MG Tereza Cristina Oliveira, Faculdade Social da Bahia, BA Terezinha Martins dos Santos Souza, UFJF, MG Thiago Félix Pinheiro, USP, SP Valdir de Castro Oliveira, UFMG, MG Valéria Ferreira Romano, UFRJ, RJ Valéria Vernaschi Lima, Famema, SP Vera Lucia Pamplona Tonete, Unesp, SP Virginia Moreira, Unifor, CE Vitor Manuel Costa Pereira Rodrigues, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal Marina Lemos Villardi, Unesp, SP Wagner dos Santos Figueiredo, USP, SP Walter Belik, Unicamp, SP Wilza Vieira Villela, Unifesp, SP Yara Maria de Carvalho, USP, SP

Adriana Kelly Santos, Fiocruz, RJ Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp, SP Kátia Cristina Portero Mclellan, Unesp, SP Maria Dionísia Amaral Dias, Unesp, SP Maria Inês Battistella Nemes, USP, SP Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar, SP Sergio Resende Carvalho, Unicamp, SP Sílvio Yasui, Unesp, SP Vânia Moreno, Unesp, SP

editores de área ad hoc 2012

Paula Corrêa Henning, UFRGS, RS Paula Giovana Furlan, Unicamp, SP Paulo Antonio Carvalho Fortes, USP, SP Paulo Gilvane Lopes Pena, UFBa, BA Paulo Roberto Santana, UFPE, PE Paulo Sergio Dourado Arrais, UFC, CE Pedro Gabriel Godinho Delgado, UFRJ, RJ Pedro Humberto Faria Campos, UCG, GO Pedro Paulo Gomes Pereira, Unifesp, SP Petrônio José Domingues, UFS, SE Priscila Carneiro Valim-Rogatto, UFMT, MT Raquel Maria Rigotto, UFC, CE Raquel Souzas, UFBa, BA Regina Helena Simões Barbosa, UFRJ, RJ Regina Maria Marteleto, Fiocruz, RJ Regina Stella Spagnuolo, Faculdade Pitágoras, PR Regina Zilberman, UFRGS, RS Reinaldo Furlan, USP, SP Renata Borges, Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, SC Renata Maria Zanardo Romanholi, Unesp, SP Ricardo Luiz Narciso Moebus, UFOP, MG Ricardo Sparapan Penna, Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, SP Rita de Cassia Ramos Louzada, UFES, ES Roberto Tadeu Iaochite, Unesp, SP Robson Gonçalves Félix, UFMS, MS Rodrigo Otávio Moretti-Pires, UFSC, SC Romeu Gomes, IFF, Fiocruz, RJ Rosa Maria Bueno Fischer, UFRGS, RS Rosalia Figueiro Borges, Unilasalle, RS Rosana Machin, Unifesp, SP Rosângela da Luz Matos, Escola Nacional de Saúde Publica da Bahia, BA Rosé Colom Toldrá, USP, SP Roseli Ferreira Silva, UFMG, MG Roseli Mieko Yamamoto Nomura, USP, SP Rosemarie Andreazza, Unifesp, SP Roseni Rosângela Sena, UFMG, MG Rosiane de Fátima Ponce, Unesp, SP Rosilda Mendes, Unifesp, SP Rubens de Camargo Ferreira Adorno, USP, SP


INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. FORMA E PREPARAÇÃO DE MANUSCRITOS SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até sete mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até sete mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até sete mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Teses - descrição sucinta de dissertações de mestrado, teses de doutorado e/ou de livre-docência, constando de resumo com até quinhentas palavras. Título e palavras-chave em português, inglês e espanhol. Informar o endereço de acesso ao texto completo, se disponível na internet. Criação - textos de reflexão com maior liberdade formal, com ênfase em linguagem iconográfica, poética, literária etc. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS SUBMISSÃO DE MANUSCRITOS Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos serão submetidos à avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua.

Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Criação, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 25 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé - numeradas, sucintas, usadas somente quando necessário.

CITAÇÕES NO TEXTO No texto, as citações devem subordinar-se à forma Autor (apenas a primeira letra do sobrenome em maiúscula – mesmo quando estiver entre parênteses), data, página. Ex.: “... e criar as condições para a construção de conhecimentos de forma colaborativa (Kenski, 2001, p.31). Casos específicos: a Citações literais de até três linhas: entre aspas, sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado (Autor, data, p.xx sem espaço entre o ponto e o número). Ponto final depois dos parênteses. b Citações literais de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (dois enter antes e dois depois), sem aspas e sem destaque em itálico, negrito ou sublinhado. Em seguida, entre parênteses: (Sobrenome do autor, data, página). Nota: em citações, os parênteses só aparecem para indicar a autoria. Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Vários autores citados em sequência: do mais recente para o mais antigo, separados por ponto e vírgula: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Textos com dois autores: Almeida e Binder, 2004 (no corpo do texto); Almeida, Binder, 2004 (dentro dos parênteses). e Textos com três autores: Levanthal, Singer e Jones (no corpo do texto); Levanthal, Singer, Jones (dentro dos parênteses). f Textos com mais de três autores: Guérin et al., 2004 (dentro e fora dos parênteses). g Documentos do mesmo autor publicados no mesmo ano: acrescentar letras minúsculas, em ordem alfabética, após a data e sem espaçamento (Campos, 1987a, 1987b). REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem alfabética, segundo normas adaptadas da ABNT (NBR 6023/ 2002). Exemplos:

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PROJETO E POLÍTICA EDITORIAL


instruções aos autores

LIVROS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. * Título sempre destacado em negrito; sub-título, não. ** Sem indicação do número de páginas. *** A segunda e demais referências de um mesmo autor (ou autores) devem ser substituídas por um traço sublinear (seis espaços) e ponto, sempre da mais recente para a mais antiga. Se mudar de página, é preciso repetir o nome do autor. Se for o mesmo autor, mas com colaboradores, não vale o travessão. Ex: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Dois ou três autores, separar com ponto e vírgula; mais de três autores, indicar o primeiro autor, acrescentando-se a expressão et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) CAPÍTULOS DE LIVRO: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. * Apenas o título do livro é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo citado. Regras específicas 1 Autor do livro igual ao autor do capítulo: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.). Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.19-28. 2 Autor do livro diferente do autor do capítulo: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 Autor é uma entidade: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Séries e coleções: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. (Visão do futuro, v.1). ARTIGOS EM PERIÓDICOS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Obrigatório indicar, após o volume e o número, as páginas em que o artigo foi publicado. Nota: é importante destacar que, no exemplo acima, está indicada a forma correta de citação de artigos publicados na revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação, de acordo com a ABNT: Interface (Botucatu).

TESES E DISSERTAÇÕES: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. RESUMOS EM ANAIS DE EVENTOS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. * Apenas a palavra Anais é destacada, em negrito. ** Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar o endereço eletrônico: Disponível em:<...>. Acesso em (dia, mês, ano). *** Quando o trabalho for consultado em material impresso, colocar página inicial e final. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS: WAGNER, C.D.; PERSSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Disponível em: <http://www.probe.br/science.html>. Acesso em: 20 jun. 1999. * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito. ** Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). ILUSTRAÇÕES: Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 200 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, em tons de cinza, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores associados). A publicação do trabalho implica a cessão integral dos direitos autorais à Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Não é permitida a reprodução parcial ou total de artigos e matérias publicadas, sem a prévia autorização dos editores. Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos editores e do Corpo Editorial da revista.


INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system (http://mc04.manuscriptcentral.com/ icse-scielo). All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. FORM AND PREPARATION OF MANUSCRIPTS

Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Creation, Brief notes and Letters). The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 25 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes - numbered, short and to be used only if necessary.

SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to seven thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to seven thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to seven thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Theses - succinct description of master’s theses, doctoral dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing abstract (up to five hundred words). Title and keywords in Portuguese, English and Spanish. Access address to the full text, if available in the internet, must be informed. Creation - written reflections emphasizing iconographic, poetic, or literary language, thus allowing formal liberty. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Observation: in case of counting the text words, the title, the abstract and the keywords are excluded.

QUOTATIONS Quotations included in the text must follow the format Author (capital letter only in the first letter of de author’s surname - even when it is in parentheses), date. Specific cases: a Literal quotations of up to three lines: enclosed by quotation marks, with no italics (Author, date, p.xx with no space between the dot and the number). Full stop after the parentheses. b Literal quotations of more than three lines: in a paragraph detached from the text (two enter before and after the quotation), without quotation marks, without italics. Right after, in parentheses: (Author’s surname, date, page). Note: in quotations, the parentheses are used only to indicate authorship. To indicate quotation fragment, use square brackets: […] encontramos algumas falhas no sistema […] quando relemos o manuscrito mas nada podia ser feito […]. (Fulano, Sicrano, 2008, p.56). c Many authors cited in sequence: from the most recent to the oldest, separated by semi-colon: (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani, 1994). d Texts with two authors: Almeida and Binder, 2004 (in the text body); Almeida, Binder, 2004 (in the parentheses). e Texts with three authors: Levanthal, Singer and Jones (in the text body); Levanthal, Singer, Jones (in the parentheses). f Texts with more than three authors: Guérin et al., 2004 (in or out of the parentheses). g Documents by the same author published in the same year: add small letters, in alphabetical order, after the date, without space (Campos, 1987a, 1987b).

SUBMITING ORIGINALS

BOOKS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. *Only the title should be highlighted in boldface; do not highlilight the subtitle. ** Do not indicate the numbers of pages. *** Two or more references of the same author (they may be a book and an article): if they are on the same page,

INTERFACE - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers can be submitted for publication. Translations of texts published in another language will not be accepted.

REFERENCES All authors quoted in the text must be listed at the end of the text, in alphabetical order and in compliance with adjusted ABNT standards (NBR 6023/2002), as showed in the following examples:

instructions for authors

PROJECT AND EDITORIAL POLICY


instructions for authors

indicate with a dash from the second article/book onwards (six continuous underscores). If they are not on the same page, the author’s name must be repeated. If it is the same author, but with collaborators, do not use the dash. Ex.: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. (Coleção Leitura). ______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. **** Two or three authors must be separated by semicolons; more than three authors: the first author must be indicated, followed by the expression et al. Ex.: CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, 1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) BOOK CHAPTERS: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. *Only the title of the book should be highlighted in boldface. ** The initial and final pages of the chapter must be indicated at the end of the reference. Specific rules: 1 The book’s author is the same as the chapter’s author: HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.) Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997, p.19-28. 2 The book’s author is different from the chapter’s author: VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103-18. 3 The author is an entity: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3.ed. Brasília: SEF, 2001. 4 Series and collections: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana, 1993. 20p. (Visão do Futuro, v.1). ARTICLES FROM JOURNALS: FERNANDEZ, J.C.A.; WESTPHAL, M.F. O lugar dos sujeitos e a questão da hipossuficiência na promoção da saúde. Interface (Botucatu), v.16, n.42, p.595-608, 2012. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The pages on which the article was published must be indicated after the volume and number. Note: it is necessary to observe the correct citation of papers published by Interface – Comunicação, Saúde, Educação: Interface (Botucatu), as is indicated by the ABNT (Technical Rules Brasilian Association).

THESES AND DISERTATIONS: IYDA, M. Mudanças nas relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979. ARTICLES FROM EVENTS PROCEDINGS: PAIM, J.S. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo. Anais... São Paulo, 1995. p.5. *Only the word Anais should be highlighted in boldface. ** When the work is consulted online, the electronic address must be mentioned: Available from:<...>. Access on (day, month, year). *** When the work is consulted in printed material, the initial and final pages must be mentioned. ELECTRONIC DOCUMENTS: WAGNER, C.D.; PERSON, P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res., v.40, p.257-64, 1998. Available from: <http://www. probe.br/science.html>. Access on: Jun 20. 1999. * Only the title of the journal should be highlighted in boldface. ** The authors must verify if the electronic addresses (URL) cited in the text are still active. Note: if the reference includes the DOI, it must be maintained. Only in this case (when the quotation is extracted from SciELO, the DOI is always mentioned; in other cases, not always). ILLUSTRATIONS: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 200 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, in shades of gray, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Submissions must be made online at: http:// mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will be submitted to a preliminary evaluation by the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed by peers (two reviewers at least). It will be returned to the author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (publishers and associated publishers). Publication of the article implies that the copyrights are fully transferred to Interface - Communication, Health, Education. The partial or entire reproduction of the published texts is prohibited without prior authorization from the publishers. The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers.





Publicação Publicação interdisciplinar dirigida interdisciplinar para a e a para dirigida a Educação Educação e a nas Comunicação Comunicação nasa práticas de saúde, práticas de saúde, formação de a formação de profissionais de saúde profissionais de (universitária e saúde (universitária continuada) e a Saúde e continuada) ea Coletiva em sua Saúde Coletiva em sua articulação articulação com a com e Filosofia e aasFilosofia Ciências as Ciências Sociais Sociais e Humanas. e Humanas.

Assinatura Anual (4 exemplares) Caixa Postal 592 Brasil Botucatu - SP -- Brasil 18.618-000 individual R$ 100,00 Fone/fax: (5514) -3880.1927 institucional R$ 140,00 intface@fmb.unesp.br

Exterior

individual US$ 100,00 Textos completos-em . <http://www.scielo.br/icse> institucional - US$ 140,00 . <http://www.interface.org.br> Exemplar avulso - R$ 35,00

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APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EM

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br> . CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades <http://www.dgbiblio.unam.mx> . CCN - Catálogo Coletivo Nacional/IBICT <http://ccn.ibict.br> . DOAJ - Directory of Open Access Journal <http://www.doaj.org> . EBSCO Publishing’s Electronic Databases <http://www.ebscohost.com> . EMCare - <http://www.info.embase.com/emcare> . Google Academic - <http://scholar.google.com.br> . LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - <http://www.latindex.unam.mx> . LILACS - Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde - <http://www.bireme.org> . Linguistics and Language Behavior Abstracts - LLBA <http://www.csa.com.br> . Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal - <http://redalyc.uaemex.mx/> . Coleção SciELO Brasil/Coleção SciELO Social Sciences <http://www.scielo.br/icse> <http://socialsciences.scielo.org/icse> . Social Planning/Policy & Development Abstracts <http://www.cabi.org> . Scopus - <http://info.scopus.com> . SocINDEX - <http://www.ebscohost.com/ biomedical-libraries/socindex> . CSA Sociological Abstracts - <http://www.csa.com> . CSA Social Services Abstracts - <http://www.csa.com> TEXTO COMPLETO EM . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente editorial/Editorial Assistent/Asistente editorial Adriana Ribeiro Assistente administrativo/Administrative assistent/ Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) Jaime-Maria Batlhe (Espanhol/Spanish/Español) Versão eletrônica/Online version/Versión electrónica Lucas Frederico Arantes SECRETARIA/OFFICE/SECRETARÍA Interface - Comunicação, Saúde, Educação Distrito de Rubião Junior, s/n° - Campus da Unesp Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br www.interface.org.br DISTRIBUIÇÃO PARA LIVRARIAS/DISTRIBUTION/ DISTRIBUCIÓN PARA LIBRERÍAS Editora UNESP Praça da Sé, 108 São Paulo - SP - Brasil 01001-900 Fone: (5511) 3242.7171 (ramal 414/417) Fax: (5511) 3242.7171 (ramal 415) E-mail: vendas@editora.unesp.br www.editoraunesp.com.br

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